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A ORALIDADE DA LINGUAGEM

Há algumas décadas, surgiu entre os estudiosos uma nova perspec-


tiva acerca do caráter 2@1 da linguagem e de algumas implicações mais
profundas dos contrastes entre oralidade e escrita. Antropólogos, soció-
logos e psicólogos relataram trabalhos de campo em sociedades orais.
Historiadores culturais mergulharam cada vez mais na pré-história, isto é,
na existência humana antes que a escrita permitisse registros verbais.
Ferdinand de Saussure 0857-1913), o pai da lingüística moderna, chama-
ra a atenção para a primazia do discurso oral, que sustenta toda comuni-
cação verbal, assim como para a tendência predominante, até mesmo
entre estudiosos, a pensar na escrita como a forma básica da linguagem.
A escrita, observou, possui ao mesmo tempo "C ..) utilidade, C.,) defeitos
e perigos" 0975, p. 33). Ele ainda a considerava como uma espécie de
complemento do discurso oral, e não como transformadora da verbaliza-
ção (ibidem).

Desde Saussure, a lingüística desenvolveu estudos extremamente


complexos sobre fonêmica, o modo como a linguagem está enraizada no
som. Um contemporâneo de Saussure, o inglês Hemy Sweet 0845-1912), em estudos de campo, citam regularmente essas obras e outras relaciona-
enfatizara anteriormente que as palavras são feitas não de letras, mas de das a elas (Parry 1971; Lord 1960; Havelock 1963; McLuhan 1962;
unidades sonoras funcionais ou fonemas. Porém, não obstante toda a Okpewho 1979 etc.).
atenção dada aos sons da fala, as escolas de lingüística modernas até Antes de abordar pormenorizadamente as descobertas de Parry,
muito recentemente apenas de passagem, se tanto, abordaram os modos onvém estabelecer aqui o quadro da questão, perguntando por que os
como a oralidade primária, a oralidade de culturas não afetadas pela c d '
estudiosos adquiriram uma percepção nova acerca do problema o cara ter
cultura escrita, diferenciam-se da cultura escrita (Sampson 1980). Os oral da linguagem. Ver a linguagem como um fenômeno oral parece ser
estruturalistas analisaram detalhadamente a tradição oral, mas, na maioria inevitável e óbvio. Os seres humanos comunicam-se de inúmeras maneiras,
das vezes, sem contrastá-Ia explicitamente com textos escritos (Maranda fazendo uso de todos os seus sentidos: tato, paladar, olfato e especialmente
e Maranda 1971). Existe uma grande quantidade de obras acerca das visão, assim como audição (Ong 1967b, pp.1-9). Algumas comunicações
diferenças entre a linguagem escrita e a falada, que comparam a lingua- não-orais são extremamente ricas - a gestual, por exemplo). Contudo, num
gem escrita e a linguagem falada de pessoas que sabem ler e escrever sentido profundo, a linguagem, o som articulado, tem importância capital.
(Gumperz, Kaltmann e O'Connor 1982 ou 1983, bibliografia). Não são Não apenas a comunicação, mas o próprio pensamento estão relacionados
essas as diferenças de que o presente estudo se ocupa. A oralidade de forma absolutamente especial ao som. Todos nós ouvimos dizer que
abordada prioritariamente aqui é a oralidade primária, a das pessoas que uma imagem vale mil palavras. No entanto, se essa afirmação é verdadeira,
desconhecem inteiramente a escrita. por que ela é feita com palavras? Porque uma imagem vale mil palavras
Todavia, recentemente, a lingüística aplicada e a sacio lingüística apenas em certas condições especiais - que comumente incluem um
têm se ocupado cada vez mais da comparação entre a dinâmica da contexto de palavras em que está situada a imagem.
verbalização oral primária e a da verbalização escrita. O livro de Jack Onde quer que existam seres humanos, eles têm uma linguagem,
Goody, 7be domestication qf the savage mind [A domesticação da mente e sempre uma linguagem que existe basicamente por ser falada e ouvida,
selvagem] (977) - assim como a coletânea organizada anteriormente por no mundo sonoro (Siertsema 1955). Por mais rica que seja a linguagem
ele de estudos seus e de outros autores, Literacy in 'fraditional societies gestual, as linguagens de sinais sofisticadas constituem substitutos da fala
[Cultura escrita em sociedades tradicionais] (968) -, fornece preciosas e são dependentes de sistemas de discurso oral, até mesmo quando
descrições e análises de mudanças em estruturas mentais e sociais usadas por surdos de nascença (Kroeber 1972; Mallery 1972; Stokoe
características do uso da escrita. Chaytor, já muito antes (945), Ong 1972). Na realidade, a linguagem é tão esmagadoramente oral que, de
0958b, 1967b), McLuhan (962), Haugen (966), Chafe (982), Tannen todas as milhares de línguas - talvez dezenas de milhares - faladas no
0980a) e outros fornecem ainda outros dados e outras análises lingüísti- curso da história humana, somente cerca de 106 estiveram submetidas à
cas e culturais. O levantamento altamente especializado de Foley 0980b) escrita num grau suficiente para produzir literatura - e a maioria jamais
inclui uma bibliografia extensa. foi escrita. Das cerca de 3 mil línguas faladas hoje existentes, apenas
O maior alerta para o contraste entre modos orais e modos escritos aproximadamente 78 têm literatura (Edmonson 1971, pp. 323, 332). Não
de pensamento e expressão ocorreu não na lingüística, descritiva ou existem, por enquanto, meios de calcular quantas línguas desapareceram
cultural, mas nos estudos literários, iniciados inquestionavelmente com o ou se transformaram em outras antes que a escrita surgisse. Ainda hoje,
estudo de Milman Parry 0902-1935) sobre o texto da llíada e da Odisséia centenas de línguas ativas nunca são escritas: ninguém criou um modo
- concluído por Albert B. Lord depois da morte prematura de Parry - e eficaz de escrevê-Ias. A oralidade básica da linguagem é constante.
complementados pelo estudo posterior de Eric A. Havelock e outros. Não nos ocupamos aqui das chamadas "linguagens" de computa-
Publicações em lingüística aplicada e sociolingüística que tratam dos dor, que, em certos aspectos, assemelham-se às línguas humanas (inglês,
contrastes entre oralidade e cultura escrita, em seus aspectos teóricos ou
sânscrito, malaio, mandarim, mina, shoshone etc.), porém delas diferem de um modo tão ditatorial que as criações orais tenderam a ser conside-
total e irrevogavelmente pelo fato de que não se originam do inconscien- radas geralmente como variantes de produções escritas ou, quando muito,
te, mas diretamente da consciência. As regras da linguagem de computa- sob um rigoroso escrutínio acadêmico. Apenas recentemente fomos
dor ("gramática") são estabelecidas antes e usadas depois. As "regras" de tomados de impaciência diante de nossa insensibilidade nessa questão
gramática nas línguas humanas são usadas antes, e apenas com dificulda- (Finnegan 1977, pp. 1-7).
de e nunca de modo integral, podem ser abstraídas do uso e estabelecidas O estudo da linguagem, a não ser nas últimas décadas, concentrou-se
explicitamente em palavras.
mais nos textos escritos do que na oralidade por um motivo facilmente
A escrita, a espacialização da palavra, amplia quase ilimitadamente identificável: a relação do próprio estudo com a escrita. Todo pensamento,
a potencialidade da linguagem, reestrutura o pensamento e, nesse pro- inclusive nas culturas orais primárias, é de certo modo analítico: ele divide
cesso, converte determinados dialetos em "grafoletos" (Haugen 1966; seu material em vários componentes. Mas o exame abstratamente seqüen-
Hirsh 1977, pp. 43-48). Um grafoleto é uma língua transdialética formada cial, classificatório e explicativo dos fenômenos ou de verdades estabeleci-
por uma prática acentuada da escrita. Esta confere a um grafoleto um das é impossível sem a escrita e a leitura. Os seres humanos, nas culturas
poder muito maior do que o possuído por um dialeto puramente oral. O orais primárias, não afetadas por qualquer tipo de escrita, aprendem muito,
grafoleto conhecido como inglês padrão coloca à disposição do usuário possuem e praticam uma grande sabedoria, porém não "estudam".
um vocabulário registrado de pelo menos um milhão e meio de pala~''Tas,
Eles aprendem pela prática - caçando com caçadores experientes,
das quais se conhecem não apenas os significados presentes, mas também
por exemplo -, pelo tirocínio, que constitui um tipo de aprendizado;
centenas de milhares de significados passados. Um dialeto simplesmente
aprendem ouvindo, repetindo o que ouvem, dominando profundamente
oral terá comumente recursos de apenas alguns milhares de palavras, e
provérbios e modos de combiná-Ios e recombiná-Ios, assimilando outros
seus usuários não terão virtualmente nenhum conhecimento da história
materiais formulares, participando de um tipo de retrospecção coletiva -
semântica real de qualquer uma dessas palavras.
não pelo estudo no sentido restrito.
Porém, a despeito dos mundos maravilhosos que a escrita abre, a
Quando o estudo, no sentido estrito de análise seqüencial ampla,
palavra falada ainda subsiste e vive. Todos os textos escritos devem, de
se torna possível com a interiorização da escrita, uma das primeiras coisas
algum modo, estar direta ou indiretamente relacionados ao mundo
que os letrados freqüentemente estudam é a própria linguagem e seus
sonoro, hábitat natural da linguagem, para comunicar seus significados.
usos. A fala é inseparável da nossa consciência e tem fascinado os seres
"Ler" um texto significa convertê-Io em som, em voz alta ou na imagina-
humanos, além de trazer à tona reflexões importantes sobre si mesma,
ção, sílaba por sílaba na leitura lenta ou de modo superficial na leitura
desde os mais antigos estágios da consciência, muito tempo antes do
rápida, comum a culturas de alta tecnologia. A escrita nunca pode
surgimento da escrita. Nos quatro cantos do mundo, os provérbios são
prescindir da oralidade. Adaptando um termo usado com finalidades um
ricos de observações acerca desse espantoso fenômeno humano do
tanto diferentes por Jurij Lotman (1977, pp. 21, 48-61; ver também
discurso na sua forma original oral, acerca de seus poderes, sua beleza,
Champagne 1977-1978), podemos denominar a escrita um "sistema mo-
seus perigos. A mesma fascinação pelo discurso oral continua inalterada
delar secundário", dependente de um sistema primário anterior, a lingua-
séculos depois de a escrita ter sido posta em uso.
gem falada. A expressão oral pode existir - e na maioria das vezes existiu
- sem qualquer escrita; mas nunca a escrita sem a oralidade. No Ocidente, entre os antigos gregos, a fascinação apresentou-se
No entanto, apesar das raízes orais de toda verbalização, o estudo na formação da vasta e rigorosamente elaborada arte da retórica, o mais
científico e literário da linguagem e da literatura, durante séculos e até abrangente tema de estudos em toda a cultura ocidental por 2 mil anos.
épocas muito recentes, rejeitou a oralidade. Os textos exigiram atenção No grego original, a palavra techne rhetorike, "arte do discurso" (comu-
mente abreviada como rhetorike) referia-se fundamentalmente ao ato de
falar, muito embora, como "arte" ou ciência refletida, organizada - por vezes passaram a presumir, com freqüência irrefletidamente, que a
exemplo, na Arte retórica de Aristóteles -, a retórica fosse e devesse "ser verbalização oral era essencialmente idêntica à escrita com a qual normal-
um produto da escrita. Rhetorike~ ou retórica, significava basicamente ato mente lidavam, e que as formas artísticas orais eram, para todos os efeitos,
de falar em público" ou "oratória", o que durante séculos, até mesmo nas simplesmente textos, salvo o fato de não terem sido registradas por
culturas escritas e tipográficas, permaneceu, no fundo, praticamente escrito. Criou-se a impressão de que, distintas do discurso (governado por
como o paradigma de todo discurso, até mesmo o da escrita (Ong 1967b, regras retóricas escritas), as formas artísticas orais eram fundamentalmente
pp. 58-63; Ong 1971, pp. 27-28). Desse modo, a escrita, desde o início, desajeitadas e indignas de estudo sério.
não levou a oralidade a um encolhimento, mas consagrou-a, possibilitan- Nem todos, contudo, adotaram essas suposições. Desde a metade
do a organização dos "princípios" ou constituintes da oratória em uma do século XVI, adensou-se uma percepção das relações complexas entre
"arte" científica, um corpo seqüencialmente ordenado de explicações que escrita e fala (Cohen 1977). Porém, o domínio inabalável da textualidade
mostrava como e por que a oratória produzia seus vários efeitos especí- sobre o pensamento erudito evidencia-se no fato de que até hoje não se
ficos e poderia tornar-se capaz de fazê-Io. formularam conceitos que permitam uma compreensão satisfatória - para
Porém, os discursos - ou quaisquer outras apresentações orais - não dizer menos desfavorável - da arte oral como tal, sem referência,
que eram estudados como parte da retórica dificilmente poderiam ser consciente ou inconsciente, à escrita. Isso não obstante o fato de não
idênticos aos que eram apresentados oralmente. Proferido o discurso, não terem tido as formas artísticas orais desenvolvidas durante as dezenas de
permanecia nada sobre o que se pudesse trabalhar. O que se usava para milhares de anos antes da escrita absolutamente nenhuma relação com
"estudar" era necessariamente os textos dos discursos que haviam sido ela. Possuímos o termo "literatura", que essencialmente significa "escritos"
escritos - geralmente depois de proferidos e muitas vezes muito tempo (latim literatura, de litera, letra do alfabeto), para abranger um -dado
depois (na Antiguidade não era comum, a não ser no caso de oradores corpo de materiais escritos - literatura inglesa, literatura infantil -, mas
excepcionalmente incompetentes, discursar seguindo um texto integral nenhum termo ou conceito comparavelmente satisfatório, referente a uma
preparado antecipadamente - Ong 1967b, pp. 56-58). Desse modo, até herança puramente oral, como as histórias orais tradicionais, os provér-
mesmo os discursos compostos oralmente eram estudados não como bios, as preces, as expressões formulares (Chadwick 1932-1940, passim),
discursos, mas como textos escritos. ou outras produções orais, como por exemplo as dos lakota simlX na
América do Norte ou dos mandes na África Ocidental ou as dos gregos
Acresce que, além da transcrição de apresentações orais tais como homéricos.
os discursos, a escrita acabava produzindo composições somente escritas,
destinadas à recepção direta da superfície grafada. Essas composições Como observado anteriormente, designo como "oralidade primá-
escritas obrigavam a uma atenção ainda maior aos textos, pois as composi- ria" a ora lida de de uma cultura totalmente desprovida de qualquer
ções verdadeiramente escritas surgiram como textos apenas, embora muitas conhecimento da escrita ou da impressão. É "primária" por oposição à
delas fossem mais comumente ouvidas do que lidas silenciosamente, das "oralidade secundária" da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma
histórias de Lívio à Divina comédia de Dante e muito depois disso (Nelson nova oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio, pela televisão ou
1976-1977; Bauml1980; Goldin 1973; Cormier 1974; Ahern 1982). por outros dispositivos eletrônicos, cuja existência e funcionamento
dependem da escrita e da impressão. Atualmente, a cultura oral primária,
no sentido restrito, praticamente não existe, uma vez que todas as culturas
Cem conheClmento
. • escnta
da . e sofreram alguns de seus efeitos. Contudo,
em diferentes graus, muitas culturas e subculturas, até mesmo num meio
A concentração do saber em textos teve conseqüênCias ideológi- de alta tecnologia, preservam muito da estrutura mental da oralidade
primária.
cas. Em virtude de sua atenção dirigida aos textos, os estudiosos muitas
Não é fácil imaginar a tradição puramente oral ou a oralidade pertencente à cultura escrita, quando instada a pensar na palavra "contu-
primária de forma exata e significativa. A escrita faz com que as "palavras" do", normalmente (e tenho uma forte suspeita de que isso sempre ocorre),
pareçam semelhantes às coisas porque pensamos nas palavras como as terá alguma imagem, ao menos vaga, da palavra grafada e dificilmente
marcas visíveis que comunicam as palavras aos decodificadores: podemos seria capaz até mesmo de pensar na palavra "contudo" por, digamos, 60
ver e tocar tais "palavras" inscritas em textos e livros. As palavras escritas segundos, sem se reportar a alguma inscrição, mas tão somente ao som.
são resíduos. A tradição oral não tem tais resíduos ou depósitos. Quando Isso significa que essa pessoa não é capaz de recuperar inteiramente a
uma história oral contada e recontada não está sendo narrada, tudo que percepção do que seja a palavra para os povos exclusivamente orais. Em
dela subsiste é seu potencial de ser narrada por certos seres humanos. virtude dessa primazia da cultura escrita, parece não haver nenhuma
Estamos, quase todos nós (aqueles que lêem textos como este), tão possibilidade de usar o termo "literatura" para abranger a tradição e a
impregnados da cultura escrita que raramente nos sentimos à vontade apresentação orais, sem que estas sejam sutil mas irremediavelmente
numa situação em que a verbalização é tão pouco semelhante a alguma reduzidas a variantes da escrita.
coisa, como ocorre na tradição oral. Conseqüentemente - embora com Pensar na tradição oral ou numa herança de apresentações, gêne-
uma freqüência menor hoje -, a erudição produziu no passado conceitos ros e estilos orais como "literatura oral" é pensar em cavalos como
monstruosos como "literatura oral". Esse termo decididamente absurdo automóveis sem rodas. É claro que se pode tentar fazer isso. Imaginemos
permanece em circulação hoje, até mesmo entre estudiosos cada vez mais um tratado escrito sobre cavalos (para pessoas que nunca viram um
plenamente conscientes de quão constrangedora se mostra nossa inabili- cavalo) que inicie pelo conceito não de cavalo, mas de "automóvel",
dade para imaginar uma herança de materiais verbalmente organizados, apoiado na experiência direta que os leitores têm de automóveis. Ele
exceto como alguma variante da escrita, mesmo quando nada têm a ver discorrerá sobre cavalos, mas sempre se referindo a eles como "automó-
com ela. O título da grande Milman Parry Collection of Oral Literature veis sem rodas", explicando a leitores altamente motorizados, que nunca
[Coleção Milman Pany de Literatura Oral] da Universidade de Harvard viram um cavalo, todos os pontos em que diferem, tentando eliminar do
constitui antes um monumento do tipo de percepção de uma geração conceito "automóvel sem rodas" qualquer idéia de "automóvel", de modo
anterior de estudiosos do que a visão de seus cura dores atuais. a revestir o termo de um significado puramente eqüino. Em vez de rodas,
Poder-se-ia argumentar (como Finnegan 1977, p. 16) que o termo os automóveis sem rodas possuem grandes unhas chamadas cascos; em
"literatura", embora destinado originalmente a obras escritas, foi simples- vez de faróis ou talvez espelhos retrovisores, olhos; em vez de uma
mente ampliado para abranger fenômenos afins como a narrativa oral cobertura de tinta, algo chamado pêlo; em vez de gasolina como fonte de
tradicional em culturas desprovidas de contato com a escrita. Muitos energia, feno, e assim por diante. No fim, os cavalos serão apenas o que
termos originalmente específicos foram generalizados dessa forma. Po- não são. Por mais exata e completa que fosse essa descrição apofátiça, os
rém, os conceitos habitualmente carregam consigo suas etimologias. Os leitores motoristas que nunca viram um cavalo e que ouvem falar apenas
elementos com os quais um termo é originalmente construído comumente de "automóveis sem rodas" certamente acabariam com um estranho
- e provavelmente sempre - subsistem de algum modo nos significados conceito de cavalo. O mesmo vale para aqueles que falam em termos de
subseqüentes, talvez de forma obscura, mas sempre acentuada e até "literatura oral", isto é, "escrita oral". Não é possível, sem causar uma
mesmo irrevogável. A escrita, além disso - como veremos detalhada mente distorção desastrosa, descrever um fenômeno primário começando por
mais adiante - constitui uma atividade particularmente preponderante e um fenômeno subseqüente secundário e comparando as diferenças. Na
imperialista, que tende a absorver outras, mesmo sem qualquer concurso verdade, a começar assim, de trás para diante - pondo o carro na frente
das etimologias. dos bois -, nunca se pode ter uma idéia clara das diferenças reais.

Embora as palavras estejam fundadas na linguagem falada, a escrita Embora o termo "pré-cultura escrita" em si seja útil e por vezes
tiranicamente as encerra para sempre num campo visual. Uma pessoa necessário, quando usado inadvertidamente também causa problemas
iguais, ainda que não tão evidentes, aos provocados pelo termo "literatura Hoje, felizmente, o termo "literatura oral" está perdendo terreno,
oral". "Pré-cultura escrita" apresenta a oralidade - o "sistema modelar mas é bastante provável que eliminá-Io por completo seja uma batalha
primário" - como úm desvio anacrônico do "sistema modelar secundário" nunca inteiramente vencida. Para a maioria daqueles que pertencem a
uma cultura escrita, pensar nas palavras como totalmente desvinculadas
que o sucedeu.
da escrita é uma tarefa simplesmente árdua demais, até mesmo quando
Juntamente com os termos "literatura oral" e "pré-cultura escrita",
estudos lingüísticos ou antropológicos especializados possam exigi-Io. As
ouvimos também menções ao "texto" de uma enunciação oral. "Texto",
palavras continuam vindo à mente na sua forma escrita, por mais que se
cuja raiz significa "tecer", é, em termos absolutos, mais compa.tível
tente o contrário. Além disso, desvincular as palavras da escrita é
etimologicamente com a enunciação oral do que "literatura", que etlmo-
psicologicamente ameaçador, pois a sensação de controle sobre a lingua-
logicamente se refere a letras (literae) do alfabeto. O discurso oral tem
gem que se tem na cultura escrita está estreitamente ligada às transforma-
sido geralmente considerado, até mesmo em ambientes orais, como tecer
ções visuais da língua: sem dicionários, regras gramaticais escritas, pon-
ou alinhavar - rbapsoidein, "fazer rapsódias" significa basicamente em
tuação e todo o aparato restante que transforma as palavras em algo que
grego "alinhavar canções". Mas, na verdade, quando na cultura escrita se
se pode percorrer com os olhos, como se pode viver? Os usuários de um
usa hoje o termo "texto" para fazer referência à apresentação oral, está-se
grafoleto como o inglês padrão têm acesso a vocabulários centenas de
pensando em termos de uma analogia com a escrita. No vocabulário de
vezes maiores do que aqueles com que uma língua oral é capaz de lidar.
quem pertence à cultura escrita, o "texto" de uma narrativa apresentada
Em um mundo lingüístico desse tipo, os dicionários são fundamentais. É
por quem pertence a uma cultura oral primária representa um suporte
desconcertante lembrar que não existe dicionário na mente, que o aparato
anterior: o cavalo como um automóvel sem rodas, novamente.
lexicográfico constitui um acréscimo muito tardio às línguas, que todas
Admitida a enorme diferença entre fala e escrita, o que se pode fazer elas possuem gramáticas complexas e as desenvolveram sem nenhuma
para construir uma alternativa ao termo anacrônico e contraditório "liter~- ajuda da escrita e que, fora das culturas com tecnologia relativamente
tura oral"? Adaptando uma proposta feita por Northrop Frye para a poesia sofisticada, a maioria dos usuários das línguas sempre se arranjaram muito
épica em Ibe anatomy of criticism [Anatomia da crítica] 0957, pp. 248-250, bem sem quaisquer transformações visuais do som vocal.
293-303), poderíamos nos referir a toda arte puramente oral como epos, que Na realidade, as culturas orais produzem realizações verbais im-
tem a mesma raiz proto-indo-européia, wekw-, como a palavra latina vox e pressionantes e belas, de alto valor artístico e humano, que já não são
seu equivalente em português "voz", e portanto está firmemente apoiada sequer possíveis quando a escrita se apodera da psique. Contudo, sem a
no vocal, no oral. As apresentações orais seriam, assim, sentidas como escrita, a consciência humana não pode atingir o ápice de suas potencia-
"vocalizações", o que elas efetivamente são. Porém, o sentido mais comum lidades, não é capaz de outras criações belas e impressionantes. Nesse
do termo epos, poesia épica (oral) (ver Bynum 1967), iria de certa forma sentido, a oralidade precisa e está destinada a produzir a escrita. A cultura
interferir num significado genérico atribuído a todas as criações orais. escrita, como veremos, é imprescindível ao desenvolvimento não apenas
"Vocalizações" parece possuir muitas associações concorrentes, embora, da ciência, mas também da história, da filosofia, ao entendimento
caso alguém julgue o termo leve o bastante para ser lançado ao mar, eu analítico da literatura e de qualquer arte e, na verdade, à explicação da
certamente me esforçarei por mantê-Io à tona. Porém, ainda assim, carece- própria linguagem (incluindo a falada). Dificilmente haverá uma cultura
ríamos de um termo mais genérico que abrangesse tanto a arte puramente oral ou uma cultura predominantemente oral no mundo, hoje, que não
oral quanto a literatura. Neste livro, manterei um procedimento comum esteja ciente da enorme pletora de capacidades absolutamente inacessí-
entre pessoas informadas e recorrerei, quando necessário, a perífrases veis sem a cultura escrita. Essa consciência é angustiante para pessoas
explicativas - "formas artísticas puramente orais", "formas artísticas verbais" enraizadas na oralidade primária, que desejam ardentemente a cultura
(que incluiriam tanto as formas orais quanto as compostas por escrito, assim escrita, mas que estão igualmente conscientes de que entrar no mundo
como tudo o que se situa entre ambas) e outras expressões semelhantes.
cheio de atrativos da cultura escrita significa deixar atrás de si boa parte
do que é fascinante e profundamente amado no mundo oral anterior.
Devemos morrer para continuar a viver.
Felizmente, a cultura escrita - não obstante devore seus próprios
antecedentes orais e, a menos que seja cuidadosamente monitorada, até
mesmo destrua sua memória - é também infinitamente adaptável. Ela
pode também resgatar sua memória. Podemos usar a cultura escrita para
reconstruir a consciência humana primitiva que não possuía nenhuma
cultura escrita - pelo menos reconstruir essa consciência da melhor forma
possível, embora imperfeita (nunca podemos esquecer o presente que
nos é familiar demais para permitir que nossas mentes reconstituam
qualquer passado em sua total integridade). Essa reconstrução pode gerar
uma compreensão melhor do que significou a cultura escrita para a 2
conformação da consciência do homem em direção às culturas de alta A DESCOBERTAMODERNA DAS CULTURASORAIS PRIMÁRIAs
tecnologia e no interior delas. Essa compreensão tanto da oralidade
quanto da cultura escrita é o que este livro - forçosamente um estudo
letrado, e não uma apresentação oral- busca, até certo ponto, atingir.

A nova perspectiva dos últimos tempos acerca da oralidade da


linguagem teve antecedentes. Muitos séculos antes de Cristo, o autor
pseudônimo do livro do Velho Testamento, que aparece sob seu nom de
plume hebreu Qoheleth ("orador de assembléia"), ou seu equivalente
grego Eclesiastes, aponta claramente para a tradição oral da qual provém
seu escrito: "Além de ser sábio, Qoheleth transmitiu conhecimento a seu
povo e examinou cuidadosamente, verificou e combinou muitos provér-
bios. Qoheleth procurou encontrar ditos agradáveis e registrar por escrito
com exatidão os ditos verdadeiros" (Eclesiastes 12:9-10).

"Registrar por escrito ... ditos." Pessoas de cultura escrita, dos


compiladores de florilégios medievais a Erasmo 0466-1536) ou Vicesi-
mus Knox (1752-1821) e mesmo depois deles, continuaram a registrar
por escrito ditos da tradição oral, embora seja significativo que, no
mínimo, da Idade Média e da época de Erasmo em diante, na cultura
oCidental pelo menos, a maioria dos compiladores selecionasse os
"ditos" não diretamente de sua enunciação oral, mas de outros escritos.

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