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Ter que reproduzir um romance em uma quantidade delimitada de minutos já denota

decisões que muitas vezes não contemplam o público e crítica. Na narrativa fílmica, uma
reprodução fiel da narrativa literária é talvez o propósito de muitos filmes que se enveredam
por esse caminho. Neste sentido, adaptações da literatura ao cinema têm sido estudadas desde
que a Sétima Arte se tornou parte da nossa cultura. No entanto, adaptar também pode
desestabilizar algumas estruturas do romance.
Por tanto, objetiva-se, aqui, comparar o romance A Cor Púrpura (The Color Purple)
de Alice Walker, 1982 . Estruturado como um romance, o livro de Alice Walker foi publicado
em 1982 e adaptado por Steven Spielberg em 1985. Portanto, objetiva-se neste trabalho
analisar comparativamente, não por completo, mas em pontos de destaque, as duas obras.
O romance de Walker fala sobre a trajetória de Celie, uma menina negra de 14 anos
refém de uma situação social perversa e comum para as primeiras décadas do século XX. A
menina Celie mora no interior da Georgia e vive em condições análogas às da escravidão:
primeiramente aprisionada e abusada pelo pai, depois pelo marido. Mesmo sozinha, está
sempre servindo a todos (pai, irmão, enteados, netos. A protagonista escreve cartas a Deus
como forma de escapar daquela realidade cruel. O filme de Spilberg se ateve a ter o mesmo
enredo de Walker. Um total de 90 cartas contam a toda a trajetória de Celie até tornar-se
adulta.
De forma breve, pretendo comparar o início do livro, dando destaque as cartas de
Celie no livro de Walker com a versão inicial e os recursos narrativos de Spilberg, retratada
no filme de 1985. Devo lembrar que as cartas estão dispostas no livro, dada a forma como a
personagem escreve (está em vias da alfabetização)e está impressa. Porém, no filme, isso é
realizado por recurso chamado voz-over, ou seja, quando a voz da personagem interrompe a
cena, falas e sobrepõe-se sobre a imagem. No caso de A Cor Purpura isso não acontece
durante toda a história, mas em alguns momentos. Embora o filme seja totalmente inspirado
nas cartas escritas pela narradora, o voz-over sobrepõe algumas cenas, não todas. Esse
recurso, tem o efeito de destacar o narrador-personagem. Os momentos em que esses recursos
aparecem em filmes nos dão a sensação intima com a personagem principal, parece que ele
está nos contando a história.
O livro é quase todo narrado por Celie. Vale ressaltar que, 70 cartas no livro são da
Celie, ora para Deus (cartas que nunca foram entregues) ora para sua irmã Netie. Em outras
22 cartas, são mostradas as histórias contadas por Netie quando foi ser missionária na Africa.
Embora o filme conte com o voz-over de Celie, a história é contada de forma continua, pelos
personagens que a compõem.
Os primeiros minutos do filme são atravessados pelo voz-over de Celie, de forma a
mostrar que a história é sobre ela. As imagens apostam em primeiro mostrar no plano de
fundo, a boa relação de Celie com a irmã mais nova, a relação de abuso do pai com a irmã, os
olhares maliciosos que ele direciona a menina. Em seguida, a opção do diretor foi apresentar o
futuro marido de Celie. Este, na verdade, quer se casar com sua irmã. Todo o voz-over de
Celie é para narrar estes acontecimentos. As imagens, nos conduzem a toda a trajetória da
menina até o dia em que é obrigada a ir com o Senhor (nome dado ao homem a quem Celie
foi entregue).
A relação de abuso do Senhor a personagem é evidenciada com 1 cena de estupro,
outra de agressão física e alguns abusos psicológicos e verbais. A estratégia do voz-over é
justamente marcar a personagem como protagonista. Esse recurso, leva o espectador a
conhecer fatos determinantes da história e da vida dela. Os primeiros minutos de um filme são
cruciais para o restante da narrativa, além de apresentar a personagem principal ao público,
outros elementos que serão desenvolvidos no decorrer do filme se mostram presentes: o
estupro pelo suposto pai, a separação dos filhos, a imposição do casamento.

O livro de Walker, em suas primeiras linhas, apresenta as cartas que a menina


escreve a Deus. Na primeira carta, ela narra como foi a morte da mãe, os estupros que sofreu
do pai e seu medo, de que o pai fizesse o mesmo que fez com ela, com sua irmã:

Ele nunca teve uma palavra boa pra falar pra mim. Só falava Você vai fazer o que
sua mãe num quis. Primeiro ele botou a coisa dele na minha coxa e cumeçou a
mexer. Depois ele agarrou meus peitinho. Depois ele impurrou a coisa dele pra
dentro da minha xoxota. Quando aquilo dueu, eu gritei. Ele cumeçou a me sufocar,
dizendo É melhor você calar a boca e acustumar. (Walker, 1982 p.9-10)

Na segunda carta, a narradora descreve as tragédias que aconteceram com ela: a morte da
mãe, “Minha mamãe morreu. Ela morreu gritando e praguejando. Ela gritou comigo. Ela praguejou
comigo” Walker (1989, p.11); o assassinato de seus dois filhos, “Foi ele que levou. Ele levou ele
quando eu tava dormindo. Matou ela lá no bosque. Vai matar esse também, se ele puder”.

Tudo que se expõe nas duas primeiras cartas encontra-se nos primeiros minutos do filme. O
fato de as falas das personagens reproduzirem apenas parte das cartas é justificável uma vez, pelo
tempo mais curto do filme, é também uma forma de resumir. Então, associadas às falas, há imagens
que mostram ao espectador detalhes da narrativa original, como Celie grávida e, na sequência, seu
parto. Esse resumo também ajuda o público a entender o que aconteu a personagem. É importante
pois ajuda a ambientar o espectador do sofrimento da menina: a narração fílmica mostra o bebê
sendo levado da menina. Poucos minutos depois, a voz-over de Celie complementa a informação
quando apresenta os filhos, sem esclarecer se estes se encontram vivos: “Um menino que chamei de
Adam, ele me tirou enquanto eu dormia. E uma menina que chamei de Olivia, que ele tirou
diretamente dos meus braços” (4min48s). Vale ressaltar aqui, que no filme a adaptação foi bem
delicada, o que se distancia da brutalidade descrita por Celie no livro.

Ainda falando do início, há outra carta que gostaria de destacar, quando Celie revela a
relação que tinha com o pai após a morte de sua mãe:
Querido Deus, Parece que ele num pode mais nem olhar pra mim. Fala
queu sou má e sempre quero fazer coisa ruim. Ele levou meu outro nenê
também, um minino dessa vez. Mas eu num acho que matou não. Acho que
ele vendeu prum homem e a esposa dele, lá em Monticello. [...] Eu fico
pensando que ele bem podia achar alguém pra casar. Eu vejo ele olhando
pra minha irmãzinha. Ela tá cum medo. Mas eu falei que vou tomar conta
dela. Cum ajuda de Deus. (WALKER, 2009, p.13)

A comparação entre texto original e o filme revela que, mesmo pouco modificado, há a
preservação do sentido original. Além disso, a voz de Celie ajuda o espectador na compreensão,
revelando o tipo de relação que mantinha com o pai após a morte da mãe. Aos seis minutos do filme
Celie avista seu pai cercando Nettie na varanda da casa. O voz-over de Celie, nos apresenta a
ingenuidade da mesma ao relatar o interesse do pai por sua irmã, ouve-se: “Eu fico pensando que ele
bem podia achar alguém pra casar. Eu vejo ele olhando pra minha irmãzinha. Ela tá cum medo”.

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