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Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
Dedicatória
Epígrafe
Sobre Paul Goodman
Conhecendo Artaud
Fascismo fascinante
Sob o signo de Saturno
O Hitler de Syberberg
Recordando Barthes
A mente como paixão
Notas
Sobre a autora
Créditos
para Joseph Brodsky
HAMM:Adoro as velhas perguntas.
(Com fervor.)
Ah, as velhas perguntas, as velhas
respostas, não existe nada como elas!
(1972)
Conhecendo Artaud
(1973)
Fascismo fascinante
O que posso dizer é que me sinto espontaneamente atraída por tudo o que é
belo. Sim: beleza, harmonia. E talvez esse cuidado com a composição, essa
aspiração pela forma, seja, de fato, algo muito alemão. Mas eu mesma não
conheço essas coisas de fato. Isso vem do inconsciente e não de meu
conhecimento… O que você quer que eu acrescente? Tudo o que for
puramente realista, extraído da vida, aquilo que é mediano, cotidiano, não
me interessa… Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, pelo que é
vivo. Eu busco a harmonia. Quando a harmonia se produz, fico feliz. Creio,
com isso, que respondi sua pergunta.
É por isso que The Last of the Nuba é o último passo
necessário na reabilitação de Leni Riefenstahl. É a reescrita
final do passado; ou, para seus adeptos, a confirmação
definitiva de que ela sempre foi uma adoradora do belo e
não uma propagandista medonha.4 Dentro do livro, tão
lindamente produzido, fotografias da tribo nobre, perfeita. E,
na sobrecapa, fotografias de “minha perfeita mulher alemã”
(como Hitler a chamava), toda sorrisos, derrotando as
afrontas da história.
Com efeito, se o livro não fosse assinado por Riefenstahl,
não teríamos necessariamente de suspeitar que as fotos
foram tiradas pela artista mais interessante, talentosa e
eficiente da era nazista. A maioria das pessoas que folheiam
o livro The Last of the Nuba provavelmente o verá como
mais um lamento pelo desaparecimento de povos primitivos
— o maior exemplo continua a ser Tristes trópicos, de Lévi-
Strauss, sobre os bororos, do Brasil —; no entanto, se
examinarmos as fotos com cuidado, em combinação com o
extenso texto escrito por Riefenstahl, fica claro que há
continuidade entre o livro e a sua obra nazista. O pendor
particular de Riefenstahl se revela na escolha dessa tribo e
não de outra: um povo que ela define como agudamente
artístico (todos têm uma lira) e belo (os homens nubas,
observa Riefenstahl, têm uma “compleição atlética rara em
qualquer outra tribo africana”); dotados de “um sentido
muito mais forte das relações espirituais do que dos
assuntos mundanos e materiais”, sua atividade principal,
insiste ela, é cerimonial. The Last of the Nuba trata de um
ideal primitivista: o retrato de um povo que subsiste em
pura harmonia com seu ambiente, intocado pela
“civilização”.
Os quatro filmes nazistas de Riefenstahl feitos por
encomenda — sobre os congressos do Partido, sobre a
Wehrmacht ou sobre atletas — celebram o renascimento do
corpo e da comunidade, mediado pelo culto de um líder
irresistível. São herdeiros diretos dos filmes de Fanck, nos
quais ela representou o papel principal, e do seu próprio
filme A luz azul. As ficções alpinas são contos sobre o anseio
de alcançar locais elevados, sobre o desafio e a provação do
elementar, do primitivo; tratam da vertigem em face do
poder, simbolizado pela majestade e pela beleza das
montanhas. Os filmes nazistas são épicos de uma
comunidade concretizada, nos quais se transcende a
realidade cotidiana por meio do autocontrole extasiado e da
submissão; eles tratam do triunfo do poder. E The Last of
the Nuba, uma elegia à beleza prestes a desaparecer e aos
poderes místicos dos primitivos a quem Riefenstahl chama
de “meu povo adotivo”, é a terceira peça de seu tríptico de
criações visuais fascistas.
No primeiro painel, os filmes de montanhas, pessoas em
trajes pesados se esforçam em escaladas para se pôr à
prova na pureza do frio; a vitalidade é identificada com a
provação física. No painel do meio, os filmes feitos para o
governo nazista; Triunfo da vontade usa planos gerais
superpovoados com imagens de massa que se alternam
com closes que isolam uma paixão individual, uma
submissão singular e perfeita: numa região temperada,
pessoas limpas e distintas, em uniformes, se agrupam e se
reagrupam, como se estivessem à procura da coreografia
perfeita para expressar sua lealdade. Em Olympia,
visualmente o mais rico de todos os seus filmes (que usa os
movimentos verticais dos filmes de montanha e os
horizontais, característicos de Triunfo da vontade), uma
depois da outra, figuras tensas, com roupas escassas,
procuram o êxtase da vitória, comemorada nas
arquibancadas por fileiras de compatriotas, todos debaixo
do olhar parado do benévolo Super-Espectador, Hitler, cuja
presença no estádio consagra esse esforço. (Olympia, que
poderia muito bem se intitular Triunfo da vontade, enfatiza
que não existem vitórias fáceis.) No terceiro painel, The Last
of the Nuba, os primitivos quase nus, à espera da provação
final de sua comunidade heroica e orgulhosa, sua iminente
extinção, saltitam e fazem pose debaixo de um sol
abrasador.
É tempo de Götterdämmerung [crepúsculo dos deuses].
Os eventos centrais na sociedade nuba são lutas corpo a
corpo e enterros: encontros animados de belos corpos
masculinos e de morte. Os nubas, como Riefenstahl os
interpreta, são uma tribo de estetas. A exemplo dos
massais, besuntados de hena, e dos chamados homens-
lama da Nova Guiné, os nubas se pintam para todas as
ocasiões religiosas e sociais importantes, lambuzando-se
com uma cinza esbranquiçada que inequivocamente sugere
a morte. Riefenstahl afirma ter chegado “em cima da hora”,
pois, nos poucos anos seguintes à tomada das fotos, os
gloriosos nubas foram corrompidos por dinheiro, empregos
e roupas. (E é bem provável que também o tenham sido
pela guerra — que Riefenstahl não menciona, uma vez que
ela se interessa por mito, e não por história. A guerra civil
que vinha grassando naquela parte do Sudão havia uma
dúzia de anos deve ter disseminado novas tecnologias e
uma porção de detritos.)
Embora os nubas sejam negros e não arianos, o retrato
que Riefenstahl faz deles evoca alguns dos temas principais
da ideologia nazista: o contraste entre o limpo e o impuro, o
incorruptível e o conspurcado, o físico e o mental, o alegre e
o crítico. Uma das principais acusações contra os judeus na
Alemanha nazista foi de que eram urbanos, intelectuais,
portadores de um “espírito crítico” destruidor e corruptor. A
fogueira de livros de 1933 foi acesa com o grito de
Goebbels: “A idade do intelectualismo judeu radical
terminou e o sucesso da revolução alemã mais uma vez
abriu caminho para o espírito germânico”. E quando
Goebbels oficialmente proibiu a crítica de arte em novembro
de 1936, foi por ter “traços tipicamente judeus em seu
caráter”: pôr a cabeça acima do coração, o indivíduo acima
da comunidade, o intelecto acima do sentimento. Nas
temáticas transformadas do fascismo tardio, os judeus não
desempenham mais o papel de conspurcadores. Esse papel
passou a ser atribuição da própria “civilização”.
O que é distintivo na versão fascista da antiga ideia do
Bom Selvagem é o desprezo por tudo o que comporta
reflexão, crítica e pluralidade. No catálogo de Riefenstahl
das virtudes primitivas, aquilo que é enaltecido não é —
como em Lévi-Strauss — a complexidade e a sutileza do
mito primitivo, da organização social ou do pensamento
primitivos. Ela recorda com força a retórica fascista quando
celebra as maneiras como os nubas são exaltados e
unificados pelas provações físicas das lutas corpo a corpo,
nas quais os homens nubas, “ofegantes e tensos”, com os
“enormes músculos inchados”, derrubam por terra uns aos
outros — lutando não por prêmios materiais, e sim “pela
renovação da vitalidade sagrada da tribo”. As lutas corpo a
corpo e os rituais que as acompanham, no relato de
Riefenstahl, amarram os nubas uns aos outros. Lutar
O maior desejo de um homem nuba não é unir-se com uma mulher, mas ser
bom lutador, ratificando, desse modo, o princípio da abstinência. As danças
cerimoniais dos nubas não são ocasiões sensuais, e sim “festivais da
castidade” — da contenção da força da vida.
O uniforme era preto, cor que tinha nuances importantes na Alemanha. Sobre
o uniforme, os membros da SS usavam uma variedade enorme de
condecorações, símbolos, insígnias, para distinguir a patente, desde as runas
no colarinho até a imagem da caveira. A aparência era dramática e também
ameaçadora.
(1974)
Sob o signo de Saturno
(1978)
O Hitler de Syberberg
Goethe
(1979)
Recordando Barthes
(1980)
A mente como paixão
Canetti, 1943
O que um homem pode fazer durante seus sessenta anos de vida? Que
diversão ele tem? O que pode aprender? Não vivemos o bastante para colher
o fruto da árvore que plantamos; nunca aprendemos todas as coisas que a
humanidade descobriu antes de nós; não completamos nosso trabalho nem
deixamos nosso exemplo para o futuro; morremos sem termos sequer vivido.
Por outro lado, uma vida de trezentos anos permitiria que uma pessoa de
cinquenta anos fosse uma criança ou um aluno do primário; cinquenta anos
para conhecer o mundo e ver tudo o que nele existe; cem anos para trabalhar
pelo bem de todos; e depois, quando alcançarmos toda a experiência
humana, mais cem anos para viver na sabedoria, governar, ensinar e dar o
exemplo. Ah, como a vida humana seria valiosa, se durasse trezentos anos.
Isso soa como Canetti — exceto pelo fato de que ele não
justifica seu desejo de longevidade com nenhum apelo por
um prazo maior a fim de realizar boas ações. Tão vasto é o
valor da mente que só ela é usada para se opor à morte.
Como a mente é tão real para Canetti, ele se atreve a
desafiar a morte e, como o corpo é tão irreal, ele nada
percebe de desolador na longevidade extrema. O escritor
está mais do que disposto a viver como um centenário;
enquanto elabora fantasias, não pede aquilo que Fausto
desejava, a volta da juventude, nem aquilo que Emilia
Makropulos recebeu do pai alquimista, o prolongamento
mágico da juventude. A juventude não tem nenhum papel
na fantasia de imortalidade de Canetti. Essa fantasia é a
longevidade pura, a longevidade da mente. Supõe-se
simplesmente que, na longevidade, o caráter tem tanto a
ganhar quanto a mente: para Canetti, “a brevidade da vida
nos torna maus”. Emilia Makropulos sugere que a
longevidade nos tornaria piores:
Não se pode continuar amando por trezentos anos. E não se pode continuar
tendo esperança, criando, olhando para as coisas por trezentos anos. Não dá
para suportar. Tudo se torna maçante. É maçante ser bom e é maçante ser
mau… E aí nos damos conta de que, na verdade, nada existe… Estamos perto
demais de tudo. Podemos ver algum sentido em tudo. Pois tudo tem valor, já
que aqueles nossos poucos anos de vida não serão suficientes para satisfazer
nossa diversão… É repulsivo pensar em como somos felizes. E isso se deve
simplesmente à ridícula coincidência de que vamos morrer em breve.
Adquirimos um interesse de mentira por tudo…
(1980)
Notas
3. Se quiserem outra fonte — pois hoje Riefenstahl afirma (numa entrevista para
a revista alemã Filmkritik, de agosto de 1972) que ela não escreveu nenhuma
palavra de Hinter den Kulissen des Reich-parteitag-Films e que nem sequer leu o
texto, na ocasião —, há uma entrevista em Völkischer Beobachter, datada de 23
de agosto de 1933, sobre sua filmagem no comício de Nuremberg em 1933, na
qual faz declarações semelhantes.
Riefenstahl e seus apologistas sempre falam de Triunfo da vontade como se
fosse um “documentário” independente e muitas vezes chamam a atenção para
os problemas técnicos que surgiram durante a filmagem para provar que a
diretora tinha inimigos entre as lideranças do Partido (o ódio de Goebbels),
como se tais dificuldades não fossem parte normal de qualquer filmagem. Uma
das mais dóceis repaginações do mito de Riefenstahl como mera
documentarista — e inocente política — é o Filmguide to “Triumph of the Will”,
publicado pela Indiana University Press Filmguide Series, cujo autor, Richard
Meram Barsam, conclui seu prefácio exprimindo a “gratidão pela própria Leni
Riefenstahl, que cooperou com muitas horas de entrevistas, abriu seu arquivo
para minha pesquisa e mostrou um interesse genuíno por este livro”. Ela deve
mesmo ter se interessado por um livro cujo primeiro capítulo é “Leni Riefenstahl
e o fardo da independência” e que tem como tema “a crença de Riefenstahl de
que o artista deve, a todo custo, permanecer independente do mundo material.
Em sua própria vida, ela alcançou a liberdade artística, mas pagou um alto
preço”. Etc.
Como antídoto, permitam-me citar uma fonte incontestável (pelo menos, ele
não está aqui para dizer que não escreveu isto) — Adolf Hitler. Em seu breve
prefácio a Hinter den Kulissen, Hitler descreve Triunfo da vontade como uma
“glorificação absolutamente única e incomparável do poder e da beleza de
nosso Movimento”. E é mesmo.
4. É assim que Jonas Mekas (The Village Voice, 31 out. 1974) saúda a publicação
de The Last of the Nuba: “Riefenstahl continua sua celebração — ou será uma
busca? — da beleza clássica do corpo humano, a busca que começou em seus
filmes. Ela está interessada no ideal, no monumental”. Mekas, na mesma
publicação, em 7 de novembro de 1974: “E aqui está meu veredicto final sobre
os filmes de Riefenstahl: se você for um idealista, verá idealismo em seus
filmes; se for um classicista, verá em seus filmes uma ode ao classicismo; se for
um nazista, verá em seus filmes o nazismo”.
5. Foi Genet, em seu romance Pompas fúnebres, que ofereceu um dos primeiros
textos que mostram a sedução erótica que o fascismo exercia numa pessoa não
fascista. Outra descrição veio de Sartre, um candidato bastante improvável para
tais sentimentos e que deve ter ouvido Genet falar do assunto. Em Com a morte
na alma (1949), o terceiro romance de sua obra em quatro partes Os caminhos
da liberdade, Sartre descreve um de seus protagonistas testemunhando a
entrada do Exército alemão em Paris, em 1940: “[Daniel] não tinha medo, ele se
rendia confiante àqueles milhares de olhos, ele pensava: ‘Nossos
conquistadores!’, e estava extremamente feliz. Fitava-os nos olhos, se deleitava
com seus cabelos perfeitos, seus rostos bronzeados com olhos que pareciam
lagos de gelo, seus corpos esbeltos, suas coxas incrivelmente compridas e
musculosas. Ele murmurou: ‘Como são bonitos!’… Algo havia caído do céu: era
a lei ancestral. A sociedade dos juízes havia desmoronado, a sentença tinha sido
apagada: aqueles espectrais soldadinhos cáqui, os defensores dos direitos do
homem, tinham sido derrotados… Uma sensação insuportável e deliciosa se
espalhou pelo seu corpo; ele mal conseguia enxergar direito; repetia, ofegante:
‘Como se fosse de manteiga… eles estão entrando em Paris como se fosse de
manteiga’… Ele gostaria de ser mulher para jogar flores para eles”.
Título original
Under the Sign of Saturn
Capa
Claudia Warrak
Preparação
Cláudia Cantarin
Revisão
Huendel Viana
Aminah Haman
Versão digital
Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-470-2