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Central do Brasil

Brasil -1998

Direção: Walter Salles
O filme retrata a vida de Dora e Josué. Ela, uma professora aposentada
que ganha a vida escrevendo cartas para analfabetos, na maior estação
de trens do Rio de Janeiro, (Central do Brasil). Ele, um garoto pobre,
que com oito anos de idade perde sua mãe no Rio de Janeiro e sonha
com uma viagem ao Nordeste para conhecer o pai. Dora conhece
Josué, que após a perda da mãe fica perdido e entregue às várias
formas de violência urbana, típicas de uma cidade grande num país
subdesenvolvido. Após um grave acidente, onde Josué quase foi vítima
de uma tentativa de tráfico para o exterior, Dora rendeu-se ao apelo
do menino e o acompanhou em busca de seu pai e irmãos numa longa
viagem para o sertão da Bahia e de Pernambuco.

Comentário
Central do Brasil nas Palavras de Paula Marques da Silva
Esta narrativa propõe pensar as travessias e os deslocamentos
produzidos por este filme em singulares modos de vi(ver) as práticas
de formação e de trabalho. Convido, então, o/a leitor/a a compartilhar
essa experiência com o cinema marcada pela produção e constituição
de novos percursos do olhar, que forçam o exercício do pensamento
e abrem passagem para emergência de outras possibilidades de
existência.
Primeiro ato/cena: O impacto de si
“Ela” caminha apressada pelas ruas da cidade de Porto Alegre
tentando vencer o frio que lhe congela o corpo gradativamente. Nasceu
nesta cidade, partiu aos 6 anos de idade, morou em outras doze cidades
brasileiras e aos 30 anos decidiu voltar. E por que voltou? “Ela”,
graduada em psicologia, até então morando em Florianópolis,
trabalhando em uma empresa como psicóloga organizacional percebeu
que poderia ser cúmplice da fabricação e da manutenção de lógicas que
mantêm e docilizam trabalhadores e trabalhadoras em relações
precárias de trabalho. Este foi um daqueles momentos em que “Ela” se
sentiu como caminhando no deserto em dias de tempestade de areia,
onde as certezas se esvoaçam e o que era o chão toma outros desenhos,
mas não sem, num mesmo movimento, arremessá-la a outros rumos.
Deixou o trabalho, vendeu o pouco que tinha e se lançou em busca de
um mestrado na cidade “natal/estrangeira”. Em Porto Alegre o frio
continuava e os rumos pareciam incertos. Esperando a hora da próxima
entrevista de emprego, “Ela”, seguia caminhando, buscando abrigo,
quando então, avistou uma galeria com cinema e calefação. Resolveu
entrar e comprar a entrada do filme disponível naquele exato
momento, “Central do Brasil”. Ao entrar na sala de cinema uma nova
surpresa, a sessão estava vazia, somente “Ela” estava ali. Conferiu se a
película iria realmente rodar e o recepcionista afirmou que sim. Mesmo
acostumada com salas de cinema, o vazio lhe causou estranhamento, a
imensidão da escuridão tornou-se mais vasta, a possibilidade de
escolher qualquer um dos tantos lugares para sentar fez com que se
sentasse em um cantinho. O silêncio causou ruídos e a solidão ganhou
densidade. Percebeu que estava à deriva na cidade, nas escolhas da
vida e também no cinema. O filme começa e o feixe de luz, efeito da
projeção provoca um novo“regime de visibilidade”. A tela ilumina a
sala com texturas e cores confrontando a espessura da escuridão. O
som invade os recantos do ambiente num jogo de luta com o silêncio
que, até então, imperava o espaço. Entra em cena “Central Do Brasil”
marcando o início da obra com a imagem da maior estação de trens da
cidade do Rio de Janeiro. No filme o autor demonstra este lugar como
um emaranhado de trilhos e linhas que se atravessam e demarcam
passagens/passageiras, rostos/Brasis, trabalhadores ambulantes,
abandono, roubo, morte e também encontros e afetos. É nesta estação
que a personagem Dora, professora primária, trabalha escrevendo
cartas para brasileiros e brasileiras que narram o viver, mas se
apresentam como não sabendo ler e escrever. Dora transcreve os
relatos/vida como se estivesse surda aos afetos e aos possíveis elos
produzidos pela palavra viva. Ana acompanhada do filho Josué é uma
das tantas pessoas que buscam em Dora o auxílio para escrita de uma
carta lhe pedindo também conselhos para um possível reencontro com o
pai do menino. Ana morre atropelada na saída da estação deixando um
lenço, a carta endereçada e o menino solitário no local. Ao final do dia
Dora recolhe as cartas mecanicamente, adentra o trem lotado com
olhar voltado para o nada e volta para casa. Trilhos, concreto, prédios
e o cinza da urbe entram em composição com a esfera escura e
claustrofóbica da casa de Dora. Ao contrário do que se poderia
imaginar, as cartas não são enviadas pelo correio, mas sim rasgadas ou
encerradas em uma gaveta. Na sala de cinema “Ela” se sente
provocada com a cena em que Dora veda fluxos, silencia vozes, impõem
trincheiras na produção de encontros. Ao mesmo tempo, “Ela” lembra
dos tantos currículos engavetados que, muitas vezes, fazem parte do
cotidiano de trabalho de uma psicóloga organizacional que atua na
seleção de trabalhadores. Lembra que não sabia o que fazer quando
anunciava uma vaga e consequentemente apareciam oitenta candidatos.
Oitenta vozes, oitenta vidas, oitenta destinos, setenta e nove “nãos”,
setenta e nove tentativas de indicação para outros lugares e um patrão
dizendo que “Ela” demorava demais com cada candidato e a empresa
não era a “casa da sopa”. Mesmo com todas as tentativas possíveis, os
currículos ficavam engavetados assim como as cartas da personagem
Dora. Algo se torna intolerável e as lembranças se esvoaçam. “Ela”
sente inquietação, muda de poltrona, se desloca e não consegue mais
separar-se do filme. Sentia as imagens atravessando o corpo,
tropeçando no exercício do olhar como que perdida na opacidade das
imagens, dos sons e das palavras. Nesse movimento/tempo indaga suas
escolhas profissionais, o limite das práticas de formação na Psicologia
e pensa nas formas como se reconhece e atua diante daquilo que
normatiza e normaliza, que é lei, que dita, marca e “endereça” pessoas
a determinados lugares.
Segundo ato/ethos/cena: a travessia
Em um segundo momento do filme Dora e Josué viajam para o nordeste
do Brasil. Esta viajem tem início em uma trama de contingências que se
produziram no decorrer do encontro desta escrevedora de cartas com
este menino de 9 anos que sonha conhecer o pai. No decorrer da viajem
os planos da imagem se abrem, a paisagem mesmo árida se torna
menos claustrofóbica. Dora e o menino vivem uma experiência que se
traduz em uma incursão de si no encontro com o outro. Perdem objetos,
dinheiro, a casa fica para trás, restam-lhes a carta, o endereço, o lenço
de Ana e, sobretudo, um ao outro. Nessa trajetória há um destino e
endereço fixo, mas há também um mapa mutante que vai se desenhando
no inusitado, na abertura para a afetação. Nesse mapeamento de forças,
Dora e Josué se tocam, se aproximam e viajam nas linhas e geografias
de si. É nesse movimento que Walter Salles argumenta:
Desde o simples texto inicial até a maneira aleatória pela qual o garoto
Vinícius de Oliveira foi encontrado, tudo isto faz parte do trabalho da
memória que procura reunir a pluralidade que deu forma a um todo
não completamente previsível em seu começo e em seu resultado final.
Sobretudo em se tratando de um "filme de estrada", que é uma matéria
viva, pronta a renovar-se e a remodelar-se, em função das surpresas
que encontramos e da inventividade de todos os que colaboram em sua
realização.
Na sala de cinema “Ela” embarca nesta viajem que de certa forma faz
alusão a itinerância, ao estrangeirismo, as escolhas em ziguezague, no
vaivém que deram contornos aos movimentos de sua vida. Navega em
mares turbulentos, perde o horário da entrevista, pensa na possibilidade
de outros caminhos para compor a vida profissional.
Mas se conduzir nesta caminhada, a fim de atingir seu objetivo, implica
um saber, uma técnica, uma arte. Uma travessia incerta, a trajetória
da vida.
 A sala de cinema é iluminada, a tela escurece, a sonoridade
da música se intensifica. “Ela” fica parada por alguns minutos. O
filme não lhe ofereceu respostas, tampouco indicou caminhos certos. E
agora, para onde ir? Talvez a pergunta tenha se transformado em “e
agora, como ir?” Sem respostas definidas compartilho com Fernando
Pessoa quando diz que “Há um tempo em que é preciso abandonar
as roupas usadas que já têm a forma de nossos corpos e esquecer os
nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo
da travessia. E se não ousarmos fazê-la teremos ficado para sempre à
margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa).
Finalizar?
As perguntas que percorreram o processo desta escrita abriram
passagem para pensar o meu encontro com o filme Central do Brasil.
Nessa experiência com o cinema fui constituindo um território de escrita
e imagem como narrativa. Não se trata de uma narrativa que fala
de uma mulher que sai transformada após ver um filme, mas de uma
mulher que sente o filme na carne, nas veias e vias da inquietação. Falo,
de um “Ela” que se atualiza num “eu” e que se multiplica. Uma mulher
que pergunta sobre os limites do saber, das práticas profissionais e
de formação e, sobretudo que busca ampliar o olhar e a escuta no
encontro com o outro. Apostando nos trilhos do olhar, Walter Salles
indica: "Central",como mencionei, é um filme sobre o olhar, o que,
aliás, fica evidente em seu final. É um filme sobre a necessidade de
vermos o outro e descobrirmos o afeto capaz de mudar nossa relação
com a vida.

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