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SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA INDEPENDENTE

CURSO MÉDIO EM TEOLOGIA

MICHAEL FERREIRA DE SOUZA

ACONSELHAMENTO PASTORAL

Ouvir é uma Arte

FORTALEZA
2023
MICHAEL FERREIRA DE SOUZA

ACONSELHAMENTO PASTORAL

Ouvir é uma Arte

Trabalho de conclusão da disciplina


de Aconselhamento Pastoral

FORTALEZA

2023

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Ouvir é uma Arte

“Descobrimos com efeito, no início para nossa máxima


surpresa, que os sintomas histéricos individuais desapareciam
em seguida e sem retornar quando se conseguia despertar
claramente a lembrança do processo ocasionador,
convocando ao mesmo tempo o afeto que o acompanha, e
quando o enfermo descrevia esse processo da maneira mais
detalhada possível e expressava em palavras o afeto”
[FREUD & BREUER, 1895].

Na perspectiva psicoanalítica, as palavras desempenham um papel crucial no


desenvolvimento humano e na formação do eu (self). Dentro desta abordagem, o ofício do
analista é a arte de ouvir que, como qualquer arte, pode ser aprendida e aprimorada com o
tempo. Esse ouvir ativo é o que chamamos de escuta terapêutica. Neste texto, tratamos
superficialmente da importância da atenção e da linguagem não-verbal na escuta
terapêutica e dos riscos do narcisismo à eficácia de sua prática.

Na citação destacada na abertura deste texto, Sigmund Freud (1856 - 1939), afirma
que a própria produção do diálogo pode ser terapêutica, ou seja, um instrumento de cura.
Carl Jung (1875 - 1961), o famoso psiquiatra e psicanalista suíço, também acreditava que a
linguagem e as palavras desempenham um papel significativo na experiência humana e que
o uso de palavras pode ser curativo [MOWAT, 2013]. Na mesma linha, Jacques Lacan
(1901 - 1981), psicanalista francês, afirmava que a experiência humana é
fundamentalmente moldada pela linguagem e que as palavras são o principal meio pelo
qual os indivíduos passam a compreender a si mesmos e ao mundo ao seu redor [PRADO,
2021]. Para ele, o processo de aquisição da linguagem está intimamente ligado ao
desenvolvimento do sentido de si. Ele acreditava que, à medida que as crianças aprendem
a falar, elas também aprendem a se identificar como indivíduos separados com desejos e
necessidades distintas [LEMOS, 2014]. A escuta terapêutica é a materialização desse
processo de autoconhecimento e cura.

A escuta terapêutica, como toda especialidade médica, requer uma metodologia,


uma técnica e ela começa com a atenção. O analista precisa estar presente e focado no
orador, prestando atenção tanto em suas palavras quanto em sua linguagem não-verbal. Se
escutar é um processo físico de receber sons, ouvir é um processo ativo e intencional de
interpretar, entender e responder aos sons que ouvimos. A escuta terapêutica não pode ser
mecanizada, pois, em certa medida, também é arte já que requer um certo nível de
habilidade, atenção e intencionalidade para fazê-lo de forma eficaz. Na escuta terapêutica,
é preciso que o ouvinte se concentre e compreenda o orador, criando assim uma sensação
de validação e segurança. Este ambiente de presença pode intensificar o desejo de
compartilhar pensamentos e sentimentos. Além disso, prestando atenção, o ouvinte pode
entender melhor a perspectiva do falante e adequadamente respondê-lo.

Esta atenção deve estar voltada não apenas às palavras, seus ritmos e suas
pausas, mas também as expressões físicas, expressões faciais, gestos e linguagem
corporal. Essa linguagem não verbal pode comunicar tanto quanto, se não mais, do que as

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palavras. Os sinais não-verbais podem transmitir emoções, podem evidenciar um desejo de
se aproximar ou recuar. Além disso, as expressões físicas também indicam o grau de
atenção e engajamento ativo em um diálogo. Por exemplo, o contato visual e o aceno de
cabeça podem indicar ao orador que ele tem a atenção do ouvinte, enquanto desviar o olhar
ou ficar inquieto pode indicar o contrário.

Esta atenção à linguagem não verbal é fundamental no trato com crianças e idosos
que podem ter mais dificuldade em verbalizar suas emoções [ALVES, 2022]. As crianças,
por um lado, ainda estão desenvolvendo a linguagem e podem não ter o vocabulário ou a
compreensão das emoções para se expressarem com precisão. Além disso, em geral, elas
não têm a perspectiva da experiência de vida para colocar em palavras suas emoções. Por
outro lado, os idosos também podem ter dificuldade em expressar suas emoções devido ao
declínio cognitivo ou às normas culturais e sociais que podem tê-los ensinado a suprimir
suas emoções ou a não falar sobre elas. Em ambos os casos, as expressões físicas podem
ser de grande auxílio na compreensão não apenas do dito, mas do que se queria dizer.

Outro aspecto que o analista ou ouvinte da escuta terapêutica deve dedicar atenção
é às suas próprias motivações. Como destacado por Mark Epstein (1953 - ), o terapeuta
deve estar ciente do papel do seu próprio inconsciente no processo terapêutico.

“Esse estado de simples escuta, de imparcialidade, é ao


mesmo tempo completamente natural e extremamente difícil.
É um desafio para os terapeutas deixar de lado seus desejos
de cura de um paciente, suas conclusões imediatas sobre as
comunicações do paciente e seus ‘insights’ sobre as causas
do sofrimento do paciente, para que possam continuar a ouvir
do paciente o que ainda não entendem“ [EPSTEIN, 1996].

De fato, ainda que estando presente e sendo parte ativa de sua construção, a
satisfação do ouvinte não é o objetivo da escuta terapêutica. Não raramente deixamos
aflorar um certo narcisismo que, pela necessidade de admiração e atenção, infla o senso de
auto-importância, reduzindo a empatia pelos outros. Este comportamento pode se
manifestar de várias maneiras, desde fantasias grandiosas sobre a própria habilidade até a
obsessão com a autoimagem. O narcisismo pode causar dificuldades significativas na
escuta terapêutica e pode limitar severamente seus resultados.

Ainda que a escuta terapêutica seja uma prática secular, ela pode ser muito útil no
contexto do aconselhamento pastoral ou discipulado, mas sem dar segundo plano à
primazia dos valores bíblicos sobre as experiências individuais ou até coletivas. Ao final, o
papel da igreja é expor Cristo ao mundo e, dentro deste propósito, a fonte de significados e
juízos de valor é a escritura bíblica. Sendo assim, a atribuição de valor moral às nossas
experiências precisa ser balizada em uma rocha mais sólida que as percepções pessoais.
Neste contexto, a escuta de terapêutica pode ser um ponto de partida, mas as escrituras
devem ser o ponto de chegada e qualquer jornada terá fracassado sem o reconhecimento e
a apropriação da pérola de maior valor.

Finalmente, uma alma humana precisa de outra alma humana, pois, mesmo no
jardim paradisíaco, não era bom que o homem estivesse só. Ser ouvido é não estar só e,

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portanto, um privilégio dado aos homens, cabendo ao analista ou ouvinte fazer jus a este
chamamento divino com toda atenção às linguagens verbais ou não utilizadas pelo orador
e, mais ainda, às suas próprias motivações para fazê-lo.

REFERÊNCIAS

[ALVES, 2022] ALVES, Gilberto Gedaías. Ouvir é uma arte. YouTube, 2022.
https://youtu.be/y3oHKfBQJ9c. Acessado em 01/02/2023.
[CHAVES, 2009] CHAVES, Wilson Camilo. Considerações a respeito do conceito de real
em Lacan. Psicologia em Estudo, v. 14, p. 41-46, 2009.

[EPSTEIN, 1996] EPSTEIN, Mark. (1996). Thoughts without a Thinker: Psychotherapy from
a Buddhist Perspective. New York: Harper Collins.

[FREUD & BREUER, 1895] FREUD, S.; BREUER, J. (1895d). Estudios sobre la histeria.
AE: 2; SB: 2.

[LEMOS, 2014] DE LEMOS, Cláudia Thereza Guimarães. A criança e o linguista: modos de


habitar a língua?. Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), v. 43, n. 2, p. 954-964, 2014.

[MOWAT, 2013] MOWAT, Harriet et al. Listening as health care. 2013.

[PRADO, 2021] PRADO, Luiz. Como Lacan renovou a psicanálise e a aproximou das
ciências humanas. Jornal USP, 2021. Sítio https://jornal.usp.br/cultura/como-lacan-renovou-
a-psicanalise-e-a-aproximou-das-ciencias-humanas/. Acessado em 01/02/2023.

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