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PALAVRA
mente condenado pelos bispos. A confissäo auricular, de boca a orelha, no que é inseparåvel da atengäo deliberada, [e que é o del seleccionar o mate-
segredo do confessionårio, näo existia na época patristica; surgiu (por volta rial oferecido; quando a concentragäo incide com intensidade particular em
do século VII) dos excessos da confissäo püblica e dos progressos da cons- determinado ponto, elimina-se outro em
compensagäo, e esta escolha é
ciéncia individual: «a pecado püblico, confissäo püblica, a pecado privado, ditada por expectativas e tendéncias pr6prias. É precisamente o que se
confissäo privada». A escuta limitada, emparedada e quase clandestina «a — deve evitar; fazendo depender a escolha da expectativa, corre-se o risco de
s6s» —constituiu, portanto, um «progresso» (no sentido moderno), visto s6 se encontrar o que jä se sabia; seguindo as pr6prias inclinagöes, falsifica-
que assegurou a protecqäo do individuo contra o poder do grupo. Assim, a -se tudo o que possa vir a ser objecto de percepgäo. Näo esquegamos
escuta, privada de culpa, desenvolveu-se, pelo menos no indice, margem nunca que, com frequencia, o significado daquilo que se ouve s6 se revela
da instituigäo eclesiåstica: entre os monges, sucessores dos mårtires, sobre a mais tarde.
Igreja, se assim se pode dizer; ou entre hereges, como os cåtaros; ou ainda «A norma de anotar tudo, uniformemente, no decorrer das sessöes
em religiöes pouco institucionalizadas, como o budismo, em que a escuta corresponde, como se ve, regra que é imposta ao analisado, segundo a
privada, «de irmäo a irmäo», se pratica regularmente. qual näo pode omitir nada do que lhe ocorrer, renunciando a qualquer cri-
Assim configurada pela pr6pria hist6ria da religiäo cristä, a escuta tica e selecgäo. Comportando-se de outro modo, o médico anula grande
relaciona dois sujeitos; mesmo quando é uma multidäo (uma assembleia parte do beneficio proporcionado pela obediéncia do paciente "regra psi-
politica, por exemplo) que se quer colocar em situagäo de escuta canalitica fundamental". Eis como deve ser enunciada a regra que é
(«Ougam!»), é para receber a mensagem de um s6 que pretende fazer ouvir imposta ao médico: evitar que se exerga sobre a sua faculdade de observa-
a singularidade (énfase) dessa mensagem. A ordem de escutar é o apelo gäo qualquer tipo de influencia, e confiar apenas na sua "mem6ria incons-
total de um sujeito a outro: coloca em primeiro lugar o contacto quase ciente" ou, em linguagem técnica simples: "Escutar sem se preocupar com
fisico desses dois sujeitos (pela voz e ouvido), cria a transferéncia: o facto de saber se vai fixar alguma coisa"» [ibid., pp. 532-33].
«ouga-me» quer dizer «toque-me, saiba que existo». Na terminologia de Regra ideal, é dificil, se näo impossfvel, respeitå-la. O pr6prio Freud
Jakobson, «ouga-me» é fätico, é um operador de comunicagäo individual. näo lhe obedece sempre, por exemplo quando quer experimentar um frag-
O instrumento arquétipo da escuta moderna, o telefone, reine dois parcei- mento de teoria cuja descoberta procura fundamentar, como no caso de
ros do processo comunicativo numa intersubjectividade ideal (de tal forma Dora (Freud, querendo provar a importåncia das relagöes incestuosas com
pura, que é quase intoleråvel), porque é um instrumento que apaga todos o pai, menospreza o papel desempenhado pelas relagöes homossexuais de
os sentidos, excepto a audigäo: a ordem de escutar que inaugura qualquer Dora com a senhora K.). Foi também uma preocupagäo te6rica que
comunicagäo telef6nica convida o outro a transferir todo o corpo para a sua influenciou o desenvolvimento da cura do homem dos lobos, porquanto,
voz, e anuncia que eu pr6prio me transferirei completamente para o meu tratando-se de fornecer provas adicionais num debate que o opunha a
ouvido. Tal como o primeiro tipo de escuta transforma o rufdo em fndice, Jung, a expectativa de Freud era de tal forma imperiosa que todo o mate-
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rial respeitante cena primitiva foi obtido sob a pressäo de uma data curso, e que näo esteja crispada sobre a impressäo da voz nem sobre a
limite, que ele proprio fixou. Ou entäo, säo as suas pr6prias representaqöes expressäo do discurso. Trata-se aqui de ouvir, através desta escuta, aquilo
inconscientes que interferemno desenvolvimento da cura; sempre no caso que o sujeito falante näo dizia: a trama inconsciente que associa o seu
do homem dos lobos, Freud associa a cor das asas de uma borboleta com a corpo, como lugar, ao seu discurso: trama activa que reactualiza, na fala do
de uma pega de vestuårio feminino... vestida por uma rapariga por quern sujeito,a totalidade da sua hist6ria» [Vasse 1974, pp. 184-851. É este o
ele proprio se apaixonara aos dezassete anos. objectivo da psicanålise: reconstruir a hist6ria do sujeito na fala. Deste
A originalidade da escuta psicanalitica consiste exactamente neste ponto de vista, a escuta psicanalitica é um modo de orientaqäo para as ori-
movimento de vaivém que une a neutralidade e o compromisso, a suspen- gens, desde que essas origens näo sejam consideradas hist6ricas. O psicana-
säo de orientaqäo e a teoria: «O rigor do desejo inconsciente, a 16gica do lista, ao esforgar-se por captar os significantes, aprende a «falar» a lingua
desejo revelam-se apenas ao sujeito que respeite simultaneamente estas que é o inconsciente do paciente, tal como a crianga, mergulhada no banho
duas exigéncias, aparentemente contradit6rias: a ordem e a singularidade» da lingua, capta os sons, as silabas, as consonancias, as palavras, e aprende
[Leclaire 1968, trad. it. p. 21]. A partir desta deslocagäo (que näo deixa de a falar. A escuta é este jogo de captura dos significantes, através do qual o
lembrar o movimento de que provém o som) surge ao psicanalista como in-fans se transforma em ser falante.
que uma ressonåncia que lhe permite «orientar o ouvido» para o essencial: Ouvir a linguagem que é o inconsciente do outro, ajudå-lo a recons-
o essencial é aqui näo perder (e fazer perder ao paciente) o acesso insis- truir a sua hist6ria, desvendar o seu desejo inconsciente: é assim que a
téncia singular, e extremamente sensivel, de um elemento prevalecente do escuta do psicanalista chega a um reconhecimento, o do desejo do outro.
seu inconsciente. Aquilo que assim se designa como um «elemento preva- Esta escuta corre um risco: näo pode ser feita ao abrigo de um aparelho
lecente» que se presta escuta do psicanalista é um termo, uma palavra, te6rico; o paciente näo é um objecto cientffico em relagäo ao qual o ana-
um conjunto de letras que remete para um movimento do corpo: um signi- lista, do alto da sua poltrona, se possa previamente munir de objectividade.
(cf. adaptafäo);
som/ruido).
a interpret* de uma
digma é hoje contestado de uma forma ainda grosseira, é certo, e talvez mensagem oral (cf. oral/escrito, voz), em que a escuta é a condigäo fisico-psic016gica que
inadequada: acredita-se que, para libertar a escuta, basta tomar a palavra, permite a realizagäo da transmissäo do sentido (cf. significado, discurso) talvez com fins per-
suasivos (cf. argumentacäo) e de qualquer maneira sempre em presenga de um cédigo social de
mas uma escuta livre é, essencialmente, uma escuta que circula, que •per-
comportamento; a auscultaqäo de indices de qualquer forma significativos, quer se trate do
muta, que desagrega, através da sua mobilidade, a rede rigida dos lugares corpo (como na medicina) ou da psique (como na psicanålise: cf. inconsciente) säo outros tantos
de palavra. Näo é possivel imaginar uma sociedade livre, se nela se aceitar tipos de escuta, a par da escuta musical.
antecipadamente a preservagäo dos antigos lugares de escuta: os do crente,
do discipulo e do paciente.
Em terceiro lugar, o que normalmente se ouve (principalmente no
campo da arte, cuja fungäo é frequentemente ut6pica) näo é a presenga de
um significado, objecto de reconhecimento ou de decifragäo, é a pr6pria
dispersäo, o jogo de espelhos dos significantes, incessantemente reproposto
por uma escuta que os produz continuamente, sem fixar nunca o sentido: