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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Políticas públicas no âmbito da formação inicial em música na cidade de São Paulo: um


estudo sobre o Projeto Guri

Autora: Patricia Amorim de Paula

Orientadora: Professora Titular Liliana Rolfsen Petrilli Segnini

Proposta de Apresentação de Pôster no XI Encontro de Pesquisa em


Educação da Região Sudeste – Reunião Regional da ANPEd.
Campinas, Programa de Pós-Graduação em Educação, SP, 2014.
Eixo temático: 3 - Pesquisa, Formação de Professores e Trabalho
Docente. Linha de Pesquisa Trabalho e Educação.

Campinas
2014
Apresentação

Esta pesquisa consiste em analisar as políticas públicas culturais elaboradas pela


Secretaria de Estado da Cultura, bem como a gestão e execução destas por parte de
Organizações Sociais da Cultura. Para tanto, terei como objeto de estudo o Projeto Guri – polos
da grande São Paulo, gerido pela Santa Marcelina – Organização Social da Cultura, pois
acreditamos que este aponta para uma concepção de política pública que vem se tornando
hegemônica no campo e entre outros setores sociais.
A origem do tema remete-se ao trabalho de dez anos de pesquisas sobre trabalho
artístico e técnico no campo da cultura, que possibilitou os seguintes resultados, metodologias e
objetos analisados por uma equipe de pesquisadores na UNICAMP (FE e IFCH)1: relações de
trabalho no campo das artes (Liliana Segnini), a inserção profissional de músicos e dançarinos
em teatros subvencionados (Juliana Coli, Dilma Marão, Katiuska Riz e Driely Gomes), a
formação e trajetória de jovens músicos (Cacilda Reis), o trabalho técnico no campo das artes e
espetáculos (Maria Aparecida Alves), a inserção de jovens itinerantes do primeiro emprego via
projetos sociais (José Humberto da Silva) e a inserção das artes na universidade (Cármen Lúcia
Arruda).
As pesquisas mencionadas anteriormente sobre trabalho artístico e técnico revelam,
atualmente, a presença da lógica comercial regulamentando o trabalho artístico, explorando
dessa forma as relações entre mercado e Estado2. No entanto, há ainda uma lacuna: qual o papel
do Estado na promoção de formação inicial em música? Como se estruturam e organizam as
políticas públicas com esta finalidade?
Durante a graduação, estudei a trajetória de formação dos músicos da UNICAMP.
Fizemos esta opção, inicialmente, pelo fato de que no Brasil, as principais instituições ligadas
ao ensino e profissionalização em música (Ensino Superior) são públicas e estatais, conforme
dados do Censo de Educação Superior realizado pelo INEP (2001 a 2009). Eles apresentam a
relação de matrículas sempre superior nas instituições públicas de Ensino Superior em Música,
em comparação com as instituições privadas.
O que encontramos nesta primeira pesquisa foi uma presença significativa de igrejas
evangélicas influentes no início da formação musical e uma baixa institucionalização da
1
Segnini, Liliana R. P., 2012. Relatório referente a missão de trabalho, período 29/11 a 20/12/2012, do
Acordo de Cooperação Internacional Capes/Cofecub.
2
De acordo com levantamento feito na tese de doutorado de Dilma Fabri Marão, as principais orquestras
brasileiras que adotaram o modelo de Organização Social para sua gestão, são: Orquestra Sinfônica do
Estado de São Paulo/OSESP, Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, Orquestra Jazz Sinfônica,
Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, Orquestra
Sinfônica de Porto Alegre/OSPA. E participam ainda do processo de publicização os seguintes projetos: o
Museu da Imagem e do Som (MIS), o Museu da Língua Portuguesa, o Centro de Estudos Musicais Tom
Jobim e a Pinacoteca do Estado. (MARÃO, 2011, p.62)
formação inicial em música. Sendo assim, há uma ausência de instituições públicas, municipais
e estaduais, voltadas para esta formação básica, um pré-requisito para o ingresso na
universidade.
Contudo, diante dos resultados obtidos anteriormente que constatam a relação histórica
entre o ensino de música no Brasil e sua proximidade com a religião, católica romana ou
evangélica, as seguintes questões continuam em aberto: “Como se formam os músicos? Quais
as condições sociais dessa formação?”. Por isso, nesse momento, o foco será sobre as políticas
públicas no campo da cultura, pois acreditamos que o desenvolvimento de políticas na área de
formação musical esteja diretamente relacionado a este processo. Além disso, trata-se de um
tema que se mantém bastante obscuro, sobretudo, porque diferentemente das políticas nas áreas
de saúde, educação e habitação, consideradas essenciais, a cultura permanece marginalizada,
recoberta por silêncios e lacunas (Fialho e Goldstein, 2012, p. 23).
Esse olhar sobre o processo histórico de institucionalização das políticas públicas no
campo da cultura se torna fundamental ao passo que podemos verificar a histórica afinidade
entre os dois campos: educação e cultura. Primeiramente, do ponto de vista de suas ações,
paralelas e complementares; posteriormente, do ponto de vista institucional, enquanto
encontram-se unidos em um único ministério. Temos como hipótese que é a partir dessa relação
entre os dois campos que tem início a institucionalização das atividades culturais no país.
Como marco inaugural das políticas culturais no Brasil, poderíamos admitir tal como
Rubim (2007, p.103), dois eventos: a passagem de Mário de Andrade pelo Departamento de
Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo (1935-1938) e a implantação do Ministério da
Educação e Saúde, em 1930, sob a direção de Gustavo Capanema (1934-1945). Trata-se de um
dos episódios mais referenciados da história da política cultural brasileira3, pois Mário de
Andrade inova ao admitir a intervenção estatal sistemática em diferentes áreas culturais, como
serviço social essencial, e também na sua visão ampla de cultura (das belas artes às culturas
populares).
Durante o Estado Novo (1937-1945) se desenvolveu a primeira experiência
governamental de ensino musical associada a educação básica para crianças e jovens, sob
coordenação e concepção de Villa-Lobos. Segundo Hikiji (2006) o projeto oferecia formação de
professores especializados nesta disciplina, a criação de um orfeão artístico por escola,
organização de discotecas e bibliotecas especializadas e grandes concentrações cívico-artísticas
reunidas em torno de uma apresentação pública de coral formado por crianças e adolescentes;
este último era o principal eixo norteador do projeto.
Durante o interregno democrático de 1945 a 1964, houve inexpressivas ações culturais
do Estado brasileiro, salvo a instalação do Ministério da Educação e Cultura (1953), a expansão

3
ABDANUR, 1992; BARBATO JR, 2004; CHAGAS, 2003; RAFFAINI, 2001; SCHELLING, 1991.
das universidades públicas nacionais, a Campanha de Defesa do Folclore e a criação do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Este momento contribuiu ainda para a formação de
importantes intelectuais e artistas para o cenário cultural do país. (Rubim, 2007, p.105)
No entanto, os anos que seguem marcados pelo regime ditatorial militar (1964-1985)
demonstram que a junção Educação e Cultura num único ministério foi muito pouco benéfica à
segunda parte, tanto pelo desequilíbrio orçamentário e quantitativo entre uma e outra, quanto
pela competição em termos de importância e repercussão social em curto prazo. (Sempere,
2009, p.116)
Outro evento significativo para nós nesse período foi a promulgação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação de 1971 (Lei 5692/71) a qual substitui o ensino de música pela
educação artística, extinguindo a disciplina de educação musical do sistema educacional. Do
mesmo modo, isto foi feito com a inserção da disciplina de Estudos Sociais e supressão de
História e Geografia do currículo. Cabe mencionar que tal adequação curricular teve
consequências drásticas para a educação musical, pois fragmentou a classe artística, com
inauguração de cursos de curta duração de educação artística e baixo investimento nos demais
segmentos culturais, em especial para a modalidade de licenciatura, o que produziu um
afastamento histórico entre a formação do artista e do professor de artes - música, teatro,
cinema e artes visuais (Fucci Amato, 2006, p.152-3).
É interessante mencionar que o ensino de música ministrado até a década de 1970, nas
aulas de música das escolas públicas e privadas, fez uso do material para coral produzido por
Villa-Lobos. Isso se deve ao fato de não existir até esse período um curso superior específico de
formação em música, pois a formação dos professores especialistas se dava no Conservatório
Nacional de Canto Orfeônico, entidade que Villa-Lobos dirigiu até sua morte, em 1959 (Fucci
Amato, 2006, p.151).
Rubim (2007, p.106) elabora seu texto por meio da tese de que tristes tradições
marcaram o processo de constituição das políticas culturais dos anos 1930 a 1985, e conforme
pudemos constatar, elas se mantiveram conectadas a regimes ditatoriais, autoritários e
repressivos, na maior parte do tempo. Durante o regime militar, basta dizer que o setor cultural
que teve maior expressividade foram os meios de comunicação de massa, em especial no âmbito
televisivo, pois veiculava a ideologia oficial e podia ser facilmente controlado. Segundo Rubim
(2007, p.107) os efeitos de tal ação são perversos, ao passo que produziram uma separação entre
políticas culturais nacionais e o circuito cultural constituído por padrões de mercado.
Além disso, no momento de estagnação política do regime ditatorial militar, o mesmo
lança esforços para manter-se hegemônico durante a transição, neste contexto são criadas
organizações, algumas delas vigentes ainda hoje: o primeiro Plano Nacional de Cultura (1975),
Centro Nacional de Referência Cultural (1975), a partir do Plano de Ação Cultural (1973) a
FUNARTE e Secretaria de Cultura do MEC (1981) como a primeira tentativa de separá-la
institucionalmente da educação. Sob uma visão renovada de cunho modernista (retoma ideias de
Mário de Andrade), Aloísio Magalhães é o mentor de tais mudanças, no entanto, por um curto
período interrompido por sua morte (Rubim, 2007, p.106-7).
A criação do Ministério da Cultura se torna uma medida inevitável e amplamente
desejada pelos profissionais da cultura e secretários estaduais de cultura. Embora seja um marco
importante de conscientização de uma sociedade em relação ao setor cultural, possibilitando
uma parcela orçamentária para investimento no setor (Sempere, 2009, p.116), a tradicional
junção cultura e educação não permitiu que a primeira, sendo compreendida como setor
singular, gozasse tal como a segunda, de dotações orçamentárias fixas e estáveis, marco legal
que a fundamente e até mesmo algumas ofertas reguladas pela obrigatoriedade, a fim de se
garantir direitos culturais em conformidade com o Artigo 215 da Constituição Federal de 1988 4
(Sempere, 2009).
Durante a redemocratização (1985-1994), a instabilidade social, política e econômica
acaba por delinear a implantação desse ministério, marcado por ambiguidades, e até mesmo
extinção momentânea durante o governo Collor. Porém, passado o período turbulento que
marca o processo de redemocratização do país, e duas reformas, uma no governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002) e outra no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010),
cabe as seguintes questões: quais foram os impactos ou mudanças sobre as políticas culturais?
Houve mudanças no quadro político-administrativo, o qual constitui as principais organizações
públicas neste setor? Houve rupturas e continuidades? Tratam-se de questões complexas as
quais nortearão a elaboração de uma explicação no decorrer da pesquisa.
A começar pelas continuidades, temos a lei de incentivo fiscal para financiar a cultura,
chamada Lei Sarney (1986), neste caso, o próprio Estado transferia para a iniciativa privada o
recolhimento dos recursos para investir na área, no entanto, o dinheiro era público, oriundo do
mecanismo de renúncia fiscal. Já no governo Collor, a Lei Sarney foi extinta, mas deu lugar a
um mecanismo semelhante, a Lei Rouanet 5. E esta legislação encontra-se vigente até hoje, como
componente vital do financiamento à cultura (Rubim, 2007, p.108).
Já com respeito às mudanças, o governo de Fernando Henrique Cardoso foi responsável
por introduzir no país, de maneira sistemática e amadurecida, o projeto político-econômico
neoliberal intensificando o processo descrito anteriormente. Nesse sentido, as leis de incentivo
tornam-se a própria política cultural, numa identidade entre Estado e mercado (Castello, 2002
apud Rubim, 2007, p.109), onde Cultura é um bom negócio (Ministério da Cultura, 1995).

4
"Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."
5
"(...) transfere para a iniciativa privada o poder de decisão sobre o que deveria ou não receber recursos
públicos incentivados, estruturando o financiamento da cultura sob a lógica do investidor privado."
Calabre, 2007-
Além disso, a própria Reforma Administrativa do Aparelho de Estado (Presidência da
República, 1995), sob a direção do Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado,
Luiz Carlos Bresser Pereira (Bresser Pereira, 1997), traz impactos para os serviços públicos e
estatais oferecidos no âmbito cultural, delegando a gestão dos mesmos a Organizações Sociais
e/ou Fundações. Historicamente tal configuração compõe parte da oferta de serviços sociais em
nosso país, como entidades privadas de utilidade pública (filantrópicas, associações
comunitárias, santas casas de misericórdia, entre outras), atendendo demandas essenciais, como
saúde e educação. A reconfiguração dessas formas tradicionais como Organizações Sociais no
Estado contemporâneo, conforme analisa Modesto (1997), representam uma “inovação
institucional”, no que se refere ao seu marco legal e modo de parceria com o Estado.
No caso, a lógica empresarial é o que impera no modelo das Organizações Sociais da
Cultura, que empregam a extinção das entidades originais, mudança no enquadramento
funcional de regime público estatutário para o regime consolidação das leis trabalhistas (CLT), e
os princípios da eficiência, eficácia, contenção dos gastos e produtividade. Sabemos que estes
elementos causam grande impacto sobre a qualidade do serviço social ofertado, sobretudo pela
forma que recaem sobre os trabalhadores.
Seguindo essa linha de raciocínio, as questões suscitadas por Sempere (2009, p.124-6)
nos fazem refletir: o terceiro setor e setor privado conseguem assumir a perspectiva pública da
cultura mesmo sem fazer parte das estruturas do Estado? Conseguem ainda "harmonizar"
interesses comerciais com interesses gerais? Isto é possível? O que prevalece? Para responder
estas questões, será preciso olhar para o processo de implementação em curso. Por isso,
pretendo compreender o impacto que as relações sociais de trabalho exercem, no contexto do
Projeto Guri, sobre as relações de formação com crianças e jovens.

A construção do objeto

Nesta seção, pretendo explorar aspectos analíticos do meu objeto de pesquisa. Nesse
sentido, a seção anterior se constitui como um percurso na construção do presente objeto,
reforço isso porque foi possível demonstrar que no processo de institucionalização das ações
culturais em nosso país, o elemento fundamental, no caso o financiamento, mantém-se
prioritariamente por conta de leis de incentivo, agências privadas de fomento à cultura e
recursos públicos incentivados sob a lógica do investidor privado (Lei Rouanet).
Conforme vimos, tal estrutura produz impactos sobre as condições de trabalho dos
artistas e também sobre a arte produzida que encontra-se condicionada a realização de projetos
de curta duração, dos editais e premiações mediadas pelo interesse do mercado. Além disso,
pesquisas como as de Freire (2007, p.19-22) e outros estudos em torno do MinC e FUNARTE
apontam para o fato de que os projetos aprovados, geralmente, integram política educacional e
política cultural numa proposta de educação musical em conformidade com as exigências desses
editais.
Nesse contexto é que se instaura um novo modelo institucional de gestão das ações
culturais, a Organização Social da Cultura. Desde 2004, por meio de sua regulamentação legal,
os projetos vinculados diretamente à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo passam a ser
coordenados por Associações civis e/ou instituições privadas sem fins lucrativos a partir de um
contrato de gestão estabelecido por ambas que firma, inclusive, o recurso orçamentário a ser
oferecido pela Secretaria para esse fim. No entanto, há ainda outras modalidades de recursos a
serem capitaneados pelas Organizações Sociais da Cultura: doação direta ou via incentivos
fiscais da Lei Rouanet (pessoa jurídica e física).
Sendo assim, constatamos que em quase 20 anos se constitui não só uma inovação
institucional, mas uma concepção de política pública para o campo da cultura em âmbito federal
e estadual. Dessa forma, as indagações que motivam esta pesquisa: “Como se formam os
músicos? Quais as condições sociais dessa formação?”, dirigem-se necessariamente a essa nova
concepção.
Já o local privilegiado para a compreensão desse fenômeno (macro) será o Estado de
São Paulo (micro) pelos seguintes motivos: situa-se no eixo centro-sul no qual se concentram
boa parte das atividades no campo cultural; concentra boa parte das instituições responsáveis
por formação inicial em música em nível técnico (Conservatório de Tatuí e Escola de Música do
Estado de São Paulo - Tom Jobim); e concentra as três principais universidades públicas do país
(Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas e Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho) com Ensino Superior em Música de referência neste campo.
No Estado de São Paulo, temos as seguintes instituições responsáveis pela formação
inicial de crianças e jovens: Associação de Amigos do Conservatório de Tatuí, Associação de
Amigos do Projeto Guri (polos no interior de São Paulo) e Santa Marcelina – Organização
Social da Cultura (Projeto Guri - polos da grande São Paulo e Escola de Música do Estado de
São Paulo - Tom Jobim). Cabe mencionar que se tratam de propostas pedagógicas e sociais
distintas que disputam entre si a hegemonia sobre o Projeto Guri. Para a presente pesquisa que
vos apresento, optamos pela Organização Social Santa Marcelina, pois além do Projeto Guri, ela
administra a Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim, o que expressa uma
relação de continuidade na formação possibilitando quiçá o ingresso na universidade.
No entanto, para compreensão geral do Projeto Guri, será preciso estabelecer relações
entre os dois grupos responsáveis por sua gestão, a saber: Associação de Amigos do Projeto
Guri e Santa Marcelina – Organização Social da Cultura. Cabe frisar que o intuito dessa
pesquisa não é o de reduzir a um estado de insignificância o Projeto Guri em si, mas
compreendê-lo enquanto manifestação de um fenômeno maior, no caso, a constituição de um
novo modelo de política pública no campo cultural, assim como vem se constituindo em outros
setores sociais, como: saúde e educação.

O Projeto Guri

O Projeto Guri é uma iniciativa da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo,


elaborado durante a gestão do secretário de cultura Marcos Mendonça (1995-2002), que
entre os anos 1995 e 1996 se desenvolveu na Oficina Cultural Amacio Mazzaropi, com o
objetivo de transformar a cultura e a arte em instrumento de inclusão sociocultural; e na
Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), na Unidade do Complexo Tatuapé, com
intuito de reinserção social de adolescentes e jovens ("menores" infratores) em cumprimento de
medidas socioeducativas. Portanto, ele admite inicialmente um modelo de política social
focalizada.
De 1997 a 2003, no interior da Secretaria de Cultura constitui-se a Sociedade de
Amigos do Projeto Guri a fim de gerenciar o projeto a partir de um novo modelo inaugurado
naquele momento histórico, a Organização Social (Lei nº 9.637/ 1998). Durante esse período, a
Sociedade exerceu um trabalho experimental investindo em sua autoimagem nacional e
internacional, produtos e expansão dos polos. Em junho de 2004, a Associação de Amigos do
Projeto Guri foi qualificada como Organização Social de Cultura e, em novembro do mesmo
ano, firmou o primeiro contrato de gestão com a Secretaria de Estado da Cultura para
administrar o Projeto Guri.
A partir de 2004 ocorreu uma expansão do Projeto Guri no interior e região
metropolitana de São Paulo, pelas parcerias estabelecidas com as prefeituras e municípios e
também com a criação dos Centros Unificados de Educação - CEU’s durante a gestão de Marta
Suplicy (2001-2005) na Prefeitura de São Paulo. Sendo assim, em 2007, a convite da Secretaria
de Cultura, uma nova organização assume a gestão dos polos da grande São Paulo e capital,
trata-se do Instituto das Irmãs Marcelinas. Esta parceria foi proposta com base na experiência de
parceria público-privado e filantropia no campo da saúde, além da sua atuação no campo das
artes com a oferta de Ensino Superior privado, pois a Faculdade de Artes da Santa Marcelina foi
uma das primeiras neste campo no Brasil.
A respeito do público alvo, ambas atendem crianças e jovens de 6 a 18 anos, em
especial, oriundos de comunidades pobres e carentes em situação de vulnerabilidade social e
econômica, conforme caracterização dos responsáveis. Sob responsabilidade da Associação de
Amigos do Projeto Guri encontram-se 35 mil alunos no interior e litoral e 14 mil alunos na
grande São Paulo distribuídos em 369 polos; já com a Santa Marcelina Cultura, são 46 polos do
Projeto Guri na Capital e Grande São Paulo com aproximadamente 13. 500 alunos e a Escola de
Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim com 1.800 alunos.
Considerando seu contexto de implementação, a princípio, não é possível atribuir
grandes expectativas sociais em relação ao Projeto Guri e suas respectivas gestões. A equipe
gestora da Santa Marcelina Cultura, inclusive, é crítica em relação a postura da Secretaria de
Estado da Cultura que se coloca como “dona do projeto” e cobra resultados em sua maioria
quantitativos, contudo, oferece uma política pública cultural sem identidade própria e pouco
clara. Basta dizer que os referenciais sociais requeridos geralmente importam ideias de
organismos internacionais, como: Banco Mundial, UNESCO e Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID).
A princípio, os gestores do Projeto Guri e do Conservatório de Tatuí6 defendem o
modelo de gestão inaugurado com as Organizações Sociais, pois de alguma maneira ele
representou uma possibilidade de manutenção dos serviços públicos culturais com eficiência e
qualidade artística.
Após essa breve apresentação do objeto a ser pesquisado é preciso ir além e buscar
historicamente quais concepções norteiam a elaboração desse projeto. Para tanto, será preciso
recuperar algumas concepções em debate naquele momento histórico, sobretudo, o tema da
violência, criminalidade, situação de risco, infância e adolescência.
Para começar, a concepção de infância e adolescência no Brasil passa por uma
transformação significativa, embora tardia, do instituído pelo Código de Menores (Lei 6.697, de
10 de outubro de 1979) à promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei
8.069 de 13 de julho de 1990). Vigorava sob o Código de Menores somente a proteção e
vigilância a menores “em situação irregular”, o que pela própria descrição da lei7 refere-se a um
lugar social específico, o das classes populares.
O ECA surge num contexto de amplo debate acerca dos direitos da criança e do
adolescente, o que coincide com as discussões no âmbito da Constituinte. Na Constituição
Federal de 1988 (Art. 227) é lançada a proteção integral da criança e adolescente como
responsabilidade da “família, da sociedade e do Estado”, assegurando “o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Sendo assim, o ECA tem por função traçar as diretrizes dessa “proteção integral”
caracterizando a criança e o adolescente como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais e em
processo de desenvolvimento.

6
Ele é gerido pela Associação de Amigos do Conservatório de Tatuí (Organização Social da Cultura)
desde 2006.
7
Ver Art. 2º da Lei citada.
Paralelamente a isso, encontram-se em debate o crescimento dos índices de
criminalidade e taxas de homicídio contra adolescentes, o que tem fundamento se observarmos
os dados referentes ao período, conforme apresenta Miraglia em 2000 8. Além disso, a autora
destaca a identificação desses dados com “bolsões de risco” ou “bolsões de violência”, segundo
pesquisa realizada pelo Governo do Estado de São Paulo, concentrando-se nos seguintes
distritos: Cidade Ademar, Sapopemba, Jabaquara, Itaquera e Jardim Ângela, nos quais a taxa de
homicídios entre jovens de 15 a 24 anos chegou a atingir 206,87 em 1999 9 (Hikiji, 2006, p.84-
5).
Outro dado relevante para nós é que em 2002 a Fundação Seade lançou o Índice de
Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), coordenado pela socióloga Felícia Madeira. Segundo Miraglia
(2002), este estudo foi realizado a pedido da Secretaria de Estado da Cultura, com o intuito de
justificar a necessidade de financiamento do BID para a implantação de programas na periferia
da capital. As variáveis consideradas a fim de delimitar as regiões metropolitanas com maior
risco de criminalidade entre jovens de 15 a 19 anos foram: a taxa de crescimento populacional,
o número de jovens residentes no local, a taxa de mortalidade por homicídio nessa faixa etária, o
percentual de mães adolescentes grávidas, o valor do rendimento do chefe de família e os jovens
fora da escola (Hikiji, 2006, p.85).
A elaboração do IVJ torna-se um elemento chave para nós ao passo que permite a
compreensão de dois fatores que refletem sobre as ações dos projetos sociais, sobretudo, no
âmbito do Projeto Guri: 1) é a cristalização da representação social do jovem pobre que vive nas
regiões periféricas da cidade como propenso ao crime, esta condição permite a apresentação da
seguinte síntese elaborada por Emir Sader (1987, p. 14-5): como a “questão do menor”,
reconhecida na década de 1960 como “problema de miséria social”, passa ser vista nos anos
1980, como “problema de segurança pública”; 2) A expressão reiteradamente utilizada “situação
de risco”, nesse contexto, permite inferir que quem se vê em risco não são os jovens pobres, e
sim, a sociedade, pois estes jovens são os protagonistas da violência. Por isso, os diversos
projetos em arte-educação voltados para populações de baixa renda, admitem o fazer artístico
como oposição à situação de risco, veiculando para tanto princípios que precisam ser
investigados na presente pesquisa (Hikiji, 2006, p.86-7).
Para concluir, o primeiro resultado a ser questionado no processo de pesquisa é que o
investimento em ações culturais por meio de projetos sociais não está associado diretamente ao

8
Na faixa etária entre 15 e 24 anos, em 2000, a taxa de óbitos por homicídio no Brasil é de 52,1 (número
de homicídios por cem mil habitantes) e em São Paulo é de 89,6, número inferior somente aos Estados do
Rio de Janeiro (107,6) e Pernambuco (102,8). (Miraglia apud Hikiji, 2006, p.84-5)
9
Dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade. A taxa na cidade de São Paulo no
mesmo ano, de acordo com Miraglia (2002), era de 121,33. Cabe lembrar que a taxa apresentada sempre
corresponderá ao número de homicídios por cem mil habitantes da região. (Hikiji, 2006, p.85)
direito à cultura conforme regulamenta o ECA, e sim, ao problema de segurança pública, do
ponto de vista de sua concepção inicial.

Referências Bibliográficas

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