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jJdsiüDlhíivmttdriaA

Mário A, Perini
P ro fe s s o r da U n iv e rs id a d e Federal de M in a s G e ra is

SMAXE
PORTOUESA

2.^ edição

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n O o n á H fa
BIBLIOTECA PÚBLICA
MUNICIPAL - SBC
8 ... R . n . u .

T7
Direção
Benjamin Abdala Ju n io r
Samira Y oussef C am pedclli
Preparação de texto
-y" Sérgio R oberto Torres
P ^ Coordenação gráfica
René Etiene Ardanuy
Capa
Ar)’ N orm anha

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C-

im p re s s ã o e a c a b a m e n to

FO NE 4 4 7 . OBM

ISBN 85 08 03512 8

1994

T o d o s os d ire ito s re se rva d o s


Editora Ática S.A.
Rua B a rã o de Iguape, 110 — CEP 01507-900
Tel.: PABX 278-9322 — C a ix a P o sta l 8656
End. T e le g rá fic o “ B o m iiv ro ” — Fax: (011) 277-4146
São P aulo (SP)
SUMÁRIO

P refácio____________________________________________________ 5
Lista das abreviaturas u tiliza d a s______________________________ 8
1. Descrição, traços distintivos e p r o to tip o s ____________________ 10
1.1. Gramáticas descritivas 10; 1.2. Dilemas 11; 1.3. Saída 12; 1.4.
O catálogo de estruturas superficiais 15; 1.5. A opção pela super­
fície 17; 1.6. Análise formal 19; 1.7. Problemas da taxonomía 27;
1.7.1. Concepções de “classe” 28; 1.7.2. Traços distintivos 33; 1.8.
“Fatos” em gramática 35; 1.8.1. “Evidência sintática” 35; 1.8.2. Posi­
ção linear na seqüência 37; 1.8.3. Constituintes 38; 1.8.4. Manifes­
tações da relação de “regência” 38; 1.8.5. Substituibilidade 40;
1.8.6. Correspondência 43; 1.8 6.1. Casos de correspondência 45;
18.6.2. Definição de “correspondência” 47; I.8.6.3. Propriedades
formais da relação de correspondência 49; 1.8.6.4. Propriedades
semânticas 51; 1.8.6.5. Problemas 53; 1.8.7. Retomada pronominal
54; 1.8.8. Sumário: Fatos sintáticos e traços distintivos 55; 1.9.
Protótipos 56; 1.10. Noções primitivas e derivadas 63; 1.11. Impor­
tância das definições 66; 1.12. Sumário: Uma descrição da língua 69
2. Funções sintáticas na oração _______________________________ 71
2.1. Funções sintáticas 71; 2.2. O verbo e o núcleo do predicado
72; 2.3. Sujeito 72; 2.3.1. Definição 72; 2.3.2. O critério da concor­
dância verbal 74; 2.3.3. Concordância verbal 75; 2.3 3.1. A concor­
dância como regra 77; 2.3.3.2. A concordância como filtro 79;
2.3.4. O mecanismo da concordância verbal 80; 2.3.4.1. Filtros
82; 2.3.4.2. Outras razões de má formação 85; 2.3.4.3. Filtragem
semântica 86; 2.3.4.4. Dupla análise 89; 2.3.4.5. Vantagens da solu­
ção B 89; 2.3.4.6. Sumário 92; 2.3.4.7. Formas nominais 93; 2.4.
Objeto direto 96; 2.4.1. Não-sujeitos 96; 2.4.2. Traços definitórios
do objeto direto 97; 2.4.2.1. o/a 97; 2.4.2 2. Voz passiva 98; 2.4.2.3.
Anteposição 99; 2.4.2 4. Retomada por (o ) que/quem 101; 2.4.3.
Definição de objeto direto 101; 2.5. Outras funções do SN na oração
106; 2.5.1. OD e predicativo do sujeito 106; 2.5.2. Uma hipótese;
OD = predicativo do sujeito 107; 2.5.2.1. Diferenças semânticas entre
OD e PvS 107; 2.5 2.2. Diferenças sintáticas 109; 2.5 3. OD, predi­
cativo e atributo 110; 2.6. Negação verbal 113; 2.7. Elementos “adver­
biais” 115; 2.7.1. O atributo revisitado 115; 2.7.2. Adjunto adverbial
118; 2.7.3. Adjunto oracional 118; 2.7.4. Adjunto circunstancial 122;
2.7.5. Ainda o AC: Semântica e comentários 128; 2.7.6. Casos proble-
máticos 130; 2.8, Sumário: Funções de nível oracional 131; 2.9. Obser­
vações 133; 2.9.1. Funções sintáticas e a correspondência 133; 2.9.2.
Complementos e adjuntos 136; 2.9 3. Vocativo 140; 2.10. Apêndice:
As funções segundo Andrews, 1985 (uma crítica) 142
3. Funções de nível su boracion al.
3.1. Funções suboracionais 147; 3-2. Estrutura do sintagma nomi
nal 147; 3.2.1. Funções no SN 147; 3.2.2. O SN máximo 148; 3.2.3.
PDet, Det, Poss e Qf 149; 3 2.3.1. O PDet 150; 3 2.3 2. O Det 151;
3 2.3.3. O Poss 153; 3.2.3 4. O Qf 153; 3.2.4. Uma “cabeça” para
o SN? 154; 3.2.4.1. A noção de “cabeça” na literatura 154; 3 2.4.2.
Crítica da noção de “cabeça” 156; 3 2.4.3. Análise da concordância
nominal 159; 3.2.4.4. Problemas e perspectivas 162; 3.2.5. Pré-nú-
cleo, núcleo e modificador l63; 3 2.5.1.0 problema das classes aber­
tas 164; 3-2.5.2. O problema da repetição de fimções 166; 3.2.6.
O SN não-máximo l67; 3 2.6.1. O problema 167; 3 2.6.2. Identifi­
cação das funções no SN não-máximo 169; 3.2.6.3 Um velho 171;
3 2.6.4.0 imperador menino 172; 3 2.6.5. Velho palhaço 174; 3 2.6.6.
Sumário: Pistas disponíveis 178; 3.2.7. Casos problemáticos 179;
3.2.71. O “complemento nominal” 179; 3 2.7.2. Os numerais 182;
3.2.7.3 O aposto 182; 3.2.8. O que sabemos da estrutura do SN
184; 3.2.9. Comentários à análise do SN de Lemle, 1984 186; 3 3.
Dois níveis de funções sintáticas 187; 3.4. Funções sintáticas no
sintagma adjetivo 190; 3.4.1. O sintagma adjetivo 190; 3.4.2. Fun­
ções internas do SAdj 192; 3-4.2.1. No SAdj máximo 192; 3.4.2.2.
No SAdj não-máximo 195; 3.4.3. Casos problemáticos 195; 3.4.4.
O que sabemos do SAdj 196; 3 5. O sintagma adverbial 197; 3-6.
Apêndice; Adjetivos denominais 199
4. A oração com plexa
4.1. Recursividade 204; 4.2. Um critério de contagem de orações
206; 4.2.1. Estrutura interna dos constituintes 206; 4.2.2. Gerúndios
e participios 210; 4.2.3. Limites da oração principal 211; 4.3. Funções
dos sintagmas complexos; Nível oracional 213; 4.3.1. Objeto direto
214; 4.3.2. Atr, AA, AO, AC 214; 4.3.3. Predicativo 216; 4.3.4. Sujeito
2l6; 4.4. Subordinadas, coordenadas e a matriz “menos tudo” 218;
4.5. Correlação 219; 4.6. Nível suboracional; A construção relativa
221; 4.6.1. Funções da construção relativa 222; 4,6.2. Estrutura inter­
na da construção relativa 222; 4.6.2.1. Proposta de análise 222;
4.6.2.2. Argumentação em favor da análise 225; 4.6.2.3. Análises alter­
nativas 226; 4.7. O auxiliar 228; 4.7.1. Correspondência parcial 229;
4.7.2. Passivas e ativas 230; 4.7.3. Contagem de orações e o auxiliar
230; 4.7.4. Predicado e seus complementos 232; 4.7.5. Auxiliares co­
mo verbos 236; 4.7.6. Problemas 237; 4.7.7.0 participio 238; 4.8. Co­
mo analisar as passivas? 239; 4.9. Conclusão: A oração complexa 242
Referências
Apêndice: Quadros (definição das funções sintáticas) _
PREFÁCIO*

A gramática tradicional tem sido alvo de críticas de dois tipos:


critica-se tanto sua inadequação aos fatos da língua quanto sua falta
de, consistência lógica. Ambas as acusações são, a meu ver, justas.
É bem verdade que adequação aos fatos da língua é um ideal que
a lingüística moderna está ainda longe de atingir plenamente; no
entanto, é minha convicção que já é possível elaborar uma descrição
do português bem mais completa e empiricamente adequada do
que as atualmente disponíveis. Não se espere encontrar neste livro
mais do que algumas partes dessa descrição: este trabalho propõe
uma espécie de esqueleto básico, que servirá talvez de ponto de
partida para descrições mais amplas e detalhadas.
Menos desculpáveis são as deficiências de ordem lógica encon­
tradas a cada passo na gramática tradicional. Não vou entrar aqui
em exemplificações; a literatura recente oferece muitas, e recomen-
(.lo em especial a leitura do trabalho de Hauy, 1983. No que se refere
ã coerência, procurei ser rigoroso no presente trabalho; se é verdade
cjue uma descrição completa da língua é tarefa para o futuro, a consis-
lência lógica é qualidade a ser exigida desde já. O leitor é convidado
a verificar até que ponto tive sucesso nessa difícil empreitada.
Por outro lado, a gramática tradicional é uma preciosa fonte
tie perguntas a respeito da língua. Muitas das questões levantadas
sao altamente pertinentes, e os lingüistas perdem por não as conside­
ra reiti devidamente. Nas páginas que se seguem, teremos ocasião
tie examinar questões tradicionais como: os critérios de contagem
d f orações; a definição das diferentes funções sintáticas; a concei-
iiiação do que vem a ser exatamente um “fato” em gramática —
(|uestões importantes, que na minha opinião não têm recebido a
:iiençãt) que merecem.
I Itilizei, assim, muito da seleção tradicional de questões e tópi­
cos no planejamento deste livro. Tratei aqui de problemas de meto-
d( iltigia, o que obviamente precisava vir logo no início, e constitui
o a.ssunto do prim eiro capítulo. A partir daí passei ao estudo das

* I'.Mf ii abidho foi financiado em p a n e por um a bolsa de pesquisa concedida ao Autor pelo
( :Nl'q
6

funções sintáticas, ou seja, à “análise sintática”, desenvolvida nos capí­


tulos 2 a 4; essas duas partes constituem o presente volume. Pode
parecer estranho que se comece uma sintaxe por um setor tão abstra­
to e difícil como é a análise sintática; tenho a dizer que essa ordenação
me foi imposta pelo próprio desenvolvimento do trabalho. Preocu­
pado em justificar empiricamente cada passo da análise, acabei perce­
bendo (após várias tentativas) que era mais fácil definir classes, orde­
nação e a lista de estruturas possíveis a partir das funções do que
vice-versa. Daí minha opção de começar pelo estudo das funções
sintáticas dentro da oração e do sintagma.
Este é o prim eiro volume de uma projetada Sintaxe portuguesa,
núcleo de uma Gramática a ser elaborada em futuro próximo. O
segundo volume deverá abordar assuntos como; classes de formas
e classes de palavras; ordem dos termos na oração; sistemas de cor­
respondência; catálogo das estruturas superficiais possíveis na língua;
e notas semânticas.
Estou então propondo parte de uma teoria da língua portuguesa
— mas não, devo enfatizar, uma nova teoria lingüística. Se há inova­
ções neste trabalho, é porque não foi possível escapar a elas, pelo
simples fato de que a descrição ampla das línguas naturais não vem
sendo tentada com freqüência pelos lingüistas, e por conseguinte
há grandes áreas inexploradas na teoria sintática. A mesma razão
explica (pelo m enos em parte) o caráter a d hoc de algumas das
soluções propostas. Mas cada ponto importante da descrição exposta
nos capítulos seguintes se vincula estreitamente a propostas teóricas
aventadas nos últimos anos. Estou apresentando aqui a gramática
possível (ou melhor, uma das gramáticas possíveis) no atual estado
de desenvolvimento da ciência da linguagem.
De acordo com linhas esboçadas previamente (ver Perini,
1985a), tive o cuidado de não esconder fraquezas, incertezas e possí­
veis alternativas de análise. Estamos ainda muito longe da gramática
como conjunto de instruções mais ou menos automáticas para a pro­
dução e análise dos enunciados da língua — se é que isso pode
ser tomado como ideal. A argumentação caso por caso é essencial,
e fazer gramática é antes de tudo pensar independentemente sobre
a linguagem. Forneço aqui um quadro diretor para orientar a pes­
quisa (no sentido de “procura” de algo que ainda não foi achado).
Por isso certas partes da descrição foram apresentadas em bastante
detalhe, enquanto outras foram apenas esboçadas por alto. Uma gra­
mática portuguesa não pode deixar de refletir de perto o estado
da arte lingüística.
Embora favorável à manutenção do ensino gramatical (profun­
damente transformado) no segundo grau, não procurei produzir um
IImo adequado ao uso naquele nível. Pareceu-me indispensável, em
um primeiro momento, dirigir-me aos profissionais do estudo e do
i ii.sliK) da língua: professores de prim eiro e segundo graus, profes-
■it ires universitários e estudantes de Letras. Por conseguinte, este tex-
II1 , ainda que não pressuponha formação aprofundada em lingüística
I i.ir.i sua leitura, é um texto “adulto”; e um tanto difícil, para estudar
r n;io apenas ler. Não vejo alternativa, dado o caráter técnico e intelec-
iii.ilnumte exigente da nossa disciplina. A partir deste texto, e das
Illscussões que ele suscite, começará a nascer uma nova Gramática
¡Hirluguesa, de uso escolar e geral.
Quero terminar este prefácio com alguns agradecimentos. Em
Iulmeiro lugar, mencionarei alguns colegas que contribuíram de
diversas formas para que meu trabalho fosse menos penoso e, espe-
II), lie melhor qualidade (a qualidade é responsabilidade minha,
prlneipalmente porque muitas vezes deixei de seguir conselhos ge­
nerosamente oferecidos). Na Universidade Federal de Minas Gerais,
1 1 IIliei com a amizade, a experiência e a competência de dois extraor­

dinários lingüistas. Marco Antônio de Oliveira e Milton do Nasci-


iiienlo, cuja contribuição, às vezes até involuntária, marcou o desen-
\'i ilvimento do trabalho a cada passo. Yara Liberato, Lúcia Fulgêncio
•• Maria Elizabeth Saraiva, também da UFMG, contribuíram igual-
inenic" com boas idéias e sugestões em diversos estágios do trabalho,
ini ),strando-se sempre disponíveis para o que fosse necessário. Benefii-
I lei me também de várias discussões extremamente instrutivas com
Mnl.i Martins Ramos, da Universidade Federal de O uro Preto, que
|Mi‘. ao meu dispor sua aguda intuição lingüística e seu profundo
I I inl lecimento da teoria. Além desses, muitos outros colegas e alunos

ilei.im seu auxílio, durante a longa gestação deste livro. A todos,


meu muito obrigado.
Em segundo lugar, agradeço à UFMG e, através dela, à Univer-
•ád.idi- pública brasileira. Não é mais que justiça reconhecer aqui
I I I i.ipel fundamental dessa instituição, sem a qual o trabalho acadê-

iiiiM I si‘ lornaria impossível no Brasil. Este livro é dedicado à Univer-


•ilil.ide pública, autônoma, responsável de que nosso país necessita,
•■que leníamos construir a cada dia.

Belo Horizonte, agosto de 1988.


LISTA DAS
ABREVIATURAS
UTILIZADAS

As abreviaturas marcadas com asterisco referem-se a elementos


da análise proposta neste livro. As demais são abreviaturas consa­
gradas em sintaxe, ou então referem-se a trabalhos de outros autores,
*AA adjunto adverbial (função)
*AC adjunto circunstancial (função)
* Ant anteposição (traço)
*AO adjunto oracional (função)
Art artigo
*Atr atributo (função)
*CG complemento gerundivo (função)
*CI complemento infinitivo (função)
*C1 cliticizável (traço)
*CP complemento participial (função)
*CSA complemento do sintagma adjetivo (função)
*Det determinante (função)
*FP filtro de posposição
*FQC filtro de Q -4- clítico
*F3P filtro de terceira pessoa
*Int intensificador (função)
* Mod modificador (função)
MTA (sufixo de) modo-tempo-aspecto (na análise de Pontes, 1972)
N substantivo
*NdP núcleo do predicado (função)
*NSA núcleo do sintagma adjetivo (fúnção)
*NSN núcleo do sintagma nominal (função)
*NV negação verbal (função)
P, suj sujeito da passiva
posição do auxiliar (traço)
predeterminante (função)
pré-núcleo (do sintagma nominal) (função)
(sufixo de) pessoa-número (na análise de Pontes, 1972)
posição obrigatória antes do NdP (traço)
possessivo (função)
predicado (função)
preposição
predicativo (função)
predicativo do sujeito
retomável através de (o )q u e /q u e m (traço)
quantificador (função)
sintagma adjetivo
sintagma adverbial
sintagma nominal
sintagma verbal
tema (na análise de Pontes, 1972)
verbo
vogal temática (na análise de Pontes, 1972)

J
11

língua, e não descrições em profundidade de setores restritos (como


“elídeos”, ou “orações infinitivas” etc.). Destas últimas não há escas­
sez, e são por seu lado, evidentemente, também indispensáveis.
O segundo fator da relevância do trabalho de descrição é a necessi­
dade de elaborar gramáticas pedagógicas. Lembremo-nos de que uma
gramática não é apenas objeto da contemplação dos especialistas. É
também base de um componente importante do ensino da língua ma­
terna em todos os graus, e cai freqüentemente na mão de leigos que
procuram nela informações sobre a estrutura da língua padrão. Aqui no­
vamente se evidencia a necessidade de gramáticas descritivas adequadas.
Evidentemente, esse duplo papel define dois tipos muito dife­
rentes de gramática, pois não se pode levar a uma sala de aula do
segundo grau o mesmo texto com que lida o lingüista profissional;
mas ainda assim ambas são (ou deveriam ser) gramáticas descritivas
de pleno direito, embora diferentes quanto ao grau de detalhamento
da descrição que cada uma oferece L No momento, não existem
gramáticas toleravelmente adequadas para nenhum a dessas duas fun­
ções. Concluo que é necessário dinamizar o esforço de descrição
das línguas naturais; em particular, da língua portuguesa.
Essa tarefa, além de suas complexidades específicas (que serão
o tema central deste capítulo), ainda nos coloca à frente de alguns
dilemas, que devem ser considerados em prim eiro lugar. Vou a se­
guir examinar brevemente um dilema que chamarei “pedagógico”
e um dilema que chamarei “lingüístico”.

1.2 D ilem a s

O dilema pedagógico se formula da seguinte maneira:


(a) é preciso assumir, como base para a elaboração da gramá­
tica, um posicionamento teórico que seja coerente e pelo
menos defensável em termos do atual estado da investi­
gação lingüística. Mas, por outro lado,
(b) é preciso igualmente procurar neutralizar as grandes con­
trovérsias teóricas que caracterizam o panorama da pes­
quisa lingüística do momento. Como deve ser evidente,
uma gramática pedagógica, ainda que não fuja inteiramente
à exposição de algumas das maiores dúvidas da teoria, pre­
cisa apresentar um corpo unificado de resultados. Sem isso
ela não poderá atender a suas finalidades práticas dentro
e fora da escola.

' A noção de “grau (nível) de detalham ento” é tratada em Perini (a ser publicado).
12

O dilema nasce do fato de que não existe urna posição teórica


que seja ao mesmo tempo abrangente, coerente e relativamente livre
de controvérsias.
Antes de pensar em soluçóes, consideremos o dilema lingüís­
tico, a saber:
(c) é preciso (como vimos) assumir um posicionamento teóri­
co coerente.
Mas
(d) a descrição da língua será, como apontei mais acima, base
de evidência para o desenvolvimento e justificação da teo­
ria.
Ou seja, precisamos de urna teoria para começar a descrever
os fatos; e precisamos dos fatos para justificar a escolha da teoria,
assim como a especificação de seus detalhes. Esse é o dilema lingüís­
tico.
A saída de ambos os dilemas pode ser procurada tentando en­
contrar um conjunto de principios que sejam basicamente aceitos
pela maioria dos lingüistas, e procurando ver nesse conjunto alguma
estruturação. A pergunta, na verdade, poderia ser colocada, um pou­
co maldosamente, nos seguintes termos: houve ou não houve algum
progresso real em lingüística nos últimos 2 400 anos? Minha resposta,
como se verá, é que houve, embora isso nem sempre seja claro
através da poeirada levantada pelas disputas teóricas do momento.
Se adotarmos essa perspectiva otimista, poderemos empenhar-
nos em encontrar um caminho que nos permita elaborar uma descri­
ção da língua — necessariamente parcial, deixemos claro — evitando
um compromisso irrevogável com uma das teorias atuais (o que
nos acorrentaria a uma seleção particular de questóes), e evitando
também uma posição ingénua, pretensamente não-teórica, na verda­
de uma impossibilidade total.

1.3 S a íd a

A gramática tradicional, tal como a interpreto, tem intençóes


que nos podem ajudar a achar uma saída para os dilemas acima
apresentados. A gramática tradicional fica nas intençóes, evidente­
mente, mas pode ser interessante explorar o caminho apontado. Di­
gamos que a intenção é, sumariamente, elaborar uma descrição das
estruturas superficiais da língua, acoplada a uma tentativa de relacio­
nar essas estruturas superficiais com suas interpretaçóes semânticas.
13

t (HIK) veremos, não creio que isso seja realizável em termos estritos:
|ii)i um lado, a descrição estritamente superficial é inconveniente
IMII tieixar escapar generalizações interessantes; por outro lado, a
ilf scrição semântica e sua vinculação às estruturas superficiais terá
ilc ser algo fragmentária e incompleta. Mas como ponto de partida
i "..sa intenção nos será útil.
Nenhum lingüista nega a existência de estruturas superficiais,
nciii de interpretações semânticas. E nenhum lingüista nega a ne-
I cssidade de relacionar, de alguma forma, essas duas faces da lin-
gii.igem. Isso foi expresso p o r Saussure quando disse que o signo
lingüístico consiste na associação de um conceito com uma ima­
gem acústica (Saussure, 1945 [1916], p. 128); e Chomsky exprim iu
e.sseiicialmente a mesma idéia ao afirmar que a tarefa básica da
lingüística é explicitar a relação entre som e significado. Se há
iim conjunto coerente de pontos de acordo entre os lingüistas
III ije, refere-se predom inantem ente à estrutura superficial (conce-
l)ld;i como a estrutura superficial de Chomsky, 1965, não como
.1 Vstructure de Chomsky, 1982). Veremos, aliás, que não é possível

c.si apar inteiram ente à postulação de elem entos mais abstratos,


1 1 , 1 0 diretam ente observáveis (ver Perini, 1985a, p. 60-70). Mas,

rum o aproximação inicial, pode-se dizer que vale a pena dirigir


c.slorços na direção de uma descrição das estruturas superficiais
il.i língua.
Reafirmo pois minha convicção de que existe entre os lingüistas
IIIII conjunto coerente de pontos de acordo que permite basear uma
descrição de muitos aspectos importantes da estrutura da língua.
I.slo é, a lingüística como um todo não está na estaca zero (em bora
l.ssi) ãs vezes não seja evidente, dado que a literatura costuma voltar-se
nu lito mais para as questões controversas). Acredito que a maioria
I lesses pontos de acordo se referem a traços da estrutura superficial.
Para exemplificar, vou citar alguns desses pontos, que serão conside-
I.idos com mais vagar na seção 1.8.
1’emos como princípios geralmente aceitos pelos lingüistas, en-
in ‘ outros, os seguintes:
(a) a divisão da cadeia lingüística em subcadeias não definíveis
fonológicamente (morfemas, palavras), que se ordenam
linearmente;
(b) a estruturação de tais subcadeias hierarquicamente em
constituintes, de tal forma que o grau e a natureza da coe­
são entre elementos contíguos são variáveis; assim, temos
morfemas (sem p a is), palavras (paisem m euspais), sintag­
mas maiores {meus pais em m eus pais chegam hoje) etc.;
14

(c) a existência de funções que vinculam diferenciadamente


os elementos das cadeias lingüisticas, numa associação sin­
tagmática;
(d) certas decorrências observáveis das funções, em especial
casos de concordância e de atribuição de caso superficial
(em português, a ocorrência de pronomes obliquos), atri­
buidas ao principio da “regência”;
(e) a existência de classes, que agrupam as formas (morfemas,
palavras, sintagmas) numa associação paradigmática;
(f) a natureza basicamente distribucional dessas classes;
(8 ) possivelmente, correspondências de natureza sintática en­
tre estruturas diferentes (como entre frases topicalizadas
e suas versões não-topicalizadas).
Tais pontos de convergência são suficientemente importantes
e numerosos para constituir a base inicial de um sistema capaz de
representar as estruturas superficiais de uma lingua com alguma ge­
neralidade de aceitação.
Não entendo a proposta como uma nova teoria gramatical, mas
como uma tentativa de lançar os fundamentos de uma taxonomía
das formas e funções da estrutura superficial; como tal, deve ser
compatível com várias análises globais da estrutura da língua.
A palavra “taxonomia” se tornou um nom e feio em lingüística,
mas creio que isso só se justifica se se tomar “taxonomia” como
equivalente à análise global da língua. Parece-me evidente que uma
taxonomia de formas é essencial para qualquer análise; e qualquer
análise deve ser compatível com uma taxonomia. Na verdade, qual­
quer análise deve produzir uma taxonomia, o que equivale a dizer
que toda análise deve ter como resultado, entre outras coisas, deter­
minada estrutura de classes e funções a nível superficial. Essa taxono­
mia, a nível superficial, é em grande parte não-controversa.
Por exemplo, ninguém negaria que em português
(a) livro e gaveta pertencem a uma classe de formas comum;
(b) o verbo concorda com determinado sintagma da oração
(a que chamamos “sujeito”);
(c) em m eus pais chegam hoje, m eus pais é um constituinte,
ao passo que pais chegam não é.
Além disso, a maioria dos lingüistas também concordaria que
(d) existe uma relação sintática sistemática entre as frases Car­
los rasgou o livro; o livro, Carlos rasgou; fo i o litro que
Carlos rasgou;foi Carlos que rasgou o litro etc.
15

«Jiicio dizer que fatos como esses são necessariamente parte do


iiii(|Hit” de qualquer gramática — pouco importa como a teoria
*ic arranje para gerá-los. O fato é que eles precisam ser gerados,
sao, por assim dizer, “fatos sintáticos” (ver a seção 1.8), dos quais
i|ii.ili|uer teoria da lingua deverá dar conta.
Ora, o que estou procurando é uma maneira de sistematizar
i.ii.s “fatos” de m odo a permitir sua coleta e organização, sua taxono-
iiii.i enfim, de m odo tanto quanto possível completo. Como se vê,
.1 motivação última deste trabalho é empírica (e metodológica), em-

IIIII a, como já apontei, nunca pré- ou a-teórica. Uma maneira de


iiiiiceber os objetivos deste trabalho seria como uma tentativa de
el.ihorar um catálogo das estruturas superficiais do português. Vou
ile.seiivolver um pouco essa idéia.

1.4 O ca tálogo d e estru tu ras su p erfic ia is

Imaginemos que alguém estivesse preocupado em estudar a


i-Miulura sintática do português, com objetivos teóricos — para vali-
il.ir, talvez, certas afirmações teóricas com pretensões universalistas.
I iisse qual fosse a preferência teórica desse lingüista, é evidente
que lhe seria útil a existência de um catálogo das estruturas super-
lu lilis possíveis em português (na forma, digamos, de uma lista de
i-Mi iiluras, parcialmente recursiva). Mas como elaborar tal catálogo,
III) momento?
Teríamos de dispor de um vocabulário teórico para referir-nos
.1 ( l.isses, assim como, muito provavelmente, a funções superficiais;

I- cs,se vocabulário deveria ser abrangente o suficiente para cobrir


pelo menos grande parte das estruturas superficiais observáveis da
liiigua. O problema, evidentemente, é que tal vocabulário não existe
I Ic lorma satisfatória. A gramática tradicional peca por oferecer cate-
g( II ias mal motivadas e incoerentes; as teorias mais modernas não
lüm abrangência suficiente, tendo-se ocupado tradicionalmente com
ivsilidos em profundidade. Ou seja, a taxonomia tradicional é inade-
I |ii.ida, e as taxonomías modernas são, na m elhor das hipóteses, par-
I i.iis.

Pretendo, portanto, advogar a elaboração de uma taxonomia


I|iic permita a elaboração de um catálogo tal como o descrito acima.
N.u) quero dizer que a taxonomia se limite a ser a base de um catálo­
go, percebo sua relevância também para a teoria. Mas acho que a
idcia de um catálogo é útil como uma espécie de alvo a mirar, um
objetivo prático de trabalho (sem que isso signifique que possamos
p e n lc T de vista a perspectiva teórica).
16

O catálogo não é, obviamente, urna compilação pré-teórica; ele


já é resultado de urna análise, mas de urna análise parcial, proposi-
talmente limitada a um nivel superficial ou quase-superficial. Ele
pressupõe um acordo sobre muitas questões fundamentais, das quais
a mais importante e imediata me parece ser um sistema de classes
e funções, assim como os principios sobre os quais se construiria
esse sistema. Por outro lado, pode-se entender o catálogo como um
“trabalho de enxada”, preliminar a análises posteriores que poderão,
estas, levar em conta outros níveis relevantes para a análise. O sistema
que pretendo elaborar fom ece justamente os instrumentos para esse
trabalho de enxada (que, pelo menos para o portugués, não está
feito). A taxonomia tradicional é pouco útil para bascar esse trabalho,
pelo menos no que se refere à sua forma explícita. Já o uso prático
da análise (a “doutrina gramatical implícita” a que me referi em
Perini, 1985a) apresenta méritos que não se devem desprezar. Por
outro lado, é interessante observar que, em bora a taxonomia de
formas (por exemplo, a classificação das palavras) seja pré-requisito
para qualquer descrição gramatical, o problem a não foi considerado
pelos sintaticistas gerativos. Eles partem de urna classificação implí­
cita, quase nunca discutida; as poucas exceções (Ross, 1972; McCaw-
ley, 1982) são muito programáticas.
A vantagem de se dispor de uma descrição superficial abran­
gente não é apenas prática (trazer-nos efetivamente mais perto de
uma nova gramática do portugués); vejo também importantes vanta­
gens para a própria qualidade das descrições. Um dos grandes pro­
blemas, nem sempre claramente reconhecido, da investigação sintá­
tica atual é a dificuldade de ver cada subcomponente da gramática
dentro do contexto da estrutura da qual faz parte. Todos os sintati­
cistas concordam que as línguas são estruturas muito estritamente
organizadas, em que cada peça se apóia nas outras e por sua vez
serve de apoio às outras — u n système oü to u t se tient, conforme
disse Saussure. Sendo assim, pode ser um risco em preender o estudo
de pedaços isolados sem referência ao todo; mas é o que a sintaxe
vem tipicamente fazendo há anos
Uma vez escolhida e elaborada a taxonomia, o próximo proble­
ma a enfrentar é o do nível de generalidade da notação. Em outras

- Chego a suspeitar que a velocidade incrível com que evolui a teoria sintática é em parte
uma ilusão, oriunda do nosso vício de considerar porções isoladas da gramática em profun­
didade. Se alguém estuda os clíticos e outra pessoa estuda a ordem dos advérbios na frase,
é bem provável que as duas descrições (feitas sem referência uma à outra) sejam incom pa­
tíveis; e aí às vezes acabamos falando de duas teorias sintáticas distintas. Na verdade, o que
há é falta de perspectiva estrutural; afinal, é preciso descrever tanto os clíticos quanto a
ordem dos advérbios, para se descrever a língua.
17

p.ilavras, como representar a estrutura ilustrada pela frase


(1) o gorducho visitou Paris no inverno
f Imitando-nos aos aspectos mais estritamente classificatórios da aná­
lise (desprezando, por exemplo, as funções sintáticas), essa frase
poderia ser representada por qualquer das expressões abaixo:
(2)
a. SN SV
b. SN V SN SAdv
c. Art N V N Prep Art N
nu ainda, explicitando-se mais de um nível de constituintes,
c. [Alt N] V [N] [Prep [Art N[]
SN SN Adv SN
Quanto mais esmiuçada for a representação, tanto mais longo
será o catálogo, ganhando em informatividade, mas também em com­
plexidade — assim como, é bom acrescentar, em controvérsia. É
liic-vitável que informações pertinentes sejam deixadas de lado, e o
I)()iito de parada poderá ser algo arbitrário. Mas ainda assim a utilida­
de do catálogo não será seriamente prejudicada por isso. Se uma
obra de referência como um dicionário, com todas as suas deficiên-
( i;is, é útil como instrumento de trabalho, não vejo por que as dificul­
dades teóricas nos devam desencorajar na confecção do catálogo.
Assim como o nível de generalidade (ou de detalhamento), ou-
iros aspectos terão de ser discutidos antes da elaboração definitiva
(l() catálogo; por exemplo, a conveniência de se incluir também nota-
i.ai) das funções sintáticas, tais como se observam na superfície: sujei-
lo, objeto direto etc.; a extensão em que se poderá levar em conta
elementos “abstratos” não diretamente observáveis (como o “sujeito
Dciilto”, por exemplo); a conveniência de se incluir relações entre
(-si ruturas diferentes (como quando dizemos que uma frase é a forma
ii )| licalizada de outra). Tudo isso sublinha o caráter do catálogo como
produto já de um estágio relativamente avançado de teorização gra-
iiKiiical; todos os pontos mencionados serão eventualmente aborda-
(li )s na seqüência deste trabalho.

1.5 A o p çã o p e la su perfície

Uma questão a ser considerada com algum cuidado é a opção,


leiia aqui, de elaborar uma descrição das estruturas superficiais
da língua. Observe-se, primeiro, que isso não implica negar a rele­
vância do estudo de presumíveis níveis subjacentes; pessoalmente,
18

ten d o a acreditar que a descrição cabal da língua nos obriga a postular


níveis subjacentes de análise. Mas então por que optar por uma des­
crição superficial para efeitos do presente trabalho?
Parece-me inegável c|ue as funções, classes e processos sintáti­
cos, qualquer que seja seu status em níveis mais profundos da gramá­
tica, apresentam repercussões superficiais observáveis e sistemáticas.
C reio que o term o “estrutura” se justifica plenamente quando aplica­
d o às manifestações superficiais de uma língua, porque essas manifes­
tações realmente se estruturam de maneira particular. Existe, em
u m a palavra, uma verdadeira “estrutura superficial” passível de des­
crição sistemática.
Essas manifestações superficiais e sua estruturação são um o u t­
p u t necessário de qualquer descrição sintática, mesmo se esta lança
m ã o de níveis subjacentes de análise. A análise tem como um de
se u s objetivos produzir os traços da estrutura superficial da língua:
isso não me parece ser objeto de controvérsia. Uma conseqüência
im ediata é que a observação das manifestações superficiais é crucial
p a ra permitir a testagem das hipóteses que constituem a análise da
língua. A gramática é uma teoria da língua, e faz acerca dela previsões
q u e consistem, em parte, na enumeração das estruturas superficiais
possíveis, formuladas em termos de seqüências de formas e de itens,
d e funções sintáticas etc.
Como, por outro lado, a gramática pretende fornecer uma des­
crição da língua como um todo, e não apenas de urna parte selecio­
nada, surge o problem a do acesso aos dados superficiais para a testa­
g e m cada vez mais ampia da descrição. Os dados nos vém á mente
particularizados e fragmentários; e se há um problema metodológico
q u e os lingüistas tém tido dificuldade de enfrentar é o de obter
u rn a visão suficientemente ampia dos dados para que a análise pro­
g rid a em termos de generalidade crescente. Conhecemos o efeito
nocivo da proliferação de estudos de partes isoladas da língua, sem
referência ao conjunto da estrutura. Acredito que urna descrição su­
perficial multo ampia, ainda que pouco detalhada em muitos pontos,
representará um passo importante na solução desse problema m eto­
dológico.
É evidente que as manifestações superficiais não incluem todas
a s generalizações sintáticas importantes da língua (exceto, talvez, para
alguns epígonos do distribucionalismo radical dos anos 40). É mes­
m o provável que certas generalizações estritamente sintáticas se ve­
ja m mascaradas na superfície; isso é de se esperar, desde que aceite­
m o s a relevância dos níveis subjacentes na gramática. Mas não tira
à descrição superficial sua importância e seu significado — desde
q u e não a tentemos impingir como uma visão completa da estrutura
19

(la língua. Por outro lado, é possivel que haja generalizações que
s(') se possam descrever na superficie; estas não são, a priori, menos
Importantes do que quaisquer outras.
Nesse contexto, pode-se conceber a descrição superficial como
(cutre outras coisas) um repositório de “fatos sintáticos” relativa­
mente não-controversos, fatos esses que devem figurar no output
(Ic qualquer descrição completa da língua. Note-se que mesmo a
d(.‘scrição contida em um “catálogo” pode entender-se como “gera-
liva”, no sentido de que inclui recursões e uma descrição em nível
.suficientemente geral para que se encaixe nela a infinidade de sen­
tenças possíveis da língua. Portanto, não se trata de uma m era sistema-
lização ou compactação de um corpus fechado, nada na linha do
(|uc preconizava, por exemplo, Harris (1951, p. 12). A descrição su-
I )c‘i-ficial também tem como objetivo fazer previsões sobre as ocor-
1'éucias sintáticas possíveis na língua.

Finalmente, um ponto talvez mais aberto a questionamento, mas


I)ara mim importante: se querem os aproximar-nos significativamente
dc uma descrição abrangente e completa da língua, a descrição super­
ficial é a melhor alternativa aberta no presente momento. Das teorias
dc que tenho razoável conhecimento, nenhum a está desenvolvida
cm amplitude suficiente para permitir a abordagem de uma língua
no seu todo. Isso não quer dizer que lhes falte mérito; mas quer
dizer que, no que pesem os notáveis resultados conseguidos em
csilidos de profiandidade, as lacunas são ainda tão extensas que a
(Icscrição de uma língua natural seria impossível dentro do quadro
IIc referências de qualquer dessas teorias. Daí minha opção por uma
t Icscrição superficial, que se poderia talvez conceber como a tradicio­
nal, expurgada de suas inconsistências internas e de suas falhas de
observação.

1.6 A nálise f o r m a l

A análise, além de superficial, será formal, ou seja, não deverá


levar em consideração o significado das formas estudadas. Aqui tam­
bém acho que é necessário elaborar um pouco essa idéia.
Em prim eiro lugar (e parcialmente em resposta a algumas obje­
ções levantadas à proposta de Perini, 1985a), vou esclarecer que
não advogo a exclusão da semântica da descrição da língua. Se no
presente texto vou concentrar-me de preferência na descrição for­
mal, e se insisto na necessidade de separá-la estritamente dos fatos
relativos ao significado, faço-o como uma hipótese de trabalho, de
importe fundamentalmente metodológico. Minha concepção de gra-
20

mática (seguindo aqui a corrente da lingüística atual) é de um sistema


que relaciona as formas com os significados que elas ajudam a veicu­
lar. Portanto, uma gramática inclui, necessariamente, uma descrição
semântica da língua, ao lado de sua descrição formal e de um maqui-
nismo qualquer que relacione esses dois planos. Essa posição parece
ter ficado insuficientemente clara em trabalhos anteriores, razão pela
qual volto a considerá-la aqui. Em especial, abordarei a questão da
possibilidade e da conveniência de um estudo estritamente formal
da língua, enquanto fundamentalmente distinto e independente (m e­
todologicamente) do aspecto semântico.
Vamos partir da seguinte observação: Há certos casos em que
um traço formal da língua não tem nenhum correlato semântico
discernível. Nesses casos, evidentemente, o ünico ponto de vista pos­
sível da análise é o formal, e o problem a que nos ocupa não chega
a se colocar. Coloco nesse caso a exigência que certos verbos (como
gostar) fazem da preposição de antes de seu complemento; não vejo
maneira de correlacionar isso com qualquer traço semântico. Trata-
se de uma exigência puram ente formal, e não há meio de estudá-la
a não ser formalmente.
Outro caso é o da concordância verbal, como em:
( 1)
a. a coruja com e ratos
b. as corujas com em ratos
Ainda que se possa perceber talvez alguma diferença semântica entre
essas duas frases, ela deve ser atribuída ao fato de que o sujeito
é singular em um caso e plural no outro. O verbo simplesmente
“reflete” o nüm ero (e a pessoa) do sujeito, redundantemente e por­
tanto sem carga semântica nenhuma. Se aceitarmos a presença de
sujeitos ocultos válidos para a análise (como proponho em Perini,
1985a, p. 60 et seqs.), esse raciocínio valerá mesmo para frases como:
(2) chegamos hoje de manhã
Nesses casos, temos em mãos um fenômeno gramatical puramente
formal, o que vale dizer que figura na sintaxe, mas não tem nenhum
correlato na semântica. Ou, ainda, que nenhum a regra de interpre­
tação semântica leva em conta a presença do fenômeno “concor­
dância verbal”: um verbo se interpreta independentem ente de estar
nesta ou naquela pessoa ou nümero. Aí, evidentemente, só se justifica
uma análise formal.
Existem também casos mais ou menos opostos, isto é, em que
a uma diferença semântica bem clara não corresponde nenhum a
diferença sintática perceptível. Os exemplos são muitos; por exem-
21

pio, as diversas acepções de palavras polissêmicas como m anga,


ponto, botão. Ou então frases como:
(3)
a. esta é a mulher mais bonita de Belo H orizonte
b. esta é a poesia mais bonita de M ário Q uintana
c. esta é a gravata mais bonita de M ário Q uintana
lí claro que a relação semântica expressa no sintagma grifado é dife­
rente em cada um dos três casos. Em (3a), deBeio H orizonte expressa
0 lugar em que vive a mulher; em (3b), de M ário Q uintana vale
c( )mo o autor da poesia; e em (3c), de M ário Q uintana é o possuidor
ila gravata. No entanto, não há diferença sintática entre esses três
sintagmas; todos os três têm estrutura interna idêntica, parecem rela-
cionar-se de maneira idêntica com o restante da construção, têm
“correspondências” sintáticas idênticas (isto é, relacionam-se trans-
ilerivacionalmente com as mesmas estruturas).
Considerando, então, as diferenças entre as três frases de (3),
não encontramos nenhum aspecto sintático (formal) a estudar: as
li’ês construções são sintaticamente idênticas. Suas diferenças semân-
1icas deverão ser inteiramente atribuidas à semântica dos itens léxicos
(|uc as compõem. Tomando (3b) e (3c), vemos que a diferença se­
mântica provém exclusivamente da diferença de significado (lingüis-
lico ou extralingüistico) entre poesia e gravata. Assim, se Mário
(Juintana fosse o nome de um desenhista de modas, seria possivel
entender (3c) de maneira paralela a (3b) — ou seja, Mário Quintana
(■()mo autor da gravata. Como se vê, a estrutura sintática não contribui
para a discriminação semântica entre (3a), (3b) e (3c). As regras
de interpretação deverão funcionar aqui tomando como base apenas
a semântica dos itens léxicos, sem basear-se nas estruturas sintáticas
( isso, bem entendido, para estabelecer as diferenças semânticas entre
a.s frases; é evidente que a estrutura sintática desempenha um papel
em outros aspectos da interpretação). Casos como esse são, tal como
0 de (1), não-controversos; aqui nenhum a análise formal se justifica,
pelo menos no plano sintático. As diferenças formais existentes se
1esumem à escolha dos itens léxicos.
O problem a surge nos casos, muito numerosos, em que existe
uma diferença semântica e a ela corresponde uma diferença sintática
mais ou menos paralela. Aqui residem as complexidades maiores
Ila relação forma/significado.
Parece que há uma espécie de continuo, que vai desde diferen­
ças sintáticas cujo correlato semântico é minimo (aproximando-se
portanto do caso-limite exemplificado pela concordância verbal) até
casos de diferenças sintáticas cujo paralelo semântico é evidente.
22

e b em grande. A prim eira dificuldade, claro, está em como medir


a grandeza das diferenças semânticas. Não conheço nenhum a ma­
neira de fazê-lo, a não ser através de um julgamento intuitivo freqüen­
tem ente nebuloso. De qualquer modo, é possível dar exemplos:
(4)
a. Carlinhos, infelizmente, é assessor parlamentar
b. infelizm ente, Carlinhos é assessor parlamentar
Neste caso, talvez algumas pessoas percebam alguma diferença de
significado e n tre as duas frases; outras poderão tomá-las como sinôni­
mas. Diremos (inform alm ente) que se trata de uma diferença semân­
tica mínima.
Já no caso seguinte, a diferença semântica é mais clara:
(5)
a. Anysio comeu as fritas
b. as fritas, Anysio comeu
Aqui há uma diferença de tópico-, em (5b) as fritas é o tópico, e
se entende com o o “assunto principal” da frase: o elemento a respeito
do qual, preferencialm ente, se faz a declaração. Já (5a) é menos defi­
nido a esse respeito, e parece que há uma tendência a entender
Anysio como o tópico. É uma diferença de natureza discursiva, mais
que estritam ente semântica, mas certamente não se pode dizer que
as frases são perfeitam ente sinônimas. Diremos que a diferença se­
mântica é m aior d o que em (4).
Tomemos ag o ra o caso de:
(6)
a. N ew ton é um homem grande
b. N ew ton é um grande homem
Agora a diferença semântica é evidente, e afeta inclusive as condições
de valor de v erd ad e de cada frase: é perfeitamente possível imaginar
uma situação e m que, ao mesmo tempo, (6a) é verdadeira e (6b)
é falsa.
Apesar das diferenças semânticas observadas no interior dos
três pares de frases examinados, há uma coisa bem clara que todos
os pares têm em com um: os membros dos três pares se distinguem
através de diferenças sintáticas (formais); em todos os exemplos,
as diferenças se ligam à ordem das palavras. Esse traço formal pode
ser estudado, independentem ente de haver ou não diferença semân­
tica associada, independentem ente de esta ser ou não clara e/ou
grande.
As regras d e interpretação terão de dar conta do fato de que
em certos casos um a mudança na ordem das palavras não afeta o
23

significado, e em outros casos afeta (de várias maneiras). Isso equivale


.1 uma referência à estrutura sintática: assim, podem os dizer que

em (5) a anteposição do objeto direto redunda em ser ele interpre­


tado como tópico daquela seção do discurso. Já em outros casos,
(.omo o de (3), as regras de interpretação só se poderão basear em
fatores extra-sintáticos, já que a sintaxe é a mesma em todos os casos.
Assim, as regras lançarão mão do componente semântico dos diver­
sos itens léxicos presentes {poesia, gravata, por exemplo), bem co­
mo da informação complementar contida nos esquemas associados
a esses itens {poesia em geral não é um objeto possuível etc.).
Vamos comparar agora os pares seguintes:
(7)
a. um lindo dia
b. um dia lindo
( 8)
a. um grande homem
b. um homem grande
Sem querer dizer que (7a) e (7b) são sinônimos em todos os aspec­
tos, há uma clara diferença entre os dois pares acima: a extensão
do significado do sintagma (7a) é a mesma da de (7b): um lindo
dia não pode deixar de ser um dia lindo. Já o mesmo não ocorre
com (8): um grande homem pode não ser um homem grande, e
vice-versa. No entanto, sustento que a diferença sintática entre (8a)
e (8b) é a mesma que existe entre (7a) e (7b): pode ser descrita
em termos da posição do adjetivo em relação ao substantivo, com
uma diferença concomitante de função sintática, e nada mais. As dife­
renças semânticas, por seu lado, devem-se a características dos itens
léxicos utilizados: a semântica de grande difere da de Undo, assim
como suas possibilidades de interpretação quando anteposto ou pos­
posto. Isto é, o item léxico grande tem traços semânticos e sintáticos
tais que sua interpretação quando anteposto é diferente da que rece­
be quando posposto.
Observe-se, em todos os exemplos citados acima, que sempre
é possível isolar, em princípio, o aspecto semântico ou o aspecto
formal; isso, mesmo se eventualmente se chegar à conclusão de que
“não há sintaxe” a descrever (como no caso de (3) ), ou de que
“não há semântica” a descrever (caso de (4) ). Os dois pontos de
vista são distintos p o r definição, e qualquer fenômeno pode ser con­
siderado segundo um ou outro deles.
Nada disso impede que se chegue eventualmente à conclusão
de que um traço semântico, digamos, expiique a ocorrência de um
traço sintático. Vejamos o seguinte exemplo: alguns substantivos po-
24

dem ocorrer após uma seqüência de artigo + substantivo, formando o


conjunto um sintagma nominal. É o caso, por exemplo, de médico, em
(9) Fininho tem [um filho médico]
SN

Já outros substantivos nunca aparecem nesse ambiente; é o caso de


mesa, por exemplo.
Ora, certamente é possivel encontrar um correlato semântico
que de certa forma “explica” essa distribuição das duas palavras m édi­
co e mesa. Acontece que m édico pode ser usado tanto referencial-
mente (como em o m édico m andou tom ar estricnina) quanto atribu­
tivamente (para atribuir uma qualidade, como em (9) acima, ou então
em Zeca é m ais m édico do que Juca). Em seu uso atributivo, m édico
não se usa para mencionar uma pessoa que por acaso é médico,
mas para atribuir a alguém certas qualidades que consideramos pró­
prias dos médicos. Essa propriedade é partilhada por um grande
núm ero de itens léxicos, que também em geral podem aparecer
no ambiente exemplificado em (9); chefe, mãe, m iiio n á rio ... Já o
substantivo m esa só se usa referencialmente, para mencionar um
objeto; não costumamos usar o termo para atribuir a algo as quali­
dades de uma mesa (talvez porque estas são pouco interessantes
para nós, em comparação com as qualidades de um médico, uma
mãe etc.).
O que temos aqui? Na verdade, uma vinculação entre um traço
sintático (formal, distribucional) e uma caracteristica semântica: os
itens passiveis de uso atributivo podem ocorrer no ambiente descrito
porque a interpretação resultante é útil e faz sentido. Já os itens
não passiveis de uso atributivo não ocorrem naquele ambiente, mes­
mo porque o significado do sintagma seria desinteressante (afinal,
que é um a cadeira mesa!). No entanto, apesar de haver uma vincu­
lação e uma relação casual entre o traço semântico e o traço formal,
sustento que esse fato não afeta a possibilidade de estudo separado
dos dois aspectos.
Primeiro, é de se esperar que haja relacionamento entre os
aspectos sintáticos e os semânticos das formas lingüisticas; isso nunca
foi obstáculo a que se estudassem os dois aspectos separadamente.
Os traços formais existem, como já apontei acima, por definição:
seja qual for a explicação semântica, continua sendo um fato que
m édico, mas não mesa, cabe em um ambiente exemplificado em
(9). Supondo, digamos, que ignorássemos a natureza semântica da
linguagem, e que quiséssemos estudar a sua estruturação formal,
esse fato existiria para nós da mesma maneira. Não é essa a nossa
opção, evidentemente, mas ainda assim podem os decidir separar
esses dois aspectos para efeitos de estudo.
25

Essa separação é conseqüência das perguntas que formulamos


a respeito do nosso objeto de estudo. A pergunta relevante aqui
ê a seguinte: Como se relacionam as duas faces, a fo rm a l e a sem ân­
tica, dos enunciados da língua? Fazer essa pergunta nos leva a procu­
rar descrever os modos de relacionamento entre formas e signifi­
cados; avaliar o grau de complexidade desse relacionamento; estudar
os aspectos formais dessa descrição. Para usar os termos de Chomsky,
i|ueremos explicitar a relação entre som e significado.
Mas para começar a responder essa pergunta é essencial procu­
rar uma descrição separada das duas faces da linguagem. E só a
partir dessa dupla descrição que poderá ser possível explicitar o
relacionamento entre as duas. Voltando ao nosso exemplo de m édi­
co X mesa, não se pode negar que existe uma diferença puramente
sintática entre eles, já que sua distribuição é diferente: m édico cabe
no ambiente [Art N ], e mesa não cabe. O que pode estar em
i|uestão é a conveniência de darmos a esse traço alguma saliência
na nossa análise.
Pode-se comparar esse traço com o de gênero, que divide os
stibstantivos em masculinos e femininos. Também aqui temos traços
idiossincráticos dos itens léxicos, mas sem correlato semântico coe-
1'cnte. Deveremos tratar diferentemente os traços [Art N ] e “gêne­
ro" na nossa análise formal? Ao que me parece, dentro de uma pers­
pectiva exclusivamente sintática, não há maneira de distingui-los sem
ai'bitrariedade. Assim, dentro dessa perspectiva, ambos têm iguais
direitos a figurar na análise.
No entanto, a perspectiva que adoto não é exclusivamente sintá-
lica. Como já enfatizei acima, a separação entre os dois aspectos,
i) formal e o semântico, tem significação metodológica; não só tere­
mos, eventualmente, que descrever também a face semântica da lín­
gua, mas ainda deveremos pô-la em correlação com a face formal.
1’ortanto, se considerarmos uma descrição completa da estrutura da
língua, teremos possivelmente meios de distinguir entre os traços
|Art N ] e “gênero”.
A descrição formal que desenvolverei neste trabalho não pre­
tende ser uma descrição completa da língua; esta, repito, inclui tam­
bém uma descrição semântica, assim como um sistema de relaciona­
mento entre as duas. Neste ponto, creio, estou de acordo com a
maioria dos lingüistas atuais. Assim, imaginemos que já temos uma
tlescrição completa. Nesse quadro, então, poderemos verificar que
:i ocorrência de mesa no ambiente [Art N ] é automaticamente
excluída através das regras semânticas. Ou seja, a interpretação se­
mântica de mesa nesse ambiente resulta em uma anomalia. Nesse
caso, ficaremos autorizados a dizer que o traço sintático que exclui
26

mesa desse ambiente é desinteressante para a análise, já que ele


apenas repete o efeito de urna filtragem semântica. Já no caso do
género, nenhum a filtragem semântica poderá excluir * o mesa,
* a livro etc. Assim, o traço de gênero, ligado aos substantivos indivi­
duais, é essencial na sintaxe.
Note-se que isso não significa que o traço “ocorrência no am­
biente [Art N ]” não exista, ou não seja um traço formal de
pleno direito. Significa apenas que, na análise global, ele representa
um porm enor de pouco interesse, por ser previsivel a partir de ou­
tros fatores (a anomalia ou não-anomalia das interpretações semân­
ticas resultantes).
Tenho insistido que considerações semânticas não devem inter­
ferir na análise dos traços formais. Mas há um outro fator a considerar,
a saber, a seleção de traços a incluir na análise. É claro que nunca
poderem os descrever todos os aspectos formais encontrados na lin­
gua; simplesmente, há aspectos demais, e se torna necessário fazer
uma seleção. Creio que se pode aceitar a antecipação de fatores
semânticos para orientar essa seleção; desse modo, poderiamos dar
preferência, em nossa análise formal, ao traço de gênero sobre o
traço “ocorrência no ambiente [Art N ]” (para os substantivos),
já que este provavelmente será redundante. Digamos que o traço
de gênero promete maior rendim ento na gramática como um todo,
e por isso lhe damos preferência. Acho que esse procedimento não
viciaria gravemente a separação metodológica entre os aspectos for­
mal e semântico.
Um tratamento semelhante poderia ser dado a sintagmas como
os que foram exemplificados em (3):
(3)
a. esta é a m ulher mais bonita de Belo H orizonte
b. esta é a poesia mais bonita de M ário Q uintana
c. esta é a gravata mais bonita de M ário Q uintana
Aqui, estritamente falando, poderiamos estudar a distribuição formal
de itens como mulher, poesia e gravata em relação com os itens
Belo H orizonte e M ário Q uintana, mostrando, por exemplo, que
no ambiente
f
esta é a mais bonita de Belo Horizonte |
cabe tanto m ulher quanto gravata (e talvez poesia), mas que no -
ambiente f
¥
esta é a mais bonita de Mário Quintana
m ulher não cabe bem (caberia, talvez, se Quintana fosse um sultão
ao estilo antigo). É evidente que esse tipo de especulação, em bora

J
27

formalmente correto, é de pouco interesse, já que apenas repete de


maneira arbitrária o resultado que urna análise semântico-pragmática
tlaria a partir de razões mais plausíveis. No caso presente, ninguém
[xmsaria em incluir traços formais como esse na análise sintática, ainda
c]ue isso seja, em principio, possível. Vemos aqui, mais urna vez, a seleção
ele traços a serem estudados na sintaxe sendo orientada por urna visão,
ainda que antecipada, da gramática global, único objetivo final da análise.
Observe-se, ainda, que o direcionamento causal pressuposto
no arrazoado acima não é a única maneira de considerar os fatos.
O que temos, na verdade, é urna correlação: substantivos que não
admitem a interpretação atributiva não aparecem em [Art N ].
Mas qual dessas observações é causa, e qual a conseqüência, não
é nada claro (pelo menos em termos de descrição da competência).
Podemos, evidentemente, decidir essa questão através do exame de
cada caso; mas não há nenhuma razão a priori que nos obrigue
a tomar sempre a semântica como causadora e a sintaxe como conse­
qüência — e isso, a meu ver, nem sequer no estudo do desempenho,
pois é perfeitamente possível que as limitações sintáticas da língua
limitem, por sua vez, as possibilidades de codificação (não estou
afirmando que isso acontece; mas creio que alguns lingüistas o fa­
riam, seguindo a linha iniciada por Whorf).
Finalmente, chamo a atenção para nosso ponto principal: toda
a argumentação acima, levando por exemplo à exclusão de certos traças
da gramática e à inclusão de outros, só se pode entender a partir de
uma consideração separada dos aspectos formal e semântico. Essa sepa­
ração, em que pese o seu caráter apenas metodológico, assim como
,suas limitações, me parece um passo necessário no trabalho de descri­
ção da língua naquilo que ela tem de mais interessante, que é a relação
lórma/significado. Poderíamos, por exemplo, excluir formas como [Art
N mesa] através de restrições sintáticas à palavra mesa-, ou através de
uma filtragem semântica, atuando sobre o significado global do sintag­
ma; ou, ainda, através de condições de compatibilização dos diversos
itens. Isso se poderia fazer a nível de interpretação semântica, seja ela
superficial ou profunda; ou a nível da sintaxe, com ou sem transforma­
ções; e assim por diante. Essas são questões teóricas do maior interesse,
e terão de ser enfrentadas mais cedo ou mais tarde. Mas só se colocam,
inicialmente, e depois só se podem corroborar, através de uma obser­
vação de “fatos” (ver 1.8) como os que esta análise procurará depreender.

1.7 P ro b lem a s d a taxon om ia


Partindo da idéia de que pretendo elaborar um catálogo, passa­
rei a considerar alguns problemas vinculados ao estabelecimento
28

de uma taxonomia das formas lingüisticas, tais como se podem obser­


var na estrutura superficial. Conforme apontei, essa é urna questão
central em toda e qualquer análise lingüistica.
Nenhuma descrição lingüistica pode prescindir de urna taxono­
mia de formas, confessa ou implicita. As classes de palavras são um
exemplo: são em geral explicitamente admitidas, recebendo nomes
e definições mais ou menos bem-sucedidas. Mas, além das palavras,
é preciso também reconhecer e definir classes de formas menores
(morfemas) e maiores (sintagmas, orações), que apresentam proble­
mas de definição comparáveis; ver quanto a isso Perini, 1985a, capitu-
los 3 e 4. Aqui não levarei em conta as subdivisões da palavra, limi­
tando a exemplificação a formas compostas de urna ou mais palavras.
Creio que considerações parecidas se aplicarão, m utatis m utandis,
ao caso das formas presas que constituem internamente a palavra.

1.7.1 C oncepções d e “classe”

Na medida em que são explicitadas, as classes de formas se


concebem tradicionalmente segundo o ponto de vista chamado “clás­
sico” por Smith e Medin, 1981. Segundo essa concepção, as classes
de formas se definem em termos de características gramaticais ( “tra­
ços”) individualm ente_riece^iiqs e ju n ta m en te suficientes. Isto é,
cadálmêmbro de uma classe assim definida possui todos os traços
definitórios (ainda que possa também possuir outros traços, não rele­
vantes para a definição da classe); e qualquer forma que possua todos
os traços definitórios de uma classe é automaticamente considerada
como um membro dessa classe. Por exemplo, digamos que o adjetivo
seja definido como a palavra que (a) pode ser núcleo de um p redi­
cado nominal e (b) pode estar em j-elação de concordância com
um substantivo dentrojJe um sintagma nominal. Seguiídó"^o ponto
de vista clássico, só será’^adj'efivo üm a palavra que tenh^amb,as_as
características dã3as.'Ass^ím, &rancÕe um adjetivo, pois pode ocorrer
nas duas circunstâncias descritas.
(10) meu carro é branco
(11) comprei um carro branco / uma moto branca
Já ele não será um adjetivo porque, em bora tenha o traço (a), não
tem o traço (b). Por outro lado, toda e qualquer palavra que tenha
os traços (a) e (b) será, segundo essa definição, um adjetivo.
Uma caracteristica importante da visão clássica da classificação
é a natureza da relação entre classes e subclasses. Essa relação pode
ser expressa assim:
29

Se a classe X é uma subclasse da classe V, então os traços definitórios


de Y são um subconjunto dos traços definitórios de X.
[Adaptado de S m it h & M e d i .n , 1981.]
Por exemplo, digamos que os adjetivos se definem através dos traços
(a) e (b), vistos acima; e que além disso se subdividem em duas
subclasses de acordo com um terceiro traço, a saber, (c) poder
ocorrer em construções comparativas com m ais... do que. Nesse ca­
so, teremos duas subclasses de adjetivos: os como branco, que po­
dem ocorrer em construções comparativas, e os como respiratório,
c|ue não podem. As subclasses se definem em função dos traços (a),
(b) e (c) — branco é [ +a, -fb, + c ] e respiratório é [ +a, +b, —c ];
a classe geral (dos adjetivos) se define em função dos traços (a) e
(b): um subconjunto dos traços que definem as subclasses.
Vou examinar algumas conseqüências dessa posição, tentando
mostrar que a concepção clássica é inadequada para descrever a
categorização das formas lingüísticas.
Primeiro, observe-se que a concepção clássica estabelece classes
mutuamente exclusivas. Assim, se um item corresponde à descrição
dada na definição de uma classe (isto é, se ele tem todos os traços
ali especificados como definitórios), ele pertence a essa classe; se
houver discrepância em pelo menos um traço definitório, ele não
pertence a essa classe. Não há possibilidade de casos intermediários
entre as diversas classes ou subclasses. Ora, essa maneira de classi­
ficar traz inconvenientes notáveis quando se trata de formas lingüís­
ticas. Vou exemplificar com um caso já mencionado em um artigo
anterior (Perini, 1985b): tomemos as palavras bom , alto e seriamente.
Sabemos que, de acordo com diversos critérios gramaticais bem fun­
damentados, bom e alto são muito semelhantes em seu comporta­
mento, o que justifica o serem eles classificados juntamente (como
“adjetivos”) pela gramática tradicional. Já seriam ente difere dessas
duas palavras, assemelhando-se antes a outras como divinam ente
etc., usualmente chamadas “advérbios”. No entanto, alto por sua vez
difere de hom em pelo menos um traço importante, que è a proprie­
dade de ocorrer em construções como as exemplificadas abaixo:
(12) Adauto fala alto
(13) * Adau to fala bom
Poderíamos, sem abandonar a visão clássica, colocar alto e bom em
duas subclasses de adjetivos. No entanto, essa análise esconde um
fato importante, a saber, que o traço utilizado para distinguir essas
duas subclasses é justamente um dos traços importantes que definem
os advérbios como seriamente-.
( 14) Adauto fala seriamente
30

Isso significa não apenas que alto é um adjetivo um pouco diferente


de bom , mas que essa diferença consiste em que alto tem um com­
portamento gramatical mais próximo do dos advérbios como seria­
m ente do que bom. Não há maneira de exprimir tal coisa dentro
de uma perspectiva clássica, que não admite casos intermediários
entre as diversas classes e subclasses. Logo, se aceitarmos que é im­
portante, ao descrever as propriedades sintáticas de alto, expressar
sua semelhança com os advérbios, teremos de admitir que a concep­
ção clássica é inadequada neste particular.
A única maneira de tratar tais casos dentro da visão clássica
é admitir uma proliferação muito grande de subclasses, dado que
a variedade de comportamentos sintáticos entre os itens léxicos é
muito grande. Tomemos novamente o exemplo dos adjetivos branco
e respiratório-, vimos que eles diferem quanto ao traço (c) “poder
ocorrer em construções comparativas”. Assim, poderiamos, ainda
aqui, subdividir os adjetivos em [ +c], como branco, e [ - c], como
respiratório. Mas agora surge um outro problema, algo diferente
do que vimos em relação a alto-, os itens normalmente chamados
“substantivos”, que se definem como membros de uma classe distinta
dos adjetivos, também se subclassificam segundo exatamente o mesmo
critério. Médico pode ocorrer em construções comparativas, como
(15) Tiago é mais médico do que Menezes
ao passo que muitos outros substantivos, como mesa ou gato, não
podem ocorrer nessa construção. A concepção clássica nos obriga
a tratar o caso dos adjetivos e o dos substantivos separadamente,
sem relação um com o outro, o que me parece antiintuitivo: não
somente o traço se formula de maneira idéntica nos dois casos, como
em ambos os casos ele tem correlatos semânticos idénticos. Isto
é, temos um traço formal, definido em termos da possibilidade de

1
ocorrência em construções comparativas, traço esse que divide tanto
os adjetivos quanto os substantivos em subclasses. E, por outro lado,
esse traço corresponde muito estreitamente a um traço semântico,
a saber, a possibilidade de atribuir uma qualidade que admita grada­
ção. As palavras — tanto adjetivos quanto substantivos — que podem
ocorrer em ambiente comparativo possuem esse traço semântico;
já as palavras (adjetivos ou substantivos) que não ocorrem em compa- «
rativos não possuem o traço semântico em questão. Em tais casos,
ou a palavra tem sentido referencial, como mesa, ou então atribui
uma qualidade discreta, sem gradação possivel, como respiratório.
A concepção clássica nos impede de capturar esse paralelismo sintá- 'á
tico e semântico, forçando-nos a exprimir separadamente o fenô­
meno para os adjetivos e para os substantivos, como se se tratasse
de dois fenômenos independentes.

i
31

Voltando agora ao exemplo alto-, quando se em preende a tarefa


de examinar o comportamento gramatical das formas com vistas a
sua classificação, verifica-se que casos como os de alto são extrema­
mente freqüentes. Os limites entre as “classes” não são nítidos; mui­
tos itens se colocam em posições intermediárias com respeito a tra­
ços importantes. A multiplicação de classes, considerando uma nova
classe cada vez que um item se distingue minimamente dos demais,
é uma solução inadequada.
Outra solução seria, no caso por exemplo de alto, distinguir
dois itens homófonos, o alto “adjetivo” e o alto “advérbio”. Mas
também essa solução tem problemas, como apontei em um artigo
anterior:
“esse suposto advérbio [alto] teria um comportamento extremamente
anômalo. Na verdade, é só em frases do tipo de [5] que alto se asseme­
lha a seriamente. Nos outros ambientes em que cabe seriamente, alto
não cabe”.
[ P e r in i , 1985b, p. 286]
Isso é, classificar o “outro” alto como advérbio não nos livrará de
reconhecer sua irregularidade. Além disso, há que considerar que
existe um grupo de itens de comportamento semelhante ao de alto,
como baixo, fu n d o etc., o que enfraquece a teoria da homofonia
(ou seja, da coincidência fonológica) entre os dois presumidos itens
léxicos alto.
Mesmo em casos em que a gramática tradicional nos autoriza
a distinguir itens em classes separadas, a concepção clássica apresenta
inconvenientes análogos. Vejamos o caso dos itens casa, ele, branco
e este, que se classificam separadamente segundo a gramática tradi­
cional. Efetivamente, podemos identificar aí sem dificuldades quatro
conjuntos de traços sintáticos suficientes para separar claramente
os quatro itens. Mas a classificação em quatro classes estanques impe­
de a descrição dos agrupamentos desses itens quanto a suas analogias
sintáticas, agrupamentos esses que variam segundo o traço selecio­
nado. Se tomarmos o traço
(16) A propriedade de ocorrer após um artigo, formando a
seqüência um sintagma nominal.
deveremos agrupar casa e branco de um lado e ele e este do outro.
Já se escolhermos o traço
(17) A propriedade de concordar em gênero com o núcleo
do sintagma nominal a que pertence.
o agrupamento será branco e este de um lado, casa e ele do outro.
Ora, admitindo-se que tarito (16) quanto (17) são traços importantes
32

na gramática, como descrever esses agrupamentos dentro de urna


visão clássica?
Na gramática tradicional encontramos dois tipos de saida para
esse problema, mas nenhum a dessas saidas é satisfatória. A prim eira
consiste em acrescentar subtitules às classes; assim, se branco é um
“adjetivo”, este é um “pronom e adjetivo”, em oposição a ele, que
é um “pronom e substantivo”. Isso equivale a um abandono da visão
clássica das classes mutuamente exclusivas, o que, como veremos,
é realmente a solução mais adequada. Mas do modo que a encon­
tramos na gramática tradicional ela é insatisfatória porque tem a des­
vantagem (típica) de não ser explicitamente assumida, nem genera­
lizada para o conjunto do sistema. A outra solução é a de se falar
em “pronom e funcionando como adjetivo”, ou (para o caso de alto)
“adjetivo funcionando como advérbio”. Como já notei (Perini, 1985a,
p. 83), essa posição é incoerente, dado que “adjetivo” é aquilo que
funciona de determinada maneira, sintaticamente definida — logo,
se um item funciona de outra maneira qualquer (por exemplo, “co­
mo advérbio”), deixa automaticamente de ser um adjetivo.
Essas inadequações da concepção clássica não são novidade;
mas ao que parece tem havido poucas tentativas de incorporar as
observações feitas em descrições coerentes e abrangentes. A passa­
gem seguinte (escrita em 1886) já coloca a questão com razoável
clareza:
“Se [...] na divisão usual das partes do discurso temos de tomar em
consideração tantos problemas que podem entrar em conflito uns
com os outros, é muito natural que essa divisão não se possa de todo
realizar. As circunstâncias que entram aqui em linha de conta são
demasiado diversas e aparecem em combinações demasiado variadas
para que uma classificação em oito ou nove alíneas possa ser suficiente.
Há uma quantidade de graus intermédios, graças aos quais é possível
uma passagem gradual duma classe para a outra”.
[ P aul , s/d [1920], p. 375.]
A questão, já na época, deveria ser a de como representar essa
situação com um mínimo de precisão. No entanto, em trabalhos re­
centes continuamos a encontrar implicitamente a concepção clássica
das classes estanques e mutuamente exclusivas. Martinet, 1979, por
exemplo, classifica os morfemas (m onèm es, na sua terminologia)
em certo núm ero de classes, segundo critérios estritamente formais,
mas de acordo com a visão clássica. É verdade que Martinet reco­
nhece a existência de problemas de imprecisão decorrentes desse
ponto de vista, mas relega tais casos a uma categoria marginal, a
que dá a designação de “transferência” {transferi), não lhes conce-
33

tiendo um papel importante na descrição. Para ele as classes são


a base da descrição, e os casos limítrofes se tratam como desvios.
Em tais casos
“há transferência de uma classe para outra: em le petit s’est cassé la
jambe, petit se encontra temporariamente transferido para a classe
dos substantivos, como pilote, em une ferme pilote, está transferido
para a classe dos adjetivos”.
[ M a r t i n e t , 1979, p. 30.]

Em contraste, a posição adotada no presente trabalho assume


o caráter complexo da classificação das palavras como um dos fatos
centrais na descrição gramatical. “Complexo”, naturalmente, não
cjuer dizer “contínuo”; advogo um sistema de traços capaz de descre­
ver de maneira discreta e precisa (e, em última análise, exaustiva)
o comportamento gramatical das palavras.
Poucos autores atuais reconhecem explicitamente a situação.
Um destes é Ross, que propõe
“em vez de um inventário fixo, discreto, de categorias sintáticas, um
quase-contínuo”.
[Ross, 1972, p. 316.]
O artigo de Ross, embora muito programático, tem pontos de
interesse. Mas tem também, a meu ver, a inadequação de tender
a considerar um contínuo (ou um “quase-contínuo”) de comporta­
mentos gramaticais, ao passo que me parece mais conveniente partir
da hipótese de que o comportamento gramatical se deixa descrever
em termos de traços discretos.

1.7.2 Traços d istin tivo s

À luz das considerações da seção precedente, faz-se necessário


adotar um sistema mais flexível do que o das classes estanques, para
descrever o comportamento gramatical dos itens léxicos, assim como
dos sintagmas maiores. Um candidato óbvio é o sistema de descrição
por traços distintivos, usual em fonologia, mas que não se levou
ainda a suãs últimas'cbnseqüéncias em sintaxe. Examinemos os pos­
síveis resultados do uso desse sistema no estabelecimento de uma
taxonomia das formas sintáticas.
Em primeiro lugar, é preciso perguntar: o que vale como “traço
distintivo” em gramática?
Considerando-se que a taxonomia pretende agrupar os itens
em função de suas semelhanças de comportamento gramatical, cada
34

traço distintivo será a descrição de um aspecto desse comportamento


gramatical, considerado como “atômico”. Retomando alguns exem­
plos vistos anteriormente, vou exemplificar com as formas casa,
branco, ele, este, bem e alto. Vamos utilizar três traços, a saber, (16)
e (17), já vistos, que repito aqui.
(16) A propriedade de ocorrer após um artigo, formando a
seqüência um sintagma nominal.
(17) A propriedade de concordar em gênero com o núcleo
do sintagma nominal a que pertence.
A esses dois traços acrescentaremos agora um terceiro:
(18) A propriedade de ocorrer após verbo e sintagma nominal
opcional, sem concordar, formando a seqüência um sin­
tagma verbal.
A condição sem concordar significa que a palavra ficará em
sua forma não-marcada (que, para os adjetivos, é a que chamamos
“masculina”; ver a respeito Martin, 1975). Exemplos de realização
deste terceiro traço são sintagmas verbais como canta alto, fa la va
francês bem etc. (Assinalo, aliás, que estes traços são usados aqui
unicamente para efeitos da exposição do momento; escolhi-os por
serem facilmente compreensíveis e aplicáveis; isso não significa que
sejam necessariamente utilizados, na forma aqui proposta, na análise
a ser desenvolvida a partir do capítulo 2.)
Convencionemos que um item que possua a propriedade des­
crita por um traço é marcado positivamente (“ + ”) quanto a esse
traço; e um item que não possua essa propriedade é marcado negati­
vamente (“ - ”) quanto ao traço. Assim, as palavras escolhidas serão
marcadas de acordo com a seguinte matriz:

(19)
{traço) casa branco ele este bem alto
(16) -1- -1- - - -1- -1-
(17) - -1- - -1- - -1-
(18) - - - - -1- -1-

Essa matriz representa, de maneira compacta e precisa, o com por­


tamento gramatical desses seis itens com respeito às três proprie­
dades estudadas.
A matriz poderia levar-nos a definir seis classes, pois permite
distinguir os seis itens todos entre eles. A seguir essa tendência,
definiríamos cada uma das classes através de três traços: casa perten­
35

ceria a uma classe cuja definição seria [ +16, -1 7 , —18]; ou seja,


.1 l iasse dos itens que têm a propriedade 16, e não têm as proprie-

tlades 17 e 18. Isso, naturalmente, seria recair na visão clássica, que


como vimos é inadequada. No entanto, veremos que essas definições
de classes podem ser úteis desde que encaradas em sua perspectiva
própria: como abreviaturas de matrizes típicas, que permitem uma
descrição aproodmativa de muitos fenômenos da língua (seção 1.9).
Por ora, vamos recapitular as vantagens que nos apresenta a análise
em forma de matriz.
Primeiro, a matriz (19), além de classificar os seis itens em gru­
pos, exprime suas diferenças e semelhanças de maneira bastante
delicada. Assim, por exemplo, sabemos que casa e branco são mais
semelhantes entre si do que branco e ele (a diferença, no prim eiro
caso, é de um traço, e no segundo de dois traços). Por outro lado,
não somente a matriz nos revela o grau de semelhança que há entre
dois itens dados, mas também nos informa quanto ao tipo de paren­
tesco que existe entre eles. O grau de semelhança entre casa e ele
é o mesmo que existe entre casa e branco (um traço de diferença),
mas o tipo é diferente: o prim eiro par contrasta quanto à propriedade
tie ocorrer ou não após artigo, o segundo quanto à propriedade
de concordar em gênero ou não.
Em segundo lugar, só o sistema de traços possibilita capturar
;ls classificações cruzadas, isto é, as propriedades que se aplicam
a mais de uma “classe”, dividindo-as segundo o mesmo critério, co­
mo vimos no caso da subdivisão dos adjetivos e dos substantivos
quanto à propriedade de poderem ocorrer em construções compa­
rativas.
As vantagens apontadas são decorrência da maior flexibilidade
tio sistema de traços; como todas as indicações são de que os fatos
relativos à taxonomia das formas são complexos, o sistema de traços
fornece meios mais convenientes de tratar o problem a do que o
sistema clássico, baseado em classes rígidas e mutuamente exclusivas.

1.8 “Fatos” em g ra m á tic a

1.8.1 “Evidência sintática”


Antes de qualquer tentativa de analisar em traços o com por­
tamento gramatical das formas lingúísticas, é necessário ter uma idéia
tios critérios que podem ser levados em conta para a formulação
tiesses traços. O que, exatamente, pode ser considerado “com por­
tamento gramatical” de um item? Ou, para colocar a questão nos
lermos usados por Gross, 1979: O que é um “fato” em sintaxe?
36

Vou formular a questão, preliminarmente, assim: (a) Q ue tipos


de dados são relevantes como evidência para justificar a análise sintá­
tica superficial?; e (b) Até que ponto se pode falar em “evidência
sintática”, ou em “dados sintáticos”, em oposição a dados semânticos,
fonológicos etc.?
O fenômeno lingüistico não se divide naturalmente em com po­
nentes; estes são resultado de uma elaboração teórica e, conseqüen­
temente, dependem muito estreitamente da teoria que se constrói.
Sempre existe um tipo de evidência que é fundamental para a investi­
gação e que não se pode discriminar quanto a componentes da des­
crição. É o caso, notadamente, da aceitabilidade: sabemos que é ne­
cessário lidar com julgamentos de aceitabilidade para obter dados
para a análise lingüistica; e não creio que seja possivel, em casos
particulares, atribuir a priori esses julgamentos a razões ligadas a
um componente especifico da gramática. A atribuição é sem pre resul­
tado de uma interpretação teórica: um exemplo recente são os vai­
véns da teoria gerativa para descrever as violações selecionais, coloca­
das na semântica, depois na sintaxe, depois novamente na semântica.
Podemos estabelecer como nosso prim eiro ponto que os julga­
mentos de aceitabilidade são fatos a serem levados em conta para
a análise sintática; e acrescentaremos que, além da própria, infor­
mação a respeito da aceitabilidade das seqüências, esses julgamentos
tomados isoladamente nada mais nos dizem que seja relevante para
a elaboração da gramática. Em particular, não nos podem ajudar
a interpretar os fenômenos observados como sendo ligados a este
ou àquele componente da gramática, a não ser após sua integração
em uma teoria qualquer.
Essa conclusão poderia valer, estritamente falando, para todo
tipo de evidência formal imediata, como, por exemplo, a segmentação
e seqüência dos elementos do enunciado. Confrontado com a se­
qüência que se representa ortograficamente como
(20) os gatos miaram a noite toda
alguém que se colocasse de um ponto de vista (pretensamente) pré-
teórico poderia questionar a afirmação de que os vem logo antes
de gatos: por que não dizer, em vez, que osga vem antes de tos!
Mas com isso, evidentemente, estaríamos desprezando o “terre­
no conquistado” da lingüística (que não é nada pequeno). Esse terre­
no conquistado corresponde àquela parte do corpo de doutrina da
lingüística que, pode-se dizer, não é controverso. Dentre as afirma­
ções que se podem fazer acerca de (20), e que não padecem de
controvérsia entre os lingüistas, está a de que os e gatos são unidades
em determinado nível, e que osga e tos não são. Não faz sentido
37

regredir, a cada momento da análise, à estaca zero: é certamente


preciso questionar parte da proposta da lingüística atual, mas não
loda ela, Assim, é perfeitamente admissível aceitar que (20) se divide,
em determinado nivel de análise, em seis “palavras”, que se ordenam
de determinada maneira. Essa segmentação em palavras faz parte
(.los fatos relevantes para a análise. Já não se trata, como no caso
tl( )s julgamentos de aceitabilidade, de dados pré-teóricos (isto é, inde­
pendentes de qualquer teoria lingüística prévia), mas de observações
mistas, dependentes de urna elaboração teórica de aceitável grau
de segurança, podendo ser incluídas como parte da evidência para
a análise.
Ora, a segmentação em palavras, sendo resultado de certo grau
de teorização, já pode ser rotulada em relação aos componentes
tía gramática — por exemplo, nunca poderia ser considerada fonoló­
gica. Trata-se, então, de um “dado sintático”. Nesse sentido, pare-
ce-me adequado falar de “dados sintáticos”, “semânticos” etc. Aqui
já não nos referimos a dados brutos; pressupomos um grau mais
ou menos avançado de elaboração teórica, grau esse considerado
seguro a ponto de dispensar questionamento. Entenderemos, pois,
a expressão “dados (fatos) sintáticos” e seus paralelos como urna
abreviatura de “dados que já se podem considerar dentro do ámbito
da sintaxe, tal como considerada pela imensa maioria dos lingüistas”.
Estamos aqui louvando-nos no progresso feito pela lingüística du­
rante toda a sua história, o que me parece inevitável. No que se
segue, vou tentar relacionar os tipos de dados que se podem colocar
na categoria de “sintáticos”, segundo a definição acima.

1.8.2 Posição linear na seqüência


Primeiramente, temos a posição linear na seqüência, em relação
principalmente aos vizinhos imediatos. Para cada unidade lingüística
(digamos, para cada palavra) é possível estabelecer um conjunto de
entornos mais ou menos imediatos onde ela pode ocorrer.
A posição linear (independentem ente das funções sintáticas)
deverá ser útil na descrição da estrutura interna dos sintagmas com­
ponentes da oração, assim como na descrição da forma “final” das
sentenças, que admite diversas posições para a maioria dos consti­
tuintes, sem necessariamente haver diferença de função:
(2 1 )
a. Walter bateu a porta furiosamente
b. furiosamente Walter bateu a porta
c. a porta, Walter bateu furiosamente
etc.
38

1.8.3 Constituintes
Outra categoria de “fatos sintáticos” a levar em conta é a estrutu­
ração em constituintes: o fato de que certos elementos da seqüência
se agrupam em unidades maiores, sintaticamente solidárias. Isso se
pode verificar pela observação de sentenças “correspondentes” (ver
1.8.6), e é também até certo ponto acessível à intuição direta. Assim,
em (21a), bateu a porta é, muito provavelmente, um constituinte,
ao passo que a porta furiosam ente não é.
Sabemos que a estruturação em constituintes tem uma face se­
mântica que segue muito de perto a face formal; os constituintes
sintáticos são, quase sempre, interpretados também solidariamente,
o que talvez seja o principal fator responsável pela existência das
intuições diretas. No entanto, acho que a observação das correspon­
dências, onde se verifica que os constituintes podem ser “movimen­
tados” também solidariamente, revela uma face claramente sintática
do fenômeno. Um exemplo seria
(2 2 )
a. minha prima leu « obra com pieta de M onteiro Lobato
b. a obra compieta de M onteiro Lobato, minha prima leu
c. foi a obra com pieta de M onteiro Lobato que minha
prima leu
etc.
Existem também alguns raros casos em que o paralelismo sintaxe/se­
mântica falha, no, que diz respeito aos constituintes. Nesses casos,
observa-se que seqüências que são semanticamente coesas não se
comportam como constituintes, o que ilustra o fato de que a estrutu­
ração em constituintes tem uma face formal. Por exemplo,
(23)
a. este artigo foi difícil de entender
b. o que este artigo foi foi difícil de entender
c. difícil de entender este artigo foi
Nessas frases, a semântica exigiria aparentemente uma seqüência
“entender + este artigo”, seqüência essa que não aparece como
constituinte na sintaxe superficial.

BA Manifestações da relação de "regência”

Tradicionalmente, estabelece-se, no nível sintático, uma relação


chamada de “regência”, segundo a qual constituintes incluídos em
unidades maiores se relacionam assimetricamente; a idéia é que um
constituinte determina, de alguma maneira, a forma do outro. Em
39

português, tal fenômeno se manifestaria principalmente sob a forma


cie concordância e de aparecimento de pronomes oblíquos. Assim,
diz-se que o verbo “concorda com o sujeito”, ou seja, o sujeito deter­
minaria a forma do verbo.
Esse é sem dúvida um “fato sintático”, em bora não precise ne­
cessariamente ser interpretado como efeito de uma espécie de pre­
dominância de um termo sobre o outro. Conforme se verá no capí­
tulo 2, a concordância pode (e possivelmente deve) ser analisada
como uma condição de harmonia entre certos termos (por exemplo,
o sujeito e o verbo de uma oração), sem que haja propriam ente
relação assimétrica. Ou seja, deve-se dizer: “o sujeito e o verbo não
discordam em número e pessoa”, e não: “o sujeito obriga o verbo
a concordar em número e pessoa”. Essa análise, e as razões para
adotá-la, estão na seção 2.3.3.
Por ora, basta observar que o fenômeno da concordância é um
lato sintático observável, e portanto utilizável na formulação de traços
e na argumentação sintática. Podemos encaixar o fenômeno da con­
cordância dentro de uma categoria geral de “regência”, entendida
esta como uma classe de fenômenos de vinculação entre termos
particulares de estruturas: entre o sujeito e o verbo, ou entre os
constituintes de um sintagma nominal etc.
O caso da ocorrência de pronomes oblíquos, como em
(24)
a. Romeu comeu a melancia
b. Romeu comeu-a
parece ser a conseqüência diretamente visível de uma função sintá­
tica, no caso a de objeto direto. Também se pode entender este
c;iso como de vinculação entre termos, já que a própria noção de
"função sintática” é uma noção relacional, que tenta descrever as
vinculações diferenciadas entre os diversos constituintes da oração.
Mas aqui, parece-me, o fenômeno é algo mais complexo que o da
concordância, porque não é tão claro quais são os termos vinculados:
“objeto direto” será uma relação entre um sintagma nominal e o
verbo da oração, ou antes entre um sintagma nominal e o todo da
(>ração?
Não podem os discutir agora esse problema; fique a observação
de que também a ocorrência de pronom es oblíquos é um “fato sintá­
tico” potencialmente relevante para a análise.
Os três tipos de fatos sintáticos acima relacionados, a posição
liiiear, a e s tru tu r^ ^ _ e m constituintes e as relações de. regência,
classificam-se como “sintagmáticos”. Há também fatos sintáticos de
iKitureza paradigmática, utilizados com freqüência na justificação de
40

análises. São essencialmente de três tipos, a saber: substituibilidade;


correspondência sintática entre formas; e retomada pronominal. Pas­
so agora a examinar cada um deles.

1.8.5 Substituibilidade
O critério da substituibilidade é freqüentemente tomado como
essencial para o estabelecimento de classes de formas, mas nem
sempre sua aplicação é isenta de problemas. Consiste em atribuir
um traço comum a seqüências que se podem substituir mutuamente
em um ambiente dado, definido também em função de seqüências.
Assim, temos
(24) Caim matou Abel
No lugar de Caim podem os colocar a poiícia, a m eningite ou as
preocupações que ibe advieram da queda da hoisa. A todas essas
seqüências atribuimos então um traço comum; e podemos, por
exemplo, dar-lhes um rótulo comum, o de “SN”. No lugar de m atou
Abei, podem os ter chegou, é o m eihor am igo do m eu irm ão etc.,
e assim por diante. Observe-se que o ambiente se define em termos
puros de seqüência, seja citando os próprios itens, como por exemplo
(25) matou Abel
seja referindo-se a classes previamente estabelecidas, como em
(26) SV
As funções não são levadas em conta, não havendo inclusive, presum i­
velmente, sido definidas ainda.
Conforme apontei, o critério da substituibilidade não é sempre
fácil de aplicar. A julgar pelos exemplos abaixo,
(27) nós chegamos tarde ao concerto
(28) ontem chegamos tarde ao concerto
teríamos de admitir que nós e ontem são substituíveis nesse contexto,
e que portanto devem receber um traço comum. Gramaticalmente
falando, isso não faz muito sentido: sabemos que nós e ontem são
palavras muito diferentes quanto a suas propriedades sintáticas.
Isso se evidencia, claro, quando consideramos um conjunto
maior de ambientes, como por exemplo
(29) ontem / * nós cheguei tarde ao concerto
(30) * ontem / nós viajaremos para Maceió
(31) sem * ontem / nós vocês não vão conseguir nada
(32) o dia de ontem / * nós foi terrível para mim
41

Agora podemos ver com mais clareza que ontem e nós, embora
se substituam ern alguns ambientes, tém urna distribuição global
milito diferente. É de se esperar, aliás, que dois itens quaisquer te­
nham alguns traços em comum (como nós e ontem tém em comum
o traço de ocorrerem no ambiente “ ___ chegamos tarde')-, mas
I)(idem, ainda assim, ser profundamente diferentes quanto a seu com­
portamento gramatical.
O grande problema aqui, ao que me parece, é o de estabelecer
0 (|ue é um traço sintático importante. Os traços se definem em
termos de ambientes individuais; mas como determinar quais são
os ambientes a serem levados em conta preferencialmente, na análi-
sc? Ou seja, como se poderá estabelecer uma hierarquia entre os
diversos traços possíveis?
Isso se faz sobre bases em grande parte intuitivas, partindo de
uma visão antecipada que o lingüista certamente tem do que deve
ser a descrição da língua. Uma consideração que pode ser levada
em conta é a coincidência de grande núm ero de traços; assim sejam
1)s itens nós, ontem e am anhã. Eles são todos diferentes, estritamente
f;tlando, pois não podem ocorrer exatamente no mesmo conjunto
tie ambientes. No entanto, ontem e am anhã aparecem em muitos
;imbientes dos quais nós está excluído, o que nos pode levar a valori­
zar em especial aqueles traços que identificam ontem e am anhã,
clíLssificando-os juntos em oposição a nós.
Pode-se detectar nesse procedimento um elemento de circula­
ridade; e não creio que haja maneira de evitá-lo. O fato é que não
liá esperanças de desenvolver “procedimentos de descoberta” que
nos levem, mais ou menos automaticamente, dos dados à análise.
A análise lingüística — como apontou até mesmo um estruturalista
como Hockett, 1958 — é em grande medida uma arte. De qualquer
modo, será útil tentar explicitar princípios que nos auxiliem a hierar-
(|uizar os traços entre eles, e esse da coincidência dos cortes que
cada um deles estabelece dentro da massa dos itens léxicos é pelo
menos o embrião de um desses princípios. Voltarei a este ponto
na seção em que trato dos protótipos (1.9).
Por ora, observemos que o critério da substituibilidade funciona
sob a condição de que não se pode nunca considerar os ambientes
isoladamente; a substituibilidade é um instrumento para estudar a
ilistribuição dos itens no conjunto da língua. E é essa distribuição,
amplamente considerada, que fornece a base para a classificação
dos itens segundo o critério da substituibilidade; é a distribuição
ampla, antes que a substituibilidade em um ambiente específico,
c|ue merece ser colocada entre os “fatos sintáticos” que nos inte­
ressam.
42

Embora seja, como apontei, um critério usado no estabeleci­


mento de taxonomías, a substituibilidade não parece ter sido sem pre
concebida com rigor; talvez isso se deva em parte a uma crença
implícita no caráter presumivelmente muito regular dos fenômenos
sintáticos. Assim, Revzin apresenta o seguinte raciocínio;
“Mostremos, por exemplo, que a frase Une idée dort furieusement
é corretamente construída. Com efeito, a frase Une fillette dort tran-
quülement [...] é corretamente construída [...]
As pzXxvvas furieusement e tranquillement pertencem a uma mesma
classe contextuai (segundo o contexto ‘r e g a r d e r As palavras fillette
e idée fazem parte da mesma classe (segundo o contexto ‘u n e ... heu-
reuse')”.
[ R e v z in , 1968, p. 62 ]
Revzin parte daí para mostrar que as duas frases são igualmente
bem construídas, pois ambas correspondem à mesma análise admi­
tida pela gramática.
Questiono, no entanto, a facilidade com que Revzin chega à
conclusão de que fillette e idée pertencem à mesma classe. Na prática,
bastou que encontrasse um único ambiente onde as duas são substi­
tuíveis para que se sentisse autorizado a fazer a afirmação de que
pertencem à mesma classe. Para mim isso é insuficiente; seria muito
fácil contrapor aos exemplos de Revzin um bom núm ero de contra-
exemplos nos quais fillette e idée não podem em absoluto substi­
tuir-se mutuamente; isso faz com que a escolha de Revzin daquele
ambiente particular seja arbitrária. Tomando os equivalentes portu­
gueses m enina e idéia, podem os ter:
(33) Carlos exprimiu claramente suas idéias / * meninas
(34) ouvi as meninas / * idéias no quarto ao lado
(35) essas meninas / * idéias estão um pouco gordas
(36) essas idéias / * meninas foram propostas por Newton em
1666
e, por que não,
(37) uma menina / * idéia está dormindo
É claro que essas diferenças podem dever-se (e provavelmente
se devem) a razões semânticas. Mas mesmo essa observação depende
de havermos traçado com alguma precisão os limites entre a sintaxe
e a semântica. O que importa observar aqui é que a simples verifi­
cação de que dois itens não se podem substituir em determinado
ambiente não basta para que sejam colocados em classes diferentes;
e a simples verificação de que dois itens podem ocorrer em um
ambiente não basta para colocá-los na mesma classe (entendendo
43

.njui “classe” no sentido tradicional), No máximo, poderíamos dizer


ijiie esses itens têm um traço em comum. Agora, ter um traço em
comum não equivale a pertencer à mesma classe no sentido tradicio­
nal. Senão, poderíamos classificar juntos os itens nós e ontem , com
base nas frases (27) e (28). Aqui se vê bem claramente que só uma
concepção muito ampla de substituibilidade (válida para conjuntos
amplos de ambientes) é que permite que esse critério tenha utilidade
metodológica em sintaxe.
Outro aspecto falaz do raciocínio de Revzin é o critério duplo
utilizado para estabelecer a “correção” das construçóes consideradas.
1’ara a frase U neflllette dort tranquillem ent, o critério é o de aceitabi-
1idade (intuição dos falantes). Já para a frase Une idée dortfurieuse-
m ent, é o de analogia de construção sintática com a primeira frase.
Mas note-se que o primeiro critério (aceitabilidade) rejeita a segunda
frase. Assim, é possível reduzir a argumentação de Revzin a um sofis­
ma, da forma: (i) segundo o critério A, a frase F é correta, mas a
frase / é incorreta; (ii) segundo o critério B, a frase / é correta; e
(iii) logo, tanto a frase F quanto a frase / são corretas: F segundo
o critério A, e I segundo o critério B. A se aceitar esse tipo de racio­
cínio, qualquer coisa pode ser demonstrada, pois a noção de “corre­
ção de uma construção”, básica para o argumento, não tem coerência.
A noção de substituibilidade, entendida em relação com o con­
junto dos ambientes em que um ou mais itens podem ocorrer, é
útil, talvez indispensável no estabelecimento de taxonomías. Assim,
não poderá ser dispensada, no que pesem certos problemas na sua
:iplicação.

1.8.6 Correspondência

Em muitas teorias de sintaxe é usual considerar como “fatos


sintáticos” certas relaçóes que vinculam privilegiadamente determi­
nados pares (ou grupos maiores) de estruturas entre elas. Assim,
podemos encontrar nas gramáticas tradicionais a afirmação de que
a uma frase passiva “corresponde” uma frase ativa; aqui está subja­
cente a idéia de que passivas e ativas se vinculam de alguma forma,
.sintática e/ou semanticamente. Não se trata de paráfrase, porque há
pares ativa/passiva que diferem quanto ao significado, e também há
pares de sentenças de estrutura diversa (não “correspondentes”) que
|X)dem, não obstante, ser consideradas paráfrases, como por exemplo
(38) Carlos e Maria se casaram
(39) Carlos se casou com Maria
44

Existe, portanto, realmente uma noção de “correspondência” na gra­


mática tradicional, assim como na maioria das teorias sintáticas mo­
dernas, noção esta que ainda não se definiu em termos operacionais.
Dentro de uma teoria transformacional, por exemplo, considera-se
que a uma frase que contém um term o topicalizado corresponde
uma frase na qual o “m esm o” term o não está topicalizado, como
no par
(40) Zequinha lavou o carro
(41) o carro, Zequinha lavou
As análises comuns consideram o carro como objeto direto não ape­
nas em (40), mas também em (41), onde pelo menos a sua posição
seqüencial já não é a posição considerada tipica do objeto direto.
Isso se descreve em termos de uma estrutura subjacente idêntica
ou semelhante a (40), da qual se deriva (41) através de uma regra
ou princípio de transporte do objeto para o início da oração.
Gross, 1979, ao considerar a questão de o que é que vale como
“fato” em lingüística, caracteriza as abordagens transformacionais
através desse tipo de relação entre estruturas:
“[...1 Na gramática transformacional, Harris, 1952, mudou a noção de
fato lingüístico ao fazer das relações entre as formas sintáticas o ponto
central”.
[G ro ss, 1979, p. 862.]
A questão que me preocupa aqui é a seguinte: dado um grupo
de formas sintáticas consideradas como estando em relação de cor­
respondência — por exemplo, um grupo de frases transformacio-
nalmente relacionadas —, que justificação se pode dar, ao nivel da
estrutura superficial, para o estabelecimento dessa relação? Ou, ven­
do o problem a de outro ángulo: que repercussões tem urna relação
transformacional entre estruturas na superficie? Note-se que a identi­
ficação dessas repercussões terá valor heurístico, podendo ser utiliza­
da para justificar uma análise em confronto com outra.
Não quero dizer, entretanto, que toda relação transformacional
tenha, necessariamente, de apresentar repercussões superficiais sin­
táticas ou características semânticas coerentes. Elas podem ser resul­
tado da prõpria organização do m odelo utilizado, justificando-se em
termos de sua simplicidade e elegância. Mas, por um lado, acredito
que muitas das correspondências usualmente admitidas têm reper­
cussões observáveis na sintaxe (e também na semântica, como se
verá); e, depois, essas relações me interessam particularmente, pois
serão extremamente úteis quando da definição das classes e funções
sintáticas.
45

Vou, portanto, procurar levantar uma lista de grupos de formas


sintáticas habitualmente postas em correspondência pelas análises
aluais, e procurarei caracterizá-las, no todo ou em parte, a fim de
ciiegar a uma definição razoável de “correspondência”, entendendo
c‘ssa noção como aplicável no nível da superfície. Procuro, em outras
palavras, o que têm de comum os diversos grupos ( “grupos de cor­
respondência”), no que diz respeito a suas manifestações superficiais
formais.

1.8 .6.1 Casos de correspondência

Vou considerar nove casos de agrupamentos de formas sintáti­


cas, cada um dos quais é considerado um relacionamento transforma­
cional por pelo menos uma teoria recente. A partir dessa lista, procu­
rarei uma definição de “correspondência” que agrupe um subcon­
junto coerente tanto desses casos como daqueles cuja correspon­
dência aparece na superfície com características formais comuns.
1'inalmente, farei algumas considerações sobre os possíveis corre­
latos semânticos da correspondência assim definida.
São os seguintes os nove casos;
Caso I: Topicaiização
É a relação que ligg (40) e (41), por exemplo:
(40) Zequinha lavou o carro
(41) o carro, Zequinha lavou
Caso II: Ciivagem
Por exemplo, (40) e
(42) foi o carro que Zequinha lavou
Incluo também aqui os casos de “pseudoclivagem”, como em
(43) o que Zequinha lavou foi o carro
Caso III: M ovim entação de advérbios
Responsável pelo relacionamento de frases como
(44) evidentemente, Sarita foi para o Rio
(45) Sarita, evidentemente, foi para o Rio
(46) Sarita foi, evidentemente, para o Rio
etc.
46

Caso rV: M ovim entação de objetos


Responsável pela troca de lugar do objeto direto e do indireto:
(47) Beré deu um presente a Joca
(48) Beré deu a Joca um presente
Caso V: Passivização
Relaciona (40) com
(49) o carro foi lavado por Zequinha
Caso VI: Posposição de sujeito (Extraposição)
(50) alguns convidados já chegaram
(51) já chegaram alguns convidados
Caso VII: Anteposição de adjetivos
(52) ontem foi um dia lindo
(53) ontem foi um lindo dia
Caso VIII: “Prom oção”
Várias relações, estudadas prim eiram ente por Fillmore, 1970.
Por exemplo,
(54) abriram a porta
(55) a porta abriu
Caso DC: Relação recíproca
(56) Carlos e Maria se casaram
(57) Carlos se casou com Maria
Essa lista é muito heterogénea, tanto do ponto de vista formal
quanto do semântico. Vou propor adiante uma definição de “corres­
pondência” que captura parte dos exemplos, aqueles que apresen­
tam características formais (e também semânticas) mais coerentes;
os demais casos serão considerados como de não correspondência
superficial.
A intuição básica que nos pode guiar na procura de uma defini­
ção é a de que “formas correspondentes” são, de alguma maneira,
variantes de uma mesma construção; por conseguinte, é de supor
que tenham as mesmas propriedades sintáticas (as mesmas funções
sintáticas), assim como uma semântica semelhante. Não podemos
lançar mão da identidade de funções para definir as correspondên­
cias, porque essas funções sõ serão definidas, por sua vez, no prõxi-
47

mo capítulo. Assim, vou procurar uma definição que capture aquela


intuição e que não dependa do estabelecimento prévio das funções
sintáticas.

D efin içã o d e “co rresp o n d ên cia ”

Vou começar por propor a definição; depois exemplificarei sua


;iplicação e examinarei suas conseqüências.
A definição é a seguinte:
C orrepondência (definição)
Duas formas A e B são correspondentes se for possível estabe­
lecer entre todos os termos de A 'e todos os termos de B um
relacionamento um-a-um tal que:
(a) os membros de cada par assim formado são preenchidos
por itens léxicos idênticos; e,
(b) para qualquer preenchim ento léxico idêntico dos pares,
a aceitabilidade de A implica a aceitabilidade de B, e
vice-versa; e a inaceitabilidade de A implica a inaceita­
bilidade de B, e vice-versa.
Vejamos, como exemplo da aplicação dessa definição, o caso
das frases (40) e (41):
(40) Zequinha lavou o carro
(41) o carro, Zequinha lavou
Verificaremos, aplicando a definição, que essas duas frases são corres­
pondentes. Primeiro, é possível estabelecer entre todos os termos
de (40) e todos os de (41) um relacionamento tal que os preenchi­
mentos léxicos são idênticos:
Zequinha lavou o carro

o carro, Zequinha lavou

1)epois, qualquer substituição paralela dará resultados idênticos nos


dois casos, no que diz respeito à aceitabilidade. Assim, se (58) é
aceitável, (59) também é; e, se (60) é inaceitável, (61) também é:
(58) Zequinha vendeu o carro
(59) o carro, Zequinha vendeu
(60) * Zequinha ííiscwrsoíT o carro
(61) * o carro, Zequinha discursou
48

Não é difícil multiplicar os exemplos, substituindo Zequinha, o carro


etc. Veremos que qualquer substituição paralela dá resultados idên­
ticos nas duas formas. Assim, concluímos que (40) e (41) são corres­
pondentes (ou se correspondem).
Já em outros casos, apesar de os itens léxicos serem idênticos,
a correspondência não se verifica, como em
(56) Carlos e Maria se casaram
(57) Carlos se casou com Maria
Há substituições paralelas que dão resultados diferentes nos dois
casos, como
(62) Carlos e Maria se odiavam
(63) * Carlos se odiava com Maria
Devemos concluir que (56) e (57) não se correspondem.
Examinando os nove casos relacionados na seção precedente,
verificamos que há correspondência nos casos I, III e IV; não há
correspondência nos casos V a IX (deixarei de lado o caso II, “cliva­
gens”, por ora). Por exemplo, há correspondência entre as frases
(40) e (41), assim como em um grande núm ero de outros pares
que, intuitivamente, colocamos na mesma categoria ( “topicaliza-
ções”), como em
(64) Sandra recebe dinheiro da Máfia
(65) da Máfia, Sandra recebe dinheiro
e também entre (64) e
(66) dinheiro, Sandra recebe da Máfia
Assim, em bora a correspondência tenha sido definida acima como
sendo uma propriedade de pares de formas sintáticas individuais
{tokens), pode-se dizer, informalmente, que certos pares de estru­
turas {types) também estão em correspondência. Quando for possível
caracterizar essas estruturas em termos de classes e funções, será
também possível generalizar a definição de correspondência para
englobar estruturas, e não apenas formas individualizadas.
Os casos em que se verifica a correspondência são, pois, I, III
e rv. Os casos em que não há correspondência, a saber V a DC, são
todos caracterizados por idiossincrasias léxicas mais ou menos gene­
ralizadas, como no caso da passivização (que não vale para todos
os verbos transitivos), ou da posposição de sujeito (que não vale
para todos os verbos), ou da promoção (igualmente restrita a alguns
verbos) etc. Já os casos de correspondência parecem ser indepen­
dentes de idiossincrasias léxicas, sendo antes propriedade da estru­
tura como tal. Para qualquer frase do tipo de (40) existe uma em
49

L|ue o objeto direto foi topicalizado, isso independentem ente da


iilentidade léxica do sujeito, do verbo ou do objeto.
O caso que deixei de lado, o das clivagens (caso II), parece
a|iroximar-se mais dos casos I, III e IV do que dos demais. A possibi­
lidade de “clivar” um term o de uma frase não depende de proprie­
dades de itens léxicos individuais, mas parece ser uma propriedade
da estrutura propriamente dita. Seria o caso, talvez, de considerarmos
lambém aí um caso de correspondência, apesar da presença, em
um dos membros do par, de elementos formais ausentes do outro
membro, a saber, o verbo ser e o elemento (o) que. Partindo da
idéia de que um ingrediente fundamental da noção de correspon­
dência é a independência de idiossincrasias léxicas (seria, por assim
dizer, uma relação “puramente sintática”), vou admitir que há corres­
pondência entre frases clivadas e suas versões não-clivadas. Isso, evi­
dentemente, nos obriga a acrescentar um adendo à definição de
correspondência, ou seja,
Adendo à definição de correspondência
Quando se diz “todos os termos de A e todos os termos de
B”, admite-se a exceção dos elementos ser... que e o q u e ... ser,
típicos das construções clivadas.
Assim, poderem os dizer que há correspondência nos casos I
a IV, e não há nos casos V a IX.
Observe-se que a definição de correspondência tem caráter pro­
visório. Eu diria que é uma aproximação aceitável em termos do
nosso conhecimento atual dos fatos, mas que certamente poderá
ser aperfeiçoada posteriormente. Do jeito que está definida, contudo,
essa noção nos será muito útil quando da definição das funções sintá-
(icas, como veremos no capítulo 2.

1.8 .6.3 P ropriedades fo r m a is d a relação d e co rresp o n d ên cia


A correspondência, entendida como se definiu, isto é, como
uma relação formal entre estruturas superficiais, pode ser vista como
c‘(|uivalente a regras transformacionais opcionais (à maneira do m o­
delo padrão). Mais precisamente, correspondem a regras de movi­
mento, mais o acréscimo eventual de certos elementos especifica­
mente designados, como ser... que. Assim, os grupos de correspon-
iléncia poderão, em determinados modelos de análise, ser conside-
l atlos como repercussões superficiais da aplicação (ou não) de tais
i i‘gras. Naturalmente, não é essa a única interpretação possível dos
grupos de correspondência — por exemplo, podem equivaler a re-
50

gras de “transformação” de estruturas superficiais em outras estru­


turas superficiais, como no modelo transformacional de Harris. Re­
lembro que procuro neutralizar tais questões, preocupado basica­
mente com o problem a metodolõgico da validação empirica das aná­
lises.
Face a um grupo de frases correspondentes, poderiamos p er­
guntar qual delas é a forma “básica”, e quais são as “derivadas”.
Essa questão não se coloca necessariamente para quem trabalha com
a estrutura superficial. Pode-se entender que a correspondência é
uma relação simétrica, diferindo, nesse particular, da relação entre
estruturas “subjacentes” e estruturas “derivadas” tais como ocorrem
nos modelos transformacionais. Digamos que as funções sintáticas
sejam definidas de tal maneira que se apliquem igualmente a todos
os membros de cada grupo de correspondência. Por exemplo, diga­
mos que a definição de “objeto direto” seja tal que o SN o carro
tenha de ser analisado como objeto direto tanto em (40) quanto
em (41):
(40) Zequinha lavou o carro
(41) o carro, Zequinha lavou
Se isso se verificar para esse par de frases, e também para quaisquer
frases correspondentes entre si, poderem os deixar de lado a noção
de estrutura “básica”, e acrescentar a afirmação de que frases corres­
pondentes têm a m esm a análise sintática, no que diz respeito às
funções e a seu preenchimento léxico. O carro é objeto direto tanto
em (40) quanto em (41); a diferença que existe entre as duas frases
será atribuida a um nivel extra-sintático (digamos, discursivo); e
direm os que em (41) o objeto direto está topicalizado. A noção
de topicalização não é propriam ente sintática, mas faz parte da
estrutura do discurso. (40) e (41) não são distintas, sintaticamente
falando.
Mesmo se insistirmos em colocar a topicalização como um fenô­
meno sintático — pois, afinal, envolve a ordem de elementos dentro
da oração — será preciso colocá-lo em um plano à parte. Certamente
não valeria a pena considerar “tõpico” como uma função sintática
a par de “sujeito”, “objeto” etc., já que “tõpico” (segundo a maioria
das análises) se sobrepõe àquelas funções, em vez de constituir uma
alternativa a elas. Assim, o carro em (41) acumula as funções de
objeto direto e de tõpico. Aqui, e até que surjam argumentos rele­
vantes para a questão, considerarei noções como a de “tõpico” como
extra-sintáticas. São essas noções que Chafe, 1976, chama de “embala­
gem ” {packaging)-, ver Liberato, 1980, para uma crítica e discussão
das idéias de Chafe, com aplicação ao português.
51

1.8 .6.4 Propriedades semânticas


Vimos que a correspondência é uma relação sintática, formal­
mente definida, entre frases. Agora vale perguntar se essa relação
lormal não terá uma face semântica que a replique, mais ou menos
c-streitamente. Em outras palavras, vimos que os grupos de corres­
pondência têm características formais em comum (características es­
tas que são descritas pela definição de “correspondência”); não terão
i-les também em comum certas características semânticas sistemáticas?
Essa é a pergunta; e só vou tentar dar algumas indicações quanto
ã resposta, que ficará ainda por investigar mais no futuro.
A primeira característica que nos deve impressionar, à primeira
vista, é a semelhança semântica entre os diversos membros de um
grupo de correspondência; falando algo imprecisamente, diríamos
c[ue são “sinônimas”. É o caso de (44) e (45), por exemplo:
(44) evidentemente. Sarita foi para o Rio
(45) Sarita, evidentemente, foi para o Rio
Algo parecido ocorre com os grupos definidos pelos casos I (topicali­
zação), II (clivagem) e IV (movimentação de objetos). Assim, podería­
mos aventar a hipótese inicial de que os grupos de correspondência
se compõem de frases que são (em algum sentido fácil de definir)
semanticamente semelhantes.
Os casos V a IX, que não são de correspondência, parecem
sempre apresentar a possibilidade de uma diferença nítida de signifi­
cado. Os pares ativa/passiva apresentam diferença em frases que en­
volvem quantificadores, conforme já foi apontado em conexão com
frases como
(67) muitas flechas não atingiram o alvo
(68) o alvo não foi atingido por muitas flechas
Quanto à posposição de sujeito, mostrei em um artigo (Perini,
1981) que também afeta o significado; daí a diferença semântica entre
as frases
(69) algumas trovoadas acontecem no verão
(70) no verão acontecem algumas trovoadas
A modificação de significado com adjetivos antepostos ou pos­
postos é do conhecimento de todos. Como exemplos, vejam-se os
sintagmas
( 8)
a. um grande homem
b. um homem grande
52

A “promoção” também, a meu ver, afeta o significado. Assim, em


(54) abriram a porta
entende-se necessariamente que o agente existe e é humano (confor­
me Nascimento, 1980); já em
(55) a porta abriu
não se entende necessariamente nada disso.
Finalmente, mesmo em casos de relação recíproca, onde aparen­
temente o significado não muda, isso se deve certamente ao fato
de que sabemos que urna pessoa não pode se casar com outra sem
que esta também se case com a primeira. Com verbos que admitem
não-reciprocidade, a diferença fica evidente; assim, (71) e (72) não
são sinônimas
(71) Carlos e Maria se zangaram
(72) Carlos se zangou com Maria
Portanto, a julgar por nossos exemplos, haveria pelo menos uma
tendência a que grupos de correspondência tenham o mesmo signifi­
cado — principalmente se entenderm os p or isso que têm o mesmo
conteúdo proposicional, ou seja, as mesmas condições de valor de
verdade.
Isso, no entanto, não é mais que uma tendência geral. Há casos
em que uma topicalização ou o transporte de um advérbio, por exem­
plo, afetam o conteúdo proposicional da sentença. Assim, (73) e (74)
não são estritamente sinônimas:
(73) todos aqui falam duas línguas
(74) duas línguas, todos aqui falam
Em (74) alguns falantes entendem que há duas línguas específicas
que todos falam; em (73) ao contrário, pode acontecer que cada
um fale duas línguas, mas que sejam muitas línguas diferentes no
total.
Analogamente, o transporte de advérbio pode afetar o conteúdo
proposicional em
(75) toda hora um helicóptero aparecia
(76) um helicóptero aparecia toda hora
Para muitos falantes, (76) significa que havia um helicóptero especí­
fico que aparecia toda hora; mas (75) pode significar que aparecia
um helicóptero diferente de cada vez.
Desse modo, não se justifica totalmente a afirmação de que frases
correspondentes são proposicionalmente sinônimas: trata-se, na m e­
lhor das hipóteses, de uma tendência, sujeita a restrições ainda não
53

licni conhecidas. Poderemos dizer, em vez disso, que frases corres­


pondentes são semanticamente idênticas no que respeita à distri-
Imição dos papéis temáticos tais como “agente”, “instrumento” etc.
Essa afirmação poderá ser devidamente verificada quando se dispu­
ser de uma definição suficientemente clara desses papéis temáticos
(o texto básico a respeito, Gruber, 1965, é uma aproximação, mas
é ainda muito vago)

1.8.6.5 P roblem as
Vou, para terminar, apontar uma série de problemas mal resol­
vidos e perguntas interessantes, mas que não tenho condições de
responder no momento, dentro da área das correspondências.
Vejamos, primeiro, o teste de verificação de correspondência,
isto é, a aplicação da definição a um par qualquer de formas sintáticas.
íi evidente que esse teste não pode ser aplicado cabalmente, pois
isso implicaria examinar todos os preenchim entos léxicos possí­
veis de cada par, o que seria, pelo menos, pouco prático. É claro
c|ue aqui teremos de nos contentar com uma certeza razoável, advin-
cla de certo núm ero de preenchimentos. A partir desse ponto, pode­
remos fazer a hipótese de que não só há correspondência entre
as formas em exame, mas também entre as estruturas sintáticas de
c|ue elas são a realização particular. As estruturas, como já apontei
acima, não podem ser caracterizadas desde já, pois só podem ser
definidas em termos de classes e funções; mas podem os chegar à
conclusão de que as estruturas realizadas p o r duas formas correspon­
dentes são, também elas, correspondentes — temos aqui uma exten-
,são da noção de “correspondência”, de formas a estruturas (de tokens
a types). Essa extensão deverá ser eventualmente formulada nas linhas
seguintes: “Quando duas estruturas são correspondentes, então suas
realizações também serão correspondentes se os preenchimentos
léxicos forem paralelos”. Por ora, deixarei a questão assim meio
em suspenso, até que disponhamos de meios para referir-nos a estru­
turas sintáticas em abstrato.
Finalmente, devo confessar minha insegurança quanto à classifi­
cação do caso VI (posposição de sujeito) como caso de não-corres-
pondência. Creio que é necessário examiná-lo com mais cuidado,
ã luz inclusive de alguns trabalhos recentes sobre o assunto.
No capítulo 4 voltarei à relação entre passivas e ativas, e formu­
larei uma relação de correspondência parcial, ou unilateral (isto é,
casos em que A corresponde a B mas não vice-versa, o que a definição
de correspondência não permite). Veremos que essa relação é tam-
hém de certa utilidade para a descrição.
54

"X.BJ R e to m a d a p r o n o m in a l

Finalmente, há urna classe de fenómenos freqüentemente utiliza­


dos como ponto de partida para análises, e que tem a ver com a reto­
mada de sintagmas no discurso através de elementos pronominais.
Por exemplo, em pares de sentenças como o seguinte
(77) quem Leo viu?
(78) Leo viu Zé
observa-se que existe urna intuição de que (78) é urna resposta “ade­
quada” a (77), ao passo que no par
(79) quem / o que Leo desenhou?
(80) Leo desenhou horas seguidas
essa adequação não existe: (80) não é uma boa resposta a (79).
Digamos, então, que em (77) quem retoma o sintagma Zé, pre­
sente em (78). A possibilidade de retomada através dos elementos
quem ou (o) que caracteriza urna classe de sintagmas, em oposição
aos que não aceitam retomada através desses elementos. Outros itens
que podem ser utilizados na definição de retomadas são qiuindo,
quanto, onde etc.
Outro exemplo que coloco nesta categoria é o da retomada
de sintagmas através de pronomes não interrogativos, como em
(81) Leo viu-o
(82) Leo viu Zé
Novamente, aqui é possivel dizer que (81) é urna retomada adequada
de (82), o que não acontece com o par
(83) Leo desenhou-a
(84) Leo desenhou a semana toda
Neste caso, podem os imaginar a inserção das frases em um con­
texto discursivo maior, como
(85) Leo viu Zé; viu-o quando saia do banco
(86) Leo desenhou a semana toda; desenhou-a com lápis preto
É evidente que há algo errado com a frase (86). Ou é simplesmente
mal construida, ou então a sem ana toda é urna espécie de objeto
de desenhar (o que semanticamente é estranho, pois urna semana
não é fácil de desenhar).
A retomada pronominal se distingue da correspondência por­
que não há, entre as frases colocadas em relação, um preenchimento
idéntico de itens. Tipicamente, um dos itens de urna délas é substi­
tuido por um elemento anafórico (pronominal). Mas, como o elenco
55

desses elementos pronominais é pequeno e fechado, é possível defi­


nir as retomadas pronominais de maneira toleravelmente precisa.
Em exemplos como o de (81) e (82), a retomada tem muita
semelhança superficial com a substituibilidade pura e simples: aí,
poder-se-ia dizer, houve substituição de Zé por -o. Mas mesmo aí
as duas noções se distinguem. Primeiro, a retomada pronominal esta­
belece uma exigência (de ordem discursiva) que não existe no caso
da substituibilidade: a de que uma das formas seja uma “retomada
adequada” da outra. Depois, em casos como (77) e (78), há não
apenas certo tipo de substituibilidade, mas uma mudança de ordem
dos termos, o que os coloca, estritamente falando, fora dos casos
de substituibilidade simples. Portanto, parece-me importante distin­
guir a noção de retomada da de substituibilidade.
Não tentarei elaborar uma definição formal de retomada, a
exemplo do que fiz para a correspondência; parece-me prematuro.
l’or ora, contento-me com uma noção aproximada, baseada em dois
pontos: (a) a intuição de que certas frases são “respostas adequadas”
ou “retomadas adequadas” de outras; e (b) um paralelismo estrutural
análogo ao que se exige para as correspondências, mas com o adendo
de que um dos elementos da frase “retom ante” deve ser um item
pronominal (pessoal ou interrogativo). Podemos observar, além dis­
so, que a relação semântica entre a frase retomada e a retomante
é bastante sistemática e previsível, o que constitui um item interes-
s;uite de informação sobre a relação forma-significado.
Um exemplo do uso de retomadas como ponto inicial de análise
está na definição de “objeto direto” dada por Martinet:
“A função de objeto se distingue de funções homônimas [...] por uma
retomada [‘rappel’] por meio do pronome objeto le se o sintagma
de mesma função for anteposto: Le journal, ti le lit [...]”
[ M a r t in e t , 1979, p. 171.]

Apesar de seu caráter, algo mal definido no momento, teremos de


Liiiçar mão das retomadas na definição de categorias gramaticais.

1.8.8 Sumário: Fatos sintáticos e tragos distintivos


Acabamos de ver seis categorias de fenómenos que serão consi-
lic-rados, para efeitos da nossa análise do portugués, como dados
brutos, imediatamente acessíveis à observação. Como já foi apontado
vái'ias vezes, e não é demais reiterar, esse status de dado bruto é
uma ficção, estritamente falando: esses “fenômenos” já representam,
lui verdade, um estágio relativamente avançado de teorização; mas
como é o estágio atingido pela lingüística atual, sendo pouco sujeito
.1 controvérsias, parece-me justificável iniciar daí a análise.
56

As seis categorias de fenômenos ( “fatos sintáticos”) são as se­


guintes: a posição linear na seqüência; a estruturação em constituin­
tes; as manifestações da relação de regência; a correspondência entre
estruturas; a substituibilidade; e a retomada pronominal. Fatos obser­
vados, classificáveis dentro de alguma dessas categorias, são utiliza­
dos nos capitulos seguintes para definir traços distintivos. Cada traço
é um aspecto, artificialmente isolado para efeito de estudo, do com­
portamento gramatical de um item léxico ou de um sintagma maior.
No capitulo 2 iniciarei uma tentativa de definição das funções
sintáticas que funcionam dentro da oração portuguesa; essa definição
se fará através de traços sintáticos definidos em termos de “fatos”
tais como os esboçados acima.

P ro tó tip o s
Vamos voltar agora à questão da análise em traços distintivos, reto­
mando o exemplo das classes de palavras, visto na seção 1.7.2. Vimos
ali que as palavras não se colocam em grupos nitidamente divididos
e mutuamente exclusivos, à maneira das classes tradicionais, mas que
se caracterizam por um certo número de traços; e só o conjunto dos
traços de cada palavra é que descreve adequadamente o seu comporta­
mento gramatical. Fm principio, pois, poderiamos ter tantos tipos de
comportamento gramatical global quantas fossem as palavras do léxico:
cada uma mostraria uma combinação particular de traços distintivos.
É evidente que isso levaria a uma complicação tal da análise
que uma descrição compreensivel da lingua seria quase impossivel.
Sem negar que a complicação exista (e, se existir, a culpa não é
minha), vou agora procurar meios de simplificar o panorama, através
de um sistema de análise aproximada, de tal m odo que noções tais
como a de “classe de palavras” tenham alguma significação. Veremos
que as classes têm na verdade relevância na análise, e que é possivel
partir delas para construir uma gramática; mas teremos de enten­
dê-las não como categorias nitidas e cabais, mas como protótipos.
Tomemos dois dos exemplos vistos anteriormente, as palavras
branco e alto-.
(87)
{traço) branco alto
(16) •f y
(17) ■+ -F
(18) - -F

(Para o conteúdo dos traços, ver a seção 1.7.2.)


57

lím princípio, como sabemos, podem os esperar que cada palavra


venha a ter sua matriz inteiramente particular de traços; e que, à
medida que formos acrescentando mais traços, as palavras serão mais
e mais distintas entre elas.
Mas felizmente não é assim. Muito em bora as classes tradicionais
realmente não funcionem, o que se verifica é que existem tendências
hem definidas entre as palavras. Se examinarmos um grande núm ero
de palavras tradicionalmente rotuladas de “adjetivos”, observaremos
t|ue a grande maioria tem os traços de branco, apenas algumas têm
os traços de alto, e ainda outras poucas têm outras combinações
de traços. Isto é, pode-se dizer que branco é um “adjetivo prototí­
pico”, pois sua matriz de traços é compartilhada por um grande
número de outras palavras a que chamamos adjetivos. A situação,
portanto, não é como se representa no esquema (88), mas antes
;i do esquema (89):

(88)

^ ^ branco
\ Z — V- -
I /
^ ^ / /
'AZ /

I h \

J-
(89) i----------- ---
r z/ I -
c / alto I

/ 1
branco
\ .
/
j
í
/
z
z
z X
h z ✓
z
58

Onde:
“c aj ” são outras palavras tradicionalmente rotuladas de “adjeti­
vos”; e
as linhas pontilhadas representam traços distintivos.
Em (88) não há duas palavras que sejam iguais: os traços acabam
distinguindo-as todas entre elas, o que equivale a dizer que cada
uma tem seu comportamento gramatical próprio, sui generis. Em
(89), ao contrário, verifica-se uma tendência ao agrupamento: alto
e g têm os mesmos traços, assim como branco, d, e ,f h, i,j-, finalmente
c parece ser idiossincrático, e nenhum a outra palavra do quadro
tem exatamente os seus traços.
O que se verifica na lingua é, como disse, mais próxim o de
(89) do que de (88). Sendo assim, ficamos autorizados a fazer afirma­
ções acerca dos “adjetivos”, com preendendo por “adjetivo” qualquer
palavra que tenha os traços de branco. Essa maneira de referir-se
às classes é apenas aproximada, mas a aproximação pode ser tomada
como aceitável; no exem plo hipotético (89) as palavras com os
traços de branco são 70% do total. Diremos, em tais casos, que
nos estamos referindo ao protótipo do adjetivo; qualquer análise
feita na base de protótipos tem, com o é claro, um valor aproxi­
mado, já que não vale para todos os casos. Uma afirmação feita
sobre o protótipo do adjetivo tal com o representado em (89) dei­
xará de lado alguns itens (com o talvez c), considerados relativa­
m ente desviantes.
Apesar desse caráter aproximado, a análise em protótipos m ere­
ce ser levada a efeito, por várias razões. Primeiro, ela é suficiente
para deslindar as grandes linhas da gramática da lingua; permite
traçar, por assim dizer, um panorama visto à distância, falho em mui­
tos detalhes mas capaz de caracterizar a lingua como um todo. De­
pois, a análise dos porm enores desviantes (quando se chegar a ela)
deverá ser feita justamente tomando como referência a análise proto-
tipica. Assim, voltando ao exemplo do quadro, poderem os dizer que
alto é um adjetivo, excepcional por ser marcado [ +18]. Observe-se
como isso coloca alto com toda precisão em seu contexto, e de
maneira maximamente econômica. No m om ento em que rotulamos
alto como “adjetivo”, ele recebe automaticamente todos os traços
que definem o protótipo do adjetivo; suas excepcionalidades são
formuladas então em termos dos pontos de que ele se afasta desse
protótipo.
A análise em protótipos, então, é um recurso para fiigir à impos­
sivel complicação da gramática a que me referi acima. Podemos tratar
os protótipos agora de maneira análoga às categorias tradicionais.
59

(•laborando uma análise com base neles. A diferença fundamental


é tjue temos de assumir que existem casos desviantes, que precisam
.ser descritos separadamente, e que a análise geral não cobre. Por
outro lado, a descrição desses casos particulares não fica impedida
(pois já assumimos as categorías como prototipos), e será feita toman­
do como ponto de referência a análise geral. Acredito que essa com­
plicação da análise é urna maneira de enfrentar o fato de que o
ingrediente “anomalístico” da linguagem é bem maior do que dão
a entender as análises tradicionais; estamos complicando a análise
como única forma de fazer justiça à complexidade dos dados da
língua.
O exemplo dado acima foi o de urna classe de palavras, a dos
atljetivos. Entenda-se, pois, que podem os estabelecer classes (prototí­
picas) de palavras, mas que estas não podem ser entendidas como
mutuamente exclusivas, com limites nitidamente traçados. Podemos
estabelecer uma distinção entre duas classes (digamos, entre adjeti­
vos e advérbios, para usar a terminologia tradicional); mas fica aberta
a possibilidade de que o terreno entre as duas não seja despovoado:
poderemos encontrar itens cujo comportamento gramatical seja o
de um adjetivo com um ou mais traços de advérbio (caso de alto),
ou de advérbio com um ou mais traços de adjetivo, ou mesmo itens
cujo comportamento seja uma mistura de traços de advérbio com
traços de adjetivo, em proporções iguais. Só a investigação futura
poderá responder se existem tais itens; espera-se, no entanto, que
sejam em núm ero relativamente pequeno, em comparação com os
itens prototípicos, que se conformam com exatidão a um protótipo
tjualquer.
Acredito que a necessidade de protótipos não se limita às classes
de palavras e de formas, mas se estende às funções sintáticas, igual­
mente. Ao investigarmos as fúnções sintáticas, tentando defini-las for­
malmente (o que se fará a partir do capítulo 2), encontramos com
freqüência a mesma proliferação desconcertante de anomalias que
,se verifica no caso das classes. E, da mesma forma, encontramos
tendências gerais às vezes muito claras, que sugerem imediatamente
um protótipo da função considerada; é possível, então, definir a fun­
ção, desde que se considere essa definição como prototípica no sen­
tido acima explicitado.
Tentarei dar, muito informalmente, um exemplo. Tomemos a
função de “objeto direto”: um dos traços dos objetos diretos tradicio­
nais, freqüentemente utilizado na definição da função, é a possibi­
lidade de ser retomado através do pronom e oblíquo -o/-a-, outro
traço, igualmente típico, seria o de poder ser sujeito na frase corres-
60

pondente passiva Isso vale para muitos objetos diretos, mas não
para todos. Assim, temos:
(90)
a. Zé vendeu o Escort
b. Zé o vendeu
c. o Escort foi vendido por Zé
e muitos grupos semelhantes. Mas há também casos em que a retom a­
da é possivel, mas a passiva não ocorre:
(91)
a. mamãe tem um Scania desde 1969
b. mamãe o tem desde 1969
c. * um Scania é tido'por mamãe desde 1969
Há, finalmente, casos em que nem a retomada nem a passiva são
possiveis:
(92)
a. não suporto criança
b. + não a suporto
c. * criança não é suportada por mim
Note-se que (92b) é aceitável, mas não é a retomada adequada de
(92a); retomaria antes algo como não suporto essa criança. Repre­
sentei isso através do simbolo “ + ”.
Ora, pode valer a pena, ainda assim, considerar um Scania em
(91) e criança em (92) como objetos diretos, assim como o Escort
em (90). Mas seria o caso, provavelmente, de definir o Escort como
prototipico, e os demais como desvios do protótipo, a serem descri­
tos e estudados à parte. A alternativa é considerar que temos em
(90), (91) e (92) trés funções diferentes; mas isso mascara suas analo­
gias de outros pontos de vista, além de favorecer uma proliferação
indesejável de funções sintáticas. Como se vé, também aqui a noção
de protótipo é útil à análise.
Em reconhecimento a essa utilidade, tem-se recorrido com fre­
qüência ao uso de protótipos na literatura mais recente. Mas a neces­
sidade de uma conceituação cuidadosa tem sido, em minha opinião,
negligenciada: falta uma definição suficientemente rigorosa do que
se entende por “protótipo” em sintaxe.

^ Já sabemos, a esta altura, que passivas e ativas não se correspondem , dada a definição
de 18.6.2. Aqui m e refiro a um a “correspondência” implicitamente aceita pela análise tradi­
cional
61

Vejamos algumas concepções possíveis de “protótipo”. Pode-se


entender que determinado traço gramatical é prototípico quando
ele é:
(a) especialmente freqüente no discurso; ou
(b) especialmente freqüente na descrição, ou seja, crucial para
a formulação de grande núm ero de regras, princípios e
itens léxicos; ou
(c) crucial na formulação das regras “mais importantes” da
gramática (o que coloca, evidentemente, a questão adicio­
nal de um critério de “importância” de regras).
Tomando-se um outro ponto de vista, “prototípico” poderia ser
ainda:
(d) especialmente freqüente nas línguas do mundo, ou seja,
presente em muitas gramáticas; ou
(e) especialmente freqüente e/ou importante em uma língua
particular (o que faria com que determinadas entidades
fossem prototípicas em uma língua, mas não em outra).
Essas concepções não são todas mutuamente exclusivas; devem
entender-se como ingredientes possíveis de uma noção complexa
de “protótipo”.
Da leitura de alguns artigos recentes, parece-me que há uma
flutuação entre concepções irreconciliáveis, ou entre concepções em
princípio possíveis, mas que teriam de ser devidamente delimitadas
a cada caso discutido. A seguir tentarei formular uma conceituação
preliminar, que nos possibilite uma interpretação unívoca do que
entendo por “protótipo” neste trabalho. Mas só muita discussão futu­
ra nos poderá levar a um conceito fundamentado; fica aqui o convite
ao debate.
Os cinco pontos acima definem dois pontos de vista segundo
os quais ainda falta colocar com precisão a noção de protótipo; os
pontos (a) a (c) se referem à definição do que se entende por “fre­
qüência” ou “preponderância” (termos utilizados p o r Givón, 1984,
p. 22) dos elementos prototípicos. Já os pontos (d) e (e) delineiam
o campo de validade da noção, ou seja, o universo das línguas hum a­
nas ou cada língua em particular. Vou considerar as duas questões
separadamente.
Dentre os pontos (a), (b) e (c), minha tendência seria conceituar
“protótipo” a partir do critério (c), ou seja, um elemento gramatical
seria prototípico quando fosse crucial na formulação dos princípios,
regras etc. mais “importantes” da gramática. Essa conceituação, po­
rém, levanta um problema difícil de solucionar no atual estágio da
62

investigação: o de distinguir regras e principios importantes de regras


e principios não importantes. Não sei como operacionalizar essa
distinção, no momento; é possivel que a tarefa se torne mais fácil
à medida que se amplie e desenvolva nosso conhecimento da estru­
tura da lingua. Vou contentar-me por ora com o ponto (b): um ele­
mento será prototipico quando sua menção na gramática e no léxico
for particularmente freqüente.
Passo agora à segunda questão, explicitada pelos pontos (d)
e (e) acima. A prim eira observação a fazer é que esses dois pontos
não se excluem; na verdade, tendo a acreditar que vale a pena definir
duas noções (dois “tipos” de prototipicidade), urna délas válida para
o universo das linguas naturais, a outra válida dentro do ámbito de
urna gramática particular. De qualquer modo, tratar-se-ia de duas
noções parcialmente independentes, merecedoras de rótulos separa­
dos. Para o que nos interessa, a noção mais interessante é aquela
expressa por (e): um elemento é prototipico quando satisfizer a condi­
ção (b) (ou (c) ) dentro de uma lingua particular, no caso o portugués.
Uma noção de prototipicidade interna às gramáticas particulares
é necessária, e decorre de certas considerações muito interessantes
de Givón, 1984, que coloca a solução prototipica no contexto de
uma tarefa de processamento de informação necessária para a área
cognitiva em geral, não apenas para a linguagem. Essa solução perm i­
tiria que os falantes tomassem
“[...] decisões categóricas aproximadas [‘gross’], dentro de um prazo
finito, conservando ao mesmo tempo a flexibilidade, a sensitividade
ao contexto e a extensibilidade do sistema sempre que exigências
do contexto/ambiente exijam tal flexibilidade”.
[ G iv ó n , 1984, p. 23.]
A passagem de Givón parece aplicar-se a qualquer tipo de decisão
tomada por organismos inteligentes; por isso mesmo, aplica-se em
particular ao caso do processamento da linguagem.
É claro que para que decisões prototípicas sejam tomadas pelos
falantes (por exemplo, no que diz respeito à classificação das pala­
vras), a informação prototipica precisa estar incluida em seu conheci­
mento interiorizado da lingua; e, por conseguinte, na gramática parti­
cular dessa lingua.
Estamos ainda longe de uma solução definitiva. Mas creio que
para os objetivos imediatos desta Sintaxe podem os ficar sem inconve­
nientes muito graves com uma noção de “protótipo” vinculada à maior
freqüência de menção na gramática e no léxico, e válida para o âmbito
de uma lingua em particular (lembro que não excluo a possibilidade
de se definir um outro tipo de prototipicidade, de valor universal).
63

Essa definição nos permite fazer afirmações como a que fiz aci­
ma, de que o adjetivo branco é mais prototípico do que alto: com
efeito, a matriz de traços de branco se reproduz para muitos outros
itens léxicos, ao passo que a matriz de alto só é compartilhada por
um número pequeno de palavras.
A necessidade de protótipos, em substituição às classes tradicio­
nais, decorre do fato de que a gramática das línguas apresenta aspec­
tos anomalísticos muito mais importantes do que a lingüística mo­
derna dá a entender. Acredito que precisamos caminhar para uma
.situação em que, proposta uma análise qualquer, um único contra-
exemplo já não seja suficiente para derrubá-la; e, por outro lado,
um único exemplo já não seja suficiente para justificá-la. Tudo vai
depender de uma visão muito mais ampla, em que haja a preocu-
p;ição de sondar as tendências gerais da estrutura da língua, isolando
()s casos particulares e lançando o peso da análise sobre as grandes
linhas estruturais da gramática.
Essas idéias podem parecer muito novas em gramática, mas não
são novidade nenhuma em outras ciências, que igualmente se vêem
ás voltas com fenômenos excessivamente complexos. Quando um
zoólogo afirma que os répteis são ovíparos, não será a descoberta
de uma espécie de vivípara (mas que, segundo a maioria dos outros
critérios, tem de ser classificada entre os répteis) que destruirá a
utilidade dessa classificação prototípica. Ele dirá que os répteis são
(ivíparos, mas que há uma ou duas espécies excepcionais nesse parti-
mhir — é o caso dos ictiossauros, por exemplo, que têm de ser
Cl insiderados répteis, mas que davam à luz os filhotes vivos. As classifi­
cações em zoologia, como na maioria das ciências naturais, são proto-
t (picas, e não deixam de ser essenciais por isso. O que proponho
a(|ui é, formalmente falando, idêntico ao que se faz nessas ciências.
() modelo não se transfere automaticamente para uma ciência hum a­
na como a lingüística; só a investigação dirá se os protótipos são
ou não essenciais também na descrição das línguas. A meu ver, a
evidência é favorável á análise em protótipos e, p o r conseguinte,
;idotarei esse ponto de vista no presente trabalho.

1.10 N oções p r im itiv a s e d e riv a d a s

Uma questão que divide os sintaticistas é a de quais elementos


d.i teoria se devem tomar como primitivos, e quais como derivados.
Chomsky, 1965, toma como primitivos a estrutura sintagmática e a
ordem linear dos constituintes, derivando daí as funções sintáticas
i.iis como sujeito, objeto etc. Ao contrário, os proponentes da gramá-
64

tica relacional (Postal, Perlmutter, Chung e outros) preferem partir


de uma estrutura gerada diretamente com as funções, e delas derivar
a ordem e a estrutura sintagmática.
Essa questão só faz sentido dentro de uma perspectiva gerativa,
isto é, enquanto se considera o processo que origina as estruturas
sintáticas. Uma análise gerativa pode ser vista como uma sucessão
de planos estruturados, que se relacionam através de regras (ou prin­
cipios mais gerais). A questão dos primitivos se reduz, então, à ques­
tão de o que incluir no prim eiro desses planos, aquele que é “gera­
do” no sentido estrito (ou seja, produzido a partir de um simbolo
inicial por meio de regras de estrutura sintagmáticas, tais como as
regras de base do modelo gerativo padrão).
É interessante observar que o elenco dos elementos a incluir,
de alguma forma, na gramática, não é controverso. Todos concordam
que a alguma altura a gramática deve considerar a ordem linear,
a estrutura sintagmática e as funções sintáticas. O problem a está em
como introduzir cada um desses fatores no processo gerativo: ou
seja, em que plano(s) deve aparecer cada um deles. Postal e Perlmut­
ter colocariam as funções já no prim eiro plano (o “mais profundo”),
ao passo que o m odelo transformacional padrão as introduziria pos­
teriormente. Mas todos concordam, ao que me parece, que são no­
ções relevantes para a análise.
Assim, a consideração de apenas um dos planos (além do inicial)
não pode revelar o que é primitivo e o que é derivado na teoria:
isso só transparece da sucessão dos planos. Em particular, o último
plano (a estrutura superficial) não pode revelar nada a respeito. Por
conseguinte, se concluirmos que para o estudo da estrutura super­
ficial, isoladamente, é necessário levar em conta tanto a ordem linear
quanto a estruturação em constituintes e as funções sintáticas, isso
não nos dirá nada sobre as características da teoria que gerou e
derivou esse plano superficial. Por exemplo, o fato de que uma des­
crição superficial inclui as funções sintáticas como elementos de aná­
lise não coloca essa descrição no campo da gramática relacional,
já que as funções podem ter sido derivadas, a certa altura, de elem en­
tos mais primitivos, como a ordem dos constituintes. Em outras pala­
vras, a descrição superficial é neutra quanto à questão dos primitivos
da análise.
Essa neutralidade confere à descrição superficial qualidades m e­
todologicamente interessantes; por exemplo, uma descrição super­
ficial pode ser fonte de dados úteis para a testagem, validação e
invalidação de teorias. Esse é justamente um dos meus objetivos,
evidentemente, já que tenho a intenção de propor um instrumento
para a descrição que possa ser (além disso) um instrumento para
65

a argumentação sobre a validade desta ou daquela teoria. Não quero


ilizer, claro, que a descrição superficial tenha condições de ser neutra
(|uanto a todas as questões teóricas possíveis, ou mesmo quanto a
lotlas as controvérsias atuais. Já disse, e repito, que nenhum a descri­
ção prescinde de teorização anterior. Mas, no m omento em que uma
descrição neutraliza uma controvérsia, torna-se uma fonte possível
de dados cruciais para instruir a argumentação referente a essa con­
trovérsia.
Os “fatos sintáticos” listados na seção precedente devem ser
i'( tnsiderados nessa perspectiva. Não são propriam ente “primitivos”
.sc-gundo o ponto de vista teórico, mas antes pistas metodológicas,
pontos de partida para a descrição do output da gramática. A idéia
é c|ue tais fatores aparecem como ingredientes da forma como se
organiza a estrutura superficial; portanto, podem os utilizá-los como
I>a.se para a descrição. Alguns desses fatores, como a ordem dos cons-
(imintes, são diretamente observáveis; outros, como as classes e fun­
ções, são observáveis indiretamente, sendo definidos em termos dos
primeiros. As classes e as funções também são elementos a levar
I'm conta como ingredientes do output da gramática, sendo assim
l.imbém “fatos sintáticos”, dentro da concepção especificada na seção
I H. As classes e as funções são definidas, como veremos nos próxi­
mos capítulos, mas isso não as caracteriza como elementos derivados,
teoricamente falando. Elas se definem exclusivamente em termos
de suas repercussões superficiais observáveis.
Tomemos, como exemplo, a função sintática de “sujeito”. Ela
podi' ter sido definida em termos confíguracionais, como na teoria
ii.iiisformacional padrão, ou pode ser um primitivo, como na teoria
tcl.icional. De qualquer modo, aparece na superfície um SN que
c.st.i i-m relação de concordância com o verbo. Tanto na teoria trans­
it II macional quanto na relacional pode acontecer que esse SN parti-
<iilar não seja um “sujeito” em estruturas subjacentes. Será apenas
um “sujeito final” (no sentido de Perlmutter, 1982), muito provavel-
Ilíenle. Pode-se perguntar se a definição de “sujeito” será a mesma
n.i superfície e nos níveis mais profundos, de maneira que se possa
. 11 gumentar que um SN superficial é sujeito em virtude de uma defini-

ç.io única; ou se, como Perlmutter prefere, precisamos de diversas


d(-litlições de sujeito, válidas para os diferentes níveis. Neste caso,
IKissivelmente, o que justifica chamarmos todos esses termos pelo
iMcsmo nome será que, pelo menos em geral, um SN sujeito em
III1 1 IIível continua sendo sujeito nos outros níveis (dadas as diferentes
di'(iiiições).
Para néxs, a questão se reduz à nomenclatura. Observa-se que
li.i um SN com o qual o verbo concorda; e convém dar a esse SN
66

uma designação funcional unificada; o term o “sujeito” está dispo-


nivel, e uma de suas acepções tradicionais corresponde a essa função.
Assim, chamaremos “sujeito” o SN com o qual o verbo concorda,
em bora isso certamente possa dar margem a certas confusões. O
mais que se pode dizer é que dentro de uma análise valem as defini­
ções pressupostas por aquela análise, e não outras definições even­
tualmente encontradas na literatura.
Exemplificando, digamos que chamamos de “sujeito” o SN Leti­
cia em
(93) Leticia foi mordida por um hipopótamo
Leticia é o sujeito porque o verbo concorda com ela. Em determinada
teoria, Leticia pode não ser o sujeito em niveis subjacentes. Por exem­
plo, Perlmutter, 1982, consideraria um hipopótam o como sendo o
sujeito na estrutura inicial, mas Ixtícia como o sujeito na estrutura
final. Como a concordância é considerada um fenômeno pós-inicial,
nunca se poderia dizer que o verbo concorda com o sujeito inicial
(um hipopótamo)-, mas concorda com o sujeito final Leticia. Além
disso, não tenho dúvidas de que é a concordância um dos fatores
principais que levam Perlmutter a estabelecer Leticia como sujeito
final (superficial) da frase.
Assim, não importa o caminho seguido pelo sujeito e pelos ou­
tros termos para produzir a situação observada em (93); o que nos
interessa aqui é que há ai um SN com o qual o verbo concorda.
Reconhecemos esse fato, e damos àquele SN um rótulo ( “sujeito”).
Estamos partindo de fatores observáveis, que baseiam nossa análise,
mas não creio que se possa identificar esses fatores observáveis com
os “primitivos” que são objeto da controvérsia citada. Os “fatos sintáti­
cos” listados na seção precedente têm importância metodológica:
são facetas, diretamente observáveis, do o utpu t da gramática. Ora,
uma análise superficial não pode resultar em uma gramática com­
pleta — apenas em uma descrição do seu output.

1.11 Im p o rtâ n cia d a s defin içõ es

A partir do próximo capitulo começarei a propor definições


para as diversas funções sintáticas; posteriormente, procuraremos
definições para as classes de formas, em particular as classes de pala­
vras. As definições aqui propostas o serão em termos de traços distin­
tivos, baseados estes nos “fatos sintáticos” considerados na seção
1.8. Sua importância é metológica: considero-as necessárias do ponto
de vista heurístico, com o precondição para o estudo objetivo da es­
trutura superficial (e, eventualmente, para a validação de hipóteses
referentes ao conjunto da gramática).
67

Talvez pareça óbvio que, se vamos estudar por exemplo as fun-


1.1 les sintáticas na superfície, deveremos dispor de definições opera-
( lonais dessas funções; deveremos ter condições de responder à
peigunta: O que é que faz com que um sintagma particular deva
ser considerado “sujeito”? No entanto, um exame da literatura sobre
Iunções e classes deixa claro que é preciso ainda argumentar que
.IS delinições são necessárias como ponto de partida para a caracte-
I l/ação da estrutura sintática superficial das línguas. O problem a é
qiK* muitos trabalhos que são, em princípio, altamente relevantes,
K'lii seu valor diminuído justamente pela ausência de conceptua-
11/,ações claras e objetivas das entidades que eles pretendem estudar
Ila.s (.iiversas línguas, quer essas entidades sejam classes, quer funções.
I Ima raiz desse problem a parece ser a crença de que é possível
partir de um conhecimento intuitivo das funções sintáticas. Assim,
encontramos em um artigo recente o seguinte pressuposto;
“Neste artigo, pressupõe-se um entendimento intuitivo das noções
tie objeto direto, sujeito etc.: não se presume nenhum quadro teórico
particular, tal como a Teoria Padrão Estendida ou a Gramática Rela­
cional”.
[Gn., 1984, p. 87.]
A mesma posição transparece de várias passagens do influente
ai ilgo de Keenan sobre a definição universal de sujeito, como por
exemplo:
“Nossa abordagem então será coletar um conjunto amplo e diverso
lie casos de diferentes L[íngua]s nas quais nossos julgamentos pré-teó-
ricos do status de sujeito são claros”.
[K eenan, 1976a, p. 306.]
Essa posição realmente dispensa o pesquisador de definir as
liiiições; mas o problema é que não é nada claro que existam na
le.ilidade julgamentos “pré-teóricos” a respeito das fiinções. É claro
I |iie uma pessoa pode identificar funções a partir de uma teoria não
expliciiada no papel (algo como a “doutrina gramatical implícita”;
vei ;i respeito Perini, 1985a, p. 15 et seqs.); mas isso em absoluto
ii.it) significa que não haja aí teoria nenhuma.
E, o que é mais sério, uma teoria implícita não é um produto
ii.iiiir;il da aprendizagem da língua, como o são os julgamentos de
■itciiabilidade. Os julgamentos a respeito de classes, funções e noções
MII lelliantes são produto de uma instrução gramatical bastante elabo-
i.iil.i, que ou bem fornece ao estudante uma teoria que o guie em
'.1 'iis julgamentos ou então (mais freqüentemente) o força e estimula
.1 (Dii.siruir uma teoria implícita, depreendida a partir de muitos
68

exemplos. O mínimo que se pode dizer é que é arriscado basear


análises interlingüísticas em tais “julgamentos”. Sabemos o quanto
podem variar as teorías implícitas de pessoa para pessoa, e em espe­
cial de língua para língua, já que há diferenças de tradição gramatical
e escolar de comunidade para comunidade.
Q ue noção pré-teórica nos permitirá estabelecer um paralelo
entre o “sujeito” (sintaticamente considerado) em latim e em chinés?
Em latim, o sintagma tradicionalmente rotulado “sujeito” é marcado
pelo caso nominativo e pela concordância verbal, mas não pela posi­
ção na oração. O chinés é estritamente posicionai, não tem casos,
nem concordância verbal. Assim, que razão sintática nos permitirá
relacionar certos sintagmas particulares ñas duas línguas, rotulá-los
semelhantemente e partir daí para conclusões universalistas?
Não estou dizendo que Keenan e outros autores preocupados
com a definição universal das funções estejam fazendo um trabalho
inconsciente e sem valor. No entanto, parece-me que são guiados,
implicitamente, p o r definições que, por nunca serem explicitadas,
não permitem levar a efeito as análises com verdadeiro rigor. Por
exemplo, Keenan (1976a, p. 306) faz uma comparação entre o sujeito
em latim e em malgaxe. Em outro artigo do mesmo volume (Keenan,
1976b), ficamos sabendo que em malgaxe os pronom es têm um
caso especial para o sujeito, o que o opõe ao objeto direto e ao
“possuidor”. Como essa situação é algo paralela à do latim, que carac­
teriza o sujeito através do caso, vemos que não se trata na verdade
de uma noção “pré-teórica” de sujeito, mas antes de um traço em
comum, entre o latim e o malgaxe. Em outros casos, parece-me que
as analogias semânticas desempenham um papel preponderante. Em
tais casos, pode-se estar estudando não o sujeito, mas as formas de
expressão do agente, por exemplo, o que é muito diferente (pelo
menos se aceitamos uma divisão metodológica cuidadosa entre sinta­
xe e semântica).
Uma noção como a de “sujeito” é, sustento, complexa de duas
maneiras: primeiro, é utilizada tradicionalmente para se referir a
relações semânticas, discursivas e sintáticas. Aqui é necessário disso­
ciar esses aspectos para efeito de análise. E, em segundo lugar, mes­
mo o sujeito considerado sintaticamente é complexo, pois abrevia
um conjunto de traços definitórios que caracterizam um protótipo
do qual os casos particulares podem se aproximar mais ou menos
(este aspecto, aliás, é muito claramente percebido por Keenan).
A comparação entre línguas diferentes apresenta uma série de
problemas teóricos algo delicados; a situação é tal que alguns autores
estruturalistas chegaram a negar a possibilidade de tais comparações.
É evidente, hoje em dia, que esse isolamento não é nem necessário
69

liem conveniente, mas os problemas persistem. Como, realmente,


falar do “sujeito” em malgaxe e em latim? O que é que eles têm
em comum? Creio que uma definição em traços pode ajudar a desatar
o nó. Os traços nos permitem (a) estabelecer precisamente do que
é que se está falando quando mencionamos uma função ou classe
em determinada língua; (b) colocar a análise claramente no campo
sintático ou semântico; e (c) dada uma formulação conveniente, fazer
uma comparação clara entre os fenômenos de línguas diferentes.
Voltando à comparação entre latim e malgaxe, digamos que
se consiga definir de maneira (interlingüisticamente) adequada o
caso assumido pelos sintagmas a que Keenan chama “sujeito”. Então,
poderemos dizer algo como: em latim, o sintagma que expressa o
agente de verbos que significam “beijar”, “tocar” etc. se caracteriza
pelo caso nominativo e por obrigar o verbo à concordância verbal;
em malgaxe, o sintagma que expressa o agente de tais verbos (isto
é, de seus correspondentes semânticos em malgaxe) se caracteriza
pelo caso nominativo e pela posição final na oração. Como se vê,
a questão dos universais aqui se desloca das funções propriam ente
ditas para os traços, isto é, teremos de procurar caracterizações uni­
versais dos casos, de noções como a de “agente”, de “concordância
verbal” etc. Dizer só que o agente dos verbos em questão se expressa
pelo sujeito tanto em latim quanto em malgaxe é sonegar parte im­
portante da informação.
Trabalhos como o de Keenan são de grande valor para o estudo
das funções, tanto de uma perspectiva universalista quanto do ponto
de vista de uma língua em particular. Mas é preciso ter sempre em
mente, ao lê-los, as limitações acima apontadas. Essas limitações pro­
vêm principalmente, na minha opinião, de uma posição de indife­
rença frente à necessidade de definições precisas de noções tais co­
mo “sujeito”, “adjetivo” etc.

1.12 Sum ário: Uma d escriçá o d a lín g u a

O objetivo deste livro é propor uma descrição da sintaxe da


língua portuguesa padrão (em especial, do padrão escrito). Essa de­
verá ser uma descrição dos fenômenos observados a um nível basica­
mente, mas não estritamente, superficial, e a orientação do trabalho
tomará como alvo a elaboração de um catálogo das estruturas super­
ficiais. A questão central, pois, é a de encontrar uma linguagem gra­
matical adequada para exprimir os itens desse catálogo.
Para isso, teremos de utilizar traços distintivos tanto na definição
das classes quanto na das funções sintáticas. E, para evitar a trem enda
70

complexidade de uma análise feita exclusivamente na base de traços,


procurarem os estabelecer protótipos, cujo funcionamento de certa
forma imita o das “classes” e “funções” categóricas da gramática
tradicional; no entanto, o status dos protótipos é claramente distinto
do das categorias tradicionais porque aqueles não têm a pretensão
de serem exaustivos nem mutuamente exclusivos. A descrição cabal
só pode ser feita na verdade em termos dos traços, e os protótipos
têm a dupla função de (a) possibilitar uma descrição relativamente
simples da estrutura da língua, e (b) colocar em evidência as grandes
linhas, os traços principais dessa estrutura.
Neste trabalho tenho uma preocupação metodológica talvez um
tanto rara na literatura lingüística atual: procuro formular definições
claras e operacionais, ancorando-as em observações concretas dos
fatos da língua. Não se veja nisso uma tentativa de regresso às “disco­
very procedures” de alguns lingüistas mais antigos. A meu ver não
há nenhum choque necessário entre a preocupação de fundamen­
tação empírica rigorosa das hipóteses levantadas e uma abordagem
essencialmente teórica da análise lingüística. A análise aqui proposta
não é indutiva, baseada exclusivamente nos dados; aqui, como em
qualquer outra análise, a formulação (em princípio arbitrária) de
hipóteses desem penha um papel fundamental. Nesse contexto, a di­
cotomia indutivism o x dedutivism o é falsa: nenhum a análise em piri­
camente adequada pode ser feita sem um jogo constante de formu­
lação de hipóteses e de verificação das mesmas através de uma meto­
dologia o quanto possível rigorosa e bem definida.
Finalmente, não é demais repetir que a opção pela descrição
superficial tampouco representa um repúdio à postulàção de níveis
subjacentes de análise. Pessoalmente, estou convencido de que tais
níveis são necessários, se quisermos capturar e explicitar todas as
generalizações relevantes dentro da gramática das línguas. O mais
que se pode esperar, pois, é que a descrição superficial seja um
instrumento da consecução de um objetivo maior, a explicitação da
estrutura da língua no seu todo.
FUNÇÕES
2 SINTÁTICAS
NA O RAÇÃO

2.1 Funções sin tá tica s

Neste capítulo definirei algumas das relações que se observam


entre os constituintes da oração; essas relações recebem a designação
de “funções sintáticas” — na gramática tradicional encontramos, por
exemplo, as funções de sujeito, objeto direto, predicativo etc. Come­
çarei o estudo das funções por aquelas que vinculam os constituintes
maiores da oração, deixando para o capítulo 3 as que vinculam os
constituintes internos a esses constituintes maiores (por exemplo,
o “adjunto adnominal” da nomenclatura tradicional, que integra um
constituinte maior que pode ser sujeito, objeto etc.).
Como sabemos, uma frase é formada de uma seqüência de cons­
tituintes; mas o que organiza esses constituintes em uma oração não
é apenas sua seqüenciação linear. Há uma série de processos grama­
ticais que tratam diferenciadamente certos constituintes, de modo
que a seqüência linear aparece complementada por um conjunto
de vínculos que variam de natureza. Por exemplo, o fenômeno da
concordância verbal define um vínculo entre o verbo e um dos cons­
tituintes, que já por isso se distingue claramente dos demais consti­
tuintes. Dizemos, então, que a relação entre o verbo e esse consti­
tuinte é uma relação “sujeito / nücleo do predicado”. O verbo tem
a função de “nücleo do predicado” (ver a seção seguinte), e o outro
constituinte tem a função de “sujeito”.
Há muitos outros fenômenos sintáticos que podem ser utiliza­
dos na depreensão das funções; estas, em si, não são diretamente
observáveis. Por exemplo, a possibilidade de ocorrência de sujeito
anteposto ao restante da frase; a possibilidade de ele ser retomado
pelos pronomes oblíquos -o e -a-, e outros traços, que serão vistos
no decorrer do capítulo. Esses fenômenos são indicações que temos
de que a língua, p o r assim dizer, discrimina os constituintes da frase,
tratando diferencialmente as relações que existem entre eles. O ter­
mo “função sintática” denota cada tipo de relação assim determinado.
72

2.2 O verb o e o núcleo d o p r e d ic a d o


É necessário partir de alguma coisa para dar inicio à nossa cadeia
de definições de funções sintáticas. Partirei da classe dos verbos;
é uma classe de formas muito característica, de modo que a definição
não deve apresentar dificuldades excessivas. A principal dificuldade
na definição de “verbo” reside na questão de se se deve distinguir
“verbo” de “auxiliar”. A questão é discutida em diversos trabalhos,
como Pontes, 1973; Perini, 1976, p. 86. Por ora, deixarei de lado
casos de presumíveis auxiliares, limitando a discussão e a exempli­
ficação a frases com verbos simples.
Nosso postulado inicial será o de que o verbo desem penha
na oração uma função única, à qual darei o rótulo tradicional dê
“núcleo do predicado”; é a única ftinção que um verbo pode desem ­
penhar, e por outro lado só um verbo pode ser núcleo do predicado.
Se admitíssemos, em vez, que um verbo pode desem penhar várias
funções sintáticas, surgiria o problem a de definir essas funções e,
conseqüentemente, a necessidade de adotar outros pontos iniciais
para a análise. Creio que a m elhor solução é partir dessa hipótese
não demonstrada, de que o verbo tem uma função única e o núcleo
do predicado só pode ser preenchido p o r um verbo.
Observe-se que em certos casos essa hipótese se afasta da análise
tradicional, que considera gordo em
(1) Sérgio é gordo
como sendo o núcleo do predicado. Para nós, o núcleo do predicado
(NdP) será o verbo á Isso não traz inconvenientes, porque a definição
de “núcleo do predicado” na gramática tradicional é semântica (ver
Lima, 1964, p. 228). Analisar é como NdP, dentro dos casos pressu­
postos, não significa dizer que lhe estejamos atribuindo a qualidade
de fazer uma declaração sobre o sujeito. Aliás, a relação entre o
NdP (definido como sendo a função do verbo) e essa ftinção semân­
tica é provavelmente complexa.
Admitiremos, pois, que o verbo desempenha uma função sui
generis na oração, a de NdP: só um verbo pode ser NdP, e todo
NdP é um verbo. A base das definições das funções sintáticas será
a ftinção de NdP, assim entendida.

2.3 Sujeito

2.3.1 Definição
Nossa prim eira observação deve ser a de que existe na oração
(ou na maioria das orações) um constituinte que se harmoniza com
73

(I Ndl’ em núm ero e pessoa: tradicionalmente, diz-se que os dois


"(t iiK'ordam”. Essa concordância (verbal) se define, do lado do cons-
iimlnle nao-verbal, em termos de traços tais como “terceira pessoa
■li) singular”, presentes na marcação léxica de certos itens. Por exem­
pli », os substantivos em geral são marcados “terceira pessoa”; e serão
"•.iiigulares” ou “plurais” conforme estejam ou não associados sintag-
m.Kli ámente a um morfema de plural. Do lado do verbo, a harm o­
nização se processa através de um sistema, bastante complicado, de
Millxos: corre é “terceira pessoa do singular”, correm é “terceira
IK -.S.S1>a do plural”, corro e corri são ambos “primeira pessoa do singu-
l.ii" ele. (ver análise do sistema em Pontes, 1972; Gamara Junior, 1976).
A partir daí, pode-se dizer que existe no máximo um constituinte
da oi'ação que “está em relação dè^iõricõrdância com o NdP”; a
i"..sc constituinte daremos um rótulo particular, o de “suieito”. O
•.ujelio se define, poisj’^como “o term o da oração que está em relação
de concordância com o NdP”.
1'eremos mais o que discutir sobre essa definição mais adiante.
l’ni I )i a, já se pode observar que, além de ser, como espero mostrar,
I nnvi-niente para a descrição da língua, é a que mais se coaduna
I I iin ,1 noção implícita de sujeito utilizada na prática da análise sintá-

Iu .1 ou seja, a definição de sujeito encontrada na doutrina grama-


iii .il Implícita (ver a respeito Perini, 1985a, p. 15-20). Naturalmente,
•■•.'..i definição difere muito da definição geralmente explicitada nas
gi ,im;ii icas; isso é inevitável, se quisermos elaborar uma conceituação
( iicienie de “sujeito”.
A tlefinição dada é puramente sintátjcaj formaj. Nada se diz aí
■iiibic o elemento que “pratica a ação”, ou sobre o elemento “do
qii.il ,se diz alguma coisa”. Já argumentei em outro lugar em favor
d,i iicce.ssidade de se distinguir essas propriedades, colocando-as
iiK lii.sive em componentes separados da gramática. O elemento que
pi.iili.i a ação (chamado “agente”) deve ser identificado a partir de
icgia.s semânticas, e correspondentemente colocado na represen-
i.K.ai) semântica da sentença, resultado da aplicação do com ponente
■.em;iiilic() da gramática. Não há relação simples entre a expressão
dl I age 111 e e qualquer função estritamente sintática; p o r isso não po-
ili iiios dizer, do sujeito (nem de qualquer outra fünção sintática),
que exprime invariavelmente o agente. Por outro lado, o elemento
I In I|iial se afirma alguma coisa (chamado “tópico”) será depreendido
I pai IIr de regras igualmente não-sintáticas; serão objeto da aplicação
de um componente “funcional”, ou “discursivo”, distinto tanto do
impoiienle sintático quanto do com ponente semântico.
A resirição da noção d e sujeito ao term o q u e está em relação
le n IIlei irtlância com o verbo não significa em absoluto uma negação
74

da importância das noções de agente e de tópico. Apenas, somos


forçados a separar essas três propriedades, dado que, prim eiro, elas
não se recobrem sistematicamente (encontramos sujeitos que não
são agentes, agentes que não são tópicos, sujeitos que são agentes,
agentes que são tópicos, e assim por diante). E, depois, cada urna
dessas propriedades se formula em term os que se encaixam tipica­
mente dentro de componentes separadíps da_grggiática: a noção de
“.sujeito” se formula em te rm ^ d e<íH acões í5ripãls>fdistrihucionajs.
relacionais e tc ); a de “agent?! em termos dò~ conteúdo’nocional;
e a deT t ó p I ^ em term ós'de inserção em um contexto de comu­
nicação. "

2.3.2 O c rité rio d a c o n c o rd â n c ia v e rb a l

A definição dada de sujeito inclui como um critério crucial a


concordância verbal. Definir o sujeito em termos de concordância
verbal não é, claro, nenhuma novidade; a definição se encontra, im­
plícita ou explicitamente, em muitos trabalhos. Alguns autores colo­
cam objeções a esse critério, mas creio que há aqui uma confusão
de perspectivas, antes que verdadeiramente um choque. Pontes,
1986, diz, referindo-se ao critério da concordância verbal para definir
o sujeito, que
“a concordância parece-me mais um traço secundário, uma vez que
é preciso saber antes o que é sujeito, para depois fazer o verbo concor­
dar com ele. Ela é uma conseqüência”.
[P o n tes, 1986, p. 132.]
A autora deve querer dizer que, durante o ato de fala, o falante
prim eiro identifica o sujeito, e depois efetua a concordância (isso
partindo-se do pressuposto de que a regra que ele tem interiorizada
ordena que ele faça a concordância com o sujeito). Nesse caso, evi­
dentemente, a concordância é uma conseqüência do status de sujeito.
A afirmação de Pontes coloca-se dentro de uma perspectiva de de­
sempenho: inclusive, as noções de “antes” e “depois” devem ser
entendidas como referindo-se ao tempo real, e não a uma ordenação
abstrata. Mas dizer que a concordância é uma conseqüência da identi­
ficação prévia do sujeito, e é portanto secundária, não tem relevância
dentro de um estudo gramatical que, p o r definição, tem como objeto
a competência, e não o desem penho (diga-se, entretanto, que Pontes
não aceita como válida a dicotomia competência/desempenho).
Outra objeção possível seria a de que a concordância é conse­
qüência de outro princípio gramatical mais geral; isto é, a concor-
75

il.iiu la seria uma das manifestações de um principio geral da estru-


iiii .1 da língua. Digamos que se considere a concordância como uma
das manifestações observáveis de uma relação geral de “regência”,
que vincularia certos pares de constituintes. Essa observação, a meu
\ e i, ii;U) invalida a possibilidade de se utilizar a concordância como
( I iiéi lo definitório para o sujeito ou outras funções. A regência, assim
tniieebida, é um princípio abstrato, que não se manifestaria a não
SCI airavés da concordância (e de outros eventuais traços compa-
i.tw-is). Aqui estaríamos provavelmente lançando mão da regência,
iii.is através de uma de suas manifestações observáveis, o que se
liai moniza com a orientação metodológica e empírica deste estudo.
Nessa perspectiva, as afirmações “o sujeito rege o verbo” e “o
vcibo concorda com o sujeito” são equivalentes. Continua sendo
itu|)()iiante procurar outras manifestações do fenômeno da regência,
<■ icniar mostrar que se ligam de alguma forma ao fenôm eno da
iiiiKordãncia.
Alé então, assumirei um ponto de vista neutro quanto a causas
f I <IIisccjiiéncias. Direi simplesmente que se verifica dentro da ora-
I..I1 I uma relação de concordância entre o verbo e um dos consti-
iiiiiiies, ao qual chamaremos “sujeito” (seja ele o que for do ponto
I Ir vlsia semântico ou discursivo). Creio que é inevitável que se expri-
iii.i rs,se fato em algum ponto da gramática; e é igualmente inevitável
<|ur ,sr lenha de dar um rótulo qualquer àquele constituinte privile­
giado ijuanto à concordância.
E verdade, por outro lado, que o sujeito assim considerado é
uma noção menos importante do que a noção tradicional de sujeito
qtii- «• ao mesmo tempo o controlador da concordância, o agente
r <I ii ipico. Mas, como sabemos, essa noção tradicional é incoerente,
dada a não coincidência nos mesmos SNs dessas três características;
issti loi visto por alguns gramáticos tradicionais, que distinguiam
<I 'stijriio gramatical” do “sujeito lógico” (agente) e do “sujeito psico-
li Iglu i" (tópico). A noção de sujeito, assim rotulada, fica pois reduzida
a um papel puramente formal; e a concordância é um princípio da
I Hgaiilzação sintática, sem correlato semântico ou discursivo (em-
IIIII a seja possivelmente conseqüência de outro princípio sintático
iiial.s geral).

2.3.3 Concordância verbal


A definição de “sujeito” encontra aparentemente dificuldade
m m ,si‘iitenças do tipo de
(2) cheguei
76

Deveremos analisar (2) como “oração sem sujeito”, já que não existe
aí nenhum term o explícito com o qual o verbo esteja concordando?
Ou será m elhor adotar uma análise em que a concordância se dá
com um “sujeito oculto”, postulado como válido para efeitos sintá­
ticos (isto é, a solução tradicional)?
A discussão depende, em prim eiro lugar, da concepção de “con­
cordância verbal” que se adote. Como este é um problem a de certa
importância dentro de uma análise sintática do português, e como
não estou seguro de haver chegado a uma solução definitiva, vou
discutir a questão em algum detalhe, nas páginas seguintes.
Distinguirei primeiramente duas soluções possíveis do fenô­
m eno da concordância verbal. Segundo a solução A, a concordância
seria resultado de umaíj^égí^que modificaria a fo rm a^ õ v erb o p S ã
harmonizá-la aos traços fêfeVantes”dõ''sujeito. Assim, se õ sujeito"
fóreiJ7queT em o'S 'T i^õr””fOT^ pessoa” e “singular”, o verbo
sofreria uma transformação que lhe atribuiria a terminação específica
de prim eira pessoa do singular. Como se vê, essa solução segue
a análise da concordância usualmente aceita na teoria gerativa padrão;
ver aplicações para o português em Quicoli, 1972; Perini, 1977a;
e vários outros trabalhos.
Segundo a solução g , a concordância não seria propriam ente
uma regra (transformacional), mas uma c o í í d i ^ sobre a boa forma­
ção das frases: a c oncordanciãm Specíõnãn a as estruturas, ádmífíndÕ
como gramaticais apenas aquelas em que se verificassem certas con­
dições espt^i'ifiriada.s Segundo essa sõíu^õ7'ãgfãmática geraria livre­
mente sujeitos e verbos em qualquer fom ur-e-a aceitabilidade ou
não seria resultado de uma operação ddhiltrager^
Exemplificando, uma frase como ''
(3) eu cheguei
seria aceitável, segundo a solução A, porque aí a concordância verbal
se aplicou, dando, ao verbo a forma em -ei, que se harmoniza com
os traços léxicos do sujeito eu. Já segundo a solução B a aceitabilidade
de (3) não procede de nenhum a adaptação da forma do verbo. (3)
foi gerada pelas regras da gramática, tal como poderia ter sido gerada
a frase
(4) * eu chegou
A concordância verbal inspeciona (3) e (4), e filtra (4) justamente
porque as condições exigidas não se verificam; em (3) as condições
estão presentes, e assim a frase não é excluída pelo filtro.
À primeira vista parece que a diferença entre essas duas análises
é insignificante: seriam duas maneiras de se dizer a mesma coisa.
77

N i i cniaiito, não só diferem substancialmente, mas ainda nos levam


a 1 luci entes análises de diversos fenómenos gramaticais, entre eles
<i', I llamados “sujeitos ocultos”.

2.3.3.1 A concordância como regra


Vamos examinar as conseqüências de se adotar a solução A.
I evidente tiue, se a concordância se processa como urna regra de
h.miionização sintática entre verbo e sujeito, teremos de admitir a
I iM - .e n ç a de um sujeito ( “oculto”) em frases como

( ¿ ) cheguei
I■.•.() porciue, dentro dessa solução, é necessário manter a conexão
eiiiie (2) e (3)
( ) eu cheguei
I '.'.a Ioiiexão evita que se tenha uma situação única (o aparecimento
Il.i desinência da primeira pessoa do singular) a partir de duas regras
iliMiiiias: uma estabelecendo a concordância de chegar com eu em
I i ), e produzindo assim a forma cheguei-, a outra produzindo a mes-
iiM lomia cheguei em (2) a partir de outro fator que não a concor-
d.inel.i (jã que (2) não teria sujeito). A saida é admitir que (2) tem
iiiii sujeito oculto, que se identifica de alguma forma com eu. Essa
•..iid.i MOS é forçada pela concepção da concordância como resultado
(Ir uma regra de harmonização sintática.
Ao iniciar o estudo da questão, inclinei-me para a solução A,
|M'la razão indicada. Mas um exame mais porm enorizado acabou
Ir\'<'lanilo certos inconvenientes sérios, de maneira que prefiro des-
<aiiá la c‘in favor da solução B.
() inconveniente principal da solução A é que ela nos obriga
.1 .!(Iinlt ir c|ue um elemento elíptico (o “sujeito oculto” de (2) ) possui
I I .K.i IS autônomos de núm ero e pessoa — traços não decorrentes

de 1 1 ')| )la dos de algum outro elemento da sentença. Ou seja, estamos


pi isi 1 1 la 1 ulo um elemento abstrato bastante especificado sintaticamen-
ir, (• (|iic não é repetição (por redução anafórica) de outro elemento
explicito.
Isso não ocorre nos casos já admitidos (aqui e em Perini, 1985a)
ilc elementos elípticos. Tomemos o seguinte exemplo:
(5) Serafim toca flautim, e nós trom bone
( iHilomie discuti anteriormente (Perini, 1985a, p. 60-70), há boas
1 .1/1 le.s jiara se admitir que a estrutura de (5) relevante para a análise
iMi liil um verbo elíptico, algo como
( 5a) Serafim toca flautim, e nós [0]y trom bone
78

O verbo elíptico de (5a) difere do presumível sujeito oculto


de (2) de vários pontos de vista. Em prim eiro lugar, o 0 de (5a)
retoma um item léxico que ocorre explicitamente no período, ou
seja, o verbo toca da primeira oração. Em segundo lugar, os traços
que tém a ver com a concordância verbal, a saber, os de pessoa
e número, são exatamente aqueles que não podem ser representados
em 0 , pois a primeira ocorrência do verbo está na terceira pessoa
do singular, e a segunda teria de estar na primeira pessoa do plural.
No entanto, não há necessidade de atribuir a 0 traços de pessoa
e número, pois certamente não se observa concordância nenhum a
entre 0 e o sujeito nós. É portanto mais indicado deixar 0 neutro
(não marcado) quanto a tais traços; seu conteúdo sintático (e, presu­
mivelmente, também semântico) se esgota em uma cópia de toca
da primeira oração: 0 é, sintaticamente, um verbo; e, semantica­
mente, é uma réplica de toca. O mesmo acontece com casos em
que 0 retoma um elemento nominal. Assim, em
(6 ) Carlos é rico, mas minhas sobrinhas não são 0
o elemento vazio ( 0 ) retoma a semântica de rico, assim como seu
caráter de adjetivo, mas não os traços de gênero e núm ero: a
ser explicitado, não poderia aparecer como rico, mas como ricas.
Essas indicações sugerem que 0 em (5a) e ( 6 ) — e, presumivel­
mente, onde quer que ocorra — carece de autonomia sintática e
semântica.
É evidente que não se poderia dizer o mesmo de um 0 que
ocorresse em (3): aí, 0 seria um pronom e pessoal de prim eira pessoa
do singular (em bora não haja item semelhante explicitamente pre­
sente na frase). E teria o significado correspondente a tal pronome,
já que a única outra indicação, a desinência do verbo, seria apenas
o resultado de uma regra de harmonização sintática. Em outras pala­
vras, o 0 de (2) teria autonomia sintática e semântica.
Os inconvenientes dessa análise são, pois, em prim eiro lugar,
o fato de que ela exige a postulação de elementos abstratos relativa­
mente ricos de traços sintáticos e semânticos; e, depois, que nos
força a aceitar uma noção incoerente das propriedades desses ele­
mentos abstratos. Não só suas propriedades sintáticas (e semânticas)
variam conforme a construção, mas ainda, no caso de (2), pode-se
dizer que a postulação de 0 é muito pouco restringida: a menos
que encontremos princípios que o impeçam, seria possível começar
a lidar com um 0 que fosse, digamos, um substantivo feminino,
próprio, com o significado de “Maria” etc., isso independentemente
da ocorrência anterior no contexto do nom e M aria — uma situação
que, como tem sido repetidamente mostrado na literatura, tende
79

.1 ilMi significado de qualquer análise (ver algumas breves conside-


i ii.ocs em Perini, 1985a).
( À)mo veremos, a solução B nos permitirá delimitar muito mais
(Miii.imente os casos em que podem ocorrer elementos vazios; a
liilg.ii pelos exemplos vistos, estes seriam reduzidos à função de
.in.ilói icos (retomada de elementos previamente apresentados na
It.ise, ou no máximo no discurso precedente).

2.3.3.2 A co n co rd â n cia co m o filtr o

I’;issemos agora à solução B. Conforme adiantei acima, essa solu-


<..i<>vê a concordância não como uma regra que altera a forma do
M1 1)(), mas antes como um filtro de compatibilidades, que inspeciona
I. i-,s(nituras, excluindo aquelas que não estão de acordo com deter-
I I iin.ulas condições. Segundo essa análise, a gramática, em um primei-

III momento, gera livremente estruturas como eu cheguei, cheguei,


III I Ingou, você m ataram o fra n g o etc. Ou seja, a forma do verbo,
ihi (|iie diz respeito a pessoa e número, é gerada livremente. Em
III11 segundo momento, a concordância verbal, entendida como filtro
(nu, mais precisamente, como sistema de filtros), excluirá algumas
1 li ■■.s.i.s estruturas. Alternativamente, pode-se entender os filtros como
1 , 0 1 lu lo parte do próprio processo gerativo, de m odo que certas

I siIIIIuras não chegarão a ser geradas. Não me parece que haja dife-

II III..I substancial entre essas duas alternativas; manterei a prim eira


pi III |iic facilita a exposição.
E interessante formular os filtros de maneira a excluir casos
ih i liMordância, e não só deixar passar casos de concordância, por-
•|iii- (.I.SOS sem concordância são comuns em português (quando
.1 (1 1 / (|ue “não há sujeito”, por exemplo). Se a condição fosse
dr que liouvesse concordância, frases como as seguintes teriam de
.<•1 excluídas:

(7) choveu ontem


(H) está cheio de moscas na cozinha
(9) bateram na porta
I lue.siiio
( ) cheguei
A l( irma mais simples de expressar a condição de concordância
.1 I i.i .ligo como
(10) Uma oração só é bem formada se não houver d i ^ r -
dância quanto a pessoa e n ú m êi^êh lfe óN dP ê ó s ^
80

No entanto, da maneira como está, (10) encerra uma éircularida^:


se s^sab em o s que term o é sujeito através da concordância, nao
podem osnisaí a noção de “sujeito em discordância”, pois esta é
contraditória. Na verdade, (10) não poderia filtrar nenhum a frase
do português, pois se um term o não está em relação de concordância
com o NdP, é por definição um não-sujeito.
Vou a seguir propor um mecanismo que prevê adequadamente
os fenômenos ditos “de concordância verbal” em português; é um
sistema relativamente complexo, comparado com a simplicidade da
formulação (10). Com essa análise, seremos levados a uma concepção
radicalmente diferente do que se entende por “concordância verbal”.
Mas não vejo maneira de analisar adequadamente os fatos de forma
mais simples e compacta; e isso, devo acrescentar, depois de haver
elaborado e testado diversas análises. A alternativa aqui exposta foi
a mais eficiente em termos de prever as possibilidades e impossi-
bilidades de ocorrência de associações entre SNs e verbos em portu­
guês.

2,3.4 O m e c a n ism o d a c o n c o rd â n c ia v e rb a l
Vou entender “concordância verbal” como um fen ô m en o jle
harmonia entre SNs oracionais e o NdP de sua oração; não se trata
de üm processo gramatical, mas de um fato observável.
A concordância se define em função dos traços de pessoa _e
núm ero dos SNs de nível oracional, mais a forma do verbo (geral-
m ente'^õhsidêi5dã cõmõ expfimihdõ õs mèsm traços, através de
desinências). Para isso, deve haver uma espécie de tabela de corres­
pondências, mais ou menos do formato seguinte:

Tabela de correspondência entre traços e desinências


[Desinência] Traços
[-mos] primeira pessoa, plural
í-m] terceira pessoa, plural

Naturalmente, a tabela é complicada, incluindo às vezes infor­


mação sobre o tempo (pois (¿Tpo presente do indicativo é primeira
pessoa do mtgeAss, mas no imperfeito do indicativo pode ser pri­
meira ou terceira pessoa do sãí^ilar) e sobre a conjugação. A tabela
é apresentada, sob outra forma, pelas gramáticas usuais, nos quadros
de conjugação dos verbos. Seu conhecimento é parte integrante do
conhecimento da língua, e sem ele não é possível apurar se há ou
r) * _

Wfl í M
81

1 1 . 1 0 concordância entre um verbo e determinado SN. A identificação

d.i concordância decorre desses quadros, ou tabelas, mais a infor-


iii.ição léxica e sintática ligada aos SNs. Por exemplo, o SN m inhas
u m as é marcado “terceira pessoa” (no léxico) e “plural” (por causa
d.i pre,sença do morfema -s).
Voltemos agora à formulação do mecanismo da concordância
\ Cl bal. Como notei, ele com porta uma série de “filtros”, e para a
iplicação desses filtros necessitaremos de suas funções sintáticas,
.1 '..iber, a de suieito, que já foi definida, e a de obieto direto, definida

csi.i por ora como afunção desem penhada pelos SNs de nível oracio-
11.11 (|iie não são sujeitos. Em particular, trata-se de distinguir quatro
11| H),s de objeto direto (OD). a saber; clítico; formado de “elemento
topicalizado; e não-topicalizado.
A dejímição de objeto direto acima adiantada dá a entender que
Sn duas funçõisM e nível oracional podem ser desempenhadas por
SN.s. .1 de sujeito e a de objeto direto. Isso é uma simplificação, mas
1 1 . 1 0 é irremediável; veremos a seu tempo que há dois traços que

IHidem caracterizar os objetos diretos sem ambigüidades dentro da


' II .iç.io, além do traço [ - CV]; p o r enquanto, admitiremos provispria-
IIII ule (|ue um SN só pode ser na oração sujeito ou ÒDi
A ilistinção das funções a serem utilizadas pode ser feita através
I Ic uma ,s érie de procedimentos práticos, a s a b e rr''
(a ) considerando apenas SNs de nível oracional, verificamos
se cada SN está ou não em relação de concordância com
o NdP. Se estiver, sérá sujeito; caso contrário, será objeto
direto;
I b) no caso do objeto direto, verificamos se se trata de um
clítico, e se precede ou segue o NdP. Se for um clítico,
será um objeto clítico-, se seguir o NdP, será um objeto
não-topicalizado-, e, se preceder o NdP, passamos a (c):
(i') para objetos que precedem o NdP, verificamos se é um
“elemento Q ” — isto é, um “pronom e relativo” ou um
“pronom e interrogativo” segundo a nomenclatura tradi­
cional (a lista dos elem entos Q é breve, e pode ser incluída
na gramática; quanto a seu status de SN, ver o capítulo
4). Se o SN for um elem ento Q, será um objeto-Q-, caso
contrário, será um objeto topicalizado.
I''..s,ses procedimentos vão so frer uma pequena revisão na seção
I V por ora, basta-nos a form ulação acima. Eles definem o sujeito
I- ii.s «iiiairo tipos de objeto direto; essa classificação é necessária
p.ii .1 1 ) liincionamento dos filtros. Antes de passar aos filtros, vejamos
82

alguns exemplos de rotulação segundo os procedimentos. Para co­


meçar, seja a frase
(11) a polícia encontrou os dólares roubados
Aqui há dois SNs oracionais. O primeiro, a polícia, pode ser conside­
rado como estando em relação de concordância com o NdP, sendo
o sujeito. O segundo, os dólares roubados, é o objeto; como vem
depois do NdP e não é um clítico, será rotulado de objeto não-topi-
calizado. Já em
(12) a polícia me encontrou
é fácil verificar que m e é o ^ t o cMçq. Um exemplo de objeto-Q
é quem em
(13) quem vocês procuram?
E objeto topicalizado se encontra em
(14) q bolo nós comemos
Aqui o bolo é objeto; precede o NdP e não é clítico nem Q; portanto,
é um objeto topicalizado.
Como se vê, os procedimentos acima permitem a rotulação dos
SNs de nível oracional com bastante facilidade.
Agora podem os passar à formulação de um conjunto de filtros,
que constituem propriam ente o sistema de concordância. Entendo
que as formas verbaissão geradas livremente; dito de outra maneira,
a flexão verbal é sintaticamente autônoma, não sendo, pelo menos
em um prim eiro momento, conseqüência automática de outros fato­
res. Mas a língua impõe certas condições que limitam a ocorrência
das formas verbais, de m odo a produzir na superfície as restrições
de co-ocorrência a que chamamos “concordância verbal”. Essas con­
dições são provavelmente numerosas; no que se segue procuro for­
mular as mais importantes, sob a forma de filtros. Esses filtros inspe­
cionam as estruturas, marcando algumas como inaceitáveis.

2.3.4.1 Filtros
O prim eiro filtro é o seguinte:
(15)
Filtro de terceira pessoa (F3P)
É mal formada a oração que tiver o verbo na terceira
pessoa do singular e não tiver sujeito.
Esse filtro é responsável pela inaceitabilidade de
(16) * comeu
(17) * chegou
83

I ssiis frases só seriam aceitáveis em situação anafórica; como aqui


M) nos interessam situações não-anafóricas, pode-se dizer que são
Inaceitáveis.
A inaceitabilidade de (16) e (17) se relaciona com o fato de
<|ue i-stão na terceira pessoa do singular. Tanto é assim que as frases
•iliaixo são aceitáveis:
{18) comi
(19) chegamos
(() caso da terceira pessoa do plural será examinado mais adiante) ,.
( I >111 efeito, o português não admite, em geral, a omissão do sujeito
< |ii.iik Io se trata de verbo na terceira pessoa do singular (não-ana-
Idiico). Aqui não entrarei em considerações de ordem funcional;
p.ii.i isso, ver Perini, 1985b.
() F3P, como outros filtros, comporta exceções. São alguns pou-
t (i.s verbos, a saber, os chamados “meteorológicos” como chover,
.ilcin tios raros verbos impessoais como haver. Esses verbos são lexi-
>.iiiifiite marcados como exceções ao F3P, isto é, as estruturas em
i|iif lais verbos figuram escapam à ação do F3P. Podemos exprimir
l.s.si) tlizendo que esses verbos são marcados no léxico como [ —F3P]
((III melhtir, seguindo Lakoff, 1970, [m F3P], onde “m ” significa “mar-
I .11 lo " ),
Nosso segundo filtro é o seguinte:
( 20 )
Filtro de posposição (FP)
É mal formada a oração que tiver o sujeito depois do
NdP.
Esie filtro, evidentemente, não pode se aplicar a todos os casos,
MMi.io não se explicaria a aceitabilidade de frases como
(21) chegou minha tia
M.is .se aplica a frases aparentemente semelhantes a (21) do ponto
ilc vlsia sintático, como
(22) * comemos nós
(23) * entendeu minha tia
Al) t|ue parece, essa distinção tem alguma relação com a distin-
•,.!( 1 1( adicional entre verbos transitivos e intransitivos: os verbos das
(i.ises (22) e (23) são transitivos, o de (21) é intransitivo. No entanto.
Mimo já se discutiu em outro trabalho (Perini & Fulgêncio, 1987),
.1 disiinção entre transitivos e intransitivos, tal como se apresenta

ii.i gramática tradicional, é insustentável. Verbos “transitivos” como


I I >nnr ocorrem freqüentemente sem objeto, e verbos “intransitivos”
84

como m orrer podem ocorrer com objeto, em bora raramente. Por


exemplo:
(24) Sônia já comeu
(25) Machado m orreu uma m orte tranqüila
Assim, a distinção tradicional não fez mais, provavelmente, do que
capturar uma tendência estatística, antes que uma separação nítida. A
maioria dos verbos ditos “transitivos” se comporta como os de (22)
e (23), e a maioria dos “intransitivos” se comporta como o de (21). Talvez
haja alguma generalização por trás dessa observação; mas por outro lado
há exceções; dormir, adonnecer, roncar são “intransitivos”, mas pare­
cem antes comportar-se como a maioria dos “transitivos” de (22) e (23);
(26) * dormiu minha tia
(27) * adormeceu minha tia
(28) * ronca muito minha tia
Direi, por isso, apenas que há duas classes de verbos: a prim eira
inclui entender, comer, dormir, adormecer, roncar etc., verbos a
que podem os chamar “não-pospositivos”, e que se caracterizam por
sofrer a ação do filtro de posposição. A segunda classe (verbos “pos­
positivos”) escapa à ação desse filtro, e inclui provavelmente um
nüm ero m enor de verbos; chegar, m orrer etc.
Entenderei, por conseguinte, o filtro (20) como aplicando-se
apenas a uma parte das estruturas, a saber, àquelas que contêm um
verbo não-pospositivo. Cada verbo terá de ser marcado no léxico
quanto a isso; os pospositivos serão marcados [ -FP], e os não-
pospositivos [ +FP].
O FP, evidentemente, não faz nada mais além de descrever os
fatos. É muito provável que haja aí generalizações de importância
ainda a capturar; ver a literatura sobre a posposição do sujeito em
português, que não é pequena.
O próxim o filtro trata da posição dos clíticos na oração. Como
se sabe, esse é um assunto bastante complicado, e um bicho-papão
tradicional em provas e concursos. Está ainda a exigir um estudo
empiricamente adequado, de m odo que aqui darei apenas uma for­
mulação preliminar do filtro. Maiores investigações do assunto de­
vem levar à formulação de outros filtros, aplicáveis especificamente
ao caso dos clíticos.
O filtro que proponho é o seguinte:
(29)
Filtro de Q -Vclítico (FQC)
É mal formada a oração que tiver um elemento Q inicial
e um clítico após o NdP.
85

Esse filtro se encarregará de marcar como mal formada a frase


(30) * quem viu-o?
Esse é um caso de “atração” do clítico pelo elemento Q; segundo
.1 '. gi.imáticas, também exercem atração as palavras negativas, em
11 M U gerundio etc.; ver, por exemplo, Cunha & Cintra, 1985, p. 301
t'i -.('(IS, I Im levantamento de tais casos em textos atuais poderá levar
.1 loiiiulação de um conjunto bem mais rico de filtros de clíticos.

I uiciula-se portanto o FQC como um ponto inicial para a pesquisa,


t como sugestão de como inserir o assunto no contexto geral da
.lU.lll.SlV
f inalmente, proporei um filtro que tem a ver com as restrições
.1 posição do elemento topicalizado. É o seguinte:
(31)
Filtro de tópico (FT)
É mal formada a oração que tiver um elemento topicali­
zado, se este não for o prim eiro constituinte de uma ora­
ção principal.
Fsse filtro marcará como mal formada a frase
(32) * os meninos que Maria encontraram são meus primos
Segundo o mecanismo de rotulação, o SN M aria só poderá ser um
I ihjclo topicalizado, pois: (a) esse sintagma não está em relação de
M M u o r d â n c ia com seu verbo, encontraram-, (b) precede o NdP;
e (i ) não é um elemento Q. Mas nesse caso trata-se de um objeto
iiiplcilizado que não é o prim eiro constituinte da oração principal;
IIIII Isso, é excluído pelo FT.
Fsse conjunto de filtros é pois responsável pela exclusão de
iiiiiiias frases inaceitáveis, que geralmente se consideram casos de
Violação de concordância”; a interpretação dada a tais casos aqui
i\ Kiiiio veremos, diferente (ver a seção 2.3-4.6).

2.3.4.2 Outras razões de má form ação


Mas há outros casos, também geralmente colocados sob a rubri-
1 .1 de "violações de concordância”, que os filtros não excluem; vou
MUi.sii ar adiante que há princípios, independentem ente necessários,
que os excluem de maneira bastante natural e plausível. Vejamos,
pi liiielramente, o seguinte caso:
(3.)) * Antônio fomos lá
I ) SN .Kiuônio será rotulado de objeto topicalizado; e, como é o
pi IIIII •III) elemento da oração principal, nenhum dos quatro filtros
pi idcrá marcar a frase como inaceitável.
86

Naturalmente, isso não faz com que (33) seja automaticamente


bem formada; pode haver outros problemas com sua estruturação.
No caso, acredito que o problem a tem a ver com a transitividade
do verbo. Como vimos, A ntônio é um objeto (no caso, topicalizado);
e o verbo ir recusa objeto direto, donde ser a frase marcada como
inaceitável. Podemos rotular esse caso de “objeto supranum erário”;
como disse, urna questão de transitividade.
É bem semelhante o caso de
(34) * Antonio vimos Manuela
Já sabemos que Antônio deve ser rotulado de objeto (topicali­
zado); mas acontece que M anuela é igualmente objeto direto (náo-
topicalizado). O verbo ver aceita objeto, mas (como todos os verbos)
apenas um; não pode haver mais de um objeto por oração, e é por
isso que (34) é mal formada. Novamente, temos um caso de objeto
supranumerário.
Um problem a diferente ocorre com
(35) * nós encontrei
Nós será rotulado de objeto direto (topicalizado); o verbo en­
contrar aceita objeto, e só há um na oração: logo, até agora não
encontramos violação. Mas acontece que a palavra nós não pode
nunca ser objeto direto; ela é marcada ju ntam ente com eu, tu, vós)
como um caso muito excepcional da gramática portuguesa. Como
a única análise disponivel para nós em (35) é a de objeto direto,
a frase encerra uma violação, e é por isso mal formada. A má formação
de (35) se deve, pois, à mesma razão que exclui
(36) * encontrei nós
É preciso notar que as referências à transitividade e à ocorrência
de nós, utilizadas acima para explicar a inaceitabilidade de (33), (34)
e (35), são independentem ente necessárias na descrição do portu­
guês; qualquer gramática terá de incluí-las. Portanto, sustento que
a interpretação acima é bem motivada em termos de uma análise
geral da sintaxe da língua.

2.3.4.3 Filtragem semântica


Os fatores responsáveis pela exclusão de (33) a (35) são sintá­
ticos (restrições à ocorrência de formas retas dos pronom es e condi­
ções de co-ocorrência com objetos diretos). Também há casos, apa­
rentemente ligados à concordância, que são na verdade problemas
de interpretação semântica mal formada; estes se ligam também à
87

análise dos chamados “sujeitos indeterminados”. Vou a seguir fazer


um breve exame dessa questão.
A inaceitabilidade da frase seguinte (em situação não anafórica)
(37) * morreram
não pode ser devida aos fatores estudados acima, porque essa frase
escapa à ação dos quatro filtros (relem bro que o F3P só se aplica
a casos de terceira pessoa do singular); e não há objeto supranu­
merário, nem nada mais que possa explicar sua inaceitabilidade.
Acredito que se trata de uma filtragem por razões semânticas, ligada
à interpretação recebida pela terceira pessoa do plural como estru­
tura com “agente indeterminado” (tradicionalmente dito “sujeito in­
determinado”).
Tomemos uma frase como
(9) bateram na porta
O componente semântico interpreta um verbo na terceira pessoa
do plural, sem sujeito, como referindo-se a um agente indeterminado
(esta é apenas uma das interpretações possiveis dessa construção);
haverá, pois, uma regra semântica que efetua essa tarefa. Os ingre­
dientes principais da interpretação semântica resultante podem ser
informalmente expressos assim: (a) o agente não é conhecido, ou
seja, sua referência é deixada propositalmente em aberto; (b) o agen­
te é humano; e, como conseqüência da existência de um agente,
(c) a oração exprime uma ação de algum tipo.
Tudo isso está presente na interpretação de (9): embora não
se saiba quem bateu na porta, fica entendido que não se trata (na
intenção do falante) do vento, nem de algum gato: foi alguma pessoa.
Alguns gramáticos tradicionais, intuindo isso, colocam (9) como equi­
valente de aiguém bateu n a porta (note-se. alguém , e não algo).
Finalmente, bater é um verbo de ação, adequado à expressão do
ingrediente (c); com efeito, (9) exprime uma ação.
Já em (37) temos o verbo morrer, que não é um verbo de ação.
Por isso, a interpretação semântica que (42) recebe é anômala: ela
contém um agente, que o verbo não admite. Por isso a frase é inaceitável.
Isso acontece sempre que o verbo não exprime ação; por exemplo,
(38) * parecem doentes
(39) * estão de férias
Nenhuma dessas frases aceita a interpretação “indeterminada”. Natu­
ralmente, todas são boas em situação anafórica, em que a lacuna
que antecede o verbo retoma um SN anteriormente mencionado;
tais casos não nos interessam aqui.
88

É mais difícil apurar os efeitos do ingrediente (b) (agente huma­


no) porque há poucos verbos que exprimam ação especificamente
de agente não-humano. Mas pode-se citar algo como
(40) ? miaram lá em cima
Essa frase não se entende como referindo-se a um gato, mas (jocosa­
mente) como referindo-se a um agente humano.
Como se vê, a inaceitabilidade de frases como (37), (38) e (39)
tem a ver com o agente, que é uma categoria semântica. Como resul­
tado, o aspecto formal parece cheio de idiossincrasias, e é relativa­
mente pouco interessante. No plano semântico, ao contrário, as con­
dições de aceitabilidade decorrem naturalmente de fatores indepen­
dentes, configurando uma análise coerente. É justamente por isso
que prefiro atribuir a fatores semânticos as condições de aceitabi­
lidade de tais frases.
A análise acima esboçada m e parece um bom com eço para
o estudo dos agentes indeterm inados em geral. Mas não creio
que tudo esteja com preendido, e ainda resta m uito o que inves­
tigar. Citarei dois pontos: prim eiro, em bora nenhum verbo que
não exprim e ação possa ocorrer em construções com o (9), alguns
verbos que se diria serem ativos tam pouco aparecem nessa cons­
trução:
(41) * chegaram aí
Por alguma razão ainda obscura, essa frase não é aceitável com agente
indeterminado.
O segundo ponto é a relação entre as frases de agente indeter­
minado com terceira pessoa do plural, como (9), e as com a partícula
-se. As condições de aceitabilidade destas últimas são apenas parcial­
mente idênticas às das construções com terceira pessoa do plural.
Assim, em bora a frase correspondente a (38) seja igualmente má
com -se,
(42) * parece-se doente
em outros casos os julgamentos são nitidamente diferentes. Por
exemplo,
(43) morre-se de gripe no verão (confronte: * m orrem de gri­
pe no verão)
(44) está-se muito bem aqui (cf.: * estão muito bem aqui)
Seria o caso, então, de se investigar mais cuidadosamente os
traços da interpretação semântica da construção com -se, para ver
como as diferenças entre essa construção e a de terceira pessoa do
plural explicam essas diferenças de julgamento.
89

2.3.4.4 D u p la a n á lise
Antes de passar à discussão geral dessa análise, quero fazer uma
observação sobre a possibilidade de duplas análises.
Como a imensa maioria dos SNs marcados como terceira pessoa
não variam de forma conforme sejam sujeitos ou objetos (as exce­
ções, como sabemos, são apenas os pronomes eu, nós etc.), há fre­
qüentemente, quando o verbo está na terceira pessoa, mais de uma
possibilidade de análise. Assim, uma frase como
(45) * entendeu minha tia
pode ser interpretada como uma frase com sujeio (m inha tia) pos­
posto, ou então como sem sujeito, m inha tia sendo o objeto direto.
No prim eiro caso, a frase será filtrada pelo FP porque o sujeito está
posposto e o verbo não é pospositivo; no segundo caso, também
será filtrada, porque o verbo está na terceira pessoa do singular,
e não há sujeito; o F3P se aplicará.
Fm outros casos, pode acontecer que uma das análises dê um
resultado que escapa à filtragem. Por exemplo,
(21) chegou minha tia
Os procedimentos fornecem duas análises. Segundo a primeira, m i­
nha tia é sujeito; como o verbo é pospositivo, e não exige objeto,
o resultado é bem formado. Segundo a segunda análise, m inha tia
seria objeto direto (não estaria em concordância com o verbo), não
havendo sujeito. Fssa análise dá um resultado mal formado, porque
o verbo está na terceira pessoa do singular, sem sujeito (F3P), e
além do mais m inha tia é objeto de chegar, que não admite objeto.
Resta perguntar ainda se não haverá casos em que as duas análises
escapam à filtragem. Nesses casos, prevejo que a frase será ambígua,
cada análise dando origem a uma interpretação semântica distinta.
A dupla análise parece ser inevitável, em geral, em qualquer
descrição da língua; assim, não vejo necessariamente um problema
na situação acima descrita. Naturalmente, pode-se chegar eventual­
mente à conclusão de que nesses casos precisamente a dupla análise
não é indicada; tudo dependerá do desenvolvimento da nossa com­
preensão do complexo sistema de filtragem da língua. Por ora, a questão
ficará assim em suspenso, como mais um ponto a demandar reflexão.

2.3.4.5 V antagens d a solução B


Podemos agora examinar as vantagens que essa solução oferece
sobre a solução A que, como vimos, postula a concordância verbal
90

como uma regra que modifica a forma do verbo em função dos


traços do sujeito. Em prim eiro lugar, a solução proposta evita o pro­
blema de se atribuir traços específicos ao elemento vazio, pois pres­
cinde de elementos vazios. Segundo a solução B (adotada acima),
uma frase como
(2) cheguei
não contém um sujeito oculto (representado por um elemento vazio,
0 ) , e nenhum a regra é necessária para harmonizar o verbo com
esse sujeito oculto. Dizemos, em vez, que (2) é uma oração sem
sujeito, não obstante a forma do verbo ser de primeira pessoa do
singular. As formas pessoais do verbo são geradas livremente, e (2)
é aceitável não porque haja aí concordância, mas antes porque não
sofre a ação de nenhum filtro.
Ao se evitar a postulação de 0 em (2), evita-se igualmente uma
análise relativamente abstrata, assim como o problem a de se ter dois
tipos muito distintos de 0 : o que aparece em
(5a) Serafim toca flautim, e nós [0]v trom bone
e que não possui traços de número, pessoa ou gênero, e o que
apareceria em (2), marcado este quanto a pessoa e número. Segundo
a solução proposta, 0 é sem pre um elemento sintática e semanti­
camente não-autônomo, onde quer que ocorra: um elemento essen­
cialmente anafórico. Em outras palavras, a análise B nos permite
delimitar com maior rigor os casos em que podem ser postulados
elementos vazios.
Uma segunda vantagem da solução B é que não im pede a gera­
ção de frases com sujeito “indeterminado” ou “inexistente” (para
usar a nomenclatura tradicional). Em uma análise como a A, seria
difícil explicar a ocorrência de frases como
(7) choveu ontem
(8) está cheio de moscas na cozinha
(9) bateram na porta
Precisaríamos provavelmente de regras especiais, que permitissem
ao verbo assumir uma forma pessoal sem que houvesse sujeito, mes­
mo oculto; ou, alternativamente, poderíamos multiplicar os tipos de
sujeito oculto, admitindo que em (2) 0 é igual a eu, mas em (7)
0 seria um elemento que recebe interpretação semântica nula, e
emi (9) seria ainda um terceiro elemento, cuja interpretação seria
“agente indeterminado”.
Não há dúvida de que esses traços semânticos estão presentes
nas frases em questão, e de que terão de ser produzidos pela gramá­
tica de algum modo. O problem a está em duplicar o fenômeno atra­
91

vés de intermediários sintáticos, a saber, os vários “tipos” de 0 , so­


brecarregando estes últimos de traços arbitrários e a d hoc. Já que
temos de dar conta das diferentes interpretações de (2), (7), (8)
e (9), será melhor fazê-lo diretamente no componente semântico.
Parece-me que a solução B permite justamente isso. Voltehios
aos casos de (7), (8) e (9): essas frases não têm sujeito, conforme
vimos. As regras semânticas terão de atribuir-lhes interpretações dife­
rentes no que diz respeito, digamos, ao agente. Isso deve ser derivado
a partir dos elementos sintáticos e/ou léxicos da frase. Em (7), as
características do verbo chover excluem a possibilidade de haver
um agente (pois esse verbo é marcado no léxico como não admitindo
agente). Em (8), igualmente, o verbo estar não admite agente.
Já em (9) a situação é mais complexa. O verbo bater admite
agente, e este é expresso pelo sujeito na voz ativa (essa afirmação
vale para esse verbo, mas não para todos os verbos da língua; portan­
to, suponho que seja marcada no item léxico de bater). A partir
daí, pode-se imaginar uma série de procedimentos que levarão à
interpretação correta; algo como:
(a) o verbo é bater (agente expresso pelo sujeito na voz ativa);
(b) a frase é ativa;
(c) o verbo não tem sujeito;
(d) nesse caso, examina-se a desinência verbal. Se for, por
exemplo, de prim eira pessoa do plural, o agente será “nós”
(não o pronom e nós, que não está presente na frase, mas
a matriz semântica correspondente);
(e) a desinência no caso é de terceira pessoa do plural. Essa
desinência tem duas possibilidades de interpretação, defi­
nidas pelo componente semântico da gramática: pode ser
anafórica (e nesse caso lança-se mão de informação sintá­
tica sobre o resto do período, ou então de informação
discursiva); ou pode ter uma interpretação própria, a de
“agente indeterminado”.
Essa seria uma visão informal ( “ao microscópio”) da tarefa leva­
da a efeito pelo componente semântico na interpretação dos agentes
indeterminados (estes são chamados tradicionalmente sujeitos inde­
terminados, mas já vimos que aí se quer dizer na verdade agentes,
e não sujeitos considerados formalmente).
Não é objetivo deste capítulo desenvolver, mesmo em parte,
a análise do componente semântico. Por isso, vou contentar-me com
essa visão apressada do processo. Note-se, entretanto, um ponto im­
portante: o procedimento acima delineado não é uma complicação
na análise, forçada pela adoção da solução 5; dentro da solução A,
92

a questão também se coloca, e sua face semântica não seria em abso­


luto menos complicada. Além disso, a face sintática se complicaria
pela necessidade de postular a presença de elementos vazios marca­
dos de traços autônomos.

2.3.4.6 Sumário
A análise acima proposta para os fenômenos usualmente reuni­
dos sob o rótulo de “concordância verbal” afasta-se muito das inter­
pretações tradicionais. Em prim eiro lugar, a concordância, estrita­
mente falando, não é uma regra, mas um fenômeno que se observa
nas orações, e que decorre da adequação entre formas verbais gera­
das livremente e traços de pessoa e núm ero de SNs. Essa adequação
é, em principio, acidental, pois os SNs e as formas verbais são geradas
independentemente.
Os casos que seriam tradicionalmente considerados violações
da concordância, como
(33) * Antônio fomos lá
(34) * Antônio vimos Manuela
(35) * nós encontrei
interpretam-se como casos de objeto direto inadequado: ou por ser
supranumerário, ou p o r ser realizado por uma forma que não pode
ser objeto (por exemplo, nós, eu etc.); ou ainda, como em
(32) * os meninos que Maria encontraram são meus primos
por conterem um objeto topicalizado em uma posição que não é
a primeira da oração principal.
Não tenho desculpas a apresentar por esse distanciamento da
maioria das análises até hoje propostas. Até que se prove o contrário,
o tratamento aqui proposto para esses fenômenos é o que dá conta
do maior conjunto de dados, da forma mais natural. Apesar de sua
respeitável antigüidade, a noção de concordância verbal como regra
de modificação morfológica do verbo não facilita a explicação unifi­
cada dos fenômenos considerados. Se é nosso objetivo descrever
o conjunto de fenômenos superficiais tradicionalmente chamados
“concordância verbal”, estou convencido de que as inovações aqui
adotadas são inevitáveis para permitir um tratamento coerente.
Apontarei, finalmente, um problema ao qual teremos de voltar
mais adiante. O conjunto de procedimentos utilizados para rotular
os SNs oracionais vai marcar como objeto direto o SN grifado do
(46) ronquei a noite toda
93

Isso, por enquanto, não apresenta problem a sério, porque o resul­


tado final da aplicação dos filtros será deixar passar (46), que de
fato é aceitável. Mas, conforme veremos brevemente, há razões para
analisar a noite toda em (46) como outra função que não o objeto
direto. Voltarei a esse problem a na seção 2.4.2.4.

2.3.4.7 Formas nominais


As formas nominais do verbo (gerúndio, participio e infinitivo)
apresentam alguns problemas especiais. Como não se flexionam (ex­
ceto o infinitivo), não fica claro se o termo inicial de uma frase como
(47)* Marivânia chegando, a farra vai começar
deve ser analisado como sujeito ou não. Vou considerar prim eiro
o caso do gerúndio.
Defini o sujeito em função do traço “estar em relação de concor­
dância com o NdP” (abreviadamente, [CV]). Mas existem outros tra­
ços que, em bora não estejam todos necessariamente presentes, deli­
neiam o protótipo do sujeito, e estes nos podem ajudar a decidir
casos como o de M arivânia em (47).
Sabemos (seção 1.7) que as funções sintáticas precisam ser anali­
sadas em termos de protótipos; ou seja, há sentenças cujos sujeitos
são “mais sujeitos” do que outras. Isso aliás é reconhecido por alguns
lingüistas, como Keenan, que, ao discutir a possibilidade de uma
definição universal de sujeito, afirma:
“[...] segundo este tipo de definição, os sujeitos de certas sentenças,
e mais geralmente de certos tipos de sentenças, serão mais tipicamente
sujeitos [“more subject-like”] do que os sujeitos de outras. [...] Assim
o caráter subjetivo de um SN (em uma sentença) é uma questão de
grau”.
[ K e e n a -n , 1976a, p. 307.]
Keenan propõe um grande núm ero de traços, a maioria de caráter
semântico, para caracterizar o protótipo (universal) do sujeito. Aqui
limito-me a trés, todos sintáticos, que a meu ver compõem o protó­
tipo do sujeito em portugués.
Primeiro, evidentemente, temos o traço [CV]: a propriedade de
estar em relação de concordância com o NdP. É inevitável que mar­
quemos [ —CV] o sintagma que acompanha o gerundio em (47),
M arivânia, e dai surge o problema. Isso quer dizer que, se analisar­
mos M arivânia como sujeito, parece que temos de admitir que se
trata de um sujeito pouco tipico.
94 y
^ segundo lugar, incluo a posição imediatamente antes do
NdP. Esse traço é bastante característico dos sujeitos, em bora não
esteja sem pre presente. Vimos que há verbos que aceitam a pospo­
sição (verbos pospositivos); mas estes são minoria. Esse traço está
presente em M arivánia, o que sugere que esse sintagma seja sujeito
(“até certo ponto”, diria Keenan).
Outro traço que caracteriza os sujeitos em geral é poderem
ser retomados por pronom e em caso reto. Não há exceções: todo
term o marcado [ +CV] pode ser retom ado por algum pronom e reto.
As aparentes exceções se devem não a sujeitos excepcionais, mas
a restrições à própria retomada pronominal. Desse ponto de vista,
o gerúndio tem sujeito:
(48) eu chegando, a farra vai começar
Dessa forma, vemos que o SN que acompanha o gerúndio em
frases como (47) e (48) tem traços que o aproximam de um sujeito.
Será, então, um sujeito, ainda que menos típico do que o das formas
finitas.
Isso pode ser ainda verificado através dos filtros que integram
o sistema da concordância verbal. Um deles, o FP, menciona o sujeito
em sua formulação (o F3P também menciona, mas exige que o verbo
esteja na terceira pessoa do singular, o que o faz inaplicável aos
gerúndios); será que o FP se aplicaria a frases com gerúndio como
se estas tivessem sujeito?
A resposta é afirmativa, o que constitui um terceiro argumento
em favor de analisar como sujeito o SN que acompanha o gerúndio
em casos como o de (47) e (48). Sabemos que o FP exclui frases
com sujeito posposto se o verbo for não-pospositivo. Assim, com
um verbo pospositivo como chegar, espera-se que a posposição seja
permitida, e é:
(49) chegando titia, vocês podem sair
Agora, se substituirmos chegar por um verbo não-pospositivo, o re­
sultado deve ser inaceitável, o que realmente ocorre:
(50) * adormecendo titia, vocês podem sair
(51) * roncando titia, por favor me chamem
Note-se que sem posposição aceita-se até mesmo um verbo transitivo
com objeto não expresso, como em
(52) titia entendendo, qualquer um entende
Ou seja, os fatos relativos ao filtro de posposição apóiam a idéia
de que o gerúndio, no que pese a ausência de relação de concor­
dância, tem de fato um sujeito.
95

Creio que a esta altura é interessante especular um pouco acerca


do porqué da não ocorrência de concordância no caso do gerundio.
Posso dar algumas indicações de que talvez o sujeito do gerundio
não seja sequer pouco tipico. Em vez disso, diria que o gerúndio,
ele prõprio, é pouco típico enquanto forma verbal, o que, para mim,
é intuitivamente mais satisfatório.
Por que, então, não há concordância verbal com o gerúndio?
Pontes, 1972, analisa morfologicamente osverbos como compostos
á etem a (T )+ vogal tem ática ( y i) + sufixo de modo-tempo-aspecto
(MTA) + sufixo depessoa-núm ero (PN); vou referir-me a essa análise
na discussão abaixo. Veremos como representar m elhor os fatos rela­
tivos à concordância (ou à não-concordância) do gerúndio com seu
sujeito. Segundo Pontes, uma forma como andávam os se decompõe
assim:
and + á + va + mos
T VT MTA PN
Deve, portanto, existir alguma regra na língua que admite a seqüência
MTA + PN como bem formada. Os morfemas pertencentes à classe
PN sõ ocorrem na língua imediatamente apõs um morfema da classe
MTA (estou ignorando aqui os problemas criados por formas cumula­
tivas, onde a segmentação é impossível).
Mas o morfema formador de gerúndio, ou seja, -ndo, não admite
a adição de um morfema PN apõs si; essa é uma idiossincrasia que
não pode deixar de ser descrita por uma gramática do português.
É interessante observar que Pontes não se refere a -ndo como morfe­
ma de MTA, deixando-o na verdade sem classificação (Pontes, 1972,
p. 52). Concordo com essa intuição: -ndo não pertence à classe MTA,
mas a uma classe especial. Nesse caso as regras da língua impedirão
o aparecimento da seqüência -ndo + PN; o efeito observado é que
o gerúndio não pode concordar, pois a concordância sõ se manifesta
através de morfemas PN: -s, -mos, -m etc.
Pode-se pois argumentar que a não concordância do gerúndio
com M arivânia em (47), com eu em (48), deve-se não a ser esse
termo um sujeito pouco típico (ou mesmo a não ser sujeito), mas
a uma idiossincrasia do prõprio gerúndio, que o impede de concor­
dar com qualquer sintagma. Segundo esse raciocínio (que deve, por
ora, ficar no campo da especulação), o gerúndio tem, na verdade,
um sujeito como qualquer forma finita, muito em bora o efeito prin­
cipal do status de sujeito seja mascarado por outros fatores. Os de­
mais efeitos (posição antes do NdP, retomada por pronom e reto,
comportamento frente ao FP) estão presentes, o que nos autoriza
a chamar M arivânia de sujeito em (47).
96

O caso do infinitivo é diferente, pois o portugués admite a flexão


dessa forma. Pode-se dizer, então, que o morfema formador de infini­
tivo, -r, pertence à classe MTA de Pontes, o que permite a ocorrência
dos morfemas da classe PN imediatamente após. Não me parece haver
dúvida de que o infinitivo pode, pelo menos em muitos casos, apare­
cer com sujeito; os fatos relativos ao FP apóiam essa idéia:
(53) chegar titia me surpreendeu
(54) * roncar titia me surpreendeu
O problem a da análise do infinitivo é, na verdade, o de deter­
minar as circunstâncias nas quais ele pode aparecer (ou precisa apa­
recer) sem sujeito. Esse problem a foi estudado em diversos traba­
lhos, sem que se chegasse, a meu ver, a uma solução satisfatória
(ver Moraes, 1971; Perini, 1977a; Raposo, 1975; e outros).
Não tratarei nesta seção do participio porque há boas razóes
para crer que um participio nunca pode ser NdP, e portanto não
pode ter sujeito. Conseqüentemente, as chamadas “oraçóes reduzidas
de participio” não são realmente oraçóes (ver o capítulo 4 a respeito).

2.4 O bjeto d ire to

2.4.1 Não-sujeitos
Além do sujeito, podem ocorrer na oração outros elementos
parecidos, mas que não estão em relação de concordância com o
NdP, sendo portanto marcados [ —CV]. Na seção anterior, quando
discutimos a análise dos fenômenos de concordância verbal, admiti
que teriam todos a mesma função, a de objeto direto (OD). No entan­
to, há razões para distingui-los em mais de uma fúnção, através de
traços ainda não vistos. Na presente seção vou passar a examinar
esses casos; o resultado nos obrigará a uma pequena reformulação
nos procedimentos de rotulação que fazem parte do sistema de filtra­
gem visto em 2.3.4.
Exemplos de elementos não-sujeitos na oração são os seguintes:
(55) Zé vendeu o Escort
(56) Antônio considera Wolfgang um gênio
(57) Carlinhos desenha o dia inteiro
Já sabemos, da definição vista na seção anterior, que esses ele­
mentos são sintagmas nominais (SNs), já que qualquer um deles
poderia ocorrer como sujeito de alguma oração.
Sabemos que a gramática tradicional classifica diferentemente
os SNs grifados de (55) a (57): o prim eiro é “objeto direto”, o según-
97

do é “predicativo (do objeto)” e o terceiro é “adjunto adverbial”.


Vou tentar encontrar justificativas formais para essa repartição tradi­
cional, possivelmente correta.
Considerarei inicialmente o caso de (55), que conteria um “ob­
jeto direto”. Devemos procurar traços que distingam o Escort em
(55) dos demais SNs grifados, de modo a justificar urna análise diferente;
ao mesmo tempo, procuraremos urna definição geral de “objeto direto”.
Martinet, 1979, aponta a possibilidade de utilizar como critério
definitório do objeto direto a possibilidade de retomada através de
uma forma oblíqua especial (em português, o/a); e a possibilidade
de formação da voz passiva, na qual o presumível objeto direto passa
a ser sujeito. Ambos os critérios requerem comentário.

2.4.2 Traços definitórios do objeto direto


2.4.2.1 o/a
A primeira coisa a observar é que existem restrições gerais à
retomada pronominal (ou, talvez melhor, à referência dos prono­
mes), que são pouco conhecidas, e que podem impedir que um
OD seja retomado através de um pronome. Um exemplo é o caso
dos SNs genéricos:
(58) Tião cultiva bananas, e Graça pretende também cultivar
(* -las)
O oblíquo só seria aceitável aí na acepção (algo estranha) de que
Graça pretende cultivar as mesmas bananas que Tião já cultiva, isto
é, se bananas fosse tomado em sentido não-genérico.
(59) banana engorda, mas (?? ela) estraga os dentes
Ademais, em uma análise que não considere como OD o sintag­
ma grifado de frases como (60) — tradicionalmente analisado como
“predicativo do sujeito”
(60) Miloca parece um a tartaruga
seria preciso acrescentar a restrição de que o OD se retoma através
de pronom e oblíquo não-neutro, ou seja, que pode ser, nas circuns­
tâncias adequadas, feminino ou plural. A retomada do predicativo
do sujeito só se pode fazer com -o, nunca com -a, -os ou -as:
(61) nunca pensei que Cristina fosse virgem, mas ela o era
Também aqui há restrições pouco conhecidas, talvez também ligadas
ao fator genericidade:
(62) menino parece bicho, mas menina não (?? o) parece
98

Essa objeção se aplica dentro de uma análise que distingue o


OD do predicativo do sujeito. Neste trabalho, entretanto, argumen­
tarei que o OD e o predicativo do sujeito não são funcionalmente
distintos.

2.4.2.2 V o z passiva

Quanto à passivização como critério para se identificar o OD,


é verdade que em certos casos se tem uma correlação ideal entre
passiva e ativa:
(63) o vento despenteou Lucinha
(64) Lucinha foi despenteada pelo vento
Mas a ocorrência de passivas é sujeita a tantas restrições miste­
riosas (ver Jackendoff, 1972, e Nascimento, 1980) que o critério de
pouco vale na prática. Basta listar alguns exemplos, como
(65) gato come rato / * rato é comido por gato (Nascimento,
1980)
(66) mamãe tem um Scania / * um Scania é tido p o r mamãe
(67) o cachorro abanou o ra b o /* o rabo foi abanado pelo
cachorro
(Este último é um caso de “crossover”; ver Postal, 1971.)
(68) amo a filha do padeiro / ?? a filha do padeiro é amada
por mim
Como se vê, os dois critérios propostos p o r Martinet terão, no
minimo, de ser mais cuidadosamente estudados, antes de poderem
ser utilizados como base para a caracterização das propriedades for­
mais do OD. De qualquer forma, têm valor heurístico, pois servem
para identificar sem dúvidas certos ODs, partindo-se da observação
de que se um SN pode ser pronominalizado em o /-a , ou então
se pode tornar-se o sujeito de uma passiva correspondente, então
é um OD. O problem a é que há muitos casos que vale a pena consi­
derar como ODs, e que assim se analisam tradicionalmente, mas
que recusam a pronominalização ou a transformação em sujeito de
uma passiva. Além disso, é preciso notar que, dados os pressupostos
admitidos neste trabalho, passivas e ativas não se correspondem (pela
definição de “correspondência” da seção 1.8.6.2), o que dificulta
o uso da relação ativa/passiva como base para a postulação de traços
distintivos. Por conseguinte, ainda precisamos procurar novos traços
para definir convenientemente o OD.
99

2 .4 .2 .3 A nteposição

O SN marcado em (55) ou em (57) aceita anteposição para


o início da frase ( “topicalização”):
(69) o Escort, Zé vendeu
(70) o dia inteiro, Carlinhos desenha
Quando falo de “anteposição”, naturalmente, quero dizer mais exata­
mente o seguinte: as frases (55) e (57) correspondem respectiva­
mente a (69) e (70), que diferem de suas parceiras apenas em que
o sintagma final de (55) e (57) está no início de (69) e (70),
Já vimos em 2.3 4 que o constituinte inicial de (69) é considerado
um “objeto topicalizado”. Quanto ao de (70), ver o final da seção
2.4.3.
No caso de (69) há uma modificação no papel funcional do
constituinte anteposto, que passa a ser entendido contrastivamente;
no segundo caso isso não se dá, sendo (70) um sinônimo bem próxi­
mo de (57). Esse particular não nos interessa no momento; basta
observar a possibilidade de anteposição, que não se estende ao SN
marcado de (56):
(71) * um gênio, Antônio considera Wolfgang
Vamos admitir que esse é um dos traços que caracterizam o
objeto direto (assim corno possivelmente outras funções sintáticas).
Quando um constituinte não aceita anteposição, entenderem os que
não pode ser objeto direto. Isso exclui o elemento um gênio de
(56), que já não poderá ser confundido com um OD.
Já temos aqui um critério positivo de identificação do OD: segun­
do nossa hipótese, todos os ODs aceitam anteposição para o início
da frase. Uma observação importante, mas que não será considerada
por ora por ser de caráter não-formal, é que essa anteposição pode
acarretar uma interpretação contrastiva do constituinte em questão.
Por outro lado, esse critério não é suficiente para definir o OD,
pois gostaríamos de excluir o elemento o dia inteiro de (57), e por
enquanto seu comportamento sintático parece idêntico ao dos ODs.
Prosseguiremos portanto à procura de novos traços definitórios.
Veremos mais adiante, aliás, que o critério de anteposição pode
falhar, ou não funcionar muito claramente, com alguns constituintes
tradicionalmente rotulados de ODs. Isso é de se esperar, se é que
as categorias gramaticais são essencialmente complexas, só se deixan­
do analisar com precisão em termos de seus traços. Rótulos como
“objeto direto” têm valor enquanto se referem a noções prototípicas,
tais como definidas na seção 1.9.
100

O utro ponto a notar a respeito da anteposição é a possibilidade


ou não de se antepor mais de um constituinte na mesma frase. Kee­
nan, 1985 (p. 244), observa que é em geral difícil topicalizar ou
deslocar para a esquerda mais de um constituinte da mesma sentença;
no entanto, nota que há algumas exceções.
É bem possivel que o portugués seja urna dessas exceções, pois
pelo menos em alguns casos a anteposição (topicalização) dupla é
aceitável. Por exemplo, parece-me aceitável uma frase como
(72) esse livro, de Maria eu roubei
desde que de M aria tenha urna interpretação fortemente contrastiva.
Isto é, a frase poderla ser continuada assim:
... mas de Seima eu nunca teria roubado
Tais frases, porém, parecem ser exclusivas do registro falado.
Não creio que sejam encontradas no registro escrito mais formal,
de modo que, para o portugués padrão escrito, é possivel que a
restrição a um constituinte topicalizado por frase funcione. Não há
estudo a respeito, que eu saiba, de maneira que a questão terá de
ficar em suspenso por ora (o que não prejudica a utilidade ou a
operacionalidade do traço de anteposição).
Vale também comentar, aliás, que a restrição mencionada por
Keenan se estende ao que ele chama “left-dislocation” (deslocamento
para a esquerda), encontrado em frases como
(73) as for the President, congressmen don’t respect him any­
more
Keenan dá como agramatical a frase
(74) * in Chicago as for the President I saw him a few days
ago
Em portugués parece que a restrição não funciona, especial­
m ente se o elemento “deslocado” vier antes do “topicalizado”:
(75) quanto ao presidente, em Brasília ninguém o vé mais
Quando o tõpico vem prim eiro a frase parece um pouco pior, mas
ainda assim não é inaceitável:
(76) em Brasília, quanto ao presidente, ninguém o vé mais
Frases como (75) me parecem perfeitamente adequadas mesmo no
registro escrito.
Para efeitos de aplicação dos testes relativos ao traço de antepo­
sição podem os convencionar que se devem aplicar a frases isentas
de qualquer anteposição prévia; isso afastará os possíveis problemas
oriundos das restrições, pouco conhecidas, à anteposição múltipla.
...o,J^;PAL - S8C
S ... r „
101

2.4.2.4 Retomada p o r (o) q u e / qu em


Observemos agora que certos constituintes podem ser retoma­
dos em perguntas (orações interrogativas) através do elemento que
(o que, quem ). Ou seja, pode-se definir uma relação discursiva tal
que determinada frase seja a resposta adequada a determinada per­
gunta; e a relação formal entre as duas é que na pergunta o elemento
em exame é substituído por (o) que / quem , com ou sem inversão
de termos. Assim, temos pares como
(77) o que Zé vendeu?
(78) Zé vendeu o Escort
Há elementos que não aceitam esse relacionamento. Por exemplo,
o par abaixo não é adequado:
(79) o que Carlinhos desenha?
(80) + Carlinhos desenha o dia inteiro
A partir daí é possível definir mais um traço: a propriedade
que têm determinados constituintes de serem retomados em pergun­
tas pelo elemento (o) q u e/q u em . Esse traço, sozinho, não é sufi­
ciente para definir o OD; mas certamente define um subconjunto
das funções, entre elas a que corresponde ao OD tradicional.
Poder-se-ia argumentar que esse teste serve na verdade para
identificar SNs, e que portanto equivaleria a dizer que o OD é sem pre
um SN: o teste seria antes de classe do que de função. No entanto,
pelo menos ao que parece no momento, o dia inteiro em (80) é
um SN, e no entanto não se relaciona com (o) que!quem . Outro
exemplo seria um gênio em (82), que deve ser um SN, mas cujo
relacionamento com (o) que /quem é pelo menos problemático:
(81) ? o que Antônio considera Wolfgang?
(82) + Antônio considera Wolfgang um gênio
Para mim, não só o par é pouco adequado, mas (81) é de aceitabi­
lidade questionável.

2.4.3 Definição de objeto direto


Recapitulemos os traços propostos até o momento para caracte­
rizar a função de objeto direto. Um OD tem as seguintes características:
— não está em relação de concordância com o NdP; abreviada­
mente, [ - CV];
— pode ser anteposto livremente: [ -l-Ant];
— pode ser retomado pelo elemento (o) que/quem -. [ 4-Q].
102

Além disso, sabemos que em muitos casos o OD apresenta outras


características de interesse, como:
— pode ser retomado por o / a: [ + o /a];
— pode aparecer como sujeito de uma frase passiva “aparen­
tada” à ativa original: [ +P, Suj]
(Note-se, aliás, que a relação de “aparentado” não está definida; caso
o traço [P, Suj] venha a ser utilizado em definições, será necessário
defini-la, seja independentemente, seja através de uma extensão da
noção de “correspondência”; ver, a respeito, a seção 4.7.);
— sabemos, além disso, que é útil, para certos fms, subdividir
os ODs em quatro tipos, segundo sejam ou não topicalizados, e
segundo sejam representados por cliticos ou por elementos Q.
Todos esses traços devem ser colocáveis sem dificuldades em
uma ou outra das categorias de “fatos sintáticos” listadas na seção
1.8. Assim, “CV” é um aspecto observável do fenômeno da regência;
“Ant” exprime uma correspondência entre estruturas, correspon­
dência essa expressa em termos do seqúenciamento linear dos ele­
mentos na frase; “Q ” é um caso de retomada pronominal.
Tomemos agora um conjunto de frases, cada uma delas contendo
um OD tradicional, para ver até que ponto esses traços serão úteis na
definição formal dessa função. A tabela seguinte resume os resultados:

Frases com ODs tradicionais [CV] [Ant] [Q] [o/a] [P, Suj]
a. Zé vendeu o Escort - -1- -1- -H -1-
b. Antônio considera Wolfgang um gênio - -1- -t- -1- -1-
c. Tião cultiva bananas - -t- •f - -
d. gato come rato - -1- - -
e. mamãe tem um Scania desde 1939 - -1- -t- + -
f. não suporto criança - -1- -H - -
g procuro quem fale alemão - ? -1- - -
h. adoro nadar de costas - -1- -f - -
i. Tê disse que choveu ontem - + - +
)• quem você está procurando? - + + -1- -1-
k. quero que ela volte logo - ? + - -
1. eu procurava uma mulher perfeita - -H -t- -1- -
m. eu o encontrei no bar - - -t- -1- -
103

A tabela ilustra algo da variedade de comportamentos grama­


ticais encontrados dentro do âmbito dos objetos diretos tradicionais,
e também permite depreender importantes regularidades.
Como se vê, incluí na tabela também os dois traços [o/a] e
[P, Suj], que, como vimos, são bastante problemáticos quanto a seu
funcionamento e mesmo, no caso de [P, Suj], quanto à formulação.
Fiz isso porque mesmo sendo de utilização insegura, eles nos podem
revelar certos aspectos do comportamento dos objetos diretos.
Na tabela há duas casas marcadas com “?”, o que indica casos
em que meu julgamento não é seguro. Em ambos os casos, tendo
a considerar mais plausível a marcação “ -F”, mas a aceitabilidade
da frase é mais baixa do que nos outros casos. O leitor poderá julgar
por si mesmo; evidentemente, é de esperar que tais casos limítrofes
ocorram com certa freqüência. Admitirei, somente para efeito da
discussão a seguir, que os “?” são na verdade marcas positivas ( “ + ”).
Assim, podem-se distinguir cinco tipos de matrizes, a saber:
1? tipo, marcado - -F -F -F -F ], exemplificado pelas frases a, b j
2? tipo, - -F -H ], frases c, d , f g, b, k
3? tipo, — F -F -I— ], frases e, I
4? tipo, — F H----- F ], frase i
5? tipo. F -F - ], frase m
Creio que se pode reduzir ainda o núm ero de matrizes; desde
já, pode-se suspeitar que os primeiros dois tipos são mais importantes
(se é que a amostra analisada é representativa da língua como um
todo).
Tomemos primeiramente o caso do 5/ tipo, correspondente ape­
nas à frase m (eu o en con trei n o bar). O desvio desse tipo com
relação ao 1? tipo se deve exclusivamente às propriedades do clítico
o, que não aceita anteposição (* o eu en co n trei n o bar) nem pode
ocorrer como sujeito da passiva (* o f o i en co n tra d o p o r m im n o
bar). Essas são características gerais de clíticos, e sabemos a solução
dada ao problema pela gramática tradicional e pelas análises mais
modernas: considera-se, simplesmente, que o e ele são formas do
mesmo item léxico (variantes sintáticas), de maneira que a distri­
buição delas se define para o conjunto, e não para cada uma indivi­
dualmente. Se adotarmos essa solução, o que certamente convém,
poderem os dizer que o pode ocupar aquelas duas posições, em sua
forma reta ele: ele, eu en con trei n o bar, ele f o i en co n tra d o p o r m im
n o bar. Dessa maneira, podemos marcar o 5° tipo como
[ — F -F -F -F], tornando-o idêntico ao 1“ tipo. E note-se que, a partir
desse momento, temos uma marcação idêntica para todos os casos
104

quanto aos três primeiros traços, ou seja, [ - + +], o que será de


importância quando formos definir o OD.
As diferenças entre os quatro tipos restantes residem, pois, em
seu comportamento frente à retomada pronominal em -o!-a e frente
à passivização. Embora esses traços não sejam adotados primaria­
mente em nosso sistema de definições, certamente será instrutivo
examinar seus efeitos na categorização das funções tradicionalmente
chamadas “objeto direto”.
Os casos marcados [ —P, Suj], isto é, aqueles em que o OD não
pode ser o sujeito da passiva aparentada, são de dois tipos: primeiro,
os que têm OD genérico ou não-referencial (casos c, d , f , g e 1).
Certamente será interessante investigar eventualmente as restrições
à ocorrência de SNs genéricos e não-referenciais (algumas indicações
se encontram em Nascimento, 1980). O segundo grupo de casos
de [ —P, Suj] parece depender de idiossincrasias do verbo (e, h e
k). Assim, o verbo ter, o verbo adorar no sentido de “gostar m uito”
e o verbo querer não costumam aceitar passivização. Parece-me ade­
quado concluir que o objeto direto, em principio, aceitaria a marca
[ +P, Suj], e que outros fatores, semânticos ou sintáticos, podem im­
pedir a realização desse traço. De qualquer forma, como esses fatores
são pouco conhecidos, vou deixar de lado esse traço na definição
de OD a ser proposta abaixo.
Suprimindo da tabela o traço [P, Suj], ficamos com apenãs dois
tipos, um deles marcado [ - + + +] (casos a, b, e ,j, I e rn), o outro
marcado [ - + + - ] (casos c, d ,f, g, h, i e k). A diferença depende
do comportamento de cada um com respeito ao traço [o/a], isto é,
de se cada OD pode ou não ser retomado pelo pronom e obliquo
não-neutro. Também aqui deixam-se ver certos efeitos regulares.
Os casos marcados [ —o/a] são todos ou bem casos de OD genérico
ou não-referencial (c, d, f e g ) , ou então casos de OD oracional
{b, i e k). No caso de ODs oracionais, sabe-se que sõ podem ser
retomados através do pronom e o neutro. Já quanto aos SNs não-refe-
renciais, a situação não é clara, porque pelo menos um dos casos
de [ +o/a] tem OD não-referencial (caso l).
Os dois traços [P, Suj] e [o/a] poderiam ser incluidos em uma
definição detalhada de OD (o traço [P, Suj] somente apõs bastante
investigação, para esclarecer os problemas que permanecem). Mas
aqui vou-me contentar com uma definição em grau de detalhamento
m enor (ver a conceituação de “grau de detalhamento” em Perini,
a sair). Portanto, vou simplesmente desprezar esses dois traços, levan­
do em consideração apenas os outros três. Mas observe-se como
os pontos de desvio apontados pelos traços mais problemáticos p o ­
dem ser entendidos como sinais que apontam para questões de inte-
105

resse a serem pesquisadas. A partir desses sinais, pode-se provavel­


mente chegar a conclusões relevantes de caráter sintático e/ou se­
mântico. Aqui, no entanto, não será possível prosseguir na investi­
gação detalhada desses pontos.
Note-se ainda que, mesmo se conseguirmos caracterizar, diga­
mos, todos os casos d e[ - P , Suj] em termos semânticos (isto é, se
conseguirmos prever a impossibilidade de passivização a partir de
traços semânticos), isso não tirará ao traço [P, Suj] seu caráter formal.
O que se estará fazendo é estabelecer uma correlação entre um
traço formal (a impossibilidade de ocorrer como sujeito da passiva
aparentada) e um traço ou traços semânticos.
Voltemos agora à questão de definir “objeto direto”. A julgar
pelos exemplos incluídos na tabela, parece que os traços [ - CV, -FQ]
se aplicam a todos os casos de OD tradicionais; além disso, pode-se
dizer que o traço [ +Ant] se aplica a quase todos eles com clareza
(em alguns poucos com alguma insegurança), de maneira que tam­
bém mereceria ser incluído no protótipo do OD. Dessa forma, esta­
beleceremos a definição do protótipo do objeto direto (tal como
essa função se depreende da análise tradicional) através da matriz
seguinte:
Objeto direto-, [ ~CV, -FAnt, -FQ]
É claro que se poderia suprimir o traço [ -FAnt] dessa definição,
obtendo assim uma nova definição aparentemente livre de julga­
mentos inseguros. Mas incorreríamos em dois inconvenientes: pri­
meiro, essa perda de detalhamento faria a definição muito pouco
informativa, e a noção de OD passaria a abranger elementos de fun­
ções bem distintas; em outras palavras, perderíamos distinções fun­
cionais evidentes, que aliás são discriminadas na análise tradicional.
E, por outro lado, é pouco provável que mesmo reduzida dessa ma­
neira a definição possa aplicar-se a todos os casos, sem exceção ou
insegurança de julgamento. Conforme venho repetidamente afirman­
do, é de se esperar que haja sempre casos limítrofes, pois esse é
o comportamento típico das categorizações sintáticas em geral. Por
ora, pelo menos, contentar-nos-emos com uma definição prototípica,
válida para a imensa maioria dos casos.
Agora é possível ver por que não são ODs os sintagmas subli­
nhados em (56) e (57):
(56) Antônio considera Wolfgang um gênio
(57) Carlinhos desenha o dia inteiro
No prim eiro caso, o sintagma é [ —Ant, -Q j; no segundo, é [ - Qj,
o que basta para excluí-lo do protótipo de OD.
106

A definição de OD é então [ —CV, +Ant, +Q], Nunca é demais


lembrar que se trata de um prototipo, e que portanto a categorização
tem o valor limitado expresso na seção 1.9- De qualquer modo, serve
para um estudo em grau de detalhamento relativamente ampio, como
o que é preciso fazer inicialmente, antes de levar a efeito tentativas
de análise em precisão.
Volto agora brevemente aos procedimentos de rotulação, pro­
postos em 2 .3 . 4 como preliminares à aplicação dos filtros que inte­
gram o sistema da concordância verbal. Como ali nos interessa lidar
exclusivamente com sujeitos e objetos diretos, devemos modificar
o inicio do prim eiro procedimento, deixando-o redigido assim:
(a) Considerando-se apenas SNs de nivel oracional, m arcados
[ 4-Q] e [ A Ant], verificamos se cada SN está ou não em
relação de concordância com o NdP. (...)
O acréscimo da parte grifada garante que os filtros só se ocuparão
de sujeitos e objetos, sem interferência de outras funções oracionais
eventualmente desempenhadas por SNs.

2.5 O u tras fu n ç õ e s d o SN n a o ra ç ã o

2.5.1 OD e predicativo do sujeito

Os únicos SNs que ocorrem na oração e que não podem ser


distinguidos do OD pelos traços propostos, em bora sejam distin­
guidos pela gramática tradicional, são “predicativos do sujeito” (PvS)
do tipo ilustrado pelas sentenças
(83) Zé é um artista
(84) Zé continua um artista
(Na discussão que se segue só levarei em conta os predicativos do
sujeito que são complementos de um “verbo de ligação”; os outros
presumiveis exemplos serão examinados mais adiante quando tratar­
mos dos “atributos”.)
É fácil verificar que os sintagmas grifados de (83) e (84) são
marcados [ —CV, +Ant, +Qj. O traço [ —CV] pode não ser evidente
logo de saida, porque o verbo poderia estar concordando com um
artista, e não com Zé. Mas há frases que mostram que há realmente
um sintagma preferencial com o qual o verbo concorda, como
(85) Zé e Tê são um casal simpático
(86) Zé é duas pessoas em uma só
Aqui fica claro que Zé e Té é o sujeito de (85), e Zé é o sujeito de (86).
107

A seguir nossa definição de OD, um artista deverá ser analisado


como objeto direto em (83) e (84), contrariando assim a análise
tradicional. Será essa a melhor saída? Ou haverá outros traços, ainda
não levados em conta, que acabarão distinguindo esses complemen­
tos dos ODs tradicionais? Essa pergunta tem uma resposta algo sur­
preendente: apesar do que afirmam as análises tradicionais, taxativas
em distinguir OD de PvS, os critérios utilizados são em geral de
natureza semântica, e critérios formais claros não são fáceis de encon­
trar. Eormalmente, o mínimo que se pode dizer é que as funções
de OD e PvS em português atual são extremamente próximas. Aqui
vou argumentar que, no nível de detalhamento que nos interessa,
elas podem ser identificadas. A seguir, darei argumentos em favor
dessa posição.

2.5.2 Uma hipótese: OD = predicativo do sujeito


Vamos examinar as conseqüências da adoção da hipótese de
que o sintagma grifado em (83) e (84) é um OD, tal como o sintagma
grifado em (87):
(83) Zé é um artista
(84) Zé continua um artista
(87) Zé conheceu um artista
Essa análise terá, se adotada, pelo menos a vantagem de ser mais
simples do que a análise tradicional. Vou primeiramente levantar
algumas objeções, e veremos como se sai nossa hipótese frente a
elas.

2.5.2.1 Diferenças semânticas entre OD e PvS


Embora estejamos preocupados em elaborar uma análise for­
mal, esta deverá eventualmente adequar-se a uma descrição semân­
tica. Assim, vale a pena começar tirando do caminho certas objeções
de caráter semântico.
A motivação primária para a distinção feita pela gramática tradi­
cional entre OD e PvS é uma diferença semântica típica, sentida entre
esses dois complementos e a relação de cada um com o sujeito.
Essa diferença pode ser descrita como uma identidade (total ou par­
cial) de referências entre o sujeito e o PvS, ao passo que entre o
sujeito e o OD não existiria nenhuma relação referencial. Em frases
como
(83) Zé é um artista
108

a identidade de referências é completa; Zé é o artista mencionado,


e o artista é Zé. Em outros casos verificam-se modificações, sem
que falte o ingrediente básico. Assim, em
(84) Zé continua um artista
a identidade referencial é acrescida de um fator temporal; e em
(88) Zé parece um artista
acrescenta-se “aparentemente” (é como se a proposição “Zé é um artis­
ta” fosse subordinada a um predicado mais alto: “APARENTE”). Já em
(89) Zé tornou-se um artista
entende-se que a identidade passou a ser válida a partir de certo
momento do tempo (indicado pelo tempo verbal).
No caso do OD, argumenta-se, não se observa esse relaciona­
mento sistemático. Com efeito, se tomarmos o conjunto dos ODs
tradicionais, veremos que a imensa maioria não apresenta nenhum
contato entre as referências do sujeito e do OD. Por exemplo,
(87) Zé conheceu um artista
Aqui as referências de Zé e de um artista são inteiramente disjuntas.
Mas esse argumento não prejudica a análise proposta. Em pri­
meiro lugar, é de natureza semântica, e não pode invalidar o fato
de que, como veremos, os ODs tradicionais não se distinguem for­
malmente dos PvSs tradicionais. Assim, a distinção sõ poderá ser
feita no componente semântico, sem fundamento na sintaxe (mas
antes no léxico).
Em segundo lugar, existem exemplos, em bora comparativamen­
te raros, de frases onde há relação semântica entre sujeito e OD,
relação essa que é semelhante, se não idêntica, à que se encontra tipica­
mente entre o sujeito e o PvS em certos casos. Por exemplo, a frase
(90) o Banco do Norte encampou o Banco do Sul
certamente exprime uma coincidência de referências apõs determ i­
nado momento, aproximando-se assim da relação observada entre
Zé e um artista em (89). Melhor ainda, em
(91) este inseto imita a folha da amoreira
existe um ingrediente semântico que poderíamos acreditar exclusivo
de verbos como parecer, mas que aqui ocorre com imitar: uma iden­
tidade de referências subordinada ao predicado “APARENTE”.
Há mesmo, creio, exemplos de identidade pura de referências
entre sujeito e OD tradicional — o que se poderia acreditar que
só ocorre com o verbo ser. Vejo isso em frases como
(92) a Universidade representa o último grau do ensino
109

Como se vê, a caracterização semântica que se poderia utilizar


para individualizar o PvS não é exclusiva dessa função, ocorrendo
também, ainda que com m enor freqüência, com o OD tradicional.
Caso não se encontrem boas razões formais para separar o OD do
PvS, teremos de concluir que são uma ünica função. Quaisquer dife­
renças semânticas observadas entre a relação do sujeito de, digamos,
conhecer com seu OD e, por outro lado, o sujeito e o OD de ser
deverão ser postas na conta dos traços semânticos idiossincráticos
de cada um desses verbos. Resta portanto verificar se há ou não
razões formais para distinguir OD de PvS.

2.S.2.2 Diferenças sintáticas


Conforme já adiantei, não é fácil encontrar diferenças formais claras
entre o PvS e o OD. Os traços definitórios do protótipo do OD, a saber,
[ - CV, -PAnt, -PQ], aplicam-se igualmente ao PvS, o que pelo menos
evidencia a semelhança formal muito grande entre essas duas funções.
O critério formal básico, tradicionalmente, é a diferença de caso
superficial entre o OD e o PvS. Sabe-se que em latim o OD se mani­
festa no acusativo e o PvS no nominativo. Assim, temos
(93) lulius imperatorem uidet (acusativo)
“Jülio vê o im perador”
(94) lulius im perator est/fit (nominativo)
“Jülio é/torna-se o im perador”
Mas em português os fatos não parecem ser semelhantes ao
latim nem mesmo com os pronomes pessoais, que são as ünicas
palavras que apresentam flexão de caso morfológico. Embora se pos­
sa dizer algo como
(95) eu pareço você
(96) eu sou você
acontece que precisamente com as formas que admitiriam variação
casual obrigatória o nominativo é pelo menos desconfortável. Para
mim as frases abaixo são todas inaceitáveis (a primeira, por alguma
razão, é um pouco melhor; mas nenhuma é realmente normal):
(97) ? você parece eu
(98) ?? tu pareces eu
(99) ?? eu pareço tu
(100) ?? nós parecemos vós
(101) ?? eles parecem nós
e mesmo
(102) ? eu pareço ele
110

que é provavelmente a m elhor de todas, mas mesmo assim não me


soa completamente aceitável no padrão.
Concluo que este critério não nos ajudará a distinguir clara­
mente o PvS do OD. A diferença de realização casual é, em portugués
de hoje, no máximo o vestigio de uma situação que, em tempos
anteriores, poderia ser semelhante à latina, mas que hoje se encontra
em vias de desaparecimento. A menos que se encontre outro traço
ou traços formais para distinguir essas duas funções entre elas, fica­
mos autorizados a identificá-las no plano sintático. No restante deste
trabalho, admitirei que a função de um artista é a de objeto direto
não sõ em
(87) Zé conheceu um artista
mas também em
(83) Zé é um artista
(84) Zé continua um artista
(88) Zé parece um artista
Certas ambigüidades analisadas tradicionalmente em termos de
dualidade de estruturas deverão ser analisadas como resultantes da
ambigüidade de itens léxicos. É o caso de
(103) seu irmão continuou a desgraça do bairro
A ambigüidade de (103) reside em poder ela ser entendida como:
(a) “seu irmão continuou sendo a desgraça do bairro”, ou então
(b) “seu irmão prosseguiu a tarefa de desgraçar o bairro”. Pela análise
tradicional, essa ambigüidade decorre de que na primeira acepção
a desgraça do bairro seria predicativo do sujeito, e na segunda seria
OD. Já segundo a análise aqui proposta, trata-se de OD em ambos
os casos (isto é, não há dualidade de estruturas), e a ambigüidade
deve ser atribuida a uma dualidade de significados do prõprio verbo
continuar, (a) “perm anecer sendo”, (b) “praticar sem interrupção
uma ação começada anteriorm ente”. Os dois significados aparecem
separados nas frases seguintes:
(104)seu irmão continuou um idiota (acepção (a) )
(105)seu irmão continuou o trabalho (acepção (b) )
Em ambas, repito, temos de considerar o sintagma final um OD.

2.5.3 OD, predicativo e atributo


Já vimos que a função de sujeito se caracteriza pelo traço [ +CV].
Essa função é a única que apresenta essa marca. Já os sintagmas
I ll

marcados [ —CV] são de comportamento variado, e não podem ser


colocados como representantes da mesma função sintática.
Com o auxílio dos três traços estabelecidos até o momento,
a saber, [CV], [Ant] e [Q], podem os definir três funções sintáticas,
tipicamente desempenhadas por SNs. A primeira é a de OD, que
como vimos se define como [ - CV, +Ant, +Q]. Em segundo lugar
temos sintagmas como uma fera em
(106) Sônia comeu a pizza uma fera
(107) Sônia comeu a pizza, uma fera
(A vírgula parece ser opcional neste caso.)
A função desempenhada por uma fera nessas frases se define
pela matriz [-C V , +Ant, -Q ], conforme é fácil verificar. Distin-
gue-se portanto tanto do sujeito (pois é [ —CV]) quanto do OD (pois
é [ -Q ]). Vou denominar essa função atributo. Na gramática tradicio­
nal, às vezes é identificado com o aposto; mas Kury, 1985, percebe
a diferença entre as duas funções e chama tais casos “predicativos
atributivos”. A posição de Kury é correta, evidentemente, pois o apos­
to funciona como parte de um SN, ao passo que o atributo é sintatica­
mente independente na oração; além do mais, como observa Kury,
o atributo pode ser preenchido por adjetivo, o que não ocorre com
apostos típicos.
A terceira função é a que encontramos em
(108) Alda considera seu marido um escroque
Esse sintagma tem os traços [ —CV, —Ant, +Q]; reservarei a esses
casos a designação tradicional de predicativo. Assim, a função tradicional
de predicativo se divide na presente análise; casos como os de
(83) Zé é um artista
se consideram casos de objeto direto. E casos como o de um escroque
em (108) são casos de predicativo.
A tabela abaixo resume as definições das quatro funções sintá­
ticas estudadas até o momento:
Funções do SN a nível da oração
Traços (definição') Denominação Exemplo
[-bCV, -fAnt, +Q] sujeito (Suj) Zé em (83)
[-C V , +Ant, -Q ] atributo (Atr) um a fera em (106)
[-C V , -l-Ant, -l-Q] obj. direto (OD) seu marido em (108)
[-C V , -Ant, -l-Q] predicativo (FV) um escroque em (108)
112

Note-se que marquei o sujeito como [ +Ant], pois ele p o de ser


colocado no inicio da construção. O fato de ele estar habitualm ente
naquela posição não interessa para a marcação, que não leva em
conta tais tendências.
Poderiamos ter proposto mais um traço, de natureza bem dife­
rente, algo como [ +SN], significando “pode ser desempenhada ape­
nas por um SN”, que valeria para todas essas funções. Tal traço está
implícito em certas definições tradicionais, como por exemplo na
observação de Kury citada acima a respeito do predicativo atributivo.
Mas, como veremos, isso obscureceria uma propriedade importante
dessas funções, que é a de serem preenchiveis também por outras
classes. Tenho-me referido às quatro funções estudadas como “do
SN”, mas isso se deve entender como uma indicação, informal, de
que todas elas podem ser desempenhadas por SNs, e tipicamente
o são — mas não exclusivamente. Podemos dizer pois que definimos
as funções sintáticas sem recorrer a classes de formas. Excetua-se,
claro, a classe dos verbos, tomada como axiomática no inicio da
discussão. Esta será definida em termos morfolõgicos, oportunamente.
A tabela acima nos permite resolver a imensa maioria dos casos
de SNs na oração, determinando sem ambigüidade a função de cada
um. Mas, como é prototípica, é de se esperar que não resolva todos
os casos. Deve-se apenas esperar que casos problemáticos sejam ra­
ros. Um desses casos problemáticos é o de 763 quilos em
(109) Santinha pesa 163 quilos
Esse sintagma é marcado [ - CV, +Ant, -Q ], não se encaixando, pois,
em nenhuma das categorias previstas na tabela. Poderemos definir aqui
uma nova íunção; ou, alternativamente, poderemos dizer que se trata
de caso limítrofe, não prototípico. Qual dessas soluções é a melhor
é coisa que terá de ser discutida. A solução sõ poderá vir de um levanta­
mento amplo dos fatos da lingua, nunca de uma posição aprioristica,
como a de “definir novas funções sempre que se encontrar uma dife­
rença de traços”, ou então “sõ definir novas funções se houver mais
de n traços diferentes”. Aqui o que temos a fazer é sondar as tendências
do idioma, procurando adequar a análise às grandes linhas da sua estru­
tura. Para isso, cumpre desenvolver critérios objetivos, e, inevitavelmen­
te, pôr em ação uma intuição tão apurada quanto possivel.
Uma última palavra sobre o predicativo: a julgar pelo exemplo
(108), pode-se pensar que corresponde exatamente ao “predicativo
do objeto” tradicional. No entanto, creio que há casos que a gramática
tradicional analisa como predicativo do sujeito e que apresentam
os traços de predicativo segundo nossa análise. Por exemplo:
(110) Geralda nasceu filha de milionário
113

O sintagma/ 2/6 rt de m ilionário, predicativo do sujeito segundo a


análise tradicional, é marcado [ —CV, —Ant, +Q]; portanto, é predi­
cativo segundo a proposta aqui formulada.

2.6 N egação v e rb a l

Passarei agora a urna função que nunca é desempenhada por


SNs, á qual darei o rótulo de negação verbal (NV). É exemplificada
pela palavra não na frase
(111) Waldo não entendeu esse artigo
Essa função é desempenhada por um núm ero extremamente
restrito de itens, e sua posição na oração é fixa. Consideremos prim ei­
ramente esta última propriedade.
Se tentarmos caracterizar a negação verbal através dos traços
já propostos, verificaremos que é marcada negativamente para todos
eles: [ - CV, -A nt, -Q ]. Isso, só por si, seria suficiente para distin-
gui-la por ora de todas as funções vistas. No entanto, não me conten­
tarei com esses traços para definir a NV, prim eiro porque desejo
estudar mais cuidadosamente o comportamento muito peculiar da
NV na oração, propondo uma matriz mais informativa para defini-la.
E depois, porque, como se verá, a matriz toda negativa é compar­
tilhada por outras funções distintas da NV — a saber, as funções
suboracionais a serem estudadas no capítulo 3 -
Um traço exclusivo da NV é sua ligação posicionai muito estreita
com o NdP. Vou formular o traço assim:
— a propriedade de ocorrer obrigatoriam ente logo antes do
NdP, sem possibilidade de ocorrência de nenhum outro
elemento entre os dois (abreviadamente, [pNdP]).
Para ser exato, devo dizer que há um elemento que pode ocorrer
entre a NV e o NdP, a saber, os pronomes oblíquos (clíticos). Mas
estes são um caso especial no que diz respeito ao posicionamento na
frase, e terão de ser estudados separadamente; por ora, vamos ignorá-los.
Outra possível restrição, que só poderá ser considerada mais
adiante, é o fato de que presumíveis auxiliares podem ocorrer entre
a NV e o verbo principal, como em
(112) Waldo não vai entender esse artigo
Também esse fato ficará para ser incluído na análise no momento
em que se estudar a função de elementos como vai ( -P infinitivo).
Todas as funções vistas até o momento são marcadas [ —pNdP];
a NV é marcada [ -f pNdP], e é a única função assim marcada. Entre
114

a NV e o NdP não podem ocorrer nem mesmo elementos parentéticos


entre virgulas; esse é o único limite de constituintes a nivel oracional
onde não cabem tais elementos. Por exemplo, vejam-se as frases
seguintes (onde o parentético é dizeni):
(113) Waldo, dizem, não entendeu esse artigo
(entre Suj e NV)
(114) Waldo não entendeu, dizem, esse artigo
(entre NdP e OD)
(115) Maria considera seu marido, dizem, um escroque
(entre OD e Pv)
(116) Sônia comeu a pizza, dizem, uma fera
(entre OD e Atr)
mas
(117) * Waldo não, dizem, entendeu esse artigo
(entre NV e NdP)
o traço [pNdP] procura exprimir essa vinculação posicionai estreita
que existe entre a NV e o N dP'.
Outra caracteristica da NV é o núm ero extremamente pequeno
de itens léxicos que podem desem penhar essa função; provavelmen­
te, apenas as palavras não e m al, em uma de suas funções possíveis.
À primeira vista, parece que outros itens, como nunca, jam ais, já ,
se comportam de maneira igual à de não\ mas um exame mais deta­
lhado mostra diferenças importantes. Assim, essas palavras aceitam
a inserção de elementos parentéticos entre si e o NdP:
(118) Waldo nunca, dizem, deu um presente à namorada
(119) Santinha já, desconfio, descobriu tudo
Admitem também a inserção de certos elementos não parenté­
ticos (sem virgula):
(120) nunca aqui m orreu ninguém
Além disso, pode ocorrer a seqüência já + NV, o que argumenta
contra a inclusão dos dois na mesma função:
(121) Simone já não trabalha na CPP
Os itens nada e ninguém desempenham funções muito dife­
rentes da NV, parecendo antes sintagmas nominais, e se comportando
como tais.

' Uma possibilidade que me parece um pouco remota, mas que precisaria ser investigada,
seria a d e que a NV não fosse um constituinte de nível oracional. O u seja, o conjunto de
NV + NdP seria um constituinte por sua vez constituinte da oração.
115

Existe, é verdade, uma restrição quanto ao uso dos itens nunca,


jam ais, nada, ninguém ao lado de não na mesma oração. Tanto
é que podemos ter
(122) ninguém/nada apareceu
(123) nunca/jamais conversei com Einstein
mas não
(124) * ninguém/nada não apareceu
(125) * nunca/jamais não conversei com Einstein
Entretanto, os fatos no seu conjunto deixam claro que essas palavras
não podem desempenhar a função de NV. A restrição ilustrada por
(122) a (125) terá de ser explicada de outra maneira, e não através
da impossibilidade de haver duas NVs em uma oração. Note-se, aliás,
que (124) e (125) ocorrem em alguns dialetos coloquiais.
Em resumo, até onde se pode ver no momento, a função de
NV é exclusiva das palavras não e m al, é uma função muito restrita,
mas importante, e ocupa por assim dizer um lugar central na oração.
A palavra não é bastante versátil, podendo ocupar outras fun­
ções; em particular, ocupa funções de nível suboracional, como em
(126) esta é uma análise não-transformacional
(127) só um não-cientista poderia dizer algo assim

2.7 E lem entos “a d v e r b ia is ”

Os termos englobados pela Nomenclatura Gramatical Brasileira


de 1959 (a NGB) sob o rótulo de “adjunto adverbial” apresentam
na verdade um conjunto complexo e variado de comportamentos
sintáticos. Teremos, pois, de distinguir entre eles diversas funções.
Na verdade, a complexidade é tal que aqui só será possível indicar
algumas linhas preliminares que talvez sejam úteis à investigação
futura. Veremos a seguir, sumariamente, as funções “adverbiais” mais
importantes.

2.7.1 O a tr ib u to re v isita d o

Vejamos o caso de desesperadamente na frase


(128) Maria chorou desesperadamente
Analisando esse constituinte com auxílio dos traços vistos, verifica-se
que ele é marcado [ -CV, 4-Ant, —Q]; ou seja, tem uma composição
116

de traços idêntica à do atributo. Como hipótese inicial, devemos


investigar se o elemento desesperadam en te em (128) não será um
atributo, tal como desesperada em
(129) Maria chorou desesperada
Vejamos o que se poderia lem brar co n tra essa hipótese. Primei­
ramente, é claro, o fato de que d esesperadam en te não é nem um
SN nem um SAdj (“sintagma adjetivo”), mas pertence a uma classe
à qual podem os dar informalmente o nom e de “sintagma adverbial”,
ou SAdv. Mas isso não chega a ser uma objeção, porque a exigência
de que o atributo seja desem penhado por SN, SAdj ou qualquer
outra classe não faz parte da definição de atributo. Não há mesmo,
em geral, nenhum a necessidade de que cada função seja sempre
preenchida por uma classe única. Até onde se pode ver, isso pode
acontecer em certos casos e não acontecer em outros. Se cada classe
se define através do co n ju n to de funções que seus membros podem
desempenhar, nada im pede que certas funções sejam preenchidas
por m em bros de diversas classes.
Outra dificuldade seria a concordância nominal que se observa
entre d e s c u e r a d a e o sujeito M aria, ao passo que nada semelhante
ocorre em (128). Essa objeção pode ser respondida através da análise
morfológica dos dois itens, em linhas paralelas às que se seguiram
para argumentar que o gerúndio também tem sujeito (seção 2.3.4.7).
Acontece que a concordância nominal depende da presença, no ter­
mo regido, de morfemas sufixais de gênero e de número. Se o term o
regido é um adjetivo como desesperado, a regra determinará que,
sendo o sujeito M aria (feminino e singular), o atributo deverá ficar
também no feminino singular, desesperada. Agora digamos que o
atributo seja um sintagma nominal — que, por razões morfológicas,
não pode concordar. Então a concordância não se verifica, e ainda
assim analisamos esse sintagma como atributo; é o caso de
(130) Maria chegou uma fera
O caso de desesperadam en te em (128) pode ser enquadrado
nessa explicação: como desesperadam en te não contém morfema de
gênero/número, não concorda, muito em bora seja um atributo. Já
vimos que a manifestação da concordância só é possivel quando
certas condições morfológicas são satisfeitas; assim, o gerúndio pode
ter sujeito, embora não concorde com nenhum elemento da oração.
O que quero dizer é que a diferença que existe entre desespe­
ra d a e desesperadam en te nas frases vistas não é sintática, mas morfo-
l(')gica; e também semântica, como veremos a seguir.
Il.t diferenças semânticas entre (128) e (129) que poderiam
■I ill g.ii l.is iT)in<) argumento contra a análise de ambas como con-
117

tendo atributos. A diferença básica é que sentimos que há um relacio­


namento de desesperada com o sujeito M aria e com o NdP chorou.
Já em (128) parece que desesperadam en te se vincula exclusivamente
ao NdP chorou.
Como sustento que a sintaxe das duas frases é idêntica, vou
mostrar que esses fatos se devem a traços semânticos ligados às clas­
ses a que pertencem os itens em questão. Vejamos prim eiro as possi­
bilidades de interpretação de um adjetivo como desesperado e de
um “advérbio” como desesperadam en te (a análise que se segue não
pretende valer para todos os adjetivos, e muito menos para todos
os “advérbios” da gramática tradicional; restringe-se aos casos em
exame). O adjetivo (e o SAdj) admite uma interpretação a que pode­
mos chamar qualificativa, que encontramos em
(131) encontrei um sujeito desesperado na rua
Aqui o significado do adjetivo se amalgama ao do substantivo, expri­
mindo uma qualidade perm anente ou transitória do referente deste.
Por outro lado, o advérbio desesperadam en te pode ter uma in­
terpretação m o d a l, vinculando-se de preferência a um verbo. É o
caso de
(128) Maria chorou desesperadamente
que se parafraseia aproximadamente como “Maria chorou de modo
desesperado”. A interpretação modal não atinge o sujeito nessa cons­
trução, de maneira que desesperadam en te se entende como amalga­
mado ao significado do verbo, exclusivamente. Tanto é assim que
se pode dizer, sem contradição,
(132) Maria não estava desesperada, mas chorou desespera­
damente
Mas com o adjetivo atributo a interpretação é qualificativa e
também modal, ou seja, o atributo adjetivo se vincula ao sujeito (quali­
ficando-o) e também ao verbo (modalizando-o). Por isso, as frases
abaixo são estranhas, pois envolvem uma contradição:
(133) ?? Maria não estava desesperada, mas chorou desespe­
rada
(134) ?? Maria chorou desesperada, mas não desesperadamente
Agora, se admitirmos que isso é uma característica geral dos
adjetivos em função de atributo, e que a interpretação apenas modal
é uma característica dos advérbios (da classe de desesperadam ente),
teremos uma explicação para as vinculações sentidas em (128) e
(129). Em
(128) Maria chorou desesperadamente
11^8

cof% no o atributo é um u advérbio, só pode ter interpretação modal.


t*0 /^T isso, vincula-se afpenas ao verbo. Já em
(129) Maria ch» orou desesperada
a VÚinculação é dupla, gpois o atributo é um adjetivo, cuja interpretação
incA^dui tanto o ingredi' -ente modal quanto o qualificativo.
Podemos conclirair que desesperada em (129) e desesperada-
rnfrfrnte em (128) deserm penham funções muito semelhantes, sintatica-
tn ^ 'e n te falando; talvez l funções idénticas, ou seja, ambos seriam atribu­
lo ^ .:. Essa é uma conclnasão provisória, dada a complexidade dos dados
ativos aos elem entaos adverbiais da oração e dado o atual estado
d e^ \ nossos conhecime;mtos. Aqui, como em muitos outros pontos des­
t e ’^trabalho, a solução • proposta deve entender-se como urna aproxi-
mí^'iição aceitável, em cdeterm inado grau de detalhamento. É possivel
qt3*^e um estudo mais detalhado revele distinções sintáticas dentro
da^9quiio a que chamanmos simplesmente “atributo”.

2_ ^ .2 A djunto advesrbial
Continuando a fp ro cu rar distinções entre as diversas funções
Ir^V licionalm en te eng;lobadas sob o rótulo de “adjunto adverbial”,
cc3*lnsideremos o caso ilustrado por com pletam ente em
(135) Miguel d.-ecorou o apartamento completamente
'C<P\<mpletamente aqui soe aproxima do atributo, mas é claramente [ —Ant]:
(136) * comple'-tamente, Miguel decorou o apartamento
Desse modo, s o m o s obrigados a reconhecer aqui outra função
^ ^ ^ u a l darei o nom e trradicional de “adjunto adverbial”, agora restrito
^ c r9 ^ casos definidos p»ela matriz [ -CV, -A nt, -Q ].

^ Adjunto oraci ional

Passemos agora sao exemplo


(137) Nô toca w iolão, indubitavelmente
^ ^ l o s traços vistos, o term o final dessa frase deveria ser analisado
VccPmio atributo, pois ê marcado [ - CV, +Ant, -Q ]. No entanto, há
V r^frtas razões para susspeitar que indubitavelm ente se comporta de
Am3*^do diferente dos a-itributos em geral.
Primeiro, há a obDservação de que o uso da virgula é necessário
'e*/hq (137), ao passo cq u e em casos tipicos d e atributo a virgula é
Vo-^Didonal. Assim, tantoo (128) quanto (138) são igualmente naturais:
(128) Maria chcorou desesperadamente
(138) Maria chcarou, desesperadamente
119

mas (139) é nitidamente pior do que (137):


(137) Nô toca violão, indubitavelmente
(139) ?? Nô toca violão indubitavelmente
A necessidade da vírgula no último caso fica ainda mais clara
quando transportamos o elemento adverbial para a posição entre
o NdP e o OD. (140) é perfeitamente natural, mesmo sem vírgula,
(140) Maria chamou desesperadamente sua mãe
mas em (141) a vírgula faz falta:
(141) ?? Nô toca indubitavelmente violão
(142) Nô toca, indubitavelmente, violão
Compare-se (141) com (143), onde temos o mesmo NdP e o mesmo
OD:
(143) Nô toca divinamente violão
Aqui a vírgula não é necessária, nem usual.
Talvez fosse o caso de se definir um novo traço, em termos
da obrigatoriedade do uso da vírgula entre certos termos e o restante
da oração. Esse traço, em bora defensável (a vírgula é um dos compo­
nentes da frase, na língua escrita), não será utilizado, porque há
outros traços mais convenientes. A desvantagem do traço de vírgula
reside principalmente na dificuldade de se julgar os dados; com fre­
qüência uma pessoa rejeita um uso da vírgula que para outra é perfeita­
mente aceitável. Mas de todo modo é um ponto a investigar futuramente.
Um fato Yertamente relacionado de alguma forma com o uso
da vírgula é a intuição de que desesperadam en te em (128) faz consti­
tuinte com o NdP, ao passo que in du bitavelm en te em (137) não
faz. Isso se reflete na semântica das duas construções: em (128) um
dos ingredientes semânticos é um amálgama dos significados de cho­
rou -t- deseperadam en te-, já em (137) não existe o ingrediente to ca
vio lã o + indubitavelm ente. As restrições selecionais refletem essa
situação: há restrições quanto ao uso deste ou daquele item como
atributo em frases como (128), restrições essas que dependem do
verbo. Em frases como (137), ao contrário, nenhum a relação selecio­
nai existe entre o verbo e o elemento indubitavelm ente.
As observações acima, se bem que breves, devem ser suficientes
para evidenciar o interesse potencial de se investigar as condições
em que elementos de natureza adverbial (os “adjuntos adverliiais’’
da NGB) se vinculam ao NdP em um constituinte. Aqui, como e.sii m
preocupado com a definição maximamente econômica das diveo.a'.
funções, deixarei de lado essa questão, passando a ouiia i lav.c d r
fatos, de observação mais fácil, para fundamentar os novo.s iiai.i >■.
120

Os constituintes de nível oracional em português aceitam em


geral ser colocados em evidência através de um processo denom i­
nado “clivagem”. A clivagem se faz com auxílio de ser... que, e pode
aplicar-se a vários termos da oração; ao sujeito:
(144) foi Carlinhos que m e procurou
ao objeto direto:
(145) foi um Escort que Zé vendeu
(146) é um artista que Víctor é
(147) é competente que María parece
ao predicativo:
(148) é um gênio que Antonio considera Wolfgang
ao atributo:
(149) foi desesperadamente que María chorou
(150) foi urna fera que Sônia chegou
(151) é comovido que eu Ibes dirijo a palavra
ao adjunto adverbial:
(152) foi completamente que Miguel decorou o apartamento
etc.
Em suma, a clivagem se aplica a urna grande variedade de termos
(não se aplica, entretanto, ao NdP; ou só com restrições). Mas a cliva­
gem é impossível com elementos do tipo de indubitavelm ente em
(137):
(153) * é indubitavelmente que Nô toca violão
Outros exemplos paralelos são:
(154) infelizmente ela não deixou recado
(155) * foi infelizmente que ela não deixou recado
(156) talvez Carminha esteja te espionando
(157) * é talvez que Carminha está/esteja te espionando
Correspondentemente, quando um item pode funcionar tanto
como atributo quanto como indubitavelm ente, em frases clivadas
a única interpretação aceitável é a de atributo:
(158) Simone se despe em público naturalmente (atributo)
(159) Simone se despe em público, naturalmente
(náo-atributo)
mas
(160) é naturalmente que Simone se despe em público
(atributo)
121

Essa propriedade distingue muito claramente o elemento in d u ­


bitavelm ente do atributo desesperadam en te que encontramos em
(128), assim como do adjunto adverbial com pletam en te de (135).
Vou por isso utilizá-la para definir um novo traço, a saber:
— a propriedade de ocorrer como foco de uma frase clivada
correspondente (abreviadamente, [Cl]).
Agora in du bitavelm en te em (137) será marcado [ -C l], ao con­
trário das outras funções já vistas, que são [ +C1] (exceto o NdP e
a NV). À função desempenhada por in du bitavelm en te em (137) darei
a designação de “adjunto oracional” (AO). Essa função se define
como [ -CV, +Ant, - Q , -C l].
O adjunto oracional já foi observado por muitos autores, e para
o inglês já se menciona em 1943, em um contexto que deixa claro
que não se tratava, mesmo então, de novidade (Nida, 1964, p. 186).
Essa função é geralmente considerada caracteristica dos chamados
“advérbios de oração” (“sentence adverbs”); sõ que, como se viu,
há advérbios que podem ser “de oração” ou não (por exemplo,
n atu ralm en te).
Katz & Postal, 1964, notaram que o AO não pode ocorrer em
frases imperativas; e podem os acrescentar que tampouco ocorre em
interrogativas. Acredito que isso se deve ao tipo de interpretação
semântica que o AO recebe, que é avaliativa do ponto de vista do
falante. Assim, (137) poderia ser parafraseada aproximadamente como
(161) eu acho indubitável que Nô toca violão
Por isso mesmo, o AO só se harmoniza semanticamente com frases
declarativas, já que não é possivel fazer uma avaliação do ponto de
vista do falante sobre uma ordem ou uma pergunta:
(162) * indubitavelmente, lave o meu carro
Quirk et al., 1972, observam, ao que parece com razão, que
o AO (na verdade, os disjuncts, que correspondem ao nosso AO)
não se integra propriam ente na oração (p. 269). Eles também mencio­
nam a ocorrência de virgula como caracteristica dessa função, em bo­
ra sem comprometer-se quanto a sua obrigatoriedade. Mas apontam
também outro traço, a meu ver inadequado, o de que o AO (o dis­
ju n c t) não poderia ocorrer contrastado com outro elemento adver­
bial em interrogativas ou negativas alternativas. Como exemplo, dão
os casos de
(163) * is he tired p ro b a b ly or is he tired possibly!
(164) * he isn’t tired probably, but he is tired possibly
(Q uirk et al., 1972, p. 269 )
122

Não acho que essa observação ajude a caracterizar o AO, porque


a agramaticalidade de (163) e (164) não tem nada a ver com a sintaxe
do AO. (163) é inaceitável porque inclui um AO em uma interrogativa,
o que causa o choque semântico mencionado acima. Quanto à ocor­
rência do AO em negativas alternativas, em bora a tradução de (164)
seja realmente estranha,
(165) * ele não está cansado provavelmente, mas está cansado
possivelmente
é possível encontrar frases negativas com dois AOs em posição de
contraste:
(166) felizmente, ou infelizmente, Zé não se casou
Assim, a agramaticalidade de (165) terá de ser explicada de algum
outro modo, e não através de alguma proibição do AO de ocorrer
em estruturas negativas alternativas.
Podemos concluir então que o atual estado da investigação apon­
ta como característica mais clara do AO o seu comportamento com
relação à clivagem. Por isso adotarei o traço [Cl] para defini-lo frente
às demais funções vistas: o AO é o term o marcado [ —CV, -PAnt,
- Q , -C l].

2.7.4 Adjunto circunstancial


Passando adiante no exame das diferenças de comportamento
entre os chamados elementos adverbiais, verificamos que m uito em
(167) ela riu muito
deveria ser analisado como atributo segundo os traços vistos, pois
é marcado [ -CV, -PAnt, —Q, -PCl], da mesma maneira que
tem ente em
(168) a moça tem perebas freqüentemente
Entretanto, acredito que há uma diferença importante entre os
dois casos no que diz respeito a suas possibilidades de ocorrência
em várias posições na oração. Freqüentem ente pode ocorrer entre
o sujeito e o NdP, na posição denominada por Jackendoff (1972,
p. 49) “posição do auxiliar” (“auxiliary position”)

- Designação cômoda mas algo inadequada. O advérbio ocorre na verdade antes da negação
verbal, quando esta ocorre:
(i) Carlos freqüentem ente não com parece ao trabalho
E, quando há auxiliar, em português o advérbio p o d e aparecer antes ou depois deste:
(ii) Carlos freqüentem ente tem procurado Marta
(iii) Carlos tem freqüentem ente procurado Mana
123

(169) a moça freqüentemente tem perebas


mas isso é impossivel no caso de muito-,
(170) * ela muito riu
Uma frase como (170) só se encontraria em poesia tradicional, como
um caso de hipérbato, o que excluo de consideração, deixando-o
para estudos de estilistica poética.
Teriamos aqui, assim, pelo menos dois tipos algo divergentes
de atributo. Mas vou preferir definir um novo protótipo, pois suspeito
que casos como o de (167) são muito comuns; e, ademais, que exis­
tem outros traços que aprofundam as diferenças entre m uito em
(167) e os atributos. Desse modo, defino um novo traço, a saber:
— a propriedade de ocorrer entre o sujeito e o NdP (ou entre
o sujeito e a NV, se for o caso) (abreviadamente, [PA]).
Os termos marcados [ +PA] podem talvez ser chamados “de
ocorrência livre”, pois podem ser colocados entre quaisquer consti­
tuintes de nivel oracional, exceto apenas entre a NV e o NdP.
M uito em (167) será marcado [ - PA], e portanto não é um
atributo, pois este se caracteriza pelo traço [ +PA]. Chamarei essa
nova função “adjunto circunstancial”, definindo-a assim: [ —CV,
+Ant, - Q , +C1, - PA]; abreviadamente, AC. É licito suspeitar que
o AC estaria englobando funções distintas, e que uma análise mais
detalhada acabará resultando em definições separadas para essas
funções.
Conforme já apontei, o grau de detalhamento escolhido para
a análise condiciona o núm ero e a finura das distinções feitas entre
as funções. E o grau de detalhamento depende do núm ero de traços
utilizados na análise. Se, por exemplo, nos limitássemos ao único
traço [CV], todas as funções vistas até agora se reduziriam a apenas
duas, a saber, o sujeito, [+CV], e o “não-sujeito”, [-CV]. O grau
de detalhamento mais desejável não pode ser estabelecido a priori-,
precisa ser justificado em termos dos aspectos da estrutura da lingua
que irão ser explicitados. É perfeitamente possivel que duas gramá­
ticas, de niveis diferentes, elejam diferentes graus de detalhamento,
e por conseguinte diferentes números de funções sintáticas. Por ou­
tro lado, é desejável que quando duas gramáticas apresentam listas
diferentes de funções, ou de classes, se possa colocar as duas em
relacionamento, de modo que uma seja uma ampliação da lista da
outra.
Ora, o AC na definição acima é um candidato à ampliação, isto
é, ao desmembramento em várias funções, em uma análise mais
detalhada. Uma razão que me leva a pensar assim é o fato de que.
124

a se manter a definição vista, poderão ocorrer vários ACs em uma


mesma oração, como em
(171) ele se deixou levar ao desespero pelos credores
Nossa definição aponta como ACs tanto ao desespero quanto pelos
credores.
A análise tradicional parece obedecer a um princípio (implícito)
de “não-iteração” das funções não-acessórias a nível de oração. Isto
é, nunca haveria mais de um representante de alguma das funções
“essenciais” ou “integrantes” em uma única oração. Esse princípio
vale para muitas das funções definidas neste capítulo, mas notada­
mente falha no caso do AC. Aqui poderem os concluir que o princípio
só é válido para certas funções, independentem ente de sua essencia-
lidade, ou então poderem os desconfiar que a intuição tradicional
tem boas bases, e procurar meios de distinguir dentro do AC outras
ílinções.
Por ora, entretanto, vamos limitar-nos aos traços já propostos,
e conformar-nos com a presença de uma função (o AC) cuja comple­
xidade semântica deixa pairar uma suspeita de que seria, na verdade,
um grupo de funções. Coloquemos essa decisão na conta do grau
de detalhamento relativamente amplo que inevitavelmente adotamos
neste trabalho de natureza preliminar.
Conforme a definição dada, serão também exemplos de AC os
complementos marcados nas frases abaixo:
(172) iMZVàmox-à em Santa Luzia
(173) Joãozinho gosta de M aria
(174) Joca deu um presente a Beré
(175) Lucinha foi despenteada pelo vento
A análise tradicional enxerga aí pelo menos três funções distin­
tas, a saber, “adjunto adverbial” em (172) ( “complemento adverbial”,
segundo Kury, 1985); “objeto indireto” em (173) e (174); e “agente
da passiva” em (175). Do nosso ponto de vista, diremos que essas
distinções são predominantemente semânticas, e que formalmente
as três funções tradicionais são extremamente semelhantes. Repito
que vale a pena continuar a tentar distingui-las formalmente; apenas,
isso não pode ser feito com os traços que propus até o momento.
Segundo esta análise, tanto o caso de m uito em (167) quanto os
casos grifados em (172) a (175) se analisam como adjuntos circuns­
tanciais, sendo marcados [ - CV, -l-Ant, - Q , +C1, -PA].
Aqui vou limitar-me a uma discussão inicial de alguns proble­
mas, na esperança de indicar algum caminho possível para uma futura
distinção de várias funções dentro do que agora chamamos “AC”.
125

Examinemos prim eiro o caso do elem ento a Beré em (174), tradicio­


nalmente considerado “objeto indireto”.
Existe a possibilidade de urna distinção com base em um novo
traço que poderia ser proposto: acontece que a Beré pode ser reto­
mado através do pronom e lhe, o que não acontece com os demais
exemplos citados. Isso equivale a dizer que no nivel de detalhamento
em que estamos a Beré se conforma com o prototipo do AC; mas
se quisermos detalhar mais a análise, introduzindo o traço “retomada
em Ihe", será possivel distinguir a função desempenhada por a Beré
dos demais casos de AC.
Esse tipo de detalhamento é sempre possivel, pois as possibi­
lidades de formulação de novos traços são grandes. A questão é se
vale a pena. No caso de a Beré, argumentarei que a vantagem conse­
guida com o traço “retomada em Ihe" é pelo menos duvidosa. Por
conseguinte, continuaremos a analisar esse term o como AC. A razão
principal é análoga àquela que nos levou a deixar de lado o traço
“retomada em o /a ”: a retomada pronominal é sujeita a restrições
muito pouco compreendidas. Digamos que seja interessante analisar
paralelamente o complemento de opôs-se nas frases
(176) Nelson opôs-se a Napoleão
(177) Nelson opôs-se à guerra
(178) Nelson opôs-se a que partissemos
Entretanto, a retomada em lhe só é plenamente aceitável no prim eiro
caso, dando
(179) Nelson opôs-se-lhe / se lhe opôs
Em (177) a retomada em lhe é de aceitabilidade duvidosa, e em
(178) ela me parece francamente inaceitável. Logo, se utilizássemos
o traço “retomada em Ihé” para definir uma nova função, somente
(176), das três frases acima, conteria um exemplo dessa função. Acho
isso inconveniente porque a diferença não se deve a uma transitividade
múltipla do verbo opor-se, mas antes à constituição interna e à semântica
de cada sintagma. Lhe retoma com comodidade apenas nomes de pes­
soas; com nomes de coisas e principalmente com sintagmas abstratos
ou oracionais, a retomada é sempre inaceitável, em vários graus.
Não há dúvida, por outro lado, de que a retomada em lhe é
um traço formal legitimo, e que de certa forma separa o comple­
mento a Beré em (174) dos outros mencionados. Não gostaria de
excluir a possibilidade de dai se poder formular um traço útil na
definição das funções sintáticas a nivel de oração. Só não prossigo
explorando-o aqui por razões de limitação de tempo, já que nosso
objetivo principal é o de esboçar os grandes traços da sintaxe.
126

Finalmente, é bom lembrar que o elemento Ibe (e seus corres­


pondentes me, nos etc.) tem urna gama de usos que certamente
transcende os limites de um presumível “objeto indireto”. Dois
exemplos clássicos são
(180) beijei-lhe o rosto
(181) o filho do Procópio lhe arranjou uma reprovação em
Química
Esses casos deverão receber uma análise diferente da que damos
ao Ibe que retoma a Beré em (174).
Para efeitos desta análise, consideraremos o term o a Beré em
(174) um AC, assim como os termos grifados em (172), (173) e (175).
Uma segunda dificuldade a discutir é o caso (também clássico)
de am ar a Deus e seus congêneres. O complemento aí parece ser
marcado [ +Q], o que o colocaria entre os objetos diretos, apesar
de seu aspecto que o aproxima mais do AC:
(182) — Quem devemos amar?
— Devemos amar a Deus
Aqui quem me parece tão aceitável quanto a quem.
A gramática tradicional reconhece de certa forma essa sem e­
lhança com o OD, classificando a D eus como “objeto direto preposi­
cionado”. Este caso requer mais algum estudo.
Um terceiro possível problem a é a decisão de analisar como
AC os casos tradicionalmente rotulados de “agentes da passiva”:
(175) Lucinha foi despenteada pelo vento
Essa análise pode causar estranheza, pois estamos acostumados
a considerar o agente da passiva como uma função nitidamente distin­
ta de todas as demais. Mas em termos dos traços vistos o agente
da passiva tradicional se identifica com os demais casos de AC; por
que, então, se insiste na idiossincrasia marcada do agente da passiva?
Creio que essa intuição vem da semântica do complemento, e mais
especificamente da semântica da preposição por.
Uma razão para se distinguir o agente da passiva como uma
função à parte é o ser ele considerado um acompanhante muito
exclusivo e característico das orações passivas. Assim, pode-se levan­
tar um argumento contra a identificação do agente da passiva com
o AC dizendo: por que o sintagma (agentivo) p o r 4- SN só aparece
nas passivas, ao passo que o AC em geral tem ocorrência livre?
Responderei, primeiro, negando que p o r 4- SN agentivo seja
exclusividade das passivas. Pontes, 1973, aponta casos como
(183) ela se deixou levar pela correnteza
127

onde não se pode ver urna passiva (nem sequer, segundo creio,
urna “passiva sintética”), e no entanto ocorre um term o que só pode­
ria ser analisado como “agente da passiva”, tanto sintática quanto
semanticamente, dentro da análise tradicional. Algo análogo acontece
dentro de sintagmas nominais como
(184) a destruição de Cartago pelos romanos
Ai igualmente a análise tradicional tenderia a ver um “agente da
passiva”, e no entanto não há passiva. Como vemos, portanto, não
é correto dizer que o “agente da passiva” tradicional se associa com
exclusividade a estruturas passivas.
Por outro lado, que significa dizer que os ACs têm ocorrência
livre? A ocorrência do AC só parece livre enquanto não se discri­
mina a preposição individual que ocorre com cada um. Mas, a
partir do m om ento em que se m enciona a preposição (com o se
fez para p o r +SN), observam-se restrições m uito claras de ocor­
rência, restrições essas que têm caráter semântico. Vejam-se os
exem plos
(185) Joca deu um presente a Beré / para Beré / * em Beré
(186) Joca deu um coice * a Beré / * para Beré / em Beré
(187) Claudinha vive * a Paris / * para Paris / em Paris
(188) Olga vive * à música / para a música / ?? na música
Como se vê, a ocorrência desta ou daquela preposição em ACs
está longe de ser livre. Será preciso estabelecer restrições de vários
tipos, em geral semânticas. E esse conjunto de restrições terá, como
um de seus efeitos, o de permitir a ocorrência de p o r no AC das
orações passivas (e também de certas não-passivas). Creio que isso
responde adequadamente a objeção levantada acima.
Um problema mais sério é o de por que a fúnção semântica
de “agente” se exprime através de um AC com p o r quando a oração
é passiva (e em alguns outros casos), e através de um sujeito na
maioria das orações ativas. Aqui caimos no labirinto inexplorado
das relações entre a estrutura sintática e a interpretação semântica.
O problem a não se limita à relação ativa/passiva; está generalizado
a muitos setores da gramática. Por exemplo, o paciente se exprime
através do objeto direto em certos casos, e através do sujeito em
outros, mesmo quando a oração não é passiva:
(189) Maria espancou José
(190) José apanhou de Maria
Em (190) o sujeito exprim e o paciente, e o agente é o AC, de
Maria.
128

Exemplificando essa complexidade da relação sintaxe/semântica


com outro problema, veja-se que a noção de “lugar aonde” pode
ser expressa através da preposição a + SN, como em
(191) ele chegou ao cume
ou então através de um objeto direto, como em
(192) ele atingiu o cume
É fácil multiplicar os exemplos. O problem a é real, mas não
tem nada a ver especificamente com a passiva. Vou concluir portanto
que, na falta de contra-argumentos válidos, o elemento pelo vento
de (175) deve ser analisado como AC. Com isso, podem os analisar
paralelamente pela correnteza em (183) também como AC, ao passo
que a análise tradicional fica em dificuldades, porque a definição
tradicional vincula a ocorrência do agente da passiva a ser a frase
uma passiva, o que (183) não é (ver definição de “agente da passiva”
em Cunha & Cintra, 1985, p. 143). Finalmente, pelos rom anos em
(184) não deve ser um AC, pois não é constituinte de nível oracional
(integra um SN).

2,7.5 Ainda o A C Semântica e comentários


Do que se viu fica claro que se deve esperar do AC uma varie­
dade relativamente grande de possibilidades de interpretação semân­
tica. Soma-se aí a complexidade da relação forma/significado, a possí­
vel complexidade sintática da noção de “adjunto circunstancial” e,
finalmente, a variedade de interpretações possíveis das preposições.
É sem dúvida por isso que a gramática tradicional, com suas defini­
ções parcialmente semânticas, tende a ver aí um conjunto de funções
não-relacionadas.
Tomando apenas os cinco exemplos dos quais partimos, ou
seja,
(167) ela riu
(172) Luzia mora em Santa Luzia
(173) Joãozinho gosta de Maria
(174) Joca deu um presente a Beré
(175) Lucinha foi despenteada pelo vento
encontramos cinco tipos diferentes de relação semântica, a saber,
respectivamente, “intensidade”, “lugar onde”, “causador (de um sen­
timento)”, “beneficiário” e “agente inanimado”. No entanto, é impos­
sível negar que essa variedade semântica corresponde, no plano for­
mal, a uma grande semelhança de comportamento sintático (expres-
129

sa, para todos os exemplos, pela matriz [ —CV, +Ant, —Q, +C1,
-P A ]). Grande parte dessa variedade semântica se deve à presença
de preposições, e às características semânticas de cada uma delas.
Assim, p o r pode expressar a relação de “agente”; essa relação tam
bém pode ser expressa através da função de sujeito, com certos ver­
bos; ou por outras preposições, notadamente de, com ainda outros
verbos. Como resultado, a mesma noção de “agente” se exprime
de várias maneiras, segundo as circunstâncias e as idiossincrasias
dos itens léxicos governantes. Ao lado de (175), temos
(193) o vento despenteou Lucinha
onde a estrutura sintática (mais o item despentear) determinam que
o agente será expresso pelo sujeito. E podemos ter ainda
(190) José apanhou de M aria
onde essencialmente a mesma noção se exprime através de de + SN.
O reconhecimento dessa situação aparece esporadicamente nas
análises tradicionais, como na seguinte passagem de Kury (aqui, co­
mo em geral, especialmente perceptivo):
“[o objeto indireto pode exprimir] o ser para o qual se dirige a ação
de um verbo transitivo indireto, podendo ter, pois, neste caso, valor
análogo ao do objeto direto:
‘Gosto de música.' (Confronte: ‘Aprecio música')"
[ K ury, 1985, p. 47.)
Acredito que a observação de Kury é no fiindo inteiramente justifi­
cada. Mas observe-se como é incompatível com uma conceituação
semântica de objeto direto e indireto. Se essas são categorias defini­
das em termos do significado, deveria ser óbvio que um objeto indi­
reto nunca poderia ter o mesmo significado que em geral têm os
objetos diretos (pois isso faria desse objeto indireto, automaticamen­
te, um objeto direto). O que acontece, a meu ver, é que uma doutrina
gramatical implícita impede o estudioso de seguir os preceitos explí­
citos da gramática. Assim “sabe-se” que, apesar das definições, de
música e m úsica nos dois exemplos de Kury têm funções diferentes.
Quanto às preposições, será preciso eventualmente fazer um
estudo individual de cada uma, pois têm propriedades sintáticas dife­
rentes. Depois que for abordada a questão das classes de formas,
será possível observar com algum cuidado o fato de que algumas
preposições funcionam para formar, com um SN, um “sintagma adje­
tivo”, ao passo que outras formam um “sintagma adverbial”. Corres­
pondentemente, investigar-se-á se certas preposições não se especia­
lizarão como introdutores de certas funções sintáticas, de forma que
130

nem todas as preposições possam aparecer com qualquer função


sintática (dentre as que admitem preposição, como o AC, o Atr, o
AA etc.).

2.7.6 Casos problem áticos


Como estou trabalhando com definições prototípicas, admito
a possibilidade de alguns casos não se enquadrarem em nenhum a
das funções definidas. Para resolver tais casos, seria possível, em
princípio, acrescentar novos traços e assim definir novas funções,
até atingir um ponto de refinamento muito grande da análise: um
ponto em que o comportamento sintático de cada term o encontrado
pudesse ser classificado com precisão e descrito de maneira muito
informativa. Cada vez que se encontrasse um caso cuja combinação
de traços não se enquadrasse em nenhum protótipo, seria definida
uma nova função. Mas isso, como já apontei anteriormente, tem seu
preço no aumento de complexidade da análise; acabaríamos abando­
nando no essencial a idéia dos protótipos, e a descrição das tendên­
cias da língua se afogaria numa multidão de detalhes. Por essa razão
é que recorri ao estabelecimento de definições prototípicas. Elas
devem ser suficientes para uma descrição em grau de detalhamento
relativamente amplo, mas não impedem uma descrição minuciosa,
quando esta se fizer necessária.
Os eventuais casos problemáticos, que não se enquadram em
nenhum dos protótipos vistos, deverão portanto ser analisados como
desvios, mais ou menos segundo a fórmula: “este term o é idêntico
a um atributo, exceto que tem o traço [ +X] onde o atributo tem
[ -X ]”. Esses casos exemplificarão funções intermediárias entre os
protótipos principais. Naturalmente, a investigação da freqüência de
tais casos pode sugerir uma mudança no elenco dos protótipos, de
modo a capturar dentro delas o maior núm ero possível de ocorrên­
cias. Os protótipos aventados neste capítulo e nos seguintes se ba­
seiam em uma intuição pouco sustentada por dados reais; só uma
investigação muito ampla poderá fornecer subsídios ao estabeleci­
mento de protótipos mais eficientes. Mas é importante notar que
a existência de casos limítrofes é prevista pelo sistema de protótipos,
e não constitui, em si, uma dificuldade para a análise.
Já um problem a muito mais sério, que constitui verdadeira difi­
culdade, são as incertezas de julgamento. Por exemplo, em certos
casos podem os não ter muita certeza se um elemento aceita ou não
clivagem — e, portanto, se é um atributo ou um adjunto oracional.
Acho que isso acontece com
(194) além da m edalha, ele ganhou um beijo
131

A versão clivada de (194) é aceitável para alguns falantes, mas não


para outros:
(195) foi além da medalha que ele ganhou um beijo (??)
Desse modo, a decisão pode ser muito difícil. Esse é um problema
inerente a qualquer investigação sintática que não se resuma à descri­
ção de um corpus fixo. Certamente, devemos esperar que ocorfa
de vez em quando; o mais que se pode fazer é escolher sempre
que possível traços relativamente nítidos do ponto de vista do julga­
mento dos falantes.
As próprias dificuldades podem servir para sugerir direções de
pesquisa futura. O panorama das funções “adverbiais” esboçado nes­
ta seção aponta certos temas que, à primeira vista, me parecem pro­
missores. Mencionarei os seguintes:
— avaliar o valor descritivo dos protótipos, através do levanta­
mento de casos intermediários, com o objetivo de verificar
a conveniência de se manter esses mesmos protótipos ou
substituí-los por outros;
— procurar outros traços, que permitam aprofundar as dife­
renças entre os protótipos, elaborando assim definições
mais informativas do comportamento sintático das funções.
Esses novos traços, ainda que redundantes, são importan­
tes, pois nosso objeto é, também, traçar um quadro tão
completo quanto possível do funcionamento da sintaxe;
— procurar generalizações semânticas correspondentes à ca-
tegorização sintática aqui elaborada. Isso também permitirá
avaliar o grau de estreiteza do relacionamento entre a se­
mântica e a sintaxe, neste setor particular da gramática;
— pesquisar as condições de co-ocorrência dos diversos ele­
mentos adverbiais dentro da mesma oração;
— levantar os diversos itens léxicos (“advérbios”), relacionan­
do-os com as funções que cada um pode desempenhar.
Sabemos, desde já, que certos itens são especializados em
uma função apenas (por exemplo, indubitavelm ente só
ocorre como AO), ao passo que outros ocorrem em diver­
sas funções {naturalm ente pode ser AO ou Atr).

2,8 Sum ário: Funções d e n ív el o ra c io n a l

Estudamos neste capítulo as funções de nível oracional, isto é,


aquelas que são desempenhadas por constituintes imediatos da ora­
ção. Não creio que haja esgotado a lista, e certamente o julgamento
132

d e que determinado sintagma é constituinte imediato da oração ou


não contém certa dose de subjetivismo, em certos casos pelo menos.
Relembro aqui o caso da negação verbal, brevemente mencionado
na seção 2 .6 , onde apontei que é possível que se conclua afinal que
a NV forma com o NdP um constituinte que, por sua vez, se vincularia
à oração.
De qualquer forma, dispomos de um quadro de funções defini­
das formalmente; essas definições são toleravelmente operacionais,
permitindo em geral uma decisão clara a respeito da função de cada
sintagma em sua oração. Utilizamos para isso seis traços, que nos
forneceram oito matrizes, definidoras de outras tantas funções proto­
típicas. O quadro completo é, pois, o seguinte:

Traços
Função
CV Ant Cl PA pNdP
Sujeito (Suj) + + + + ( )
Objeto direto (OD) + + +
Atributo (Atr) + -F +
Predicativo (Pv) -F -F

Adjunto adverbial (AA) -F

Adjunto oracional (AO) -F -F

Adjunto circunstancial (AC) -F

Negação verbal (NV) -F

Núcleo do predicado (NdP) (postulado)

As funções, com o se vê, são nove ao todo, contando-se o NdP,


que não se define através dos traços. Um dos traços do sujeito
não está especificado na tabela, porque não é m uito claro para
mim Como se aplicará e, de qualquer modo, não é essencial para
a caracterização dessa função.- Prefiro deixar a casa em branco
por enquanto.
A se aceitar a análise aqui proposta, essas nove funções serão
suficientes para descrever exaustivamente a estrutura sintática a nível
oracional de todas as orações simples (períodos simples) do portu­
guês, excetuando-se casos não prototípicos, que devem ser compara­
tivamente raros.
133

2.9 O bservações
2.9.1 Funções sintáticas e a correspondência
Dois pontos de certa importância merecem um breve exame
a esta altura. O prim eiro deles é a relação entre a análise das fianções
sintáticas e as correspondências entre estruturas, definidas na seção
1. 8. 6.
A questão aqui é a seguinte: dadas duas estruturas correspon­
dentes, devem elas ter análises idênticas ou análises diferentes? Por
exemplo, sabemos que são correspondentes as duas frases
(196) Rogério lavou meu fusca
(197) meu fusca, Rogério lavou
Agora, diremos que m eu fu sca é objeto direto em ambas as frases,
ou que m eu fu sca em (197), estando em posição diferente, deve
ser analisado diferentemente?
Na verdade, já houve uma decisão anterior, que foi a de se
considerar a mesma a função desse sintagma nas duas frases: foi
quando definimos o SN que precede o NdP, sem concordância, como
um tipo de objeto (ver a seção 2.3.4). Segundo os procedimentos
ali formulados, m eu fu sca em (196) é um objeto direto não-topi-
calizado, e em (197) um objeto direto topicalizado. Trata-se agora
de justificar e generalizar essa análise.
Vou argumentar que, apesar da posição diferente na seqüência,
m eu fu sca em (197) deve continuar sendo considerado um objeto
direto, e não um representante de uma nova função sintática. Vejamos
que vantagens nos trará essa solução.
Primeiro, é claro, a análise fica mais simples, não havendo neces­
sidade de multiplicar as funções. Já que a maioria das funções estuda­
das admite anteposição, teríamos uma série paralela de funções para
os elementos antepostos (“topicalizados”); se considerarmos que
frases correspondentes mantêm, para cada termo, a mesma análise,
escaparemos desse inconveniente.
Em segundo lugar, será possível capturar certas generalizações
que têm a ver com a transitividade (subcategorização) dos verbos.
Se m eu fu sca em (197) representasse uma nova função, essa função
deveria aparecer nas condições de subcategorização do verbo lavar.
Mas isso equivaleria a dizer que a anteposição (o traço [Ant] ) depen­
de do verbo da oração, ao passo que já vimos que depende da função
do term o em questão. O mesmo verbo pode admitir ou não a antepo­
sição de seus complementos, e isso depende de cada complemento
individual. O verbo considerar, por exemplo, pode ocorrer com
134

objeto direto + predicativo; destes, o predicativo não pode ser ante-


posto, mas o objeto direto pode:
(198) ela considera o irmão um malandro
(199) o irmão, ela considera um malandro
(200) * um malandro, ela considera o irmão
Se o elemento anteposto fosse uma função nova a ser incluída na
subcategorização do verbo, o que faríamos com casos como o de
considerar? Se a função de o irmão em (199) e de um maíandro
em (200) for a mesma, ficaremos diante de um dilema: considerar
aceita ou não essa função? Já se as funções forem diferentes, podere­
mos dizer que aceita a de õ irmão, mas não a de um malandro.
Mas, exatamente quando ocorrer um elemento com a função que
o irmão tem em (199), considerar já não aceitará objeto direto, o
que é muito suspeito. Na verdade, verificaremos que em muitos casos
a ocorrência de uma dessas novas funções exclui a de uma das fun­
ções antigas, mesmo com verbos que normalmente as aceitam. É
evidente que alguma coisa está errada com a postulação das novas
funções. Os fatos ficarão imediatamente explicados se admitirmos
que o irmão é um OD mesmo em (199): não pode aparecer outro
OD simplesmente porque não ocorrem dois ODs na mesma oração.
Finalmente, um terceiro argumento pode ser elaborado a partir
da interpretação semântica. Sabemos que tanto em (196) quanto em
(197) meu fusca é interpretado como “paciente” da ação de lavar,
praticada pelo “agente” Rogério. Se os elementos antepostos tives­
sem funções próprias, teríamos de estabelecer que se interpretam
sempre exatamente da mesma maneira que os termos ausentes da
estrutura: no caso de (197), o OD está obrigatoriamente ausente,
e o elemento anteposto se interpreta como ele. O mesmo ocorreria
com todos os casos de correspondência (topicalização, clivagem,
transporte de advérbio etc.), repetindo assim no plano semântico
a estranha situação descrita, para a sintaxe, no parágrafo precedente.
Já se meu fusca for o OD de ambas as frases, o problem a obviamente
desaparecerá.
Por essas razões, vou admitir que meufusca tem a mesma função
(OD) nas frases (196) e (197). E, como a argumentação acima tem
valor para todos os casos de correspondência entre estruturas, vou
admitir um princípio mais geral, a saber, que os elementos idênticos
de duas estruturas correspondentes têm sempre a mesma função
sintãtica.
Esse princípio, na verdade, apenas formaliza um uso que é o
mais generalizado entre os lingüistas: a maioria deles tende a analisar
frases como (197) como contendo um objeto direto, sem explicitar
135

totalmente o que os leva a essa análise. Outros, como notadamente


Chomsky, admitem (explicitamente) que elementos como m eufusca
em (197) são resultado de um transporte a partir da posição original
do OD; nessa posição original fica um constituinte vazio, “contro­
lado” pelo SN explícito m eu fusca, mais ou menos assim:
(201) meu fuscaj, Rogério lavou t,
A posição de Chomsky tem a grande vantagem de estar cuidado­
samente explicitada. Ela se assemelha à que adoto aqui em ser basica­
mente “transformacional”, isto é, em depender da relação de duas
estruturas que diferem em que determinado constituinte está em
posição diferente em cada uma (mais, em certos casos, em que certos
elementos designados são introduzidos em uma delas). No entanto,
minha proposta não é uma variante notacional da análise gerativista,
porque defino as “correspondências” de maneira mais restrita; por
exemplo, analiso passivas e ativas separadamente, e não como estru­
turas correspondentes, ao passo que para Chomsky elas são relacio­
nadas. Por outro lado, não creio tampouco que minha análise se
oponha à de Chomsky; relem bro que estou preocupado em descre­
ver os fatos sintáticos a um nível propositadamente muito próximo
do superficial. Para esse efeito, a posição de Chomsky é excessiva­
mente abstrata e dependente de pressupostos teóricos relativamente
avançados; o que não significa que não possa, eventualmente, ser
considerada a mais correta das atualmente disponíveis.
Parece-me que não seria correto dizer que (196) e (197) têm
exatamente a mesma estrutura sintática; afinal de contas, a posição
seqüencial dos termos é diferente, e esse é um fator universalmente
considerado como sintático. Acho que a saída será considerar a posi­
ção de sintagmas topicalizados, clivados etc. como um traço sintático
“secundário”, derivado, que não afeta as funções sintáticas propria­
mente ditas. Essas “funções secundárias” se caracterizam, entre ou­
tras coisas, por serem irrelevantes para efeitos da interpretação se­
mântica stricto sensu-. a interpretação do conteúdo proposicional da
sentença. Já por outro lado seriam relevantes para a interpretação
dos papéis funcionais — o que Chafe, 1976, chama a “embalagem”
(“packaging”). Essa é a posição que vou adotar aqui; mas tenho que
reconhecer que aqui, como em tudo o que se refere à relação de
correspondência, há muito que não com preendo adequadamente.
Passo agora ao segundo ponto a explicitar, que decorre da defi­
nição do papel das correspondências na análise, que acabamos de
ver. Trata-se do modo de aplicação das definições dos traços a frases
topicalizadas, clivadas etc. Já que admitimos que em (197) m eu fu sca
é um OD, a definição de OD deve aplicar-se a esse sintagma; para
136

pelo menos dois dos traços, [Ant] e [Cl], convém explicitar melhor
o funcionamento da definição.
Estivemos aplicando o traço [Ant] como se significasse “a possibi­
lidade de ocorrer anteposto a toda a estrutura”. Mas em (197) não
se trata de possibilidade; aí o sintagma m eu fusca, que é um OD
e, portanto, deve ser marcado [ -FAnt], está de fato anteposto. Assim,
na verdade a interpretação desse traço deve ser “um sintagma será
marcado [ -FAnt] se estiver ou p u d er estar anteposto”; ou, mais preci­
samente, se ocorrer uma das seguintes situações: (a) o sintagma apa­
rece anteposto em uma estrutura correspondente; ou então (b) o
sintagma está anteposto, e aparece não-anteposto em uma estrutura
correspondente. Interpretando-se assim a definição do traço, a marca­
ção [ -FAnt] de m eufusca em (197) decorre automaticamente da corres­
pondência que existe entre (196) e (197); e vice-versa, naturalmente.
Uma interpretação paralela a essa deve ser dada ao traço [Cl]:
“um sintagma será marcado [ +C1] se (a) aparecer clivado em uma
estrutura correspondente, ou então se (b) estiver clivado, e aparecer
não-clivado em uma estrutura correspondente”. Isso nos permite
analisar como objeto direto m eu fu sca em
(202) foi meu fusca que Rogério lavou

2.9.2 Complementos e adjuntos


Na concepção da estrutura da oração aqui esboçada falta uma
distinção que está presente na análise tradicional, assim como em
várias análises mais modernas: a distinção entre “complementos”
( “termos integrantes”) e “adjuntos” ( “termos acessórios”). A distin­
ção se baseia essencialmente nas possibilidades de subcategorização
dos verbos: alguns termos poderiam ser “exigidos” ou “recusados”
por certos verbos, ao passo que outros nunca o seriam. Andrews,
1985, coloca a distinção com clareza:
“A distribuição dos complementos é governada por especificações
potencialmente idiossincráticas dos verbos (ou outros predicadores).
Os adjuntos, por outro lado, aparecem quando quer que sejam seman­
ticamente apropriados”.
[A n d rew s, 1985, p. 89.]

Essa posição é a de muitos gramáticos tradicionais e é, a meu


ver, essencialmente correta — o que não quer dizer que não precise
ser amplamente trabalhada. Ela nos permite caracterizar certos itens
léxicos, fora de contexto, como sendo “transitivos”, “intransitivos”
etc. Mas há dois defeitos de perspectiva que têm prejudicado esse
ponto de vista, levando alguns a rejeitá-lo inteiramente. O prim eiro
137

desses defeitos é a falta de distinção entre exigências ou recusas


de natureza sintática (idiossincrasias dos itens léxicos) e exigências
ou recusas advindas de restrições de significado. Por exemplo, ao
verificarmos que o verbo p ô r dispensa o atributo em uma frase como
(203), mas não em (204),
(203) Pedrinho pôs o chapéu (na cabeça)
(204) Pedrinho pôs o chapéu na mesa
teremos de perguntar se isso se deve a idiossincrasias do item léxico
p ô r ou a alguma “expectativa” de natureza não-sintática, que estabe­
lece que ao se “p ô r” um chapéu na cabeça, não é necessário especi­
ficar o lugar onde o chapéu foi “posto”. Há razões para crer que
existem os dois tipos de restrições, o que coloca um problem a meto­
dológico espinhoso.
O segundo defeito da posição tradicional é o de não considerar
a possibilidade de ocorrência livre de certos complementos. Por
exemplo, uma vez verificado que alguns verbos ( “transitivos”) exi­
gem objeto direto, e outros ( “intransitivos”) recusam objeto direto,
não se leva em conta a possibilidade de um terceiro tipo,o dos verbos
que aceitam, mas não exigem, objeto direto. Ora, acontece que tais
verbos são extremamente comuns, talvez mais comuns do que os dos
outros dois tipos. A dificuldade de analisá-los dentro de uma teoria
que não inclui a transitividade livre levou alguns gramáticos a abandonar
a teoria inicial, optanto por uma definição contextuai de transitividade,
expressa por exemplo por Cunha, 1975, da seguinte maneira:
“A análise da transitividade verbal é feita dentro da frase. Considerado
isoladamente, um verbo não é transitivo nem intransitivo. Esta a razão
por que o mesmo verbo pode estar empregado ora intransitivamente,
ora transitivamente [...]”
[C u n h a, 1975, p. 149.]

Conforme já foi apontado em outro texto (Perini & Fulgêncio, 1987),


essa teoria coloca a noção de transitividade em termos radicalmente
diferentes; e, ao que me parece, destrói sua utilidade para uma análise
sintática.
A se seguir a definição contextuai, dizer que um verbo “é transi­
tivo” será exatamente sinônimo de dizer que ele tem objeto direto
na frase em questão; portanto, a noção de transitividade, para come­
çar, se torna supérflua. Mas estou convencido de que essa noção
não é supérflua, e que a definição contextuai de transitividade é
inadequada. Ela obscurece distinções que são evidentes, e gramati­
calmente relevantes. Por exemplo, há verbos que, independente­
mente de contexto, sem pre recusam objeto direto; é o caso defalecer,
138

m entir, há outros que sem pre exigem objeto direto, como dizer-,
finalmente, há verbos que ocorrem com ou sem objeto direto, mais
ou menos livremente (ou melhor, sujeitos a restrições de ordem
não-sintática), como comer, p in ta r etc. Não me parece correto tratar
esses três casos igualmente, como se não fosse possível estabelecer
generalizações. Vale mais a pena examinar a teoria inicial, enrique­
cendo-a de várias maneiras: admitindo a possibilidade da transiti­
vidade livre (como a de com er para o OD); ampliando a lista de
funções relevantes para a transitividade; e introduzindo a noção de
“caso marcado”. Isso está tratado com mais detalhe no artigo mencio­
nado (Perini & Fulgêncio, 1987), ao qual rem eto para uma discussão
mais completa, embora ainda preliminar.
Desse modo, pode-se concluir que é muito provável que as
funções sintáticas se possam distinguir em “complementos” e “adjun­
tos” seguindo as linhas resumidas na citação de Andrews: um “com­
plem ento” seria uma função que pode, em princípio, ser exigida
ou recusada por algum item léxico. Diremos que o objeto direto,
por exemplo, é um complemento porque certos verbos exigem sua
presença (dizer) e outros a recusam (m entir). Já um adjunto, como
o adjunto oracional, nunca constituiria base para uma restrição dessa
natureza, pois nenhum verbo ou outro item o exigiria ou o recusaria.
Mas é preciso esclarecer um ponto: não é possível incluir o
status de adjunto ou de complemento na definição das funções, pelo
menos como traço definitório mínimo. Isto é, duas funções nunca
poderão distinguir se meramente porque uma delas é adjunto e a
outra complemento, sendo os demais traços idênticos. Isso nos leva­
ria a circularidades, o que é inadmissível em gramática Por exem­
plo, digamos que distinguíssemos, dentre os termos a que atribuí
a função de adjunto circunstancial (AC), duas funções diferentes,
sendo uma delas um complemento e a outra um adjunto. Teríamos
o complemento na frase.
(172) Luzia mora em Santa Luzia
onde em Santa Luzia é, presumivelmente, exigido pelo verbo. E
teríamos o adjunto na frase
(205) Luzia m orreu em Santa Luzia
já que o verbo m orrer poderia ocorrer sem o elemento em Santa
Luzia. Assim, a diferença entre essas duas novas funções se definiria
através de exigências do verbo; o complemento seria exigido, o adjun­
to não.

Embora admissível, e mesmo necessário, em outras áreas da atividade humana, como notou
Clym, 1953.
139

Isso parece correto, à primeira vista, mas na verdade é logica­


mente malconstruído. Para mostrar isso, lembrarei prim eiro que uma
função se considera “com plemento” não porque sempre que ocorre
é porque está sendo exigida (isso não valeria para nenhum a função),
mas porque é exigida por algum item da lingua; a noção é paradig­
mática, e por isso pode ser representada nos itens léxicos fora de
contexto, e não sintagmática como propõe a definição contextual
de transitividade. Assim, o objeto direto é um complemento porque
certos verbos, como dizer, o exigem; e é um complemento mesmo
em frases em que o verbo é como comer, que poderia ocorrer sem
objeto direto em outras frases. Assim, que significa dizer que há
um complemento em (172)? Equivale a dizer que a função ai pre­
sente, caracterizada pelos traços [ +Ant, - Q , +C1, -PA] (ou seja,
um adjunto circunstancial), é às vezes exigida por um verbo. No
caso particular de (172), o AC está sendo realmente exigido por
morar, mas isso não é crucial, pois o importante é que algum verbo
da lingua possa exigir a presença dessa função.
Em (205), dentro da hipótese que estou criticando, o termo
em Santa Luzia seria um adjunto, ao contrário de (172), onde seria
um complemento. A única diferença entre os dois termos é essa,
já que em Santa Luzia em (205) é também marcado [ +Ant, - Q , +C1,
- PA], exatamente como em (172). Mas como se poderá marcar o termo
em Santa Luzia de (205) diferentemente do de (172)? O AC de (205)
é, evidentemente, um tipo de função que é exigida por algum verbo
da lingua (como (172) mostra); logo, tem de ser um complemento.
O AC não está sendo exigido por morrer em (205) mas isso, como
vimos, não importa; o que faz de uma função um complemento é
a possibilidade de ser exigida (ou recusada) por algum item, e essa
condição o AC de (205) satisfaz, em virtude da existência de verbos
como morar. Em outras palavras, não é possivel distinguir duas funções
unicamente através da distinção entre complementos e adjuntos; o cará­
ter de complemento não pode, pois, figurar entre os traços distintivos.
Isso não quer dizer que a oposição complemento/adjunto seja
destituida de interesse. Se verificarmos que certas funções podem
ser exigidas ou recusadas por determinados itens, sendo que outras
funções não podem, teremos em mãos uma peça importante de infor­
mação sobre a estrutura da lingua. E a informação será ainda mais
importante se se verificar que o traço “ser ou não exigivel ou recusá-
vel” é acompanhado de outras características gramaticais; isto é, se
se puder dizer que todos os “complementos” têm certos traços em
comum uns com os outros. Poderemos então distinguir algo como
um “núcleo oracional”, composto dos termos centrais da oração (os
complementos), e uma “periferia” composta de adjuntos.
140

Existem propostas nesse sentido. Por exemplo, Chomsky, 1965,


restringe a subcategorização (transitividade) dos verbos aos termos
internos ao “sintagma verbal”; essa proposta tem sido refutada, am­
pliada e modificada de várias formas nos últimos anos, Não há dúvida
de que certas funções nunca fazem parte da subcategorização dos
verbos, isto é, nunca são exigidas ou recusadas, ao passo que outras
podem. Aqui, entretanto, não levarei mais adiante a discussão do
problema, em bora reconheça seu interesse.

2.9.3 Vocativo
O vocativo é tradicionalmente considerado um elemento exter­
no à estrutura da oração:
“[o vocativo] não pertence propriamente à estrutura da frase, devendo
ser considerado à parte, como elemento afetivo por excelência”.
[ L im a , 1964, p. 250.]
Veremos que há razões formais para manter essa posição tradicional.
Analisando um caso típico de vocativo, como
(206) Graça, o telhado vai cair
acabaríamos chegando à conclusão de que Gragz é um adjunto oracio­
nal, pois seus traços são [ - CV, + Ant, - Q, - Cl, + PA]. Mas o comporta­
mento desse termo difere significativamente do de um adjunto oracio­
nal quanto a outros fatores, de modo que evitarei essa classificação.
Um fato já observado pelos gramáticos tradicionais é a ausência
de amalgamação do significado do vocativo com o do restante da
sentença, ou com qualquer constituinte dela. Em casos de AO, pode-
se dizer que há amalgamação com o significado global do restante
da sentença, como em
(207) indubitavelmente, Nô toca violão
Essa relação pode ser evidenciada pela paráfrase
(208) é indubitável que Nô toca violão
onde indubitável, ou melhor, seu significado, é claramente predi­
cado do significado de N ô toca violão como um todo.
Já no caso do vocativo nada de semelhante ocorre. É como se
o vocativo e o restante da sentença fossem processados separadamente.
Outra observação interessante é que o vocativo não é preen­
chido por sintagmas nominais, mas por uma classe especial. Assim,
não podem os ter
(209) * a Graça, o telhado vai cair
141

Essas pistas parecem apontar no sentido de uma análise extra-


oracional do vocativo; em outras palavras, sugerem que “vocativo”
é uma noção discursiva, e não estritamente sintática. Acrescente-se
(|ue, na língua escrita, o vocativo pode ser separado do restante da
frase não apenas por vírgula, mas também por ponto final ou de
exclamação, sem mudança apreciável do efeito ou do significado
da frase. Vou portanto, seguindo aqui a análise tradicional, excluir
o vocativo do elenco das funções oracionais.
Para isso, é importante explicitar o critério que me permite
caracterizar certos elementos como extra-oracionais. Ora, uma pro­
priedade do vocativo que nenhum outro dos elementos estudados
apresenta é a de poder ser separado do restante da frase por uma
mudança de interlocutor, sem que isso redunde no efeito de inter­
rupção forçada. Por exemplo,
(2 1 0 )
— Graça!
— O quê?
— O telhado vai cair.
A fala O quê? não é uma “interrupção”, porque é consentida, talvez
mesmo procurada, pelo primeiro falante. A situação com um AO
é nitidamente diferente:
(2 1 1 )
— Indubitavelmente...
— O quê?
— O telhado vai cair.
Aqui temos uma interrupção: o segundo falante tomou a vez do pri­
meiro, impedindo que este completasse algo que ia dizer. Não se
concebe normalmente a fala O quê? em (211) como sendo consentida
ou solicitada pelo prim eiro falante. A pontuação reflete esse fato.
Note-se, ainda, que de certo modo sentimos que um vocativo
tem uma resposta própria (que pode ser O quê?, ou então Estou aqui
etc.); já um elemento como indubitavelmente, sozinho, não tem res­
posta própria: apenas a sentença de que ele faz parte é que teria uma.
Creio que as razões dadas são suficientes para mostrar que ao
estudarmos o vocativo estamos lidando com uma função qualitati­
vamente diferente das que vimos considerando até o momento. Entre
o vocativo e o restante da frase existe um limite de seções do discurso,
não um simples limite de constituintes sintáticos, como o que existe
entre o AO, ou o sujeito, e o restante da frase. Desse ponto de vista,
o vocativo se coloca ao lado dos elementos “parentéticos” a que
aludi anteriormente, também estes de nível discursivo. Por exemplo,
temos, com o parentético dizem.
142

(212) O telhado vai cair, dizem.


(213)
— O telhado vai cair.
— O quê?
— Dizem.
(214) Carolina vai se demitir, que loucura.
(215)
— Que loucura.
— O quê?
— Carolina vai se demitir.
Este critério será portanto utilizado para distinguir os elementos
da oração (sintaticamente conectados a ela) dos elementos extra-ora-
cionais (discursivos): estes admitem a inserção de uma mudança
de interlocutor sem que resulte um efeito de interrupção forçada.
Com isso, o vocativo fica excluido da oração, assim como dos assuntos
do presente capitulo.

2,10 A pêndice: As fu n ç õ e s segu n do Andrew s, 1985


(u m a c rític a )
Para term inar a discussão das funções sintáticas de nivel oracio­
nal, vou voltar a um dos temas constantes deste trabalho, a opção
por uma separação estrita entre o aspecto formal e o semântico,
para efeitos de descrição. No caso das funções sintáticas, como em
outras áreas da gramática, essa distinção não tem sido sempre obser­
vada, com resultados a meu ver prejudiciais. No que se segue, vou
apontar alguns exemplos onde esse efeito negativo se faz sentir, tira­
dos do artigo de Andrews, 1985. É importante esclarecer que esse
trabalho de Andre-ws é um dos mais interessantes, mais informativos,
mais rigorosos e mais estimulantes dentre os que se têm publicado
ultimamente na área da sintaxe descritiva. Andrews aborda principal­
mente a questão da tipologia das linguas, mas seu artigo tem rele­
vância para a descrição em geral, e é desse ponto de vista que o
criticarei. Veremos que o trabalho, no que pesem suas evidentes
qualidades, apresenta pontos de desnecessária obscuridade, prove­
nientes da decisão, explicitamente assumida, de não fazer uma distin­
ção rigorosa entre o aspecto formal e o aspecto semântico.
Andrews define (universalmente) as funções sintáticas, que ele
prefere chamar “grammatical relations”, com o auxilio de certas cate­
gorias (“functions”) cuja definição é dada em termos em parte nocio-
nais e em parte formais. As principais dessas “functions” são as deno­
minadas A, S e O, que assim se definem:
143

“Se um SN serve como argumento de um verbo de dois argumentos,


e recebe o tratamento sintático e morfológico normalmente dado ao
Agente de um PTV(‘primary transitive verb’], diremos que tem a função
gramatical de A; se é um argumento de um verbo de dois ou mais
argumentos e recebe o tratamento normalmente atribuído ao Paciente
de um PTV, diremos que tem a função gramatical de O. [...] De um
SN em uma frase intransitiva que recebe o tratamento normalmente
atribuído ao argumento único de um predicado de um argumento
se dirá que tem a função S”.
[ A n d r e w s , 1985, P - 68.]

Um problema imediato é o de determinar o que quer dizer


“normalmente” no contexto dessas definições; mas é preciso levar
em conta os problemas específicos de uma tentativa de definir catego­
rias válidas para todas as línguas, o que com freqüência só se pode
fazer isolando tendências gerais.
A partir das noções de A, S e O, Andrews define relações (para
nós, “funções”) gramaticais como
“o sujeito é a relação gramatical [...] que se associa à função A e à
função S; o objeto, a relação gramatical [...] que se associa à função O”.
[Idem, ibidem, p. 103.]
Os papéis semânticos (agente, paciente etc.) são portanto cruciais
na definição das fianções A, S e O e assim também na definição das
relações “sujeito”, “objeto” etc. Mas o próprio Andrews reconhece que
“[...] concordando com a maior parte da literatura, prestamos pouca
atenção ao problema de definir os papéis semânticos, contentando-nos
com caracterizações bastante vagas”.
[Idem, ibidem, p. 71.]
Ora, urna conseqüência inevitável dessa situação é que as vaguidões
inerentes à conceituação dos papéis semânticos se transferem à con-
ceituação das funções e relações. A opção de Andrews por definições
mistas o obriga a desprezar a possibilidade de conceituar de maneira
precisa as relações gramaticais formais, que no entanto existem e
são importantes dentro das línguas naturais.
Por exemplo, se em uma língua temos um term o caracterizado
invariavelmente por um caso morfológico ( “nominativo”), mais o
controle da concordância verbal, como o sujeito em latim, o modelo
de Andrews não permite dar a essa relação uma designação unificada,
em bora ela seja evidentemente um traço importante da estrutura
formal da língua. Ele é obrigado a afirmar que
“Traços de codificação [isto é, traços formais] nem sempre fornecem
um guia confiável das relações gramaticais”.
[Idem, ibidem, p. 108.]
144

Mas o exemplo do sujeito em latim seria precisamente um caso em


que os traços formais permitiriam caracterizar com precisão uma
relação gramatical — desde que se aceitasse a possibilidade de defi­
nir certas relações em bases formais.
Além disso, existe a questão, fundamental em lingüistica, de
explicitar a relação som/significado (ou: significante/significado). Es­
sa explicitação é consideravelmente dificultada dentro da perspectiva
de Andrews, pois nela não existem categorias form ais que possam
ser confrontadas com categorias semânticas, de m odo a levar ao estu­
do comparativo das duas faces da linguagem. Digamos que o objeto
direto em português seja definido em termos formais, como se faz
neste capitulo; e que se observe o fato semântico de que o OD
nunca pode exprimir o agente. Temos aqui uma faceta da relação
som/significado, expressa com clareza. Mas se definíssemos o objeto
direto segundo a linha de Andrews, isto é, como “a relação gramatical
que se associa à função O ”, onde “O ” se define com o auxilio da
noção de “paciente”, a explicitação dessa faceta ficaria obscurecida.
Não fica claro se estamos realmente relacionando um aspecto da
forma com um aspecto do significado, e a afirmação se reduz a algo
como: “O elemento associado à função de um argumento que recebe
o tratamento tipico de paciente de um verbo transitivo nunca pode
exprimir um agente”. Acho que aí a relação em questão se perde
em uma série de etapas, nenhum a das quais é claramente formal
ou claramente semântica.
Generalizações do tipo de
“O sujeito em inglês se associa ao papel semântico de Agente, mas
muitos sujeitos não são Agentes.”
[Idem, ibidem, p. 81.]
no que pese seu caráter de simples tendência, e a nebulosidade
de sua formulação, são evidentemente merecedoras de estudo tanto
dentro da estrutura de urna língua particular quanto no ámbito das
línguas em geral. Assim, não questiono o esforço de Andrews no
sentido de conceituar categorias mistas (formais-semânticas) e de
procurar suas manifestações nas diversas línguas. O que questiono
é o método adotado por ele (método que é usual na maior parte
da literatura sobre tipologia) de partir da formulação de tais catego­
rias para depois investigar sua ocorrência e as relações forma/sig­
nificado preponderantes em cada língua. Como vejo as coisas, “sujei-
to-agente” não é urna categoria sintática nem semântica, mas um
dos tipos possíveis de rA 2g )o form a!significado.
É perfeitamente plausível que generalizações importantes den­
tro da estrutura de cada língua, assim como alguns dos mais Ínteres-
145

santes traços universais, só se possam exprimir através de tais catego­


rias mistas (relação forma/significado). Podemos, p o r exemplo, des­
cobrir que a tendência a associar privilegiadamente o sujeito ao agen­
te seja um traço universal das línguas humanas. Mas essa observação,
certamente interessante, só pode ser feita com confiabilidade se se
seguir determinada metodologia, que inclua questões como as se­
guintes:
(a) Que razões há para chamar de “sujeito” determinados ter­
mos de diferentes línguas? Por exemplo, por que chama­
mos “sujeito” tanto o elemento latino que controla a con­
cordância e vem marcado como nominativo quanto o ele­
mento malgaxe que vem sem pre no final da oração? (Ver
Keenan, 1976b e comentário na seção 1.11.) Como se defi­
niria universalmente o sujeito, se é que isso é possível?
(b) Como se conceitua (universalmente) a idéia de “agente”?
(c) Como se relacionam as noções de “sujeito” (formal) e
a de “agente” (semântica) nas diversas línguas? (Esta ques­
tão será evidentemente complicada se acontecer, como
parece ser o caso, que qualquer definição de “sujeito”
será prototípica.)
Essa perspectiva está implícita nos princípios da lingüística mo­
derna; o que falta, em geral, é a decisão de levar esses princípios
a suas conclusões lógicas.
Para ilustrar o tipo de confusões (desnecessárias, a meu ver)
a que a abordagem mista acaba levando, vou dar um exemplo, voltan­
do ao texto de Andrews. Diz ele que
“em inglês [...] o sujeito de um gerúndio pode ser acusativo ou genitivo,
mas não nominativo, que é o caso normal dos sujeitos”.
[A n d r ew s, 1985, p. 114.]
Um dos exemplos é (numeração minha):
(216) him running Ewing Oil is difficult to imagine
“ele (Ac.) dirigindo a Ewing Oil é difícil de imaginar”
O sujeito do gerúndio a que Andrews se refere seria, evidentemente,
him, ai no acusativo. Mas o que é que nos pode levar a analisar
esse elemento como sujeito? O sujeito, segundo Andrews, é a relação
gramatical associada com a função A ou a função S. E a função A
é a dos elementos que são argumento de um verbo de dois argu­
mentos, e recebem tratamento morfossintático geralmente dado aos
agentes de verbos transitivos típicos (os “PTVs”); já a função S só
ocorre em orações intransitivas, e portanto não se pode associar
a him em (216). Assim, him teria de ter a função A para que fosse
146

claramente um sujeito. Mas o problem a é que o tratamento morfos-


sintático é ambiguo: him é marcado como acusativo, que é o trata-
mentó dado tipicamente ao paciente; e vem no inicio da oração,
que é o tratamento dado em geral ao agente. Aqui temos pelo menos
cinqüenta por cento de razão para chamar him de objeto, em vez
de sujeito.
Andrews não discute a questão, dando como evidente o caráter
de sujeito de him. Seria interessante tentar reconstruir um raciocinio
que explique essa atitude. Vou fazê-lo, deixando antes claro que
é apenas o que me parece estar por trás da passagem de Andrews,
não sendo responsabilidade desse autor. O que se pode dizer é
que a passagem pede explicação, e aqui estou oferecendo uma, que
como se verá leva a dificuldades.
Digamos que o raciocinio seja o seguinte: (a) run, “dirigir”,
tem, em geral, o agente expresso pelo sujeito (m y father runs a
restaurant, “meu pai dirige um restaurante”); (b) him expressa o
agente de run em (216); (c) logo, him deve ser o sujeito de run
em (216).
Mas esse raciocínio é defeituoso em dois pontos importantes.
Primeiro, ele desrespeita a letra de definição de “sujeito” dada por
Andrews, que não diz que o sujeito é o elemento que expressa o
agente, mas antes que é o elemento que se associa à função A, ou
seja, à dos termos que recebem o tratamento morfossintático normal­
mente reservado ao agente. Conforme vimos, segundo esse critério,
him pode ser tanto um objeto quanto um sujeito. Depois, esse tipo
de raciocínio, se generalizado, reduzirá a tautologías todas as afirma­
ções da forma “este sujeito exprime o agente”, impossibilitando as­
sim a formulação de uma classe importante de relações entre a forma
e o significado. Em particular, a observação de Andrews de que o
gerúndio em inglês tem um sujeito pouco típico perde a maior parte
de seu interesse, já que não é nada claro que se trate mesmo de
um sujeito.
Essas breves notas ilustram o que, a meu ver, é um dos principais
defeitos de grande parte do trabalho que se vem fazendo na área
das funções sintáticas: a falta de uma discriminação clara entre o
aspecto formal e o aspecto semântico da linguagem. Não que seja
sempre fácil estabelecer essa distinção; mas, creio, deve ser pelo
menos um ideal descritivo, a ser procurado a todo momento.
3FUNÇÕES
DE NÍVEL
SUBORACIONAL

3.1 Funções su b o ra c io n a is

Neste capítulo passarei a estudar as funções sintáticas que vincu­


lam os elementos internos dos sintagmas constituintes da oração;
em particular, examinarei detalhadamente as funções encontradas
dentro do sintagma nominal. Conforme se verá, trata-se de um con­
junto novo de funções, não simplesmente de uma repetição das fun­
ções já vistas a nível da oração; correspondentemente, será necessário
propor um novo conjunto de definições.
A gramática tradicional distingue explicitamente quatro funções
suboracionais, a saber, o adjunto adnominal, o complemento nomi­
nal, o aposto e o adjunto adierbial. Destas, o adjunto adverbial também
é nome de uma função de nível oracional; mas não se trata da mesma
função nos dois casos. Além dessas quatro, parece-me que é necessário
admitir a existência de um núcleo (por exemplo, seria o que resta
de um sintagma nominal quando se retiram os adjuntos adnominais,
complementos nominais etc.). E, finalmente, talvez haja um agente da
passiva de nível suboracional, que ocorreria em casos como
(1) a destruição da cidade pelos invasores
Esses casos não costumam ser discutidos nas gramáticas; talvez a maioria
dos gramáticos prefira analisar esse termo como “adjunto adnominal”.
Para nós, de qualquer modo, a questão não tem relevância, pois teremos
de elaborar uma análise nova de todos os termos suboracionais.

3.2 E strutura d o sin ta g m a n o m in a l

3.2.1 F u n çõ es n o SN

Considerarei prim eiro a estrutura interna dos constituintes a


que se dá o nom e de “sintagma nominal” (SN). O SN se define,
como já foi visto, pela propriedade de ocorrer como sujeito de ora­
148

ções; podemos acrescentar que pode ocorrer também como objeto


direto, ou como elemento regido de preposição etc. Um exemplo é
(2) os meus amigos alagoanos
O SN tem uma estrutura bastante complexa, incluindo vários
termos de comportamento sintático diverso; ou seja, é possivel distin­
guir dentro do SN diversas funções sintáticas. Tomemos, como ponto
de partida, as posições na seqüência dos termos: verifica-se que a
maioria dos termos internos de um SN tem uma posição rigidamente
determinada dentro da seqüência, não admitindo transportes. Por
exemplo, as variantes abaixo do sintagma (2) são todas inaceitáveis:
(3)
a. * meus os amigos alagoanos
b. * os meus alagoanos amigos
c. * meus amigos alagoanos os
etc.
Por outro lado, em certos casos a transposição é possível, como em
(4)
a. todos os meus amigos
b. os meus amigos todos
Esses fatos nos servirão de base para a determinação de um conjunto
de funções internas ao SN.

3.2.2 O SN m á x im o

A partir dessas observações, torna-se possível estabelecer a no­


ção de um SN “maximamente estendido”, ou “SN máximo”, formado
pela seqüência mais longa possível de termos tais que todos tenham
comportamento sintático claramente diferente. Um exemplo é
(5) todos os meus muitos valentes amigos alagoanos
Observa-se que os termos de (5) não são livremente permutáveis
entre eles, o que é uma indicação de que cada um teria uma função
diferente. Cada term o (e, presumivelmente, cada função) se caracte­
riza por suas propriedades posicionais únicas. Tomemos o elemento
todos: verifica-se que só pode aparecer em prim eiro ou em último
lugar; qualquer outra posição causa inaceitabilidade:
(6)
a. todos os meus muitos valentes amigos alagoanos
(= = (5 ))
b. os meus muitos valentes amigos alagoanos todos
c. * os todos meus muitos valentes amigos alagoanos
d. * os meus todos muitos valentes amigos alagoanos
etc.
149

(As restrições à movimentação de to<a?05foram estudadas por Simões,


1974.)
Desse ponto de vista, o comportamento de todos difere do de
os, que só pode (no SN máximo) aparecer em segundo lugar, não
admitindo nenhuma transposição. Por isso direi que todos e os de­
sempenham funções diferentes dentro do SN. Na verdade, há indica­
ções de que os sete elementos de (5) têm todos comportamento
próprio; por conseguinte, distinguirei aí um máximo de sete funções.
O SN máximo é pois a mais longa seqüência de elementos que
constituem um SN e que não admitem permutação livre.
A bem dizer, é possível encontrar seqüências de mais de sete
palaiTOS com essas propriedades. Mas isso é uma conseqüência do
fato de que cada termo do SN não precisa necessariamente ser com­
posto de uma palavra única; encontram-se expansões de alguns ter­
mos, com maior freqüência do último, que é representado por ala­
goanos em (5). Por exemplo,
(7) todos os meus muitos valentes amigos . I
(um tanto assustados/
Considero de Maceió, um tanto assustados eic. como elementos únicos,
embora compostos de várias palavras, porque formam constituintes, por
sua vez subordinados ao SN. Tais casos serão considerados na seção 3.3.

3.2.3 PDet, Det, Poss e Q f


Das sete funções internas do SN, há quatro que se podem definir
com relativa facilidade. São representadas em (5) pelas palavras to­
dos, os, meus e muitos, e se caracterizam por ocuparem as primeiras
quatro posições no SN máximo. Essas posições equivalem ao que
a teoria tagmêmica denomina “slots” (ver Elson & Pickett, 1967);
é uma noção útil na descrição da estrutura interna de constituintes
que, como o SN, apresentam certa rigidez estrutural, se comparados
com a oração. Essas quatro funções podem ser definidas em termos
estritamente posicionais, conforme resume o quadro abaixo:

As quatro primeiras funções internas do SN


Definição
Função (lugar no SN máximo)
Predeterminante (PDet) Iv ou último
Determinante (Det) 2v
Po.s.ses.sivo (Poss) 3V
Quantificador (QO 4?
150

Assim, analisarei os quatro prim eiros constituintes de (5) da


seguinte maneira: todos é um PDet; os é um Det; m eus é um Poss;
e m uitos é um Qf.
As definições dadas acima sugerem que as posições dos termos,
exceto o PDet, são fixas. Isso não é estritamente verdadeiro, mas
as transposições admissíveis são poucas e ocorrem em condições
controladas, de maneira que as definições podem ser mantidas, com
os pequenos acréscimos cabíveis. Além da posposição do PDet, já
incluída na definição, há a do Poss, aceitável em certos casos como
(8) um amigo seu me procurou
As definições deverão, pois, ser um pouco elaboradas para cobrir
esses casos; mas como as transposições só se dão em situações bem
definidas, o fato não prejudica a possibilidade de definir posicio­
nalmente as funções dentro do SN.
As definições podem ser consideradas como traços distintivos,
análogos aos que utilizei para definir as funções de nível oracional.
Assim, a função de Det teria a composição [ +2°, —1?, -3?, ...].
Aqui, para facilitar a exposição, não vou utilizar sistematicamente
essa notação em traços; isso é possível porque a estrutura do SN
é bastante rígida, e as funções se distinguem de maneira relativa­
mente nítida, havendo pouco desvio dos protótipos. Mas enfatizo
que não há diferença formal entre as definições do quadro e as
definições em termos de traços, dadas no capítulo anterior.

3.2.3.1 O PD et
O PDet, como vimos, se define através de dois traços, um deles
a primeira posição, e o outro a última posição no SN máximo. Vale
então perguntar: como sabemos que todos em (6a) e em (6b) desem­
penha a mesma função de PDet? Afinal, se estamos definindo as fun­
ções posicionalmente, como podem os identificar dois elementos de
posição diferente? Não seria mais coerente considerar aí duas fun­
ções distintas?
(6)
a. todos os meus muitos valentes amigos alagoanos
b. os meus muitos valentes amigos alagoanos todos
A resposta é que (6a) e (6b) se correspondem, no sentido expli­
citado na seção 1.8.6. Em estruturas correspondentes as funções são
sempre as mesmas, com exceção apenas de elementos designados
na definição de “correspondência” (é o caso de se r... que das frases
clivadas); em outras palavras, como está em 1.8.6.3, frases correspon­
151

dentes têm a mesma análise sintática (este é um dos aspectos em


que minha análise deixa de ser estritamente superficial; ver a seção
2 .9 .1 , a respeito). Logo, tanto em (6a) quanto em (6b), todos é um

PDet; e ficamos obrigados a dizer que o PDet pode ocorrer em duas


posições no SN, sendo marcado [ +1?, +Último, —2?,...].
São muito poucos os itens que podem exercer a função de
PDet; provavelmente apenas todos e ambos. Essa limitação a classes
fechadas, em geral muito pequenas, é característica das quatro fun­
ções definidas no quadro acima. A situação de uma função p oder
ser desempenhada por um núm ero limitado de itens permite a utili­
zação da classe como critério auxiliar na identificação das funções
(embora não na sua definição); isso é útil nos casos duvidosos, como
veremos.
Em algumas análises o PDet (ou a função correspondente) é
considerado um elemento externo ao SN, porque é o único term o
que pode aparecer separado do restante do sintagma, como em
(9)
a. todos os meus amigos bebem
b. os meus amigos bebem todos
Uma análise alternativa seria aceitar a possibilidade de ocorrên­
cia, em (9b), de um SN descontínuo, isto é, com um term o separado
dos demais por elementos estranhos ao SN. Não tenho segurança
quanto à m elhor interpretação a ser dada a esse fato, e não vou
abordar a questão aqui. Simões, 1974, oferece um estudo geral da
questão das movimentações do PDet (que a autora classifica como
“quantificador”).

3.2.3.2 O D et
O Det ocorre na segunda posição do SN máximo, e também
é desempenhado por um grupo pequeno de itens: o ( “artigo”), este,
esse, aquele e possivelmente o que interrogativo/exclamativo:
(10) todos estes meus valentes amigos
(11) todos aqueles meus valentes amigos
O caso de que é menos claro porque exclui ou dificulta a possibi­
lidade de ocorrência de algumas outras funções; assim, não co-ocorre
com o PDet:
(12) * todos que valentes amigos? / * que todos valentes amigos?
Outros itens que podem aparecer em função de Det são algum
(geralmente no plural), nenhum e um . Estes excluem a possibilidade
152

de ocorrência do PDet, tal como que, de modo que acabam apare­


cendo sempre em prim eiro lugar. Mas nem por isso se devem anali­
sar como PDet, já que, primeiro, não admitem a posposição típica
do PDet (ilustrada por (6)); e, depois, também nunca co-ocorrem
com o, este etc., que são os determinantes típicos. No caso da
posposição, esta só se verifica se alguns se separa nitidamente
por cesuras entonacionais (o que só ocorre, evidentemente, na
língua falada); o mesmo não se dá com todos ou am bos quando
pospostos:
(13)
a. alguns meus amigos bebem
b. *meus amigos alguns bebem
c. *meus amigos bebem alguns
Trata-se então provavelmente de fenômeno de natureza discursiva
(não-sintática), pelo que prefiro dizer que o comportamento de al­
guns não se confunde com o de todos neste particular.
Quanto às restrições de co-ocorrência, algumas são atribuíveis
a choques semânticos, que proíbem tanto
(14) *todos alguns meus amigos
quanto
/ alguns \
(15) * / \ meus muitos valentes amigos
* uns /
O problema deve vir do fato de que todos, alguns e m uitos
são todos itens de significado quantitativo e contraditório uns aos
outros.
Note-se, aliás, que uma conseqüência de se analisar um como
Det é conservar o seu paralelismo funcional com o outro “artigo”,
O ; mantemos assim como correta uma intuição tradicional, em geral

seguida pelas análises mais modernas.


O raciocínio utilizado acima também nos pode ajudar a resolver
o caso de certos elementos seguidos de preposição (sempre de),
que alguns autores analisam como PDet:
(16) alguns / um / a m etade / parte dos meus amigos
Se a liberdade (relativa) de movimentação for considerada como
um traço definitório do PDet, então é claro que esses elementos
não podem ser PDets, pois não admitem movimentação, a menos
que se separem da preposição:
(17) dos meus amigos, alguns falam japonês
153

E ainda assim a movimentação é mais restrita do que no caso


do PDet, porque não podem os ter
(18) * dos meus amigos, bebem alguns
Já vimos que com o PDet essa movimentação para o final é possível;
ver o exemplo (9b).
Na verdade, frases como (17) me parecem mais paralelas a frases
como
(19) de Maria, o cabelo é o mais bonito
(19) é resultado da topicalização de parte de um SN cujo elemento
central é cabelo. Se essa idéia for correta, então alguns em (17)
seria um Det, como normalmente essa palavra se analisa, e dos m eus
am igos teria função análoga à de de M aría em (19) ( “modificador”,
ver adiante). Embora haja muito o que estudar aqui, essa me parece
no momento a análise mais provável, e vou adotá-la, mantendo por­
tanto a afirmação de que alguns e um são determinantes em (16).
Quanto à m etade e parte, são núcleos ( “NSN”), assim como cabelo
em (19).

3.2.3.3 O Poss
A função de possessivo (Poss), caracterizada pela terceira posi­
ção no SN máximo, é típica dos itens tradicionalmente classificados
como “pronomes possessivos”: m eu, seu, nosso. No entanto, não
deve ser exclusiva desses itens, pois outro e m esm o têm com por­
tamento semelhante, senão idêntico, ao dos pronom es possessivos.
Na presente análise, serão também considerados “possessivos” (re­
lembro que os rótulos sintáticos não devem ser tomados em seu
sentido etimológico ou semântico; o fato de outro e m esmo não
exprimirem posse não é um problema. Utilizo o term o “possessivo”
para evitar a introdução de nomenclatura nova).
Observe-se que quando um pronom e possessivo ocorre ao lado
de outro ou mesmo, eles são intercambiáveis de posição, o que carac­
teriza uma repetição de funções, antes que a presença de duas fun­
ções diferentes:
(20) esse outro m eu amigo / esse m eu outro amigo
Esse fato reforça a análise adotada.

3.2.3.4 O Q f
Finalmente, postulou-se a função de quantificador (Qf) para des­
crever o comportamento de itens como m uitos,poucos, vários (estes
154

quase sem pre no plural) e único, além de alguns outros, que ocupam
tipicamente a quarta posição no SN máximo, não sendo passíveis
de transposição. Os numerais cardinais e os ordinais possivelmente
deverão ser analisados como quantificadores, mas há certas dúvidas
a respeito; ver adiante, na seção 3-2.7.2, uma discussão desse pro­
blema.
As quatro funções acima definidas (PDet, Det, Poss e Qf) são
todas desempenhadas por elementos de classes estritamente defini­
das, em geral com pequeno núm ero de membros. É possível então
enumerar em uma gramática todos os elementos que podem ser
PDet, Det etc. Como se verá, teremos de utilizar essa vinculação
entre certas funções e certas classes como critério auxiliar na análise
dos demais elementos do SN.

3.2.4 Uma “cabeça” pa ra o SN?


Antes de passar à discussão das demais funções internas do SN,
Será preciso considerar a questão de se é necessário postular um
dos seus termos como uma espécie de “base”, elemento essencial-
ttiente presente em qualquer SN.
A gramática tradicional considera (em geral implicitamente) um
dos termos do SN como sua “cabeça” (ou “núcleo”): trata-se daquele
termo que não costuma receber um rótulo, não sendo nem “adjunto
adnominal”, nem “complemento nominal”, nem “adjunto adverbial”,
Pem “aposto”. Por exemplo, am igos em (5)
(5) todos os meus muitos valentes amigos alagoanos
%sa mesma noção de “cabeça” ^ é mantida na gramática estrutu-
^alista, e aí explicitamente definida. Diz-se então que a cabeça do
^N controla as concordâncias, e de certo m odo representa o SN
hor ter privilégios distribucionais semelhantes aos dele. Nesta aná-
Pse, preferirei não utilizar a noção de “cabeça”, pelas razões que
darei a seguir; conseqüentemente, serei levado a uma interpretação
diferente dos fenômenos de concordância.

3.2.4.1 A noção de “cabeça” na literatura


A noção de “cabeça” (“head”) de uma construção tenta captar
^tna intuição que é antiga em gramática, a de que um dos elementos

hm inglês, head. Evito a tradução “núcleo” porque pretendo utilizar esse term o com outro
®'íínificado, mais adiante.
155

do sintagma é particularmente saliente, e como que “representa”


o conjunto dos termos para efeitos de certos processos sintáticos.
Como disse, em geral os gramáticos tradicionais não definem a cabe­
ça, ou o fazem em termos semânticos e bastante vagos.
Dentre os estruturalistas e gerativistas, diversos autores não fa­
zem mais que reafirmar a saliência da cabeça; assim, não chegam
a fornecer definições. Por exemplo,
“Por cabeça entende-se aquele constituinte que parece servir de cen­
tro de qualquer construção”.
[G lea so n , 1961, p. 165 ]

Outro exemplo, retirado de uma resenha da teoria gerativa da varie­


dade “regência e vinculação”, diz que
“A cabeça de uma unidade lingüística é aquela parte da unidade que
lhe dá seu caráter essencial”.
[S ells, 1 9 8 5 , p . 2 7 ]

É evidente que com “definições” dessa ordem não se conseguirá


ir muito longe na operacionalização dessa noção.
Outros autores, a começar por Bloomfield, 1933, explicitam a
noção de cabeça de maneira rigorosa. Bloomfield começa distin­
guindo entre construções endocéntricas, isto é, aquelas que contêm
um constituinte imediato cuja distribuição é semelhante à da constru­
ção completa, e exocêntricas, cujos constituintes imediatos não têm
distribuição semelhante à da construção completa. O SN, então, é
endocéntrico, pois um de seus constituintes imediatos (pelo menos
um) pode também aparecer como SN, sozinho; por exemplo, a distri­
buição sintática de o cachorro am arelo é bem semelhante à de ca­
chorro. ]á a oração é exocêntrica, porque nem o sujeito nem o predi­
cado podem funcionar sozinhos como orações. E a partir daí que
Bloomfield define a “cabeça”:
“Em construções subordinativas [isto é, não-coordenadas] endocén­
tricas, o sintagma resultante pertence á mesma classe de formas que
um de seus constituintes, ao qual chamamos cabeça [‘head’] [...]”
[ B l o o m f ie l d , 1 9 3 3 , p . 1 9 5 ]

Essa definição é explícita, e pode ser aplicada em casos particulares.


Mas é interessante observar que o próprio Bloomfield não é totalmente
consistente em seu emprego, a julgar pela passagem seguinte:
“[...] em gadabout e em turnkey o constituinte “cabeça” é um verbo
no infinitivo, mas o composto é um substantivo; esses compostos são
exocêntricos [...]”
[Idem, ibidem, p. 235 ]
156

Como se vê, Bloomfield admite aqui a possibilidade de uma constru­


ção exocêntrica ter uma cabeça, o que sua definição não permite.
De qualquer modo, o critério de Bloomfield, seguido pelos
estruturalistas e também, na minha opinião, pelos gerativistas, não
é suficiente para identificar a cabeça de uma construção. Acontece
que com freqüência, mesmo em SNs livres de coordenação, encon­
tramos mais de um termo cuja distribuição é semelhante à da constru­
ção completa. Tomemos novamente o SN máximo (5):
(5) todos os meus muitos valentes amigos alagoanos
Dos termos desse sintagma, pelo menos quatro podem ocorrer como
SNs independentes (tendo, portanto, distribuição semelhante à do
SN completo):
(21) toíios se retiraram
(22) m uitos vão votar contra você
(23) am igos são para essas horas
(24) alagoanos geralmente gostam de camarão
Como se vê, o critério de Bloomfield, amplamente aceito na
literatura, não é suficiente para permitir a identificação unívoca da
cabeça de construções como (5). Esse problem a parece ter passado
despercebido da maior parte dos autores.

3.2.4.2 C rítica d a n o çã o d e “ca b eça ”


O próxim o passo agora poderia ser a procura de uma definição
conveniente de “cabeça” de uma construção, e em particular de um
SN. Entretanto, vou seguir outro caminho; começarei por perguntar
qual é a real utilidade da noção de “cabeça” de um SN; tentarei
mostrar que essa noção (aplicada ao SN) é pouco útil para a análise.
E prosseguirei tentando mostrar que, de qualquer modo, nenhum
dos elementos superficialmente presentes no SN se qualifica plena­
mente como cabeça dessa construção. A partir daí, elaborarei uma
análise do SN prescindindo da noção de “cabeça”.
Optei por essa solução após diversas tentativas infrutíferas de
captar e caracterizar convenientemente a cabeça do SN. A solução
se afasta da tradicional, em bora não seja propriam ente inédita. Por
exemplo, os gerativistas tendem hoje a considerar como cabeça de
certas construções um elem ento abstrato, isto é, não superficialmente
presente na construção, solução que me parece compatível com a
que vou apresentar adiante.
Posso identificar algumas razões pelas quais se considera im por­
tante a n oção de “cabeça” d e um SN. São elas: (a) a possibilidade
157

de um elemento do SN ocorrer sozinho como SN; (b) a possibilidade


de um elemento servir de base para certas exigências ou recusas
de co-ocorrência com outros termos (por exemplo, certos elem en­
tos, presumivelmente cabeças, recusam a ocorrência de artigo; outros
a exigem); e (c) o comportamento particular de certos elementos
como controladores das concordâncias. Vou examinar cada um des­
ses pontos separadamente.
Quanto ao ponto (a), já vimos que ele não aponta para um
único term o do SN; ao contrário, a se seguir esse critério, teriamos
diversas cabeças concorrentes, em muitos casos. Aqui não se trata
somente de perguntar se essa noção, assim definida, tem utilidade;
como a definição não é univocamente aplicável, deverá ser abando­
nada, ou pelo menos formulada de outro modo. Concluo que a pri­
meira razão não é suficiente para que se postule a necessidade de
uma cabeça para o SN.
Vejamos agora o ponto (b). A idéia seria que um dos elementos
do SN, privilegiadamente, funcionaria como base para a formulação
de exigências e/ou recusas de outros termos dentro e fora do SN;
ou seja, ele seria base para a formulação de transitividades ( “subcate-
gorizações”). Dessa forma, um item com o Rio deJaneiro exige artigo,
ao passo que Ipanem a recusa artigo. Esses são exemplos de exigên­
cias e recusas válidas para o interior do SN. Contra esse argumento
há casos de termos que nunca se analisariam como cabeças, e que
também fazem esse tipo de exigência: que, possivelmente um deter­
minante, proibe a ocorrência de um predeterminante:
(25)
a. que bicho te mordeu?
b. * todos / * ambos que bichos te morderam?
Há outros casos, não devidamente estudados: alguns e nenhum pare­
cem ser incompatíveis com os quantificadores; m ero (como em um
m ero desenhista) não se dá bem com todos etc. Pelo menos até
que haja estudos mais detalhados a respeito, não se pode falar de
tais exigências e recusas como sendo privilégio de uma “cabeça”
do SN.
Já quanto às exigências cujo escopo ultrapassa o SN, acho difícil
argumentar que se dirijam a um ou outro elemento do SN. Sabe-se,
por exemplo, que ajudar aceita um objeto direto; este pode ser
realizado não apenas por itens que seriam cabeça de SN, mas também
por PDets, Qfs etc. Isso quer dizer que a cabeça não poderia ser uma
fúnção especificada, mas antes uma espécie de função sobreposta às
demais: em certos SNs, a cabeça seria o PDet, em outros o Qf etc.,
já que várias funções (não todas) podem ocorrer sozinhas no SN.
158

A transitividade dos verbos precisa ser formulada em termos


das funções de nivel oracional; por isso, acho mais provável que
não haja verdadeira necessidade de se distinguir a cabeça de cada
SN para formular as restrições de transitividade.
Por outro lado, existem as exigências de ordem selecionai, ou
seja, as exigências feitas p o r certos verbos de que seu objeto, sujeito
etc. tenham determinados traços. Por exemplo, decidir exige um
sujeito animado, e decorrer exige sujeito que exprima um período
de tempo. No entanto, conforme Jackendoff, 1972, mostrou, as restri­
ções selecionais devem analisar-se em termos de condições de boa
formação semântica, o que as coloca fora do âmbito da sintaxe; como
a cabeça de um SN seria uma noção sintática, deve ser irrelevante
para a descrição das restrições selecionais.
Passemos agora ao ponto (c), isto é, aos fatos relacionados com
a concordância, verbal e nominal. Em um trabalho anterior, propus
um critério para verificar, dentro do SN, qual é o term o que “rege”
a concordância nominal. Partindo de SNs como a casa branca, afir­
mei que
“[...] a relação entre casa e branca não é simétrica. Observa-se que
uma substituição léxica de casa pode acarretar modificações morfoló­
gicas em branca, mas não vice-versa:
a casa branca / o muro branco
Mas nenhuma mudança léxica do artigo ou do adjetivo poderá acarre­
tar mudanças morfológicas em casa. Esse fato se exprime dizendo
que casa “rege” a concordância [...]”
[ P e r in i, 1985a, p. 78.]
Agora vejo-me forçado a rejeitar essa interpretação. Quando se
examinam certos SNs não-máximos, como
(26) todos os três
(27) alguns desesperados
(28) todos os meus
(29) os meus
o critério proposto não funciona: não há, em (26) a (29), nenhum
termo cuja substituição léxica acarrete mudanças morfológicas nos
outros termos; será necessário sem pre fazer paralelamente uma m u­
dança morfológica (e aí a mudança léxica é dispensável). Pode-se,
assim, substituir m eus por m inhas (substituição morfológica, por
se tratar de membros do mesmo paradigma), e isso acarretará adapta­
ções em todos eos. Mas, sem dúvida, há concordância nominal dentro
desses SNs, embora não seja possível determinar (pelo meu critério
de 1985) qual dos termos “rege” essa concordância. Portanto, voltarei
159

atrás e direi que, no SN em geral, não se pode identificar qual dos


termos rege a concordância. Fica assim invalidada uma das razões
para identificar no SN uma cabeça. Quanto à formulação da concor­
dância, é possível fazê-la de maneira não direcional, conforme mos­
trarei mais adiante.
Note-se que essa argumentação vale apenas para o domínio da
sintaxe. Não estou afirmando, por exemplo, que não seja possível
identificar um term o qualquer que seja “central” na mente do falante.
Dado um SN complexo, em certas circunstâncias, pode-se dizer que
o falante queria referir-se primariamente a um dos elementos (diga­
mos, am igos em (5) ), sendo os demais elementos de certo modo
periféricos e dispensáveis. Isso pode ser verdadeiro, dependendo,
como disse, das circunstâncias; mas trata-se de um fato relativo à
situação de comunicação e/ou às intenções do falante naquela situa­
ção — portanto, um fato a ser considerado no estudo do desempenho
ou, pelo menos, no estudo do discurso. A sintaxe pretende apenas
especificar as seqüências admissíveis na língua, e para isso a noção
de “cabeça”, ou de “elemento central, mais importante” do SN é
dispensável. Por essa razão evitarei dizer que todos está no masculino
plural “por causa” de amigos-, em outras palavras, não me dirigirei
à pergunta: “De onde parte o falante para estabelecer o gênero e
o núm ero de um SN?”; antes, considerarei a pergunta mais modesta,
e mais puramente sintática: “Que combinações de gêneros e núm e­
ros são aceitáveis dentro do SN?”.

3.2.4.3 A ná lise d a co n co rd â n cia n o m in a l


Para responder a esta última pergunta, não se faz necessário
postular uma “cabeça” para o SN, se nos restringimos (como aqui)
aos elementos superficialmente realizados. Podemos, ao contrário,
partir da seguinte consideração: nunca pode haver discordância de
gênero e núm ero dentro de um SN, ao nível de seus constituintes
imediatos. Assim, se em um SN masculino ocorrer um elemento
qualquer no feminino, este deverá necessariamente estar subordi­
nado a outro nódulo intermediário, não sendo um constituinte im e­
diato do SN. Por exemplo seja o sintagma
(30) todos os amigos de minha irmã
Aqui temos alguns termos no masculino e outros no feminino; mas
não estão todos no mesmo nível. Os termos masculinos se vinculam
diretamente ao SN, sendo constituintes imediatos dele; já m inha e
irm ã se subordinam a um sintagma preposicionado que, por sua
160

vez, se vincula ao SN. Esquematicamente, pode-se indicar assim as


relações de constituintes em (30):

minha irma

A nivel dos constituintes imediatos do SN, temos apenas termos “con­


cordantes” em género e número, ou então termos para os quais
a noção de género e número não se aplica diretamente (é o caso
do sintagma preposicionado de m inha irm a). Estes últimos são m or­
fologicamente inadequados a tomar marcas de gênero e número.
Sendo essa a situação em geral, não há inconveniente nenhum
em se dizer que o SN inteiro “está no masculino singular”. Isso
equivale a dizer que os traços sintáticos de gênero e núm ero valem
para o nódulo SN da estrutura (32):
(32)
SN
[— F e m in in o ]
[— Plural]

Agora, aquilo a que chamamos “concordância” se formulará em


termos de exigências de boa formação de SNs. Como formulação
preliminar^, podemos contentar-nos com a seguinte:
(3 3 )

C oncordância n om inal
Admitindo-se que o nódulo SN é marcado para género
e número, um SN só é bem formado se não houver discor­
dância quanto a esses traços entre o nódulo SN e seus
constituintes imediatos.

^ Insisto que a formulação é preliminar, porque há ainda aspectos pouco com preendidos
da estrutura interna do SN. Por exemplo, não há certeza de quais são realmente seus consti­
tuintes imediatos.
161

Coloquei a exigência de que “não haja discordância”, e não


de que “haja concordância”, por causa de constituintes como o sintag­
ma preposicionado, que não são marcados quanto a gênero e núm e­
ro. Assim, o que (33) proibe é a ocorrência de um constituinte ime­
diato marcado [ + Feminino], por exemplo, dentro de um SN marca­
do [ —Feminino]. Mas nada impede que haja constituintes sem marca
de gênero. Desse modo se descreve a possibilidade de ocorrência
de constituintes como d e m inh a irm ã em (30), ou n o deserto em
a vid a n o deserto tanto em SNs masculinos quanto em SNs femininos.
Esses elementos contêm SNs, que por sua vez são marcados quanto
a gênero e número; mas convencionamos que os traços do SN não
“passam” aos nódulos mais altos a que esse SN se subordina. Dessa
forma, embora m inh a irm ã seja feminino e singular e o deserto seja
masculino e singular, d e m inh a irm ã, assim como n o deserto, não
têm gênero nem número. O gênero e o núm ero são pois traços
próprios dos SNs e de seus constituintes imediatos.
Passemos agora aos constituintes que são marcados para gênero
e número; pode-se perguntar de onde vêm (sintaticamente falando)
essas marcas de gênero e número. Creio que, no atual estágio da
pesquisa, pode-se atribuir isso a certas idiossincrasias léxicas; essa
é uma opção ditada pela relativa ignorância em que estamos, e é
possivel que se encontrem generalizações, como apontarei. Por ora,
digamos que os itens que ocorrem como constituintes imediatos
do SN — os que podem ser PDet, Det, Poss e assim por diante
— se dividem em dois tipos. Alguns têm gênero fixo, como relógio,
que é invariavelmente masculino, ou águ a, que é sempre feminino;
outros podem variar em gênero, como o/a, todos/todas, a m a relo /a ­
m arela, ou ainda talvez am igo/am iga. Como se vê, não há correlação
simples com as classes de palavras; os “substantivos” ocorrem nos
dois grupos, e por isso optei por considerar esse fenômeno como
sendo de natureza léxica (idiossincrasias dos itens individuais).
Adiante apontarei possiveis problemas dessa posição.
O mesmo acontece, m u tatis m utandis, com o número: certos
itens só podem ser plurais {férias), outros não ocorrem no plural,
ou só muito raramente (o u ro ), e outros ainda ocorrem livremente
no singular ou no plural {relógio, o). Tudo isso, segundo nossa hipó­
tese, seria especificado no item léxico individual.
Como resultado da condição (33) (isto é, da “concordância no­
minal”), ocorre que um item como fé ria s só pode ser constituinte
imediato de um SN que seja marcado [ + Feminino] e [ + Plural];
reló g io só pode ser constituinte imediato de um SN que seja
[ - Feminino]; mas pode ser constituinte imediato de um SN [ - Plural]
ou [ + Plural] (pois relógio pode ficar no singular ou no plural).
162

E am a relo , o, todo, m en in o ou a m ig o podem ocorrer, em princípio,


em SNs com qualquer marca de gênero e de número.
Há um problema prático ligado a essa análise; como os traços
do SN não são diretamente observáveis, como verificar de fato se
um SN é bem formado ou não, do ponto de vista da concordância?
Isso se resolve através da aplicação de um corolário de (33), a saber,
(34)
C orolário d a co n co rd â n cia n o m in a l
Em um SN bem formado, os constituintes imediatos nun­
ca apresentam discordância de gênero ou de número.
Agora fica fácil apurar se um SN é ou não é bem formado segun­
do a condição (33). Se um SN é bem formado, todos os seus consti­
tuintes imediatos marcáveis quanto a gênero e núm ero terão marcas
idênticas; essas marcas são também as do SN.

3.2.4.4 Problemas e perspectivas


Conforme já disse anteriormente, essa análise inclui (em bora
não crucialmente) a hipótese de que o comportamento dos itens
quanto ao gênero e ao núm ero é idiossincrático em todos os casos.
Mas é muito possível que haja aí bom núm ero de generalizações
a captar, de m odo que a questão sairia em parte do domínio das
idiossincrasias léxicas. Assim, pode-se observar que certas classes
se colocam totalmente entre os itens que podem variar de gênero;
são as classes definidas pelas funções de PDet, Det, Poss e Qf (e
ainda possivelmente outras que não estudamos). Ao se saber que
determinado item é, digamos, um possessivo, não precisamos apurar
separadamente se ele varia em gênero e número, pois todos os itens
que podem funcionar como possessivos variam em gênero e nú­
mero.
O utro problema, esse mais espinhoso, é o de decidir se pares
de palavras como a m ig o la m ig a devem ser considerados variações
de um mesmo item léxico ou itens léxicos separados. Caso se decida
pela segunda alternativa, então poderem os dizer que os substantivos
sem pre têm gênero fixo (ver discussão, do ponto de vista morfoló­
gico, em Camara Junior, 1976). Mattoso Camara tende a aceitar a
prim eira posição, que coloca a m ig o e a m ig a como flexões da mesma
palavra; e essa posição está sendo adotada aqui, mas a bem dizer
sem convicção profunda. Trata-se de evitar uma questão difícil e
não essencial para fundamentar o ponto em discussão: qualquer que
seja a solução, o essencial da minha análise da concordância nominal
163

se mantém. O problema se imbrica na distinção entre flexão e deriva­


ção, e ainda na difícil questão da delimitação dos itens léxicos, isto
é, da homonímia versus polissemia.
Em resumo, a análise superficial não parece revelar claramente
urna oposição entre termos regidos e termo regente dentro do SN.
A análise que propus reflete isso. Por outro lado, a necessidade que
se coloca de especificiar quais são os termos que não se submetem
à condição de concordância expressa em (33) não representa uma
complicação da análise. Em uma análise na linha tradicional também
seria necessário especificar quais são os termos que não precisam
concordar; e seriam precisamente os mesmos. Assim, minha análise
equivale à tradicional (desde que esta se explicite devidamente),
com a vantagem de dispensar a noção de “cabeça” da construção.
Finalmente, gostaria de notar que a análise proposta, que atribui
os traços ao sintagma (ao nódulo SN), é a usual no nível da palavra.
Assim, nunca dizemos que, em irreconhecíveis, o elemento conhe-
cíveis está no plural, ou que reconhecíveis está no plural, e recebe
o prefixo ir--, atribuímos a categoria “plural” diretamente ao com­
plexo ir-reconhecíveis. Isso se estende mesmo a certas construções
compostas de mais de uma palavra, como ja c a r é fê m e a , que não
se concebe como uma montagem de um substantivo masculino + um
substantivo feminino, mas antes como uma construção, no seu con­
junto, masculina. Aqui generalizo essa solução para o nível do SN
— sem, evidentemente, querer dizer que não haja importantes dife­
renças de outros pontos de vista.

3.2.5 Pré-núcleo, núcleo e m odificador


Voltemos agora à tarefa de definir as funções sintáticas internas
ao SN. Já foram definidas quatro funções, a saber, o PDet, o Det,
o Poss e o Qf; vimos que as definições se exprimem em termos
da sua ordenação no SN máximo. Vimos igualmente que essas quatro
funções são desempenhadas cada uma por uma classe bem definida
de itens léxicos, o que facilita sua identificação. Agora vamos consi­
derar as funções restantes, bem mais problemáticas.
Essas funções são exemplificadas, no SN máximo (5), pelos itens
valentes, a m ig o s e alagoanos.
(5) todos os meus muitos valentes amigos alagoanos
Vou rotulá-las, desde já, para facilitar a discussão. Direi que valentes
é um “pré-núcleo” (PN); a m ig o s um “núcleo” (NSN); e a la g o a n o s
um “modificador” (Mod). Note-se que a nomenclatura “núcleo” não
164

significa que esse termo tenha um status particularmente relevante


dentro do SN, nem que seja de alguma forma essencial ou central:
isso já foi descartado acima, quando discutimos a noção de “cabeça”.
Uso o term o “núcleo” meramente para evitar o quanto possivel a
introdução de novas designações.

3.2.5.1. O p ro b lem a d a s classes abertas


Vejamos brevemente as razões pelas quais a definição dessas
irês funções é problemática. Em prim eiro lugar, elas são desem pe­
nhadas por classes abertas, isto é, classes formadas de um núm ero
de itens muito grande, em principio não limitado. A enumeração
dessas classes não se pode fazer na gramática, mas somente no dicio­
nário; além disso, o elenco de seus membros varia de falante para
felante, aumenta durante a vida de cada falante etc. Para avaliar a
diferença entre tais classes e as classes fechadas que caracterizam
3s quatro primeiras funções, basta pensar que passamos a vida toda
aprendendo (e esquecendo!) novos substantivos e adjetivos, mas não
novos artigos ou novos pronom es possessivos.
Em conseqüência, torna-se difícil caracterizar as funções realiza­
das por valentes, am igos e alagoanos através das classes que as de-
s^rnpenham. Além disso, surge o problema do grande núm ero de
iietis que, ao que parece, podem desempenhar qualquer uma dessas
irês funções. Por exemplo, verde parece ocorrer nas três funções:
(35) os verdes mares nordestinos
(36) o lindo verde Ú2l mata
(37) a linda mata verde
Isso faz com que seja delicado o problem a de utilizar as classes
Pnra identificar na prática as três funções.
Não obstante, não creio que se possa falar de uma só função,
repetida para os três itens. Isso porque, ao lado de itens como verde,
u no cabem nas três posições, há outros itens que se especializam
erei uma ou duas delas. Em (5) temos alagoano, que nunca pode
aparecer na prim eira dessas posições (a que verde ocupa em (35) ).
Urn caso ainda mais claro é o de mero, que só pode ocorrer na
PGrneira posição, aquela a que dei a designação de “pré-núcleo”:
(38) um m ero secretário
(39) * um secretário m ero
Poder-se-ia pensar que é secretário que não pode ocorrer como
PN o u NSN, mas apenas com o Mod, que é o elemento final do SN;
6 Ulríe p o r isso não apareceria antes de mero. No entanto, a presença
165

de m ero é necessária para que a segunda frase seja inaceitável; se em


vez de secretário colocarmos qualquer outro item, o resultado da pospo­
sição de m ero será sempre inaceitável. Já, se substituirmos m ero por
outro item, os resultados poderão ser diferentes dos de (38) e (39):
(40) um excelente secretário
(41) um secretário excelente
Isso mostra que a inaceitabilidade de (39) é causada pela impossi­
bilidade de pospor m ero. Exprimo esse fato dizendo que m ero é
um item excepcional na língua, pois só pode ocorrer como PN (o
único outro exemplo na língua é m eio, como em m eia m elan cia).
Existem também itens que só podem ocorrer como NSN; um
exemplo é provavelmente mesa. Vejamos como se podem utilizar
os resultados já obtidos para mostrar isso. Primeiro, sabemos que
m ero só pode ser PN; por outro lado, verde pode ser NSN, pois
(42) é bem formado:
(42) o verde (c o m o em o verde está n a m o d a )
Agora, o sintagma seguinte é aceitável:
(43) uma mera mesa verde
Já que verde pode ser NSN, se m esa pudesse ser Mod, deveria ser
possível permutar as posições dos dois itens em (43), porque verde,
de Mod, se tornaria NSN, e m esa passaria de NSN a Mod. Mas o
resultado não é aceitável:
(44) * uma mera verde mesa
A inaceitabilidade de (44) só se explica se admitirmos que m esa
não pode ser Mod. Como não é difícil mostrar que tampouco pode
ser PN, segue-se que só pode ser NSN.
Há, finalmente, formas que só podem ser Mod; notadamente,
as construções preposicionadas, que quando integram o SN só ocor­
rem nessa função. Pode-se testar essa afirmação tentando construir
um SN composto de, digamos, Det + NSN + Mod (isto é, um tipo
absolutamente vulgar de SN), colocando um sintagma preposicio­
nado antes de um item que pode ser o NSN ou o Mod. O resultado
é invariavelmente inaceitável:
(45) * um de confiança conhecido
Se con h ecido fosse NSN em (45), d e co n fia n ça seria PN; se
con h ecido fosse Mod, d e con fian ça seria NSN. Como (45) é inacei­
tável de qualquer maneira, concluímos que d e con fian ça não pode
ser nem PN nem Mod. Assim, deve ser sem pre Mod quando aparece
em um SN, como em
(46) um conhecido de confiança
166

Esse teste pode ser repetido, com resultados idênticos, com qual­
quer seqüência de preposição + SN Essa análise explica também por
que os sintagmas preposicionados tendem a ocorrer no final do SN.
Podemos então afirmar que certas formas (itens léxicos ou sin­
tagmas maiores) só podem desem penhar uma dessas três funções:
mero só pode ser PN, mesa (e muitos outros) só pode ser NSN,
e os sintagmas preposicionados só podem ser Mod. Conforme se
verá logo adiante, essas formas especializadas podem ser usadas como
auxiliares na depreensão das diversas funções dentro do SN. Os critérios
serão sempre algo precários, porque nosso conhecimento atual não
nos permite reduzir a estrutura do SN — em especial no que diz res­
peito às três últimas funções — nem mesmo ao relativo grau de clareza
obtido para a estrutura da oração simples (capitulo 2).

3.2.S.2 O p ro b lem a d a repetição d e fu n ç õ e s


Um segundo fator que vem complicar aidentificação dessas
três funções é o fato de que, ao que tudo indica,pelo menos duas
delas podem repetir-se dentro de um mesmo SN; o mesmo não
se dá com as quatro funções estudadas previamente, PDet, Det, Poss
e Qf, das quais só se admite um representante por SN. Reconhece-se
um caso de repetição porque é possivel perm utar livremente a posi­
ção dos dois termos repetidos. Por exemplo, temos
(47)
a. os meus valentes bons amigos
b. os meus bons valentes amigos
Como esses dois sintagmas se correspondem, pode-se dizer que há
ai uma permuta de ordem, e não propriam ente uma diferença de
estrutura sintática. Diremos que (47a) e (47b) contêm dois pré-nú-
cleos cada um.
A possibilidade de repetição parece valer também para o Mod,
a julgar pelos exemplos
(48)
a. um quadro a óleo de Inim á
b. um quadro de Inim á a óleo

’ É preciso apontar que há casos, raros, em que um sintagma preposicionado aparece com o
NSN. Trata-se, com toda probabilidade, de casos de lexicalização, ou seja, de expressões
idiomáticas tratadas com o itens léxicos unificados. Por exemplo;
(i) um sem-vergonha de talento
Aqui m uito provavelmente sem-vergonha é o NSN. Não posso incluir esses casos na m inha
argumentação, p o r falta de espaço e tempo.
167

(49)
a. o livro verde d e exercícios
b. o livro d e exercícios verde
É verdade que em certos casos a permuta resulta em certo grau
de inaceitabilidade, o que dá a entender que há outros fatores interfe­
rindo no processo. É o caso de
(50)
a. os meus p o b res bon s amigos
b. ? os meus bon s p o b res amigos
Tais casos só poderão ser estudados quando se descer ao detalha­
mento mais fino da sintaxe; nesta análise, que busca delinear as gran­
des linhas da estrutura da língua, terão de ser ignorados.

3.2.6 O SN n ã o -m á x im o
3.2.6.1 O p ro b lem a
Como vimos, é possível definir posicionalmente sete funções
dentro do SN máximo, a saber, PDet, Det, Poss, Qf, PN, NSN e Mod.
Cada uma delas ocupa uma posição característica dentro do SN, e
essa posição serve de guia para sua identificação. Agora precisamos
passar à consideração de um fato importante: o SN máximo não
é a única forma pela qual se realiza o SN — na verdade, SNs máximos
são extremamente raros (ver observação de Lemle, 1984, p. 97). O
que se encontra são SNs muito mais breves, como m eu s am ig o s
a la g o a n o s, m inha m ã e ou simplesmente eu. Como identificar as
funções nesses casos?
Note-se que, à prim eira vista, poderíamos chamar m inh a em
m inh a m ã e de PDet, p o r ocorrer em prim eiro lugar no SN. No entan­
to, como se verá, não adotarei esse tipo de análise.
Diante do problem a de analisar os SNs não-máximos, surgem
duas alternativas. A primeira seria aplicar as definições das funções
diretamente ao SN em estudo. Assim, se tivermos que analisar o
sintagma
(51) o bom cabrito
chamaríamos o de PDet, por ser o prim eiro term o do SN; analoga­
mente, b o m seria o Det e cabrito o Poss.
O problem a com essa análise, à parte o fato de ser radicalmente
contrária a toda a tradição, é que destrói uma generalização bastante
evidente, relativa às quatro funções PDet, Det, Poss e Qf e também.
168

com complicações, válida para as outras funções. Refiro-me à vincu­


lação de cada uma dessas funções a um conjunto bem definido de
itens léxicos (uma classe). Vimos acima que o PDet pode ser desem­
penhado pelos itens todos e ambos. Se essa vinculação for mantida,
poderem os fazer afirmações de interesse gramatical acerca desses
itens, afirmações essas que redundarão, em última análise, em uma
classificação desses itens em oposição aos demais itens da lingua.
Ou seja, tornar-se-á possivel descrever o comportamento gramatical
dos itens em termos das funções sintáticas que exercem. Note-se
que a formulação de generalizações relativas ao comportamento sin­
tático dos itens léxicos é um dos objetivos primordiais da análise
sintática.
Ora, a análise sugerida acima em conexão com o exemplo (51)
inviabiliza essa formulação. Teriamos de admitir que o PDet pode
ser desempenhado p o r itens como todos, os, meus, bom, cabrito
etc., pois qualquer um deles pode aparecer no inicio de um SN
(máximo ou não, segundo o caso). O relacionamento entre as fun­
ções e determinadas classes de itens fica irremediavelmente obscure­
cido, e as vantagens dessa observação para a análise se perdem. Por
essa razão, vou rejeitar a análise acima sugerida para (51).
A outra alternativa consiste em manter para todos os SNs a vincu­
lação classe/função válida para os SNs máximos. Desse modo, podere­
mos reconsiderar o sintagma (51), nos seguintes termos: o item o
só aparece no SN máximo como Det. Então postulamos que o só
pode ser Det, qualquer que seja a posição em que ele apareça no
SN não-máximo. Ou seja, as definições só se aplicam diretamente
no SN máximo; no SN não-máximo, elas se aplicam indiretamente,
através de um SN máximo “virtualmente presente”; e a indicação
principal de sua função se baseia na vinculação classe/função, postu­
lada como básica para a análise.
Assim se torna possivel analisar o como Det, bom como PN
e cabrito como NSN em (51), seguindo no essencial a análise tradicio­
nal. Estou tomando então o SN máximo como uma espécie de campo
privilegiado para a definição das funções. A partir do SN máximo
depreendo as correlações classe/função que fundamentam a análise,
na prática. A hipótese que está por trás desse procedimento é a se­
guinte: existe, em principio, uma correlação entre funções e classes
de formas; essa correlação se manifesta pela especialização de muitas
formas no desem penho de certas funções. Em certos casos (PDet,
Det, Poss, QO essa tendência chega a estabelecer relações biunivocas:
um conjunto de formas só pode desem penhar determinada função,
e esta só pode ser preenchida por aquele conjunto de formas. Em
169

outros casos, a relação é unidirecional: certas formas só podem de­


sempenhar uma função, mas esta também pode ser preenchida por
outras formas, que têm por sua vez outras funções possíveis. No
primeiro caso temos, por exemplo, todos e ambos, que só podem
ser PDet, enquanto que o PDet só pode ser preenchido por todos
e ambos-, exemplo do segundo caso é mero, que só pode ser PN,
embora outros itens possam ser PN e também Mod e/ou NSN (velho,
verde etc.)
Essa hipótese não pode ser demonstrada, e tem de ser aceita
como axioma; nisso não faço mais que explicitar um pressuposto
implícito da gramática tradicional, assim como das teorias estmtu-
ralistas e gerativas.
Embora seja a rigor um axioma, a hipótese acima é corroborada,
até certo ponto, pelo fato de que os termos do SN não-máximo,
uma vez depreendidos, revelam a mesma ordenação relativa que
se observa no SN máximo. Isto é, se um SN se compõe apenas de
Det, Poss e NSN, os termos ocorrem na ordem Det + Poss + NSN,
que é a mesma ordem que se encontra no SN máximo. Nunca encon­
tramos * Poss + Det + NSN, nem * NSN + Poss + Det etc. Tudo
se passa como se alguns term os do SN máximo não se realizassem
na superfície (não tivessem expressão léxica), sem no entanto terem
sua ordenação subvertida.

3.2.6.2 Identificação das funções no SN não-máximo


Para depreender as quatro funções iniciais, PDet, Det, Poss e
Qf, no SN não-máximo, partiremos do postulado de que podem
ser desempenhadas por uma classe diferente cada uma. Como são
classes pequenas, é possível enum erar seus membros na gramática;
e como são classes fechadas, não existe o perigo de que venham
a ser acrescentados novos membros a cada mom ento (não se criam
novos artigos com a facilidade com que se criam substantivos). Assim,
baseando-se no SN máximo, estabeleço a seguinte correlação:
Correlação classe/frinçáo para as quatro primeiras
funções do SN
Função Flementos que a desempenham
PDet todos, ambos
Det o, este, esse, aquele, algum, nenhum, um (que)
Poss meu, seu, nosso ..., outro, mesmo
Qf muitos, poucos, vários, único
170

As listas não estão necessariamente completas, mas não são longas,


de maneira que sua enumeração pode ser feita com facilidade.
Para as outras três funções, PN, NSN e Mod, sabemos que as
correlações não funcionam tão bem. Vimos que, por um lado, há
uma ocorrência muito grande de sobreposições (itens que podem
desempenhar mais de uma dessas funções), e também que essas
funções se podem repetir dentro do mesmo SN. Por outro lado,
há formas especializadas, como m ero (só PN), mesa (só NSN), prepo­
sição + SN (só Mod), que oferecem um ponto de apoio para a de­
preensão das funções.
De qualquer forma, não tenho dúvidas de que as três funções
são necessárias. Em um exemplo como
(52) um mero rapaz de treze anos
nenhuma permuta é possivel entre os três elementos m ero, rapaz
e de treze anos. Isso é indicação de que se trata de três funções
distintas; note-se que não se consegue m ontar uma seqüência de
mais de três elem entos (após a seqüência das quatro prim eiras
funções) sem que haja a possibilidade de perm uta. Por exem plo,
temos
(53) um m ero rapaz de treze anos enfermo
e também podem os ter
(54) um m ero rapaz enfermo de treze anos
Há correspondência entre (53) e (54), o que significa que de treze
anos + enferm o (ou o inverso) deve ser uma repetição da mesma
função, e não duas funções diferentes. Analiso portanto o sintagma
(52) do seguinte modo;
(55)
um m ero rapaz de treze anos
Det PN NSN Mod
Fica assim estabelecido que as três funções, PN, NSN e Mod,
no que pese o seu grau de sobreposição, são independentemente
necessárias.
Como não possuimos um critério realmente seguro de identifi­
cação dessas funções, torna-se indispensável argumentar caso por
caso. Uma vez levantado um núm ero grande de exemplos analisados,
será provavelmente mais fácil encontrar critérios adicionais que faci­
litem a tarefa. No que se segue, vou examinar alguns poucos casos
especialmente problemáticos, procurando analisá-los de acordo com
os principios expostos até o momento.
171

3.2.6.3 Um velho
O primeiro caso é o do sintagma
(56) um velho
Como velho é um dos itens que podem ocorrer em qualquer das
três funções {velha canção-, um velho de 75 anos-, uma canção ve­
lha), coloca-se o problema de determinar que função velho está exer­
cendo em (56). Vou tentar solucioná-lo mostrando que apenas o
NSN é que pode ocorrer logo após um Det, formando com ele um
SN. Daí, conclui-se que velho é um NSN em (56).
Observa-se que os elementos (itens léxicos ou sintagmas maio­
res) que só podem ser PN ou que só podem ser Mod não ocorrem
no ambiente descrito. Já vimos que mero, com toda probabilidade,
só pode ser PN (ver os exemplos (38) e (39), com a argumentação
respectiva). Ora, mero, que só pode ser PN, nunca ocorre logo após
um Det, formando com ele um SN:
o
(57) um m ero vai ser despedido
esse I
Vejamos agora se uma forma especializada na função de Mod
pode ocorrer nesse ambiente. O melhor é fazer o teste com um
sintagma preposicionado, que conforme vimos só ocorre no SN co­
mo modificador. Verifica-se facilmente que tampouco os sintagmas
preposicionados ocorrem no ambiente em questão:
(58) * um de confiança
Interpreto esses fatos como significando que apenas o NSN pode
ocorrer logo após o Det, sozinho com ele no SN.
Acabamos de ver que, em dois casos distintos, o do PN e o
do Mod, elementos que não podem ser NSN também não ocorrem

■*Neste caso, assim como em vários outros que surgirão adiante, refiro-me à aceitabilidade
ou inaceitabilidade do SN em simação não-anafórica. A situação de anáfora, como se sabe,
acarreta reduções (supressões), e p ode resultar na ocorrência de seqüências que, em outras
situações, seriam inaceitáveis. Assim, em bora (58) seja inaceitável, poderia ocorrer por exem ­
plo em
(i) tenho vários em pregados, mas só um de confiança
Pretendo analisar tais casos segundo a linha proposta em m eu livro anterior (Perini,
1985), isto é, adm itindo a existência de um SN “vazio” em (i):
(ii) tenho vários em pregados, mas só um 0 d e confiança
A ocorrência d e tais elem entos vazios, naturalmente, deverá ser estritam ente controlada;
ver Perini, 1985a, p. 60-70, para um a discussão do problema.
172

no ambiente “logo após o Det, formando com ele um SN”. Concluo


que, se um elemento ocorre naquele ambiente, então deve ser NSN.
Fica assim solucionado o problem a da análise de velho em (56):
como ve/ho está ai após um Det, e os dois elementos formam um
SN, então velho só pode ser o NSN.

S.2.6.4 O im p era d o r m e n in o
Vejamos agora como se deve analisar o sintagma
(59) o im perador menino
A seqüência im perador + m enino pode ter, em principio, seis
análises, a saber:
(a) NSN + NSN
(b) PN + PN
(c) PN + Mod
(d) PN + NSN
(e) NSN + Mod
( f) Mod + Mod
Algumas dessas possibilidades podem ser excluidas, a partir da
observação do fato de que, em bora um SN não precise ter NSN
(pode ser composto apenas de PDet, ou de Qf, como vimos), não
pode ocorrer PN nem Mod se não houver NSN. Pode-se concluir
isso porque os elementos que só admitem a função de PN ou a
de Mod nunca aparecem no SN a não ser acompanhados de algum
term o que possa funcionar como NSN. Por exemplo, com m ero ou
m eio (que só podem ser PN), temos:
(60) * os meros
(61) * todos os meros
(62) * alguns meros
(63) * um m ero de treze anos
Igualmente não ocorrem sintagmas preposicionados (que só
podem ser Mod) sem um outro elemento que possa ser NSN:
(64) * o de treze anos
Como se vê, há evidências de que o PN e o Mod jamais ocorrem
sem NSN. Ficamos assim autorizados a suprimir as alternativas (b),
(c) e (f) da lista das prováveis análises de (59); essas alternativas
simplesmente não são permitidas em português.
Das alternativas restantes, parece que ainda (d), ou seja, PN +
NSN, deve ser abandonada, pelo seguinte: em bora haja casos de
173

repetição de PN (ver o exemplo (47) ), essa repetição nunca se dá


se um dos elementos for o item mero-, temos u m bom valente am igo,
mas nunca algo como * um m ero p o b re trocador ou * u m p obre m ero
trocador. Em uma palavra, a repetição do PN não é livre; certos itens,
notadamente mero, a impedem (talvez haja outros exemplos); é como
se mero, quando ocorresse, tivesse a exclusividade da posição de PN.
Agora, im perador m en ino pode ser precedido de m ero, como em
(65) um m ero im perador menino
Se im p era d o r fosse um PN aí, teríamos repetição do PN; mas como
sabemos que isso não se dá na presença de m ero, temos de concluir
que im p era d o r em (59) não é PN, o que exclui a alternativa (d).
Portanto, a seqüência im p era d o r + m en in o em (59) será constituída
ou de NSN + Mod (alternativa (e) ), ou então de NSN repetido (alter­
nativa ( a ) ).
A decisão entre essas duas análises não é realmente segura, por­
que ainda se sabe pouco sobre o comportamento dos termos inter­
nos do SN. Vou procurar defender a idéia de que o NSN não pode
ser repetido dentro do SN; nesse caso, a análise da seqüência será
NSN -F Mod, ou seja, a alternativa (e).
Tomemos como exemplo uma palavra como sobrinho, que p ro ­
vavelmente só pode ser NSN, nunca Mod nem PN. Esse item, como
outros semelhantes, não pode ocorrer no SN logo após um item
que pode ser NSN. Por exemplo, sobrinho não ocorre após cam pon ês
(que pode ser NSN):
(66) * um camponês sobrinho
Essa inaceitabilidade, primeiro, confirma que sobrinho não po­
de ser Mod. Se pudesse, (66) teria a análise [Det + NSN -F Mod],
e deveria ser aceitável, pois não há proibição de tal seqüência como
estruturação de um SN. Logo, sobrinho não pode ser Mod.
Por outro lado, se o NSN pudesse ser repetido, (66) também
deveria ser aceitável, pois se trataria de uma seqüência [Det +
NSN + NSN]; e, como sabemos, tanto sobrinh o quanto cam pon ês
podem ser NSN. Como (66) não é bem formado, somos forçados
a concluir que o NSN não pode ser repetido dentro de um SN.
A possibilidade restante, que também explicaria a inaceitabi­
lidade de (66) sem recorrer à proibição de repetir o NSN, seria
a de se encontrar alguma incompatibilidade semântica que impedisse
a ocorrência desse sintagma. Não creio que essa seja a resposta, porque,
em primeiro lugar, não vejo problemas semânticos na justaposição de
cam ponês com sobrinho, o que fica ilustrado pela possibilidade de
(67) um sobrinho camponês
171

e, (epois, porque o teste que fizem os utilizando sobrinho p od e ser


reipiicado, com resultado sem elhante, com qualquer item especia-
lizy o na fúnção d e NSN.
Já que o NSN não p o d e ser repetido, fica excluida a alternativa
(^);por conseguinte, a análise d e (59) é a seguinte:
(68)
o imperador menino
Det NSN Mod
A solução que acabo de propor para a análise de (59) vale para
muitQs outros casos, nos quais a gramática tradicional vê geralmente
um “substantivo usado adjetivamente”; para Martinet, 1979, há ai
“transferência” de um substantivo para a ftinção de adjetivo. Natural­
mente, nenhum a dessas análises é aceitável dentro do contexto deste
mabiiho (ver a seção 1.7.1, para uma discussão do problema). Exem-
plos são: homem macaco, concentração monstro, fazenda piloto
(grafados ora com hifen, ora sem hifen). A análise dessas seqüências
é W^ntica à de imperador menino, pelas mesmas razões.
Não distingo esses casos, no que diz respeito às funções sintáti­
cas, tie seqüências como concentração gigantesca,fazenda prócera
c bcmem arrogante, onde se prefere ver um substantivo seguido
de atijetivo. Há diferenças, evidentemente, entre os dois grupos; mas
estan não precisam necessariamente refletir-se nas funções sintáticas.
Por çxemplo, monstro e gigantesca diferem em que só gigantesca
podç sofrer concordância; essas duas palavras pertencem a classes
diferentes (isto é, têm traços sintáticos diferentes), e seu compor-
tamçnj-o sintático global é distinto. No entanto, podem ter seme-
Ihanijas, e uma delas é a possibilidade que ambas têm de funcionarem
comt) modificadores.

3-2.^.5 Velho p a lh a ç o

(jm caso diferente é ilustrado por


(69) um velho palhaço
cuja Ambigüidade ( “velho que é palhaço”, “palhaço que é velho”)
já é Proverbial. Neste caso, parece-me que a ambigüidade provém
de uriia dualidade de estruturas sintáticas; ou seja, temos em (69)
na ve^riade não apenas um SN, mas dois SNs homônimos.
hara analisar (69), podem os desde já excluir várias das alterna­
tivas levantadas para (59); sabemos que quatro são impossiveis em
português, e não precisam ser consideradas. Restam apenas duas.
175

a saber, PN + NSN e NSN + Mod. Vimos que (59) exemplifica a


segunda delas; já com (69), há razões para acreditar que ambas são
possíveis, isto é, (69) é a representação gráfica única de duas estru­
turas sintáticas. Observarei que essa situação em nada contradiz mi­
nha opção por uma análise superficial. “Superficial” não quer dizer
“graficamente realizado”. Por exemplo, a organização em constituin­
tes, que não tem representação fonológica ou gráfica, é um compo­
nente legítimo da estrutura superficial. No caso de (69), a seqüência
velho + palhaço pode ser a realização de duas combinações distintas
de funções sintáticas dentro do SN.
Essa é uma situação algo nova, embora não contradiga necessa­
riamente nossos pressupostos. De qualquer modo, é importante
mostrar que essa é a melhor'análise para (69) — mais, é importante
mostrar que tais dualidades estruturais ocultas por identidades gráfi­
co-fonológicas são realm ente possíveis na língua. Utilizando o
exem plo (69), vou procurar m ostrar adiante a conveniência de
tal análise.
Vejamos, primeiramente, algumas propriedades formais das
construções PN + NSN + Mod. Veremos que cada uma tem um com­
portamento sintático particular.
São propriedades exclusivas da construção NSN + Mod as se­
guintes; primeiro, a ocorrência logo após o item mero. Assim, tom an­
do a seqüência mesa velha, que só pode ser NSN + Mod (porque
mesa só pode ser NSN), é possível formar
(70) uma mera mesa velha
Já mero não poderia aparecer antes de PN + NSN em virtude da
proibição, já vista, de repetição do PN na presença desse item.
Depois, a admissão de um elemento parentético entre os dois
termos. Por exemplo, se temos
(71) mesa velha
também temos
(72) uma mesa, por assim dizer, velha
onde o parentético p o r assim dizer ocorre entre o NSN e o Mod.
Com a seqüência PN -t- NSN, os parentéticos ficam excluídos:
(73) * uma velha, por assim dizer, mesa
Por outro lado, uma propriedade exclusiva da construção PN +
NSN é a coordenação do prim eiro termo a outro de mesma função,
sem efeito na concordância nominal. Note-se que a coordenação
de dois PNs é marcada p o r conjunção (em geral e), e não se confunde
176

com a repetição da função, que como sabemos é impossível no caso


do PN. Assim, podemos ter
(74) urna velha e carcomida m esa/u rn a carcomida e velha
mesa
(75) um m ero e simples secretário / um simples e m ero secre­
tário
Não há efeito na concordância, o que se evidencia pela manutenção
do singular e pela ocorrência de urna como Det. Já com a construção
-f- Mod a coordenação do prim eiro term o só se dá à custa de
Adaptações na concordância;
(76) * uma mesa e cadeira velha
(77) mesa e cadeira velhas
^ concordância fica satisfeita com a supressão de um a e o acréscimo
da marca de plural em velha (o Mod).
Dessa forma, as duas construções em pauta se caracterizam por
Citas propriedades formais, entre as quais as três vistas, a saber;
(a) ocorrência após m ero (somente NSN + Mod);
(b) elemento parentético (somente NSN + Mod);
(c) coordenação do prim eiro termo, sem concordância (so­
mente PN + NSN).
Essas propriedades se distribuem regularmente, de maneira que
^^dem ser utilizadas como critérios heurísticos de identificação das
^ üções. Mas o sintagma um velho palhaço tem um comportamento
primeira vista desconcertante, porque apresenta as três proprie­
dades, como se verifica por:
(78) um m ero velho palhaço
(79) um velho, por assim dizer, palhaço
(80) um velho e cansado palhaço
(78) e (79) parecem mostrar que o sintagma contém NSN +
dd; mas (80) parece mostrar que contém, ao contrário, PN + NSN.
. A solução que proponho para essa situação é a que adiantei
verdade o sintagma (69) é a representação visível (ou audí-
) única de dois sintagmas homônimos, mas de estrutura distinta.
(7Qt ^ formado de Det + NSN + Mod, o que explica (78) e
^ ); o outro é formado de Det + PN + NSN, o que explica (80).
êom portam ento aparentemente anômalo de (69) se torna perfeita-
úte regular no momento em que o dissociamos em dois sintag-
sendo um deles paralelo sintaticamente a um a mesa velha, o
a u m a velha mesa. Desse modo, reduzimos aquilo que a gramá-
177
tica tradicional denomina “uso substantivo” ao fato de um item ser
NSN; quando o item é Mod, corresponde ao que a gramática tradicio­
nal chama de “uso adjetivo”.
A interpretação semântica fornece algum apoio, em bora circuns­
tancial, à análise acima proposta. Já lembrei no parágrafo anterior
a ambigüidade semântica de (69); essa ambigüidade pode ser posta
em correlação com a dualidade estrutural que verificamos em relação
a esse sintagma. Poderemos dizer, então, que a estrutura Det -F PN +
NSN corresponde à interpretação “palhaço que é velho”, e a estru­
tura Det + NSN -F Mod à interpretação “velho que é palhaço”.
É verdade que a existência de uma ambigüidade não é em si
evidência de dualidade sintática. Não há düvida de que a ambigüidade
é fenômeno complexo, e pode originar-se de diversos fatores, como
da semântica dos itens léxicos individuais, ou mesmo do nosso co­
nhecimento geral do mundo. Mas uma das fontes de ambigüidade
deve ser a homonímia, ou seja, a multiplicidade de estruturas sintá­
ticas realizadas por seqüências gráfico-fonológicas idênticas. É esse
o caso com a ambigüidade de (69). O que me leva a pensar assim
é a distribuição das interpretações possíveis de velho em (69) e em
outros exemplos da língua. Esse item pode significar, quando aplica­
do a uma pessoa, que ela é de idade avançada; mas, quando associado
a uma ocupação ou coisa semelhante, pode significar simplesmente
que a pessoa tem essa ocupação ou característica há muito tempo,
sem que seja propriamente idosa. Essa é a interpretação mais ime­
diata de
(81) velho companheiro
Mesmo em
(82) companheiro velho
essa interpretação é possível, embora não me pareça a mais imediata.
A interpretação em questão pode ocorrer quando velho é PN ou,
menos facilmente, quando é Mod. Mas nunca pode ocorrer quando
velho é NSN; por isso, um sintagma como
(56) um velho
só se entende como referindo-se a uma pessoa idosa. O mesmo
vale para
(83) um velho de terno cinza
e assim por diante.
Ora, as duas interpretações de (69) se harmonizam com a análise
que propus para sua estrutura sintática. No sentido de “palhaço que
é velho”, pode-se entender não apenas que se trata de um palhaço
178

idoso, mas também que se trata de alguém que já é palhaço há muito


tempo:
(84) apesar de seus 25 anos, ele já é um velho palhaço
Por outro lado, na acepção “velho que é palhaço”, só se pode enten­
der que se trata de urna pessoa idosa que se comporta como um
palhaço.
Como se vê, os fatos semánticos citados apóiam a hipótese de
que em (69) temos duas estruturas; uma delas, Det + PN + NSN,
tem velho como PN, o que explica a possibilidade de interpretação
como “palhaço há muito tem po”; a outra, Det + NSN + Mod, tem
velho como NSN, e a única interpretação possivel é a de “idoso que
se comporta como um palhaço”.

3.2.G.6 Sumário: Pistas disponíveis


Recapitulando, nosso problem a principal no que se refere á
análise do SN reside na identificação do PN, do NSN e do Mod,
em especial em NSN nao-máximos. Para auxiliar-nos nessa tarefa,
propus acima algumas pistas; certamente é possivel, e desejável, am­
pliar a lista, para melhorar as condições de segurança na identificação
dessas três funções. Por ora, vou concluir esta seção sumariando
as pistas disponiveis no momento.
Primeiro, temos itens léxicos e formas maiores especializadas
no preenchim ento de urna única função. Para o PN, temos mero
e m eio, e apenas esses; para o NSN, temos muitos itens, como mesa
e sobrinho-, para o Mod, temos as construções compostas de preposi­
ção + SN, a que dou a designação informal de “sintagmas preposi­
cionados”.
Em segundo lugar, há alguns fatos relacionados com o compor­
tamento algo peculiar do NSN:
(a) apenas o NSN pode ocorrer logo após um Det, formando
com ele um SN;
(b) não pode ocorrer PN nem Mod se não ocorrer igualmente
um NSN;
(c) o NSN não pode ser repetido no mesmo SN (relembro
que coordenação não é o mesmo que repetição);
(d) a coordenação de mais de um NSN tem efeitos na concor­
dância nominal, obrigando por exemplo o Mod a colo-
car-se no plural, e impedindo a ocorrência do determi­
nante um-, a coordenação do PN ou do Mod não tem esses
efeitos.
179

Finalmente, temos a distribuição dos elementos parentéticos,


que podem colocar-se entre o NSN e o Mod, mas nunca entre o
PN e o NSN.
Utilizando as observações acima listadas como pistas, torna-se
possível dirimir, em muitos casos, as dúvidas de análise advindas
do caráter relativamente fluido das funções de PN, NSN e Mod.

3.2.7 Casos problem áticos


Evidentemente, o que não falta são problemas. Vou agora sele­
cionar três casos problemáticos e discuti-los brevemente. São eles:
a distinção entre “adjunto adnominal” e “complemento nominal”,
tradicionalmente feita pelos gramáticos; a função tipicamente desem­
penhada pelos itens chamados “numerais”; e a análise do aposto.

3.2.7.1 O “complemento n om in al”


A gramática tradicional distingue duas funções superficialmente
muito semelhantes, o “complemento nominal” e o “adjunto adnomi­
nal”. Este último seria um conjunto de funções, segundo minha aná­
lise: analisam-se tradicionalmente como adjuntos adnominais casos
de PDet, Det, Poss, Qf, PN e Mod. Ocupo-me aqui dos casos em
que o adjunto adnominal corresponde ao Mod; e a questão que
coloco é a de se os casos tradicionais de complemento nominal
devem distinguir-se dos de adjunto adnominal, ou se, ao contrário,
seria m elhor ajuntá-los sob o mesmo rótulo de “modificador”.
Como observei, o complemento nominal e o adjunto adnominal
são à primeira vista muito semelhantes:
(85) a discussão do problem a (complemento nominal)
(86) a dificuldade do problem a (adjunto adnominal)
Vejamos as razões alegadas para distinguir essas funções. A pri­
meira diferença apontada é que o complemento nominal seria “exigi­
d o ” por algum outro elemento do sintagma (no caso de (85), pelo
nom e discussão), ao passo que o adjunto adnominal não seria exigido
por nenhum outro termo. Esse critério é de difícil aplicação, dadas
as dificuldades que cercam a determinação das “exigências” de um
term o por outro. Mas, além disso, não poderia ser utilizado para
distinguir duas funções, pelos motivos vistos na seção 2.9.2. Isto é,
pode ser que, a se distinguirem essas duas funções, uma deva ser
considerada como tipicamente “exigida”, e a outra não; mas essa
180

distinção, por si só, não é critério suficiente para definir as duas


funções. Remeto à seção 2.9.2 para uma discussão do assunto.
Outra diferença utilizada para distinguir o adjunto adnominal
do complemento nominal é que o adjunto adnominal poderia ser
substituido por um adjetivo cognato (e presumivelmente sinônimo),
o que não se daria com o complemento nominal. Por exemplo, esse
critério revelaria como adjuntos adnominais os casos seguintes:
(87) amor de m ãe (m aterno)
(88) decisão do presidente (presidencial)
(89) revestimento de pedra (pétreo)
E verdade que os termos tradicionalmente analisados como
complemento nominal quase nunca admitem um adjetivo (quase)
sinónimo; mas há urnas poucas exceções. Por exemplo, parece-me
que na m ãe em (90) seria analisado como complemento nominal,
e no entanto corresponde semanticamente a materna-,
(90) fixação n a m ãe (m aterna)
Como tais casos são efetivamente raros, é possivel que a distinção
tradicional esteja captando algo da estrutura da lingua — algo relacio­
nado, possivelmente, com a semântica dos adjetivos. Mas como crité­
rio de diferenciação de funções isso é pouco útil: primeiro, porque
não é seguro que se trate de um fenómeno sintático; e, depois, por­
que há muitas exceções do outro lado, ou seja, adjuntos adnominais
que não se correlacionam com adjetivo nenhum de significado próxi­
mo. Se se fosse adotar esse critério, ele só serviria (limitadamente)
como indicação negativa da presença de um complemento nominal:
havendo um adjetivo sinónimo, tratar-se-ia de adjunto adnominal.
Mas se não houvesse um adjetivo sinónimo, nada poderia ser afirma­
do a respeito. A possibilidade de substituição por um adjetivo não
depende de correspondência sintática, mas de idiossincrasias do lé­
xico.
Como se vê, não se deve excluir a possibilidade de que a distin­
ção em exame reflita algum traço da estrumra da lingua; mas como
não m e parece que seja um traço importante da sintaxe superficial,
vou desprezar essa distinção, para efeitos da presente análise. Os
termos em questão ocorrem sem pre na sétima posição no SN máxi­
mo, e serão por conseguinte analisados como modificadores. Temos
Mods em todos os exemplos de (85) a (90), assim como em casos
clássicos de complementos nominais como estes:
(91) referência a esse film e
(92) minha crença em você
(93) o medo da guerra
181

Aponta-se freqüentemente um paralelismo entre construções


de núcleo verbal, nominal, adjetival e adverbial, como se verifica
em
(94) referir-se ao film e
(95) referência ao film e
(96) referente ao film e
(97) relativamente ao film e
Gama Kuiy dá exemplos semelhantes a esses, e observa:
“ [...] o co m p le m e n to n o m in a l está para o n o m e assim c o m o o o b je to
(o u o c o m p le m e n to a d v e rb ia l) está para o v e rb o ” .
[K u ry , 1985, p. 53.]

O paralelismo existe, e é interessante. Mas é preciso apurar


com cuidado onde é que ele se sima, e qual será a m elhor maneira
de expressá-lo em uma gramática. Não há necessidade de se consi­
derar ao film e como tendo a mesma função (superficial) nos quatro
casos. A gramática tradicional mesma não o faz, pois para ela ao
film e é objeto indireto em (94) e complemento nominal nos outros
três exemplos. Na verdade, o paralelismo observado não nos impede
de ver aí quatro funções diferentes, ou três, ou duas.
No plano semântico, o paralelismo é inegável: nos quatro exem ­
plos é a mesma a relação semântica entre os dois termos principais,
e pode ser descrita como “o assunto” da referência em questão.
Desse modo, o componente semântico deverá estar envolvido na
formulação desse fenômeno, e a afirmação de Gama Kury poderá
ser tomada como correta se se entender que se refere a uma relação
semântica: a função semântica (papel temático) de a o film e é a mesma
nos quatro exemplos. Isso pode correlacionar-se com uma identi­
dade de funções sintáticas, mas não necessariamente; não é preciso
repetir que o relacionamento entre o aspecto formal e o aspecto
semântico não tem nada de simples.
No âmbito desta análise, mantenho que não se deve identificar
a análise do complemento nos quatro exemplos de (94) a (97); tal
é a situação como a vejo no momento, no que se refere a uma análise
superficial. É bom observar que entre esses exemplos pode muito
bem haver conexões sintáticas não-superficiais, como as que se tenta
captar na “teoria X-barra” dos gerativistas atuais. Quanto a isso minha
análise é neutra; e, como já afirmei anteriormente, minha tendência
é crer que tais níveis não-superficiais são necessários para uma descri­
ção completa da língua. Portanto, há a possibilidade de que se deva
incluir na sintaxe algo do paralelismo acima mencionado por Gama
Kury; conforme deixei claro na seção 1.5, minha opção pela descrição
182

superficial não implica negar a relevância de outros niveis estrita­


mente sintáticos de análise. Mas neste trabalho procuro elaborar urna
descrição muito próxima da superficie, pelas razões dadas e defen­
didas naquela seção.

3.2.7.2 Os numerais

A julgar pela maioria dos exemplos, os numerais seriam sempre


quantificadores, como em
(98) três meros secretários
(99) * meros três secretários
(100) meus três irmãos
(101) * três meus irmãos
O par (98)-(99) mostra que o numeral deve aparecer antes do PN;
o par (lOO)-(lOl) mostra que deve aparecer depois do Poss. Tudo
aponta, pois, para uma análise como Q f
O problem a é que às vezes a permuta do numeral com o PN
não dá resultados totalmente inaceitáveis; assim, temos
(102) meus oito valentes amigos
(103) ? meus valentes oito amigos
Parece-me que a inaceitabilidade de (103) é nitidamente mais leve
do que a de (99) ou (101). Esse fato lança alguma dúvida sobre
o status de Qf que o numeral sempre teria. Aqui, limito-me a apontar
essa dificuldade, sugerindo que o assunto seja estudado com mais
cuidado; e, por ora, admitirei que os numerais têm a função de Q f
Aparentemente, os numerais ordinais se comportam de maneira
análoga à dos cardinais, razão pela qual serão igualmente analisados
como Q f A seqúência de cardinal + ordinal sem pre admite permuta,
e portanto deve ser considerada uma repetição da função de Qf,
não uma seqúência de duas funções distintas:
(104) os três primeiros colocados
(105) os primeiros três colocados

3.2.7.3 O aposto

O term o tradicionalmente denominado “aposto” é às vezes con­


siderado parte do SN, ou pelo menos como estando ligado ao SN
através de restrições de colocação. Assim, o aposto normalmente
183

não pode ocorrer separado do SN, nem inserido entre seus consti­
tuintes. Um exemplo seria
(106) Simone, irmã do Carlinhos, ganhou um carro novo
No entanto, preferi não incluir o aposto como mais um term o
interno do SN, pelas razões dadas abaixo.
Em primeiro lugar, observa-se que o aposto tem uma estrutura
interna muito semelhante à do prõprio SN. Assim, temos:
(107) Simone, irmã do Carlinhos, ...
(108) Simone, amiga,...
(109) os livros, todos,...
Embora não se possa falar de identidade total, a maioria das restrições
válidas para a estruturação do SN vale também para os elementos
do aposto. Assim, nem o SN nem o aposto podem ser compostos
de o, ou de meu etc. Em alguns casos parece haver algum desvio;
por exemplo, irmã do Carlinhos, aposto em (106), dificilmente ocor­
reria como SN. Mas creio que se pode falar de alto grau de parale­
lismo. É como se se tratasse mais de um caso de repetição de SN
do que propriamente de um term o independente.
Essa idéia fica reforçada quando verificamos que o aposto, ou
alguma coisa m uito sem elhante a ele, aparece também ligado a
elem entos outros que o SN, e ainda aí o paralelism o estrutural
se verifica:
(110) mandei um cartão ao Zé, ao meu velho companheiro
de lutas
(111) os deputados andam dando, oferecendo de graça, em­
pregos na Assembléia
Em (110) temos um sintagma preposicionado, em função de
atributo {ao Zé); em (111) um sintagma verbal, ou parte dele {dan­
do). Nos dois casos, o aposto pertence à mesma classe. Se tais casos
são realmente exemplos de aposto, então o fenômeno transcende
a análise de SN; e temos mais uma razão para crer que se trata de
uma repetição de função.
Por essas razões não incluo o aposto entre os termos do SN.
A questão requer mais estudo; p o r ora, sugiro que pode tratar-se
de um mecanismo de nível mais alto (digamos, de nível oracional),
mecanismo esse que permite repetir certos constituintes imediata­
mente apôs os constituintes primitivos. A repetição é apenas sintática,
ou seja, o preenchimento léxico não precisa ser idêntico, embora
possa sê-lo, como em
(112) minha vizinha é linda, linda
184

Em casos de preenchimento idêntico, como é óbvio, o aposto não


pode ter nenhuma função informacional; usa-se para reforçar, enfa­
tizar etc.
Esse tipo de repetição deve distinguir-se do mecanismo, qualquer
que seja ele, que permite repetir funções em casos como o de
(48)
a. um quadro a óleo de Inim á
b. um quadro de Inim á a óleo
Em (48), temos a repetição do modificador, mas cada ocorrência
se acrescenta sem necessidade de virgula, e cada uma tem sua semân­
tica própria, independente. Em (106) a (112), há, primeiro, a exigên­
cia de virgula; depois, o material do aposto e o do elemento primitivo,
em bora em geral de sentido diferente, têm sem pre referência idên­
tica. Este último tipo de repetição é reminiscente de certos fenôme­
nos encontrados ao nivel do discurso, estudados por Persson, 1974,
e, para o português falado, por Ramos, 1983.

3.2.8 O que sabem os d a estrutura d o SN

Muitos problemas permanecem sem solução, e aqui não é possi­


vel discuti-los todos. Vou apenas, à guisa de sumário, relem brar os
pontos principais estabelecidos nas páginas precedentes a respeito
da estrutura do SN.
Minha análise propõe que o SN com preende no máximo sete
íunções, definidas por sua posição seqúencial no SN máximo. São
elas:

Definição
Função
(lugar no SN máximo)
P redeterm inante (P D et) 1? o u ú ltim o
D e te rm in a n te (D e t) 2?
Possessivo (Poss) 3?
Q u a n tific a d o r (Q f) 4'.’
P ré-núcleo (PN) 5?
N úcle o (N SN) 6?
M o d ific a d o r (M o d ) 7"

Sabemos, ademais, que há algumas possibilidades bem delimi­


tadas de transposição posicionai de alguns desses termos, que não
se incluem no quadro porque não foram suficientemente estudadas.
185

Os casos de transposição se distinguem dos casos de funções dife­


rentes porque quando há transposição as duas versões resultantes
se correspondem.
Além disso, algumas dessas funções podem ser representadas
mais de uma vez no mesmo SN. Termos de mesma função repetidos
se distinguem de seqüências de termos de funções diferentes porque
no prim eiro caso é possível permutá-los livremente de posição.
Outro ponto de certa importância é a decisão a que chegamos
de não considerar nenhum dos termos do SN como sua “cabeça”.
Embora essa decisão possa ter de ser revertida futuramente, pois
a noção de “cabeça” não parece ser de todo sem fundamento, a
evidência examinada na seção 3-2.4 sugere que por ora é melhor
deixá-la de lado.
Observamos, ademais, a existência de uma vinculação entre cer­
tas funções e certas classes de formas, evidente mesmo apesar de
as classes não estarem ainda formalmente definidas. Em certos casos,
trata-se de uma vinculação biunívoca entre uma função e um peque­
no conjunto fechado de formas. Por exemplo todos e ambos, e apenas
eles, podem ser PDet. Em outros casos, a situação se complica, por­
que a vinculação não é biunívoca: assim, valente pode ser PN, mas
também pode ser NSN ou Mod. E, além disso, nesses casos as classes
são extensas e abertas quanto ao núm ero e identidade de seus m em­
bros. De qualquer forma, ainda assim a vinculação é útil: ela nos
diz coisas definidas, como que valente não pode ser PDet, nem Qf
etc. Certos itens, não obstante, parecem ser especializados, como
mero, que sõ pode ser PN; mesa, que sõ pode ser NSN; de confiança,
e as construções com preposição em geral, que sõ podem ser Mod.
A vinculação biunívoca, de grupos fechados, se verifica com as quatro
primeiras funções (PDet, Det, Poss, Qf), que são conseqüentemente
de identificação especialmente fácil; a vinculação não biunívoca, de
grupos abertos, se observa com as três últimas funções (PN, NSN
e Mod), que em conseqüência apresentam dificuldades maiores de
identificação.
Finalmente, observarei que há diversas restrições quanto à ocor­
rência de funções no SN, em especial no SN não-máximo. Essas restri­
ções, listadas na seção 3.2.6.6, incluem as características distribucio­
nais do NSN (sõ ele pode ocorrer apõs Det, formando um SN; não
pode ser repetido; sua coordenação tem efeitos na concordância)
e de sua co-ocorrência com outras funções (sõ pode ocorrer Mod
ou PN se houver também NSN), assim como restrições à ocorrência
e posição de elementos parentéticos. Pode-se acrescentar que certas
funções podem ocorrer sozinhas no SN (PDet, Qf, NSN), ao passo
que outras não podem (Poss, PN, Mod).
186

As vinculações classe/função, assim como as restrições de ocor­


rência e co-ocorrência de funções no SN são importantes instru­
mentos para a identificação, na prática, das funções dentro do SN
não-máximo.

3.2.9 C om entários à an álise do SN de Lemle, 1984

Em um trabalho importante, que tem objetivos em parte seme­


lhantes aos deste livro, Lemle, 1984, apresenta uma análise do SN
que difere da minha em alguns aspectos. A principal diferença é
que Lemle distingue um total de sete posições (isto é, funções) ante­
riores do núcleo, ao passo que minha análise só distingue cinco.
O exemplo dado por Lemle (p. 98) é o seguinte (numeração minha):
(113) todos aqueles meus outros dez primeiros estranhos poemas
1 2 3 4 5 6 7
Discordo da análise de Lemle porque em alguns casos as posi­
ções são livremente permutáveis, o que a meu ver deixa claro que
se trata de repetição de funções (possibilidade que Lemle parece
não levar em conta). Assim, Lemle distingue as posições 3 e 4 áo
exemplo (113); no entanto, todos os elementos apresentados por
ela como podendo ocorrer nessas duas posições podem ser inter­
cambiados, ou seja, todos os elementos que podem ser 3 podem
também ser 4, e vice-versa. Por exemplos, temos
(114) os m eus outros amigos / os outros m eus amigos
(115) os mesmos seus amigos / os seus m esmos amigos
Por conseguinte, prefiro analisar as posições 3 e 4 de Lemle como
uma única função, repetível (a de “possessivo”).
Outro ponto de discordância entre as duas propostas reside
na distinção feita por Lemle entre as posições 5 e ó do exemplo;
parece que se trata de duas funções, desempenhadas respectivamen­
te pelos numerais cardinais e ordinais. Mas ainda aqui há possibi­
lidade de permuta mais ou menos livre, em bora os fatos já não sejam
tão claros quanto no caso anterior (ver seção 3.2.7.2):
(116) meus três prim eiros livros / meus prim eiros três livros
Por isso, pelo menos em um nível amplo de detalhamento, prefiro
analisar essas duas posições de Lemle como uma única função, a
que dou o nome de “quantificador”.
A bem dizer, Lemle comenta essas possibilidades de permuta,
e dá exemplos, mas não deduz daí que algumas das distinções funcio­
nais feitas seriam mais vantajosamente analisadas em termos de repe-
187

tição de funções. Na medida em que as funções se definem posicio-


nalmente (o que Lemle também faz), parece-me que minha solução
é mais adequada. Note-se ainda que algumas das permutas mencio­
nadas por Lemle parecem pouco aceitáveis, ou mesmo totalmente
inaceitáveis. Ela dá como plenamente aceitáveis os exemplos seguin­
tes (aos quais acrescentei meus próprios julgamentos de aceitabi­
lidade):
(117) uma outra nova teoria
(118) *uma nova outra teoria
(119) aquelas dez misteriosas figuras
(120) ?? aquelas misteriosas dez figuras
(121) *o segundo infeliz casamento
(122) o infeliz segundo casamento

3.3 D ois n íveis d e fu n çõ e s sin tá tica s

No estudo relativamente aprofundado que acabo de fazer do


SN, e de suas funções internas, faltou enfrentar uma questão impor­
tante, que é a da integração da análise do SN no sistema proposto
no capitulo 2 para a análise da oração. Como procuramos construir
um sistema integrado de análise em traços, que cubra toda a sintaxe
da lingua em seus diferentes niveis, é licito formular perguntas como:
que relação existe entre os traços distintivos das funções oracionais
e os das fiinções internas do SN? Como se distingue sistematicamente
um constituinte de nivel oracional de um constituinte de nivel subo­
racional?
Para ajudar a avaliar a seriedade do problema, darei um exem­
plo: Digamos que se quer analisar o term o a óleo nas duas frases
seguintes:
(123) Dali comprou um quadro a óleo
(124) Dali retratou um amigo a óleo
A análise do SN proposta neste capitulo nos permitiria suspeitar que
a óleo é um Mod, pois aparece logo após o NSN de um presumível
SN; mas a análise desse term o segundo os traços do capítulo 2, a
saber [CV, Ant, Q, Cl, PA, pNdP], daria, pelo menos em (124), um
resultado correspondente a uma das funções propostas para o nível
oracional, a de adjunto circunstancial (AC4 Qual dessas duas análises
é a correta nesses casos? Ou uma delas vale para (123), e a outra
para (124)? Ainda não dispomos de um princípio geral que nos nor­
teie para sair do dilema.
188

O sistema de traços do capítulo 2 nos fornece uma observação


que leva a esse princípio geral. A observação é a de que todas as
ámções de nível oracional, exceto o NdP, que é postulado, são marca­
das positivamente para pelo menos um dos cinco traços seguintes:
[Ant, Q, Cl, PA, pNdP] (sobre o traço [CV], ver o final desta seção);
os casos extremos são o da negação verbal, que só tem uma marca
positiva, [ +pNdP], e o do adjunto adverbial, que só tem positivo
o traço [ +C1]. Desse modo, pode-se dizer que qualquer term o marca­
do negativamente para os cinco traços em questão deve ser de nível
suboracional. Caso esse critério funcione, teremos não apenas um
m odo fácil de identificar as funções suboracionais, mas também uma
confirmação de que o elenco dos traços do capítulo 2 corresponde
a uma divisão importante na sintaxe da língua.
Voltando aos exemplos (123) e (124), verifica-se que a aplicação
do teste ao term o a óleo dá a matriz [ -CV, -A nt, - Q , -C l, -PA,
-pN dP ] em (123), e [-C V , +Ant, - Q , +C1, -PA, -pN dP]
em (124). Assim, conclui-se que a óleo é um term o suboracional
em (123); em (124) confirma-se que é um adjunto circunstancial
(AC). Ficamos também sabendo que um quadro a óleo é um SN
em (123), o que corresponde a nossas intuições sobre os consti­
tuintes dessa frase, e que um am igo a óleo não é um SN nem, certa­
mente, um constituinte de nenhum a espécie em (124).
Gross, 1979, discute brevemente um exemplo semelhante, a
saber (a numeração é minha):
(125)
a. King John launched an attack against the city
“o rei João lançou um ataque contra a cidade”
b. King John watched an attack against the city
“o rei João observou um ataque contra a cidade”
Gross utiliza dois traços para mostrar a diferença sintática entre as
duas frases; um deles é idêntico na prática ao traço [Cl]; o outro
se baseia na passivização, com os exemplos
(126)
a. An attack was launched against the city by King John
b. * An attack was watched against the city by King
John
(Preferi não utilizar a passivização como base de um traço em minha
análise porque passivas e ativas não se correspondem .)
Por outro lado, Gross afirma que tanto em (125a) quanto em
(125b) a n attack against the city é o objeto direto; portanto, posso
deduzir que ele considera essa seqüência um SN em ambos os casos.
Discordo de Gross nesse particular; para mim, (125) tem análise
189

análoga à de (123) e (124), e portanto em (125a) an attack against


the city não é um SN, sendo o objeto direto apenas an attack. Essa
análise me parece oferecer maiores vantagens, do ponto de vista
da descrição superficial, pelo menos.
Concluirei então que a matriz “menos tudo” (para cinco dos
traços do capitulo 2) caracteriza as funções suboracionais. Dai ser
redundante indicar as marcas para esses traços no caso de funções
suboracionais. Se um term o for marcado “ + ” para um desses traços,
será considerado de nivel oracional; se tiver “ - ” para os cinco, será
de nivel suboracional, e deverá ser ainda especificado com respeito
aos demais traços, a saber, [1?, 2?, 3?...].
Convencionaremos ainda que estes últimos traços não se apli­
cam a termos de nivel oracional, de maneira que não é necessário
nunca especificá-los para o sujeito, ou para o objeto direto etc. Isso
decorre da própria definição desses traços: “ocorrência em prim eiro
lugar no SN máximo” não se aplica a um term o de nivel oracional,
que por definição não pode ser constituinte imediato de um SN.
O sistema de traços distintivos, como se vê, não é perfeitamente
homogêneo e indiferenciado. Divide-se em grupos de traços, que
se distinguem por se aplicarem a niveis diferentes da hierarquia
de constituintes que forma a estrutura da oração.
Tive o cuidado de não incluir o traço [CV] na discussão das
funções oracionais e suboracionais. Se considerarmos apenas o
exemplo dado, isto é,
(123) Dali comprou um quadro a óleo
não haveria motivo para essa exclusão, pois a óleo é [ -CV], harmonir
zando-se assim na matriz “menos tudo”. No entanto, em muitos ou­
tros casos surgem problemas. Trata-se de casos de termos internos
do SN que são passiveis de concordância nominal, isto é, que mani­
festam o núm ero (e o gênero), quando ocorrem em SNs sujeitos.
Por exemplo:
(127) todos os pintores admiram Dali
Sabemos que o SN todos os pintores é marcado [ +CV], estando em
relação de concordância com o verbo. Mas que dizer de todos, os
e pintores individualmente? O fato mais imediatamente observável
é que esses elementos precisam se harmonizar em núm ero com
o verbo — ou seja, estão em relação de concordância com ele. Deve­
rão, então, ser também marcados [ + CV]?
Tendo a acreditar que não; prefiro deixar a marca [ +CV] como
uma característica exclusiva de SNs inteiros; de outro modo, ficarei
na situação algo esdrúxula de ter de considerar tanto o SN todos
OSpintores quanto seus constituintes todos, os e pintores como “sujei­
to s ” de (127). Para isso preciso formular uma convenção segundo
a q u al o traço ¡CV] só se pode aplicar a SNs, nunca a constituintes
internos ao SN. Só que, naturalmente, já não posso utilizar [CV] como
p a rte do critério de distinção entre funções oracionais e subora­
cionais, sob pena de cair numa circularidade: o traço [CV] seria neces­
sário para distinguir funções oracionais de suboracionais; mas a apli­
cação do traço a um term o qualquer pressuporia que soubéssemos
de antemão se esse term o é de nível oracional (um SN subordinado
à oração) ou não. Por isso, deixo de fora o traço [CV] na definição
d o s níveis, o que não causa maiores transtornos, já que os cinco
traços restantes são suficientes para a tarefa.

3.4- Funções sin táticas n o sin ta g m a a d je tiv o

3 .4 .1 O sintagm a adjetivo
Após o estudo do SN relativamente minucioso feito na seção
3 .2 , wou passar a um exame de outros tipos de sintagma, agora buscan­
d o apenas uma visão geral, bastante sumária, de sua estrutura interna.
C om eçarei com um tipo de sintagma ao qual, para facilidade de
referência, atribuirei desde já a designação de “sintagma adjetivo”
(SAdj), aliás usual na literatura.
Exemplos de SAdj ocorrem na função de modificador, como
em
(128) meus bons amigos de Maceió / um tanto desorientados
O s elem entos grifados em (128), em bora compostos de mais de
u m a palavra, contam como um term o único do SN, pois formam
u m constituinte que se subordina ao SN. Resulta daí que o SN nunca
tem m ais de sete termos, em bora possa com preender mais de sete
palavras; de Maceió e um tanto desorientados são sintagmas que
desem penham a função de modificador.
Assim, direi que o modificador é desempenhado por um SAdj;
e q u e o SAdj pode ser composto de uma só palavra (forte, alagoanos,
im possível) ou de várias palavras, tendo nesse caso uma estrutura
sijatática a ser estudada. Nesta seção vou justamente estudar as possibi­
lid ad es de estruturação interna do SAdj, por ora definido como o
sintagm a que pode exercer a função de modificador.
O SAdj modificador se subordina a um SN, que por sua vez
se subordina à oração; o SAdj parece, pois, constituir uma espécie
d e terceiro nível de análise. No entanto, não vou considerar essa
urpa característica importante do SAdj, porque ele pode ocorrer tam­
191

bém subordinado (até onde vejo no momento) diretamente à oração,


paralelamente a SNs:
(129) meu amigo está um tanto desorientado
(130) nós o consideramos um tanto desorientado
O SAdj é um objeto direto em (129), e um predicativo em (130).
Por essa razão, prefiro colocar o estudo do SAdj no mesmo nível
em que coloco o estudo do SN.
Antes de passar ao estudo da constituição interna do SAdj, entre­
tanto, é preciso considerar uma pergunta importante. Dado um
exemplo como
(131) uma mesa muito cara
o que é que nos leva a analisar muito cara como um term o único?
Isto é, por que não considerar muito e cara como dois constituintes
separados do SN (o que nos forçaria a distinguir mais de sete funções
dentro do SN)?
Há pelo menos três razões para considerar muito cara um termo
único do SN; todas as três se ligam ao fato de que muito cara é um
constituinte, ao passo que uma mesa (dentro de (131) ) não é.
Em prim eiro lugar, a maioria dos falantes têm uma intuição
de que muito cara é um constituinte, isto é, uma “unidade” dentro
do SN. É algo difícil lidar com esse fato formalmente, mas o fato
em si me parece bastante claro; conforme notei na seção 1.8.3, é
possível que a interpretação semântica desem penhe um papel no
aparecimento dessa intuição, mas não há dúvida de que a estrutu­
ração em constituintes é fundamental na sintaxe, o que deixa aberta
a possibilidade de que os falantes também se apóiem em seu conheci­
mento da sintaxe para “sentir” os constituintes de uma seqüência.
Em segundo lugar, certos fatos relativos à coordenação de ele­
mentos sugerem fortemente que muito cara em (131) é um consti­
tuinte. Observa-se, por exemplo, que não se pode coordenar uma
seqüência qualquer de elementos dentro do SN através de tanto...
quanto-.
(132) * tanto uma velha quanto algumas novas mesas
(Det + PN)
(133) *um tanto instrumento velho quanto objeto inútil
(NSN + Mod)
(134) ?? tanto os meus quanto alguns seus amigos
(Det + Poss)
(Este último exemplo parece ser menos malformado, mas certamen­
te não é plenamente aceitável.)
192

Mas muito cara em (131) aceita perfeitamente a coordenação


com tanto... quanto a outro elemento paralelo:
(135) uma mesa tanto muito cara quanto bastante velha
Se admitirmos, como parece ser o caso, que tanto... quanto coor­
dena constituintes, teremos aí evidência de que muito cara é um consti­
tuinte único, e não uma seqüência de dois constituintes paralelos.
A terceira razão para considerar muito cara um constituinte
é que essa seqüência possui uma distribuição sintática independente
da do SN a que se subordina em (131). Note-se que não encontramos
seqüências como uma mesa, todos os, velho amigo, meus bons etc.
a não ser como partes de SNs. Mas muito cara aparece em ambientes
e funções próprias, sem ser nesses casos parte de um SN:
(136) essa mesa é muito cara (OD)
(137) considero essa mesa muito cara (Pv)
Pode-se pois dizer que o SAdj (e, em particular, a seqüência
muito cara que ocorre em (131) ) pode desem penhar as ftmções
de Mod, de objeto direto (de certos verbos, tradicionalmente chama­
dos “de ligação”) e de predicativo.
Voltando ao nosso ponto principal, vimos que há três razões, pelo
menos, para considerar muito cara em (131) um constituinte único,
por sua vez composto de dois elementos. Esse constituinte único desem­
penha a função de Mod dentro do SN, de maneira que a ocorrência de
duas palavras aí não implica uma complicação da estrutura do SN.

3.4.2 Funções internas d o SAdj


3.4.2.1 N o SAdj máxim o

Para estudar as funções internas de SAdj, é útil estabelecer um


“SAdj máximo”, de maneira análoga à que se utilizou para o caso
do SN. Um exemplo, que se comporta como máximo por ser uma
seqüência que não admite transposições de ordem, é o seguinte:
(138) muito satisfeito com o trabalho
Esse tipo de sintagma com preende um máximo de três funções,
desempenhadas em (138) por muito, satisfeito e com o trabalho-,
elas serão rotuladas, respectivamente, de “intensificador” (Int), “nú­
cleo do SAdj” (NSA) e “complemento do SAdj” (CSA).
Dois fatores que facilitam a identificação das funções internas
do SAdj são: primeiro, elas não admitem nenhum a espécie de trans­
posição de ordem; e, depois, as classes que desempenham cada uma
193

são disjuntas, não iiavendo ao que parece formas que possam desem­
penhar mais de uma função no SAdj. O intensificador, além do mais,
é desempenhado por uma classe provavelmente fechada, e relativa­
mente pequena, embora não tão pequena quanto as que desempenham
as funções de PDet, Det ou Poss. Exemplos são: muito, realmente, bem,
bastante, um tanto, (um) pouco, algo, completamente etc. A função
de Int se caraaeriza por ocorrer em primeiro lugar no SAdj máximo.
O NSA, representado em (138) por satisfeito, parece ser exclusi­
vidade de palavras individuais, nunca sintagmas maiores; são palavras
tradicionalmente consideradas “adjetivos” ou “substantivos” (as pos­
síveis exceções, a pesquisar, seriam casos de lexificação; ver 3.4.2.2).
É preciso incluir também os “substantivos” tradicionais entre os itens
que podem ser NSA por causa de expressões como
(139) o imperador menino
(140) uma concentração monstro
(141) uma escola piloto
Vimos em 3 2.6.4 que os itens grifados nas frases acima devem ser
analisados como modificadores; portanto, trata-se de SAdjs, compos­
tos aí apenas do NSA.
O CSA, representado em (138) por com o trabalho, é sempre
desempenhado por sintagma preposicionado, isto é, preposição 4- SN.
Define-se posicionalmente por ocupar o terceiro lugar no SAdj máximo.
O caráter disjunto das classes de formas que desempenham
cada uma dessas funções nos permite uma identificação relativamen­
te fácil das mesmas. Não digo, entretanto, que não seja necessário
ainda corroborar essa presumível disjunção através de levantamentos
amplos. De qualquer modo, aqui vou admitir essa hipótese como
verdadeira. A partir daí pode-se listar as possibilidades de estrutu­
ração interna de um SAdj, exemplificando-as com formas típicas de
comportamento bem conhecido. E, como o Mod só pode ser preen­
chido por um SAdj, a lista nos dá automaticamente as possibilidades
de estruturação dos modificadores;

Possibilidades de estruturação interna do SAdj


Estruturação Exemplo
NSA um a m ig o alagoano
CSA um am igo de Maceió
In t -1- NSA um a m ig o muito corajoso
NSA -1- CSA um am igo satisfeito com o trabalho
In t -1- NSA -1- CSA um a m ig o muito satisfeito com o trabalho
194

Note-se que; (a) o Int não pode ocorrer sozinho no SAdj; (b)
a seqüência Int + CSA só ocorreria em casos como muito sem vergo­
nha, mas seqüências como sem vergonha, de confiança etc. são sus­
peitas de constituírem expressões idiomáticas lexificadas; por isso
não incluo a possibilidade Int + CSA no quadro.
Já notei anteriormente que nenhum a permuta de ordem é admi­
tida entre os membros do SAdj, o que aliás confirma a hipótese
de que se trata de três funções distintas. Destas, apenas o CSA parece
aceitar repetição, como no exemplo seguinte (de Lemle, 1984, p.
155):
(142) a ferro com cuidado
Casos aparentes de repetição do Int acabam revelando-se como
de nível oracional. Por exemplo, em
(143) realmente muito satisfeito com o trabalho
A idéia de que realmente + muito seria uma repetição de Int não
se sustenta, por várias razões. Primeiro, a permuta desses dois ele­
mentos dá resultados totalmente inaceitáveis:
(144) * muito realmente satisfeito com o trabalho
Em segundo lugar, realmente pode deslocar-se para diversas posi­
ções, resultando em frases correspondentes, o que não é uma pro­
priedade dos casos claros de Int, que não admitem deslocamento:
(145)
a. Pedrão está realmente muito satisfeito com o tra­
balho
b. Pedrão realmente está muito satisfeito com o tra­
balho
Em terceiro lugar, é possível separar realmente por vírgulas, o que
não ocorre com os casos claros de Int:
(146) Pedrão está, realmente, muito satisfeito com o trabalho
Finalmente, a impossibilidade de coordenação com tanto... quanto
revela que (143) não é um constituinte, logo não pode ser um SAdj;
(147) Pedrão é um rapaz tanto muito satisfeito com o trabalho
quanto bem rem unerado
(148) * Pedrão é um rapaz tanto realmente muito satisfeito
com o trabalho quanto bem rem unerado
Por todas essas razões, concluo que realmente em (143) não
é um Int, mas antes um constituinte de nível oracional. O SAdj é
apenas muito satisfeito com o trabalho (note-se que realmente tam­
bém pode, em outros casos, ocorrer como Int).

.jm L
195

3.4.2.2 No SAdj não-m áxim o


Conforme notei acima, a correlação classe/função para as fun­
ções internas do SAdj é basicamente regular; portanto, há boas pers­
pectivas para a identificação das funções no SN não-máximo. Dessa
maneira, diante de um SN como
(149) um amigo de meu pai
podemos dizer com alguma segurança que o SAdj de meu pai, que
desempenha nesse SN a função de Mod, é composto apenas de um
CSA. E no SN
(150) um amigo escolhido com critério
o Mod é desempenhado por um SAdj composto de NSA + CSA, e
assim por diante.
Essa segurança é relativa, pelo menos no atual estágio da investi­
gação. Mas a imensa maioria dos casos se deixa analisar sem dificul­
dades. Os problemas que podem ocorrer estão relacionados na seção
seguinte.

3.4.3. Casos pro b lem á tico s


Restam problemas a resolver, e que aqui não poderão ser mais
que mencionados. Os principais se referem a casos em que a corre­
lação classe/função não funciona perfeitamente; em especial, têm
a ver com a ocorrência de sintagmas preposicionados como apa­
rentes intensificadores.
E m u m e x e m p lo c o m o
(151) um empregado com freqüência bêbado
o elemento com jreqüência aparece na posição típica do Int; além
do mais, é claramente um constituinte do SAdj, portanto não podere­
mos livrar-nos dele através do raciocínio utilizado em 3.4.2.1 para
realmente. Se formos manter o princípio de que os componentes
do SAdj têm posição fixa, não resta alternativa a não ser aceitar que
com jreqüência é um Int em (151), e que portanto, pelo menos
em certos casos, o Int pode ser desempenhado por um sintagma
preposicionado. A conclusão é desagradável, pois até o momento
tínhamos a generalização de que o sintagma preposicionado só pode­
ria ser (dentro do SAdj) um CSA. Essa generalização fica prejudicada,
mas não necessariamente destruída, principalmente se se puder mos­
trar que os sintagmas preposicionados que podem ser Int formam
um conjunto pequeno e bem definido.
196

Podemos pelo menos manter o principio de que o CSA é sem pre


desempenhado por um sintagma preposicionado. A única dúvida
é causada pela palavra demais, que parece ser sem pre CSA:
(152) um empregado cuidadoso demais com o jardim
O problem a é que demais, em bora etimológicamente formado de
preposição seguida de mais, não se escreve separadamente, e não
é provavelmente um sintagma preposicionado na língua atual. A se­
mântica sugere uma associação com os intensificadores, e com efeito
o uso de dem ais exclui o dos intensificadores:
(153) * um empregado muito cuidadoso demais
Por outro lado, (153) ocorre na fala coloquial, o que pode indicar
que dem ais é sentido como CSA. Vou considerar, portanto, dem ais
como um CSA em frases como (152); será um item excepcional caso
não se possa analisar como sintagma preposicionado (é interessante
notar que de m enos se escreve separadamente).

3.4.4 O que sabem os do SAdj

Vou resumir agora o que vimos neste estudo bastante apressado


do SAdj.
Vimos que a função de Mod é desempenhada por uma classe
de sintagmas que também se encontra, tipicamente, como predi­
cativo e como objeto direto (em especial dos verbos chamados “de
ligação”). No prim eiro caso, subordina-se ao SN, e nos dois últimos
à oração. A essa classe dem os o nom e de “sintagma adjetivo”
(SAdj).
O SAdj com preende três funções internas, a saber, a de inten­
sificador (Int), a de núcleo do SAdj (NSA) e a de com plem ento
do SAdj (CSA); essas funções se definem, respectivam ente, p o r
ocuparem a prim eira, a segunda e a terceira posições no SAdj
máximo.
As três funções do SAdj são desempenhadas por três classes
disjuntas: o Int p o r um conjunto de itens provavelmente fechado
{m uito, bem, bastante etc.); o NSA por itens léxicos individuais, tradi­
cionalmente chamados “adjetivos” e “substantivos”; e o CSA por
sintagmas preposicionados.
Não há SAdjs compostos apenas de Int, e provavelmente tampou­
co ocorrem SAdjs compostos de Int -f CSA; todas as demais combi­
nações são possíveis, desde que se respeite estritamente a ordenação
Int — NSA — CSA.
197

3.5. O sin ta g m a a d v e rb ia l

Neste capítulo apresentei uma análise sintática detalhada das


funções internas do SN, e uma análise bem mais sumária do SAdj.
Mesmo um esboço, porém, seria prematuro no caso de construções
adverbiais, às vezes designadas pelo term o “sintagma adverbial”. Há
um emaranhado de questões a serem ainda convenientemente equa­
cionadas e discutidas; um problema, certamente não o menor, é
que com toda probabilidade o rótulo “sintagma adverbial” cobre
um conjunto heterogêneo de classes de formas.
Vejamos mais de perto o problem a da heterogeneidade da p re­
sumível classe dos sintagmas adverbiais. Sabemos que as classes se
definem através de traços funcionais, ou seja, através da lista das
funções que podem desempenhar. Assim, defini o SN como a classe
das formas que podem ser sujeito; e sabemos que as mesmas formas
(com muito poucas exceções) podem ser objeto direto. Isso poderia
ser expresso, equivalentemente, dizendo que o SN se define pela
matriz [ +Suj, +OD]. Esses traços só diferem dos traços que vimos
utilizando até o momento por se referirem, cada umi, a um conjunto
de propriedades sintáticas, ao passo que traços como [Ant], [1? lugar
no SN máx] etc. descrevem propriedades únicas, isoladas para efeito
de estudo. Desse modo, são traços distintivos de pleno direito, des­
crevendo propriedades (no caso, complexas) das formas, aspectos
de seu comportamento gramatical.
Das funções vistas, há seis que podem ser consideradas como
exibindo um comportamento tradicionalmente chamado “adver­
bial”; são elas: intensificador, complemento do SAdj, atributo, adjunto
circunstancial, adjunto adverbial e adjunto oracional; com exceção
do CSA, são todas geralmente analisadas como “adjunto adverbial”.
Seria pois interessante verificar se há formas que se definem por
poderem ocupar essas seis funções, ou a maioria delas. Se a noção
de “sintagma adverbial” tiver consistência, correspondendo a uma
classe bem definida de formas, é de se esperar que muitas formas
sejam marcadas positivamente para os traços [Int, CSA, Atr, AC, AA,
AO], por poderem desempenhar essas funções. Mas isso não acon­
tece; não conheço uma única forma que seja marcada “ + ” para os
seis traços. O que se encontra é, antes, uma variedade bem grande
de tipos de comportamento sintático, que poderão, quando devida­
m ente estudados, servir de base para a definição de diversas clas­
ses. Assim, tom ando apenas seis exemplos, vou analisá-los em rela­
ção aos seis traços em questão. O resultado se resum e na tabela
a seguir:
198

Comportamento sintático de algumas formas “adverbiais”


Traços
Forma
In t CSA A tr AC AA AO
muito + +
desesperadam ente + +
com p le ta m en te + +
in d u b ita v e lm e n te + +
dem ais + +
de verdade + +
Não tenho dúvidas de que há generalizações a serem expres­
sas, e de que é possível encontrar diversos protótipos de classes
dentro do âm bito dos elem entos “adverbiais”. Mas, p o r outro lado,
a situação é evidentem ente mais complexa do que dá a entender
a classe mais ou m enos única dos “sintagmas adverbiais” aceita
pelas análises tradicionais. Só um m apeam ento bem amplo das
formas é que poderá servir de base para uma descrição adequada
do fenôm eno.
A subdivisão dos adjuntos adverbiais da gramática tradicional
em adjuntos de tempo, de lugar, de modo etc., correspondente a
uma subclassificação dos próprios advérbios, é de base fundamen­
talmente semântica, e sua relação com o comportamento sintático
das formas é remota. Alguns autores propõem uma subclassificação
dos advérbios em term os sintáticos, com o por exem plo Q uirk et
al., 1 9 7 2 , que seguem a análise de G reenbaum , 1969 Há, a respeito
do Comportamento sintático dos elem entos adverbiais, uma vasta
literatura dispersa, não com plementada, que eu saiba, p o r um tra­
balho de síntese que procure estabelecer as grandes linhas desse
setor da estrutura da língua, tanto no que concerne às classes quan­
to n o que diz respeito às funções. Faz-se necessário, portanto,
realizar essa síntese, necessariam ente acom panhada de pesquisa
original.
Por conseguinte, é prem aturo estudar a estrutura interna dos
sintagmas a que se dá o nom e de “adverbiais”. Antes de mais nada,
será preciso estabelecer de que entidades sintáticas se está falando.
Neste capítulo estudei o SN e o SAdj partindo de uma delim i­
tação baseada, em um prim eiro m om ento, na noção tradicional;
depois, em uma definição antecipada, com base em poucos traços.
Com os elem entos adverbiais, para os quais a análise tradicional
é especialm ente falha, isso não seria prudente. Por isso deixo a
questão em suspenso até q u e se possa atacá-la com segurança.
199

3.6 Apêndice: A djetivos d e n o m in a is

Neste apêndice, pretendo examinar o caso de certos termos


que poderão constituir uma oitava função dentro do SN, mas que
usualmente são analisados como sendo modificadores (ou função
equivalente). Como não considero a questão solucionada, prefiro
tratá-la à parte, propondo uma solução provisória, à espera de estu­
dos mais aprofundados.
O SAdj, conforme vimos em 3.4.1, pode ser modificador, predicativo
ou objeto direto (de verbos tradicionalmente chamados “de ligação”).
A maioria dos SAdjs ocorre livremente em qualquer dessas funções:
(154) um pugilista bem pronto para a luta (Mod)
(155) o pugúístdí està bem pronto p ara a luta (OD)
(156) consiàevo esse pngiMsxSí bem pronto p ara a luta (Pv)
Encontra-se na literatura, porém, a discussão de casos de adjetivos
que seriam especializados, não podendo ser nem predicativos nem
objetos diretos (“predicativos do sujeito”), de maneira que só poderiam
ser modificadores. A situação é assim colocada por Judith Levi:
“Os adjetivos atributivos [isto é, em função de Mod] de (1) não podem
ser derivados de orações relativas, já que nunca podem aparecer como
adjetivos predicativos com os mesmos substantivos como núcleos. Al­
guns, como bodily, nunca aparecem na posição de predicativo”.
[L evi, 1976, p. 2.]
Exemplos de tais adjetivos em portugués são: civil (em engenheiro
civil), cardíaco (em lesão cardkica), porüifício, presidencial etc. Esses
adjetivos, quando podem ocorrer na posição de “predicativo” (OD), têm
significado radicalmente diferente do que têm quando são adnominais;
e às vezes parecem inaceitáveis, em diversos graus, na posição de OD:
(157)
a. ele é um engenheiro civil
b. esse engenheiro é civil ( = não é militar)
( 158)
a. ele tem uma lesão cardíaca
b. ?? a lesão é cardíaca
Essa diferença de significado pode não ocorrer em certos casos, co­
mo veremos mais adiante.
Vou chamar esses adjetivos de “denominais”, porque em geral
se considera que “provêm” de substantivos, ou seja, correspondem
a estruturas com substantivos: engenheiro quím ico {de química)-,
lesão cardíaca {no coração)-, decisão presidencial {do presidente).
200

Vejamos quais são as conseqüências que a existência desses adjetivos


acarreta para a análise do SN e do SAdj que foi elaborada neste capímlo.
Os denominais foram objeto de diversos estudos, alguns deles
muito detalhados. Considero básico o trabalho de Levi, 1976, e, para
o português, também Casteleiro, 1981, que, nas p á g in a 52 a 66,
coloca bem a questão. Ver também Zribi, 1972, e Perini, 1977b.
A discussão que se segue deve muito ao trabalho de Levi e ao de
Casteleiro, mas as conclusões não coincidem com as de nenhum
deles.
A um exame superficial, dir-se-ia que cardíaca em (159) é um
SAdj comum, na função de Mod, tal como grave em (160):
(159) uma lesão cardíaca
(160) uma lesão grave
No entanto, o presumível SAdj cardíaca tem, para começar, uma
estruturação interna totalmente excepcional. Não admite, por exem­
plo, a ocorrência de Int:
(161) *uma lesão muito cardíaca
Essa restrição tem prováveis raízes na semântica típica desses
adjetivos, que não admite a interpretação qualificativa. Conforme no­
tei em Perini, 1977b, a intensificação expressa pelo Int recai sobre
a qualidade expressa pelo adjetivo; quando o adjetivo não expressa
qualidade, não pode haver Int.
Mas há outras características dos denominais que já não se po­
dem explicar semanticamente: os denominais também excluem a
possibilidade de CSA, Temos seqüências como as seguintes:
(162) lesão cardíaca sem gravidade
(163) decisão pontifícia de peso
onde parece que há um NSA {cardíaca, pontifícia) seguido de CSA
{sem gravidade, de peso). Mas essa interpretação esbarra em dificul­
dades: a seqüência NSA + CSA (na ausência de Int) é, naturalmente,
um constituinte, pois representa a íntegra do SAdj. Isso se pode verifi­
car através de um teste de coordenação:
(164) uma amigo tanto ansioso p o r agradar quanto pronto
p ara ajudar
Mas esse teste rejeita as seqüências cardíaca sem ff-avidade e p o n ti­
fícia de peso, pelo que devemos concluir que não são constituintes:
(165) *lesão tanto cardíaca sem gravidade quanto facilmente
tratável
Comparar:
(166) lesão tanto facilmente tratável quanto superficial por na­
tureza
201

Se a seqüência cardíaca sem gravidade não é um constituinte, não


pode ser um SAdj, e portanto não devemos ter aí uma seqüência
de NSA + CSA
Outra indicação de que tais seqüências não são SAdjs é que
elas não se coordenam com SAdjs comuns:
(167) * lesão cardíaca e grave / * lesão grave e cardíaca
Temos de concluir, então, que seqüências como cardíaca sem
gravidade e pontifícia de peso não constituem SAdjs.
Essa conclusão é plenamente apoiada pela existência de indicações
de que os denominais não são modificadores. Em um sintagma como
(168) uma lesão cardíaca sem gravidade
não temos repetição de Mods, porque a permuta não é possível:
(169) * lesão sem gravidade cardíaca
(170) * decisão de peso pontifícia
Como sem gravidade e de peso são bem claramente Mods, é forçoso
reconhecer que cardíaca e pontifícia são outra coisa qualquer. Em
outros termos, em (168) um a é Det, lesão é NSN, sem gravidade
é Mod; resta averiguar a função de cardíaca.
Vejo duas possibilidades de análise: (a) lesão cardíaca seria
um NSN complexo; ou então (b) lesão apenas é o NSN, e cardíaca
representaria uma nova função dentro do SN, a ser acrescentada
às sete funções vistas em 3 2.
Uma dificuldade com a solução (a) é que lesão cardíaca não
parece funcionar como um constituinte (o que deveria ser, se fosse
um NSN complexo). Isso é indicado pelo teste da coordenação:
(171) * uma tanto lesão cardíaca quanto sério problem a de
saúde
Dessa maneira, a evidência disponível aponta para a solução
(b): os denominais preencheriam tipicamente uma função própria
no SN, função essa que não se identifica com nenhum a das sete
que foram propostas em 3 2. Conseqüentemente, teríamos de com­
plicar a análise do SN para incluir essa nova função. Essa parece
ser a m elhor análise no momento, pois explica o caráter idiossin­
crático dos denominais frente aos outros adjetivos, harmonizando-se
com as indicações de que suas ocorrências não constituem SAdjs
— logo, não poderiam ser Mods.
Neste ponto, deixo a questão meio em aberto, longe de uma
solução satisfatória. Ainda há o que investigar na área dos denominais,
e é possível que se venha a encontrar argumentos que invalidem
a conclusão provisória aventada no parágrafo precedente.
202

Para terminar, farei três observações mais sobre a questão dos


denominais. A prim eira é que, apesar do que afirmam alguns autores,
os denominais quase sempre podem, mesmo sem alteração semân­
tica, aparecer em posição predicativa. Citando Casteleiro:
“[...] em certos contextos de tipo enfático-contrastivo e outros, os itens
da subclasse de rural [isto é, os denominais] são aceitos na posição
predicativa, conforme sucede nos seguintes exemplos:
(172)
a. esses problemas são rurais, e não urbanos
b. a interpretação dada a esse conflito e publicada nos
jornais é governamental, e não sindical
(173)
a. essas viaturas sao municipais
b. essas flores são campestres”
[C a s te le iro , 1981, p. 54; a numeração é minha.]
Ver o trabalho de Casteleiro para mais algumas observações
sobre o fato.
A segunda nota é a seguinte: conforme já observei acima, os
denominais quase sem pre podem ocorrer em posição predicativa
(OD), mas com alteração de significado. Nesses casos, seu com por­
tamento é o de um Mod comum. Por exemplo, temos
(174) essa sua atitude foi presidencial
Creio que aqui se entende que a atitude foi “típica de um presidente”,
e não “assumida por um presidente”. A interpretação, portanto, é
qualificativa, e como tal aceita Int:
(175) essa sua atitude foi bastante presidencial
A interpretação qualificativa também é possível quando o adje­
tivo está em posição adnominal; mas nesse caso parece não ser a
preferida, e a interpretação não-qualificativa é dominante.
Finalmente, é preciso notar que as paráfrases freqüentemente
apontadas para os denominais, do tipo
(176)
a. decisão presidencial
b. decisão do presidente
(177)
a. lesão cardíaca
b. lesão no coração
têm comportamento problemático. De certos pontos de vista, pare­
cem ser Mods comuns. Assim, quando acompanhados de um Mod,
admitem permuta, o que indica que se trata de uma seqüência de
Mod repetido:
203

(178)
a. lesão sem gravidade no coração
b. lesão no coração sem gravidade
(179)
a. decisão de peso do pontífice
b. decisão do pontífice de peso
(Comparar com a inaceitabilidade de (169) e (170).)
Em alguns casos, entretanto, a permuta dá resultados marginais:
(180)
a. decisão imediata do presidente
b. ?? decisão do presidente imediata
Não sei como dar conta dessas diferenças.
Por outro lado, as paráfrases não admitem Int, tal como os deno­
minais; isso pode ser devido, conform e já apontei, a causas sem ân­
ticas.
4 A O RAÇÃO
COMPLEXA

Defini nos capítulos 2 e 3 um conjunto de funções sintáticas


que compõem um esboço da estrutura da oração e do sintagma
em português. É evidente que resta muito a investigar nesse setor,
o que não deixei de apontar a cada passo; mas o sistema desenvolvido
deve ser suficiente para cobrir uma parte significativa dos dados.
No presente capítulo retom o as funções dos capítulos 2 e 3, exami­
nando agora o caso especial em que são desempenhadas por sintag­
mas que encerram, eles próprios, orações; a esses sintagmas chama­
rei “sintagmas complexos”, e às orações que contêm sintagmas com­
plexos darei o nom e de “orações complexas”. O term o “oração com­
plexa” só corresponde ao term o tradicional “período composto”
nos casos em que a oração complexa em questão não é parte de
outra oração maior; em outros casos, como por exemplo a oração
grifada em (1),
(1) eu acho que você pensa que nós estamos brincando
a oração complexa não é um “período” segundo a nomenclatura
tradicional. Não utilizarei o term o “período”, a não ser informal-
mente, porque a distinção entre “oração” e “período” não me parece
útil. Um período é uma oração em um ambiente particular (isto
é, quando ocorre sozinha), e será também chamado “oração”.

4.1 R e cu rsiv id a d e

As línguas humanas têm a propriedade de possuir sintagmas


de determinada classe que encerram como constituintes (imediatos
ou não) outros sintagmas da mesma classe. Por exemplo, já conhe­
cemos a classe dos sintagmas nominais. Ora, é possível encontrar
SNs que contêm outro SN entre seus constituintes, como em
(2) a casa da avó de Chapeuzinho Vermelho
. .^2) é um SN, pois tem a distribuição típica dos SNs (pode ser
sujeito, p o r exemplo); mas segundo os mesmos critérios a avó de
205

Chapeuzinbo Vermelho também é um SN, e Chapeuzinho Vermelho


igualmente é um SN. Essa propriedade das línguas de encaixar ele­
mentos da mesma classe uns dentro dos outros se denomina recursi-
vidade. É uma propriedade altamente relevante, pois é principal­
mente graças a ela que se torna possível gerar um núm ero potencial­
mente infinito de frases nas línguas humanas. A recursividade distin­
gue as línguas humanas da linguagem de certos animais, que só
dispõem de um núm ero fixo de sinais ( “frases”), e que portanto
só podem transmitir um núm ero limitado de mensagens.
Neste capítulo nos interessará em particular a propriedade de
incluir orações dentro de outras orações (imediata ou mediatamen­
te). Vou partir do seguinte exemplo:
(3) o presidente declarou que o país vencerá a crise
Várias indicações sugerem fortemente que (3) é uma oração:
tem um sujeito e um núcleo do predicado, pode constituir por si
um enunciado etc. Por outro lado, uma parte de (3), a saber, o país
vencerá a crise, também parece ser uma oração, p o r razões análogas.
Sabemos que tradicionalmente se distinguem em (3) duas orações,
e creio que essa intuição é correta. As duas orações são:
(3) o presidente declarou que o país vencerá a crise
(4) o país vencerá a crise
Essa segmentação difere da usual, mas (como veremos em 4.2.3.)
é a única que se harmoniza com a própria teoria tradicional de que
uma oração subordinada é parte de outra oração.
Examinemos a oração maior, isto é, a íntegra de (3). Podemos
encontrar aí algumas das funções já definidas nos capítulos prece­
dentes: o presidente é o sujeito; declarou é o núcleo do predicado.
Agora, resta uma seqüência que parece formar um constituinte, a
saber, que o país vencerá a crise. Não só a intuição nos diz que e.ssa
seqüência é um constituinte, como o mesmo pode ser confirmado
por testes como o da coordenação, que já empregamos anteriormeiiii':
(5) o presidente declarou tanto que o país vencerá a c i i.se
quanto que a inflação está baixando
A gramática tradicional analisa esse constituinle como <)|i|ciu
direto, e ainda aqui está certa; é fácil verificar c|uc“ e.sse c o m . m i i i i i i u c
tem os traços [ -CV, 4-Ant, +Q , -+-C1, - I ’A| As li.iscs scguiiiic-,
ilustram cada um desses traços, exceto [ - ( V | , ( | u c ii c . m im .im w i iI i\ (i i
(6) que o país vencerá a crise (,) o presidenic dc(l,III III | IAni|
(7) — O que o presidente (.lechín ni''
— Q u e o país vencerá a c ris e | I (.) |
206

(8) * o presidente que o país vencerá a crise declarou [ - PA]


Os fatos relativos à clivagem são menos claros, mas ainda assim
autorizam a marca [ +C1], porque pelo menos um tipo de clivagem
é permitido:
(9) ??foi que o país vencerá a crise que o presidente declarou
(10) o que o presidente declarou foi que o país vencerá a
crise [ +C1]
Assim, podemos concluir que a oração o país vencerá a crise
está incluida no objeto direto da oração maior: um caso de recursi­
vidade, portanto, valendo para a classe das orações. Esse fenômeno
se denomina tradicionalmente “subordinação”, e podem os manter
esse term o aqui, pois é conveniente e não-ambíguo (desde que seja
tomado em seu sentido estritamente sintático; assim, a oração subor­
dinada não é “menos importante” do que a principal, nem depende
déla quanto ao sentido).
Em principio, os constituintes complexos desempenham fun­
ções idênticas às dos constituintes não-complexos. Podemos falar
então de uma recursividade de classes (constituinte da classe A den­
tro de outro constituinte da classe A), e também de funções (objeto
direto dentro de objeto direto). No entanto, a noção de recursividade
não exige que a função do constituinte maior seja idêntica à do me­
nor. Assim, em (3) a oração subordinada é objeto direto, o que a
principal evidentemente não é.
Deixemos, pois, estabelecido o princípio segundo o qual é pos­
sível encontrar estruturas oracionais que encerram em si outras estru­
turas oracionais; aquelas se chamarão “orações complexas”. Ou seja,
a formação das orações, assim como de muitos outros tipos de sintag­
mas, é recursiva.

4.2 Um c rité rio d e con tagem d e o ra çõ es

4.2.1 Estrutura interna dos constituintes


Uma questão usualmente levantada no ensino gramatical, e que
a meu ver é relevante, é a de que razões nos levam a considerar
que determinada oração é complexa (isto é, que razões permitem
identificar um período como composto). É interessante notar que
essa questão nem sempre é abordada em trabalhos mais recentes;
por exemplo, em Quirk et al., 1972, não encontrei nenhuma alusão
ao problema. Em outros trabalhos, o assunto é visto de maneira
muito superficial, como se se tratasse de tema de pouco interesse.
207

Alguns autores parecem perceber a relevância da questão, em bora


o tratamento deixe a desejar. Martinet, 1979, dá como critério a estru­
tura interna das orações componentes da oração completa, ao que
parece seguindo Jespersen, para quem uma oração subordinada é
“um membro de uma sentença que tem forma semelhante à de uma
sentença.”
[J e s p e r s e n , 1933, p. 166.]
Esse critério, conforme veremos, é apenas parte da solução.
Por outro lado, a gramática tradicional, assim como alguns traba­
lhos mais modernos (por exemplo, Mateus et al., 1983), só considera
o aspecto semântico do problema; este certamente tem importância,
mas não supre a necessidade de se caracterizar o que é que faz
uma oração ser complexa do ponto de vista sintático. Nesta seção
procuro examinar esta última questão, para estabelecer e justificar
um critério que nos autorize a ver dentro de uma oração outra ou
outras orações subordinadas ou coordenadas.
O critério básico é o da estrutura interna, expresso por Jespersen
na citação acima, e por Martinet da seguinte forma:
“Entre os elementos determinantes de uma frase, encontram-se com
freqüência partes do enunciado que apresentam a mesma forma que
uma frase completa [...]”
[ M a r t in e t , 1979, p . 1 7 .]

Esse critério nos permite isolar duas orações em (3),


(3) o presidente declarou que o país vencerá a crise
pelas razões vistas em 4.1: por um lado, (3) tem um sujeito e um
núcleo do predicado; e há razões, que vimos acima, para crer que
possui igualmente um objeto direto. Por outro lado, parte de (3),
a saber, o pats vencerá a crise, tern também sujeito, núcleo do predi­
cado e objeto direto, ou seja, a estrutura típica de uma oração. Além
disso, esse segmento de (3) pode ocorrer como oração livre.
Exprimimos esses fatos dizendo que a oração (3) é complexa,
porque com preende duas orações, uma dentro da outra:
(3) o presidente declarou que o país vencerá a crise
e
(4) o país vencerá a crise
O mesmo procedimento nos faz classificar como complexas
as seqüências de orações tradicionalmente chamadas “coordenadas”,
como em
(11) o país vencerá a crise e o povo receberá algumas migalhas
208

Aqui é bem claro que, se retirarmos a conjunção e, o que resta são


duas estruturas tipicamente sentenciais.
Esse critério, porém, no que pese sua clareza, não basta para
justificar todos os casos em que a tradição postula a existência de
orações dentro de orações ( “períodos compostos”). Isso porque com
freqüência a oração m enor (subordinada) apresenta uma estrutura
que não corresponde exatamente à das orações livres ( “absolutas”).
As discrepâncias são de diversas dimensões e de diversas naturezas,
podendo ser classificadas em grupos, graduados em função da “gravi­
dade” dos desvios.
Assim, temos, primeiramente, um grupo em que o desvio reside
na forma do verbo. São casos em que a oração menor só difere das
orações livres por apresentar uma forma verbal que nunca, ou sõ excep­
cionalmente, aparece em orações livres. São orações com o verbo no
infinitivo, gerundio ou subjuntivo, com ou sem sujeito expresso:
(12) o país deseja que o presidente renuncie
(13) o ministro revelou o pais estar fa lid o
(14) Carminha decidiu ajudar M ariquinha
(15) ele sem pre trabalha Cí/é
Excetuando-se a forma do verbo, pode-se dizer que a estrutura
das orações subordinadas de (12) a (15) não tem nada de peculiar;
elas podem ser analisadas nos termos oracionais estudados no capítulo
2: o presidente é sujeito, Maricjuinha é objeto direto etc. Mesmo o gerún­
dio, conforme se viu no capítulo 2, pode apresentar sujeito explícito.
Há problemas a estudar aqui (notadamente as condições de
flexão do infinitivo), mas não têm a ver com a caracterização dessas
orações como complexas. Pode-se dizer que as subordinadas de (12)
a (15) se aproximam muito da oração prototípica, o que justifica
classificá-las também como orações.
Em um segundo grupo entram as chamadas orações “relativas”
(ou “adjetivas”). Estas são sem pre introduzidas por um elemento
específico, chamado “pronom e relativo”: que, o qu a l etc. -, e sempre
têm um term o omitido, que é idêntico ao sintagma que imediata­
mente precede o relativo:
(16) encontrei uma aranha que m eu m enino colocou n a gela­
deira
(17) os cobradores que m e procuram estão de volta
Diz-se que há um termo omitido, idêntico ao sintagma que pre­
cede o elemento relativo, por causa de indicações como as seguintes:
(a) Em (16) temos um verbo, colocar, que nunca aparece em orações
livres sem objeto direto; no entanto, parece estar sem OD nesse
209

exemplo. Além disso, o sintagma que precede que é um a aranha,


que tanto sintática quanto semanticamente é adequado a desem pe­
nhar o papel de OD de colocar. Essa situação se repete (com várias
funções além do OD) em todos os casos de oração relativa, (b) Em
(17) falta o sujeito da oração subordinada, mas o verbo concorda;
sua forma não é livre, mas determinada por os cobradores. A análise
tradicional resolve essa situação afirmando que o elemento que pre­
cede o relativo está presente na oração subordinada, através de uma
retomada pronominal, que é o próprio relativo (daí ser ele chamado
“pronom e”). A análise das relativas será discutida na seção 4.6, adian­
te. Por ora, observemos apenas a ausência sistemática de um termo,
o que distingue as subordinadas relativas das orações livres.
Finalmente, um último grupo inclui as chamadas “orações redu­
zidas de participio”. Seria o caso de
(18) um queijo feito de leite de ovelha
Essas formas têm estrutura interna muito diferente da das ora­
ções absolutas (livres), e não se justifica sua análise como orações
subordinadas. Darei as razões mais adiante.
Como se vê, o critério da estrutura interna se aplica sem restrições
somente a uma parte das formas tradicionalmente consideradas orações
subordinadas. Para os demais casos será preciso refinar o critério, admi­
tindo certos desvios, referentes à forma do verbo e à ausência sistemática
de certos constituintes. Adotando esse critério, e suplementando-o dessa
forma, chegaremos (por outro caminho e exprimindo-nos em outra
linguagem) a uma solução próxima da transformacional. Esta, iniciada
para as orações subordinadas por Rosenbaum, 1967, dá conta das dife­
renças entre subordinadas e absolutas através de transformações que
alteram justamente a forma do verbo e suprimem certos elementos
(ver, para o português, Quicoli, 1972; Perini, 1977a, e outros).
Os vários tipos de “deformações” acima listados constituem uma
espécie de seqüência de “graus de oracionalidade”; estes se distin­
guem uns dos outros pelo número de traços que apresentam diferen­
ciando-os das orações absolutas. A questão prática que se coloca é a
de traçar o limite entre orações e não-orações: em que altura da seqüên­
cia as diferenças são tão grandes que já não vale a pena falar de “oração”?
A resposta não é muito difícil; acredito que dentro da seqüência
sugerida, isto é,
(a) construções com verbo no indicativo,
(b) construções de subjuntivo ou infinitivo,
(c) construções relativas,
(d) construções de gerúndio,
(e) construções de participio.
210

a linha deve ser traçada de m odo a excluir as construções de partici­


pio. Vou fazer urna comparação entre as construções de gerundio
e as de participio, mostrando que as de gerúndio têm traços impor­
tantes em comum com as orações absolutas, ao passo que as de
participio não têm praticamente nenhum.

4.2.2 G erúndios e p a rticip io s


Examinemos prim eiro as construções de gerúndio. Conforme
argumentei anteriormente (seção 2.3.4.7), essas construções apresen­
tam às vezes um sujeito. Analogamente, encontramos associadas ao
gerúndio outras funções típicas do nível oracional, a saber:
(19) ele trabalhava cantando um tango (OD)
(20) ele trabalhava chorando deseperado/desesperadam ente
(Atr)
(21) ele trabalhava chorando m uito (AC)
(22) passei o verão decorando com pletam ente o apartamento
(AA)
Na verdade, a única função de nível oracional que não se encon­
tra associada a gerúndios é a de adjunto oracional, que só se associa
a orações absolutas ou principais (o AO é um constituinte necessaria­
mente subordinado à raiz da estrutura). Como se vê, as construções
de gerúndio têm importantes analogias com as orações.
Já o mesmo não se dá com as construções de participio; os
termos que se encontram associados a participios mostram invaria­
velmente um comportamento típico de termos suboracionais. Tudo
se passa como se os participios fossem adjetivos puros e simples,
e como tais desempenhassem a função típica de NSA. Por exemplo,
(23) costumes trazidos da Europa
Aqui da Europa parece ser um CSA, em tudo idêntico sintaticamente
ao term o homônimo em
(24) costumes originários da Europa
Em uma construção oracional, como em
(25) papai disse que esses costumes vieram da Europa
esse elemento se analisaria como um adjunto circunstancial, isto é,
[ -CV, +Ant, —Q, +C1, - PA]. Isso explica a possibilidade de ante-
pô-lo ou de fazer dele um foco de clivagem:
(26) da Europa, papai disse que esses costumes vieram {da
Europa contrastivo)
(27) foi da Europa que papai disse que esses costumes vieram
211

Mas nada de parecido é possível com da Europa em (22):


(28) * foi da Europa que ele adotou costumes trazidos
A matriz que descreve o comportamento sintático de da Europa
em tais construções é, para os cinco traços em questão, a matriz
típica das funções suboracionais: [ —CV, -A nt, —Q, -C l, -PA],
Essas observações valem para as construções com participio em
geral, sugerindo claramente que não se trata de construções oracio-
nais, nem sequer semi-oracionais, mas antes de sintagmas adjetivos
bastante típicos. O leitor poderá facilmente repetir os testes com
as duplas seguintes:
(29)
a. queijo feito de leite de ovelha
b. queijo cheio de leite de ovelha
(30)
a. o trabalho terminado, poderem os descansar
b. o trabalho completo, poderem os descansar
(31)
a. alimentados os animais, levamo-los para o estábulo
b. fartos os animais, levamo-los para o estábulo
Em todos os casos, o comportamento sintático das construções com
participio e das construções com adjetivo é idêntico. Em outras pala­
vras, um participio é, na superfície, um adjetivo. Exclui-se apenas
o participio que ocorre com complemento dos auxiliares ter e haver
(ver a seção 4.7).
Talvez uma razão para que alguns considerem as construções
de participio como oracionais seja a possibilidade de se lhes antepor
conjunções como embora, m as etc.:
(32) em bora aceitas minhas objeções, houve resistências
Mas isso não é privilégio de construções oracionais, como se vê em
(33) o imperador era imprudente, em bora bondoso
Concluo que as construções com participio não são oracionais,
e que por conseguinte não existem as chamadas “orações reduzidas
de participio”. Por outro lado, o mesmo raciocínio nos autoriza a
considerar oracionais as construções com gerúndio e com infinitivo.

4.2.3 L im ites da oração p rin c ip a l


Pelo que vimos, então, as orações subordinadas podem diferir
das orações absolutas de dois pontos de vista: a presença, às vezes.
212

de uma forma verbal especial, inexistente ou rara em orações abso­


lutas (diferença tradicionalmente chamada “de modo”), e/ou a ausência
sistemática de determinados constituintes. Fora isso, orações absolutas
e orações subordinadas são idênticas quanto à estrutura interna.
Voltemos agora ao critério de contagem das orações. Vou expli­
car por que se deve considerar a oração principal como sendo a
íntegra do período. No exemplo (3),
(3) o presidente declarou que o país vencerá a crise
identifiquei duas orações, a saber, a subordinada, que é o país ven­
cerá a crise, e a principal, que é o presidente declarou que o país
vencerá a crise. Mas habitualmente, ao se analisar (3), diz-se que
a oração principal é apenas o presidente declarou-, e em geral se
inclui que na oração subordinada. Por que a mudança?
Acontece que a prática usual de análise é incoerente, neste pon­
to, com sua própria doutrina explícita. Define-se “oração subordi­
nada” como aquela que é parte de outra oração, ou, no dizer de
Gama Kuiy,
“[...] são termos da frase desenvolvidos em oração”.
[ K ury, 1985, p. 71.]
Agora, é bem claro que a seqüência que o país vencerá a crise não
é parte de o presidente declarou. Esta não é mais do que um pedaço
de oração, pois teve amputado seu objeto direto. Se o presidente
declarou é a oração principal, podem os dizer que a principal em
(3) não tem objeto direto? E se tem objeto direto, onde está ele?
Acabaríamos sendo forçados a dizer que o objeto direto da principal
de (3) estáfo ra dessa mesma principal (pois a principal é o presidente
declarou, apenas, e o objeto é que o país vencerá a crise). Não creio
que alguém aceite a idéia de que um term o de uma oração possa
estar fora dessa oração. A oração principal de (3) tem, como todos
concordariam, sujeito, núcleo do predicado e objeto direto; logo,
ela deve ser a íntegra de (3), que é a única seqüência onde estão
presentes aqueles três termos.
Então as incoerências desaparecem: primeiro, que o país ven­
cerá a crise é certamente uma parte de o presidente declarou que
o país vencerá a crise-, depois, a principal tem objeto direto, e este
está dentro dela, como seria de se esperar. Finalmente, escapamos
de ter de chamar “oração principal” algo que é apenas um pedaço
de oração, ou seja, uma oração menos o objeto direto. Concluo,
pois, que as duas orações de (3) são: a principal, o presidente decla­
rou que o país vencerá a crise, e a subordinada, o país vencerá
a crise.
213

Poderemos dizer, então, que o OD de (3) é uma oração? Acho


que não. Na verdade, o OD é a seqüência que o país vencerá a
crise, e o critério que dei acima para apurar a existência de uma
segunda oração só se aplica a o país vencerá a crise, sem o que.
É só esta última seqüência que apresenta estruturação interna típica
de oração (no caso, sujeito + núcleo do predicado + objeto direto),
e é só ela que poderia ocorrer como um período separado. Assim,
direi antes que o objeto direto de (3) contém uma oração, mas per­
tence ele próprio a outra classe — a saber, é um SN, como muitos
outros objetos diretos. Segundo a análise tradicional, essa seqüência
pode ocorrer como sujeito, como em
(34) que o país vencerá a crise é evidente
Isso a coloca na classe dos SNs, segundo a definição vista anterior­
mente. Assim, o OD de (3) é um SN que contém uma oração: um
“sintagma complexo”.
Essa posição se harmoniza com a doutrina tradicional explícita,
que diz que certos termos da frase se desenvolvem em oração; pode­
mos entender com isso que certos term os contêm orações. Pode­
mos agora segm entar convenientem ente o período: a oração p rin ­
cipal é a íntegra de (3); a subordinada será o pa ís vencerá a crise,
sem incluir o que. Esse elem ento que tem a função de formar,
juntamente com uma oração, um SN. Há toda uma classe de ele­
mentos que funcionam para, junto a orações, form ar constituintes
de outra classe (a maioria se classifica tradicionalm ente como
“conjunções”).

4.3 Funções d o s sin ta g m a s com plexos: N ível o ra c io n a l

Em princípio, seria de esperar que a análise das funções dos


sintagmas complexos não apresentasse problemas próprios: as mes­
mas definições válidas para as funções dos sintagmas não-complexos
se aplicariam sem dificuldade. Essa expectativa não se realiza inteira­
mente: em bora os traços gerais sejam sensivelmente os mesmos,
autorizando a manutenção da idéia de que um SN complexo, por
exemplo, é basicamente um SN como todos os outros, as funções
dos sintagmas complexos apresentam certas dificuldades de defini­
ção e de depreensão. Vou p erco rrer as diversas funções, exemplifi­
cando-as com sintagmas com plexos e discutindo os eventuais p ro ­
blemas de análise. Começo com as funções de nível oracional,
o que exclui p o r ora as orações relativas; estas serão vistas na
seção 4.6.
214

4.3.1 Objeto direto

Já vimos que um objeto direto pode ser desem penhado por


um sintagma complexo:
(3) o presidente declarou que o país vencerá a crise
Vimos que o term o sublinhado é o objeto direto, pois seu com por­
tamento sintático é descrito pela matriz [-C V , +Ant, +Q , +C1,
—PA]; e vimos que esse OD contém a oração o país vencerá a crise,
sendo portanto um SN complexo.
A gramática tradicional dá um nom e especial a essa oração, a
saber, “oração subordinada objetiva direta”, um dos casos de “oração
substantiva”. Não mantenho essa terminologia porque, como vimos,
a oração não é objeto direto, nem é “substantiva” (ou seja, não cons­
titui um SN). Na verdade, o SN objeto direto é a seqüência de que +
oração; por isso, direi simplesmente que o OD é um sintagma com­
plexo, pois contém uma oração, e chamarei (3) de oração complexa,
porque contém um sintagma complexo.

4.3.2 Air, AA, AO, AC

Não é difícil encontrar sintagmas complexos desempenhando


cada uma dessas quatro funções, e pelo menos em muitos casos
as definições se aplicam sem dificuldades maiores. Assim, na frase
seguinte
(35) Sônia comeu a pizza quando A ntônio virou as costas
a seqüência qi4ando A ntônio virou as costas, que é um sintagma
complexo (se tirarmos o quando, o restante é claramente uma ora­
ção), parece comportar-se como um típico atributo. Além de ser,
evidentemente, [-CV], é também marcado com os demais traços
do atributo:
(36) quando Antônio virou as costas, Sônia comeu a pizza
[ + Ant]
(37) foi quando Antônio virou as costas que Sônia comeu a
pizza [ +C1]
(38) Sônia, quando Antônio virou as costas, comeu a piz­
za [+PA]
E, finalmente, quando A ntônio virou as costas não responde à per­
gunta o quê?! quem?, sendo portanto marcado [~ Q ]. A matriz é
a do atributo: [-C V , +Ant, - Q , +C1, +PA]. Analisamos assim o sintag­
ma complexo quando Antônio virou as costas como atributo de (35).
215

Há também exemplos de adjunto adverbial complexo. Por


exemplo, na frase
(39) a moça riu até que fico u sem fôlego
o sintagma grifado é marcado [ —CV] e também [ —Ant, - Q , +C1,
-PA], como mostram os exemplos:
(40) * até que ficou sem fôlego, a moça riu [ -Ant]
(41)
?? O que a moça riu?
+ Até que ficou sem fôlego [ - Q ]
(42) foi até que ficou sem fôlego que a moça riu [+C1]
(43) * a moça, até que ficou sem fôlego, riu [-PA ]
Assim, esse sintagma complexo se analisa como adjunto adverbial,
com a matriz [ —CV, -A nt, —Q, +C1, -PA].
Um exemplo de adjunto oracional desempenhado por sintagma
complexo é
(44) Nô toca violão, com o todos sabem
Não é difícil verificar que com o todos sabem em (44) é marcado
[-C V , +Ant, - Q , -C l, +PA], o que o faz um adjunto oracional
perfeitamente prototípico:
(45) como todos sabem, Nô toca violão [ +Ant]
(46)
?? O que Nô toca violão?
+ Como todos sabem [ - Q ]
(47) * é como todos sabem que Nô toca violão [-C l]
(48) Nô, como todos sabem, toca violão [ 4-PA]
Igualmente se encontram adjuntos circunstanciais complexos.
A matriz do AC é, como sabemos, [-C V , 4-Ant, - Q , 4-Cl, —PA].
Encontramos um sintagma complexo com esse comportamento em
(49) André trabalhava tom ando café
Verifica-se isso através das variações
(50) tomando café, André trabalhava [ 4-Ant]
(51)
?? O que André trabalhava?
4- Tomando café [ —Q]
(52) era tomando café que André trabalhava [ 4-Cl]
(53) ?? André, tomando café, trabalhava [ - PA]
(É preciso reconhecer que o julgamento de (53) como inaceitável
não é tão seguro quanto os demais.)
216

Apesar de freqüentes incertezas de julgamento, rel.u iMu.idirt’


com a dificuldade de avaliar a possibilidade de antepoi ,Mnianm«
complexos, acredito que existem adjuntos circunstanciais i ( mipl. »
em português.

4.3.3 Predicativo
Até o momento, a análise dos sintagmas complexos ,seguiu • m .
paralelas à dos sintagmas não-complexos. Mas com o prisli. hum
encontramos uma função que não parece ser nunca desemiiciili n fi
por sintagmas complexos (excluindo-se, por ora, as construçi ic ... .ut
oração adjetiva). Uma busca sumária não revelou nenhum (.‘xeiui T i
de predicativo complexo, e sugere que tais construções não ()o m11 m
na língua.
Se a pesquisa confirmar essa restrição da função de prislli .u u . •
a sintagmas não-complexos, deveremos admitir que a distribui.. i«i
dos sintagmas complexos não é perfeitamente paralela à ck- m u
correspondentes não-complexos. Ainda assim, creio que vale a | » u i
continuar classificando-os juntos com os mesmos rótulos; em dru i
minado grau de detalhamento, as semelhanças sintáticas são s u I k i . u
temente grandes para justificar essa classificação. Mas ceriaiurui.
há assimetrias a estudar.

4.3.4 Sujeito
Deixei para o final a discussão da função de sujeito porque, ei iil mii
seja habitualmente aceita para sintagmas complexos como os de
(54) que Sandra te persegue é óbvio
(55) Sandra ter ganho n a loteria me alegrou
há problemas com essa análise, que precisam ser consideradlas.
O problem a mais sério tem a ver com a aplicação do li.u.n
[CV], que, como sabemos, é essencial na caracterização do suieii..
frente às demais funções; é, segundo a lista do capítulo 2, o unit..
traço que distingue o sujeito do objeto direto. Mas em casos de pi esii
mível sujeito representado por sintagma complexo (não-relativi >) pn
de haver sem pre dúvida quanto ao term o que está em relaçãi >. I.
concordância com o verbo, porque este fica obrigatoriamente u.i
terceira pessoa do singular. Pode-se, por exemplo, defender a idei.i
de que aí o verbo não concorda, mas fica na terceira do siiigul.ii
por ser essa a forma não-marcada, como ocorre em
(56) está cheio de crianças na praia
217

l i m p i o tirado de Martin, 1975, onde se encontra urna discussão


|:caráter não marcado da terceira pessoa do singular.)
Uma maneira de verificar se de fato o verbo está em relação
concordância com o SN complexo em (55) seria coordenar dois
I- i complexos nessa posição, pois com sujeito coordenado ( “com-
■to”) o verbo fica no plural. No entanto, esse teste é impossível
' ' causa de alguma restrição imposta pela língua à coordenação
[♦sintagmas complexos nessa função (seja ela a de sujeito ou outra
ilquer). Assim, ambas as frases seguintes são inaceitáveis:
(57) ? * que Márcia sofreu e que Maria chorou consolou Ni­
valdo
(58) * que Márcia sofreu e que Maria chorou consolaram Ni­
valdo
||>*ieu ver é justamente (58), onde a concordância está realizada
mianeira esperada, a pior das duas.
Não se trata de uma restrição à coordenação de sintagmas com-
xos, porque objetos diretos complexos podem ser coordenados
problema:
(59) Nivaldo descobriu que Márcia sofreu e que Maria chorou
l*n se trata de proibição de sintagmas complexos coordenados
início da frase, porque o objeto coordenado de (59) pode ser
:eposto:
(60) que Márcia sofreu e que Maria chorou, Nivaldo descobriu
a frase me parece aceitável quando usada contrastivamente.
Por outro lado, se a clivagem os transportar para depois do
ItW fbo, OS' sintagmas coordenados de (57) e (58) não provocam má
Ipll'm ação; mas a concordância, que nesse caso se faz com ser, não
l^ ^ -d e ser feita com o elemento coordenado:
(61) o que consolou Nivaldo foi/* foram que Márcia sofreu
e que Maria chorou
Há evidentemente um grupo de fatos misteriosos, que precisam
|M>c devidamente investigados; esses fatos impossibilitam averiguar
II sta tu s de sujeito do sintagma complexo de (55) se nos ativermos
fe concepção tradicional de concordância. Entretanto, a análise da
W>ncordância que propus no capítulo 2 dá melhores resultados, e
lU verdade fornece um argumento em favor de se analisar aquele
»intagma como sujeito (apoiando assim a análise tradicional nesse
[lurticular).
Vejamos o seguinte exemplo:
(62) que Sandra te persegue incomoda Denise
218

Vamos submeter essa frase aos procedimentos de rotulação pro­


postos no capítulo 2. Temos aí dois SNs de nível oracional, a saber,
que Sandra te persegue e Denise-, destes, Denise deverá ser inevita­
velmente rotulado como objeto direto, pois ocorre após o NdP, e
o verbo é não-pospositivo. Já o SN complexo admite duas análises;
ou o verbo é considerado como estando em concordância com ele,
e nesse caso será sujeito; ou não está em concordância, e nesse caso
será um objeto direto topicalizado. Mas esta última análise é impos­
sível, porque a frase ficará com dois objetos diretos, e já vimos que
em tais casos a estrutura é excluída. Portanto, se o SN complexo
de (62) não fosse sujeito, a frase deveria ser mal formada; como
não é, concluímos que o SN complexo é, de fato, um sujeito.
Reconhecendo embora que há muito que ainda não com preen­
do neste particular, vou adotar a posição (tradicional) de que sintag­
mas complexos como o de (55) são realmente sujeitos. Essa parece
ser a análise que m elhor se harmoniza com o conjunto da descrição
aqui proposta.

4.4 S u b o rd in a d a s, c o o rd e n a d a s e a m a tr iz “m en os
tu d o ”

Antes de passar às funções suboracionais, há um ponto de im por­


tância a ser examinado, que é o da significação exata da matriz “me­
nos tudo”, que, conforme se viu em 3.3, caracteriza as funções subora­
cionais frente às funções de nível oracional. A questão se liga à da
análise de certas estruturas coordenadas e de outras, chamadas às
vezes “correlatas”, que têm analogias com as coordenadas.
Se considerarmos apenas orações complexas do tipo das que
vimos até o momento (isto é, “períodos compostos por subordi­
nação”), veremos que os traços do capítulo 2 se aplicam de maneira
essencialmente paralela à que vale para constituintes não-complexos:
as subordinadas se caracterizam ou por uma das matrizes prototípicas
das funções oracionais, ou então pela matriz [-C V , -A nt, - Q , -C l,
-P A -pN dP], que denuncia uma função suboracional. Um exemplo
deste último caso é
(63) meu cunhado com prou o carro que m inha irm ã queria
O sintagma complexo de (63) é marcado “m enos” para os seis traços
do capítulo 2; e, com efeito, como se verá mais tarde neste capítulo,
desempenha uma função suboracional, no caso a de modificador.
No entanto, não se pode dizer que a matriz “menos tudo” define
sem ambigüidade as funções suboracionais, isso porque as coorde-
219

nadas são também marcadas negativamente quanto aos seis traços.


Por exemplo, pode-se verificar que a segunda oração de
(64) Fininho fala inglês e Bolão toca viola
também é marcada negativamente para esses traços:
(65) * Bolão toca viola Fininho fala inglês e [ —Ant]
( 66)
?? O que Fininho fala inglês?
+ Bolão toca viola [ - Q]
(67) * é Bolão toca viola que Fininho fala inglês [-C1]
e assim por diante.
Como certamente uma oração coordenada não desempenha
uma função suboracional, é necessário interpretar devidamente o
significado da matriz “menos tudo”; já não a podem os tomar como
indício unívoco da presença de uma função suboracional. Antes, trata-
se de um fenômeno mais geral, do qual as funções suboracionais
representam um caso especial. Acredito que pode formular-se assim:
a matriz “menos tudo” caracteriza qualquer elemento que não é
constituinte imediato de uma or^ção; ou, dito de outra forma, caracte­
riza qualquer constituinte que não desempenha nenhum a fu n ç ã o
oracional Isso, evidentemente, engloba não apenas os constituintes
de função suboracional, como também os constituintes que, como
as coordenadas, não têm função nenhuma dentro de outra oração.
Por outro lado, as orações coordenadas se distinguem dos sin­
tagmas complexos de função suboracional por não formarem consti­
tuintes com nenhum outro elemento da frase, ao passo que aqueles
sempre se incluem em constituintes, juntamente com outros termos.
Isso é o que distingue (64)
(64) Fininho fala inglês e Bolão toca viola
onde Bolão toca viola não forma constituinte com nada mais, de
(63)
(63) meu cunhado comprou o carro que minha irmã queria
onde que m inha irm ã queria é parte do constituinte maior o carro
que m inha irm ã queria.

4.5 C orrelação

Além da subordinação e da coordenação, alguns autores consi­


deram outro tipo de encaixamento de orações, chamado “correla­
ção” (orações correlatas). Rocha Lima, por exemplo, é um dos que
216

Apesar de freqüentes incertezas de julgamento, relacionadas


com a dificuldade de avaliar a possibilidade de antepor sintagmas
complexos, acredito que existem adjuntos circunstanciais complexos
em português.

4.3.3 Predicativo
Até o momento, a análise dos sintagmas complexos seguiu vias
paralelas à dos sintagmas não-complexos. Mas com o predicativo
encontramos uma função que não parece ser nunca desempenhada
por sintagmas complexos (excluindo-se, por ora, as construções com
oração adjetiva). Uma busca sumária não revelou nenhum exemplo
de predicativo complexo, e sugere que tais construções não ocorrem
na língua.
Se a pesquisa confirmar essa restrição da função de predicativo
a sintagmas não-complexos, deveremos admitir que a distribuição
dos sintagmas complexos não é perfeitamente paralela à de seus
correspondentes não-complexos. Ainda assim, creio que vale a pena
continuar classificando-os juntos com os mesmos rótulos; em deter­
minado grau de detalhamento, as semelhanças sintáticas são suficien­
temente grandes para justificar essa classificação. Mas certamente
há assimetrias a estudar.

4.3.4 Sujeito
Deixei para o final a discussão da função de sujeito porque, embora
seja habitualmente aceita para sintagmas complexos como os de
(54) que Sandra te persegue é óbvio
(55) Sandra ter ganho na loteria me alegrou
há problemas com essa análise, que precisam ser considerados.
O problem a mais sério tem a ver com a aplicação do traço
[CV], que, como sabemos, é essencial na caracterização do sujeito
frente às demais funções; é, segundo a lista do capítulo 2, o único
traço que distingue o sujeito do objeto direto. Mas em casos de presu­
mível sujeito representado por sintagma complexo (não-relativo) po­
de haver sem pre dúvida quanto ao termo que está em relação de
concordância com o verbo, porque este fica obrigatoriamente na
terceira pessoa do singular. Pode-se, por exemplo, defender a idéia
de que aí o verbo não concorda, mas fica na terceira do singular
por ser essa a forma não-marcada, como ocorre em
(56) está cheio de crianças na praia
217

(Exemplo tirado de Martin, 1975, onde se encontra uma discussão


do caráter não marcado da terceira pessoa do singular.)
Uma maneira de verificar se de fato o verbo está em relação
de concordância com o SN complexo em (55) seria coordenar dois
SNs complexos nessa posição, pois com sujeito coordenado ( “com­
posto”) o verbo fica no plural. No entanto, esse teste é impossível
por causa de alguma restrição imposta pela língua à coordenação
de sintagmas complexos nessa função (seja ela a de sujeito ou outra
qualquer). Assim, ambas as frases seguintes são inaceitáveis:
(57) ? * que Márcia sofreu e que Maria chorou consolou Ni­
valdo
(58) * que Márcia sofreu e que Maria chorou consolaram Ni­
valdo
A meu ver é justamente (58), onde a concordância está realizada
da maneira esperada, a pior das duas.
Não se trata de uma restrição à coordenação de sintagmas com­
plexos, porque objetos diretos complexos podem ser coordenados
sem problema:
(59) Nivaldo descobriu que Márcia sofreu e que Maria chorou
Nem se trata de proibição de sintagmas complexos coordenados
no início da frase, porque o objeto coordenado de (59) pode ser
anteposto:
(60) que Márcia sofreu e que Maria chorou, Nivaldo descobriu
Esta frase me parece aceitável quando usada contrastivamente.
Por outro lado, se a clivagem os transportar para depois do
verbo, os- sintagmas coordenados de (57) e (58) não provocam má
formação; mas a concordância, que nesse caso se faz com ser, não
pode ser feita com o elemento coordenado:
(61) o que consolou Nivaldo foi / * foram que Márcia sofreu
e que Maria chorou
Há evidentemente um grupo de fatos misteriosos, que precisam
ser devidamente investigados; esses fatos impossibilitam averiguar
o status de sujeito do sintagma complexo de (55) se nos ativermos
à concepção tradicional de concordância. Entretanto, a análise da
concordância que propus no capítulo 2 dá melhores resultados, e
na verdade fornece um argumento em favor de se analisar aquele
sintagma como sujeito (apoiando assim a análise tradicional nesse
particular).
Vejamos o seguinte exemplo:
(62) que Sandra te persegue incomoda Denise
218

Vamos submeter essa frase aos procedimentos de rotulação pro­


postos no capítulo 2. Temos aí dois SNs de nível oracional, a saber,
que Sandra te persegue e Denise-, destes, Denise deverá ser inevita­
velmente rotulado como objeto direto, pois ocorre após o NdP, e
o verbo é não-pospositivo. Já o SN complexo admite duas análises;
ou o verbo é considerado como estando em concordância com ele,
e nesse caso será sujeito; ou não está em concordância, e nesse caso
será um objeto direto topicalizado. Mas esta última análise é impos­
sível, porque a frase ficará com dois objetos diretos, e já vimos que
em tais casos a estrutura é excluída. Portanto, se o SN complexo
de (62) não fosse sujeito, a frase deveria ser mal formada; como
não é, concluímos que o SN complexo é, de fato, um sujeito.
Reconhecendo em bora que há muito que ainda não com preen­
do neste particular, vou adotar a posição (tradicional) de que sintag­
mas complexos como o de (55) são realmente sujeitos. Essa parece
ser a análise que m elhor se harmoniza com o conjunto da descrição
aqui proposta.

4.4 S u b o rd in a d a s, c o o rd e n a d a s e a m a tr iz “m en os
tu d o ’

Antes de passar às funções suboracionais, há um ponto de im por­


tância a ser examinado, que é o da significação exata da matriz “m e­
nos tudo”, que, conforme se viu em 3.3, caracteriza as funções subora­
cionais frente às funções de nível oracional. A questão se liga à da
análise de certas estruturas coordenadas e de outras, chamadas às
vezes “correlatas”, que têm analogias com as coordenadas.
Se considerarmos apenas orações complexas do tipo das que
vimos até o momento (isto é, “períodos compostos por subordi­
nação”), veremos que os traços do capítulo 2 se aplicam de maneira
essencialmente paralela à que vale para constituintes não-complexos:
as subordinadas se caracterizam ou por uma das matrizes prototípicas
das funções oracionais, ou então pela matriz [ —CV, —Ant, —Q, —Cl,
—PA —pNdPj, que denuncia uma função suboracional. Um exemplo
deste último caso é
(63) meu cunhado comprou o carro que m inha irm ã queria
O sintagma complexo de (63) é marcado “m enos” para os seis traços
do capítulo 2; e, com efeito, como se verá mais tarde neste capítulo,
desempenha uma função suboracional, no caso a de modificador.
No entanto, não se pode dizer que a matriz “menos tudo” define
sem ambigüidade as funções suboracionais, isso porque as coorde-
219

nadas são também marcadas negativamente quanto aos seis traços.


Por exemplo, pode-se verificar que a segunda oração de
(64) Fininho fala inglês e Bolão toca viola
também é marcada negativamente para esses traços:
(65) * Bolão toca viola Fininho fala inglês e [ —Ant]
(66)
?? O que Fininho fala inglês?
+ Bolão toca viola [ - Q ]
(67) * é Bolão toca viola que Fininho fala inglês [-C1]
e assim por diante.
Como certamente uma oração coordenada não desempenha
uma função suboracional, é necessário interpretar devidamente o
significado da matriz “menos tudo”; já não a podem os tomar como
indício unívoco da presença de uma função suboracional. Antes, trata-
se de um fenômeno mais geral, do qual as funções suboracionais
representam um caso especial. Acredito que pode formular-se assim:
a matriz “menos tudo” caracteriza qualquer elemento que não é
constituinte imediato de uma or^ção; ou, dito de outra forma, caracte­
riza qualquer constituinte que não desempenha nenhum a fu n ç ã o
oracioruã. Isso, evidentemente, engloba não apenas os constituintes
de função suboracional, como também os constituintes que, como
as coordenadas, não têm função nenhuma dentro de outra oração.
Por outro lado, as orações coordenadas se distinguem dos sin­
tagmas complexos de função suboracional por não formarem consti­
tuintes com nenhum outro elemento da frase, ao passo que aqueles
sempre se incluem em constituintes, juntamente com outros termos.
Isso é o que distingue (64)
(64) Fininho fala inglês e Bolão toca viola
onde B olão toca viola não forma constituinte com nada mais, de
(63)
(63) meu cunhado comprou o carro que minha irmã queria
onde que m inha irm ã queria é parte do constituinte maior o carro
que m inha irm ã queria.

4.5 C orrelação

Além da subordinação e da coordenação, alguns autores consi­


deram outro tipo de encaixamento de orações, chamado “correla­
ção” (orações correlatas). Rocha Lima, por exemplo, é um dos que
220

consideram a correlação um terceiro tipo de relação entre orações


no período:
“[Na correlação] não há independência das orações componentes do
período, como na coordenação; nem subdependência, como na subor­
dinação. Existe, a rigor, paradependência”.
[ L im a , 1964, p. 259.]
Não é fácil depreender o que quer dizer Rocha Lima como
“independência”, “subdependência” e “paradependência”; talvez se
esteja referindo à possibilidade de se cortar um período coordenado
com um ponto final, o que seria impossível com a correlação ou
a subordinação. Mas esse critério não separa correlação de subordi­
nação (ou pelo menos de alguns tipos de subordinação). E, por outro
lado, atualmente se encontra com certa freqüência a separação de
orações adverbiais em um segundo período, como em
(68) Mariazinha prom eteu comportar-se. Quando ganhou um
bombom.
Os exemplos de Rocha Lima são:
(69) a rã inchou e estourou (coordenação)
(70) a rã inchou tanto, que estourou (correlação)
Apesar de uma certa obscuridade, esse critério (tal como o inter­
pretei acima) terá utilidade mais adiante, na distinção entre coorde­
nação e correlação.
Alguns autores, em vez de considerarem a correlação um tipo
separado de junção de orações, parecem vê-la como um processo
que se superpõe à subordinação e à coordenação:
“A correlação se estabelece — a) por coordenação [...], ou b) por
subordinação [...] conforme o conectivo utilizado e a noção de seqüên­
cia ou de sintagma, respectivamente, que daí decorre; exemplos: a)
é não só bravo mas hábil, b) é tão bravo que chega a ser temerário".
[ C a m a r a Ju.N iO R , 1977, p. 87.]
Nas gramáticas mais recentes, que seguem a NGB, a correlação
não costuma ser mencionada, ou tem papel marginal.
Do ponto de vista da nossa análise, as correlatas em geral pare­
cem identificar-se com as coordenadas. Em prim eiro lugar, são mar­
cadas negativamente para todos os traços oracionais; em segundo,
não formam constituinte com nenhum outro elemento da oração.
Isso indica que tais orações não são nem constituintes imediatos
da oração m aior nem constituintes de nível suboracional. De acordo
com a análise aqui proposta, isso caraaeriza as orações coordenadas.
Outro ponto d e semelhança entre correlatas e coordenadas é o se-
221

guinte: as orações subordinadas (ou, mais exatamente, os sintagmas


complexos a que elas se subordinam) podem sempre ser coorde­
nadas entre si, repetindo o conectivo. Assim, podem os ter:
(71) ele disse que vinha e que traria a namorada
(72) ela comeu a pizza quando virei as costas e quando nin­
guém olhava
(73) Nô toca violão, como todos sabem e como saiu no jornal
Tal coordenação (com repetição do conectivo) é impossível com
as coordenadas:
(74) * ele chegou, mas não apareceu e mas não telefonou
(75) * ele chegou, entretanto não apareceu e entretanto não
telefonou
Desse ponto de vista, as correlatas funcionam, mais uma vez,
como as coordenadas:
(76) * eu estava meio tonto, de modo que fui dorm ir e de
modo que não assisti à peça
(77) * a rã inchou tanto, que estourou e que m orreu
(78) * choveu que foi um horror e que assustou todo m undo
Como se vê, a evidência maior aponta na direção de se analisar
as correlatas como coordenadas, ou pelo menos como um caso espe­
cial das coordenadas. Mas há diferenças entre elas, como a possibi­
lidade, mencionada acima, de se separar as coordenadas por ponto
final (formando dois períodos), o que nunca pode ser feito com
as correlatas (embora ocorra às vezes com certas subordinadas).
A solução deverá esperar estudos mais completos; acredito que
a classe das “coordenadas” tem comportamento sintático pouco ho­
mogêneo, e está a exigir bastante mais pesquisa do que se tem feito
até o momento. Na ocasião, dever-se-á incluir na investigação o pro­
blema da análise das correlatas.

4.6 N ível su boracion al: A con stru ção re la tiv a

Encontramos também sintagmas complexos desempenhando


funções de nível suboracional; trata-se das chamadas orações relativas
(adjetivas) ou, mais rigorosamente, de sintagmas que contêm tais
orações. Um exemplo é
(79) a professora que reprovou Juquinha pegou catapora
Aqui, como vimos, há razões para acreditar que o SN « professora
que reprovou Juquinha, sujeito de (79), contém uma oração, sendo
222

portanto complexo. Todos os casos que examinaremos nesta seção


são de SNs complexos nos quais a oração subordinada é vinculada
ao resto do SN através de um elemento “relativo”, tirado de uma
pequena lista: que, o qual, quem , cujo e onde.

4.6.1 Funções da construção relativa


Tais estruturas introduzidas por que etc. (que podem os chamar
de “construções relativas”) aparecem tipicamente com função de
modificador. Ocorrem portanto em sétimo lugar no SN máximo,
como se pode ver em
(80) todos os meus muitos valentes amigos que sempre m e
ajudam
À parte as construções “explicativas” (em geral separadas por
vírgula na escrita), essa é a única função possível das estruturas relati­
vas. Por outro lado, o SN a que a construção relativa pertence pode
ocorrer em qualquer das funções normalmente ocupadas por SNs,
não tendo portanto sob esse aspecto nada de especial.

4.6.2 Estrutura interna da construção relativa


4.6.2.1 Proposta de análise
A construção relativa é introduzida, como vimos, por um dos
elementos “relativos” (tradicionalmente chamados “pronomes relati­
vos”). Apesar de algumas ambigüidades de análise (em especial do
famigerado que), podem os partir da idéia de que esse elemento
relativo é uma marca clara das construções relativas. Há outras mar­
cas, de maneira que essas construções em geral se identificam sem
dificuldade. Além do elemento relativo (que chamarei, abreviada­
mente, “relativo”), a construção relativa sempre apresenta os seguin­
tes traços:
(a) forma, no conjunto, um SN;
(b) inicia-se por uma seqüência de termos do SN, que pode
incluir um ou mais dos seguintes: PDet, Det, Poss, Qf, PN,
NSN;
(c) imediatamente após essa seqüência vem um sintagma for­
mado de relativo + uma oração (esse sintagma tem a fun­
ção de Mod);
(d) a oração apresenta uma lacuna aparente, o.u seja, um de
seus termos não aparece na forma habitual.
223

O problema principal relativo a essa lista de características é


o de definir e localizar a “lacuna” a que se refere o item (d).
Entendo por “lacuna aparente” a ausência de um term o qual­
quer da oração na forma em que apareceria em urna oração livre;
o term o não está propriam ente ausente, mas, como se verá, compa­
rece na estrutura sob forma transformada. Sua presença é denunciada
pela impossibilidade de introduzir um term o de mesma função na
forma usual, isto é, na forma que apresentaria na oração livre. Toman­
do o exemplo (79),
(79) a professora que reprovou Juquinha pegou catapora
temos a oração reprovou Juquinha, composta aparentemente apenas
de NdP + OD. A ausência mais evidente é a do sujeito. No entanto,
é impossível sanar essa deficiência colocando-se um sujeito qualquer
na forma habitual:
(81) * a professora que ela reprovou Juquinha pegou catapora
Outros termos eventualmente ausentes podem ser introduzidos,
como o atributo:
(82) a professora que reprovou Juquinha impiedosamente ...
a negação verbal:
(83) a professora que não reprovou Ju q u in h a...
e assim por diante; apenas o sujeito não pode ser introduzido.
Não obstante, a concordância verbal se verifica, e parece estar
controlada pelos outros elementos do SN:
(84) as professoras que reprovaram Juquinha ...
Assim, apesar das aparências, há evidência de que a subordinada
de (81) tem sujeito: as condições de concordância se aplicam, e não
se pode introduzir um sujeito; sabemos que nenhum a estrutura ad­
mite dois sujeitos na mesma oração (veremos a questão da concor­
dância nas relativas em detalhe logo abaixo).
O mesmo raciocinio (á parte a concordância verbal, obviamen­
te) pode ser aplicado para argumentar em favor da presença de ter­
mos “invisíveis” em outras construções relativas; por exemplo, seria
impossível introduzir um objeto direto na relativa de
(85) a professora que Juquinha entrevistou pegou catapora
Vou admitir que as lacunas aparentes denunciam termos da ora­
ção efetivamente presentes para efeitos de análise sintática. Indícios
como os que vimos acima, particularmente a impossibilidade de in­
trodução de termos idénticos, servem para identificar sem muita
dificuldade qual é o constituinte aparentemente ausente. Como se
ZZ4

vê, a localização da lacuna decorre, em última análise, da transiti­


vidade do verbo.
A análise que vou adotar, que segue neste particular a da gramá­
tica tradicional, é a de que o relativo é o termo faltante, em forma
reduzida. Isso nos levará, evidentemente, a incluí-lo na oração, de
forma que a “oração” a que os pontos (c) e (d) acima se referem
é também uma oração aparente: a oração completa inclui o relativo.
Como entendo os pontos (a) a (d) apenas como indicações práticas,
e não como parte integrante da descrição, deixarei passar essa inexati­
dão, para evitar que pistas concebidas como guias práticos de análise
dependam, para sua aplicação, de um conhecimento da análise aca­
bada.
Nas páginas seguintes ocupar-me-ei com a justificação da análise,
partindo de traços observáveis da construção relativa (isto é, partindo
de “fatos gramaticais” no sentido definido em 1.8). Entrarei nos por­
menores dessa justificação, tomando o caso do sujeito como exemplo
especialmente favorável, porque tem como um de seus correlatos
a concordância verbal. Veremos como se interpreta a estrutura das
relativas sob a luz da análise da concordância verbal proposta nas
seções 2 .3 . 3 e 2.3.4.
Começo expondo a análise adotada; depois considero possíveis
alternativas, assim como as razões pelas quais são rejeitadas. A análise
que proponho se resume nos seguintes pontos:
(a) seguindo de perto a análise tradicional, direi que o termo
faltante está presente na estrutura sob a forma do elemento
relativo. A alteração de forma é conseqüência de um tipo
especial de redução pronominal, e a diferença de posição
(evidente quando o relativo não é sujeito) é resultado de
um processo particular às construções relativas;
(b) o relativo pertence à oração subordinada;
(c) a seqüência precedente, que é o antecedente do relativo,
não pertence à oração subordinada;
(d) o relativo possui traços de gênero, núm ero e pessoa, copia­
dos do antecedente através de uma operação também parti­
cular às construções relativas; e
(e) o relativo é um SN, podendo desem penhar funções típicas
de SN.
Note-se que essa análise inclui certos traços específicos às cons­
truções relativas; ou seja, nem tudo decorre diretamente da análise
das demais estruturas sintáticas da língua. A forma peculiar e a posição
do relativo, assim como a cópia dos traços do antecedente, são carac­
terísticas das construções relativas que não se estendem aos sintag-
225

mas complexos em geral. Pelo menos alguns desses traços ocorrem


também nas interrogativas com elemento Q, que não serão estudadas
neste capítulo. Mas, de qualquer forma, é de se esperar que haja
características peculiares às construções relativas, que são bastante
diferentes das orações absolutas e das subordinadas de outros tipos.
Nenhuma análise pode escapar desse fato, nem de suas conseqüên­
cias na descrição.
Os traços de gênero e núm ero do relativo podem aparecer expli­
citados no caso de o q u a l {a qu al, os quais, as quais), item que
tem o comportamento sintático de um relativo, e sempre se harm o­
niza (explicitamente) com o antecedente em gênero e número.
Os demais pontos da análise, acima resumidos como (a), (b),
(c) e (e), são corroborados através da eficiência de seu funciona­
mento na descrição dos fatos da língua. A se adotar esse conjunto
de postulados, a análise desenvolvida até o momento é suficiente
para explicar os fatos ligados às construções relativas. É o que vere­
mos a seguir.

4.6.2.2 Argumentação em favor da análise


Vou começar examinando as causas da má-formação de
(86) * as professoras que reprovou Juquinha pegaram catapora
Se admitirmos, como o faz a análise proposta, que o elemento qu e
tem o traço de “plural”, copiado do antecedente as professoras, então
os procedimentos de rotulação propostos no capítulo 2 marcarão
q u e como objeto direto da oração subordinada. Isso levará à filtragem
da estrutura através do F3P (filtro de terceira pessoa), pois como
o verbo é não-posç:os[X.ivo, Ju qu in h a também será um OD; a estrutura
subordinada tem um verbo na terceira pessoa do singular, sem sujei­
to. Além disso, temos aí dois objetos diretos, o que é uma segunda
razão para que a construção seja marcada como malformada.
Este prim eiro exemplo já nos dá justificativas para alguns dos
pontos acima dados como resumindo a análise: para que a explicação
funcione, é necessário que q u e pertença à oração subordinada; que
tenha traços (de pessoa e núm ero) copiados do antecedente; e que
seja um SN, pois de outro m odo não seria rotulado pelos procedi­
mentos, que só se aplicam a SNs.
Passemos ao caso de
(87) a professora que encontrei pegou catapora
Nessa frase, q u e é de terceira pessoa do singular; e, como o verbo
está na primeira pessoa, qu e é rotulado de objeto direto. A estrutura
226

escapa ao F3P porque o verbo não está na terceira pessoa do singular;


e como não há outro SN rotulável como OD, não há aí duplo objeto.
Não havendo razão para filtragem, a frase é bem formada.
Esse caso fornece evidência em favor de se considerar o antece­
dente como externo à oração subordinada; se a professora perten­
cesse à subordinada, seria rotulado de OD; teríamos dois ODs na
oração, o que provocaria sua filtragem.
Agora examinemos
(88) * a professora que reprovaram Juquinha pegou catapora
Parte da explicação dada acima para (86) se aplica a este exemplo:
tanto que quanto Juquinha são objetos diretos da oração subordi­
nada, o que causa sua filtragem. Aqui, entretanto, o F3P não se aplica,
porque o verbo não está na terceira do singular; portanto, (88), ao
contrário de (86), não tem duas razões de má-formação. Se alterarmos
o antecedente para as professoras (ajustando o verbo da principal)
(89) as professoras que reprovaram Juquinha pegaram catapora
a frase ficará aceitável: que agora é marcado como terceira pessoa
do plural, como o verbo. Assim, será rotulado de sujeito, o que rem o­
ve o problem a do duplo objeto.
Como se vê, a análise acima aventada permite a explicação dos
dados em harmonia com o restante da descrição, tal como foi elabo­
rada nos capítulos anteriores; em particular, a análise proposta no
capítulo 2 para a concordância verbal se aplica sem modificações
aos casos de construções relativas. Por outro lado, permite ainda
integrar de maneira natural as marcas de gênero e núm ero encon­
tradas no relativo o qual. Como mostrarei a seguir, as análises alterna­
tivas falham em um ou mais desses pontos, o que me leva a rejeitá-las.

4.6.2.3 Análises alternativas


Vou examinar duas análises alternativas à análise adotada, mos­
trando suas inadequações. A primeira delas se basearia na postulação
de um elemento vazio, que representaria o term o faltante da oração
subordinada; o relativo seria meramente um introdutor da subordi­
nada, não sendo um SN. A análise de (79)
(79) a professora que reprovou Juquinha pegou catapora
se faria, segundo esta hipótese, sobre a estrutura
(90) a professora que [ 0 ]sn reprovou Juquinha ...
O SN vazio é que seria o sujeito da subordinada, tendo os traços
de gênero e núm ero copiados do antecedente.
227

Há problemas sérios com essa análise. O prim eiro tem a ver


com o relativo o qual, que, conforme sabemos, manifesta os traços
de gênero e núm ero morfologicamente. Se o qual for, como parece
ser, um relativo como que, então uma frase como
(91) as professoras, as quais ganham uma miséria, fizeram greve'
será analisada como se fosse
(92) as professoras, as quais [0]sn ganham uma m iséria,...
de maneira paralela à que se viu acima para (79). Mas aqui somos
obrigados a dizer que a operação dos filtros de concordância leva
em consideração os traços de 0 , e não os traços (idênticos) de as
quais-, temos dois termos explícitos marcados “feminino” e “plural”,
mas o term o relevante para a filtragem é um terceiro, também marca­
do “feminino” e “plural”, e não presente explicitamente. Essa me
parece uma maneira desnecessariamente indireta de descrever os
fetos. Acrescente-se que, além da cópia dos traços do antecedente em
0 (para permitir a descrição da concordância), precisamos ainda de
uma segunda cópia, dos traços do antecedente em o qual, para explicar
a forma assumida por esse relativo na sentença. Duplicamos o meca­
nismo de cópia, perdendo uma unidade que a análise da seção anterior
conserva. Creio que a inadequação dessa análise em comparação com
a de 4.Ó.2.2 se evidencia suficientemente com esses argumentos.
Há mais um argumento contrário a essa análise, proveniente
da relação entre 0 e seu antecedente. Nos casos em que parece
inevitável a postulação de um constituinte vazio, não há exigência
de que os traços de 0 e os de antecedente sejam todos idênticos.
Assim, podemos ter
(93) Beth bebe cerveja, e eu 0 Steinhãger com mamão
Já vimos que o termo vazio de (93) é um verbo elíptico, controlado
pelo verbo da primeira oração, bebe. Mas não se pode dizer que
é uma cópia completa, inclusive traços de núm ero e pessoa, porque
o sujeito da segunda oração é de primeira pessoa, e no entanto não
há filtragem. Se aceitássemos que 0 é uma cópia de bebe (inclusive
núm ero e pessoa), a frase (93) acabaria sendo filtrada, e deveria
ser inaceitável. Como não é, precisamos admitir que a identidade
entre 0 e seu antecedente não inclui os traços de gênero e número;
0 , provavelmente, não é marcado quanto a esses traços.
Mas seria preciso adotar atitude oposta para o 0 de (90): aqui
o term o vazio teria os traços de gênero e núm ero do seu antecedente.

' Aqui acrescentei vírgulas, separando a construção relativa; a razão é que o relativo o qual,
sem preposição, só ocorre em construções relativas com vírgula (chamadas “explicativas”).
A alteração não influencia o argumento, pois a análise sintática das explicativas é essencial­
m ente idêntica à das não-explicativas ( “restritivas”).
228

para que a análise funcionasse. Evidentemente, isso nos levaria a


uma complicação da análise, porque deveríamos explicitar quando
é que 0 toma os traços de gênero e núm ero de seu antecedente
e quando é que não toma.
Todos esses problemas provêm da presença nas estruturas rela­
tivas de um term o vazio, que supriria a falta de um dos termos da
oração. A análise proposta na seção anterior, como evita esse term o
vazio, escapa a todos os problemas apontados. Opto, portanto, pela
primeira solução.
Uma outra alternativa, também menos conveniente que a pri­
meira, seria uma que não postulasse o constituinte vazio na subordi­
nada, mas, ao invés de aceitar a função oracional do relativo, atri­
buísse essa função ao próprio antecedente. Segundo essa análise,
o relativo seria “transparente”, no sentido de que poderia ser despre­
zado para efeitos da aplicação dos procedimentos de rotulação e
dos filtros. Assim, em (79)
(79) a professora que reprovou Juquinha pegou catapora
o sujeito da subordinada seria a seqüência a professora, e os procedi­
mentos de rotulação, assim como os filtros, a levariam em conside­
ração como sujeito.
Essa solução escapa a alguns dos problemas acima apontados
com relação à análise com elemento vazio; a saber, evita a postulação
de um 0 diferente do usual, marcado com traços de gênero e número.
Mas não escapa à artificialidade de considerar que a concordância em
(91) as professoras, as quais ganham uma miséria, fizeram greve
não se faz com as quais, mas antes com as professoras.
Essa solução, como é fácil ver, nos obriga a colocar o antece­
dente do relativo na oração subordinada, o que pode ser um inconve­
niente. De qualquer maneira, o argumento anterior (o qual não-vá-
lido para efeito de concordância verbal) me parece suficiente para
rejeitá-la em favor da primeira.
Concluindo a discussão, direi que a análise das construções rela­
tivas é a que apresentei e defendi na seção 4.6.2.2 acima. É a que
melhor se coaduna com o conjunto da descrição sintática proposta
neste livro.

4.7 O a u x ilia r

Adiei até agora a discussão da análise dos chamados “auxiliares”,


exemplificados em frases com ter 4- participio, como
(94) Fritz tem perseguido Daniela
229

porque a questão se liga aos critérios de contagem de orações; e


aliás depende de alguns pontos que, a meu ver, não estão suficiente­
mente esclarecidos. Vou a seguir propor uma solução para alguns
dos problemas relacionados com o auxiliar, seguindo no essencial a
análise de Perini, 1976 (capítulo 3), reformulada nos termos do presente
trabalho. Devo chamar a atenção do leitor para o fato de que o auxiliar
tem sido estudado por diversos autores, não havendo duas soluções
totalmente iguais; menciono em especial o trabalho de Pontes, 1973.

4.7.1 Correspondência parcial


Um dos problemas da análise dos auxiliares, e de sua diferen­
ciação dos verbos comuns, é que a argumentação depende muito
da relação entre orações passivas e ativas. Ora, como sabemos, essa
não é uma relação de correspondência, tal como foi definida em
1.8.6. Mas não há dúvida de que se trata de uma relação importante;
vou tentar exprimi-la através da definição de um tipo de correspon­
dência parcial (unidirecional).
Parto da observação de que, muito em bora haja muitas ativas
sem correlatas passivas, o oposto não é verdadeiro: a cada passiva
corresponde sempre uma ativa. Portanto, existe aqui uma genera­
lização a ser capturada. Vou fazê-lo através da relação de “correspon­
dência parcial”, definida logo adiante. Essa relação, assim como a
de “correspondência”, deve ser entendida como a expressão provi­
sória de uma relação, ou sistema de relações, que tem grande im por­
tância dentro da sintaxe, mas que não consigo ainda apreender no
seu todo: o sistema de relacionamento sintático entre estruturas.
Grande parte da sintaxe m oderna se tem centrado no estudo de
tais relações entre estruturas; aqui me preocupo com sua justificação
empírica, aspecto relativamente negligenciado pelos lingüistas atuais,
mas que merece atenção.
A “correspondência parcial” é uma espécie de relação de corres­
pondência não-recíproca, definida da seguinte maneira:
C orrespondência p a r c ia l (definição)
Uma forma A é p a rcia lm en te correspon den te a outra forma B
se for possível estabelecer entre todos os term os á e B e a lg u n s ter­
mos de A um relacionamento um-a-um tal que:
(a) os membros de cada par assim formado são preenchidos
por itens léxicos idênticos; e
(b) para qualquer preenchimento léxico idêntico dos pares,
a aceitabilidade de A implica a aceitabilidade de B (m as
n ã o vice-versa).
230

4.7.2 Passivas e ativas


Agora podem os classificar a relação que existe entre passivas
e ativas. O que nos impedia de considerá-las correspondentes era,
basicamente, a inexistência de passivas para muitas ativas; assim, atri­
buí a possibilidade ou não de passivizar uma frase com objeto direto
a idiossincrasias do verbo. Por exemplo, podem os passivizar em
(95) Fritz persegue Daniela
(96) Daniela é perseguida por Fritz
mas não podemos em
(97) António tem um fusca
(98) * um fiisca é tido por António
muito embora, segundo nossa análise, tanto D aniela em (95) quanto
um fu sca em (97) sejam objetos diretos.
Mas ainda que tais diferenças sejam devidas a idiossincrasias
léxicas, isso não quer dizer que não haja uma relação sintática a
descrever. Digamos que qualquer verbo pode ocorrer em uma cons­
trução ativa; destes, alguns podem também ocorrer em passivas, e
outros não podem. Para aqueles que podem, é possível dizer de
certas frases que “têm ” uma passiva, ou seja, que existe uma passiva
que “corresponde parcialmente” a ela. Como se vê, a relação de
“correspondência parcial”, ao contrário da de “correspondência”,
não é comutativa. A correspondência parcial descreve uma relação
que, acredito, é real e importante na língua, e que tem sido como
tal considerada pelos lingüistas de todas as tendências.
Direi, pois, que (96) é parcialmente correspondente a (95); (95)
não é parcialmente correspondente a (96), já que a relação não é
comutativa. Se encontrarmos duas formas que são parcialmente cor­
respondentes uma à outra, teremos simplesmente um caso de corres­
pondência-, a correspondência é portanto a relação que existe entre
duas formas que se correspondem parcialmente uma à outra.
No caso que nos interessa, que é o da relação entre passivas
e ativas, deixemos estabelecido que as passivas correspondem par­
cialmente a “suas” ativas; mas as ativas não correspondem parcialmente
às passivas. E!ste último fato impede que a relação passiva/ativa seja
considerada uma relação de correspondência no sentido de 1.8.6.

4.7.3 Contagem de orações e o auxiliar


O próximo ponto que precisa ser discutido antes de passar à
análise do auxiliar é a contagem de orações, em especial em certos
231

casos em que os critérios vistos em 4.2 não dão resultados satisfató­


rios. Nesses casos aplicarei a relação passiva/ativa, que já pode ser
utilizada em virtude de sua definição como caso de correspondência
parcial.
Em prim eiro lugar, observe-se que a formulação da relação pas­
siva/ativa depende da contagem de orações. Como já foi observado
(ver menção em Perini, 1976, p. 87 et seqs.), essa relação leva em
conta um sujeito e um objeto direto da m esma oração. Assim, se
tivermos uma oração (complexa) como
(99) Daniela disse que a má sorte persegue Fritz
e duas passivas alternativas, a saber,
(100) Daniela disse que Fritz é perseguido pela má sorte
(101) Fritz disse que a má sorte é perseguida por Daniela
é fácil verificar que apenas (100) é parcialmente correspondente
a (99); isso se reflete no significado (ver 1.8.6.4), e é também determi­
nado pela definição de “correspondência parcial”. O problem a é
que, para formar (101), urna das operações realizadas foi trocar de
lugar o sujeito da oração principal e o objeto da subordinada. O
resultado não é a passiva que corresponde parcialmente à ativa origi­
nal. Já em (100) a troca foi entre o sujeito e o objeto da oração
subordinada, e o resultado é parcialmente correspondente a (99).
Não é meu objetivo nesta seção estudar a estrutura das orações passi­
vas, mas deixarei estabelecido que uma passiva difere da ativa a que
corresponde parcialmente de várias maneiras; em particular, por ter
trocada a posição do sujeito e do objeto da mesma oração.
Como resultado, a correspondência parcial existente entre passi­
vas e ativas pode ser utilizada como critério de contagem de orações.
Dado um sujeito e um objeto, se conseguirmos passivizar a estrutura
trocando de lugar esses dois termos e o resultado for uma passiva
parcialmente correspondente, podemos concluir que se trata do su­
jeito e do objeto da mesma oração. Esse critério será útil para distin­
guir entre “auxiliares” e “verbos principais”.
Vejamos então os dois exemplos seguintes:
(102) Fritz quer perseguir Daniela
(103) Fritz vai perseguir Daniela
À prim eira vista a estrutura de ambos é idêntica, com a substituição
de quer por vai. Mesmo os traços que definem as funções oracionais
não distinguem claramente essas orações: perseguir D aniela em
(102) é um objeto direto, marcado [ -CV, +Ant, +Q , +C1, -PA];
e em (103) também parece ter os mesmos traços, apesar de alguma
dúvida quanto ao traço [Q]. Mas outro fato nos vai impedir de atribuir
232

uma função oracional a p ersegu ir D a n iela em (103): a evidência


é de que (102) tem duas orações, mas (103) só uma. O teste é justa­
mente o da formação da passiva, que acabamos de ver acima. Se
tentarmos permutar o sujeito F ritz e o objeto D a n iela em (102),
o resultado será uma frase que não corresponde parcialmente a
( 1 0 2 ):
(104) Daniela quer ser perseguida por Fritz
Já com (103) o resultado é diferente: uma passiva formada de maneira
semelhante corresponde parcialmente a (103):
(105) Daniela vai ser perseguida por Fritz
Em suma, uma diferença importante entre (102) e (103) é que
a primeira é uma construção complexa, com duas orações, e a segun­
da, ao que tudo indica, é formada de apenas uma oração. Ora, verifi­
ca-se que a situação de (103) só ocorre com um pequeno número
de itens no lugar do verbo; são frases como
(94) Fritz tem perseguido Daniela
(106) Fritz está perseguindo Daniela
além de
(103) Fritz vai perseguir Daniela
Todos esses exemplos têm em comum a propriedade de se
comportarem como se tivessem apenas uma oração. Isso não nos
deve surpreender no caso de (94) porque, como já se viu, os partici­
pios não formam oração. Mas no caso de (103) e (106) é uma novi­
dade; seria de pensar que tivessem duas orações, pois cada uma
dessas frases contém duas formas verbais que podem ser NdP. A
solução habitual é a de chamar “auxiliares” os poucos verbos que
ocorrem em frases como essas: ter e haver ( 4-participio); estar, andar,
vir ( 4-gerúndio); ir ( 4-infinitivo). O comportamento sintático do
grupo não é inteiramente homogêneo, mas aqui não poderei entrar
em porm enores a respeito.

4.7.4 Predicado e seus complementos


Nos termos da nossa análise, então, vale perguntar qual é preci­
samente o NdP dessas orações: será apenas o elemento flexionado
{tem, está, vai)! E nesse caso qual é a função do outro parceiro:
participio, gerúndio e infinitivo? Ou teremos aqui, antes, NdPs com­
postos, isto é, v a i p ersegu ir em (103) seria o NdP?
Essas perguntas, como outras que se referem ao auxiliar, são
difíceis de responder com segurança no momento. Vou adotar abaixo
233

uma análise que se aproxima da usual, mas devo confessar que tenho
dúvidas, e prefiro considerar a análise como provisória. Na melhor
das hipóteses, conseguirei equacionar os problemas mais im por­
tantes.
Vou começar considerando o caso de
(94) Fritz tem perseguido Daniela
Observe-se que tanto tem quanto p ersegu ido aí são marcados negati­
vamente quanto a todos os traços do capítulo 2, isto é, [ - CV, -A nt,
- Q , -C l, -PA], o que sugere que se trata de constituintes de nível
suboracional. Na verdade, como veremos, os traços são um guia mui­
to falho quando se analisam os elementos “centrais” da oração; de
qualquer modo, por enquanto podemos captar a marcação negativa
desses elementos admitindo que eles formam um constituinte de
nível oracional. Já os próprios tem e p erseg u id o serão de nível subora­
cional, o que explica sua marcação negativa para todos os traços.
Vou adiantar a nomenclatura que utilizo para as funções desem­
penhadas por esses constituintes; depois passo a justificações e co­
mentários. Para tem , mantenho o rótulo de “núcleo do predicado”
(NdP); para perseguido, usarei “complemento participial do predica­
do”, ou mais abreviadamente “complemento participial”, ou ainda
CP. Finalmente, o constituinte de nível oracional que engloba os
dois, ou seja, tem persegu ido será considerado como tendo a função
de “predicado” (Pred).
Chamar a função de tem em (94) de NdP apresenta algumas
vantagens. Em primeiro lugar, podemos manter a generalização de
que a concordância verbal se faz sempre com referência ao NdP.
Em segundo lugar, essa análise também permite manter regulari­
dades no campo do relacionamento entre classes e funções: em geral,
todos os itens classificados como “verbos” e que estejam em forma
finita são obrigatoriamente NdPs de suas respectivas orações; esse
princípio se conserva, sem exceções. Relembro que considerar tem
(o “auxiliar”) como núcleo não é uma decisão de im porte semântico;
portanto, as razões que levaram a gramática tradicional a chamar
p erseg u id o de verbo “principal” não nos impedem de considerar
tem o “núcleo”. A gramática tradicional atribui ao verbo principal
o significado mais importante, ou central, da oração; podemos até
concordar com isso (que é verdadeiro na maior parte dos casos).
Mas como a noção de “NdP” nesta descrição é puramente sintática,
portanto formal, do nosso ponto de vista não faz sentido discutir
a importância relativa dos dois termos.
Note-se que essa análise revisa um asp eao importante da pro­
posta do capítulo 2: segundo essa revisão, o NdP é uma função de
232

uma função oracional a persegu ir D a n iela em (103): a evidência


é de que (102) tem duas orações, mas (103) só uma. O teste é justa­
m ente o da formação da passiva, que acabamos de ver acima. Se
tentarmos permutar o sujeito F ritz e o objeto D a n iela em (102),
o resultado será uma frase que não corresponde parcialmente a
( 1 02):
(104) Daniela quer ser perseguida por Fritz
Já com (103) o resultado é diferente: uma passiva formada de maneira
semelhante corresponde parcialmente a (103):
(105) Daniela vai ser perseguida por Fritz
Em suma, uma diferença importante entre (102) e (103) é que
a prim eira é uma construção complexa, com duas orações, e a segun­
da, ao que tudo indica, é formada de apenas uma oração. Ora, verifi-
ca-se que a situação de (103) só ocorre com um pequeno número
de itens no lugar do verbo; são frases como
(94) Fritz tem perseguido Daniela
(106) Fritz está perseguindo Daniela
além de
(103) Fritz vai perseguir Daniela
Todos esses exemplos têm em comum a propriedade de se
comportarem como se tivessem apenas uma oração. Isso não nos
deve surpreender no caso de (94) porque, como já se viu, os partici­
pios não formam oração. Mas no caso de (103) e (106) é uma novi­
dade; seria de pensar que tivessem duas orações, pois cada uma
dessas frases contém duas formas verbais que podem ser NdP. A
solução habitual é a de chamar “auxiliares” os poucos verbos que
ocorrem em frases como essas: ter e hai>er ( 4-participio); estar, andar,
vir ( 4-gerúndio); ir (4 -infinitivo). O comportamento sintático do
grupo não é inteiramente homogêneo, mas aqui não poderei entrar
em porm enores a respeito.

4.7.4 Predicado e seus com plem entos


Nos termos da nossa análise, então, vale perguntar qual é preci­
samente o NdP dessas orações: será apenas o elemento flexionado
{tem, está, v a i)l E nesse caso qual é a função do outro parceiro:
participio, gerúndio e infinitivo? Ou teremos aqui, antes, NdPs com­
postos, isto é, v a i persegu ir em (103) seria o NdP?
Essas perguntas, como outras que se referem ao auxiliar, são
difíceis de responder com segurança no momento. Vou adotar abaixo
233

uma análise que se aproxima da usual, mas devo confessar que tenho
dúvidas, e prefiro considerar a análise como provisória. Na melhor
das hipóteses, conseguirei equacionar os problemas mais im por­
tantes.
Vou começar considerando o caso de
(94) Fritz tem perseguido Daniela
Observe-se que tanto tem quanto perseg u id o aí são marcados negati­
vamente quanto a todos os traços do capítulo 2, isto é, [ -CV, -A nt,
—Q, —Cl, —PA], o que sugere que se trata de constituintes de nível
suboracional. Na verdade, como veremos, os traços são um guia mui­
to falho quando se analisam os elementos “centrais” da oração; de
qualquer modo, por enquanto podemos captar a marcação negativa
desses elementos admitindo que eles formam um constituinte de
nível oracional. Já os próprios tem e perseg u id o serão de nível subora­
cional, o que explica sua marcação negativa para todos os traços.
Vou adiantar a nomenclatura que utilizo para as funções desem­
penhadas por esses constituintes; depois passo a justificações e co­
mentários. Para tem , mantenho o rótulo de “núcleo do predicado”
(NdP); para persegu ido, usarei “complemento participial do predica­
do”, ou mais abreviadamente “complemento participial”, ou ainda
CP. Finalmente, o constituinte de nível oracional que engloba os
dois, ou seja, tem persegu ido será considerado como tendo a função
de “predicado” (Pred).
Chamar a função de tem em (94) de NdP apresenta algumas
vantagens. Em primeiro lugar, podemos manter a generalização de
que a concordância verbal se faz sempre com referência ao NdP.
Em segundo lugar, essa análise também perm ite manter regulari­
dades no campo do relacionamento entre classes e funções: em geral,
todos os itens classificados como “verbos” e que estejam em forma
finita são obrigatoriamente NdPs de suas respectivas orações; esse
princípio se conserva, sem exceções. Relembro que considerar tem
(o “auxiliar”) como núcleo não é uma decisão de importe semântico;
portanto, as razões que levaram a gramática tradicional a chamar
p erseg u id o de verbo “principal” não nos impedem de considerar
tem o “núcleo”. A gramática tradicional atribui ao verbo principal
o significado mais importante, ou central, da oração; podemos até
concordar com isso (que é verdadeiro na maior parte dos casos).
Mas como a noção de “NdP” nesta descrição é puramente sintática,
portanto formal, do nosso ponto de vista não faz sentido discutir
a importância relativa dos dois termos.
Note-se que essa análise revisa um aspecto importante da pro­
posta do capítulo 2: segundo essa revisão, o NdP é uma função de
234

nível suboracional, ao passo que anteriormente tinha-me referido


a ele como uma função de nível oracional. Não creio que isso venha
prejudicar a coerência da análise. Em todos os exemplos estudados
antes da presente seção, o predicado é formado exclusivamente de
NdP; portanto, nesses exemplos qualquer afirmação válida para o
Pred vale também, na prática, para o NdP. Assim, não é necessário
refazer a discussão anterior, que se mantém válida em todos os aspec­
tos substanciais.
Como dei a entender acima, considero a presente análise dos
auxiliares provisória, dado o núm ero e a importância das dúvidas
que permanecem. Por essa razão preferi não incluir plenamente na
descrição a noção de “predicado”, com a conseqüente reclassificação
no NdP como ftinção suboracional. No presente texto subsistirá por­
tanto essa incongruência; a inclusão definitiva desse aspecto da aná­
lise na gramática deverá esperar pesquisas futuras mais aprofundadas
do que é possível fazer aqui no momento.
Mesmo assim, convém tentar fornecer uma definição das fun­
ções propostas. Sem chegar ao grau de detalhamento representado
pelos traços, o que a meu ver é prem aturo para este setor da oração,
vou definir a função de predicado da seguinte tnaneira: entendido
que o NdP é postulado (ver 2.2), o Pred será o m enor constituinte
iniciado por NdP. Do CP tratarei mais adiante nesta seção.
Em resumo, portanto, a análise de (94) é a seguinte:
(94) Fritz tem perseguido Daniela
(107)
Sujeito: F ritz
Predicado: tem persegu ido
núcleo do predicado: tem
complemento participial do predicado: persegu ido
Objeto direto: D a n iela
Vejamos agora o exemplo
(106) Fritz está perseguindo Daniela
A argumentação vista deixa claro que a função de está é de NdP.
Mas como analisar perseguindo? Acontece que esse constituinte não
pode ter a mesma função que atribuímos a p erseg u id o em (94), por­
que ambos os elementos podem ocorrer lado a lado na mesma ora­
ção, sem possibilidade de permuta de ordem, o que indica que têm
fimções diferentes:
(108) Fritz tem estado perseguindo Daniela
Parece claro que estado é um CP; persegu in do deve ter outra função.
Assim, apesar de apresentarem analogias sintáticas importantes, os
235

constituintes perseguido em (94) e perseguindo em (106) desem pe­


nham funções distintas. O mesmo vale para perseguir em
(103) Fritz vai perseguir Daniela
de modo que temos aqui três funções diferentes. Por isso, vou propor
dois novos rótulos, a saber, “complemento gerundivo do predicado”
(CG) p 2S 2iperseguindo em (106) e “complemento infinitivo do predi­
cado” (Cl) para perseguir em (103). E podem os referir-nos a Cl,
CP e CG, coletivamente, como “complementos do predicado”. A aná­
lise de uma frase como (108) será:
(109)
Sujeito: Fritz
Predicado: tem estado perseguindo
núcleo do predicado: tem
complemento participial do predicado: estado
complemento gerundivo do predicado: perseguindo
Objeto direto: D aniela
Como se vê, o constituinte que funciona como predicado tem
uma composição variável: inicia-se obrigatoriamente com o NdP, e
este pode ser seguido de um ou dois dos seguintes complementos
(na ordem dada): Cl, CP, CG. As possibilidades são ilustradas nos
exemplos abaixo:
(110) Madalena vai sofrer (NdP + Cl)
(111) Madalena tem sofrido (NdP + CP)
(112) Madalena está sofrendo (NdP + CG)
(113) Madalena vai estar sofrendo (NdP + Cl + CG)
(114) Madalena vai ter sofrido (NdP 4- Cl + CP)
(115) Madalena tem estado sofrendo (NdP -F CP + CG)
Destes, (114) parece não ser tão aceitável quanto os outros.
Mas em outras frases a mesma seqüência é plenamente aceitável,
como no exemplo de Pontes, 1973;
(116) João vai ter comprado o livro (quando você chegar)
As razões dessa diferença são obscuras.
Restringi acima as seqüências possíveis a apenas dois comple­
mentos do predicado. No entanto, é possível que em certos casos
se possa ter seqüências de todos os três, em bora ao que parece
nunca com o auxiliar ir. Pontes dá o seguinte exemplo, que me
parece aceitável:
(117) João pode ter estado cantando
236

(De Pontes, 1973, p. 97; numeração minha.)


Caso se chegue à conclusão de que p o d e r é também um auxiliar,
paralelo a ir, então teremos aí um exemplo de seqüência dos três
complementos do predicado.

4.7.5 Auxiliares como verbos


Agora interessa perguntar o que vem a ser, no âmbito da pre­
sente descrição, um “auxiliar”. É claro, para mim, que os auxiliares
são verbos, tanto do ponto de vista morfológico (sua flexão é tipica­
mente verbal) quanto do ponto de vista sintático (desempenham
a função de NdP). Dessa maneira, um auxiliar é uma subclasse dos
verbos. Acredito que o que caracteriza os auxiliares dentro do grupo
geral dos verbos é o fato de que aceitam ser complementados por
um dos complementos do predicado; em outras palavras, “auxiliares”
é na verdade o rótulo de transitividade de determinados verbos.
Assim como ver aceita objeto direto e c o lo ca r exige objeto direto,
verbos como ir, estar e ter aceitam complementos do predicado;
ir aceita Cl, estar aceita CG, e ter aceita CP. Fica aberta a possibilidade
de esses verbos aceitarem igualmente outros complementos; se ter
em tenho sofrido e em tenho u m a casa for o mesmo item léxico,
diremos que ter aceita CP ou OD como complemento. Isso coloca
os auxiliares bem nitidamente dentro da classe dos verbos.
Gostaria de observar que minha concepção dos constituintes
que funcionam como complementos do predicado (infinitivos, ge­
rúndios, participios) é basicamente morfológica, ou seja, atribuo a
geração dessas formas às regras de formação de palavras, que se
colocam no componente morfológico. A alternativa, não adotada
aqui, seria incluir essa geração na sintaxe, o que nos levaria a segmen­
tar o auxiliar da maneira feita pelos gerativistas; por exemplo, tería­
mos ter... d o como um auxiliar, estar... n d o como outro etc. A solu­
ção morfológica decorre dos pressupostos da análise que estou ela­
borando: a sintaxe parte do nível da palavra, e um infinitivo, gerúndio
ou participio são palavras como outras quaisquer, sendo sua distri­
buição tarefa das regras sintáticas. Essa opção facilita, por um lado,
a identificação dessas formas quando ocorrem com auxiliares com
as mesmas quando ocorrem em outras construções. Teremos a mes­
ma forma (“infinitivo”) em
(103) Fritz vai perseguir Daniela
e em
(118) perseguir Daniela é insensato
(119) Fritz tem a intenção de perseguir Daniela
237

Por outro lado, a segmentação adotada aqui também facilita a


identificação dos auxiliares com os verbos em geral.
Por outro lado, o tratam ento dos auxiliares não deve ser intei­
ram ente paralelo ao dos verbos, principalm ente p o r causa das
restrições à ordem dos auxiliares. Se os considerássem os como
verbos comuns, então deveria ser possível a ocorrência de uma
frase como
(120) * Fritz está tendo perseguido Daniela
Em (120) as transitividades estão todas corretas: estar é NdP, e é
complementado por um CG; tendo é complementado por um CP.
No entanto, a frase é mal formada, pois desobedece à exigência de
ordenação Cl + CP + CG. Isso quer dizer que a ordem dos auxi­
liares é fixa, e deve ser expressa por uma regra específica da subclas­
se. Os auxiliares são verbos, segundo a maioria dos pontos de vista,
mas pertencem a uma subclasse especial, submetida a regras sintá­
ticas parcialmente distintas daquelas que regem o comportamento
dos demais verbos.

4.7.6 Problemas
Vimos acima uma proposta de análise para os auxiliares. Confor­
me adiantei, restam alguns problem as im portantes, que lançam
dúvidas sobre a análise, ou pelo m enos sugerem fortem ente que
ainda há m uito o que pesquisar. Vou passar agora a listar esses
problem as.
O prim eiro problem a é que o predicado, que como vimos é
desempenhado por um constituinte de nível oracional, é também
marcado [-C V , —Ant, —Q, -C l, —PA], isto é, “menos tudo”, asse­
melhando-se nisto às funções de nível suboracional. É possível que
o problem a desapareça com a ampliação do elenco dos traços defini-
tórios das funções oracionais, o que sem dúvida é necessário fazer
p o r várias razões. O utra possibilidade é que se chegue à conclusão
de que o sistema de traços não se aplica ao Pred, como não se
aplica ao NdP, do qual o Pred é projeção: eles formariam com o
que o constituinte “central” da oração, desem penhando funções
postuladas — portanto à margem do sistema de definições em
traços.
Outro problema também ligado ao predicado é que esse consti­
tuinte se comporta de maneira peculiar quanto às possibilidades
de inserção de elementos entre os constituintes da oração, mas não
238

entre constituintes de nível suboracional. Na frase seguinte


(121) Carmela adora caramelos de marmelo
pode-se introduzir um elemento como evidentem ente entre os cons­
tituintes oracionais:
(122) Carmela, evidentemente, adora caramelos de marmelo
(123) Carmela adora, evidentemente, caramelos de marmelo
mas não entre constituintes suboracionais:
(124) * Carmela adora caramelos, evidentemente, de marmelo
(125) * Carmela adora caramelos de, evidentemente, marmelo
Se esse fato for geral, indicará que o NdP mais o complemento
do predicado não formam constituinte, pois a inserção entre eles
é possível:
(126) Fritz está, evidentemente, perseguindo Daniela
Por essas razões é que preferi deixar a análise dos auxiliares
em aberto. Creio que a proposta acima servirá com o um ponto
de partida para a pesquisa, mas não pode ser tom ada com o defi­
nitiva.

4.7.7 O participio
Um terceiro ponto merece menção aqui. Vimos acima que a
solução morfológica dos elementos que preenchem as íunções de
complementos do predicado tem como vantagem possibilitar a iden­
tificação desses elementos quando ocorrem nessa função e quando
ocorrem em outras funções. Um infinitivo é a mesma forma quer
venha como complemento do predicado quer seja NdP de uma ora­
ção (como é em (118) e (119)). Ora, essa afirmação vale para o
gerúndio e para o infinitivo, mas o participio terá de ser considerado
à parte. Vimos na seção 4.2.1 que o participio nunca pode ser NdP,
ao contrário do infinitivo e do gerúndio; o participio, quando ocorre
independentem ente de auxiliar, tem as caraaerísticas sintáticas de
um adjetivo, e não de um v erbo: p o r exemplo, não há razão para
crer que ele tenha sujeito, objeto direto etc. Mas o participio que
ocorre com auxiliar parece ser outra forma, sintaticamente distinta
do participio que se encontra em outros ambientes. As exigências
de transitividade são típicas de um verbo, incluindo o objeto di­
reto:
(127) Maninha tem fritado m uito peixe
e mesmo, através do auxiliar, sujeito — se admitirmos que M aninha
é sujeito aceito pelo verbo fritar. Um verbo que recuse sujeito (como
239

f a z e r meteorológico) mantém essa recusa mesmo por cima de um


auxiliar, o que mostra que o sujeito se relaciona sintaticamente com
o participio:
(128) tem feito muito frio
(129) * o tempo tem feito muito frio
Há mesmo evidência de que essas duas formas são morfologi­
camente distintas, pelo menos em alguns casos: os chamados “verbos
abundantes” apresentam duas formas distintas do que tradicionalmente
se denomina “participio”. O que nos interessa é que essas formas,
nos verbos que as mantêm claramente distintas, são especializadas: a
forma que aparece com auxiliar não aparece nos outros ambientes,
e vice-versa. Além disso, a forma que aparece sem auxiliar varia em
gênero e número, o que não acontece com a que ocorre com auxiliar.
Um exemplo é o par frito/fritado. Frito se comporta, morfológica e
sintaticamente, como um adjetivo bastante prototípico; já frita d o tem
o comportamento de uma forma nominal do verbo, tal como o gerún­
dio e o infinitivo; por outro lado, difere do gerúndio e do infinitivo
por nunca poder ter a função de NdP: só ocorre como complemento
do predicado. Vou manter para essa forma (fritado) o nome tradicional
de “participio”; a outra forma (/rito) será considerada, por ora, simples­
mente um adjetivo. Os exemplos abaixo falam por si, como evidência
em favor dessa análise (aliás já vislumbrada na gramática tradicional):
(130) o granjeiro tem m a ta d o / * m o rto cerca de cem frangos
por dia
(131) cem frangos têm m o rrid o / * m o rto todo dia
(132) havia mais de cem frangos mortos / galinhas m ortas na
granja

4.8 C om o a n a lis a r a s p a ssivas?

A discussão acima, a respeito dos participios, deixa em suspenso


um ponto importante, a saber, a análise a ser dada às frases passivas.
Já vimos que elas se relacionam com as ativas através da correspon­
dência parcial; a questão que permanece é a de que análise devemos
dar a seus componentes. Esse é um problema particularmente espi­
nhoso, e existe uma grande literatura a respeito; o que vou fazer
a seguir é apenas especular preliminarmente acerca de alguns p ro ­
blemas selecionados, procurando encontrar possíveis soluções den­
tro do quadro geral da análise proposta neste trabalho. Um trata­
mento completo das passivas, assim como de suas relações com o
resto da sintaxe da língua, deverá ficar para outro trabalho.
240

A primeira q u estão a ser examinada aqui é a seguinte: será a


passiva uma construção com auxiliar? Há algumas semelhanças, pelo
menos à primeira vista: a ocorrência do verbo ser, que muitas análises
apontam como auxilia r; e a presença de um elemento tradicional­
mente chamado “p articip io ”. Como veremos, entretanto, as diferen­
ças entre as passivas e ^ construções com auxiliar são mais impres­
sionantes.
Em prim eiro luga»:, observemos que nas construções com auxi­
liar a transitividade d o “verbo principal” (que aparece em forma
nominal) é conservada tal como se esse verbo estivesse em forma
não-nominal. Assim, re tornando ao exemplo (127),
(127) Maninha te m fritado muito peixe
vemos que as exigência^ de transitividade do verbo Jritar são integral­
mente mantidas. Se tivérssemos aí um verbo que aceita OD e predica­
tivo, como considerar, esses complementos poderiam ocorrer na
frase, independentem ente de haver ou não uma construção com
auxiliar:
(133) Maninha considerava seu irmão um bocó
(134) Maninha ti«iha considerado seu irmão um bocó
Ora, a situação c o m as passivas é inteiramente diferente. A transi­
tividade do verbo que .:se relaciona com o (suposto) participio fica
subvertida. O verbo fr iia r , como vimos, admite objeto direto; mas
em uma frase como
(135) os peixes foram fritos por Maninha
não há, nem pode haver, um OD. Em todos os casos de relaciona­
mento ativa/passiva obs«erva-se o mesmo fenómeno, sugerindo que
na verdade o que ap arece na passiva não é propriam ente uma forma
do verbo que aparece n a ativa, mas um outro item léxico (ou seja,
um adjetivo, distinto d o verbo, em bora derivacionalmente relacio­
nado com ele).
Essa conclusão se Jharmoniza com o fato de que o elemento
que aparece na passiva n ã o se identifica com o participio que ocorre
com auxiliar; em casos como fritado/frito, m atadolm orto, isso se
evidencia claramente e m virtude da diferença de formas: outra razão,
portanto, para que se considere o elemento ocorrente na passiva
como outra coisa que n ã o uma forma do item léxico verbal: frito
não é uma forma de fr ita i (não pertence ao seu paradigma; ver Perini,
1985a, p. 27 et seqs.). S erá apenas um adjetivo relacionado, com
fritável: ligado a frita r através de conexões de ordem léxica e sem ân­
tica, mas sintaticamente cdistinto. Conseqüentemente, uma forma co-
241

mo vendido representa dois itens léxicos homônimos: o participio


do verbo vender, que aparece em
(136) vovô tem vendido muito vinho
e o adjetivo relacionado, que aparece em
(137) esse barril foi vendido por uma fortuna
e que não é em absoluto um participio.
Em conclusão, respondo a primeira pergunta assim: a passiva
não é uma construção com auxiliar; e o elemento que aparece como
complemento de ser não é um participio, nem desempenha a função
de complemento do predicado.
Isso nos leva à segunda questão: qual é a função de frito s em
(135)?
(135) os peixes foram fritos por Maninha
A análise em traços produz a matriz [ +Ant, - Q , +C1, -PA], ou
seja, a do adjunto circunstancial. Em outras palavras, a análise atira
esse complemento no conjunto mal diferenciado dos “adverbiais”
estudados na seção 2.7.
É essa a análise que darei a fritos em (135): para efeitos da
atual análise, será um adjunto circunstancial.
Não nos deve causar estranheza o fato de um adjunto circuns­
tancial concordar em gênero e núm ero com um SN da oração (em
(135), com o sujeito), como é o caso do adjetivo que ocorre nas
passivas. Parece que qualquer objeto direto, predicativo, atributo ou
adjunto circunstancial representado por adjetivo é submetido à con­
cordância nominal (não necessariamente com o sujeito). Por exem­
plo, temos
(138) elas estão aflitas (OD)
(139) considero-as aprovadas (Pv)
(140) elas chegaram furiosas (Atr)
A ocorrência ou não de concordância decorre das propriedades
morfológicas do item que desempenha essa função; quanto a isso,
ver a seção 2.7.1. Nas mesmas linhas ali utilizadas para justificar a
existência de atributos com e sem concordância, justifico aqui a even­
tual existência de adjuntos circunstanciais com e sem concordância,
como em
(141) elas foram insultadas
-e
(142) elas choraram m uito
242

Em resumo, até onde podem os ver, é perfeitamente possível


que uma frase passiva como (135) seja analisável como
os peixes foram fritos p o r Maninha
Suj Ndp AC AC
(A possibilidade de ocorrência de dois adjuntos circunstanciais lado
a lado foi comentada em 2.7.4.)
Aí estão algumas questões de interesse levantadas pelo estudo
das construções passivas. Elas não fazem mais que arranhar a super­
fície do tema, um dos mais complexos de todos quantos apresenta
a sintaxe portuguesa. Espero que as sugestões feitas sejam de alguma
utilidade às pesquisas que levarão a uma com preensão maior da
sintaxe e da semântica das construções passivas.

4.9 Conclusão: A o ra ç ã o com plexa

Este capítulo foi por certo o mais esquemático e frustrante dos


três que dediquei ao estudo das funções sintáticas; isso se deve em
parte à própria riqueza da estruturação das orações complexas. Todo
este livro, e em especial o presente capítulo, é antes de tudo um
convite à pesquisa; se há aqui uma proposta de análise, sua função
primeira é estabelecer bases para maiores investigações.
Vimos neste capítulo que a estrutura da oração complexa é basi­
camente paralela à da oração simples, o que confirma uma intuição
tradicional. E vimos que, não obstante, existem pontos de assimetria,
a serem estudados com algum cuidado. Vimos que há sintagmas
complexos que se comportam como SNs, outros como sintagmas
de valor “adverbial”, e ainda outros como SAdjs; em todos esses
casos, encontramos orações fazendo parte de sintagmas que, estes,
são termos de orações maiores. Por outro lado, vimos também que
há casos de associação de orações sem que uma faça parte de um
term o da outra. Há aí diversos tipos de conexão (coordenação, corre­
lação, justaposição), cuja análise é ainda um problem a em aberto.
Finalmente, examinamos preliminarmente duas questões que se
ligam intimamente à análise das orações complexas, a saber, a descrição
das orações chamadas “passivas” e a das construções com auxiliar. A
análise dos auxiliares evidenciou a necessidade de se estabelecer a
contagem das orações como uma espécie de primeiro estágio da análise,
para impedir que se analise ajudando m am ãe como um AC em
(143) as meninas estão ajudando mamãe
ou perseguir D aniela como um OD em
(103) Fritz vai perseguir Daniela
243

Nesses casos o fato de a frase se comportar como tendo apenas uma


oração tem precedência sobre as demais observações. O objeto dire­
to de (103), por exemplo, será apenas D an iela, e não o constituinte
perseguir D an iela, que seria complexo.
Em muitos pontos deste trabalho a expectativa do leitor, que
talvez desejasse soluções mais satisfatórias, deve ter sido frustrada.
Talvez o console (como me consola) o pensamento de que uma
parada para reorganização, ou mesmo um retrocesso, quando se
reconhece a inadequação de uma análise anterior, se justificam em
função do progresso futuro.
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248

APÊNDICE
QUADRO 1
Definição das fiinções sintáticas:
Funções de nível oracional
Traços
Função
CV Ant Q Cl PA pNdP
Sujeito (Suj) + + + + O —

Objeto direto (OD) - + + + — —

Atributo (Atr) - + - + + -

Predicativo (Pv) - - + + - -

Adjunto adverbial (AA) - - - + - -

Adjunto oracional (AO) - + - - + -

Adjunto circunstancial (AC) - + - + - -

Negação verbal (NV) +


Notã: Ver a seção 4,7.4 para a definição provisória das funções de:
Predicado (Pred); — Complemento participial do predicado (CP); e
Complemento infinitivo do predicado (Cl); — Com plem ento gerundivo do predicado (CG).

QUADRO 2
Definição das funções sintáticas:
Funções de nível suboracional
(a) Funções internas do sintagma nom inal
Definição
Função {lugar no SN máximo)
Predeterminante (PDet) 1? ou último
Determinante (Det) 2?
Possessivo (Poss) 3?
Quantificador (Qf) 4?
Pré-núcleo (PN) 5?
Núcleo (NSN) 6°
Modificador (Mod) 7?
Nota: Ver na seção 3.6 discussão de um a possível oitava função.

(h) Funções internas do sintagma adjetivo


Definição
Função (lugar 7to SAdj máximo)
Intensificador (Int) 1? ou último
Núcleo do SAdj (NSA) 2?
Complemento do SAdj (CSA) 3?

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