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A sintaxe visual da Graphic Novel “Do inferno”:


a crueldade de um assassino narrada em preto e branco

Larissa SCHLÖGL 1

Resumo

O presente artigo faz uso da Graphic Novel “Do Inferno” para estudar sua narrativa e
estética, com ênfase em seus componentes estruturais e temáticos, a partir da análise da
sintaxe visual da história em quadrinhos. Este romance gráfico, publicado em 1999, foi
escrito por Alan Moore e ilustrado por Eddie Campbell. A narrativa se passa na
Inglaterra vitoriana e conta a história de Jack, o Estripador. O objetivo é observar como
a distribuição das imagens, aliadas às palavras, possibilita a construção de uma
linguagem. Farei ponderações sobre “Do Inferno”, sua construção narrativa, disposição
de elementos, uso das cores e trama. Para a realização deste estudo, baseio-me nos
princípios da teoria da sintaxe visual de Donis A. Dondis (1997) e dos estudos do
cartunista e teórico dos quadrinhos Will Eisner (1999) e Scott McCloud (2005).

Palavras-chave: Narrativa gráfica. Graphic Novel. Do Inferno.

A Graphic Novel “Do Inferno”: reflexões pontuais

Antes de aprofundar o estudo na análise da narrativa gráfica aqui proposta, é


interessante destacar que Graphic Novel, ou romance gráfico, é um termo utilizado para
determinar publicações em quadrinhos com histórias complexas e direcionadas a um
público adulto, diferente das histórias em quadrinhos convencionais. Este termo foi
cunhado pelo renomado quadrinista e teórico das histórias em quadrinhos Will Eisner.
O autor afirma que a arte seqüencial é “uma forma artística e literária que lida com a
disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma
ideia” (EISNER, 1999, p. 5). E complementa que ao examinar uma história contada em
narrativa gráfica como um todo “a disposição dos seus elementos específicos assume a
característica de uma linguagem” (id. p. 7).

                                                            
1
Mestranda em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná (Curitiba/PR). E-mail:
larissa.schlogl@gmail.com.

Ano VII, n. 08 – Agosto/2011


 

O romance gráfico “From Hell” (“Do Inferno”), dividido em quatro volumes,


foi publicado no Brasil em 2000. Escrito pelo renomado autor inglês Alan Moore e
ilustrado por Eddie Campbell, esta narrativa gráfica apresenta a história do famoso
serial killer Jack, o Estripador. O romance se passa na Inglaterra vitoriana de 1888, na
qual o leitor acompanha o assassino na caça às prostitutas da “Cleveland Street”. Cada
publicação apresenta um apêndice onde o autor, Alan Moore, descreve a fonte dos fatos
no qual baseou a sequência narrativa em questão e porque abordou determinado
acontecimento.
O autor baseia-se em livros que se referem aos assassinatos, que de fato
ocorreram no passado, mas que, até hoje, estão em aberto, porque a busca pelo
verdadeiro assassino não passa de suposições de variados estudiosos do assunto. Ele
explora os episódios que são retirados de outras obras e de onde surgiram suas
inspirações, quando inventou fatos para fins narrativos, embora alguns tenham
procedência verídica. Livros como “JTR: The Final Solution” de Stephen Knight,
“Sickert & The Ripper Crimes” de Jean Overton Fuller, “The Complete Jack the
Ripper” de Donald Rumbelow, entre outros, são utilizados pelo autor do romance
gráfico para narrar as ocorrências. A estratégia de utilizar referências reais misturadas às
pseudoreferências é uma característica das obras de Moore e que se alia às inúmeras
citações eruditas e intertextualidades, para acentuar a complexidade e sofisticação de
suas obras.
A história foi baseada em fatos reais, muitas vezes fundamentada em relatos de
testemunhas da época. Porém, até hoje, a identidade do verdadeiro Jack, o Estripador
não foi revelada, apesar de existirem diversas suposições sobre quem foi este homem
que amedrontou Londres no século passado.
Com fins narrativos, Moore define no princípio da trama quem é o assassino
Jack, o Estripador. A história transcorre, em diversos momentos, sob a perspectiva do
próprio homicida, o que torna a narrativa ainda mais atrativa e fascinante. Na trama, o
leitor é envolvido pela Londres do século XIX e percorre os caminhos de Jack, o
Estripador em sua busca pela perfeição divina e amedrontadora, ao perseguir as
prostitutas do território londrino chamado Whitechapel.

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Segundo Moore (1999), William Gull, médico da família real, é o assassino da


trama e realiza os crimes devido ao desejo da Rainha Vitória em eliminar determinadas
prostitutas. Isto se deve ao fato de o príncipe Albert de Gales ter se envolvido com uma
balconista de loja de doces, com a qual teve uma filha bastarda. Evidentemente, a corte
não aceita este vínculo e interna a mãe da criança em um manicômio. Cabe aqui
esclarecer que a prostituta Marie Kelly era amiga da vendedora de doces e, ao saber do
fato, ameaçou a corte em troca de dinheiro, caso contrário, o segredo da realeza seria
revelado. Foi então que os assassinatos passaram a acontecer, para calar as prostitutas
que sabiam deste fato que poderia arruinar o reino vitoriano.
Neste artigo, observarei como a distribuição das imagens, aliadas às palavras,
possibilita a construção de uma linguagem específica das narrativas sequenciais. Farei
ponderações sobre a Graphic Novel “Do Inferno”, suas cores e traços, construção da
trama, tempo e continuidade, além do enquadramento e sequência da narrativa.

Cores e Traços

A história gráfica é totalmente narrada nas cores preto e branco, o que não é
usual no gênero e contribui para criar uma atmosfera de mistério e suspense. No início
da leitura, verifico uma dificuldade latente de decifrar as imagens inseridas nos quadros.
Muitas delas são elaboradas com riscos ríspidos e sem grande definição dos signos. O
preto e o branco, por vezes, dificultam a identificação dos personagens. Para explicar a
ausência de cores, o teórico dos quadrinhos Scott McCloud afirma:

Nós vivemos num mundo em cores, não em preto e branco. Os quadrinhos


coloridos sempre vão parecer mais ‘reais’. Como o leitor de quadrinhos busca
muito mais do que ‘realidade’, a cor nunca vai substituir inteiramente o preto
e branco (MCCLOUD, 2005, p. 192)

Apesar de muitos fatos terem acontecido na vida real, o leitor encontra-se diante
de uma ficção, na qual o leitor mergulha na narrativa e deixa que seu aspecto onírico o
envolva.

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Figura 1: Quadro Vol. 1 (MOORE; CAMPBELL, 2005a, p.7)

Observo a presença de muitos riscos para compor a imagem (Figura 1). O autor
também utiliza quadros de tamanhos variados para narrar a trama. Isto se deve ao ritmo
de leitura, que varia de acordo com a quantidade de elementos dispostos dentro de um
quadro. Will Eisner afirma que “quando estamos expostos a uma frequência de quadros
de tamanho igual e, de repente, temos um quadro maior, este permite que o leitor faça
uma breve pausa ao diminuir o ritmo da leitura” (EISNER, 1999, p. 36).
Na página 40 do Volume 1, uma cena de sexo entre marido e mulher é
apresentada apenas com quadros negros e balões de fala. Conforme define Eisner, “ao
escrever apenas com palavras, o autor dirige a imaginação do leitor. (...) a imagem
torna-se um enunciado preciso que permite pouca ou nenhuma interpretação adicional”
(EISNER, 1999, p. 122).
Observam-se, também, quadros com o uso excessivo de rabiscos, nas palavras
de McCloud:
Os fundos podem ser outra ferramenta valiosa para indicar ideias invisíveis,
sobretudo, o mundo das emoções. Mesmo quando há pouca ou nenhuma
distorção de personagens numa cena, um fundo distorcido ou expressionista
pode afetar nossa ‘leitura’ dos estados interiores do personagem. Certos
padrões podem produzir um efeito quase fisiológico no espectador, só que ele
vai atribuir essas sensações, não a si mesmo, mas aos personagens com os
quais se identifica (MCCLOUD, 2005, p. 132).

Os traços utilizados pelo ilustrador, Eddie Campbell, expressam a agonia de


personagens inseridos em um cenário assombrado pelos vestígios de assassinatos
horrendos. Também apresentam uma Inglaterra vitoriana suja, inundada por
promiscuidade. Na Figura 2 há tantos rabiscos que se torna difícil definir o cenário.

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Figura 2: Quadro Vol.1 (op.cit. p. 72)

Em meio aos traços rabiscados, surgem desenhos esfumaçados, ao alterar o tipo


de linha utilizada nas vinhetas mostradas anteriormente. Segundo Donis A. Dondis,

A linha pode assumir formas muito diversas para expressar uma grande
variedade de estados de espírito. Pode ser muito imprecisa e indisciplinada,
como nos esboços ilustrados, para tirar proveito de sua espontaneidade de
expressão. Pode ser muito delicada e ondulada, ou nítida e grosseira, nas
mãos do mesmo artista. Pode ser hesitante, indecisa e inquiridora, quando é
simplesmente uma exploração visual em busca de um desenho (DONDIS,
1997, p. 57).

Os quadros alternam entre o escuro e o claro. Quadros pretos no branco, outros


branco no preto, de traços marcantes a rabiscos. Existem ainda quadros sem requadro,
ou seja, sem a moldura do quadrinho, que são utilizados na sequência em que Jack, o
Estripador, se prepara para agir, como apresento na Figura 3.

Figura 3: Quadro Vol. 1 (op. cit. p. 130)

Quanto a estes quadros sem cenário definido, sabemos que “tiramos conclusões
com freqüência, completando mentalmente o que está incompleto, baseados em
experiência anterior” (MCCLOUD, 2005, p. 63). O autor afirma que “algumas formas
de conclusão são invenções criadas deliberadamente para produzir suspense ou provocar
o espectador” (ibid).

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Ao reparar nos detalhes apresentados na imagem da Figura 4, na rua de


Whitechapel, em Londres, noto construções e pessoas desenhadas com traços mais
acentuados. Conforme Eisner, “O cenário é mais do que uma simples decoração, ele faz
parte da narração” (EISNER, 1999, p. 23).

Figura 4: Quadro Vol. 2 (MOORE; CAMPBELL, 2005b, p. 26)

Tal imagem contrasta com a apresentada na Figura 5, na qual a mesma não tem
desenho definido, são alguns traços que representam uma construção.

Figura 5: Quadro Vol. 2 (op.cit.p. 36)

Na figura 6, observo o uso do cinza para “colorir” a ilustração. O momento que


se encontra na narrativa traz à tona a Londres mórbida, após dois assassinatos realizados
em única noite. Ao consultar o dicionário de símbolos de Jean Chevalier (1991),
encontro, entre diversas definições:

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[...] cinza extrai seu simbolismo do fato de ser, por excelência, um valor
residual: aquilo que resta após a extinção do fogo e, portanto,
antropocentricamente, o cadáver, resíduo do corpo depois que nele se
extinguiu o fogo da vida (CHEVALIER, 1991, p. 247).

Figura 6: Quadro Vol. 2 (op. cit. p. 119)

Cabe ressaltar que se todos os quadros fossem muito complexos, o leitor teria
que dedicar muito tempo da leitura aos detalhes. Quadros simples dão timing à leitura,
que segue em fluxo “controlado”.

A Trama
Torna-se importante destacar o que Eisner afirma sobre o uso da primeira página
de uma narrativa:

A primeira página de uma história funciona como uma introdução. O que e


quanto entra nela depende do número de páginas que vêm a seguir. Ela é um
trampolim para a narrativa, e, para a maior parte das histórias, estabelece um
quadro de referência. Se bem utilizada, ela prende a atenção do leitor e
prepara a sua atitude para com os eventos que se seguem. Ela estabelece um
‘clima’. Ela se torna uma página de apresentação, mais do que uma simples
primeira página, quando o artista a planeja como uma unidade decorativa (id.
p. 62).

Em todas as páginas que antecedem os capítulos de “Do Inferno”, dividido em


dezesseis deles, existe uma página negra, com alguma citação interessante ou imagem
de obras de autores conhecidos da época em questão. Na página que antecede o
“Capítulo um”, existe uma citação de Marjorie Lilly, autora de “Sickert, the painter and
his circle”:

[O lenço vermelho de Sickert] foi um fator importante no processo de criação


de sua pintura, um cabo-guia para orientar a meada das ideias, tão necessário
quanto o guardanapo que Mozart usava para cingir pontos correlatos
enquanto compunha (LILLY apud. MOORE; CAMPBELL, 2005a, p. 14).

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É curioso afirmar que existem teorias em que o próprio Sickert, famoso pintor
do século em questão, era o próprio Jack, o Estripador. Na trama de Moore e Campbell,
ele é apenas o pintor amigo do príncipe Eddy, mas existem evidências que podem
provocar outras conclusões.
Em sequência posterior, durante o primeiro capítulo, quando o personagem Sr.
Sickert vai pintar a prostituta Mary Kelly, amiga de Annie, apresenta-se um diálogo
entre os personagens, no qual Sickert afirma: “Além do mais, eu queria você como vi na
primeira vez na escadaria do convento. O modo como a luz capturou suas feições
naquela echarpe vermelha” (MOORE; CAMPBELL, 2005a, p. 18).
Aponto aqui a teoria da escritora americana de livros policiais Patricia Cornwell,
que indica em seu livro chamado “Retrato de um Assassino – Jack o Estripador – Caso
Encerrado” que os assassinatos em 1888 foram realizados por Walter Sickert, o pintor
impressionista alemão que Alan Moore retrata nas páginas aqui analisadas. Moore não
utiliza de tais dados para a realização de sua obra, mas, acrescenta detalhes interessantes
sobre os hábitos do pintor, assim como uso da echarpe vermelha em seus retratos
sombrios. Veja-se um exemplo da pintura do artista por meio da figura abaixo:

Figura 7: “The Camden Town Murder”,


de Walter Richard Sickert, 1908 (THE ART TRIBUNE, 2011)

A trama apresenta diálogos intensos e explora também quadros bastante


obscenos, ao retratar cenas de sexo explícito. Isto evidencia o tema adulto das Graphic
Novels, diferente das histórias em quadrinhos convencionais.

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Ao ocupar uma página inteira da GN 2 e sem requadro, a imagem da Figura 8


causa imenso impacto. Esta imagem simula as alucinações do Sr. William ao sofrer um
ataque cardíaco. Cabe ressaltar que ataque no coração pode causar afasia com
alucinações e comprometimento da fala. A imagem faz alusão à magia negra,
apresentando-se ao leitor por meio de um bode. Além disto, o personagem repete
seguidamente a palavra “Jahbulon”, que indica uma autêntica divindade maçônica.
Posteriormente, William diz a outro personagem que viu Deus em seu delírio, e que se
ajoelhou diante dele.
Ao considerar o tempo de alucinação do personagem, utilizo a citação de
McCloud ao afirmar que “(...) a forma do quadro pode influenciar nossa percepção do
tempo”, e passar a impressão de maior duração do evento (MCCLOUD, 2005, p. 101).
Neste caso, o quadro utiliza uma página inteira e o leitor imagina o tempo que durou o
delírio do personagem, tamanha a quantidade de informações em uma única ilustração.

Figura 8: Quadro Vol. 1 (MOORE; CAMPBELL, 2005a, p. 54)

No primeiro capítulo da obra, há uma vinheta na qual os personagens falam


alemão. O leitor que não estiver familiarizado com o idioma terá que usar sua
imaginação para interpretar os quadros. Os personagens apenas são desvendados no

                                                            
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Sigla utilizada no decorrer do texto que representa “Graphic Novel”.

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apêndice da GN, onde o autor, Alan Moore, faz comentários sobre os capítulos e os
dados utilizados em suas páginas. Na cena em questão, ele afirma que esta ocorre na
Áustria, e o leitor desatento só vai desvendar a conexão com o que Moore deseja nesta
leitura, quando o próprio autor afirmar no final de “Do Inferno”: “A razão para a cena
apresentada aqui é a coincidência cronológica algo eloqüente que vincula o início dos
assassinatos de Whitechapel com a concepção de Adolf Hitler” (MOORE;
CAMPBELL, 2005a, p. 186).

Figura 9: Quadro Vol. 2 (MOORE; CAMPBELL, 2005b, p. 112)

A narrativa da Graphic Novel utiliza, em outros momentos determinados,


quadros que ocupam uma página inteira (Figura 9). O momento que nos referimos agora
é quando William termina o assassinato de Marie Kelly. A imagem é de grande
impacto, pois além do tamanho do quadro em evidência, a imagem mostra um prédio do
século XX, século posterior da qual a narrativa ocorre. Alan Moore, no apêndice da
obra afirma: “A estranha epifania na página 112, durante a qual Gull parece ter uma
visão da praça Mitra como ela seria mais de um século no futuro, é inteiramente uma
invenção minha” (MOORE, 2005b, p. 132). Após William estraçalhar o corpo da
vítima, ele tem esta alucinação.
Nas palavras de Will Eisner, quadros de uma página inteira permitem suavizar o
ritmo da leitura. O leitor desprenderá um tempo maior para interpretar o quadro. O autor
complementa que “quando o leitor vira uma página, ocorre uma pausa. Isso permite
uma mudança de tempo, um deslocamento de cena; é uma oportunidade de controlar o

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foco do leitor. Trata-se, aqui, de uma questão de atenção e de retenção” (EISNET, 1999,
p. 63).
Existem outras pessoas na cidade que se passam por Jack, o Estripador, ao
escreverem cartas para a polícia. Estas cartas são apresentadas com a ilustração dos
personagens ao escreverem suas cartas, com uma caligrafia diferente em cada quadro,
para destacar a divergência entre elas (Figura 10). Um aspecto interessante é que o autor
não inseriu o texto dentro de um balão. Conforme Eisner (1999), o balão é uma
ferramenta que colabora para a avaliação do tempo. Neste caso, o quadrinho expressa a
ideia de algo contínuo que está acontecendo, sem que a determinada ação termine no
requadro.

Figura 10: Sequência Vol. 3 (MOORE; CAMPBELL, 2003, p. 40)

Também ressalto, na sequência apresentada, que os quadros contrastam entre si.


São explorados diferentes traços e perspectiva da vinheta, assim como a construção de
cada personagem e suas expressões faciais conotam sentimentos diversos. Segundo
Eisner, “a postura do corpo e o gesto têm primazia sobre o texto. A maneira como são
empregadas essas imagens modifica e define o significado que se pretende dar às
palavras” (EISNER, 1999, p. 103).
A Figura 11 retrata o lado de fora do quarto de Marie Kelly, após Sir. Gull entrar
no mesmo para assassiná-la. A sequência exige que o leitor imagine o que acontece
dentro do quarto.
As figuras podem induzir sensações fortes no leitor, mas também podem
carecer da especificidade das palavras. As palavras, por outro lado, oferecem
essa especificidade, mas não contêm a carga emocional imediata das figuras,
dependendo de um efeito cumulativo gradual (MCCLOUD, 2005, p. 135).

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Apesar de não utilizar palavras, a carga emocional implícita nestes quadrinhos é


eminente, pois a imaginação do leitor permite que este viaje para dentro da casa de
Marie Kelly e vislumbre como o assassino está agindo para eliminá-la. A falta de
palavras pode gerar angústia, ao aliar o clima de suspense à sequência.
Ressalto que nesta sequência analisada, o layout apresenta quadros com
tamanhos iguais entre si, ou seja, o layout básico, que é “aquele em que tanto seu
formato como sua proporção permanecem rígidos. O quadro serve para conter a visão
do leitor, nada mais” (EISNER, 1999, p. 43).

Figura 11: Sequência Vol. 3 (op. cit. p. 62)

Apenas no capítulo que segue será mostrado passo a passo o que William fez
durante o crime. Destaco que durante toda a história, este é o único assassinato
retratado, ao enfatizar todos os pormenores do crime. Serão diversas páginas apenas
com imagens, sem um único diálogo ou balão de fala.
Esta sequência apresenta quadros regulares, com tamanhos iguais ao manter o
ritmo da leitura. “O formato dos quadrinhos também têm uma função. Numa página
onde é preciso transmitir uma regularidade de ação, dá-se aos quadrinhos o formato de
quadros perfeitos” (id. p. 30).

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Figura 12: Sequência Vol. 3 (op. cit. p.76)

A sequência apresentada na Figura 12 mostra detalhes do delito em foco, ao


direcionar o olhar do leitor em partes específicas do corpo da vítima. Há muito sangue
nos quadros que antecedem esta sequência, na qual o leitor apenas imagina o que o
assassino está cortando, pois não consegue identificar. É como se William se
descontrolasse e, num impulso, começasse a cortar ainda mais a pobre mulher. São
vinhetas bastante impressionantes, e seu uso é explicado por McCloud: “A ideia de que
uma figura pode evocar uma resposta emocional ou sensual no espectador é vital nos
quadrinhos” (MCCLOUD, 2005, p. 121). Além disto, a interpretação dos quadros
convencionalmente altera de leitor para leitor. “Os quadrinhos que eu ‘vejo’ na minha
mente nunca vão ser vistos de forma idêntica por outra pessoa” (id. p. 196).
Para encobrir os assassinatos realizados pelo Sir. William Gull, os maçons
planejam uma emboscada para um homem comum ser incriminado, na qual armam para
parecer que ele suicidou-se, como se fosse por culpa de ter assassinado todas aquelas
mulheres de maneira tão terrível. Um homem comum torna-se o bode expiatório do
caso.

Tempo/Continuidade

Na Figura 13, apresento uma sequência no qual o primeiro quadro ilustra o final
da relação sexual entre o príncipe Eddy e a vendedora de doces, Annie Crook. No
quadro seguinte, visualiza-se o lado de fora da loja de doces e a sequência passa a
retratar o pintor Sickert em seu apartamento, ao apontar um lápis de desenho. “As
mudanças de cenário servem para mostrar a locação” (EISNER, 1999, p. 19).

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Figura 13: Quadro Vol. 1 (MOORE; CAMPBELL, 2005a, p. 17)

A primeira página do capítulo sete, Volume 2, apresenta vários quadros


aleatórios, sem seguirem ordem cronológica na cena. Estes quadros antecedem
momentos que vão ocorrer no decorrer da narrativa, ao repetir o mesmo quadro em
sequência posterior.
Quando me refiro de quadros sem aparente sequência lógica entre eles, “sempre
há um tipo de alquimia no espaço entre os quadros, que pode nos ajudar a descobrir um
sentido até na combinação mais dissonante” (MCCLOUD, 2005, p. 73). McCloud
(2005) explica que elas podem parecer não fazer sentido, mas que vão se desenvolver e
criar um vínculo lógico com a narrativa posteriormente, como ocorre em “Do Inferno”.

Enquadramento/ Sequências

Existem várias páginas que seguem com sequências convencionais, com todos
os quadros de tamanhos iguais, ao gerar continuidade e ritmo de leitura à narrativa.
Mas, o autor também explora diversos tamanhos para os quadros, como veremos
abaixo.

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Figura 14: Sequência Vol. 1 (op. cit. p. 41)

Analiso o uso de uma sequência com quadros estreitos e altos ao apresentar


igrejas de Londres (Figura 14). Tais construções apresentam caráter solene e aterrador,
pois utilizavam alturas exorbitantes para acentuar seu significado monumental e o poder
que representavam. O espaço entre os quadros ou, como afirma McCloud, sarjeta, “é
responsável por grande parte da magia e mistério que existem na essência dos
quadrinhos. É aqui, no limbo da sarjeta, que a imaginação humana capta duas imagens
distintas e as transforma em uma única ideia” (MCCLOUD, 2005, p. 66).
Segundo o autor, este espaço indica que deve existir uma conexão entre as
vinhetas. “Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um
ritmo recortado de momentos dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses
momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada” (id. p. 67).

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Figura 15: Quadro Vol. 1 (op. cit. p. 46)

Aponto outro quadro que ocupa mais da metade da página (Figura 15). Este
quadro também se destaca pela falta de um quadro definido, o requadro. Nele está
inserida a majestade britânica, como iconicamente reconhecida, e iniciam-se diversos
quadros só com a imagem da Rainha Vitória ao dialogar com Dr. William Gull, sem que
ele apareça ao lado dela. Dr. Gull é nomeado Médico Real Extraordinário. “A ausência
de requadro expressa espaço ilimitado. Tem o efeito de abranger o que não está visível,
mas que tem existência reconhecida” (EISNER, 1999, p. 45). Além disto, o autor indica
que a ausência do requadro faz com que o leitor complete o cenário.
Na página 84 (Figura 16) nota-se que o quadro ocupa a extensão da largura da
página, e, na página seguinte (Figura 17), o leitor visualiza novamente a carruagem. O
leitor pode questionar-se como deve ler esta vinheta, pois está diante de uma situação na
qual a direção do olhar está livre, com o sentido temporal e espacial ambíguo. Tem-se
continuidade entre uma página e outra. Porém, abaixo deste quadro, a leitura permanece
em sequência convencional.

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Figura 16: Quadro Vol. 1 (op. cit. p. 84)  Figura 17: Quadro Vol. 1 (op. cit. p. 85) 

Com relação ao olhar do leitor enquanto observa uma imagem, conforme Eisner
(1999), sabe-se que, na cultura ocidental, a leitura é realizada da esquerda para a direita
e de cima para baixo. A disposição dos quadrinhos numa página também parte desta
hipótese. “Na prática, porém, essa norma não é absoluta. Frequentemente, o espectador
dá primeiro uma olhada no último quadrinho. Contudo, o leitor obrigatoriamente
acabará voltando ao padrão convencional” (EISNER, 1999, p. 41).
McCloud (2005) também concorda com o mesmo princípio, mas afirma que um
cartunista pode explorar outras maneiras e testar a capacidade de outras leituras do
leitor. Acredito que o autor da GN instiga no leitor uma forma diferente para a
observação das duas páginas em questão.
Outra estratégia visual é utilizada quando William e Netley, ao continuar o
passeio pela cidade de Londres, acompanham a complexidade das suas construções.

Figura 18: Vol. Volume 1 (op. cit. p. 95)

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O diferencial desta Figura 18 é o excesso de balões, recurso pouco usado em


narrativas seqüenciais. O segundo quadro apresentado na página não tem perímetro
definido, ao mostrar o céu e o chão até o final da página. “A disposição dos balões que
cercam a fala (...) contribui para a medição do tempo. Eles são disciplinares, na medida
em que requerem a cooperação do leitor” (EISNER, 1999, p. 26). Na figura acima, a
proposital “poluição visual” causada pelos inúmeros balões, associa-se à criação de um
clima psicológico específico, além de provocar um intencional desequilíbrio na
composição visual.

Considerações finais

Durante este estudo, observei que a construção de uma narrativa gráfica se faz a
partir de imagens e palavras, e estes recursos narrativos podem ser explorados de
incontáveis maneiras para atrair a atenção do leitor à história.
Conforme afirma Martine Joly, “considerar a imagem como uma mensagem
visual composta de diversos tipos de signos equivale (...) considerá-la como uma
linguagem e, portanto, como uma ferramenta de expressão e de comunicação” (JOLY,
1996, p. 55).
O uso do preto e do branco deixa os momentos em que o sangue é utilizado na
história menos repugnante. A presença do preto torna a narrativa sombria e é utilizada
com a intenção de intensificar o escuro, as trevas, em uma cidade mergulhada em
episódios aterrorizantes. Tais recursos foram explorados nos filmes expressionistas
alemães e também no cinema noir, dois estilos cinematográficos que tematizavam
crimes e forças malignas. É importante lembrar que o cinema acabou influenciando o
surgimento do gênero Graphic Novel, havendo inclusive livros que ensinavam como
desenhar “noir comics”.
A trama de “Do Inferno” é excitante por se tratar de um fato que realmente
aconteceu no passado e que permanece um mistério até os dias de hoje. O uso de outros
livros e relatos como referência para a construção da trama instiga o leitor.
Tanto Alan Moore quanto o ilustrador Eddie Campbell exploram os recursos
dramáticos da narrativa, na qual são utilizados diferentes traços nas vinhetas, díspares

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modos de leitura entre os quadros, desenhos que extrapolam o espaço de requadro, entre
outros analisados. Mas, apesar da complexidade da narrativa, “o olho procura uma
resolução simples para aquilo que está vendo, e, embora o processo de assimilação da
informação possa ser longo e complexo, a simplicidade é o fim que se busca”
(DONDIS, 1997, p. 48).
Considero que os recursos de linguagem gráfica são muito bem explorados e
despertam o interesse do leitor para a procura de novos romances gráficos, assim como
a vontade de pesquisar sobre o famoso serial killer que conduz a história de “Do
Inferno”, Jack, o Estripador.

Referências

EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1991.
DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos: história, criação, desenho, animação,
roteiro. São Paulo: M. Books, 2005.
MOORE, Alan; CAMPBELL, Eddie. From Hell. Canada: Top Shelf Productions. 1999.
________. Do Inferno. São Paulo: Via Lettera. Vol. 1, 2005a.
________. Do Inferno. São Paulo: Via Lettera. Vol. 2, 2005b.
________. Do Inferno. São Paulo: Via Lettera. Vol. 3, 2003.
________. Do Inferno. São Paulo: Via Lettera. Vol. 4, 2007.
THE ART TRIBUNE. Disponível em
<http://www.thearttribune.com/spip.php?page=docbig&id_document=487> Acesso em:
3 jul. 2011.

Ano VII, n. 08 – Agosto/2011

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