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Material Teórico

Estilística Sintática

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Celso Antônio Bacheschi

Revisão Textual:
Profa. Ms. Silvia Augusta Albert
Unidade: Estilística Sintática

Contextualização

Antes de iniciarmos nossos estudos desta unidade da disciplina Língua Portuguesa – Estilística
e Estudos Semânticos, convidamos você a ler uma famosa passagem de nossa literatura,
que segue:

Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas


vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos
nascem no da esquerda. Descoberta minha, que, ainda assim,
não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu
senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de
outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo
da diferença sexual...
– Sexual?
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou
acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que
exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo.
– Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o
que chamamos estilo.
(MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Os Melhores Contos de Machado de Assis. São Paulo: Global, 1986. Destaque
nosso.)

Observe como o narrador “dialoga” com o leitor, explicando-lhe a importância da relação


entre as palavras de um texto. Alegoricamente, narra-se, no texto, o “casamento” entre um
substantivo e um adjetivo.
Nesta unidade, estudaremos a frase, seus constituintes e sua ordem e procuraremos
compreender um pouco sobre o “casamento” das palavras na frase, a que Machado de Assis
nomeia, Estilo.

Leia o texto completo de Machado de Assis em:


http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn005.pdf

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Introdução

Estudaremos a questão da linguagem afetiva, tendo como foco a sintaxe. A sintaxe trata
da ordem das palavras e das relações entre elas como elementos constituintes de uma frase. A
frase é uma estrutura com sentido completo e pode ser formada por uma ou mais palavras. Em
português, dispomos de certa liberdade em relação à estruturação da frase, o que nos permite
optar por diferentes organizações sintáticas, as quais produzem efeitos diversos aos que nos
ouvem ou leem. A seguir vamos tratar, brevemente, de algumas dessas possibilidades que a
língua põe à nossa disposição.

Ordem Direta ou Canônica

A ordem mais usual das palavras em língua portuguesa é chamada de ordem direta ou
canônica: sujeito1 + verbo + objeto direto (ou objeto indireto), como em

Verônica colheu margaridas.

Como a maioria dos verbos da nossa língua são transitivos diretos, a primeira opção é a
mais comum. Para termos uma noção de como a ordem pode ser decisiva na interpretação da
frase, vejamos os exemplos a seguir:

1. Eles compraram um apartamento caro, mas espaçoso.

2. Eles compraram um apartamento espaçoso, mas caro.

Notamos que, nesses enunciados, a característica mencionada por último ganha maior
relevo, de modo que, em (1), a avaliação sobre o apartamento é predominantemente positiva,
enquanto, em (2), é predominantemente negativa.
A ordem direta, sendo a mais corriqueira, é expressivamente neutra. Assim, quando se busca
pôr em evidência o aspecto afetivo da linguagem, ela é frequentemente evitada, optando-se
pela inversão.

1 Consulte o glossário ao final da unidade.

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Unidade: Estilística Sintática

Inversão

O termo inversão refere-se genericamente a frases que não se encontram na ordem direta
ou canônica. A Retórica classifica as inversões em diferentes grupos de “figuras de construção”,
os quais se confundem comumente, de modo que, na medida do possível, evitaremos tais
classificações, uma vez que nosso interesse principal não está na nomenclatura.
Tomemos um exemplo de inversão. Em frases imperativas, em que se expressam, sobretudo,
ordens, os gramáticos prescrevem que os pronomes sejam colocados depois do verbo, como
em “Traga-me os documentos”. Ocorre, porém, que essa colocação do pronome utilizada no
português do Brasil, expressa uma forma extremamente “seca” e até agressiva. Note que essa
colocação é a preferida em frases de conteúdo ofensivo, como “cale-se” e “ponha-se daqui
para fora”.
A colocação do pronome antes do verbo, no entanto, dá à frase um tom mais delicado, de
modo que, quando dizemos “me sirva um café”, fazemos com que a frase soe de forma polida,
ao passo que “sirva-me um café” faz sobressair na frase toda a carga de uma ordem. Essa
sutileza da expressão motivou o seguinte poema de Oswald de Andrade:

Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
(Obras Completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.)

Vejamos, agora, outro exemplo de inversão.Desde as primeiras lições de gramática, ouvirmos


dizer que, em português, o adjetivo pode ser empregado antes ou depois do substantivo.
Essa afirmação é, na melhor das hipóteses, meia verdade. Vamos observar alguns exemplos?
Adjetivos de valor puramente intelectivo não admitem a posição inicial. Daí, dizermos
“biblioteca nacional”, mas não “*nacional biblioteca”2 e “Marcos mora naquela casa amarela”,
mas não “*Marcos mora naquela amarela casa”. A colocação do adjetivo antes do substantivo
ocorre quando há um componente emocional na frase. Nas palavras de Lapa (1975: 141), “nas
exclamações, nas crises de afetividade, em que se exprime a admiração, o êxtase, a mágoa, etc.,
o adjetivo se coloca, por via de regra, antes do substantivo”. Podemos confirmar isso na frase:
“A equipe de emergência tranquilizou a desesperada mãe do menino atropelado.”

2 O asterisco (*) indica que a construção é inexistente.

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O mesmo autor observa que o “poeta dirá de preferência ‘o verde prado’, porque alude não
à verdura em si própria, mas às emoções e ao prazer que lhe suscita a verdura do prado” (op.
cit.: 140). Para ilustrar as afirmações, notemos o quanto estão carregados de afetividade os
seguintes versos:

O tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi de neve fria,
E em mim coverte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor3 espanto,
Que não se muda já como soía.
(CAMÔES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões. São Paulo: Núcleo, 1991.)

Uma das outras formas de inversão é a topicalização, em que um elemento da frase é


deslocado para o início, de modo a destacá-lo. É o que se observa em frases como “essa piada
todo o mundo já conhece”, na qual se atrai a atenção para o objeto direto “essa piada”. Apesar
de parecer um recurso banal, como nessa frase – cuja estrutura é comum na língua oral –, a
topicalização pode ser um processo extraordinariamente expressivo, como nos demonstram os
célebres versos de Camões, que seguem:

As armas e os barões assinalados


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
(CAMÔES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. 5. ed. Porto: Porto, 1947.)

Note que as duas estrofes contêm uma única frase. Dada a complexidade da estrutura sintática
desse trecho, vamos eliminar alguns elementos intercalados para facilitar a compreensão:

3 Maior.

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Unidade: Estilística Sintática

As armas e os barões assinalados [...] e também as


memórias gloriosas daqueles reis [...] e aqueles [...]
cantando espalharei por toda parte.

Vale a pena deter um pouco mais nossa atenção na sofisticada elaboração desses versos,
ricos em inversões.
O poeta inicia a frase com a topicalização do objeto direto – “as armas e os barões (homens
notáveis) assinalados”–, que se liga a outros dois núcleos – “memórias (gloriosas daqueles reis)”
e “aqueles (que realizaram proezas inesquecíveis)”. Cada um desses três núcleos está intercalado
pela narração de seus feitos – os primeiros navegaram pelos mares desconhecidos e fundaram
um novo reino, os demais devastaram as terras de África e Ásia, expandindo a fé católica e o
império português, os últimos libertaram-se da lei da morte devido a suas obras grandiosas.
Todo esse trecho estende-se ao sexto verso da segunda estrofe, de tal forma que o leitor, até
aí, está na expectativa de saber o que o autor vai declarar sobre esses homens que havia citado.
Até que, somente na penúltima estrofe, aparece o verbo da oração principal – “espalharei”. Por
meio desse recurso, o poeta consegue manter o interesse do leitor até as últimas palavras da
frase. Para fazermos uma comparação, veja como seria insípida a frase sem as inversões:

Espalharei por toda parte, cantando, as armas e os


barões assinalados [...] e também as memórias gloriosas
daqueles reis [...] e aqueles [...].

Passaremos agora a outros procedimentos de topicalização: o anacoluto e o objeto pleonástico.


Nomes difíceis, mas procedimentos fáceis de perceber.

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Anacoluto

O anacoluto é um procedimento que se assemelha à topicalização, uma vez que envolve


a colocação de um elemento em uma posição de destaque. Ele se diferencia, contudo, pois o
membro destacado, a rigor, não é um elemento frasal, dado que não se relaciona com o restante
da frase. Depois desse termo, há uma ruptura da sequência lógica. Por esse motivo, o anacoluto
também é conhecido como “frase quebrada”. Repare na estrutura da seguinte estrofe, de um
famoso poema de Gonçalves Dias:

O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves conselhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!
(GONÇALVES DIAS, Antônio. Obras Poéticas. São Paulo: Nacional, 1944. Destaque nosso.)

No início do primeiro verso da estrofe, parece-nos que o termo “o forte” exercerá a função
de sujeito. Ele, porém, é “abandonado”; e a construção é retomada, tendo, como sujeito, “o
cobarde” (com o qual concorda a forma verbal “inveja”).
Se colocarmos esse verso numa ordem direta e canônica teremos: “O cobarde inveja os feitos
do forte”. Talvez, seja mais compreensível, no entanto, perde-se a força do verso, não é mesmo?
Releia o poema para conferir.

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Objeto pleonástico

O objeto pleonástico é uma forma de topicalização em que o termo deslocado é retomado por
um pronome oblíquo. Como esse pronome se torna redundante, ele é chamado “pleonástico”.
Observe o trecho a seguir, de de Machado de Assis:

Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os


gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias,
e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por
outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo
sem espectador.
(Os melhores contos de Machado de Assis. São Paulo: Global, 1986. Destaques nossos.)

A leitura permite-nos entender que o objeto direto dos verbos “gostar” e “ver” é o termo
“os frutos da laranjeira”. Esse termo é retomado pelo pronome oblíquo “os”. Como esse termo
retoma um termo já expresso, ele é chamado “pleonástico”. Observe que, nessa construção,
“gostar os frutos” significa “sentir seu gosto”.

Veremos a seguir outros procedimentos em relação à sintaxe da língua que permitem


evidenciar o aspecto afetivo da linguagem, criando diferentes efeitos de sentido e conferindo
expressividade aos enunciados. São eles: pleonasmo, emprego de vozes verbais e da concordância
verbal e nominal.

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Pleonasmo

O pleonasmo consiste na repetição de uma ideia já expressa com objetivo de enfatizá-la. É o


que se observa em construções como “esta é a verdade verdadeira” (incontestável) e “viveu
uma vida digna”. O pleonasmo é uma forma de tornar a expressão mais viva, mais nítida e
evidente aos sentidos. Vejamos um exemplo:

Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu


nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente
crê que existe e mais de um dirá que a viu com os
seus próprios olhos.
(MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Os Melhores Contos de Machado de Assis. São Paulo: Global,
1986. Destaques nossos.)

Uma espécie de pleonasmo, que põe em relevo uma qualidade intrínseca do ser, é o epíteto
de natureza, como em “neve fria” (essa expressão está presente no primeiro exemplo de um
soneto de Camões,citado anteriormente, em que falávamos sobre a ordem dos adjetivos).
A seguir, reproduzimos um exemplo bastante conhecido desse recurso utilizado por um dos
maiores poetas da língua portuguesa, Fernando Pessoa:

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
(PESSOA, Fernando. Obras Poéticas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960. Destaque nosso.)

O autor menciona uma característica inerente ao mar (conter sal), para explicar que ela se
origina das lágrimas de portugueses que perderam pessoas próximas em naufrágios.

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Unidade: Estilística Sintática

Emprego de Vozes Verbais

As frases a seguir foram construídas com base em diferentes estruturas sintáticas, devido
à mudança da voz do verbo. Sabemos que em português o verbo varia em voz ativa e voz
passiva. Na primeira, temos a estrutura: sujeito + verbo + objeto direto; e na segunda, sujeito
+ verbo (verbo ser + verbo no particípio)+ agente da passiva.

Observe, a seguir, as frases 3 e 4. Ao analisá-las, vamos procurar compreender em que


medida as diferenças estruturais, ocorridas devido à mudança da voz do verbo, acarretam
efeitos de sentido diversos:
3. O policial multou o motorista.
4. O motorista foi multado pelo policial.

Nessas frases, temos, respectivamente, a voz ativa (3), em que o sujeito – o policial – é
agente da ação expressa pelo verbo “multar”, e a voz passiva (4), em que o sujeito – o
motorista – é paciente da ação expressa pelo verbo “multar”.
As gramáticas tradicionais costumam tratar essas frases como “equivalentes” entre si,
mas não é necessário muito esforço para compreender que, entre elas, há, no máximo, uma
aparente equivalência.
Vejamos, então. Em (3), destaca-se o policial como agente, e isso nos sugere que a ação
ocorreu por iniciativa dele, que, intencionalmente, aplicou a multa sobre o motorista, que
nada pôde fazer a respeito. Em (4), entendemos que a presença do motorista (praticando uma
infração) desencadeou a ação, não restando alternativa ao policial, senão multá-lo.
Na linguagem oral, essa diferença expressiva entre as frases é explorada, quando se diz, por
exemplo, “não foi o ministro que saiu do cargo; ele, na verdade, foi saído”. Isto é, o ministro
não saiu do cargo por sua vontade, mas foi demitido, por razões que não devem ser expressas.
Outra construção, que se apresenta sensivelmente “menos equivalente” às anteriores, é a voz
passiva pronominal, que tem a estrutura: verbo na 3ª os + pronome oblíquo “se” + sujeito,
conforme a frase 5, a seguir:

5. Multou-se o motorista.

Neste caso, parece que a ação se dá inopinadamente, como se a multa sucedesse


espontaneamente, sem a intervenção de nenhum agente, quase uma obra de acaso.
Há, ainda, a voz reflexiva, em que a ação é praticada pelo sujeito e recai sobre ele
mesmo, como em “o paraquedista lançou-se do avião”. No caso de alguns verbos, esse tipo de
construção pode constituir um desvio, em que se evidencia a espontaneidade do agente, como
no conhecido verso (veja a inversão do adjetivo “conhecido”, aqui utilizada, destacando-o) de
Manuel Bandeira:

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Vou-me embora pra Pasárgada.
(BANDEIRA, Manuel. Libertinagem e Estrela da Manhã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
Destaque nosso.)

Nesse caso, o uso sem desvios seria: “Eu vou embora para Pasárgada”. Muito menos
expressivo, concorda?
Nos exemplos a seguir, versos de Camões e Alphonsus Guimarens, em que a ideia de
espontaneidade parece não se aplicar, pode-se entender a presença do pronome como um
recurso que visa a suavizar a expressão (Lapa, 1975). Vamos a eles:

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na Terra sempre triste.
(CAMÔES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões. São Paulo: Núcleo, 1991. Destaque nosso.)

As estrelas dirão: – “Ai! nada somos,


Pois ela se morreu silente e fria...”
(GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960. Destaque nosso.)

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Concordância Nominal e Concordância Verbal

A concordância é um fenômeno sintático em que duas ou mais palavras se harmonizam em


suas flexões. Por exemplo, em “os escritores românticos”, “os” e “românticos” apresentam-se em
relação de concordância com o substantivo “escritores”. Essa concordância (nominal) se dá em
gênero (masculino) e número (plural). A concordância verbal é a harmonização do verbo com
o núcleo do sujeito em pessoa (1ª, 2ª ou 3ª) e número (singular ou plural).
Na verdade, essa explicação é apenas parcial e não dá conta da complexidade do fato.
Como comprovação basta consultar, numa gramática, os capítulos sobre concordância, que, em
geral, são bastante longos. A concordância, no entanto, pode ultrapassar o âmbito estritamente
gramatical, para abranger conteúdos afetivos. Para ilustrar, imagine a seguinte pergunta de um
médico a seu paciente:

Como estamos hoje, seu Orlando?

A pergunta, certamente, não se refere também a quem a formula; mas o emprego da primeira
pessoa do plural (estamos), nesse caso, é uma forma de o falante demonstrar interesse pelo
interlocutor. De modo semelhante, Machado de Assis utiliza a primeira pessoa em vez da terceira
no trecho que segue:

Todos somos os fios do tecido que a mão do


tecelão vai compondo, para servir aos olhos
vindouros, com os seus vários aspectos morais e
políticos.
(In: MAGALHÃES JR., R. [org.]. Diálogos e Reflexões de um Relojoeiro. Rio de Janeiro: Ediouro,
s/d. Destaque nosso.)

A preferência de “todos somos” por “todos são” é uma maneira de o escritor unir-se aos
leitores, incluindo-se no que deve ser entendido como “todos”.
Essa concordância, em que a flexão de pessoa do verbo não se harmoniza gramaticalmente
com o sujeito, é um caso de silepse de pessoa. Outro exemplo ocorre em “os brasileiros somos
patriotas”, em que o falante se inclui entre os brasileiros. Segundo Martins (2008: 226), esse tipo
de concordância “é bastante carregado de afetividade, visto que o falante força sua integração
no sujeito gramatical”.
Há, também, a silepse de gênero, que é a concordância de masculino com feminino ou
vice-versa, que se observa no trecho a seguir, de Mário de Andrade:

– Está vendo! Faz necessidade é prata só! Ajuntando


a gente fica riquíssimo! Barato pra você!
(Macunaíma. In Obras completas de Mario de Andrade III. São Paulo: Livraria Martins, 1955.
Destaque nosso.)

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Note que um adjetivo masculino (riquíssimo) está referindo-se a um substantivo feminino
(gente). Esse fato, comum na linguagem coloquial, revela que a expressão nominal “a gente”,
em posição de sujeito, já não é sentida como tal, ou seja, como nome feminino; mas, sim, como
um pronome pessoal (sinônimo de “nós”). Como os pronomes pessoais não se flexionam em
gênero (exceto os de terceira pessoa: ele / ela), “a gente” passa a receber esse mesmo tratamento.
Isso se comprova no trecho a seguir, também de Mário de Andrade, em que, para retomar “a
gente”, o autor utiliza o pronome “nos” (e não “lhe”, que seria a concordância gramatical):

Por isso que existe a expressão “Tá solto!”


indicando que a gente não faz mesmo o que
nos pedem.
(Idem)

A concordância na primeira pessoa do plural pode, também, expressar uma exortação.


Pensemos na seguinte fala, dirigida a uma criança pela mãe:

Está com fome, meu filho? Vamos comer tudo?

Ao empregar o plural (“vamos” por “vai”), a intenção do falante é incentivar seu interlocutor
a aceitar o que lhe foi proposto.
Por vezes, os escritores transgridem as regras de concordância para refletir, na fala de uma
personagem ou do narrador-personagem, sua condição socioeconômica e grau de escolaridade.
Com esse objetivo, Guimarães Rosa optou pela forma “viemos”, 1ª ps. do plural, em vez de
“veio”, 3ª os do singular, no trecho que segue:

A gente viemos do inferno – nós todos –


compadre meu Quelemém instrui.
(ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Destaques nossos.)

A esse tipo de concordância chama-se silepse de número. Ela é mais comum em frases nas
quais o verbo aparece afastado do sujeito. Observe:

Toda a gente se sarapantou com o sucedido e


desconfiaram do herói.
(Macunaíma. In Obras completas de Mario de Andrade III. São Paulo: Livraria Martins, 1955.
Destaque nosso.)

Nesse caso, perde-se a noção do grupo, entendido como um todo (a gente), e adota-se a
noção de plural (as pessoas), que determina a flexão do verbo. Vejamos outro exemplo, colhido
da obra de Machado de Assis:

Foi a princípio um casal de borboletas que


brincavam no ar.
(Os melhores contos de Machado de Assis. São Paulo: Global, 1986. Destaques nossos.)

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Unidade: Estilística Sintática

Aqui, a presença de um termo periférico (de borboletas) sobrepõe-se ao termo nuclear (casal),
motivando a forma plural do verbo.
Para finalizar estas palavras, vamos retomar um exemplo muito interessante de concordância
estilística, que utilizamos como um dos nossos primeiros exemplos de desvio estilístico 4:

Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade


Nós somos um terrível pistoleiro. Estamos num
bar de uma pequena cidade do Texas. O ano é 1880.
(SCLIAR, Moacyr. Folha de São Paulo, 1 jul. 1973.)

Nesse trecho (e ao longo do conto), o autor utiliza o plural “nós” em referência a uma
personagem “o pistoleiro”, de modo a incluir o leitor como participante dos fatos narrados,
compartilhando as emoções dessa personagem.
Caro(a) aluno(a), nessa unidade, tratamos da Estilística Sintática, mostrando como a
expressividade e a linguagem afetiva dependem da forma como utilizamos as estruturas da
língua, a sua sintaxe. Não deixe de consultar o Material Complementar.

4 Veja o texto completo na unidade 1.

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Glossário

• adjetivo: palavra que se liga a um substantivo para expressar uma característica: “dia
quente”.
• objeto direto: termo que completa o sentido de um verbo transitivo direto, ligando-se
diretamente a ele.
• objeto indireto: termo que completa o sentido de um verbo transitivo indireto, ligando-
se a ele por meio de preposição.
• preposição: palavra invariável que liga termos da mesma oração.
• pronome: palavra que representa um nome.
• pronome oblíquo: pronome que exerce função de objeto direto ou objeto indireto. Os
pronomes oblíquos átonos são me, te, lhe, se, nos, vos, lhes; os tônicos são mim, ti, si,
ele, ela, nós, vós, eles, elas; formas contratas comigo, contigo, consigo, conosco, conosco.
• pronome pessoal: pronome que substituem as pessoas do discurso: a pessoa que fala (eu,
nós), a pessoa com quem se fala (tu, vós), a pessoa de quem se fala (ele, ela, eles, elas).
• substantivo: palavra que nomeia seres, ações, características, sentimentos etc.
• sujeito: termo que se encontra em relação de concordância com o verbo, como “as
férias” em “começaram as férias”.
• verbo: palavra variável em tempo, modo, número e pessoa. Semanticamente, expressa
um fato (ação, estado).
• verbo transitivo direto: verbo que necessita de um complemento que se liga diretamente
a ele (objeto direto) para formar uma frase com sentido completo.
• voz ativa: voz do verbo em que o sujeito pratica a ação
• voz passiva: voz do verbo na qual o sujeito é paciente da oração.
• voz reflexiva: voz do verbo em que o sujeito é agente e paciente da ação.

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Unidade: Estilística Sintática

Material Complementar

Para aprender mais a respeito das questões apresentadas nesta unidade, faça as seguintes leituras:

Livros:
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 8. ed. Coimbra:
Coimbra, 1975.

MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à Estilística: a expressividade na Língua


Portuguesa. São Paulo: Edusp, 2008.

HENRIQUES, Cláudio Cezar. Estilística e Discurso. Rio de janeiro: Elsevier, 2011.

Obras disponíveis on-line


CARVALHO, Castelar de. A estilística e o ensino de português. Disponível em:
http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno12-02.html (acesso em 27 fev. 2015.).

___________________. Mattoso Câmara Estilicista. Disponível em:


http://www.filologia.org.br/revista/38sup/03.html (acesso em 25 fev. 2015.)

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Referências

LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 8. ed. Coimbra: Coimbra, 1975.

MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à Estilística: a expressividade na Língua Portuguesa.


São Paulo: Edusp, 2008.

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