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Ministro da Cidadania
Osmar Terra
Presidente
Miguel Proença
Diretor Executivo
Reinaldo da Silva Veríssimo
Gerente de Edições
Oswaldo Carvalho
ORGANIZAÇÃO
MARCOS LACERDA
PERFIS MUSICAIS
A CANÇÃO COMO MÚSICA DE INVENÇÃO
Equipe de Edições
Carlos Eduardo Drummond
Filomena Chiaradia
Gilmar Mirandola
Jaqueline Lavor Ronca
Julio Fado
Equipe Coordenação de Música Popular
Eulicia Esteves
Ana Saramago
Aline Mandriola
Preparação de originais
Tikinet | Caio Ramalho, Caique Zen e Hamilton Fernandes
Revisão
Tikinet | Isabella Ribeiro e Andressa Picosque
Ebook
Perfis musicais : a canção como música de invenção /
Marcos Lacerda (Org.). – Rio de Janeiro : FUNARTE, 2018.
182 p.
ISBN 978-85-7507-205-9
1. Música popular – Brasil – História e crítica.
I. Lacerda, Marcos.
CDD 782.42164098
Sumário
Um baque 71
Paulo Almeida
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A canção como música de invenção
Marcos Lacerda
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A terceira pessoa em Luiz Tatit
Rogério Skylab
I. Preliminares
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A terceira pessoa em Luiz Tatit
Muito diferente de quando escutei pela primeira vez o Grupo Rumo, tomei
conhecimento de Arrigo Barnabé através de uma fita cassete. Com este, des-
bravava-se um novo terreno; tínhamos pela frente um monstro de identidade
duvidosa — meio homem, meio mulher; agudos que perfuravam os tímpanos;
canção ou quase-canção. Com o Rumo, ao contrário, pisávamos em terreno co-
nhecido; reconhecíamos aquilo que ouvíamos; reforçávamos nossa identidade.
O que visa este trabalho, entre outras questões, é estabelecer um elo en-
tre Arrigo e Tatit, mesmo reconhecendo a profunda diferença entre ambos, e
considerá-los como diferentes perspectivas de uma questão comum.
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Rogério Skylab
(há uma perda do objeto, mas diante dele a persona cancional de Tatit em-
preende um movimento constante de busca). Albach relaciona essa persona
de Tatit ao Pierrô da commedia dell’arte, um tipo fixo, cuja máscara é o palha-
ço que nunca ri. A peculiaridade, pois, desse nostálgico, tal como o Pierrô,
não será a passividade, o que vai lhe conferir também um efeito cômico,
posto que, cego a uma verdade visível, muitas vezes clara para o público, só
ele acredita na recuperação desse objeto perdido, propiciando através dessa
ingenuidade um humor lírico.
É por isso que a persona cancional de Tatit se relaciona com a ausência:
ele não vai fazer uma canção no espaço sideral em razão da impossibilidade
de fazê-la aqui (impossibilidade que se remete à nostalgia buarquiana e, a um
primeiro momento epistemológico e de desconstrução, do Tropicalismo).
O personagem tatiano de fato acredita não só em fazer a canção aqui, como,
através dela, trazer de volta o sujeito ausente, seja ele Odete, Matilde, Ivone,
Sofia, ou o que representa todas elas: o público de massa.
Há um descentramento de sua música e da Vanguarda Paulista como
um todo em relação à música de mercado, mas isso não significa a sua
negação. Walter Garcia (2015), em seu texto “‘Clara crocodilo’ e ‘Nego
dito’: dois perigosos marginais?”, nos lembra que estar à margem não sig-
nifica estar fora do sistema MPB. Em todo caso, cabe aqui saber quem está
sob o foco da análise. Porque se for Itamar, dentro de seu ensimesmamen-
to, portanto mais distante do objeto, pode-se até pensar, conforme Gar-
cia, que na sua interpretação de “E o Quico?” haveria por parte de Itamar
uma certa violência e um distanciamento irônico o que Walter chamaria
de desespero do mal-estar (apostar na música ou na canção em tempos de
mundialização).
É interessante que Walter contrapõe a Itamar a interpretação da mes-
ma canção por parte de Juçara Marçal, em seu disco Encarnado, de 2014,
ou seja, dentro de uma nova música de vanguarda: intensifica-se a ausência
de saída, quando numa instrumentação áspera a cantora introduz uma do-
çura irônica na voz, rindo do mal-estar. De qualquer maneira, o perigo é
associar a Vanguarda Paulista apenas a Itamar e a Arrigo. Porque em Tatit,
a relação com o objeto ou a aposta na canção não terá tom de desespero,
muito menos de violência. Ao contrário: há uma afetividade contra todas
as evidências que deveriam levar o narrador ao desespero. É o caso de
canções como “Felicidade” e “Época de sonho”: “Vê que absurdo, Vera!/E
nem é tempo de paixão”.
3.3 — Acho interessante focarmos o quadrado semiótico, ao qual
Tatit sempre se remete nos seus ensaios, até como forma de relativizar as
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É curioso que, nesses extremos a que chega a técnica vocal, Regina pare-
ce ter em vista, primordialmente, Arrigo e Tatit — num determinado ponto
do texto, ela associa a nova vocalidade de Itamar às informações já trazidas
por Arrigo, acrescidas pela tradição do samba, do batuque de terreiro e da
música pop. Mas a cada um dos dois tipos de abordagem vocal aos quais
estariam ligados, respectivamente, Arrigo e Tatit, Regina estabelece no in-
terior de cada um deles uma nova divisão, à qual cada grupo faria interagir
seus elementos entre si: no caso de Arrigo, a performance cênico-dramática
e as texturas musicais expressas pelos agudos estridentes; no caso de Tatit,
os elementos linguísticos e a expressão da musicalidade a partir do enfoque
entoativo, expressão essa que se daria pela aproximação entre a realização
vocal melódica e as oscilações das alturas na entoação falada.
Estamos no reino das dualidades, do qual só Itamar parece se safar.
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Rogério Skylab
Para, cabeça
Assim você me enlouquece
Não cansa você?
Concentra, reflete
Inverte um pouco o raciocínio
Nem que dê no mesmo ponto
Enfim, você é livre
É livre mas não de mim
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A terceira pessoa em Luiz Tatit
canção popular; na segunda parte, de “Eu vou pensar um assunto, certo?” até
“Ela pensa o que quer”, a linha melódica se restabelece na primeira estrofe,
e o padrão entoativo é retomado na segunda estrofe, alternância que é efeito
da luta, concluindo-se numa impotência do sujeito (de qualquer maneira,
verifica-se uma pequena diferença em relação à primeira parte, já que é to-
talmente entoativa); a terceira parte, de “Para, cabeça” até “É livre mas não
de mim”, indica uma mudança, subdividida em dois momentos — no pri-
meiro, prevalece um padrão entoativo (imperativo), com um aspecto mais
firme da voz, secundada por uma outra voz masculina, que dobra a melodia
em uma oitava mais baixa; e um segundo momento, que é propriamente
o refrão, quando a melodia se estabiliza e a emissão cantada se sobrepõe à
falada, a partir de uma voz feminina que entra numa oitava acima, enquanto
Luiz Tatit se transfere para a base (a solista, mesmo enfatizando o contorno
melódico, não abandona a curva entoativa, complementando a expressão,
enquanto no primeiro momento da terceira parte entoação e melodia eram
expressas por cantores diferentes).
Concomitante a essa análise do canto, a instrumentação vai acompanhar
de perto, pelo menos na primeira parte, o padrão entoativo da voz cantada,
dentro de um pensamento musical mais contrapontístico que harmônico,
enquanto nas duas últimas estrofes da canção, isto é, na sua terceira parte, o
acompanhamento se aproxima um pouco mais do padrão presente na canção
popular: “os instrumentos realizam um ostinato rítmico, criando uma cama
para a realização melódica, destacando a voz da solista isolada à frente e reve-
lando o sujeito como dono do pensamento” (Machado, 2007, p. 74).
3.9 — Essa canção, conforme o padrão entoativo e melódico se-
guido por Regina Machado (2007), leva de fato a uma divisão em três
partes. Já na minha análise, considerando os desenhos melódicos das fra-
ses, a divisão métrica e a quantidade de vezes que a canção é repetida,
chega-se a uma divisão em duas partes iguais, contendo cada uma delas
seis configurações: 2(6-6).
Primeira configuração
Quer saber por que eu estou cansado?
Cada vez que eu começo a pensar me vem tudo de vez
E eu não penso mais nada
Segunda configuração
Quer saber como é que eu penso?
Quer saber por que eu estou cansado?
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Terceira configuração
Eu vou pensar um assunto, certo?
Um assunto que eu escolho, é claro
Então eu faço força, força, força e olha o que acontece!
Não adianta ter cabeça
Ela pensa o que quer
Quarta configuração
Para, cabeça!
Assim você me enlouquece
Não cansa você?
Quinta configuração
Minha cabeça, me ajude, pense tudo, tudo com calma, não se exalte
Nunca te vi tão possuída, nunca!
Sexta configuraçãoVocê é danada, é mágica
Concentra, reflete
Inverte um pouco o raciocínio, nem que dê no mesmo ponto
Enfim
Você é livre, é livre, mas não de mim.
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Primeira Parte
Sempre que alguém
Daqui vai embora
Dói bastante
Mas depois melhora
E com o tempo
Vira um sentimento
Que nem sempre aflora
Mas que fica na memória
Depois vira um sofrimento
Que corrói tudo por dentro
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Segunda parte
Sempre que alguém
Daqui vai embora
Dói bastante
Mas depois melhora
E com o tempo
Torna-se um tormento,
Que castiga, deteriora
Feito ave predatória
Depois vira um instrumento
De martírio duro e lento
Uma queda no abismo
Que apavora
Mas também depois melhora
Terceira parte
E vira então
Uma força inexplicável
Que deixa todo mundo
Mais amável
Um pouco é consequência
Da saudade
Um pouco é que voltou
A felicidade
Um pouco é que também
Já era hora
Um pouco é pra ninguém
Mais ir embora
Vira uma esperança
Cresce de um jeito
Que a gente até balança
Enfim
Às vezes dói bastante
Mas melhora
Enfim
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Rogério Skylab
É só felicidade
Aqui agora
É bom
É bom não falar muito
Que piora
Enfim
É só felicidade.
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Enfim
Às vezes dói bastante mas melhora
Enfim
É só felicidade aqui agora
É bom
É bom não falar muito que piora
Enfim
É só felicidade
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Já chegou disfarçada
Pra me confundir
E brincando maldosa
Fingiu me ferir
Morri! Morri!
Morri de rir
De ver você não conseguir
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Neste texto de Tatit fica claro que não se está submetido a uma ambição
totalizante do novo, até porque a surpresa vira espera quando constantemen-
te programada para criar novidades em nosso cotidiano, como foram as artes
de vanguarda do início do século passado (atonização da surpresa). E talvez
possamos entender esses dois textos não como contradição, mas como uma
busca da justa medida, assim como viria a ocorrer em suas canções, quando
constatávamos, na mesma música, numa parte a supremacia do objeto, na
outra a supremacia do sujeito. O inesperado menos ambicioso, inscrito em
fragmentos do espaço e circunscrito a períodos efêmeros.
3.17 — Por isso em muitas canções há uma estrutura triádica, que
mais sugere um processo de síntese do que propriamente de oposição ou
antítese. Mais síntese que justaposição (não há como esquecer a defesa da
justaposição por Caetano Veloso em Verdade tropical contra o processo de
fusão, uma espécie de samba-jazz, personificado, na época, por Elis Regina
e Edu Lobo). O fato é que vicejam exemplos no corpo cancional de Tatit de
uma estrutura triádica, ainda que se tratando de uma relação sujeito-obje-
to. Logo no primeiro disco, Rumo 81, em sua primeira faixa, “Encontro”, já
se reivindica uma perspectiva que não seja nem tão longe, nem tão perto
do objeto.
3.17.1 — No disco Diletantismo, “Saudade moderna” indica três espécies
de saudades: “do tempo que andávamos juntos”; “do tempo em que nem te
conhecia e simplesmente eu desejava estar sozinho”; e uma terceira saudade,
uma “saudade moderna”, “de um tempo que absolutamente eu não vivi…
Ela incide sobre um tempo que não cabe na história, escapa da consciência
e se projeta pra fora” (nem consciência, nem história: algo que escapasse a
essas duas categorias, sugerindo uma terceira). No mesmo disco, deparamos
com a canção “Mesmo porque”, dando conta de uma terceira pessoa, a per-
sonagem da atriz.
3.17.2— Em “Olhando a paisagem”, do disco seguinte, Caprichoso, a ter-
ceira pessoa é o autor que faz o narrador-personagem cego ao que está a sua
frente, nos levando a desconfiar da veracidade dos seus ditos (uma situação
muito semelhante ao que ocorre nos romances de Machado de Assis: o nar-
rador não é digno de confiança). A ironia surge dessa situação entre narrador
e autor — nesse sentido, Caprichoso talvez seja o mais eivado de ironia. “No
decorrer da madrugada”, outra faixa do referido disco, são expostas três
perspectivas referentes ao nascer do sol: dos espectadores; do narrador-per-
sonagem que desmistifica o espetáculo, em nítida oposição aos adoradores
do sol; e uma terceira perspectiva que descreve o objeto, isto é, o espetáculo
do nascer do sol, de maneira a produzir uma singularização do objeto.
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E de repente,
É uma bola que levanta no horizonte
Numa fogueira exuberante
Enfim, é o sol
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outro: “se tenho elo com ela, o elo é você”. Essa terceira pessoa passa longe de
uma síntese entre contrários; antes, nos dá a ideia de uma imanência. Talvez
possamos pensar que o trabalho de Tatit esteja perpassado por essas duas pers-
pectivas: síntese (“Encontro”) e imanência (“Terceira pessoa”).
A própria ideia da canção como disfarce da entoação ou fixação do que
é por natureza solto pode nos sugerir a entoação como imanente à canção. É
interessante o texto “O momento de criação na canção popular”, publicado
originalmente em agosto de 1994 nos Anais do IV Congresso Abralic: Literatura
e Diferença, porque ali Tatit vai diferenciar com clareza as atividades práticas
das atividades artísticas: no primeiro caso, dentro dos processos de comu-
nicação do dia a dia, utilizamos a sonoridade da voz para expressar nossos
conteúdos internos; já nas atividades artísticas, tendo como foco a canção e o
compositor, ao contrário, usamos os conteúdos internos para expressar suas
experiências sonoras (estas vêm primeiro).
Ao comentar a gênese da canção “Vai passar”, de Chico Buarque, Tatit
diz (2014, p. 212):
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Em “De favor”, a ideia de uma tolerância, mais que aceitação, por parte
dessa mesma indústria:
Em “Dia sim, dia não”, um caráter dualista a que esteve ligada a Vanguar-
da Paulista, refletida na sua própria estética:
Dividindo a aflição
Com a razão
[…]
Uma porção
Melancolia
Mas que virou satisfação
Mas que virou melancolia
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A regressar
O que que te deu na telha
De não voltar?
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Esqueci da dor
Dos desejos
Do tempo pouco sobrou
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Revivi a dor
E os desejos
E o tempo se desdobrou
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Referências bibliográficas
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Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”
Luís Rubira 1
1 Luís Rubira nasceu em Porto Alegre, em 1970. Realizou seu doutorado em Filosofia
pela Universidade de São Paulo (2009) e estágio de pós-doutorado na Université de Reims
Champagne-Ardenne, na França (2014). É professor associado da Universidade Federal de
Pelotas, onde desenvolve pesquisas sobre Nietzsche, ética e cultura. É autor de Vitor Ramil:
nascer leva tempo (Porto Alegre: Pubblicato Editora, 2015; 2017, 2a edição). Dentre seus
livros destacam-se também Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os
valores (São Paulo: Discurso/Barcarolla, 2010), Sepé Tiaraju e a Guerra Guaranítica (São Paulo:
Instituto Callis, 2012). É também organizador dos três volumes do Almanaque do Bicentenário
de Pelotas (Santa Maria: Pró-Cultura- RS/Pallotti, 2012-2014) e coorganizador de João Simões
Lopes Neto.Teatro [Século XIX] (Porto Alegre: Zouk, 2017).
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Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”
que, mas volto a escutar Richard Wagner e Los Hermanos. Faço muitas
anotações sobre o álbum e a respeito de Vitor Ramil, mas sinto-me nova-
mente paralisado.
Decido então reunir partes de textos que já escrevera, artigos publica-
dos em jornais locais ou lidos diante do público. Faço um esboço do livro
e o envio para Marcos Lacerda, que desde o início fizera questão de uma
abordagem sobre Vitor Ramil no contexto do Projeto Pesquisa Musical da
Funarte. O verão abrasador chega ao Sul, o livro vai para dentro do frescor
de uma gaveta. Numa manhã de outono, repentinamente vem a mim um raio
no céu cinza da abstração:
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Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”
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Sou muito apegado aos hábitos. Tanto que voltei para a casa em Pelo-
tas, onde vivi minha infância. Recuperei a casa antiga em um traba-
lho de reconstrução de mim mesmo. Vivo num processo investigati-
vo para retomar minha origem.
A noção de que o Rio Grande do Sul está “no centro de uma outra histó-
ria”, revelada na “estética do frio”, pode também ter sua força de penetração
medida quando são encontrados depoimentos como o da argentina María
Belén Luaces (2000):
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Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”
Cada um dos discos de Vitor Ramil tem sua própria singularidade, sua
particularidade, sendo qualquer um deles uma obra a ser fruída por si
mesma, por excelência. Aqueles que acompanharam sua trajetória artís-
tica sabem que seu primeiro álbum (Estrela, estrela, 1981) estava tão em
consonância com a música “brasileira” que Vitor chegou a ser considerado
no eixo Rio-São Paulo como o “Milton Nascimento da nova geração”. Re-
conhecido já aos 19 anos em nível nacional como um artista de talento,
o que explica que ele não tenha continuado a assumir esta “identidade”
como músico “brasileiro”? A compreensão disso não é simples, mas em
uma entrevista publicada no jornal argentino Página 12 Vitor Ramil (2015)
diz que há pouco tempo encontrara algumas anotações que fizera antes
de começar a gravar o seu segundo disco (A paixão de V segundo ele próprio,
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Da primeira à última faixa, A paixão deV nos permite uma viagem que
começa e termina em Satolep (Pelotas), depois de passar por muitos
caminhos. Caminhos: Jorge Luis Borges, a história gaúcha, o con-
cretismo, a milonga, o experimentalismo, o lírico, Arnaut Daniel, o
gaiteiro cego, campo e cidade, passado e presente, entre outros […].
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Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”
Ali estava a semente de tudo o que Vitor faria a partir de então […]:
milonga a partir de texto de Jorge Luis Borges, pop-song, mini mú-
sicas conceituais, chacareiras com guitarras roqueiras, experimentos
quase concretistas nas letras, letras com espantosa coloquialidade,
letras que não queriam dizer nada. Por trás disto, um oceano nada
pacífico de referências muitas vezes até conflitantes (Faria, 2001).
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A cidade se desfez
Sombras frias de ninguém
Esqueceram pelo chão
Rosas molhadas
Piso as rosas sem sentir
Penso nelas sem saber
A cidade se desfez
Na neblina sumiu
Névoa gelada
Quem saberá meus sonhos?
Quem me esperará?
Névoa
Quem chegará?
Quem me amará?
A cidade se desfez
Meia noite, meu amor
A cidade se desfez
Na neblina sumiu 2
2 Nesta mesma revista encontra-se também o poema “Num ônibus”, de Vitor Ramil (1993b,
p. 42-46).
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O que eu quis fazer com esse disco foi voltar um pouco ao Estrela,
estrela, fazer canção. Na base de toda a música brasileira, está a can-
ção: tu ouves um Cartola e […] é uma música fantástica! — letra e
música, aquele refrão lindo… Então eu pensei: Pô, eu já tenho uma
boa estrada, já passei por um monte de experiências, agora eu vou
trabalhar a música […]. Pra mim a melodia é muito importante, eu
tenho muita facilidade pra fazer. Então por que não fazer? (Ramil,
1995, p. 21)
Dois anos mais tarde, Ramilonga: a estética do frio irá trazer para um “cam-
po aberto” algo que estava latente no interior da cultura sul-rio-grandense:
o vínculo entre brasilidade e platinidade presente em fenômenos como o
clima (frio), um território (pampa), um tipo humano (el gaúcho/o gaúcho),
um gênero musical (a milonga). A abertura da percepção para elementos que
o extremo Sul do país compartilha com o Uruguai e parte da Argentina, por
meio do resgate de poemas de João da Cunha Vargas, Juca Ruivo e do ma-
nancial literário de João Simões Lopes Neto (autores que dialogam de forma
natural com uma longa tradição histórica e cultural), agregado à forma da
concepção musical de Vitor Ramil, foi capaz de fazer despertar sensações
presentes em muitas pessoas, atingindo sobretudo aquelas urbanas que tive-
ram parentes ou amigos que lidavam no campo e que não se identificavam
com as formas caricaturais sob as quais seu legado cultural estava enrijecido:
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muito. Por que não posso cantar de forma leve, delicada? Forcei a barra de
cantar ‘joãogilbertianamente’ e mantenho isso em Tambong” (Ramil apud
Sanches, 2000).
Neste disco Vitor Ramil resgata algumas canções de suas obras anterio-
res, em particular de À beça; elas de fato ganham nova forma, filiando-se à
“estética do frio” — concepção que continuava a ganhar em desenvolvimen-
to. De outra parte, se havia alguma semelhança entre o modo de cantar de
Vitor Ramil e o de Caetano Veloso é porque na matriz musical de ambos está
aquele que é “um dos artistas brasileiros mais admirados do mundo […] a
referência mais marcante de músicos, cantores e compositores brasileiros
dos últimos 40 anos” (Mello, 2001, p. 7 e 10).
Importante notar, brevemente, que no momento em que Vitor Ramil
lança a obra Ramilonga: a estética do frio (1997), Caetano Veloso reconhecia
em seu livro Verdade tropical (1997, p. 502) que “A vereda que leva à verdade
tropical passa por minha audição de João Gilberto”. As sendas do “tropica-
lismo” e da “estética do frio” passam, assim, por João Gilberto, cada uma
percorrendo a sua própria órbita, mas ambas conduzindo ao mesmo lugar: a
descoberta de linguagens estéticas originais.
Horizonte. Eis uma palavra que está na letra da música que abre o sétimo
disco de Vitor Ramil. No encarte do CD, ao lado da primeira letra, está a
foto da fachada de uma casa em “Satolep” refletida no retrovisor externo de
um automóvel. Também no encarte, ao lado da última letra do disco, surge
uma foto da região de Rosário do Sul, apreendida de dentro de um veículo,
cuja imagem mostra a vastidão do pampa (espelhado, inclusive, no próprio
retrovisor interno do carro). Entre estas fotos desfilam outras de lugares dis-
tantes, como Paris, Genebra, Roma, Montevidéu, Porto Alegre. Se atentar-
mos para o conjunto de fotografias, o conteúdo das letras e a sonoridade da
obra, veremos que se trata do disco com maior substância íntima e artística
de Vitor Ramil. Apenas para se ter uma ideia: a casa em “Satolep” é aquela em
que Vitor morou durante a infância e onde vive há muitos anos com sua es-
posa, nascida em Rosário do Sul; os títulos da primeira e da última letras são
sugestivos (“O primeiro dia” e “Adiós, goodbye”); a concepção da estética do
frio está entranhada na musicalidade de Longes.
Horizontes infindos. A exterioridade geográfica que influencia a so-
noridade desse disco se chama pampa ou campo aberto, planície, vazio de
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próprios deste disco. É aí, então, que Satolep Sambatown vai resplandecer em
sua cabeça como uma lâmpada de gás.
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este “astronauta lírico” que habita na Zona ZPPC nº 1? Seu nome completo
é Vitor Hugo Alves Ramil. Ele recentemente esteve na Islândia, onde lan-
çou uma nova versão de sua “estética do frio”. Aliás, teria seguido, de forma
imanente, como uma bússola, os passos daquele outro “Vitor Hugo” — o
francês — que em 1822 publicou o seu primeiro romance, intitulado Hans
da Islândia, um sobrenatural romance que bem poderia ter sido escrito pelo
“Barão de Satolep”? Vitor, que nos limites da zona do primeiro loteamento
mora numa casa de “arquitetura eclética de transição”, uma residência quase
centenária, com “pátios internos, assoalho de madeira e escaiolas” (Rubira,
2015, p. 30). Uma casa antiga que ele considera como um “ambiente de Sa-
tolep” (Ramil, 1995, p. 20). Lugar que sempre foi tão bem cultivado em mú-
sica, balé, pintura, tanto por sua mãe, Dalva, quanto por seu pai, Kleber — o
engenheiro agrônomo “que conhecia o subterrâneo da cidade, suas galerias,
o nome científico de todas as árvores” (Rubira, 2015, p. 270). A casa dos
Ramil: “Presença de marcação horizontal e vertical”, “esquadrias com formas
variadas e caixilhos trabalhados”, “adornos predominantemente com formas
geométricas”, “uso de platibanda bem trabalhada com elementos de forma
simplificada” (Secult, 2008, p. 30).
Pelotas converge para dentro daquela residência da década de 1920, com
seu relógio pendurado na parede marcando lentamente o tempo. Walter
Benjamin diria que ela é uma das passagens da cidade: “a voz da voz de Ca-
ruso” (“Satolep”), Paolo Uccello, Miles Davis, os poemas de Wallace Stevens,
tudo transcorrendo ali, passando sem passar jamais.
Casa, que é um sorvedouro de Pelotas, é dela que saem obras com “a
simetria que só as aranhas sabem realizar” (Teixeira, 1995). É nela que Vitor
Ramil atravessa o ciclo de suas íntimas estações: é afetado pelo “calor abra-
sador do norte brasileiro”; vê no seu outono as “folhas secas cobrirem a cal-
çada”; percorre os “campos cobertos de geada” para chegar em sua “estética
do frio”; ressurge em sua “Primavera da pontuação”. Apesar de tudo, muitos
não o conhecem, o que é compreensível, afinal ele não é um artista da in-
dústria cultural, “a tevê é um vício esperto”, e ele não tem “nada a ver com
isso”. Vitor é apenas um homem comum, que caminha pelas ruas de Satolep,
como um Chico Buarque caminhando por Copacabana, como um Atahualpa
Yupanqui em Cerro Colorado, como um Dylan anônimo nas ruas “do fim do
fundo da América” — do Norte.
“Cartas no corredor”, imagens que “rolam no pó da sala”, tudo insistin-
do em ficar, “já que existe tanto espaço” nele. Morada de Vitor Ramil: nela
há um sótão onde habitam fantasmas que não são entes sobrenaturais: são
frases de Emily Dickinson, imagens de Amsterdam, flocos de neve de papel
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Discografia
RAMIL, Vitor. Estrela, estrela. Rio de Janeiro: Polygram, 1981. 1 disco sonoro.
______ . A paixão deV segundo ele próprio. Rio de Janeiro: Som Livre/RBS:
Estúdio Sigla, 1984. 1 disco sonoro.
______ . Tango. Rio de Janeiro: EMI-Odeon Brasil, 1987. 1 disco sonoro.
______ . À beça. Rio de Janeiro: Capacete Records, 1995. 1 CD. Edição
limitada.
______ . Ramilonga: a estética do frio. Rio de Janeiro: Satolep: Estúdio Cia.
dos Técnicos, 1997. 1 disco sonoro.
______ . Tango. Rio de Janeiro: Satolep, 1996. 1 CD.
______ . A paixão deV segundo ele próprio. Rio de Janeiro: Satolep: Estúdio
Cia. dos Técnicos, 1997. 1 CD. Versão revista.
______ . Tambong. Buenos Aires: Satolep: Estudio Marina Sound, 2000. 1
CD. Versões em português e espanhol.
______ . Longes. Buenos Aires: Satolep: Estudio Marina Sound, 2004. 1 CD.
______ . Delibáb. Buenos Aires: Satolep: Estudio Circo Beat, 2010. 1 CD.
______ . Foi no mês que vem. Buenos Aires: Satolep: Estudio Circo Beat,
2013. 1 CD.
______ . Campos Neutrais. Porto Alegre: Satolep: Estudio Audio Porto, 2017.
RAMIL, Vitor; SUZANO, Marco. Satolep Sambatown. Rio de Janeiro: MP,B
discos: Universal Music, 2007. 1 CD.
Livros
67
Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”
Referências bibliográficas
68
Luís Rubira
69
Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”
70
Um baque
Paulo Almeida
71
Um baque
72
Paulo Almeida
Ali, talvez, tenha sido a ruptura mais dura na vida de Amud. O outro
baque — a separação dos pais — fora bastante sentido, mas ver a morte de
perto parece ter mexido em camadas mais profundas do garoto acostumado
às paredes seguras do lar.
Nascença
Thiago Amud
Primeira infância
73
Um baque
74
Paulo Almeida
75
Um baque
76
Paulo Almeida
fez enorme sucesso com seus programas. Chico City era o programa pre-
dileto do pequeno Thiago. Tudo ali o encantava. “Quando eu era pequeno,
me interessava muito por zoologia. Depois eu fiquei fascinado por Chico
Anysio”, conta. E lembra ainda: “O fato de ter um cara que fazia vários
personagens me encantava. E era muito brasileiro. Foi meu único ídolo de
infância”.
Algumas gravações do programa aconteciam perto de sua casa, na
Urca, nos estúdios da TV Tupi. Thiago fez tocaia na saída de algumas grava-
ções e não demorou para conseguir encontrar seu ídolo. Recebeu muitos
elogios ao mostrar um desenho com vários personagens do humorista e
ganhou o convite para assistir a uma das gravações. Um dos muitos sonhos
que viriam a ser realizados. “Tudo que eu tinha que ver na televisão, eu vi
na infância.”
Aos dez anos criou e dirigiu um espetáculo na festa de formatura da
quarta série. A Escolinha do Professor Raimundo foi homenageada com es-
quetes e roteiros para todos os personagens representados pelos colegas de
classe. Thiago é o Professor Raimundo!
Segundo baque
Quando seus pais se separaram, Thiago tinha apenas 11 anos. Até então,
não percebia qualquer distúrbio ou contratempo em casa. A relação dos pais
parecia harmoniosa. Não brigavam, não discutiam, se admiravam. A notícia
pegou o menino de surpresa. Thiago e a mãe foram morar com a avó e tia.
A convivência com a três mulheres trazia certa segurança e conforto. Mas
Thiago sentiu muito a separação e a ausência paterna. Se fechou nos livros e
em seu mundo imaginal. Até então, seu único problema de saúde fora uma
bronquite asmática que o acompanhou até os doze anos. Mas agora o menino
de poucos amigos se distanciava também da família e se mostrava recluso e
arredio. Thiago parecia não estar preparado para a vida. “Foi um momento
de muita dor e muita solidão”, diz ele.
“Meus pais se separaram, fui morar com minha mãe, minha avó e mi-
nha tia. Logo depois, minha avó adoeceu, ficou com Alzheimer. E eu cuidei
dela, dos 14 aos 18, quando ela morreu. Tive uma adolescência muito tran-
cada… sem amigos… Era meio punk. Não saía, nem pensava em namo-
rar… nem pensava nisso. Havia tanta coisa para fazer em casa, cuidando da
minha vó, que não havia tempo para nada.” O violão era um companheiro.
Depois, os livros.
77
Um baque
Desamanhecido
Thiago Amud
Orvalho na candeia
Friagem no recanto
E o teu quebranto me ardendo na veia
78
Paulo Almeida
composição. Thiago voltou pra casa e ficou dias remoendo o efeito que
aquela canção tinha despertado nele. A partir dali, ele precisava se ex-
pressar também através da música.
“Eu fiquei absolutamente tocado com aquilo. Quando chegou no verso
‘criança sorridente, feia e morta estende a mão’. Me veio assim na cabeça:
puxa, mas isso é uma coisa assim tão diferente, meu pai está cantando uma
coisa assim tão diferente. Como pode isso? Me veio a contradição da imagem
e violência e o sofrimento da imagem. Me pegou por aí”, diz.
E arremata: “Depois eu fui a um show do Caetano, acho que ia fazer 12
anos… O Circuladô. Aquilo foi decisivo. Lembro de ficar uma semana dige-
rindo. Aquilo abriu uma perspectiva pra mim de fuga da chatice das coisas”.
Logo pediria um violão ao pai. Dias depois, ganha de Cecília, sua ma-
drasta, o songbook do Caetano Veloso. E para espanto de todos, Thiago apren-
de a tocar sozinho e logo desenvolve habilidade ímpar na construção de acor-
des complicados. Ganha, naquele momento, mais um companheiro, além
dos livros. Logo, Thiago passaria também a compor. E nunca frequentou
aulas particulares ou escola de música na infância. Foi aprendendo sozinho,
intuindo e estudando os songbooks que passaram a habitar sua estante junto
com os outros livros.
Aos poucos foi aprendendo a maneira certa de tocar as batidas, as leva-
das que eram sugeridas nos livros do Almir Chediak. Só agora, mais velho,
Thiago se dá conta e se espanta com sua forma de aprender violão.
“Comecei a compor com 13 anos. Fiz duas músicas e parei. Depois,
com 14 anos, fiz mais duas e parei. Apenas com 16 eu compus aquela que
considero a primeira música boa, que é ‘Roseiral perdido’”. Thiago lembra
orgulhoso: “Ganhei festival do Hélio Alonso.
Participei durante quatro anos e ganhei os quatro — o primeiro, em
1995, como melhor letra para a música ‘Fim’; o segundo como melhor mú-
sica para ‘Roseiral perdido’; o terceiro como melhor letra novamente; e o
quarto como melhor música para ‘Lua mulher’ — uma música boa que
ainda toco, assim como ‘Roseiral perdido’”.
“Comecei com o ‘Fim’ (risos), a música falava sobre o fim do mundo,
quando o destino e o acaso lutavam. Essa música era muito ruim”, lembra
ele com bom humor.
Roseiral perdido
Thiago Amud
79
Um baque
80
Paulo Almeida
personagem que encarnou nos desfiles da escola desde 1969 (ano em que
conquistaram o campeonato com o enredo “Bahia de todos os deuses”) até
o ano de sua morte, em 2007. Júlio organizava o Festival Hélio Alonso
com raro empenho para um evento amador. Nas participações de Thiago
Amud, por exemplo, os jurados eram Paulo César Pinheiro, Paulinho da
Viola, Elza Soares e Elke Maravilha. O Festival, que anos antes revelara
nomes como Fátima Guedes e Sandra de Sá, dava agora seu aval àquele
menino franzino.
E o menino já mostrava vigor em suas composições. “Essas músicas
que eu fazia com 17 anos eram músicas já influenciadas por tudo que eu
escutava na época: Egberto [Gismonti], Matita Perê [Tom Jobim], muito
Milton Nascimento, Toninho Horta. Mas tudo ao meu modo. Nada mui-
to diferente do que eu faço hoje. Nessa época eu sentia uma liberdade
muito grande.”
E sua relação com a música é mesmo muito livre. Não são as estru-
turas complexas que o seduzem. Quantidade de acordes não fala sobre a
qualidade da música. A música tem que “conduzir alguma emoção, tem
que fazer algum sentido, mesmo que seja o sentido do tortuoso. Mas tem
que fazer um sentido inteiro. Não pode ser só uma mostra de virtuosis-
mo estrutural. Não gosto disso. Nunca gostei. Pra mim, música nunca
foi uma parada muito cerebral. Nunca foi. Se fosse, eu comporia muito
mais do que eu componho”.
Só mais tarde, na faculdade de música, na UniRio, teve aula formal —
inclusive de harmonia com o Antônio Guerreiro, que havia sido aluno do
maestro Guerra-Peixe. Antes, porém, chegou a fazer o Tepem, curso livre
de teoria e percepção musical dado na própria UniRio. Nessa época, Thiago
tinha 17 anos. O Tepem não era oficialmente um curso preparatório para o
vestibular da UniRio, mas de fato era essa sua função. Desde os treze anos,
o ímpeto de Thiago era o mesmo: ser cantor compositor, fazer uma obra.
Plano de carreira
Thiago Amud
81
Um baque
82
Paulo Almeida
O compositor
Descobertas
83
Um baque
Rodrigo Ponichi, Thomas Saboga e Larissa Goretkin. Essa banda tocava basi-
camente composições suas e de Rodrigo. Duas músicas de seu primeiro CD
Sacradança são dessa época: “Regonguz” e “Quando existe carnaval”. Foi essa
sua primeira banda, formada em 1998/1999.
Regonguz
Thiago Amud
84
Paulo Almeida
Diandá diandalei
Diê diá
Ei andá andá andei
Dei diandá dendalei danda
Ei andei andei lá)
— …e fez-se o Alfabeto.
85
Um baque
Baião de câmara
música de Thomas Saboga, letra de Thiago Amud
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Paulo Almeida
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Um baque
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Paulo Almeida
Contenda
Guinga e Thiago Amud
Evém pernada aí
Vem não, foi desvario
Evém navalha aí
Vem não, foi calafrio
A roda vai abrir
Quando eu cair
Por um fio
Camará
89
Um baque
Voo solo
90
Paulo Almeida
Semente. Depois de um desses encontros ele pediu meu contato para ela
e tudo começou”.
Cintia já conhecia a música “Contenda” do disco do Guinga, Casa deVilla.
A amiga já havia falado dele e do Edu Kneip, que eram grandes composito-
res que estavam começando a aparecer. Falou também do projeto deles que
acontecia no Semente, o Sonâmbulos — com Thiago, Edu, Mariana Baltar e
Sergio Krakowski. Foi a deixa para que ela fosse lá matar a curiosidade.
O ano de 2008 é ainda marcado pela decisão de abandonar o ateísmo
e se converter ao catolicismo. Naquele ano ele é batizado pela vó Maria
Augusta e é também crismado. Comunga pela primeira vez. A cerimônia é
celebrada na Igreja Nossa Senhora da Paz, a mesma onde, em 1973, Pixin-
guinha morrera em pleno carnaval.
Apesar de ser bem recebido entre seus pares, poucos críticos falaram
sobre o Sacradança. Somente Tárik de Souza, Aquiles (do MPB4) e Ed Mot-
ta — que chegou a comparar Thiago com Frank Zappa — fazem comen-
tários relevantes sobre o trabalho. Marcelo Pera, diretor artístico do selo
Delira Música e responsável por lançar os dois primeiros discos do jovem
músico, diz que não sabe “se temos imprensa especializada atuante com a
capacidade de formar opinião como outrora. Mas creio que os profissio-
nais mais antigos descobriram [o Thiago] sim”. Lembra com carinho como
conheceu o trabalho: “O Thiago foi-me apresentado pelo Armando Lôbo.
A partir do Armando, a Delira resolveu apresentar mais trabalhos de novos
autores brasileiros. Muitos chegaram até nós. Obviamente, não tínhamos
capacidade de lançar tudo que nos agradava. Procuramos enxergar quem
tivesse a proposta mais inovadora, e com menos amarras à MPB, que pudes-
se romper com certa tradição”. E diz que o trabalho do Thiago “tem grande
intensidade no arranjo e na composição. Sua voz firme de colorido clássico
faz certo contraponto com isso. Ele traz algo realmente novo como resul-
tado. As letras são incomparáveis”. Por isso, continua, é “impratileirável”.
“Acho que está mesmo na hora de abandonarmos os gêneros. Com exceção
da música superpopular, é tudo muito fragmentado. A música do Thiago não
parece existir por uma prateleira ou em busca de um gênero. Obviamente, é
um desafio pra ele. Mas é o que é”.
Após esses anos de promessa de felicidade, a indiferença ao disco Sa-
cradança é recebida com muita dor. Thiago, que tem depressão desde os 20
anos, teve uma crise muito forte. Até então, não tratava clinicamente da
doença. Olhando para trás, Thiago percebe que o álcool foi uma tentativa
inconsciente de fugir do problema. Bebeu muito durante esses anos que an-
tecederam o lançamento de Sacradança.
91
Um baque
92
Paulo Almeida
Rebelei o baixo-ventre
Descobri-me comunista
Pra vogar na crista da história
Recortei o meu destino
Novos encontros
As coisas iam muito mal. Até que no final de 2011 nasce o Coletivo Cha-
ma. Um momento de felicidade completa. Amud, Thiago Thiago de Mello e
André Felix se reuniam semanalmente no bar Palhinha, um pequeno boteco
no Largo dos Leões, no Humaitá. Num show do grupo Escambo no bar
Semente, Thiago Amud e Edu Kneip foram convidados a participar. O bar
Semente era um pequeno estabelecimento na rua Joaquim Silva, em pleno
coração da Lapa, e foi responsável por abrigar e dar espaço a boa parte da
cena carioca que se formava a partir dos anos 2000.
Nesse show do Escambo, estavam na plateia André Félix, Ivo Senra e
Cezar Altai. Ao final do show, Thiago Amud sugeriu chamarem Pedro Sá Mo-
raes e Marcelo Fedrá para fazerem algo — para que “a gente mude nossa
relação com a música”. “Acabou o amadorismo! Acabou a infância. Vamos
fazer!”, bradou ao grupo reunido. Foi o estopim para a criação do Coletivo
Chama. O grupo passou a se reunir com frequência para falar sobre música,
93
Um baque
literatura, crítica, mercado cultural etc. Nada passava ao largo daqueles olha-
res atentos e críticos.
Em 2012, seu parceiro Edu Kneip manda um e-mail para o jornalista e
crítico de música Leonardo Lichote, do jornal carioca O Globo, questionando
a falta de espaço para ele e seus parceiros cariocas. Edu, nessa época, traba-
lhava na Livraria da Travessa e foi enfático ao questionar a presença maciça de
alguns nomes na mídia que não se revertiam em vendas nas lojas especializa-
das. Por que, então, eles também não poderiam ter algum espaço na mídia,
uma vez que produziam tanto quanto os queridinhos do momento?
Leonardo Lichote percebeu que havia algo realmente interessante e
genuíno acontecendo ali, resolveu fazer uma matéria sobre a cena e mar-
cou uma entrevista com alguns daqueles compositores. A entrevista aconte-
ceu no apartamento do músico Sergio Krakowski e estavam presentes Edu
Kneip, Armando Lôbo, Pedro Sá Moraes, Sergio e Thiago Amud.
A entrevista, regada a muito vinho, acabou sendo um momento de ca-
tarse. Tudo que estivera acumulado durante esses quatro anos estava sendo
cuspido ali perante um dos maiores jornais do país. E coisas impublicáveis
foram ditas. Comentários de mesa de bar escaparam, e os olhos e ouvidos
atentos de Leonardo Lichote não ficaram indiferentes. A matéria de capa, in-
titulada “Geração fora do tempo”, publicada no dia 22 de fevereiro de 2012,
teve enorme impacto no meio musical. Ninguém ficou indiferente a ela.
E as redes sociais repercutiram o alvoroço. Restou aos cinco entrevistados
cuidar de se esquivar das críticas, se defender das pedradas e tentar se justi-
ficar. Poucas pessoas apareceram para acalmar os ânimos. O estrago estava
feito. Dois dias depois, O Globo publicava nova matéria, em resposta à pri-
meira, com comentários da classe artística. A partir daí, várias portas seriam
fechadas.
Os primeiros a darem a eles salvo-conduto foram os integrantes do gru-
po mineiro Graveola e o Lixo Polifônico. Minas começava a acenar para
Thiago Amud. Tocam juntos. E ele se vê novamente reconfortado.
Em 2013, as coisas começam a ficar mais sólidas, e Thiago Amud começa
trabalhar no novo disco De ponta a ponta tudo é praia-palma. Com produção
de Jr Tostoi, o CD é lançado no final do ano. Logo recebe várias críticas
positivas. Ganha capa do Segundo Caderno, suplemento cultural do jornal
O Globo, e é eleito (pelo mesmo jornal) como um dos dez melhores CDs do
mundo lançados naquele ano. Nesse período, o trabalho de Thiago chega aos
ouvidos de Caetano Veloso, que reconhece ali um grande compositor e passa
a citar frequentemente Thiago Amud como herdeiro e grande artista.
94
Paulo Almeida
Breu e graal
Música de Francis Hime e letra de Thiago Amud
95
Um baque
No carnaval
Saturnal anel
Ozônio e mel Breu e graal
Memórias do agora
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Paulo Almeida
Autorretrete
Thiago Amud
Pálido lastimagro
Candango cambaio
Logicaótico adiantardo
Plenilusco-fusqueimado
Libelulanjo caleidoscópio
Vazalume estremunhado
Abaporu cobaio
Zambeta zangado
Ludicolérico alanceado
Protoprinspe supersapo
Sonambuláporo cornucópio
Minotauro anistiado
Thiagonizante
Metamorfético infante
Maremoto-boy
Celancantor popular
Hipopotálamo errante
Autorretrete aberrante
Cidadoido brasilhado
Tropicalheado
Indócil barbaropata catártico
Poetapato
Liricolapso encapsulado
Andropoide macacabro
Ornitonírico semiópio
Neurastênio abarrocado
Agnus
Dei bastardo
Pró-feto priapo
Lubricatólico encalacrado
Psicopompo episcopado
Aristotêmico mitoscópio
Verbossauro angustiado
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Um baque
Tiagonizante
Metamorfético infante
Maremoto-boy
Celancantor popular
Hipopotálamo errante
Autorretrete aberrante
Cidadoido brasilhado
Tropicalheado
Indócil barbaropata catártico
Poetapado
Idiossincrético estropiado
Debilove girovago
Alacricri simulacronópio
Pós-conservolucionado
Pálido lastimagro
Zambeta zangado
Liricolapso encapsulado
Psicopompo episcopado
Alacricri simulacronópio
Pós-conservoluciolibelulanjo caleidoscópio
Vazalume estremunhadambuláporo cornucópio
Minotauro anistiornitonírico semiópio
Neurastênio abarrocaristotêmico mitoscópio
Verbossauro angustiago
98
Céu: no tempo da canção expandida
Pérola Virgínia de Clemente Mathias
Tendo lançado em 2016 seu quinto disco, Tropix, a crítica musical bra-
sileira parece finalmente enxergar em Céu o que ela sempre foi: a cantora
e compositora protagonista de seu próprio trabalho. Parece óbvio que seja
assim, que o artista seja reconhecido pela própria obra — a não ser que se
descubra fraude, charlatanismo ou algo do tipo —, mas não é o que tem
acontecido. Quando Céu lançou seu segundo disco em 2009, o álbum Va-
garosa, a crítica procurava ali qualquer traço que dissesse que quem dava as
coordenadas da sonoridade do disco eram seus produtores, todos homens.
Seu canto? De produtor. Seu sucesso? Alçado pelos parceiros. Suas músicas?
Não eram canções. Até agora, doze anos se passaram desde o lançamento de
seu primeiro disco e mais tantos outros desde que Céu se apresenta como
cantora na noite paulistana e que rodou o mundo com sua música e sua ban-
da — sempre masculina. Mas é também só agora que a crítica parece ver
em Céu mais do que a cantora promessa, a voz fresca da nova geração, e a
reconhece pelo conjunto da obra que ergueu. O porquê, ou os porquês, de
tanta luta, podemos imaginar vários, mas nenhum que conteste seu talento
e o fato de que ela se firmou como um dos nomes proeminentes da nova
geração da música brasileira, ainda que não possamos, hoje, definir cânones
e protagonistas dentro deste campo como fora possível até meados da déca-
da de 1980. A beleza de Céu, que eu traduziria como a consistência de sua
obra, é, como ela mesma canta em “Bobagem”, “um belo samba que ainda
está por vir”.
Em fevereiro de 2006, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria in-
titulada “A Bolsa de apostas: doze produtores indicam quem deve bom-
bar neste ano. A cantora Céu, Mombojó, Instituto e Turbo Trio estão
entre os eleitos”. O texto de Adriana Ferreira Silva e Tereza Novaes
apontava estes nomes como as novidades do ano, artistas iniciantes e
diferentes dos que compõem o “Olimpo” da música popular brasilei-
ra — e que também lançavam discos novos naquele ano, como Chico
Buarque, Arnaldo Antunes e Marisa Monte. Mas entre os “independen-
tes” se questionavam: “quem fará o barulho que o Cansei de ser sexy
fez ano passado?”. As críticas da Folha de S.Paulo procuraram, para es-
crever a matéria, doze produtores para saber quais seriam as tendên-
cias na música nacional, considerando os produtores como “aqueles
99
Céu: no tempo da canção expandida
Para Gatti (2015, p. 15): “A Nova MPB muitas vezes se apresenta somente
como um grupo de amigos em que a colaboração e troca são aspectos que
ajudam a alavancar suas carreiras de maneira coletiva”. E neste grupo estabe-
lecido especificamente em São Paulo, apesar de nem todos serem paulistas,
Gatti diz que dentre os nomes que aparecem de forma recorrente tanto nas
falas dos músicos como nas críticas de jornais e revistas estão Tulipa Ruiz,
Tiê, Dudu Tsuda, Marcelo Jeneci, Tatá Aeroplano, Mariana Aydar, Andreia
Dias, Márcia Castro, Trupe Chá de Boldo, Gustavo Ruiz, Céu, Gui Amabis,
Rafael Castro, Anelis Assumpção, Iara Rennó, Filipe Catto, Thiago Pethit,
Luísa Maita, O Terno (Martim Pereira, Guilherme d’Almeida e Victor Cha-
ves), Leo Cavalcanti, Karina Buhr, Romulo Fróes, Marcelo Cabral, Juçara
Marçal, Kiko Dinucci, Thiago França, Daniel Ganjaman, Curumin, Rodrigo
Campos e Criolo.
1 A reportagem não nomeia todos os doze produtores, mas cita alguns como Beto Villares,
Apollo 9, Marcelinho da Lua, Pena Schmidt, Zé Gonzales, Daniel Ganjaman, Carlos Eduar-
do Miranda e Kassin.
2 A cidade de São Paulo é apontada por Gatti como o cenário da nova música. No entanto, a
cena independente é muito mais difusa, tanto em produção quanto em circulação e recepção
do que foi a MPB tradicional, por isso é preciso problematizar a questão do lugar.
100
Pérola Virgínia de Clemente Mathias
Céu tem parceiros que mantém desde o primeiro disco, como Beto
Villares, Antonio Pinto, o coletivo Instituto, Gui Amabis, Lucas Martins,
os músicos da banda Nação Zumbi, como Pupillo, Dengue e Jorge Du
Peixe, Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Rodrigo Campos, Anelis As-
sumpção, Thalma de Freitas (estas duas, junto com Céu, formam o trio de
vozes Negresko Sis) e Tulipa Ruiz. Além de colaborações nos discos, assi-
natura na produção, composições e apresentações em parceria. Quando
olhamos para a configuração do campo musical, o papel e as relações entre
os músicos acabam ganhando destaque, mas há uma gama de agentes par-
ticipando do campo, permitindo sua configuração e funcionamento: pro-
dutores, sobretudo, mas também empresários, selos, distribuidoras, casas
de show, técnicos de som etc. Há na música contemporânea uma difusão
e circularidade dos papéis, influências múltiplas na criação, na composi-
ção e na autoria, aspectos que passam cada vez mais a ser coletivos. Neste
sentido, é interessante o que a cantora diz em uma entrevista à TPM em
janeiro de 2010:
Eu acho que é uma coisa minha, de raiz, da minha relação com a mú-
sica. Porque música para mim é respiro, é liberdade. E, tipo, compe-
tir através dela com outras pessoas, é uma coisa que existe e é o que
é. Já passei da fase de contestar isso. […] Sendo assim, acho que São
Paulo está abrigando muita gente, não só daqui, mas do Brasil todo.
E eu estou muito feliz de estar vivendo nessa geração, porque tem
muita coisa boa.
101
Céu: no tempo da canção expandida
É verdade. É uma coisa de tijolo a tijolo, vamô aí! E eu quis isso des-
de sempre. Tem a ver com minha relação com a música, mas também
tem muito a ver com as minhas escolhas de gravadora. Atualmente
estou só na Urban. O meu disco é uma junção de parcerias de micro-
-selos, sempre distribuído por uma major. É até engraçado, porque
sempre leva o nome da major. Parece que eu estou na major. Mas na
verdade são formiguinhas […] Voltar para o trabalho artesanal. […]
É a sensação do coletivo, de todo mundo trabalhando junto, porque
a coisa fica mais legal. Trabalhando, assim, de uma maneira bacana,
com carinho (Céu, 2010).
3 O termo foi colocado pelos estudiosos em uma aula-show proferida no Instituto Moreira
Salles do Rio de Janeiro, em 2009, intitulada “O fim da canção”.
102
Pérola Virgínia de Clemente Mathias
distribuída etc. Assim, esse campo se reconfigura com a inserção e ação dos
novos agentes, desde a criação até o momento da escuta final pelo público,
pelas novas influências sonoras que são incorporadas e, sobretudo, pela força
que a produção de diferentes grupos sociais, etários e étnicos ganha.
Não apenas a ascensão do rap é uma marca importante nesta mudança,
mas também a do funk, do hip hop, do axé, do pagode — ditos os sons locais
ou da periferia — e da música eletrônica em geral, que passam a se inserir
nos espaços antes consagrados pela música popular intelectualizada. A pre-
dominância da fala, a inserção de novos elementos sonoros que deslocam o
papel da melodia e dos instrumentos acústicos, e a distribuição pela internet
e outras mídias são balizas dessa mudança gradual.
103
Céu: no tempo da canção expandida
de uma estrofe para outra há uma lagoa sonora em que você entra
num espaço de livre associativo, densa de sons por baixo, porque
desde o começo os motivos por baixo têm uma espécie de autono-
mia, não são só um acompanhamento, são uma espécie de substrato
sonoro que está acontecendo.
Vagarosa não tem canções. Não é arriscado chutar que todas as faixas
que a artista compôs para o disco — e seu trabalho de estreia, de
104
Pérola Virgínia de Clemente Mathias
O clima musical que acompanha a maioria das letras de Céu é como paisa-
gens sonoras construídas para cada faixa, densas de camadas — como descrito
por Wisnik e apontado por Preto. Mas essa não é uma regra, e é sim possível
não só imaginar como ver/ouvir as músicas de Céu acompanhadas apenas no
violão, basta abrir oYouTube ou rever as versões originais dos covers escolhidos
por ela (em todos os discos). A música “10 contados” é, talvez, a mais melodio-
sa de suas canções. No programa Pelas Tabelas, em 2009 (poucos dias antes do
lançamento de Vagarosa), Céu foi entrevistada junto com Beto Villares, um par-
ceiro importante do começo de sua carreira (Beto…, 2011). No estúdio, Céu
e Villares falaram sobre como decidiram entrar no mundo da música, sobre o
processo criativo de composição e sobre suas parcerias, como surge letra ou
melodia primeiro, uma influenciando a outra. As passagens do programa são
interessantes justamente para mostrar esse lado orgânico do processo criativo
que pode passar despercebido na audição do disco.
Em outra ocasião, no programa Zoombido de Paulinho Moska, no Canal
Brasil , em que ele leva um cantor e cria uma versão voz e violão em dueto,
5
105
Céu: no tempo da canção expandida
106
Pérola Virgínia de Clemente Mathias
aquele sonho que se perdeu/ na tal promessa de um novo dia/ tempo, tem-
po, tempo”. O texto tem um caminho só de ida, não tem circularidade,
apenas o encadeamento da ideia verso a verso. A repetição se dá justamente
quando é cantado o verso que diz “tempo”, palavra que ao ser cantada três
vezes forma uma espécie de refrão.
O drama da letra está na relação consciente e conflituosa com a inevi-
tabilidade da passagem do tempo — relação que é perversa no tempo do
capital. O tempo é aqui uma
máquina devoradora de sonhos. A ideia da “promessa de um novo dia”
não é uma percepção exatamente nova, como já havia sido cantada por Chico
Buarque em “Pedro Pedreiro” (1966), uma de suas primeiras canções, cuja
letra diz: “Pedro Pedreiro fica assim pensando/ Assim pensando o tempo
passa e a gente vai ficando pra trás/ Esperando, esperando, esperando”. A
comparação, para além da temática, é interessante para perceber mudanças
de paradigmas de composição entre a canção de Chico e a canção “expandi-
da” de Céu. A canção de Chico traz a centralidade do violão, que dá ritmo
e direção ao trem que Pedro Pedreiro espera, repetidamente, todos os dias,
sonhando uma vida melhor, um retorno à terra natal e o filho que vai nascer.
A espera de Pedro é contínua, mas repetida. Já na canção de Céu, há angústia
na posição de se “debruçar num minuto que não vem”, e a promessa de um
novo dia parece desacreditada, pois “tal promessa” parece ter se perdido na
batalha diária contra os ponteiros que seguem seu fluxo. Outra diferença
fundamental é que não há um personagem definido na música de Céu como
há na de Chico, em que sabemos sobre a profissão, a origem social, a famí-
lia e os sonhos de Pedro. E mais, na música de Céu, quais sonhos são esses
que se perdem? Não é dito e talvez nem importe, porque o protagonista da
música é o próprio tempo e não alguém. O tempo é o sujeito principal na
construção poética e sonora dessa canção.
Em “10 contados”, composição de Céu e Alec Haiat, o tempo é questio-
nado no sentido de que o sujeito busca criar uma nova unidade de contagem
que se adéque à saudade sentida, baseada nos suspiros dados toda vez que se
sente a falta do amor que se foi e, espera-se, deve voltar logo. Toda a letra se
desenrola, em consonância com a melodia e com a paisagem sonora da faixa,
invocando às “entidades do tempo” — que não são nomeadas — alguma
ajuda. E estas respondem: autorizam a suspensão do tempo. A letra não diz
até quando nem como se dará esta transformação, mas ela estando autoriza-
da, é preciso transformar o tempo regulamentar marcado pelos segundos,
minutos e horas. No tempo do amor, ou da saudade, a unidade de tempo é
a da agonia expressa em “suspiros”, que serão as balizas para os “contados”.
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Céu: no tempo da canção expandida
“10 contados” é uma música que fala da ausência, é sobre a saudade, mas
as músicas de amor do primeiro disco de Céu parecem invocar, ao contrário
desta, mais a presença do amor e do amado. Nessa presença é que se cria
outro tempo de amor: o do aconchego a dois, mais lento do que o tempo
da vida social. “Malemolência” é a faixa título deste tempo em que se busca
a pausa, indo contra o ritmo da metrópole, do capitalismo e do trabalho
mecanicista. Sua estrutura tem mais ou menos o mesmo tom na construção
musical e no ritmo do canto. A voz de Céu entra antes de qualquer instru-
mento — no caso, apenas o cavaquinho que a acompanha nos primeiros ver-
sos. O sujeito que fala conta uma experiência de aproximação com alguém.
Ela repreende, no momento, a ação do outro de se aproximar:
6 Segundo o dicionário Houaiss online, entre outras acepções, “malemolência” remete ao “jogo
de atitudes, gestos, jeito de falar ou mover-se que denota qualidades diversas, mas conside-
radas positivas (como a manha, a malícia, a elegância, a destreza) de alguém; molejo; ritmo
gingado, característico da interpretação de certos cantores de samba, dançarinos, ou modo
característico de portar-se dos antigos malandros”.
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Pérola Virgínia de Clemente Mathias
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Céu: no tempo da canção expandida
This next song is a love song but is also a song that talks about that
these days we have so many things to do each minute, each second.
We have so many information, so many… you know, things to do,
and sometimes we forget to do things that is really important for us.
And we see our dreams leaving behind. And it is a kind of song de-
dicated to laziness, why not? I think laziness sometimes can be really
productive (Céu…, 2013).
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Pérola Virgínia de Clemente Mathias
Vem de longe
Da morada da memória
Junto construímo história
No calor de fim de tarde
Eis que arde
Na lembrança de outrora
Vem comigo mundo afora
Em qualquer lugar que eu ande
[…]
E nosso amor foi todo a prova de ebó
Não teve um só que separou eu de nhonhô
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Pérola Virgínia de Clemente Mathias
(Céu)
Quem nunca foi De fino trato
Volta pra casa assim Feito um trapo Nada lhe prende
E ainda há quem tente
E é feita de gato e sapato Sem mais
(Luiz Melodia)
Se eu lhe contar Por onde andei
Que o sol amanheceu Mais de uma vez Mas ainda assim Não clareou
E a saudade bateu e no peito ficou Sem mais
Uh, vira-lata (não, eu não sou) Não me importa (vou lhe contar)
Quem tu és (quem eu sou)
Hoje eu vou
Me achar e depois (vem) Me perder
Em nós dois (só nós dois)
Ao longo de seus discos, Céu canta ainda mais três versões para músicas
nem tão conhecidas do cancioneiro popular brasileiro. Além de “Ronco da
cuíca”, de Bosco, “Rosa, menina rosa”, de Jorge Ben Jor, “Visgo da jaca”, do
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Céu: no tempo da canção expandida
disco Canta, canta, minha gente (1974), de Martinho da Vila, e “Palhaço”, gra-
vada no disco Depoimento do poeta (1970), de Nelson Cavaquinho.
A música que Céu grava de Ben Jor é do primeiro disco do cantor, Samba
esquema novo, de 1963. Pode-se dizer que Céu tem uma história peculiar com
o compositor. Quando Vagarosa foi lançado, Céu recém havia dado à luz a sua
filha, que se chama Rosa Morena. E antes disso, ainda em 1969, Jorge Ben e
Toquinho compuseram “Carolina Carol bela”, para a mãe de Céu. Em 2017,
o projeto Nivea Viva, que anualmente homenageia um compositor brasilei-
ro, escolheu Jorge Ben Jor para ser homenageado pela banda Skank e por
Céu em shows que rodaram algumas capitais brasileiras. A respeito da esco-
lha de seu nome para fazer parte do projeto, Céu disse em entrevista que:
Por sua vez, Ben Jor (2017), ao falar do resultado do show, declarou
sobre a cantora e a banda:
A versão de Céu para “Rosa, menina Rosa” foi gravada pela banda Los
Sebozos Postizos, formada pelos integrantes da Nação Zumbi para tocar ex-
clusivamente músicas de Jorge Ben Jor.
“Palhaço” é um samba de Nelson Cavaquinho, cuja versão para Caravana
Sereia Bloom tem Céu acompanhada apenas por seu pai tocando violão e asso-
biando. Segundo a cantora, no convite que fez ao pai: “Pedi que fizesse ‘O Pa-
lhaço’ totalmente felliniano. E ele entendeu completamente” (Veloso, 2012).
Céu é uma das poucas cantoras — pelo menos das que têm destaque
no ambiente da música independente — que cantam reggae, como Anelis
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Pérola Virgínia de Clemente Mathias
Assumpção e Marietta. Em seu primeiro disco, Céu fez uma versão lo-fi para
“Concrete jungle”, de Bob Marley, gravada no disco Catch a fire, de 1973. A
escolha parece ser consonante com a construção do clima malemolente e
vagaroso de seus primeiros discos, como já dito, que buscam uma quebra
com o ritmo cotidiano da cidade. Em seu disco seguinte, a referência segue
com maior ênfase em “Cordão da insônia”, que deixa clara essa relação por
ter o dub como ritmo predominante e se referir à cidade como “babilônia”.
A relação com o ritmo continuou em 2014, quando a cantora saiu em turnê
com o show Catch a Fire, em que cantava o disco de Marley na íntegra com
sua banda. Na entrevista que a cantora concede à revista TPM, o repórter
pergunta como o dub entrou em Vagarosa, ao que ela responde:
Em Caravana Sereia Bloom, ela regrava “You won’t regret it”, de Lloyd
Robinson e Glen Brown, dois dos grandes nomes da música Jamaicana da
década de 1960 aos anos 2000. Mas neste disco há uma abertura maior para
ritmos latinos e caribenhos que não o reggae ou o dub — como em “Con-
travento”, sobre a qual Céu diz que, quando Gui Amabis e Lucas Santtana a
compuseram, sabiam que era o interesse musical dela. Céu cita, por exem-
plo, em entrevista à Rolling Stone, que estava escutando as gravações de Eydie
Gormé com o Trio Los Panchos naquele momento.
7
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Céu: no tempo da canção expandida
bem diferente dos dois primeiros discos, em que há muitos músicos se reve-
zando entre as faixas, e cada um dando um pouco de sua identidade, como a
própria Céu conta na entrevista citada à revista TPM:
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Em modo espacial
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Conclusão
Os cinco discos lançados até agora por Céu (incluindo o Ao vivo) mos-
tram uma carreira que vem se edificando sobre uma obra coesa e consis-
tente, tanto pela sonoridade como pela poesia. As letras de Céu flutuam
por inúmeros assuntos, mas na imensa maioria das vezes falam das subjeti-
vidades do eu-lírico, mesmo quando o sujeito que fala tenta refletir sobre
uma realidade exterior à dos seus próprios sentimentos. É possível ver seus
discos dentro do universo amplo e denso do que se chamou a “canção ex-
pandida”, com as letras e o canto dividindo espaço (às vezes mais, às vezes
menos) com os instrumentos e com as ambientações sonoras criadas pelos
músicos que somam parcerias com a cantora. Mais de uma vez, no entanto,
Céu deixou claro que o principal instrumento de sua composição é a pró-
pria voz, cujo timbre é uma das identidades da cantora, que não se parece
com nenhuma outra em destaque hoje no Brasil. Mas Céu deixou claro
também nestes anos de carreira que é uma artista que se preocupa com a
pesquisa musical, com a relação da música com o visual, do figurino à forma
como utiliza as mídias.
Mesmo com todas estas qualidades, Céu enfrentou uma crítica que, ape-
sar de elogiosa, a minimizava em seu esforço pelo simples fato de ser ela uma
mulher, compositora e cantora. Acusada de ser uma “cantora de produtor”,
as entrevistas de Céu mostram que quem está e sempre esteve no coman-
do de suas escolhas estéticas e profissionais foi ela mesma. A questão pode
ser vista de outra forma: não é que Céu seja uma “cantora de produtor”,
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Referências bibliográficas
Sites consultados
BEN JOR, Jorge. Skank e Céu homenageiam Jorge Ben Jor com repertó-
rio de sucessos em show especial [26 maio 2017]. Entrevistadora: Mariana
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Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra
periférica dos Racionais MC’s1
Acauam Oliveira
2013). Ainda que não tenha de todo se livrado do estigma que o acompanha
desde sua constituição, cuja matriz é social, é certo que os problemas que
atravessam o movimento hip hop atualmente são bem diversos daqueles de
seus primórdios, quando, para o Estado e para a opinião pública em ge-
ral, basicamente não havia distinção entre rap e criminalidade. Obviamente
que o processo de criminalização da periferia e de sua cultura pelo Estado
1 Parte deste ensaio foi publicada originalmente como texto de apresentação do livro Sobrevi-
vendo no Inferno, lançado pela Companhia das Letras em 2018.
2 A polêmica deve-se sobretudo ao fato de que essa abertura mais recente em grande parte
contraria a postura anterior do grupo, de total recusa a participação em programas da cha-
mada grande mídia.
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3 Baseamo-nos livremente na concepção de sistema literário, tal como formulada por Antonio
Candido (1989).
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Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
(“Capítulo 4, versículo 3”)
Todas as celas que eu examinei tinham muito poucos tiros nos cor-
redores. No corredor, eu contava dois ou três buracos de balas. Mais
de 90% dos tiros estavam dentro das celas. E sempre da porta para
o fundo, ou seja, impossível que tenha sido algum tiro dado pelos
presos em direção aos policiais militares. E, realmente, não tinha
nenhum policial ferido por balas.
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Acauam Oliveira
4 Lembrando que o sistema de justiça do país não reconhece o episódio como massacre. Os
documentos oficiais tratam o extermínio como “rebelião”, ou “motim” do Pavilhão 9. Passa-
dos mais de 25 anos, nenhuma autoridade competente foi capaz de atribuir responsabilida-
des pelo crime, que sequer é reconhecido como tal.
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Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s
sete foram condenados pelo Tribunal do Júri, sendo três absolvidos em se-
gunda instância. Somente um PM permanece preso e, ainda assim, por ter
sido pego em flagrante roubando um banco enquanto estava foragido. E rou-
bar banco no Brasil, assim como portar Pinho Sol próximo a manifestações
sociais, dá cadeia .5
5 Como comprova o episódio envolvendo a prisão de Rafael Braga, jovem negro que vivia
em situação de rua e trabalhava como catador de material reciclável no centro do Rio de
Janeiro. No dia 20 de junho de 2013, Rafael Braga foi detido após uma manifestação con-
tra o aumento das passagens de ônibus, sob acusação de portar material explosivo utiliza-
do na fabricação de coquetéis-molotovs. Além de não estar participando da manifestação
(sua prisão foi efetuada durante a dispersão do ato), um laudo do esquadrão antibombas
da própria Polícia Civil atestou que os materiais encontrados nas duas garrafas (Pinho Sol
e desinfetante) tinham ínfima possibilidade de funcionar como material explosivo. Rafael
Braga foi condenado a 11 anos de prisão.
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Acauam Oliveira
6 A frase, por sua vez, recupera uma fala em que o então governador Geraldo Alckmin justifi-
cava nove mortes ocasionadas por uma ação da Rota em 2012 (Manso, 2012).
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Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s
por uma fantasia que assume a condição de verdade. Seu principal objeti-
vo é apagar os acontecimentos, impossibilitando sua narração. Com isso o
massacre se torna um dado inapreensível, ato de fúria divina sem explica-
ção . Não por acaso, os documentos oficiais do sistema de justiça brasileiro
7
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Acauam Oliveira
enunciado a seu referente. No caso de “quem não reagiu está vivo” não se
trata apenas de negar os fatos, impossibilitando sua nomeação, mas também
de legitimar uma determinada perspectiva.
O segundo efeito da oração é, portanto, tornar a própria ação policial o parâ-
metro último de significação, moldando a realidade a seu horizonte de sentido. Se
quem não reagiu está vivo, quem morreu é obviamente culpado. Quem atribui
culpa e inocência é a própria morte, que nesse caso é estabelecida de cima
para baixo por quem tem a possibilidade/autorização de matar. Encarnada em
seus agentes, a morte transforma suas vítimas imediatamente em “elementos”
culpados, mera confirmação de uma verdade estabelecida de antemão pela
ação policial. Não existe julgamento: se morreu, é porque era culpado. Como
essa ação é excluída da frase, a morte aparece de forma absoluta, como um
destino inexorável a partir de onde irradia-se toda significação. Maktub. É, pois,
a violência policial que funda a Verdade do Estado Brasileiro, sustentada pela
produção de cadáveres dos jovens negros de periferia.
Por fim, a frase constrói ainda um último efeito, reconhecido novamente
no uso perverso do verbo reagir, núcleo ideológico da oração. A condição de
sobrevivência deste “quem” depende de ele acatar o sentido do verbo que,
a despeito de sua falsidade — um massacre é caracterizado justamente pela
impossibilidade de a vítima reagir —, determina sua vida. Nesse movimen-
to, a responsabilidade pelo acontecimento passa a ser toda do detento, crian-
do-se um mecanismo de culpabilização da vítima. A frase apresenta o detento
como alguém que tem uma escolha a tomar (reagir ou não reagir) diante de
uma Verdade previamente determinada, sendo inteiramente responsável pe-
las consequências de seus atos. Toda a frase é construída como um não-lugar
que transforma as ações da PM em condição de verdade dos acontecimentos,
frente à qual os sujeitos devem se submeter. Toda responsabilidade é trans-
ferida aos detentos como resultado de uma ação que, entretanto, só se rea-
liza negativamente. Não-reação, ou seja, aceitação passiva da palavra divina
pregada na forma de rajada de metralhadora. O detento é culpado por seu
próprio extermínio. A PM é o caminho, a verdade e a morte.
O sujeito periférico
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Eu sou irmão
Dos meus trutas de batalha
Eu era a carne
Agora sou a própria navalha
(“Negro drama”)
8 O autor também destaca que a importância do grupo deve ser compreendida no interior
de um processo mais amplo de produção cultural da periferia, que buscava então novos
modelos de representação que envolviam “a literatura marginal e seus principais autores; os
grupos de teatro da periferia; as comunidades do samba; os saraus; as posses de hip-hop; os
artistas populares da periferia de diversas expressões; cineclubes e produções audiovisuais
periféricas, dentre inúmeras outras expressões artístico-políticas que cresceram em núme-
ro, tamanho e abrangência a partir da década de 1990” (D’Andrea, 2013, p. 26).
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Acauam Oliveira
e nomes como Thaíde & dj Hum começavam a receber, mesmo que de forma
incipiente, algum destaque em programas de TV. Foi justamente por essa
época, mais precisamente em 1988, que os primos Paulo Eduardo Salvador
(Ice Blue) e Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown), moradores do extre-
mo sul de São Paulo, se apresentaram pela primeira vez em um concurso no
clube Asa Branca, em Pinheiros, conquistando o primeiro lugar.
No outro extremo da cidade, Edivaldo Pereira Alves, vulgo Edi Rock, tam-
bém começava a apresentar-se ao lado daquele que se tornaria o mais impor-
tante DJ da história do rap brasileiro, Kleber Geraldo Lelis Simões (KL Jay). O
sucesso da dupla foi aumentando progressivamente, e em pouco tempo já estava
abrindo shows para nomes importantes como Thaíde & DJ Hum e MC Jack.
Naquele mesmo ano, o então produtor cultural e ativista político de esquer-
da Milton Sales – que conhecia tanto a cena da região da São Bento, frequentada
por Brown e Blue, quanto a casa noturna Clube do Rap, na Bela Vista, dominada
por KL Jay e Edi Rock – apresentou a ideia de juntar os dois grupos, forman-
do o que então passaria a ser conhecido como Racionais MC’s. Além de ser re-
conhecido como um dos responsáveis por consolidar o rap em São Paulo nos
anos 1980, Milton Sales foi uma figura fundamental para o processo de fortale-
cimento da orientação política do grupo (Silva, 2012). “Ele dizia que eu tinha de
usar meu talento para mudar as coisas, igual ao Bob Marley fez na Jamaica, lutar
pelo oprimido. Era disciplina de esquerda. Ele e Malcolm X foram os caras que
me ensinaram as coisas mais importantes de política”, como já declarou Mano
Brown (Caramante, 2013). A visão de Milton Sales ajuda a compreender algo do
significado que o rap assumiu ao longo de seu processo de consolidação:
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poderíamos nos arriscar a dizer que, durante muito tempo, não parecia ha-
ver exagero em tal definição, a despeito de seu caráter de autopropaganda
(que faz parte de sua força, ao contrário do que um modelo de percepção
mais purista pode imaginar). Se não os mais perigosos, certamente uns dos
mais perigosos pretos do país. Sejamos ainda mais claros: perigosos para
certa imagem de Brasil, para um determinado projeto de formação nacio-
nal. O fato de eles agora talvez não mais representarem tal perigo, a des-
peito de sua importância e valor de referência dentro da cultura brasileira,
indica muito mais do que uma transformação de cunho estético: estamos
acompanhando a gradual saída de cena de um de nossos últimos projetos
culturais verdadeiramente emancipatórios.
Mas qual seria, especificamente, o risco que o Racionais MC’s representa
para o discurso hegemônico, e cujo impacto foi capaz de provocar reações
violentas por parte do Estado (prisões, perseguições, proibições de shows)?
É claro que tal risco não tem nada a ver com as acusações de “incitação à vio-
lência”, “apologia ao crime” ou outras fórmulas movidas por puro desconhe-
cimento ou má-fé. Basicamente é isso o que se tentará demostrar nas páginas
seguintes, mas que sinteticamente poderíamos definir da seguinte forma: os
Racionais encontraram uma maneira de, posicionando-se ao lado do bandido e
definindo- se enquanto sujeitos marginais periféricos, ou seja, enquanto sujei-
tos destinados a morrer pelas mãos do Estado, permanecerem vivos. Em con-
junto com a comunidade periférica, o grupo ajudou a pavimentar um caminho
de sobrevivência para seus irmãos, por meio da palavra tornada arma. Mais
do que isso, eles compreenderam que apenas assumindo todas as complexas
implicações desse lugar marginal é possível para a periferia construir espaços
emancipatórios. A trajetória do grupo consiste, pois, na formalização dos im-
passes, contradições e avanços desse projeto a um só tempo estético e social.
Uma vez que, como vimos, o fundamento do Estado brasileiro é transforma-
ção da violência em Verdade por meio da atuação genocida da polícia, pode-se
dizer que o projeto ético-estético do grupo é uma tentativa de negação de
um dos pilares que tornam possível o próprio projeto de formação do país.
Daí seu grau de periculosidade. Em outras palavras, trata-se de reconhecer no
massacre do Carandiru a Verdade maior do Estado brasileiro (assim como os
frankfurtianos reconheciam em Auschwitz um laboratório para todo o projeto
de civilização do Ocidente) e criar meios para evitar sua repetição.
Para captar a radicalidade dessa forma e suas principais implicações, é
necessário que nos afastemos inicialmente de alguns lugares-comuns a res-
peito do rap e da obra do grupo em particular. Uma dessas concepções é a
de que o rap seria a “voz da periferia” por ser um tipo de arte feita por quem
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é de lá, e que por isso “sabe o que acontece” melhor do que ninguém. Como
veremos ao analisar os primeiros trabalhos dos Racionais MC’s, é perfeita-
mente possível ser morador da periferia, participar do movimento hip hop
e, ainda assim, ser contrário aos interesses da sua comunidade. O rap como
“voz ativa” periférica não é uma condição natural, algo como um aspecto
essencial de quem vive na periferia, e sim o resultado final de um longo
processo de elaboração coletiva. A própria concepção do que seja periferia,
como vimos, não é um dado da natureza, e sim objeto de disputa discursiva.
O rap, portanto, é muito mais do que um discurso sobre a “periferia”, feito
por seus próprios moradores: é a própria construção desse conceito como
instrumento de autopercepção e sobrevivência.
A criação desse conceito, obviamente, não se dá de forma linear, e muito
da radicalidade da posição dos Racionais pode ser depreendida a partir da
observação dos conflitos e impasses, em certa medida inéditos, formalizados
em suas canções. Passemos a seguir à análise de alguns desses aspectos.
O professor autoritário
9 “Eu vou lembrar que ficou por isso mesmo/ E então que segurança se tem em tal situação/
Quantos terão que sofrer pra se tomar providência” (“Pânico na Zona Sul”). “Eu digo a ver-
dade, você me ironiza/ A conclusão da sociedade é a mesma/ que, com frieza, não analisa,
generaliza/ e só critica, o quadro não se altera e você/ ainda espera que o dia de amanhã será
bem melhor” (“Beco sem saída”).
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O pastor marginal
10 Aliás, é o próprio Brown que anos depois reconhece esse e outros aspectos problemáticos
dessas obras iniciais, marcadas por um distanciamento de quem assume um tom de “senhor
da verdade”: “Se ouvir [as músicas antigas] vai ver que as palavras… parece que sou meio pro-
fessor, meio universitário… tudo quase semianalfabeto, tudo estudou até o primeiro colegial, […] E
querendo falar pros caras da área, mas parecendo que nós éramos outros caras.[…] Tem música que
eu nem canto porque tenho raiva da letra. ‘Voz ativa’, mesmo, eu tenho raiva da música, não
gosto das palavras, do jeito que elas são ditas. Parece um texto de jornalista, eu não sou isso
aí! Eu sou um rapper” (Kalili, 1998).
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11 Conforme definição de Walter Garcia (2013a): “Sua estrutura é do tipo épico, não mais do
dramático como em ‘Hey Boy’”.
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que o principal recurso estético utilizado nesse caso é a fusão da voz nar-
rativa com a do personagem, que organiza a canção “na intersecção entre a
ótica desse detento e a fabulação épica do narrador” (Lopes, 2014, p. 73).
O efeito é criado pela passagem abrupta da primeira para a terceira pessoa,
do “narrador onisciente” para o “discurso indireto livre”, que deliberada-
mente confunde os dois lugares (Garcia, 2013a, p. 89). Nos versos iniciais
o narrador está em terceira pessoa, como indica o uso do pronome “seu”,
(“porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio”), mas já no trecho seguinte
o ponto de vista muda subitamente para primeira pessoa (“um pedaço do
inferno, aqui é onde eu estou”), a tal ponto que é impossível definir ao certo
se a imprecação final contra o descaso do IBGE (“Numerou os barracos, fez
uma pá de perguntas/ Logo depois esqueceram, filha da puta!”) é proferida
pelo próprio narrador ou pela personagem. Se em “Beco sem saída” o lugar
da “verdade” narrativa é o próprio olhar subjetivo do rapper que organiza
a matéria e direciona seus sentidos, em “Homem na estrada” esse ponto
de vista deliberadamente se confunde com o da personagem, “comprome-
tendo-se radicalmente com o tipo social que este representa, ao mesmo
tempo que dele guarda certa distância” (Garcia, 2013a, p. 89). Nesse caso,
é a própria cena que oferece um parâmetro de organização dos sentidos,
deslocando a primazia absoluta do olhar do narrador, pois, no limite, sequer
é possível afirmar a quem pertence essa voz.
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13 Conforme nos explica Adalton Marques (2009): “O ‘ter proceder’ é sim estar em consonân-
cia com esse complexo conjunto de regras que, aliás, modifica-se ao longo do tempo, mas
não só, já que dos ‘caras de proceder’ se espera mais do que conformidade a uma orientação,
espera-se que sejam ‘humildes’ e, ao mesmo tempo, que sejam ‘cabulosos’. O ‘humilde’ deve
ser entendido exatamente como aquele que ‘não humilha os humildes’. O ‘cabuloso’, por
sua vez, é justamente aquele que ‘não leva psicológico’. ‘Dar um psicológico’, expressão de
meus interlocutores que serviu de título a uma comunicação, conota a capacidade de um
indivíduo produzir cautela ou receio (no limite, medo) num outro com o qual se relaciona,
seja através de palavras, de gestos ou de atitudes”.
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não quer dizer que esse sujeito foge da questão, permanecendo confortavel-
mente em cima do muro. Ao contrário, trata-se de uma escolha radical pela
própria “comunidade que vem” (Agamben, 2013), reconhecendo que esta
precisa tanto da retidão do trabalhador quanto da agressividade do bandido.
A resposta oferecida, portanto, abre espaço para representar os dois pontos de
vista. Não se trata em nenhuma medida de justificar as ações anteriores do
bandido contra o trabalhador, mas de criar espaço para a voz desse outro,
possibilidade que é oferecida pela palavra divina do rap que, como tal, se
torna um lugar onde a partir das diferenças é possível construir um modelo
coletivo de enunciação. Mesmo em total desacordo e contradição, a possi-
bilidade de um espaço de acolhimento dessas vozes é fundamental para que
possam sobreviver.
É por isso que canção muda constantemente de perspectiva, construin-
do um modelo épico de enunciação. Adota o ponto de vista do trabalhador
e tira todas as suas consequências até o limite, para a seguir realizar um salto
para a perspectiva do bandido, em que procura compreender também suas
motivações, até seu limite. Perdão e compreensão conquistados de forma
violenta, numa estrutura narrativa absolutamente complexa. Em vez do re-
vide, a canção insiste naquilo que o trabalhador e o bandido, afinal, têm em
comum, como o sentimento de revolta, o desejo de vencer e adentrar o rei-
no da dignidade. Sentimentos que o rapper, o pai de família e o bandido com-
partilham. O caminho proposto pelo rap é o da fraternidade, ali mesmo onde
ela parece mais difícil de conquistar, tornando-se, por isso, absolutamente
necessária. A comunidade imaginada por meio do ponto de vista coletivo
não nega as diferenças, mas reconhece que a única maneira de permanecer
vivo é quebrando a lógica de extermínio mútuo. O gesto de condenar um
dos campos é, pois, suspenso, e o narrador encarna a figura do bandido para
compreendê-la e aproveitar aquilo que traz de vantagem, aprendendo com
estes maneiras de combater o verdadeiro inimigo.
No final da canção essa identificação com o marginal será também inter-
rompida, antes de cruzar seu limite fatal e inevitável (“Mas não, permaneço
vivo/ Prossigo a mística/ Vinte e sete anos contrariando a estatística”). No
fim das contas o caminho do crime é recusado, mas essa recusa parte de
dentro, após um movimento de total identificação, em oposição à recusa
genocida da sociedade de bem. Uma recusa que pensa no que é melhor para
o trabalhador, mas também para o bandido, por compreender para onde suas
escolhas o levam. O rap permite assim incorporar os dois pontos de vista an-
tagônicos, reconhecendo neles uma mesma potência a ser direcionada contra
os verdadeiros inimigos. Sua força consiste, pois, em apostar na capacidade
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Nesse trecho final do diário, a narrativa se trunca e oscila por entre ima-
gens desconexas, flashes cinematográficos, metáforas desgastadas, máximas
e juízos generalizantes. A linguagem é rebaixada e perde parte de sua dinâ-
mica anterior (coletiva). Com a entrada da polícia em cena, o Real irrompe
e ameaça romper a narrativa (junto com a vida daqueles que a construíam),
que passa a se desenvolver não pela descrição precisa da violência, mas por
um conjunto de juízos interpretativos abstratos e imagens alegóricas rebai-
xadas (clichês de toda ordem, fragmentos de cultura de massa etc.). As ce-
nas de violência aparecem como flashes de imagem sem desenvolvimento:
cachorros, gás lacrimogêneo, cadáveres, sangue jorrando.
Com a morte real dos detentos, a linguagem perde seu poder de orga-
nização da narrativa, que dependia da sobrevivência dos membros da co-
munidade. Literalmente, a morte dos detentos impede o relato de existir.
A vinculação entre forma estética e matéria social, própria das artes enga-
jadas, encontra aqui uma formulação radical. Trata-se de um mecanismo
bem diverso daquelas obras cuja força consiste na capacidade de formali-
zar “conteúdos sócio-históricos decantados” (para seguirmos a formulação
adorniana), que permite reconhecer mecanismos sociais complexos a par-
tir de uma lógica de funcionamento organizada a partir de um princípio
de autonomia dos materiais. Pode-se dizer que essa condição primeira de
qualidade da obra é aqui recortada por outra, que testa o seu conteúdo
de verdade em relação a seus propósitos e compromissos, que também
se transforma em mecanismo formal. No limite, a canção almeja que sua
qualidade estética seja condicionada também pela ética. Daí porque a des-
vinculação de ambas as esferas (ética e estética, ou antes, rap e periferia),
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Nada como um dia após o outro dia foi lançado em 2002 e, em linhas gerais,
segue na tentativa de definir e defender o “proceder” do sujeito periférico
como forma de assegurar sua sobrevivência. Violência, morte, privação e
traição continuam a fazer parte do cotidiano violento cantado pelo grupo,
multiplicando os inimigos. Contudo, a mensagem agora assume um teor
bem mais individual e subjetivista, substituindo a sobreposição de múltiplas
vozes e perspectivas pelo relato de experiências individuais que enfocam a
própria relação do sujeito com o mundo. Evidentemente, tal conjunto de re-
flexões individuais é ancorado em experiências que compartilham dos valo-
res periféricos, e que continuam a pautar a conduta do sujeito, expressando
em alguma medida a coletividade de sua quebrada. Melhor dizendo, o disco
será precisamente um longo processo de reflexão (um álbum duplo com
canções de até 12 minutos) sobre as formas como o sujeito pode manter seu
proceder diante dos diversos desafios presentes na “vida loka cabulosa”.
Entretanto, ao invés da multiplicação radical de pontos de vista presente
em “Diário de um detento”, o disco traz um conjunto mais detido de refle-
xões subjetivas sobre o dia a dia de um guerreiro que tem sua fé testada a
todo o momento e por todos os lados: as formas de lutar para sair da que-
brada, o que significa estar do “outro lado do muro”, o dinheiro como mal
necessário, que te domina caso não seja dominado etc. Espécie de consequ-
ência, digamos, “imprevista” do processo de incorporação de pontos de vista
contraditórios de Sobrevivendo no inferno, o disco apresenta diversas canções
em que os sujeitos internalizam essas contradições, investigando-as a partir
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da própria experiência que, sobretudo nas letras de Mano Brown, por vezes
assumem expressão agônica.
Uma das principais questões debatidas pelas letras do grupo passa a ser
a capacidade de manter a integridade dos valores guerreiros cultivados até
então, ao mesmo tempo que lutam para conquistar cada vez mais espaço do
“outro lado” — dinheiro, sucesso, fama. Em suma, a administração “racional”
da relação conflituosa entre mundo da fama e valores periféricos. Todo o
disco é a um só tempo marcado pela ruptura com a proposta de enunciação
coletiva de Sobrevivendo no inferno e pela nova necessidade de definição de
uma ética guerreira a partir de uma autocompreensão de ordem subjeti-
va. Manter-se periférico à medida que se afasta cada vez mais da periferia.
Como o rapper pode seguir lutando o bom combate uma vez que saiu do
lado de seus irmãos, sendo o lado de lá da ponte um território rigidamen-
te demarcado e que por isso mesmo aceita quaisquer conjuntos de valores
(“Dinheiro é puta”), desde que este venha desvinculado de transformações
sociais profundas? Como é possível manter a dimensão crítica radical dos
valores e princípios gestados na periferia — muitas vezes contraditórios e
opacos mesmo para quem os vive cotidianamente — tendo cruzado para o
outro lado da ponte? Ou seja, como essa arte pode se manter periférica fora
da periferia? A força de Nada como um dia após o outro dia depende não tanto
das respostas e caminhos apresentados — são vários e muitas vezes contra-
ditórios —, mas da representação estrutural dessa dialética.
A ambivalência e a dificuldade por vezes agônica da posição de quem
agora participa do universo dos que estão integrados ao sistema, mas segue
comprometido com os que estão de fora, assume uma formulação estrutural
precisa em “Negro drama”. A canção se divide em duas partes; a primeira
cantada por Edi Rock de forma mais contida, e a segunda por Mano Brown
de forma mais raivosa e agressiva. Podemos dizer que a diferença entre as
dicções deve-se a dois motivos principais: o fato de Mano Brown tratar di-
retamente de sua experiência pessoal, o que denota maior grau de envolvi-
mento subjetivo e, principalmente, a diferença do interlocutor presente em
cada trecho (Oliveira; Segreto; Cabral, 2013). Edi Rock procura travar um
diálogo com sua própria comunidade, dirigindo-se prioritariamente a seus
“trutas de batalha” e “irmãos de fé” da periferia, ao passo que Brown manda
um recado diretamente para o “senhor de engenho” no topo da pirâmide.
A relação entre as duas partes se dá de maneira complexa, pois é a se-
riedade do compromisso firmado na primeira que garante o grau de contun-
dência e verdade do que é dito na segunda, tornando possível a reviravolta
radical expressa nos versos “eu era carne/ agora sou a própria navalha”. Nesse
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Salve
Encerremos por aqui esse percurso que buscou acompanhar algo da tra-
jetória dos Racionais MC’s a partir de uma articulação entre forma estética e
processo social, no caso, exigido pela própria matéria.Tentamos, assim, recu-
perar alguns dos elementos-chave que fazem dessa obra um dos acontecimen-
tos culturais mais relevantes da história do país. Na base desse acontecimento,
um projeto ético/estético radicalmente comprometido com a sobrevivência
dos moradores da periferia e que tem como um de seus princípios a constru-
ção de uma consciência coletiva capaz de evitar um novo Massacre do Caran-
diru. Desnecessário dizer que tal projeto de sobrevivência periférica entra em
confronto direto com o modelo brasileiro de gestão da miséria pela violência
do Estado e o quanto pode nos custar seu atual abandono.
É absolutamente coerente, portanto, finalizarmos esse texto com a lem-
brança dos 111 homens que foram mortos enquanto eram obrigados a levar
os cadáveres das celas para outros locais determinados pela PM, ou enquanto
passavam por um corredor polonês feito pelos mais de trezentos policiais
militares que estavam dentro da Casa de Detenção no Carandiru, no dia 2
de outubro de 1992. A potência do rap serve para nos lembrar que o Brasil
não os merece, e que enquanto formos incapazes de realizar esse processo de
luto, jamais conseguiremos nos tornar um país que preste.
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um ensaio biográfico-crítico
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Os primeiros anos
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A vida carioca podia ser dura para uma menina que gostava de tocar
piano. Eunice nunca chegou a terminar o 4º ano do curso primário, visto
que suas condições de vida não permitiram, porém se dedicou inteiramente
aos estudos ao piano, profissionalizando-se cedo. No rol de seus professo-
res consta Mima Oswald, filha do grande compositor e pianista Henrique
Oswald, com a qual inicia seus estudos dos 5 anos aos 8 anos; dos 9 aos 12
anos passa a estudar com Branca Bilhar , professora e compositora, filha de
2
outra figura de proa do Rio na época, Sátiro Bilhar; e, com 13 anos, vai estu-
dar com Oscar Guanabarino, permanecendo até 1936.
Em seu álbum de recortes, podem ser vistos retratos de seu primeiro re-
cital, com 12 anos de idade, no Salão Nobre do Instituto Nacional de Música
do Rio de Janeiro, em 1927. Antes desta data, em 1925, Eunice recebe o se-
gundo lugar no 2º Concurso de Jovens Instrumentistas Brasileiros, “Prêmio
Chiaffarelli”, na cidade de São Paulo.
Desde cedo, fora apresentada ao repertório tradicional, frequentando os
concertos, aos sábados e domingos, no Theatro Lyrico e no Theatro Munici-
pal do Rio Janeiro, cujas entradas eram garantidas pelo seu então professor e
crítico musical do Jornal do Commercio, Oscar Guanabarino.
O casamento com o matemático Omar Catunda, em 1934, nos chama
atenção pelo fato de Eunice ter realizado na mesma data um concerto
no Clube Fluminense do Rio de Janeiro, com grande elogio da crítica, o
Concerto Op. 59 de Moszkowski, sob a regência do maestro Spedini. Um
crítico da época atesta que a “senhorinha não passou pelo Instituto Nacional
de Música”, uma referência nacional, “mas, no entanto, exibe uma técnica
transcendente, digna dos grandes virtuoses”.
Uma razão para Eunice ter se mudado para São Paulo foi a contratação
de Omar Catunda como colaborador na implantação da subseção de mate-
mática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, futuro Instituto
de Matemática e Estatística, como assistente do italiano Luigi Fantappiè, em
uma posição de destaque. De alguma forma, esta mudança proporcionaria
uma nova fase na vida de Eunice Katunda.
Três anos depois, em 1937, nasce seu primeiro filho, Igor. Em São Paulo,
Eunice procura aperfeiçoar-se e passa a ter aulas de teoria, análise e har-
monia com Furio Franceschini, tido, à época (inclusive por Mário de An-
drade), como o papa da teoria musical no Brasil. Ela também estuda piano
2 Vale ressaltar aqui a grande dedicação feminina aos estudos do piano na época. O Instituto Na-
cional de Música do Rio de Janeiro, no período de 1912 a 1921, atribui láurea a 50 alunos; deste
total, 41 eram mulheres. Em 1912, entre estes laureados encontra-se Branca de Alcântara Bilhar.
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tros intelectuais da época. Com seu casamento com Omar Catunda (motivo
pelo qual adota o sobrenome Catunda e, mais tarde, após o divórcio, troca
a letra C por K, que a identificará como compositora até sua morte), mu-
da-se para São Paulo, retornando mais tarde para o Rio de Janeiro, onde
a efervescência do Música Viva já era fato. Eunice viveu intensamente este
momento, sendo grande sua participação como intérprete da música nova e
como compositora.
Os conflitos na recepção de sua música combinavam com os ideais de
engajamento político por ela vividos naquele momento. Eunice revoltava-se
contra as diretivas estéticas e musicais excessivamente sumárias que, por
vezes, transformavam a música em acessível e de fácil compreensão. Discor-
dava da divisão entre células femininas e células masculinas, justificada pelo
Partido como caracterizando a falta de evolução política da mulher. Estava
no Partido porque havia uma ânsia em pertencer a uma coletividade, uma
ânsia do ideal coletivo de humanidade fraterna em dividir igualitariamente
conhecimento e expressão, emoção e inteligência. Fazia música dodecafô-
nica, sim, mas sem o formalismo intransigente da técnica e do rigorismo
das quatro formas, por acreditar que esta música era expressão do seu ser,
de criatura que luta e que sofre para exprimir algo que tem de ser expresso
laboriosamente. Acreditava na expressão “fruto do trabalho”, não o trabalho
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que pudesse ser individualizado, mas coletivo, via realização e, assim, co-
nhecimento geral e entendimento. Era sua visão de música do povo e para o
povo. Era sua expressão da música brasileira.
Frente aos debates ocorridos no Brasil em torno do II Congresso Interna-
cional de Compositores e Críticos Musicais em Praga (1948), e em confronto
com o Partido Comunista, Eunice não aceita como contraditório o fato da
música que emprega técnicas dodecafônicas não ser popular e não pertencer às
massas. Ela acreditava que a música que empregava tais técnicas não tinha pú-
blico simplesmente porque não era divulgada. Eunice tinha consciência da sua
época e de que, com a força de um trabalho constante de pesquisa e de busca
de expressão, poderia contribuir para um mundo melhor.
Para ela, a riqueza de uma obra composicional encerrava uma questão
humana. Se um compositor ignorasse estas regras, esta rejeição poderia ser
cruel, e a solidão passaria a ser esmagadora. Eunice Katunda tentou apontar
um caminho que imprimiria uma expressão brasileira para além das frontei-
ras nacionais, um internacionalismo nacional.
Eunice viveu estes últimos ideais até pouco tempo depois da “Carta aber-
ta aos músicos e críticos do Brasil”, de Camargo Guarnieri, escrita em 1950.
A partir de então, a postura de Eunice Katunda perante o dodecafonis-
mo tomou outra posição. Orientada pelo engajamento político e convencida
pela carta, que condenava a técnica dodecafônica para a composição, consi-
derando-a antinacionalista e antipopular, e destacando o folclore brasileiro
como um dos mais ricos do mundo, embora amplamente ignorado pelos
compositores, Eunice enfatiza sua ruptura com o Música Viva.
Entraria Eunice numa nova fase? Nem tanto. A pianista sempre fora pes-
quisadora do folclore brasileiro de todas as regiões, haja vista suas palestras
sobre o folclore quando esteve na Itália, em 1948. Mas seus estudos se in-
tensificaram a partir deste momento. Eunice passa por um período de via-
gens pesquisando ritmos e cantigas da capoeira de Angola (Salvador, 1952),
ritmos poéticos e melodias de cantadores e violeiros do Nordeste (Alagoas e
Bahia, 1956), ritmos e cantigas dos cultos afro-brasileiros (Salvador, 1956),
características e particularidades dos ciclos de festas populares em Salvador
(Iemanjá, Bonfim, Senhor dos Navegantes, 1957), reisados e pastoris (Ala-
goas, 1956), lendas, hábitos e costumes matriarcais, o Opô Afonjá, ritmos
e cantigas (Salvador, 1958) e o culto dos eguns, compilação definitiva de
melodias e ritmos (Itaparica, 1962). Firmando e reafirmando sua posição,
ela escreveria a Pierre Verger:
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Sou uma compositora e pianista brasileira que andei por vários caminhos
em busca de minha música. Avancei pela escola dodecafônica e recuei a
tempo, reconhecendo que nem ali se encontrava a identidade de minha
natureza com a música. E afinal vim encontrar a fonte que sempre me
atraíra e que reside no centro mesmo dessa tradição africana que em nós
é mais forte que tudo o mais, e que continua viva e pura nos ritmos, nos
gestos, na alegria bárbara e pungente desse candomblé baiano. Foi essa
descoberta maravilhosa, feita agora na Bahia, exatamente no momento
em que necessitava dela, por me encontrar em plena fase de criação . 4
4 Carta de fevereiro de 1956 dirigida a Pierre Verger, antropólogo francês que Eunice conhe-
ceu na Bahia. Cópia do original em posse da autora deste ensaio.
5 Durante o 8º Festival de Juiz de Fora, em meio à comemoração dos quarenta anos do iní-
cio das atividades do Música Viva, Eunice desculpa-se publicamente com Koellreutter pelo
modo como fez sua ruptura.
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Se Eunice Katunda sentiu algum conflito entre seu papel de esposa, mãe
e artista, a princípio, isto se resolveu em favor do ser artista.
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deixa transparente que a atuação profissional de Katunda não lhe privou dos
dotes domésticos, característica de toda boa mulher.
Somado a isso, suas inquietações políticas e musicais, manifestadas em
documentos da época, podem ter aumentado seu desconforto com a com-
posição; embora não pareçam ter afetado suas ambições para uma carreira
de concertista. No entanto, apesar de sentimentos alternativos sobre seus
poderes criativos, Eunice continuou a compor até 1983, com um período de
maior produção nas décadas de 1950 e 1960.
Desde muito cedo, Eunice fora encorajada a tocar de ouvido antes mes-
mo de ler as notas: transpunha para o piano a música que ouvia do clube vizi-
nho. Ela assistiu às apresentações e improvisos no ambiente de Branca Bilhar,
sua professora de então, pianista e compositora, sobrinha do violonista Sátiro
Bilhar. Improvisava sozinha, habilidade que continuou a desenvolver ao lon-
go de sua vida. Harmonia, análise e contraponto foram reforçados quando
Eunice tinha 19 anos e, já casada, se mudara para São Paulo. Com carta de
apresentação de Oscar Guanabarino, foi estudar com Furio Franceschini,
iniciando também seus estudos de composição.
Em 1941, na ocasião de sua interpretação do Concerto para piano n. 4, Op.
58 de Beethoven , no Theatro Municipal de São Paulo, sob a regência do tam-
7
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8 A posição ocupada por Eunice era incomum para mulheres. Além dela, podemos lembrar de
Dinorah de Carvalho, que na década de 1940 ocupou posição semelhante, como dirigente
de uma orquestra formada apenas por mulheres.
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tinha uma inteligência tão extraordinária, que se ela quisesse poderia ter sido
uma poeta, uma grande pintora. Como pianista possuía uma musicalidade
intrínseca, que ia muito além da realização técnica. […] tinha uma inteligên-
cia abrangente” . 10
De fato, ela foi uma pessoa especialmente dotada para qualquer arte.
Além de brilhante pianista, tinha facilidade em se expressar pela palavra, em
prosa ou poesia, e comunicava- se perfeitamente bem em vários idiomas,
tinha um excelente tino crítico e, como se viu, era compositora criativa,
produtiva e com grande conhecimento técnico. Entretanto, faltou-lhe sorte
no desenrolar de sua vida. Segundo Mariz, Eunice teve quatro quedas em
sua vida: a primeira por problemas emocionais (1944), a segunda por um
problema de sectarismo político (1950), mais tarde por problemas de saúde
e, enfim, em 1969, por um problema financeiro causado pela desonestidade
de sua agente nos Estados Unidos, prejudicando-a bastante.
Eunice sofreu as consequências de sua época, não só por ser mulher, mas
principalmente pelo seu engajamento político, embora sua força e atitude a
definam como uma mulher diferenciada para a época.
O destino parece ter determinado e conduzido o desenvolvimento de
sua carreira. Eunice, dedicada inteiramente à prática do seu instrumento,
nunca recebeu educação formal, mas seu conhecimento informal – adquirido
10 Entrevista gravada e concedida à autora deste trabalho em Taubaté, no dia 15 de maio de 2004.
11 Entrevista gravada e concedida à autora deste trabalho no Rio de Janeiro, no dia 20 de
julho de 2005.
12 Conforme currículo da compositora (cópia do original em posse da autora deste ensaio),
este acontecimento ocorreu em 1947, promovido pelo Ministério de Educação e Cultura e
Movimento Música Viva: Série de Cirandas para piano e conferência de Vasco Mariz.
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Koellreutter tinha muito apreço por Eunice, apoiando-a sempre que po-
dia em qualquer situação, inclusive convidando-a a viajar à Índia, onde ele
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Referências bibliográficas
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