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PALAVRA

$0 de circunståncias que a expliquem. Como no caso dos mitos, é possivel


passar de uma conversa estereotipada ao sistema que a sustenta, mas näo se
pode percorrer o caminho ao contrårio, ou seja, reconstituir uma conversa
(e ainda menos certa conversa) a partir, apenas, do sistema discursivo.
Além disso, enquanto lugares-comuns, estes temas de conversa consti- ESCUTA
tuem o [nico espago de palavra possivel entre duas ou mais pessoas que
näo tém nada de particular em comum. A actualizaqäo ou a formagäo de
uma relagäo de lugares num espago de palavra constitui-se sempre a partir
de um grau zero: eu näo posso pedir de improviso a outro que me reco-
nheqa na minha singularidade porque, por um lado, como ele pr6prio näo
aconta» para mim, näo tenho nada a ganhar com esse reconhecimento, e, Ouvir é um fen6meno fisi016gico; escutar é um acto psic016gico. As
supondo-o possivel, seria ainda assim ineficaz, desinteressante; por outro condigöes fisicas da audigäo (os seus mecanismos) podem descrever-se
lado, correria um grande risco tornando outrem depositårio de algo da recorrendo acüstica e fisiologia do ouvido; mas a escuta s6 se pode
minha verdade, enquanto ignoro o uso que ele possa vir a fazer dela, e näo definir a partir do seu objecto, ou, se preferirmos, do seu objectivo. No
enquanto näo detenho nada da sua pr6pria verdade. entanto, ao longo da escala dos seres vivos (a scala viventum dos antigos
Outra forma de palavra representativa do grau zero da elocugäo seria a naturalistas), e ao longo da hist6ria do homem, o objecto da escuta, consi-
hist6ria contada (e, talvez, o texto). Aqui, mais ainda que na conversa, a
derado no seu aspecto mais geral, varia ou variou. Assim, simplificando em
pröpria voz contribui para o prazer. A crianga bebe as palavras daquele extremo, destacaremos tres tipos de escuta.
que lhe conta uma hist6ria. O conteüdo, como no caso das palavras de Segundo o primeiro tipo de escuta, o ser vivo orienta a sua audiqäo
amor, é pouco importante: o que conta é que se oferece uma palavra. [R.B.
(o exercfcio da faculdade fisi016gica de ouvir) para indices; a este nivel,
e F.FI. nada distingue o animal do homem: o lobo escuta um ruido (possivel) da
presa, a lebre um ruido (possivel) do agressor; a crianga, o apaixonado
escutam os passos que se aproximam e que säo talvez os passos da mäe ou
do ser amado. Este primeiro tipo de escuta é, se assim se pode dizer, um
Grice, H. P.
119671 Logic and Conversation, in P. Cole e J. L. Morgan (org.), Syntax and Semantics. Speech Acts, alerta.
Academic Press, New York-London 1975, pp. 41-58. O segundo é uma decifrafäo: säo signos que se tentam captar através
Saussure, F. de
do ouvido, e isto é, certamente, pr6prio do homem: escuto como leio, ou
11906-111 Cours de linguistique générale, Payot, Lausanne-Paris 1916 (trad. port. Dom Quixote, Lisboa
19773).
seja, segundo determinados c6digos.
Finalmente, o terceiro tipo de escuta, a que s6 modernamente se dä
atenqäo—o que näo quer dizer que suplante os outros dois—, näo visa
(ou näo espera) signos determinados, classificados: näo presta atengäo ao
O Por 'palavra' entende-se uma faculdade de expressäo (a liberdade de palavra), näo s6 oral que é dito, ou emitido, mas sim a quem fala, quem emite: desenvolve-se,
(cf. oral/escrito), e uma realizaqäo individual (cf. lingua/fala) que resulta da aplicagäo da Iin-
guagem (cf. lingua); por 'palavra' entende-se, além disso, qualquer elemento constitutivo
em principio, num espago intersubjectivo, em que «escuto» também quer
(cf. signo, significado) do Iéxico, analisado pela fonética e pela semåntica (cf. competéncia/per-
dizer «escuta-me»; aquilo de que se apodera, para o transformar e voltar a
formance, gramåtica), e, ainda, um discurso «abreviado», os termos de uma conversa (cf. langar, infinitamente, no jogo da transferencia, é uma «significåncia» geral,
lugar-comum). Instrumento e até objecto de um dizer (cf. actos linguisticos, dizfvel/indizfvel, que näo é jå concebivel sem a determinagäo• do inconsciente.
de uma voz (cf. escuta), a palavra comporta, a
enunciagäo, pressuposifäo e alusäo), causa e efeito
par das formas de comunicafäo, uma autorizaqäo também ainda que implicita, pessoal (cf. pes-'
soa) e/ou colectiva (cf. sociedade),mas nem sempre é voluntåria (cf. por exemplo adivinhafäo, l. Os sentidos do homem säo os mesmos do animal. É, no entanto,
nigma, loucura./delirio, inconsciente, sono/sonho, sonho/visäo); nestes casos, mas näo apenas muito evidente que o desenvolvimento filogenético e, na hist6ria humana,
nestes, a autorizagäo aplica-se «a posteriori», numa interpretafäo, numa leitura (cf. censura, o desenvolvimento técnico modificaram (e ainda modificaräo) a hierarquia
critica).
dos Cinco sentidos. Os antrop610gos notam que os comportamentos alimen-
tares do ser humano estäo ligados ao tacto, ao paladar, ao olfacto; e os
comportamentos afectivos, ao tacto, ao olfacto e visäo; a audiGäo, por sua
vez, juntamente com a vista no homem e com o olfacto nos animais, parece
estar essencialmente ligada. avaliagäo da situagäo espåcio-temporal. Cons-
truida a partirda audigäo, a escuta, de um ponto de vista antrop016gico, é
o sentido pr6prio do espago e do tempo, apreendido através da percepqäo
dos graus de afastamento e dos ritmos regulares da excitagäo sonora. Tal
como para o mamffero o territ6rio é demarcado por cheiros e sons, tam-
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bém, para o homem — facto que é frequentemente subestimado


, a apro- nente, e que toda a natureza adquira a forma especffica de um
perigo ou
priagäo do espago é em parte também sonora: o espaqo doméstico, o da de uma presa: a escuta é a pr6pria operagäo desta metamorfose.
casa, do apartamento (equivalente, no fundo, ao do territ6rio animal) é um
espaqo de ruidos familiares, reconhecidos, que no seu conjunto formam uma 2. Muito antes da invenqäo da e mesmo muito antes de se
escrita,
espécie de sinfonia doméstica: bater diferenciado das portas, fragmentos de que talvez distinga fundamen-
praticar a pintura rupestre, produziu-se algo
vozes, barulhos da cozinha, das canalizaqöes, ruidos do exterior: Kafka talmente o homem do animal: a reproduqäo intencional de um ritmo:
descreveu com precisäo esta sinfonia familiar, numa pågina do Seu Diårio encontram-se, em algumas paredes da época mustierense, incisöes
(5 de Novembro de 1911): «Estou sentado no meu quarto, ou seja, no rftmicas—e tudo leva a crer que estas primeiras representagöes ritmicas
quartel-general do barulho do apartamento; ougo bater todas as portas...»• coincidem com o aparecimento das primeiras habitagöes humanas. Eviden-
e é conhecida a angfistia da crianga hospitalizada que deixa de ouvir os temente que o ünico conhecimento que se tem do nascimento do ritmo
rufdos familiares do abrigo materno. É sobre este fundo auditivo que surge sonoro é mitico; mas seria 16gico supor (näo recusemos o delirio das ori-
a escuta, exercicio de uma funqäo de inteligéncia, ou seja, de selecgäo. Se o gens) que ritmar (incisöes ou cortes) e construir casas säo actividades con-
fundo auditivo invadir completamente o espaqo sonoro (se o barulho temporåneas: a caracterfstica operat6ria da humanidade é, precisamente, a
ambiente for demasiado forte), a selecqäo, a inteligéncia do espaqo, deixa percussäo ritmica longamente repetida, como provam as laminas e as lascas
de ser possivel, a escuta é prejudicada; o fen6meno ec016gico ao qual hoje de silex obtidas por percussäo do mficleo, assim como as bolas poliédricas
chamamos poluigäo—e que estå quase a tornar-se um mito negro da nossa marteladas. Através do ritmo, a criatura pré-antr6pica acede humanidade
civilizagäo técnica— näo é mais do que a alteraqäo insuportåvel do espaco dos Australantropos.
humano, enquanto espa€o de reconhecimento do homem: a poluigäo fere os Também através do ritmo, a escuta deixa de ser vigilåncia pura para
sentidos através dos quais o ser vivo, do animal ao homem, reconhece o se transformar em criagäo. Sem ritmo, a linguagem é impossivel: o signo
seu territ6rio, o seu habitat: vista, olfacto, audigäo. Assim, encontramo-nos baseia-se num movimento duplo, o do marcado e do näo marcado que se
perante uma poluigäo sonora, e todos, independentemente de qualquer chama paradigma. A fibula que melhor dä conta do nascimento da lingua-
mito naturalista, a sentem como ameaga pr6pria inteligéncia do ser vivo, gem da crianqa que, segundo Freud, mima a auséncia e a pre-
é a hist6ria
que, em rigor, é apenas a capacidade de comunicar correctamente com o senga da mäe sob a forma de um jogo durante o qual atira e puxa para si
pr6prjo Umwelt (ambiente): a poluiGäo impede de escutar. um carreto atado a um fio: inventa assim o primeiro jogo simb61ico, mas
E, sem düvida, a partir desta nogäo de territ6rio (ou de espago «apro- também cria o ritmo. Imaginemos esta crianga vigiando, escutando os
priado», familiar, domesticado —doméstico) que mais facilmente se com- barulhos que lhe podem anunciar o regresso desejado da mäe: esti numa
preende a fungäo da escuta, na medida em que o territ6rio se pode definir fase de primeira escuta, a dos indices; mas, quando deixa de estar espera
essencialmente como o espago da seguranga (e, como tal, destinado a ser do indice e comega a mimar o regresso regular, transforma o indice num
defendido): a escuta é essa atenqäo «prévia» que permite captar tudo o que signo; passando deste modo segunda escuta, que é a do sentido: aquilo
seria susceptivel de perturbar o sistema territorial; é uma forma de defesa que é escutado jä näo é o possivel (a presa, a ameaga, ou o objecto de
contra a surpresa; o seu objecto (aquilo para que tende) é a ameaga, ou, desejo que se manifesta sem pré-aviso), é o segredo, ou seja, aquilo que,
inversamente, a necessidade; a matéria-prima da escuta é o indice, quer oculto pela realidade, s6 pode aceder consciéncia humana através de um
assinale um perigo, quer permita a satisfagäo da necessidade. Desta dupla c6digo que serve, simultaneamente, para cifrar e decifrar essa realidade.
fungäo, defensiva e predadora, restam vestigios na escuta civilizada: quan- A escuta estå, a partir daf, ligada (sob mil formas variadas e indirec-
tos filmes de terror, centrados na escuta do estranho, na expectativa angus- tas) a uma hermeneutica: escutar é colocar-se em posigäo de descodificar o
tiada do rufdo irregular que viri perturbar o conforto sonoro, a tranquili- que é obscuro, confuso ou silencioso, para fazer surgir na consciéncia o
dade da casa: a escuta, nesta fase, liga-se essencialmente ao insölito, ao «sub» sentido (o que é vivido, postulado, intencionalizado como oculto).
perigo como ao golpe de sorte; quando, pelo conträrio, a escuta se orienta A comunicaqäo que esta segunda escuta implica é religiosa: liga o sujeito
para a satisfagäo do fantasma, muito depressa se torna alucinada: acredito que escuta ao mundo escondido dos deuses que, como se sabe, falam uma
que ougo realmente o que me daria prazer ouvir como promessa do prazer. lingua de que s6 chegam aos homens alguns fragmentos enigmåticos, muito
Morfologicamente, ou seja, em termos de espécie bi016gica, a orelha embora—situagäo cruel —seja para eles vital compreendé-la. Escutar é o
parece ser feita para esta captura do indice que passa: é im6vel, fixa, erecta verbo evangélico por exceléncia: é escutando a palavra divina que surge a
como um animal espreita. Como um funil orientado do exterior para o Fé, porque é através desta escuta que o homem se liga a Deus: a Reforma
interior, recebe o maior nümero possivel de impressöes e canaliza-as para .com Lutero) fez-se, em grande parte, em nome da escuta: o templo pro-
um As pregas, os meandros
centro de vigilåncia, de selecgäo e de decisäo. testante é, exclusivamente, um lugar de escuta, e a pr6pria Contra-Reforma,
do seu pavilhäo parecem querer multiplicar os contactos do individuo com näo lhe ficando atrås, colocou o pülpito no centro da igreja (nas constru-
o mundo, e reduzir, simultaneamente, esta multiplidade, submetendo-a a göes dos Jesuitas), transformando os fiéis em «escutantes» (de um discurso
um percurso de selecgäo. Na verdade, é preciso —é a fungäo desta pri- que ressuscita a antiga ret6rica como arte de «forgar» a escuta).
meira escuta— que o confuso e indiferenciado se torne distinto e perti- Esta segunda espécie de escuta é, ao mesmo tempo, religiosa e deci-
fradora: intencionaliza, simultaneamente, o sagrado e o segredo. O que
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este segundo tipo metamorfoseia o homem em sujeito dual: a interpelagäo


procura a escuta decifrar? Essencialmente, duas coisas: o futuro (que per-
leva a uma interlocugäo, na qual o siléncio do ouvinte serå täo activo como
tence aos deuses), a culpa (que nasce do confronto com Deus).
a palavra do locutor: poder-se-ia dizer que a escuta fala; é neste estådio,
A natureza, com os seus ruidos, fervilha de sentido: pelo menos era hist6rico ou estrutural, que intervém a escuta psicanalitica.
assim que, segundo Hegel, os antigos Gregos a escutavam. Os carvalhos de
Dodone exprimiam profecias através do rumor da folhagem; e também
noutras civilizagöes (das quais se ocupa mais directamente a etnografia) os
3. O inconsciente, estruturado como uma linguagem, é objecto de

ruidos forneceram material directo de uma måntica, a cledonomancia: escu-


uma escuta ao mesmo tempo especifica e exemplar: a do psicanalista.

tar é, de uma forma institucional, procurar saber o que se vai passar (é


O segundo Freud [1912], «deve comportar-se em relacäo
psicanalista,

inütil fazer o levantamento de todas as marcas da persistencia desta finali-


ao inconsciente emergente do doente como o receptor telef6nico em relagäo
ao bocal emissor. Tal como o receptor retransforma em ondas sonoras as
dade arcaica).
vibragöes eléctricas da linha telef6nica que tinham Sido produzidas por
A escuta também é um sondar.A partir do momento em que a reli-
ondas sonoras, o inconsciente do médico pode, a partir de derivagöes do
giäo se interioriza, aquilo que é sondado pela escuta é a intimidade, o
inconsciente do doente que lhe säo comunicadas, reconstituir esse incons-
segredo do coragäo: a culpa, o pecado. Uma hist6ria e uma fenomenologia
da interioridade (que talvez ainda näo exista) deveria, aqui, ligar-se a uma ciente que determinou as associaqöes produzidas» (trad. it. pp. 536-37).
É, efectivamente, de inconsciente para inconsciente que se exerce a escuta
hist6ria e a uma fenomenologia da escuta; porque, no pr6prio interior da
psicanalftica, de um inconsciente que fala a outro que se supöe que ouve.
civilizaqäo da Culpa (a civilizaqäo judaico-cristä), a interioridade desenvol-
veu-se constantemente. O que os primeiros cristäos escutam säo ainda Aquilo que assim é dito emana de um saber inconsciente que é transferido
vozes exteriores, as dos dem6nios ou dos anjos; s6 a pouco e pouco o para outro sujeito, ao qual se supöe o saber. A isto se refere Freud quando
objecto da escuta se interioriza a ponto de se tornar pura consciéncia. tenta estabelecer o que considera «a correspondéncia necessåria ao que se
Durante séculos, a finica coisa que se pedia ao pecador, cuja penitencia pretende do analisado». Trata-se, em suma, de näo atribuir importancia a
passava pelo reconhecimento da pr6pria culpa, era uma confissäo püblica: a «nada em especial, e prestar a tudo o que se ouve a mesma "atengäo flu-
escuta privada, por um simples padre, era considerada um abuso, viva- tuante"... Poupa-se assim um esforqo de atenqäo... e evita-se um perigo

mente condenado pelos bispos. A confissäo auricular, de boca a orelha, no que é inseparåvel da atengäo deliberada, [e que é o del seleccionar o mate-
segredo do confessionårio, näo existia na época patristica; surgiu (por volta rial oferecido; quando a concentragäo incide com intensidade particular em

do século VII) dos excessos da confissäo püblica e dos progressos da cons- determinado ponto, elimina-se outro em
compensagäo, e esta escolha é
ciéncia individual: «a pecado püblico, confissäo püblica, a pecado privado, ditada por expectativas e tendéncias pr6prias. É precisamente o que se
confissäo privada». A escuta limitada, emparedada e quase clandestina «a — deve evitar; fazendo depender a escolha da expectativa, corre-se o risco de
s6s» —constituiu, portanto, um «progresso» (no sentido moderno), visto s6 se encontrar o que jä se sabia; seguindo as pr6prias inclinagöes, falsifica-
que assegurou a protecqäo do individuo contra o poder do grupo. Assim, a -se tudo o que possa vir a ser objecto de percepgäo. Näo esquegamos
escuta, privada de culpa, desenvolveu-se, pelo menos no indice, margem nunca que, com frequencia, o significado daquilo que se ouve s6 se revela
da instituigäo eclesiåstica: entre os monges, sucessores dos mårtires, sobre a mais tarde.
Igreja, se assim se pode dizer; ou entre hereges, como os cåtaros; ou ainda «A norma de anotar tudo, uniformemente, no decorrer das sessöes
em religiöes pouco institucionalizadas, como o budismo, em que a escuta corresponde, como se ve, regra que é imposta ao analisado, segundo a
privada, «de irmäo a irmäo», se pratica regularmente. qual näo pode omitir nada do que lhe ocorrer, renunciando a qualquer cri-
Assim configurada pela pr6pria hist6ria da religiäo cristä, a escuta tica e selecgäo. Comportando-se de outro modo, o médico anula grande
relaciona dois sujeitos; mesmo quando é uma multidäo (uma assembleia parte do beneficio proporcionado pela obediéncia do paciente "regra psi-
politica, por exemplo) que se quer colocar em situagäo de escuta canalitica fundamental". Eis como deve ser enunciada a regra que é
(«Ougam!»), é para receber a mensagem de um s6 que pretende fazer ouvir imposta ao médico: evitar que se exerga sobre a sua faculdade de observa-
a singularidade (énfase) dessa mensagem. A ordem de escutar é o apelo gäo qualquer tipo de influencia, e confiar apenas na sua "mem6ria incons-
total de um sujeito a outro: coloca em primeiro lugar o contacto quase ciente" ou, em linguagem técnica simples: "Escutar sem se preocupar com
fisico desses dois sujeitos (pela voz e ouvido), cria a transferéncia: o facto de saber se vai fixar alguma coisa"» [ibid., pp. 532-33].
«ouga-me» quer dizer «toque-me, saiba que existo». Na terminologia de Regra ideal, é dificil, se näo impossfvel, respeitå-la. O pr6prio Freud
Jakobson, «ouga-me» é fätico, é um operador de comunicagäo individual. näo lhe obedece sempre, por exemplo quando quer experimentar um frag-
O instrumento arquétipo da escuta moderna, o telefone, reine dois parcei- mento de teoria cuja descoberta procura fundamentar, como no caso de
ros do processo comunicativo numa intersubjectividade ideal (de tal forma Dora (Freud, querendo provar a importåncia das relagöes incestuosas com
pura, que é quase intoleråvel), porque é um instrumento que apaga todos o pai, menospreza o papel desempenhado pelas relagöes homossexuais de
os sentidos, excepto a audigäo: a ordem de escutar que inaugura qualquer Dora com a senhora K.). Foi também uma preocupagäo te6rica que
comunicagäo telef6nica convida o outro a transferir todo o corpo para a sua influenciou o desenvolvimento da cura do homem dos lobos, porquanto,
voz, e anuncia que eu pr6prio me transferirei completamente para o meu tratando-se de fornecer provas adicionais num debate que o opunha a
ouvido. Tal como o primeiro tipo de escuta transforma o rufdo em fndice, Jung, a expectativa de Freud era de tal forma imperiosa que todo o mate-
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rial respeitante cena primitiva foi obtido sob a pressäo de uma data curso, e que näo esteja crispada sobre a impressäo da voz nem sobre a
limite, que ele proprio fixou. Ou entäo, säo as suas pr6prias representaqöes expressäo do discurso. Trata-se aqui de ouvir, através desta escuta, aquilo
inconscientes que interferemno desenvolvimento da cura; sempre no caso que o sujeito falante näo dizia: a trama inconsciente que associa o seu
do homem dos lobos, Freud associa a cor das asas de uma borboleta com a corpo, como lugar, ao seu discurso: trama activa que reactualiza, na fala do
de uma pega de vestuårio feminino... vestida por uma rapariga por quern sujeito,a totalidade da sua hist6ria» [Vasse 1974, pp. 184-851. É este o
ele proprio se apaixonara aos dezassete anos. objectivo da psicanålise: reconstruir a hist6ria do sujeito na fala. Deste
A originalidade da escuta psicanalitica consiste exactamente neste ponto de vista, a escuta psicanalitica é um modo de orientaqäo para as ori-
movimento de vaivém que une a neutralidade e o compromisso, a suspen- gens, desde que essas origens näo sejam consideradas hist6ricas. O psicana-
säo de orientaqäo e a teoria: «O rigor do desejo inconsciente, a 16gica do lista, ao esforgar-se por captar os significantes, aprende a «falar» a lingua
desejo revelam-se apenas ao sujeito que respeite simultaneamente estas que é o inconsciente do paciente, tal como a crianga, mergulhada no banho
duas exigéncias, aparentemente contradit6rias: a ordem e a singularidade» da lingua, capta os sons, as silabas, as consonancias, as palavras, e aprende
[Leclaire 1968, trad. it. p. 21]. A partir desta deslocagäo (que näo deixa de a falar. A escuta é este jogo de captura dos significantes, através do qual o
lembrar o movimento de que provém o som) surge ao psicanalista como in-fans se transforma em ser falante.

que uma ressonåncia que lhe permite «orientar o ouvido» para o essencial: Ouvir a linguagem que é o inconsciente do outro, ajudå-lo a recons-
o essencial é aqui näo perder (e fazer perder ao paciente) o acesso insis- truir a sua hist6ria, desvendar o seu desejo inconsciente: é assim que a
téncia singular, e extremamente sensivel, de um elemento prevalecente do escuta do psicanalista chega a um reconhecimento, o do desejo do outro.
seu inconsciente. Aquilo que assim se designa como um «elemento preva- Esta escuta corre um risco: näo pode ser feita ao abrigo de um aparelho
lecente» que se presta escuta do psicanalista é um termo, uma palavra, te6rico; o paciente näo é um objecto cientffico em relagäo ao qual o ana-
um conjunto de letras que remete para um movimento do corpo: um signi- lista, do alto da sua poltrona, se possa previamente munir de objectividade.

ficante. A relagäo psicanalftica estabelece-se entre dois sujeitos. O reconhecimento


Nesta sede do significante em que o sujeito pode ser ouvido, o movi- do desejo do outro näo pode, portanto, de forma alguma estabelecer-se na
mento do corpo é, antes de mais nada, aquele em que a voz tem origem. neutralidade, na benevoléncia, no liberalismo: reconhecer este desejo
A voz estå para o siléncio, como a escrita (em sentido gråfico) para o papel implica penetrå-lo, perder o equilfbrio, partilhä-lo, acabar por entrar nele.
branco. A escuta da voz inaugura a relagäo com o outro: a voz, pela qual se A escuta s6 existe desde que se aceite o risco, e se este tiver de ser afastado
reconhecem os outros (como a escrita sobre um envelope), indica-nos as para que a anälise exista, näo é com certeza com um escudo te6rico.
suas maneiras de ser, as suas alegrias ou sofrimentos, os seus estados; vei- O psicanalista näo pode, tal como Ulisses preso ao mastro, «apreciar o
cula uma imagem do corpo e, para lä dessa imagem, toda uma psicologia espectåculo das Sereias, sem riscos e sem aceitar as consequencias...»
(fala-se de voz quente, de voz branca, etc.). Por vezes, a voz de um inter- [Blanchot 1959, trad. it. p. 141: «havia algo de maravilhoso nesse canto
locutor toca-nos mais do que o conteüdo do seu discurso e surpreendemo- real, canto comum, secreto, canto simples e quotidiano que, de repente,
-nos a escutar as modulagöes e oscilagöes dessa voz, sem compreendermos deviam reconhecer... canto do abismo que, logo que era ouvido, abria em
o que se diz. Esta dissociagäo é, sem düvida, parcialmente responsivel pelo cada palavra um abismo e convidava, insistentemente, a nele desaparecer»
sentimento de estranheza, e por vezes de antipatia, que sentimos ao ouvir a [ibid., p. 13]. O mito de Ulisses e das Sereias näo diz como poderia ser
nossa pr6pria voz: chegando até n6s deformada, depois de ter atravessado uma escuta bem sucedida; é possfvel desenhä-la, como que em negativo,
as cavidades e a massa da nossa anatomia, dä-nos de n6s pr6prios uma entre os escolhos que o navegador-psicanalista deve tentar evitar a todo o
imagem deformada, como se nos olhässemos de perfil gragas a um jogo de custo: tapar os ouvidos como os homens da tripulagäo, utilizar a astücia e
espelhos. dar provas de fraqueza, como Ulisses, ou responder ao convite das Sereias
«O acto de ouvir näo é o mesmo, se visar a coeréncia da cadeia verbal, —e desaparecer. O que assim se revela é uma escuta que deixa de ser
nomeadamente a sua sobredeterminagäo, a cada instante, pelo a-seguir da imediata para passar a ser diferida, transportada para o espago de outra
sequéncia, como também a suspensäo, em cada instante, do seu valor face navegaqäo «feliz, infeliz, que é a da narrativa: canto que ji näo é imediato,
ao advento de um sentido sempre em vias de ser devolvido —ou se se que é contado» [ibid., p. 15]. A narrativa é construgäo mediata, retardada:
adaptar, na palavra, ä modulagäo sonora para determinado fim de anålise Freud faz exactamente o mesmo ao escrever os seus «casos». O presidente
acüstica: tonalou fonética, ou até de poténcia musical» [Lacan 1966, trad. Schreber e Dora, o pequeno Hans e o homem dos lobos säo outras tantas
it. p. 529]. A
voz que canta: esse espago muito preciso em que uma lingua narrativas (chegou a falar-se em «Freud romancista»). Freud, ao escrevé-los
encontra uma voz e deixa ouvir a quem sabe escutar aquilo a que se pode assim —
as observagöes propriamente clinicas näo estäo redigidas em forma
chamar o seu «gräo»; a voz näo é respiraqäo, é a materialidade do corpo de narrativa—, näo o fez por acaso, mas de acordo com a pr6pria teoria da
que surge da garganta, lugar onde se forja o metal f6nico. nova escuta: uma teoria que se reporta a imagens.
A voz, corporalidade do falar, situa-se na articulacäo entre o corpo e o Nos sonhos, a audigäo nunca é solicitada. O sonho é um fen6meno
discurso, e é neste espago intermédio que o movimento de vaivém da estritamente visual, e mesmo o que se dirige ao ouvido é através da vista
escuta se pode efectuar. «Escutar alguém, ouvir a sua voz, exige da parte que é perceptivel: trata-se, digamos, de imagens acüsticas. É assim que no
de quem escuta uma atengäo receptiva ao intercåmbio do corpo e do dis- sonho do homem dos lobos as orelhas dos lobos estäo «erectas como as de
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cäes atentos a alguma coisa» [1918, trad. it. p. 507]. O
«alguma coisa», é
este jogo de espelhos chama-se significåncia (distinta da significagäo): ao
um som, um rumor, um grito. Mas para lå dessa «traduqäo» da escuta em
olhar operada pelo sonho estreitam-se lagos de complementaridade. Se o
«escutar» um trecho de müsica clåssica, propöe-se ao ouvinte que o «deci-
pequeno Hans tem medo dos cavalos, näo é s6 por recear ser mordido: fre», ou seja, que reconhega (servindo-se da cultura, da atengäo, da sensibi-
«Tenho medo, — diz, —porque faz barulho com
os pés» [1909, trad. 'it.
Iidade) a construqäo, täo codificada (pré-determinada) como a de um pali-
Cio em dada época. Mas ao «escutar» uma composiqäo (considerando a
p. 515]. O «barulho» (Krawall, em alemäo) é näo s6 a desordem dos
palavra no seu sentido etim016gico) de Cage, escuta-se um som a seguir a
movimentos do cavalo, estendido por terra a escoicear, mas também todo o outro, näo na sua extensäo sintagmåtica, mas na sua significåncia bruta e
barulho que esses movimentos provocam (imagens visuais e acüsticas).
como que ao desconstruir-se, a escuta exterioriza-se, obriga o
vertical:
Esta digressäo psicanalitica era necessåria, porque de outro modo näo sujeito a renunciar sua «intimidade». Isto é vålido, mutatis mutandis, para
poderiamos compreender em queé que a escuta moderna deixou de se muitas outras formas da arte contemporånea, da «pintura» ao «texto»; e,
parecer com aquilo a que aqui se chamou a escuta dos indices e a escuta evidentemente, tal näo acontece sem demarcagöes: porque nenhuma lei
dos signos (apesar de estas escutas subsistirem concorrencialmente). Por- pode obrigar o sujeito a experimentar prazer quando näo quer (sejam quais
que a psicanålise, pelo menos nos seus desenvolvimentos recentes—que a forem as razöes da sua resisténcia), nenhuma lei pode restringir a nossa
afastam tanto de uma simples hermeneutica como de um processo de espe- escuta: a liberdade de escuta é täo necessäria como a liberdade de palavra.
cificaqäo de um traumatismo original, fäcil substituto da Culpa modi- É por isso que esta nogäo aparentemente modesta (a escuta näo figura
fica a ideia que se pode ter da escuta. nas enciclopédias do passado, näo faz parte de nenhuma disciplina reco-
Antes de mais nada, enquanto durante séculos foi possivel definir a nhecida) é, no fundo, como um pequeno teatro em que se confrontam duas
escuta como acto intencional de audiqäo (escutar significa querer ouvir, divindades modernas, uma negativa e outra positiva: o poder e o desejo.
conscientemente), reconhece-se-lhe, hoje em dia, o poder (e quase a fun-
qäo) de explorar espagos desconhecidos: a escuta inclui no seu campo näo
s6 0 inconsciente, no sentido t6pico do termo, como também, se é que
assim se pode dizer, as suas formas laicas: o implicito, o indirecto, •o
suplementar, o diferido: a escuta abre-se a todas as formas de polissemia, Blanchot, M.
1959 Le livre å venir, Gallimard, Paris (trad. it. Einaudi, Torino 1969) [trad. port. Re16gio d'Ågua,
de sobredeterminaqöes, de sobreposiqöes, desagregando a lei que prescreve Lisboa 19841.
a escuta directa, univoca. A escuta foi, por definigäo, aplicada; hoje, o que Freud, S.
se lhe pede é que deixe manifestar; assim se regressa, embora noutro circulo 1909 Analyse der Phobie eines fünfjährigen Knaben, in aJahrbuch mr psychoanalytische und psychopat-
hologische Forschungen», I, I, pp. 1-109 (trad. it. in Opere, vol. V,' Boringhieri, Torino 1972).
da espiral hist6rica, ä concepgäo de uma escuta pånica, no sentido grego, 1912 Ratschläge für den Artz bei der psychoanalytischen Behandlung, in «ZentraIb1att für Psychoan-
dionfsiaco. alyse», II, 9, pp. 483-89 (trad. it. in Opere, vol. VI, Boringhieri, Torino 1974).
1918 Aus der «Sammlung
Em segundo lugar, os papéis implicitos no acto de escutar jå näo tem Geschichte einer infantilen Neurose, in
serie I V, pp. 578-717 (trad. it.
kleiner Scriften zur Neurosenlehre»,
in Opere, vol. VII, Boringhieri, Torino 1975).
a fixidez de antigamente; jä näo existe, por um lado, aquele que fala, se Lacan, J•
entrega, confessa e, pelo outro, o que ouve, cala, julga e sanciona; isto näo 1966 Ecrits, Seuil, Paris (trad. it. Einaudi, Torino 1974).
Leclaire, S.
quer dizer que o analista, por exemplo, fale tanto como o paciente; é que, 1968 Psychanalyser, Seuil, Paris (trad. it. Astrolabio, Roma 1972).
como se disse, a sua escuta é activa, tem um lugar preciso no jogo do Vasse, D.
1974 L'ombilic et Ia voix, Seuil, Paris.
desejo, de que toda a linguagem é teatro: a escuta—repita-se —fala.
A partir daqui, esboga-se um movimento: os lugares de palavra säo cada
vez menos protegidos pela instituigäo. Enquanto as sociedades tradicionais
conheciam dois lugares de escuta, ambos alienados —a
escuta arrogante do
a A escuta näo pode ser reduzida percepcäo dos factos sonoros A apropria-
superior, a escuta servil do inferior (ou dos seus substitutos) —
, este para-
territorial de um ambiente, que é também sonora
(cf.

(cf. adaptafäo);
som/ruido).
a interpret* de uma
digma é hoje contestado de uma forma ainda grosseira, é certo, e talvez mensagem oral (cf. oral/escrito, voz), em que a escuta é a condigäo fisico-psic016gica que

inadequada: acredita-se que, para libertar a escuta, basta tomar a palavra, permite a realizagäo da transmissäo do sentido (cf. significado, discurso) talvez com fins per-
suasivos (cf. argumentacäo) e de qualquer maneira sempre em presenga de um cédigo social de
mas uma escuta livre é, essencialmente, uma escuta que circula, que •per-
comportamento; a auscultaqäo de indices de qualquer forma significativos, quer se trate do
muta, que desagrega, através da sua mobilidade, a rede rigida dos lugares corpo (como na medicina) ou da psique (como na psicanålise: cf. inconsciente) säo outros tantos
de palavra. Näo é possivel imaginar uma sociedade livre, se nela se aceitar tipos de escuta, a par da escuta musical.
antecipadamente a preservagäo dos antigos lugares de escuta: os do crente,
do discipulo e do paciente.
Em terceiro lugar, o que normalmente se ouve (principalmente no
campo da arte, cuja fungäo é frequentemente ut6pica) näo é a presenga de
um significado, objecto de reconhecimento ou de decifragäo, é a pr6pria
dispersäo, o jogo de espelhos dos significantes, incessantemente reproposto
por uma escuta que os produz continuamente, sem fixar nunca o sentido:

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