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Consuelo Lins1
Bernardet contudo não se atém a avaliações negativas e faz o que, desde os anos 80,
defende como tarefa da crítica: “coloca obras em crise”, convive e dialoga com elas,
analisa detalhes que não valem pelo todo, radicaliza, arrisca-se, “força a barra”,
eventualmente “quebra a cara”, mas na maior parte das vezes contribui para
identificar tendências que mal se vislumbram2, ou situações de esgotamento estético
que ainda não são visíveis para nós.
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Expressões de Bernardet ao refletir sobre seu trabalho critico em “Por uma crítica ficcional”,
publicado originalmente na Folha de São Paulo, em setembro1983, e republicado no
forumdoc.bh.2003, catálogo do 7 festival do filme documentário e etnográfico de BH, p. 66-70.
É o que faz em “A entrevista”, provavelmente o primeiro texto a chamar
publicamente a atenção para a repetição e diluição de um modelo de documentário
dominante no Brasil desde o final dos anos 803. Nele, Bernardet retoma brevemente
os benefícios trazidos pelo advento de equipamentos que permitiram captar imagem e
som sincronicamente, para investigar o que levou o documentário brasileiro ao estado
problemático que ele analisa no artigo. Cinema direto e cinema verdade são os
nomes mais célebres das inovações técnicas e estéticas que ocorreram entre o final
dos anos 50 e o início dos anos 60. O universo sonoro do documentário se ampliou
com a possibilidade de registro de conversas entre personagens, entrevistas,
depoimentos, ruídos, músicas. A narração em off, até então onipresente, tornou-se
apenas um elemento entre tantos outros.
No Brasil, essa narração se manteve mais constante do que nos Estados Unidos ou na
França, articulada porém às múltiplas expressões verbais do chamado povo brasileiro.
Desconhecia-se até então um português tão diversificado, com sintaxes, vocabulários,
sotaques tão variados. Testemunhar não apenas as falas que emergiram com as
imagens dos pobres nas cidades ou nos sertões, mas também o que falhava -
“balbucios, palavras hesitantes, fracassadas, elipses, tiques verbais, reticências à
beira do gaguejo” (p. 285) era, segundo Bernardet, da ordem do encantamento. Como
se estilhaços do real estivessem contidos nesses fragmentos sonoros.
Passado esse “momento criador de um então novo cinema falado” (p. 285), a
entrevista virou fórmula, fruto do automatismo e da preguiça de pensar em outras
formas narrativas. O que mobiliza Bernardet nesse texto são os documentários que
problematizam os filmes de entrevista. Vida de cachorro (2001, Thiago Villas Boas)
e À margem da imagem (2002, E. Mocarzel) são exemplos privilegiados de obras que
deixam entrever o que o crítico chama de “fissuras no sistema de exposição”. Pode
ser na forma como um dos personagens responde às questões, não com palavras mas
com gestos, ou quando um outro inverte inesperadamente a relação
entrevistador/entrevistado: “Que porra você é?” pergunta o personagem de Vida de
cachorro ao diretor.
3Ver “Presença da entrevista”, in Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, Filmar o real, sobre o
documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
Já no filme de Mocarzel, é a dimensão reflexiva que seduz Bernardet, particularmente
na seqüência final inspirada na célebre cena que conclui Crônica de um verão (1960),
de J. Rouch, na qual o filme é projetado para aqueles que participaram dele e
discutido por eles. O que os sem-teto do filme de Mocarzel observam é que faltou
mostrar momentos mais verdadeiros da vida deles. Faltou mostrar que se amanhã um
deles bater na casa do próprio diretor ele não atende mais. Atende hoje porque a
câmera está ali, porque ele quer fazer o filme, amanhã não atende mais. Embora
Mocarzel tenha valorizado essas falas, realçado essas queixas, elas não são
respondidas, diz Bernardet. Porque razão? “Porque simplesmente não se dialoga com
entrevistado pobre.” Pobre não é visto como interlocutor de verdade, e essa é uma
critica que Bernardet estende à boa parte do documentário brasileiro contemporâneo:
“tudo o que o pobre diz vale; não vamos contradizer os pobres”. Enquanto um
diálogo efetivo não ocorrer, “de pessoa a pessoa”, “entre cineastas e entrevistados
pobres, o cinema de entrevistas não vai se restabelecer” (pp. 295-296).
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http://jcbernardet.blog.uol.com.br/).
Coutinho um diálogo enriquecedor. É talvez por essa razão que o primeiro texto
anexado à edição de 2003 seja justamente um belíssimo artigo sobre Cabra marcado -
“Vitória sobre a lata de lixo da história”. Mas será que algo mudou na apreciação de
Bernardet em relação ao cinema de Coutinho pós-Cabra? A ressalva final em “A
entrevista” parece isentar os documentários de Coutinho da crítica a esse tipo de
filme, mas não impede que nos perguntemos: afirmar que a entrevista em Coutinho é
um estilo o exime de todas as críticas?
Cinco anos depois dessas reflexões, Bernardet detecta um filme não apenas
“importante e transformador no quadro do cinema documentário brasileiro”, mas
“um abalo sísmico de 7 graus na escala Richter no cinema documentário em geral,
ou, mais precisamente, no documentário baseado na fala”. Trata-se de Jogo de Cena,
de Eduardo Coutinho, que expressa, segundo os comentários entusiasmados de
Bernardet no seu blog, “uma explosão transformadora da magnitude que tiveram no
passado filmes de Eisenstein ou Godard”, um filme que talvez encerre “um ciclo de
cinema que Jean Rouch iniciava há meio século com Eu, um negro” 6.
Depois de um filme que foi longe demais, Coutinho realizou Moscou e agora trabalha
em um projeto distante do filme de entrevista. Bernardet continua a se confrontar com
seu espectro: os efeitos de Jogo de Cena tanto na sua prática no cinema como nas
suas reflexões. E nos pergunta: como superar Jogo de Cena ? O impasse agora é de
todos nós.