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SOC/OLINGUISTICA

PARTE II

Roberto Gomes Camacho

1.0 QUE É SOCIOLINGÚÍSTICA?

Dizer que a Sociolinguística trata da relação entre língua e sociedade é fazer


uma afirmação correta, mas, ao mesmo tempo, excessivamente simplificadora.
As últimas três décadas assistiram ao interesse cada vez mais crescente pelo estu-
do da linguagem em uso no contexto social, mas os diversos enfoques que se
abrigam sob o rótulo Sociolingiiística cobrem uma grande variação de assuntos,
merecendo, por isso, uma delimitação. É o que passamos inicialmente a fazer.
Uma das áreas de estudos lida com fatores sociais em grande escala, asso-
ciados à linguagem, como decadência e assimilação de línguas minoritárias,
desenvolvimento de bilinguismo em nações socialmente complexas, planeja-
mento linguístico em nações emergentes. Esse tipo de enfoque, comumente de-
nominado Sociologia da Linguagem, é, na realidade, um ramo das ciências so-
ciais, na medida em que encara os sistemas linguísticos como instrumentais em
relação às instituições sociais. Outra área de estudos, a Etnografia da Comuni-
cação, interessa-se em descrever e analisar as formas dos "eventos de fala",
especificamente, as regras que dirigem a seleção que o falante opera em função
dos dados contextuais relativamente estáveis, como a relação que ele contrai
II K.AO A IINUHMICA SOCIOLINGÚÍSTICA: parte 2 51

« melancias do pro- forma de expressão como "Você leu os livro?". Como é possível abarcar esses
iilm i i i d i i . iis rogras que diri- dois enunciados alternativos e igualmente disponíveis à seleção do falante, numa
'. LI i i mi. i.u, . K I verbal em curso. Esses explicação linguística coerente e sistemática?
i'n' da i « « H M i•..!«,.i<>, têm-se abrigado recente- De um ponto de vista linguístico, que é o que sempre interessa, mesmo
iii i . i . l . i '..-. iiiliiiffiifxtica Interacional1. que se estenda a análise a fatores sociais, comparemos a variação entre ausência
!• 11 MI K .< (|iu- |)odemos chamar apropriadamente de e presença de segmentos sonoros, como o fonema /s/, ora pronunciado s, ora
. .in,i, t, 'ia M,i, (|iio pretendemos desenvolver aqui: nesse enfoque, pronunciado z, caracterizado como fricativa alveolar. Para simplificar, simboli-
i . im n i . MI no contexto social é tão importante para a solução de zemos a presença desse elemento sonoro como /s/ e sua ausência como [0].
l'i ' i i 11' m i 1'Mipnos da teoria da linguagem, que a relação entre língua e socie- A variação entre /s/ e [0] pode aparecer marcando o plural em "os livros/
ihuli i c In .u .ida c orno indispensável, não mero recurso interdisciplinar. Como a os livro" e em outros tantos substantivos comuns da língua portuguesa, como
linj-.imgcm é, em última análise, um fenómeno social, fica claro, para um "os meninos/os menino", e pode aparecer também em nomes próprios, como "Carlos/
lOCiollngtiista, que é necessário recorrer às variações derivadas do contexto so- Cario", em que ele não marca plural, embora possa ser também eliminado. O
cial para encontrar respostas para os problemas que emergem da variação ine- mesmo segmento sonoro final, a fricativa alveolar [s], pode aparecer, por outro
rente ao sistema linguístico. lado, em outras palavras, como "ananás", "arroz" etc., sem que seja jamais elimi-
nado. Afinal de contas, ouvir algo como "o ananá", "o arrô" é algo simplesmente
Tendo separado a Sociolingúística Variacionista (doravante Sociolinguís-
impensável na língua portuguesa, embora não o seja ouvir algo como "os menino".
ticà) de outras áreas afins, resta-nos discutir, agora, como essa abordagem vê a
relação entre a estrutura linguística e a social. Para início de conversa, dois Nem é preciso ser especialista para verificar que as condições da variação,
falantes de uma mesma língua ou variedade dialetal dificilmente se expressam que é no caso fonológica ou sonora, não estão sujeitas ao acaso, nem ao livre
exatamente do mesmo modo, assim como um único falante raramente se ex- arbítrio do falante. Muito pelo contrário, acham-se fortemente marcadas por
pressa da mesma maneira em duas diferentes circunstâncias de comunicação. motivações emanadas do próprio sistema linguístico que o falante é constrangi-
Sendo assim, o que a Sociolingúística faz é correlacionar as variações existen- do a seguir sem escolha. Vejamos por quê.
les na expressão verbal a diferenças de natureza social, entendendo cada domí- Selecionar uma palavra com a ausência ou a presença de uma fricativa
nio, o linguístico e o social, como fenómenos estruturados e regulares. Se um alveolar depende de estar esse segmento numa sílaba átona final, como em "li-
falante enuncia o verbo "vamos" como [vãmus] e outro falante o enuncia como vros", "meninos" e "Carlos". Já o simples fato de incidir sobre uma sílaba tóni-
| v. n i ui |, podemos afirmar, com base nos postulados da Sociolingúística, que ca, como em "ananás", impede a variação entre /s/ e [0], embora esse contexto
essa variação na fala não é o resultado aleatório de um uso arbitrário e inconse- seja condição para outros processos, como a inserção ou não da semivogal antes
( | i n nic dos falantes, mas um uso sistemático e regular de uma propriedade ine- da fricativa alveolar, o que forneceria casos como "ananais", "arroiz" etc.
i i me aos sistemas linguísticos, que é a possibilidade de variação. É essa regula- Esses exemplos poderiam ser questionados com o argumento de que, nas
i iil.it l< c sistematicidade que passaremos a demonstrar. condições a que a variação está sujeita, como a posição de sílaba átona final
para a alternância [s] e [0], o caos se instala na língua, já que é o espaço privi-
l Ima observação pouco acurada dos usos que se fazem de uma língua em
legiado para o falante agora exercer livremente o arbítrio. Contra-argumente-
HM i , . M , comuns de interação poderia levar à dedução equivocada de que a
mos também contra essa objeção e a própria língua é aqui novamente o depósito
Impi.ip-in cm uso é uma espécie de caos, uma terra de ninguém sujeita ao uso
onde se buscam os melhores dados.
iii l MI i,n 10 ile seus recursos. Uns falam, por exemplo, "Você leu os livros?".
• i i i | M . u i i o outros manifestam exatamente o mesmo conteúdo empregando uma Observe-se, por exemplo, a diferença entre "meninas" e "Carlos", numa
sentença como "Carlos enganou as meninas na troca de figurinhas". Observan-
do-se a forma de "Carlos" em comparação com a de "as meninas", deduz-se que
l A I-NHC propósito, ver em Ribeiro & Garcez (1998) uma coletânea de textos representativos dessa seria muito mais natural que os falantes eliminassem mais a fricativa alveolar
i r i i i r i n r n l r organizada e publicada no Brasil. | s | do nome próprio que a do nome comum de "as meninas". De um ponto de
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA SOCIOLINGÚÍSTICA: parte 2 53
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vista morfológico, o [s] final de "Carlos" não exerce função alguma, já que não Evidências estatísticas mostram que a posição inicial de sintagmas nomi-
passa de um segmento fonológico que, juntamente com os demais, constitui a nais no plural é, de longe, a preferida para o emprego da variante [s], sendo as
forma da palavra em questão. Já não se pode dizer o mesmo do [s] do substanti- demais as preferidas para o uso de [0]. Observe a Tabela 1.1.
vo "meninas" de "as meninas": trata-se do mesmo segmento fonológico que, Os dados da Tabela l. l mostram que o sistema linguístico do português
coincidentemente aqui, constitui sozinho a marca gramatical de plural, confor- falado se reorganizou, elegendo a primeira posição do sintagma nominal para
me a segmentação menina-s. bloquear o avanço do processo fonológico de erosão das consoantes em posição
Esses dados mostram que a variação entre [s] e [0] apresenta diferentes de sílaba átona final e preservar a função morfológica de indicação de pluralidade
estatutos nos dois casos: se o segmento fonológico manifesta um valor semânti- do segmento sonoro /s/. A frequência com que os falantes eliminam a fricativa,
co, como a pluralidade que se deseja veicular ao interlocutor, é mais lógico que quando exercendo marca de plural em sintagmas nominais, como "os meninos
se mantenha integralmente sua forma de expressão; trata-se de um processo espertos", obedece a regras impostas novamente pelo sistema linguístico, em
que incide sobre o sistema gramatical da língua. É, por conseguinte, mais natu- termos do esforço do falante pela manutenção das funções semânticas veicula-
ral que a incidência de variação na fricativa [s] em finais átonos de palavras seja das pelas categorias gramaticais.
estatisticamente maior nas palavras em que o processo de variação é só fonológico Uma comparação com o espanhol será um tanto útil para se entender o al-
do que naquelas em que afeta o sistema gramatical. cance desse princípio funcional. "O menino" se traduz, em espanhol, por "el nino"
No entanto, as motivações do sistema linguístico impedem mais uma vez (expressão, aliás, já um tanto saturada ultimamente em virtude da atuação do
que essa correlação se estabeleça de modo absoluto no uso real. Ocorre que a renomado efeito de correntes térmicas no Pacífico). Em espanhol, o artigo no
categoria de número é redundantemente marcada no sintagma nominal em por- plural é "los"; daí, "los ninos" traduz "os meninos". Comparado com o singular
tuguês, mediante uma regra sintática de concordância: assim, em termos "el nino", a ausência de [s], mesmo no artigo "los", mantém a integridade da
informacionais, tanto faz dizer, por um lado, "Carlos" ou "Cario" quanto, por informação de número no sintagma nominal pluralizado em "Io nino". Não sendo
outro, dizer "os meninos espertos" ou "os menino esperto"; neste sintagma no- possível contar com a oposição [s] x [0], em função da erosão das consoantes finais
minal complexo, o valor de pluralidade já está assegurado no primeiro constituinte na fala, o falante lança mão de outra oposição funcional com o mesmo sucesso: "el"
de modo que os demais podem prescindir dessa marcação. x "Io". Já no feminino, o fenómeno se iguala ao português, como se pode observar
a partir da oposição "Ia nina" x "Ias ninas". Se o falante eliminar o segmento [s] do
sintagma no plural, eliminará concomitantemente a marcação de número.
Evidências estatísticas sobre a eliminação do [s] no espanhol porto-riquenho
TABELA 1.1
Presença do /s/ marcador de plural de acordo com a posição da palavra
apontam para frequências mais altas em todos os constituintes dos sintagmas
no sintagma nominal nominais masculinos e frequências mais baixas nos sintagmas nominais femini-
nos, conforme se observa nas Tabelas 1.2 e 1.3.
Informantes escolarizados Informantes semi-escolarizados
TABELA 1.2
% Probabilidade % Probabilidade
Frequência de apagamento de /s/ em determinantes
Posição zero 98,4 .92 97,6 .98
.45 Masculino Feminino Total
Posição um 67,7 .30 30,5
20,1 .31 Presença de /s/ 216 167 383
Posição dois 65,0 .26
2,6 .06 Ausência de /s/ 53 24 77
Posição três 68,2 .29
.00 Total 269 191 460
Posição quatro 87,5 .58 0,0
% de ausência 19,7% 12,5% 16,7%
Fonte: Scherre (1981) apud Tarallo (1990: 127).
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INTRODUÇÃO À LINGUISTICA SOCIOLINGÚÍSTICA: parte 1

TABELA 1.3 sociolingíiística estável. Em todos os contextos, os falantes usam diferenciada-


Frequência de apagamento de Isl em substantivos inente a variante de prestígio social, que é a presença de velar, com base na
estreita correlação entre frequência maior ou menor do fonema /g/ fechando o
Masculino Feminino Total gerúndio e as posições que os falantes ocupam na escala socioeconômica: maior
Presença de /s/ 149 169 318 frequência, classe económica mais elevada. Além dessa indicação social, a dis-
Ausência de /s/ 452 217 669
tribuição do uso de cada variante conforme o grau de formalidade da situação
de intercâmbio verbal mostra que, apesar das diferenças sociais, todos os gru-
Total 601 ..•" 386 987
pos apresentam um comportamento idêntico: os índices mais altos de uso da
% de ausência 75,2% 56,2% 67,8% forma de prestígio acham-se correlacionados a graus mais elevados de formali-
Fonte: Flores, Myhill & Tarallo(1983), apud Tarallo (1990: 126). dade2. Esses resultados apontam para a conclusão de que não são restrições de
natureza intrinsecamente linguística, como o que ocorre com a marcação de
plural no português, que favorecem a supressão ou a manutenção do fonema
Esses resultados comprovam, assim, que os sistemas linguísticos do espa- velar do grupo átono final (ing), mas restrições de natureza extralinguística.
nhol e do português, submetidos a um processo de variação fonológica que pode Se as línguas naturais humanas consistem em sistemas organizados de for-
vir a comprometer a veiculação de valores semânticos, como a marcação de ma e conteúdo, seria estranho que a variação não fosse uma de suas proprieda-
pluralidade, permitem a maior frequência de uso justamente nos casos em que a des mais marcantes e significativas. Na realidade, a diversidade é uma proprie-
oposição entre singular e plural é mais neutra e menos relevante funcionalmen- dade funcional e inerente aos sistemas linguísticos e o papel da Sociolinguística
te (cf. Tarallo, 1990), isto é, nas posições mais à direita do sintagma nominal, é exatamente enfocá-la como objeto de estudo, em suas determinações linguís-
para o português, e nas formas masculinas para o espanhol. ticas e não-linguísticas. A esse respeito é sempre útil ouvirmos Labov:
Podemos voltar, agora, à comparação das frequências de emprego da varia-
ção entre /s/ e [0] em nomes próprios, como "Carlos", em que o cancelamento A existência de variação e de estruturas heterogéneas nas comunidades de fala
da fricativa não significa a eliminação de Uma marca de plural, e em nomes investigadas está de fato provada. É da existência de qualquer outro tipo de comuni-
dade que se pode duvidar... a heterogeneidade não é apenas comum, é também o
comuns, como "meninos", em que o cancelamento pode implicar perda de in-
resultado natural de fatores linguísticos básicos. Alegamos que é a ausência de
formação. Ao comparar essas duas formas, não o faremos mais com a inocência alternância de registro e de sistemas multi-estratificados de comunicação que seria
anterior, mas convictos das pressões gramaticais, teremos a certeza de que com- disfuncional3.
parações fidedignas só se podem estabelecer em posições não marcadas do
sintagma nominal, o que obviamente exclui a primeira. E, sobretudo, teremos A linguagem é, sem dúvida alguma, a expressão mais característica de um
aprendido uma lição importante: a de que a variação não é o resultado do uso comportamento social, sendo, por isso, impossível separá-la de suas funções
arbitrário e irregular dos falantes. Ao contrário: se, por um lado, encontra sua sócio-interacionais. É até por isso que, vale repetir, o próprio uso do termo
motivação em circunstâncias linguísticas determinadas, é, por outro, o resulta- sociolinguística soa um tanto redundante. Consequentemente, somente é possí-
do sistemático e regular de restrições impostas pelo próprio sistema linguístico
em uso.
Vejamos, agora, um exemplo mais, para observarmos a relação entre varia- 2. A esse respeito ver Labov, W. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia, University of Pennsylvania
Press, 1972, pp. 238-9.
ção e estrutura social. Para isso, viajemos até o inglês e examinemos a forma 3. Cf. original: "The existence ofvariation and heterogeneous structures in the speech communities
que os falantes americanos empregam para exprimir o morfema de gerúndio investigated is certainly well-established in fact. It is the existence of any other type of speech community
that may be placed in doubt. (...) we come to the realization in recent years that this is the normal situation
(ing) em verbos como "writing", "singing" etc., alternando entre presença e — that heterogeneity is not only common, it is the natural result of basic linguistic factors. We argue that it
ausência da velar final /g/, o mesmo tipo de fonema que o português manifesta is the absence of stylc-shilling and multi-layered communication systems which would be disfunctional..."
no início de "gula", por exemplo. Trata-se aí de um caso típico de variação In: Labov, W. Op. cil.. p. 203.
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
SOCIOLINGÚISTICA: parte 2 57

vel considerá-la uma subárea da Linguística ou um de seus domínios conexos


de uma perspectiva que não inclua como relevante a natureza sócio-interacional i-iii os menino[s], e a ausência de marcação, representada por [0], como em os
da linguagem. A Sociolingíiística trata da estrutura e da evolução da linguagem, inenino[0], constituem as variantes.
encaixando-a no contexto social da comunidade. Seus tópicos recobrem a área É justamente porque duas variantes não exercem função informativa no
convencionalmente chamada de "Linguística Geral", na medida em que lida processo de comunicação, ou seja, não alteram o valor semântico da sentença
com questões decorrentes do exame dos níveis fonológico, morfológico, sintá- que as contém, que a Linguística estruturalista não levou seriamente em consi-
tico e semântico para esclarecer a configuração das regras linguísticas, sua com- deração a análise do processo de variação. Concebeu a linguagem como um
binação em sistemas, a coexistência de sistemas alternativos e, principalmente, instrumento de comunicação, identificando-a com uma espécie de código, simi-
a evolução diacrônica de tais regras e sistemas (Labov, 1972). Vale lembrar a lar aos sistemas de sinais eletrônicos, coisa que absolutamente a linguagem hu-
forte correlação entre variação e mudança. Toda mudança é o resultado de al- mana não é. O interesse pela função cognitiva, informativa ou referencial da
gum processo de variação, em que ainda coexistem a substituta e a substituída, linguagem teve como consequência teórico-metodológica a exclusão de qual-
embora o inverso não seja verdadeiro, isto é, nem todo processo de variação quer unidade de análise que não contivesse o mínimo de informação requerido
resulta necessariamente numa mudança diacrônica, caso em que a variação é pelo critério funcional. A abordagem gerativista, quando surgiu no final dos
estável e funciona como indicador de diferenças sociais. anos 1950, também não incluiu o enfoque da variação, dando preferência
metodológica por um modelo descritivo baseado numa comunidade linguística
idealizada, isto é, como se todos os falantes mantivessem um comportamento
2. A VARIAÇÃO E SUAS CAUSAS SOCIAIS verbal uniforme. A alternância entre duas formas com o mesmo significado,
duas variantes, acabou confinada, para um estruturalista, à vala comum da va-
Mas, a propósito, o que são variantes e variáveis linguísticas? Observe a riação livre, quando não sujeita a restrições estruturais, e na da variação
alternância entre as diversas pronúncias do fonema /r/ em final de sílaba combinatória (ou contextuai ou ainda posicionai), quando sujeita a esse tipo de
como [ TJ ], a forma retroflexa, amplamente usada no interior de São Paulo, condicionamento; para um gerativista, duas variantes foram, de início, indife-
pejorativamente chamada r-caipira; [x], uma fricativa velar, [h], uma fricativa rentemente postuladas como regra facultativa ou opcional.
glotal, ambas faladas no litoral brasileiro em geral, embora estereotipadas como A despeito de diferenças de enfoque, todo linguista indiscriminadamente
pertencentes unicamente ao dialeto carioca; e, finalmente, [r], uma vibrante concorda com o princípio de que nenhuma língua natural humana é um sistema
alveolar, usada na região metropolitana de São Paulo4. Uma propriedade co- em si mesmo homogéneo e invariável. Em todos os níveis de análise, depara-se
mum identifica todos os casos mencionados de variação: representam duas ou com o fenómeno da variação. Observe-se, inicialmente, o nível fonológico: a
mais formas alternativas de dizer a mesma coisa no mesmo contexto. Já o alternância entre qualquer pronúncia de [ r ] e sua ausência, em formas infinitivas
termo variável representa o esforço do sociolingiiista por generalizações abs- do verbo, como "fala", "come", é um exemplo de variação sonora. Já no nível
traias. Trata-se de uma classe de variantes que constituem, estas sim, duas ou morfológico, é possível observar a alternância de sufixos derivacionais, como
mais formas concretas de uso. As variantes, ordenadas ao longo de uma di- "salaminho" e "salamito", que identifica uma diferença entre o falar paulista e o
mensão contínua, são determinadas por uma ou mais variáveis independentes, gaúcho. No nível sintático, observe os vários tipos de construção relativa, nos
Je natureza linguística ou extralingiiística. Observe que a marcação de plural seguintes exemplos: "A moça de quem você falou estuda no colégio" x "Á moça-
10 sintagma nominal é uma variável, representada por Labov (1972) por col- que você falou estuda no colégio" x "A moça que você falou dela estuda no
;hetes angulares: <s>. A presença de marcação, representada por [s], como colégio". Observe, agora, que a alternância lexical entre "jerimum"/"abóbora",
"macaxeira"/"aipim"/"mandioca" fornece identificação da origem regional do
falante.
4. Remetemos o leitor aos capítulos "Fonética" e "Fonologia" neste mesmo volume, para uma identi- Já do ponto de vista da relação com fatores de natureza extralingiiística
icacSo mais completa desses sons.
(Camacho, 1988), toda língua comporta variantes: (i) em função da identidade
5» INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA " • ' " i , .MÍMICA: porte 2 59

social do emissor; (ii) em função da identidade social do receptor; (iii) em fun- i'"«Irmos observar alguns traços que caracterizam o desempenho verbal
çíão das condições sociais de produção discursiva. Em função do primeiro fator, i i M i l i v u l i i n s pertencentes a baixos estratos socioculturais na pronúncia mais
pertencem as variantes que se podem denominar dialetais em sentido amplo: • • H l >•, generalizada da redução e desnasalização do ditongo /eyN/ em posi-
variantes geográficas e socioculturais. Em função do segundo e do terceiro Intli il.iki átona final, como se observa em palavras como "homem", pronun-
f^tores, pertencem as variantes de registro ou estilísticas. Referem-se ao grau liiilu "homi"; "devem", pronunciada "devi", caso em que o processo fonológico
de formalidade da situação e ao ajustamento do emissor à identidade social do inmltuneamente a regra de concordância verbal em sentenças como "eles
receptor. i i l mgar a cerveja". Outro traço é o já mencionado cancelamento do fonema
1*1, himhcm em posição de sílaba átona final, observável em palavras como
Como é verdadeiro que o domínio de uma língua deriva do grau de contato
n nos", pronunciada "vamo", e em sintagmas nominais pluralizados, como
do falante com outros membros da comunidade, também é verdadeiro que quan-
• • int-iiiiios", pronunciado "os menino", que, nesse caso, afeta também a regra
to maior o intercâmbio entre os falantes de uma língua, tanto maior a semelhan-
• i. concordância nominal.
ça entre seus atos verbais. Dessa tendência para a maior semelhança entre os
atos verbais dos membros de uma mesma comunidade resulta a variação geo- As formas em variação adquirem valores em função do poder e da autori-
gráfica. Outra razão reside no fato de que os indivíduos nativos de determinado • i i ' l - t|nc os falantes detêm nas relações económicas e culturais. Assim, uma
setor geográfico orientam-se para um centro cultural, política e economicamen- M i.intc, como presença de marca de plural no sintagma nominal, é conhecida
te? polarizador. Constitui-se, assim, uma comunidade linguística geograficamente • "in«> detentora de prestígio social entre os membros da comunidade, sendo por
restrita, inserida no interior de uma mais extensa e abrangente. Mediante a atra- ÍNM> chamada variante padrão ou de prestígio. Já sua alternativa, a ausência de
çgo geográfica e a contiguidade física é que se desenvolve um comportamento m.iicii de plural, é conhecida como variante não-padrão ou estigmatizada. É
cultural específico que identifica os membros de uma comunidade e os distin- "l I M « > que a distribuição de valores sociais se torna institucionalizada pela ele-
gue dos membros de outras. i... K > de uma variedade de prestígio à condição de língua padrão que, como tal,
.1 u ser veiculada no sistema escolar, nos meios de comunicação, na lingua-
É fácil perceber a variação motivada por diferenças na origem geográfica.
r.m oficial do Estado etc. O mecanismo é simples: como os detentores da varie-
B asta percorrer o país para perceber, por exemplo, que toda a região nordestina
«l.iilo de prestígio controlam o poder político das instituições, que emana das
s& identifica com base na abertura sistemática da vogal pretônica de "dezem-
i chicões económicas e sociais, são também detentores da autoridade de vincular
bro" e "colina", sistematicamente fechada na região sudeste. Em certas regiões
n língua à variedade que empregam.
do sul do país, pronunciam-se como médias as vogais em posição átona final,
como no sintagma nominal "leite quente", que, em outras regiões, aparecem Fatores como idade, sexo e ocupação motivam a distinção entre a lingua-
como altas, "leiti quenti". Neste último caso, observa-se ainda que a pronúncia gem comum e as linguagens especiais. Corresponde à primeira o inventário
da vogal anterior /i/ na região sudeste acarreta por assimilação regressiva a U-x içai e sintático referente aos conceitos comuns a todos os membros de uma
palatalização da consoante oclusiva, que passa a soar como uma africada; algo rói nu n idade linguística relativamente homogénea. Já as linguagens especiais
próximo a "leitchi quentchi". contrastam com a comum por consistirem em variedades dialetais próprias das
diversas subcomunidades linguísticas, cujos membros compartilham uma for-
Como o grau de semelhança entre as formas de expressão dos membros de
ma especial de atividade, profissional sobretudo, mas também científica e lúdica.
urna comunidade linguística é proporcional ao grau de intercâmbio social que
< )s jargões científicos, as gírias são subcategorias compreendidas no âmbito das
naantêm entre si, a variação sociocultural deriva da tendência para a maior se-
melhança entre os atos verbais dos indivíduos participantes de um mesmo setor linguagens técnicas ou especiais.
socioeconômico e cultural. As diferenças linguísticas são motivadas por dife- As diversas modalidades de gírias distinguem-se de outros tipos de lin-
renças de ordem socioeconômica, como nível de renda familiar, grau de escola- ;'ii;igens técnicas em função das motivações sociais que acionam seu surgimento,
ridade, de ordem sociobiológica, como idade e sexo, de ocupação profissional, sondo que a mais importante é a necessidade de sigilo, principalmente no caso
entre outros, sejam esses fatores isolados ou combinados entre si. do desenvolvimento de variedades linguísticas próprias de grupos fechados, como
60 INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA •MNUJiSTICA: parte 2 61

o de i pn.ir. I I . i tod.m.i. u n i i a s motivações que acionam o surgimento da ()utro aspecto a destacar é a forte vinculação entre a variação social e a
- i i i i A l i - i n . l . i MI -i ( • ' , Mil.iclr do niaeao de neologismos por força de necessida- • 1111 st iça. O indivíduo necessita ter, interiorizadas em sua competência lingiiís-
• i. . i ns li.i um.i demanda especial, em certos grupos, por forte coesão is formas alternativas padrão e não-padrão sobre as quais ele pode operar
11 < u|.i < < > i i:.c< |nciK-ia c a exclusão, via linguagem, dos que não fazem parte • .1 Irção conforme variam as circunstâncias de interação. Em geral, indivíduos
<|o empo Ks.se tipo de motivação para a criação de gíria caracteriza especial- • l' l L lixa escolarização e que exercem atividades produtivas que não exigem
mente .1 linguagem do adolescente. Mi n.io habilidades manuais, não desenvolvem a capacidade de operar com re-
. ' • ' • ! • • variáveis. Nesse caso, como lhe são vedadas as possibilidades de adaptar
A diversidade linguística não se restringe a determinações motivadas por
•. 1 1 1 c s l i l o às circunstâncias de interação, a língua que usam acaba representando
origem sociocultural e geográfica. Um mesmo indivíduo pode alternar entre
u 111.1 poderosa barreira a todo tipo de ascensão social que depender de capacida-
diferentes formas linguísticas de acordo com a variação das circunstâncias que
de verbal.
cercam a interação verbal, incluindo-se o contexto social, propriamente dito, o
assunto tratado, a identidade social do interlocutor etc. Um professor universi-
tário, por exemplo, pode pôr-se às voltas com pelo menos três diferentes situa- 3. POR QUE NÃO IGNORAR A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
ções linguísticas: no restaurante universitário, conversando banalidades com
seus alunos; na sala de aula, exercendo sua profissão; e no auditório, dando uma Justamente por acreditarem que a variação consiste numa espécie de caos
palestra. É óbvio que essas diferentes circunstâncias exigem progressivamente i n 1'anizado, cujos princípios merecem ser escrutinados, é que os sociolingiiistas
maior frequência de escolha de variantes padrão. Assim, na situação de confe- voltaram a atenção para seu exame. A variável como objeto de estudo represen-
rencista, não soaria adequado o emprego de "cê", por "você", por exemplo, de tou uma inovação na teoria da linguagem com o surgimento da Sociolingiiística:
"tá", por "está", perfeitamente plausíveis na conversa informal do restaurante .iti- então, todas as unidades linguísticas — fones, fonemas, morfemas, sintagmas
universitário. e orações — eram unidades de natureza invariante, discreta e qualitativa. A
A variação estilística ou de registro é o resultado da adequação da expres- unidade de análise criada pela Sociolingiiística tem natureza, por definição, va-
são às finalidades específicas do processo de interação verbal com base no grau i uivei, contínua e quantitativa (cf. Labov, 1966). Tem natureza variável porque
de reflexão do falante sobre as formas que seleciona para compor seu enuncia- existem duas ou mais diferentes maneiras de expressão, conforme a diversidade
do. O grau de reflexão é proporcional ao grau de formalidade da situação das circunstâncias de uso; tem natureza contínua porque certas alternativas, como
interacional: quanto menos coloquiais as circunstâncias, tanto maior a preocupa- a pronúncia retroflexa de /r/, assumem valores sociais negativos com base na
ção formal. Se a competência do falante inclui duas formas de expressão, como distância da forma padrão, a vibrante alveolar, pronunciada na região metropo-
"Por favor, poderia me passar o açúcar", em contraste com "O meu chapa, vai litana de São Paulo; tem natureza quantitativa porque a relevância metodológica
ficar alugando o açucareiro até quando? Dá pra passar ou não?", o óbvio é que das variantes que constituem uma variável é determinada pela frequência
o primeiro enunciado seja selecionado, por exemplo, num jantar com pessoas percentual de cada uma em relação aos diferentes fatores que as condicionam.
estranhas e pouco familiares, enquanto o segundo seja selecionado, por exem- O estudo de uma unidade com as características da variável linguística só
plo, numa mesa de bar, que se compartilha com pessoas do círculo íntimo. e possível no interior de um arcabouço teórico que abandone o postulado ainda
É possível considerar dois limites extremos na transição entre os diferen- vigente de categoricidade, o que de pronto se deu com a Sociolingiiística
tes estilos possíveis: o estilo informal, em que é mínimo o grau de reflexão laboviana. No entanto, seria interessante verificar por que se voltou a atenção
sobre as formas empregadas e o estilo formal, em que é máximo o grau de para a variação somente nos últimos trinta anos, principalmente.
reflexão que se projeta sobre as formas linguísticas. A diferença essencial entre Esquivar-se de lidar com o caos é uma fraqueza humana nada desprezível
os dois graus extremos reside nos diferentes graus de adesão ao uso de formas e talvez seja por isso, e não exatamente por ignorar a existência da variação, que
padrão ou variantes de prestígio: no estilo informal a adesão às formas pres- u investigação linguística se conduziu de modo a excluí-la de seus critérios de
tigiadas ou cultas é menor do que no estilo formal. relevância. Não é por ignorar a variação, porque, desde o século passado, os
62 INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA UCA: parte 2 63

linguistas manifestam reconhecimento de sua existência. Em 1885, Schuchardt ' '|iic, por tendência, sempre preferiu trabalhar com seu próprio conheci-
(apud Chambers, 1995) já notava que a pronúncia do indivíduo não está livre de '" >las regras de funcionamento da linguagem.
variações. Algumas décadas mais tarde, Sapir (1921) alegava que todos reco- l ínlietanto, a idealização da comunidade de fala não significa, obviamen-
nhecem que a linguagem é variável. Mesmo assim, por que razão a diversidade ni >i ar a existência da variação. Que tratamento dar a ela no contexto de
não foi sistematicamente analisada até a inauguração da Sociolingiiística no micepção abstraia de linguagem? As explicações ficaram sujeitas a duas
início dos anos 1960? •ihi i nativas: (i) as variantes pertencem a diferentes sistemas linguísticos co-
O desenvolvimento na teoria linguística de um sentimento de aversão ao ' i • nles na mesma comunidade de fala e a alternância entre elas não passa de
caos, à variação, cuja consequência foi gerar uma concepção monolítica de lin- cinplo de mistura dialetal ou de uma mudança de código; (ii) as variantes
guagem, baseia-se na suposição metodológica de que a estrutura linguística é • i > .ninem uma a outra livremente (variantes livres), constituindo, portanto,
necessariamente homogénea. Esse postulado, que emergiu originalmente do i • mo secundário, de pouca relevância para o estudo da gramática de uma
recorte metodológico sobre o fenómeno linguístico que Saussure (1916-1977) i na. Para ilustrar essas duas posições, poderíamos considerar a aplicação da
criou ao cunhar a famosa dicotomia língua e fala, radica no fato de que a língua, ' < Ir concordância verbal na língua portuguesa. A primeira explicação afir-
o sistema gramatical, é extraída da turbulência vertiginosa em que emerge a fala in.11 pie o falante flutua entre dois diferentes sistemas, ou faz uma mistura diale-
com os usos sociais da linguagem. Fica excluída, in limine, a aparente ilegalida- ' ' i .rinpre que alterna um enunciado, em que o verbo concorda em número
de dos fenómenos sociais (Sapir, 1929, apud Chambers, 1995). « c - M I .eu sujeito, como "Aí chegaram uns caras", com um enunciado como "Aí
A tradição linguística em favor da categoricidade dos fenómenos observá- • I I C J M M I os caras", em que o verbo não estabelece concordância. A segunda ex-
veis, iniciada na distinção saussureana, teve continuidade natural na teoria gera- j i l i c .ícao afirma que a concordância está em variação livre na gramática do fa-
tiva, como pode ser observado com meridiana clareza na seguinte citação: I u MC, islo é, trata-se de um uso submetido à seleção facultativa, ao livre-arbítrio
.1" l.ilante.
Quando dizemos que duas pessoas falam a mesma língua, estamos necessaria-
A noção de sistemas co-existentes sustenta a ideia de que os falantes man-
mente fazendo abstração de todas as espécies de diferenças na sua fala. (...) Para
simplicidade de nossa exposição, admitiremos que a língua que descrevemos é i' i i . i n i separados os sistemas fonológico e gramatical, o que lhes permitiria mudar
uniforme — entendendo por uniforme que ela é indiferenciada dialetal e v.n lavclmente de um para outro. Essa noção é difícil de sustentar-se em virtude
estilisticamente — o que é, logicamente, uma "idealização" dos fatos — e que ilc uma consequência que dela se infere: a de que os falantes seriam capazes de
todos os falantes nativos estão de acordo se um enunciado é aceitável ou não5. manicr consistentemente um sistema fonológico até que alguma mudança nas
I 1 n unstâncias de uso acionasse o segundo sistema disponível. Elementos mis-
Deduz-se, assim, que é possível desenvolver cabalmente uma teoria lin- l u i ados dos dois sistemas não deveriam em princípio ocorrer, enquanto as con-
guística adequada com base num comportamento verbal uniforme e homogé- iln.ocs do evento de fala permanecessem inalteradas.
neo, sem espaço para a variação. A noção de variante livre, que se assenta na ideia de que formas alternati-
Com o sucesso da análise abstraía dos fenómenos linguísticos, operada, vas não passam de meras flutuações submetidas ao livre-arbítrio do falante,
inicialmente, pelo paradigma estruturalista e, em seguida, pelo gerativista6, não apresenta também consequências discutíveis. Se duas variantes são realmente
parecia haver nenhuma razão para o pesquisador se preocupar com a busca de livres, segue-se forçosamente que elas não podem ser condicionadas por ne-
dados. A exclusão da relação entre a linguagem e o contexto social, motivada nhum fator, embora a observação mais desinteressada possível do fluxo de fala
pelo postulado de categoricidade, foi, de certa maneira, conveniente para o lin- mostre claramente que variantes em uso se acham sempre fortemente vincula-
das, pelo menos, a fatores sociais, o que torna seu comportamento empiricamente
previsível e passível de formulação teórica.
5. Lyons, J. Introdução à linguística teórica. Trad. R. V. Mattos & H. Pimental. São Paulo, Cia.
Editora Nacional/EDUSP, 1979, pp.146-147. A inadequação e a fragilidade desse tipo de consideração se tornam ainda
6. Ver capítulo "Sintaxe" neste mesmo volume. mais evidentes se voltarmos a atenção para processos variáveis que se situam na
64 INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA SOCIOLINGÚÍSTICA: parte 2 65

intersecção entre a gramática e a fonologia, como os fenómenos de simplifica- Bakhtin (1979) entende que a própria enunciação monológica é uma abs-
cflo de grupos consonantais no inglês negro norte-americano, como "bold" (atre- ii iicão, já que qualquer ato enunciativo, ainda que no âmbito da linguagem es-
vido), pronunciada "boi" e "rolled" (rolou/rolava), pronunciada roll'. A ques- • i ila, representa a resposta a algum outro texto, constituindo-se, desse modo,
tão central aqui diz respeito diretamente à própria estrutura linguística: grupos num elo de uma cadeia de atos de fala. No entanto, o filólogo-lingiiista não era
consonantais da forma CVC+C7 que envolvem uma marca de pretérito, como t .ipaz de perceber o caráter dialético das enunciações; pelo contrário, "compre-
"roll+ed", [jol + d], devem receber o mesmo tratamento que os grupos da forma i-nde-as como um todo isolado que se basta a si mesmo e não lhe aplica uma
CVCC, como [bold], que não perdem nenhuma informação gramatical com o i oinpreensão ideológica ativa (...)"9.
cancelamento do [d] final? Teorias linguísticas de base formal não possuem
A concepção de uma língua isolada, fechada e monológica, desvinculada
critérios nem meios adequados para expressar a configuração desse fato, uma
de seu contexto linguístico real, corresponde à compreensão passiva que filólogos
vez que tanto "bold" quanto "rolled" se incluiriam na mesma regra opcional ou
c sacerdotes tinham de uma língua estrangeira, escrita e morta. A história da
facultativa e só um tratamento quantitativo de dados da língua em uso no con-
l -inguística é, com efeito, um desfile completo desse tipo de investigação.
texto social permite observar que as formas que envolvem valor de pretérito,
como "rolled", apresentam menor frequência de cancelamento de [d] que as A orientação dos paradigmas vigentes na Linguística, até aproximadamente
formas, como "bold", que não se envolvem com esse tipo de conteúdo.8 É como ii metade do século XX, para a criação de um objeto de estudos estável e unifor-
se os falantes se sentissem bloqueados diante do apagamento de uma forma que me, desligado da realidade social, reflete o papel histórico que a palavra estran-
expressa um valor semântico de pretérito. geira desempenhou na formação de todas as civilizações. Passemos a palavra a
Uakhtin:

4. POR QUE SE IGNOROU A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA A palavra estrangeira foi, efetivamente, o veículo da civilização, da cultura e da
religião, da organização política (os sumérios em relação aos semitas babilónicos;
Bakhtin forneceu uma hipótese interessante para a explicação da tendên- os jaféticos em relação aos helenos; Roma, o cristianismo, em relação aos eslavos
cia da teoria da linguagem para o tratamento categórico dos fenómenos do leste etc.). Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira — palavra
linguísticos e, como um marxista convicto, localizou todas as causas na história que transporta consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumas vezes é en-
do pensamento linguístico ocidental. O enfoque filológico, com o qual a Lin- contrada por um jovem povo conquistador no território invadido de uma cultura
guística do século XX pensou romper, é determinante para a apreciação do pen- antiga e poderosa (cultura que, então, escraviza, por assim dizer, do seu túmulo, a
samento contemporâneo da teoria da linguagem. consciência ideológica do povo invasor) — fez com que, na consciência histórica
dos povos, a palavra estrangeira se fundisse com a ideia de poder, de força, de
Desde os primeiros estudos hindus e gregos, remontando aos séculos IV
santidade, de verdade, e obrigou a reflexão linguística a voltar-se de maneira
e V a.C., a Linguística vem elaborando suas categorias com base em monólo-
privilegiada para seu estudo.10
gos mortos, como por exemplo a inscrição em monumentos antigos. E de fato
o mais antigo tratado sobre a linguagem produzido na índia é uma interpreta-
Uma premissa fundamental da Linguística contemporânea é justamente o
ção das palavras do Rigveda, que já haviam ficado obscuras; o objetivo prin-
enfoque na modalidade oral da linguagem, sendo até comum vê-lo como princí-
cipal do estudo linguístico em Alexandria durante o período helenístico foi a
pio programático nos manuais correntes de divulgação, para opor a Linguística
explicação dos textos dos poetas da Antiguidade, principalmente Homero (Câ-
A Filologia. Ainda assim, na interpretação de Bakhtin, o linguista continua a
mara Júnior, 1975). ;iplicar às línguas vivas a metodologia e categorias analíticas adquiridas medi-
ante o longo convívio com as línguas mortas-escritas-estrangeirâs. O resultado
7. Entenda-se C para consoante e V para vogal.
8. Labov, W. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1972, 9. Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1979, p. 84.
pp.189-190. 10. Ibidcm, p. 87.
66 INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA SOCIOLINGÚÍSTICA: parte 2
67

desse tratamento é a concepção de linguagem que o norteia, que é a de um As penalidades por ignorar dados da comunidade de fala são a sensação crescente
objeto de estudos isolado-fechado-monológico, absolutamente desvinculado do de frustração, a proliferação de questões sem solução e a convicção de que a
contexto social11. Linguística é um jogo em que cada teórico escolhe a solução que melhor se adapta
a seu gosto ou intuição12.
A alternativa teórica introduzida por Labov, na década de 1960, para re-
solver problemas da estrutura linguística, além de, por princípio, postular que a
heterogeneidade é inerente ao sistema linguístico, concebe sua análise a partir 5. A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
de um conjunto de formas que se manifestam, de fato, no contexto social. Nessa
perspectiva, a língua é constituída por um conjunto de fenómenos não estrita- Tendo constatado que a linguagem varia e tendo discutido de que natu-
mente linguísticos, mas também extralingiiísticos, que participam ativamente M-/;I é a variação, resta ainda avaliarmos as consequências dessas propriedades
da aplicação de uma regra, favorecendo-a ou desfavorecendo-a. É possível afir- • l.i linguagem para o ensino da língua materna. O primeiro aspecto, e talvez o
mar que se inaugurou aí, com o advento da Sociolingiiística, um dos primeiros mais importante, é que algumas formas de expressão podem estigmatizar so-
movimentos orquestrados, não obviamente o único, contra a tendência tradicio- • 1.11 mente seus falantes, enquanto outras podem valorizá-los socialmente. Para
nal de considerar a língua um objeto de estudos tão isolado do uso que lhe dá a ilustrar isso, ponha-se na situação de um gerente de pessoal de uma empresa,
configuração de um cadáver que se disseca. A perspectiva inaugurada por Labov «•ni revistando candidatos a uma vaga de recepcionista. Você admitiria o can-
pretendeu superar o idealismo homogeneizante da Linguística contemporânea: didato que dissesse "nóis compramo os artigo necessário" ou o que dissesse
não há fronteira nítida entre o sistema linguístico e seu uso; ao contrário, tudo nos compramos os artigos necessários"? Certamente o segundo. Não seria
que se tem, como objeto de estudos, é a manifestação da linguagem no contexto essa situação, que se reproduz quotidianamente em progressão geométrica,
social e sobretudo em situações informais. u m mecanismo mais ou menos velado de discriminação social pela lingua-
gem?
É inegável, por outro lado, que a limitação do objeto de estudos a um
sistema ideal, resultante do postulado de categoricidade, estimulou, no século A natureza discriminatória que a linguagem pode assumir, em função da
XX, o desenvolvimento da Linguística como ciência autónoma, e o alto grau variação linguística e dos mecanismos de estigmatização, leva-nos, professores
r pesquisadores, a refletir sobre a questão que mais nos afeta: em que grau o
de sistematização atingido colocou-a no honroso posto de ciência piloto das
processo de ensino da língua materna contribui para o agravamento ou para a
ciências humanas. E, não obstante ainda persista a abordagem independente
•.imples manutenção das situações de exclusão, como aque expusemos anterior-
do contexto social, a teoria da linguagem não pode mais ignorar os avanços de
nu-iite, a que está sujeita a população socialmente marginalizada? Certamente
teorias alternativas, como a Sociolingiiística, a Análise do Discurso, a Análise
lio numerosos os aspectos que respondem a essa questão. Nenhum, porém, é
da Conversação, a Linguística Textual. A única certeza que se tem é que ne-
•mula hoje mais relevante que o da relação de conflito que se estabelece entre a
nhuma solução específica pode ser considerada correta num sentido absoluto: < uliura imposta como referencial exclusivo e as experiências vivenciadas, espe-
a quem quer que faça pesquisa científica não cabe duvidar de que o resultado da l mente pelo jovem provindo de camadas marginalizadas. Enfocando essa
de seu esforço seja criticado, modificado, e até substituído para ressurgir numa n-lacão de um ângulo estritamente linguístico, delineia-se o conflito no âmbito
forma irreconhecível. Entretanto, se as soluções estiverem profundamente ar- da polarização entre a língua de fato ensinada na escola, como referencial ex-
raigadas nos dados é razoável crer que sejam de fato propriedades da estrutura < lusivo, que podemos denominar variedade padrão, e o dialeto social que o
linguística: .iprendiz domina de acordo com sua origem sociocultural.

11. A história contemporânea da Linguística aponta para mudanças significativas em direção da


descrição da língua viva, falada. Vale observar que, no Brasil, os pesquisadores do Projeto de Gramática do Cf. o original: "The penalities for ignoring data from the speech community are a growing sense
Português Falado, coordenado por Ataliba Teixeira de Castilho, da USP, têm-se debruçado sobre a obser- 'l InisiKiiion, a prolifcration of moot qucstions, and a conviction that linguistics is a game in which each
vação direta do oral com o objetivo final de fornecerem uma gramática de referência dessa modalidade de llirorisl dmoses lhe solulion lhal fils his liisle or intuition". In: Labov, W. Sociolinguistic Patterns.
linguagem. riiihulrlpliiii, llnivursily ol Pcnn.sylvaniii Press, 1972, p. 259.
68 INTRODUÇÃO À LINGÚIM K A 'HSriCA:parte2 69

Ao assumir, de fato e de direito, o princípio da heterogeneidade inerente a i <>m seu surgimento, a Sociolinguística postulou, como já vimos, o prin-
linguagem, a Linguística moderna, especialmente a Sociolinguística, eliminou ilc (|uc a heterogeneidade não é um aspecto secundário e acessório da
preconceitos ao afirmar, axiomaticamente, que todas as línguas e variedades d< 1 i » I a linguagem; é, pelo contrário, uma propriedade inerente e funcional.
uma língua são igualmente complexas e eficientes para o exercício de todas as i • n Io, a capacidade de operar uma seleção entre formas alternativas pos-
funções a que se destinam; e que nenhuma língua ou variedade dialetal impõe « < >i i forme as circunstâncias sociais da interação, é um dos atributos mais
limitações cognitivas na percepção e na produção de enunciados. A tradição uiii-s da competência comunicativa do falante.
pedagógica replica, entretanto, que, na prática de quem educa, a teoria é bem ( > problema da relação entre norma e variação linguística, aparentemente
outra: há uma e somente uma língua correta e eficaz a todas as circunstâncias de •o;'iço, cruza linhas com a questão social e linguística da adequação de
interação, que se define como norma. Essa variedade de linguagem é, com efei- . lades não-padrão como sistemas de comunicação. Para um sociolingiiista,
to, uma forma institucionalizada de imposição e que, por isso, adquire o direito • n l i i M i i s e as assim chamadas subculturas podem classificar-se com base numa
de ser a língua, restando às demais variedades cuidados repressivos. Pode-se- 11, ao entre um modelo da diferença verbal e um modelo da deficiência ver-
dizer, então, que, da fusão numa coisa só e indiscriminada de língua e varieda- /'.»/ < ) modelo da deficiência considera diferenças verbais como desvios da nor-
de, a norma acaba passando por um padrão neutro e universal, modo de existên- i i i * • ulia, que, como vimos, está mais próxima às classes mais privilegiadas. O
cia próprio dos mecanismos tipicamente ideológicos. l<-lo tia diferença considera que a variedade dos grupos socialmente margi-
Contrariando a Linguística em seus princípios, a pedagogia da língua elege ii 'i i /.ulos é um sistema linguístico nem deficiente, nem inerentemente inferior a
o correto e o incorreto, sua dicotomia predileta para discriminar e, ao mesmo "iiii.is variedades (Wolfram & Fasold, 1974).
tempo, selecionar. Sem nenhum respaldo nos fatos linguísticos, mas baseada so- O modo como a língua é ensinada na escola pratica tradicionalmente o
lidamente em motivações sociais, que a rubrica do incorreto mal encobre, a tradi- nu ídolo da deficiência. O principal pressuposto da tradição normativa é que
ção pedagógica acaba por liquidar o último reduto das camadas marginais - • 11 T à escola o papel de compensar supostas carências socioculturais. Decorre
justamente o que lhes é peculiar e identificador — sua própria variedade de lin- • i' .-.<• pressuposto que a principal tarefa do ensino é substituir a variedade não-
guagem. No lugar dela nada repõe, uma vez que perde o tempo que tem para o l'.idi;io pela padrão. A esse modo de existência, a Sociolinguística propôs uma
trabalho prático com a linguagem, repetindo, ano a ano, as mesmas inúteis listas . 111 < 11 ial i vá fundamental, segundo a qual variações de linguagem não devem passar
de exceções de regras, a mesma classificação gramatical. Esse procedimento es- l M n mu crivo valorativo, já que não são mais que formas alternativas que o
tigmatiza indelevelmente formas discursivas complexas e eficazes do quotidiano i nu linguístico põe à disposição do falante. Nesse caso, é outra a tarefa
e nada repõe. As marcas são, no entanto, certamente fortes e profundas. linulumental da pedagogia da língua materna: cumpre-lhe despertar a consciên-
O sentimento de aversão que a pedagogia da língua cria é de tal monta que i 1.1 do aluno para a adequação das formas às circunstâncias do processo de
os danos podem ser irreversíveis. O mais simples de detectar é o horror que as i ou umicação.
crianças sentem diante da página em branco, seguido da inevitável pergunta: Por trás desse programa, há alguns pressupostos, como o de que formas
"quantas linhas, professor?". Assim, ao impor um modelo de linguagem, sem .01 ia! mente estigmatizadas operam como estruturas linguísticas tão complexas
nenhum direito à apelação, com exclusividade e em substituição à variedade c dica/es quanto as prestigiadas. Outro pressuposto, mais geral, afirma que a
que o aluno já domina, como se simplesmente nada dominasse, a escola parece variedade padrão não constitui um modelo universal — a língua. É apenas
simplesmente ignorar a variação linguística. unia variedade mais prestigiada e geralmente selecionada para o uso em situa-
De um modo muito simples, pode-se dizer que há, na tradição pedagógica, ções formais. Desfaz-se, assim, aquela fusão equivocada de língua e variedade,
uma concepção de linguagem que idealiza um objeto extraído das manifesta- anteriormente mencionada.
ções verbais escritas de uma verdadeira elite. Esse objeto é depois travestido de Impor com exclusividade a variedade padrão, misturar uma pitada de
padrão, modelo, para as manifestações verbais, orais ou escritas, de todos os intolerância para com a variedade que as crianças dominam são os ingredien-
demais falantes. les de uma receita infalível que se resume na rejeição à língua e no desenvol-
70 INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA !()(lOIINGÚiSTICA: parte 2 71

vimento de um processo de insegurança linguística. Para as crianças socioeco- I n l i i l a i l e de ordem exclusivamente individual. É relativamente recente a ex-
nomicamente favorecidas o mal é certamente menor, embora presente tam- i>.insão do ensino elementar e a consolidação dos processos de articulação dos
bém. Como, desde a primeira infância, acham-se mais familiarizadas com a • 111 <• rentes níveis de ensino em uma escola única, articulada, formalmente aberta
variedade padrão, o modelo escolar é uma extensão do processo de socializa- i iodos, que é como se configura, atualmente, na lei pelo menos, o sistema
ção iniciado pelos pais. • < «ilar. Além de uma expansão rápida do ensino médio e superior, o período
Desse modo, parece impor-se uma correlação: quanto maior a familiari- i li- 1064-68 iniciou uma abertura sucessiva de barreiras formais e a articula-
dade cultural que o alunado mantém com a modalidade veiculada pelo ensino, . .10 dos diferentes níveis de ensino. Aglutinou o antigo primário e curso mé-
tanto maior a probabilidade de êxito ao longo do processo escolar. Nesse as- i h « i ilo primeiro ciclo, que passaram a chamar-se, como sabemos, "ensino de
pecto, as camadas marginalizadas nadam contra a maré. A modalidade de cul- i "i au", distinguindo-o do ensino médio de 2° ciclo, que passou a denominar-
tura que a escola desenvolve afina-se mais com a das classes dominantes. O «•nsino de 2° grau".
problema é maior quando tal modalidade se impõe no ensino como referencial Em contradição com esse aspecto formal da escola única e aberta a to-
exclusivo a que outros modos de existência cultural acabam por submeter-se. dos, idealmente constituída, o quadro real é o de um sistema que reproduz as
Tal cultura é arbitrariamente imposta; já que, na relação pedagógica em si desigualdades típicas de classe social, mediante a desigualdade paralela de
mesma, abstratamente considerada, nada há que leve a instituir a matriz de valo- .iresso e sucesso dos alunos socioeconomicamente marginalizados, tal como
res da classe dominante como cultura referencial exclusiva a transmitir. Objeti- i ni l içam as estatísticas sobre evasão e reprovação. O Censo Demográfico da
vamente, a ação pedagógica reveste-se, assim, de violência simbólica, pois decor- l uiulação IBGE indica que 69,7% da população não têm qualquer instrução
re da imposição, por um poder arbitrário, de uma cultura também arbitrariamente ou lèm apenas o antigo primário incompleto; 22,5% têm apenas o primário
selecionada e que de forma alguma pode ser deduzida de princípios universais. i ompleto; 4% têm apenas o 1° grau completo; 3% apenas o 2° grau completo
Na realidade, essa seleção é arbitrária porque se baseia nas relações de força c menos de 1% da população brasileira logra atingir o ensino superior (Ma-
entre os grupos sociais (Bourdieu & Passeron, 1975). rhado, 1983).
O papel que a norma desempenha nesse jogo é óbvio: o valor simbólico E relevante acrescentar que os índices do Censo indicam uma correlação
das variedades linguísticas disponíveis está em função da distância que as sepa- M.riiificativa entre exclusão e ocupação: os mais excluídos ocupam profissões
ra da variedade padrão que a escola impõe. A instituição não reconhece a legi- miais; segue-se imediatamente o exercício de atividades na produção extrativa
timidade da variação linguística. Muito pelo contrário, acaba por submetê-la ao mineral, na prestação de serviços e na indústria de transformação e construção
critério de correção. O que passa é um conjunto de expressões vinculado ao re- civil; todas essas atividades totalizam mais de 96% de indivíduos, praticamente
gistro formal da modalidade escrita; o que sobra é proscrito como realizações sem instrução. Por conseguinte, é justamente a população que ocupa os estratos
imperfeitas e deficientes, em confronto com a matriz de valores eleita. Assim, o mais baixos da escala socioeconômica a mais atingida pelos efeitos do processo
valor simbólico das diferentes variedades linguísticas depende sempre da dis- ilo exclusão. Ocorre significativamente que os níveis médio e superior de esco-
tância que as separa da variedade normativa, que a escola impõe sob a condição laridade são atingidos pelos ocupantes do extremo oposto (Machado, 1983).
de um modelo neutro e universal. Por conseguinte, a desigual distribuição do Contrariando a noção implícita na interpretação ideológica, de que há uma es-
"capital linguístico escolarmente rentável" é um dos elos mais dissimulados da cola única, igual e aberta a todos, a escola brasileira reproduz, em vez de dimi-
relação entre sucesso escolar e origem social. nuir, as desigualdades sociais.
No Brasil, a característica formal do sistema de ensino é constituir-se Para ocultar e dissimular seu próprio modo de existência, a instituição
como uma escola única em dois sentidos: seus diferentes níveis são contínuos oscolar, aqui no Brasil e em outras partes do mundo, desenvolve princípios,
desde o ensino elementar até o superior e é uma só, igual e aberta a todas as como o da privação cultural e o da deficiência verbal, deslocando a causa de
classes sociais. Uma escola, assim concebida, supõe que indivíduos iguais só si própria para o aluno. Em termos linguísticos, acredita na estratégia
não atingem os níveis mais elevados do sistema por incapacidade ou impossi- erradicacionista do ensino compensatório, que procura liquidar as formas
72 INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA K IIII INUJlSTICA: parte 2 73

da variedade não-padrão, suprindo a lacuna com outras alternativas, próprias i 'i uno a variação é a pedra de toque dessa abordagem, sentimos, então,
da norma culta. .idade de demonstrar que, mesmo quando submetida à diversidade
lli i as para expressar o mesmo conteúdo, a linguagem é um sistema
O problema é que essa estratégia provoca conflitos entre diferentes siste-
1 1 Mimado e sistemático e, como tal, sujeito a princípios explicitáveis de
mas de valores e estes, por sua vez, desencadeiam obstáculos sérios à aquisição
>ni/,ução. Coube à Sociolingiiística o mérito de trazer à luz a diversidade
da variedade padrão (Camacho, 1984). A emergência de conflitos entre siste-
< «'mo objeto verdadeiro de estudos, dando-lhe estatuto teórico-metodológico;
mas diversos de valores dá vazão ao surgimento de questões ideológicas. A lhe lhe ainda hoje a tarefa de explicitar os princípios internos e externos
variedade linguística que empregam os membros de uma comunidade é fator de 'in. K-gem a variação.
identificação social. Se é estigmatizada pela escola, em contraponto à variedade
padrão, instaura-se um conflito entre os valores simbólicos, que a instituição A necessidade de mostrar a regularidade do processo de variação impeliu-
pretende inculcar, e os que o aluno tem para compartilhar com os demais mem- " • <U-pois, a uma definição mais precisa do conceito de variação, estendendo-
bros de sua própria comunidade e que o identificam com seus pares (Labov, « iicunstâncias sociais que motivam seu surgimento, o que desaguou numa
1964). Uma consequência drástica desse conflito pode ser a rejeição tácita da i M i|iK-na tipologia, que incluiu a variação geográfica, a social e a estilística. A
variedade padrão, em termos de ensino de língua e de outros valores da classe • i n r, tratamos de discutir por que a teoria da linguagem não deve ignorar a
dominante. Na prática, tudo redunda em evasão e repetência escolar. \n i.icão e por que ignorou durante anos, confrontando o tratamento devotado
pHa Sociolingiiística à variação com o que cultivam as teorias formais da lin-
A solução desse conflito parece muito evidente. E acreditar no modelo da l'M.IJ'1-Ml.
diferença e adotar outra estratégia para o ensino da língua materna. Afinal de
contas, o ensino da variedade padrão não necessita ser substitutivo e, por isso, 1'inalmente, enveredamos pelas trilhas do ensino, discutindo, à luz dos
não implica a erradicação do dialeto marginalizado. As formas alternativas po- |.i MU ipios sociolingiiísticos, algumas soluções possíveis para o conflito, certa-
dem conviver harmoniosamente na sala de aula. Cabe ao professor o bom senso innile inevitável, entre a variedade padrão, historicamente fomentada pela gra-
de discriminá-las adequadamente, fornecendo ao aluno as chaves para perceber ni. M iça normativa, e as variedades estigmatizadas manifestadas principalmente
as diferenças de valor social entre elas é, depois, saber tirar vantagem dessa l «-Ias classes socioeconomicamente marginalizadas.
habilidade, selecionando a mais adequada conforme as exigências das circuns- Não acreditamos que uma área de estudos tão rica e diversificada se esgo-
tâncias do intercurso verbal. u i n n n espaço tão reduzido e, a rigor, nem foi essa a intenção destas breves
Se a padronização linguística é uma imposição institucional em socieda- palavras. Para completar as informações que este capítulo só introduz, sugeri-
des estratificadas, o sistema escolar tem um papel político relevante a desempe- mos ao leitor consultar uma bibliografia básica, que relacionamos a seguir, res-
nhar para a promoção das camadas marginalizadas, que é o de propiciar-lhes i i iia ainda, em sua maioria, a manuais para iniciantes; mantemos a certeza, po-
acesso a todos os bens simbólicos, dentre eles a variedade padrão. É essa ação H-in, de que a leitura dessas obras o levará a trilhar outros caminhos, cada vez
mais complexos e enriquecedores.
transformadora que cabe à escola assumir com urgência, para exercer, de fato e
de direito, seu papel de instituição de vanguarda.
BIBLIOGRAFIA

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Iniciamos nosso percurso perguntando o que é Sociolingiiística e, ao pro- IIOURDIEU, P. & PASSEROiST, J. C. A reprodução. Elementos para uma teoria do
curarmos responder, fizemos uma opção clara e explícita pela Sociolingiiística ensino. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.
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