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Em determinado momento das nossas vidas, começamos a nos perguntar se nossas

escolhas valeram a pena. Afinal, por mesmo que tentemos pensar que somos dotados
com livre-arbítrio para decidir em qual caminho seguir, na verdade somos conduzidos
compulsoriamente a seguir uma determinada sequência de acontecimentos, como se
estivéssemos predestinados a nos contentar com o que nos aguarda no futuro. Essa crise
pela qual passamos não é nada mais que uma contestação da zona de conforto na qual
nos encontramos, uma triste constatação de que, na verdade, perseguimos algo vazio em
prol de outras pessoas, e nunca pensando em nós mesmos – e é justamente partindo
dessa pessimista (ou talvez realista?) perspectiva que Björn Runge delineia o escopo
principal de seu mais novo longa-metragem.

Sabemos que dramas familiares são narrativas um tanto quanto convencionais. Afinal,
mais do que qualquer outro gênero, é este que reflete angústias internas, tensões entre
membros de um mesmo núcleo, e sapos que engolimos ao longo da vida, destinados a
gritar em frente ao espelho apenas esperando que alguém consiga nos traduzir – e, em
certa parte dos casos, as investidas cinematográficas fazem isso com bastante cautela.
Desde ‘A Felicidade Não se Compra’ até ‘Álbum de Família’, as diversas tramas
extremamente palpáveis nos colocam em reflexão com nossos próprios fantasmas,
algumas mergulhadas um pouco mais na comédia, outras respaldadas na tragédia. Em
‘A Esposa’, Runge une diversas linhas melodramáticas em uma suavidade
incontestável, buscando até mesmo criar um conflito de emoções tanto para seus
personagens quanto para o público.

O escritor norte-americano Joe Castleman (Jonathan Pryce) acaba de receber o


anúncio de que levou para casa o aclamado Prêmio Nobel, por seu incrível trabalho na
indústria literária. Ele então viaja com sua esposa, Joan (Glenn Close) para Estocolmo,
onde a premiação tomará lugar – e é justamente com essa incrível notícia que o diretor
abre espaço para explorar o que bem entender e como bem entender cada uma das
inúmeras camadas de sua obra. Logo no breve prólogo, em que Close e Pryce já
demonstram uma química impecável mesmo olhando um para o outro sem trocarem
sequer uma palavra, Joan nos mostra claramente o asco que sente pela indicação do
marido – uma atitude um tanto quanto controversa, a priori. Porém, conforme o filme se
desenrola, percebemos que há muitas coisas escondidas por trás da perfeita máscara que
o casal usa.

Runge nos coloca frente a frente com uma angústia interna da própria protagonista –
tanto que o parecido nome dela e do marido não pode ter sido mera coincidência. Ainda
que os holofotes e os olhares estejam virados para Joe, ela nutre, com plena consciência,
algo que até mesmo repudia, mas não consegue controlar: Joan se conforma com a
situação na qual se encontra desde quando o conheceu, ainda no final da década de
1950, quando tudo parecia tangenciar um complicado conto de fadas. Agora, já
alcançando uma idade avançada, os sonhos e desejos que cultivava num passado remoto
não passam de ressentimentos e ingratidões que manteve trancados numa caixinha de
ferro.

O roteiro assinado por Jane Anderson é verborrágico quando necessário, e sabe como
prezar pelo silêncio para se afastar de autoexplicações desnecessárias e deixar que os
próprios atores façam seu papel. É através de diálogos bastante envolventes que Close
sem dúvida alguma encarna e se entrega a uma das melhores performances de sua
carreira, carregando praticamente o filme inteiro apenas em um olhar machucado e
conturbado. A atriz não se restringe aos convencionalismos de uma esposa adequada ao
que lhe era exigido na época, mas utiliza as fórmulas para um estopim catártico ainda
maior e totalmente coerente com o que ela e o próprio diretor buscam passar.

Joan, recusando-se a posar apenas como modelo e aproveitando os ares nórdicos para
fugir um pouco de suas tarefas, acaba se encontrando com o também escritor – e
biógrafo – Nathaniel Bone (Christian Slater). A pedra no sapato de um pano de fundo
perfeito é, na verdade, a faísca que ela precisava para dizer a si mesma o que todos já
sabiam, mas se recusavam a acreditar: Joan foi a responsável pelo tremendo sucesso do
marido. “Não fale assim com a sua esposa, que acabou de ganhar um Prêmio Nobel”,
ela diz, já nos últimos minutos do terceiro ato. É claro que muito está em jogo, os
tempos são outros, mas ela se cansa de viver de acordo com as regras que lhe foram
impostas – ordenando que Joe não a cite nos agradecimentos durante a cerimônia e se
enclausurando numa cíclica humilhação que vem de seu próprio companheiro.

A suave melodia se delineia muito mais pela narrativa e pela atuação do que realmente
pelas inovações técnicas. Claro, Runge merece apreço pelas cenas em que deixa
estampado apenas o rosto de Close, mostrando a gradativa mudança em suas expressões
e sentimentos, mas é um tanto quando premeditável a construção de sua obra: em
momentos mais calmos e “felizes”, a iluminação difusa dialoga com uma centralização
mais engessada; em discussões acaloradas, as pérolas do longa-metragem, a preferência
é a câmera na mão e uma paleta de cores mais desbotada, entrando em constante
conflito com a trilha sonora adornada com piano e violino. Porém, mesmo não sendo
tão original, as coisas encontram um modo de se encaixar e deixar em voga o que
realmente importa.

‘A Esposa’ talvez seja um dos melhores filmes de 2018 e, pelas razões mencionadas
acima, deve ter passado longe do radar de muita gente. De qualquer forma, é ímpar
dizer o apreço e a envolvência com a qual Glenn Close nos carrega para dentro do
complicado cosmos familiar, mostrando, mais uma vez, que não é apenas uma das
melhores atrizes de sua geração, mas sim de todos os tempos.

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