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ANTES DE MAIS ...

A reflexão sobre as línguas vem de há muito tempo, mas a


linguística é uma ciência recente, pouco divulgada e mal conhe- .
cida. Ainda menos conhecida é a actividade dos que trabalham
em linguística - os linguistas. Serão pessoas que sabem muitas
línguas? Ou serão aqueles cuja especialidade consiste apenas na
decisão sobre o correcto uso da língua (escrita e oral), no conhe-
cimento da origem das palavras ou na informação sobre se existe
uma região onde se fale 'bem' uma determinada língua? É certo
que o linguista tem conhecimentos em qualquer um destes domí-
nios, mas a sua actividade ultrapassa muitíssimo este tipo de pro-
blemas.
Vejamos algumas perguntas a que a linguística procura dar
resposta: Como aprendemos a falar? Quais as características
comuns e as que diferenciam as línguas? Como se relaciona o
uso da língua com a actividade do nosso cérebro? Por que variam
as línguas, por que desaparecem umas e surgem outras? E mais,
muitas mais são as questões com que se preocupam os que es-
tudam a linguagem e as línguas. Dar a conhecer o que constitui a
ciência da linguagem e a actividade dos linguistas é o objectivo da
colecção que se inaugura com este livro e que, para tal, é constituído
por uma apresentação geral do que se entende hoje como linguís-
tica. Comecemos, então, por indagar como se define este termo.
Quando procuramos uma definição de linguística em dicioná-
rios gerais ou especializados, em enciclopédias ou em obras de-
dicadas especificamente a esta área, encontramos, em síntese,
uma frase do tipo: Iingurstica é o estudo cientrficoda linguagem

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_J
14 • MARIA HELENA MIRA MATEUS! ALlNA VILLAL VA o ESSENCIAL SOBRE LlNGU{STlCA • 15

humana e das línguas naturais. Para quem nunca teve contacto Ainda que a questão da origem das línguas continue a fazer
com esta disciplina, a definição pode causar alguma perplexidade: parte da lista dos temas em debate, o que se sabe é que as lín-
guas naturais (e mais especificamente, as protolínguas de que
... línguas naturais... Mas haverá línguas 'não-naturais'? E por-
quê estudar só as naturais? não existem registos materiais) são manifestações espontâneas
da capacidade de linguagem, ou seja, não foram construídas 'pelo'
Comecemos por esta questão das línguas naturais. Este é o homem, foram construídas 'com' o homem. Pelo contrário, as
no~e dado a línguas como o Português, o Francês, o Irlandês ou línguas artificiais foram arquitectadas deliberadamente por uma
o Arabe, já que podem ser aprendidas como língua materna, mas pessoa ou por um pequeno grupo de pessoas, num tempo relati-
que também é dado ao Latim 1, que ainda hoje pode ser aprendido vamente curto e, portanto, não se desenvolveram espontanea-
e falado, mas que já não está disponível como língua materna' ou mente numa comunidade de falantes, nem nunca foram aprendidas
ao Sânscrito, que perdura na índia apenas como língua sagr~da. como língua materna. Por outras palavras, as línguas artificiais
são definidas à partida, enquanto as línguas naturais correspon-
dem à activação de um potencial inscrito no código genético hu-
As línguas artificiais
mano.
. Integrado n~ colecção Construir a Europa, Umberto Eco [081 pu- O interesse da linguística pelas línguas naturais e o comple-
bh~ou um. ~~salo, onde estabelece uma tipologia das ( línguas cons- mentar desinteresse pelas línguas artificiais (embora haja alguns
trUlda~ a.rtlflclalmentell com base na identificação dos seus objectivos. trabalhos de descrição da forma como estas línguas se organi-
Eco distingue assim: zam) decorrem do entendimento da linguística como uma ciência
• as línguas que buscam a perfeição estrutural ou funcional como cognitiva, o que nos conduz à segunda questão:
as línguas filosóficas criadas em Inglaterra nos séculos XVI" e XVIII
(que procuravam substituir o Latim por outra língua veicular), como ... linguagem humana... Mas haverá linguagem 'não-humana'?
o Lo!ba.n (uma língua oral criada com o propósito de eliminar a E porquê restringir?
~mblguld~de) ou como o Láadan (que é apresentada como uma
Esta restrição põe fora do alcance da linguística outros siste-
hngua mais adequada à expressão das mulheres);
• as chamadas línguas internacionais, como o Esperanto ou o Ido mas de comunicação, como o das linguagens dos animais, que
(que pretende ser um aperfeiçoamento do Esperanto); são igualmente naturais, mas se distinguem da linguagem huma-
• e aslrnguas secr~t~s ou cifradas, .como a Língua dos Pês, que na (são clássicos os exemplos de comunicação entre abelhas ou
tem algum prestigio entre as crianças, ou o Minderico dos entre golfinhos); ou o de formas de comunicação codificadas,
cardadores e negociadores de lã de Minde, no início do século XVIII, como a linguagem das flores, a linguagem dos tambores ou ainda
q~e f~z lembrar os sistemas de criptologia que os meios de comu- linguagens de programação.
nlcaçao actualmente disponíveis tornam cada vez mais necessários.
Quando a 'linguagem' se acrescenta o adjectivo 'humana',
Fora dest~ tipologia fic?m ai~da várias línguas artificiais, como, por o que se pretende é referir exclusivamente a actividade que de-
exemplo, o Khngon, uma Ilngua Inventada para os alienrgenas do Star
Trek. corre da existência geneticamente determinada da faculdade da
linguagem. Ora, se este é um mecanismo universal, então a rela-
ção com a gramática das línguas também é universal, o que
implica que todas as línguas possuem propriedades comuns.
1 Latim é um termo que recobre sistemas linguísticos muito distin-
A estas propriedades dá-se o nome de universais linguísticos: por
tos: do Lati.m ~Iássico dos textos literários de autores consagrados, ao
Latim EcleSIástiCO usado regularmente na liturgia católica até ao início do exemplo, o conjunto de sons que podem ser utilizados pelas
século XX, por exemplo. línguas naturais é universal; tal como a presença de elementos
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---------------, fundamentais na frase.


A faculdade da linguagem (a linguagem humana e as línguas naturais) é uma abordagem
como o sujeito e o pre- objectiva, sistemática, rigorosa e teoricamente enquadrada.
O conhecimento dos processos cogniti- dicado. A par dos uni- No entanto, a demonstração de que a linguística é uma ciência,
vos ligados às formas de comportamento
versais linguísticos. como sucede com qualquer outro domínio do conhecimento, e em
humano alcançou enormes progressos na
segunda metade do século xx. o que tornou comuns a todas as lín- particular com as chamadas ciências humanas, é uma tarefa exi-
posslvel afirmar que esses processos decor- guas, há características gente. A afirmação serve, então, para já, como uma declaração
rem de uma base genética universal. Sendo particulares que as dife- de princípios e a demonstração virá um pouco mais adiante neste
a linguagem uma forma de comportamento renciam: por exemplo, livro.
humano. já que todos os seres humanos nem todas as línguas
falam. deve então também admitir-se a exis- têm uma flexão verbal A natureza concisa das definições deixa entrever que muito
tência de uma capacidade do sistema cogni-
tão rica como a do Por- fica de fora. Fecha-se então, aqui, a definição da enciclopédia e
tivo. inata e universal, que lhe está associada.
É essa capacidade. a que se dá o nome de tuguês; nem todas as abre-se a porta a uma visita guiada pelas diversas dimensões deste
faculdade da linguagem. que permite a rea- línguas têm acento fixo domínio do conhecimento, que é a linguística.
lização de actividade linguística, ou seja, que na última sílaba de cada
permite compreender e construir, com base palavra, como o Fran-
numas poucas dezenas de sons e num cês.
conhecimento gramatical implfcito. uma in- Compete, pois, à
finidade de expressões linguísticas.
linguística contemporâ-
A existência da faculdade da linguagem
não é. porém. uma hipótese assente apenas nea estudar a capacida-
na constatação da universalidade dos proces- de humana de falar e de
sos cognitivos e de que todos os homens compreender enuncia-
falam. Esta hipótese é também sustentada dos linguísticos e esta-
pela forma como se processa a aquisição da belecer a relação entre
língua. Trata-se de um processo comum a a faculdade da lingua-
todas as crianças. qualquer que seja o estí-
gem e as línguas que a
mulo linguístico a que são expostas. isto é.
qualquer que seja a Ifngua que ouvem falar à actualizam.
sua volta. Em tempo incrivelmente breve. e
perante dados incompletos. a competência A última das ques-
linguística é rapidamente adquirida. Essa tões suscitadas pela de-
aprendizagem não pode provir senão de um finição apresentada no
mecanismo cognitivo universal e genético es- início diz respeito ao ca-
pecialmente preparado para esse fim.
rácter científico dos es-
tudos linguísticos:

... estudo científico ... Mas porquê 'científico'? E 'científico'


por oposição a quê?

Esta restrição serve, antes de mais, para garantir que a abor-


dagem que a linguística faz ao seu objecto de conhecimento

----- - _. -------"""'----------------
PERGUNTAS INTERESSANTES
& RESPOSTAS CONHECIDAS
COMO SE SABE QUE UMA LíNGUA
É UMA LíNGUA?

Se, entre outras competências, à linguística cabe o estudo


das línguas, então justifica-se reflectir sobre o que é uma língua e
conceitos relacionados, como dialecto, sociolecto, idiolecto e va-
riedade.
O entendimento comum destes termos faz com que se aceite
que dialecto identifica o sistema linguístico próprio de uma dada
região (como o dialecto de Lisboa, por exemplo); que língua re-
mete para o sistema linguístico que conjuga todos os dialectos
falados num país (o Português é uma língua); e que variedade seja
interpretada como a manifestação nacional que uma língua fala-
da em países diversos assume em cada um deles (o Português
Europeu é uma variedade do Português). Sociolecto fica fora desta
hierarquia de conceitos, embora se possa definir como um con-
junto de idiolectos que corresponde a um recorte social da língua
(pode falar-se no sociolecto dos adolescentes, dos surfistas ou
dos economistas). O termo sociolecto tende a ser substituído por
dialecto (que ganha em generalidade), encontrando mesmo uma
designação específica para algumas destas realidades, como nos
casos de 'economês' ou de 'futebolês'. Idiolecto, que identifica o
sistema linguístico de cada falante, individualmente considerado,
é um conceito praticamente desconhecido.
O que o entendimento comum destes termos mostra é que a
definição destes conceitos não assenta em critérios de natureza
linguística. Deste ponto de vista, uma língua é um sistema de
comunicação que faz uso da faculdade da linguagem activada pela
exposição dos falantes a estímulos linguísticos, durante o cha-
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mado período de aquisição da língua. Ora, do ponto de vista da Por outro lado, em deter-
linguística, o conceito de dialecto pode ser definido da mesma minadas circunstâncias, o ter-
oPortuguês Brasileiro

exacta maneira. mo língua não chega para Muitos intelectuais brasileiros,


Tem, aliás, sido defendido por muitos linguistas que devem identificar o conceito, razão particularmente no início do sécu-
pela qual a linguística faz uso lo xx, procuraram atribuir ao Portu-
ser tratados no âmbito de uma política linguística. Os critérios ob-
guês Brasileiro o estatuto de língua
jectivos (como a inteligibi- de distinções como língua
e de língua distinta do Português Eu-
lidade mútua, o número de materna, língua segunda, lín- ropeu. O carácter voluntarista desta
A língua portuguesa
falantes, a coesão geográ- gua estrangeira, língua oficial, tentativa condenou-a ao fracasso.
«A realidade da noção de língua fica e política da comunida- língua de trabalho, língua de Em contrapartida, tem-se vindo a
portuguesa, aquilo que lhe dá uma comunicação, língua franca ou vulgarizar, em Portugal, a opinião
de de falantes) nem sempre
dimensão qualitativa para além de (algo pejorativa) de que a língua
permitem identificar com língua ágrafa, para referir ape-
um mero estatuto de repositório de falada pela crescente comunidade
variantes, pertence, mais do que ao clareza o que é uma língua nas alguns exemplos.
imigrante brasileira é o 'brasileiro'.
domínio lingUístico, ao domínio da e o que é um dialecto. Face a esta variedade ter-
Talvez os portugueses ainda não
história, da cultura e, em última ins- Na verdade, são muitos minológica, não é, pois, fácil tenham compreendido as implica-
tência, da política. Na medida em que os casos em que sistemas determinar o número de lín- ções desta posição: de um ponto de
a percepção destas realidades for linguísticos diferentes são guas existentes no mundo: vista estratégico, a unidade linguís-
variando com o decorrer dos tempos tudo depende do que se con- tica entre Portugal e o Brasil interes-
classificados ora como lín-
e das gerações, será certamente de sa ao Brasil e interessa também a
guas diferentes, ora como sidera ser uma língUa ou se
esperar, concomitantemente. quea Portugal.
extensão da· noção de língua portu- uma língua e um dialecto classifica como dialecto. En-
guesa varie também.)) dessa língua. Por exemplo, contram-se algumas referên-
o facto de o Português e o cias a um número próximo dos 3000, mas o The Ethn%gue [9l,
Eduardo Paiva Raposo (*) [151
Galego serem, por alguns, uma base de dados sobre as línguas do mundo, apresenta um total
consideradas duas línguas, de 6809, sendo que a Europa contribui com apenas 3% (ou seja
. ainda que derivadas de um mesmo Galaico-Português saído da 230 línguas, muitas das quais estão quase extintas). É também inte-
matriz latina, não pode deixar de ser relacionado com a soberania ressante notar que 96% das línguas existentes no mundo são fala-
dos países onde essas línguas são originalmente faladas: o Galego, das por apenas 4% da população mundial; que cerca de 80% das
em Espanha; o Português, em Portugal. Em contrapartida, que o línguas são faladas apenas em um país e que cerca de 20 línguas
Português Europeu e o Português Brasileiro sejam considerados a são faladas por vários milhões de pessoas em diversos países.
mesma língua é o resultado, por vezes contestado, de um dado O interesse destes dados não é meramente estatístico. O volu-
percurso histórico, quer por via da herança que Portugal partilha me de Abril de 2000 do The Courier [181 é dedicado aos confli-
com o Brasil, quer pela vontade que o Brasil sentirá de manter a tos e à coexistência das diferentes línguas do mundo. Aí se chama
conexão com Portugal. A escolha do Português, língua falada nas a atenção para o facto de metade da população mundial usar ape-
sedes do poder político desde o início da colonização europeia, nas oito línguas, enquanto um sexto das línguas do mundo são
poderá servir esse fim. faladas apenas na Nova Guiné. O mesmo documento refere o alas-
tramento do Inglês como meio de comunicação mundial (visto
como resultado de um fenómeno de imperialismo cultural). E men-
(*) Os números delimitados por parênteses rectos remetem para as ciona ainda o facto de grande número das chamadas línguas
referências bibliográficas que encontra no final. minoritárias estarem a desaparecer a um ritmo cada vez mais
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acelerado (sendo que comunidades linguísticas formadas por um zação do uso de tecnologias multimédia, como a televisão, tende
número de indivíduos inferior a 100 000 não asseguram a sobre- a esbater as diferenças dialectais.
vivência da sua língua). Por outro lado, ainda que o Português não seja a única língua
oficial de Portugal, é esta a língua falada por maior número de
falantes e a que tem maiores possibilidades de crescimento. As
outras línguas oficiais são a Língua Gestual Portuguesa e o
África 30%
Mirandês. A Língua Gestual
Portuguesa é utilizada por
boa parte da comunidade Varíedades dó Português
surda portuguesa como
Português Falado. Documentos Au-
língua materna. Esta língua
tênticos [1 O] é um registo (com cerca de
só foi oficialmente reconhe- 9 horas de gravação e transcrição orto-
Repartição das línguas por continentes cida em 2003, facto que gráfica alinhada com o som). quer de
veio a permitir, por exem- conversas informais quer de interven-
plo, a escolarização dos ções mais formais, exemplificativo do
O nome das línguas é outra das questões que pode suscitar seus falantes nesta língua. Português falado em todos os paises de
controvérsia. Parece ser um facto pacífico, esperável até, que em 3 expressão oficial portuguesa.
O Mirandês , que é uma
Portugal se fale Português, mas que esse seja o nome da língua língua de origem asturo-Ieo-
falada no Brasil é um dado que só é compreensível à luz do con- nesa e não galaico-portu- Português
DOCUMENTOS
texto histórico de formação desse país. Por outro lado, que uma guesa (como o Português), Falado AUT~NTICOS
Grtv.ç~j'~ .udlo com tr.n'çrl~lo .Ilnh,ada
das línguas oficiais de Espanha seja o Espanhol, quando esse nome tem estatuto de língua ofi- lInaola

corresponde a uma renomeação do Castelhano, é um facto que ciai desde 1999, mas só
braslf
;"""''1,
cabo vH1l."
muitos dos falantes nativos das restantes línguas oficiais de Es- é falado por um pequeno
lul"é-!)l....,
panha (como o Catalão ou o Basco) têm dificuldade em aceitar. número de falantes, numa m.cau
A caracterização linguística de Portugal mostra-nos que a região do Nordeste trans-
f·'"
moçambique

comunidade de falantes é maioritariamente falante nativa do Por- montano, o que a caracte-


póf1I.llillr

.10 lomn"prlnclpe
tuguês, o que significa que se trata de uma comunidade que não riza como língua minoritária dmor-lfll~8::'~ ,'o !'

é afectada por muitas tensões linguísticas. Por um lado, as des- e, a prazo, pode pôr em
crições da diversidade do Português no território de Portugal (cf. causa a sua sobrevivência.
[06al e [07]) mostram uma divisão mais ou menos estável entre Para além das línguas oficiais há, em Portugal, comunidades fa-
os dialectos setentrionais (que incluem os dialectos transmonta- lantes de línguas estrangeiras, como o Crioulo Caboverdiano, o
nos, minhotos e beirões), os dialectos centro-meridionais (que in- Romeno ou o Ucraniano.
cluem os dialectos do Centro e do Sul) e os dialectos insulares Por último, a distribuição geográfica das comunidades falan-
(dos Acores e da Madeira)2. Sabe-se, no entanto, que a generali- tes do Português assegura a presença desta língua na Europa (Por-
tugal), em África (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique

2 Há registos sonoros dos dialectos portugueses em www.instituto-

camoes.pt/cvc/hlp/geografia/mapa06.html 3 Sobre este assunto pode consultar-se mirandes.no.sapo.pt


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o ESSENCIAL SOBRE LlNGU{STlCA • 27

e São Tomé e Príncipe), na América do Sul (Brasil) e na Ásia (Timor A situação do Português é, pois, complexa e merecedora de
Lorosae e, residualmente, Macau). O reconhecimento do Portu- atenção linguística e política. No conjunto das línguas do mundo,
guês como língua de trabalho em organizações internacionais, o Português é uma das mais faladas: embora a ordenação das
como a União Europeia, o Mercosul ou a Organização de Unidade línguas varie de autor para autor, em função dos dados considera-
Africana, vem desta disseminação pelos diversos continentes. A dos e das fontes utilizadas, a graduação mostra com clareza que
comunidade internacional falante de Português já encontrou, o Português ocupa uma das posições de topo. Vejamos o seguinte
mesmo, uma instituição sua representante, a Comunidade dos exempl04:
Países de Língua Portuguesa. A esta diversidade geográfica cor- 1. Chinês, Mandarim 885,000,000
responde uma esperável diversidade linguística. 2. Espanhol 332,000,000
3. Inglês 322,000,000
4. Bengali 189,000,000
5. Hindi/Urdu 182,000,000
Os crioulos de base portuguesa
6. Português 170,000,000
A propósito da diversidade do Português não pode deixar de 7. Russo 170,000,000
referir-se o papel desta língua na formação de um grande número 8. Japonês 125,000,000
de crioulos:
9. Alemão 98,000,000
«Os crioulos são línguas natUrais, de formação rápida, criadas pela
necessidade de expressão e comunicaçãoplena entre indivíduosin- 10. Chinês, Wu 77,175,000
seridos em comunidades multilingues relativamente estáveis. Cha-
Esta descrição do 'valor' do Português numa hierarquização
mam-se de base portuguesa os crioulos cujo léxico é, na sua maioria,
de origem portuguesa. No entanto; do ponto de vista gramatical, os das línguas do mundo pode induzir no erro de que há línguas
crioulos são línguas diferenciadas e autónomas. I...) melhores ou mais importantes do que outras. Não é esse o senti-
Em África formaram-se os Crioulos da Alta Guiné (em Cabo Ver- do que deve ser dado ao que acaba de ser dito: não é por ser
de, Guiné-Bissau e Casamansa) e os do Golfo da Guiné (em São falada por mais pessoas, em mais países ou em mais instituições
Tomé, Príncipe ~ Ano Bom). Classificam-se como Indo-port\.lgueses internacionais que uma língua ganha maior valor intrínseco. O que
os crioulos da India (de Diu, Damão, Bombaim, Korlai, Quilom, essas medidas asseguram é a vitalidade da língua e alguma ga-
Cananor, Tellicherry, Cochim é Vaipim e da Costa de Coromandel e
rantia da sua preservação, com o que isso pode significar de van-
de ~engala) e os crioulos do Sri-Lanka, anti~()Ceilão (Trincomalee e
Battlcaloa, Mannar e zona de Puttallam). NaAsia surgiram ainda criou- tagem para as comunidades que a falam. Do ponto de vista
los de base portuguesa na Malásia (Malaca, Kuala Lumpur e linguístico, o número de falantes de uma língua ou o prestígio
Singapura)' e em algumas ilhas da Indonésia (Java, Flores,remate, internacional que ela possa ter são critérios de comparação abso-
Ambom, Macassar e Timor) conhÇlcidos soba designação de Malaio- lutamente vazios de significado.
portugueses. Os criOlJlos Sino~portugueses S~qOS de Macau eHong- A presunção de que há línguas melhores ou mais importantes
-Kong. Na América encontramos ainda um crioulo que se poderá con-
do que outras radica integralmente em raciocínios preconceituosos,
siderar de base ibérica, já que o português partilha com o castelhano
semelhantes, aliás, aos que tomam a norma de uma língua como
a origem de uma grande parte do léxico (o Papiamento de Curaçau,
Aruba e Bonaire, nas Antilhas) e um outro brioulohO SlJriname, o um dialecto mais 'correcto', 'respeitável' ou 'sofisticado' do que
Saramacano, que, sendo de base inglesa, manifesta no seu léxico
uma forte influência portuguesa.)
4 Dados do Ethnologue Survey (1999), disponfveis em web.archive.orgl
Dulce Pereira [06 b]
web/19990422030645/www.sil.org/ethnologueltop100.html
28 • MARIA HELENA MIRA MATEUS I ALlNA VILLALVA

outros ou aos que consideram que os crioulos não são línguas ou DE ONDE VEM A REFLEXÃO
são línguas 'deficientes', ou ainda àqueles que afirmam que a SOBRE A LINGUAGEM E AS LíNGUAS?
gramática de uma dada língua é mais complexa ou difícil do que
a de outra. Não existe qualquer fundamento linguístico para ne-
nhum destes raciocínios - trata-se de manifestações de uma ideo-
logia que reconhece aos detentores do poder direitos que não
reconhece aos restantes indivíduos e que defende que o acesso
ao poder passa pela imitação dos poderosos.

As notícias conhecidas sobre a origem das línguas humanas


situam-nos entre 100 000 e 20 000 a. C. Sabe-se que o tracto
vocal evoluiu de uma forma não-humana, de modo a permitir o
estabelecimento de um sistema de comunicação rápido e eficaz,
ainda que à custa de uma perda de proficiência no sistema
respiratório e na deglutição. Também se sabe que o tracto vocal
de um Neandertal é semelhante ao de uma criança recém-nasci-
da nossa contemporânea, o que permite pôr a hipótese de que a
sua acuidade linguística seria idêntica. A origem das reflexões
sobre as línguas tem, naturalmente, de ser posterior. O que se
segue procura dar conta dos pontos de viragem na história deste
domínio do conhecimento.

A INVENÇÃO DA ESCRITA

Povos como os egípcios ou os sumérios, que inventaram for-


mas de escrita numa época longínqua situada entre o IV e o II mi-
lénios a. C" tiveram necessariamente que tomar consciência da
estrutura da sua língua para a escrever. A invenção da escrita teria
que levar a uma reflexão sobre a natureza da língua, visto tratar-
se de uma técnica que deveria dar conta dos elementos da língua
falada separando, pelo menos, as frases umas das outras. Tanto
os egípcios quanto os sumérios escreviam já frases constituídas
por uma sucessão de símbolos que correspondiam às palavras.
ONDE COMEÇA A LINGuíSTICA?

Pode dizer-se que a especulação acerca da origem das línguas


é quase infrutífera: não há registos e não há como contornar a
efemeridade da produção linguística. Os enunciados vivem enquan-
to são produzidos e recebidos, pelo que deles mais não pode res-
tar do que a memória nos falantes envolvidos na situação de
enunciação. Saber se a capacidade de linguagem nasceu com a
espécie humana, ou se o desenvolvimento do homo loquens (ex-
pressão latina usada para referir a espécie humana dotada de
capacidade de linguagem) é posterior, e se todas as línguas têm
origem num único sistema linguístico ou se a diversidade é um
dado de partida, são desígnios tão (in)alcançáveis, para já, quanto
o do conhecimento da origem e evolução da própria humanidade.
A dificuldade de encontrar uma teoria satisfatoriamente ex-
plicativa acerca da origem de todas as línguas levou a Société de
Linguistique de Paris a aprovar, em 1866, uma moção proibindo
qualquer referência à origem da linguagem nas suas reuniões. Esta
proibição não fez, contudo, desaparecer o interesse pela relação
histórica e genealógica entre as línguas. Foi, aliás, esse interesse
que motivou a enorme aceitação com que foi recebida uma con-
ferência sobre o Sânscrito, apresentada por William Jones, um
estudioso de línguas orientais, na Sociedade Asiática de Bengala,
em 1786. Nessa conferência, Jones afirmou que o Sânscrito pos-
suía uma estrutura maravilhosa, mais perfeita do que o Grego e
mais abundante do que o Latim, mas que, simultaneamente, evi-
denciava um estreito parentesco não só com essas duas línguas
mas também com o Céltico, o Gótico e o antigo Persa. A existên-
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cia de um tal parentesco poderia vir a mostrar que todas deriva- vivo que nasce, cresce e morre aproximou o seu estudo das hipó-
vam de uma fonte comum que talvez já não existisse, sendo por- teses formuladas por Darwin sobre a origem das espécies e a sua
tanto necessário proceder a uma comparação do Sânscrito com evolução por meio de uma selecção natural. No entanto, não foi
línguas europeias, para que se pudesse ir mais longe no conheci- por causa deste enfo-
mento da sua origem e das suas características gramaticais. Se que histórico que
esse parentesco viesse a ser provado, então a língua falada na essa época foi enten- A palavra 'linguística'
índia antiga e as línguas que estavam na base das línguas euro- dida como a do nas-
Cabe aqui abrir um parêntese sobre a utili-
peias actuais teriam tido uma 'mãe' comum. A hipótese da existên- cimento da linguística
zação do termo linguística, já que alguma re-
cia dessa protolíngua desconhecida veio a ser aceite, tratando-se como ciência. Foi sim lação existe entre o seu uso e. a consideração
de uma recriação a partir dos aspectos comuns que era possível em consequência da da linguística como um domínio científico.
detectar entre as suas 'filhas' (as línguas antigas da índia e da descrição sistemáti- 'Sprachwissenschaft', 'Iinguistics', 'Iinguistique'
Europa), ou seja, entre as línguas a que se podia ter acesso, fos- ca, rigorosa e compa- e 'linguística' são termos de línguas diferentes
rada das unidades (Alemão, Inglês, Francês e Português, respec-
se directo, através de documentos escritos, ou indirecto, anali-
fonéticas e morfoló- tivamente) que não começaram a ser usados si-
sando as línguas contemporâneas. Essa protolíngua passou a ser multaneamente. Com os linguistas alemães, o
denominada Indo-europeu. gicas das línguas em
termo Sprachwissenschaft surgiu a partir da se-
Iniciou-se, então, a grande empresa dos linguistas da época análise. Não se tra- gunda metade do século XIX. O uso dos termos
que, seguindo o interesse contemporâneo pela descoberta das tava já de estudar as- equivalentes nas outras línguas é bem posterior.
origens do pensamento e da religião, o estenderam ao estudo das pectos históricos Vale como curiosidade referir que, até há bem
línguas, tomando em mãos o trabalho de estabelecer sistemati- ou filosóficos atra- ~ouco tempo, a palavra inglesa 'Iinguist' signi-
vés das línguas, mas, ficava, sobretudo, 'aquele que sabe línguas'.
camente a comparação entre elas. Dos estudiosos comparatistas
como dizia Franz A România (designação que engloba o conjun-
cujas obras ainda hoje são merecedoras de atenção, destacam- to dos parses românicos) também foi muito
-se Rasmus Rask (1787-1832), filólogo dinamarquês, e Franz Bopp Bopp [05], as línguas
renitente na substituição da denominação tra-
(1791-1867), filólogo alemão, que estabeleceram princípios e eram estudadas por si diCional de filologia (que estuda textos escritos) J~
métodos para o estudo comparado das línguas a partir da análise mesmas, como objec- pela de 'linguística' quando se tratava do estu- ,I
filológica de textos. A estes nomes deve acrescentar-se o de to e não como meio do das línguas. Note-se, por exemplo, que nos
Wilhelm von Humboldt (1767-1835), linguista e político alemão de conhecimento. anos 50 do século XX as disciplinas que trata-
Este é o momen- vam de língua na Faculdade de Letras de lis-
que se interessou pela relação entre o homem e a linguagem (<<a
to em que se consi- boa - mesmo quando já se falava do trabalho
língua é o órgão que forma o pensamento») e associou a estas de Saussure - se chamavam 'Filologia Portugue-
reflexões o conceito de que a superioridade de uma língua estaria dera que a linguística sa' e 'Gramática Comparativa'.
relacionada com a superioridade do povo que a falava. se constitui como um
Assim, o final do século XVIII encontrou uma forma de con- domínio do conheci-
tornar o problema do desconhecimento da origem das línguas, pro- me~to. A. marca visível aparece nos trabalhos de toda uma plêiade
pondo que o caminho fosse percorrido em retrocesso, com base de investigadores alemães e nórdicos, maioritariamente redigidos
na observação directa dos dados linguísticos e numa rigorosa e~ Ale~ão, que fixaram a relação entre as línguas indo-europeias,
metodologia de trabalho. A pouco e pouco, a análise comparada eVidenCiando as correspondências fonéticas e morfológicas
das línguas foi abrindo caminho para o estabelecimento da sua detectadas na análise das línguas escandinavas e germânicas,
genealogia, em sintonia, aliás, com os métodos científicos seus do Grego e do Latim, do Lituano, do Arménio, do Sânscrito e do
contemporâneos: o entendimento da língua como um organismo Iraniano.

I~
42 • MARIA HELENA MIRA MATEUS/ALlNA VILLALVA o ESSENCIAL SOBRE LINGuíSTICA • 43

Importa agora sublinhar não tinham sido estudados


A Língua portuguesa A Esquisse de Leite de Vaconcelos
duas importantes orienta- sistematicamente.
A Série Memória da Língua da Bi- ções que se manifestaram no A orientação que toma- A Esquisse foi publicada em
blioteca Nacional Digital disponibiliza estudo das línguas durante a ram os estudos das línguas 1901. Em 1987, o Centro de linguís-
uma reprodução digitalizada da 1." segunda metade do século tica da Universidade de Lisboa patro-
elaborados pelos sucessores
edição de A Língua Portuguesa, em cinou uma reimpressão da 2." edição,
XIX. A primeira resulta de um dos linguistas da primeira
purl.pt/141 e uma outra da 2." edição, que inclui aditamentos e correcções
de 1887, emendada e aumentada crescente interesse pela des- metade do século XIX foi do autor. A Série Memória da Língua
pelo autor, em purl.pt/30. crição das línguas vivas, fa- contestada pela geração da Biblioteca Nacional Digital dispo-
ladas pelas populações seguinte, a geração dos neo- nibiliza uma reprodução digitalizada
contemporâneas. É neste gramáticos (uma tradução da 2." edição em purl.pt/160.
quadro que Adolfo Coelho publica A Lfngua Portuguesa: Fonologia, desajeitada do termo original
Etimologia, Morfologia e Sintaxe, sendo a data da sua publicação alemão - Junggrammatiker -
- 1868 - considerada por Leite de Vasconcelos (médico de for- que significava 'jovens gramáticos'), cujas perspectivas se desen-
mação de base, mas notável como etnólogo, arqueólogo e filólogo) volveram durante o final do século XIX e a primeira metade do
o «limite a quo da filologia científica portuguesa»7. século XX. Aceitando um ponto de vista eminentemente histó-
A segunda orientação dominante está relacionada com o de- rico, os neogramáticos introduziram a hipótese da existência de
senvolvimento da fonética. Assente em métodos experimentais, leis fonéticas de carácter absoluto, como as leis de Grimm, que
beneficiou do progresso da física e da anatomia que permitiu a estabeleceram correspondências fonéticas a partir da evolução de
construção de instrumentos adequados à análise do chamado palavras cognatas em línguas irmãs. Por exemplo: as palavras
contínuo sonoro e dos movimentos articulatórios ligados à pro- começadas por [f], no Português, correspondem com muita fre-
dução dos sons da fala. Em simultâneo, com o progresso dos quência a palavras começadas por uma consoante aspirada, no
estudos fonéticos, o estudo histórico ou diacrónico, que relacio- Castelhano: farinha / harina, filho / hijo). Estas leis eram apresen-
nava estados de língua separados no tempo, era substituído por tadas como universais, ou seja, aplicar-se-iam cegamente sobre
uma abordagem sincrónica, que prestava atenção aos diversos os sons e explicariam as mudanças linguísticas de uma forma idên-
fenómenos linguísticos que caracterizam um único momento na tica para todas as línguas. A atestação de pares de palavras como
existência de uma língua. É este o contexto que justifica que, na fogo / fuego veio a mostrar que a realidade é um pouco mais com-
primeira metade do século XX, os estudos de dialectologia e de plexa, dado que, neste caso, a evolução fonética não gerou o re-
geografia linguística passassem a primeiro plano na atenção dada sultado previsto. Apesar de objecções deste tipo, esta foi uma
pelos linguistas à língua falada. Este interesse foi suscitado pelo época em que floresceram as gramáticas históricas das línguas
trabalho de Jules Gilliéron, dialectólogo de origem suíça que, na europeias. As seguintes obras merecem especial relevo, pela in-
última década do século XIX, preparou o Atlas Linguistique de la dubitável importância que têm para o conhecimento da história
France, publicado entre 1902 e 1923. Em Portugal, a Esquisse do Português: a Sintaxe His-
d'une Dialectologie Portugaise, de Leite de Vasconcelos, deu ,~._--------_. tórica Portuguesa de Epifânio
a conhecer as particularidades dos dialectos portugueses que ainda A Série Memória da Língua da da Silva Dias foi publicada em

I
Biblioteca Nacional Digital disponi- 191 8 e o Compêndio de Gra-
biliza uma reprodução digitalizada da mática Histórica Portuguesa
1." edição da Sintaxe Histórica em
7 A expressão latina a quo significa 'data a partir da qual se começa de José Joaquim Nunes foi
purl.pt/190.
a contar um prazo'. publicado em 1919.
o ESSENCIAL SOBRE LlNGufSTlCA • 45
44 • MARIA HELENA MIRA MA TEUS / ALlNA VILLAL VA

~
\ tas norte-americanos usaram para explicar o funcionamento da
A linguística portuguesa fora de portugal \ linguagem.
O interesse pelo estudo do Português não tem fronteiras, ~omo ber;' I A estas duas vertentes do estruturalismo estão ligados os
o demonstra o trabalho de Jules Comu, autor da primeira gramatica hlsto- i nomes de dois grandes linguistas: Ferdinand de Saussure (1857-
rica do Português, publicada em 1888, em Alemão, com o título Grammatik I -191~), na Europa [17], e Leonard Bloomfield (1887-1949), na
der portugiesischen Sprache; ou o livro Altportugiesisches: Elementarb~ch, \ América do Norte [04]. Para a história da linguística um dos mais
de Joseph Hüber, publicado em 1933 e traduzido em 1986 com o titulo : relevantes movimentos da época foi a criação, em 1926, do Cír-
Gramática do Português Antigo; e ainda From Latm to Portugues e, que culo Linguístico de Praga, que estabeleceu uma coordenacão nos
estudos da fonética e da fonologia das línguas e represent~u uma
Edwin Williams apresentou em 1938 e que só em 1975 fOI traduzida com
o título Do Latim ao Português. . I
Papel particularmente relevante neste domínio é o que cabe ao ~rasli, inovação nos métodos de análise estruturais. Os linguistas mais
I com linguistas como Said Ali. autor de diversos textos de ref~rencla. notáveis deste grupo foram o polaco Baudouin de Courtenay
A sua Gramática Histórica [da Língua Portuguêsa]. de 1931 (que reune dOIs (1845-1929) e os russos Nicolai Trubetzkoi (1890-19381 e Roman
volumes anteriormente publicados - a Lexeolog ia do Português H~stórico, Jakobson (1896-1982).
de 1921, e a Formação de Palavras e Sintaxe do Português HIstor~co, de Para todos estes linguistas, 'estrutura' significa um conjunto
1923). foi, à data da sua publicação, um trabalho inovador e mantem-se, de elementos que constituem um sistema pelas relações que esta-
até hoje, como uma referência incontornável. belecem entre si. Assim, por exemplo, afirmar que as línguas têm
uma estrutura fonológica significa que se servem de um conjunto
de sons que funcionam nas palavras por contraste e na relacão
de uns com os outros. O conceito de estrutura é uma prese~ça
constante nos trabalhos dos linguistas da época, motivando a
o SÉCULO XX criação de métodos e técnicas de descrição e análise próprios.
Os dados em que assentam as descrições das línguas constituem
Descobertas as relações genéticas entre as línguas e algumas
o corpus que, na perspectiva estrutural, deve ser recolhido junto
das bases fonéticas da mudança linguística, chega-se ao século xx
dos falantes para atestar as particularidades e os elementos que
e ao início da pesquisa que olha para as línguas na sua especifici-
pertencem, na realidade, à língua em estudo. Os bons resultados
dade, como expressão de uma faculdade humana. Por reacção
da investigação realizada no que diz respeito à descrição das lín-
ao positivismo dos neogramáticos, e admitindo uma dimensão psi-
guas, com metodologias de trabalho claras e sistemáticas, e que
cológica para além da dimensão mecânica anteriormente reconhe-
se tornaram visíveis no efectivo progresso do conhecimento lin-
cida, surgiu na Europa, durante a primeira metade deste século,
gUí~tico, co.nvid~ram outras ciências humanas, como a antropo-
a corrente que iria ocupar durante largos anos o lugar mais im-
logia, a sociologia e a arqueologia, a adoptar os instrumentos de
portante no estudo da ciência da linguagem e das demais ciên-
análise que a linguística desenvolveu.
cias humanas. Trata-se do estruturalismo, corrente de pensamento
. E~ Portugal, a perspectiva estruturalista está presente, pela
que se baseava na importância que a 'forma' vinha assumindo na
pr.lmelra vez, na obra de Jorge de Morais Barbosa (cf. [03]), pu-
recém-criada psicologia, e na perspectiva de que a linguagem era
bhcad~ em 1965. No Brasil, também nos anos 60, distinguiu-se
uma actividade com uma estrutura especial, ou seja, uma activi-
Joaquim Mattoso da Câmara Jr., que, por oposicão ao meca-
dade que funcionava em sistema. Enquanto, na Europa, essa ver-
nicismo reinante na época na linguística norte-ame~icana tomou
então como referência a visão mentalista desenvolvida p~r Sapir
tente das teorias psicológicas influenciou largamente a linguística,
nos Estados Unidos da América foi a teoria do comportamento,
(cf.[16]).
que relacionava estímulo e resposta, o instrumento que os linguis-
46 • MARIA HELENA MIRA MATEUS I ALlNA VILLALVA o ESSENCIAL SOBRE LINGuíSTICA • 47

A LINGuíSTICA FORMAL
Esta é uma representação formal extremamente elementar,
A linguística foi precursora na adopção da abordagem estru- mas que cobre todas as frases que integrem apenas um sintag-
turalista, mas também recorreu a outros domínios do conhecimen- ma nominal e um sintagma verbal, como é o caso de:
to, como a lógica, a estatística e a computação, para encontrar O irmão do meu cunhado tem um carro descapotável.
instrumentos de análise.
[F [o irmão do meu cunhado]sN [tem um carro descapotável]sv IF
Foi durante o século XIX e o início do século XX que a lógica
abandonou certos fundamentos que remontavam a Aristóteles (por
Ainda que seja equivalente à anterior, a representação formal
exemplo, a noção filosófica abstracta de 'forma' por oposição à
das frases que mais se vulgarizou foi a dos chamados indicado-
de 'matéria') e, tomando a matemática como modelo, construiu
res sintagmáticos, mais conhecidos como árvores. Os parênte-
uma linguagem constituída por símbolos e regras para a expres-
ses são substituídos por ramos que nascem no nó que domina e
são do conteúdo do pensamento lógico.
terminam no(s) nó(s) dominado(s). Os ramos que se unem na base,
Na interacção da matemática com a lógica foram adoptados
formando um triângulo, indicam que o constituinte que dominam
instrumentos teóricos como os sistemas formais ou a lógica de pre-
não está plenamente analisado:
dicados, que influenciaram profundamente os estudos linguísticos
a partir de meados do século XX. OS linguistas passaram, desde
F
então, a recorrer a representações formais das unidades e dos
processos linguísticos. De uma forma muito simplificada, pode di-
SN SV
zer-se que os elementos concretos são substituídos por símbolos
que permitem representar, de um modo abstracto, as relações entre
os elementos dos sistemas linguísticos. A utilização destes instru-
~
o irmão do meu cunhado
~
tem um carro descapotável
mentos por linguistas norte-americanos desenvolveu, por exemplo,
a análise das frases em constituintes imediatos, ou seja, em unida-
des menores do que a frase, como o sintagma nominal e o sintag- A vantagem de um modelo de análise linguística que utilize
ma verbal (representados respectivamente por SN e SVI. e a análise este tipo de representação face aos modelos não-formalizados
dos sintagmas em constituintes menores, até chegar às palavras. reside no acréscimo de capacidade explicativa e na melhoria da
Quando se representa a unidade 'frase' por F, a unidade que inclui classificação das estruturas complexas. A linguística é um domí-
o nome e os seus especificadores e modificadores por SN e o verbo nio em que o objecto do conhecimento é descrito por si próprio:
e seus complementos por SV, podem apresentar-se as relações entre é a língua que permite descrever a língua. Sendo a ambiguidade8
estas três unidades através de uma representação, que faz uso
de parênteses rectos para mostrar os limites de cada constituinte
e as suas relações hierárquicas. Por exemplo, em: [F [SNI [SVIl F: 8 A ambiguidade é uma propriedade das línguas naturais. Neste sen-

tido, ambiguidade não é sinónimo de imprecisão. O que esta propriedade


• [SNI e [SVI são unidades do mesmo nível, linearmente dis- quer dizer é que determinadas unidades linguísticas permitem mais do que
uma interpretação. É o que sucede numa frase como o João trouxe um
postas pela ordem apresentada: [SNI precede [SVI e [SVI é
livro do colégio, em que do colégio tanto pode ser '0 local de onde o João
precedido por [SNI; trouxe o livro', como '0 possuidor do livro'. Por vezes, o contexto permite
• [FI domina [SNI e [SVI ou, inversamente, [SNI e [SVI são seleccionar a interpretação adequada, mas há circunstâncias em que tal
dominados por [FI. não é possível.
48 • MARIA HELENA MIRA MA TEUS / ALlNA VILLAL VA

uma das propriedades das línguas naturais, só a utilização de um SERÁ A LINGuíSTICA UMA CIÊNCIA?
sistema formal permite descrever os fenómenos linguísticos de
forma inequfvoca.

As árvores do conhecimento
O uso da metáfora da árvore na representação das estrutura~ linguís-
ticas não é original. No domínio dos estudos linguísticos, reglsta-~e a
árvore da gramática, uma elegante iluminura incluída nas Grammatlces
Rudimenta, um manual (incompleto) de
ensino de verbos, datado de 1538, que r.........- .. ---~ •• ií
João de Barros dedicou à Infanta D. Ma- !
ria. A primeira utilização da árvore como f Esta dúvida sobre o carácter científico da linguística é comum
instrumento para a representação do f a todas as chamadas ciências sociais ou humanas. Tal como em

I.
conhecim~nto é, contud?,.bastante mais I. relação à psicologia, à sociologia ou à antropologia, também no
antiga: a arvore de PortlrlO encontra-se I" âmbito dos estudos da linguagem convivem diversas formas de
na tradução para Latim que este fidlósdOfO ~.t'f~
.l' conhecimento, que vão desde as abordagens filosóficas e históri-
fenício (século III a. C.) fez do trata o as ~, , .,,1
categorias de Aristóteles [141. Na tradição : . . ~...... cas às construções teóricas e formalizadas, passando pelas des-
generativa, as árvores (invertidas) mos- I ~ crições pré-científicas e pelas aplicações em domfnios de grande
tram a hierarquia dos constitUintes: os ra- I diversidade, da sociologia à informática, às neurociências ou ao
mos indicam relações de domínio entre ensino. Esta multiplicidade de tratamentos decorre da própria
nós (os pontos onde pode haver ramifi- natureza da linguagem, que é simultaneamente veículo de inte-
cação), que são identificados por etique- gração social (a Ifngua é uma das formas de comunicação com
tas categoriais. os outros) e factor constituinte da construção do indivfduo: em
boa medida, é através da Ifngua que as pessoas vão integrando a
experiência da sua vivência. Na verdade, a relação da actividade
lingufstica com os factos históricos e sociais, com o universo
psicológico e com a criação artfstica, coloca o estudo da lingua-
gem e das Ifnguas no centro de uma constelação formada por
múltiplas interacções com outras formas de comportamento hu-
mano. Além disso, como já foi dito, a especificidade da lingua-
gem humana leva a uma coincidência entre o objecto de análise e
o meio com que se explicita e produz essa análise: é com pala-
vras que se estudam as palavras. Estes aspectos particulares do
estudo da linguagem permitem, estimulam e valorizam interpre-
tações e análises subjectivas e não-cientfficas.
Por todas estas razões tem sido diffcil o caminho de quem
defende que a lingufstica é uma ciência. Para justificar esta afir-
50 • MARIA HELENA MIRA MATEUS / ALlNA VILLALVA o ESSENCIAL SOBRE LlNGU{STlCA • 51

mação é, pois, necessário reflectir sobre as características essen- outros domínios que procedem de modo idêntico - a linguística
ciais do que se considera ser uma ciência e verificar se essas teórica é um deles.
características também existem neste domínio do saber.

A LINGuíSTICA TEÓRICA
o CONCEITO DE CIÊNCIA
Ainda que os anteriores paradigmas da análise linguística,
Pode definir-se ciência como um conhecimento sistematizado como, por exemplo, o do estruturalismo, constituam quadros teó-
do que vulgarmente se denomina 'o real'. Para que seja considerada ricos coerentes, é no início da segunda metade do século xx
científica, a forma de produzir esse conhecimento deve obedecer que a linguística teórica conhece um desenvolvimento de maior
a um conjunto de requisitos que permitam, em idênticas circuns- relevo. Trata-se da Teoria Generativa, indissociavelmente
tâncias, a sua verificação. Esses requisitos incluem, entre outros: ligada à publicação, em 1957, do livro Aspects of the Theory of
• uma clara delimitação do objecto de estudo: não é possível Syntax, de Noam Chomsky.
estudar tudo ao mesmo tempo, é preciso garantir que o estu- A relevância da Teoria ~'\I

Generativa é tributária de Chomsky em Português I


do seja exequível;
um conjunto de factores. 1965 Aspects of the Theory of Syntax I,!

• a escolha de uma metodologia de trabalho: é necessário defi-


Antes de mais, esta propos- 1975 Aspectos da Teoria da Sintaxe
nir como se constitui um objecto de estudo e como se vai Coimbra: Arménio Amado
ta teórica retoma e desen-
estudar o que se pretende conhecer;
volve a hipótese da 1975 Reflections on Language
• uma descrição rigorosa dos dados, que permita uma repre- existência de uma capacida- 1971 Reflexões sobre a Linguagem
sentação formalizada das estruturas, das relações e das fun- de específica do homem, Lisboa: Edições 70
ções das unidades que constituem o objecto de estudo, de denominada faculdade da 1986 Knowledge of Language. Its
modo a garantir que os mesmos dados possam voltar a ser linguagem, que tem sido Nature, Origin and Use
analisados; entendida como um dos fac- 1994 O Conhecimento da Língua, sua
• a formulação de hipóteses que dêem a conhecer a porção de tores principais, senão o Natureza, Origem e Uso
'real' analisada, sabendo-se que as hipóteses validadas por mais importante, na distin- Lisboa: Caminho
um dado estudo científico poderão vir a ser rejeitadas pelas ção entre o homem e os 1995 The Minimalist Program
hipóteses colocadas por um estudo posterior e que essa re- animais. 1999 O Programa Minimalista
jeição não deve ser entendida como um retrocesso, mas sim Na sequência desta hi- Lisboa: Caminho
como um progresso no desenvolvimento do conhecimento pótese, a Teoria Generativa
científico. defende que todas as línguas do mundo compreendem um mes-
mo conjunto de princípios, a que dá o nome de Gramática Uni-
Resta dizer que todos estes requisitos têm de ser cumpridos versal (GU). Por outras palavras, as línguas 'escolhem' o modo
no quadro de uma dada escolha teórica, que explicite um conjun- de aplicação dos princípios da Gramática Universal. E defende
to de hipóteses coerentemente formuladas que permitam descre- também que a diversidade linguística resulta da selecção de um
ver e analisar um dado domínio do conhecimento. dos possíveis modos de aplicação desses princípios, ou seja, da
Estas são características das áreas habitualmente consideradas parametrização dos princípios da GU. Este desenvolvimento da
'científicas', como a física, a biologia ou a matemática, mas há Teoria Generativa é chamado Teoria dos Princípios e Parâmetros.

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