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8 O pacto da escuta hospitaleira

Como o palhaço, nos colocamos no ponto de vista do outro reconhecendo a beleza e inteireza da
vida que se apresenta diante de nós. Admitindo que nelas as coisas estão como estão em função
de suas próprias causas, motivos e razões. Partimos assim da hipótese de que naquela vida nós é
que somos o estrangeiro, que precisa descobrir as regras daquela cultura, não é aquela forma de
vida que tem que nos dar satisfações ou justificar-se segundo nossos critérios.
Como o palhaço nos ocupamos de ler o sofrimento e a miséria dos outros, trazendo-os para
nós mesmos e criando com eles alguma graça. O psicanalista não é apenas afetado
cognitivamente pelo que seu paciente diz, mas também em seu corpo, em sua presença, ou no
juízo mais íntimo do seu ser. Neste ponto, em que compartilhamos o dito e o semidito, no qual
reconhecemos profundamente e sem meias-voltas os afetos piores e melhores, as certezas, mas
também as indeterminações, que a escuta do analista e do palhaço ultrapassam a mera simpatia,
criando a intimidade necessária para formar a empatia.
Assim, o pacto de acolhimento e hospedagem do outro é o começo da escuta. Se não
conseguimos nos fidelizar na busca pela “interessância” do outro, a buscar o ponto de vista no
qual a viagem se tornará enriquecedora para ambos, provavelmente a relação de escuta se
transformará em outra coisa: persuasão, exibição, concorrência ou animosidade, quando não
educação e obediência.
Como palhaços, brincamos a sério com os outros, devolvendo um fragmento de verdade que
eles mesmos nos mostraram sem perceber. Nossa escuta não apenas acolhe e sanciona, ela
também enigmatiza, questiona e critica. Como o bufão, que é capaz de dizer certas coisas para o
rei, ou como Sancho Pança, que ajuda Dom Quixote dentro da sua viagem fantástica, o palhaço e
o psicanalista oferecem palavras e presenças. Aqui, a escuta é hospitaleira. A escuta psicanalítica
é, antes de tudo, parte da ética do cuidado, uma forma de permitir que o sujeito se escute e, a
partir disso, cuide de si. Essa não é apenas uma técnica de gerência baseada na submissão a uma
disciplina de procedimentos. Já dissemos anteriormente neste livro ninguém vira psicanalista ou
palhaço seguindo regras piamente.
Podemos dizer que a escuta envolve um contrato, cuja cláusula primeira é o acolhimento.
Como todo contrato, este cria uma espécie de regra mutuamente consentida entre os
participantes, regra que pode ser suspensa e suprimida a qualquer momento. Nos primeiros
contatos de escuta, forma-se, assim, uma espécie de pacto, de acerto ou combinado, que pode
ser, inclusive, transgredido, no andar da escutação.

1. Sentir o que o outro sente, assumir a perspectiva dele, segundo sua própria língua e suas
próprias razões. Se não houver empatia (Einfüllung) entre analista e analisante, é melhor
procurar outro. Para criar empatia, nessa situação, dependemos de uma autoridade suposta,
mas principalmente da confiança que se estabelecerá nos primeiros momentos do
tratamento. Isso nunca é certo e controlável, sendo nossa tarefa trabalhar para criar as
condições favoráveis para que isso aconteça. Para ser bem executado, é preciso sair de si,
não se levar demasiadamente a sério e orientar-se para aquela posição que seu paciente (ou
sua plateia) requer. Uma dificuldade típica do iniciante nesta matéria é ficar tão
intensamente dedicado ao cumprimento de seu papel, a comportarse com um bom
psicanalista (ou bom palhaço), a cumprir as expectativas “criadas por si mesmo”, que deixa
de se preocupar com o que é realmente importante, ou seja, o outro.
2. Reagir com prontidão, em atenção ao tempo e cuidando das contingências de um encontro
sem roteiro. A melhor escuta deve deixar o interlocutor o mais livre que puder na relação
com as palavras. Se ele associa livremente, nós devemos nos esforçar por manter uma
escuta equiflutuante, sem foco específico, mas atenta para ser capturada por um detalhe
dissonante ou por uma variação de intensidade na fala. Ou seja, não basta colocar-se no
ponto de vista do outro, é preciso também admitir que o outro não sabe tudo sobre si, que
ele não tem os problemas e as soluções bem-postos em sua cabeça, afinal, se ele tivesse, não
estaria te procurando.
3. Criar junto com o outro e deixar-se afetar pelo outro. Deixar-se levar, compartilhando, ainda
que provisoriamente, não só suas opiniões e ideias, mas principalmente o que há de estranho
no outro, suas incertezas e confusões, suas incoerências e descaminhos. Brincar é a nossa
aprendizagem para a criação. Ouvir é uma faculdade sensorial e passiva, escutar exige
receptividade, mas é, sobretudo, uma atividade. Infelizmente, dizemos que alguém é surdo
tanto quando apresenta um distúrbio auditivo, quanto quando não consegue apreender e
receber o que o outro diz. Escutar é uma disposição a reverberar, pontuar, ecoar, tencionar
ou participar da fala do outro. O bom escutador é leitor de textos e de pessoas, alguém que
se interessa por entrar na vida alheia porque ela é um desafio de leitura, como um bom livro
ou filme que, ao procurarmos ler ou assistir, enriquecemos. Um bom escutador é como um
bom editor, ele pode mudar um ponto para reticências ou exclamação, o parágrafo pode
dividir ou reunir duas ideias, a vírgula cria um tempo de respiração, às vezes um sinônimo
muda tudo. Ele pode até sugerir um novo título para o capítulo, ou sentenciar o corte de
uma frase em duas. Mas ele não é o autor do livro e deve respeitar a palavra final deste no
aclaramento interrogativo do que está sendo dito, antes de interpor outra colocação.
4. O quarto tempo da escuta é o dizer. Esse dizer tem algumas exigências consagradas pela
prática clínica, por exemplo: acompanhar o tempo da relação de fala (timing), buscar certa
concisão pela qual a intervenção mínima trará o máximo efeito e, principalmente, algum
efeito de surpresa ou descoberta. O dizer do psicanalista e do palhaço corta e edita, entende
e desentende, recria o dito em outra forma, de tal maneira que, no final, encontramos
naquilo que foi dito algo a mais ou a menos do que se “queria dizer”. Quando isso acontece,
a escuta completa-se em um tempo de leitura. Ler no outro os efeitos do seu dizer. Ler em si
os efeitos do seu dizer sobre o outro. Pode ser uma fala oracular ou enigmática, pode ser
uma denúncia intempestiva ou um silencio que ressoa e critica o humor de uma situação.
Aqui o modelo segue a simplicidade do gesto do palhaço, que quer agradar, mas não
emular, que busca o aplauso, mas não a aprovação banal e gratuita. O tempo da leitura é o
tempo pelo qual a experiência se tornará memória. É aquela conversa depois do filme,
aquele relato depois da viagem, aquela história que contamos depois da festa, como que a
arrumar o lugar de cada coisa e de cada detalhe para que a coisa possa ficar bem guardada
dentro de nós, antes de seguirmos viagem.
9 O hospital da escuta viajante

Além de jogar e representar, a arte da escuta exige as qualidades que se espera de um bom
viajante. Há pessoas que viajam com um roteiro fixo em que qualquer contratempo é sentido
como uma ameaça. Há outras que tiram tantas fotografias para lembrar-se depois, que
conseguem se evadir do agora e não vivem o que define a essência da viagem, que é a arte do
encontro contingente. Viajar é redescobrir-se outro, naquele país novo e diferente, e que nos
tornará outros quando voltarmos para nosso lugar. Ora, entrar em contato com o desconhecido
sem se sentir ameaçado por ele é o que esperamos de alguém disposto a nos ouvir e se
surpreender com o que dizemos, como se fosse uma viagem feita com palavras.
Imagine alguém que pense a viagem como um deslocamento físico que tem um ponto de
partida e outro de chegada. Imagine que essa pessoa faça planos muito minuciosos. Que leia e se
informe detalhadamente de todos os lugares aonde irá, de tudo o que terá que comer e de visitar.
Imagine agora que tudo saiu exatamente como planejado, e ao final tirou nota 10. Tudo correu
tão perfeitamente conforme o esperado que podia até mesmo ter contado a viagem passo a passo
para seu amigo antes de ter embarcado. As fotos que tirou são exatamente aquelas que queria
tirar, por ter visto os lugares que viu dos mesmos ângulos que tinha estudado.
Avaliação final: a viagem foi chata. Só falta querer repassar as fotos para os amigos como se
fosse uma aula. Da próxima vez, considere ler um bom livro em casa, pois vai te levar a uma
viagem mais interessante.
Mas a estrutura da viagem depende do seu ponto de retorno. E o lugar de retorno, no qual a
viagem termina ou se interrompe, é o parêntese da vida, o hospital para onde vamos restabelecer
forças depois de uma longa jornada. Damos o nome de “restaurante” para lugares que servem
comida porque inicialmente esses estabelecimentos tinham uma dupla função: albergagem e
restauração de peregrinos.
A Alemanha é a terra de meu pai e de meus e avós paternos e maternos. A terra da qual tinha
ouvido falar tantas vezes na escola alemã em que estudei. Sem querer ou planejar, sentia que já
sabia mais ou menos como as coisas seriam. Tinha até um maço de notas (marcos alemães, na
época) que minha avó me dera como um presente simbólico. Vindo da Holanda, cruzei a
fronteira e desci para abastecer o carro e, na hora de pagar, saquei garbosamente o maço de
notas. O atendente olhou meio rindo, meio suspeito para mim dizendo que eu devia estar de
sacanagem. Pânico. Será que eu tinha entendido certo “aquela” palavra? Coloquei o tipo de
gasolina errado? Percebendo minha vulnerabilidade, ele piedosamente esclareceu que há uns
vinte anos ninguém usava aquelas notas. Elas foram recolhidas e talvez algum banco pudesse
trocá-las, mas que ali ele precisava de dinheiro “de verdade”. Eu gani algo como “perdão, mil
desculpas… é que eu sou brasileiro”. Ele, percebendo a fila se formar atrás de mim, rosnou de
volta: “E daí que você é brasileiro? Eu sou turco”.
Saí do posto de gasolina meio desarvorado com a falta de hospitalidade, e envergonhado com
minha atrapalhação. Depois disso, ri de mim mesmo. Afinal, de onde eu tirei a ideia de que os
alemães seriam receptivos, acolhedores e compreensivos, ainda mais com quem estava
atrapalhando o funcionamento das coisas. De onde tinha vindo a fantasia de que eu diria
“brasileiro” e alguém do outro lado diria: “Bem-vindo! Estávamos esperando por você! (Há uns
vinte anos)”.
Lição maior: não é só você que está viajando. Visto pelo ângulo certo, o outro é tão
estrangeiro quanto você.
Depois disso senti-me imediatamente em casa… Mas agora de outro jeito. Descobri que
viajar é sair do lugar, principalmente dos lugares imaginários e geralmente confortáveis onde nos
colocamos e antecipamos os outros.
Entrei no carro e disse para minha esposa: “Vamos em frente!”. Enquanto segurava
corajosamente o mapa, e avançávamos na direção de um daqueles entroncamentos quíntuplos de
pontes, estradas e pedágios, com aspecto de monstro de seriado japonês, feitos de lixo e
poluição, prestes a ganhar vida própria (e pisar em alguns carros). Abri o mapa ainda mais e ele
pegou uma rajada de vento, voando janela afora. Perdidos. Sem dinheiro. Em meio a um nó de
estradas de alta velocidade, com o narcisismo abalado pelo ataque otomano e diante do Godzila,
que agora movia seu primeiro dedo mínimo rumo a Munique.
Do ponto de vista da eficácia prática de viajar, o que acabei de contar é uma sucessão de
desastres. Foram vividos como tal e até hoje prefiro evitar aquela área. Mas, do ponto de vista do
processo, essa sucessão de contingências me deixou a mais vigorosa lembrança sobre o que seria
reencontrar uma terra imaginária. O resultado foi ruim, mas a experiência foi boa, deu uma boa
história. É isso que um escutador quer extrair das pessoas, o processo, a experiência, para além
ou para aquém dos resultados e seus fins. A viagem se completa com a história que fazemos
dela, ou seja, quando conseguimos passá-la para outro que não estava lá, e dessa forma
reconstruir e reparar nossa própria experiência. A viagem se completa quando nós a escutamos.
Quando a escutamos nos tornamos parte de outras histórias; nesse caso, de meus ancestrais, mas
agora de vocês que estão lendo este livro.
É a história que se conta e que se impõe aos fatos dos quais ela é composta. É o valor de
memória dos encontros que se sobrepuja à eficiência do planejamento. Por isso aprender a
escutar é aprender a errar, no duplo sentido de enganar-se, voltar atrás e corrigir-se, mas também
de errar no sentido da errância, do perambular sem destino, como Moisés errou quarenta anos no
deserto antes de achar a terra prometida. Muitas vezes chamamos de “jogar conversa fora”, mas
que para o escutador é só um pretexto para “jogar palavras para dentro”.
Escutar é abrir-se para a experiência, acolhendo a vulnerabilidade e a contingência na qual
ela nos coloca. Escutar é jogar, representar e viajar.

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