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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)

DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

VOZES PERIFÉRICAS: O DISCURSO SOBRE A “BOA” EDUCAÇÃO


EM FAMÍLIAS DE ERMELINO MATARAZZO

Adriana Santiago Rosa Dantas

Este trabalho tem como objetivo apresentar as primeiras análises de dados


de uma pesquisa de mestrado em andamento. A escolha do bairro de Ermelino
Matarazzo, sede da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de
São Paulo (EACH-USP), foi feita para contribuir no levantamento de parte da
história social da cidade de São Paulo, que passou por uma explosão populacional
singular entre 1940 e 1970, devido em parte à industrialização, que proporcionou a
chegada de migrantes, mudando o cenário da zona leste e seu contexto
educacional. Tal escolha deve permitir uma abordagem integrada de vários
fenômenos sociais: a migração para São Paulo, o crescimento e a diferenciação
interna de um bairro popular e por último, o florescimento de um mercado escolar,
caracterizado pela presença de escolas privadas interessadas em captar frações da
nova classe média que hoje habita Ermelino Matarazzo.
Buscando colocar em evidência o maior número de fatores que constituem a
configuração de uma determinada realidade (BOURDIEU, 2010, p. 18), na primeira
etapa da pesquisa fez-se um levantamento de dados sobre o número de escolas
disponíveis no bairro, o ano de fundação, o número de alunos e a dependência
administrativa a partir de dados fornecidos pela administração pública e pela
revisão da literatura que pode ser sintetizado pelo seguinte gráfico:

Gráfico 1: Crescimento da População e o Número de Escolas Fundadas por Década1


Década 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010
População 10 835 38 218 50 872 80 513 95 609 106 838 113.615
Escolas Públicas 1 3 6 2 5 1 Dados não
Escolas Privadas 1 1 6 6 disponibilizados
Fonte: PREFEITURA DE SÃO PAULO (2011) e SECRETARIA DA EDUCAÇÃO (2011)


Bacharél em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestranda do
programa de Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade
de São Paulo (EACH-USP), sob orientação de Profa. Dra. Graziela Serroni Perosa. Bolsista
Capes
1
Os dados disponibilizados pela Prefeitura de São Paulo datam da década de 1950, isto
porque Ermelino Matarazzo fazia parte do distrito de São Miguel Paulista, tornando-se
independente a partir de 1959 (FONTES, 2008, p. 127). As escolas são de Ensino
Fundamental.
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Tal levantamento permitiu relacionar o crescimento de 800% (10 mil para


80 mil habitantes) do bairro entre 1950 e 1980 e as características da instalação de
escolas. Entre 1950 e 1970 foram fundadas dez escolas públicas e uma unidade do
SESI, criada para alfabetizar operários do bairro. Entre 1980 e 2000, com o declínio
da industrialização, o ritmo de crescimento populacional diminuiu para 140%. Neste
momento, o bairro passa a atrair uma nova classe média que chega para a esta
região da cidade visando a compra da casa própria quando parte do bairro recebe
mais investimentos do setor imobiliário. Entre 1990 e 2000, nota-se um novo
fenômeno: a fundação progressiva de escolas privadas, doze no total em
detrimento de seis públicas fundadas no período.
Um dos propósitos da pesquisa é relacionar estes processos históricos mais
amplos – a migração, o estabelecimento na cidade de São Paulo, a mobilidade
social experimentada – ao discurso produzido por estas famílias sobre educação e o
acesso escolar. Para Spósito (2010, pp. 365-390), a história sobre educação da
Zona Leste não pode ser entendido sem associar à chegada de migrantes na
periferia de São Paulo fazendo com que essa experiência aponte para a necessidade
escolar. Como mostra o gráfico acima, a quantidade de escolas de Ensino
Fundamental não corresponde a demanda da região. Entre as primeiras décadas, a
média era de uma escola para cada 10 mil habitantes.
Uma das hipóteses levantadas é que não apenas o fator econômico teve um
papel fundamental na motivação da mobilidade do norte para o sul, mas também o
tema educação2 poderia ter um papel de destaque. Segundo Fontes (2008),
tradicionalmente o fator socioeconômico é tido como o fator explicativo da
migração nordestina sem levar em conta a agência dos migrantes no processo.
Vários motivos atraíam os migrantes para a cidade e um deles era a oportunidade
de escolarização dos filhos, a qual era muito mais difícil nas regiões de origem em
geral: “’Na Bahia’, lembrava uma mãe de família também entrevistada no início da
década de 1950, ‘não se podia dar boa educação aos filhos. A escola fica longe.
Aqui [em São Paulo] há mais facilidades’” (idem, p 48). Esta “facilidade” relatada
pela mãe nordestina pode ser observada pelo número crescente de escolas entre as
décadas de 1950-1970 simultaneamente à migração nordestina, mesmo que esse
aumento não correspondesse à demanda. Esta hipótese ainda está sendo
averiguada na etapa atual com a realização de entrevistas aprofundadas com os
moradores antigos do bairro.

Entende-se o tema educação como acesso à escola, ou em outras palavras à educação


2

formal.
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Até o momento foram realizadas oito entrevistas3 com moradores antigos


que chegaram em Ermelino Matarazzo entre 1947 a 1970. Dos entrevistados, seis
são migrantes nordestinos, uma migrante do interior paulistano e por fim, um
paulistano descendente de italianos. As entrevistas consistem em história de vida
temática tendo como roteiro a experiência familiar, educacional e profissional (1)
antes da chegada em São Paulo; (2) durante a chegada em São Paulo; e (3) dos
descendentes. Para a apresentação desse trabalho foram escolhidas as experiências
dos migrantes nordestinos para as primeiras discussões da hipótese inicial
levantada. Para análise, foram utilizados como referencial teórico os trabalhos de
Spósito (2010) e Penna (1998) para embasar os discursos sobre educação dos
migrantes entrevistados.

Um bairro operário com nome de empresário 4

Ermelino Matarazzo se localiza há aproximadamente 20 Km de distância do


centro da cidade de São Paulo, na Zona Leste, às margens do Rio Tietê, fazendo
divisa com bairros da Penha, São Miguel e com o município de Guarulhos. A história
da migração interna do bairro está relacionada ao crescimento vertiginoso de São
Paulo especialmente no século XX, caracterizado pela expansão das periferias.
Estas, por sua vez, começaram a se estender na primeira metade do século, pela
expansão cafeeira, a multiplicação das vias férreas, a imigração especialmente
italiana, somados com a criação dos parques industriais e do loteamento de
grandes propriedades, passando a ter a função residencial e industrial. (AZEVEDO,
1945, p. 26-28).
O próprio nome do bairro Ermelino Matarazzo aponta para essas evidências:
é uma homenagem a um membro da família italiana Matarazzo. A indústria Celosul,
de propriedade desta família, foi instalada na década de 1940, na região de várzea
do Rio Tietê, próximas a linha do trem que atende a região. No seu entorno foram
constituídas vilas para a moradia dos operários contratados pela indústria, que
escolhiam morar próximos do trabalho, ocasionando a chegada de moradores para
a região (PREFEITURA, 2012; MAUTNER, 1999, p.248). É como relata um dos

Neste trabalho as entrevistas foram tratadas da transcrição absoluta para textualização


3

conforme Meihy (2002), segundo os procedimentos da História Oral. Das entrevistas


gravadas em áudios, depois da tanscrição, foram “tirados os erros gramaticais e reparadas
as palavras sem peso semântico. Os sons e os ruídos também foram eliminados em favor de
um texto mais claro e liso” (idem, p.238; FREITAS, 2006, p.111). Trata-se, pois, de análise
do conteúdo. Os nomes são fictícios.
Título do artigo da seção Histórico do Bairro no sítio da Prefeitura de São Paulo (2012).
4
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antigos moradores, migrante baiano, que passou pela construção civil, morando no
local de trabalho, antes de se tornar operário:

Eu fiquei conhecendo alguém que morava aqui por lado de São Miguel. Morava aqui
em Ermelino. Aí eu vinha pra cá e me falaram dessa fábrica do Matarazzo, agora
não tem mais. Falaram: “olha você indo para lá você arruma um emprego na
fábrica do Matarazzo e é melhor pra você”. Aí exatamente 1958 eu vim aqui pra
Ermelino. Arrumei quarto aqui, aluguei. Aí consegui arrumar vaga no Matarazzo,
fiquei aí [na fábrica] desde 1958 até 1962. (Fernando)

A chegada desses moradores para periferia não foi acompanhado de uma


infraestrutura correspondente à demanda, especialmente no que concerne à
educação formal. Este tema tem sido presente no contexto histórico da região pelas
lutas populares que ocorreram nas décadas de 1970 e 1980 que reivindicavam para
a periferia a escola pública. Tais reivindicações tinham como pauta não só o ensino
de Primeiro Grau como era denominado o Ensino Fundamental na época, mas
também de Segundo Grau, correspondente ao Ensino Médio atual e o Ensino
Supletivo (SPOSITO, 2010, p.p 253-297). De certa forma, averigua-se certo
vanguardismo dessas lutas da periferia, pois ainda não se tinha sido aprovado a
Constituição de 1988 e muito menos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de
1996 que tornou o Ensino Fundamental compulsório e gratuito, marcando a
“universalização” do acesso escolar.
Outra peculiaridade do distrito em relação às reivindicações sobre educação
diz respeito a instalação da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH),
também conhecida como USP Leste, sede desta pesquisa de mestrado. Esse
campus foi inaugurado em 2005 como um projeto da USP em democratizar o
Ensino Superior em uma área carente da cidade (PEROSA, SANTOS & MENNA-
BARRETO, 2011) em um local em que havia “um forte movimento de suas
comunidades, que se organizaram para debater e discutir as questões da educação
pública em geral” (idem, p.42). E a luta por mais campi de universidades públicas
na região leste da cidade de São Paulo, continua sendo uma das bandeiras destes
movimentos. Um dos líderes da região o padre Antonio Marchioni, conhecido como
Padre Ticão diz:

Nossa região tem um nível das pequenas vilas com seus movimentos e, depois, um
segundo nível: os movimentos em nível regional. Por exemplo, a luta pela USP e,
agora, pela universidade federal, que ser na outra ponta da Jacu-Pêssego, são
movimentos regionais que têm uma importância para criar uma nova história da
região. A educação é fundamental! Nós temos o lema “da creche à universidade”.
(TICÃO, 2011, p. 65)
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Entender como este cenário de luta pelo direito à educação na periferia se


suscitou fez com que a pesquisa fosse direcionada para a formação do bairro na
segunda metade do século XX. Isto porque, como já foi mencionado, o sentido da
luta por educação na região leste da capital paulista não pode ser entendido sem
associar a chegada de migrantes à periferia de São Paulo fazendo com que essa
experiência aponte para a necessidade escolar. É o contato com a cidade que
permite a esses migrantes dar nova significação à necessidade da escola, que não
era tão evidente e/ou acessível no meio rural. Para a autora, a educação era um
instrumento necessário para lidar com a nova realidade que a cidade lhe
confrontava (SPÓSITO, op. cit. pp. 365-390).
Neste sentido, analisar as vozes periféricas sobre educação levou-me a
buscar os migrantes que ainda moram na região para resgatar parte desta história.
Esta busca tem como interesse entender parte do processo, o qual corresponde ao
encontro do migrante rural com o ambiente urbano, e como tal encontro permite
uma elaboração da importância da educação, tendo em mente a hipótese de que
esse interesse já existisse em sua terra natal.
Para analisar esse encontro, utilizo os estudos sobre migração de Penna (op.
cit, pp. 89-112) que questiona posicionamentos epistemológicos por parte dos
pesquisadores que avaliam a experiência do migrante de forma marcada pela
idealização, privação e essencialismo ao utilizar noções como “perda de identidade”
e “desenraizamento”.
Um dos primeiros problemas é tomar a noção de identidade social do senso
comum, sem reconhecer as diversas possibilidades de identidades calcadas nas
questões de reconhecimento dentro de um contexto social. É atentar para questão
teórica de como o migrante se vê ou se constrói. Em seu trabalho, a autora toma o
discurso desses migrantes como uma (re)elaboração dos fatos e não
necessariamente como eles se deram. Para ela, “a linguagem não apenas expressa
a experiência, mas antes a constitui, pois é através dela que o migrante constrói
uma representação da própria vida, dando-lhe significado” (idem, p. 90)
Outro problema diz respeito ao abandono das raízes ou de uma identidade
original, trazendo nesse contexto a idealização de uma terra natal abandonada ou
um pressuposto por parte do pesquisador. Para Penna, a exclusão social na terra
natal já existe, portanto o desenraizamento inicia-se lá, culminando no processo
migratório.
Questionando esses problemas, Penna propõe um novo olhar analítico para a
migração, a partir de novas representações que os próprios migrantes constroem,
chegando ao ponto de afirmar que o processo pode ser entendido como uma forma
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de resistência de laços que já foram cortados anteriormente à chegada a outro


destino na esperança de uma mobilidade social. “Migrar, em suma, para não se
conformar” (idem, p.105) Assim, “a migração acarreta mudanças radicais no modo
de vida, no nível do trabalho, da inserção comunitária – notadamente na passagem
de um ambiente rural ao urbano -, no acesso a bens materiais e simbólicos.” (idem,
p.108).

Migrar para não se conformar

Partindo da ideia de entender a migração a partir da (re)elaboração dos


fatos pelos próprios agentes, analisando algumas entrevistas, concordo com Penna
que o processo de saída acontece motivado por um rompimento anterior à situação
social em que o migrante se encontrava. A história de um baiano e uma baiana,
que chegaram aos 16 anos em São Paulo, indica o rompimento caracterizado por
não desejar perpetuar a história dos pais, tanto de exclusão material quanto
afetiva:

Aqui em SP, eu fazia bico à noite, de dia eu trabalhava na casa de família, e à noite
eu ia servir outras casas pra mim ganhar um dinheiro e mandar pra minha mãe que
não tinha quem sustentasse. Eu falava, eu não quero isso pra mim, eu vou lutar, eu
vou melhorar, eu vou correr atrás, eu não posso ter pena de mim não é porque
meu pai era um alcoólatra, minha mãe era alcoólatra, a gente nem sabia o que era
pai nem mãe [Dalila]

A vinda para São Paulo veio motivada pela intenção de mobilidade social. A
história de seus pais foi relatada como exemplo do que era o não desejo, ou nas
palavras de Penna, a migração como não conformação. Foi a tentativa de algo
diferente do seu lugar de origem. O rompimento já estava feito para que a
migração acontecesse.
A segunda história, a do migrante baiano, diz o seguinte:

Eu ainda era de menor. Como minha mãe faleceu cedo demais, eu morava com
minha tia, ela me incentivou pra vir pra cá. Meu pai não gostaria que eu viesse,
mas ele não tinha outra alternativa, um plano B pra mim lá. Queria alguma coisa
que eu pudesse aprender que tivesse um pequeno futuro. Eu tinha 16 anos,
trabalhava na roça. [Fernando]

Quanto à educação, o discurso de Fernando já sinalizava o desejo de


“aprender” para um “pequeno futuro”. No seu lugar de origem, Fernando cria a
expectativa de aprender algo para sua mobilidade social. E quando ele chega em
São Paulo, ele segue esse objetivo, a ponto de priorizar a educação formal em
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detrimento do emprego atual, levando-o a procurar um novo lugar para que


pudesse continuar seus estudos.

Eu tinha o 2º. Ano primário e fui estudar lá no Maria Zélia de noite. Só que eu
trabalhava em três turnos. Eu entrei no ginásio e isso me atrapalhou porque eu
perdia uma semana de aula todo mês. Eu terminei o 1ª. ano na marra, meio
apertado mas passei. Começou o 2º ano e ficou mais difícil, isso aí foi já em 1962.
O que eu fiz? eu pedi para ir embora, não dá pra ficar aqui porque eu tava muito
empolgado fazendo o ginásio, cada dia aprendendo coisa que eu não sabia, aquilo
abre o olho da gente. Eu falei não, vou arrumar outro emprego, não vou ficar aqui.
Aí me mandaram embora. [Fernando]

Na experiência de Dalila, estudar não era permitido para as mulheres em


sua terra natal, como ela relata:

Eu não tive estudo. Meu pai era separado e falava que quem estudava naquela
época era vagabunda, os piores nomes, imagina né?

No entanto, ela não se apropria da fala de seu pai e estuda o básico em São
Paulo. Ela vê no trabalho a oportunidade de conseguir o bem material que lhe é
mais caro, uma casa própria, e o bem simbólico para seus filhos, a educação:

Meu objetivo era ter alguma coisa a mais, eu queria ter uma casa, uma sala, o
quarto dos meus filhos, bem arrumadinho, direitinho, como pobre. Queria que
minha filha estudasse. Eu não queria, o que eu passei, na casa dos outros, eu não
queria que nenhum dos meus três filhos passasse. Eu queria que todos estudasse.

A questão de gênero, assinalada por Dalila, de que a mulher não poderia


estudar estava presente não só nas camadas mais pobres, mas também entre as
camadas mais abastadas em que o desejo das mulheres era subjugado pelas
decisões do marido. A história de Zenilda perpassa a questão econômica ao
inverso, de filha de fazendeiro com todas as regalias na Bahia, ela passa pra filha
de empregada doméstica separada em São Paulo, pelo desejo de sua mãe de não
se conformar com a condição da mulher em sua terra natal:

Minha mãe se separou do meu pai e me pegou e me trouxe pra São Paulo. Ela era
uma pessoa analfabeta, ela tinha um olhar pra frente. Meu pai era fazendeiro. Eles
já quando nasce o filho, já contrata pra casar com o filho do outro amigo dele
fazendeiro. Então eu certamente com 13, 14 anos eu ia casar com algum
fazendeiro do amigo do meu pai. Minha mãe era muito lutadora, uma guerreira. Ela
conheceu o meu pai no dia do casamento, e meu pai já devia ter uns 70 anos por
aí, ele já era idoso e ela tinha 15 anos. Então ela não queria aquela vida pra mim.
Ela queria que eu estudasse, que eu me formasse, que eu fosse alguém. Então, ela
me trouxe pra São Paulo. Trabalhou de doméstica, depois de costureira. Nossa, ela
queria que eu estudasse, que eu fosse melhor, que eu fosse bem. [Zenilda]

Segundo Spósito, “a experiência de migração cria e recria a necessidade da


escola” (2010, P. 365). Essa afirmação diz respeito ao fato de que o mundo urbano
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traz mudanças radicais, como afirmou Penna, no acesso aos bens materiais e
simbólicos que a experiência de migração impõe. Se a afirmação for tomada apenas
pelo primeiro verbo de que a “migração cria” como se no passado a educação não
fosse um tema importante e motivador, tenho que concordar com Penna de que
essa pode ser uma análise idealizada sobre o migrante, em que o pesquisador
pressupõe que o tema educação só aparece no contado da cidade. Mas “ouvindo”
as representações desses migrantes que vieram em busca de algo mais em São
Paulo, o desejo de aprender, de estudar já estava ali presente antes mesmo de sua
saída. O fato de “recriar a necessidade de escola” diz respeito ao processo de
(re)elaborar o sentido que a educação tem para esses migrantes no ambiente
urbano. Enquanto no passado, a expectativa de que a educação poderia trazer a tal
mobilidade social, a experimentação no contexto urbano, como atesta Sposito, foi
interpretada mais tarde como uma ilusão. Esta ilusão diz respeito de que a
apropriação da educação traria a tal mobilidade social almejada, que muitas vezes
não aconteceu:

De um lado, ao buscar a escola como meio para conquistar a “melhoria da vida”, o


trabalhador, a dona-de-casa, o jovem – os migrantes e seus filhos – têm a ilusão
de que o acesso ao estudo resolverá o problema da sua condição subalterna na
sociedade, ou ao menos mitigá-la. Seria a ilusão um erro? (...) A ilusão, mais do
que um término da trajetória dos sonhos, é um ponto de partida e, nesse sentido,
encerra uma dimensão fecunda (idem, p. 372)

Por outro lado, como atesta a autora, essa ilusão é um ponto de partida para
uma fecundidade de novas experiências na cidade. E diante dessa dimensão
fecunda, há um início de proposta no meu trabalho de discutir esse processo. Nas
falas dos protagonistas percebe-se que a expectativa da educação da terra natal
recriada no ambiente urbano, que perpassa por uma socialização informal a partir
de pares ou mesmo de pessoas conhecedoras das estratégias urbanas que
informavam ou aconselhavam esses migrantes.
Segundo o relato de Fernando, ele saiu da Bahia para “aprender” algo para
um “pequeno futuro”. Ele passou para construção civil, auxiliar de motorista,
quando ouviu o conselho de um colega, que já estava há mais tempo na cidade,
que ajudou a mostrar um caminho para que o objetivo anterior de Felipe fosse
atingido:

Um rapaz novo também como eu, falava pra mim: poxa você trabalhando nesse
serviço aí não dá futuro não, procura aprender uma profissão. Aí eu me animei com
aquilo.
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O conselho desse rapaz parece coincidir com o objetivo anterior de aprender


para o futuro. A partir daí, ele procurou terminar o primário e depois o ginásio. A
educação se tornou tão importante a ponto de mudar de emprego quando este
atrapalhou seu plano, com já foi mencionado anteriormente.
De forma semelhante, Dalila, mesmo estudando pouco em São Paulo,
aprende estratégias novas para a educação dos seus filhos a partir de conversas
informais também:

Minha filha era muito inquieta, aí eu levei ela na médica. A médica falou assim,
“procura colocar ela em vários cursos”. Como eu sempre fui andarina mesmo,
comecei a perguntar onde tinha escola de dança, aí eu coloquei ela. Eu levei ela
numa dentista, a dentista: “ah sua filha faz aula de dança, agora tá na hora de
colocar ela no inglês, inglês é importante porque quando ela fizer a faculdade,
quando ela se formar, ela precisa falar bem inglês”. E foi bom, porque ela foi
trabalhar em albergue. Por incrível que pareça, a gente tem uma noção que
albergue é só pra morador de rua e não é. O albergue é para vários estrangeiros,
vem africanos, coreanos.

No ambiente urbano, o contato com outros profissionais mais escolarizados


permitiu que Dalila aprendesse novas estratégias que foram aplicadas na vida de
seus filhos. Ela constata que foi uma boa escolha dar oportunidade de aprender
uma outra língua para sua filha, pois profissionalmente a ajudou no futuro. Assim,
essa socialização informal pode ser um dos indícios de como se dá o processo de
encontro do migrante rural ao ambiente urbano em (re)elaborar e recriar a
necessidade da escola.

Considerações finais

Este artigo buscou apresentar as análises iniciais de uma pesquisa de


mestrado em andamento. O recorte utilizado foi a questão da migração e o discurso
sobre educação. Neste trabalho foram apresentadas as primeiras discussões da
hipótese de que o fator educativo também pode representar um motivador para a
migração. As primeiras entrevistas têm apontado para um entendimento melhor da
hipótese inicial levantada de entender o papel da educação na motivação de
mobilidade desses migrantes. Nas primeiras análises buscou-se evidenciar este fato
através dos discursos dos migrantes de Ermelino Matarazzo levando em conta o
tema educação como uma expectativa no ambiente rural e a (re)elaboração do
tema no contato com a cidade. A pesquisa ainda está em andamento necessitando
mais aprofundamento para chegar a conclusões.
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Referências

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MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4ª. Ed. São Paulo: Loyola,
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SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO (2011). Email:


<Lucia.Rezende@edunet.sp.gov.br> Assunto: RES: Escolas em Ermelino Matarazzo
Anexo: Escolas de Ermelindo Matarazzo.xls Para: <novadrica@gmail.com> Em:
sexta-feira, 8 de abril de 2011 09:16

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