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Material Teórico

Estilística lexical

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Celso Antônio Bacheschi

Revisão Textual:
Profa. Ms. Silvia Augusta Albert
Unidade: Estilística lexical

Contextualização

Antes de iniciarmos nossos estudos desta unidade da disciplina Língua Portuguesa –


Estilística e Estudos Semânticos, convidamos você a ler o texto Procura da poesia, de Carlos
Drummond de Andrade:

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

(Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.)

Nesta unidade, estudaremos as palavras do ponto de vista da Estilística e procuraremos a


chave para compreender um pouco de suas “mil faces secretas”.

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Estilística lexical

Nesta unidade, estudaremos a questão da linguagem afetiva, tendo como foco as palavras.
Na verdade, estamos prosseguindo os estudos das unidades III e IV, nas quais estudamos as
palavras do ponto de vista de sua formação e significação. Então, vamos adiante.

Palavras lexicais e palavras gramaticais


Observe o enunciado a seguir:
Passava pelo vilarejo um rio de águas cristalinas.
Podemos dividir as palavras que compõem esse enunciado em dois grupos. Por um lado, temos
palavras que associamos ao mundo natural e cultural (passava, vilarejo, rio, águas, cristalinas);
e, por outro, palavras que não têm significação extralinguística, estabelecendo relações entre
as outras palavras ou servindo de determinantes delas. As primeiras são palavras lexicais (ou
plenas), as quais, mesmo isoladas, nos remetem a seres, características ou fatos fora do campo
da linguagem falada (significação externa). As demais são palavras gramaticais (ou vazias), que
não possuem significação extralinguística (significação interna).

Léxico
Palavras Lexicais Palavras Gramaticais
(Significação Externa) (Significação Interna)

As palavras lexicais existem em maior número e constituem um inventário que se renova


constantemente. As palavras gramaticais constituem um conjunto mais reduzido e estável. Esses
grupos, no entanto, não são isolados, de modo que um elemento pode passar a exercer função
própria do outro. O processo de passagem de uma palavra gramatical a palavra lexical chama-
se lexicalização. É o que ocorre no trecho a seguir:
Seu trabalho está bom, mas há um porém.
Observe que a palavra “porém” tem a função de estabelecer relação entre orações; mas,
nesse trecho, ela passa a figurar como um substantivo1, equivalendo a “problema”, “aspecto
negativo”, portanto dizemos que a palavra se lexicalizou.
De modo diverso, as palavras lexicais podem passar a ter função de palavras gramaticais.
Esse processo é conhecido como gramaticalização. Observe o exemplo que segue:
O acusado foi solto mediante pagamento de fiança.
Note que a palavra “mediante” se liga morfologicamente ao verbo “mediar”, significando,
portanto, “que medeia ou está mediando (algo)”. No exemplo que vimos, contudo, a palavra
está estabelecendo relação entre palavras lexicais, ou seja, está exercendo um papel próprio de
uma preposição, que é uma palavra gramatical.

1 Consulte o glossário ao final da unidade.

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Unidade: Estilística lexical

As palavras gramaticais, ainda que “vazias”, apresentam potencial expressivo, como se nota
no exemplo a seguir:
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que
os cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os
cose sou eu, e muito eu?
(MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Contos Consagrados. Rio de Janeiro:
Ediouro, s./d. Destaque nosso.)

No trecho, o advérbio “muito” figura de modo incomum, ligado ao pronome “eu”. Com
esse desvio, o autor demonstra a convicção da personagem, que enfatiza sua autoria da ação e
contesta a afirmação contrária.

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Para ler o texto completo, acesse http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn005.pdf.

Palavras evocativas
Bally propõe-se a estudar valores afetivos das palavras, dividindo-os em efeitos naturais e
efeitos por evocação. Os efeitos naturais são propriedades de certas palavras. No exemplo de
Guiraud (1970: 77), “‘sombre’ (sombrio, escuro, triste, lôbrego), por exemplo, é uma palavra
naturalmente própria a expressar a ideia de escuridão”.
Os efeitos por evocação advêm de associações. Como observa o mesmo autor, “uma
expressão é vulgar porque foi criada ou adotada por gente vulgar”, pois “é o emprego mais ou
menos generalizado de uma expressão por tal ou qual categoria que cria seu valor estilístico”.
Nessa mesma linha, Lapa (1975: 26), esclarece que “as palavras evocam os meios sociais
em que são geralmente empregadas” e sintetiza: as palavras “são um espelho da sociedade:
também se dividem em classes” (op. cit.: 27). A seguir, trataremos das palavras evocativas, as
quais dividimos em grupos.

A gíria

A gíria, certamente, deve estar presente na linguagem que você, aluno, utiliza todos os dias,
de modo espontâneo. Ela, no entanto, constitui um fato complexo da linguagem urbana, além
de estar impregnada de rico conteúdo afetivo.

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Embora não seja desprezada pela literatura, a gíria é um fenômeno típico da linguagem
falada. Preti (1996: 139-140) divide a gíria em gíria de grupo e gíria comum. A gíria de grupo
é aquela utilizada pelo falante dentro de um grupo social específico e composta por vocábulos
cujo significado foge à compreensão dos indivíduos que não pertencem ao grupo no qual ela
é falada, ou seja, é um signo de grupo, um índice que serve para diferenciar um grupo social
dos demais. Em oposição à gíria de grupo, a gíria comum é aquela que, originária de um
determinado grupo, por meio da interação social, passa a fazer parte do repertório de falantes
que não fazem parte do grupo do qual ela se originou.
Por exemplo, a expressão “saia justa” origina-se da gíria dos frequentadores de danceterias.
Como uma saia apertada dificulta os movimentos de quem pretende dançar, a expressão ganhou
o sentido de “situação incômoda”. Com a interação social, a expressão ultrapassou os limites do
grupo, sendo divulgada, inclusive, pela imprensa (Cf. Preti, 2003).

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Guiraud (1956) divide os termos da gíria em expressivos e técnicos. Os primeiros são formados
por mecanismos comuns na língua como a extensão de sentido, a metáfora, a metonímia (de
que trataremos a seguir); os segundos são simples signos criptológicos, por vezes, meras letras
e siglas; não têm função expressiva, são simples componentes de um código. Naturalmente,
apenas as palavras do primeiro grupo, pelo colorido especial que dão à linguagem, podem
migrar do grupo social para o vocabulário geral. Dessa forma, termos originários da gíria dos
marginais, como “xis nove” (delator), “berro” (revólver) e “xadrez” (prisão, cela) são conhecidos
atualmente por pessoas que não pertencem a esse grupo. Alguns autores exploram o emprego
de palavras da gíria como recurso literário para caracterizar as personagens por meio de sua
linguagem. É o que faz João Antônio, nos trechos a seguir:
Bem. Engraxando lá nas beiradas da Estação Júlio Prestes. Era um na fileira
lateral dos caras. Entre velhos fracassados em outras virações e moleques como
eu e até melhores, gente que tinha pai e mãe e que chegava lá da Barra Funda,
da Luz, do Bom Retiro... Porque isso de engraxar é uma viração muito direitinha.
Não é frescura não. A gente vai lá, ao trambique da graxa e do pano, porque
anda a faminta apertando. [...]
Descidos dos trens. Marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente
do escritório da estrada de ferro, todo esse povo de gravata que ganha mal.
Mas que me largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó,
o mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim,
o concreto, o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, o agrião, o pinhão. O
positivo, o algum, o dinheiro. Aquele um de que precisava para me aguentar nas
pernas sujas, almoçando banana, pastéis, sanduíche.
(FERREIRA FILHO, João Antônio. Leão de Chácara. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.)

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Para acessar o texto completo, consult http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2010/10/08/760354/
especial-tem-livros-vestibular-baixar.html.

No trecho, o narrador, na condição de menino de rua, conta seu dia a dia na “viração”
(ocupação) de engraxate e o esforço constante pela obtenção de dinheiro. A supervalorização
do ganho diário na luta pela sobrevivência sobressai pelo uso de grande número de palavras da
gíria, como “gaita”, “grana”, “gaitolina”, “capim”, “cobre” etc.
As palavras da gíria são, em geral, de caráter transitório, pois caem rapidamente em desuso,
deixando, portanto, de serem compreendidas por quem não compartilhou a época em que
eram empregadas. Além disso, geralmente, constituem um vocabulário de significação muito
ampla. Esses fatores são um empecilho ao uso de gírias em textos literários.

O estrangeirismo
Os empréstimos linguísticos (aquisição de palavras estrangeiras) estão longe de ser um
fenômeno recente não só em relação ao português. No século XIX, a França era o grande centro
irradiador de cultura do mundo. No Brasil, os escritores franceses alcançavam grande sucesso
(considerando o pequeno público leitor brasileiro), e tudo que fosse francês era tido como
moderno e progressista (cf. Hallewell, 1985: 129). Em consequência, muitas palavras francesas
foram integradas ao português, como “abajur”, “batom”, “menu”, “garçom” etc. No século XX,
a chegada do futebol ao país trouxe consigo vários empréstimos, como “gol” (< inglês goal),
além do próprio nome do esporte (< inglês football), mas a maioria deles caiu em desuso.
A incorporação de um estrangeirismo pode gerar quatro processos diferentes:
1 - a conservação da forma original, como em pizza;
2 - a adaptação ao português, como em “hambúrguer” (plural “hambúrgueres”);
3 - a tradução do termo (calco), como “centroavante” (inglês center-forward);
4 - a criação de palavra substituta, como “escanteio” (inglês corner kick) e “cardápio”
(francês menu).

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Hambúrguer – inglês hamburguer, ‘idem’ < alemão Hamburguer, do topônimo alemão Hamburg.
(Houaiss, 2009)

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Os empréstimos são largamente usados por certos grupos ligados à tecnologia, à economia,
à moda, seja como linguagem técnica, seja por causar no falante certa sensação de prestígio.
Essa sensação parece influenciar a fala do galanteador Basílio, personagem de Eça de Queirós
(recém-chegado de Paris), no trecho de um diálogo com a prima Luísa, alvo de seu desejo:
– É muito simples – acrescentou ele. – Tu vais-me encontrar a qualquer parte,
longe daqui, está claro. Eu estou à espera de ti com uma carruagem, tu saltas
para dentro e fouette, cocher!2
(QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. São Paulo: Nova Cultural, s/d.
Destaques nossos.)

O estrangeirismo pode, também, evocar uma atmosfera local, ou transmitir legitimidade em


relação ao conhecimento de temas pertinentes a culturas diversas. É o que se nota no trecho a seguir:
– D. Raposo, nós temos sido bons amigos... Pode pois afiançar à senhora sua
tia, da parte de um homem que a Alemanha escuta em questões de crítica
arqueológica, que o galho que lhe levar daqui, arranjado em coroa, foi...
– Foi? – berrei ansioso.
– Foi o mesmo que ensanguentou a fronte do Rabi Jeschoua Natzarieh, a
quem os latinos chamam Jesus de Nazaré, e outros também chamam o Cristo!...
(QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. Destaques nossos.)

Nesse trecho, a personagem Topsius – um historiador – para conferir maior credibilidade à


sua afirmação, emprega o termo “rabi” (do hebraico, “mestre”), além de referir-se a Jesus pelo
nome hebreu. Em sua linguagem, são abundantes palavras e expressões em latim, que servem
também como comprovação de sua erudição.
Eça de Queirós

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Você provavelmente já teve a oportunidade de conversar com uma pessoa vinda de uma
região diferente da sua e deve ter notado que ela usava palavras e expressões estranhas para
você. Isso ocorre porque a linguagem de cada região apresenta características próprias. É o que
se chama variação regional (ou diatópica).
O termo “regionalismo” é empregado tanto em referência à literatura que retrata elementos
típicos de determinada região quanto em relação às características linguísticas regionais (sentido
em que o utilizaremos). As expressões regionais dão tom pitoresco à linguagem, evocando a
atmosfera do local de onde elas se originam.
2 Acelere, cocheiro.

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Em algumas obras narrativas, os regionalismos integram todo o texto, enquanto, em outras,


são empregados para caracterizar as falas das personagens, como se percebe no trecho que segue:
– Vassuncê não acredita! protesta então com calor. Pois encilhe o seu
bicho e caminhe como eu lhe disser. Mas assunte bem, que no terceiro dia
de viagem ficará decidido quem é cavoqueiro e embromador. Uma coisa
é maniar à toa, outra andar com tento por estes mundos de Cristo.
(TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Inocência. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
Destaques nossos.)

Nesse trecho, o autor procura caracterizar a personagem por meio da linguagem rural, que
se nota em “vassuncê” (forma arcaica de “você”), “encilhar” (pôr arreio em), “cavouqueiro”
(inapto) “embromador” (que usa de meios para não realizar uma tarefa) e “maniar” (vagar).
No trecho a seguir, o autor exalta a gente da sua terra, caracterizando a voz que se expressa
poeticamente por meio de uma expressão própria do sertanejo nordestino:

Eu sou de uma terra que o povo padece


Mas não esmorece e procura vencer.
Da terra querida, que a linda cabocla
De riso na boca zomba no sofrer
Não nego meu sangue, não nego meu nome
Olho para a fome, pergunto o que há?
Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,
Sou cabra da Peste, sou do Ceará.
(ASSARÈ, Patativa do. Eu e o Sertão. Petrópolis: Vozes, 1982. Destaque nosso.)

Ilustração do poeta Patativa do Assaré

O arcaísmo
Você já percebeu, ao conversar com uma pessoa mais velha, ou lendo um texto antigo, o
uso de palavras e expressões que lhe soaram antiquadas? Já notou, também, em uma situação
como essas, a presença de palavras usadas em sentido diferente do que elas têm hoje?

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Assim como há palavras novas que passam a integrar o léxico de uma língua, outras deixam
de ser usadas ou adquirem sentidos novos. O arcaísmo lexical é o emprego de uma palavra que
caiu em desuso, enquanto o arcaísmo semântico é o emprego de uma palavra ainda em uso
com sentido que ela possuía no passado, mas que já não existe na língua atual. Na verdade,
como as línguas mudam em todos os níveis, há arcaísmos e todos eles.
Os arcaísmos se percebem não só em textos antigos, que exemplificam a língua da época
em que foram escritos, mas também em textos mais recentes, em que o escritor emprega
intencionalmente uma linguagem antiquada, para evocar o passado, trazendo-nos o clima de
épocas remotas. É o que faz Drummond na crônica da qual reproduzimos um trecho a seguir:
Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e
muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito.
Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé de alferes, arrastando
a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se levavam tábua, o
remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas,
quando corriam, antigamente, era para tirar o pai da forca e não caíam de
cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com
quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes,
esse ou aquele embarcasse em canoa furada.

(DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia e Prosa. Ri de Janeiro, Nova


Aguilar, 1979.)

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Para ler essa crônica na íntegra, acesse http://intervox.nce.ufrj.br/~jobis/carlos.htm.

Entre outras expressões, temos “fazer pé de alferes” e “arrastar a asa” (cortejar), “janota”
(que se veste com aprumo), “levar tábua” (ser rejeitado), “tirar o cavalo da chuva” (desistir). O
acúmulo proposital de arcaísmos é responsável pelo tom humorístico do texto.

O indigenismo
O indigenismo faz parte, sobretudo, da obra de escritores nacionalistas e dos períodos em
que esse sentimento foi mais cultuado. O índio, representando o mais autêntico elemento étnico
brasileiro, foi retratado de modo heroico no período romântico (1836-1881); e sua figura foi
retomada posteriormente, na chamada fase heroica do Modernismo (1922-1930). O emprego
de termos em tupi, além de ser um diferencial do português brasileiro em relação ao europeu,
evoca o ambiente cultural do aborígine e, muitas vezes, dá contorno poético à narrativa, como
na obra indianista de José de Alencar.

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Unidade: Estilística lexical

Leia, a seguir, um trecho da Canção do Tamoio, de Gonçalves Dias:

Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia3,
Condor ou tapir4.
(GONÇALVES DIAS, Antônio. Obras Poéticas. São Paulo: Nacional, 1944.)

No trecho, o autor exalta as qualidades de guerreiro, que, ao preparar o arco para o disparo,
está certo de que atingirá a caça ou o inimgo.
Gonçalves Dias

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Linguagem figurada

Segundo Martins (2008: 119), “o mais importante fator de afetividade é certamente o


emprego da linguagem figurada”. Ela consiste no deslocamento das palavras de seu significado
primário e é um dos meios pelos quais as palavras se tornam polissêmicas. A seguir, trataremos
das principais figuras de palavras.

3 Indivíduo pertencente à tribo de mesmo nome, inimiga dos tamoios.


4 Mesmo que “anta”.

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Metáfora
A metáfora é o emprego de um termo que se associa a outro por semelhança. Para ilustrar a
definição, vamos ler a famosa estrofe de Casimiro de Abreu:

Oh! dias de minha infância!


Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
(ABREU, Casimiro de. Poesias Completas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1954.
Destaques nossos.)

Ao afirmar que a vida é doce, o autor está empregando o termo “doce” de modo metafórico,
porque esse termo está deslocado de seu significado primitivo (ligado ao paladar). Por meio
desse deslocamento de significado, ele é associado à vida com base em uma semelhança:
1 - a vida é agradável;
2 - o doce é agradável (ao paladar);
3 - logo, vida é doce.

Podemos sintetizar a constituição dessa figura da seguinte forma: há um termo que serve
de base (doravante TB – termo base), o qual, nesse exemplo, é “vida”, um termo metafórico
(doravante TM), “doce”, que se associa à vida (TB), e um elemento mediador (doravante EM),
“agradável”, por meio do qual se associam os termos anteriores. Assim, temos:

TB – VIDA EM – AGRADÁVEL TM – DOCE

No mesmo trecho, temos outra metáfora. Em “que doce a vida não era nessa risonha manhã”,
o termo “manhã” refere-se metaforicamente à infância, dado que a manhã é o início do dia,
assim como a infância é o início da vida. Portanto, temos:

TB – INFÂNCIA EM – INÍCIO TM – MANHÃ

Observe que o termo “infância” não está explícito nesse enunciado, mas subentendido, o que
ocorre em muitos exemplos de metáfora.

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Unidade: Estilística lexical

Casimiro de Abreu

Vejamos outro exemplo, na estrofe extraída da obra do poeta Augusto dos Anjos:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
(ANJOS, Augusto de. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982. Destaque nosso.)

Neste passo, a análise exige um pouco mais de reflexão. Primeiramente, “quimera” (ser
mitológico, inexistente na realidade) associa-se à última esperança ou ilusão perdida (enterrada)
daquele a quem a poesia se dirige. Isto nos leva ao seguinte quadro:

TB – ESPERANÇA, EM – AUSÊNCIA
TM – QUIMERA
ILUSÃO DE REALIDADE

No mesmo trecho, percebe-se a associação entre a “ingratidão” e “pantera”, dado que, ao


final das esperanças e ilusões, permaneceu apenas a ingratidão, demonstrando-se tenaz com
uma pantera que persegue a sua presa. Dessa forma, a análise nos leva ao quadro que segue:

TB – INGRATIDÃO EM – TENACIDADE TM – PANTERA

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Algumas metáforas, sobretudo as mais desgastadas pelo uso recorrente, perdem o poder
expressivo, devido à obviedade de interpretação, como em “André é uma raposa”, em que o
EM é, evidentemente, a esperteza. Nesses casos, podemos dizer que se trata de uma “metáfora
fechada”, pois há consenso a respeito de qual é o EM.
Em outros casos, esse recurso se apresenta de modo tão original e inusitado, que o EM não
se apresenta de modo patente, ou seja, é possível que se levantem várias hipóteses possíveis
sobre ele. Vejamos um exemplo:
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
(SÁ-CARNEIRO, Mário de. Indícios de Oiro. Porto: Presença, 1937.
Destaque nosso)

TB – EU EM – ? TM – PILAR DA
PONTE DE TÉDIO

A essas metáforas, que permitem diferentes interpretações, podemos chamar “metáforas abertas”.

Metonímia
A metonímia consiste na substituição de um termo por outro que se liga ao primeiro por algum
tipo de relação. Destacamos a palavra “substituição”, porque ela nos permite diferenciar a metonímia
da metáfora. Tomemos um exemplo, como “adoro os pratos da cozinha italiana”. Nesse enunciado,
a palavra “prato” (o que contém [algo]) substitui aquilo que está contido nele (a iguaria, como a
pizza, a lasanha, o nhoque etc.), que é o que, de fato, se come. Dessa forma, podemos descrever
a relação estabelecida pela metonímia como continente-conteúdo, ou seja, o que contém (prato)
substitui o que está contido (iguaria). Isso nos leva ao quadro em que temos um termo base (TB),
um termo substituto ou metonímico (TS) e um tipo de relação (TR). Vejamos:

TS – PRATO TR – CONTINENTE- TB – IGUARIA


CONTEÚDO

Alguns autores distinguem esse tipo de metonímia dos demais, chamando-lhe sinédoque.
A metonímia, como a metáfora, pode ser um recurso ad hoc, ou seja, moldado para uma
ocasião. Para compreender essa afirmação, vamos ler e analisar um trecho da obra de Machado
de Assis, que segue:
Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem
vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram
dois. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de
chamar a minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne.
Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos...
Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.

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Unidade: Estilística lexical

– Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.


Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou
a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido,
foi levar a sua fome a outra parte.
(MACHADO DE ASSIS, Joaquim Mara. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. Destaque nosso.)

Nesse trecho, quando o autor escreve “foi levar a sua fome a outra parte”, entendemos que
o cão derrotado levou a si mesmo daquele local a outro, ou seja, Machado emprega “fome” (a
sensação) em substituição ao cão (o que sente fome, digamos, o “sensitivo”). Essa metonímia
pode ser representada pelo quadro que segue:

TS – FOME TR – SENSAÇÃO- TB – CÃO


“SENSITIVO”

Nesta unidade, estudamos as palavras evocativas, a metáfora e a metonímia. Na próxima


unidade, trataremos da Estilística Sintática. Para aprofundar seus conhecimentos, não deixe de
consultar o material complementar e interagir com seus colegas e seu tutor. Até lá.

Glossário
advérbio: palavra que modifica um verbo (acordar cedo), um adjetivo (bastante claro) ou outro
advérbio (muito perto).
conjunção: palavra invariável que estabelece ligação entre orações ou termos da mesma oração.
palavra gramatical: palavra sem significação extralinguística que estabelece relações entre
outras palavras, palavra vazia.
palavra lexical: palavra cuja significação remete ao mundo natural ou cultural, palavra plena.
preposição: palavra invariável que liga termos da mesma oração.
pronome: palavra que representa um nome.
substantivo: palavra que nomeia seres, ações, características, sentimentos etc.

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Material Complementar

Para aprender mais a respeito das questões apresentadas nesta unidade, faça as seguintes leituras:

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LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 8. ed. Coimbra: Coimbra, 1975.

Obras disponíveis on-line

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MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Bons dias. Disponível em http://www.cronicas.uerj.br/home/


cronicas/machado/rio_de_janeiro/ano1889/07mar89.htm. Acesso em 17 fev. 2015.

PRETI, Dino. O léxico na linguagem popular: a gíria. Disponível em http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/


pdf/slp18/02.pdf. Acesso em 14 fev. 2015.

PROENÇA FILHO, Domício. Língua Portuguesa: Globalização, estrangeirismos: purismo ou acolhimento.


Disponível em http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4281&sid=531.

SANTINI, Juliana. A Formação da Literatura Brasileira e o regionalismo. Disponível em http://www.


letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Eixo%20e%20a%20Roda%2020,%20n.1/05-Juliana%20
Santini.pdf. Acesso em 21 fev. 2015.

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Unidade: Estilística lexical

Referências

GUIRAUD, Pierre. L’argot. Paris: Universitaires de France, 1956.

_______. A Estilística. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 8. ed. Coimbra: Coimbra, 1975.

PRETI, Dino. A gíria na cidade grande. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo,
v. 54, p. 139-145, 1996.

_______. Variação lexical e prestígio social das palavras. In PRETI, Dino (org.). Léxico na
Língua Oral e na Escrita. São Paulo: Humanitas, 2003.

Referências Bibliográficas (disponível para consulta)


MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à Estilística: a expressividade na Língua Portuguesa.
São Paulo: Edusp, 2008.

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