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Acredito que a chave para o espectro mais autoral no trabalho de Joanna Hogg esteja
talvez nos seus dois últimos filmes, The Souvenir (2019) e The Souvenir Part II
(2021), ambos orientados por uma abordagem autobiográfica e metalinguística que
permite a Hogg se exceder dentro do minimalismo formal pelo qual é reconhecida,
enquanto lança um olhar retrospectivo sobre o seu próprio percurso cinematográfico.
Ambientados numa Londres oitentista, The Souvenir e The Souvenir Part II
configuram juntos uma espécie de coming-of-age que vai narrar a entrada na vida
adulta de Julie, uma jovem de classe média alta e estudante de cinema cuja bolha
parece ser irritantemente imperturbável.
Revisitando suas produções anteriores, isso fica ainda mais claro: em Unrelated,
Anna (Kathryn Worth) é uma mulher de meia-idade que decide realizar uma viagem
sozinha para a Toscana para reencontrar uma velha amiga. Durante a viagem, ela se
apega à camada mais jovem dos seus anfitriões e passa a sair e beber com os filhos e
conhecidos dos filhos de seus amigos, participar de jogos e mergulhos sem roupa na
piscina. Descobrimos por telefonemas que seu casamento está em crise e, entre um
soluço e outro, num choro intenso, que toda a sua frustração reside na constatação
de que acabou de entrar na menopausa. Já em Archipelago (2010), irmão (Tom
Hiddleston), irmã (Lydia Leonard) e mãe (Kate Fahy) em viagem para as Ilhas Scilly
aguardam a chegada do patriarca da família que nunca vem. Enquanto o irmão busca
meios de expiar sua culpa burguesa se aproximando da cozinheira, a irmã vai no
caminho oposto manifestando, sempre que pode, sua personalidade desprezível.
Por fim, Exhibition (2013) vai representar uma ruptura na linha que a cineasta
parecia estar seguindo. O foco muda das interações problemáticas de famílias
abastadas (ou quase isso), nas paisagens de cartões-postais, para uma crise conjugal
entre um casal de artistas semiconfinados. Ele, H. (Liam Gillick), quer vender a casa
onde moraram por quase 20 anos; ela, D. (Viv Albertine), sofre comedida pela
decisão na qual aparenta não ter tido nenhuma participação, ou que talvez tenha sido
coagida a concordar. A casa, projetada pelo arquiteto James Melvin e habitada por
ele e a esposa até o fim de suas vidas, é um organismo vivo e bruto, uma entidade à
parte com a qual D. parece se integrar perfeitamente. Nesse ponto os silêncios
contemplativos de Hogg abrem precedente para uma exploração das distâncias
físicas (paredes de concreto, portas corrediças, escadas, divisórias) e sentimentais
erigidas entre o casal. E ainda, a reserva e o ressentimento da personagem de Viv
Albertine, que poderiam precipitadamente serem confundidos com uma “ausência”,
são superados quando testemunhamos seu corpo assumir o papel de suporte e
investigação artística, reivindicando uma presença ainda mais arrebatadora.
A aparente passividade vai ceder lugar a um aprofundamento do universo interno
dessas mulheres. Existe um comedimento da parte da diretora em não revelar
demais, resguardar suas personagens da necessidade de compartilhar todo e
qualquer pensamento. Admiro a forma como ela compõe as cenas arrastadas por
longos diálogos com a câmera estática e como são atravessadas ocasionalmente por
momentos de delírio, sonhos e convulsões eróticas. Um tanto uma cadência que
obedece ao seu próprio ritmo, “anti-dramático”, como Hogg vai tentar nomear. Mas
também uma outra forma de contemplação, de se demorar nas mulheres silenciosas,
inadequadas e constrangidas. É um caminho que proponho quando penso que é
difícil escapar das expectativas em torno de um posicionamento crítico sobre a
imoralidade e o ennui da classe privilegiada (ou de sua própria condição, explicitada
na autobiográfica Julie), que são temas tão caros à diretora. Há quem ainda acredite
que se trata do movimento oposto: que o gesto de observar à distância já seria uma
tentativa de estabelecer um comentário. Não há melhor maneira de olhar para esses
filmes, e nem acho que é preciso definir alguma, mas talvez fazer do imperativo de
Joanna Hogg uma orientação: saber ver o “drama nas pequenas coisas”.