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CaPítulo II

LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

NEM TUDO É LINGUAGEM

Se a linguística é o estudo científico da ünguagem' é


-todavia,
necàssário, que nos entendamos sobre aquilo a
como se va1 ver'
que se chama ünguagem' O problema'.
iá, e académico. A resposta que se der é' com efeito'
determinante de o-" otili'ação correcta
da linguística
uma longa, ttilit::,1':.
;;i;;-;;;t"s ciências human"s' de expnmlÍ as
,Oti"" chama linguagem a «qualquer meio
iã;;;;, (Larousse do"xx"' «um meio qualquer de
'ie"t";;(Jespersen, Encyclopaedi,a
cornunicação entre os seÍes vivos» d".
que pode :"Tt
britannica); «totlo o sistema de signos
Vocabulaire technique et
meio de comunicação» (Laland'e '
sistema de signos
u;r;qu, d'e ta phitoso\hie)1926); «qualquer
entre os indivíduos»
aptos a servir a" ,""io de comunicação
la terrnin'otogie lingui'stique)'-A U:-
fturoor"^o , Lexique d'e
iiriçao saussuriui'a (1916) nà -. se desvia senslvelmcnte
um sistema
à"ri" puarao definitório: «lma língua' cliz' [é]distintas»'
de sigix,s distitrtos, correspondenclo
a ideias
Decorre cleste tipo de ãefinição' como nota Vetrdryês'
que «todos o, ó,gàiot podem sewir para criar unra lin-
INTRODUÇÃO À LII\iGUISTICA
LINGUAGEM E COMT]NICAÇÃO

guagem». E Giulio Bertoni (Encicl,o,itedia Treccani, lg}g) NEM TADO É COMUNICAÇÃO


deduz daí, legltimamente, que «a mímica é ,rna linguagem
[...] o riso é uma ünguagem [...] * lágrimas são um" lin- Há um quarto de seculo que a ünguística moclerurr
guagem». Nesta base, a pintura, a escultura, a música propõe uma série de critérios susceptíveis de abordar t,
tomam-se igualmente linguagens; o cinema também; todos de começar talvez a resolver correctamente estes problemas.
os espectáculos, uma exibição de box, um ofício religioso, A primeira distinção fundamental consiste em separar coul
rtm jogo de futebol, o código da estrada, a sinalização nitidez os fenómenos que implicam uma intenção de co_
marÍtima, o canto das aves, os gritos dos macacos e dos urunicação (mesmo que nem sempre seja muito cómorio
veados, a dansa das abelhas, o roçar d.e antenas das for- pÍovar cientlficamente a existência de uma intenção), da_
migas. Nunr caso-limite, o uso de uma camisola vermelha, queles que a não implicanr. Um céu d.e trovoad.a não
a existência de uma sala t1e jantar escandinava num apaÍ_ tem qualquer intenção em conunicar com o rneteorolo_
tamento ou de um peru na refeição de Natal, as regras gista, os 39o de febre não se produziram intencionalmente
do casamento numa dada civiüzação, tu«lo se torna signo, para informar o médico, etc. (neste sentido, Epiruco in-
e tudo é linguagern. corria em erÍo ao dizer que «o sangue é o signo aà teriaa»;.
Mas então porque é que os tratados de linguística não A forma das nuvens, a temperatura e o sangue são neste
estudam cientlficamente todas essas pretensas linguagens? :í
caso lndíclos (rdactos imediatamente perceptíveis que nos
Porque a tradição filosófica, em geral, postula (ao mesmo dão a conhecer algo sobre outros factos, que o não são»
fr
tempo) que as línguas humanas constituem uma linguagem diz Prieto). A interpretação dos indícios
totalmente diferente de todas as outras -. que é o objecto
demonstrar em que é que consiste a sua - mas sem nunca
especificidade.
de todas as ciências de observação é provàvelmente uma
operação totahnente Ciferente da- leitura das mensagens
Com estas bases, de há dois séculos a esta paúe, nunca os construídas com signos (nras isso é aos epistemólogos que
filósofos foram capazes de dizer, porexemplo, o que distin_ cabe dizer).
guia as línguas naturais do homem da comunicação animal, Chamando a atenção para o facto de a função central
na sua função de sistema de comunicação. E Colin Cherry (senão específica) das línguas naturais humanas ser a função
(1957) repete textualmente, a este respeito, Buffon: os de comunicação, a ünguística ensina a todas as ciências
animais não têm linguagem, diz, porque não têm um humauas a nunca postularem que, neste ou naquele dom!
sistema de pensamento organizado (mas, nurn círculo muito nio, há uma intenção de comunicação o provaÍem.
vicioso, afirmamos nós que não têm pensamento porque Para as formigas, para as abelhas, para os conrcs, a prova
estabelecemos que não têm linguagem no sentido humano experimental exigiu longas e minuciosas experiências. para
do termo). os golÍinhos, por exemplo, as c ,ecturas estabelecidas são
ainda. frágeis. O facto de dois golÍinhos, feúados numa
piscina e separados por uma palede em que está encaixaclt>
um hidrofone, não gritarem quando o hidrofone está fe_
chado; igualmente, o facto de os dois animais quase nunca
36 TNTRoDUÇÃo A I.trNcuisrICA LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

gritarem simultâneamente; finalmente o facto de parecer LINGUISTICA OA SEMIOLOGIÁ?


haver nas produções fónicas que emitem sequêncías que
se repetiriam regríarmente constituem, de facto, um in- Supondo que tenhamos mostrado que estes ou aqueles
teressante início de pÍova. A demonstração decisiva seria fenómenos decorrem de uma inteuçáo de comunicação, ou
quando se pudessem 1Ér em correlação estável detelminada5 de simulação de comunicanio (enganadora), nem por isso
sequências fónicas distintivas com situações ou compor- conquistámos o direito a falar de linguagem
tamentos distintos. - olingua-
uma posição habitual paÍa os filósofos, para quem
que é

Mas quando Barthes, pelo facto de eu usar um casaco gem e ,comunicação são sinónimos. Não têm razão, pois
de tweed de cor castanho seco, conclui que estou a Íepre- postulam que o mesmo finr implica os mesmos meios: os
sentar para mim e para os outros a comédia do gentleman- mesmos tipos de unidades G os mesmos tipos de combina-
-fanner anglomaníaco (ou outra coisa qualquer), interpreta ções destas unid.ades entre si; o que seria preciso de-
um indício ou talvez um sintoma como um slnal (rarm monstrar, para cada caso particular-o que com certeza
sinal, diz Prieto, é um facto qrre foi artiÍicialnrente pro- está longe de ser a realidade.
duzido para servir de indício»). O uso deste casaco pode Cada vez que há comunicação, quer dizer, mensagem,
ter, com efeito, as mais diÍerentes motivações: ou poÍque a linguística cstrutural e funcional propõe uma análise
quero andar como toda a gente por puro conforrnismo; segundo a qual os.diferentes tipos de comunicação podem
ou então foi um presente, que não escolhi; ou ainda poÍque ser classificados consoante o tipo de mensagens e das
era o último ou o único casaco com a minha medida que unidades com as quais se constroem estas mensagens.
havia na loja; ou era a minha cor preferida, independente- Cabe à Semlologls descrevê-las uma a uma. Eric Buyssens
mente da rqoda; ou finalmente ainda porque quero andar (1943) propôs as grandes linhas de uma tal classificação
à moda, etc. Barthes certamente detecta indícios preciosos segundo um critério que, ainda hoje, é o mais satisfa-
para constituir urua psicologia social, ou uma psicanálise, tório.
mesmo paÍa uma psicopatologia do vestuário. Mas não
o vemos de maneira nenhuma entregar-se a esses longos l. _.-
Primeiro haveria os melos de comunlcação, a-sis-
inquéritos sociológicos de motivação, por exemplo, que temáticos, quer dizer, para os quais não é possível definir
seriam os únicos que possibilitariam a interpretação desses uni«lades ou Íegras estáveis de construção, de mensagem
indícios, e estabelecer em que medida é que são realmente para mensagenr. Para um anúncio publicitário, por exemplo,
utilizados como sinais ou signos vestimentares. O facto podemos descortinar as regras psicológicas (jogar com a
de thes chamar signos, e de thes aplicar, de fora, conceitos atracção do nu feminino), ou das ÍegÍas estéticas (calcular
ünguísticos não aumenta a vatidade da interpretação. cuidadosamente a repaúição dos volumes e das cores),
ou das regras tipográficas (escolha dos caracteres e dos
espaços, etc.), mas não das unitlades e das regras selnio-
lógicas próprias, reutilizáveis de mensagem para mensagem.
Cada anúncio constitui provàvelmente o seu próprio código,
LINGUAGEM E CO]VIIINICAÇÃO
INTRODUÇÃO À LINGUISTICA

3. sejam siternáticos ou não, os instrumentos


mesmo quando se trata d.e uma série de anúncios sobre - Qucr
da comunicação podem construir mensagens por meio de
o -"r-á produto. O mesmo acontece com a pintura e
possível unidades em que a relação entre signiÍicante e significado
com a esctrltura, na medida, todavia, em que for
é intrínseca. Queremos dizer com isto unidades tais que
estabelecer que um quadro ou una estátrra têm como
haja pelo menos um rutlimr,,to de relação analógica entre
objectivo principal estabelecer uma'comunicação entre
o
de ser aceita a forma do significante e o seu sentido: quando, por exemplo,
.Ji"tu e o púbüco - fase que está tonge 1rcr
unra silhueta de bicicleta significa bicicleta, uma cabeça
todos aqueles que se têm ocupado com o problema' Mesmo
tle cavalo significa talho de carne c1e cavalo, um desenho
no domínio cinematográÍico, em qüe o filne ry 1ÍE?ntza de colher e de garfo cruzados significa restaurante, etc.
longe
como uma espécie de longo discurso, estamos ainda
e segundo A relação pode ser evidente para todos, como no caso da
de ter a cer+eza de ser construído com unidades
bicicteta; ou pode ser cada vez mais convencional, exi-
Íegras cientlficamente comparáveis àquelas que o linguista
gindo uma aprendizagem social: a caveira, que signiÍica
ft "- evidência nas mensagens das línguas naturais'
perigo pâra a criança europeia, pensamo§ que de forma
2. Haveria, a seguir, os sl§teÍnss ' úe comunlcsçlo' espontânea, é a fortna mais frequente dos bombons mexi-
-
seriam todos os meios de comunicação em que as mensagens canos; o preto que parece ser a forma evidente e a coÍ
fossem constituídas por unidades isoláveis' sempre
formal- natural do luto e da morte, é a da virilidade para os cale-
mente idênticas de mensagem paÍa mensâgem'
e em que
dónios; e há muito tempo que a balança deixou de ter
estas unidades estáveis construíssem as mensagens
segundo com a justiça uma relação de transparência, etc' I{á
estáveis'
,"grm de combinação que fossem igualmente nestes cÉrsos uma passagem gradual, com transições talvez
os painéis circulares infinitas. É a este tipo de unidades que norÍnalmente
Pú exemplo, no código da estrada,
significarruma injunçào, os painéis tria:rgulares um perigo' charnamos símbolos (mas como a ünguística e a psicologia
os painéis rectangulai", o-t inÍormaçãq a cor azul
signi- americanas chamam normalmente symbols àquilo a que
fica' uma obrigação ou uma autorização, a coÍ vermelha vamos chamar signos, aquilo a que chamamos símbolos
utla proibição,
-típi* etc. As ünguas naturais são o exemplo designam eles por sírnbolos icónicos oí ícones. A retradução
mais destes sistemas. Cors as cinco unidades: o em francês «1esta terminologia âmericana por parte de
caçod,or:rnata-o-coelho-e-Gc ôío, podemos pelo menos
fabricar investigadores linguísticos mal preparados resultou na in-
doze mensagens diferentes e correctas segundo as
regras trodução destes mesmos termos em francês, sem qualquer
da sintaxe Portuguesa; assim: necessidade).

o caçador mata o coelho e o cão casos, os meios de comunicação cons-


o coelho mata o caçador e o cão
4.
- Noutros
troem mensagens em que a relação entre significante e
o cão mata o caçador e o coelho significado é extrínseca: mensagens cujas unidades cons-
mata o caçador o coelho e o cão titutivas são tais que não há qualquer relação natural
o coelho e o cão, mata o caçadot analógica entre a forma e o sentido. Dizemos então, a
o coelho e o cão, o caçador mata, etc'
INTRODUÇÃO À LINGUiSTICA LINGUAGEM E COMLTNICAÇÃO 4l

partir de Saussure, que o signo é arbitrário; o que quer üa. Corre-se assim o risco de postular que há una intenção
dizer, não que cada locutor o pode empregar ou mesmo de comunicação em casos em que essa intençao esta
inventálo à sua vontade, mas que a relação entre o seu ausente. Também não sabemos se os biólogos não se
significante e o seu significado é puramente (totalmente) arriscam a desorientar-nos e a desorientarem_se a si pró_
contingente e convencional, sem qualquer apelo natural prios quando nos falam do ácido desoxirribonucleico cãmo
analógico de um ou outro. No sinal do código da estrada emissor rle uma «linguagem» que envia «mensagens» ao
que indica urna curya, subsiste ainda um aspecto de sím- citoplasma, mensagens estas que são ordens provenientes
bolo; mas naquele que prescreve uma paÍagem obriga- de um «código» cujas «letras» (ou fonemas?) são quatro
tória, o triângulo com o vértice para baixo é um sinal bases azotadas que servem para a construção de vinte
totalmente arbitrário quanto à forma, tendo em conta o
çalavras» (quer dizer, vinte ácidos aminados) cujas combi_
que significa. O mesmo acontece com a cruz vercle das naçôes produzem «frases» (quer dizer proteínas) que trans_
farmácias, com a bandeira amarela na parte superior do portam a «infotmação» genética. Em vez dos termos ün_
ultinro vagão de unr comboio que assinala um desdobra- guísticos que aqui paÍecem não ser mais que metáforas,
mento, etc. O mesmo se passa com as unidades signifi- graças às quais não raro se diz e acredita que «existe algo
cantes rlas línguas naturais: a prova dq que não há qualquer de escrito no coração da matéria», seria prudente falar,
relação intrínseca, natural e simbólica, entre o animal a apenas, em termos de transmissão (e nem sequer de co-
que chamamos o trx)rco e o conceito ou significarlo corre- municação). As mesmas utilizações metafóricas permitiriam
lativo, e o seu nome cm português, é que noutros sítio-q o também, sem dúüda, com pouco engenho, descrever toda
poÍco se chama maiale, pig, Schwein, Khanzir, choiros,etc. a circulação ferroviária em termos de ünguíst ca estrutuÍal,
sem benefício teórico para a ünguística ou paÍa o funcio-
6. Buyssens distingue poÍ fim os sistemas de comu-
nicação- directos, como a forma oral da linguagem humana
namento dos caminhos de ferro.
poÍ exemplo, dos sistemas substitutlvos que transcodiÍicam
ünicamente as unidades formais dos primeiros num segundo
coMUNtcAçÃO OU COMUNHÃO OU ESTTMULAÇÃO?
sistema de unidades: todos os escritos, o morse, o braille,
o código marítimo dos sinais de braços, a linguagem ges-
tual dos surdos-mudos são (e só) sistemas de comunicação É preciso dizer o mesmo da pintura, da escultura, da
música, e do próprio cinema, ou de todas es formas de espec_
substitutivos.
táculo. Antes de falar da sua linguagem ou de dissertar
sobre o vocabulário de Braque, ou a sintaxe de Rir:rs§_
coMUNrcAçÃO OA TRANSMTSSÃO ? -Korsakof, etc., será bom explorar cuidadosamente a natu_
reza da comunicação que se estabelece há comu_
Concebemos que os linguistas Íeprovem e desaconselhem nicação - se é oqueque
entre o errissor (ou a mensagem, é dife_
o uso imoderado e a friori da. palavra linguagem para rente) e o- receptor, para cada caso. podemos desde já reflec_
descrever fenórrenos, sem una investigação científica pré- tir sobre este simpres probiema: diferentemente dai línguas
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
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de «comunicação» têm sen-


naturais humanas, estes tipos
sempre do criador
tido único, e não adnitem reciprocidade:
responder lrem dialogar
;;;t; ""r;tumiclor, q"" """"n-pode
iguutm"nte bom investigar se hâ
ili; ;;.",t canal' ê"ra e scgundo que regÍâs'
onia"a"r, e quais são, para construir'
um qua«lro' uma está-
estas mensagillls que Jonstituiriam po-
depois
,*", ,*, si.rfo ia, ou unr filme' etc' Apenas (talvez).""tot:-
de conrunicação
cleria exanúnâÍ se os sistentas
de mensagens são comparáveis
lados por estas espécies
aos das línguas ""i"*it humanas'
A relação anunciado-r-
paralela à relação
-anúncio-consumidor será exactamente
locutor-mensagem-ouvinte?
(É mais que alviaos])--9 ::
descobrir' podemos teÍ a ceÍ-
õ; q* entãã cheguemos -a extraordinário e mais
leza de qo" ,*'á, tiÀ a'it'ia'' mais
linguísticas pressupõem'
rico do que as actlais metáforas graphique' de
Em traba1h"t""ãia*it como Sitniotogiepara o desenho
Jacques Bertin
(I," ff'V"' Moutgn' 196?)'
como L'oeware pictu'
técnico em todas ;; ;'; modalidades;
(Paris' Vrin' 1962) de René
role et tes fanctionl"a'7:oppo""ca
de la musiquc
Passeron, pr,t u-fioto"; "* La percebtion artigos
ainda
(Paris, Vrin, 19n$, ã" noU"* F'ã"cas; nos
cinema' podemos aper-
hesitantes de Christian Metz sobre
ceber-nos d" "";;;;idade
e da variedade do funciona-
que aliás lalvez
mento destas formas de comunicação - ou formas
não sejam *'it àã q* formas
de comunhão
-
relação com a rin-
de estimulaça"; iirtl* '"* t"ta'aeira I
I guagem no sentido próprio do termo'
-*-I
l-?iE
L--.,.4
RÉGRAS DE TRANSCRIçÃO
(para a leitura dos capítulos.seguintes)
sáo feitas entre parên-
l. Todas as transcrições fonéticas
tesis rectos: ;;;i: d"* ser nâs transcrições' estes parên-
t't I

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