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Cabra marcado pra morrer

De Eduardo Coutinho, 1984


Por Enaile Almeida
“Vou contar para vocês/ um caso que sucedeu/ na Paraíba do Norte/ com um homem
que chamava/ Pedro João Boa-Morte”. Com essas palavras, Ferreira Gullar começa a poesia
que dá nome ao filme-denúncia de Eduardo Coutinho, eleito pela Associação Brasileira de
Críticos de Cinema como o melhor documentário brasileiro de todos os tempos, “Cabra
marcado para morrer” (1984). Só tomei conhecimento da existência desse texto depois de
assistir ao filme; seria fácil supor que a história contada é a mesma nas duas obras — é quase
isso.
“Cabra” é um brasileirismo para “sujeito”, “indivíduo”, expressão muito usada no
nordeste do país; daí minha suposição de que o cenário seria em algum lugar da região. No
cartaz, o título é apresentado na cor preta numa grafia simples, crua, sem uso de letras
maiúsculas, e está disposto como se acompanhasse a imagem. São características fortes e,
portanto, trazem a mesma expectativa quanto ao filme. Sabendo ou não da poesia, a teoria é
de que a história contada é a de um sujeito que estava destinado a morrer, ou cuja morte foi
premeditada.

Cabra marcado para morrer - Cartaz


Fonte: Adorocinema
Em sua tradução para o inglês, o filme recebeu o nome “Twenty years later”, texto
empregado como subtítulo na versão original, em português: “vinte anos depois”, que
inclusive aparece no cartaz. As palavras despertam certa curiosidade, fiquei me perguntando
se eu acompanharia uma história que se passa vinte anos depois do acontecido. Junto do
imaginário
subtítulo, há um destaque para o diretor. Coutinho representa, no imaginário brasileiro, o da crítica
brasileiro,
principal documentarista do país, com filmes que propõem olhares subjetivos para pessoas né?
Não sei
comuns e suas histórias. O destaque acaba não só adiantando o formato da obra como
se é geral
também faz uma promessa quanto à qualidade dela, que se concretiza depois da experiência assim
(infelizmente
de assistir, já que “Cabra marcado para morrer” é o responsável por delinear uma )

característica única dos filmes de Eduardo Coutinho, sua forma de fazer documentários, que
transformou as produções do gênero desde então.
A imagem do cartaz é composta por uma colagem de fotografia sobre ilustração.
Nela, é possível observar o que acreditei ser o tal cabra que estava marcado para morrer, já
que o desenho de seu corpo (apenas uma sombra) carrega quatro pequenas marcas que
parecem representar perfurações. O rosto que aparece, no entanto, não é o do sujeito, mas o
de uma mulher. Assim como no título, a identidade do personagem que parecia ser o
protagonista é completamente anônima; não vemos seu rosto, não temos um nome. De volta
ao poema, Gullar disse que “é uma história banal/ em todo aquele Nordeste./ Podia ser no
Sergipe/ Pernambuco ou Maranhão,/ que todo cabra-da-peste/ ali se chama João/ Boa-Morte,
vida não.” O cartaz pode ser também, como na poesia, uma tentativa de universalizar os
acontecimentos, expressar que a história dessa morte é uma história recorrente, e que o rosto
daquele cabra estampado poderia ter várias formas e receber vários nomes — mas todos eles
são “João Boa-Morte”, morrem por algo maior, talvez, mas não vivem bem.
O rosto no cartaz, cujas suposições a seu redor podem ir da esposa à assassina do
cabra, aparece através de uma fotografia em preto e branco, ou seja, é antiga. Por receber
atenção, imaginei que seria uma figura importante para o documentário. Ao assistir, descobri
que era mesmo a esposa do protagonista, que se chamava mesmo João, João Teixeira.
Elizabeth Teixeira, a viúva, é a guia do filme, junto de suas memórias, e realmente tem
grande importância para o desenvolvimento do enredo. Entre todos esses elementos, estão as
cores preta e vermelha, as únicas presentes, que criam suposições como a de que o filme não
seja colorido, de que seja forte como a combinação de cores e de que seja ativo,
movimentado. No cinema, há uma tendência em associar o vermelho à ação e o preto ao
horror, e o resultado realmente gera um impacto que pode trazer uma ideia de horror, o que
casa com o “morrer” no título e com as marcas de tiros no desenho.
As expectativas quanto ao tom e a ideia do filme se confirmam. O documentário
resgata uma história ainda mais ampla do que o esperado, mas o cartaz evoca um pouco do
mistério, traz uma atmosfera enigmática e curiosa, que parece dizer que havia muito mais
sendo contado. O subtítulo e tradução para inglês, que destacam os “vinte anos depois”,
produzem um sentido também coerente quando descobre-se que o documentário nasceu vinte
anos antes de ser concretizado. O filme é o princípio e o fim da história.
“Cabra marcado para morrer” começou em 1962, quando João Pedro Teixeira,
fundador e líder da Liga Camponesa de Sapé, foi assassinado numa emboscada na Paraíba.
Coutinho tentou transformar a trajetória em filme e foi interrompido pelo golpe militar, em
1964. Finalmente, em 1984 o tema é retomado através de uma montagem entre cenas
gravadas no passado para a obra original, ou seja, representações, depoimentos dos
personagens envolvidos, anos depois, e manchetes de jornais. A produção revisita o passado
através do presente, em que o desenrolar da história mostra que existem poucas esperanças
para o futuro. A vida e as memórias de Elizabeth Teixeira, antes, durante e depois do filme,
funcionam como fio-condutor da trajetória retratada e, ao mesmo tempo, representam
inúmeras outras, histórias de luta por direitos, por união, por persistência numa causa maior,
mesmo quando a própria existência se torna um risco — histórias essas que, ainda em 2021,
não têm fim.
O título é uma homenagem digna e sensível à narrativa e à família de João e Elizabeth
Teixeira, cujas vidas foram profundamente alteradas pela vida e pela morte, atravessadas pela
luta camponesa. Além de remeter à poesia de Ferreira Gullar sobre a história do líder, traz o
elemento regional e expressa a generalidade de vidas como essas contadas. Cabe considerar,
também, a possível intenção de comunicar que o próprio João Pedro entendia os riscos de
vida que corria, mas escolhia enfrentar os desafios ainda assim. Junto disso, o cartaz também
faz jus à atmosfera e à força do filme, além de despertar uma curiosidade e mistério
suficientes para entender que algo estava sendo guardado para depois. O destaque para a
figura de Elizabeth é muito valioso, pois sua personagem guia e conecta a história do passado
do filme e da luta de João Pedro com o presente. A escolha do subtítulo como título para a
versão em inglês, “Twenty years later”, traz uma perda inevitável de sentido e potência, mas
é suficientemente coerente e instigante, já que causa certa curiosidade e auxilia na criação de
suposições sobre o filme.
Hoje eu quero voltar sozinho (2014)
De Daniel Ribeiro
Por Enaile Almeida
“Hoje eu quero voltar sozinho”, título instigante e de tom curioso, faz referência ao
curta de mesma direção, “Eu não quero voltar sozinho” (2010) e reflete tanto as mudanças
que se desenrolam no filme quanto os conflitos do personagem principal, Leonardo. A
transição de uma afirmação para a outra já é um indício da ampliação que o longa realiza em
relação à primeira produção e traduz a transformação, autoafirmação, descobrimento e
amadurecimento que permeiam e definem o enredo do filme.
No cartaz, o filme recebe como tag-line ‘Nem todo amor acontece à primeira vista’, o
que adianta um pouco da trama: o protagonista, que vai se apaixonar, é cego. A partir disso, o
próprio título pode ganhar mais uma camada de significado; uma das mudanças vividas por
Leo é a conquista da independência, processo que está associado à sua condição de deficiente
visual. O título é apresentado todo em letras maiúsculas e com um aspecto “rabiscado”,
trazendo o ambiente escolar e a temporalidade em que se desenvolve a trama, reforçados pela
presença de uma mochila na imagem, carregada por um dos garotos.
Hoje eu quero voltar sozinho - Cartaz
Fonte: Behance

O cartaz é composto por uma fotografia do filme, que apresenta dois garotos sorrindo
e o protagonista, Leo, segura os ombros de Gabriel, enquanto andam de bicicleta. A cena é
um momento relevante para a obra e condensa uma questão marcante para o filme, a
“impossibilidade”, já que Leo, apesar de uma enorme vontade, considerava impossível que
um menino cego pudesse andar de bicicleta. Combinando os elementos, é possível entender
que o romance acontece entre os dois personagens na capa, mas, como no filme, esse aspecto
ganha outros contornos e expande a história para falar mais do que de amor entre dois
garotos. Também aparecem na imagem o nome dos artistas que compõem o elenco e o do
diretor, além das premiações que o longa recebeu, o que se apresenta como um indicador de
sucesso. A fotografia delicada fala da atmosfera do filme e mostra certa cumplicidade entre
os personagens, tudo sobre um fundo desfocado que transmite a sensação de que o que vemos
é o mesmo que Leo consegue ver, através da sua própria forma de enxergar.
A produção recebeu uma versão de divulgação internacional do cartaz, que apresenta
a tradução do título para o inglês, ‘The way he looks’. Nela, a imagem é uma montagem entre
fotografia, da mesma cena na versão
brasileira, e desenho. A composição pode ser
outra metáfora para uma forma incomum de
enxergar o mundo, com poucos elementos
coloridos e apenas aqueles que se destacam,
como os dois garotos, a luz do sol e a
bicicleta. Também são exibidos o elenco, a
direção, os prêmios recebidos e comentários
da crítica, indicando uma boa recepção da
obra, novamente. O título traduzido transmite
uma ideia parecida com a da tag-line do
original, ao fazer um jogo com a questão do
olhar e reforçar a trama; poderia dizer tanto
algo como “O jeito como ele olha” quanto
“A maneira como ele se parece”.
The way he looks - Cartaz
Fonte: Behance
A montagem ganhou uma versão em português, tendo como diferencial a presença da
tag-line.

Hoje eu quero voltar sozinho - Cartaz


Fonte: Behance
Em ambas as versões de título e cartaz, há uma representação proporcional e delicada
da atmosfera e argumentos do filme, que acrescenta a uma história universal, a descoberta do
primeiro amor, características particulares, a homossexualidade e a deficiência física. Como
na obra, as significações evocadas pelos elementos se ampliam para o amor em geral e para
as perspectivas de transformação e independência de um adolescente, com indícios das
questões mais específicas pelas quais o enredo é atravessado.
Ângelo
De Mariana Machado, 2020
Por Enaile Almeida
As primeiras simbologias evocadas pelo cartaz de “Ângelo” parecem interligadas:
beleza, transformação, metamorfose e ciclos, numa borboleta, e tempo e estabilidade, num
rosto idoso de cabelos e pelos brancos. Ao mesmo tempo em que permite supor que o título
do filme se refere ao personagem principal, representado pelo rosto na imagem, o cartaz cria
a expectativa de que a obra tenha um tom biográfico. Logo abaixo do nome, estão destacados
a diretora e o ator principal da produção, ambos com o mesmo sobrenome. Assim, entende-se
que provavelmente existe uma relação de parentesco entre eles. O rosto e a borboleta estão
unidos por um gesto afetuoso, a figura do homem segura nos dedos o inseto, de modo que
esse o toca numa espécie de carinho.

Ângelo - Cartaz
Fonte: Mariana Machado Art
No meu primeiro contato, observando apenas o cartaz, cujo filme estava categorizado
numa sessão denominada “circular o tempo”, na Mostra UFMG de Cinema Universitário
(2021), imaginei que a ideia de tempo, ou a passagem dele, seriam centrais na obra. Ao
assistir, percebi que o curta não traz o foco para o tempo, mas sim brinca com ele. Ângelo é
um documentário, um retrato sobre Ângelo Machado, avô da diretora e figura importante
para a história da Universidade Federal de Minas Gerais e para a ciência brasileira. Chegar na
conclusão quanto ao formato poderia ser mais fácil para alguém que possui conhecimento
prévio da personalidade em questão. Mariana Machado, a diretora, é sua neta. Talvez por isso
a obra, desde o próprio cartaz, tenha ganhado um tom tão terno e familiar, mesmo para mim,
que mal conhecia o simpático professor. E não só professor: cheio de facetas e metamorfoses,
como uma borboleta ou libélula, pelas quais era tão apaixonado, Ângelo foi também cientista,
escritor, dramaturgo, ambientalista, zoólogo e pesquisador. Além disso, outras
particularidades e muitas histórias são conhecidas através de uma costura de pequenos
registros e memórias que constroem e celebram uma história.
“Ângelo” é um título ainda mais carregado de significados depois de assistir ao filme,
quando descobre-se que o ser representado por esse nome, em si, já traz tantos olhares,
paixões e relações com a vida de maneira geral. No cartaz, a figura da borboleta adianta uma
das paixões do personagem retratado, mas também parece falar sobre a multiplicidade e
inventividade de sua existência. O tempo atravessa os fragmentos de memórias e
performances que compõem o filme, mas é também personagem e detalhe. Se manifesta
através das lembranças, dos objetos, da própria figura de Ângelo e suas graças, enquanto
conta suas histórias; mas é modelado não para seguir uma linearidade ou cronologia
coerentes com a passagem da vida e sim com os afetos criados por ela. Portanto, as
simbologias resgatadas pela imagem se concretizam através da trajetória celebrada pelo
documentário.

Enaile, os três textos estão muito bons e souberam explorar os elementos de saída propostos
para uma crítica, avançando também um pouco mais na argumentação com elementos da trama ou
adicionais, caso do poema do Gullar. Acho que a leitura comparada foi interessante no segundo
caso, faltando só talvez explorar as aspas da crítica e também acho que o texto de Ângelo traz uma
gema crítica em torno do uso do tempo e representações de objetos que podem também serem
desdobradas em oportunidade posterior. 20/20.

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