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Natal, 2021
Reitor
José Daniel Diniz Melo
Vice-Reitor
Henio Ferreira de Miranda
Diretoria Administrativa da EDUFRN
Maria da Penha Casado Alves (Diretora)
Helton Rubiano de Macedo (Diretor Adjunto)
Bruno Francisco Xavier (Secretário)
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Helton Rubiano de Macedo (Editor)
Kamyla Álvares Pinto (Editora)
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Wildson Confessor (Coordenador)
Pedro Melo (Colaborador)
Design editorial
Rafael Campos (Coordenador)
Marcos Paulo do Nascimento Pereira (Projeto gráfico)
Fotografias
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McKenna Phillips (capa)
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Serge Kutuzov
Fundada em 1962, a Editora da UFRN
(EDUFRN) permanece até hoje dedicada à
sua principal missão: produzir livros com o
fim de divulgar o conhecimento técnico-
científico produzido na Universidade, além de
promover expressões culturais do Rio Grande
do Norte. Com esse objetivo, a EDUFRN
demonstra o desafio de aliar uma tradição de
quase seis décadas ao espírito renovador que
guia suas ações rumo ao futuro.
CDD 393
RN/UF/BCZM 2021/10 CDU 393 (813.2)
Capítulo 1
“Mortos muito especiais”: João Baracho e Jararaca 37
João Baracho 40
José Leite de Santana, o Jararaca 48
Capítulo 2
Trabalho de campo no Campo Santo – e Além 58
Cenas de campo: situações, encontros, conversas 70
Pelos cemitérios: notas do caderno de campo 84
Capítulo 3
Mortos, costumes funerários e santificação dos túmulos 110
A morte poluente, os mortos abjetos 118
Santos feitos à mão para passar à ação: santos como fe(i)tiches 126
Capítulo 4
As pessoas, as palavras e as coisas rituais: circulação e conflitos 145
Promessas e oferendas 157
Trabalhadores do cemitério 175
Conflitos em torno do túmulo e além 186
Capítulo 5
Palavras rituais: relatos e narrativas em trânsito 201
Capítulo 6
Narrativas hagiográficas, sofrimento e morte violenta 219
Vida de bandido: sofrer, fazer sofrer 227
O bom bandido, protetor dos pobres 230
Morte violenta como rito de passagem e conversão simbólica 232
Capítulo 7
Maravilhas e proezas: contos, causos, lendas 234
Capítulo 8
Experiência, memória e perdão 268
O caráter transgressor do perdão e a necessidade da promessa 287
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Introdução
2 Neste Museu, consultei as pastas organizadas por sua então diretora Maria
Lúcia Escóssia de Castro, Cangaço I e Cangaço II, com recortes de reportagens
e artigos do jornal O Mossoroense, de 1927, republicados na coluna “Mossoró do
Passado”, do mesmo jornal, em 1961. Registro aqui minha gratidão à diretora
Maria Lúcia pela permissão de acesso a esse material, que foi extremamente
útil para a pesquisa, em um período durante o qual o Museu se encontrava em
reformas. A consulta ao material ocorreu em março de 2004.
3 Quero dizer, só uma conversa, ocorrida no calor da situação, com pessoas que
não quiseram fornecer o contato para que eu as procurasse posteriormente, ou
com quem eu conversava em meio à aglomeração e ao burburinho dos ritos nos
cemitérios sem possibilidade de anotar seus contatos. Essas conversas rápidas
rendiam informações de densidade e relevância variada, e se davam, na maior
parte das vezes, sob a forma de conversas, fossem só comigo ou numa pequena
roda da qual outros visitantes ou trabalhadores do cemitério participavam.
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sociais acerca deles, pois que seus propósitos são focar no movi-
mento devocional observado nos respectivos cemitérios onde se
encontram sepultados, com a finalidade de analisar suas práticas
e as representações sociais, os relatos e a memória que vem sendo
construída em torno deles, relatos estes que podem oscilar entre
registros tidos pelo falante como verdadeiros (ou factuais, históri-
cos) ou assumidamente ficcionais (como nos causos e lendas sobre
as proezas do cangaceiro, moldadas no exemplar mito de Lampião).
No decorrer do texto, elementos de suas histórias ou biografias,
serão tratados como acontecimentos (ou fatos) porque é assim que
são tomados pelos sujeitos devotos que foram ouvidos ao longo
desta pesquisa, mas também por alguns dos textos acadêmicos e
da imprensa, que consultei.
Assim, não me propus investigar, por exemplo, se Jararaca
teria sido torturado e enterrado vivo ou não, mas sim os impactos
que essa ideia e essa imagem teriam acarretado sobre as pessoas
da cidade, e seus desdobramentos simbólicos e rituais. O mesmo
se aplica ao caso de João Baracho. Não investigo dados sobre sua
culpa ou inocência, mas sim sobre a dúvida presente nas cabeças dos
devotos, sobre suas especulações, que, ao falarem sobre Baracho e
sua época (ou sobre Jararaca), falam na realidade sobre a realidade
do presente e suas muitas violências, sofrimentos e injustiças, mas
também sobre redenção, perdão e fé.
No caso de Jararaca, trata-se de caso conhecido por todos
na cidade de Mossoró e arredores, pois que se encontra inserido
em uma saga maior, que é objeto de múltiplas narrativas orais e
escritas, de diferentes naturezas e fontes (jornalística, acadêmica,
popular etc.), e produtora de “lugares de memória” (YATES, 1999;
NORA, 1985), dentre os quais poderíamos situar o próprio túmulo
de Jararaca no cemitério São Sebastião, assim como o Museu Lauro
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Introdução
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João Baracho
6 Ver referências aos jornais na seção “Jornais e revistas – Notícias sobre João
Baracho e sobre Jararaca” das Referências.
7 Um prêmio de 20 mil cruzeiros já vinha sendo oferecido pelos motoristas e
servidores das Endemias Rurais a quem informasse o paradeiro do matador de
motoristas, o que foi noticiado pela Tribuna do Norte em 23 de junho de 1961.
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9 Há uma versão de sua biografia e dos fatos que culminaram em sua morte que
atravessa a aparente heterogeneidade das fontes e dos meios consultados (ver
referências bibliográficas) com significativa constância. Alguns dos livros que
tratam da história do cangaço como tema principal apresentam alguma descrição
breve sobre a personagem Jararaca como parte do episódio da invasão a Mossoró,
porém mesmo esse episódio, que tem sua importância na trajetória do bando de
Lampião, não recebe nelas mais do que umas poucas páginas. Ver, por exemplo,
Luna (1972, p. 107-114), Macedo (1975 [1962], p. 145-155) e Chandler (1980, p.
123-142). A exceção – dentro do universo bibliográfico consultado por mim - são
duas obras: Almeida (1981), obra de “reportagem social” de um jornalista que
trata especificamente da participação de Jararaca no cangaço, com destaque para
a invasão de Mossoró e até uma breve referência, no final, ao seu culto póstumo; e
Nonato (1955), cuja obra consiste basicamente em transcrições de documentos e
matérias de jornais sobre a invasão a Mossoró, mesclados com alguns depoimentos
de intelectuais entrevistados por ele. A essas fontes, documentos e recortes de
jornais antigos consultados no Museu Histórico Lauro da Escóssia, conhecido
como Museu do Cangaço. Essas foram as fontes consultadas para a composição
desse esboço biográfico ora apresentado nesta seção, com especial ênfase na
narrativa saborosa de Almeida, que transcrevo quase passo a passo na descrição
do ataque e fuga do bando de Lampião em Mossoró.
10 Virgulino, o Lampião, nascido em 1900, entrara para o cangaço, no bando de Sinhô
Pereira, em 1917. Em 1922, com o afastamento voluntário do líder, ele, que se tornara
seu braço direito, assumira a chefia do bando, cuja atuação no sertão nordestino
foi até 1938, quando Lampião foi morto numa emboscada com sua companheira
Maria Bonita e outros cangaceiros do bando. Dois anos depois morreria Corisco,
que havia pertencido a seu bando, mas então liderava um outro, independente. O
cangaço, movimento social (ou forma de banditismo, conforme o ponto de vista
adotado) que colocou o Nordeste em evidência para o restante do Brasil e se tornou
temática de relevância nacional, tem sido desde então constante objeto de pesquisas.
Ver Queiroz (1997), Chandler (1980), Barros (2000) e Mello (2004).
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13 de junho de 1927
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pedi ontem para o meu resgate não chegaram até aqui e se vieram
o portador se desencontrou, assim peço por vida de Iolanda
para mandar o cobre por uma pessoa de confiança para salvar
a vida do pobre velho. Devo adiantar que todo o grupo me tem
tratado com muita deferência, mas eu bem avalio o risco que
estou correndo. Creia no meu respeito.
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12 Antiga povoação de Santa Luzia (sua padroeira até hoje), em 1870, é elevada à
condição de cidade, já então um empório comercial, entreposto, para uma vasta
região que incluía parte do sertão do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
Mossoró fica localizada no oeste do estado do Rio Grande do Norte, situada
entre o litoral semiárido (o litoral salineiro) e o sertão da Chapada do Apodi, que
é cortada pelo rio Apodi-Mossoró. Era no final daquela década de 70 do século
XIX, a cidade mais rica da região, lugar para onde os flagelados da seca de 1877
correram a buscar trabalho, oferecendo às salinas, às obras públicas e aos demais
setores sua mão de obra barata, o que teria impulsionado a economia local. A
Mossoró contemporânea acrescentou ao sal, riqueza emblemática da cidade, a
agroindústria (principalmente, o algodão, até sua crise nos anos 80 devido a uma
praga e à seca) e a pecuária, mais recentemente, a exploração de petróleo e gás,
com a instalação da Petrobrás, e as culturas de frutas tropicais como o melão
e o caju, possíveis graças às técnicas de irrigação que tornaram propícias para
esse plantio as terras da Chapada do Apodi. Desde os anos 20, todavia, a cidade
já tinha ares de cidade industrial, com suas salinas, suas mineradoras (gipsita:
gesso) e suas unidades agroindustriais que produziam matérias-primas para o
Centro-Sul do país, principalmente São Paulo. (FELIPE, 2001, p. 79-88, 170-171).
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13 Para que não caíssem nas mãos dos inimigos, prática costumeira dos cangaceiros
nessas circunstâncias.
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Dito isso, mergulhou num silêncio do qual não mais saiu. Aquelas
foram suas últimas palavras. E – fato curioso! – não havia ódio
nos gestos e nas palavras de Jararaca. Havia desprezo, isto sim,
muito desprezo; não ódio. Foi o que me garantiu o reporter Lauro
da Escóssia, do O Mossoroense, que entrevistou um dos carrascos
de Jararaca, conseguindo arrancar-lhe essa confissão preciosa.
E eu acredito nele. Porque eu sei que só os fracos sentem ódio.
E José Leite, o conhecido Jararaca, algumas vezes lugar-tenente
de Lampião, não era um fraco. Era daquela raça de homens rijos,
de resistência física e de fortaleza de ânimo inquebrantáveis,
decantada pelo repórter-sociólogo de Os Sertões, que afirmou ser
o sertanejo antes de tudo um forte. Jararaca sentia apenas desprezo
pelos soldados que o prenderam à custa de uma traição e agora
o escoltavam para a morte; sentia apenas desdém por aqueles
“macacos do governo”. Não os temia; por isso não sentia ódio.
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Não é difícil entender que se tal foi a visão dos fatos veicu-
lada por jornalistas prestigiados como Fenelon Almeida16, autor
da citação acima, e Lauro da Escóssia17 – este morador da cidade e
contemporâneo desses fatos –, não muito diferente terá sido a visão
de seus leitores (e ouvintes de rádio), construída a partir daí – e não
me refiro apenas às camadas populares. O discurso dos jornalistas
parece ter tido papel considerável na construção de sua biografia
e de seu culto póstumo, com sua linguagem tão rica em imagens e
representações caras à cultura local.
16 Que com o livro Jararaca: o Cangaceiro que Virou Santo ganhou o “Prêmio
Associação Cearense de Imprensa” em 1980, “concedido anualmente ao melhor
trabalho sobre tema social, econômico ou cultural publicado na imprensa do
Ceará” (conforme consta na folha de rosto do livro, editado pela Guararapes, de
Recife, em 1981).
17 Que hoje dá nome ao Museu Histórico (Lauro da Escóssia), situado na cidade de
Mossoró, popularmente conhecido como “Museu do Cangaço”.
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que iria registrar sua fala, algo similar a uma repórter ou jornalista,
como frequentemente me diziam, e, apenas neste caso, as pessoas
tendiam a ir comigo assim que eu me deslocava, mesmo que eu
pedisse licença para falar com outra pessoa.
Esse tipo de campo pode ser um pouco difícil, não ape-
nas pela sazonalidade, mas pela intensidade do ritual em si, pelo
caráter emotivo da participação de muitos dos presentes, pelas
próprias características de uma aglomeração que não apresenta
qualquer tipo de ordenamento, exceto as limitações impostas pelo
regulamento interno do cemitério. Muitos podiam falar ao mesmo
tempo, tornando difícil o registro e trazendo o risco de perda de
um bom interlocutor que viesse a se cansar ou a se aborrecer com
a discussão. Nem sempre eu estava certa de qual escolha fazer e
qual, dentre tantos fluxos de conversas simultâneas, seguir. Ou
como sair das saias justas quando, numa discussão, todos queriam
ter razão e demandavam minha opinião. João Baracho era muito
pobre, trabalhava como pedreiro e feirante e mal ganhava pra comer
ou João Baracho teria chegado a prosperar e teria se tornado em
pouco tempo, após chegar a Natal, imigrando do interior, dono
de uma mercearia onde venderia bens roubados? Jararaca teria
sido mesmo um facínora, um sádico que “atirava criança pro alto
e aparava com a ponta do facão” ou isso tudo seria exagero e ele
teria sido apenas mais um revoltado, porém honrado e protetor dos
mais humildes? Dentre os assuntos mais apaixonantes estavam os
detalhes dos acontecimentos que teriam precedido sua morte, que
as pessoas se esmeravam em descrever, com riqueza imagética e
emoção. Mas sem consenso. As interrupções e falas simultâneas
se intensificavam e se tornavam, nesses momentos, ainda mais
comum, e alguns acabavam até se irritando com as versões mais
distantes da sua ou opiniões contrárias à sua compreensão dos
fatos. No caso das pessoas mais velhas, elas pareciam capazes de
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sua casa. Conta que teria comprado também um carro e que hoje,
sim, vivia bem. Havia pedido a Jararaca que a ajudasse a realizar
seu sonho de sair do aluguel e conseguir um teto.
Antes já havia recorrido a ele, para pedir cura para sua mãe,
que padecia de câncer de útero. Tendo sido atendida, vinha mais
uma vez cumprir sua obrigação: acender vela, colocar uma coroa de
flores no túmulo, pedir a Deus que o perdoasse e lhe desse a salvação
eterna e ainda rezar 37 Pai-Nossos e 37 Ave-Marias. Tratava-se,
na verdade, de um voto religioso por tempo indeterminado, pois
havia se comprometido a retornar anualmente, com essas mesmas
dádivas, e vinha cumprindo esse voto já há cinco anos seguidos.
Ao relatar seu sonho, Dona Terezinha se estendeu, contando
detalhes da aparência de Jararaca: homem bonito, moreno, altivo.
No sonho, sua arma – um revólver – torna-se um item do espetáculo
visual em que se constituem as imagens, pois ele lança, não balas
mortais, mas números iluminados, como num letreiro de luz, que
vão se enfileirando numa grande pedra. Cada tiro, um número
luminoso. Ela gesticula para mostrar como ele atirava os números
para ela. Durante todo o relato, especialmente quando chega ao
ápice, o prêmio da loteria, ela ri muito, gargalha até, olhando para
toda a audiência que lhe dá atenção, não somente para mim.
Terezinha de Jesus dos Santos da Silva tinha naquele
momento 46 anos, católica “não praticante”, morava em Assu,
cidade vizinha a Mossoró, e trabalhava como merendeira numa
escola, mas contou-me que no passado havia trabalhado também
como faxineira em casas e empresas. Estava acompanhada de seu
marido, Antônio da Silva, rodoviário (motorista de ônibus). Ele
me contou sobre duas promessas que fizera a Jararaca: a primeira
para curar uma dor no peito – e me disse isso passando a mão
espalmada no peito e fazendo uma careta de dor; e a segunda para
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tipo de oferenda – porém, ela me disse que nunca havia visto essas
oferendas no túmulo de Baracho, mas sim nos túmulos velhos e
em péssimo estado que se encontravam mais para a extremidade
lateral do cemitério.
Porém, Conceição repetiu para mim palavras quase idênticas
às da administradora para se referir especificamente a oferendas
deixadas no túmulo de Baracho. Quando eu lhe disse que nunca
havia visto essas tais bonecas espetadas ou degoladas no túmulo,
ela me respondeu rapidamente que somente de manhã bem cedo,
logo na abertura do cemitério, eu poderia vê-las, porque os bruxos
as deixariam lá durante a noite e eles, os zeladores, tinham ordens
de jogar tudo no lixo tão logo as encontrassem, naquele ou em
qualquer outro túmulo. Que ali não seria “lugar pra isso” e tinham
que manter a ordem e limpeza daquele espaço.19
Além das duas trabalhadoras, Ana e Conceição, no Bom
Pastor, em 1999, conheci Detinha (Odete de Souza), que se tornou
interlocutora frequente e contínua até 2003. Gostava muito de
rememorar sua juventude e afirmar, em alto e bom som, para
que todos os mais próximos na aglomeração formada em torno
do túmulo de Baracho, escutassem, que ela o havia conhecido
quando moça. Detinha tinha 58 anos, mas falava como se tivesse
muito mais quando se deixava embalar pela nostalgia. Começou a
trabalhar ainda na fase que hoje chamamos adolescência, como era
comum – e ainda é – nas classes populares. Na ocasião da morte de
Baracho, tinha 22 anos e fazia um bico – trabalho temporário – na
campanha “do pessoal do Aluízio Alves”.
Católica, separada, residente no bairro de Felipe Camarão,
em Natal, trabalhou durante muitos anos como diarista e depois
se tornou costureira (trabalhava em casa, o que ela achava bem
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seu marido nem à filha mais velha, que, aliás, mal falou comigo.
Soltou duas frases venenosas e saiu da sala pisando duro. Depois
desse incidente, Dona Eutália pediu que eu não fosse mais lá em
finais de semana, que telefonasse, caso quisesse saber mais alguma
coisa, e aí ela veria um horário em que o marido não estivesse,
normalmente no meio da semana, quando estaria no trabalho.
Além de Dona Eutália, quero destacar também, nessa apre-
sentação, Dona Maria José Melo, 59 anos, viúva, auxiliar de cozinha
em uma escola pública, que, ao se dar conta de que eu a observava
enquanto acendia algumas velas no queimador localizado na parte
posterior do túmulo de Baracho, antecipou-se à minha pergunta e
me disse “rezar pelos mortos é obrigação, não é, filha?”. Perguntei
se estava pagando promessa. Ela respondeu enfática: “não! Eu
não! Milagre, só com Jesus. Só Ele pode obrar milagre na nossa
vida. Baracho não, ele é comum”. Perguntei se ela tinha religião,
e ela respondeu “sou da Assembleia de Deus”. Contou que havia
entrado na Assembleia há sete anos.
Acho interessante notar a necessidade de se explicar, mesmo
quando não houve qualquer crítica ou questionamento pelo fato de
estarem participando de um rito de devoção ou homenagem a um
morto ao qual se creditam milagres. Isso manifesta a clareza que
essas pessoas têm quanto ao fato de adotarem um comportamento
pouco comum à categoria religiosa com a qual se identificam. E
ambas, Eutália e Maria José, utilizam argumentos semelhantes: o
costume, a tradição – funerária, no caso de Maria, e católica, no
caso de Eutália. Isto é, Maria situa o rito de orar e oferecer velas
ao morto dentre os costumes funerários e em nome deles ela se
sente à vontade para realizar tais ritos sem que lhe pareça entrar
em contradição com suas crenças. Eutália, por sua vez, deixa
claro que seus pais eram devotos de Padre Cícero e acreditavam
em fenômenos como santidade popular e milagres de santos. E
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21 Adotei essa alternância nos primeiros quatro anos da pesquisa de campo (1998-
2002, excetuando-se 2001, quando não fiz campo em Finados no Rio Grande
do Norte, pois me encontrava fora, em outro compromisso).
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22 José Ferreira, que ora se definia “zelador”, ora “auxiliar” no cemitério do Bom
Pastor. Depoimento de novembro de 1999.
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caso eu também pedi uma.” Fiz que sim com a cabeça, para mostrar
que lhe compreendia, outros reagiram mais ou menos do mesmo
jeito, e ela, então, complementou: “Venho todo Dia de Finados, só
que amanhã eu não vou poder vir, então eu vim hoje.” Perguntei se
era a primeira vez que fazia um pedido a Baracho. “Eu fiz, mas foi
em junho. E alcancei e hoje tô aqui pagando. Que eu disse que ia
pagar no Dia de Finados, mas só que amanhã não vou poder vir”.
Pergunto se pode contar o que pediu e ela se mostra reticente.
Diz apenas que foi para um parente desenganado pelos médicos.
Fecha-se e percebo que não devo insistir. Então, eu pego novamente o
fio da meada que ela mesma havia jogado e repito: “Então, a senhora
vem todos os anos, hein?” E ela prontamente retoma: “Desde que eu
soube dele e o finado Carlos Alexandre, quando eu venho é as três
cova que eu venho: a do meu pai lá, primeiro vou lá (aponta para
a lateral oposta do cemitério, talvez para o Bom Pastor II), depois
vou pra aqui e vou ali pro finado Carlos Alexandre.”23
O primeiro contato com a devoção a um santo do cemitério
frequentemente se dá desta forma: com a ida ao sepultamento de
alguém naquele local ou com a primeira visita a alguém recente-
mente falecido, em um Dia de Finados. Isto é, a menos que a pessoa
tenha tomado conhecimento da canonização popular por meio de
sua repercussão por alguma mídia, ela descobrirá tal canonização
quando tiver um motivo para ir até o cemitério. Até porque, como
discutiremos no próximo capítulo, os cemitérios foram empur-
rados para fora dos circuitos cotidianos no modo de vida urbano
moderno. Mesmo um que se localiza no centro da cidade, como
o São Sebastião, não se configura no cotidiano da cidade como
lugar de passeio ou passagem casual. As exceções são os cemitérios
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“De tudo existe, de tudo existe. Uma pessoa dessa que faz mal ao
próximo eu não sei o que espera da vida. Porque... vamos dizer,
uma comparação. Eu sou rico, se essa menina me pede dinheiro
emprestado, e eu não empresto. Eu não empresto, entendeu? Aí
vem um marginal e mata pra dar aos pobres, eu fico até calado.
Não é certo, né? Mas eu fico calado. Agora por malvadeza não,
por crueldade... aí não.”
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não se fez de rogado: “Ah, isso aí é porque ele fez muito benefício!
Como cidadão, tá entendendo? [faço que não com a cabeça]. Ele
carregava, vamos dizer, comida. Ele carregava e dava à pobreza.
Ele dava muita coisa à pobreza, aos pobres. Eu lembro!” Alguém
perguntou: “dava mesmo?” Algumas vozes responderam junto
com seu Dadá e seu Raimundo: “dava, dava sim”. Seu Raimundo
ainda tinha mais a dizer sobre esse tópico:
Por isso que pode ser que ele... Ele não dava demonstração a
ninguém que ele fazia isso, não dava demonstração a ninguém.
No dia que atiraram nele foi numa base de seis horas. Quando
ele foi preso na Casa de Detenção velha, que hoje em dia é ali
junto da maternidade, ali, aquilo ali foi uma oportunidade que
deram a ele pra matar ele. Não há cabimento um homem sair de
uma cela algemado. Ele estava com algema! Quando arrodeou
e entrou na casa de comadre (...), aí mataram ele, a polícia.
Dentro de casa, na casa de finado Cícero, um que era palhaço,
que morava assim de frente de onde ele morava.28
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“Só acendo porque... veja bem, ele não era crente, né? Não
conhecia a Palavra. Se ele tivesse conhecido a Palavra de Deus, não
tinha acontecido isso com ele. Se ele conhecesse a Palavra de Deus.”
Pausa. Espero. Ela continua:
“Eu acendo vela aqui, acolá, em todo canto. Isso aqui é uma
obrigação. Então, eu venho, eu oro. Não rezo, eu oro. E deixo nas
mãos do Senhor, que Ele é quem sabe. É a vontade Dele, não a
minha. O poder de Deus é milagroso.”
Depois disso, ela segura no meu braço e diz que precisa ir.
Observo que há mais adultos jovens do que em qualquer
outra ocasião em que eu tenha vindo observar os ritos. Em geral,
eu já sabia que eles são mais apressados e pouco dispostos a parar
para um dedinho de prosa. Três homens na casa dos vinte anos
de idade se encontravam acocorados ali acendendo velas no chão,
próximo ao túmulo. Esperei que se levantasse um deles e pedi
para conversar um pouco, bloco e caneta nas mãos. Ele logo me
pergunta se estou fazendo reportagem, digo que não. É só uma
pesquisa para a universidade. Ele sorri, simpático. Então, pergunto
se era a primeira vez que vinha acender velas para Jararaca. Ele
faz que não com a cabeça:
“Todo ano tem que vir, né? É tradição, todo ano tem esse
túmulo aí e nós vem. Finado Jararaca, foi morto pela polícia.
Assassinado, a senhora sabe? Então. Aí a tradição é vir todo ano
e a gente gosta, e aí vem.”
“Você já fez alguma promessa?”
“Promessa mesmo não, que assim.. eu nem acredito nesse
negócio de santo, não, sabe? Eu venho mais pra contribuir mesmo,
porque é um dever que nós tem de acender velas pros mortos nesse
dia. É isso.”
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tratamento mais eficaz. Observo que seu Sebastião parecia ter boas
condições de vida, inclusive mencionou que tinha plano de saúde
privado, que havia consultado mais de um médico. No entanto,
atribui o sucesso no tratamento a uma intervenção milagrosa. Um
caso como esse é interessante para mostrar que o recurso ao milagre
não é exclusivo dos despossuídos e desassistidos, que não tenham
acesso a tratamento médico, exames e medicamentos. Hoje seu
Sebastião enxerga perfeitamente bem e, como Dona Maria José,
continua vindo todos os anos para agradecer a graça recebida.
Terezinha, 45 anos, não quis entrar em detalhes, mas me
disse, muito alegre, que estava ali para pagar uma promessa, a
primeira que havia feito “com ele”. Antes que eu perguntasse, ela
se adiantou e me disse: “pedi um companheiro. Queria arrumar
alguém, sair da solidão. Que não é fácil. Meus filhos tudo criado,
que eu casei cedo, cedo. Depois o homem foi embora e fiquei com
os meninos, que agora já são tudo homem feito. Eu não queria
morrer sozinha, Deus me livre. Então, eu pedi assim, que ele me
mandasse um homem bom, um companheiro. E consegui. Já tamo
vivendo junto e tudo. Vim agradecer. Acendi um maço inteiro de
vela, trouxe uma coroa. É milagroso mesmo!” Rindo muito, ela
se despede e segue. Não estava com o companheiro. Será que ele
sabe que ela fez promessa? Talvez não.
Também nesse dia escutei o inevitável “atirava a criança pro
alto e aparava na ponta do facão”, entre muitos risos. As pessoas
sentem prazer em exagerar essas histórias, em provocar efeitos
de surpresa ou choque em quem as está escutando pela primeira
vez. Além disso, outra quase invariante aconteceu pelo menos
duas vezes naquela tarde: a manifestação hostil por parte de evan-
gélicos. Registrei este comentário: “Vocês, ao invés de fazer uma
promessa pra um Deus vivo... Deus tá vendo isso.” Uma mulher
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29 Observe que ela se equivocou por pouco quanto à data: Baracho morreu em 1962.
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para acender velas de uma caixa que trazia nas mãos e colocá-las na
cavidade que existe para isso na traseira do túmulo (um queimador
de velas). Essa cavidade tem por objetivo impedir que as chamas das
velas sejam apagadas pelo vento ou chuva. Quando ela se levanta,
percebo que está acompanhada de outra jovem semelhante a ela,
que ficou um pouco afastada, junto a alameda central que leva ao
portão, mas agora caminha ao seu encontro. Tenho a impressão
de que ela quer sair logo dali, já fez o que tinha que fazer. Com
meu bloco de notas em mãos e uma caneta, acelero o passo para
conseguir alcançá-la. Pergunto, de supetão, se seria a primeira vez
que vem visitar Baracho. Para que não se assuste e entenda que
meu interesse é profissional, seguro ostensivamente meu bloco
aberto e a caneta como quem está pronta para anotar a resposta
que ela me dará. Vejo que funciona. Ela para, sorri educadamente,
e me diz com muita polidez e deliberação:
“Todo ano eu venho sim, trago água pra ele. E tudo que eu
quero eu consigo com ele.”
Mostro minha surpresa: “Todo ano? Desde quando você
começou a vir?”
Ela: “Vixe! Eu tinha dez anos quando eu comecei a fazer
coisa pra ele.”
“Como assim, fazer coisa?”
“Ah, eu... vamos dizer que eu acendo vela, trago essa água.
Assim... Foi coisa de assunto meu mesmo, mas com quatro dias eu
consegui. De quatro dias. Então, todo ano eu venho deixar água
pra ele. E vela.”
“Posso perguntar que tipo de assunto que faz você pedir
ajuda a ele?”
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“Eu fiz promessa pra limpar, tá certo, pra limpar, trazer uma
garrafa d’água pra ele e plantar umas plantinha. Naquele tempo não
era assim não”. Aponta para o túmulo, naquele momento pintado
de azul e ladeado por um canteirinho de ervas, algumas floridas.”
“Isso foi em que ano?”
“81.”
“Ainda é a mesma casa, é aquela a que eu fui?”
“A mesma!”
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“Foi, não foi? Eu acho assim, menina, que a pessoa pode ser
perverso, pode ser ruim como for, mas se na hora pedir a Jesus, e
se arrependeu daquele mal todinho que fez, eu acho que Jesus dá o
perdão. Eu acho! Maria Madalena não foi uma prostituta? E ele não
deu o perdão só porque ela passou e enxugou o... lavou os pés de
Nosso Senhor com as lágrimas e enxugou com os cabelos? Não é não?”
“Não sei... será? Tem muita gente que diz aqui mesmo que
ele era criminoso, então não pode estar ajudando ninguém agora,
que isso de milagre...”
“Isso aí é umas pessoas que não entende de nada! Não
entende de nada. Quando a pessoa vai ser crente, aí não acredita
mais em nada. Nada do catolicismo, entende? Sendo crente mesmo,
de verdade, não acredita não.”
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“Se ele morreu em Cristo Jesus, foi perdoado. Você não sabe
se foi ou não. Ele pode ter se arrependido.”
O rapaz o encara:
“Eu não acredito! Não acredito mesmo! Eu acredito é no
que tem na Bíblia. Deus existe, Cristo existe. Agora essa história
de Maria, José, esses outros santos que inventou aí... (faz que não
com a cabeça) Eu não acredito! Santo de barro não pode se mover!”
A voz grave do homem soa como um trovão enfurecido:
“Santo de barro!”
Um silêncio tenso e ele retoma a palavra:
“Qual a sua igreja?”
“Sou da Assembleia, mas antes fui um tempo da Igreja do
Nazareno.”
“É seita, rapaz! É seita! Mas que igreja o quê! Igreja, Jesus
só deixou uma, certo? Qual é a igreja que vai fazer dois mil anos?
A igreja católica, certo? Certo? Certo? Entendeu?” A cada “certo”
o volume de sua voz subia. Ele continua:
“Qual foi o santo que ressuscitou no terceiro dia?”
“Jesus Cristo!”
“Então, pronto!”
“Só!”
“E então? Então, fora a igreja católica, quantas seitas têm
no mundo, me diga?”
“Várias!”
“47! Não é isso. 47 seitas, mas igreja só tem uma!”
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A morte poluente,
os mortos abjetos
Mas, como então os mortos tornaram-se novamente tabu e
objeto de repulsa por parte dos vivos? Como vimos, o processo de
afastamento já se teria iniciado no final do século XVII. Não vamos
aqui apresentar em detalhe a crônica dessa transformação de longa
duração, que pode ser estudada nas inúmeras obras sobre cultos
funerários referenciadas neste trabalho, e muitas mais, no campo
da História, da Antropologia, da Arqueologia. Iremos direto ao
século XIX, quando nascentes debates higienistas (RODRIGUES,
1997, p. 59, 66), resultado de um saber médico cada vez mais valo-
rizado e difundido no Brasil, trouxeram a noção de insalubridade
causada pela proximidade dos mortos. A partir daí, ela passaria a
ser vista com suspeição, como fonte potencial de doenças. Ou seja,
os mortos passaram a ser, ambiguamente, intercessores entre Céu e
Terra que poderiam tornar-se, eles próprios, causa de morte. Toda
uma sensibilidade nova teria surgido, então, acerca do cheiro dos
corpos sepultados nas igrejas, cheiro que passaria a representar a
própria morte e passaria a provocar, nos vivos, aversão e medo. A
morte tornara-se rapidamente nefasta, e o morto, tabu. Era preciso,
pois, afastar esse perigo, que nada tinha de sobrenatural. A alma
do morto, no Céu, por pura e santa que fosse não seria capaz de
purificar seu corpo putrefato na terra (e na Terra), percebido então
como agente de contaminação (RODRIGUES, 1997, p. 68, 74ss). A
partir daí, passaria a ser comum a atitude de evitação em relação
aos mortos e aos espaços físicos ocupados por eles, sobretudo nas
camadas mais educadas e medicalizadas, porém logo não apenas
nelas, já que tais noções teriam se difundido rapidamente por todas
as camadas sociais, com todas as possíveis distorções e exageros
decorrentes disso.
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32 A ideia de boa morte aparece frequentemente nos estudos sobre costumes fune-
rários (REIS, 1991; ARIÈS, 2003 [1975]), referindo-se a concepções acerca do que
representaria, em cada contexto histórico-social, morrer do modo apropriado,
honroso ou desejado. Seria morrer sozinho ou junto aos seus familiares mais
próximos, dentro de casa, com privacidade, ou apresentar-se moribundo sob os
olhos dos visitantes de sua comunidade, de tal forma que sua morte se tornaria um
acontecimento gradual e compartilhado com eles? Seria morrer tranquilamente,
na própria cama, ou morrer uma morte heroica no campo de batalha, como a do
guerreiro descrito na Ilíada, de Homero, sobre o qual escreve Jean Pierre Vernant
(1978), em seu belíssimo “A bela morte e o cadáver ultrajado”? Morte trágica que,
em troca da abreviação da vida, oferece ao guerreiro a gloria póstuma como herói.
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35 Tania Maria Coelho Araújo foi assassinada em 1960, quando tinha quatro anos
de idade. Tânia foi alvejada com um tiro na cabeça e teve seu corpo incendiado
em um terreno atrás de um matadouro na Penha, subúrbio do Rio de Janeiro.
Nesse local, logo se estabeleceu um pequeno santuário onde os visitantes oravam
pela alma da menina e pediam-lhe graças. Versões da história desse crime
circularam em jornais, revistas e programas de rádio populares na época. Em
2003, a Rede Globo apresentou uma edição especial do programa policial Linha
Direta sobre ele. O site da OAB-RJ, Ordem dos Advogados do Brasil, contém
um resumo dos acontecimentos desse caso: http://www.oab-rj.com.br/content.
asp?cc=90&id=606. Há também uma matéria da revista O Cruzeiro de 30 de
julho de 1960, no site Memória Viva: http://www.memoriaviva.digi.com.br/
ocruzeiro/30071960/300760_1.htm.
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39 Ver as matérias policiais sobre João Baracho listadas nas Referências Bibliográficas.
Muitas delas estão disponíveis online.
40 “No dia 1º de maio de 1962, sugestivamente a data comemorativa do ‘dia do
trabalho’, os jornais cariocas noticiavam a morte do assaltante Mineirinho,
apelido pelo qual era conhecido o fugitivo José Miranda Rosa. Há dias procurado
por mais de trezentos policiais, Mineirinho havia escapado do Manicômio
Judiciário e jurado nunca mais voltar ao cárcere para cumprir sua pena de 104
anos. Acuado pela polícia, acabou crivado de balas e seu corpo foi encontrado
à margem da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro”. (ROSENBAUM,
2010, p. 170). Observem que Mineirinho e Baracho foram mortos no mesmo
dia, de modo bastante similar.
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As pessoas, as palavras e as coisas rituais:
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pessoais, por outro lado, a noção de privado aqui não significa que
esses ritos sejam, em si mesmos, de natureza individual.
A prece pode ocorrer como conversa íntima e silenciosa, ou
em voz alta, do mesmo modo, como conversa, ou, alternativamente,
como uma recitação ritmada ou um canto, que pode ou não veicular
pedidos e promessas, podendo ser mais pessoal e informal ou mais
cerimonial e solene. Em ambos os casos, e não apenas no segundo,
ela guarda uma dimensão performativa, pois que situacional e inter-
subjetiva, uma vez que, mesmo quando parecemos estar sozinhos,
continuamos povoados por todos os nossos outros significativos, e
tanto nossas palavras como nossas posturas corporais refletem isso.
Ela própria consiste numa oferenda, a prece consiste não somente
nas palavras, esses bens simbólicos (LÉVI-STRAUSS, 1949), mas
naquilo que elas, no seu aspecto comunicativo, transmitem como
mensagem, bem como nas emoções que, a princípio, tendem a
escapar a elas como dimensão indizível.
Outra característica da prece é que, não necessitando, em
si mesma, de suporte material ou mediação sacerdotal para sua
realização, poderia, teoricamente, como o culto às imagens, tornar
o devoto independente da necessidade da peregrinação até o túmulo
do santo.41 Se, por um motivo ou outro, não pudesse ir lá, e não
41 E, portanto, pode contribuir para a difusão do culto ao santo e para sua desvincu-
lação do local sagrado, assim como o culto às imagens (VAUCHEZ, 1995 [1994]).
Essa desvinculação pode tornar parcialmente desnecessária a peregrinação e,
historicamente, teria se constituído, segundo Vauchez, em um dos fatores causais
para o desaparecimento do culto às relíquias e aos mártires nos cemitérios, dando
lugar a um culto mais impessoal e universalista, baseado em representações
imagéticas dos santos. As imagens podiam ser cultuadas em casa, em altares
domésticos, e santuários diversos. Recortadas de jornais ou qualquer outro
suporte, imagens fotográficas de Jararaca e de Baracho podem ser depositadas
sobre seus túmulos durante a prestação dos ritos de devoção, como fazem também
com fotografias de parentes doentes para quem estejam pedindo ajuda, para
serem depois levadas para casa, sacralizadas, para reforço de um pequeno altar
doméstico ou, mais comumente, para ser colocada em contato com o corpo doente
que necessite de cura, assim como se faz com a água benta.
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houvesse promessa envolvida que exigisse sua ida, poderia rezar para
Baracho ou Jararaca em casa mesmo, ou em uma igreja ou cruzeiro
mais próximo de sua localização. Preces, velas e representações
imagéticas do santo (do cemitério ou da igreja católica) podem
compor altares domésticos, embora nos casos em estudo aqui esses
altares nunca tenham sido mencionados como alternativa para
substituir definitivamente a ida ao túmulo, mas sim como prática
complementar, secundária e rara, encontrada durante meu campo
somente entre devotos mais antigos, comprometidos com um voto
religioso ao santo, e na faixa etária mais velha (idosos). O que é
comum é que muitos levem objetos devocionais para casa para uso
pontual, não para compor altar.
Pelo menos em parte, isso talvez se deva à generalizada
crença entre os devotos de que não se deve acender velas para os
mortos dentro de casa, e isso não deixa de assinalar mais uma vez
a ambiguidade desses santos dos cemitérios. Santos, talvez, mas
ainda mortos, pensados a partir de duas gramáticas devocionais
distintas, que ora se reforçam, ora podem se repelir. Todavia, a
importância do deslocamento até o cemitério, nesse tipo de cano-
nização, é a razão principal. Não apenas pela contiguidade com o
túmulo e suas oferendas, fatores importantes nas concepções sobre
sua eficácia, mas também pela copresença dos demais devotos e
pelo próprio deslocamento e seu valor como dádiva devocional,
pelo custo que pode acarretar para o devoto. Na religiosidade
cristã, a aceitação humilde do sofrimento e automartírio – dos
esforços e ônus, quaisquer que sejam – recebe conotação positiva,
edificante e purificadora, como forma de dirimir os pecados e
mostrar arrependimento. Isto é, tem valor penitencial. Essa noção
é, inclusive, central também na compreensão da conversão do
cangaceiro ou matador de motoristas em santo, embora, também
aqui, por vias tortas e ambíguas, uma vez que o sofrimento sofrido
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por eles não foi, de forma alguma, por sua escolha ou por motivo
de arrependimento. Pelo contrário, na leitura mais frequentemente
realizada por seus devotos, o arrependimento teria decorrido,
como consequência, do martírio a eles imposto por seus algozes.
E, com o arrependimento, a purificação e o perdão.
Nenhum dos cultos nos cemitérios conta com oficiantes ou
mediadores formais, por exemplo, para proceder a um rito de puxar
as orações ou definir qualquer formalização de procedimentos
rituais que pudessem ser impostos aos seus frequentadores como
rotina a ser cumprida na prestação ritual. Alguém que, como ocorre
em outros cultos similares,42 assumisse a função de organizador
ou mentor para os visitantes e potenciais devotos, que fosse capaz
de se encarregar da apresentação de uma biografia mínima e
padronizada do morto aos recém-chegados, ordenasse de algum
modo suas demandas e respondesse a suas questões. Ou, ainda, para
responder pelos devotos ou pelas devoções perante a administração
do cemitério. Isso acaba ficando a cargo de qualquer dos devotos
presentes no local que se mostre familiarizado com a devoção,
motivado e assertivo, não raramente pessoas mais velhas moradoras
do local onde se localiza o cemitério, que convivem, por escolha
ou não, com a existência daquele culto ali há bastante tempo.
Rezar (ou orar) para Baracho ou Jararaca (ou qualquer
outro santo, do cemitério ou não) pode ser o meio para pedir sua
intercessão para alcançar alguma graça; rezar (ou orar) por (no
sentido de “em intenção de”) Baracho ou Jararaca já teria outro
significado: consistiria em pedir por ele, no sentido de beneficiá-lo
postumamente, como se faz tradicionalmente pelos mortos, e não de
42 Elementos que estão presentes nos cultos aos santos crianças Antoninho da
Rocha Marmo e Odetinha, em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente,
nos quais as famílias dos defuntos têm um papel essencial como mediadoras
na relação com seus devotos. (SCHNEIDER, 2001; FRADE, 1987).
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buscar benefícios para si. Não pretendo aqui acentuar essa diferença,
mas no contexto dos cultos aos santos dos cemitérios ela pode ser
relevante para esclarecer, por exemplo, a presença dos protestantes
que participam dele e de todos os demais frequentadores que se
dispõem a rezar pelo morto, mas fazem questão de esclarecer que
não são seus devotos nem compartilham da fé em seus milagres.
Ou seja, não rezam para ele (para pedir sua intercessão ou fazer
promessa), mas por ele (por sua salvação). Nestes casos, a prestação
ritual é explicada como parte das tradições funerárias. Como vimos,
elas englobam homenagens e cuidados extensivos a pessoas públicas,
embora sejam tipicamente voltadas para as pessoas significativas
mais próximas, como os parentes.
Dentre os protestantes que encontrei rezando por Baracho,
está Dona Maria, 59 anos, viúva, auxiliar de cozinha numa escola
pública, adepta da Assembleia de Deus há sete anos. Muito falante
e simpática, ela acendia velas no túmulo de Baracho numa tarde
de Finados (1999), quando percebeu que eu a observava. Então,
dirigiu-se a mim por sua própria iniciativa, dizendo que não era
promessa, era só porque é obrigação acender velas para os mortos.
“Milagres só de Jesus”, me disse em voz alta, bastante expressiva,
já não se dirigindo só a mim, mas aos que se encontravam em
torno de nós. Isso não a impedia de participar ativamente das
conversas em torno do túmulo de Baracho sobre pessoas de suas
relações que o teriam conhecido pessoalmente e até testemunhado
os acontecimentos precedentes à sua morte.
Esse tipo de conhecimento representa, no contexto dos ritos,
um capital de alto valor simbólico capaz de atrair ouvintes e inter-
locutores curiosos e interessados, inclusive eu mesma, tornando a
narradora o centro das atenções. Assim, na medida em que classifico
aqui esse tipo de narração como parte do ritual devocional, posso
afirmar que há participação protestante nas devoções, ainda que
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Promessas e oferendas
Tanto Baracho como Jararaca recebem, por parte de seus
devotos, no plano do relacionamento direto estabelecido com eles,
tratamento similar ao de qualquer santo católico, como São José
ou Santa Rita, e parte de sua eficiência simbólica, bem como da
manutenção de seu culto, decorre de sua reputação como morto
capaz de “fazer milagres” (“milagreiro”, “milagroso”), alimentada
fundamentalmente pelos testemunhos dos milagres alcançados.
Estes passam da boca para o ouvido, e daí novamente para a boca,
ou seja, por meio de um encadeamento não linear formado por
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evidencia que esse tipo de ligação com um santo pode ser percebido
como assunto familiar (MENEZES, 2009, p. 125), ultrapassando
necessidades ou escolhas individuais. Késia, 32 anos, me contou
que havia decidido fazer um voto para Baracho porque havia
escutado muitas histórias de milagre, ali no cemitério, que a haviam
impressionado tanto quanto a aglomeração de devotos e a grande
quantidade de oferendas sobre seu túmulo. Ali estava, como fazia
todos os anos, para visitar seu falecido pai. Observei-a rezando,
agachada, e depositando suas velas no chão, ao lado do túmulo,
enquanto apoiava nele sua mão direita. Não quis me contar o que
pediu a Baracho na ocasião, já que me disse que havia, desta vez,
pedido algo, mas afirmou que continuaria a sustentar esse voto
por toda a sua vida, atendida ou não, e desejava que sua filha, no
futuro, após sua morte, o tomasse para si. Ou seja, ela já projetava
a continuidade desse compromisso no futuro.
Outro fator que desmarca o caráter individual dos ritos de
devoção, evidenciando o tecido social que o sustentaria, é o fato
de que uma pessoa pode fazer promessa ou voto em benefício de
outra – que talvez nem acredite ou saiba sobre o culto, isto é, o
beneficiário da graça nem sempre tem qualquer relação com o santo.
O oposto também é possível: uma crente da Assembleia de Deus,
que negou enfaticamente que Baracho pudesse realizar milagres,
pôde ser encontrada lhe oferecendo velas e orando em seu túmulo,
em um Dia de Finados, em agradecimento pela cura alcançada por
sua irmã, que sofria de câncer nos ovários. Calmamente, ela me
contou que a irmã, Regina, que é católica, havia feito a promessa
para Baracho, mas não se encontraria naquele momento ainda em
condições de sair do hospital. Por isso, pedira que ela, Maria, fosse
até lá, no Dia de Finados, para pagar sua promessa. Apesar de haver
concordado e atendido a sua irmã, após cumprido o ritual, ela fez
questão de frisar para mim que o milagre teria sido “de Jesus”,
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43 Para comparações com outros casos no Rio Grande do Norte, ver Silva (2010),
e com casos de outros locais, ver, por exemplo, dentre tantos outros trabalhos,
Frade (1987, 1984), Sáez (1996), Schneider (2001).
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45 Local assinalado com uma cruz destinado à oferta de velas, mas que também pode
receber ex-votos e outras oferendas menos comuns. Esses lugares costumam receber
um maior número de oferendas às segundas-feiras, “dia das almas”. Junto às velas
e a algumas placas de agradecimento, pode-se encontrar com frequência uma
oração, muito conhecida, chamada Oração das 13 Almas Benditas: “Oh! minhas
13 almas benditas, sabidas e entendidas a vós peço pelo amor de Deus, atendei
o meu pedido. Minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas a vós peço pelo
sangue que Jesus derramou, atendei o meu pedido. Pelas gotas de suor que Jesus
derramou do seu sagrado corpo, atendei o meu pedido. Meu Senhor Jesus Cristo,
que a vossa proteção me cubra, vossos braços me guardem no vosso coração e me
proteja com os vossos olhos. Oh! Deus de bondade vós sois meu advogado na vida
e na morte, peço-vos, pois, que atendei os meus pedidos e me livrai dos males e
dá-me sorte na vida. Segui meus inimigos que olhos do mal não me vejam, cortai
as forças dos meus inimigos. Minhas 13 almas benditas, sabidas e entendidas se
me fizerem alcançar essa graça, ficarei devoto de vós e mandarei imprimir um
cento desta oração mandando também rezar uma missa.” Rezam-se 13 Pai-Nossos
e 13 Ave-Marias 13 dias. Sobre o culto às almas, ver Medeiros (1995).
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Trabalhadores do cemitério
Figura 11 – Bom Pastor, Dia de Finados, 2019
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pula o muro gente que quer fazer o que não presta”. Quando pedi
que explicasse o que não presta, ela foi da bruxaria ao adultério e
consumo de maconha.
Por meio dessas conversas com eles, pude confirmar que,
também ali, a segunda-feira é o dia mais procurado para a ofe-
renda de velas (MEDEIROS, 1995), o que normalmente se faz nos
cruzeiros do cemitério. Nesse dia da semana não apenas eles – e
as igrejas católicas – recebem um número maior de velas, como
também as sepulturas acabam recebendo mais visitas por parte
das pessoas que se dirigiram ao local para acender velas para as
Almas. As velas também podem ser acendidas no queimador
do túmulo, geralmente uma cavidade ou pequena área coberta
situada atrás dele ou em sua parte superior, fechada de tal modo
que ali a vela possa queimar sem ser apagada pelo vento. Uma das
coisas que talvez concorra para a procura do cemitério nesse dia
da semana, para tal finalidade, é a crença generalizada de que não
se deve acender velas para os mortos dentro de casa, pois poderia
acarretar algum mal para seus moradores. Recomenda-se, então,
que esse procedimento seja realizado apenas a céu aberto ou sob
a proteção dos espaços sagrados destinados a isso.
Alguns zeladores se mostraram bastante antipáticos aos cul-
tos a Baracho e a Jararaca, em ambos os cemitérios, mas bem mais
no Bom Pastor, onde cheguei a encontrar hostilidade em relação
ao primeiro. No São Sebastião, a cooperação da parte deles foi, em
geral, menor, e sua colaboração na pesquisa, pouca – a ponto de eu
cogitar, em algum momento, que teria havido orientação adminis-
trativa no sentido de que me evitassem, embora jamais tenha sido
ostensivamente hostilizada. Talvez apenas estivessem saturados
do interesse por Jararaca, já que se trata de caso famoso, atração
turística. Já no Bom Pastor, eles próprios me interpelavam o tempo
todo, puxando conversas, dando depoimentos sobre situações
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C onflitos em torno do
túmulo e além
O fato de não haver no culto a esses santos dos cemitérios
uma normatização, escrita ou oral, explícita e unificada, imposta
por mediadores que pudessem falar em nome dele, e da defesa
de sua manutenção, ou pudessem organizá-lo, acaba por ensejar
ampla margem para conflitos entre versões discordantes acerca
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51 Para compreender bem esse ponto é preciso ter clara a dimensão mágica e humo-
rística presente em parte das narrativas orais e cordéis que tematizam o cangaço.
Embora criminalizados, os cangaceiros encarnam personagens moralmente
ambíguas, romantizadas, tornadas atraentes na medida em que transgridem
normas estabelecidas e enganam as forças repressivas, impondo-se, nessa pers-
pectiva, às classes dominantes de sua época. Podem, ainda, ser retratados como
verdadeiras forças sobre-humanas, capazes de vitórias sobre forças da natureza,
como animais ferozes, a fome, a seca, e até sobre forças sobrenaturais. Algumas
histórias mostram Lampião trapaceando o próprio Diabo ou se igualando a ele
em esperteza e maldade. Sobre cordéis, ver Curran (2001, p. 60-76).
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52 Jandira, a prostituta que ateou fogo ao próprio corpo, é por muitos assimilada a
Pombajira, entidade da umbanda, em São Paulo. No entanto, os que condenam
seu culto por esse motivo não duvidam que ela, ou qualquer dos outros ‘santos’
do cemitério da Consolação, em Campinas, São Paulo, possa obrar milagres
(SÁEZ, 1996). A questão é se esses milagres seriam da santa Jandira ou da
Pombajira Jandira.
53 O mesmo que protestantes afirmam sobre os milagres alcançados nos cultos
mediúnicos, em geral: sua fonte seria demoníaca. Por isso, os milagres em si,
argumentam, não provam nada. Ver Mariz e Machado (1994, p. 31).
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que não. O narrador terá sido antes o palco das ocorrências sobre
as quais não exerceu, do seu ponto de vista, qualquer controle;
foi o santo, ou Jesus, ou Deus, que agiu nele e alterou seu estado
físico, mental e/ou moral. Assim, o testemunho do milagre é ainda
um testemunho no sentido estrito do termo, tal como se define
no campo dos estudos sobre gêneros e tipos textuais: tal como o
depoimento, é um relato que descreve fatos reais, mas, ao contrário
do depoimento, nesses fatos reais o narrador não é o protagonista
dos eventos narrados. Ele é apenas sua testemunha.
O testemunho pode ser percebido, quanto à sua finalidade,
como meio de construção e compartilhamento de conhecimentos,
mas também como elaboração reflexiva dos próprios conheci-
mentos sobre os acontecimentos e pessoas observados a partir,
e somente a partir, das posições particulares que se ocupa em
determinadas situações, e dos lugares singulares criados por essas
situações. Por isso eu trouxe a noção de região moral formulada
por Robert Park. Quando a quartinha de água benta de Baracho
é transmutada em feitiço, torna-se evidente que não é a mesma
quartinha ou o mesmo rito, que muitas das pessoas ali não se (re)
conhecem como semelhantes entre si, e sequer estão pisando no
mesmo chão. O cemitério dos devotos (coletivo que também, em
si, comporta heterogeneidade) não é o mesmo dos parentes dos
mortos ou dos seus zeladores ou moradores da vizinhança do
cemitério, que convivem com conversas e histórias sobre aqueles
(e outros) mortos, e seus ritos, há muitos anos. Isso explica ao
menos parcialmente os conflitos.
Outro aspecto relevante para entendê-los é justamente levar-
mos em conta o efeito estigmatizante da associação das pessoas ou
dos eventos a certas regiões morais caracterizadas como perigosas,
decadentes ou marginais, definições sempre relacionais: vimos
como o próprio espaço dos cemitérios, principalmente no Bom
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55 Aqui vai, evidentemente, uma referência a famosa obra de John L. Scotson e Norbert
Elias, Os Estabelecidos e os Outsiders, na qual o autor analisa as relações sociais
desiguais em uma área residencial segmentada numa pequena cidade inglesa dos
anos 1950. Nesse estudo, Elias deslinda a operação de processos estigmatizantes
sobre o segmento em maior desvantagem socioeconômica, que irá habitar a
porção menos favorecida da área, e o modo como o estigma que os condena a
tal área “ruim” é retroalimentado por justamente morar ali. Esse mútuo reforço
é replicado, ainda, em outros planos, como a vida escolar dos adolescentes, seus
gostos e estilo de vida, e as chances de progressão nos empregos locais.
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57 Pois ser tentado pelo Diabo era um teste que punha à prova a solidez da fé do
religioso. A visita do Diabo, em vigília ou sonho, trazia visões enganosas cujo
objetivo seria seduzir o religioso e afastá-lo de Deus.
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58 É preciso ter em mente que, naquela época, não havia sido formulada a ideia de
ordem natural ou Natureza, pilar central da ciência moderna. Não havia fenômenos
inexplicáveis apenas até que se descobrisse as relações de causalidade capazes de
explicá-lo; não havia, sob o caos aparente dos fenômenos observáveis, uma ordem
natural segundo a qual os elementos estariam relacionados entre si de tal forma
que bastaria descobrirmos como se daria tal ou tal relação para que chegássemos
a hipóteses, explicações e previsões sobre eles. Quando a igreja moderna instaura
um processo para verificar as alegações de que teria havido um milagre, ela
primeiro descarta todas as possíveis explicações científicas para o fenômeno,
inclusive as de ordem psicológica, por meio de um rigoroso e demorado processo
jurídico investigativo (SCHNEIDER, 2001). Isso porque ela opera no mundo
contemporâneo com as mesmas noções modernas que preveem ordem racional na
Natureza, da qual também somos parte (ainda que haja controvérsias sobre como
somos parte e o que isso possa significar, já que teríamos sido feitos à imagem
e semelhança de Deus) (THOMAS, 2010). Assim, somente após descartada a
possibilidade de fraudes, o processo de canonização pode ser levado a efeito, através
de demoradas etapas, cada uma das quais comportando novas investigações. Na
Idade Média, a Natureza, como a concebemos na modernidade, não havia ainda
sido inventada, nenhuma causalidade importava ou poderia importar mais do
que a vontade divina. Assim, as visões e aparições tinham que ser interpretadas
como irrupção do divino ou do demoníaco no mundo humano, naquele tempo
impensável fora desse englobamento pelo transcendente.
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61 Mais uma vez, vale acentuar que não me refiro à precedência cronológica, posto
que seria impossível determiná-la. Quando me refiro a tais relatos de milagres
como ‘primeiros’, o que quero dizer é que eles se mostram particularmente densos
e, por isso, capazes de operar performativamente como relatos fundadores. Seus
efeitos vão muito além do seu conteúdo manifesto.
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Capítulo 7
Maravilhas e proezas: contos, causos, lendas
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Era uma vez um casal muito, muito pobre. Dela, sabemos que
se chamava Joana, mas o povo a chamava mesmo Dona Joaninha.
Dele, nem o nome sabemos até hoje. Viviam em um casebre na
parte mais feia e distante de uma cidade grande e próspera chamada
Mossoró. Os dois trabalhavam duro, de sol a sol, mas ganhavam bem
pouquinho, mal chegava para se sustentarem. O casal passava muita
necessidade, como se dizia em Mossoró naquele tempo, e acho que
se diz até hoje. Um dia, tendo ido se deitar exausta, após mais um
dia de faina pesada, Dona Joaninha recebeu, em um sonho, a visita
do falecido cangaceiro Jararaca. Nessa visita, que apesar de sonho
lhe pareceu tão real naquele momento, ele lhe contava que estava
sofrendo muito, vagando nas trevas, pelo fato de haver deixado um
grande tesouro enterrado. Dona Joaninha, com medo, arregalou
os olhos, meio sem entender, mas já entendendo tudo. Já ouvira
contar sobre almas que penavam no desassossego da morte devido a
assunto mal resolvido. Jararaca, então, lhe pedia em seguida que ela,
pelas caridades, o ajudasse a sair daquela situação triste. Que ele lhe
ensinaria o caminho para que ela e seu marido fossem até lá, para
desenterrar seu tesouro. No sonho, então, Dona Joaninha pôde ver
o lugar exato onde sua botija se encontrava enterrada. Tocada pelo
sofrimento do pobre Jararaca, Dona Joaninha lhe prometia, então,
que sim, iria até o local e desenterraria seu tesouro.
No entanto, Dona Joaninha não cumpriu o prometido. No dia
seguinte, embora ainda estivesse impressionada com a vivacidade do
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68 Lembrando, com Veyne (1987, 2008), que pode haver mais de um “regime de verdade”.
69 Obras como 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), A
Mão Esquerda da Escuridão (Ursula K. le Guin), por exemplo.
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70 Que, como nos ensinou Durkheim (1991), suporia a ideia de que haveria uma ordem
natural subjacente à realidade, isto é, uma Natureza no sentido moderno do termo,
ordenada segundo leis de causalidade passíveis de serem descobertas e explicadas.
O sobrenatural, como noção derivada do natural, não se encontraria presente em
todas as culturas e épocas. Um milagre, para a Igreja Católica contemporânea,
somente se provaria como tal quando se esgotassem as explicações científicas
possíveis para o acontecimento; já da perspectiva dos miracula medievais não
haveria necessidade disso, pois Deus (ou o Diabo) bastaria como fonte explicativa
de qualquer acontecimento similar ao que hoje chamaríamos sobrenatural.
71 Alusão a As Crônicas de Nárnia, de Clive Staples Lewis.
72 Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, de Lewis Carroll.
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73 Ouvi isso vezes sem conta de seus devotos e mesmo de pessoas que ignoram
ou rejeitam o culto, mas conhecem ou recordam os acontecimentos implicados
em sua morte.
74 Existe também aquela outra versão, mais realista, que afirma que sua fuga teria
sido facilitada pela polícia corrupta para criar a oportunidade de matá-lo daquele
modo espetacular, o que teria sido um meio para promover o então secretário
de segurança, candidato às eleições naquele ano.
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delegacia na qual Baracho esteve preso, após sua captura. Sob sol
intenso, muitos teriam se disposto a aguardar pela oportunidade
de finalmente ver o famoso matador de motoristas de que tanto
se falara nas conversas entre vizinhos, nas notícias das páginas
policiais e nos programas de rádio durante aqueles últimos meses.
A lacuna deixada pela ausência de informação visual sobre
Baracho pôde dar lugar a um ativo exercício de imaginação por
parte dos leitores de jornal e ouvintes de rádio, que procuravam
representá-lo mentalmente a partir de elementos extraídos de suas
experiências e conhecimentos prévios. Dessa forma, os que arderam
sob o sol em nome da oportunidade de ver o Baracho em carne e
osso na delegacia podem ter enxergado nele o Baracho com o qual
já se encontravam, àquela altura, familiarizados: o Baracho que já
vinha habitando há tempos em sua imaginação e suas conversas,
ambos processos sociais. “Aí eu fui [à delegacia] e eu vi, as outras
[suas vizinhas] já me diziam: ele olhava pra gente dos pés pra
cabeça” (Dona Eutália). E ela abaixa a cabeça para me mostrar como
Baracho teria feito, imitando seu olhar fixo, de olhos semicerrados.
Esse Baracho duplamente invisível,76 e talvez por isso mesmo
visto em toda parte, passaria a aparecer com frequência ainda maior
depois de morto – agora já na múltipla chave do maravilhoso, do
milagroso e até do fantástico, que se viriam somar à componente
lendária de que já fora revestido nos últimos anos de sua vida. Pois
muitas seriam suas aparições póstumas nos arredores do velho
cajueiro no Carrasco e no cemitério Bom Pastor, onde ele descansaria
não fossem as inúmeras demandas por sua intercessão desde seu
sepultamento. Após sua morte, as estações de rádio e as sedes dos
jornais continuariam a ser procuradas ainda durante algum tempo
por pessoas que juravam ter visto Baracho em algum lugar, o que,
a esta altura, já não nos pode surpreender.
76 Afinal, lembremos, ele era capaz de invultar e, assim, se tornar invisível delibe-
radamente, para fugir da cadeia e escapar às perseguições.
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79 Ela não foi a única: escutei variações da história da quartinha de água de pelo
menos mais duas informantes que a relataram na primeira pessoa, como expe-
riência pessoal, e outras versões contadas em tom de narrativa fantástica, na
base do “dizem que..., mas eu mesma/o não vi”.
80 Para uma exploração do tema dos objetos no catolicismo como veículos de
bênçãos ou de malignidade, ver Garcia (2018).
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81 Tanto o chá como a duração excepcional das flores do túmulo ocorrem também
em outras devoções em cemitérios. Ver, por exemplo, o número especial (24) da
revista Terrain sobre esse tipo de culto em diferentes países e tradições religiosas.
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86 Para citar mais uma, dentre as tantas já citadas neste livro, o website Tok de
História, agraciado com a Medalha do Mérito Acadêmico Agnelo Alves, em
2017, publicou sobre o assunto esta matéria: “Mossoró expulsou o bando de
Lampião à bala – Disse não à extorsão do cangaceiro – Um grande fato na história
do Nordeste – Fatos e Fotos!” (13 dez. 2015). https://tokdehistoria.com.br/tag/
memorial-ao-cangaco-e-a-resistencia/. Acesso em: 11 dez. 2019.
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87 Sobre o discurso da resistência, que não é em si meu objeto de estudo aqui, sugiro
a leitura da ótima tese de Tavares (2016).
88 Especialmente durante o Mossoró Cidade Junina, durante o mês de junho,
quando tem lugar a encenação teatral ao ar livre Chuva de Bala no País de
Mossoró, baseado em peça teatral de Tarcísio Gurgel.
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89 Na verdade, mais de um lugar de memória, pois temos que incluir aí, como parte
de um circuito turístico do qual participa também o túmulo de Jararaca, o Museu
Lauro da Escóssia (TAVARES, 2016, p. 138), também conhecido popularmente
como Museu do Cangaço. A expressão “lugares de memória” teria, segundo
Candau (2002, p. 111), sido cunhada por Frances A. Yates. Ela dá título à conhecida
obra de Pierre Nora (1985).
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92 O que não significa que dentro dos bandos de cangaceiros não houvesse unidades
familiares, como casais e irmãos.
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93 Além do artigo “A ilusão biográfica”, já citado aqui algumas vezes, sugiro a leitura do
livro de Sergio Vilas Boas, Biografismo: Reflexões sobre as Escritas da Vida, de 2007.
94 Na ocasião em que se notabilizou nas páginas policiais, houve menção a uma amante
ou companheira, Maria Lúcia, mas não fica claro se ela veio com ele do interior
ou se a teria conhecido em Natal, apenas que moraria com ele na mesma casa, no
Carrasco, naquele período.
95 Situada onde é hoje o bairro Dix-Sept Rosado. A denominação “favela” está entre
aspas porque é utilizada pelos jornais da época e por depoimentos de ex-moradores,
que costumam dizer “no Carrasco” ou “na favela do Carrasco”, um lugar, já no início
dos anos 1960, representado como marginal e perigoso, parte daquele processo
comum a muitas capitais brasileiras de criminalização e estigmatização da pobreza.
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96 Lembrando: Baracho teria pedido água a uma primeira vizinha. Quando esta
estendeu o copo cheio através da porta, a polícia teria despontado no beco e ele
teria largado o copo antes de beber, para prosseguir na fuga. Daí o bordão “Baracho
morreu com sede”, sede que se tenta, hoje, postumamente, aplacar com a oferta de
vasilhas cheias de água colocadas sobre seu túmulo, no cemitério Bom Pastor I.
97 Ou teria tido uma pequena lojinha ou quitanda, em outras versões, orais.
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98 Eade e Sallnow (1991) também falam a respeito de uma polifonia nos rituais
e peregrinações, visão compartilhada por Carlos Alberto Steil (1996) em seu
estudo sobre a romaria ao santuário de Bom Jesus da Lapa.
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101 “Todo o mal que se viveu antes da conversão, toda a vida dissoluta, são contados
sem muito pudor pelos atuais crentes. Em alguns testemunhos se descreve o mal
que se perpetrou, com muitos detalhes, e talvez até com certo “exagero”, pois
quanto maior foi o pecado, maiores foram a libertação e a glória do poder de
Deus.” (MARIZ, 1997, p. 56).
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102 A maioria dos entrevistados por mim, as pessoas com quem efetivamente convivi
durante os anos de trabalho de campo nas duas cidades ou conversei apenas dentro
dos cemitérios, durante as visitas, nas ocasiões cerimoniais públicas e também no
cotidiano, são majoritariamente moradores de bairros classificados na cidade como
periféricos, alguns deles bastante estigmatizados como “violentos” ou “perigosos”
por moradores das regiões mais valorizadas da cidade, que incluem os chamados
bairros nobres, como Tirol e Petrópolis, mas também a zona sul onde se localizam
as praias urbanas. Dentre esses bairros da periferia, conversei com moradores
do Bom Pastor (bairro onde fica o cemitério onde está sepultado João Baracho),
Quintas, Felipe Camarão, Cidade Satélite, Igapó e Planalto, dentre outros.
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106 Esse evento já foi mencionado aqui, em outros momentos. Ele ocorre anualmente
durante os festejos juninos, a partir de adaptação de peça teatral de Tarcísio Gurgel,
no adro da igreja de São Vicente, no centro de Mossoró. Trata-se de evento gratuito.
Para uma matéria jornalística recente sobre ele, veja aqui (Diário do Nordeste, de 26 de
junho de 2019): https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/online/
chuva-de-bala-e-memorial-da-resistencia-tracam-a-historia-de-mossoro-1.2115362
107 Que, em termos culturais nem sempre coincide com a definição da Organização
Mundial de Saúde (OMS), para quem idoso é quem tem 60 anos de idade ou mais.
Vale considerar ainda que o processo de envelhecimento pode ser percebido e sentido
de formas muito diferentes conforme fatores como classe social, gênero e raça,
por exemplo. Ele pode estar associado ao desgaste físico e emocional trazido, por
exemplo, pela experiência de trabalho braçal exaustivo desde a infância, carências
materiais de todo tipo, problemas de saúde e condições precárias de vida em geral.
Nem sempre é possível estimar a idade de alguém a partir de sua aparência, quando
migramos de uma classe social bem alimentada para outra sujeita a esse tipo de
dificuldades durante toda a vida. É preciso ter isso presente ao pensar sobre quem
seja ou não velho, em que sentido, e por quê. Muitas senhoras e senhores com
quem conversei me surpreendiam ao declarar ter pouco mais de trinta anos, ou
até menos, porque sua aparência maltratada dava impressão de mais idade. Seu
comportamento, em geral, como o de todas as pessoas em qualquer ambiente,
tende a responder às expectativas geradas, inclusive por essas impressões causadas
pela sua aparência. Isto é, gente que parece mais velha se comporta como gente
mais velha, o que é condizente também com estado civil (casamentos precoces, ou
várias uniões sucessivas), muitos filhos, trabalho remunerado desde a infância ou
adolescência para ajudar a família etc. Enquanto nas classes médias, ali mesmo,
na mesma cidade, pessoas chegam aos trinta e cinco anos vivendo em um estilo
de vida que até alguns anos atrás seria considerado inadequado para essa faixa
etária, e são percebidos como jovens, pessoas de camadas de baixa renda tendem
a ter que lidar com rotinas de adultos desde muito cedo e, sim, envelhecem –
socialmente, culturalmente e, por que não? Biologicamente – mais cedo. Velhice
é uma construção social tanto quanto a juventude e a infância o são.
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108 O que é mais improvável acontecer no caso de Jararaca, devido a maior distância
temporal dos acontecimentos biográficos, localizados no final da década de 1920.
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109 Esse papel de mediação da mulher na relação da família com o universo religioso
não é exclusivo dessas devoções nos cemitérios, mas estaria presente também em
outros contextos, como nas igrejas carismáticas e pentecostais pesquisado por
Machado (1996, p. 127).
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lhes são prestados ainda hoje por parte da população, que cuida
dos seus túmulos e lhes levam dádivas no Dia de Finados, que a
Baracho lhe dá agora a água que lhe foi negada em vida, e que os
convertem, por meio dessas ações voluntárias, em algo positivo e
ritualmente mobilizável, investido de poder simbólico acionável
pela coletividade, a partir de uma gramática católica – que pode
surgir híbrida de outras matrizes religiosas, em suas manifestações
– e, com tudo isso, o torna similar a um santo. Mais que tudo,
interessa-me a importância da agência e da liberdade humanas,
justo ali onde ela costuma ser mais negada, nas camadas popu-
lares, tão frequentemente apreendidas sob a chave da falta – de
racionalidade, de conhecimento e de escolhas. No entanto, nunca
me esqueci do tom desafiador e sarcástico de Dona Odete, ao me
dizer: eu não fui! ao contar sobre a convocação para o cortejo
pelas ruas de Natal para exibição do corpo-troféu de Baracho.
Não foi, mas foi no dia seguinte ao sepultamento no cemitério.
Escolha de modo algum inócua politicamente, tanto quanto não
é inócua a escolha dos que vão ao túmulo de Jararaca e ignoram,
bem pertinho, o túmulo do ex-prefeito conterrâneo.
Há algo sendo dito por essas ações, de modo eloquente, e é
preciso escutá-las. Religião e política não são, histórica e cultural-
mente, campos antagônicos, na verdade nunca foram. Cremos em
A ou B, defendemos este ou aquele valor e agimos assim ou assado,
mas nunca dissociamos escolhas – ou heranças, determinações
familiares, como por exemplo quando damos continuidade a
compromissos religiosos de um parente mais velho, ou quando,
pelo contrário, nos recusamos a dar continuidade: em ambos
os casos, há nessas decisões mais do que aspectos estritamente
religiosos (crença ou não crença, disposição ou indisposição a
performar certos rituais, convicção maior ou menor em certos
princípios). Esses compromissos são sociais e, portanto, se definem
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Capítulo 8 | Experiência, memória e perdão
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Referências
AGUIAR, Fernando. Psicanálise e Psicoterapia: o Fator da Sugestão
no “Tratamento Psíquico”. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 36, n. 1,
p. 116-129, jan./mar. 2016.
BROWN, Peter. The Cult of the Saints: Its Rise and Function in Latin
Christianity. Chicago: University of Chicago Press, 1984 (1981).
YATES, Frances. The Art of Memory. Nova York: Routledge, 2007 [1966].
BARACHO matou seu filho: seu dia amanhã será triste. Tribuna do
Norte, Natal, p. 1-1, 12 maio 1962.
COSME, com ameaça de morte, troca a detenção. O Poti. Natal, 19 nov. 1961.
MARIA Lucia foi quem ajudou Baracho para a fuga fatal. Diário de
Natal, Natal, p. 3-3, 2 maio 1962.