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DADOS DE ODINRIGHT

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Dedicatória
Epígrafe
Sobre Paul Goodman
Conhecendo Artaud
Fascismo fascinante
Sob o signo de Saturno
O Hitler de Syberberg
Recordando Barthes
A mente como paixão

Notas
Sobre a autora
Créditos
para Joseph Brodsky
HAMM:Adoro as velhas perguntas.
(Com fervor.)
Ah, as velhas perguntas, as velhas
respostas, não existe nada como elas!

Beckett, Fim de partida


Sobre Paul Goodman

Estou escrevendo num quarto pequeno, em Paris, sentada


numa cadeira de palhinha, diante de uma mesa de
datilografia, de frente para uma janela que dá para um
jardim; atrás de mim, há uma cama de solteiro e uma
mesinha de cabeceira; no chão e embaixo da mesa,
espalham-se manuscritos, cadernos e dois ou três livros em
brochura. O fato de eu morar e trabalhar, há mais de um
ano, em aposentos tão diminutos e despojados, embora não
tenha sido planejado ou previsto, no início, sem dúvida
responde a determinadas necessidades de me desapegar,
de me isolar por um tempo, de buscar um novo ponto de
partida, onde eu encontre o mínimo de proteção possível.
Desta Paris em que moro, que tem tão pouco a ver com a
Paris de hoje quanto a Paris de hoje tem a ver com a grande
Paris, capital do século XIX e berço da arte e das ideias até o
fim da década de 1960, os Estados Unidos é o mais próximo
dentre todos os lugares distantes. Mesmo durante os
períodos em que não saio de casa — e nos últimos meses
houve muitos, e abençoados, dias e noites em que não tive
vontade nenhuma de deixar minha máquina de escrever,
senão para dormir —, toda manhã alguém me traz o Herald
Tribune de Paris, que é uma colagem monstruosa de
“notícias” dos Estados Unidos, espremidas, distorcidas, mais
estranhas do que nunca, vistas a essa distância: os aviões
B-52 despejando uma chuva de morte ambiental no Vietnã,
o repulsivo martírio de Thomas Eagleton, a paranoia de
Bobby Fischer, a ascensão irresistível de Woody Allen,
excertos do diário de Arthur Bremer — e, semana passada,
a morte de Paul Goodman.

Descobri que não consigo escrever só seu prenome. Nós


nos tratávamos obviamente de Paul e Susan sempre que
nos encontrávamos, porém, tanto em minha cabeça como
em conversas, ele nunca era Paul nem mesmo Goodman,
mas sempre Paul Goodman — o nome completo, com toda a
ambiguidade de sentimento e de familiaridade que essa
forma implica.
A dor que sinto com a morte de Paul é mais aguda porque
não éramos amigos, embora coabitássemos alguns dos
mesmos mundos. Conhecemo-nos dezoito anos atrás. Eu
tinha 21, era aluna de pós-graduação em Harvard, com o
sonho de morar em Nova York, e, numa viagem de fim de
semana à cidade, um conhecido de Paul levou-me ao
apartamento da rua 23 onde Paul e a esposa estavam
comemorando o aniversário dele. Embriagado, esbravejava
com voz rouca para que todo mundo ouvisse suas aventuras
sexuais e falou comigo apenas o tempo suficiente para ser
levemente grosseiro. A segunda vez que nos vimos foi
quatro anos depois, numa festa em Riverside Drive, na qual
ele parecia mais contido, mas também frio e fechado.
Em 1959, me mudei para Nova York e, daí em diante,
durante os últimos anos da década de 1960, nos vimos
muitas vezes, embora sempre em público — em festas
promovidas por amigos em comum, em mesas-redondas e
seminários sobre o Vietnã, em passeatas e manifestações.
Em geral, eu fazia um esforço tímido para conversar com
ele sempre que nos encontrávamos, na esperança de poder
lhe dizer, direta ou indiretamente, como seus livros eram
importantes para mim e como eu havia aprendido muito
com ele. Em todas as vezes, ele me rechaçava e eu me
recolhia. Amigos comuns me disseram que, de fato, ele não
gostava de mulheres como gente — apesar de abrir exceção
para umas poucas específicas, é claro. Resisti o mais que
pude a essa hipótese (me parecia vulgar); depois, enfim, me
rendi a ela. Afinal, seus textos me passavam essa mesma
sensação: por exemplo, o principal defeito de Growing Up
Absurd [Amadurecimento absurdo], que pretende abordar
os problemas da juventude dos Estados Unidos, é que trata
a juventude como se fosse formada apenas por meninos
adolescentes e homens jovens. Minha atitude, quando nos
encontrávamos, deixou de ser receptiva.
No ano passado, outro amigo em comum, Ivan Illich, me
convidou para ir a Cuernavaca na mesma ocasião em que
Paul Goodman estava participando de um seminário e
comentei que eu preferia chegar depois que Paul Goodman
tivesse ido embora. Por conta de muitas outras conversas,
Ivan sabia como eu admirava a obra de Paul Goodman.
Porém, o forte prazer que eu sentia toda vez que pensava
que ele estava vivo, saudável e que escrevia nos Estados
Unidos transformava numa verdadeira provação toda
situação em que eu me via na mesma sala que ele e, além
disso, era nítida minha incapacidade de estabelecer o mais
leve contato. Nesse sentido bastante preciso, portanto, Paul
Goodman e eu não apenas não éramos amigos, como, além
disso, eu não gostava dele — a razão, como expliquei
muitas vezes, lamentando-me, enquanto ele estava vivo,
era que eu tinha a sensação de que ele não gostava de
mim. Eu sempre soube a que ponto esse desagrado comigo
era patético e meramente formal. Não foi a morte de Paul
Goodman que, de uma hora para outra, me convenceu
disso.
Ele tinha sido um herói para mim por tanto tempo que não
fiquei nem um pouco surpresa quando se tornou famoso, e
sempre me surpreendeu que as pessoas parecessem não
lhe dar valor. O primeiro livro que li de Paul Goodman — aos
dezessete anos — foi uma coletânea de contos intitulada
The Break-Up of Our Camp [O fim do nosso acampamento],
publicado pela editora New Directions. Um ano depois, eu
tinha lido tudo o que ele havia publicado e, daí em diante,
acompanhei toda a sua obra. Não existe outro escritor
americano vivo por quem eu tenha sentido essa curiosidade
pura e simples de ler, o mais rápido possível, tudo o que
escrevesse, sobre qualquer assunto. A razão principal não
era que eu concordava com a maior parte do que ele
pensava; havia outros escritores com que eu concordava e
aos quais não fui tão fiel. O que me seduzia era aquela voz
que ele tinha — aquela voz direta, raivosa, vaidosa,
generosa, americana. Se Norman Mailer é o mais brilhante
escritor de sua geração, certamente isso decorre da força e
da excentricidade de sua voz; no entanto, de certo modo,
sempre achei essa voz demasiado barroca, demasiado
fabricada. Admiro Mailer como escritor, mas não acredito
em sua voz. A voz de Paul Goodman é autêntica. Em nossa
língua, desde D. H. Lawrence não havia uma voz tão
convincente, genuína e singular. A voz de Paul Goodman
conferia a tudo o que ele escrevia um toque de intensidade,
de interesse, além de sua estranheza e segurança próprias,
aliciantes ao extremo. Seus escritos eram uma mistura
nervosa de tensão sintática e talento verbal; ele era capaz
de escrever frases de uma pureza de estilo esplêndida e
linguagem vivaz, e também podia escrever com tamanha
negligência e deselegância que o leitor chegava a imaginar
que estava fazendo aquilo de propósito. Mas isso não tinha
importância. Era a sua voz, ou seja, sua inteligência e a
poesia de sua inteligência encarnada, que me mantinha
presa como uma viciada fiel e fervorosa. Embora com
frequência ele não fosse gracioso como escritor, sua escrita
e seu pensamento tinham um toque de graça.

Existe um ressentimento americano terrível e maldoso


com o escritor que tenta fazer muitas coisas. O fato de Paul
Goodman escrever poemas, peças e romances, além de
crítica social, o fato de escrever livros sobre especialidades
intelectuais reservadas aos monstros sagrados profissionais
e do meio universitário, como planejamento urbano,
educação, crítica literária, psiquiatria, era usado contra ele.
Muita gente se escandalizava por ele ser um parasita
acadêmico e um psiquiatra marginalizado, ao mesmo tempo
que era muito sagaz a respeito das universidades e da
natureza humana. Essa ingratidão é, e sempre foi,
espantosa para mim. Sei que Paul Goodman se queixava
muito disso. Talvez a manifestação mais pungente esteja no
diário que escreveu entre 1955 e 1960, publicado sob o
título Five Years [Cinco anos], no qual lamenta o fato de não
ser famoso, reconhecido nem recompensado pelo que era.
O diário foi escrito no final de sua longa obscuridade, pois,
com a publicação de Growing Up Absurd, em 1960, ele ficou
realmente famoso e, daí em diante, seus livros tiveram
grande circulação e, supõe-se, foram amplamente lidos —
se é que a constância com que as ideias de Paul Goodman
foram repetidas (sem o devido crédito) pode servir de prova
de que isso de fato acontecia. A partir de 1960, ele
começou a ganhar dinheiro e foi levado mais a sério — e
recebeu a atenção dos jovens. Tudo isso parece ter lhe
agradado, embora ainda reclamasse de não ser famoso o
bastante, de não ser lido o bastante, de não ser admirado o
bastante.
Longe de ser um egomaníaco insaciável, Paul Goodman
tinha toda razão ao pensar que não recebia a atenção
merecida. Isso se manifesta claramente nos obituários que
li, desde sua morte, na meia dúzia de jornais e revistas
americanos que consigo obter aqui em Paris. Nesses
obituários, ele não passa de um escritor dissidente
interessante, que se dispersou demais, que publicou
Growing Up Absurd, que influenciou a juventude rebelde
americana na década de 1960, que era indiscreto sobre a
própria vida sexual. O comovente obituário escrito por Ned
Rorem, o único que li que dá alguma ideia da importância
de Paul Goodman, saiu no Village Voice, um jornal lido por
larga parcela do círculo de Paul Goodman, apenas na página
17. Da maneira como chegam as avaliações, agora, depois
de sua morte, vê-se que é considerado uma figura marginal.
Eu jamais desejaria para Paul Goodman o tipo de estrelato
na mídia concedido a McLuhan ou mesmo a Marcuse — algo
que reflete muito pouco a influência real e que não revela a
medida em que um escritor está sendo lido. A minha queixa
diz respeito ao fato de que Paul Goodman foi, não raro,
pouco valorizado até pelos próprios admiradores. Para a
maioria das pessoas, creio, nunca ficou claro que se tratava
de uma figura extraordinária. Ele era capaz de fazer quase
tudo e tentava fazer quase tudo que um escritor pode fazer.
Embora sua ficção tenha se tornado cada vez mais didática
e esvaziada de poesia, ele continuou a crescer como um
poeta de uma sensibilidade considerável e inteiramente fora
de moda; algum dia, alguém vai descobrir como é boa a
poesia que escreveu. A maior parte do que Paul Goodman
disse em seus ensaios, sobre pessoas, cidades e o
sentimento de vida, é verdadeiro. Seu alegado amadorismo
é idêntico a sua genialidade: esse amadorismo o habilitava
a conferir às questões da educação, da psiquiatria e da
cidadania uma extraordinária e mordaz acuidade de
percepção — e liberdade para encarar a mudança prática.

É difícil listar todas as maneiras pelas quais me sinto em


dívida com ele. Por vinte anos, ele foi para mim o mais
importante escritor americano. Era o nosso Sartre, o nosso
Cocteau. Não tinha a inteligência teórica requintada de
Sartre; nunca chegou a tocar a fonte louca e opaca da
fantasia genuína que Cocteau tinha, ao praticar tantas
formas de arte. No entanto, tinha dons de que nem Sartre
nem Cocteau dispunham: um sentimento intrépido sobre o
que é a vida humana, um fôlego e uma exigência de paixão
moral. Sua voz na página impressa é verdadeira, para mim,
como ocorre com a voz de pouquíssimos escritores —
familiar, envolvente, exasperante. Desconfio que, em seus
livros, existia um ser humano mais nobre do que em sua
vida, algo que costuma acontecer com frequência na
“literatura”. (Às vezes, é o contrário, e a pessoa é mais
nobre na vida real do que nos livros. Às vezes, não existe
quase nenhuma relação entre a pessoa nos livros e a da
vida real.)
A leitura de Paul Goodman me energizava. Ele foi um dos
poucos escritores, vivos e mortos, que definiram para mim o
valor de ser escritor e de cuja obra extraí os critérios com
que eu avaliava minha própria obra. Nesse panteão
diversificado e muito pessoal, havia alguns escritores
europeus vivos, mas nenhum escritor americano vivo,
exceto ele. Tudo o que ele fazia no papel me agradava. Eu o
admirava quando se mostrava teimoso, desastrado,
melancólico, até equivocado. Seu egoísmo me deixava mais
comovida do que incomodada (como muitas vezes ocorre
com Mailer, quando o leio). Eu admirava sua inteligência,
sua disposição de servir. Tinha em alta conta sua coragem,
que se revelava de tantas maneiras — uma das mais
admiráveis era a honestidade a respeito de sua
homossexualidade em Five Years, motivo pelo qual foi muito
criticado por amigos heterossexuais no mundo intelectual
de Nova York; isso faz seis anos, antes de o advento da
Libertação Gay transformar a saída do armário em algo
sofisticado. Eu o apreciava quando falava de si mesmo e
também quando misturava seus tristes desejos sexuais com
seus desejos sobre o regime político. A exemplo de André
Breton, com quem poderia ser comparado em vários
aspectos, Paul Goodman era um connoisseur de liberdade,
prazer, alegria. Lendo seus textos, aprendi muito sobre
esses três quesitos.

Esta manhã, ao começar a escrever este texto, enfiei a


mão embaixo da mesa junto à janela a fim de pegar papel
para a máquina de escrever e vi que um dos três livros em
brochura soterrados pelos manuscritos era New Reformation
[Nova Reforma]. A despeito de eu estar tentando viver um
ano sem livros, um ou outro acabou se infiltrando, não sei
como. Parece conveniente que, mesmo aqui, neste quarto
minúsculo em que os livros estão proibidos, onde eu tento
ouvir melhor minha voz e descobrir o que eu penso de
verdade e sinto de verdade, ainda existe pelo menos um
livro de Paul Goodman por perto, pois não houve nenhum
apartamento em que morei nos últimos 22 anos que não
contivesse a maioria de seus livros.
Com ou sem seus livros, continuarei marcada por Paul
Goodman. Continuarei a lamentar que não esteja mais vivo
para falar, em livros novos, e que teremos de seguir em
frente em nossas tentativas atabalhoadas de nos ajudar, de
dizer o que é verdadeiro, de libertar a poesia que tivermos
em nós, respeitar a loucura uns dos outros e o direito de
estar errado, e cultivar nossa ideia de cidadania, sem as
provocações de Paul, sem suas explicações pacientes e
tortuosas de tudo, sem a graça do exemplo de Paul.

(1972)
Conhecendo Artaud

O movimento para desconstituir o “autor” está em curso


há mais de cem anos. Desde o início, o ímpeto era — e
ainda é — apocalíptico: fulgurante de lamento e de júbilo,
diante da queda convulsiva das antigas ordens sociais,
sustentado por essa sensação mundial de que se vive um
momento revolucionário, que continua a animar a maior
parte da excelência intelectual e moral. O ataque contra o
“autor” persiste a pleno vapor, embora a revolução ou não
tenha ocorrido ou, quando ocorreu, rapidamente asfixiou o
modernismo literário. Gradualmente se transformando, nos
países que não foram remodelados por uma revolução, na
tradição dominante na alta cultura literária, em vez de ser
sua subversão, o modernismo continua a desenvolver
códigos para preservar as novas energias morais, ao mesmo
tempo que as mantém em compasso de espera. O fato de o
imperativo histórico que parece desacreditar a própria
prática da literatura ter durado tanto tempo — um período
que cobre numerosas gerações literárias — não significa
que foi mal compreendido. Tampouco significa que o mal-
estar do “autor” esteja fora de moda na atualidade ou seja
inadequado, como às vezes se sugere. (As pessoas tendem
a se tornar céticas até mesmo a respeito das crises mais
apavorantes, se tais crises parecem se arrastar por tempo
demais, sem conseguir chegar a um desfecho.) Mas a
longevidade do modernismo demonstra o que acontece
quando a resolução profetizada de uma inquietação social e
psicológica drástica é adiada — quantas virtudes
insuspeitas de perspicácia e de angústia, e quanta
domesticação da angústia, podem florescer nesse ínterim.
No conceito estabelecido, e sob contestação crônica, a
literatura é modelada com base em uma linguagem racional
— ou seja, aceita no âmbito social —, em uma diversidade
de tipos de discurso internamente coerentes (por exemplo:
poema, peça, épico, tratado, ensaio, romance), na forma de
“obras” individuais julgadas por normas como veracidade,
poder emocional, sutileza e relevância. No entanto, mais de
um século de modernismo literário deixou clara a
contingência dos gêneros estabelecidos no passado,
minados pela noção de obra autônoma. Os critérios usados
para elogiar obras literárias hoje em dia não parecem nem
evidentes nem muito menos universais. Eles são a
confirmação das ideias de racionalidade, ou seja, da mente
e da comunidade, de uma cultura particular.
O papel de ser “autor”, desmascarado como conformista
ou não, continua inexoravelmente subordinado a
determinada ordem social. Sem dúvida, nem todos os
autores pré-modernos enalteciam as sociedades em que
estavam inseridos. Um dos papéis mais antigos do autor
consiste em convocar a comunidade para prestar contas de
suas hipocrisias e de sua má-fé, como Juvenal em suas
Sátiras castigou as insanidades da aristocracia romana e
Richardson em Clarissa denunciou a instituição burguesa do
casamento-propriedade. Mas o espectro de alienação para
os autores pré-modernos ainda era limitado — soubessem
eles disso ou não — para atacarem os valores de uma
classe ou meio em favor dos valores de outrem. Os autores
modernos, em busca de escapar dessa limitação, uniram-se
na tarefa grandiosa apontada por Nietzsche um século
atrás, de reavaliar todos os valores, e redefinida por Antonin
Artaud no século XX como a “desvalorização geral de
valores”. Por mais quixotesca que seja, essa tarefa esboça a
poderosa estratégia pela qual os autores modernos
declaram que não são mais responsáveis — no sentido de
que tanto autores que celebram seu tempo como aqueles
que o criticam são igualmente cidadãos cumpridores das
normas da sociedade em que atuam. Os autores modernos
podem ser reconhecidos por seu esforço para
desconstituírem a si mesmos, pela vontade de não serem
moralmente úteis à comunidade, por sua inclinação a se
apresentarem não como críticos sociais, e sim como
profetas, aventureiros do espírito e párias sociais.
Inevitavelmente, desconstituir o autor acarreta uma
redefinição de “escrita”. Quando esta não mais se define
como responsável, a aparente distinção do senso comum
entre a obra e quem a produziu, entre fala pública e
privada, se torna vazia. Toda a literatura pré-moderna se
desenvolve a partir da concepção clássica de escrita como
uma realização impessoal, autossuficiente, autônoma. A
literatura moderna projeta uma ideia muito diferente: a
concepção romântica de escrita como um meio no qual a
personalidade singular se expõe heroicamente. Essa
referência, na essência privada do discurso público e
literário, não requer que o leitor saiba, de fato, grande coisa
a respeito do autor. Apesar da disponibilidade de vasta
informação biográfica sobre Baudelaire e quase nada sobre
a vida de Lautréamont, As flores do mal e Maldoror são
igualmente dependentes, como obras literárias, da ideia do
autor como uma personalidade atormentada que violenta a
própria e singular subjetividade.
Na visão iniciada pela sensibilidade romântica, o que é
produzido pelo artista (ou filósofo) contém, como estrutura
reguladora interna, um cômputo dos esforços da
subjetividade. A obra extrai suas credenciais do lugar que
ocupa em uma experiência viva singular; ela supõe uma
totalidade pessoal inesgotável, da qual a “obra” é
subproduto, inadequadamente expressivo daquela
totalidade. A arte se torna a afirmação da consciência de si
— uma consciência que pressupõe desarmonia entre o eu
do artista e a comunidade. Com efeito, o esforço do artista é
medido pela extensão de sua ruptura com a voz coletiva (da
“razão”). O artista é uma consciência que tenta ser. “Eu sou
aquele que, a fim de ser, precisa fustigar o que tem de
inato”, escreve Artaud — o mais didático e o mais
intransigente herói da autoexacerbação na literatura
moderna.
Em princípio, o projeto não pode dar certo. A consciência
como dado jamais pode constituir-se plenamente como arte,
mas deve se empenhar para transformar suas fronteiras e
alterar as fronteiras da arte. Assim, qualquer “obra” singular
tem duplo estatuto. É única, específica, e é um gesto
literário já representado, além de uma declaração
metaliterária (muitas vezes estridente, não raro irônica)
sobre a insuficiência da literatura no tocante a uma
condição ideal da consciência e da arte. A consciência
concebida como projeto cria um padrão que condena,
inevitavelmente, a “obra” a ser incompleta. No modelo da
consciência heroica que visa a nada menos que a
autoapropriação total, a literatura terá como meta o “livro
total”. Medida pela ideia do livro total, toda escrita, na
prática, consiste em fragmentos. O padrão de inícios, meios
e fins não se aplica mais. A incompletude se torna a
modalidade reinante da arte e do pensamento, abrindo
espaço para antigêneros — obra que é deliberadamente
fragmentária ou autoanuladora, pensamento que desfaz a si
mesmo. Porém a debacle dos padrões antigos não requer
que se negue o fracasso dessa arte. Como diz Cocteau, “a
única obra que dá certo é aquela que fracassa”.

A carreira de Antonin Artaud, um dos últimos grandes


exemplares do período heroico do modernismo literário,
resume cabalmente essas reavaliações. Tanto na obra como
na vida, Artaud fracassou. Sua obra inclui poesia; poemas
em prosa; roteiros de cinema; textos sobre cinema, pintura
e literatura; ensaios, diatribes e polêmicas sobre teatro;
várias peças e anotações para numerosos projetos teatrais
inacabados, entre eles uma ópera; um romance histórico;
um monólogo dramático em quatro partes, escrito para o
rádio; ensaios sobre o culto ao mescal entre os indígenas
tarahumaras; pontas fulgurantes em dois filmes importantes
(Napoleão, de Gance, e A paixão de Joana d’Arc, de Dreyer)
e muitas outras de pequena relevância; além de centenas
de cartas, sua forma dramática mais acabada — tudo isso
redunda num corpus fraturado, automutilado, uma vasta
coleção de fragmentos. O que ele deixou de herança não
foram obras de arte concluídas, mas uma presença singular,
uma poética, uma estética de pensamento, uma teologia da
cultura e uma fenomenologia do sofrimento.
Em Artaud, o artista como vidente se cristaliza, pela
primeira vez, na figura do artista como vítima de sua
consciência. Aquilo que é prefigurado na prosa poética do
spleen de Baudelaire e no registro de Rimbaud de uma
temporada no inferno se torna a afirmação de Artaud sobre
sua consciência incansável e angustiada da inadequação da
própria consciência em relação a si mesma — os tormentos
de uma sensibilidade que se julga irremediavelmente alheia
do pensamento. Pensar a língua e usar a língua se
transforma em um calvário perpétuo.
Nas metáforas que Artaud usa para descrever seu
tormento intelectual, a mente é tratada ou como uma
propriedade cujo direito não é tido com clareza (ou cujo
direito perdemos) ou então como uma substância física
intransigente, fugidia, instável, obscenamente mutável. Já
em 1921, aos 25 anos de idade, ele define seu problema
como o de alguém que nunca conseguiu ter posse da
própria mente “em sua inteireza”. No decorrer da década de
1920, Artaud se lamenta porque acredita que suas ideias o
“abandonaram”, porque se vê incapaz de “descobri-las”,
por não conseguir “alcançar” sua mente, por ter “perdido” a
compreensão das palavras e “esquecido” as formas do
pensamento. Em metáforas mais diretas, enfurece-se contra
a erosão crônica de suas ideias, a maneira como seu
pensamento se despedaça debaixo dele ou escorre para
longe; Artaud descreve sua mente como fissurada, em
deterioração, em petrificação, em liquefação, em
coagulação, vazia, impenetravelmente densa: as palavras
apodrecem. Ele sofre não com a dúvida de que seu “eu”
pense, mas sim com a convicção de que o próprio
pensamento não lhe pertence. Ele não afirma ser incapaz de
pensar; diz na verdade não “ter” pensamento — o que ele
entende como muito mais do que ter ideias ou juízos
corretos. “Ter pensamento” indica o processo por meio do
qual o pensamento se sustenta, se manifesta para si
mesmo e corresponde a “todas as circunstâncias de
sentimento e de vida”. É nesse sentido de pensamento,
sentido que toma o pensamento como sujeito e objeto de si
mesmo, que Artaud afirma não “ter” pensamento. O artista
mostra como a consciência hegeliana, dramática,
autocontemplativa, pode alcançar o estado de alienação
total (no lugar de sabedoria desinteressada, abrangente) —
porque a mente continua a ser um objeto.
A linguagem que Artaud usa é profundamente
contraditória. Sua imagística é materialista (transformar a
mente numa coisa ou num objeto), contudo sua demanda
redunda no mais puro idealismo filosófico. Ele se recusa a
considerar a consciência senão como um processo.
Entretanto, é o caráter de processo da consciência — seu
caráter de fluxo e de algo inapreensível — que ele vivencia
como um inferno. “A dor real”, revela Artaud, “está em
sentir que nosso pensamento se modifica dentro de nós
mesmos.” O cogito, cuja existência evidente em si mesma
não parece demandar prova nenhuma, parte numa busca
desesperada, inconsolável, de um ars cogitandi. A
inteligência, Artaud observa horrorizado, é a contingência
mais pura. Nos antípodas do que Descartes e Valéry relatam
em seus grandes épicos otimistas sobre a busca de ideias
claras e definidas, uma Divina Comédia do pensamento,
Artaud relata a desgraça interminável e a perplexidade da
consciência em busca de si mesma: “essa tragédia
intelectual em que sempre sou derrotado”, a Divina
Tragédia do pensamento. Ele se descreve como “em busca
constante de meu ser intelectual”.
A consequência do veredicto de Artaud sobre si mesmo —
a convicção de sua alienação crônica da própria consciência
— é que sua lacuna mental se torna, direta ou
indiretamente, o tema dominante e inesgotável de seus
escritos. Parte dos relatos de Artaud sobre sua Paixão de
pensamento chega a ser uma leitura quase dolorosa
demais. Ele pouco elabora suas emoções — pânico,
confusão, raiva, temor. Seu talento não era o da
compreensão psicológica (por não ser bom nisso, ele a
desdenhava como algo banal), e sim, mediante um modo
mais original de descrição, uma espécie de fenomenologia
fisiológica de sua desolação interminável. A afirmação de
Artaud, em O pesa-nervos, de que ninguém jamais mapeou
tão acuradamente seu eu “íntimo” não é exagero. Em
nenhuma parte de toda a história da escrita em primeira
pessoa existe uma exposição tão incansável e minuciosa da
microestrutura da dor mental.
Artaud não se limita, no entanto, a registrar sua angústia
psíquica. Ela constitui sua obra, pois, enquanto o ato de
escrever — de dar forma à inteligência — é uma agonia,
essa sensação também fornece energia para o ato de
escrever. Embora Artaud tenha ficado muitíssimo frustrado
quando os poemas relativamente bem-compostos que
apresentou à Nouvelle Revue Française em 1923 foram
rejeitados por seu editor, Jacques Rivière, que os julgou
carentes de harmonia e coerência, o rigor de Rivière se
comprovou libertador. Daquele momento em diante, Artaud
passou a negar que estivesse criando mais arte,
adicionando itens ao armazém da “literatura”. O desprezo
pela literatura — um tema da literatura modernista
proclamado com retumbância primeiro por Rimbaud — tem
uma inflexão diferente, no tocante à maneira como Artaud o
exprime, na era em que os futuristas, dadaístas e
surrealistas o haviam transformado num lugar-comum. O
desprezo demonstrado por ele em relação à literatura tem
menos a ver com um niilismo difuso sobre a cultura do que
com uma experiência específica do sofrimento. Para Artaud,
a extrema dor mental — e também física — que nutre (que
autentica) o ato da escrita é necessariamente falsificada,
quando essa energia é transformada em labor artístico:
quando ela atinge o estatuto benigno de um produto
literário acabado. A humilhação verbal da literatura (“Toda
escrita é lixo”, declara Artaud em O pesa-nervos)
salvaguarda o estatuto perigoso, quase mágico, da escrita
como uma nave digna de transportar a dor do autor. Insultar
a arte (como insultar o público) é uma tentativa de livrar-se
da corrupção da arte, da banalização do sofrimento.
O elo entre sofrimento e escrita é um dos temas principais
de Artaud: ganhamos o direito de falar por termos sofrido,
mas a necessidade de usar a língua é, em si, a ocasião
central do sofrimento. Ele se descreve como devastado por
uma “confusão atordoante” da “língua em suas relações
com o pensamento”. A alienação de Artaud em relação à
língua apresenta a face escura das alienações verbais da
poesia moderna repletas de êxito — de seu uso criativo das
possibilidades puramente formais da língua, da
ambiguidade das palavras e da artificialidade dos
significados fixos. O problema de Artaud não é o que a
língua é, mas a relação que mantém com o que ele chama
de “apreensões intelectuais da carne”. O artista nem se
permite a queixa tradicional de todos os grandes místicos,
de que as palavras tendem a petrificar o pensamento vivo e
a transformar o sensorial, o orgânico, o imediato da
experiência em algo inerte, meramente verbal. A luta de
Artaud contra o caráter morto da língua ocorre apenas em
segundo plano; ela é, sobretudo, contra as refrações da sua
vida interior. Empregadas por uma consciência que se
autodefine como paroxística, as palavras se tornam facas.
Artaud parece ter sido atormentado por uma vida interior
extraordinária, na qual a complexidade e o diapasão
clamoroso de suas sensações físicas e as intuições
convulsivas de seu sistema nervoso pareciam
permanentemente em conflito com sua capacidade de lhes
dar expressão verbal. O choque entre instrumento e
impotência, entre dons verbais extravagantes e uma
sensação de paralisia intelectual, constitui a trama
psicodramática de tudo o que ele escreveu; e manter essa
disputa dramaticamente válida requer o exorcismo repetido
da respeitabilidade associada à escrita.
Assim, Artaud menos liberta a escrita do que a põe sob
suspeita permanente, ao tratá-la como o espelho da
consciência — de modo que o espectro do que pode ser
escrito é coextensivo à consciência em si mesma, e a
verdade de qualquer afirmação termina por depender da
vitalidade e da completude da consciência em que ela tem
origem. Contra todas as teorias da mente hierárquicas, ou
platonizantes, que tomam uma parte da consciência como
superior a outras, Artaud sustenta a democracia das
pretensões mentais, o direito de todo nível, tendência e
faculdade da mente ser ouvido: “Nós podemos fazer tudo
na mente, podemos falar com qualquer tom de voz, mesmo
num tom inconveniente”. Artaud se recusa a excluir
qualquer percepção como trivial demais ou crua demais. A
arte deveria ser capaz de falar de qualquer lugar, pensa ele
— embora não pelas razões que justificam a franqueza de
Whitman ou a licenciosidade de Joyce. Para Artaud, barrar
quaisquer transações possíveis entre níveis diferentes da
mente e da carne redunda numa despossessão do
pensamento, numa perda da vitalidade, em seu sentido
mais puro. Esse alcance tonal estreito que cria “o assim
chamado tom literário” — literatura em suas formas
tradicionalmente aceitáveis — se torna pior do que uma
fraude e um instrumento de repressão intelectual. É uma
sentença de morte mental. A noção de verdade de Artaud
estipula uma concordância exata e refinada entre os
impulsos “animais” da mente e as operações mais elevadas
do intelecto. É essa consciência ágil, plenamente unificada,
que ele evoca nos relatos obsessivos da própria
insuficiência mental e em sua rejeição da “literatura”.
O teor da consciência é o critério final de Artaud. O artista
vincula, de maneira infalível, seu utopismo da consciência
ao materialismo psicológico: a mente absoluta é também
absolutamente carnal. Desse modo, seu mal-estar
intelectual é ao mesmo tempo o mais agudo mal-estar
físico, e toda afirmação que ele faz acerca de sua
consciência é igualmente uma afirmação a respeito do seu
corpo. De fato, o que causa sua incurável dor de consciência
é a recusa de considerar a mente à margem da situação da
carne. Longe de ser desligada do corpo, sua consciência é
aquela cujo martírio resulta de sua relação ininterrupta com
o corpo. Em sua luta contra todas as noções hierárquicas de
consciência ou dualistas, Artaud constantemente trata a
própria mente como se fosse uma espécie de corpo — um
corpo que ele não podia “possuir”, porque era ou virginal
demais ou conspurcado demais, e ainda um corpo místico,
por cuja desordem ele estava “possuído”.
Seria um erro, é claro, tomar ao pé da letra a afirmação
de Artaud sobre sua impotência mental. A incapacidade
intelectual que ele descreve está longe de indicar os limites
de sua obra (Artaud não demonstra nenhuma inferioridade
em suas faculdades de raciocínio), mas decerto explica seu
projeto: repassar com minúcia os filamentos pesados e
emaranhados de seu corpo-mente. A premissa da escrita de
Artaud é sua profunda dificuldade de conjugar “ser” e
hiperlucidez, carne e palavras. Ao lutar para corporificar o
pensamento vivo, o artista compunha febrilmente; por
exemplo, entre um texto explanatório e uma descrição
onírica, ele introduz uma carta — uma carta para um
correspondente imaginário ou uma carta real, em que omite
o nome do destinatário. Ao mudar de forma, ele muda de
fôlego. A escrita é concebida como o desencadeamento de
um fluxo imprevisível de energia abrasadora; o
conhecimento deve explodir nos nervos do leitor. Os
detalhes da estilística de Artaud decorrem diretamente de
sua ideia de consciência como um emaranhado de
dificuldade e sofrimento. Sua determinação de romper a
carapaça da “literatura” — pelo menos, de violar a distância
autoprotetora entre leitor e texto — está longe de ser uma
ambição nova na história do modernismo literário. Mas ele
pode ter chegado mais perto do que qualquer outro autor
de realizar isso, de fato — por meio da descontinuidade
violenta de seu discurso, da radicalidade de sua emoção, da
pureza de seu propósito moral, da carnalidade excruciante
do registro que faz de sua vida mental, da autenticidade e
da grandeza da provação que suportou, a fim de
simplesmente usar a língua.

As dificuldades de que Artaud se lamenta persistem


porque ele está pensando o impensável — como o corpo é
mente e como a mente também é corpo. Esse paradoxo
inesgotável é espelhado em seu desejo de produzir uma
arte que é, ao mesmo tempo, antiarte. Este último
paradoxo, porém, é mais hipotético do que real. Ao ignorar
as renúncias de Artaud, os leitores inevitavelmente
assimilarão suas estratégias de discursar para a arte toda
vez que elas alcançarem (como ocorre com frequência)
certo timbre de incandescência triunfante. E três livrinhos
publicados entre 1925 e 1929 — O umbigo do limbo, O
pesa-nervos e A arte e a morte — que podem ser lidos como
poemas em prosa, mais esplêndidos do que qualquer outra
coisa que Artaud fez antes como poeta, mostram que se
trata do maior poeta em prosa da língua francesa, desde o
Rimbaud das Iluminações e de Uma temporada no inferno.
Contudo, seria incorreto separar de seus outros escritos
aquilo que é mais bem-acabado como literatura.
A obra de Artaud nega a existência de qualquer diferença
entre arte e pensamento, entre poesia e verdade. A
despeito das rupturas na exposição e na variação de
“formas” dentro de cada obra, tudo o que ele escreveu
propõe uma linha de argumentação. Artaud é sempre
didático. Nunca parou de insultar, reclamar, exortar,
denunciar — mesmo na poesia escrita depois de ter saído
da clínica psiquiátrica em Rodez, em 1946, na qual a língua
se torna parcialmente ininteligível; ou seja, uma presença
física imediata. Toda sua escrita é feita em primeira pessoa
e é um modo de falar com as vozes misturadas do
encantamento e da explanação discursiva. Suas atividades
são simultaneamente arte e reflexões sobre arte. Num
antigo ensaio sobre pintura, ele declara que as obras de
arte “têm o mesmo valor das concepções sobre as quais
estão apoiadas, cujo valor é aquilo que mais uma vez
estamos pondo em questão”. Da mesma forma que a obra
de Artaud redunda numa ars poetica (da qual sua obra não
é mais do que uma exposição fragmentária), assim também
ele toma a criação da arte como um tropo para o
funcionamento de toda a consciência — da vida em si
mesma.
Esse tropo foi a base da filiação de Artaud ao movimento
surrealista, entre 1924 e 1926. Da maneira como o autor
entendia o surrealismo, ele era uma “revolução” aplicada a
“todos os estados mentais, a todos os tipos de atividade
humana”, e seu estatuto como tendência no âmbito das
artes era secundário e estratégico, apenas. Artaud deu
boas-vindas ao surrealismo — “acima de tudo, um estado
mental” — como uma crítica da mente e como uma técnica
para desenvolver o alcance e a qualidade que ela
apresenta. Sensível como era, em sua vida privada, para as
ações repressivas da ideia burguesa da realidade cotidiana
(“Nascemos, vivemos, morremos num ambiente de
mentiras”, escreveu em 1923), Artaud foi naturalmente
atraído pelo surrealismo em razão de sua defesa de uma
consciência mais sutil, imaginativa e rebelde. Mas logo
descobriu que as fórmulas surrealistas eram outro tipo de
confinamento. Ele se viu expulso, quando a maioria da
irmandade surrealista estava prestes a aderir ao Partido
Comunista Francês — um passo que denunciou como
traição. Uma revolução social real não muda nada, insiste
ele, em tom de escárnio, na polêmica que redigiu contra o
“blefe surrealista”, em 1927. A adesão daqueles artistas à
Terceira Internacional, embora tivesse sido de curta
duração, era um estímulo plausível para que ele deixasse o
movimento, mas sua insatisfação era mais profunda, e não
somente um desacordo sobre o tipo de revolução que era
desejável e relevante. (Os surrealistas eram dificilmente
mais comunistas que Artaud. Em André Breton, mais do que
política, havia um conjunto de solidariedades morais
extremamente atraentes, que em outra fase iriam colocá-lo
no rumo do anarquismo e que, de forma bastante lógica, o
levaria, na década de 1930, a tornar-se partidário e amigo
de Trótski.) O que certamente contrariava Artaud era uma
fundamental diferença de temperamento.
Foi com base num mal-entendido que Artaud aderiu, com
fervor, à contestação surrealista dos limites que a “razão”
estabelece para a consciência, e também à fé dos
surrealistas no acesso a uma consciência mais ampla por
meio de sonhos, drogas, arte insolente e comportamento
social. O surrealista, pensava ele, é alguém que “perde a
esperança de alcançar a própria mente”. A referência é feita
a si mesmo, é claro. O desespero está de todo ausente da
tendência predominante nas atitudes surrealistas. Os
benefícios que adviriam de destrancar os portões da razão
eram anunciados pelos surrealistas, que ignoravam as
abominações. Artaud, extravagantemente consternado na
mesma medida em que os surrealistas eram otimistas,
poderia no máximo conceder, com apreensão, legitimidade
ao irracional. Enquanto os surrealistas propunham jogos
refinados com a consciência, os quais ninguém podia
perder, ele estava empenhado numa luta mortal para se
“restaurar”. Breton sancionava o irracional como uma rota
útil rumo a um novo continente mental. Para Artaud,
privado da esperança de estar viajando para onde quer que
fosse, o irracional era o campo de seu martírio.
Ao estender as fronteiras da consciência, os surrealistas
esperavam não só depurar o reinado da razão, como
ampliar o rendimento do prazer físico. Artaud era incapaz de
esperar qualquer prazer da colonização de novos reinos da
consciência. Em contraste com a defesa eufórica da paixão
física e do amor romântico pelos surrealistas, o artista
encarava o erotismo como algo ameaçador, demoníaco. Em
A arte e a morte, ele descreve “essa preocupação com o
sexo que me petrifica e faz meu sangue gritar”. Em muitos
de seus escritos, os órgãos sexuais se multiplicam numa
escala monstruosa, colossal, e em formas
ameaçadoramente hermafroditas; a virgindade é tratada
como um estado de graça e a impotência e a castração são
apresentadas — por exemplo, na imagística gerada pela
figura de Abelardo, em A arte e a morte — antes como
libertação do que como castigo. Os surrealistas pareciam
amar a vida, registra Artaud em tom desdenhoso. Ele sentia
“desprezo” por ela. Ao explicar o programa do Comitê de
Pesquisa Surrealista em 1925, Artaud havia definido o
surrealismo, favoravelmente, como “certa ordem de
repulsas”, apenas para concluir, no ano seguinte, que tais
repulsas eram muito rasas. Como Marcel Duchamp disse,
num comovente tributo a seu amigo Breton em 1966,
quando da morte deste, “a grande fonte da inspiração
surrealista é o amor: a exaltação do amor eletivo”. O
surrealismo é uma política espiritual da alegria.
A despeito da recusa apaixonada de Artaud ao
surrealismo, seu gosto era surrealista — e assim continuou.
Seu desdém do “realismo” como uma coleção de
banalidades burguesas é surrealista, assim como seu
entusiasmo pela arte dos loucos e dos não profissionais,
pela arte que vem do Oriente, por tudo o que é radical,
fantástico, gótico. O desprezo de Artaud pelo repertório
dramático de seu tempo e pela peça teatral dedicada a
explorar a psicologia dos personagens individuais — um
desprezo básico para o argumento dos manifestos em O
teatro e seu duplo, escritos entre 1931 e 1936 — parte de
uma posição idêntica à daquela com que Breton descarta o
romance no primeiro “Manifesto Surrealista”, de 1924.
Artaud, porém, faz usos completamente distintos de seus
entusiasmos e dos preconceitos estéticos que compartilha
com Breton. Os surrealistas são connoisseurs da alegria, da
liberdade, do prazer. E ele é um connoisseur do desespero e
da luta moral. Embora os surrealistas explicitamente
recusassem conferir à arte um valor autônomo, não
percebiam nenhum conflito entre anseios morais e anseios
estéticos. Nesse sentido, Artaud está muito certo ao dizer
que o programa deles é “estético” — meramente estético,
ele quer dizer. O artista percebe isso como um conflito e
exige que a arte se justifique por padrões de seriedade
moral.
Do surrealismo, Artaud deriva a perspectiva que liga sua
própria crise psicológica perene àquilo que Breton (no
“Segundo Manifesto Surrealista”, de 1930) chama de “crise
geral da consciência” — uma perspectiva que Artaud
manteve ao longo de todos os seus escritos. Porém,
nenhuma noção de crise, no cânone surrealista, é tão
desoladora quanto a de Artaud. Ao lado das percepções
laceradas de Artaud, ao mesmo tempo cósmicas e
intimamente fisiológicas, as jeremiadas surrealistas
parecem mais refrescantes do que aterradoras. (Na
verdade, não são dirigidas à mesma crise. Sem dúvida,
Artaud sabia mais do que Breton a respeito do sofrimento.)
Um legado oriundo do surrealismo deu a ele a possibilidade
de continuar, ao longo de toda a sua obra, a aceitar o
pressuposto de que a arte tem uma missão “revolucionária”.
Mas a ideia de revolução de Artaud diverge daquela dos
surrealistas tanto quanto sua sensibilidade devastada
diverge da de Breton, essencialmente sadia.
Artaud também manteve, dos surrealistas, o imperativo
romântico de fechar o abismo entre arte (e pensamento) e
vida. Ele começa O umbigo do limbo, escrito em 1925,
declarando-se incapaz de conceber uma “obra que seja
desligada da vida”, de “criação desinteressada”. Mas Artaud
insiste, com mais agressividade do que os surrealistas
jamais demonstraram, naquela desvalorização da obra de
arte separada, que decorre de estabelecer vínculos entre
arte e vida. Como os surrealistas, ele encara a arte como
uma função da consciência, e cada obra representa apenas
uma fração do todo da consciência do artista. Mas, ao
identificar a consciência principalmente com seus aspectos
obscuros, ocultos, excruciantes, ele transforma o
desmembramento da totalidade da consciência em “obras”
separadas não num procedimento arbitrário (que era o que
fascinava os surrealistas), e sim num procedimento que
derrota a si mesmo. O estreitamento que Artaud realiza da
visão surrealista torna uma obra de arte inútil, em si
mesma; na medida em que é considerada uma coisa, ela
está morta. Em O pesa-nervos, também de 1925, o autor
associa suas obras a “produtos residuais” sem vida, meras
“raspagens da alma”. Esses pedaços desmembrados da
consciência adquirem valor e vitalidade apenas como
metáforas para obras de arte; ou seja, metáforas para a
consciência.
Ao desdenhar de toda visão desinteressada da arte, toda
visão da arte que encara as obras de arte como objetos
(para serem contemplados, para encantar os sentidos, para
edificar, para distrair), Artaud assimila toda arte à
performance dramática. Em sua poética, a arte (e o
pensamento) é uma ação — que, para ser autêntica, deve
ser brutal — e também uma experiência sofrida e carregada
de emoções radicais. Ao ser, ao mesmo tempo, ação e
paixão desse tipo, iconoclástica e evangélica em seu fervor,
a arte parece requerer um cenário mais desafiador, fora dos
museus e dos locais de exposição legitimados, assim como
uma forma nova e mais rude de confrontação com a plateia.
A retórica do movimento interior que sustenta a noção de
arte de Artaud é impressionante, mas não altera a maneira
como ele realmente consegue recusar o papel tradicional da
obra de arte como objeto — mediante uma análise dela e
uma experiência em relação a ela que são uma enorme
tautologia. Ele vê a arte como ação e, portanto, como uma
paixão da mente. A mente produz arte. O espaço em que a
arte é consumida é também a mente — vista como uma
totalidade orgânica de sentimento, de sensação física, e
como a capacidade de atribuir sentido. A poética de Artaud
é uma espécie de hegelianismo supremo, alucinado, em que
a arte é o compêndio da consciência, o reflexo da
consciência em si e o espaço vazio em que ela dá seu
perigoso salto de autotranscendência.

Fechar o abismo entre arte e vida destrói a arte, ao


mesmo tempo que a universaliza. No manifesto que Artaud
escreveu para o teatro de Alfred Jarry, fundado em 1926, dá
as boas-vindas ao “descrédito em que todas as formas de
arte estão caindo sucessivamente”. Seu deleite pode ser
fingimento, mas seria incoerente da parte dele lamentar
esse estado de coisas. Uma vez que o critério dominante
para uma arte passa a ser sua fusão com a vida (ou seja,
tudo, inclusive as outras artes), a existência de uma forma
de arte separada deixa de ser defensável. Além do mais,
Artaud assume que uma das artes existentes deverá, em
breve, recuperar-se de sua falta de vigor e tornar-se a forma
de arte total, que absorverá todas as outras. A obra da vida
de Artaud pode ser descrita como a sequência de seus
esforços para formular e habitar sua arte-mestra, levando
até o fim, com heroísmo, sua convicção de que dificilmente
a arte que ele buscava poderia ser aquela — que envolvia
só a língua — em que seu gênio estava acima de tudo
confinado.
Os parâmetros da obra de Artaud em todas as artes são
idênticos às distâncias críticas diferentes que ele mantém
da ideia de uma arte que é apenas língua — com as formas
diversas de sua contínua “revolta contra a poesia” (título de
um texto em prosa que escreveu em Rodez, em 1944).
Cronologicamente, a poesia foi a primeira de muitas artes
praticadas por ele. Sobreviveram poemas escritos ainda em
1913, quando estava com dezessete anos e frequentava o
colégio em sua Marselha nativa; seu primeiro livro,
publicado em 1923, três anos depois de mudar-se para
Paris, foi uma coletânea de poemas; e foi a malsucedida
submissão de alguns poemas novos à Nouvelle Revue
Française naquele mesmo ano que deu lugar à sua célebre
correspondência com Rivière. Mas Artaud logo começou a
descuidar-se da poesia em favor de outras artes. As
dimensões da poesia que ele era capaz de escrever na
década de 1920 eram muito reduzidas para aquilo que intui
ser o parâmetro de uma arte-mestre. Nos primeiros poemas,
seu fôlego é curto; a forma lírica compacta que ele emprega
não oferece saída para sua imaginação discursiva e
narrativa. Até o grande surto de escrita no período entre
1945 e 1948, em seus últimos três anos de vida, Artaud,
naquela altura indiferente à ideia de poesia como
manifestação lírica fechada, encontra uma voz de grande
fôlego, adequada ao alcance de suas necessidades
imaginativas — uma voz livre para estabelecer formas de
final aberto, como a poesia de Pound. Tal como Artaud a
concebia na década de 1920, a poesia nada tinha dessas
possibilidades ou adequações. Era pequena, e uma arte
total tinha de ser, e sentir-se, grande; tinha de ser uma
performance multivocal, e não um objeto lírico singular.
Todas as aventuras inspiradas pelo ideal de uma forma de
arte total — na música, na pintura, na escultura, na
arquitetura ou na literatura — conseguem, de um jeito ou
de outro, teatralizar. Embora Artaud não precisasse ser tão
literal, faz sentido que, em idade ainda bem precoce, ele
tenha mudado seu foco explicitamente para as artes
dramáticas. Entre 1922 e 1924, ele atuou em peças
dirigidas por Charles Dullin e pelos Pitoëff e, em 1924,
também começou uma carreira de ator de cinema. Vale
dizer que, em meados da década de 1920, eram dois os
candidatos plausíveis de Artaud para a vaga de arte total:
cinema e teatro. No entanto, já que não era como ator, e
sim como diretor, que esperava fomentar a candidatura
daquelas artes, em pouco tempo ele renunciou a uma delas
— o cinema. Artaud nunca obteve os meios para dirigir um
filme próprio e viu suas intenções traídas num filme de
1928, com outro diretor à frente, com base em um de seus
roteiros, A concha e o clérigo [de Germaine Dullac]. Sua
sensação de derrota foi reforçada em 1929 pela chegada do
cinema falado, uma guinada na história da estética dessa
arte que Artaud equivocadamente profetizou — a exemplo
da maioria dos poucos espectadores que a haviam levado a
sério na década de 1920 — que poria fim à grandeza do
cinema como forma de arte. Ele continuou a representar em
filmes até 1935, mas com pouca esperança de ter uma
chance de dirigir filmes próprios e sem maiores reflexões
acerca das possibilidades do cinema (que, a despeito do
desânimo de Artaud, persiste como o mais provável
candidato do século ao título de arte-mestre).
Do final de 1926 em diante, a busca de Artaud por uma
forma de arte total concentrou-se no teatro. Diferentemente
da poesia, uma arte feita de um material (palavras), o
teatro usa uma pluralidade deles: palavras, luz, música,
corpos, móveis, roupas. Do mesmo modo, diferentemente
do cinema, uma arte que usa apenas uma pluralidade de
linguagens (imagens, palavras, música), o teatro é carnal,
corporal. O teatro reúne os meios mais diversos —
linguagem gestual e verbal, objetos estáticos e movimento
no espaço tridimensional. Entretanto, não se torna uma
arte-mestre meramente pela abundância de meios. A tirania
dominante de certos meios sobre outros tem de ser
subvertida criativamente. Assim como Wagner contestou a
convenção de alternar árias e recitativos, que implica uma
relação hierárquica de fala, canção e música orquestral,
Artaud denunciou o costume de todo elemento da
encenação estar a serviço, de alguma maneira, das palavras
que os atores dizem uns para os outros. Ao atacar como
falsas as prioridades do teatro de diálogo, que
subordinaram o teatro à “literatura”, Artaud implicitamente
eleva ao primeiro plano os meios que caracterizam outras
formas de representação dramática, como dança, oratório,
circo, cabaré, igreja, ginásio, sala de cirurgia hospitalar,
tribunal de justiça. Contudo, anexar os recursos de outras
artes e de formas quase teatrais não fará do teatro uma
arte total. Uma arte-mestre não pode ser construída com
acréscimos; Artaud não está insistindo sobretudo em que o
teatro incorpore novos meios. Em vez disso, ele intenta
purgar o teatro do que lhe é externo ou fácil. Ao evocar um
teatro em que o ator verbalmente orientado da Europa seja
treinado mais uma vez como se fosse um “atleta” do
coração, Artaud mostra seu gosto inveterado pelo esforço
espiritual e físico — pela arte como provação.
O teatro de Artaud é uma máquina tenaz para transformar
as concepções da mente em eventos inteiramente
“materiais”, dentre os quais estão as próprias paixões.
Contra a prioridade multissecular que o teatro europeu
conferiu às palavras como meios de transmitir emoções e
ideias, ele quer mostrar a base orgânica das emoções e a
fisicalidade das ideias — no corpo dos atores. Seu teatro é
uma reação contra o estado de subdesenvolvimento em que
os corpos (e as vozes, apartadas da fala) dos atores
ocidentais permaneceram por gerações, assim como
ocorreu com as artes do espetáculo. A fim de reformular o
desequilíbrio que favorece a linguagem verbal, Artaud
propõe aproximar o treino dos atores do treino de
dançarinos, atletas, mímicos e cantores e “basear o teatro
no espetáculo, antes de tudo”, como afirma em seu
“Segundo Manifesto do Teatro da Crueldade”, publicado em
1933. Ele não está propondo substituir os encantos da
língua por cenários, figurinos, música, iluminação e efeitos
de palco espetaculares. O critério de espetáculo para Artaud
é violência sensorial em vez de encantamento sensorial; a
beleza é uma noção que ele nunca leva em consideração.
Longe de julgar que o espetacular seja desejável em si
mesmo, Artaud submete o palco a uma austeridade radical
— a ponto de excluir tudo o que corresponda a algo
diferente. “Objetos, acessórios, cenários sobre o palco
devem ser apreendidos diretamente […] não por aquilo que
representam, mas pelo que são”, escreve num manifesto de
1926. Mais tarde, em O teatro e seu duplo, ele sugere a
eliminação completa dos cenários. Seu clamor é por um
teatro “puro”, dominado pela “física do gesto absoluto, que
é em si mesmo uma ideia”.
Se a linguagem de Artaud soa vagamente platônica, é
com razão, pois, a exemplo de Platão, ele aborda a arte do
ponto de vista moralista. Na verdade, o autor não gosta do
teatro — pelo menos do concebido em todo o Ocidente, pois
o considera insuficientemente sério. Seu teatro nada teria a
ver com o objetivo de prover “diversão artificial, supérflua”,
entretenimento simples. O contraste no coração da
polêmica de Artaud não reside entre um teatro meramente
literário e um teatro de sensações fortes, mas sim entre um
teatro hedonista e um teatro moralmente rigoroso. Sua
proposta é de um teatro que Savonarola ou Cromwell
poderiam aprovar. De fato, O teatro e seu duplo pode ser
lido como um ataque indignado contra o teatro, com um
ânimo reminiscente da Carta a D’Alembert, em que
Rousseau, enfurecido com o personagem Alceste na peça O
misantropo — por aquilo que ele toma como a
ridicularização sofisticada que Molière faz da sinceridade e
da pureza moral como um fanatismo tosco —, termina
argumentando que é da natureza do teatro ser moralmente
superficial. Como Rousseau, Artaud revoltou-se contra a
vulgaridade moral de grande parte da arte. Como Platão,
achava que a arte, de modo geral, mente. Artaud não vai
banir os artistas de sua República, mas vai apoiar a arte
apenas na medida em que for uma “ação verdadeira”. A
arte deve ser cognitiva. “Nenhuma imagem me satisfaz, a
menos que seja ao mesmo tempo conhecimento”, escreve.
A arte deve ter um efeito espiritual benéfico no público —
um efeito cujo poder depende, na visão de Artaud, de um
veto a todas as formas de mediação.
É o moralista em Artaud que o faz insistir em que o teatro
seja reduzido, seja mantido o mais livre possível dos
elementos mediadores — inclusive a mediação do texto
escrito. Peças contam mentiras. Mesmo se não for esse o
caso, ao alcançar o estatuto de “obra-prima”, ela se torna
mentira. Em 1926, Artaud declara não querer criar um
teatro para apresentar peças e, assim, perpetuar ou ampliar
a lista de obras-primas consagradas da cultura. Para ele, a
herança das peças escritas é um obstáculo inútil, e a escrita
de peças teatrais é um intermediário desnecessário entre a
plateia e a verdade que pode ser apresentada nua, no
palco. Aqui, porém, seu moralismo dá uma guinada
nitidamente antiplatônica: a verdade nua é completamente
material. Artaud define o teatro como um lugar onde as
facetas obscuras do “espírito” são reveladas numa
“projeção material real”.
Para encarnar o pensamento, um teatro estritamente
concebido deve abrir mão da mediação de um texto já
escrito, concretizando, desse modo, a separação entre o
autor e o ator. (Isso afasta a mais antiga objeção contra a
profissão de ator — de que se trata de uma forma de
corrupção psicológica na qual a pessoa fala palavras que
não são suas e finge sentir emoções que são
funcionalmente insinceras.) A separação entre ator e plateia
deve ser reduzida (mas não extinta) pela violação da
fronteira entre a área do palco e as fileiras fixas de
poltronas. Artaud, com sua sensibilidade hierática, nunca
visa a uma forma de teatro na qual a plateia participa de
maneira ativa da performance; o que ele deseja é desfazer-
se das regras do decoro teatral que permitem à plateia
desassociar-se da própria experiência. Em resposta implícita
à crítica moralista de que o teatro distrai as pessoas de sua
individualidade autêntica, levando-as a preocupar-se com
problemas imaginários, Artaud quer que o teatro não se
dirija à mente dos espectadores nem a seus sentidos, mas à
sua “existência total”. Só os mais apaixonados moralistas
desejariam que as pessoas fossem ao teatro como se
fossem ao cirurgião ou ao dentista. Ainda que com a
garantia de que a operação não vai ser fatal (ao contrário
do que seria no caso de um cirurgião), a operação que a
plateia vai sofrer é “séria”, e o público não deve sair do
teatro moral ou emocionalmente “intacto”. Em outra
imagem médica, Artaud compara o teatro a uma peste.
Mostrar a verdade significa antes mostrar arquétipos do que
a psicologia individual; isso transforma o teatro num lugar
de risco, pois a “realidade arquetípica” é “perigosa”.
Membros da plateia não devem se identificar com o que se
passa no palco. Para Artaud, o teatro “verdadeiro” é uma
experiência perigosa, intimidadora — uma experiência que
exclui emoções serenas, diversão, intimidade apaziguadora.
O valor da violência emocional na arte há muito tempo
constitui um pressuposto central da sensibilidade
modernista. Antes de Artaud, entretanto, a crueldade era
exercida sobretudo com um espírito desinteressado, por sua
eficácia estética. Quando Baudelaire estabeleceu a
“experiência de choque” (para tomar emprestada a
expressão de Walter Benjamin) no centro de seu verso e de
seus poemas em prosa, não era para aprimorar nem edificar
seus leitores. Mas era exatamente essa a questão da
devoção de Artaud à estética do choque. Mediante a
exclusividade de seu compromisso com a arte paroxísmica,
ele demonstra ser tão moralista no que tange à arte quanto
o foi Platão — no entanto, trata-se de um moralista cujas
esperanças na arte negam aquelas distinções em que a
visão de Platão está alicerçada. Como se opõe à separação
entre arte e vida, opõe-se a todas as formas teatrais que
implicam uma diferença entre realidade e representação.
Ele não nega a existência dessa diferença. Contudo, ela
pode ser contornada, sugere Artaud, se o espetáculo for
suficientemente — ou seja, excessivamente — violento. A
“crueldade” da obra de arte não tem apenas uma função
diretamente moral, mas também uma função cognitiva.
Segundo o critério moralista do autor para o conhecimento,
uma imagem será verdadeira na medida em que for
violenta.
A visão de Platão se apoia na suposição da diferença
intransponível entre vida e arte, realidade e representação.
Na famosa imagem no Livro VII da República, Platão vincula
a ignorância à vida numa caverna iluminada de forma
engenhosa, para cujos habitantes a vida é um espetáculo —
um espetáculo que consiste apenas em sombras de eventos
reais. A caverna é um teatro. E a verdade (a realidade) se
encontra do lado de fora, no sol. Na imagem platônica de O
teatro e seu duplo, Artaud adota uma visão mais atenuada
das sombras e dos espetáculos. Ele supõe que existem
sombras (e espetáculos) verdadeiras e falsas e que
podemos aprender a diferenciá-las. Longe de identificar a
sabedoria com uma emergência da caverna para
contemplar a realidade à luz do meio-dia, Artaud acha que a
consciência moderna sofre de falta de sombras. O remédio é
permanecer dentro da caverna, mas inventar espetáculos
melhores. O teatro por ele proposto vai servir à consciência
“nomeando e dirigindo sombras” e destruindo “sombras
falsas”, a fim de “preparar o caminho para uma nova
geração de sombras”, em torno das quais será construído o
“verdadeiro espetáculo da vida”.
Sem sustentar uma visão hierárquica da mente, Artaud
suprime a distinção superficial, acalentada pelos
surrealistas, entre racional e irracional. Ele não advoga a
visão familiar que louva a paixão em detrimento da razão, a
carne em detrimento da mente, a mente exaltada por
drogas em detrimento da mente prosaica, a vida dos
instintos em detrimento dos raciocínios implacáveis. O que
ele defende é uma relação alternativa com a mente. Essa
era a atração, bastante divulgada, que as culturas não
ocidentais exerciam sobre Artaud, mas não foi o que o levou
às drogas. (Era para mitigar as enxaquecas e outras dores
neurológicas que sofreu, ao longo de toda a vida, e não para
expandir a consciência, que Artaud usava opiáceos e
acabou se tornando dependente.)
Por um breve tempo, Artaud tomou o estado mental
surrealista como um modelo para a consciência unificada,
não dualista, que almejava. Depois de rejeitar o surrealismo
em 1926, ele repropôs a arte — especificamente o teatro —
como um modelo mais rigoroso. A função que ele confere ao
teatro é sanar a cisão entre linguagem e carne. Este era o
tema de suas ideias para a formação de atores: uma
formação antitética àquela familiar, que não os ensina nem
a se mexer nem ao que fazer com suas vozes, além de falar.
(Podem berrar, grunhir, cantar, recitar.) É também o tema
de sua dramaturgia ideal. Longe de defender um
irracionalismo fácil que polarizasse razão e sentimento,
Artaud imagina o teatro como o lugar onde o corpo
renasceria em pensamento e onde o pensamento renasceria
no corpo. Ele diagnostica sua própria doença como uma
cisão dentro da mente (“Minha consciência agregada está
fraturada”, escreve) que internaliza a cisão entre mente e
corpo. Os escritos de Artaud sobre teatro podem ser lidos
como um manual psicológico sobre a reunificação de mente
e corpo. O teatro tornou-se sua metáfora suprema da vida
da mente autocorretora, espontânea, carnal, inteligente.
Na verdade, a imagística de Artaud para o teatro em O
teatro e seu duplo, escrito na década de 1930, ecoa
imagens que ele usa nos escritos do início e de meados da
década de 1920 — como em O pesa-nervos, em cartas para
René e Yvonne Allendy e em Fragmentos de um diário do
Inferno — para descrever a própria dor mental. Artaud se
queixa de que sua consciência não tem fronteiras nem
posição fixa; privada da língua ou em luta contínua contra
ela; fraturada — de fato, contaminada — por
descontinuidades; ou sem localização física ou em
constante mudança de localização (e de extensão no tempo
e no espaço); sexualmente obcecada; num estado de
infestação violenta. O teatro de Artaud é caracterizado pela
ausência de qualquer posicionamento espacial fixo dos
atores vis-à-vis uns em face dos outros, e dos atores em
relação ao público; por uma fluidez de movimento e de
alma; pela mutilação da língua e pela transcendência da
língua no grito do ator; pela carnalidade do espetáculo; por
seu tom obsessivamente violento. O artista, é claro, não
estava simplesmente reproduzindo sua angústia interior. Em
vez disso, fornecia uma versão sistematizada e positiva
dessa angústia. O teatro é uma imagem projetada
(necessariamente, uma dramatização ideal) da vida interior
perigosa, “desumana”, que o possuía, com que ele lutava
tão heroicamente para transcender e para afirmar. É
também uma técnica homeopática para tratar essa vida
interior emaranhada e arrebatada. Por se tratar de uma
espécie de cirurgia emocional e moral na consciência, deve
necessariamente, segundo Artaud, ser “cruel”.
Quando Hume, de forma expressa, vincula a consciência a
um teatro, a imagem é moralmente neutra e inteiramente
a-histórica; ele não está pensando em um tipo específico de
teatro, ocidental ou outro, e julgaria irrelevante qualquer
lembrança de que o teatro se desenvolve. Para Artaud, a
parte decisiva da analogia está em que o teatro — e a
consciência — pode mudar. Pois não só a consciência parece
um teatro, como, segundo Artaud o elabora, o teatro parece
uma consciência e, portanto, se presta a ser convertido num
teatro-laboratório no qual se fazem pesquisas para
transformar a consciência.
Os escritos de Artaud sobre teatro são transformações de
suas aspirações em relação à sua própria mente. Ele quer
que o teatro (como a mente) seja libertado de seu
confinamento “na linguagem e nas formas”. Um teatro
libertado, supõe ele, liberta. Ao dar vazão a paixões radicais
e pesadelos culturais, o teatro os exorciza. Mas o teatro de
Artaud não é, de forma nenhuma, simplesmente catártico.
Pelo menos em sua intenção (a prática de Artaud nas
décadas de 1920 e 1930 é outra história), seu teatro tem
pouco em comum com o antiteatro do ataque jocoso e
sádico contra o público, concebido por Marinetti e pelos
artistas dada, pouco antes e depois da Primeira Guerra
Mundial. A agressividade proposta por ele é controlada e
complexamente orquestrada, uma vez que ele supõe que a
violência sensorial pode ser uma forma de inteligência
corporificada. Ao insistir na função cognitiva do teatro (o
drama, escreve Artaud em 1923, num ensaio sobre
Maeterlinck, é “a mais elevada forma de atividade mental”),
ele rejeita a aleatoriedade. (Mesmo em seus tempos
surrealistas, Artaud não adota a prática da escrita
automática.) O teatro, assinala ele de vez em quando, deve
ser “científico”; com isso, ele quer dizer que o teatro não
deve ser arbitrário, meramente expressivo ou espontâneo
ou pessoal ou divertido, mas deve, sim, abraçar um
propósito totalmente sério e, em última instância, religioso.
A insistência de Artaud na seriedade da situação teatral
assinala também sua diferença em relação aos surrealistas,
que pensavam com muito menos precisão na arte, em sua
terapia e na sua missão “revolucionária”. Os surrealistas,
cujos impulsos moralizantes eram consideravelmente
menos intransigentes do que os de Artaud, e que não
tinham nenhum sentimento de premência moral para a
criação da arte, não mostravam interesse em buscar os
limites de nenhuma forma de arte singular. Tendiam a ser
turistas, não raro turistas de gênio, no maior número de
artes possível, acreditando que o impulso da arte não se
altera onde quer que se manifeste. (Assim, Cocteau, que
teve a carreira surrealista ideal, chamava tudo o que fazia
de “poesia”.) A audácia e a autoridade maior de Artaud
como pensador da estética resultam, em parte, do fato de
que, embora também tenha praticado várias artes,
recusando-se, como os surrealistas, a se inibir pela
distribuição da arte em diversos meios, ele não encara as
diversas artes como formas equivalentes do mesmo impulso
proteiforme. Suas atividades, entretanto, por mais dispersas
que sejam, sempre refletem a busca de uma forma de arte
total, na qual as outras formas de arte se fundiriam — assim
como a própria arte se fundiria com a vida.
Paradoxalmente, foi essa mesma negação de
independência aos diferentes territórios da arte que
levaram Artaud a fazer o que nenhum dos surrealistas
jamais havia tentado: repensar por completo a forma de
uma arte. Sobre essa arte, o teatro, ele teve um impacto tão
profundo que se pode dizer que o curso de todo o teatro
sério recente na Europa Ocidental e nas Américas está
dividido em dois períodos — antes e depois de Artaud. Hoje,
ninguém que trabalhe com teatro está alheio ao impacto
das ideias específicas dele sobre o corpo e a voz do ator, o
uso da música, o papel do texto escrito, a reciprocidade
entre o espaço ocupado pelo espetáculo e o espaço do
público. Foi ele quem modificou o entendimento do que era
sério, do que valia a pena fazer. Brecht é o outro único
escritor de teatro do século cuja importância e profundidade
podem rivalizar com as de Artaud. Mas este não conseguiu
afetar a consciência do teatro moderno sendo um grande
diretor, como foi o caso de Brecht. Sua influência não se
apoia nas evidências de suas produções. Sua obra prática
no teatro, entre 1926 e 1935, era aparentemente tão pouco
sedutora que não deixou quase nenhum vestígio, ao passo
que a ideia de teatro, em nome da qual ele impunha suas
produções a um público nada receptivo, tem se tornado
cada vez mais forte.

A partir de meados da década de 1920, a obra de Artaud


é animada pela ideia de uma mudança radical na cultura.
Sua imagística implica uma visão antes médica do que
histórica da cultura: a sociedade está enferma. A exemplo
de Nietzsche, ele se concebia como um médico da cultura —
bem como seu paciente mais dolorosamente enfermo. O
teatro que planejava é uma operação de combate contra a
cultura estabelecida, um ataque contra o público burguês;
ele pretendia mostrar às pessoas que elas estão mortas e as
despertaria de seu estupor. O homem que seria devastado
por tratamentos repetidos de choques elétricos, durante os
últimos três dos nove anos consecutivos que passou em
hospitais para doentes mentais, propunha que o teatro
administrasse à cultura uma espécie de terapia de choque.
Artaud, que muitas vezes se queixava de se sentir
paralisado, queria que o teatro renovasse o “sentido da
vida”.
Até certo ponto, as prescrições de Artaud se parecem com
muitos programas de renovação cultural que surgiram
periodicamente nos últimos dois séculos da cultura
ocidental, em nome da simplicidade, elã vital, naturalidade,
abandono dos artifícios. Seu diagnóstico de que vivemos
numa “cultura petrificada”, inorgânica — cuja falta de vida
ele associa à predominância do mundo da escrita —, pouco
tinha de novidade, quando ele o propôs; entretanto, muitas
décadas depois, seu poder ainda não se esgotou. A
argumentação de Artaud em O teatro e seu duplo está
estreitamente relacionada à de Nietzsche, que, em O
nascimento da tragédia, lamenta o definhamento do puro
teatro arcaico de Atenas como efeito da filosofia socrática —
com a introdução de personagens que raciocinam. (Outro
paralelo com Artaud: o que fazia do jovem Nietzsche um
wagneriano fervoroso era a ideia que Wagner tinha da ópera
como Gesamtkunstwerk — a mais completa afirmação,
antes de Artaud, da ideia de um teatro total.)
Assim como Nietzsche voltava a atenção para as
cerimônias dionisíacas que precederam a dramaturgia de
Atenas, secularizada, racionalizada e verbal, Artaud buscou
seus modelos no teatro mágico e religioso não ocidental.
Sua proposta do Teatro da Crueldade não é uma ideia nova
no âmbito do teatro ocidental. Isso “postulava […] outro tipo
de civilização”. Ele não está se referindo a um tipo
específico de civilização, mas à ideia de civilização que tem
inúmeras bases na história — uma síntese de elementos de
sociedades do passado e de sociedades não ocidentais e
primitivas do presente. A preferência por “outra forma de
civilização” é essencialmente eclética. (Ou seja, é um mito
gerado por necessidades morais específicas.) A inspiração
das ideias de Artaud sobre o teatro provinha do Sudeste
Asiático: de ver o teatro cambojano em Marselha em 1931.
Contudo, o estímulo pode muito bem ter resultado de sua
observação do teatro de uma tribo de Daomé ou das
cerimônias xamanísticas dos indígenas da Patagônia. O que
conta é que a outra cultura seja genuinamente outra; ou
seja, não ocidental e não contemporânea.
Em outras ocasiões, Artaud seguiu as três rotas
imaginativas mais frequentemente trilhadas da alta cultura
do Ocidente rumo a “outra forma de civilização”. Primeiro,
veio aquilo que, logo depois da Primeira Guerra Mundial,
ficou conhecido como guinada para o Oriente, nos escritos
de Hesse, de René Daumal e dos surrealistas. Na sequência,
surgiu o interesse por uma parte suprimida do passado
ocidental — tradições abertamente mágicas e espirituais
heterodoxas. E, em terceiro lugar, a descoberta da vida dos
chamados povos primitivos. O que une o Oriente, as
tradições ocultas e antinomianas do Ocidente e o
comunitarismo exótico de tribos anteriores à escrita é o fato
de estarem distantes não só no espaço como no tempo. Os
três corporificam os valores do passado. Embora os
tarahumaras do México ainda existam, sua sobrevivência
em 1936, quando Artaud os visitou, já era um anacronismo;
os valores que eles representam pertencem ao passado
tanto quanto os valores das religiões de mistérios do antigo
Oriente Médio, que ele estudou, enquanto escrevia seu
romance histórico Heliogábalo, em 1933. As três versões de
“outra forma de civilização” testemunham a mesma busca
de uma sociedade integrada em torno de temas
francamente religiosos e alheios aos seculares. O que
interessa ao autor é o Oriente do budismo (veja-se sua
“Carta às escolas budistas”, escrita em 1925) e da ioga;
nunca seria o de Mao Tsé-tung, por mais que Artaud falasse
em revolução. (A Longa Marcha estava em curso na mesma
ocasião em que ele lutava para pôr em cena, em Paris, as
produções de seu Teatro da Crueldade.)
Essa nostalgia de um passado muitas vezes tão eclético a
ponto de ser bastante difícil de situar historicamente é uma
faceta da sensibilidade modernista que, em décadas
recentes, tem parecido cada vez mais suspeita. É um
refinamento supremo da visão colonialista: uma exploração
imaginativa de culturas não brancas, cuja vida moral ela
simplifica de maneira drástica, cuja sabedoria saqueia e
parodia. Para essa crítica, não existe nenhuma resposta
convincente. Mas, à crítica de que a busca de “outra forma
de civilização” se recusa a submeter-se à desilusão do
conhecimento histórico acurado, é possível dar uma
resposta. Ela nunca buscou esse conhecimento. As outras
civilizações são usadas como modelos e são vantajosas
como estímulos para a imaginação porque não são
acessíveis. São, ao mesmo tempo, modelos e mistérios.
Tampouco essa busca pode ser desconsiderada como
fraudulenta por ser insensível às forças políticas que
causam sofrimento humano. De forma consciente, ela se
opõe a essa sensibilidade. Tais formas de nostalgia partem
de uma visão que é deliberadamente não política — por
maior que seja a frequência com que empregue a palavra
“revolução”.
Um resultado da aspiração a uma arte total que decorre
da negação do abismo entre arte e vida foi fomentar a
noção da arte como instrumento de revolução. O outro
resultado foi a identificação tanto da arte como da vida com
diversão pura, desinteressada. Para cada Vertov ou Breton,
existem um Cage ou um Duchamp ou um Rauschenberg.
Embora Artaud seja próximo de Vertov e de Breton, por
considerar que suas atividades fazem parte de uma
revolução mais ampla, como autodeclarado revolucionário
nas artes, ele, na realidade, se situa entre os dois campos —
sem interesse em satisfazer o impulso político e o impulso
lúdico. Consternado quando Breton tentou vincular o
programa surrealista ao marxismo, Artaud rompeu com os
surrealistas em decorrência do que julgava ser uma traição,
nas mãos da política, de uma revolução essencialmente
“espiritual”. Antiburguês quase que por reflexo (como quase
todos os artistas na tradição modernista), a perspectiva de
transferir o poder da burguesia para o proletariado nunca o
atraiu. De seu ponto de vista confessamente “absoluto”,
uma mudança na estrutura social não iria alterar nada. A
revolução que Artaud subscreve nada tem a ver com
política; ela é concebida explicitamente como um esforço
para redirecionar a cultura. Artaud não só compartilha a
crença difundida (e equivocada) na possibilidade de uma
revolução cultural desvinculada da mudança política, como
supõe que a única revolução cultural genuína não se
relacionaria com política.
O chamado de Artaud em favor de uma revolução cultural
sugere um programa de regressão heroica semelhante ao
formulado por todos os grandes moralistas antipolíticos de
nosso tempo. A bandeira da revolução cultural não é
monopólio da esquerda marxista ou dos maoistas. Ao
contrário, ela atrai em particular pensadores e artistas
apolíticos (como Nietzsche, Spengler, Pirandello, Marinetti,
D. H. Lawrence, Pound), os quais, em geral, se tornaram
direitistas entusiasmados. Na esquerda política, há poucos
defensores da revolução cultural. (Tatlin, Gramsci e Godard
estão entre os que importam.) Um radicalismo puramente
“cultural” é ou ilusório ou, no fim, conservador em suas
implicações. Os planos de Artaud para subverter e
revitalizar a cultura, seu anseio por um tipo novo de
personalidade humana, ilustram os limites de todo
pensamento sobre revolução que seja antipolítico.
A revolução cultural que se recusa a ser política não pode
chegar a lugar nenhum, a não ser tornar-se uma teologia da
cultura — e uma soteriologia. “Aspiro a outra vida”, declara
Artaud em 1927. Toda a sua obra versa sobre salvação, e o
teatro foi o meio de salvar almas sobre o qual ele meditou
mais profundamente. A transformação espiritual é um
objetivo para o qual o teatro foi muitas vezes convocado
neste século, pelo menos desde Isadora Duncan. No
exemplo mais recente e solene, o teatro-laboratório de Jerzy
Grotowski, toda a atividade de construir uma companhia de
teatro, ensaiar, montar peças, serve à reeducação espiritual
dos atores; a presença de um público só é necessária para
testemunhar as proezas da autotranscendência
representada pelos atores. No Teatro da Crueldade de
Artaud, é o público que nasce duas vezes — uma afirmação
não comprovada, já que ele nunca pôs seu teatro em
prática (como fez Grotowski na década de 1960, na Polônia).
Como objetivo, isso parece bem menos viável do que a
disciplina que Grotowski tem em mira. Por mais sensível que
seja em relação à blindagem física e espiritual do ator
formado de maneira tradicional, Artaud nunca examina de
perto como a reeducação radical por ele proposta afetará o
ator também como ser humano. Seu pensamento está todo
voltado para o público.
Como talvez fosse fácil de prever, o público se revelou
uma decepção. As produções de Artaud nos dois teatros que
fundou, o Teatro Alfred Jarry e o Teatro da Crueldade,
produziram pouco envolvimento. Todavia, mesmo
completamente insatisfeito com a natureza de seu público,
Artaud reclamava muito mais do apoio simbólico que
recebeu do teatro sério dominante de Paris (ele manteve
uma correspondência longa e encarniçada com Louis
Jouvet), da dificuldade para produzir seus projetos e da
insignificância de seus êxitos, quando as obras chegavam a
ser encenadas. Artaud estava amargurado, o que é
compreensível, porque, apesar do número de patronos
ilustres e de amigos famosos que eram escritores, pintores,
editores, diretores — a quem ele não cansava de
atormentar, em busca de apoio moral e de dinheiro —, sua
obra, quando produzida, obtinha apenas uma pequena
parcela da aclamação convencional, reservada a eventos
difíceis, devidamente patrocinados, vistos pelo público de
praxe dos itens de consumo da alta cultura. Sua produção
mais ambiciosa e articulada, no Teatro da Crueldade, foi Os
Cenci, peça de sua autoria que foi encenada durante
dezessete dias, na primavera de 1935. Porém, mesmo se
tivesse permanecido em cartaz por um ano, Artaud se
mostraria igualmente convencido de que era um fracasso.
Na cultura moderna, foi armado um poderoso mecanismo
segundo o qual uma obra dissidente, depois de adquirir um
estatuto inicial semioficial de “avant-garde”, é aos poucos
absorvida e vista como aceitável. Mas as atividades práticas
de Artaud no teatro se qualificavam muito pouco para esse
tipo de cooptação. Os Cenci não é um texto de qualidade,
mesmo pelos padrões da dramaturgia convulsiva que ele
advogava, e o interesse da produção dessa peça, segundo
todos os relatos, repousa em ideias que ela sugeria, mas
não corporificava de fato. O que Artaud fez no palco, como
diretor e ator principal em suas produções, era demasiado
idiossincrático, estreito e histérico para persuadir. Ele
exercia influência por meio de suas ideias sobre o teatro,
uma vez que parte constitutiva da autoridade dessas ideias
estava precisamente na sua incapacidade de colocá-las em
prática.
Fortalecido por seu apetite insaciável por novos objetos
de consumo, o público educado das cidades grandes se
habituou à angústia modernista e aprendeu muito bem a
ludibriá-la: todo negativo pode se tornar um positivo. Desse
modo, Artaud, que insistia em que o repertório das obras-
primas fosse jogado na lixeira, tornou-se extremamente
influente como criador de um repertório alternativo, uma
tradição antagônica de peças. Seu grito acerbo — “Basta de
obras-primas!” — foi entendido como algo mais conciliador
— “Basta dessas obras-primas!”. Porém, essa reformulação
positiva de seu ataque contra o repertório tradicional não
ocorreu sem a ajuda da prática de Artaud (como algo
distinto de sua retórica). Apesar de sua insistência reiterada
de que o teatro deveria prescindir das peças, sua própria
obra no teatro estava bem longe de não contar com
algumas peças. Ele batizou sua primeira companhia teatral
em homenagem ao autor de Ubu rei. A par de seus próprios
projetos — A conquista do México, A captura de Jerusalém
(que não foi montada) e Os Cenci —, houve diversas obras-
primas, fora de moda ou obscuras na época, que Artaud
quis reviver. Ele chegou a montar as duas grandes “peças
de sonho” de Calderón e Strindberg (A vida é sonho e O
sonho) e, ao longo dos anos, tinha a esperança de também
dirigir produções de Eurípides (As bacantes); de Sêneca
(Tiestes); Arden of Feversham; de Shakespeare (Macbeth,
Ricardo II, Tito Andrônico); de Tourneur (A tragédia do
vingador); de Webster (O diabo branco, A duquesa de Malfi);
de Sade (uma adaptação de Eugénie de Franval); de
Büchner (Woyzeck); e de Hölderlin (A morte de
Empédocles). A seleção de peças delineia uma nova
sensibilidade familiar. Com os dadaístas, Artaud formulou o
gosto que, mais cedo ou mais tarde, acabaria se tornando o
gosto sério padrão — fora do âmbito dos grandes teatros,
em teatros universitários. No que se referia ao passado,
significava destronar Sófocles, Corneille e Racine em favor
de Eurípides e dos sombrios elisabetanos; o único escritor
francês morto na lista de Artaud é Sade. Nos últimos quinze
anos, esse gosto foi representado nos happenings e no
Teatro do Ridículo; nas peças de Genet, Jean Vauthier,
Arrabal, Carmelo Bene e Sam Shepard; e em produções
célebres como o Frankenstein do Living Theater, As freiras,
de Eduardo Manet (dirigida por Roger Blin), A barba, de
Michael McClure, O olhar do surdo, de Robert Wilson, e
ac/dc, de Heathcote Williams. O que quer que Artaud tenha
feito para subverter o teatro e para segregar sua obra de
outras correntes meramente estéticas no interesse de
estabelecer sua hegemonia espiritual, isso ainda podia ser
assimilado como uma nova tradição teatral, e no geral foi o
que aconteceu.
Se o projeto de Artaud, na realidade, não transcende a
arte, pode-se dizer que ele pressupõe um objetivo que a
arte é capaz de sustentar apenas por um tempo. Todo uso
da arte numa sociedade secular para fins de transformação
espiritual, na medida em que isso é tornado público, é
inevitavelmente despojado de seu autêntico poder
antagônico. Afirmado em linguagem religiosa de forma
direta, ou mesmo indireta, o projeto é nitidamente
vulnerável. Mas projetos ateístas de transformação
espiritual, como a arte política de Brecht, também se
comprovaram cooptáveis. Só algumas poucas situações na
sociedade moderna secular parecem radicais e
incomunicantes o suficiente para ter alguma chance de
escapar da cooptação. A loucura é uma delas. O sofrimento
que ultrapassa o imaginável (como o Holocausto) é outra.
Uma terceira, claro, é o silêncio. Uma forma de deter esse
inexorável processo de ingestão é romper a comunicação (e
mesmo a anticomunicação). Um esgotamento do impulso
para usar a arte como meio de transformação espiritual é
quase inevitável — como na tentação sentida por todo autor
moderno quando confrontado com a indiferença ou a
mediocridade do público, de um lado, ou com a facilidade
do sucesso, de outro, para parar de escrever de uma vez
por todas. Desse modo, não foi por falta de dinheiro ou de
apoio na profissão que, depois de montar Os Cenci, em
1935, Artaud abandonou o teatro. O projeto de criar, numa
cultura secular, uma instituição capaz de manifestar uma
realidade escura e oculta é uma contradição. Ele nunca foi
capaz de fundar o seu Bayreuth — e bem que gostaria disso
—, porque suas ideias são do tipo que não podem ser
institucionalizadas.
No ano seguinte ao fracasso de Os Cenci, Artaud
embarcou rumo ao México para testemunhar que a
realidade demoníaca é uma cultura “primitiva” ainda
existente. Malsucedido no esforço de corporificar essa
realidade num espetáculo a ser imposto sobre os demais,
ele se tornou um espectador de si mesmo. De 1935 em
diante, perdeu contato com a promessa de uma forma de
arte ideal. Seus escritos, sempre didáticos, adotaram um
tom profético e faziam referências constantes a sistemas
mágicos esotéricos, como a cabala e o tarô. Ao que parece,
Artaud passou a crer que podia exercer diretamente, em si
mesmo, o poder emocional (e alcançar a eficácia política)
que havia almejado para o teatro. Em meados de 1937, ele
viajou para as ilhas de Aran, com o plano obscuro de
explorar ou confirmar seus poderes mágicos. O muro entre
arte e vida continuava abolido. Mas, em vez de tudo ser
assimilado em arte, o movimento oscilou para o lado
oposto; e Artaud se transportou, sem mediação, para dentro
de sua própria vida — um perigoso objeto galopante, a nave
de uma fome furiosa de transformação total, que jamais
conseguiria encontrar sua nutrição adequada.

Nietzsche assumiu com frieza uma teologia ateísta do


espírito, uma teologia negativa, um misticismo sem Deus.
Artaud vagava no labirinto de um tipo específico de
sensibilidade religiosa, a gnóstica. (Centrais para o
mitraísmo, o maniqueísmo, o zoroastrismo e o budismo
tântrico, mas impelidas no sentido das margens heréticas
do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, as temáticas
gnósticas perenes aparecem em diferentes religiões em
diferentes terminologias, porém com certas linhas em
comum.) As energias predominantes do gnosticismo provêm
da angústia metafísica e do agudo mal-estar psicológico —
a sensação de estar abandonado, de ser alheio, de ser
possuído por forças demoníacas que predam o espírito
humano num cosmos do qual o divino se retirou. O cosmos
é, em si, um campo de batalha, e cada vida humana expõe
o conflito entre as forças repressivas e persecutórias
exteriores e o espírito individual febril, martirizado, que
busca a redenção. As forças demoníacas do cosmos existem
como matéria física. E também como “leis”, tabus,
proibições. Desse modo, nas metáforas gnósticas, o espírito
é abandonado, caído, aprisionado em um corpo, e o
indivíduo é reprimido, tolhido por estar “no mundo” — o que
poderíamos chamar de “sociedade”. (Um traço de todo
pensamento gnóstico é polarizar o espaço interior, a psique,
e um vago espaço exterior, “o mundo” ou “sociedade”, que
é identificado com a repressão — tomando pouco ou
nenhum conhecimento da importância dos níveis de
mediação das várias esferas sociais e instituições.) O eu, ou
espírito, se descobre no rompimento com o “mundo”. A
única liberdade possível é inumana, desesperada. Para ser
salvo, o espírito precisa ser removido de seu corpo,
removido de sua personalidade, removido do “mundo”. E a
liberdade requer uma preparação ardorosa. Quem procura
isso deve aceitar a humilhação extrema e também ostentar
grande orgulho espiritual. Numa versão, a liberdade
acarreta o ceticismo total. Noutra, acarreta a libertinagem
— a prática da arte da transgressão. Para ser livre do
“mundo”, é preciso romper a lei moral (ou social). Para
transcender o corpo, é preciso atravessar um período de
depravação física e de blasfêmia verbal, apoiado no
princípio de que só quando a moralidade for
deliberadamente desconsiderada o indivíduo será capaz de
sofrer uma transformação radical: entrar num estado de
graça que deixa todas as categorias morais para trás. Em
ambas as versões do drama gnóstico exemplar, alguém que
é salvo está além do bem e do mal. Fundado numa
exacerbação de dualismos (mente-corpo, matéria-espírito,
bem-mal, escuridão-luz), o gnosticismo promete a abolição
de todos os dualismos.
O pensamento de Artaud reproduz a maioria dos temas
gnósticos. Por exemplo, esse ataque contra o surrealismo na
polêmica escrita em 1927 repousa numa linguagem de
drama cósmico, na qual ele se refere à necessidade de um
“deslocamento do centro espiritual do mundo” e à origem
de toda matéria num “desvio espiritual”. Em todos os seus
escritos ele fala em ser perseguido, invadido e conspurcado
por poderes alienígenas; sua obra concentra-se nas
vicissitudes do espírito, à medida que descobre
constantemente sua falta de direitos na sua condição de ser
“matéria”. Artaud é obcecado pela matéria física. De O
pesa-nervos e A arte e a morte, escritos na década de 1920,
a Aqui jaz e a peça radiofônica Para dar um fim no juízo de
Deus, escritos em 1947-8, a prosa e a poesia de Artaud
retratam um universo atulhado de matéria (excremento,
sangue, esperma), um mundo conspurcado. Os poderes
demoníacos que governam o mundo estão encarnados na
matéria, e a matéria é “escura”. Essencial ao teatro
concebido por Artaud — um teatro dedicado ao mito e à
magia — é sua crença de que todos os grandes mitos são
“escuros” e de que toda magia é negra. Mesmo quando a
vida está ossificada pela linguagem petrificada, degradada,
verbal em sua essência, insiste Artaud, a realidade repousa
logo abaixo — ou um pouco além. A arte pode canalizar
esses poderes, pois eles fervilham em todas as psiques. Foi
a busca desses poderes escuros que o levou para o México
em 1936 para testemunhar os ritos de mescal dos
tarahumaras. A salvação individual requer travar contato
com os poderes malignos, submetendo-se a eles e sofrendo
em suas mãos, a fim de sobre eles triunfar.
O que Artaud admira no teatro balinês, escreve em 1931,
é o fato de nada ter a ver com “entretenimento”, mas,
acima de tudo, revelar “algo do teor cerimonial de um rito
religioso”. Ele foi um dos muitos diretores deste século que
procuraram recriar o teatro como um ritual, conferir às
apresentações teatrais a solenidade dos procedimentos
religiosos, no entanto, de modo geral, o que se encontra é
apenas a ideia mais vaga e promíscua de religião e de rito,
que imputa o mesmo valor artístico à missa católica e à
dança da chuva dos hopi. A visão de Artaud, embora não
mais viável do que as demais, na sociedade secular
moderna, pelo menos é mais específica quanto ao tipo de
rito envolvido. Seu teatro objetiva criar um rito gnóstico
secularizado. Não é uma expiação. Não é um sacrifício, ou,
se é, os sacrifícios são, todos eles, metáforas. Trata-se de
um rito de transformação — a performance comunitária de
um ato violento de alquimia espiritual. Artaud conclama o
teatro a renunciar ao “homem psicológico, com seu caráter
e seus sentimentos bem dissecados, e ao homem social,
submisso às leis e desfigurado pelas religiões e preceitos”, e
dedicar-se apenas ao “homem total” — uma ideia
completamente gnóstica.
O que quer que Artaud almeje como “cultura”, seu
pensamento, em última instância, exclui tudo, a não ser a
vida privada. A exemplo dos gnósticos, ele é um
individualista radical. Desde seus primeiros escritos, sua
preocupação recai sobre a metamorfose do estado
“interior” da alma. (O eu é, por definição, um “eu interior”.)
Relações mundanas, supõe Artaud, não tocam o cerne do
indivíduo; a busca de redenção solapa todas as soluções
sociais.
O único instrumento de redenção de caráter
possivelmente social que Artaud considera é a arte. Seu
desinteresse por um teatro humanístico, um teatro sobre
indivíduos, se deve ao fato de acreditar que tal teatro não
pode efetivar nenhuma transformação radical. Para ser
espiritualmente libertador, pensa Artaud, o teatro precisa
expressar impulsos que são mais amplos do que a vida. Mas
isso demonstra apenas que sua ideia de liberdade é, em si,
gnóstica. O teatro serve como uma “individualidade”
inumana, uma liberdade “inumana”, como diz ele em O
teatro e seu duplo — o oposto exato da ideia liberal e
sociável de liberdade. (Artaud achava o pensamento de
Breton raso — ou seja, otimista, estético — porque este não
tem nem um estilo gnóstico nem uma sensibilidade
gnóstica. Breton era atraído pela esperança de reconciliar
as demandas da liberdade individual com a necessidade de
expandir e equilibrar a personalidade, mediante emoções
generosas, compartilhadas; a visão anarquista, formulada
neste século com sutileza e grande autoridade por Breton e
Paul Goodman, é uma forma de pensamento conservador
humanístico — obstinadamente sensível a tudo o que é
repressivo e torpe, ao mesmo tempo que permanece fiel
aos limites que protegem o crescimento humano e o prazer.
A marca do pensamento gnóstico é enfurecer-se contra
todos os limites. Mesmo aqueles que salvam.) “Toda
liberdade verdadeira é escura”, afirma Artaud em O teatro e
seu duplo, “e é infalivelmente identificada com a liberdade
sexual, que também é escura, embora não saibamos com
exatidão por quê.”
Para ele, tanto o obstáculo para a liberdade como o lugar
da liberdade repousam no corpo. Sua atitude compreende o
alcance temático gnóstico familiar: a afirmação do corpo, a
revulsão do corpo, o desejo de transcender o corpo, a busca
do corpo redimido. “Nada me toca, nada me interessa”,
escreve, “exceto aquilo que se dirige diretamente à minha
carne.” O corpo, porém, é sempre um problema; Artaud
nunca o define com base em sua aptidão para o prazer
sensual, mas sempre o faz em termos de sua aptidão
elétrica para a inteligência e a dor. Da mesma forma que
lamenta, em A arte e a morte, que sua mente ignora seu
corpo, que ele carece de ideias condizentes com sua
“condição de animal físico”, assim também ele se queixa de
que seu corpo ignora sua mente. Na imagística do mal-estar
de Artaud, corpo e espírito impedem um ao outro de serem
inteligentes. Ele fala dos “gritos intelectuais” que sobem de
sua carne, fonte do único saber em que confia. O corpo tem
uma mente. “Existe uma mente na carne”, escreve, “uma
mente rápida como um raio.”
É aquilo que Artaud espera intelectualmente do corpo que
leva a esse afastamento em relação ao corpo — o corpo
ignorante. De fato, uma atitude implica a outra. Muitos
poemas exprimem uma repulsa ao corpo e acumulam
evocações repugnantes do sexo. “Um homem de verdade
não tem sexo”, escreve Artaud, num texto publicado em
dezembro de 1947. “Ele ignora esse pecado abominável,
estupefaciente.” A arte e a morte talvez seja, entre suas
obras, a mais obcecada por sexo, mas Artaud demonizava a
sexualidade em tudo o que escrevia. A presença mais
comum é um corpo obsceno e monstruoso — “esse corpo
imprestável, feito de carne e esperma louco”, clama ele em
Aqui jaz. Contra esse corpo caído, conspurcado pela
matéria, ele opõe a conquista fantasiosa de um corpo puro
— despojado de órgãos e de desejos vertiginosos. Mesmo
quando insiste em que não é nada mais que seu corpo,
Artaud exprime um anseio fervoroso de transcendê-lo por
completo, de abandonar sua sexualidade. Em outra
imagem, o corpo deve se tornar inteligente, deve se
reespiritualizar. Ao afastar-se do corpo conspurcado, ele
apela ao corpo redimido, no qual pensamento e carne serão
unificados: “É por meio da pele que a metafísica será levada
a entrar de novo em nossas mentes”; só a carne pode suprir
“uma compreensão definitiva da Vida”. A tarefa gnóstica do
teatro por ele concebida consiste em nada menos do que
criar seu corpo redimido — um projeto mítico que ele
explica ao se referir à última das grandes sistemáticas
gnósticas, a alquimia renascentista. A exemplo dos
alquimistas, obcecados pelo problema da matéria, em
termos classicamente gnósticos, que buscavam métodos de
transformar um tipo de matéria em outro tipo de matéria
(mais elevada, espiritualizada), Artaud pretende criar uma
arena alquímica que opera na carne tanto quanto no
espírito. O teatro é o exercício de um “ato terrível e
perigoso”, diz ele em “Teatro e Ciência” — “A REAL

TRANSFORMAÇÃO ORGÂNICA E FÍSICA DO CORPO HUMANO”.

As principais metáforas de Artaud são classicamente


gnósticas. Corpo é mente feita “matéria”. Assim como o
corpo oprime e deforma a alma, a linguagem também o faz,
por ser pensada como “matéria”. O problema da linguagem,
como o artista o apresenta para si mesmo, é idêntico ao da
matéria. A repugnância em relação ao corpo e a repulsa das
palavras são duas formas do mesmo sentimento. Nas
equivalências estabelecidas pela imagística de Artaud, a
sexualidade é a atividade corrupta, decaída, do corpo, e a
“literatura” é a atividade corrupta, decaída, das palavras.
Embora Artaud nunca tenha cessado de usar a atividade
nas artes como meio de libertação espiritual, a arte sempre
foi suspeita — assim como o corpo. E a esperança dele na
arte também é gnóstica, como sua esperança no corpo. A
visão de uma arte total tem a mesma forma da visão da
redenção do corpo. (“O corpo é o corpo/ sozinho/ não
precisa de órgãos”, escreve num de seus últimos poemas.)
A arte será redentora quando, a exemplo do corpo redimido,
transcender a si mesma — quando não tiver mais órgãos
(gêneros) nem partes distintas. Na arte redimida que Artaud
imagina, não existem obras de arte separadas — apenas um
ambiente de arte total, que é mágico, paroxístico, purgativo
e, por fim, opaco.
O gnosticismo, uma sensibilidade organizada antes em
torno da ideia do conhecimento (gnose) do que em torno da
fé, diferencia marcadamente o conhecimento exotérico do
esotérico. O adepto deve passar por vários níveis de
instrução para ser digno de ser iniciado na doutrina
verdadeira. O conhecimento, que é identificado com a
capacidade de autotransformação, está reservado a poucos.
É natural que Artaud, com sua sensibilidade gnóstica, tenha
sido atraído por numerosas doutrinas secretas, como
alternativa e também como modelo para a arte. Durante a
década de 1930, ele, como estudioso amador de vários
assuntos e dotado de grande energia, lia cada vez mais
sobre sistemas esotéricos — alquimia, tarô, cabala,
astrologia, rosacrucianismo. O que essas doutrinas têm em
comum é o fato de serem todas relativamente
transformações tardias, decadentes, das temáticas
gnósticas. Da alquimia do Renascimento, Artaud extraiu um
modelo para seu teatro: assim como os símbolos da
alquimia, o teatro descreve “os estados filosóficos da
matéria” e as tentativas de transformá-los. O tarô, para dar
outro exemplo, forneceu a base para As novas revelações
do ser, escrito em 1937, pouco antes de sua viagem de sete
semanas à Irlanda; foi também a última obra que escreveu,
antes do surto mental que acarretou seu confinamento, ao
retornar para a França. Mas nenhuma dessas doutrinas
secretas já formuladas, esquemáticas, historicamente
fossilizadas, podia conter as convulsões da imaginação
gnóstica viva na cabeça de Artaud.
Só o exaustivo é realmente interessante. As ideias básicas
de Artaud são cruas; o que lhes dá poder são a
complexidade e a eloquência de sua autoanálise, sem
paralelo na história da imaginação gnóstica. E, pela primeira
vez, os temas gnósticos podem ser vistos em evolução. A
obra dele é particularmente preciosa como a primeira
documentação completa de alguém que percorre a
trajetória do pensamento gnóstico. O resultado, claro, é
uma terrível debacle.
O último refúgio (historicamente, psicologicamente) do
pensamento gnóstico se encontra nas construções da
esquizofrenia. Depois de seu regresso da Irlanda, começam
nove anos de confinamento em hospitais para doentes
mentais. Provas oriundas, sobretudo, das cartas que
escreveu para seus dois psiquiatras principais em Rodez, o
dr. Gaston Ferdière e o dr. Jacques Latrémolière, mostram
como seu pensamento seguia ao pé da letra as fórmulas
gnósticas. Nas fantasias extasiantes desse período, o
mundo é um redemoinho de substâncias e forças mágicas;
sua consciência se torna um teatro de combate clamoroso
entre anjos e demônios, virgens e prostitutas. Seu horror do
corpo deixa de ter modulação, e Artaud identifica
explicitamente salvação e virgindade, pecado e sexo. Assim
como as especulações religiosas elaboradas por ele em seu
período de Rodez podem ser lidas como metáforas da
paranoia, também a paranoia pode ser considerada
metáfora de uma sensibilidade religiosa exacerbada, de tipo
gnóstico. A literatura dos loucos neste século é uma
literatura religiosa rica — talvez a última zona original da
especulação gnóstica genuína.
Quando deixaram Artaud sair do manicômio, em 1946, ele
ainda se considerava vítima de uma conspiração de forças
demoníacas, alvo de um ato extravagante de perseguição
da “sociedade”. Apesar de a onda de esquizofrenia ter
retrocedido a ponto de não mais engolfá-lo, suas metáforas
básicas continuavam intactas. Nos dois anos de vida que lhe
restavam, Artaud forçou-os no sentido de sua conclusão
lógica.
Em 1944, ainda em Rodez, ele recapitulou sua queixa
gnóstica contra a língua num texto curto, Revolta contra a
poesia. Ao retornar para Paris em 1946, ele desejava voltar
a trabalhar no teatro, recuperar o vocabulário de gesto e
espetáculo; porém, no curto tempo que lhe restava, teve de
se resignar a falar só com a língua. Os escritos de Artaud
desse último período — quase inclassificáveis quanto ao
gênero: há “cartas” que são “poemas” que são “ensaios”
que são “monólogos dramáticos” — dão a impressão de um
homem tentando sair de dentro da própria pele. Passagens
de argumentação clara, ainda que agitada, se alternam com
outras em que as palavras são tratadas, sobretudo, como
materiais (sons): elas têm um valor mágico. (Atenção ao
som e à forma das palavras, como algo distinto de seu
sentido, é um elemento do ensinamento cabalístico do
Zohar, que Artaud havia estudado em meados da década de
1930.) Seu compromisso com o valor mágico das palavras
explica sua rejeição da metáfora como o principal modo de
transmitir significação, em seus últimos poemas. Ele exige
que a língua exprima diretamente o ser humano físico. A
pessoa do poeta aparece num estado além da nudez:
esfolada.
Quando Artaud se move rumo ao indizível, sua
imaginação se torna grosseira. Entretanto, suas últimas
obras, com sua obsessão crescente com o corpo e em sua
cada vez mais explícita repugnância do sexo, ainda se
mantêm em linha direta com seus primeiros escritos,
porque, em paralelo à mentalização do corpo, existe uma
sexualização correspondente da consciência. Seus escritos
entre 1946 e 1948 apenas ampliam metáforas que ele usou
ao longo da década de 1920 — a mente como um corpo que
nunca permite ser “possuído”, o corpo como um tipo de
mente demoníaca, tortuosa, genial. Mas, em sua feroz
batalha para transcender o corpo, tudo acaba se
transformando em linguagem. Ao descrever a vida dos
tarahumaras, Artaud traduz a própria natureza em
linguagem. Nos últimos escritos, a identidade obscena entre
a carne e a palavra alcança um extremo de abominação —
especialmente na peça Para dar um fim no juízo de Deus,
encomendada pela rádio francesa, e que acabou vetada na
véspera de sua transmissão, em fevereiro de 1948. (Artaud
ainda estava revisando o texto, um mês depois, quando
morreu.) Falando, falando e falando, Artaud exprime a mais
ardorosa repulsa contra a fala — e o corpo.
A passagem gnóstica pelos estágios de transcendência
pressupõe um movimento do convencionalmente inteligível
para o convencionalmente ininteligível. Uma característica
do pensamento gnóstico é buscar uma fala em êxtase que
prescinde de palavras distinguíveis. (Foi a adoção de uma
forma gnóstica de pregação — “a fala em línguas” — pela
Igreja cristã em Corinto que provocou os protestos de Paulo
na Primeira Epístola aos Coríntios.) A linguagem que Artaud
usava no fim da vida, em passagens de Artaud le Mômo,
Aqui jaz e Para dar um fim no juízo de Deus, beirava um
discurso inflamado para além do sentido. “Toda linguagem
verdadeira é incompreensível”, diz em Aqui jaz. Ele não está
em busca de uma língua universal, como fez Joyce. A visão
de Joyce da linguagem era histórica, irônica, ao passo que a
de Artaud é médica, trágica. O ininteligível Finnegans Wake
não só é decifrável, com esforço, como é concebido para ser
decifrado. As partes ininteligíveis dos últimos escritos de
Artaud são projetadas para se manterem obscuras — para
serem apreendidas diretamente como som.
O projeto gnóstico é uma busca de sabedoria, mas uma
sabedoria que se cancela pela ininteligibilidade, loquacidade
e silêncio. Como sugere a vida de Artaud, todos os
esquemas para pôr fim ao dualismo, para alcançar uma
consciência unificada no nível gnóstico de intensidade, no
fim estão fadados ao fracasso — ou seja, seus praticantes
desmoronam no que a sociedade chama de loucura ou no
silêncio ou no suicídio. (Outro exemplo: a visão da
consciência totalmente unificada expressa nas mensagens
aforísticas que Nietzsche mandava para os amigos, nas
semanas anteriores ao seu completo colapso mental, em
Turim, em 1889.) O projeto transcende os limites da mente.
Desse modo, enquanto Artaud ainda reafirma, em
desespero, seu esforço de unificar sua carne e sua mente,
os termos de seu pensamento implicam a aniquilação da
consciência, e seu corpo martirizado alcança um timbre
desumano de intensidade e raiva.

Artaud oferece a maior quantidade de sofrimento na


história da literatura. Tão drásticas e tão lastimáveis são as
numerosas descrições que ele apresenta de sua dor que os
leitores, esmagados, podem ficar tentados a distanciar-se,
lembrando que o artista estava insano.
Em qualquer sentido que se diga que ele acabou louco,
Artaud sempre foi louco, a vida toda. Seu histórico de
internações em hospitais psiquiátricos iniciou-se em meados
da adolescência — bem antes de sair de Marselha e ir para
Paris, em 1920, aos 24 anos de idade, para começar sua
carreira nas artes; sua dependência permanente de
opiáceos, que podem ter agravado sua perturbação mental,
provavelmente começou antes daquela data. Na falta do
conhecimento protetor que permite que a maioria das
pessoas seja consciente ao sentir relativamente pouca dor
— o conhecimento que Rivière chama de “abençoada
opacidade da experiência” e “inocência dos fatos” —,
Artaud nunca em sua vida conseguiu escapar por completo
da fustigação da loucura. Mas apenas julgá-lo louco —
restabelecer a redutora sabedoria psiquiátrica — significa
rejeitar sua argumentação.
A psiquiatria traça uma fronteira clara entre arte (um
fenômeno psicológico “normal”, que manifesta limites
estéticos objetivos) e sintomatologia: exatamente a
fronteira que Artaud contesta. Escrevendo para Rivière em
1923, ele insiste em levantar a questão da autonomia de
sua arte — ou seja, apesar de sua suposta deterioração
mental, apesar dessa “falha fundamental” em sua psique,
que o coloca à parte dos demais, seus poemas, não
obstante, existem como poemas e não como documentos
psicológicos. Rivière retruca expressando a confiança de
que, a despeito de seu problema mental, Artaud um dia
será um bom poeta. Este responde com impaciência,
mudando de posição: ele quer fechar o abismo entre vida e
arte, implícito na questão original e no incentivo bem-
intencionado mas obtuso de Rivière. Artaud decide defender
seus poemas como são — pelo mérito que possuem
justamente por não terem êxito como arte.
A tarefa do leitor de Artaud não é reagir com a distância
de Rivière — como se loucura e sanidade pudessem se
comunicar apenas no terreno da sanidade, na linguagem da
razão. Os valores da sanidade não são eternos ou “naturais”
na medida em que existe um sentido evidente e aceito por
todos da condição de ser louco. A percepção de que
algumas pessoas são loucas faz parte da história do
pensamento e a loucura requer uma definição histórica.
Loucura significa não fazer sentido — significa dizer o que
não tem de ser levado a sério. Mas isso depende
grandemente de como determinada cultura define “sentido”
e “seriedade”; as definições variaram muito ao longo da
história. O louco denota aquilo que, na determinação de
uma sociedade particular, não deve ser pensado. Loucura é
um conceito que estabelece limites; suas fronteiras definem
o que é o “outro”. Uma pessoa louca é alguém cuja voz a
sociedade não deseja ouvir, cuja conduta é intolerável,
alguém que deve ser suprimido. Sociedades diferentes
usam definições diferentes do que constitui a loucura (ou
seja, o que não faz sentido). No entanto, nenhuma definição
é menos provinciana do que outra. Parte do escândalo do
costume corrente na União Soviética de trancar dissidentes
políticos em hospitais psiquiátricos é inapropriado, pois
sustenta não só que fazer isso é ruim (o que é verdade),
mas também que é um uso fraudulento do conceito de
doença mental; supõe-se que exista um padrão correto,
universal, científico, de sanidade (aquele aplicado pelas
políticas de saúde mental, digamos, dos Estados Unidos, da
Inglaterra e da Suécia, e não de países como o Marrocos).
Isso é falso. Em toda sociedade, as definições de sanidade e
loucura são arbitrárias — em sentido amplo, são políticas.
Artaud era extremamente sensível à função repressiva do
conceito de loucura. Via os loucos como heróis ou mártires
do pensamento, seres que se extraviaram, do ponto de vista
privilegiado da alienação social radical (e não meramente
psicológica). Ele os via como voluntários da loucura — como
aqueles que, mediante um conceito superior de honra,
preferem enlouquecer a fingir certa lucidez, um fervor
radical na exposição de suas convicções. Numa carta para
Jacqueline Breton, escrita no hospital em Ville-Evrard, em
abril de 1939, após um ano e meio do que seriam nove anos
de confinamento, ele escreveu: “Eu sou um fanático, não
sou louco”. Mas qualquer fanatismo que não é um fanatismo
de grupo é exatamente aquilo que a sociedade entende
como loucura.
Loucura é a conclusão lógica do compromisso com a
individualidade, quando esse compromisso é levado longe
demais. Como diz Artaud na Carta aos diretores médicos
dos manicômios, em 1925, “todos os atos individuais são
antissociais”. É uma verdade nada palatável, talvez muito
irreconciliável com a ideologia humanista da democracia
capitalista ou da democracia social ou do socialismo liberal
— mas Artaud tem razão. Sempre que um comportamento
se torna suficientemente individual, torna-se também
objetivamente antissocial e, para as outras pessoas, vai
parecer insano. Todas as sociedades humanas concordam
nesse ponto. Elas diferem apenas na maneira de aplicar o
padrão de loucura e também no tocante a quem é protegido
e quem é em parte isento (por razões de privilégio
econômico, sexual, social ou cultural) da penalidade da
prisão, reservada àqueles cujo ato antissocial básico
consiste em não fazer sentido.
A pessoa louca tem dupla identidade nas obras de Artaud:
a vítima suprema e o portador de uma sabedoria
subversiva. No prefácio escrito em 1946 para a projetada
coletânea de seus escritos, ele se define como um dos
mentalmente desfavorecidos, que abarcam loucos, afásicos
e analfabetos. Em outra passagem de seus escritos dos dois
últimos anos, Artaud se situa de maneira reiterada em
companhia de pessoas mentalmente superdotadas que
acabaram enlouquecendo — Hölderlin, Nerval, Nietzsche e
Van Gogh. Na medida em que o gênio é uma extensão e
uma intensificação do indivíduo, ele sugere a existência de
uma afinidade natural entre gênio e loucura, num sentido
muito mais preciso do que o estabelecido pelos românticos.
Porém, ao mesmo tempo que denuncia a sociedade que
aprisiona o louco e que afirma que a loucura era o sinal
exterior de um exílio espiritual profundo, ele nunca sugere
haver algo de libertador em perder a razão.
Alguns de seus escritos, em particular os primeiros textos
surrealistas, mostram uma atitude mais positiva com
relação à loucura. Em Segurança pública/ A liquidação do
ópio, por exemplo, ele parece defender a prática da
perturbação proposital da mente e dos sentidos (como
Rimbaud, certa vez, definiu a vocação do poeta). Mas
Artaud nunca cessa de dizer — nas cartas para Rivière, para
o dr. Allendy e para George Soulié de Morant, nas décadas
de 1920 e 1930, nas cartas escritas entre 1943 e 1945, em
Rodez, e no ensaio sobre Van Gogh, escrito em 1947, alguns
meses depois de ter sido liberado de Rodez — que a loucura
é confinadora, destruidora. Pessoas loucas podem saber a
verdade — e tanta verdade, que a sociedade se vinga
desses profetas infelizes marginalizando-os. Mas ser louco é
também uma dor interminável, um estado que deve ser
transcendido — e é essa dor que Artaud retrata e impõe a
seus leitores.
Ler Artaud é nada menos do que uma provação. É
compreensível: os leitores parecem proteger-se com
reduções e adaptações de sua obra. Para lê-lo de forma
apropriada, são necessários um ânimo especial, uma
sensibilidade especial e um tato especial. Não é uma
questão de concordar com ele — isso seria raso — nem
mesmo de “compreendê-lo” e a sua relevância com
neutralidade. O que há ali com que concordar? Como
poderia alguém concordar com as ideias de Artaud, a menos
que já estivesse no estado de sítio demoníaco em que ele
se encontrava? Aquelas ideias foram declaradas sob a
pressão intolerável da situação vivenciada por ele. Artaud
não está apenas numa posição insustentável; na verdade,
nem chega a ser uma “posição”.
O pensamento de Artaud faz parte, organicamente, de
sua consciência singular, assombrada, impotente,
brutalmente inteligente. É um dos grandes e audaciosos
mapeadores da consciência in extremis. Para lê-lo de forma
adequada, não é preciso acreditar que a única verdade que
a arte pode fornecer é aquela que é singular e autenticada
pelo sofrimento radical. Quanto à arte que descreve outros
estados de consciência — menos idiossincráticos, menos
exaltados, talvez não menos profundos —, é correto pedir
que ela forneça verdades gerais. Porém os casos
excepcionais no limite da “escrita” — Sade é um caso,
Artaud é outro — demandam uma abordagem distinta.
Artaud deixou uma obra que se anula, um pensamento que
sobrepuja o pensamento, recomendações que não podem
ser concretizadas. Aonde isso leva o leitor? Embora sua obra
constitua um conjunto, o pensamento de Artaud proíbe que
suas obras sejam tratadas simplesmente como “literatura”.
Embora seu pensamento constitua um conjunto, o
pensamento de Artaud proíbe a concordância — assim como
sua personalidade agressivamente autoimoladora proíbe
identificação. Artaud choca e, à diferença dos surrealistas,
permanece chocante. (Longe de ser subversivo, o espírito
dos surrealistas é basicamente construtivo e se encaixa
muito bem na tradição humanista, e suas violações
encenadas das propriedades burguesas não são atos
perigosos, verdadeiramente antissociais. Comparem isso
com o comportamento de Artaud, que era de fato
impraticável no âmbito social.) Isolar seu pensamento como
um bem de consumo intelectual portátil é, com efeito, o que
esse pensamento proíbe, e explicitamente. Ele é antes um
evento do que um objeto.
Proibido de concordar ou de identificar-se ou de apropriar-
se ou de imitar, ao leitor só resta retroceder à categoria da
inspiração. “A INSPIRAÇÃO COM CERTEZA EXISTE”, afirma Artaud em
letras maiúsculas em O pesa-nervos. Uma pessoa pode se
inspirar em Artaud. Pode ser repreendida e modificada por
Artaud. Mas não existe nenhuma maneira de adotar Artaud.
Mesmo no domínio do teatro, onde sua presença pode ser
depurada em um programa e uma teoria, a obra daqueles
diretores que mais se beneficiaram de suas ideias mostra
que não há maneira de usar Artaud sem deixar de ser fiel a
ele. Nem mesmo o próprio Artaud conseguiu encontrar essa
maneira; segundo todos os relatos, suas encenações
teatrais estavam longe de alcançar o nível de suas ideias. E,
para muita gente que não tinha ligação com o teatro —
sobretudo os de orientação anarquista, para quem Artaud
tinha especial importância —, a experiência de sua obra
permanece como algo profundamente privado. Artaud é
alguém que fez uma viagem espiritual por nós — um xamã.
Seria presunçoso reduzir a geografia de sua viagem ao que
pode ser colonizado. Sua autoridade repousa nas partes que
não cedem nada em relação ao leitor, a não ser um
desconforto profundo da imaginação.
A obra de Artaud se torna utilizável conforme nossas
necessidades, mas ela desaparece por trás do uso que
fazemos dela. Quando nos cansamos de usar Artaud,
podemos voltar a seus escritos. “Inspiração nos palcos”, diz
ele. “Não se deve admitir literatura demais.”
Toda arte que exprime um descontentamento radical e
almeja despedaçar complacências de sentimento se arrisca
a ser desarmada, neutralizada, drenada de seu poder de
perturbar — ao ser admirada, ao ser (ou parecer ser) muito
bem compreendida, ao tornar-se relevante. Os temas
outrora exóticos da obra de Artaud tornaram-se, em sua
maioria, na última década, clamorosamente temas da
moda: a sabedoria (ou a falta dela) encontrada nas drogas,
as religiões orientais, a magia, a vida dos indígenas da
América do Norte, a linguagem corporal, a viagem da
loucura; a revolta contra a “literatura” e o beligerante
prestígio das artes não verbais; a apreciação da
esquizofrenia; o uso da arte como violência contra o público;
a necessidade da obscenidade. Na década de 1920, Artaud
tinha quase todos os gostos (exceto o entusiasmo por
histórias em quadrinhos, ficção científica e marxismo) que
se tornariam proeminentes na contracultura americana da
década de 1960, e o que ele lia naqueles anos iniciais do
século — O livro tibetano dos mortos, livros de misticismo,
psiquiatria, antropologia, tarô, astrologia, ioga, acupuntura
— parece uma antologia profética da literatura que
recentemente emergiu como leitura popular entre os jovens
avançados. Mas a relevância atual de Artaud pode ser tão
enganosa quanto é a obscuridade em que sua obra repousa
até hoje.
Desconhecido dez anos atrás fora de um pequeno círculo
de admiradores, Artaud é hoje um clássico. É um exemplo
de um clássico forçado — um autor que a cultura tenta
assimilar, mas que permanece profundamente indigerível.
Um uso da respeitabilidade literária em nosso tempo — e
parte importante da complexa carreira do modernismo
literário — consiste em tornar aceitável um autor
escandaloso e hostil em sua essência, que se torna um
clássico como resultado das numerosas afirmações
interessantes que podem ser feitas sobre uma obra, mas
que mal conseguem transmitir (e talvez nem mesmo
esconder) a natureza real da própria obra, que pode ser,
entre outras coisas, extremamente maçante ou moralmente
monstruosa ou terrivelmente penosa de ler. Certos autores
se tornam clássicos intelectuais ou literários porque não são
lidos, pois, em certo sentido fundamental, são ilegíveis.
Sade, Artaud e Wilhelm Reich pertencem a esse grupo:
autores que foram enjaulados ou trancados em hospícios,
porque estavam berrando, porque estavam fora de controle;
autores destemperados, obcecados, estridentes, que se
repetem interminavelmente, que vale a pena citar e ler um
pouquinho, mas que exaurem e desalentam, se lidos em
grandes porções.
Como Sade e Reich, Artaud é relevante e compreensível,
um monumento cultural, contanto que se faça referência a
suas ideias sem ler muito de sua obra. Para qualquer um
que leia os escritos de Artaud, ele continua fora de alcance,
uma voz e uma presença inassimiláveis.

(1973)
Fascismo fascinante

Prova número um. Aqui está um livro com 126 magníficas


fotos coloridas de Leni Riefenstahl, seguramente o mais
impressionante livro de fotografias publicado nos últimos
anos. Nas montanhas inóspitas do sul do Sudão, vivem
isolados, como deuses, 8 mil nativos do povo nuba,
símbolos da perfeição física, com cabeças grandes, bem-
feitas, parcialmente raspadas, rostos expressivos e corpos
musculosos, depilados e enfeitados com cicatrizes;
lambuzados com cinzas sagradas esbranquiçadas, os
homens andam de peito erguido, põem-se de cócoras,
travam lutas corpo a corpo em ladeiras áridas. E aqui está
um arranjo gráfico fascinante de doze fotos em preto e
branco de Riefenstahl, na quarta capa do livro The Last of
the Nuba [Os últimos nubas], também impressionante, uma
sequência cronológica de expressões (de uma introspecção
provocante até o sorriso de uma matrona texana num
safári) subjugando a incontrolável marcha do
envelhecimento. A primeira foto foi tirada em 1927, quando
ela estava com 25 anos e já era uma estrela do cinema; as
mais recentes são de 1969 (ela está acariciando um bebê
nu africano) e de 1972 (ela está segurando uma câmera), e
todas mostram uma versão de uma presença ideal, uma
espécie de beleza imperecível, como a de Elizabeth
Schwarzkopf, que se torna cada vez mais alegre, mais
metálica e de aspecto mais saudável à medida que a idade
avança. E aqui estão uma síntese biográfica de Riefenstahl,
na sobrecapa do volume, e uma introdução (sem
assinatura) intitulada “Como Leni Riefenstahl foi estudar os
mesakins de Nuba, em Kordofan” — repleta de mentiras
perturbadoras.
A introdução, que oferece um relato minucioso da
peregrinação de Riefenstahl ao Sudão (inspirada, somos
informados, pela leitura de As verdes colinas da África, de
Hemingway, “numa noite insone em meados da década de
1950”), identifica de maneira lacônica a fotógrafa como
“uma espécie de figura mitológica, como cineasta, antes da
guerra, semiesquecida por uma nação que escolheu varrer
da memória uma era da própria história”. Quem (é o que se
espera) senão a própria Riefenstahl poderia imaginar uma
fábula sobre isso que é vagamente chamado de “nação”,
que, por algum motivo não declarado, “escolheu” executar
o deplorável ato de covardia de esquecer “uma era” —
delicadamente deixada sem identificação — “da própria
história”? Supõe-se que pelo menos alguns leitores ficarão
chocados com essa alusão enviesada à Alemanha e ao
Terceiro Reich.
Comparada à introdução, a sobrecapa do livro é
francamente expansiva sobre o tema da carreira da
fotógrafa, papagueando a desinformação que Riefenstahl
vinha divulgando havia vinte anos.

Foi durante a funesta e grave década de 1930 na Alemanha que Leni


Riefenstahl adquiriu fama internacional como cineasta. Ela nasceu em 1902 e
sua primeira dedicação foi à dança criativa. Isso a levou a participar em
filmes mudos e logo ela mesma passou a dirigir — e a estrelar — os próprios
filmes falados, como A montanha (1929).
Essas produções tensamente românticas foram amplamente admiradas, até
mesmo por Adolf Hitler, que, chegando ao poder em 1933, contratou
Riefenstahl para fazer um documentário sobre o comício de Nuremberg, em
1934.

É preciso certa originalidade para descrever a era nazista


como “a funesta e grave década de 1930 na Alemanha”,
resumir os acontecimentos de 1933 como a chegada de
Hitler ao poder e afirmar que Riefenstahl, cuja obra, em sua
maior parte, em sua própria época, era corretamente
identificada como propaganda nazista, desfrutava de “fama
internacional como cineasta”, comparada de maneira
ostensiva a seus contemporâneos Renoir, Lubitsch e
Flaherty. (Será que os editores deixaram que a própria L. R.
escrevesse o texto da sobrecapa? Hesitamos em admitir
uma ideia tão indelicada, embora “sua primeira dedicação
foi à dança criativa” seja uma expressão que poucos
falantes nativos da língua inglesa seriam capazes de usar.)
Os fatos, é claro, são inexatos ou inventados. Riefenstahl
não fez — nem estrelou — um filme falado intitulado A
montanha (1929). Tal filme não existe. Em termos mais
gerais: ela não se limitou a participar de filmes mudos para
depois, com a chegada do cinema sonoro, começar a dirigir
e estrelar os próprios filmes. Em todos os nove filmes nos
quais representou um papel, Riefenstahl foi a estrela; e sete
deles não foram dirigidos por ela. Esses sete filmes foram: A
montanha sagrada (Der heilige Berg, 1926), O grande salto
(Der grosse Sprung, 1927), O destino da casa dos
Habsburgo (Das Schiksal derer von Habsburg, 1929), O
inferno branco do Pitz Palü (Die weisse Hölle von Piz Palü,
1929) — todos mudos —, seguidos por Avalanche (Stürme
über dem Montblanc, 1930), Frenesi branco (Der weisse
Rausch, 1931) e S.O.S. Iceberg (S.O.S. Eisberg, 1932-3). À
exceção de um, todos os demais foram dirigidos por Arnold
Fanck, auteur de épicos alpinos de amplo sucesso desde
1919, que fez apenas mais dois filmes, ambos malogrados,
depois que Riefenstahl o deixou para passar a dirigir os
próprios filmes, em 1932. (O filme que Fanck não dirigiu é O
destino da casa dos Habsburgo, um drama lacrimejante,
partidário da casa real, feito na Áustria, em que Riefenstahl
representou o papel de Marie Vetsera, companheira do
príncipe herdeiro Rudolf, em Mayerling. Nenhuma imagem
do filme parece ter sobrevivido.)
Os veículos wagnerianos-pop de Fanck para Riefenstahl
não eram apenas “tensamente românticos”. Decerto
concebidos como apolíticos quando produzidos, eles
parecem hoje, em retrospecto, como apontou Siegfried
Kracauer, uma antologia de sentimentos protonazistas.
Escalar montanhas, nos filmes de Fanck, era uma metáfora
irresistível para a aspiração ilimitada rumo a um objetivo
místico elevado, belo e aterrador, que mais tarde iria se
tornar concreto, no culto ao Führer. O personagem em geral
representado por Riefenstahl era o de uma garota selvagem
que se atreve a escalar o pico que outros, os “porcos do
vale”, temem. Em seu primeiro papel, no filme mudo A
montanha sagrada (1926), o de uma jovem dançarina
chamada Diotima, ela é cortejada por um alpinista fervoroso
que a converte aos sadios êxtases do alpinismo. Essa
personagem é submetida a uma glorificação inexorável. Em
seu primeiro filme sonoro, Avalanche (1930), Riefenstahl é
uma garota fascinada por uma montanha, apaixonada por
um jovem meteorologista, a quem ela resgata, quando uma
tempestade o deixa isolado em seu observatório no Mont
Blanc.
A própria Riefenstahl dirigiu seis filmes, e o primeiro
deles, A luz azul (Das blaue Licht, 1932), foi mais um filme
de montanha. Também estrelando a produção, ela
representou um papel semelhante àqueles dos filmes de
Fanck, pelos quais foi tão “amplamente admirada, até por
Adolf Hitler”, mas alegorizava os temas sombrios do desejo,
da pureza e da morte, tratados por Fanck de modo muito
tateante. Como de hábito, a montanha é extremamente
bela e, ao mesmo tempo, perigosa, aquela força majestosa
que conclama a uma afirmação suprema e que escapa do
eu — rumo à fraternidade da coragem e também à morte. O
papel concebido por Riefenstahl para si mesma é o de uma
criatura primitiva que tem uma relação singular com um
poder destrutivo: só Junta, a garota proscrita da aldeia,
vestida em andrajos, é capaz de alcançar a luz azul
misteriosa que irradia do pico de monte Cristallo, ao passo
que outros aldeões jovens, seduzidos pela luz, tentam
escalar a montanha e acabam despencando para a morte.
No fim, o que causa a morte da garota não é a
impossibilidade do objetivo simbolizado pela montanha, e
sim o espírito materialista, prosaico, dos aldeões invejosos
combinado com o racionalismo cego de seu amante, um
visitante bem-intencionado proveniente da cidade.
O filme que dirigiu depois de A luz azul não foi “um
documentário sobre o comício de Nuremberg em 1934” —
Riefenstahl fez quatro filmes de não ficção, e não dois,
como ela declara desde a década de 1950 e como a maioria
dos relatos acobertadores repete —, mas Vitória da fé (Sieg
des Glaubens, 1933), celebrando o primeiro Congresso do
Partido Nacional-Socialista realizado após a chegada de
Hitler ao poder. Veio então o primeiro dos dois trabalhos que
de fato a tornaram internacionalmente famosa, o filme
sobre o Congresso do Partido Nacional-Socialista seguinte,
Triunfo da vontade (Triumph des Willens, 1935) — cujo título
nunca é mencionado na sobrecapa de The Last of the Nuba
—, seguido por um curta-metragem (dezoito minutos) para
o exército, Dia de liberdade: Nosso exército (Tag der
Freiheit: Unsere Wehrmacht, 1935), que retrata a beleza da
vida militar dos que servem ao Exército para o Führer. (Não
surpreende não encontrar nenhuma referência a esse filme,
do qual se encontrou uma imagem em 1971; durante as
décadas de 1950 e 1960, quando Riefenstahl e todo o
mundo acreditavam que Dia de liberdade estava perdido,
ela o apagava de sua filmografia e se recusava a discutir o
assunto com seus entrevistadores.)
O texto da sobrecapa prossegue:

A recusa de Riefenstahl a submeter-se à tentativa de Goebbels de sujeitar sua


visualização a exigências estritamente propagandísticas gerou uma batalha
de egos, que chegou ao auge quando Riefenstahl fez seu filme sobre os Jogos
Olímpicos de 1936, Olympia. Esse filme, Goebbels tentou destruir; e só foi
salvo pela intervenção pessoal de Hitler.
Com dois dos mais notáveis documentários da década de 1930 creditados a
ela, Riefenstahl continuou a fazer filmes segundo seus planos, sem relação
com a ascensão da Alemanha Nazista, até 1941, quando as condições da
guerra tornaram impossível continuar.
Sua relação com o líder nazista acarretou sua prisão ao fim da Segunda
Guerra Mundial: ela foi duas vezes processada e duas vezes absolvida. Sua
reputação estava em ocaso e ela estava semiesquecida — embora seu nome
tivesse sido uma palavra familiar para toda uma geração de alemães.

Exceto pelo trecho em que se afirma que seu nome era


uma palavra familiar na Alemanha Nazista, nenhuma frase
do texto é verdadeira. Apresentar Riefenstahl no papel de
uma artista individualista que desafiava burocratas filisteus
e a censura do Estado patrocinador (“a tentativa de
Goebbels de sujeitar sua visualização a exigências
estritamente propagandísticas”) deveria soar como um
absurdo para qualquer pessoa que tivesse visto Triunfo da
vontade — filme cuja própria concepção nega a
possibilidade de a cineasta ter uma concepção estética
independente da propaganda. Embora isso tenha sido
negado por Riefenstahl desde o fim da guerra, ela fez
Triunfo da vontade com recursos ilimitados e cooperação
oficial abundante (nunca houve nenhum conflito entre a
cineasta e o ministro alemão da Propaganda). Na verdade,
Riefenstahl, como ela relata no curto livro sobre a produção
de Triunfo da vontade, fez parte do planejamento do
comício — desde o início concebido como cenário de um
filme-espetáculo.1 Olympia — um filme de três horas e
meia, em duas partes, Festival do povo (Fest der Völker) e
Festival da beleza (Fest der Schönheit) — era nada menos
do que um filme oficial. Riefenstahl afirma em entrevistas,
desde a década de 1950, que Olympia foi encomendado
pelo Comitê Olímpico Internacional, produzido por sua
própria empresa e realizado sob os protestos de Goebbels. A
verdade é que a película foi patrocinada e inteiramente
financiada pelo governo nazista (uma empresa fantasma foi
montada em nome de Riefenstahl, porque julgaram
imprudente que o governo figurasse como produtor) e
viabilizado pelo ministério de Goebbels em todas as etapas
da filmagem;2 mesmo a lenda plausível de que Goebbels
teria reclamado do trecho sobre os triunfos do astro do
atletismo Jesse Owens, um negro americano, é falsa.
Riefenstahl trabalhou dezoito meses na edição do filme,
terminando-o a tempo para que o filme estreasse no dia 29
de abril de 1938, em Berlim, como parte das festividades do
49o aniversário de Hitler; mais tarde, naquele ano, Olympia
foi a principal atração alemã no Festival de Cinema de
Veneza, no qual ganhou a medalha de ouro.
Mais mentiras: dizer que Riefenstahl “continuou a fazer
filmes segundo seus planos, sem relação com a ascensão da
Alemanha Nazista, até 1941”. Em 1939 (depois de voltar de
uma visita a Hollywood, a convite de Walt Disney), ela
acompanhou a Wehrmacht [Forças Armadas da Alemanha] à
Polônia, como correspondente de guerra uniformizada, com
uma equipe própria de filmagem; mas não há nenhum
registro disso nos materiais que sobreviveram à guerra.
Depois de Olympia, Riefenstahl fez exatamente mais um
filme, Tiefland (Planície), iniciado em 1941 — e, depois de
uma interrupção, retomado em 1944 (nos Estúdios de
Cinema Barrandov, na Praga ocupada pelos nazistas), e
finalizado em 1954. A exemplo de A luz azul, Tiefland
contrapõe a corrupção da planície ou do vale à pureza da
montanha e, mais uma vez, a protagonista (representada
por Riefenstahl) é uma linda proscrita. Riefenstahl prefere
dar a impressão de que só havia dois documentários numa
carreira longa de diretora de filmes de ficção, porém a
verdade é que quatro dos seis filmes que ela dirigiu eram
documentários feitos para o governo nazista e por ele
financiados.
Não é exato descrever a relação profissional de
Riefenstahl com Hitler e Goebbels e sua intimidade com
ambos como “sua relação com o líder nazista”. Riefenstahl
era amiga íntima e companheira de Hitler desde bem antes
de 1932; era também amiga de Goebbels: não existem
provas da afirmação repetida por Riefenstahl, desde a
década de 1950, de que Goebbels a odiava ou mesmo que
ele tivesse o poder de interferir em sua obra. Em virtude de
seu ilimitado acesso a Hitler, Riefenstahl era justamente a
única cineasta alemã que não prestava contas à Secretaria
de Cinema (Reichsfilmkammer) do Ministério da Propaganda
de Goebbels. Por fim, é enganadora a afirmação de que
Riefenstahl foi “duas vezes processada e duas vezes
absolvida” depois da guerra. O que aconteceu foi que ela
ficou presa por curto tempo pelos Aliados em 1945 e duas
de suas casas (em Berlim e em Munique) foram tomadas. As
investigações e os comparecimentos em juízo começaram
em 1948 e prosseguiram, de forma intermitente, até 1952,
quando ela foi, afinal, “desnazificada” com o veredicto:
“Nenhuma atividade política para defender o regime nazista
que justifique punição”. Mais importante: merecesse ou não
uma sentença de prisão, o que estava em questão não era a
“relação” de Riefenstahl com o líder nazista, mas suas
atividades como propagandista de ponta em favor do
Terceiro Reich.
A sobrecapa do livro The Last of the Nuba resume
fielmente a linha-mestra da autodefesa que Riefenstahl
fabricou na década de 1950 e que está exposta de modo
mais completo na entrevista que deu à revista Cahiers du
Cinéma, em setembro de 1965. Ali, ela negou que qualquer
parte de sua obra fosse propaganda — chamando-a de
cinema verité. “Nenhuma cena é montada”, revelou
Riefenstahl sobre Triunfo da vontade. “Tudo é genuíno. Não
há comentários tendenciosos pela simples razão de que não
há comentário nenhum. O filme é história — história pura.”
Estamos muito longe do desdém veemente pelos “filmes-
crônicas”, de meras “reportagens” ou de “fatos filmados”,
como algo indigno do “estilo heroico” do evento, que está
expresso em seu livro sobre o cinema.3
Embora não tenha nenhuma voz narradora, Triunfo da
vontade começa com um texto escrito, que proclama o
comício como a culminância redentora da história alemã.
Mas, entre as diversas maneiras como o filme se mostra
tendencioso, essa declaração de abertura é a menos
original. Não há nenhum comentário, porque nenhum é
necessário, uma vez que Triunfo da vontade é uma
transformação radical da realidade já levada a efeito:
história se torna teatro. A forma como se encenou a
convenção do Partido em 1934 foi em parte determinada
pela decisão de produzir Triunfo da vontade — o fato
histórico serviu de cenário para um filme que, em seguida,
assumiu o caráter de um documentário autêntico. De fato,
quando, antecipadamente, foram divulgados alguns trechos
que mostravam líderes do Partido na tribuna dos oradores,
Hitler deu ordem para que as cenas fossem refilmadas; e
Streicher, Rosenberg, Hess e Frank, teatralmente, juraram
de novo sua fidelidade ao Führer, semanas depois, sem
Hitler e sem plateia, num estúdio montado por Speer. (É
absolutamente correto que Speer, responsável pela
construção do gigantesco cenário do comício nos arredores
de Nuremberg, figure na lista de créditos de Triunfo da
vontade como o arquiteto do filme.) Qualquer um que
defenda os filmes de Riefenstahl como documentários, se
documentário for entendido como algo distinto de
propaganda, está sendo ingênuo. Em Triunfo da vontade, o
documento (a imagem) é não só o registro da realidade,
como também uma razão pela qual a realidade foi montada
e deve, por fim, suplantá-la.

A reabilitação de figuras proscritas nas sociedades liberais


não acontece com o propósito burocrático abrangente da
Enciclopédia soviética, que a cada nova edição acrescenta
figuras, até então impronunciáveis, e rebaixa um número
igual ou maior pela porta dos fundos da inexistência. Nossas
reabilitações são mais brandas, mais insinuadas. Não que o
passado nazista de Riefenstahl tenha de repente se tornado
aceitável. Ocorre simplesmente que, com o giro da roda
cultural, isso deixou de ter importância. Em vez de
apresentar uma versão gelada e seca da história vinda de
cima, uma sociedade liberal formula tais questões à espera
de que os ciclos do gosto depurem a controvérsia.
A purificação da reputação de Leni Riefenstahl da mancha
nazista tomou impulso durante algum tempo, mas neste
ano [1974] alcançou uma espécie de clímax, quando ela foi
a convidada de honra de um novo festival de cinema,
controlado por cinéfilos, ocorrido no verão, em Colorado, e
foi tema de uma série de reportagens e entrevistas
respeitosas em jornais e na televisão, e agora com a
publicação de The Last of the Nuba. Parte do ímpeto que
sustenta a recente promoção de Riefenstahl à condição de
monumento cultural com certeza se deve ao fato de ser
mulher. O cartaz do Festival de Cinema de Nova York de
1973, feito por uma artista bastante conhecida também
como feminista, mostrava uma mulher loira, com cara de
boneca, cujo seio direito está rodeado por três nomes:
Agnès Leni Shirley. (Ou seja, Varda, Riefenstahl, Clarke.) As
feministas sentiriam grande dor por ter de sacrificar a única
mulher que fez filmes reconhecidos por todos como obras
de primeira grandeza. Mas o impulso mais forte por trás da
mudança de atitude em relação a Riefenstahl repousa na
nova e mais ampla fortuna da ideia do belo.
A linha adotada pelos defensores de Riefenstahl, que
incluem as vozes mais influentes do cinema de vanguarda,
é de que ela sempre foi dedicada à beleza. Essa, é claro, foi
a argumentação da própria Riefenstahl durante alguns anos.
Desse modo, o entrevistador de Cahiers du Cinéma a
exaltou, observando tolamente que aquilo que Triunfo da
vontade e Olympia “têm em comum é que ambos dão forma
a certa realidade, baseada ela mesma em uma ideia de
forma. Você enxerga algo peculiarmente alemão nessa
preocupação com a forma?”. A isso, Riefenstahl respondeu:

O que posso dizer é que me sinto espontaneamente atraída por tudo o que é
belo. Sim: beleza, harmonia. E talvez esse cuidado com a composição, essa
aspiração pela forma, seja, de fato, algo muito alemão. Mas eu mesma não
conheço essas coisas de fato. Isso vem do inconsciente e não de meu
conhecimento… O que você quer que eu acrescente? Tudo o que for
puramente realista, extraído da vida, aquilo que é mediano, cotidiano, não
me interessa… Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, pelo que é
vivo. Eu busco a harmonia. Quando a harmonia se produz, fico feliz. Creio,
com isso, que respondi sua pergunta.
É por isso que The Last of the Nuba é o último passo
necessário na reabilitação de Leni Riefenstahl. É a reescrita
final do passado; ou, para seus adeptos, a confirmação
definitiva de que ela sempre foi uma adoradora do belo e
não uma propagandista medonha.4 Dentro do livro, tão
lindamente produzido, fotografias da tribo nobre, perfeita. E,
na sobrecapa, fotografias de “minha perfeita mulher alemã”
(como Hitler a chamava), toda sorrisos, derrotando as
afrontas da história.
Com efeito, se o livro não fosse assinado por Riefenstahl,
não teríamos necessariamente de suspeitar que as fotos
foram tiradas pela artista mais interessante, talentosa e
eficiente da era nazista. A maioria das pessoas que folheiam
o livro The Last of the Nuba provavelmente o verá como
mais um lamento pelo desaparecimento de povos primitivos
— o maior exemplo continua a ser Tristes trópicos, de Lévi-
Strauss, sobre os bororos, do Brasil —; no entanto, se
examinarmos as fotos com cuidado, em combinação com o
extenso texto escrito por Riefenstahl, fica claro que há
continuidade entre o livro e a sua obra nazista. O pendor
particular de Riefenstahl se revela na escolha dessa tribo e
não de outra: um povo que ela define como agudamente
artístico (todos têm uma lira) e belo (os homens nubas,
observa Riefenstahl, têm uma “compleição atlética rara em
qualquer outra tribo africana”); dotados de “um sentido
muito mais forte das relações espirituais do que dos
assuntos mundanos e materiais”, sua atividade principal,
insiste ela, é cerimonial. The Last of the Nuba trata de um
ideal primitivista: o retrato de um povo que subsiste em
pura harmonia com seu ambiente, intocado pela
“civilização”.
Os quatro filmes nazistas de Riefenstahl feitos por
encomenda — sobre os congressos do Partido, sobre a
Wehrmacht ou sobre atletas — celebram o renascimento do
corpo e da comunidade, mediado pelo culto de um líder
irresistível. São herdeiros diretos dos filmes de Fanck, nos
quais ela representou o papel principal, e do seu próprio
filme A luz azul. As ficções alpinas são contos sobre o anseio
de alcançar locais elevados, sobre o desafio e a provação do
elementar, do primitivo; tratam da vertigem em face do
poder, simbolizado pela majestade e pela beleza das
montanhas. Os filmes nazistas são épicos de uma
comunidade concretizada, nos quais se transcende a
realidade cotidiana por meio do autocontrole extasiado e da
submissão; eles tratam do triunfo do poder. E The Last of
the Nuba, uma elegia à beleza prestes a desaparecer e aos
poderes místicos dos primitivos a quem Riefenstahl chama
de “meu povo adotivo”, é a terceira peça de seu tríptico de
criações visuais fascistas.
No primeiro painel, os filmes de montanhas, pessoas em
trajes pesados se esforçam em escaladas para se pôr à
prova na pureza do frio; a vitalidade é identificada com a
provação física. No painel do meio, os filmes feitos para o
governo nazista; Triunfo da vontade usa planos gerais
superpovoados com imagens de massa que se alternam
com closes que isolam uma paixão individual, uma
submissão singular e perfeita: numa região temperada,
pessoas limpas e distintas, em uniformes, se agrupam e se
reagrupam, como se estivessem à procura da coreografia
perfeita para expressar sua lealdade. Em Olympia,
visualmente o mais rico de todos os seus filmes (que usa os
movimentos verticais dos filmes de montanha e os
horizontais, característicos de Triunfo da vontade), uma
depois da outra, figuras tensas, com roupas escassas,
procuram o êxtase da vitória, comemorada nas
arquibancadas por fileiras de compatriotas, todos debaixo
do olhar parado do benévolo Super-Espectador, Hitler, cuja
presença no estádio consagra esse esforço. (Olympia, que
poderia muito bem se intitular Triunfo da vontade, enfatiza
que não existem vitórias fáceis.) No terceiro painel, The Last
of the Nuba, os primitivos quase nus, à espera da provação
final de sua comunidade heroica e orgulhosa, sua iminente
extinção, saltitam e fazem pose debaixo de um sol
abrasador.
É tempo de Götterdämmerung [crepúsculo dos deuses].
Os eventos centrais na sociedade nuba são lutas corpo a
corpo e enterros: encontros animados de belos corpos
masculinos e de morte. Os nubas, como Riefenstahl os
interpreta, são uma tribo de estetas. A exemplo dos
massais, besuntados de hena, e dos chamados homens-
lama da Nova Guiné, os nubas se pintam para todas as
ocasiões religiosas e sociais importantes, lambuzando-se
com uma cinza esbranquiçada que inequivocamente sugere
a morte. Riefenstahl afirma ter chegado “em cima da hora”,
pois, nos poucos anos seguintes à tomada das fotos, os
gloriosos nubas foram corrompidos por dinheiro, empregos
e roupas. (E é bem provável que também o tenham sido
pela guerra — que Riefenstahl não menciona, uma vez que
ela se interessa por mito, e não por história. A guerra civil
que vinha grassando naquela parte do Sudão havia uma
dúzia de anos deve ter disseminado novas tecnologias e
uma porção de detritos.)
Embora os nubas sejam negros e não arianos, o retrato
que Riefenstahl faz deles evoca alguns dos temas principais
da ideologia nazista: o contraste entre o limpo e o impuro, o
incorruptível e o conspurcado, o físico e o mental, o alegre e
o crítico. Uma das principais acusações contra os judeus na
Alemanha nazista foi de que eram urbanos, intelectuais,
portadores de um “espírito crítico” destruidor e corruptor. A
fogueira de livros de 1933 foi acesa com o grito de
Goebbels: “A idade do intelectualismo judeu radical
terminou e o sucesso da revolução alemã mais uma vez
abriu caminho para o espírito germânico”. E quando
Goebbels oficialmente proibiu a crítica de arte em novembro
de 1936, foi por ter “traços tipicamente judeus em seu
caráter”: pôr a cabeça acima do coração, o indivíduo acima
da comunidade, o intelecto acima do sentimento. Nas
temáticas transformadas do fascismo tardio, os judeus não
desempenham mais o papel de conspurcadores. Esse papel
passou a ser atribuição da própria “civilização”.
O que é distintivo na versão fascista da antiga ideia do
Bom Selvagem é o desprezo por tudo o que comporta
reflexão, crítica e pluralidade. No catálogo de Riefenstahl
das virtudes primitivas, aquilo que é enaltecido não é —
como em Lévi-Strauss — a complexidade e a sutileza do
mito primitivo, da organização social ou do pensamento
primitivos. Ela recorda com força a retórica fascista quando
celebra as maneiras como os nubas são exaltados e
unificados pelas provações físicas das lutas corpo a corpo,
nas quais os homens nubas, “ofegantes e tensos”, com os
“enormes músculos inchados”, derrubam por terra uns aos
outros — lutando não por prêmios materiais, e sim “pela
renovação da vitalidade sagrada da tribo”. As lutas corpo a
corpo e os rituais que as acompanham, no relato de
Riefenstahl, amarram os nubas uns aos outros. Lutar

é a expressão de tudo o que distingue o modo de vida dos nubas… A luta


engendra a lealdade mais apaixonada e a participação emocional dos
torcedores das equipes, que são, na verdade, toda a população da aldeia que
está “fora do jogo”… Sua importância como expressão da percepção total dos
mesakins e dos korongos não pode ser exagerada; é a expressão, no mundo
visível e social, do mundo invisível da mente e do espírito.

Ao celebrar uma sociedade em que a exibição de


habilidade física, assim como de coragem, e a vitória do
mais forte sobre o mais fraco são, da maneira como ela vê,
os símbolos unificadores da cultura comunal — na qual o
sucesso na luta é “a principal aspiração da vida de um
homem” —, Riefenstahl parece não ter modificado em nada
as ideias de seus filmes nazistas. E seu retrato dos nubas
vai muito além de seus filmes, ao evocar um aspecto do
ideal fascista: uma sociedade na qual as mulheres são
meramente procriadoras e auxiliares, excluídas de todas as
funções cerimoniais, e na qual representam uma ameaça à
integridade e à força dos homens. Do ponto de vista
“espiritual” dos nubas (Riefenstahl se refere aos homens, é
claro), o contato com mulheres é uma profanação; contudo,
por mais ideal que essa sociedade pretenda ser, as
mulheres sabem qual é seu lugar:

As noivas ou esposas dos lutadores têm a mesma preocupação dos homens


em evitar qualquer contato íntimo… seu orgulho de ser noiva ou esposa de
um lutador forte suplanta o sentimento amoroso.

Por fim, Riefenstahl acerta em cheio na escolha de seu


tema fotográfico, ao buscar um povo que “encara a morte
como uma simples questão de destino — ao qual eles não
resistem ou contra o qual não lutam”, uma sociedade cuja
cerimônia mais entusiasmada e exuberante é o enterro.
Viva la muerte.

Pode parecer um sinal de ingratidão e rancor não admitir


que se separe The Last of the Nuba do passado de
Riefenstahl, mas existem lições salutares para aprender
com a continuidade de sua obra, e também com esse
evento recente, inexorável e curioso — a reabilitação de
Riefenstahl. As carreiras de outros artistas que se tornaram
fascistas, como Céline, Benn, Marinetti e Pound (para não
mencionar Pabst, Pirandello e Hamsun, que abraçaram o
fascismo no declínio de suas forças), não são instrutivas em
termos comparativos. Pois Riefenstahl é a única grande
artista que se identificou completamente com a era nazista
e cuja obra, não só durante o Terceiro Reich, como ainda
trinta anos depois de sua queda, ilustrou com coerência
muitos temas da estética fascista.
Essa estética inclui, e supera em muito, uma celebração
bastante especial dos primitivos, tal como encontramos em
The Last of the Nuba. Em termos mais gerais, ela decorre da
preocupação (e a justifica) com situações de controle, de
comportamento submisso, de esforço extravagante e
capacidade de suportar dor, e endossa dois estados
aparentemente opostos: egomania e servidão. As relações
de dominação e escravização tomam a forma de uma
ostentação característica: a aglomeração em massa de
grupos de pessoas; a transformação de pessoas em coisas;
a multiplicação ou a replicação das coisas; e o agrupamento
de pessoas/coisas em torno da figura-força todo-poderosa e
hipnótica do líder. A dramaturgia fascista está centrada nas
transações orgiásticas entre forças poderosas e seus
fantoches, fardados de maneira uniforme e expostos em
números cada vez mais inflados. Sua coreografia alterna
movimento incessante e pose estática, congelada, “viril”. A
arte fascista glorifica a rendição, exalta a falta de
pensamento, glamoriza a morte.
Uma arte como essa está longe de se confinar a obras
rotuladas como fascistas ou produzidas sob governos
fascistas. (Para citar apenas filmes: Fantasia, de Walt
Disney, Entre a loura e a morena, de Busby Berkeley, 2001,
de Kubrick, exemplificam de modo chocante certas
estruturas e temas formais da arte fascista.) E, é claro,
traços da arte fascista proliferam na arte oficial de países
comunistas — que sempre se apresenta sob a bandeira do
realismo, ao passo que a arte fascista desdenha do realismo
em nome do “idealismo”. O gosto do monumental e da
obediência em massa ao herói é elemento comum à arte
fascista e à comunista, refletindo a visão de todos os
regimes totalitários de que a arte tem a função de
“imortalizar” seus líderes e suas doutrinas. A representação
de movimento em padrões grandiosos e rígidos é outro
elemento em comum, visto que essa coreografia ensaia a
própria unidade do regime. As massas são feitas para
assumirem formas, para serem desenhadas. Isso explica as
demonstrações atléticas em massa, a exibição coreografada
de corpos, a valorização de tal atividade em todos os países
totalitários; daí porque a arte do ginasta, tão popular hoje
em dia na Europa Oriental, também evoca traços
recorrentes da estética fascista, em nome da contenção ou
da delimitação da força, da precisão militar.
Na política fascista e comunista, a vontade é encenada
publicamente, no drama do líder e do coro. O que é
interessante na relação entre política e arte sob o Nacional-
Socialismo não é que a arte seja subordinada às
necessidades políticas, tendo em vista que isso se aplica a
ditaduras de esquerda e de direita, e sim que a política
tenha se apropriado da retórica da arte — a arte em sua
derradeira fase romântica. (A política é “a arte mais elevada
e mais abrangente que existe”, disse Goebbels em 1933, “e
nós que plasmamos a moderna política alemã sentimos que
somos artistas… a tarefa da arte e do artista [é] formar, dar
forma, remover os doentes e criar liberdade para os
saudáveis”.) E o que é interessante na arte sob o Nacional-
Socialismo são aqueles traços que a tornavam uma variante
especial da arte totalitária. A arte oficial de países como
União Soviética e China almeja expor e reforçar a
moralidade utópica. A arte fascista exibe uma estética
utópica — a da perfeição física. Pintores e escultores, sob o
nazismo, muitas vezes retratavam nus, mas eram proibidos
de mostrar imperfeições. Seus nus parecem fotos em
revistas de fisiculturismo: modelos que são ao mesmo
tempo hipocritamente assexuais e (num sentido técnico)
pornográficos, pois têm a perfeição da fantasia. A promoção
do belo e do saudável feita por Riefenstahl, cumpre dizer, é
muito mais sofisticada do que isso; e nunca é desprovida de
inteligência, como ocorre em outras artes visuais nazistas.
Ela preza uma vasta gama de tipos corporais — em termos
de beleza, Riefenstahl não é racista — e em Olympia ela
mostra, de fato, algum esforço e tensão, com suas
imperfeições concomitantes, além de aplicação e afinco
estilizados, aparentemente sem esforço (como o mergulho,
na sequência mais admirada do filme).
Em contraste com a castidade assexuada da arte
comunista oficial, a arte nazista é, ao mesmo tempo, lasciva
e idealizadora. Uma estética utópica (perfeição física;
identidade como um dado da biologia) implica um erotismo
ideal: a sexualidade convertida no magnetismo dos líderes e
na alegria dos adeptos. O ideal fascista consiste em
transformar a energia sexual em uma força “espiritual”, em
benefício da comunidade. O erótico (ou seja, mulheres) está
sempre presente como uma tentação, e a reação mais
admirável é a repressão heroica do impulso sexual. Desse
modo, Riefenstahl explica por que os casamentos dos
nubas, em contraste com seus enterros esplêndidos, não
envolvem cerimônias nem festas:

O maior desejo de um homem nuba não é unir-se com uma mulher, mas ser
bom lutador, ratificando, desse modo, o princípio da abstinência. As danças
cerimoniais dos nubas não são ocasiões sensuais, e sim “festivais da
castidade” — da contenção da força da vida.

A estética fascista se baseia na contenção das forças


vitais; os movimentos são confinados, presos, refreados.
A arte nazista é reacionária, desafiadoramente apartada
da tendência dominante das conquistas das artes do século.
Esse é, porém, o motivo pelo qual ela vem ganhando
espaço no gosto contemporâneo. Os organizadores
esquerdistas de uma exposição de pinturas e esculturas
nazistas em cartaz (a primeira desde a guerra) em Frankfurt
descobriram, para seu desgosto, que a exposição atraiu um
público grande demais e sem a seriedade esperada. Mesmo
quando acompanhada de advertências didáticas de Brecht e
de fotos de campos de concentração, o que a arte nazista
recorda para essas multidões é outra arte da década de
1930, qual seja, a art déco. (A art nouveau não poderia ser
um estilo fascista; ela constitui, ao contrário, o protótipo
daquela arte que o fascismo define como decadente. O
estilo fascista, em seu ponto culminante, é art déco, com
suas linhas bem marcadas e a brusca acumulação de
material, e com seu erotismo petrificado.) A mesma estética
responsável pelos colossos de bronze de Arno Breker — o
escultor favorito de Hitler (e de Cocteau, por um breve
tempo) — e de Josef Thorak também produziu o Atlas
musculoso, na frente do Rockefeller Center, em Manhattan,
e o monumento ligeiramente lúbrico em homenagem aos
soldados americanos da Primeira Guerra Mundial, na
estação ferroviária da rua 30, na cidade de Filadélfia.
Para um público sem sofisticação na Alemanha, o apelo da
arte nazista pode residir no fato de ser simples, figurativa,
emocional; não intelectual; um alívio para as complexidades
exigentes da arte modernista. Para um público mais
sofisticado, o apelo reside, em parte, na avidez que hoje
tende a recuperar todos os estilos do passado, em especial
aqueles mais espezinhados. Porém é muito improvável um
renascimento da arte nazista, depois do renascimento da
art nouveau, da pintura pré-rafaelita e da art déco. A pintura
e a escultura não são apenas pomposas; são
espantosamente pobres como arte. No entanto, são essas
as características que levam as pessoas a olhar para a arte
nazista com um distanciamento astuto e jocoso, como uma
forma de pop art.
A obra de Riefenstahl é isenta do amadorismo e da
ingenuidade que encontramos em outras artes produzidas
na era nazista, ainda que promova muitos dos mesmos
valores. E a mesma sensibilidade moderna também pode
apreciá-la. As ironias da sofisticação pop abrem caminho
para uma forma de encarar a obra de Riefenstahl na qual
não só sua beleza formal, como igualmente seu fervor
político, são vistos como uma forma de excesso estético. E
com essa apreciação distanciada de Riefenstahl há uma
receptividade, consciente ou não, ao próprio tema que
confere poder à sua obra.
Triunfo da vontade e Olympia são filmes soberbos,
indiscutivelmente (talvez sejam os dois maiores
documentários jamais realizados), entretanto não são de
fato importantes na história do cinema, como forma de arte.
Ninguém que faça filmes hoje em dia alude a Riefenstahl, ao
passo que muitos cineastas (entre os quais me incluo)
encaram Dziga Vertov como uma provocação e fonte de
ideias inesgotável a respeito da linguagem cinematográfica.
Pode-se argumentar, contudo, que Vertov — a figura mais
importante do cinema-documentário — nunca fez um filme
tão puramente eficiente e eletrizante como Triunfo da
vontade ou Olympia. (É claro que ele nunca teve à sua
disposição os recursos com que Riefenstahl pôde contar. O
orçamento soviético para os filmes de propaganda na
década de 1920 e no início dos anos 1930 nada tinha de
abundante.)
Ao tratar da arte propagandística de esquerda e de
direita, prevalece um critério duplo. Poucas pessoas
admitiriam que a manipulação das emoções nos últimos
filmes de Vertov e nos filmes de Riefenstahl produz o
mesmo tipo de entusiasmo. Ao explicar por que se sentem
comovidas, as pessoas em geral são sentimentais, no caso
de Vertov, e desonestas, no de Riefenstahl. Assim, a obra
dele evoca boa dose de simpatia moral da parte das
plateias de cinéfilos em todo o mundo; as pessoas admitem
que se sentem comovidas. Com a obra de Riefenstahl, o
truque consiste em filtrar a ideologia política nociva dos
filmes, deixando apenas os méritos “estéticos”. Elogiar os
filmes realizados por ele sempre pressupõe o conhecimento
de que o cineasta era uma pessoa atraente e um pensador-
artista inteligente e original, que acabou esmagado pela
ditadura a que serviu. A maior parte do público
contemporâneo de Vertov (como de Eisenstein e Pudóvkin)
supõe que os propagandistas do cinema nos primeiros anos
da União Soviética estavam ilustrando um ideal nobre, por
mais que este tenha sido traído na prática. Mas o elogio
para Riefenstahl não conta com o mesmo recurso, pois
ninguém, nem os reabilitadores, conseguiram torná-la
afável; e ela nada tem de pensadora.
E, o que é mais importante, em geral se pensa que o
Nacional-Socialismo representa apenas brutalidade e terror.
Mas isso não é verdade. Ele — assim como o fascismo, em
termos mais amplos — também significa um ideal, ou
melhor, ideais que persistem na atualidade sob outras
bandeiras: o ideal da vida como arte, o culto da beleza, o
fetichismo da coragem, a dissolução da alienação em
sentimentos de êxtase de comunidade; o repúdio do
intelecto; a família do homem (sob a paternidade dos
líderes). Esses ideais estão vivos e permanecem atuantes
para muita gente, e é desonesto, bem como tautológico,
dizer que uma pessoa é afetada por Triunfo da vontade e
Olympia apenas porque foram feitos por uma cineasta de
gênio. Os filmes de Riefenstahl ainda são eficazes porque,
entre outras coisas, seus anseios continuam a ser sentidos,
porque seu conteúdo é um ideal romântico ao qual muitos
seguem ligados e que é expresso em modos diversos de
dissidência e propaganda cultural para novas formas de
comunidade, como a cultura jovem/rock, a terapia primal, a
antipsiquiatria, o terceiro-mundismo, a crença no oculto. A
exaltação da comunidade não elimina a busca da liderança
absoluta; ao contrário, pode inevitavelmente levar a ela.
(Não é de admirar que um bom número de jovens que hoje
se prostram diante de gurus e se submetem a uma
disciplina mais grotescamente autocrática são ex-
antiautoritários e ex-antielitistas da década de 1960.)
A atual desnazificação de Riefenstahl e sua defesa como a
sacerdotisa indômita do belo — como cineasta e, agora,
como fotógrafa — não auguram nada de bom sobre a
agudeza da capacidade presente de detectar anseios
fascistas em nosso meio. Riefenstahl não é o tipo comum de
esteta nem de romântica antropológica. Como a força de
sua obra reside justamente na continuidade de suas ideias
políticas e estéticas, o que é interessante é que isso foi
visto, no passado, com muito mais clareza do que parece
ser visto hoje em dia, quando as pessoas afirmam ser
atraídas pelas imagens por ela produzidas por conta de sua
beleza e composição. Sem perspectiva histórica, esse
conhecimento especializado prepara o caminho para uma
aceitação curiosamente desatenta da propaganda de todos
os tipos de sentimentos destrutivos — sentimentos cujas
implicações as pessoas se recusam a levar a sério. Em
algum lugar, é claro, todos sabem que há mais do que
beleza em jogo, numa arte como a de Riefenstahl. E assim
suas posições estão protegidas — as pessoas admiram essa
arte por sua beleza indiscutível e a defendem pela
promoção hipócrita do belo. Por trás das apreciações
formalistas solenes e seletivas, existe uma reserva de
apreciação mais ampla, a sensibilidade vulgar, que não é
tolhida pelos escrúpulos da seriedade elevada: e a moderna
sensibilidade se apoia nos acordos contínuos entre a
abordagem formalista e o gosto vulgar.
A arte que evoca os temas da estética fascista é popular
hoje em dia, e para a maioria das pessoas nada mais é do
que uma variedade do vulgar. O fascismo pode ser chique e
talvez a moda, com sua promiscuidade irreprimível de
gosto, acabe nos salvando. Mas os juízos de gosto, em si,
parecem menos inocentes. A arte que parecia claramente
digna de ser defendida, há dez anos, como um gosto
minoritário ou questionador, não parece mais defensável
porque as questões éticas e culturais que levanta se
tornaram sérias, até perigosas, de uma forma que não eram
antes. A dura verdade é que aquilo que pode ser aceitável
numa cultura de elite pode não ser numa cultura de massa
e que os gostos que propõem questões éticas inócuas como
propriedade de uma minoria se tornam corruptores, quando
estão mais estabelecidos. Gosto é contexto, e o contexto
mudou.
II

Prova número dois. Aqui está um livro para ser comprado


numa banca de aeroporto e em livrarias de “adultos”, um
volume em brochura relativamente barato — não se trata
de um item para ser exposto na mesa de centro da sala, ao
gosto dos amantes da arte e dos bien-pensant, como The
Last of the Nuba. Sim, os dois compartilham certa
semelhança de origem moral, uma preocupação de raiz: a
mesma preocupação em estágios diferentes de evolução —
as ideias que animam The Last of the Nuba estão menos
fora do armário moral do que a ideia mais crua, mais
eficiente, que sustenta SS Regalia [Emblemas da SS].
Embora o livro seja uma compilação respeitável feita na
Grã-Bretanha (com um prefácio histórico de três páginas e
notas no fim do volume), sabemos que seu apelo não é
científico, mas sexual. A capa já deixa isso claro. Por cima
da grande suástica preta de uma braçadeira da SS, há uma
faixa diagonal em que está escrito: “Mais de cem
extraordinárias fotografias coloridas por apenas 2,95
dólares”, exatamente como se colava uma etiqueta com o
preço — em parte, um chamariz, em parte, por
consideração à censura — na capa das revistas
pornográficas, em cima da genitália.
Há uma fantasia generalizada em torno de uniformes. Eles
sugerem comunidade, ordem, identidade (por meio de
divisas, distintivos, medalhas, objetos que declaram quem é
o portador e o que ele fez: seu valor é reconhecido),
competência, autoridade legitimada, exercício da violência
legitimado. Mas há uma diferença entre uniformes e
fotografias de uniformes — que são materiais eróticos —, e
fotos de uniformes da SS são itens de uma fantasia sexual
especialmente poderosa e amplamente disseminada. Por
que a SS? Porque a SS era a encarnação ideal da afirmação
franca do fascismo do direito à violência, o direito de ter
poder total sobre os outros e tratá-los como inferiores. Era
na SS que essa afirmação parecia mais cabal, porque eles a
executavam de modo singularmente brutal e eficiente; e
porque eles dramatizavam isso ao se ligarem a
determinados padrões estéticos. A SS era tida como uma
comunidade militar de elite que não só seria supremamente
violenta, como também supremamente bela. (Não é
provável que topemos com um livro intitulado Emblemas da
S.A. A SA, que foi substituída pela SS, não era conhecida por
ser nem um pouco menos brutal do que sua sucessora,
porém seus membros entraram para a história como
homens do tipo bebedores de cerveja, parrudos e
atarracados; meros camisas-marrons.)
Os uniformes da SS eram elegantes, bem talhados, com
um toque de excentricidade (mas não em excesso).
Comparem-nos com o uniforme do Exército americano,
maçante e não muito bem cortado: casaco, camisa, gravata,
calça, meias e sapatos de cadarço — basicamente roupas
civis, por mais que estivessem cobertas de medalhas e
insígnias. Os uniformes da SS eram justos, pesados, rígidos e
incluíam luvas, para isolar as mãos, e botas, que deixavam
as pernas e os pés pesados, encaixotados, obrigando seu
portador a se manter ereto. Como explica a quarta-capa de
SS Regalia:

O uniforme era preto, cor que tinha nuances importantes na Alemanha. Sobre
o uniforme, os membros da SS usavam uma variedade enorme de
condecorações, símbolos, insígnias, para distinguir a patente, desde as runas
no colarinho até a imagem da caveira. A aparência era dramática e também
ameaçadora.

O chamariz quase espirituoso da capa não prepara o leitor


para a banalidade da maioria das fotos. Com os famosos
uniformes pretos, soldados da SS foram vestidos em
uniformes cáqui, quase com um aspecto de soldados
americanos, ponchos e casacos de camuflagem. Além das
fotos de uniformes, há páginas com detalhes de colarinhos,
pulseiras, divisas em forma de V na manga, fivelas de cinto,
insígnias comemorativas, estandartes de regimento,
flâmulas de clarins, quepes de campanha, medalhas por
serviços prestados, dragonas, autorizações, passes —
poucos trazem as famigeradas runas ou a caveira; tudo é
meticulosamente identificado pela patente, unidade, ano e
estação do ano em que foi feito. É o caráter inócuo de quase
todas as fotos que atesta o poder da imagem: estamos
manuseando o breviário de uma fantasia sexual. Porque a
fantasia, para ter profundidade, deve ter detalhes. Por
exemplo, qual era a cor da autorização de viagem
necessária para um sargento da SS que quisesse ir de
Tréveris para Lübeck na primavera de 1944? É preciso
dispor de todas as provas documentais.
Se a mensagem de fascismo foi neutralizada por uma
visão estética da vida, seus ornamentos foram sexualizados.
Essa erotização do fascismo pode ser notada em
manifestações cativantes e piedosas como os livros
Confissões de uma máscara e Sol e aço, de Mishima, e em
filmes como Scorpio Rising, de Kenneth Anger, e mais
recentemente, e sem despertar o mesmo interesse, no filme
de Visconti intitulado Os deuses malditos e no filme de
Cavani, O porteiro da noite. A solene erotização do fascismo
deve ser distinguida de uma brincadeira sofisticada com o
horror cultural, em que se verifica um elemento de
dissimulação. O cartaz que Robert Morris fez para sua
recente exibição na galeria Castelli é uma foto do artista nu
da cintura para cima, de óculos escuros, com o que parece
ser um capacete nazista e um colarinho de aço com
espetos, preso a uma corrente grossa que ele segura nas
mãos erguidas e algemadas. Os rumores são de que Morris
julgou ser essa a única imagem que ainda tem alguma força
para chocar: uma honestidade singular para aqueles
segundo os quais é óbvio que a arte é uma decorrência de
gestos de provocação sempre renovados. Mas o propósito
do cartaz é sua própria negação. Chocar as pessoas no
contexto significa também habituá-las, à medida que o
material nazista vai entrando no vasto repertório da
iconografia utilizável para os comentários irônicos da pop
art. Todavia, o nazismo exerce maior fascínio que outras
iconografias adotadas pela sensibilidade pop (de Mao Tsé-
tung a Marilyn Monroe). Sem dúvida, parte da ascensão
generalizada do interesse pelo fascismo pode ser entendida
como produto da curiosidade. Para quem nasceu depois do
início da década de 1940, massacrado por um falatório
incessante, pró e contra, sobre o comunismo, é o fascismo
— o grande tema de conversa da geração de seus pais —
que representa o exótico, o desconhecido. Ademais, existe
esse fascínio geral entre os jovens com o horror, com o
irracional. Cursos sobre a história do fascismo, assim como
cursos sobre o oculto (incluindo vampirismo), figuram entre
os mais concorridos nas universidades hoje em dia. E, além
disso, o chamariz francamente sexual do fascismo, que o
livro SS Regalia comprova com desavergonhada clareza,
parece impermeável a um esvaziamento por efeito da ironia
ou da familiaridade excessiva.
Na literatura pornográfica, além dos filmes e dos
apetrechos disseminados por todo o mundo, sobretudo nos
Estados Unidos, na Inglaterra, na França, no Japão, na
Escandinávia, na Holanda e na Alemanha, a SS tornou-se um
referente da aventura sexual. Boa parte da imagística do
sexo exótico foi colocada sob o signo do nazismo. Botas,
couro, correntes, cruzes de ferro sobre peitos lustrosos,
suásticas, acompanhados de ganchos de açougue e
motocicletas pesadas, se tornaram a parafernália secreta e
extremamente lucrativa do erotismo. Nas lojas de artigos
sexuais, nas saunas, nos bares gays, nos bordéis, as
pessoas carregam seus acessórios. Mas por quê? Por que a
Alemanha nazista, que era uma sociedade sexualmente
repressiva, se tornou erótica? Como um regime que
perseguiu homossexuais pôde tornar-se excitante para os
gays?
Encontra-se uma pista nas predileções dos próprios
líderes fascistas por metáforas sexuais. Como Nietzsche e
Wagner, Hitler encarava a liderança como uma dominação
sexual das massas “femininas”, como um estupro. (A
expressão das massas em Triunfo da vontade é de êxtase; o
líder faz a multidão gozar.) Movimentos esquerdistas
tendiam a ser unissex e assexuais em sua imagística. Os
movimentos direitistas, por mais puritanas e repressivas
que sejam as realidades impostas por eles, têm uma
superfície erótica. Certamente, o nazismo é mais “sexy” do
que o comunismo (o que não conta como crédito a favor do
nazismo, apenas mostra algo da natureza e dos limites da
imaginação sexual).
Sem dúvida, a maioria das pessoas que se excitam com
uniformes da SS não está exprimindo aprovação ao que os
nazistas fizeram, se é que elas têm uma ideia um pouco
mais do que esquemática sobre o que foi isso que eles
fizeram. Contudo, correntes fortes e crescentes de
sentimento sexual, que costumam atender pelo nome de
sadomasoquismo, fazem as brincadeiras com o nazismo
parecerem algo erótico. Fantasias e práticas
sadomasoquistas são encontradas entre heterossexuais e
também entre homossexuais, embora a erotização do
nazismo seja mais visível entre homens homossexuais. O SM,

e não o swinging, é o grande segredo sexual dos últimos


anos.
Existe um vínculo natural entre sadomasoquismo e
fascismo. “Fascismo é teatro”, como disse Genet.5 Assim
como a sexualidade sadomasoquista: envolver-se no
sadomasoquismo é tomar parte no teatro sexual, uma
encenação da sexualidade. Os adeptos do sexo
sadomasoquista são exímios figurinistas, além de
coreógrafos e atores, num drama que é tanto mais excitante
porquanto é proibido para pessoas comuns. O
sadomasoquismo é para o sexo aquilo que a guerra é para a
vida civil: a experiência magnífica. (Riefenstahl explica: “O
que é puramente realista, uma fatia da vida, o que é
mediano, cotidiano, não me interessa”.) Do mesmo modo
que o contraste social parece manso em comparação com a
guerra, os atos de trepar e chupar acabam parecendo
apenas bons e, portanto, não excitam. O fim para o qual
tendem todas as experiências sexuais, como Bataille insistiu
em seus escritos de toda uma vida, é a conspurcação, a
blasfêmia. Ser “bom”, como ser civilizado, significa ser
alienado dessa experiência selvagem — que é
completamente encenada.
O sadomasoquismo, obviamente, não consiste apenas em
pessoas machucando seus parceiros sexuais, o que sempre
ocorreu — e em geral se pensa num homem batendo em
uma mulher. O eterno camponês russo embriagado que
espanca a esposa está apenas fazendo algo que tem
vontade (porque é infeliz, oprimido, atordoado; e porque as
mulheres são as vítimas mais próximas). Mas o eterno
inglês que leva chicotadas no bordel está recriando uma
experiência. Ele paga uma prostituta para representar uma
peça teatral com ele, para reencenar ou evocar o passado
— experiências dos seus tempos de escola ou do jardim de
infância, que agora representam para ele uma enorme
reserva de energia sexual. Hoje, pode ser o passado nazista
que as pessoas invocam na teatralização da sexualidade,
porque são naquelas imagens (mais do que nas memórias)
que elas esperam encontrar uma reserva de energia sexual
que pode ser canalizada. O que os franceses denominam
“vício inglês” poderia, no entanto, ser chamado de uma
espécie de afirmação engenhosa de individualidade; a
pequena peça teatral remetia, afinal, ao histórico do caso
do próprio tema. A mania de emblemas nazistas indica algo
bem diferente: uma reação a uma liberdade opressiva de
escolha no sexo (e em outras questões), a um grau de
individualidade intolerável; o ensaio da escravização, em
vez de sua encenação.
Os rituais de dominação e escravização cada vez mais
praticados e a arte cada vez mais dedicada a expressar
seus temas talvez sejam apenas a extensão lógica de uma
tendência da sociedade afluente a transformar todas as
partes da vida das pessoas em um gosto, uma escolha;
convidá-las a encarar a própria vida como um estilo (de
vida). Em todas as sociedades até hoje, o sexo é
considerado sobretudo uma atividade (algo para fazer, sem
pensar no assunto). Mas, quando se torna um gosto, pode
ser que já esteja a caminho de se tornar uma maneira
consciente de teatro, e este é exatamente o significado do
sadomasoquismo: uma forma de satisfação ao mesmo
tempo violenta e indireta, muito mental.
O sadomasoquismo sempre foi o ponto extremo da
experiência sexual: quando o sexo se torna mais puramente
sexual, ou seja, separado da personalidade, dos
relacionamentos, do amor. Não deveria ser surpreendente o
fato de ter se vinculado ao simbolismo nazista, nos últimos
anos. Nunca antes a relação de mestres e escravos foi tão
conscientemente estetizada. Sade teve de inventar seu
teatro de punição e deleite a partir do zero, improvisando o
cenário, os figurinos e os ritos blasfemos. Agora, existe um
cenário básico disponível para todos. A cor é o preto, o
tecido é o couro, a sedução é a beleza, a justificação é a
honestidade, o objetivo é o êxtase, a fantasia é a morte.

(1974)
Sob o signo de Saturno

Na maioria dos retratos, ele aparece olhando para baixo, a


mão direita no rosto. A foto mais antiga que conheço o
mostra em 1927 — aos 35 anos —, cabelo escuro e crespo
sobre a testa alta, bigode acima do lábio inferior carnudo:
jovem, quase bonito. De cabeça baixa, seus ombros
cobertos por um paletó parecem começar logo abaixo das
orelhas; o polegar repousa no maxilar; um cigarro entre o
indicador curvado e o dedo médio e o resto da mão cobre o
queixo; o olhar voltado para baixo, através dos óculos — o
olhar manso, sonhador, do míope —, parece flutuar para
além da margem esquerda da foto.
Num retrato do final da década de 1930, o cabelo crespo
pouco retrocedeu, porém não existe mais nenhum traço de
juventude ou de beleza; o rosto está alargado e a parte
superior do tronco parece não só um pouco alta como
também maciça, volumosa. O bigode está mais espesso e a
mão fechada e gorducha, com o polegar dobrado para
dentro, recobre a boca. O olhar é opaco ou apenas mais
introspectivo: ele podia estar pensando — ou escutando.
(“Quem escuta muito não vê”, escreveu Benjamin em seu
ensaio sobre Kafka.) Há livros atrás de sua cabeça.
Numa fotografia tirada no verão de 1938, na última de
várias visitas que fez a Brecht no exílio na Dinamarca depois
de 1933, ele está de pé na frente da casa de Brecht, um
velho de 46 anos, de camisa branca, gravata, calça com
correntinha de relógio: uma figura descuidada, corpulenta,
que olha com truculência para a câmera.
Outra fotografia, esta de 1937, mostra Benjamin na
Bibliothèque Nationale em Paris. Dois homens, cujos rostos
não estão visíveis, dividem uma mesa a certa distância
atrás dele. Benjamin está sentado à direita, no primeiro
plano, provavelmente fazendo anotações para o livro sobre
Baudelaire e a Paris do século XIX que vem escrevendo já faz
uma década. Consulta um volume aberto sobre a mesa,
com a mão esquerda — seus olhos não estão visíveis —, e
olha, por assim dizer, para o canto inferior direito da
fotografia.
Seu amigo íntimo Gershom Scholem descreveu seu
primeiro encontro com Benjamin, em Berlim, em 1913,
numa reunião de um grupo da juventude sionista e de
membros judeus da Associação Livre de Estudantes
Alemães, da qual Benjamin, aos 21 anos, era um dos
líderes. Ele falou “de improviso, sem lançar um único olhar
para a plateia; olhava fixamente para um canto distante do
teto, que ele admoestava com muita veemência, num estilo
que, por acaso, até onde me lembro, já estava pronto para a
letra impressa”.
Ele era o que os franceses chamam de un triste. Em sua
juventude, parecia marcado por uma “tristeza profunda”,
escreveu Scholem. Considerava-se um melancólico,
desdenhando os rótulos psicológicos modernos e invocando
a tradição astrológica: “Vim ao mundo sob o signo de
Saturno — a estrela da revolução mais baixa, o planeta de
desvios e atrasos…”. Seus principais projetos, o livro
publicado em 1928 sobre o drama barroco alemão (sobre o
Trauerspiel; literalmente, peça do luto) e o jamais concluído
Paris, capital do século XIX, não podem ser plenamente
compreendidos a menos que se entenda a que ponto se
alicerçam numa teoria da melancolia.
Benjamin projetou a si mesmo, seu temperamento, em
todos os seus temas principais, e seu temperamento
determinava a escolha dos assuntos sobre os quais
escrevia. Era o que ele via nos temas, como as peças
barrocas do século XVII (que dramatizam diferentes facetas
da “acédia saturnina”) e nos escritores sobre cuja obra
escreveu com maior brilhantismo — Baudelaire, Proust,
Kafka, Karl Kraus. Benjamin chegou a encontrar um
elemento saturnino em Goethe. Pois a despeito da polêmica
em seu importante ensaio (ainda não traduzido) sobre As
afinidades eletivas, de Goethe, contra a tentativa de
interpretar a obra de um escritor por meio de sua vida, ele
fez, de fato, um uso seletivo da vida em suas meditações
mais profundas sobre textos: informação que revelava o
melancólico, o solitário. (Assim, a solidão de Proust é
descrita como uma “solidão que empurra o mundo para
dentro de seu redemoinho”; ele explica como Kafka, a
exemplo de Klee, era “essencialmente solitário”; cita o
“horror do sucesso na vida” de Robert Walser.) Não se pode
usar a vida para interpretar a obra. Mas se pode usar a obra
para interpretar a vida.
Dois livros curtos de memórias da Berlim de sua infância e
dos anos de estudante, escritos no início da década de 1930
e nunca publicados em vida, contêm o mais explícito
autorretrato de Benjamin. Para o melancólico nascente, na
escola e em caminhadas com a mãe, “a solidão me parecia
o único estado próprio para o homem”. Benjamin não se
refere à solidão num quarto — ele foi uma criança
frequentemente doente —, mas sim à solidão numa grande
metrópole, à vida agitada de um caminhante sem
compromisso, livre para devanear, observar, ponderar,
vagar. A mente que havia de associar boa parte da
sensibilidade do século XIX à figura do flâneur, personificado
pelo melancólico maravilhoso e consciente que foi
Baudelaire, teceu boa parte da própria sensibilidade com
base na relação sutil, perspicaz, fantasmagórica que
mantinha com as cidades. A rua, a passagem, os arcos, o
labirinto são termos recorrentes em seus ensaios literários
e, notavelmente, no livro projetado sobre a Paris do século
XIX, bem como em seus textos de memórias e de viagens.

(Robert Walser, para quem caminhar era o centro de sua


vida reclusa e de seus livros maravilhosos, é um escritor
sobre o qual gostaríamos que Benjamin tivesse escrito um
ensaio mais extenso.) O único livro de natureza ligeiramente
autobiográfica publicado em vida se intitulou Rua de mão
única. Memórias pessoais são memórias de um lugar e de
como o sujeito lá se posiciona, de como navega por esse
local.
“Não encontrar o caminho numa cidade é algo que
desperta pouco interesse”, começa seu ainda não traduzido
A infância em Berlim por volta de 1900. “Mas perder-se
numa cidade, como perder-se numa floresta, requer
prática… Aprendi essa arte já tarde na vida: ela enchia os
sonhos cujos primeiros vestígios foram os labirintos nas
folhas de papel mata-borrão em meus cadernos de
exercícios.” Essa passagem também é encontrada em
Crônica berlinense, na qual Benjamin sugere que, para se
perder, foi necessária muita prática, tendo em vista a
sensação original de “impotência diante da cidade”. Seu
objetivo é ser um leitor competente de mapas de ruas que
sabe como se perder. E como se localizar, com mapas
imaginários. Em outra passagem de Crônica berlinense,
Benjamin relata que, durante anos, brincou com a ideia de
mapear sua vida. Para esse mapa, que ele imaginava em
cor cinzenta, concebeu um sistema colorido de sinais que
“indicavam claramente as casas dos meus amigos e
amigas, a sala de reuniões de vários coletivos, desde a
‘câmara de debate’ do Movimento da Juventude até os
locais de reunião da Juventude Comunista, os quartos do
hotel e do bordel onde estive por uma noite, os bancos
decisivos no Tiergarten, os caminhos para diversas escolas
e para as sepulturas que vi serem ocupadas, o local de
cafés afamados cujos nomes, há muito tempo esquecidos,
passam todos os dias por nossos lábios”. Certa vez, à
espera de alguém no Café des Deux Magots, em Paris, conta
ele, conseguiu traçar um diagrama de sua vida: era como
um labirinto no qual todos os relacionamentos importantes
figuravam como “uma entrada para o dédalo”.
As metáforas recorrentes de mapas e diagramas,
memórias e sonhos, labirintos e arcadas, mirantes e
paisagens evocam certa visão das cidades e certo tipo de
vida. Paris, escreve Benjamin, “me ensinou a arte de me
perder”. A revelação da verdadeira natureza da cidade não
veio em Berlim, mas em Paris, onde ele esteve com
frequência durante os anos de Weimar e onde morou como
refugiado de 1933 até seu suicídio, quando tentava fugir da
França, em 1940 — mais exatamente, a Paris reimaginada
nas narrativas surrealistas (Nadja, de Breton, O camponês
de Paris, de Aragon). Com tais metáforas, ele está indicando
um problema geral de orientação e construindo um padrão
de dificuldade e de complexidade. (Um labirinto é um lugar
onde a pessoa se perde.) Está sugerindo também uma ideia
sobre o proibido e sobre como ter acesso a ele: por meio de
um ato da mente que é igual a um ato físico. “Redes
completas de ruas foram abertas sob o auspício da
prostituição”, escreve em Crônica berlinense, que começa
invocando uma Ariadne, a prostituta que, pela primeira vez,
guia esse filho de pais ricos em meio ao “limiar de classe”.
A metáfora do labirinto sugere ainda a ideia de Benjamin a
respeito de obstáculos erguidos por seu próprio
temperamento.
A influência de Saturno deixa as pessoas “apáticas,
indecisas, lentas”, escreve ele em Origem do drama barroco
alemão (1928). Lentidão é uma das características do
temperamento melancólico. A falta de jeito é outra,
decorrente da percepção de que há possibilidades demais,
de que não temos senso prático. E também a teimosia, que
resulta do anseio de ser superior — em seus próprios
termos. Benjamin recorda sua teimosia durante as
caminhadas na infância, com a mãe, que transformava
aspectos insignificantes de conduta em testes da aptidão do
filho para a vida prática, reforçando desse modo o que havia
de inepto (“minha incapacidade, até hoje, de preparar uma
xícara de café”) e de sonhadoramente recalcitrante em sua
natureza. “Meu hábito de me mostrar mais lento, mais
desajeitado, mais burro do que sou, teve sua origem
naquelas caminhadas e traz consigo o importante risco de
me fazer pensar que sou mais rápido, mais hábil e mais
astuto do que sou.” E dessa teimosia decorre, “acima de
tudo, um olhar que parece enxergar menos de um terço
daquilo que abarca”.
Rua de mão única destila as experiências do escritor e do
amante (é dedicado a Asja Lacis, que “marcou fundo o
autor”),6 as quais podemos deduzir pelas palavras de
abertura sobre a situação do autor, que ecoam o tema do
moralismo revolucionário, e pelo “Ao planetário” final, um
panegírico ao flerte tecnológico da natureza e ao êxtase
sexual. Benjamin podia escrever sobre si mesmo mais
diretamente quando partia das memórias e não das
experiências contemporâneas; quando escrevia sobre si
mesmo, como criança. A essa distância, deslocando-se para
a infância, ele consegue avaliar sua vida como um espaço
que pode ser mapeado. A candura e a onda de sentimentos
dolorosos em Infância em Berlim e em Crônica berlinense se
tornam possíveis porque Benjamin adotou uma forma
plenamente digerida e analítica de relatar o passado. Ele
evoca fatos por meio das reações aos fatos, lugares por
meio das emoções depositadas nos lugares, outras pessoas
por meio do encontro com elas mesmas, sentimentos e
comportamentos por intermédio das sugestões de paixões e
fracassos futuros, contidos neles. Fantasias de monstros à
solta no apartamento grande, enquanto os pais distraem os
amigos, prefiguram sua aversão à própria classe; o sonho
de que vão deixá-lo dormir quanto tempo quiser, em vez de
ser obrigado a acordar cedo para ir à escola, será satisfeito
quando ele, afinal — depois que seu livro sobre o
Trauerspiel não foi aprovado num concurso para um cargo
de professor universitário —, se dá conta de que suas
“esperanças de ter uma posição e um meio seguro de
ganhar a vida sempre foram vãs”; sua maneira de caminhar
com a mãe, “com um cuidado pedante”, mantendo-se um
passo atrás dela, prefigura sua “sabotagem da existência
social real”.
Benjamin encara tudo o que escolhe para recordar no
passado como profético do futuro porque o trabalho da
memória (ler a si mesmo de trás para a frente, como ele
chamou) desmonta o tempo. Não existe nenhuma ordem
cronológica de suas reminiscências, razão por que
desautoriza o nome de autobiografia, pois o tempo é
irrelevante. (“Autobiografia tem a ver com o tempo, com
sequência e com o que cria o fluxo contínuo da vida”,
escreve ele em Crônica berlinense. “Aqui, estou falando de
espaço, de momentos e descontinuidades.”) Benjamin,
tradutor de Proust, escreveu fragmentos de uma obra que
poderia ser chamada de À la Recherche des espaces
perdus. A memória, a encenação do passado, transforma o
fluxo dos eventos em quadros. Benjamin não está tentando
recuperar seu passado, mas compreendê-lo: condensá-lo
em suas formas espaciais, em suas estruturas
premonitórias.
Para os dramaturgos barrocos, escreve ele em Origem do
drama barroco alemão, “o movimento cronológico é captado
e analisado numa imagem espacial”. O livro sobre o
Trauerspiel não é apenas o primeiro relato de Benjamin
sobre o que significa converter tempo em espaço; é onde
ele explica com mais clareza quais sentimentos subjazem a
esse movimento. Levado pela consciência melancólica da
“crônica desoladora da história do mundo”, um processo de
decadência incessante, os dramaturgos barrocos parecem
fugir da história e restaurar a “atemporalidade” do paraíso.
A sensibilidade barroca do século XVII tinha uma concepção
“panorâmica” da história: “a história se funde ao cenário”.
Em Infância em Berlim e Crônica berlinense, o autor funde
sua vida a um cenário. O sucessor do cenário barroco é a
cidade surrealista: a paisagem metafísica em cujos espaços,
à maneira de um sonho, as pessoas têm “uma existência
breve, vaga”, a exemplo do poeta de dezenove anos cujo
suicídio, grande dor dos tempos de estudante de Benjamin,
se condensa na memória dos quartos em que o amigo
morto morou.
Os temas recorrentes de Benjamin são,
caracteristicamente, modos de espacializar o mundo: por
exemplo, sua noção de ideias e experiências como ruínas.
Compreender algo é compreender sua topografia, saber
como mapear. E saber como se perder.
Para a personalidade nascida sob o signo de Saturno, o
tempo é um meio de coerção, inadequação, repetição, mera
realização. No tempo, somos apenas o que somos: aquilo
que sempre fomos. No espaço, podemos ser outra pessoa.
O fraco senso de direção de Benjamin e sua capacidade
limitada de ler um mapa de ruas se transformam em seu
amor por viagens e em sua maestria na arte de vagar sem
rumo. O tempo não nos proporciona muitos desvios: ele nos
empurra adiante, nos sopra através do túnel estreito do
presente rumo ao futuro. Mas o espaço é amplo, fervilhante
de possibilidades, posições, interseções, passagens,
desvios, curvas de 180 graus, becos sem saída, ruas de mão
única. Possibilidades demais, de fato. Como o
temperamento saturnino é vagaroso, propenso à indecisão,
às vezes é preciso cortar caminho com um golpe de faca. Às
vezes, acabamos por voltar a faca contra nós mesmos.
A marca do temperamento saturnino é a autoconsciência
e a relação implacável com o eu, que nunca pode ser tido
como algo óbvio. O eu é um texto — precisa ser decifrado.
(Portanto, trata-se de um temperamento apropriado para
intelectuais.) O eu é um projeto, algo a ser construído.
(Portanto, trata-se de um temperamento apropriado para
artistas e mártires, aqueles que cortejam “a pureza e a
beleza de um fracasso”, como disse Benjamin acerca de
Kafka.) E o processo de construir um eu e suas obras é
sempre muito vagaroso. Estamos constantemente
defasados em relação a nós mesmos.
As coisas aparecem ao longe, aproximam-se devagar. Em
Infância em Berlim, o autor fala de sua “propensão para ver
de muito longe tudo aquilo que me interessa que se
aproxime de mim” — a maneira como, quando criança, com
frequência enfermo, ele imaginava as horas se aproximando
do seu leito de doente. “Talvez seja essa a origem daquilo
que os outros chamam de paciência, em mim, mas que na
verdade não parece ser virtude nenhuma.” (Claro, os outros,
com efeito, experimentavam isso como paciência, como
uma virtude. Scholem descreveu-o como “o ser humano
mais paciente que jamais conheci”.)
Mas algo semelhante à paciência é necessário para os
esforços de decifração do melancólico. Proust, como
observa Benjamin, era estimulado pela “linguagem secreta
dos salões”; Benjamin era atraído por códigos mais
compactos. Colecionava livros de emblemas, gostava de
fazer anagramas, brincava com pseudônimos. Seu gosto por
pseudônimos antecede em muito sua necessidade como
refugiado judeu alemão que, de 1933 a 1936, continuou a
publicar resenhas em revistas alemãs sob o nome de Detlev
Holz, que usou para assinar o último livro publicado em
vida, Deutsche Menschen [Gente alemã], lançado na Suíça,
em 1936. No admirável texto escrito em Ibiza em 1933,
“Agesilaus Santander”, Benjamin fala de sua fantasia de ter
um nome secreto; o título do texto — que se converte na
figura do desenho de Klee de que era dono, Angelus novus
— é, como Scholem apontou, quase um anagrama de Der
Angelus Satanas. Ele era um grafólogo “enigmático”, relata
Scholem, embora “mais tarde tenda a esconder seu
talento”.
Dissimulação e mistério parecem constituir uma
necessidade para o melancólico, cujas relações com as
outras pessoas são complexas, não raro veladas. Esses
sentimentos de superioridade, de inadequação, de
frustração, de não ser capaz de obter o que deseja ou de
nem sequer nomear o que deseja corretamente (ou com
coerência) para si mesmo — esses sentimentos podem ser,
a sensação é até de que deveriam ser, mascarados pela
amizade ou pela manipulação mais escrupulosa. Para usar
uma palavra também aplicada a Kafka por aqueles que o
conheceram, Scholem fala da “cortesia quase chinesa” que
caracterizava as relações de Benjamin com as pessoas.
Mas, sobre esse homem que era capaz de justificar as
“invectivas de Proust contra a amizade”, não nos
surpreende saber que Benjamin também era capaz de
abandonar amizades brutalmente, como fez com seus
camaradas do Movimento da Juventude, quando estes já
não o interessavam mais. Tampouco ficamos surpresos ao
saber que esse homem meticuloso, intransigente,
ferrenhamente sério também era capaz de bajular pessoas
que, é muito provável, ele não tinha como iguais e também
de “se deixar fisgar” (suas próprias palavras) e se rebaixar
diante de Brecht, em suas visitas à Dinamarca. Esse
príncipe da vida intelectual era capaz de ser um cortesão.
Benjamin analisou os dois papéis, em Origem do drama
barroco alemão, segundo a teoria da melancolia. Uma
característica do temperamento saturnino é a lentidão: “o
tirano cai em virtude da morosidade de suas emoções”.
“Outro traço predominante de Saturno”, revela Benjamin, é
a “infidelidade.” Isso é representado pelo personagem do
cortesão, no drama barroco, cuja mente é “a flutuação em
pessoa”. A capacidade de manipulação do cortesão é, em
parte, “falta de caráter”; e, em parte, “reflete uma rendição
inconsolável e desalentadora a uma conjunção impenetrável
de constelações malignas [que] parecem fundidas numa
liga maciça, quase inanimada”. Só uma pessoa identificada
com esse sentido de catástrofe histórica, esse grau de
desolação, poderia explicar por que o cortesão não deve ser
desprezado. Sua infidelidade diante de seus semelhantes,
diz Benjamin, corresponde à “fé mais contemplativa, mais
profunda” que ele tem em seus emblemas materiais.
O que Benjamin descreve pode ser entendido como uma
patologia simples: a tendência do temperamento
melancólico de projetar para fora seu torpor interior, como a
imutabilidade de seu infortúnio, experimentado como
“maciço, quase inanimado”. Porém, sua argumentação é
mais audaciosa: ele percebe que as transações profundas
entre o melancólico e o mundo sempre ocorrem com coisas
(mais do que com pessoas); e que se trata de transações
autênticas, reveladoras de um significado. Justamente
porque a personalidade melancólica é assombrada pela
morte, são os melancólicos que sabem melhor como ler o
mundo. Ou melhor, é o mundo que se rende ao escrutínio
do melancólico mais do que ao de qualquer outro ser.
Quanto mais sem vida são as coisas, mais potente e
engenhosa pode ser a mente que as contempla.
Se esse temperamento melancólico é infiel às pessoas,
tem bons motivos para ser fiel às coisas. A fidelidade
repousa em acumulá-las — o que aparece, sobretudo, na
forma de fragmentos ou ruínas. (“É prática comum, na
literatura barroca, empilhar fragmentos de modo
incessante”, escreve Benjamin.) O barroco e o surrealismo,
sensibilidades com que ele sentia forte afinidade, veem a
realidade como coisas. Benjamin descreve o barroco como
um mundo de coisas (emblemas, ruínas) e ideias
especializadas (“Alegorias são, no reino do pensamento,
aquilo que são as ruínas, no reino das coisas”). O gênio do
surrealismo consistiu em generalizar, com exaltada
candura, o culto barroco às ruínas; perceber que as energias
niilistas da era moderna transformam tudo em ruína ou
fragmento — algo colecionável, portanto. Um mundo cujo
passado se tornou (por definição) obsoleto e cujo presente
produz antiguidades instantâneas sem parar é um convite
para curadores, decifradores e colecionadores.
Sendo ele mesmo uma espécie de colecionador, Benjamin
permaneceu fiel às coisas — enquanto coisas. Segundo
Scholem, construir sua biblioteca, que incluía muitas obras
em primeira edição e livros raros, era “sua paixão pessoal
mais duradoura”. Inerte em face da calamidade inanimada,
o temperamento melancólico é galvanizado por paixões
suscitadas por objetos privilegiados. Os livros de Benjamin
não eram só para uso, ferramentas profissionais; eram
objetos de contemplação, estímulos ao devaneio. Sua
biblioteca evoca “memórias das cidades onde descobri
tantas coisas: Riga, Nápoles, Munique, Danzig, Moscou,
Florença, Basileia, Paris… memórias dos quartos onde esses
livros foram abrigados…”. A caça de livros, como a caça de
sexo, amplia a geografia do prazer — outra razão para
vagar sem rumo pelo mundo. Ao colecionar, Benjamin
experimentava aquilo que havia, nele mesmo, de hábil,
exitoso, astuto, desinibidamente apaixonado. “Os
colecionadores são pessoas dotadas de um instinto tático”,
como os cortesãos.
Além das primeiras edições e dos livros de emblemas
barrocos, Benjamin se especializou em livros infantis e em
livros escritos por loucos. “As grandes obras que tinham tão
grande importância para ele”, relata Scholem, “eram
colocadas em posições bizarras, junto aos textos e às
esquisitices mais descabidas.” A organização estranha da
biblioteca é semelhante à estratégia da obra de Benjamin,
na qual o olho treinado no surrealismo para descobrir
tesouros de significados no efêmero, no desacreditado e no
relegado, trabalhava de mãos dadas com sua lealdade ao
cânone tradicional do gosto culto.
Ele gostava de descobrir coisas onde ninguém estava
procurando. Do obscuro e desdenhado drama barroco
alemão, ele extraiu elementos da sensibilidade moderna (ou
seja, de sua própria sensibilidade): o gosto pela alegoria, os
efeitos de choque do surrealismo, o discurso descontínuo, o
sentido de uma catástrofe histórica. “Aquelas pedras eram o
pão da minha imaginação”, escreveu ele sobre Marselha —
a cidade mais recalcitrante para aquela imaginação, mesmo
com a ajuda de uma dose de haxixe. Muitas referências
esperadas estão ausentes na obra de Benjamin — ele não
gostava de ler o que todo mundo andava lendo. Preferia,
como teoria psicológica, a doutrina dos quatro
temperamentos à teoria de Freud. Preferia ser comunista,
ou tentar ser comunista, sem ler Marx. Esse homem, que
lera quase tudo e gastara quinze anos se mantendo
solidário ao comunismo revolucionário, mal havia posto os
olhos em Marx, até o fim da década de 1930. (Estava lendo
O 18 de Brumário na época de sua visita a Brecht, na
Dinamarca, no verão de 1938.)
Seu sentido de estratégia era um dos pontos de
identificação com Kafka, um aspirante a tático muito afim a
ele, que “tomava precauções contra as interpretações de
seus escritos”. Todo o problema das narrativas de Kafka,
argumenta Benjamin, reside no fato de elas não terem
nenhum sentido definido, simbólico. E Benjamin era
fascinado pelo sentido muito diferente, não judeu, do
artifício praticado por Brecht, o anti-Kafka de sua
imaginação. (Brecht, como se podia prever, não gostou
nada do grande ensaio de Benjamin sobre Kafka.) Brecht,
sempre com o burrinho de madeira em sua escrivaninha, de
cujo pescoço pendia a tabuleta em que se lia “eu também
preciso entender”, representava, para Benjamin, um
admirador dos textos religiosos esotéricos, o artifício, talvez
mais poderoso, que consiste em reduzir a complexidade,
tornar tudo claro. A relação “masoquista” (a palavra é de
Siegfried Kracauer) de Benjamin com Brecht, deplorada pela
maioria de seus amigos, mostra a que ponto ele era
fascinado por essa possibilidade.
A propensão de Benjamin é de ir contra a interpretação
usual. “Todos os golpes decisivos são desferidos com a mão
esquerda”, diz ele em Rua de mão única. Exatamente por
ver que “todo conhecimento humano toma a forma de
interpretação”, ele compreendia a importância de ser contra
a interpretação, sempre que ela se mostrava óbvia. Sua
estratégia mais comum consiste em drenar o simbolismo de
certas coisas, como das narrativas de Kafka ou de As
afinidades eletivas de Goethe (sobre os quais todos
concordam haver simbolismo), e vertê-lo em outros textos,
nos quais ninguém desconfia de sua existência (como as
peças barrocas alemãs, que ele lê como alegorias do
pessimismo histórico). “Cada livro é uma tática”, escreveu.
Numa carta a um amigo, reivindicou para seus escritos, e
apenas parcialmente como brincadeira, 49 níveis de
significação. Para os modernos, assim como para os
cabalistas, nada é óbvio. Tudo é — pelo menos — difícil. “A
ambiguidade toma o lugar da autenticidade em tudo”,
escreveu ele em Rua de mão única. Nada há de mais alheio
a Benjamin do que tudo aquilo que se pareça com
ingenuidade: “o olho ‘desanuviado’, ‘inocente’ se
transformou numa mentira”.
Boa parte da originalidade dos argumentos de Benjamin
se deve a seu olhar microscópico (como assinalou seu
amigo e discípulo Theodor Adorno), combinado com seu
infatigável domínio das perspectivas teóricas. “Eram as
pequenas coisas que mais o atraíam”, escreve Scholem. Ele
adorava brinquedos velhos, selos de correio, cartões-postais
e miniaturizações jocosas da realidade, como o mundo de
inverno no interior de um globo de vidro, que faz nevar
quando o sacudimos. Sua letra era quase microscópica e
sua ambição jamais realizada, relata Scholem, era escrever
cem linhas numa folha de papel. (A ambição foi realizada
por Robert Walser, que costumava transcrever os
manuscritos de seus contos e romances como microgramas,
numa caligrafia realmente microscópica.) Scholem revela
que, quando foi visitar Benjamin em Paris, em agosto de
1927 (a primeira vez que os dois amigos se viam, desde que
Scholem emigrara para a Palestina, em 1923), Benjamin o
arrastou para uma exposição de objetos rituais judeus no
Musée Cluny, para lhe mostrar “dois grãos de trigo nos
quais uma alma irmã havia inscrito o Shema Israel
completo”.7
Miniaturizar é tornar portátil — a forma ideal de possuir
coisas, para um errante ou um refugiado. Benjamin, é claro,
era tanto um errante, em trânsito, como um colecionador,
sobrecarregado de coisas; ou seja, de paixões. Miniaturizar
é esconder. Ele era atraído pelo extremamente pequeno,
assim como por tudo o que havia decifrado: emblemas,
anagramas, caligrafia. Miniaturizar significa inutilizar. Pois
aquilo que é reduzido de modo tão grotesco é, em certo
sentido, liberado de seu significado — seu tamanho
diminuto é o que o torna especial. É tanto um todo (ou seja,
completo) quanto um fragmento (reduzido demais, em
escala errada). Um objeto de contemplação desinteressada
ou devaneio. O amor pelo pequeno é uma emoção de
criança, algo colonizado pelo surrealismo. A Paris dos
surrealistas é “um mundo pequeno”, observa Benjamin; da
mesma maneira como é a fotografia, que o gosto surrealista
descobriu como algo enigmático, ou mesmo
despropositado, e não como um objeto simplesmente
inteligível ou belo, e sobre a qual o autor escreveu com
tanta originalidade. O melancólico sempre se sente
ameaçado pelo domínio do inanimado, mas o gosto
surrealista escarnece de tais terrores. A grande dádiva do
surrealismo para a sensibilidade foi tornar a melancolia
alegre.
“O único prazer que o melancólico se permite, e é um
prazer bem poderoso, é a alegoria”, escreveu Benjamin em
A origem do drama barroco alemão. De fato, afirmou ele, a
alegoria é a maneira típica de ler o mundo dos
melancólicos, e citou Baudelaire: “Tudo para mim se torna
alegoria”. O processo que extrai sentido do petrificado e do
insignificante, a alegoria, é o método característico do
drama barroco alemão e de Baudelaire, os temas principais
de Benjamin; transposto em argumento filosófico e em
análise micrológica das coisas, era esse o método que o
próprio Benjamin aplicava.
O melancólico vê o próprio mundo transformar-se em uma
coisa: refúgio, consolo, encantamento. Pouco antes de sua
morte, Benjamin estava planejando um ensaio sobre a
miniaturização como artifício da fantasia. Parece ser a
continuação do antigo projeto de escrever sobre “A nova
Melusina”, de Goethe (em Wilhelm Meister), cuja história é a
de um homem apaixonado por uma mulher que, na
verdade, é uma pessoa minúscula, que apenas
temporariamente assumiu o tamanho normal; esse homem,
sem saber, leva consigo uma caixinha que contém, em
miniatura, o reino do qual ela é a princesa. No conto de
Goethe, o mundo é reduzido a uma coisa colecionável, um
objeto no sentido mais literal da palavra.
A exemplo da caixa no conto de Goethe, um livro não é
apenas um fragmento do mundo — é também ele mesmo
um pequeno mundo. O livro é uma miniaturização do
mundo que o leitor habita. Em Crônica berlinense, Benjamin
evoca seu entusiasmo de infância: “Eu não lia os livros:
morava nos livros, me abrigava entre suas linhas”. À leitura,
o delírio da criança, acabou se somando a escrita, a
obsessão do adulto. A maneira mais louvável de adquirir
livros consiste em escrevê-los, comenta Benjamin no ensaio
“Desembalando minha biblioteca”. E o melhor jeito de
compreender os livros consiste, também, em entrar no
espaço dos livros: nunca chegamos a entender realmente
um livro, a menos que o copiemos, registra em Rua de mão
única, assim como nunca entendemos uma paisagem vista
de um avião, senão quando caminhamos por ela.
“A quantidade de sentido guarda proporção exata com a
presença da morte e com o poder da decadência”, escreve
Benjamin no livro sobre o Trauerspiel. É isso que permite
descobrir sentido em nossa própria vida, nas “ocorrências
mortas do passado eufemisticamente conhecidas como
experiência”. O passado só pode ser lido porque está morto.
A história só pode ser compreendida porque está fetichizada
em objetos físicos. Só podemos entrar num livro porque ele
é um mundo. Para Benjamin, o livro era mais um espaço no
qual caminhar sem rumo. Para a personalidade nascida sob
o signo de Saturno, o verdadeiro impulso quando uma coisa
está sendo examinada é o de baixar os olhos, olhar para o
lado. Melhor ainda, baixar a cabeça para o caderno de
anotações. Ou pôr a cabeça atrás da parede de um livro.

É característico do temperamento saturnino culpar a


vontade pela contracorrente que o empurra rumo à
interiorização. Convicto de que sua vontade é fraca, o
melancólico pode fazer esforços extravagantes para
desenvolvê-la. Se tais esforços são malsucedidos, a
resultante hipertrofia da vontade costuma tomar a forma de
dedicação compulsiva ao trabalho. Assim, Baudelaire, que
sofreu constantemente de “acédia, a doença dos monges”,
terminou muitas cartas de seus Diários íntimos com as
promessas mais apaixonadas de trabalhar mais, de
trabalhar ininterruptamente, de não fazer mais nada, senão
trabalhar. (O desespero diante de “cada derrota da
vontade” — de novo, expressão de Baudelaire — é uma
queixa característica de artistas e intelectuais modernos,
sobretudo daqueles que são as duas coisas.) Estamos
condenados a trabalhar; do contrário, podemos não fazer
mais nada. Mesmo os devaneios do temperamento
melancólico estão atrelados ao trabalho, ainda que o
melancólico tente cultivar estados fantasmagóricos, como
sonhos, ou busque acessar estados concentrados de
atenção proporcionados pelas drogas. O surrealismo
simplesmente põe ênfase positiva naquilo que Baudelaire
vivenciou de modo tão negativo: não deplora o
esgotamento da volição, mas o eleva a um ideal, propondo
que os estados oníricos sejam utilizados para fornecer todo
o material necessário para o trabalho.
Benjamin, sempre trabalhando, sempre tentando
trabalhar mais, especulava bastante sobre a vida cotidiana
do escritor. Rua de mão única apresenta várias seções que
oferecem dicas para o trabalho: as melhores condições, o
momento, os utensílios. Uma parte do ímpeto da vasta
correspondência que ele produziu provinha da crônica, do
relato e da confirmação da existência do trabalho. Seus
instintos como colecionador lhe serviam muito bem.
Aprender era uma forma de colecionar, como nas citações e
excertos da leitura diária que Benjamin acumulava em
cadernos que levava consigo por toda parte e que lia em
voz alta para os amigos. Pensar também era uma forma de
colecionar, pelo menos em seus estágios preliminares.
Conscientemente, ele abrigava ideias recolhidas a esmo;
desenvolvia miniensaios em cartas para amigos; reescrevia
planos para projetos futuros; anotava seus sonhos (vários
estão contados em Rua de mão única); fazia listas
numeradas de todos os livros que lia. (Scholem se lembra
de ver, em sua segunda e última visita a Benjamin em Paris,
em 1938, um caderno de leituras em andamento no qual O
18 de Brumário de Marx está listado sob o número 1649.)
Como um melancólico se torna um herói da vontade?
Graças ao fato de que o trabalho pode se tornar semelhante
a uma droga, uma compulsão. (“Pensar […] é um narcótico
excelente”, escreveu ele no ensaio sobre o surrealismo.) De
fato, os melancólicos são os melhores viciados, porque a
verdadeira experiência viciante é sempre solitária. As
sessões de haxixe no fim da década de 1920,
supervisionadas por um médico seu amigo, foram proezas
cautelosas, e não atos de autoabandono; material para o
escritor, e não uma fuga das cobranças da vontade.
(Benjamin considerava o livro que ele pretendia escrever
sobre o haxixe um de seus projetos mais importantes.)
A necessidade de ser solitário — a par da amargura com a
própria solidão — é elemento característico do melancólico.
Para realizar um trabalho, é preciso ser solitário — ou, pelo
menos, não estar preso a nenhum relacionamento
permanente. Os sentimentos negativos de Benjamin sobre o
casamento estão claros no ensaio sobre As afinidades
eletivas, de Goethe. Seus heróis — Kierkegaard, Baudelaire,
Proust, Kafka, Kraus — nunca se casaram; e Scholem relata
que Benjamin chegou a encarar o próprio casamento (ele se
casou em 1917, desentendeu-se com a esposa depois de
1921 e se divorciou em 1930) “como fatal para ele”. O
mundo da natureza, e dos relacionamentos naturais, é
percebido pelo temperamento melancólico como menos do
que sedutor. O autorretrato em Infância em Berlim e em
Crônica berlinense é o de um filho completamente alienado;
como marido e como pai (seu filho, nascido em 1918,
emigrou para a Inglaterra com a mãe, a ex-esposa de
Benjamin, em meados da década de 1930), ele parece
simplesmente não saber o que fazer com esses
relacionamentos. Para o melancólico, o natural, na forma de
laços familiares, introduz o falsamente subjetivo, o
sentimental; é uma drenagem da vontade, da
independência; da liberdade para se concentrar no trabalho.
Também representa um desafio para sua própria
humanidade, um que o melancólico sabe, de antemão, que
não poderá enfrentar.
O estilo de trabalho do melancólico é a imersão, a
concentração total. Ou ele está imerso ou a atenção flutua
para longe. Como escritor, Benjamin era capaz de uma
concentração extraordinária. Foi capaz de pesquisar e
escrever A origem do drama barroco alemão em dois anos;
parte da obra, assim ele se vangloria em Crônica berlinense,
foi escrita em longas noites passadas num café, perto de
uma banda de jazz. Porém, embora escrevesse em profusão
— em certos períodos, Benjamin produzia textos todas as
semanas para jornais e revistas literárias alemãs —,
comprovou-se que lhe era impossível escrever novamente
um livro de tamanho normal. Numa carta de 1935, Benjamin
fala da “paz saturnina” de escrever Paris, capital do século
XIX, que havia começado em 1927 e que achou que poderia
terminar em dois anos. Sua forma característica continuou a
ser o ensaio. A intensidade e a atenção exaustivas do
melancólico estabeleceram limites naturais para a extensão
que ele podia dar ao desenvolvimento de suas ideias. Seus
principais ensaios parecem terminar na hora exata, antes
que pudessem se autodestruir.
Suas frases não parecem ser geradas da forma usual; elas
não se concatenam. Cada frase é escrita como se fosse a
primeira, ou a última. (“Um escritor deve parar e recomeçar
a cada nova frase”, revela ele no prólogo de Origem do
drama barroco alemão.) Os processos históricos e mentais
são apresentados como quadros conceituais; as ideias são
transcritas in extremis e as perspectivas intelectuais são
vertiginosas. Seu estilo de pensar e escrever,
incorretamente chamado de aforístico, seria mais bem
denominado barroco em fotogramas. Pôr em prática esse
estilo era uma tortura. Era como se cada frase tivesse de
dizer tudo, antes que o olhar interior da concentração total
dissolvesse o objeto diante dos próprios olhos. Benjamin
provavelmente não estava exagerando quando disse para
Adorno que cada ideia em seu livro sobre Baudelaire e a
Paris do século XIX “tinha de ser arrancada à força de um
reino no qual habita a loucura”.8
Algo como o horror de ser interrompido prematuramente
subjaz a essas frases, tão saturadas de ideias quanto a
superfície de uma pintura barroca é impregnada de
movimento. Numa carta para Adorno datada de 1935,
Benjamin descreve seu entusiasmo quando leu, pela
primeira vez, O camponês de Paris, de Aragon, livro que
inspirou Paris, capital do século XIX: “Eu não conseguia ler
mais do que duas ou três páginas na cama, à noite, porque
meu coração começava a bater tão forte que eu tinha de
deixar o livro cair das mãos. Que advertência!”. A
insuficiência cardíaca é o limite metafórico dos esforços e
das paixões de Benjamin. (Ele sofria de uma doença
cardíaca.) E a suficiência cardíaca é a metáfora que ele
propõe para a realização do escritor. No ensaio em louvor a
Karl Kraus, Benjamin escreve:

Se o estilo é a força para mover-se livremente na extensão e no fôlego do


pensamento linguístico, sem cair na banalidade, isso é alcançado sobretudo
mediante o esforço cardíaco de grandes pensamentos, que impele o sangue
da linguagem através dos vasos capilares da sintaxe até os membros mais
remotos.
Pensar e escrever são, em última análise, questões de
energia. O melancólico, que sente falta de vontade, pode
ter a sensação de que precisa de todas as energias
destrutivas que puder reunir.
“A verdade resiste a ser projetada no reino do
conhecimento”, escreve Benjamin em Origem do drama
barroco alemão. Sua prosa densa registra essa resistência e
não deixa espaço para atacar aqueles que distribuem
mentiras. Benjamin considerava a polêmica abaixo da
dignidade de um estilo verdadeiramente profissional e, em
troca, procurava o que chamava de “a plenitude da
positividade concentrada” — o ensaio sobre As afinidades
eletivas, com seu ataque devastador a Friedriech Gundolf,
crítico e biógrafo de Goethe, constitui a única exceção a
essa regra entre seus textos principais. Mas sua consciência
da utilidade ética da polêmica o levou a apreciar aquela
instituição pública vienense, encarnada num único homem,
que era Karl Kraus, escritor cuja facilidade, virulência, amor
ao aforismo e inesgotáveis energias polêmicas o tornaram
muito útil para Benjamin.
O ensaio sobre Kraus é a defesa mais apaixonada e tenaz
da vida mental. “A pérfida acusação de ser ‘inteligente
demais’ o assombrou durante toda sua vida”, escreveu
Adorno. Benjamin se defendia contra essa difamação
grosseira erguendo com destemor a bandeira da
“desumanidade” do intelecto, quando é adequadamente —
ou seja, eticamente — empregado. “A vida das letras é a
existência sob a égide apenas da mente, assim como a
prostituição é a existência sob a égide da mera
sexualidade”, assinalou ele. Celebra-se assim tanto a
prostituição (como fazia Kraus, porque a mera sexualidade
era a sexualidade num estado puro) como a vida das letras,
como fazia Benjamin, usando a imagem improvável de
Kraus, por causa da “função autêntica e demoníaca da
mente em si mesma, que é a de ser perturbadora da paz”. A
tarefa ética do escritor moderno não é ser um criador, mas
um destruidor — um destruidor da interioridade rasa, da
noção consoladora do universalmente humano, da
criatividade diletante e das frases vazias.
O escritor como flagelador e destruidor, retratado na
figura de Kraus, foi esboçado concisamente, e até com
maior audácia, no alegórico “A personalidade destrutiva”,
escrito também em 1931. Scholem destacou que a primeira
das muitas vezes em que Benjamin pensou no suicídio foi
no verão de 1931. A segunda foi no verão seguinte, quando
escreveu “Agesilaus Santander”. O flagelo de Apolônio, que
Benjamin chama de personalidade destrutiva, “está sempre
trabalhando com alegria… tem poucas necessidades… não
tem nenhum interesse em ser compreendido… é jovem e
animado… e não sente que a vida seja digna de se viver,
embora tampouco ache que o suicídio vale todo o
transtorno”.
É uma espécie de conjuração, uma tentativa de trazer
para fora os elementos destrutivos de sua personalidade
saturnina — para que não se tornem autodestrutivos.
Benjamin não está se referindo apenas à própria
destrutividade. Na sua opinião, existia no suicídio uma
tentação peculiarmente moderna. Em “A Paris do Segundo
Império em Baudelaire”, ele escreveu:

A resistência que a modernidade oferece ao elã produtivo natural de uma


pessoa é desproporcional à sua força. É compreensível que uma pessoa se
canse e procure refúgio na morte. A modernidade precisa ficar sob o signo do
suicídio, um ato que sela uma vontade heroica… Ele é a realização da
modernidade no reino das paixões…

O suicídio é entendido como uma reação da vontade


heroica à derrota da vontade. A única forma de evitá-lo,
sugere Benjamin, é colocando-se além do heroísmo, além
dos esforços da vontade. A personalidade destrutiva não
pode sentir-se presa porque “enxerga caminhos em toda
parte”. Alegremente empenhada em reduzir a escombros
aquilo que existe, “ela se posiciona nas encruzilhadas”.
O retrato de Benjamin da personalidade destrutiva
poderia evocar uma espécie de Siegfried da mente — um
animal selvagem, bem-disposto, animado e infantil, sob a
proteção dos deuses —, caso esse pessimismo apocalíptico
não tivesse sido amenizado pela ironia, sempre ao alcance
do temperamento saturnino. Ironia é o nome positivo que o
melancólico atribui à sua solidão, a suas escolhas associais.
Em Rua de mão única, Benjamin louvou a ironia que permite
aos indivíduos reivindicar o direito de levar vidas
independentes da comunidade como “a mais europeia de
todas as realizações”, e enfatizou que isso havia
desaparecido completamente da Alemanha. O gosto de
Benjamin pela ironia e pela consciência de si o situava à
margem de boa parte da cultura alemã recente: ele
detestava Wagner, desprezava Heidegger e zombava dos
movimentos frenéticos de vanguarda da Alemanha de
Weimar, como o expressionismo.
Apaixonadamente, mas também ironicamente, Benjamin
se situava nas encruzilhadas. Para ele, era importante
manter em aberto suas muitas “posições”: a teológica, a
surrealista/estética, a comunista. Uma posição corrige a
outra; ele precisava de todas. Decisões, é claro, tendiam a
estragar o equilíbrio de tais posições; a hesitação mantinha
tudo no lugar. A justificativa que ele dava para sua demora
em partir da França, quando esteve com Adorno pela última
vez no início de 1938, foi que “ainda existem aqui posições
para defender”.
Benjamin achava que o intelectual freelance era, afinal,
uma espécie em extinção, transformada em algo obsoleto
tanto pela sociedade capitalista como pelo comunismo
revolucionário; de fato, acreditava viver um tempo em que
tudo revestido com algum valor era o último de sua espécie.
Assim, o surrealismo era o último movimento inteligente da
intelligentsia europeia, um tipo devidamente destrutivo e
niilista de inteligência. Em seu ensaio sobre Kraus, Benjamin
indaga de maneira retórica: será que Kraus se situa na
fronteira de uma nova era? “Infelizmente, não. Pois ele se
situa no limiar do Juízo Final.” Benjamin está pensando em
si mesmo. No Juízo Final, o Último Intelectual — esse herói
saturnino da cultura moderna, com suas ruínas, suas visões
provocadoras, seus devaneios, sua desolação insaciável,
seus olhos voltados para baixo — explicará que ele tomou
muitas “posições” e defendeu a vida da mente até o fim, da
forma mais íntegra e desumana que pôde.

(1978)
O Hitler de Syberberg

Wer nicht von dreitausend Jahren


Sich Weiss Rechenschaft zu geben
Bleib im Dunkeln, unerfahren,
Mag von Tag zu Tage leben

[Qualquer pessoa que não possa recontar


para si mesma os últimos três milênios
permanecerá nas trevas, sem
experiência, vivendo um dia após o
outro.]

Goethe

Os românticos tomavam a grande arte como uma espécie


de heroísmo, ruptura ou superação. Seguindo seus passos,
os adeptos dos modernos cobravam das obras-primas que
fossem, em todos os casos, um caso extremo — terminal ou
profético, ou ambos. Walter Benjamin fez um julgamento
modernista característico quando observou (ao escrever
sobre Proust): “Todas as grandes obras da literatura fundam
ou dissolvem um gênero”. Por mais abundantes que sejam
seus precursores, uma obra que verdadeiramente apresenta
essa característica deve dar a impressão de romper com
uma ordem antiga e ser um passo devastador, embora
salutar. Essa obra amplia o alcance da arte, mas também
complica e estorva o empreendimento artístico, com
critérios novos e rigorosos. Ao mesmo tempo, estimula e
paralisa a imaginação.
Nos últimos tempos, o apetite para as obras
verdadeiramente grandes se tornou menos vigoroso. Assim,
Hitler, um filme da Alemanha, de Hans-Jürgen Syberberg, é
não só assombroso pelo caráter arrojado daquilo que
alcança, como também embaraçoso, como um bebê
indesejado na era do crescimento populacional zero. O
modernismo, que reconheceu a concretização dos objetivos
grandiosos da arte dos românticos (como sabedoria/ como
salvação/ como subversão ou revolução cultural), foi
sobrepujado por uma versão impertinente de si mesmo, que
habilitou os gostos modernistas a se difundirem numa
escala jamais sonhada. Despido de sua estatura heroica, de
suas pretensões a uma sensibilidade contestadora, o
modernismo revelou-se agudamente compatível com o
éthos de uma sociedade de consumo avançada. Arte, agora,
é o nome de uma variedade enorme de satisfações — da
proliferação e da desvalorização ilimitadas da própria
satisfação. Onde florescem tantas lisonjas, gerar uma obra-
prima parece um gesto retrógrado, uma forma ingênua de
realização. Sempre implausível (tanto quanto a
megalomania justificada), a Grande Obra é, no presente, um
ser estranho. Propõe satisfações imensas, solenes e
restritivas. Insiste em que arte deve ser verdadeira e não
apenas interessante; uma necessidade, não apenas um
experimento. Reduz a estatura de outras obras, contesta o
ecletismo fácil do gosto contemporâneo. Lança o público
num estado de crise.

Syberberg ganha relevância por sua arte (a arte do século


XX: o cinema) e também por seu tema (o tema do século XX:
Hitler). Os pressupostos são familiares, crus, plausíveis. Mas
nem de longe nos preparam para a escala e o virtuosismo
com que ele põe em cena os temas supremos: inferno,
paraíso perdido, apocalipse, os últimos dias da humanidade.
Temperando a grandiosidade romântica com ironias
modernistas, Syberberg oferece um espetáculo sobre o
espetáculo: evoca “o grande espetáculo” chamado História
numa variedade de gêneros — conto de fadas, circo, peça
de moralidade, cortejo alegórico, cerimônia mágica, diálogo
filosófico, Totentanz [dança macabra] — com um elenco
imaginário de dezenas de milhões de atores e tendo como
protagonista o Diabo em pessoa.
As ideias românticas maximalistas tão afins a Syberberg,
como a do talento ilimitado, a do tema supremo e a da arte
mais inclusiva — tais ideias impõem uma sensação
lancinante de possibilidades. A confiança de Syberberg de
que sua arte é apropriada a seus grandes temas deriva de
sua noção do cinema como meio de conhecimento que
estimula a especulação a dar uma guinada autorreflexiva.
Hitler é retratado por meio do exame de nossa relação com
ele (o tema é o “nosso Hitler” e “Hitler em nós”), pois os
horrores inassimiláveis da era nazista são representados no
filme de Syberberg como imagens ou signos. (Seu título não
é Hitler, mas justamente Hitler, um filme…)
Simular a atrocidade de modo convincente é correr o risco
de deixar o público passivo, reforçando os estereótipos do
obtuso, confirmando a distância e criando fascínio. Convicto
de que existe uma maneira moralmente (e esteticamente)
correta de um cineasta enfrentar o nazismo, Syberberg não
pode fazer uso de nenhuma das convenções estilísticas da
ficção tidas como realismo. Tampouco pode confiar em
documentos para mostrar como foi que aconteceu
“realmente”. A exemplo da simulação em forma de ficção, a
exposição da atrocidade em forma de documento
fotográfico corre o risco de ser tacitamente pornográfica.
Mais ainda, as verdades sem mediação que transmite sobre
o passado são pobres. Trechos de filmes do período nazista
não podem falar por si; requerem uma voz — que explique,
comente, interprete. No entanto, a relação entre a narração
sobreposta e o filme documental, como a relação entre a
legenda e uma fotografia, é tão somente adesiva. Em
contraste com o estilo pseudo-objetivo da narração na
maioria dos documentários, as duas vozes que ruminam
pensamentos e recobrem o filme de Syberberg expressam
constantemente dor, mágoa, desalento.
Mais do que conceber um espetáculo no tempo verbal
passado, tentando simular a “realidade irrepetível”
(expressão de Syberberg) ou mostrando-a em documentos
fotográficos, ele propõe um espetáculo no tempo verbal
presente — “aventuras na cabeça”. É claro, uma vez que
essa realidade histórica estética ferrenhamente antirrealista
é, por definição, irrepetível. A realidade só pode ser
apreendida de modo indireto — vista no reflexo de um
espelho, encenada no teatro da mente. O drama sinóptico
de Syberberg é radicalmente subjetivo, sem ser solipsista. É
um filme fantasmagórico — assombrado por seus grandes
modelos cinematográficos (Méliès, Eisenstein) e por seus
antimodelos (Riefenstahl, Hollywood); pelo romantismo
alemão; e, acima de tudo, pela música de Wagner e pelo
caso de Wagner. Um filme póstumo, na era da mediocridade
sem precedentes do cinema — repleto de mitos de cinéfilo,
sobre o cinema como o espaço ideal para a imaginação e a
história do cinema como uma história exemplar do século XX

(o martírio de Eisenstein por Stálin, a excomunhão de Von


Stroheim por Hollywood); e de hipérboles de cinéfilo; ele
designa Triunfo da vontade, de Riefenstahl, como o “último
monumento duradouro para Hitler, além dos noticiários de
cinema sobre sua guerra”. Uma das extravagâncias do filme
é que Hitler era um tipo de cineasta, quando na verdade ele
nunca visitou o front e via a guerra toda noite pelo
cinejornal. A Alemanha como um filme de Hitler.

Syberberg cunhou seu filme como uma fantasmagoria: a


forma sensual-meditativa preferida por Wagner, que
distende o tempo e resulta em obras que, na opinião do
desapaixonado, são longas demais. Sua extensão é
devidamente exaustiva — sete horas; e, a exemplo de O
Anel de Nibelungo, é uma tetralogia. Os títulos das quatro
partes são: Hitler, um filme da Alemanha; Um sonho
alemão; O fim do conto de inverno; Nós, filhos do inferno.
Um filme, um sonho, um conto. Inferno.
Em contraste com os cenários suntuosos, à maneira de
Cecil B. DeMille, que Wagner projetou para sua tetralogia, o
filme de Syberberg é uma fantasia barata. O grande estúdio
de som em Munique onde o filme foi realizado em 1977 (em
vinte dias — após quatro anos de preparação) é decorado
como uma paisagem surreal. O plano geral do cenário no
início da película expõe muitos dos modestos adereços
recorrentes em diferentes sequências e sugere os múltiplos
usos que Syberberg fará desse espaço: como espaço de
ruminação (a cadeira de vime, a mesa comum, os
candelabros); um espaço de afirmação teatral (a cadeira de
lona do diretor, o enorme megafone preto, as máscaras
viradas para cima); um espaço de emblemas (modelos do
poliedro na pintura Melencolia I, de Dürer, e do freixo do
cenário da primeira produção de A valquíria); um espaço de
julgamento moral (um grande globo, uma boneca sexual de
borracha em tamanho natural); um espaço de melancolia
(as folhas mortas espalhadas pelo chão).
Essa terra devastada, coalhada de alegorias (como o
limbo, como a Lua), tem o propósito de reter as multidões
em sua forma contemporânea, ou seja, póstuma. É na
verdade a terra dos mortos, uma Valhalla cinematográfica.
Uma vez que todos os personagens do melodrama-
catástrofe do nazismo estão mortos, o que vemos são seus
fantasmas — como fantoches, como espíritos, como
caricaturas de si mesmos. Esquetes carnavalescos
alternam-se com árias e solilóquios, narrativas, devaneios.
As duas presenças ruminantes (André Heller, Harry Baer),
em cena ou fora dela, mantêm uma melodia intelectual
interminável — listas, julgamentos, perguntas, anedotas
históricas bem como múltiplas caracterizações do filme e da
consciência que está por trás dele.
A musa do épico histórico de Syberberg é o próprio
cinema (“o mundo de nossas projeções interiores”),
representado no cenário da terra devastada por Black Maria,
o galpão de papel alcatroado construído para Thomas
Edison em 1893 como o primeiro estúdio de cinema. Ao
evocar o cinema como Black Maria, ou seja, ao recordar a
simplicidade artesanal de suas origens, Syberberg também
aponta para seu feito. Usando uma equipe reduzida, com
tempo para uma única tomada de cenas muito longas e
complexas, esse inventor de fantasia tecnicamente
engenhoso conseguiu filmar quase tudo como tinha
concebido; e tudo isso está na tela. (Talvez apenas um
espetáculo com orçamento tão baixo como esse — o custo
foi de 500 mil dólares — possa se conservar integralmente
fiel às intenções e improvisações de um criador individual.)
Por meio dessa forma ascética de filmar, com seus códigos
de ingenuidade intencional, Syberberg fez um filme que é,
ao mesmo tempo, despojado e suntuoso, discursivo e
espetacular.
Syberberg proporciona um espetáculo resultante de meios
modestos, replicando e reutilizando os elementos-chave
tantas vezes quanto possível. Fazer cada ator representar
vários papéis, convenção inspirada em Brecht, é um
aspecto dessa estética do uso múltiplo. Muitas coisas
aparecem pelo menos duas vezes no filme, uma vez em
tamanho natural e outra, miniaturizadas — por exemplo, um
objeto e sua fotografia; e todos os nazistas notáveis
aparecem representados por atores e por fantoches. A Black
Maria de Edison, o estúdio do primeiro cinema, é
apresentada de quatro maneiras: como uma grande
estrutura, na verdade o item principal do cenário, do qual os
atores saem e no qual entram; como estruturas de
brinquedo em dois tamanhos: a menor, numa paisagem de
neve dentro de um globo de vidro, que pode ser segurado
na mão de um ator, sacudido e questionado por ruminações
mentais; e como ampliação fotográfica do globo.
O cineasta utiliza abordagens múltiplas, vozes múltiplas.
O libreto é a mistura de um discurso imaginário com
palavras literais de Hitler, Himmler, Goebbels, Speer, e de
personagens secundários, como o massagista finlandês de
Himmler, Felix Kersten, e o camareiro de Hitler, Karl-Wilhelm
Krause. A complexa trilha sonora muitas vezes oferece dois
textos ao mesmo tempo. Entremeados e intermitentemente
sobrepostos ao discurso dos atores — uma espécie de
variedade acústica da técnica em que imagens são
projetadas ao fundo do cenário — aparecem documentos
sonoros históricos, como fragmentos de discursos de Hitler
e Goebbels, noticiários da rádio alemã e da BBC. O fluxo de
palavras inclui referências culturais em forma de citações
(não raro sem referência da autoria), como Einstein falando
de guerra e paz, uma passagem do “Manifesto Futurista” de
Marinetti — e toda essa polifonia verbal, inflada por
excertos do panteão da música alemã, sobretudo Wagner.
Trechos de, digamos, Tristão e Isolda ou do coro da Nona
Sinfonia de Beethoven são usados como outro tipo de
citação histórica que complementa ou comenta o que está
sendo dito, simultaneamente, por um ator.
Na tela, um sortimento diversificado de adereços e de
imagens emblemáticas fornece mais associações. Gravuras
de Doré para o Inferno e para a Bíblia, o retrato de
Frederico, o Grande, feito por Graff, o célebre fotograma do
filme de Méliès Viagem à Lua, A manhã, de Runge, O mar de
gelo, de Caspar David Friedrich, estão entre as referências
visuais que aparecem (mediante uma técnica sagaz de
projeção de slide) por trás dos atores. A imagem é
construída segundo o mesmo princípio de colagem adotado
para a trilha sonora, salvo pelo fato de que, enquanto
ouvimos muitos documentos históricos sonoros, Syberberg
faz uso escasso de documentos visuais da era nazista.
Méliès em primeiro plano, Lumière bastante em segundo
plano. O metaespetáculo de Syberberg quase engole o
documento fotográfico: quando vemos a realidade nazista
no filme, ela é um filme. Por trás de um ator sentado, que
remói pensamentos (Heller), o que se vê é um filme
doméstico em 8 mm ou 16 mm, uma filmagem de Hitler —
vago, bastante irreal. Esses pedaços de filme não têm a
função de mostrar como algo era “realmente”: fragmentos
de filme, slides de pinturas, fotogramas, tudo tem o mesmo
estatuto. Os atores representam na frente de ampliações
fotográficas que mostram locais lendários despovoados:
aquelas paisagens desertas, quase abstratas, numa escala
estranha, da Gruta de Vênus, de Ludovico II, em Linderhof,
da casa de campo de Wagner, em Bayreuth, da sala de
conferências na Chancelaria do Reich, em Berlim, da
varanda da casa de campo de Hitler, em Berchtesgaden,
dos fornos de Auschwitz, são um tipo de alusão mais
estilizada. São também um cenário antes fantasmagórico do
que “real”, com o qual Syberberg pode executar truques de
ilusionista que recordam Méliès: o ator parece estar
andando dentro de uma fotografia de grande profundidade
de campo e a cena termina com ele se virando e
desaparecendo por trás da uma abertura num pano de
fundo que parecia inteiriço.
O nazismo é conhecido por alusão, por intermédio da
fantasia, em forma de citação. Citações são literais, como
no testemunho de um sobrevivente de Auschwitz e
também, o que é mais comum, em referências cruzadas
extravagantes — como é o caso do histérico homem da SS
que recita o apelo do assassino de uma criança do filme M,
de Lang; ou no de Hitler, numa autojustificação, que, ao se
erguer do túmulo de Richard Wagner numa toga coberta de
teias de aranha, cita Shylock: “Se nos picarem, nós
sangramos?”. A exemplo das imagens fotográficas e dos
adereços, os atores são também substitutos do real. A maior
parte das falas tem o formato de um monólogo ou
monodrama, em que um ator sozinho fala diretamente para
a câmera, ou seja, para o público, ou com atores falando
para si mesmos (como na cena de Himmler e seu
massagista) ou declamando numa fila (os fantoches que
apodrecem no inferno). Tal como num tableau surrealista, a
presença do inanimado faz seu comentário irônico sobre
aquilo que supostamente está vivo. Os atores falam com
fantoches de Hitler, de Goebbels, de Göring, de Himmler, de
Eva Braun, de Speer, ou em nome deles. Várias cenas
mostram atores entre manequins de uma loja de
departamentos ou entre recortes fotográficos de fantasmas
lendários do cinema mudo alemão (Mabuse, Alraune,
Caligari, Nosferatu) e dos alemães arquetípicos fotografados
por August Sander. Hitler é uma presença multiforme
recorrente, retratada na memória, por via burlesca, numa
paródia histórica.
Citações no filme; o filme como um mosaico de citações
estilísticas. Para apresentar Hitler em múltiplos disfarces e
sob muitas perspectivas, Syberberg recorre a fontes
estilísticas díspares: Wagner, Méliès, técnicas de
distanciamento brechtianas, barroco homossexual, teatro de
fantoches. Esse ecletismo é a marca de um erudito
extremamente cioso de si, um artista ávido, cuja escolha de
materiais estilísticos (a mistura de alta arte com kitsch) não
é tão arbitrária como pode parecer. O filme de Syberberg é,
precisamente, surrealista em seu ecletismo. O surrealismo é
a variante tardia do gosto romântico, um romantismo que
supõe um mundo fraturado ou póstumo. É o gosto
romântico com tendência para o pastiche. As obras
surrealistas operam por meio de convenções de
desmembramento e reagregação, no espírito do páthos e da
ironia; tais convenções incluem o inventário (ou a lista
aberta); a técnica de duplicação mediante a miniaturização;
o hiperdesenvolvimento da arte da citação. Por intermédio
dessas convenções, em particular a circulação e a
reciclagem de citações visuais e acústicas, o filme de
Syberberg habita, com frequência, muitos lugares
simultaneamente — seu principal artifício de ironia
dramática e visual.
Sua maior ironia consiste em zombar de toda essa
complexidade, apresentando sua meditação sobre Hitler
como algo simples: uma história contada diante de uma
criança. Sua filha de nove anos de idade é a testemunha
muda e sonâmbula, coroada por lacinhos de celuloide, que
fica vagando pela paisagem do inferno, repleta de fumaça,
que abre e fecha as quatro partes do filme. Alice no País das
Maravilhas, o espírito do cinema — ela é, certamente,
concebida com esse fim. E Syberberg também evoca o
simbolismo da melancolia, identificando a criança com a
Melencolia de Dürer: no fim do filme, ela é inserida no
interior de uma lágrima bojuda, o olhar fixo na frente das
estrelas. Quaisquer que sejam as explicações, a imagem
deve muito ao gosto surrealista. O estado de sonambulismo
é uma convenção da narrativa surrealista. A pessoa que se
movimenta numa paisagem com essa característica está,
tipicamente, num estado sonhador, sereno. A obra que nos
conduz em meio a uma paisagem surrealista é sempre
quixotesca — sem esperança, obsessiva; e, por fim,
autocentrada. Uma imagem emblemática no filme, muito
admirada pelos surrealistas, é O olho refletindo o interior do
Teatro de Besançon (1804), de Ledoux. O olho de Ledoux
aparece primeiro na cena como uma imagem bidimensional.
Segue-se uma construção tridimensional, um olho como
teatro, no qual um dos narradores (Baer) vê a si mesmo
projetado no fundo — em um filme anterior feito por
Syberberg, Ludwig: Réquiem para um rei virgem, em que
representou o papel principal. Assim como Ledoux situa seu
teatro dentro do olho, Syberberg situa seu cinema dentro da
mente, onde todas as associações são possíveis.
O repertório de artifícios e imagens teatrais de Syberberg
parece inconcebível sem as liberdades e as ironias
introduzidas pelo gosto surrealista e reflete muitas de suas
afeições distintivas. O Grand Guignol, o teatro de fantoches,
o circo e os filmes de Méliès eram paixões surrealistas. O
gosto pelo teatro ingênuo e pelo cinema primitivo, bem
como por objetos que miniaturizam a realidade, pela arte do
romantismo setentrional (Dürer, Blake, Friedrich, Runge),
pela arquitetura como fantasia utópica (Ledoux) e como
delírio privado (Ludovico II) — a sensibilidade que abarca
tudo isso é o surrealismo. Porém existe um aspecto do gosto
surrealista que é alheio a Syberberg — a rendição ao acaso,
ao arbitrário; o fascínio pelo opaco, pelo sem sentido, pelo
mudo. Nada existe de arbitrário ou aleatório em seu
cenário, nenhuma imagem ou objeto desperdiçado, sem
peso emocional; de fato, certas relíquias e imagens em seu
filme têm a força de talismãs pessoais. Tudo significa, tudo
fala. Uma presença muda, a filha de Syberberg, apenas
ressalta a verbosidade implacável e a intensidade do filme.
Tudo no filme é apresentado como algo que foi consumido
por uma mente.
Quando a história se passa dentro da cabeça, as
mitologias públicas e privadas ganham estatutos iguais. Ao
contrário de outros megafilmes com cujas ambições épicas
ele pode ser comparado — Intolerância; Ivan, o Terrível,
Partes I e II; 2001 —, o filme de Syberberg é aberto a
referências pessoais, e também públicas. Os mitos públicos
do diabo são emoldurados pelas mitologias privadas da
inocência, desenvolvidas em dois filmes anteriores, Ludwig
(1972, duas horas e vinte minutos) e Karl May — À procura
do paraíso perdido (1974, três horas), que Syberberg trata
como as primeiras duas partes de uma trilogia sobre a
Alemanha, concluída com Hitler, um filme da Alemanha.
Ludovico II, mecenas e vítima de Wagner, é uma imagem
recorrente da inocência. Uma das imagens talismânicas de
Syberberg — a imagem que fecha Ludwig e é reutilizada em
Hitler — mostra Ludovico como uma criança barbada e
chorosa. A imagem que abre o filme de Hitler é a do Jardim
de Inverno de Ludovico, em Munique — uma paisagem
paradisíaca da cordilheira do Himalaia (na verdade, um
grande pano preto), palmeiras, lago, tenda, gôndola, que
figuraram em Ludwig.
Cada um dos três filmes vale por si só, mas, na medida
em que são encarados como partes de uma trilogia, vale a
pena sublinhar que Ludwig fornece mais imagens a Hitler,
um filme da Alemanha do que o segundo filme, Karl May.
Partes de Karl May, com seu “cenário” real e seus atores,
está mais próximo da dramaturgia linear, mimética, do que
qualquer coisa em Ludwig ou no filme sobre Hitler,
incomparavelmente mais ambicioso e profundo. Mas, como
todos os artistas com gosto para o pastiche, Syberberg só
tem um sentido limitado para aquilo que se entende por
realismo. O estilo de pastiche é essencialmente um estilo de
fantasia.

Syberberg concebeu uma variedade de espetáculo


particularmente alemã: o show de horror moralizado. Nas
banalidades dilacerantes da narrativa do camareiro, numa
paródia da personificação por Chaplin de Hitler em O grande
ditador, num esquete ao estilo de Grand Guignol sobre o
esperma de Hitler — o diabo é um espírito familiar. A Hitler
foi concedido até compartilhar o páthos da miniaturização:
o Hitler fantoche (vestido, despido, persuadido), acomodado
sobre os joelhos de um ventríloquo, o cachorro de pano com
a cara de Hitler, levado pela criança com ar desolado.
O espetáculo adquire familiaridade com os incidentes e os
personagens da história e da cultura alemãs, o regime
nazista, a Segunda Guerra Mundial; alude livremente a
acontecimentos nas três décadas desde a morte de Hitler.
Enquanto o presente é reduzido a ser o legado do passado,
o passado é adornado com o conhecimento de seu futuro.
Em Ludwig, esse itinerário histórico de final aberto parece
uma ironia fria (brechtiana?) — como no momento em que
Ludovico I cita Brecht. Em Hitler, um filme da Alemanha, a
ironia do anacronismo é mais pesada. Syberberg nega que
os acontecimentos do nazismo sejam parte do andamento e
da conduta normais da história. (“Disseram que era o fim do
mundo”, reflete um dos manipuladores de fantoches. “E era
mesmo.”) Seu filme toma o nazismo ao pé da letra (as
palavras literais de Hitler, de Goebbels), como uma
aventura no apocalipse, como uma cosmologia numa Nova
Era do Gelo — em outras palavras, como uma escatologia
do mal; e ele mesmo se passa numa espécie de fim dos
tempos, uma era messiânica (para usar o termo de
Benjamin) que impõe o dever de tentar fazer justiça aos
mortos. Vem daí a lista longa e solene dos cúmplices do
nazismo (“aqueles que não devemos esquecer”), e depois
algumas vítimas exemplares — um dos vários pontos em
que o filme parece que vai terminar.
Syberberg cunhou seu filme em primeira pessoa: como a
ação de um artista que assume o dever alemão de enfrentar
integralmente o horror do nazismo. Como muitos
intelectuais alemães do passado, Syberberg trata sua
germanidade como uma vocação moral e encara a
Alemanha como o campo de batalha dos conflitos europeus.
(“O século XX […] um filme da Alemanha”, diz um dos
ruminadores de pensamentos.) Syberberg nasceu em 1935
na região que viria a ser a Alemanha Oriental e mudou-se
para o outro lado do país em 1953, e lá viveu desde então;
mas a origem verdadeira de seu filme é a Alemanha
extraterritorial do espírito, cujo primeiro grande cidadão foi
Heine, aquele romantique défroqué autoestilizado, e cujo
último grande cidadão foi Thomas Mann. “Ser o campo de
batalha espiritual dos antagonistas europeus — eis aí o
significado de ser alemão”, declarou Mann em suas
Considerações de um apolítico, escritas durante a Primeira
Guerra Mundial, sentimentos que não mudaram quando
escreveu Doutor Fausto, já idoso, no exílio, no fim da
década de 1940. A visão de Syberberg do nazismo como a
explosão do demônio alemão recorda Mann, assim como
sua insistência datada na culpa coletiva da Alemanha (o
tema do “Hitler em nós”). O repetido desafio do narrador,
“Quem seria Hitler sem nós?”, também ecoa Mann, que
escreveu um ensaio em 1939 intitulado “Irmão Hitler”, no
qual afirma que “tudo não passa de um aspecto distorcido
do wagnerismo”. Assim como Mann, Syberberg encara o
nazismo como a realização grotesca — e a traição — do
romantismo alemão. Pode parecer estranho que o cineasta,
que era criança durante a era nazista, compartilhe tantos
temas com alguém que é tão ancien régime. Porém há
muito de antiquado na sensibilidade de Syberberg
(consequência, talvez, de ter sido educado num país
comunista) — inclusive a nitidez com que se identifica com
aquela Alemanha cujos maiores cidadãos partiram para o
exílio.
Embora recorra a inúmeras versões e impressões de
Hitler, o filme oferece pouquíssimas ideias sobre Hitler. Na
maioria, são as teses formuladas nas ruínas: a tese de que a
“obra de Hitler” foi “a erupção do princípio satânico na
história do mundo” (A catástrofe alemã, de Meinecke,
escrito dois anos antes de Doutor Fausto); a tese, expressa
por Horkheimer em Eclipse da razão, de que Auschwitz foi o
auge lógico do progresso ocidental. A partir de 1950,
quando as ruínas da Europa foram reconstruídas,
prevaleceram teses mais complexas — políticas,
sociológicas, econômicas — sobre o nazismo. (Mais tarde,
Horkheimer repudiou sua argumentação de 1946.) Ao
reviver aquelas visões desajustadas de trinta anos antes,
sua indignação, seu pessimismo, o filme de Syberberg
defende com vigor sua adequação moral.
Syberberg propõe que escutemos de fato aquilo que Hitler
disse — o tipo de revolução cultural que o nazismo era, ou
dizia ser; a catástrofe espiritual que ele foi, e ainda é. Por
Hitler, Syberberg não se refere apenas ao monstro histórico
real, responsável pela morte de dezenas de milhões de
pessoas. O cineasta evoca uma espécie de substância de
Hitler que sobrevive a Hitler, uma presença fantasma na
cultura moderna, um princípio proteiforme do mal que
satura o presente e reformula o passado. O filme de
Syberberg alude a genealogias familiares, reais e
simbólicas: do romantismo a Hitler, de Wagner a Hitler, de
Caligari a Hitler, do kitsch a Hitler. E, na hipérbole da
desgraça, ele insiste em algumas novas filiações: de Hitler à
pornografia, de Hitler à sociedade de consumo desalmada
da República Federal Alemã, de Hitler às coerções rudes da
República Democrática Alemã. Existe certa verdade, certas
atribuições pouco convincentes, em usá-lo desse modo. É
verdade que Hitler contaminou o romantismo e Wagner, e
que boa parte da cultura alemã do século XIX é,
retroativamente, assombrada por ele. (Ao passo que a
cultura russa do século XIX não é assombrada por Stálin.)
Mas não é verdade que Hitler tenha engendrado a
sociedade plástica de consumo moderna pós-hitleriana. Isso
já estava bem adiantado, quando os nazistas tomaram o
poder. Pode-se mesmo argumentar — contra Syberberg —
que Hitler, a longo prazo, era uma irrelevância, uma
tentativa de deter o relógio da história; e que o comunismo,
não o fascismo, era o que importava na Europa. Syberberg é
mais plausível quando afirma que a República Democrática
Alemã parece o Estado nazista, opinião pela qual foi
denunciado pela esquerda da Alemanha Ocidental; como
muitos intelectuais que cresceram sob um regime
comunista e se mudaram para um regime burguês
democrático, ele é singularmente isento de crenças
esquerdistas. Também se pode argumentar que Syberberg
simplificou de maneira indevida sua tarefa moralista, ao
identificar em excesso, a exemplo de Mann, a história
interna da Alemanha com a história do romantismo.
Em Syberberg, a noção de história como catástrofe
recorda a longa tradição alemã de encarar a história de
modo escatológico, como história do espírito. Visões
comparáveis, hoje em dia, são mais encontradas na Europa
Oriental do que na Alemanha. Syberberg tem a
intransigência moral, a falta de respeito pela história literal,
a seriedade pungente dos grandes artistas iliberais do
Império Russo — com suas convicções ferrenhas acerca da
primazia da causalidade espiritual sobre a material
(econômica, política), da irrelevância dos conceitos de
“esquerda” e de “direita”, da existência do mal absoluto.
Assombrado com a dimensão do apoio alemão a Hitler,
Syberberg chama os alemães de “povo satânico”.
A história do diabo que Mann imaginou para sintetizar o
demoníaco nazista foi narrada por alguém sem a devida
compreensão. Portanto, Mann sugeria que um mal tão
absoluto pode estar, afinal, além da compreensão ou da
apreensão da arte. Mas a estupidez do narrador de Doutor
Fausto é enfatizada em demasia. A ironia de Mann acaba
por se constituir em um tiro pela culatra: a modéstia
vaidosa de entendimento de Serenus Zeitblom parece a
confissão da incapacidade de Mann, sua incompetência
para dar plena voz ao sofrimento. O filme de Syberberg
sobre o diabo, embora envolto em ironias, afirma nossa
incapacidade para compreender e nossa obrigação de
sofrer. Dedicado, como é, ao sofrimento, o filme começa e
termina com as palavras dilacerantes de Heine: “Penso na
Alemanha à noite e o sono me abandona, não consigo mais
fechar os olhos, choro lágrimas ardentes”. O sofrimento é o
fardo dos solilóquios calmos, deploráveis, musicais de Baer
e de Heller; nem recitação nem declamação, eles são
apenas falas, e ouvir aquelas vozes graves, inteligentes,
fervilhantes de sofrimento é, em si, uma experiência
civilizadora.
O filme carrega, sem nenhuma condescendência, um
vasto legado de informação sobre o período nazista. A
informação, porém, é subentendida. O filme não se destina
a atender a um critério de informação, mas afirma ter em
vista um (hipotético) ideal terapêutico. Repetidamente,
Syberberg assinala que seu filme é dirigido à “incapacidade
de a Alemanha viver o luto”, que o filme assume “o trabalho
do luto” (Trauerbeit). Essas expressões recordam o famoso
ensaio escrito por Freud em plena Primeira Guerra Mundial,
“Luto e melancolia”, que associa a melancolia à
incapacidade de viver o luto; e recordam a aplicação dessa
fórmula num estudo psicanalítico influente do pós-guerra
alemão, de autoria de Alexander e Margarete Mitscherlich, A
incapacidade de viver o luto, publicado na Alemanha em
1967, que apresenta o diagnóstico de melancolia de massa
por parte dos alemães, resultante da negação contínua de
sua responsabilidade coletiva pelo passado nazista e de sua
persistente recusa de fazer o luto. Syberberg se apropriou
da conhecida tese dos Mitscherlich (sem sequer mencionar
o livro), mas deve-se duvidar de que seu filme tenha se
inspirado por ela. Parece mais provável que o cineasta
tenha achado que a ideia do Trauerarbeit era uma
justificativa psicológica e moral para sua estética da
repetição e da reciclagem. É preciso muito tempo — e muita
hipérbole — para trabalhar o luto.
Na medida em que o filme pode ser considerado um gesto
de luto, o interessante é que ele é conduzido no estilo do
luto — por meio do exagero, da repetição. Há um fluxo
abundante de informação: o método da saturação.
Syberberg é um artista do excesso: o pensamento é uma
espécie de excesso, a produção, excedente de
contemplações, imagens, associações, emoções ligadas a
Hitler ou evocadas por ele. Isso explica a extensão do filme,
seus argumentos circulares, seus diversos começos, seus
quatro ou cinco finais, seus muitos títulos, sua pluralidade
de estilos, suas mudanças vertiginosas de perspectiva sobre
Hitler, abaixo ou além. A mudança mais admirável ocorre na
Parte II, quando o monólogo do camareiro, de quarenta
minutos, com suas banalidades hipnotizantes sobre as
preferências de Hitler no terreno das roupas íntimas, do
creme de barbear e dos alimentos consumidos no café da
manhã, é seguido por meditações de Heller sobre a
irrealidade da ideia das galáxias. (É o equivalente verbal do
corte que vemos no filme 2001, do osso jogado para o ar
por um primata na direção de uma nave espacial —
certamente o corte mais espetacular na história do cinema.)
A ideia de Syberberg é exaurir, esvaziar seu tema.

Syberberg mede suas ambições pelos parâmetros de


Wagner, se bem que atender às expectativas legendárias de
um gênio alemão não seja tarefa nada fácil na sociedade de
consumo da República Federal Alemã. Ele considera que
Hitler, um filme da Alemanha não é apenas um filme, assim
como Wagner não queria que O Anel de Nibelungo e Parsifal
fossem consideradas óperas ou fizessem parte do repertório
normal dos teatros de ópera. Sua extensão desafiadora,
sedutora, que impede a distribuição convencional do filme,
é uma característica muito wagneriana, bem como a
relutância de Syberberg (até recentemente) de permitir a
exibição do filme senão em circunstâncias especiais que
fomentassem a seriedade. Também é wagneriano o ideal de
Syberberg de exaustividade e profundidade; seu sentido de
missão; sua crença na arte como ato radical; seu gosto pelo
escândalo; suas energias polêmicas (ele é incapaz de
escrever um ensaio que não seja um manifesto); seu gosto
pela grandiosidade. Esta é, sem dúvida, o principal tema de
Syberberg. Os protagonistas de sua trilogia sobre a
Alemanha — Ludovico II, Karl May, Hitler — são todos
megalomaníacos, mentirosos, sonhadores incautos,
virtuoses da grandiosidade. (Os documentários muito
diferentes que Syberberg fez para a televisão alemã, entre
1967 e 1975, exprimem igualmente seu fascínio pela
confiança em si mesmo e pela obsessão consigo mesmo:
Die Grafen Pocci [Os condes Pocci], sobre uma família
aristocrática alemã; retratos de astros do cinema alemão; e
um filme-entrevista de cinco horas com a nora de Wagner e
amiga de Hitler, A confissão de Winifred Wagner.)
O cineasta é um grande wagneriano, o maior desde
Thomas Mann, porém sua atitude em relação a Wagner e
aos tesouros do romantismo alemão não é apenas de
devoção. Contém mais do que uma pitada de malícia, o
toque do vândalo cultural. Para evocar o esplendor e o
fracasso do wagnerianismo, Hitler, um filme da Alemanha
usa, recicla e parodia elementos de Wagner. Syberberg
deseja que seu filme seja um anti-Parsifal e a hostilidade a
Wagner é um de seus leitmotiven: a filiação espiritual entre
Wagner e Hitler. O filme inteiro poderia ser considerado uma
profanação de Wagner, levada a efeito com o pleno sentido
da ambiguidade do gesto, pois Syberberg tenta manter-se
tanto dentro quanto fora de suas fontes mais profundas
como artista. (Os túmulos de Wagner e de Cosima, atrás da
Villa Wahnfried, são imagens recorrentes; e uma cena
satiriza a mais gratuita de todas as profanações, quando
recrutas negros americanos dançaram o jitterbug em cima
dos túmulos, depois da guerra.) Pois é de Wagner que o
filme de Syberberg recebe o maior impulso — sua aspiração
intrínseca e imediata ao sublime. Quando o filme começa,
ouvimos o início do prelúdio de Parsifal e vemos a palavra
CÁLICE em letras maiúsculas partidas. Syberberg afirma que
sua estética é wagneriana, ou seja, musical. Mas talvez seja
mais correto dizer que seu filme mantém uma relação
mimética com Wagner e, em parte, uma relação parasitária
— como Ulysses tem uma relação parasitária com a história
da literatura inglesa.
Syberberg toma de modo muito literal, mais literal do que
o próprio Eisenstein, a promessa de um filme como síntese
de artes plásticas, música, literatura e teatro — a realização
moderna da ideia de Wagner da obra de arte total. (Já se
afirmou não poucas vezes que Wagner, caso vivesse no
século XX, seria um cineasta.) Mas a moderna
Gesamtkunstwerk [obra de arte total] tende a ser um
agregado de elementos aparentemente disparatados, no
lugar de uma síntese. Para Syberberg, existe sempre algo
mais e diferente a dizer — como atestam os dois filmes
sobre Ludovico II que ele realizou em 1972. Ludwig:
Réquiem para um rei virgem, o primeiro filme de sua trilogia
sobre a Alemanha, presta uma homenagem delirante ao
páthos teatralmente irônico e demasiado maduro de
cineastas como Cocteau, Carmelo Bene e Werner Schroeter.
Theodor Hirneis, o outro filme, é um monodrama brechtiano
austero de noventa minutos, que tem o cozinheiro de
Ludovico como um de seus personagens — antecipando
desse modo a narrativa do camareiro em Hitler, um filme da
Alemanha — e foi inspirado pelo romance inacabado de
Brecht sobre a vida de Júlio César, narrado por seu escravo.
Syberberg se vê como discípulo de Brecht e, em 1952 e
1953, filmou várias produções do dramaturgo alemão na
Berlim Oriental.
Segundo Syberberg, sua obra provém da “dualidade
Wagner/Brecht”; esse é o “escândalo estético” que ele
afirma ter “procurado”. Em entrevistas, o cineasta
invariavelmente cita ambos como seus pais artísticos, em
parte (podemos supor) para neutralizar a política de um
com a política do outro e situar-se além de questões de
direita e esquerda; em parte para aparecer mais imparcial
do que é. Contudo, inevitavelmente ele é mais wagneriano
do que brechtiano, por causa da maneira como a inclusiva
estética wagneriana abarca sentimentos opostos (inclusive
sentimentos éticos e inclinações políticas). Baudelaire ouviu
na música de Wagner “o grito supremo de uma alma levada
a seus limites extremos”, ao passo que Nietzsche, mesmo
depois de desistir de Wagner, ainda o elogiava como um
grande “miniaturista” e “nosso maior melancólico na
música” — e ambos tinham razão. Os opostos de Wagner
ressurgem em Syberberg: o democrata radical e o elitista de
direita, o esteta e o moralista, o bombástico e o pesaroso.
A genealogia polêmica de Syberberg, Brecht/Wagner,
obscurece outras influências sobre o filme; em particular, o
que ele deve às ironias e às imagens surrealistas. Mesmo o
papel de Wagner parece um caso mais complexo do que
parece indicar o encantamento de Syberberg com a arte e a
vida do compositor. A par do Wagner de que o cineasta se
apropriou, embora fiquemos tentados a dizer expropriou,
esse wagnerianismo é, propriamente falando, um caso
atenuado — um exemplo fascinantemente tardio da arte
que nasceu e cresceu da estética wagneriana: o simbolismo.
(Simbolismo e surrealismo podem ser considerados
desenvolvimentos tardios da sensibilidade romântica.) O
simbolismo foi a estética wagneriana transformada em
processo de criação para todas as artes; mais subjetivado,
impelido para a abstração. O que Wagner queria era um
teatro ideal. Um teatro de emoções maximalistas, purgado
de distrações e irrelevâncias. Assim, ele optou por esconder
a orquestra do Bayreuth Festpielhaus por trás de uma
concha de madeira preta, e, uma vez feito esse gracejo, o
de inventar a orquestra invisível, ele almejava ainda
inventar o palco invisível. Os eventos deviam ser retirados
da realidade, por assim dizer, e reinseridos em cena no
teatro ideal da mente.9 E a fantasia do palco invisível de
Wagner foi realizada mais literalmente nesse palco imaterial
que é o cinema.
O filme de Syberberg é uma interpretação magistral das
potencialidades simbolistas do cinema e, provavelmente, a
obra simbolista mais ambiciosa deste século. Ele constrói o
cinema como uma espécie de atividade mental ideal, ao
mesmo tempo sensível e reflexivo, que toma a frente
quando a realidade sai de cena: cinema não como
fabricação da realidade, e sim como “continuação da
realidade por outros meios”. Na meditação de Syberberg
sobre a história num estúdio de som, os eventos são
visualizados (com a ajuda de convenções surrealistas) e
simultaneamente permanecem invisíveis, num sentido mais
profundo (o ideal simbolista). Porém, como carece da
homogeneidade estilística típica das obras simbolistas,
Hitler, um filme da Alemanha tem um vigor a que os
simbolistas renunciariam por considerá-lo vulgar. Suas
impurezas resgatam o filme do que era mais rarefeito no
simbolismo, sem que isso torne seu alcance menos
indeterminado e abrangente.

O artista simbolista é, acima de tudo, uma mente, uma


mente criadora que (destilando a grandiosidade e a
intensidade wagnerianas) tudo vê e que é capaz de permear
seu tema; e que o eclipsa. A meditação de Syberberg sobre
Hitler tem a arrogância costumeira de sua mente e a
porosidade característica das estruturas mentais simbolistas
superestendidas: argumentos atenuados que começam
assim: “Acho que…”, sentenças sem verbos, que mais
evocam do que explicam. Há conclusões por todo lado, mas
nada se conclui. Todas as partes de uma narrativa
simbolista são simultâneas; ou seja, todas coexistem
concomitantemente nessa mente superior, dominadora.
A função dessa mente não é contar uma história (no
início, a história já ficou para trás, como assinalou Rivière),
e sim conferir significado em quantidades ilimitadas. Ações,
imagens, pedaços individuais do cenário podem ter,
idealmente têm de fato, significados múltiplos — por
exemplo, a carga de significados que Syberberg associa à
figura da criança. Ele parece procurar, de um ponto de vista
mais subjetivo, aquilo que Eisenstein prescreve com sua
teoria da “montagem atonal”. (Eisenstein se via na tradição
de Wagner e da Gesamtkunstwerk e, em seus textos, se
refere de maneira copiosa à estética simbolista no cinema.)
O filme transborda de significados de acessibilidade variada,
e existem outros significados que advêm de relíquias e
talismãs presentes no cenário, sobre os quais o público não
tem a menor possibilidade de saber.10 O artista simbolista
não está prioritariamente interessado em exposição,
explanação, comunicação. Parece adequado que a
dramaturgia de Syberberg consista em um discurso
direcionado para aqueles que não podem responder: os
mortos (em cuja boca podemos pôr palavras) e para a
própria filha (que não tem falas). A narrativa simbolista é
sempre uma questão póstuma; seu tema é algo
subentendido. Portanto, a arte simbolista é
caracteristicamente densa, difícil. Syberberg apela (de
forma intermitente) a outro processo de conhecimento,
conforme indicado em um dos principais emblemas do
filme, o teatro ideal de Ledoux, na forma de um olho — o
olho maçônico; o olho da inteligência, do conhecimento
esotérico. Mas Syberberg quer, e quer com fervor, que seu
filme seja compreendido; e este, em certos trechos, é
superexplícito, ao passo que, em outros, é cifrado.
A relação simbolista da mente com seu tema se consuma
quando o tema é subjugado, cancelado, exaurido. Assim, a
suprema presunção de Syberberg é de que, com seu filme,
ele se torne capaz de “derrotar” Hitler — exorcizá-lo. Essa
hipérbole, magnificamente exorbitante, coroa a
compreensão profunda que Syberberg tem de Hitler como
imagem. (Se de O gabinete do dr. Caligari chegamos a
Hitler, por que não ir de Hitler até Hitler, um filme da
Alemanha? Fim.) Disso decorrem também a visão romântica
de Syberberg sobre a supremacia da imaginação e seu
flerte com noções esotéricas de conhecimento, com ideias
da arte como uma alquimia mágica ou espiritual e da
imaginação como provedora dos poderes das trevas.
O monólogo de Heller na Parte IV conduz a uma lista de
presença de mitos que podem ser vistos como metáforas
dos poderes esotéricos do cinema — começando pelo Black
Maria, de Edison (“o estúdio negro de nossa imaginação”);
evocando pedras pretas (da Caaba; da Melencolia de Dürer,
a imagem que preside a complexa iconografia do filme); e
terminando com uma imagem moderna: o cinema como o
buraco negro da imaginação. A exemplo do buraco negro,
ou da nossa fantasia sobre ele, o cinema faz desmoronar o
espaço e o tempo. A imagem descreve à perfeição a
fluência lancinante do filme de Syberberg: sua insistência
em ocupar diferentes espaços e tempos simultaneamente.
Parece adequado que a mitologia pessoal de Syberberg
sobre o cinema subjetivo seja concluída com uma imagem
extraída da ficção científica. Um cinema subjetivo com tais
ambições e tal energia moral logicamente se transforma em
ficção científica. Assim, o filme desse cineasta começa com
as estrelas e termina, como 2001, com as estrelas e uma
estrela-bebê.
Ao evocar Hitler por meio do mito e da farsa, dos contos
de fadas e da ficção científica, Syberberg cumpre seus ritos
de desconsagração: o Cálice foi destruído (o anti-Parsifal de
Syberberg se abre e se fecha com a palavra CÁLICE, o
verdadeiro título do filme); já não é mais aceitável sonhar
com a redenção. Ele defende seu gesto de mitologizar a
história como uma tarefa cética: o mito como “mãe da
ironia e do páthos”, e não como estímulo de novos sistemas
de crença. Mas alguém que acredita que Hitler era a “sina”
da Alemanha dificilmente pode ser chamado de cético.
Syberberg é o tipo de artista que quer ter os dois lados —
todos os lados. O método de seu filme é a contradição, a
ironia. E, ao exercer seu talento engenhoso para a
ingenuidade, também pretende transcender essa
complexidade. Ele aprecia ideias de inocência e de páthos
— as tradições do idealismo romântico; algum nonsense em
torno da figura de uma criança (sua filha, o bebê em A
manhã, de Runge, Ludovico como uma criança barbada e
chorosa); sonhos de um mundo ideal depurado de sua
complexidade e mediocridade.
As partes anteriores da trilogia de Syberberg são retratos
elegíacos dos últimos sonhadores do paraíso: Ludovico II,

que construía castelos que eram palcos e financiava a


fábrica de sonhos de Wagner em Bayreuth; Karl May, que
romantizava os indígenas americanos, os árabes e outros
povos exóticos, em seus romances imensamente populares,
entre os quais o mais famoso, Winnetou, relata a destruição
da beleza e da bravura pelo avanço da civilização
tecnológica moderna. Ludovico e Karl May atraem
Syberberg como praticantes corajosos e condenados da
Grande Recusa, a rejeição da civilização industrial moderna.
Aquilo que mais detesta, coisas como pornografia e a
comercialização da cultura, Syberberg identifica com o
moderno. (Nessa postura de superioridade absoluta sobre o
moderno, ele recorda o autor de Arte em crise, Hans
Sedlmayr, com quem estudou história da arte na
Universidade de Munique nos anos 1950.) O filme é um
trabalho de luto para o moderno e para aquilo que o
antecede e a ele se opõe. Se Hitler é também um “utópico”,
como o cineasta o chama, então Syberberg está condenado
a ser um pós-utópico, um utópico que reconhece que
sentimentos utópicos têm sido implacavelmente
conspurcados. Syberberg não acredita em um “novo ser
humano” — tema perene da revolução cultural tanto da
esquerda como da direita. A despeito de toda a sua atração
pelo credo do gênio romântico, aquilo em que acredita é
Goethe e um ensino secundário completo.
Decerto podem ser encontradas as contradições de
costume no filme de Syberberg — a poesia da utopia, a
futilidade da utopia; racionalismo e magia. E isso apenas
confirma que tipo de filme é, na realidade, Hitler, um filme
da Alemanha. Ficção científica é exatamente o gênero que
dramatiza a mistura de nostalgia da utopia com fantasias
distópicas e horror; a convicção dúplice de que o mundo
está chegando ao fim e de que ele está à beira de um novo
começo. O filme de Syberberg sobre história é também uma
ficção científica moral e cultural. A nave espacial Goethe-
Haus.
Syberberg consegue perpetuar, de forma melancólica e
atenuada, uma parte das ideias de Wagner sobre arte como
terapia, como redenção e catarse. Ele chama o cinema de
“a mais bela compensação” para as devastações da história
moderna, uma espécie de “redenção” para “nossos
sentidos, oprimidos pelo progresso”. Essa arte, em certo
sentido, redime a realidade ao ser melhor do que ela — eis
a crença simbolista suprema. Syberberg faz do cinema o
paraíso derradeiro, mais inclusivo, mais espectral. É uma
visão que recorda Godard. Sua cinefilia é outra parte do
enorme páthos de seu filme; talvez seu único páthos
involuntário. Pois, a despeito do que ele diga, o cinema é
hoje outro paraíso perdido. Na era da inaudita mediocridade
do cinema, sua obra-prima se reveste de algo do caráter de
um evento póstumo.

Ao desdenhar o naturalismo, os românticos


desenvolveram um estilo melancólico: intensamente
pessoal, a expansão de seu “eu” torturado, centrado no
ágon entre o artista e a sociedade. Mann formulou a última
expressão profunda dessa ideia romântica do dilema do eu.
Os pós-românticos, como Syberberg, fazem uso de um estilo
melancólico impessoal. Central agora é a relação entre a
memória e o passado: o choque entre a possibilidade de
recordar, de ir em frente, e a sedução do esquecimento.
Beckett apresenta uma versão a-histórica desse ágon. Outra
versão, obcecada pela história, é a de Syberberg.
Compreender o passado, e, portanto, exorcizá-lo, constitui
a maior ambição moral do cineasta alemão. Seu problema
repousa no fato de não conseguir abrir mão de nada. Seu
tema é tão vasto — e tudo o que Syberberg faz o torna
ainda maior — que foi necessário tomar muitas posições
para além dele. Podemos encontrar quase qualquer coisa no
filme apaixonadamente volúvel de Syberberg (menos uma
análise marxista ou um fragmento de consciência
feminista). Embora tente ser silencioso (a criança, as
estrelas), não consegue parar de falar; é ardoroso e ávido
demais. Quando o filme está perto de terminar, Syberberg
quer produzir mais uma imagem arrebatadora. E mesmo
quando afinal chega ao fim, ele ainda quer dizer mais e
acrescenta pós-escritos: a epígrafe de Heine, a citação de
Mogadíscio-Stammheim, uma frase oracular final de
Syberberg, uma derradeira evocação do Cálice. O filme é,
em si mesmo, a criação de um mundo, e a sensação é de
que seu criador tem a maior dificuldade de dele se
desvencilhar — bem como o espectador admirado; esse
exercício na arte da empatia produz uma angústia
voluptuosa, uma inquietação com a conclusão. Perdido no
buraco negro da imaginação, o cineasta tem de fazer tudo
passar diante dele; identifica-se com cada coisa e com
nenhuma.
Benjamin sugere que a melancolia é a origem da
compreensão histórica verdadeira — ou seja, justa. A
verdadeira compreensão da história, disse ele no último
texto que escreveu, é “um processo de empatia cuja origem
é a indolência do coração, a acédia”. Syberberg compartilha
algo da visão positiva e instrumental da melancolia e usa
símbolos relacionados a ela para pontuar seu filme. Mas
Syberberg não tem a ambivalência, a morosidade, a
complexidade, a tensão do temperamento saturnino. Ele
não é um melancólico verdadeiro, mas um exalté. No
entanto, emprega as ferramentas características do
melancólico — os adereços alegóricos, os talismãs, as
autorreferências secretas; e, com esse talento irrepreensível
para a indignação e o entusiasmo, está realizando o
“trabalho do luto”. A expressão aparece primeiro no filme
que fez sobre Winifred Wagner em 1975, em que se lê:
“Este filme é parte do Trauerarbeit de Hans-Jürgen
Syberberg”. O que vemos é o cineasta sorrindo.
Syberberg é um elegíaco autêntico. Mas seu filme é
revigorante. A verbosidade poética, acanhada, de voz rouca,
dos últimos filmes de Godard revela uma convicção
incontrolável de que falar nunca exorcizará nada; em
contraste com as meditações fora de cena que ouvimos nos
filmes de Godard, as reflexões das personas de Syberberg
(Heller e Baer) transbordam calma e segurança. Syberberg,
cujo temperamento parece o oposto ao de Godard, tem
suprema confiança na língua, no discurso, na eloquência em
si mesma. O filme tenta dizer tudo. Ele pertence à raça dos
criadores como Wagner, Artaud, Céline, o último Joyce,
cujas obras aniquilam outras obras. Todos são artistas de
fala interminável, de melodia interminável — uma voz que
continua sem cessar. Beckett também pertenceria a essa
raça, não fosse uma força inibidora — sanidade? Elegância?
Boas maneiras? Falta de energia? Desespero mais profundo?
O mesmo vale para Godard, não fossem as dúvidas que ele
deixa patentes quanto à fala e a inibição do sentimento
(tanto de simpatia quanto de repulsa) que resulta do seu
senso de impotência da fala. Syberberg conseguiu se
manter livre das dúvidas de praxe — dúvidas cuja função
principal parece ser, na atualidade, a de inibir. O resultado é
um filme completamente excepcional, em sua
expressividade emocional, sua grande beleza visual, sua
sinceridade, sua paixão moral, sua preocupação com
valores contemplativos.
O filme tenta ser tudo. A ambição inaudita de Syberberg
em Hitler, um filme da Alemanha se situa em uma escala
alheia a tudo o que já se viu no cinema. É uma obra que
requer um tipo especial de atenção e de partidarismo; e
pede para ser objeto de reflexão e para ser revisto. Quanto
mais reconhecemos suas referências estilísticas e sua
erudição, mais o filme vibra. (A grande arte na modalidade
do pastiche invariavelmente compensa seu estudo, como
afirmou Joyce quando se atreveu a observar que o leitor
ideal de sua obra seria alguém que pudesse dedicar sua
vida a ela.) O filme do realizador alemão pertence à
categoria das nobres obras-primas que pedem fidelidade e
são capazes de compelir a isso. Depois de ver Hitler, um
filme da Alemanha, existe o filme de Syberberg — e, logo
atrás, existem os outros filmes que admiramos. (Não
muitos, hoje em dia, infelizmente.) Como foi dito, de forma
ríspida, sobre Wagner, ele reduz nossa tolerância ante os
demais.

(1979)
Recordando Barthes

Roland Barthes tinha 64 anos quando morreu semana


passada [em 26 de março de 1980], mas sua carreira era
mais jovem do que sua idade sugere, pois ele tinha 37 anos
quando publicou seu primeiro livro. Depois do início tardio,
vieram muitas obras, muitos assuntos. A sensação era de
que ele podia gerar ideias sobre qualquer coisa. Se o
pusessem na frente de uma caixa de charutos, ele teria
uma, duas, muitas ideias — um pequeno ensaio. Não era
uma questão de conhecimento (ele não podia saber tanto
acerca de certos temas sobre os quais escreveu), mas sim
de agilidade, uma transcrição meticulosa de tudo aquilo que
poderia ser pensado sobre algo, uma vez que esse objeto
fosse arrastado pela correnteza da atenção. Sempre existia
uma rede refinada de classificação na qual o fenômeno
podia ser apanhado.
Na juventude, fundou um grupo teatral universitário,
resenhou peças de teatro. E algo do teatro, um amor
profundo pelas aparências, dá cor à sua obra, quando ele
começa a exercer a pleno vapor sua vocação de escritor.
Seu sentido das ideias era dramatúrgico: uma ideia estava
sempre em competição com outra. Ao subir ao palco
intelectual francês inato, ele se pôs em armas contra o
inimigo tradicional: aquilo que Flaubert chamou de “ideias
feitas”, e tornou-se conhecido como a mentalidade
“burguesa”; o que os marxistas condenavam com a ideia de
falsa consciência e os sartrianos, com a ideia de má-fé; o
que Barthes, que era formado em letras clássicas,
denominaria doxa (opinião corrente).
Foi ele quem deu a largada nos anos do pós-guerra, à
sombra das questões moralistas de Sartre, com manifestos
sobre o que é literatura (O grau zero da escrita) e retratos
argutos dos ídolos da tribo burguesa (artigos coligidos em
Mitologias). Todos os seus escritos são polêmicos. Porém o
impulso mais profundo de seu temperamento não era
combativo. Era celebratório. Suas investidas
desmistificadoras — que pressupunham a pronta disposição
para se mostrar indignado com a inanidade, a obtusidade, a
hipocrisia — aos poucos se atenuaram. Ele estava mais
interessado em disparar elogios, compartilhar suas paixões.
Era um taxonomista do júbilo e do rigoroso jogo da mente.
O que o fascinava era a classificação mental. Assim, seu
livro escandaloso Sade, Fourier, Loyola, que ao justapor os
três como campeões intrépidos da fantasia, classificadores
obcecados das próprias obsessões, oblitera todas as
questões de substância que fazem deles não comparáveis.
Barthes não era modernista em seus gostos (a despeito de
seu patrocínio tendencioso de avatares do modernismo
literário em Paris, como Robbe-Grillet e Philippe Sollers),
mas, em sua prática, era um modernista. Ou seja, era
irresponsável, divertido, formalista — fazia literatura no ato
de falar sobre literatura. O que o estimulava numa obra era
aquilo que ela defendia e seus sistemas de afronta. Ele
conscientemente se interessava pelo perverso (defendia a
opinião antiquada de que isso era libertador).
Tudo o que escrevia era interessante — vivaz, ágil, denso,
afiado. A maior parte de seus livros são coletâneas de
ensaios. (Entre as exceções, figura um livro precoce e
polêmico sobre Racine. Um livro de extensão incomum, e de
uma linguagem explícita também incomum, sobre a
semiologia da publicidade da moda, que escreveu para
satisfazer as exigências universitárias e que continha
material para vários ensaios virtuosísticos.) Barthes não
produziu nada que possa ser chamado de juvenilia; a voz
elegante, exigente, esteve presente desde o início. Mas o
ritmo se acelerou na última década, com um livro novo a
cada um ou dois anos. O pensamento havia adquirido maior
velocidade. Em seus livros recentes, a própria forma do
ensaio havia se estilhaçado — perfurando a reticência do
ensaísta com relação ao emprego do pronome “eu”. A
escrita adotou liberdades e riscos de um caderno de
anotações. Em S/Z, ele reinventou um romance de Balzac
na forma de uma glosa textual tenazmente engenhosa.
Houve os deslumbrantes apêndices borgianos em Sade,
Fourier, Loyola; as pirotecnias paraficcionais das trocas
entre texto e fotografias, entre texto e referências
semiobscurecidas, em seus escritos autobiográficos; as
celebrações da ilusão, em seu último livro, sobre fotografia,
publicado dois meses atrás.
Ele era especialmente sensível ao fascínio exercido por
esse registro pungente, a fotografia. Entre as que escolheu
para Roland Barthes por Roland Barthes, talvez a mais
comovente seja a que mostra uma criança muito grande,
Barthes aos dez anos de idade, levado pela jovem mãe e
agarrado a ela (Barthes intitulou a foto de “Pedindo amor”).
Tinha uma relação amorosa com a realidade — e com a
escrita, que eram para ele a mesma coisa. Escreveu sobre
tudo; assediado por pedidos para escrever artigos
eventuais, aceitava o máximo que podia; queria ser, e
muitas vezes era, seduzido por um tema. (Seu tema se
tornava, cada vez mais, a sedução.) Como todos os
escritores, queixava-se de viver sobrecarregado de trabalho,
de aceitar encomendas demais, de estar atrasado — mas,
na verdade, era um dos escritores mais disciplinados,
seguros e famintos que conheci. Encontrava tempo para dar
muitas entrevistas eloquentes e intelectualmente
inventivas.
Como leitor, era meticuloso, mas não voraz. Acabava
escrevendo sobre quase tudo o que lia, portanto podemos
supor que, se não escrevia sobre algo, provavelmente era
porque não tinha lido a respeito. Tinha tão pouco de
cosmopolita quanto a maioria dos intelectuais franceses
(uma exceção era seu amado Gide). Não conhecia bem
nenhuma língua estrangeira e lia pouca literatura além da
francesa, mesmo em tradução. A única literatura
estrangeira em que parece ter tocado foi a alemã: Brecht
era um entusiasmo precoce e vigoroso; nos últimos tempos,
o sofrimento discretamente recontado em Fragmentos de
um discurso amoroso levou-o ao livro Os sofrimentos do
jovem Werther e aos lieder. Não tinha curiosidade suficiente
para permitir que suas leituras interferissem em sua escrita.
Gostava de ser famoso, com um prazer inocente e sempre
renovado: na França, ultimamente, era possível vê-lo muitas
vezes na televisão, e Fragmentos de um discurso amoroso
entrou na lista dos livros mais vendidos. No entanto, ele
falava da estranheza de ver seu nome toda vez que
folheava uma revista ou um jornal. Seu senso de
privacidade era expresso de maneira exibicionista. Ao
escrever sobre si, muitas vezes empregava a terceira
pessoa, como se tratasse a si mesmo como uma ficção. As
obras derradeiras contêm muitas e detalhadas revelações
pessoais, mas sempre sob a forma de especulação (não há
nenhuma anedota sobre o eu que, presa entre os dentes,
não apresente uma ideia), e meditações saborosas sobre o
pessoal; o último artigo que publicou dizia respeito à escrita
de um diário. Toda a sua obra é um trabalho de
autodescrição imensamente complexo.
Nada escapava à atenção desse estudante dedicado e
engenhoso de si mesmo: a comida, as cores, os cheiros de
que gostava; como lia. Certa vez, numa palestra em Paris,
ele observou que leitores estudiosos se dividem em dois
grupos: os que sublinham os livros e os que não sublinham.
Disse pertencer ao segundo grupo: nunca marcava o livro
sobre o qual planejava escrever, mas transcrevia em fichas
os trechos-chave. Esqueci a teoria que, na ocasião, ele
cunhou sobre essa preferência, portanto vou improvisar
minha própria teoria. Relaciono sua aversão a marcar os
livros com o fato de que ele desenhava e de que seu
desenho, a que se dedicava seriamente, era uma forma de
escrita. A arte visual que o atraía provinha da língua: era, a
rigor, uma variante da escrita; Barthes escreveu ensaios
sobre o alfabeto de Erté, formado por figuras humanas,
sobre a pintura caligráfica de Réquichot, de Twombly. Sua
preferência recorda a metáfora morta do “corpo” da obra —
em geral, não se escreve sobre a superfície de um corpo
amado.
Sua aversão temperamental ao moralismo tornou-se mais
declarada em anos recentes. Após algumas décadas de
adesão dócil aos padrões de pensamento correto (ou seja,
esquerdista), o esteta saiu do armário em 1974, quando,
com alguns amigos mais próximos e aliados literários,
maoistas de ocasião, foi para a China; mas, nas três páginas
escassas que escreveu em seu regresso, disse ter ficado
pouco impressionado com o moralismo e entediado com a
assexualidade e a uniformidade cultural. A obra de Barthes,
assim como a de Wilde e a de Valéry, confere boa reputação
a quem opta por ser um esteta. Boa parte de seus escritos
recentes é uma celebração da inteligência dos sentidos e
dos textos de sensação. Ao defender os primeiros, ele nunca
traiu a mente. Barthes não alimenta nenhum clichê
romântico sobre a oposição entre a vigilância sensual e
mental.
A obra trata da tristeza superada ou negada. Barthes
decidiu que tudo podia ser tratado como um sistema — um
discurso, um quadro de classificações. Como tudo era um
sistema, tudo podia ser dominado. Porém, no final, ele ficou
farto de sistemas. Sua mente era sagaz demais, ambiciosa
demais, atraída demais pelo risco. Parecia mais inquieto e
vulnerável em anos recentes, à medida que se tornou mais
produtivo do que nunca. Como observou, falando acerca de
si mesmo, sempre “trabalhou excessivamente sob a égide
de um grande sistema (Marx, Sartre, Brecht, a semiologia, o
Texto). Hoje, tem a impressão de que escreve de maneira
mais aberta, mais desprotegida…”. Depurou-se dos mestres
e das ideias-mestras das quais extraía sustento (“para falar,
é preciso buscar apoio em outros textos”, explicou), para se
manter apenas à sombra de si mesmo. Tornou-se seu
próprio Grande Escritor. Foi espectador assíduo nas sessões
da conferência de sete dias dedicada à sua obra, em 1977
— comentando, intrometendo-se delicadamente, divertindo-
se. Publicou uma resenha sobre o livro especulativo de sua
autoria sobre ele mesmo (Barthes sobre Barthes sobre
Barthes). Tornou-se o pastor do rebanho de si próprio.
Tormentos vagos, uma sensação de insegurança, foram
admitidos — com a implicação consoladora de que ele
estava à beira de uma grande aventura. Quando esteve em
Nova York, há um ano e meio, declarou em público, com um
destemor quase trêmulo, sua intenção de escrever um
romance. Não o romance que se pode esperar de um crítico
que, por um tempo, fez Robbe-Grillet parecer uma figura
central nas letras contemporâneas; do escritor cujos livros
mais maravilhosos — Roland Barthes por Roland Barthes e
Fragmentos de um discurso amoroso — são triunfos da
ficção modernista, na tradição inaugurada por Rilke em Os
cadernos de Malte Laurids Brigge, que engendra um
cruzamento dos gêneros ficção, ensaio, especulação e
autobiografia num caderno de anotações linear, em vez de
adotar a forma de uma narrativa linear. Não, não é um
romance modernista, mas um romance “de verdade”, disse
ele. Como Proust.
Em caráter privado, Barthes falava de sua almejada
descida da cúpula universitária — ele ocupava uma cátedra
no Collège de France desde 1977 — a fim de se dedicar a
seu romance, e de sua aflição (sem razão de ser, em face
das circunstâncias) envolvendo sua segurança material,
caso renunciasse ao cargo de professor. A morte da mãe,
dois anos antes, foi um grande baque. Ele recordava ter
sido somente depois da morte da mãe que Proust foi capaz
de começar À la Recherche du temps perdu. Era
característico dele esperar encontrar uma fonte de energia
em seu sofrimento devastador.
Como às vezes escrevia sobre si mesmo na terceira
pessoa, em geral falava de si como uma pessoa sem idade
e aludia a seu futuro como se fosse muito mais jovem, o
que de certo modo era. Almejava a grandeza, contudo
(como diz em Roland Barthes por Roland Barthes) sentia
estar sempre em risco de sofrer uma “recaída para o menor,
para o velho que ele é, quando ‘se abandona a si mesmo’”.
Em seu temperamento e na infatigável sutileza de sua
mente, havia algo que recordava Henry James. A
dramaturgia das ideias se rendia à dramaturgia do
sentimento; seus interesses mais profundos eram coisas
quase inefáveis. Sua ambição tinha algo do páthos
jamesiano, assim como suas dúvidas sobre si mesmo. Se
pudesse escrever um grande romance, era de imaginar algo
mais semelhante a Henry James do que a Proust.
Era difícil adivinhar sua idade. Melhor dizendo, Barthes
parecia não ter idade — apropriadamente, a cronologia de
sua vida era enviesada. Embora passasse muito tempo com
jovens, nunca afetava as informalidades contemporâneas
da juventude. Mas não parecia ser velho, conquanto seus
movimentos fossem lentos e seu modo de se vestir fosse
professoral. Era um corpo que sabia como descansar: como
observou García Márquez, um escritor precisa saber
descansar. Era muito industrioso, se bem que bastante
sibarita. Tinha uma preocupação intensa, mas organizada,
de receber uma ração regular de prazer. Foi doente
(tuberculose) por muitos anos, quando jovem, e dava a
impressão de ter entrado de posse de seu corpo numa data
relativamente tardia — o mesmo se pode dizer de sua
mente e de sua produtividade. Tinha revelações sensuais no
exterior (Marrocos, Japão); aos poucos, e de forma um tanto
tardia, assumiu os consideráveis privilégios sexuais de que
um homem com seus gostos sexuais e com sua enorme
celebridade pode dispor. Havia nele algo de infantil, na
ansiedade, no corpo gorducho, na voz suave, na pele linda,
na concentração em si mesmo. Gostava de se demorar em
cafés, na companhia de estudantes; queria ser levado a
bares e discotecas — mas, à parte as transações sexuais,
seu interesse por alguém tendia a ser o interesse que esse
alguém tinha por ele. (“Ah, Susan. Toujours fidèle” foram as
palavras com que me cumprimentou, afetuosamente,
quando nos vimos pela última vez. Eu era, eu sou.)
Barthes deixava claro haver algo de infantil em sua
insistência, que compartilhava com Borges, em dizer que ler
era uma forma de felicidade, uma forma de alegria. Havia
também algo bem pouco inocente na exigência, na
contundência do clamor sexual do adulto. Com sua
capacidade ilimitada de autorreferência, ele inscrevia a
invenção do sentido na busca do prazer. As duas eram
identificadas: ler como jouissance (a palavra francesa para
“alegria”, que também significa “gozar”); o prazer do texto.
Isso é típico demais. Como um voluptuoso da mente, era um
grande conciliador. Tinha pouca sensibilidade para o trágico.
Também sempre encontrava uma vantagem na
desvantagem. Embora ecoe muitos temas perenes da crítica
cultural moderna, era tudo menos uma pessoa de mente
catastrofista. Sua obra não apresenta nenhuma visão de
juízos finais, de fim da civilização, da inevitabilidade do
barbarismo. Nem mesmo é elegíaca. Antiquado em muitos
de seus gostos, sentia-se nostálgico em relação ao decoro e
à cultura literária da antiga ordem burguesa. Mas
encontrava muita coisa que o reconciliava com a ordem
moderna.
Extremamente cortês, um pouco desinteressado das
coisas mundanas, adaptável — detestava violência. Tinha
olhos lindos, sempre tristes. Havia algo de melancólico em
toda conversa sua sobre prazer; Fragmentos de um discurso
amoroso é um livro muito triste. Mas conheceu o êxtase e
queria celebrá-lo. Era grande amante da vida (e negador da
morte); o propósito de seu romance não escrito, disse ele,
era louvar a vida, exprimir gratidão por estar vivo. Na grave
atividade do prazer, no jogo esplêndido de sua mente, havia
sempre aquela contracorrente profunda de páthos — que se
tornou mais aguda, com sua morte prematura,
atormentadora.

(1980)
A mente como paixão

Não posso me tornar modesto: coisas demais


queimam dentro de mim; as velhas soluções
estão se desintegrando; nada se fez ainda com
as novas. Portanto, eu começo em toda parte
ao mesmo tempo, como se eu tivesse um
século à minha frente.

Canetti, 1943

O discurso que Elias Canetti fez em Viena, por ocasião do


quinquagésimo aniversário de Hermann Broch, em
novembro de 1936, formula intrepidamente alguns dos
temas característicos de Canetti e é um dos mais belos
tributos que um escritor jamais prestou a outro. Esse tributo
cria os termos de uma sucessão. Quando encontra em
Broch os atributos necessários de um grande escritor — é
original, sintetiza sua época, opõe-se a ela —, Canetti
delineia os parâmetros com os quais ele mesmo se
comprometeu. Quando saúda Broch por chegar aos
cinquenta anos (Canetti tinha 31) e afirma que isso devia
corresponder apenas à metade do que devia ser a vida
humana, ele confessa que detesta a morte e almeja a
longevidade, que é a marca registrada de sua obra. Quando
exalta a insaciabilidade intelectual de Broch, invocando sua
visão de algum estado da mente livre de grilhões, Canetti
atesta os próprios apetites igualmente fervorosos. E, com a
magnanimidade de sua homenagem, adiciona mais um
elemento a esse retrato do escritor como nobre adversário
de sua época: o escritor como um nobre admirador.
Seu elogio a Broch revela muito sobre a pureza da posição
moral e a intransigência a que Canetti aspira, assim como
sobre seu desejo de modelos fortes e até avassaladores. Ao
escrever em 1965, ele evoca os paroxismos de admiração
que sentia por Karl Kraus na década de 1920, quando
estudante em Viena, a fim de defender o valor, para um
escritor sério, de viver, pelo menos por um tempo, sob o
domínio da autoridade de outro: o ensaio sobre Kraus é, na
verdade, sobre a ética da admiração. Ele aprecia ser
desafiado por inimigos valorosos (Canetti aponta alguns
“inimigos” — Hobbes e Maistre — entre seus escritores
prediletos); gosta de ser revigorado por um padrão
inalcançável, humilhante. Sobre Kafka, a mais insistente de
suas admirações, ele observa: “Nós nos tornamos bons ao
ler Kafka, sem nos orgulharmos disso”.
Tão dedicada é a relação de Canetti com o dever e o
prazer de admirar os outros, tão meticuloso é seu senso da
vocação de escritor, que a humildade — e o orgulho — o
tornam extremamente autocentrado, porém de forma
caracteristicamente impessoal. Sua preocupação repousa
em ser alguém que ele mesmo seja capaz de admirar. Essa
é uma preocupação primordial em A província do homem,
seleção de suas anotações feitas em cadernos entre 1942 e
1972, tempo durante o qual, em sua maior parte, esteve
preparando e escrevendo seu reconhecido Massa e poder
(1960). Nessas notas ligeiras, Canetti constantemente
instiga a si mesmo com o exemplo dos grandes mortos,
identificando a necessidade intelectual daquilo que ele
empreende, verificando sua temperatura mental, tremendo
de pavor à medida que o calendário vai deixando suas
folhas caírem.
Outros traços acompanham o fato de ser um admirador
seguro de si e generoso: o medo de não ser insolente ou
ambicioso o bastante, a impaciência com o meramente
pessoal (sinal de uma personalidade forte, como afirma
Canetti, é o amor pelo impessoal) e a aversão à
autopiedade. No primeiro volume de sua autobiografia, A
língua absolvida (1977), para contar sobre sua vida, Canetti
escolhe retratar as pessoas que admirou, as pessoas com
quem aprendeu. E relata com fervor como as coisas agiam a
favor dele e não contra ele; sua história é a de uma
libertação: uma mente — uma linguagem — uma língua
“absolvida” para vagar pelo mundo.

Esse mundo tem uma geografia mental complexa.


Nascido em 1905, numa família sefardita dispersa, depois
reagrupada na Bulgária (seu pai e seus avós paternos
provinham da Turquia), Canetti teve uma infância rica em
deslocamentos. Viena, onde o pai e a mãe frequentaram a
escola, era a capital mental de todos os lugares, inclusive a
Inglaterra, para onde sua família se mudou quando ele tinha
seis anos; Lausanne e Zurique, onde fez uma parte de seus
estudos; e temporadas em Berlim, no fim da década de
1920. Foi para Viena que a mãe o levou, assim como os dois
irmãos menores, depois que o pai morreu em Manchester,
em 1912; e foi de lá que emigrou em 1938, após passar um
ano em Paris e mais tarde mudar-se para Londres, onde
vive, desde então. Só no exílio, notou ele, nos damos conta
de como “o mundo sempre foi um mundo de exílios” —
observação característica, uma vez que retira da condição
de Canetti parte de sua particularidade.
Quase por direito de nascença, ele tem a relação
facilmente generalizada do escritor eLivros com o lugar: um
lugar é uma língua. E saber muitas línguas é uma forma de
reivindicar muitos lugares como seu território. Um exemplo
da família (seu avô paterno se vangloriava de saber
dezessete idiomas), a mistura local (na cidade portuária do
Danúbio onde nasceu, diz Canetti, era possível ouvir sete ou
oito línguas todos os dias) e a velocidade de sua infância
facilitaram ainda mais essa relação de avidez com a
linguagem. Viver era aprender línguas — as suas eram o
ladino, o búlgaro, o alemão (línguas que seus pais usavam
para falar um com o outro), inglês, francês — e estar em
“toda parte”.
O fato de o alemão ter se tornado a língua de sua mente
confirma a falta de lugar de Canetti. Os tributos piedosos à
inspiração de Goethe, escritos em seus cadernos enquanto
as bombas da Luftwaffe caíam em Londres (“Se, apesar de
tudo, eu sobreviver, deverei isso a Goethe”), atestam essa
lealdade à cultura alemã que o manteria para sempre como
um estrangeiro na Inglaterra — ele já passou mais da
metade de sua vida no país —, “porque sou judeu”, anotou
em 1944. Com essa decisão, diferente daquela tomada pela
maioria dos intelectuais judeus refugiados de Hitler, Canetti
optou por manter-se sem a mancha do ódio, um filho
agradecido da cultura alemã, que desejava fazer dela algo
que pudesse continuar admirando. E conseguiu.
Canetti é tido como o modelo de um personagem filósofo
que surge em alguns dos primeiros romances de Iris
Murdoch, como Mischa Fox em Mischa, o encantador
(dedicado a ele), personagem cuja audácia e superioridade,
manifestadas sem esforço, constituem um enigma para
seus amigos intimidados.11 Tomado exteriormente, esse
retrato sugere a que ponto Canetti devia parecer exótico a
seus admiradores ingleses. O artista que é também um
erudito (ou vice-versa), e cuja vocação é a sabedoria, não
constitui uma tradição que tenha abrigo na Inglaterra,
apesar dos numerosos intelectuais eLivross das tiranias
mais implacáveis deste século que carregaram sua cultura
sem par, seus projetos imperturbáveis de grandeza, para as
ilhas de língua inglesa, pequenas e grandes, de cultura mais
modesta, situadas à margem da catástrofe europeia.
Retratos extraídos do interior, com ou sem as pungentes
inflexões do exílio, tornaram familiar o modelo do intelectual
itinerante. Ele (pois o tipo é masculino, é claro) é judeu, ou
semelhante a um judeu; policultural, inquieto, misógino; um
colecionador; dedicado à autotranscendência, com desprezo
pelos instintos; sobrecarregado de livros e animado pela
euforia do conhecimento. Sua verdadeira tarefa não é
exercer seu talento para a explicação, e sim, como
testemunha de uma época, estabelecer padrões de
desespero mais amplos e mais edificantes. Como excêntrico
recluso, constitui uma das maiores realizações na vida e nas
letras na imaginação do século XX, um autêntico herói sob o
disfarce de um mártir. Embora retratos dessa figura tenham
surgido em todas as literaturas europeias, algumas figuras
alemãs alcançaram autoridade notável — O lobo da estepe,
certos ensaios de Benjamin; ou uma desolação notável — o
único romance de Canetti, Auto de fé, e, recentemente, dois
romances de Thomas Bernhard, Korrektur (Correção) e Der
Weltverbesserer (O aperfeiçoador do mundo).
Auto de fé — o título em alemão é Die Blendung (A
cegueira) — retrata o homem recluso como um ingênuo
intoxicado por livros, que precisa passar por uma
humilhação épica. O sereno e celibatário professor Kien,
renomado sinólogo, vive escondido em seu apartamento do
último andar, na companhia de seus 25 mil livros — livros
sobre todos os assuntos, que alimentam uma mente de
avidez insaciável. Ele ignora como a vida é horrível;
continuará a fazê-lo, até separar-se de seus livros. O apego
aos bens materiais e a hipocrisia surgem na forma de uma
mulher, o eterno princípio da antimente, nessa mitologia do
intelectual: o estudioso, recluso no céu, casa-se com sua
arrumadeira, personagem tão monstruoso quanto as
pinturas de George Grosz ou Otto Dix — e vê-se
arremessado para dentro do mundo.
Canetti conta que, inicialmente, concebeu Auto de fé —
quando tinha 24 anos — como um livro de uma série de
oito, nos quais o personagem principal seria sempre um
monomaníaco, e o ciclo inteiro teria o título de “A comédia
humana dos loucos”. Mas apenas foi escrito o romance
sobre o “homem-livro” (como Kien é chamado nos primeiros
rascunhos), e não aqueles sobre, digamos, o fanático
religioso, o colecionador, o visionário da tecnologia. Sob o
disfarce de um livro a respeito de um maluco — ou seja,
uma hipérbole —, Auto de fé apresenta clichês familiares
sobre intelectuais pouco afeitos às coisas mundanas,
pessoas fáceis de enganar, e é animado por um ódio às
mulheres excepcionalmente inventivo. É impossível não
encarar a perturbação de Kien como variações dos exageros
mais apreciados por seu autor. “A limitação a um particular,
como se fosse tudo, é desprezível demais”, escreveu
Canetti — A província do homem é repleto de declarações
ao estilo de Kien. O autor dos comentários condescendentes
a respeito das mulheres preservados nesses cadernos deve
ter apreciado fabular os detalhes da misoginia delirante de
Kien. E não podemos deixar de supor que alguns métodos
de trabalho de Canetti sejam evocados no relato do
romance sobre um estudioso fenomenal no exercício de seu
ofício obsessivo, à deriva num oceano de manias e de
esquemas de organização. De fato, ficaríamos surpresos ao
saber que Canetti não tem uma biblioteca grande, erudita,
mas sem especialização, com a abrangência da
apresentada pela de Kien. Esse tipo de construção de
biblioteca nada tem a ver com a coleção de livros que
Benjamin descreveu, memoravelmente, que é uma paixão
pelos livros como objetos materiais (livros raros, primeiras
edições). É, antes, a materialização de uma obsessão cujo
ideal é pôr os livros no interior da cabeça; a biblioteca
verdadeira não passa de um sistema mnemônico. Assim,
Canetti põe Kien sentado em sua escrivaninha, redigindo
um artigo erudito, sem virar uma única página de seus
livros, exceto dentro da cabeça.
Auto de fé retrata os estágios da loucura de Kien como
três relações entre a “cabeça” e o “mundo” — Kien, recluso
com seus livros, é “a cabeça sem o mundo”; à deriva na
cidade selvagem, que é “um mundo sem cabeça”; e levado
ao suicídio “pelo mundo na cabeça”. E tal linguagem não
era adequada apenas para o louco homem-livro; Canetti
usou-a, mais tarde, em seus cadernos, para descrever a si
mesmo, como ao designar a própria vida como nada mais
do que uma tentativa desesperada de pensar sobre tudo,
“de modo que tudo se junte dentro da cabeça e assim se
torne, novamente, uma unidade” — e por isso, conta ele em
A língua absolvida, sua mãe o acusava de ser egoísta e
irresponsável. Cobiçar, ansiar, desejar — são relações
apaixonadas, mas também aquisitivas, com o conhecimento
e com a verdade; Canetti recorda um tempo em que, nunca
sem escrúpulos, ele “chegava a inventar desculpas e
raciocínios complicados para possuir livros”. Quanto mais
imatura é a avidez, mais radicais são as fantasias de livrar-
se do fardo dos livros e do estudo. Auto de fé, que termina
com o homem-livro imolando a si mesmo com seus livros, é
a mais precoce e mais crua dessas fantasias. Os escritos
posteriores de Canetti projetam fantasias de perturbações
mais nostálgicas e cautelosas. Uma anotação de 1951: “Seu
sonho: saber tudo o que sabe e, ainda assim, não saber”.

Publicado em 1935 sob os elogios de Broch, Thomas Mann


e outros, Auto de fé foi o primeiro livro de Canetti (se não
contarmos uma peça escrita em 1932) e seu único romance,
fruto de um gosto duradouro pela hipérbole e do fascínio
com o grotesco, que se tornou mais estático em livros
posteriores, consideravelmente menos apocalípticos. O
todo-ouvidos (1974) assemelha-se a uma destilação
abstrata do ciclo de romances sobre loucos que Canetti
concebeu, antes dos trinta anos de idade. Esse livro breve
consiste em esquetes curtos de cinquenta formas de
monomania, de “personagens”, como o Cadáver-Esquivo, o
Corredor-Divertido, o Cheirador-Estreito, o Fala-Errado, o
Administra-Desgraça; cinquenta personagens e nenhum
enredo. Os nomes toscos sugerem um grau de
autoconsciência exacerbado da invenção literária — visto
que Canetti é um escritor que questiona sem parar, do
ponto de vista privilegiado do moralista, a própria
possibilidade de fazer arte. “Se conhecemos muita gente”,
escreveu ele anos antes, “parece quase uma blasfêmia
inventar mais gente.”
Um ano depois da publicação de Auto de fé, em sua
homenagem a Broch, Canetti cita a fórmula rigorosa desse
autor: “A literatura é sempre uma impaciência do
conhecimento”. Entretanto, os dons de Broch para a
paciência eram abundantes o suficiente para ele produzir
estes grandes romances pacientes que são A morte de
Virgílio e Os sonâmbulos e inspirar uma inteligência
esplendidamente especulativa. Canetti se preocupava com
o que podia ser feito com o romance, o que indica o teor de
sua impaciência. Para o autor, pensar é insistir; ele está
sempre se propondo opções, afirmando e reafirmando seu
direito de fazer o que está fazendo. Optou por embarcar no
que chamou de “obra da vida” e desapareceu por 25 anos
para incubá-la; não publicou nada, depois de 1938, quando
partiu de Viena (exceto uma segunda peça de teatro), até
1960, quando surgiu Massa e poder. “Tudo” entrou em seu
livro, diz ele.
Os ideais de paciência de Canetti e seu senso
irrepreensível do grotesco estão unidos em suas impressões
de uma viagem a Marrocos, As vozes de Marrakech (1967).
As vinhetas de sobrevivência mínima do livro apresentam o
grotesco como uma forma de heroísmo: um patético burro
esquelético, com uma ereção enorme; o mais miserável dos
mendigos, crianças cegas pedindo esmola e, terrível de
imaginar, uma trouxa marrom que emite um único som (ê-
ê-ê-ê-ê) e que todo dia é levada a uma praça em Marrakech
para pedir esmolas e à qual o autor presta um tributo
comovente e característico: “Fiquei orgulhoso daquela
trouxa, porque estava viva”.
A humildade é o tema de outra obra desse período,
“Kafka, o outro processo”, escrita em 1969, em que Canetti
retrata a vida de Kafka como uma ficção exemplar e oferece
um comentário a respeito. Ele relata o desastre prolongado
do noivado de Kafka e Felice Bauer (as cartas de Kafka para
Felice tinham acabado de ser publicadas) como uma
parábola da vitória secreta de quem opta pelo fracasso, de
quem “se afasta do poder, sob todas as formas em que ele
possa se manifestar”. Registra com satisfação que Kafka
muitas vezes se identifica com animais fracos e pequenos, e
nele encontra seus próprios sentimentos sobre a renúncia
ao poder. A rigor, na força de seu testemunho sobre o
imperativo ético de tomar o lado dos humilhados e dos
impotentes, ele parece mais próximo de Simone Weil, outra
grande especialista em poder, a quem jamais se refere. Sua
identificação com os fracos, no entanto, se situa fora da
história; o exemplo típico da falta de poder para Canetti não
é, digamos, o povo oprimido, mas os animais. Como não é
cristão, não concebe nenhuma intervenção ou partidarismo
militante. Tampouco é um resignado. Incapaz de indiferença
ou saciedade, Canetti propõe o modelo de uma mente que
sempre reage, registra os choques e tenta levar a melhor
sobre eles.
A escrita aforística de seus cadernos é o conhecimento
rápido — em contraste com o conhecimento vagaroso
destilado em Massa e poder. “Minha tarefa”, escreveu ele
em 1949, um ano depois de começar a redigir o livro, “é
mostrar como o egoísmo é complexo.” Trata-se de um livro
muito tenso para um volume tão longo. Sua rapidez está em
conflito com sua tenacidade. O escritor laborioso e assertivo
que toma a iniciativa de escrever um volume que vai
“agarrar este século pela garganta” interfere em um
escritor conciso — e dele sofre interferências — que é mais
jocoso, mais insolente, mais desconcertado, mais mordaz.
O caderno é o suporte literário perfeito para um eterno
estudante, alguém que não tem assunto ou, melhor
dizendo, cujo assunto é “tudo”. Permite anotações de
qualquer extensão, formato, grau de impaciência e rudeza,
mas sua forma ideal é a do aforismo. A maioria das
anotações de Canetti adota os temas tradicionais dos
aforistas: as hipocrisias da sociedade, a vaidade dos desejos
humanos, a farsa do amor, as ironias da morte, o prazer e a
necessidade da solidão e as complexidades dos próprios
processos de pensamento. A maioria dos grandes aforistas é
composta de pessimistas, escarnecedores da insensatez
humana. (“Os grandes escritores de aforismos dão a
impressão de que se conheciam muito bem”, anotou
Canetti.) O pensamento aforístico é informal, insociável,
contestador, orgulhosamente egoísta. “Precisamos ter
amigos sobretudo para sermos insolentes — ou seja, para
sermos nós mesmos”, registra ele: aí está o autêntico tom
do aforista. O caderno retém esse eu idealmente insolente,
eficaz, que construímos para lidar com o mundo. Por meio
da disjunção de ideias e observações, por meio da
brevidade de sua expressão, por meio da ausência de
explicações úteis, o caderno faz do pensamento algo leve.
Apesar de ter muito do temperamento do aforista, Canetti
pode ser tudo, menos um intelectual dândi. (É o oposto,
digamos, de Gottfried Benn.) De fato, a grande limitação de
sua sensibilidade é a ausência do mais leve traço do esteta.
Canetti não demonstra nenhum amor à arte como tal.
Apesar de sua lista de Grandes Escritores, em sua obra não
constam pintura, teatro, cinema, dança nem outras figuras
familiares da cultura humanista. Ele parece se posicionar
solenemente bem acima das ideias impostas de “cultura”
ou “arte”. Não ama nada que a mente fabrique para si
mesma. Portanto, sua escrita contém pouca ironia. Ninguém
afetado pela sensibilidade estética teria escrito, com
severidade, “o que muitas vezes me aborrece em Montaigne
é a gordura nas citações”. Não há nada no temperamento
de Canetti que permita alguma receptividade ao
surrealismo, e isso para mencionar apenas a opção
moderna mais persuasiva para o esteta. Tampouco, ao que
parece, foi ele alguma vez afetado pela tentação da
esquerda.
Esclarecedor dedicado, ele descreve o alvo de sua luta
como a única fé que restou intacta após o Iluminismo, “a
mais absurda de todas, a religião do poder”. Aqui está o
lado de Canetti que recorda Karl Kraus, para quem a
vocação ética consiste em um protesto interminável. Mas
nenhum escritor é menos jornalista do que Canetti.
Protestar contra o poder, o poder como tal; protestar contra
a morte (ele foi um dos que mais odiaram a morte, na
literatura) — esses são alvos grandes, inimigos em geral
invencíveis. A obra de Kafka é descrita por ele como uma
“refutação” do poder, e esse é mesmo seu objetivo no livro
Massa e poder. Toda a sua obra, no entanto, tem por
objetivo uma refutação da morte. Uma refutação parece
significar, para Canetti, uma insistência exagerada. Ele
insiste em que a morte é inaceitável; inassimilável, porque é
aquilo que se situa fora da vida; injusta, porque limita a
ambição e a insulta. E se recusa a compreender a morte,
como Hegel sugeriu, como algo que está dentro da vida —
como a consciência da morte, da finitude, da mortalidade.
Em matéria de morte, Canetti é um materialista incorrigível,
horrorizado, ferrenhamente quixotesco. “Ainda não consegui
nenhum sucesso contra a morte”, escreveu em 1960.

Em A língua absolvida, Canetti se mostra ansioso para


fazer justiça a todos que admira, e isso pode ser
considerado uma forma de manter as pessoas vivas. Como
é típico, ele entende isso literalmente. Ao expor sua
relutância costumeira de se reconciliar com a extinção,
recorda um professor do colégio interno e conclui: “Caso ele
ainda esteja no mundo, hoje, aos noventa ou cem anos de
idade, eu gostaria que soubesse como o reverencio”.
O primeiro volume de sua autobiografia é dominado pela
história de uma admiração profunda: a de Canetti pela mãe.
É o retrato de uma daquelas grandes mães professoras,
uma fanática da alta cultura europeia, atuante e segura de
si, antes da época que transformaria a mãe numa tirana
egoísta e o filho num “superdotado”, para usar o rótulo
grosseiro que transmite o desdém contemporâneo pela
precocidade e pelo ardor intelectual.
“A mãe, cuja veneração suprema voltava-se aos grandes
escritores”, foi a admiradora primal; e uma promotora
apaixonada, implacável, dos objetos de suas admirações. A
educação de Canetti consistiu numa imersão em livros e na
sua amplificação, por meio de conversas. Havia leituras em
voz alta à noite, conversas tempestuosas sobre tudo o que
liam, sobre escritores que os dois concordavam em venerar.
Muitas descobertas foram feitas separadamente, mas eles
tinham de admirar em uníssono, e qualquer divergência era
decidida por meio de debates dilacerantes, até que um ou
outro cedesse. Os critérios de admiração da mãe criavam
um mundo tenso, definido por lealdades e traições. Cada
nova admiração poderia pôr a vida de um dos dois em
questão. Canetti descreve a mãe perturbada e exaltada
durante uma semana, depois de ouvir A paixão segundo são
Mateus e, por fim, em lágrimas, porque temia que Bach a
tivesse levado a desejar apenas ouvir música e mais nada e
que, assim, “não haveria mais lugar para livros”. Canetti,
aos treze anos, a consola e anima, dizendo que ela ainda vai
querer ler.
Ao testemunhar, “com assombro e admiração”, os
sobressaltos e as contradições ferozes da personalidade da
mãe, Canetti não subestima sua crueldade. Fatidicamente, o
escritor moderno favorito dela foi, por muito tempo,
Strindberg; em outra geração, provavelmente teria sido D.
H. Lawrence. A ênfase da mãe na “construção do
personagem” não raro levava essa leitora fervorosa a
repreender o filho estudioso por perseguir o “conhecimento
morto”, por evitar a “dura” realidade, por deixar que os
livros e as conversas o tornassem “efeminado”. (Ela
desprezava as mulheres, relata Canetti.) Ele conta como, às
vezes, se sentia aniquilado pela mãe, para depois
transformar isso numa libertação. À medida que afirmava
em si mesmo a capacidade de comprometimento fervoroso
da mãe, Canetti optava por revoltar-se com o caráter febril
dos entusiasmos dela e com a exclusividade exacerbada de
sua voracidade. A paciência (“paciência monumental”), a
firmeza e a universidade de interesse tornaram-se seus
objetivos. O mundo da mãe não tinha animais — só grandes
homens; o de Canetti terá ambos. A mãe só se interessa por
literatura e desdenha a ciência; a partir de 1924, ele vai
estudar química na Universidade de Viena e obtém o
doutorado em 1929. A mãe zomba de seu interesse por
povos primitivos; quando se prepara para escrever Massa e
poder, Canetti confessa: “Um objetivo sério de minha vida é
conhecer todos os mitos de todos os povos”.
Canetti rejeita o papel de vítima. Há muita nobreza no
retrato que traça da mãe. Esse retrato também reflete algo
como uma política do triunfalismo — uma firme rejeição da
tragédia, do sofrimento irremediável, que parece relacionar-
se com sua recusa da finitude, da morte, e do qual provém
boa parte da energia do escritor: sua capacidade insaciável
de admiração e de entusiasmo e seu desprezo civilizado
pela atitude queixosa.
A mãe de Canetti era retraída — a carícia mais ligeira era
um acontecimento. Mas sua conversa — debater, intimidar,
refletir, recontar sua vida — era copiosa, torrencial. A língua
era o veículo da paixão de ambos: palavras e mais palavras.
Com a língua, Canetti fez seu “primeiro movimento
independente” da mãe: aprender o alemão suíço (ela
detestava dialetos “vulgares”) quando ele partiu para o
colégio interno aos catorze anos. E, por meio da língua,
mantinha-se ligado a ela: escrevendo uma tragédia em
latim, em versos, em cinco atos (com uma tradução para o
alemão nas entrelinhas, para ajudar a mãe, em um texto
que encheu 121 páginas), dedicada a ela, para quem enviou
o texto e de quem cobrou um comentário minucioso.
Canetti parece ávido para enumerar as muitas habilidades
que deve ao exemplo e aos ensinamentos da mãe —
inclusive aqueles que desenvolveu para se opor a ela,
generosamente computados como dons maternos:
obstinação, independência intelectual, rapidez de
pensamento. Canetti também especula que a vivacidade do
idioma ladino, que ele falava quando criança, o ajudava a
pensar depressa. (Para o precoce, pensar é uma forma de
rapidez.) O escritor apresenta um relato complexo do
processo extraordinário que é o aprendizado para uma
criança intelectualmente precoce — mais completo e mais
instrutivo do que os relatos que encontramos, digamos, na
Autobiografia de Mill ou em As palavras de Sartre. Pois as
aptidões de Canetti como admirador refletem destrezas
incansáveis como aprendiz; o primeiro não pode ser
profundo sem o segundo. Como um aprendiz excepcional,
sua lealdade para com os professores é irrepreensível, com
aquilo que eles fazem de bom, ainda que (ou sobretudo
quando) o fazem inadvertidamente. O professor do colégio
interno a quem ele “reverencia” ganhou sua lealdade ao se
mostrar brutal durante a visita escolar a um matadouro.
Forçado por ele a encarar uma visão especialmente
horripilante, Canetti aprendeu que o assassinato de animais
era algo que “eu não estava destinado a admitir”. Sua mãe,
mesmo quando se comportava de maneira brutal, estava
alimentando, com suas palavras, o espírito alerta do filho.
Canetti diz, com orgulho: “Acho perigoso o conhecimento
mudo”.

Canetti afirma que sua aptidão se volta mais para o ato de


ouvir do que para o de ver. Em Auto de fé, Kien exercita a
cegueira, pois descobriu que ela “é uma arma contra o
tempo e o espaço; nosso ser é uma vasta cegueira”. Em
particular nas obras posteriores a Massa e poder — como
aquelas didaticamente intituladas As vozes de Marrakech, O
todo-ouvidos, A língua absolvida —, Canetti sublinha o órgão
moralista, o ouvido, e atenua o olho (enquanto continua a
reverberar variações do tema da cegueira). Ouvir, falar e
respirar são elogiados toda vez que algo importante está
em jogo, ainda que na forma de metáforas do ouvido, da
boca (ou da língua) e da garganta. Em sua observação de
que “a mais ruidosa passagem na obra de Kafka fala dessa
culpa a respeito dos animais”, o adjetivo em si é uma forma
de reiteração.
O que ouvimos são vozes — das quais o ouvido é a
testemunha. (Canetti não fala de música nem, a rigor, de
nenhuma arte que não seja verbal.) O ouvido é o sentido
atento, mais humilde, mais passivo, mais imediato, menos
discriminador do que o olho. A desaprovação do olho por
Canetti é um aspecto de seu afastamento da sensibilidade
do esteta, que afirma, tipicamente, os prazeres e a
sabedoria do visual, ou seja, das superfícies. Em suas
últimas obras, dar supremacia ao ouvido é um tema
impertinente, conscientemente arcaizante. De modo
implícito, ele reitera o abismo arcaico entre a cultura
hebraica em oposição à grega, a cultura do ouvido em
oposição à do olho, e a moral em contrapartida à estética.
Canetti equipara conhecer e ouvir, ouvir e ouvir tudo e,
ainda assim, ser capaz de reagir. As impressões exóticas
armazenadas durante sua estada em Marrakech são
unificadas pelo teor de atenção às “vozes” que o autor tenta
evocar em si mesmo. A atenção é o tema formal do livro. Ao
encontrar a pobreza, a miséria, a deformidade, dedica-se a
ouvir, ou seja, a prestar atenção às palavras, gritos e sons
inarticulados “no limiar da vida”. Seu ensaio sobre Kraus
retrata alguém que ele considera ideal como ouvinte e
também como voz. Canetti afirma que Kraus vivia
assombrado por vozes; que seu ouvido estava
constantemente aberto; que o “verdadeiro Karl Kraus era o
falante”. Descrever um escritor como uma voz se tornou um
clichê tão grande que é possível não perceber a força — e a
literalidade característica — do que Canetti quer dizer.
Segundo seus critérios, a voz equivale a uma presença
irrefutável. Tratar alguém como uma voz é lhe garantir
autoridade; afirmar que alguém ouve significa que a pessoa
ouve o que deve ser ouvido.

A exemplo de um estudioso num conto de Borges que


mistura erudição real e imaginária, Canetti tem um fraco
por mesclas extravagantes de conhecimento, classificações
excêntricas e mudanças impetuosas de tom. Desse modo,
Massa e poder — em alemão, Masse und Macht — propõe
analogias entre fisiologia e zoologia para explicar o
comando e a obediência; e mostra-se original ao máximo
quando amplia a noção de multidão para incluir unidades
coletivas, não compostas de seres humanos, que
“recordam” a multidão, dão “a impressão de ser uma
multidão” e que “constituem um símbolo para ela, no mito,
no sonho, no discurso e na canção”. (Entre tais unidades —
no engenhoso catálogo de Canetti — estão o fogo, a chuva,
os dedos da mão, o enxame de abelhas, os dentes, a
floresta, as serpentes de um delirium tremens.) Boa parte
de Massa e poder se apoia, de forma latente ou inadvertida,
em imagens da ficção científica de coisas e de partes de
coisas que se tornam misteriosamente autônomas; de
movimentos, ritmos e volumes imprevisíveis. Canetti
transforma o tempo (história) em espaço, com o que uma
série bizarra de entidades biomórficas — as várias formas
da Grande Besta, a Multidão — se entretém. A multidão se
move, emite, cresce, se expande, se contrai. Suas opções
vêm em pares: as multidões, aponta Canetti, são rápidas e
lentas, rítmicas e estagnadas, fechadas e abertas. O bando
(outra versão da multidão) lamenta, preda, é tranquilo, é
exterior ou interior.
Como explicação da psicologia e da estrutura da
autoridade, Massa e poder remete à discussão do século XIX
sobre multidões e massas, com o propósito de expor sua
poética de pesadelo político. A condenação da Revolução
Francesa e, mais tarde, da Comuna era a mensagem dos
livros daquele século sobre multidões (eles eram tão
comuns, na época, quanto estão fora de moda hoje), de A
história das ilusões e loucura das multidões (1841), de
Charles Mackay, até A multidão (1895), livro que Freud
admirava, e A psicologia das revoluções (1912), de Le Bon.
No entanto, se os escritores anteriores se contentavam em
afirmar a patologia da multidão e tecer moralizações a
respeito, Canetti tem a intenção de explicar, e
exaustivamente, por exemplo, a destrutividade da multidão
(“muitas vezes mencionada como sua qualidade mais
saliente”, diz ele) por meio de seus paradigmas biomórficos.
E, à diferença de Le Bon, que atacava a revolução e
defendia o status quo (considerado por esse autor uma
ditadura menos opressiva), Canetti apresenta um dossiê
contra o poder em si.
Compreender o poder analisando a multidão, em
detrimento das noções de “classe” ou “nação”, consiste
precisamente em insistir numa compreensão a-histórica.
Hegel e Marx não são mencionados, não porque Canetti seja
tão autoconfiante que não se digne a citar os nomes de
costume, mas sim porque as implicações de sua
argumentação são agudamente anti-hegelianas e
antimarxistas. Seu método a-histórico e seu temperamento
político conservador o levam antes para perto de Freud —
embora ele não seja um freudiano. Canetti é aquilo que
Freud poderia ter sido, se não fosse psicólogo: usando
muitas fontes que eram importantes para Freud — a
autobiografia do psicótico juiz Schreber, estudos de
antropologia e de história das religiões antigas, a teoria das
multidões de Le Bon —, ele chega a conclusões muito
diferentes sobre a psicologia de grupo e a formação do ego.
De maneira similar a Freud, Canetti tende a encontrar na
religião o protótipo do comportamento da multidão (ou seja,
irracional), e boa parte de Massa e poder é, na verdade, um
discurso racionalista sobre religião. Por exemplo, o que
Canetti chama de bando queixoso não passa de outro nome
para as religiões do lamento, das quais faz uma análise
deslumbrante, contrastando os andamentos vagarosos da
piedade e do ritual católicos (que expressam o eterno temor
da Igreja diante da multidão) com as lamentações frenéticas
do ramo xiita do islã.
Assim como Freud, Canetti também dilui a política na
patologia, tratando a sociedade como uma atividade mental
— bárbara, é claro — que deve ser decodificada. Desse
modo, ele se move, sem alargar os passos, da ideia de
multidão para o “símbolo da multidão” e analisa o
agrupamento social e as formas de comunidade como
transações de símbolos que a representam. O toque final
dessa análise parece ter sido alcançado quando Canetti
posiciona a Revolução Francesa em seu lugar, com a opinião
de que é menos interessante como erupção do destrutivo
do que como “símbolo da multidão nacional” para os
franceses.
Para Hegel e seus sucessores, o histórico (o lar da ironia)
e o natural são dois processos radicalmente distintos. Em
Massa e poder, a história é “natural”. Canetti discute para
chegar a ela, e não com base nela. Primeiro, vem a análise
da multidão; depois, como ilustração, a seção intitulada “A
multidão na história”. A história é usada apenas como fonte
de exemplos — um uso rápido. Canetti é parcial com as
evidências dos povos sem história (no sentido hegeliano),
tratando as anedotas antropológicas como se tivessem o
mesmo valor ilustrativo de um evento ocorrido numa
sociedade histórica avançada.
Massa e poder é um livro excêntrico — literalmente
excêntrico por conta de seu ideal de “universalidade”, que
leva seu autor a evitar a referência óbvia: Hitler. Ele aparece
de modo indireto, na importância central que Canetti atribui
ao caso do juiz Schreber. (Essa é a única referência que faz
a Freud — numa discreta nota de rodapé, na qual afirma
que, se Freud tivesse vivido um pouco mais, veria as ilusões
paranoicas de Schreber com mais pertinência: como um
protótipo da mentalidade política especificamente nazista.)
Mas Canetti é genuinamente não eurocêntrico — uma de
suas maiores realizações como intelectual. Dialogando com
o pensamento chinês e também com o europeu, com o
budismo e o islã e com o cristianismo, ele desfruta de uma
liberdade notável dos hábitos reducionistas de pensamento.
Parece incapaz de empregar o conhecimento psicológico de
forma redutora; o autor da homenagem a Broch não poderia
estar pensando em nada tão trivial como motivos pessoais.
E combate, ademais, a redução ao histórico, que seria o
mais plausível. “Eu faria tudo para me livrar de meu hábito
de ver o mundo historicamente”, escreveu ele em 1950,
dois anos depois de começar a escrever Massa e poder.
Seu protesto contra ver historicamente não se direciona
de maneira contrária apenas ao mais plausível dos
reducionismos. É também um protesto contra a morte.
Pensar sobre a história é pensar sobre a morte; e ser
lembrado, sem cessar, de que somos mortais. O
pensamento de Canetti é conservador no sentido mais
literal. O pensamento — Canetti — não quer morrer.

“Quero sentir antes dentro de mim tudo aquilo em que


depois vou pensar”, escreveu Canetti em 1943 e, para isso,
ele precisa de uma vida longa. Morrer precocemente
significa não ter se assimilado por completo e, portanto, não
ter usado a mente como poderia. É quase como se tivesse
de manter sua consciência em permanente estado de
avidez, para continuar inconciliável com a morte. “É
maravilhoso como nada se perde na mente”, escreveu ele
em seu caderno, no que deve ter sido um dos seus
momentos frequentes de euforia, “e só isso não bastaria
como motivo para viver por muito tempo ou para sempre?”
Imagens recorrentes da necessidade de sentir tudo dentro
de si, de unificar tudo no interior da cabeça, ilustram as
tentativas de Canetti de “refutar” a morte, por meio do
pensamento mágico e do clamor moral.
O autor propõe um acordo com a morte. “Um século?
Míseros cem anos! Será isso demais para um intuito
fervoroso?” Mas por que cem anos? Por que não trezentos?
— como a heroína de 337 anos de O caso Makropulos
(1922), de Karel Čapek. Nessa peça, uma personagem (uma
socialista “progressista”) descreve as desvantagens de um
tempo normal de vida.

O que um homem pode fazer durante seus sessenta anos de vida? Que
diversão ele tem? O que pode aprender? Não vivemos o bastante para colher
o fruto da árvore que plantamos; nunca aprendemos todas as coisas que a
humanidade descobriu antes de nós; não completamos nosso trabalho nem
deixamos nosso exemplo para o futuro; morremos sem termos sequer vivido.
Por outro lado, uma vida de trezentos anos permitiria que uma pessoa de
cinquenta anos fosse uma criança ou um aluno do primário; cinquenta anos
para conhecer o mundo e ver tudo o que nele existe; cem anos para trabalhar
pelo bem de todos; e depois, quando alcançarmos toda a experiência
humana, mais cem anos para viver na sabedoria, governar, ensinar e dar o
exemplo. Ah, como a vida humana seria valiosa, se durasse trezentos anos.

Isso soa como Canetti — exceto pelo fato de que ele não
justifica seu desejo de longevidade com nenhum apelo por
um prazo maior a fim de realizar boas ações. Tão vasto é o
valor da mente que só ela é usada para se opor à morte.
Como a mente é tão real para Canetti, ele se atreve a
desafiar a morte e, como o corpo é tão irreal, ele nada
percebe de desolador na longevidade extrema. O escritor
está mais do que disposto a viver como um centenário;
enquanto elabora fantasias, não pede aquilo que Fausto
desejava, a volta da juventude, nem aquilo que Emilia
Makropulos recebeu do pai alquimista, o prolongamento
mágico da juventude. A juventude não tem nenhum papel
na fantasia de imortalidade de Canetti. Essa fantasia é a
longevidade pura, a longevidade da mente. Supõe-se
simplesmente que, na longevidade, o caráter tem tanto a
ganhar quanto a mente: para Canetti, “a brevidade da vida
nos torna maus”. Emilia Makropulos sugere que a
longevidade nos tornaria piores:

Não se pode continuar amando por trezentos anos. E não se pode continuar
tendo esperança, criando, olhando para as coisas por trezentos anos. Não dá
para suportar. Tudo se torna maçante. É maçante ser bom e é maçante ser
mau… E aí nos damos conta de que, na verdade, nada existe… Estamos perto
demais de tudo. Podemos ver algum sentido em tudo. Pois tudo tem valor, já
que aqueles nossos poucos anos de vida não serão suficientes para satisfazer
nossa diversão… É repulsivo pensar em como somos felizes. E isso se deve
simplesmente à ridícula coincidência de que vamos morrer em breve.
Adquirimos um interesse de mentira por tudo…

Mas essa condenação plausível é exatamente o que


Canetti não pode admitir. Ele não se perturba com a
possibilidade do esgotamento do apetite, a satisfação do
desejo, a desvalorização da paixão. Nem dedica à
decomposição dos sentimentos um pensamento a mais do
que o que destina à decomposição do corpo: ele pensa
apenas na persistência da mente. Raramente alguém se
sentiu tão à vontade na mente, com tão pouca
ambivalência.

Canetti sentiu, profundamente, a responsabilidade das


palavras e grande parte de sua obra faz o esforço de
comunicar algo daquilo que aprendeu sobre como prestar
atenção ao mundo. Não existe nenhuma doutrina, mas há
uma boa dose de escárnio, premência, dor e euforia. A
mensagem das paixões da mente é a paixão. “Tento
imaginar alguém dizendo para Shakespeare: relaxe!”, diz o
autor. Sua obra defende, com eloquência, a tensão, o
empenho, a seriedade moral e amoral.
Contudo, Canetti não é só mais um herói da vontade. Daí
vem o atributo inesperado e derradeiro ao grande escritor
que ele encontra em Broch: e esse escritor, nos diz ele, nos
ensina a respirar. Canetti enaltece os escritos de Broch por
seu “rico lastro de experiência respiratória”. Foi o mais
profundo e mais estranho elogio feito por ele e, portanto, o
elogio que destinou também a Goethe (a mais previsível de
suas admirações). Canetti também lia Goethe como se
dissesse: “Respire!”. Respirar pode ser a mais radical de
todas as ocupações, quando elaborada como libertação de
outras necessidades, como ter uma carreira, construir uma
reputação, acumular conhecimento. O que Canetti diz no
fim desse ímpeto de admiração, sua homenagem a Broch,
sugere o que se deve admirar mais. A realização final do
admirador compenetrado é parar imediatamente de pôr em
uso as energias despertadas pelo admirado, cessar de
preencher o espaço aberto pelo admirado. Por meio disso,
os admiradores talentosos se permitem respirar, respirar
mais profundamente. No entanto, para isso é necessário ir
além da avidez; identificar-se com algo além da realização,
além do acúmulo de poder.

(1980)
Notas

1. Leni Riefenstahl, Hinter der Kullissen des Reichparteitag-Films (Munique,


1935). Uma fotografia na página 31 mostra Hitler e Riefenstahl debruçados
sobre alguns projetos, com a legenda: “Os preparativos para o Congresso do
Partido foram feitos lado a lado com os preparativos do trabalho de filmagem”.
O comício ocorreu entre os dias 4 e 10 de setembro; Riefenstahl relata que
começou a trabalhar em maio, planejando sequência por sequência e
supervisionando a construção de complexas pontes, torres e trilhos para as
câmeras. No fim de agosto, Hitler foi a Nuremberg com Viktor Lutze, chefe da SA
[Sturmabteilung], “para uma inspeção e para dar as instruções finais”. Os 32
operadores de câmera de Riefenstahl usavam uniformes da SA durante toda a
filmagem, “sugestão do chefe da equipe [Lutze], para que ninguém perturbasse
a solenidade das imagens com trajes civis”. A SS forneceu uma equipe de
guardas.

2. Ver Hans Barkhausen, “Footnote to the History os Riefenstahl’s ‘Olympia’”,


Film Quarterly, outono de 1974 — um raro gesto de dissidência fundamentada,
em meio ao grande número de homenagens a Riefenstahl que, durante os
últimos anos, surgiram em revistas ocidentais sobre cinema.

3. Se quiserem outra fonte — pois hoje Riefenstahl afirma (numa entrevista para
a revista alemã Filmkritik, de agosto de 1972) que ela não escreveu nenhuma
palavra de Hinter den Kulissen des Reich-parteitag-Films e que nem sequer leu o
texto, na ocasião —, há uma entrevista em Völkischer Beobachter, datada de 23
de agosto de 1933, sobre sua filmagem no comício de Nuremberg em 1933, na
qual faz declarações semelhantes.
Riefenstahl e seus apologistas sempre falam de Triunfo da vontade como se
fosse um “documentário” independente e muitas vezes chamam a atenção para
os problemas técnicos que surgiram durante a filmagem para provar que a
diretora tinha inimigos entre as lideranças do Partido (o ódio de Goebbels),
como se tais dificuldades não fossem parte normal de qualquer filmagem. Uma
das mais dóceis repaginações do mito de Riefenstahl como mera
documentarista — e inocente política — é o Filmguide to “Triumph of the Will”,
publicado pela Indiana University Press Filmguide Series, cujo autor, Richard
Meram Barsam, conclui seu prefácio exprimindo a “gratidão pela própria Leni
Riefenstahl, que cooperou com muitas horas de entrevistas, abriu seu arquivo
para minha pesquisa e mostrou um interesse genuíno por este livro”. Ela deve
mesmo ter se interessado por um livro cujo primeiro capítulo é “Leni Riefenstahl
e o fardo da independência” e que tem como tema “a crença de Riefenstahl de
que o artista deve, a todo custo, permanecer independente do mundo material.
Em sua própria vida, ela alcançou a liberdade artística, mas pagou um alto
preço”. Etc.
Como antídoto, permitam-me citar uma fonte incontestável (pelo menos, ele
não está aqui para dizer que não escreveu isto) — Adolf Hitler. Em seu breve
prefácio a Hinter den Kulissen, Hitler descreve Triunfo da vontade como uma
“glorificação absolutamente única e incomparável do poder e da beleza de
nosso Movimento”. E é mesmo.

4. É assim que Jonas Mekas (The Village Voice, 31 out. 1974) saúda a publicação
de The Last of the Nuba: “Riefenstahl continua sua celebração — ou será uma
busca? — da beleza clássica do corpo humano, a busca que começou em seus
filmes. Ela está interessada no ideal, no monumental”. Mekas, na mesma
publicação, em 7 de novembro de 1974: “E aqui está meu veredicto final sobre
os filmes de Riefenstahl: se você for um idealista, verá idealismo em seus
filmes; se for um classicista, verá em seus filmes uma ode ao classicismo; se for
um nazista, verá em seus filmes o nazismo”.

5. Foi Genet, em seu romance Pompas fúnebres, que ofereceu um dos primeiros
textos que mostram a sedução erótica que o fascismo exercia numa pessoa não
fascista. Outra descrição veio de Sartre, um candidato bastante improvável para
tais sentimentos e que deve ter ouvido Genet falar do assunto. Em Com a morte
na alma (1949), o terceiro romance de sua obra em quatro partes Os caminhos
da liberdade, Sartre descreve um de seus protagonistas testemunhando a
entrada do Exército alemão em Paris, em 1940: “[Daniel] não tinha medo, ele se
rendia confiante àqueles milhares de olhos, ele pensava: ‘Nossos
conquistadores!’, e estava extremamente feliz. Fitava-os nos olhos, se deleitava
com seus cabelos perfeitos, seus rostos bronzeados com olhos que pareciam
lagos de gelo, seus corpos esbeltos, suas coxas incrivelmente compridas e
musculosas. Ele murmurou: ‘Como são bonitos!’… Algo havia caído do céu: era
a lei ancestral. A sociedade dos juízes havia desmoronado, a sentença tinha sido
apagada: aqueles espectrais soldadinhos cáqui, os defensores dos direitos do
homem, tinham sido derrotados… Uma sensação insuportável e deliciosa se
espalhou pelo seu corpo; ele mal conseguia enxergar direito; repetia, ofegante:
‘Como se fosse de manteiga… eles estão entrando em Paris como se fosse de
manteiga’… Ele gostaria de ser mulher para jogar flores para eles”.

6. Asja Lacis e Benjamin se conheceram em Capri no verão de 1924. Ela era


uma revolucionária comunista da Letônia e diretora teatral, assistente de Brecht
e de Piscator, com quem Benjamin escreveu Nápoles em 1925 e para quem
escreveu o Programa de um teatro infantil proletário em 1928. Foi Lacis quem
conseguiu um convite para Benjamin ir a Moscou no inverno de 1926-7 e que o
apresentou a Brecht, em 1929. Benjamin esperava casar-se com ela, quando
ele, afinal, se divorciou em 1930. Mas ela voltou para Riga e, mais tarde, passou
dez anos num campo de prisioneiros soviético.

7. Scholem afirma que o amor de Benjamin por miniaturas é subjacente a seu


gosto por manifestações literárias breves, patente em Rua de mão única. Pode
ser; mas livros desse tipo eram comuns na década de 1920, e aqueles textos
curtos e independentes foram apresentados num estilo de colagem
especificamente surrealista. Rua de mão única foi publicado por Ernst Rowohlt,
em Berlim, em forma de folheto, com uma tipografia destinada a evocar efeitos
de choque publicitário; a capa era uma colagem fotográfica de expressões
agressivas em letras maiúsculas recortadas de anúncios de jornal, letreiros
oficiais e curiosidades. O trecho de abertura, em que Benjamin saúda a
“linguagem de prontidão” e denuncia “o pretensioso gesto universal do livro”,
não faz muito sentido, a menos que saibamos que tipo de livro Rua de mão
única pretendia ser.

8. Carta de Adorno para Benjamin, escrita de Nova York no dia 10 de novembro


de 1938. Benjamin e Adorno se conheceram em 1923 (Adorno tinha vinte anos)
e, em 1935, Benjamin começou a receber uma pequena bolsa do Institut für
Sozialforschung de Max Horkheimer, do qual Adorno era membro.

9. “Em lugar de tentar apresentar a maior realidade possível fora de si mesmo”,


escreveu Jacques Rivière, o artista simbolista “tenta consumir tanto quanto
possível dentro de si mesmo […] oferece a mente como um tipo de teatro ideal,
onde [os eventos] podem ser representados sem se tornarem visíveis.” O ensaio
de Rivière sobre o simbolismo, “Le Roman d’aventure” (1913), é a melhor
análise a esse respeito que conheço.
10. Por exemplo, na mesa de Baer, Syberberg coloca um pedaço de madeira da
Hundinghütte de Ludovico, sua cabana de madeira em Linderhof (que pegou
fogo em 1945), inspirada nos projetos para o Ato I de A valquíria, em suas duas
primeiras montagens; em outros locais do cenário, há uma pedra de Bayreuth,
uma relíquia da casa de campo de Hitler em Berchtesgaden e outros tesouros.
Numa ocasião, talismãs foram fornecidos pelo ator: Syberberg pediu a Heller
que trouxesse objetos preciosos para ele, e a foto de Joseph Roth e um pequeno
Buda levados pelo ator podem ser vistos apenas de relance (caso alguém saiba
que os objetos estão ali) sobre sua mesa, enquanto ele pronuncia o monólogo
do cosmos no fim da Parte II e o longo monólogo da Parte IV.

11.“O que é estranho nele?”, perguntou.


“Ah, não sei”, respondeu Annette. “Ele é tão…”
“Não o acho estranho”, disse Rainborough, depois de esperar em vão o
adjetivo. “Só há uma coisa de excepcional em Mischa, afora seus olhos: sua
paciência. Tem sempre um monte de esquemas à mão e é o único homem que
conheço capaz de esperar anos. Literalmente, para que um plano trivial
amadureça.” Rainborough olhou para Annette com hostilidade.
“É verdade que ele chega a gritar com as coisas que lê nos jornais?”,
perguntou Annette.
“Eu diria que isso é muito improvável!”, respondeu Rainborough. Os olhos de
Annette estavam muito arregalados… (The Flight from the Enchanter. Nova
York: Viking, 1956, p. 134.)
JIM CARTIER/ SCIENCE SOURCE/ FOTOARENA

SUSAN SONTAGnasceu em Nova York, em 1933, e morreu em 2004.


Cursou filosofia na Universidade de Chicago e fez pós-graduação
em Harvard. Seus livros foram traduzidos para mais de trinta
línguas. Escreveu ensaios e romances, além de dirigir filmes e
peças. Dela, a Companhia das Letras já publicou Sobre
fotografia, Questão de ênfase e A vontade radical, entre outros.
Copyright © 1972, 1973, 1975, 1976, 1978, 1980 by Susan Sontag
Todos os direitos reservados.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Under the Sign of Saturn

Capa
Claudia Warrak

Preparação
Cláudia Cantarin

Revisão
Huendel Viana
Aminah Haman

Versão digital
Rafael Alt

ISBN 978-65-5782-470-2

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
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