Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
característica única dos filmes de Eduardo Coutinho, sua forma de fazer documentários, que
transformou as produções do gênero desde então.
A imagem do cartaz é composta por uma colagem de fotografia sobre ilustração.
Nela, é possível observar o que acreditei ser o tal cabra que estava marcado para morrer, já
que o desenho de seu corpo (apenas uma sombra) carrega quatro pequenas marcas que
parecem representar perfurações. O rosto que aparece, no entanto, não é o do sujeito, mas o
de uma mulher. Assim como no título, a identidade do personagem que parecia ser o
protagonista é completamente anônima; não vemos seu rosto, não temos um nome. De volta
ao poema, Gullar disse que “é uma história banal/ em todo aquele Nordeste./ Podia ser no
Sergipe/ Pernambuco ou Maranhão,/ que todo cabra-da-peste/ ali se chama João/ Boa-Morte,
vida não.” O cartaz pode ser também, como na poesia, uma tentativa de universalizar os
acontecimentos, expressar que a história dessa morte é uma história recorrente, e que o rosto
daquele cabra estampado poderia ter várias formas e receber vários nomes — mas todos eles
são “João Boa-Morte”, morrem por algo maior, talvez, mas não vivem bem.
O rosto no cartaz, cujas suposições a seu redor podem ir da esposa à assassina do
cabra, aparece através de uma fotografia em preto e branco, ou seja, é antiga. Por receber
atenção, imaginei que seria uma figura importante para o documentário. Ao assistir, descobri
que era mesmo a esposa do protagonista, que se chamava mesmo João, João Teixeira.
Elizabeth Teixeira, a viúva, é a guia do filme, junto de suas memórias, e realmente tem
grande importância para o desenvolvimento do enredo. Entre todos esses elementos, estão as
cores preta e vermelha, as únicas presentes, que criam suposições como a de que o filme não
seja colorido, de que seja forte como a combinação de cores e de que seja ativo,
movimentado. No cinema, há uma tendência em associar o vermelho à ação e o preto ao
horror, e o resultado realmente gera um impacto que pode trazer uma ideia de horror, o que
casa com o “morrer” no título e com as marcas de tiros no desenho.
As expectativas quanto ao tom e a ideia do filme se confirmam. O documentário
resgata uma história ainda mais ampla do que o esperado, mas o cartaz evoca um pouco do
mistério, traz uma atmosfera enigmática e curiosa, que parece dizer que havia muito mais
sendo contado. O subtítulo e tradução para inglês, que destacam os “vinte anos depois”,
produzem um sentido também coerente quando descobre-se que o documentário nasceu vinte
anos antes de ser concretizado. O filme é o princípio e o fim da história.
“Cabra marcado para morrer” começou em 1962, quando João Pedro Teixeira,
fundador e líder da Liga Camponesa de Sapé, foi assassinado numa emboscada na Paraíba.
Coutinho tentou transformar a trajetória em filme e foi interrompido pelo golpe militar, em
1964. Finalmente, em 1984 o tema é retomado através de uma montagem entre cenas
gravadas no passado para a obra original, ou seja, representações, depoimentos dos
personagens envolvidos, anos depois, e manchetes de jornais. A produção revisita o passado
através do presente, em que o desenrolar da história mostra que existem poucas esperanças
para o futuro. A vida e as memórias de Elizabeth Teixeira, antes, durante e depois do filme,
funcionam como fio-condutor da trajetória retratada e, ao mesmo tempo, representam
inúmeras outras, histórias de luta por direitos, por união, por persistência numa causa maior,
mesmo quando a própria existência se torna um risco — histórias essas que, ainda em 2021,
não têm fim.
O título é uma homenagem digna e sensível à narrativa e à família de João e Elizabeth
Teixeira, cujas vidas foram profundamente alteradas pela vida e pela morte, atravessadas pela
luta camponesa. Além de remeter à poesia de Ferreira Gullar sobre a história do líder, traz o
elemento regional e expressa a generalidade de vidas como essas contadas. Cabe considerar,
também, a possível intenção de comunicar que o próprio João Pedro entendia os riscos de
vida que corria, mas escolhia enfrentar os desafios ainda assim. Junto disso, o cartaz também
faz jus à atmosfera e à força do filme, além de despertar uma curiosidade e mistério
suficientes para entender que algo estava sendo guardado para depois. O destaque para a
figura de Elizabeth é muito valioso, pois sua personagem guia e conecta a história do passado
do filme e da luta de João Pedro com o presente. A escolha do subtítulo como título para a
versão em inglês, “Twenty years later”, traz uma perda inevitável de sentido e potência, mas
é suficientemente coerente e instigante, já que causa certa curiosidade e auxilia na criação de
suposições sobre o filme.
Hoje eu quero voltar sozinho (2014)
De Daniel Ribeiro
Por Enaile Almeida
“Hoje eu quero voltar sozinho”, título instigante e de tom curioso, faz referência ao
curta de mesma direção, “Eu não quero voltar sozinho” (2010) e reflete tanto as mudanças
que se desenrolam no filme quanto os conflitos do personagem principal, Leonardo. A
transição de uma afirmação para a outra já é um indício da ampliação que o longa realiza em
relação à primeira produção e traduz a transformação, autoafirmação, descobrimento e
amadurecimento que permeiam e definem o enredo do filme.
No cartaz, o filme recebe como tag-line ‘Nem todo amor acontece à primeira vista’, o
que adianta um pouco da trama: o protagonista, que vai se apaixonar, é cego. A partir disso, o
próprio título pode ganhar mais uma camada de significado; uma das mudanças vividas por
Leo é a conquista da independência, processo que está associado à sua condição de deficiente
visual. O título é apresentado todo em letras maiúsculas e com um aspecto “rabiscado”,
trazendo o ambiente escolar e a temporalidade em que se desenvolve a trama, reforçados pela
presença de uma mochila na imagem, carregada por um dos garotos.
Hoje eu quero voltar sozinho - Cartaz
Fonte: Behance
O cartaz é composto por uma fotografia do filme, que apresenta dois garotos sorrindo
e o protagonista, Leo, segura os ombros de Gabriel, enquanto andam de bicicleta. A cena é
um momento relevante para a obra e condensa uma questão marcante para o filme, a
“impossibilidade”, já que Leo, apesar de uma enorme vontade, considerava impossível que
um menino cego pudesse andar de bicicleta. Combinando os elementos, é possível entender
que o romance acontece entre os dois personagens na capa, mas, como no filme, esse aspecto
ganha outros contornos e expande a história para falar mais do que de amor entre dois
garotos. Também aparecem na imagem o nome dos artistas que compõem o elenco e o do
diretor, além das premiações que o longa recebeu, o que se apresenta como um indicador de
sucesso. A fotografia delicada fala da atmosfera do filme e mostra certa cumplicidade entre
os personagens, tudo sobre um fundo desfocado que transmite a sensação de que o que vemos
é o mesmo que Leo consegue ver, através da sua própria forma de enxergar.
A produção recebeu uma versão de divulgação internacional do cartaz, que apresenta
a tradução do título para o inglês, ‘The way he looks’. Nela, a imagem é uma montagem entre
fotografia, da mesma cena na versão
brasileira, e desenho. A composição pode ser
outra metáfora para uma forma incomum de
enxergar o mundo, com poucos elementos
coloridos e apenas aqueles que se destacam,
como os dois garotos, a luz do sol e a
bicicleta. Também são exibidos o elenco, a
direção, os prêmios recebidos e comentários
da crítica, indicando uma boa recepção da
obra, novamente. O título traduzido transmite
uma ideia parecida com a da tag-line do
original, ao fazer um jogo com a questão do
olhar e reforçar a trama; poderia dizer tanto
algo como “O jeito como ele olha” quanto
“A maneira como ele se parece”.
The way he looks - Cartaz
Fonte: Behance
A montagem ganhou uma versão em português, tendo como diferencial a presença da
tag-line.
Ângelo - Cartaz
Fonte: Mariana Machado Art
No meu primeiro contato, observando apenas o cartaz, cujo filme estava categorizado
numa sessão denominada “circular o tempo”, na Mostra UFMG de Cinema Universitário
(2021), imaginei que a ideia de tempo, ou a passagem dele, seriam centrais na obra. Ao
assistir, percebi que o curta não traz o foco para o tempo, mas sim brinca com ele. Ângelo é
um documentário, um retrato sobre Ângelo Machado, avô da diretora e figura importante
para a história da Universidade Federal de Minas Gerais e para a ciência brasileira. Chegar na
conclusão quanto ao formato poderia ser mais fácil para alguém que possui conhecimento
prévio da personalidade em questão. Mariana Machado, a diretora, é sua neta. Talvez por isso
a obra, desde o próprio cartaz, tenha ganhado um tom tão terno e familiar, mesmo para mim,
que mal conhecia o simpático professor. E não só professor: cheio de facetas e metamorfoses,
como uma borboleta ou libélula, pelas quais era tão apaixonado, Ângelo foi também cientista,
escritor, dramaturgo, ambientalista, zoólogo e pesquisador. Além disso, outras
particularidades e muitas histórias são conhecidas através de uma costura de pequenos
registros e memórias que constroem e celebram uma história.
“Ângelo” é um título ainda mais carregado de significados depois de assistir ao filme,
quando descobre-se que o ser representado por esse nome, em si, já traz tantos olhares,
paixões e relações com a vida de maneira geral. No cartaz, a figura da borboleta adianta uma
das paixões do personagem retratado, mas também parece falar sobre a multiplicidade e
inventividade de sua existência. O tempo atravessa os fragmentos de memórias e
performances que compõem o filme, mas é também personagem e detalhe. Se manifesta
através das lembranças, dos objetos, da própria figura de Ângelo e suas graças, enquanto
conta suas histórias; mas é modelado não para seguir uma linearidade ou cronologia
coerentes com a passagem da vida e sim com os afetos criados por ela. Portanto, as
simbologias resgatadas pela imagem se concretizam através da trajetória celebrada pelo
documentário.
Enaile, os três textos estão muito bons e souberam explorar os elementos de saída propostos
para uma crítica, avançando também um pouco mais na argumentação com elementos da trama ou
adicionais, caso do poema do Gullar. Acho que a leitura comparada foi interessante no segundo
caso, faltando só talvez explorar as aspas da crítica e também acho que o texto de Ângelo traz uma
gema crítica em torno do uso do tempo e representações de objetos que podem também serem
desdobradas em oportunidade posterior. 20/20.