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Crítica de cinema - 'Azul é a Cor Mais Quente' - @aredacao

Crítica de cinema - 'Azul é a Cor Mais Quente'

Filme estreia em Goiânia nesta sexta-feira (3)

(Foto:
divulgação)

Marcelo Ribeiro
Especial para A Redação

Goiânia - Dirigido pelo franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, o filme Azul é a cor mais quente entra em
cartaz nessa sexta-feira, dia 03 de janeiro, nos Cinemas Lumière do Shopping Bougainville. A obra de
175 minutos foi premiada com a Palma de Ouro em Cannes, e o presidente do júri da edição de 2013 do
Festival, Steven Spielberg, declarou que ele e os demais jurados foram "enfeitiçados" pela "profunda
história de amor" de Adèle (interpretada pela estreante Adèle Exarchopoulos) e Emma (interpretada pela
jovem Léa Seydoux).

O "feitiço" do filme de Kechiche decorre de três aspectos de sua construção dramática: o excelente
desempenho das atrizes que interpretam as protagonistas, que sustenta a intensidade dos sentimentos
e das emoções em tela; o rigoroso trabalho de encenação do diretor, em que são privilegiados close-ups
e planos fechados, em meio às excelentes músicas da trilha sonora que embala as imagens a partir de
dentro da narrativa; a intensidade dos diálogos e do enredo que estes ajudam a construir, apenas
vagamente baseado no romance gráfico Le bleu est une couleur chaude, da artista francesa Julie Maroh,
que cedeu os direitos sobre a obra para Kechiche, mas se manteve distante durante os cinco meses e
meio de produção.

O título original do filme, La vie d'Adèle, evidencia seu distanciamento em relação ao romance gráfico,
que foi adaptado com ampla liberdade por Kechiche. A liberdade criativa do diretor corresponde, no
interior da narrativa, à liberdade representada por Emma, com seus cabelos azuis e sua decidida busca
de formas de expressão artística de seus sentimentos. Ao conhecê-la, Adèle inicia um período de
autodescoberta, que coincide com sua passagem da adolescência à idade adulta. Antes de conhecer
Emma, Adèle é uma garota deslocada, na escola e em casa, em busca de algo que preencha seu vazio
interior. Desde o primeiro encontro, mesmo que passageiro, em meio aos movimentos da cidade, a
figura de Emma começa a transformar a vida de Adèle por completo.

Delicadeza e densidade

http://aredacao.com.br/cultura/38624/critica-de-cinema-azul-e-a-cor-mais-quente[04/01/2014 10:03:56]
Crítica de cinema - 'Azul é a Cor Mais Quente' - @aredacao

O cinema de Kechiche é ao mesmo tempo delicado e denso. Os close-ups dos rostos e dos corpos
ressaltam os sentimentos que os atravessam, em meio à descoberta vagarosa do amor, à continuidade
cotidiana da vida em comum, à transformação gradual do relacionamento e das fantasias que o
acompanham. No filme, a história de amor entre duas mulheres aparece, antes de tudo, como uma
história de amor qualquer, na qual podemos reconhecer os traços de nossos próprios relacionamentos,
independentemente de gênero e de sexualidade. A paixão arrebatadora, o desejo desmedido, a dor da
separação, o carinho persistente, apesar da desilusão: está tudo ali, entre Adèle e Emma, como esteve,
está ou estará entre nós, em algum momento de nossas aventuras e desventuras amorosas.

Ao mesmo tempo, o filme causa polêmica, em primeiro lugar, pelo simples fato de representar um
relacionamento lésbico e, especialmente, por encenar sem restrições o sexo entre mulheres (como em
uma das cenas mais comentadas do longa, que dura mais de 6 minutos). Se a mera representação da
sexualidade lésbica pode fazer rir nervosamente, desagradar e até chocar os mais conservadores, a
forma que Kechiche escolheu para essa representação confere ao filme a capacidade de incomodar
tanto os mais conservadores quanto parte das lésbicas, que reprovam a encenação do sexo lésbico
orquestrada pelo diretor como uma fantasia heterossexual, incapaz de fazer jus à experiência da
diferença de orientação sexual e preso às convenções heteronormativas que orientam o imaginário
dominante.

Seja como for, as cenas de sexo explícito pertencem à constelação de sentimentos que se tece entre as
protagonistas. De fato, um dos cartazes de divulgação do filme nos Estados Unidos comenta,
indiretamente, a polêmica sobre sexo explícito ao avisar que o filme "pode conter sentimentos
explícitos". O trabalho de encenação ressalta os rostos, as fisionomias em que se tornam visíveis os
sinais das emoções que tomam conta das personagens, como se um rosto não fosse capaz de mentir.
Em cada close-up, e nos planos mais distanciados que se estabelecem entre eles, como sua suave
tecelagem, a alegria ou a tristeza, o prazer ou o tédio, a atração sexual ou o desinteresse tornam-se
visíveis através das faces, dos olhos, das bocas, das lágrimas, da saliva, do catarro. Entre os sinais dos
corpos, a câmera de Kechiche revela uma verdadeira obsessão em relação aos líquidos, às secreções,
aos humores, sobretudo os de Adèle.

A revelação dos sentimentos das personagens por meio dos sinais corporais é potencializada pelo uso da
música, que amplifica o alcance do feitiço que tanto cativou Spielberg e os demais jurados em Cannes.
O primeiro encontro entre Adèle e Emma, ainda sem palavras, apenas uma troca de olhares, ocorre sob
o som onírico de um instrumento chamado Hang, criado por Felix Rohner e Sabina Schärer, da empresa
PANArt Hangbau AG (a música pode ser ouvida também no início do trailer do filme).

O instrumento é tocado por um músico de rua, sentado numa das calçadas por que Adèle passa. A
música - que pertence ao espaço da realidade narrativa e que afeta as imagens a partir de dentro do
que está sendo encenado - prolonga-se mesmo com o deslocamento da protagonista. Sua condição se
transforma: em vez de referente em cena, que Adèle escuta tanto quanto o espectador, a música torna-
se um aspecto expressivo do trabalho de encenação, que se dirige apenas ao espectador. No plano
final, a música desse momento inaugural da aventura de Adèle se repete, enquanto seu destino se abre
novamente para algo que o filme não nos apresenta, algo que permanece sem nome, cujos contornos
incertos podemos apenas tentar adivinhar ou imaginar, depois que as luzes se acendem na sala de
cinema.

Marcelo Ribeiro é pesquisador e crítico de cinema e audiovisual. Autor e editor do


incinerrante (http://incinerrante.com/). Doutorando em Arte e Cultura Visual na UFG.

http://aredacao.com.br/cultura/38624/critica-de-cinema-azul-e-a-cor-mais-quente[04/01/2014 10:03:56]

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