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A ORALIDADE DA LINGUAGEM
Embora as palavras estejam fundadas na linguagem falada, a escrita Embora o termo "pré-cultura escrita" em si seja útil e por vezes
tiranicamente as encerra para sempre num campo visual. Uma pessoa necessário, quando usado inadvertidamente também causa problemas
iguais, ainda que não tão evidentes, aos provocados pelo termo "literatura Hoje, felizmente, o termo "literatura oral" está perdendo terreno,
oral". "Pré-cultura escrita" apresenta a oralidade - o "sistema modelar mas é bastante provável que eliminá-Io por completo seja uma batalha
primário" - como úm desvio anacrônico do "sistema modelar secundário" nunca inteiramente vencida. Para a maioria daqueles que pertencem a
uma cultura escrita, pensar nas palavras como totalmente desvinculadas
que o sucedeu.
da escrita é uma tarefa simplesmente árdua demais, até mesmo quando
Juntamente com os termos "literatura oral" e "pré-cultura escrita",
estudos lingüísticos ou antropológicos especializados possam exigi-Io. As
ouvimos também menções ao "texto" de uma enunciação oral. "Texto",
palavras continuam vindo à mente na sua forma escrita, por mais que se
cuja raiz significa "tecer", é, em termos absolutos, mais compa.tível
tente o contrário. Além disso, desvincular as palavras da escrita é
etimologicamente com a enunciação oral do que "literatura", que etlmo-
psicologicamente ameaçador, pois a sensação de controle sobre a lingua-
logicamente se refere a letras (literae) do alfabeto. O discurso oral tem
gem que se tem na cultura escrita está estreitamente ligada às transforma-
sido geralmente considerado, até mesmo em ambientes orais, como tecer
ções visuais da língua: sem dicionários, regras gramaticais escritas, pon-
ou alinhavar - rbapsoidein, "fazer rapsódias" significa basicamente em
tuação e todo o aparato restante que transforma as palavras em algo que
grego "alinhavar canções". Mas, na verdade, quando na cultura escrita se
se pode percorrer com os olhos, como se pode viver? Os usuários de um
usa hoje o termo "texto" para fazer referência à apresentação oral, está-se
grafoleto como o inglês padrão têm acesso a vocabulários centenas de
pensando em termos de uma analogia com a escrita. No vocabulário de
vezes maiores do que aqueles com que uma língua oral é capaz de lidar.
quem pertence à cultura escrita, o "texto" de uma narrativa apresentada
Em um mundo lingüístico desse tipo, os dicionários são fundamentais. É
por quem pertence a uma cultura oral primária representa um suporte
desconcertante lembrar que não existe dicionário na mente, que o aparato
anterior: o cavalo como um automóvel sem rodas, novamente.
lexicográfico constitui um acréscimo muito tardio às línguas, que todas
Admitida a enorme diferença entre fala e escrita, o que se pode fazer elas possuem gramáticas complexas e as desenvolveram sem nenhuma
para construir uma alternativa ao termo anacrônico e contraditório "liter~- ajuda da escrita e que, fora das culturas com tecnologia relativamente
tura oral"? Adaptando uma proposta feita por Northrop Frye para a poesia sofisticada, a maioria dos usuários das línguas sempre se arranjaram muito
épica em Ibe anatomy of criticism [Anatomia da crítica] 0957, pp. 248-250, bem sem quaisquer transformações visuais do som vocal.
293-303), poderíamos nos referir a toda arte puramente oral como epos, que Na realidade, as culturas orais produzem realizações verbais im-
tem a mesma raiz proto-indo-européia, wekw-, como a palavra latina vox e pressionantes e belas, de alto valor artístico e humano, que já não são
seu equivalente em português "voz", e portanto está firmemente apoiada sequer possíveis quando a escrita se apodera da psique. Contudo, sem a
no vocal, no oral. As apresentações orais seriam, assim, sentidas como escrita, a consciência humana não pode atingir o ápice de suas potencia-
"vocalizações", o que elas efetivamente são. Porém, o sentido mais comum lidades, não é capaz de outras criações belas e impressionantes. Nesse
do termo epos, poesia épica (oral) (ver Bynum 1967), iria de certa forma sentido, a oralidade precisa e está destinada a produzir a escrita. A cultura
interferir num significado genérico atribuído a todas as criações orais. escrita, como veremos, é imprescindível ao desenvolvimento não apenas
"Vocalizações" parece possuir muitas associações concorrentes, embora, da ciência, mas também da história, da filosofia, ao entendimento
caso alguém julgue o termo leve o bastante para ser lançado ao mar, eu analítico da literatura e de qualquer arte e, na verdade, à explicação da
certamente me esforçarei por mantê-Io à tona. Porém, ainda assim, carece- própria linguagem (incluindo a falada). Dificilmente haverá uma cultura
ríamos de um termo mais genérico que abrangesse tanto a arte puramente oral ou uma cultura predominantemente oral no mundo, hoje, que não
oral quanto a literatura. Neste livro, manterei um procedimento comum esteja ciente da enorme pletora de capacidades absolutamente inacessí-
entre pessoas informadas e recorrerei, quando necessário, a perífrases veis sem a cultura escrita. Essa consciência é angustiante para pessoas
explicativas - "formas artísticas puramente orais", "formas artísticas verbais" enraizadas na oralidade primária, que desejam ardentemente a cultura
(que incluiriam tanto as formas orais quanto as compostas por escrito, assim escrita, mas que estão igualmente conscientes de que entrar no mundo
como tudo o que se situa entre ambas) e outras expressões semelhantes.
cheio de atrativos da cultura escrita significa deixar atrás de si boa parte
do que é fascinante e profundamente amado no mundo oral anterior.
Devemos morrer para continuar a viver.
Felizmente, a cultura escrita - não obstante devore seus próprios
antecedentes orais e, a menos que seja cuidadosamente monitorada, até
mesmo destrua sua memória - é também infinitamente adaptável. Ela
pode também resgatar sua memória. Podemos usar a cultura escrita para
reconstruir a consciência humana primitiva que não possuía nenhuma
cultura escrita - pelo menos reconstruir essa consciência da melhor forma
possível, embora imperfeita (nunca podemos esquecer o presente que
nos é familiar demais para permitir que nossas mentes reconstituam
qualquer passado em sua total integridade). Essa reconstrução pode gerar
uma compreensão melhor do que significou a cultura escrita para a 2
conformação da consciência do homem em direção às culturas de alta A DESCOBERTAMODERNA DAS CULTURASORAIS PRIMÁRIAs
tecnologia e no interior delas. Essa compreensão tanto da oralidade
quanto da cultura escrita é o que este livro - forçosamente um estudo
letrado, e não uma apresentação oral- busca, até certo ponto, atingir.