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EDIÇÃO 61 | OUTUBRO_2011

questões cinematográficas

JEAN-CLAUDE BERNARDET
EDUARDO ESCOREL

Fiquei surpreso ao ler, no último número de piauí, o perfil de Jean-


Claude Bernardet – surpreso com a chamada de capa, a meu ver
desrespeitosa; com o comentário atribuído a mim sem ter sido consultado
sobre sua publicação; com a grosseria citada entre aspas, mas sem
identificação de autoria; surpreso, enfim, pelo texto não respeitar o limite
entre o público e o privado.

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Minha expectativa era de um perfil à altura da personalidade intelectual


de Jean-Claude. Desde a morte de Paulo Emílio, em 1977, as ideias dele se
tornaram, acima de quaisquer outras, as de maior interesse para quem
faz, estuda ou se interessa por cinema no Brasil. Não há prêmio maior do
que ter um filme comentado por ele, e as feridas provocadas por suas
restrições ou desinteresse dificilmente cicatrizam.

Eu mesmo custei a me recuperar, em 1976, da decepção causada pela


crítica de Jean-Claude ao filme Lição de amor. Mais do que os prêmios, a
recepção crítica favorável, e o relativo sucesso comercial, além da reação
de Paulo Emílio, a de Jean-Claude era a que eu mais esperava. E diante
do comentário implacável escrito por ele em página inteira do jornal
Opinião, minha resposta foi fazer, em 1980, uma antítese de Lição de
amor – o filme Ato de violência que, por ironia cruel, foi ignorado por
Jean-Claude, além de ter sido um fracasso comercial retumbante.

Em outros casos, a influência de Jean-Claude foi mais positiva. Segundo


declarou Eduardo Coutinho, Cabra marcado para morrer, de 1984, foi
feito para o próprio Jean-Claude “em resposta às questões que [ele]
colocava” escrevendo sobre documentário nos anos de 1970 e 1980. Ter
motivado a realização de um filme como Cabra marcado para morrer –
“um divisor de águas”, conforme ele mesmo escreveu, bastaria para
situar a importância e o lugar que Jean-Claude ocupa na definição de
rumos do cinema brasileiro.

Jean-Claude deixou seu interesse inicial por filmes estrangeiros em


segundo plano quando percebeu, no começo da década de 1960, que
havia uma pessoa que não leria sua crítica de A doce vida – o próprio
diretor do filme, Federico Fellini. Tornou-se, então, interlocutor dos
realizadores brasileiros que estavam iniciando suas carreiras, e em
seguida, participante ativo da produção cinematográfica trabalhando
como roteirista. Tendo continuado a escrever sobre cinema, sua reflexão
passou a dizer respeito também a ele mesmo. Foi esse envolvimento
pessoal que o levou a definir como “quase uma autobiografia” seu livro
Brasil em tempo de cinema, publicado em 1967.

Essa chave para a compreensão do livro parece clara, em retrospecto, mas


na época, ao menos para mim, passou despercebida. Escrevendo a um
amigo, comentei que Brasil em tempo de cinema acabara de ser lançado e
que me parecera “meio rasteiro, às vezes fazendo força para encaixar
filmes e personagens em sua tese (Antonio das Mortes seria um típico
representante da classe média!)”. Relendo essa petulância, resta-me o
consolo de ter completado o trecho da carta dizendo que “apesar disso
tudo é um livro importante, com observações pertinentes, com algumas
análises de filmes boas (São Paulo S/A), apesar de alguns flagrantes
exageros como querer ver Em busca do ouro, Mauro, Humberto e Lima
Barreto [documentários de curtametragem dirigidos por Gustavo Dahl,
David Neves e Julio Bressane, realizados em 1965 e 1966] como
prenúncios de um cinema fascista”. A insolência da frase seguinte,
porém, põe tudo a perder: “Jean-Claude apesar de inteligente, acho
mesmo que é nosso melhor crítico, me parece desligado e ignorante em
relação ao nosso cinema.”

Não compreendi, na época, o fato de Jean-Claude ter exercido seu papel


de pensador independente fazendo perguntas necessárias, até hoje sem
resposta, conforme escreveu Carlos Augusto Calil em 2007, no posfácio
da re-edição de Brasil em tempo de cinema. Que ao longo de quatro
décadas não tenhamos sido capazes de dar conta da falta de público e de
estabilidade econômica – duas das questões básicas levantadas por Jean-
Claude – diz muito da acuidade dele e da nossa incapacidade de resolver
o impasse no qual continuamos envolvidos. Acredito que a origem da
impertinência do meu comentário sobre Brasil em tempo de cinema,
possa estar no sectarismo predominante entre os integrantes do Cinema
Novo, no período que vai de 1962 a 1968. Reunidos nos finais de tarde em
um bar de Botafogo, a conversa sem compromisso fervia, temperada,
entre outros condimentos, com bairrismo, xenofobia e machismo. Que o
digam Walter Hugo Khoury, Anselmo Duarte, Ruy Guerra, Luis Sérgio
Person e o próprio Jean-Claude Bernardet, todos vítimas daqueles papos
de botequim. O fato de ser francês naturalizado brasileiro, de ter sotaque,
morar em São Paulo e, mais do que tudo, pensar com a própria cabeça,
fazia de Jean-Claude um alvo preferencial.

Como Paulo Emílio, Jean-Claude veio a adotar o paradoxo como


princípio crítico, deixando de lado certo sociologismo para se dedicar às
questões de linguagem. As ideias de Jean-Claude surgem da negação do
senso comum, e a estratégia de sua argumentação é baseada no
questionamento das convenções e das verdades tidas como absolutas.
Esse método, refinado ao longo dos anos, o levou a atribuir méritos, na
mesma frase, a filmes que reconhece serem antagônicos, como Ainda
agarro essa vizinha e Triste trópico – uma “comédia de costumes” e um
filme de “pesquisa radical”, ambos de 1974, dirigidos, respectivamente,
por Pedro Carlos Rovai e Arthur Omar.

À frente do seu tempo, Jean-Claude rompeu com o elitismo da cultura


brasileira, passando a valorizar o deboche. Em decorrência, ao examinar a
pornochanchada, teceu uma teoria da vulgaridade que diferencia a que é
“encoberta, que não se reconhece como tal” da que sendo “franca não
esconde seus objetivos com calcinha de renda”. Para Jean-Claude, era
“mais honesto e natural, e portanto menos vulgar, afirmar claramente o
propósito de fazer filmes que mostrem traseiros do que mostrar traseiros
em filmes de forma velada, que escondem uma vergonha reprimida por
fazê-lo.”

Com o passar das décadas, o radicalismo de Jean-Claude se acentuou,


levando-o a valorizar mais do que tudo o processo de realização, o
dispositivo escolhido e o tom dos filmes. É exemplar nesse sentido sua
defesa de Jesus no mundo maravilha (2007), dirigido por Newton
Cannito, a meu ver um caso clamoroso de abuso de poder por parte do
diretor.

Acredito que não seja preciso ir além para justificar minha expectativa ao
saber que o perfil do Jean-Claude seria publicado no número de setembro
da piauí, e a decepção que tive lendo o artigo.

A meu ver, a oportunidade de retratar Jean-Claude foi comprometida.


Além de trechos invasivos, o texto reproduz a ofensa e manifestação de
preconceito feita há mais de 40 anos em conversa de botequim. Se a fonte
foi citada com clareza ou não, se a publicação de uma dada informação
foi autorizada ou não, pouco importa. Entre tornar uma ofensa pública e
ofender de fato, a diferença é pequena. Por isso, mesmo tendo sido
envolvido neste episódio à revelia, pelo agravo feito só me resta pedir
desculpas a Jean-Claude Bernardet.

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