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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DE PLANEJAMENTO DE RECURSOS HUMANOS


SPRH - TJSP
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“Em caso de reprodução total ou parcial do conteúdo deste


Caderno, a fonte deve ser citada”.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Presidente
DESEMBARGADOR JOSÉ RENATO NALINI

CADERNO DOS GRUPOS DE ESTUDOS


Serviço Social e Psicologia Judiciários

Número 11

SÃO PAULO
2014

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ÍNDICE

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E


FAMILIAR” ................................................................................................................ 1
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 4
ASPECTOS HISTÓRICO-LEGAIS DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL ........... 5
ALGUNS ASPECTOS TÉORICOS SOBRE O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL ...... 9
A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS E ASSISTENTES SOCIAS NO ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL: APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS DA PESQUISA
INTERNA DO GRUPO DE ESTUDOS...................................................................... 12
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 31
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 35
Anexo I – (Questionário) ........................................................................................... 38
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ADOÇÃO I” ............................................... 43
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 46
PARTE TEÓRICA ................................................................................................... 47
1.1 Dalva Azevedo de Gois .............................................................................................. 47
1.2 Fernanda Neisa Mariano ............................................................................................. 50
1.3 Maria Antonieta Pisano Motta.................................................................................... 52
2. Protocolo de atendimento interinstitucional às mulheres que manifestam o desejo de
entregar o filho em adoção durante a gravidez: a experiência de Santos/SP ................... 55
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 59
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 62
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ADOÇÃO II” ............................................. 63
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 68
1. Algumas considerações sobre o filme December Boys e seu impacto sobre o grupo:
Como ir além do sentimento de impotência diante desses casos? ................................... 70
2. Do ideal ao real – dos meus sentimentos aos sentimentos do outro – Como reconhecer a
excepcionalidade necessária? ..................................................................................... 71
3. Algumas pontuações sobre o conceito de vínculo afetivo .......................................... 72
4. História pregressa e a importância de analisar cada caso ............................................ 74

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5. A importância da preparação para qualquer medida a ser tomada ............................... 77


6. Como vivem os irmãos após a separação? ................................................................ 79
– Algumas observações pós Adoção Internacional .......................................................... 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 84
ANEXO 1 ................................................................................................................ 87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 88
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A
LEI” .......................................................................................................................... 90
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 92
1. CRONOLOGIA DAS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E AS DROGAS AO LONGO
DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE ......................................................................... 94
2. POLÍTICA DE GUERRA ÀS DROGAS ................................................................. 96
3. NATURALIZAÇÃO DA DROGA VINCULADA AO CRIME ................................. 98
4. ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI COMO OBJETO IDENTIFICADO DA
PERVERSIDADE DA SOCIEDADE ....................................................................... 100
5. JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIAIS: INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E
REDUÇÃO DE DANOS ......................................................................................... 102
6. ABORDAGENS ALTERNATIVAS DO USO DE DROGAS.................................. 104
7. PROIBIR OU LIBERAR? ................................................................................... 106
CONCLUSÃO ....................................................................................................... 109
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 110
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS EM
VARAS DE FAMÍLIA” ............................................................................................ 112
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 114
1. CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS EM VARAS DE FAMÍLIA ...................... 115
2. AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA ............................................................................................. 117
2.1 O processo de modernização e a família contemporânea ......................................... 118
2.2 O papel dos avós ....................................................................................................... 120
2.3 A mulher do pai, o seu lugar na dinâmica das novas famílias.................................. 122
3. A ALIENAÇÃO PARENTAL .......................................................................... 126

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4. FALSAS DENÚNCIAS DE ABUSO: ALGUNS APONTAMENTOS .................. 128


4.1 Crianças envolvidas em falsas denúncias de abuso sexual....................................... 131
4.2 Dificuldades da Psicologia e do Serviço Social no Judiciário Frente ao Abuso Sexual
Infantil ............................................................................................................................ 134
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 140
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 141
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL – “ESTUDO SOCIAL” ................................. 144
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 148
UM POUCO DE HISTÓRIA: ESTIGMATIZAÇÃO, JUDICIALIZAÇÃO E DIREITOS
SOCIAIS ............................................................................................................... 150
DESAFIOS E ESTRATÉGIAS ................................................................................ 156
A ABORDAGEM DA JUDICIALIZAÇÃO DA POBREZA NO LAUDO SOCIAL ..... 158
CONCLUSÃO ....................................................................................................... 163
ANEXO ................................................................................................................ 166
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 167
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL – “FAMÍLIA” ............................................... 170
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 173
2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO PNCFC ..................................................... 175
3. SOBRE O MARCO CONCEITUAL E OS RESULTADOS PROGRAMÁTICOS DO
PNCFC ................................................................................................................ 178
3.1 Sobre Família ............................................................................................................ 178
3.2. Sobre Criança e Adolescente ................................................................................... 179
3.3. Sobre Convivência Familiar e Comunitária ........................................................... 180
3.4. Sobre Acolhimento Institucional ............................................................................ 182
3.5. Sobre Programa de Família Acolhedora .................................................................. 183
3.6. Sobre a Adoção ....................................................................................................... 184
4. SOBRE O MARCO SITUACIONAL ................................................................... 185
4.1. Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente ................................ 186
5. SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO, MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO................ 189
6. ALGUNS DILEMAS LEVANTADOS: DISCUSSÃO ........................................... 190
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 196

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GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL – “O COTIDIANO DA PRÁTICA


PROFISSIONAL – FAMÍLIA” ................................................................................. 197
INTRODUCÃO ..................................................................................................... 199
DESENVOLVIMENTO .......................................................................................... 202
1. Adoecimento ............................................................................................................... 202
2. Cotidiano e Resistência .............................................................................................. 202
3. Sociedade e Judiciário ............................................................................................ 204
4. Perspectivas: Revolução democrática de justiça .................................................... 208
5. Justiça Restaurativa ................................................................................................ 213
CONCLUSÕES ..................................................................................................... 217
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 218
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “VARA DE FAMÍLIA” ............................... 220
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 222
DESENVOLVIMENTO .......................................................................................... 224
CONCLUSÃO ....................................................................................................... 242
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 244
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR”
................................................................................................................................ 246
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 250
Seção 1. Contornos e dimensões contextuais da violência ........................................... 252
1.1. A expressão da violência sob o aspecto psíquico: a pulsão e o narcisismo ............ 257
Seção 2. O papel da mulher na sociedade e o patriarcado ........................................... 258
2.1. Conceito de gênero .................................................................................................. 261
2.2. Percurso histórico dos direitos da mulher .............................................................. 263
2.3. Os marcos legais da mulher no Brasil ..................................................................... 266
2.4. Lei Maria da Penha .................................................................................................. 267
Seção 3. Violência doméstica e familiar contra a mulher ............................................ 271
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 279
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 280
GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “VITIMIZAÇÃO”...................................... 283
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 285

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ABUSO SEXUAL INFANTOJUVENIL E A FUNÇÃO DA JUSTIÇA ....................... 288


GARANTIA DE DIREITOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES E ATRIBUIÇÕES
DA EQUIPE INTERPROFISSIONAL NA JUSTIÇA ................................................ 292
CONSIDERAÇÕES E IMPLICAÇÕES DO DEPOIMENTO ESPECIAL NO ESTADO
DE SÃO PAULO ................................................................................................... 299
CONCLUSÕES ..................................................................................................... 306
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 309
ANEXO 1 .............................................................................................................. 311
GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ARAÇATUBA - “FAMÍLIA” ................... 326
Introdução ............................................................................................................. 330
1. Família: reflexões sobre os papéis assumidos pela instituição na atualidade ........... 331
2. O Poder Familiar: a instituição da visão “filhocentrista” .......................................... 333
2.1. A guarda para além do Poder Familiar .................................................................... 336
3. As funções materna e paterna: .............................................................................. 339
3.1. A função Materna .................................................................................................... 339
3.2. Função Paterna ........................................................................................................ 341
3.3 O desenvolvimento infantil e as características inerentes às fases ........................... 343
4. OS FATORES QUE INFLUENCIAM NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES MATERNA E
PATERNA ............................................................................................................ 348
4.1 Fatores Externos: ...................................................................................................... 348
4.2 Fatores Internos ........................................................................................................ 353
Conclusão .............................................................................................................. 359
Referencia Bibliográfica .......................................................................................... 361
GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ASSIS – “FAMÍLIA” ............................... 364
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 366
I – CONJUGALIDADE E PARENTALIDADE: IMPLICAÇÕES NA DISPUTA DE
GUARDA ....................................................................................................................... 367
II – A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NO CONTEXTO CONFLITIVO DA
DISPUTA DE GUARDA ............................................................................................... 370
III- O ORDENAMENTO JURÍDICO NO DIREITO DE FAMÍLIA E A ATUAÇÃO
PSICOSSOCIAL NOS CASOS DE DISPUTA DE GUARDA ..................................... 376

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 383


Referências Bibliográficas ....................................................................................... 385
GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – BAURU – “FAMÍLIA” ............................ 389
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 391
1 ASPECTOS PSICOSSOCIAIS EM DIREITO DE FAMÍLIA ................................... 394
2 SINDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL: ENTRE CONTROVÉRSIAS E
NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO ......................................................................... 396
2.2 Síndrome da Alienação Parental: A Perspectiva do Serviço Social ......................... 399
2.3 Síndrome da Alienação Parental: A Perspectiva da Psicologia ................................ 402
2.4 Síndrome da Alienação Parental – Divórcio e Separação – Um conflito para os filhos
........................................................................................................................................ 404
3 A GUARDA COMPARTILHADA – ENTRE O IDEAL E O REAL: UM CAMINHO
AINDA A SER CONSTRUÍDO............................................................................... 406
3.1 Alguns aspectos práticos da guarda compartilhada .................................................. 407
4 Questões Éticas.................................................................................................... 410
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 414
6 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 416
GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – JUNDIAÍ – “VARA DE FAMÍLIA” ......... 419
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 422
A GUARDA COMO INSTITUTO JURÍDICO .......................................................... 423
A GUARDA COMPARTILHADA COMO POSSIBILIDADE ................................... 427
A ALIENAÇÃO PARENTAL: GUARDA ADOECIDA ............................................ 431
– Lei 12.318/2010 ........................................................................................................... 432
– Comentários sobre a lei de alienação parental............................................................. 433
- Alienação Parental: uma Polêmica Necessária ............................................................ 435
DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR OU DIREITO À VISITA? ........................ 440
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 448
GRUPO DE ESTUDO DO INTERIOR – LIMEIRA – “A PRÁTICA PROFISSIONAL”
................................................................................................................................ 453
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 456
CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO .................................................................... 457

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DISCUSSÕES REALIZADAS PELO GRUPO ......................................................... 462


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 465
GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – MARÍLIA – “FAMÍLIA” ........................ 466
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 468
HISTÓRIA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO ........................................ 469
CONSIDERAÇÕES DE MARCUSE SOBRE A TECNOLOGIA ................................ 470
TECNOLOGIA E A HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL ......................... 471
AS INFLUÊNCIAS DA TECNOLOGIA NA INDÚSTRIA CULTURAL .................... 474
TRANSFORMAÇÕES SUBJETIVAS ..................................................................... 477
TECNOLOGIA E DEPENDÊNCIA ......................................................................... 482
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 483
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 484
A PERÍCIA EM SITUAÇÃO DE ABUSO SEXUAL CONTRA CRIANÇA E
ADOLESCENTE; ENFOQUE NAS DEMANDAS SOCIAIS E PSICOLÓGICAS
JUDICIÁRIAS ............................................................................................................... 487
GRUPO DE ESTUDO DO INTERIOR – PRESIDENTE PRUDENTE – “COTIDIANO
DA PRÁTICA PROFISSIONAL” ............................................................................. 487
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 490
DINÂMICA FAMILIAR INCESTOGÊNICA ........................................................... 491
INDICADORES DA OCORRÊNCIA DO ABUSO SEXUAL..................................... 497
INTRAFAMILIAR ................................................................................................. 497
Indicadores comportamentais da vítima ......................................................................... 498
Indicadores comportamentais do agressor ...................................................................... 498
Indicadores comportamentais do co-agressor................................................................. 499
Indicadores sociofamiliares ............................................................................................ 499
DA PERÍCIA SOCIAL E PSICOLÓGICA ................................................................ 499
Perícia do Serviço Social: ............................................................................................... 500
Perícia da psicologia: ...................................................................................................... 500
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................... 501
Da perícia social ............................................................................................................. 501
Da perícia psicológica .................................................................................................... 503

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 508


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 511
GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – RIBEIRÃO PRETO – “FAMÍLIA” ......... 514
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 517
MEDIAÇÃO FAMILIAR NO CONTEXTO DO JUDICIÁRIO .................................. 518
OFICINA DE PAIS E FILHOS ................................................................................ 522
CONCLUSÕES ..................................................................................................... 526
GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – CAMPINAS – “FAMÍLIA” ..................... 531
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 535
DE QUE TIPO DE AVÓS AS CRIANÇAS PRECISAM? .......................................... 536
QUEM SÃO OS AVÓS QUE RECORREM AO JUDICIÁRIO? ................................. 539
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 544
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 546

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LIMITES, POSSIBILIDADES E DESAFIOS DA ATUAÇÃO


TÉCNICA FRENTE AO ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ACOLHIMENTO


INSTITUCIONAL E FAMILIAR”

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2014
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COORDENADORAS

Ana Paula Martinez – Psicóloga Judiciária – Comarca de Piracicaba


Elen Tavares de Sá – Assistente Social Judiciária – Comarca de Jundiaí

AUTORES

Andrea dos Anjos Pereira da Silva - Assistente Social Judiciária - Comarca de


Caçapava
Andréia Ferreira Santana - Psicóloga Judiciária - Comarca de Jundiaí
Andreza Cristina Oliveira da Silva Calixto - Assistente Social Judiciária - Comarca de
Campinas
Aparecida Madalena da Silva - Assistente Social Judiciária - Foro Distrital de
Paulínia da Comarca de Campinas
Claudemir Leite de Almeida - Assistente Social Judiciário - Vara Central da Infância
e da Juventude
Débora Nunes de Oliveira - Assistente Social Judiciária - Comarca de Embu das
Artes
Florival Scheroki - Psicólogo Judiciário - Comarca de Itapecerica da Serra
Gisele Perez da Silva - Assistente Social Judiciária - Comarca de Campinas
Renata Dias Galan Sommerman - Psicóloga Judiciária - FR VI – Penha de França
Rosemeire Aparecida do Nascimento - Psicóloga Judiciária - FR II Santo Amaro
Samira Leinko Matsuda Raphael - Assistente Social Judiciária - Comarca de
Itaquaquecetuba
Tainah Rosa Resplande - Assistente Social Judiciária - Comarca de Jacareí
Taís Ribeiro Gaspar - Psicóloga Judiciária - Comarca de Guaratinguetá
Thabata Dapena Ribeiro - Assistente Social Judiciária - Comarca de Jacareí
Vanessa Cristina de Jesus - Psicóloga Judiciária - Comarca de Guaratinguetá
Viviane Souza da Silva - Assistente Social Judiciária - Comarca de Taubaté

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“Os opressores, falsamente generosos, têm


necessidade, para que sua “generosidade”
continue tendo oportunidade de realizar-se,
da permanência da injustiça. A “ordem”
social injusta é a fonte geradora,
permanente, desta “generosidade” que se
nutre da morte, do desalento e da miséria”.
(Paulo Freire, 1987, p.31)

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INTRODUÇÃO

Apresenta-se o texto intitulado “Limites, Possibilidades e Desafios da Atuação


Técnica Frente ao Acolhimento de Crianças e Adolescentes”, resultante das
discussões ocorridas nos encontros mensais ao longo do ano de 2014.
O que norteou o grupo para o tema, demasiadamente abrangente para um
período de nove encontros, foi a característica comum dos participantes ser a
maioria técnicos recém-ingressos no Tribunal de Justiça de São Paulo, e apresentar
inúmeras dúvidas sobre o papel dos técnicos judiciários no cotidiano frente a
realidades das diferentes Comarcas, ansiando por atuar de forma ética e de acordo
com competências técnicas e atribuições descritas.
Assim, as reflexões grupais tomaram como ponto de partida os aspectos
legais e os referenciais teóricos que contribuíram, ao longo da história, para o
entendimento da criança e do adolescente acolhido enquanto cidadão e que
possibilitaram a discussão para o reordenamento das instituições de acolhimento.
Foram estudados e discutidos o Estatuto da Criança e do Adolescente, a
Política Nacional de Assistência Social (PNAS), o Plano Nacional de Convivência
Familiar e Comunitária (PNCFC), as Orientações Técnicas para Serviços de
Acolhimento, a Tipificação dos Serviços Socioassistenciais, o Parecer 04/2010 da
Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, entre outras leis e normativas.
Buscou-se conhecer e aprofundar as questões relativas à atuação técnica dos
psicólogos e assistentes sociais em cada etapa do processo de acolhimento, desde
o diagnóstico ao desligamento. Para tanto, estudou-se dois modelos de fluxos de
acolhimento utilizados em duas Comarcas do interior, representadas no grupo, a fim
de problematizar as ações dos técnicos do judiciário e da rede de serviços e
identificar qual a atribuição ou competência de cada órgão do Sistema de Garantia
de Direitos.

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No decorrer das discussões dos documentos supracitados e das atuações


técnicas, bem como das modalidades de serviços ofertados nas diferentes
Comarcas onde os técnicos estão lotados, identificou-se diferenças nas condições
dos serviços da rede socioassistencial e no modo de atuação dos membros do
Grupo de Estudos. Tal panorama suscitou questionamentos para além do que as
leis, normativas e orientações técnicas preconizam, remetendo às realidades sociais
e políticas do entorno das Comarcas, que motivou o grupo a elaborar um roteiro
semiestruturado que permitisse conhecer tais realidades (ANEXO I), a partir das
respostas dos próprios participantes do grupo.
O presente texto descreve o percurso, realizado pelo Grupo de Estudo,
apresentando primeiramente os referenciais teóricos estudados, na sequência, os
dados obtidos através do roteiro proposto e as discussões suscitadas a partir destes,
e, para finalizar o caminho trilhado, comentários e reflexões que apontam para a
complexidade do tema abordado e a necessidade de se manter permanentemente o
espaço para discussão e construção de conhecimento nesta área de atuação.

ASPECTOS HISTÓRICO-LEGAIS DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA


SOCIAL

No período de 1927 a 1990 predominou no Brasil a Doutrina da Situação


Irregular, referenciada no Código de Menores e no Direito Penal do Menor. A criança
e o adolescente pobre era entendido como “ameaça social” ou “em situação
irregular” por sua condição de pobreza ou conflito com a lei.
Desde que o Estado começou a intervir no campo social, as questões
relativas à criança e ao adolescente tornaram-se específicas da atuação da
assistência social. Por esta razão é importante apresentar em linhas gerais algumas

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especificidades da Política de Assistência Social consagrada na Carta Magna de


1988.
A partir da Constituição Federal (1988), a assistência social é legalmente
concebida como uma política pública de seguridade social que integra as funções de
proteção social do Estado e passa a ser nomeada como um direito do cidadão e um
dever do Estado, contrapondo-se à noção da assistência como um conjunto de
iniciativas de caráter assistencialista, dependente da boa vontade e de favores.
Conforme o Artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão”.
Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente é promulgado sob a
Doutrina da Proteção Integral, assegurando no artigo 19 que “toda criança ou
adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de
substâncias entorpecentes”.
Em 2004 é criada a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que
apresenta como uma das principais diretrizes que: “A proteção social deve garantir
as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e autonomia);
de acolhida; de convívio ou vivência familiar” (PNAS, 2004, p.32).
A PNAS (2004) divide a proteção social como forma de organizar,
potencializar e otimizar os serviços do sistema descentralizado e participativo da
assistência social, em dois níveis de proteção: Proteção Social Básica e Proteção
Social Especial.
A Proteção Social Básica tem caráter preventivo de situações de risco por
meio do desenvolvimento de potencialidades e fortalecimento de vínculos familiares
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e comunitários, com serviços executados de forma direta nos Centros de Referência


da Assistência Social – CRAS e em outras unidades desta política, assim como de
forma indireta nas entidades e organizações que prestam serviços na área de
abrangência dos CRAS.
Já a Proteção Social Especial, de natureza protetiva, é destinada à
população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza,
privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre
outros) e/ou fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de pertencimento social:
discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras.
A Proteção Social Especial se subdivide em níveis de complexidade:
Proteção Social Especial de Média Complexidade e Proteção Social Especial
de Alta Complexidade.
A Proteção Social Especial de Média Complexidade oferece
“atendimentos às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos
vínculos familiar e comunitário não foram rompidos (...)” (PNAS, 2004:39); enquanto
que na Proteção Social Especial de Alta Complexidade observa-se os serviços
que
[...] garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização
e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram
sem referência e/ou em situação de ameaça, necessitando ser
retirados de seu núcleo familiar e/ou comunitário [...] (PNAS,
2004:39).

Portanto, é na política de Proteção Especial de Alta Complexidade que estão


integradas as diversas modalidades de Serviços de Acolhimento para crianças e
adolescentes.
Os serviços de Proteção Social Especial atuam diretamente ligados com o
Sistema de Garantia de Direitos, exigindo uma gestão mais complexa do Poder
Executivo.

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Em 2006 é finalizado o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do


Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária
(PNPCFC), que tem como proposta o rompimento com a cultura de
institucionalização de crianças e adolescentes, identificando que a manutenção dos
vínculos familiares e comunitários está diretamente relacionada ao investimento nas
políticas públicas de atenção à família.
A Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009, “Lei da Convivência Familiar”
conhecida indevidamente como “Lei da Adoção”, dispõe sobre a garantia do direito a
convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, resultando na primeira
grande reforma do ECA. Alguns artigos do Estatuto sofreram mudanças meramente
terminológicas e outros, mudanças profundas e significativas após 24 anos de sua
promulgação.
Também em 2009, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e o
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)
aprovaram o documento “Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes” com a finalidade de regulamentar a organização e oferta
de Serviços de Acolhimento para o público em questão.
Nesse mesmo ano foi aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS) a Tipificação dos Serviços Socioassistenciais, que estabelece tipologias que
ajudam na identificação e na equiparação dos serviços do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS), colaborando para uma política mais uniforme e efetiva.
Os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes são descritos na
Tipificação em todas as modalidades (Abrigo, Casa-Lar, República e Família
Acolhedora), indicando que devem ser implantados de acordo com as Orientações
Técnicas para Serviços de Acolhimento e com o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Frente a toda a estruturação e articulação da política de Assistência Social e,
principalmente, das alterações que a Lei 12.010/09 trouxe para o ECA, a
Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São
8
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Paulo apresenta o Parecer nº 04/10 que expõe a não admissão, em princípio, da


instauração de “procedimentos verificatórios” (sindicâncias ou pedidos de
providências) para apuração de fatos apresentados pelo Conselho Tutelar, a fim de
garantir o contraditório e a ampla defesa nas Varas da Infância e Juventude.
A partir disso, diante de um melhor entendimento da política de atendimento a
infância e adolescência, do que preconiza o ECA e a PNAS, objetivando evitar a
judicialização das expressões da questão social é promovida por meio de tal parecer
uma movimentação no sentido de orientar e responsabilizar cada ator do Sistema de
Garantia de Direitos quanto a seu papel frente a denúncias e situações de violência,
o que interfere diretamente no diagnóstico dos casos que podem culminar em
acolhimento institucional ou familiar.

ALGUNS ASPECTOS TÉORICOS SOBRE O ACOLHIMENTO


INSTITUCIONAL

O acolhimento é uma medida de proteção que deve observar a


provisoriedade. Entretanto, que ainda se observa um alto o índice de crianças e
adolescentes que permanecem acolhidos há mais de dois anos no país, tempo
máximo recomendado no artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Cerca
de 10 mil crianças e adolescentes (aproximadamente 35%), encontravam-se
acolhidas, conforme levantamento do ano de 2013 do Conselho Nacional do
Ministério Público. Em torno de 50% permanecem no serviço pelo período de seis
meses a dois anos. Estima-se que menos de 20% das crianças e adolescentes
acolhidos permaneçam nos abrigos pelo período igual ou inferior a seis meses,
enquanto que 50% permanecem pelo período de seis meses a dois anos.
Autores como Bowlby (1988), Dolto (1991), Winnicott (1999), Spitz (2000),
Pereira (2003), Nogueira (2004), são unânimes em afirmar que a separação da

9
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criança e do adolescente do convívio com a família, seguida de institucionalização,


pode repercutir negativamente sobre seu desenvolvimento, sobretudo, quando não
for acompanhada de cuidados adequados e administrados por um adulto com o qual
possam estabelecer uma relação afetiva estável, até que a integração ao convívio
familiar seja viabilizada novamente.
Nos primeiros cinco anos e, sobretudo no primeiro ano de vida, as crianças
são particularmente vulneráveis à separação de sua família e ambiente de origem.
Porém, apesar do sofrimento vivido, se um substituto assume o cuidado e lhe
proporciona a satisfação de suas necessidades biológicas e emocionais, a criança
pode retomar o curso de seu desenvolvimento (Bowlby, 1988; Dolto, 1991; Spitz,
2000). Por outro lado, quando isso não ocorre, o sofrimento da criança será intenso
e, segundo Spitz (2000), ela poderá adoecer e até mesmo chegar à morte. Assim,
quando a separação é inevitável, cuidados alternativos de qualidade e condizentes
com suas necessidades devem ser administrados, até que o objetivo de integração à
família (de origem ou substituta) seja alcançado, garantindo-se a provisoriedade da
medida de acolhimento.
Para Winnicott (2005), um ambiente familiar afetivo e continente às
necessidades da criança e do adolescente, constitui a base para o desenvolvimento
saudável ao longo de todo o ciclo vital. Tanto a imposição do limite, da autoridade e
da realidade, quanto o cuidado e a afetividade são fundamentais para a constituição
da subjetividade e desenvolvimento das habilidades necessárias à vida em
comunidade. Assim, as experiências vividas na família tornarão gradativamente a
criança e o adolescente capazes de se sentirem amados, de cuidar, se preocupar e
amar o outro, de se responsabilizar por suas próprias ações e sentimentos. Essas
vivências são importantes para que se sintam aceitos também nos círculos cada vez
mais amplos que passarão a integrar ao longo do desenvolvimento da socialização e
da autonomia.
Entretanto, é preciso avançar na compreensão das dificuldades que as
famílias em situação de vulnerabilidade social têm para oferecer tal ambiente às
10
PODER JUDICIÁRIO
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suas crianças e adolescentes, premidas pelas necessidades de sobrevivência, pelas


condições precárias de habitação, saúde e escolarização, pela exposição constante
aos ambientes de alta violência urbana, dentre outros fatores.
O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 23, parágrafo primeiro,
sinaliza que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo
suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”, sendo que, na
inexistência de outro motivo que indique para tal medida, “a criança ou o
adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente
ser incluída em programas oficiais de auxílio”.
Contudo, o Levantamento Nacional das Crianças e Adolescentes em Serviços
de Acolhimento Institucional e Familiar1 concluiu que os motivos que levam essas
crianças e adolescentes ao acolhimento vinculam-se à pobreza e à privação material
da família de origem.
Altoé (1990) desenvolveu um estudo na década de 90 onde identificou tal
situação nos serviços de acolhimento. Sua pesquisa tratava sobre abandono e o
cotidiano da vida de crianças e adolescentes institucionalizados em uma
determinada fundação filantrópica no Rio de Janeiro que atendia a 2.000 crianças e
adolescentes pobres e detalhou a carência generalizada destas crianças:

[...] à transferência múltipla de ambiente de vida, ao rodízio de


funcionários, ao atendimento impessoal e despersonalizante, à
impossibilidade de construir laços afetivos significativos,
hipoestimulação do desenvolvimento motor, fechamento para o
mundo exterior, monotonia do cotidiano e pobreza das relações
sociais (ALTOÉ, 1990, p. 266).

1
Levantamento promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS) por
meio da Secretaria Nacional de Assistência Social, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), ano 2009.

11
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A autora alertou, ainda, para o sistema disciplinar rigoroso e punitivo, que


castra qualquer expressão de liberdade e autonomia. O caráter do castigo imposto
impossibilita a interiorização da disciplina de forma positiva, favorecendo o
desenvolvimento de um superego rígido e punitivo. Afirmou que "o sofrimento é
fabricado pelo sistema institucional que, pela tentativa de resguardar, proteger e
educar torna a vida de milhares de crianças brasileiras infâncias desperdiçadas,
perdidas, expropriadas das possibilidades de futuro" (ALTOÉ, 1990, p. 268).

A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS E ASSISTENTES SOCIAS NO


ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL: APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO
DOS DADOS DA PESQUISA INTERNA DO GRUPO DE ESTUDOS.

Como proposta de trabalho no Grupo de Estudo, construiu-se coletivamente


um roteiro semi-estruturado, a partir das discussões das realidades das Comarcas
representadas em relação à atuação dos técnicos frente aos casos de acolhimento,
seja institucional ou familiar.
O levantamento foi realizado a partir de uma amostra de 22 técnicos
judiciários, sendo que cinco participantes não responderam o questionário proposto,
portanto, totalizou-se 17 questionários respondidos. Cada profissional preencheu o
questionário em sua própria Comarca, estando livre para consultar os demais
membros de sua equipe. Foi estabelecido no grupo um prazo para que a resposta
fosse encaminhada por e-mail e, depois disto, nos demais encontros, as
informações foram compartilhadas e sistematizadas.
Do total de participantes, nove são assistentes sociais e oito são psicólogos,
com tempo de atuação profissional no judiciário variado, sendo que 12 (70,58%) são
técnicos ingressos há menos de um ano e com experiências profissionais anteriores
em setores da rede de serviços de garantia de direitos, sinalizando que as respostas

12
PODER JUDICIÁRIO
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dos participantes podem conter possibilidades de atuação em rede, com vistas à


proteção integral da família.
Quanto à questão referente às modalidades de serviços previstos na
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais a serem ofertados pelos municípios,
identificou-se que todos participantes indicaram a presença de Serviço de
Acolhimento Institucional na modalidade Abrigo. Em relação à modalidade Casa-Lar,
sua existência foi apontada em apenas três Comarcas, enquanto o Programa
Família Acolhedora e a modalidade de República foram mencionadas em duas
Comarcas.
Assim, depreende-se que há pouco investimento nas modalidades
alternativas ao abrigo, bem como nos serviços que visam ao acolhimento aos que
atingem a maioridade, em contraposição ao que preconizam as normativas relativas
à infância, que prezam pela desinstitucionalização e pelo fortalecimento dos vínculos
familiares.
Em relação ao processo de avaliação nos casos de acolhimento, todos os
participantes afirmaram que já atuaram em casos de acolhimento institucional ou
familiar, sendo que 12 (70,58%) atuaram na fase do diagnóstico (anterior à medida
de acolhimento), 17 (100%) durante o acolhimento e 16 (94,11%) no período de
desligamento (reintegração familiar ou inserção em família substituta), utilizando-se
de diversas intervenções, conforme demonstra a tabela a seguir:

Tabela 1: TIPO DE ATUAÇÃO EM CASOS DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL


Intervenções Nº de Percentual
Respostas
Entrevista com a criança/adolescente 17 100%
Reunião com o Serviço de Acolhimento 17 100%
Entrevista com o núcleo familiar 16 94,11%
Reunião com serviços da Rede SUAS 13 76,47%
Entrevista outros (família extensa, pretendente a 12 70,58%
adoção)

13
PODER JUDICIÁRIO
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Visita Institucional 12 70,58%


Reunião com o Conselho Tutelar 11 64,70%
Visita Domiciliar 11 64,70%
Reunião com serviços da Rede SUS 10 58,82%
Reunião com o Sistema Educacional 07 41,17%
Reunião com Promotoria 06 35,29%
Reunião com projetos comunitários, pastorais 03 17,74%
Reunião com a Defensoria 03 17,74%
Reunião com Conselhos de Direitos 02 11,76%
Outras Reuniões (Comissão Intersetorial e Programas 02 11,76%
habitacionais)

Quanto às atribuições e fazeres fundamentais na área técnica, tendo


como enfoque o acolhimento e a reinserção familiar, sobressalta o número de
respostas que contém a articulação e participação na rede (15 participantes citaram
tal atribuição – 88,23%), demonstrando percepção maior quanto à importância de
implicar os serviços do território no acompanhamento e prestação de serviços à
família que possam garantir a proteção às crianças e adolescentes em
vulnerabilidade.
Além disto, diversas respostas continham enquanto fazeres fundamentais a
utilização de instrumentais tais como: entrevistas com as partes, familiares e com a
criança/adolescente, orientações à família, leitura e estudo dos autos, elaboração de
relatórios, visitas domiciliares e institucionais, o que consideramos como ações
necessárias para a realização do Estudo Social e/ou Psicológico.
Duas respostas enfatizaram a importância de considerar o contexto social no
qual a família está inserida e a necessidade de seu empoderamento.
Em relação às Audiências Concentradas, 16 (94,11%) afirmaram que ocorre
em sua Comarca, sendo que 12 deles já participaram enquanto técnicos do
judiciário. Um dos pesquisados não respondeu as questões relativas ao assunto.

14
PODER JUDICIÁRIO
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As Audiências Concentradas ocorrem, em sua maioria, no Fórum (8 de 16


respostas / 47,05%), mas também podem ocorrer na Instituição de Acolhimento (5
de 16 respostas / 29,41%) e/ou em ambos os locais (3 de 16 respostas / 17,74%).
Ressalta-se que a realização de Audiências Concentradas nas Varas da
Infância e Juventude tornou-se obrigatória a partir do Provimento n.º 32 da
Corregedoria Nacional de Justiça, de 24 de junho de 2013.
Sobre a participação nas Audiências Concentradas, verifica-se que, além
do Ministério Público e da Defensoria Pública, foi identificada a intimação dos
demais órgãos apontados no referido Provimento em seu Art. 1º, § 2º, na seguinte
proporção:

TABELA 2: ATORES PARTICIPANTES DAS AUDIÊNCIAS CONCENTRADAS


Participantes das Audiências Concentradas Nº de Percentua
respostas2: l

Equipe técnica do Serviço de Acolhimento 16 100%

Representantes da Assistência Social 16 100%

Representantes do Conselho Tutelar 11 68,75%

Representantes da Saúde 11 68,75%

Representantes da Educação 9 56,25%

Representantes da Habitação 5 31,25%

Representantes de ONG´s, projetos comunitários 1 6,25%


e entidades sociais

2
Um participante não respondeu a questão, portanto, considera-se o total de 16 respostas.

15
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nota-se que os principais atores convocados para as Audiências


Concentradas são os técnicos da Instituição de Acolhimento e representantes da
Assistência Social, mais precisamente, representantes do Centro de Referência
Especial de Assistência Social (CREAS), serviço da Proteção Social Especial que
tem por objetivo contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários.
Em segundo, é mencionada a participação de representantes do Conselho
Tutelar que, em tese, devem ter conhecimento sobre a situação e as medidas
adotadas antes do acolhimento institucional. No mesmo patamar há a referência da
participação de representantes da área da saúde, entre os serviços foram citados:
CAPS Infantil, CAPS Álcool e Drogas, Caps Adulto e Unidades Básicas de Saúde.
Na sequência, há referência aos representantes da educação, portanto,
infere-se que a articulação das políticas sociais básicas são fundamentais para o
enfrentamento das vulnerabilidades.
Quanto ao setor de habitação ter sido citado por cinco profissionais, reitera-se
que muitos casos de acolhimento de crianças e adolescentes tem relação estreita
com a pobreza e, nos casos mais graves, com a falta de moradia digna.
Outro aspecto relevante refere-se à participação da criança e do
adolescente nas Audiências Concentradas. Embora 11 técnicos (68,75% -
considerando 16 respostas) tenham relatado que há participação das crianças e
adolescentes em suas Comarcas, dentre estes, apenas quatro (25%) indicaram que
eles são ouvidos e outros quatro (25%) afirmaram que apenas os adolescentes são
ouvidos, não tendo a criança direito a voz ativa, havendo uma diferenciação quanto
à faixa etária.
Quanto aos casos em que houve a Destituição do Poder Familiar, três
(18,75%) informaram que não são tratados em Audiência Concentrada; o mesmo
número de pessoas não soube informar; seis profissionais (35,29%) informaram que
os casos são levados e debatidos, porém a criança/adolescente não é ouvida. Outro
profissional aponta que ocorre apenas para adolescentes que estão completando a
maioridade. Apenas quatro (23,52%) afirmaram que a Audiência ocorre nesses
16
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

casos da mesma forma, com a finalidade de informar quanto ao processo de


colocação em família substituta.
Face às diferenças de realidade e formações profissionais, buscamos
compreender melhor quais os aspectos facilitadores e dificultadores no trabalho
técnico frente ao acolhimento de crianças e adolescentes e também seus impactos
em relação aos seguintes pontos3:
1. Retorno para a família natural
2. Inserção na família extensa
3. Colocação em família substituta
4. Preparação para a vida independente
5. Cumprimento da provisoriedade da medida de acolhimento
6. Trabalho em rede
7. Relação entre o judiciário e os serviços de acolhimento

Observa-se que, de acordo com a categorização das respostas, o trabalho em


rede é citado como um aspecto facilitador, principalmente no retorno para a família
natural e na inserção da criança/adolescente sob guarda na família extensa (7
citações em ambos os pontos – 41,18%). Entende-se que a intervenção da
Assistência Social por meio do CRAS e/ou CREAS com atendimento especializado e
individualizado às famílias, possibilita o fortalecimento dos vínculos familiares. O
trabalho em rede nestes casos também permite a troca de informações, discussão
mais ampliada e a continuidade no acompanhamento após o desligamento dos
Serviços de Acolhimento por um período maior do que seis meses.
O interesse das famílias natural e extensa em reaver o cuidado com as
crianças/adolescentes acolhidos é citado como facilitador por quatro participantes
(23,53%), tendo como impacto principal a mobilização da família no sentido de

3
Ressalta-se que um mesmo participante pode ter elencado mais que uma resposta.

17
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

buscar auxílio e superar suas dificuldades que culminaram no acolhimento


institucional ou familiar.
A busca ativa de familiares das crianças/adolescentes realizada pelos
Serviços de Acolhimento também tem peso significativo (5 de 17 respostas /
29,41%) quando se trata de inserção na família extensa com a finalidade de garantir
o direito à convivência familiar. O apoio da família extensa também é avaliado como
algo que ajuda a prevenir situações que culminem em um novo acolhimento na
mesma quantidade de respostas.
Na colocação em família substituta, os Grupos de Apoio a Adoção foram
apontados como um fator facilitador pela maioria dos participantes (6 de 17
respostas / 35,29%), seguido pelo Curso Preparatório Obrigatório realizado pelo
Setor Técnico (4 de 17 respostas / 23,53%), com impacto em adoções mais bem
sucedidas e diminuição nas “devoluções” durante o Estágio de Convivência.
Outros fatores considerados como importantes, citados em três das respostas
(17,65%), são: o Cadastro Nacional de Adoção, o número de pretendentes
cadastrados na Comarca, a detecção precoce da falta de interesse da família de
origem e extensa em reaver o cuidado com as crianças e o atendimento às
crianças/adolescentes pelo Setor Técnico para iniciar o processo de aproximação.
Entende-se como impacto positivo: a possibilidade de encontrar pretendentes
com perfil menos seletivo, agilização processual, diminuição no tempo de
acolhimento e maior conhecimento das crianças/adolescentes disponíveis para a
adoção, suas demandas, medos e desejos.
Em relação à preparação do adolescente para a vida independente, se
identifica que políticas públicas específicas para os adolescentes são os maiores
facilitadores (6 de 17 respostas / 35,29%), além da parceria das instituições com
ONG´s (5 de 17 respostas / 29,41%) e com empresas (3 de 17 respostas / 17,65%)
para profissionalização e inserção no mercado de trabalho. Os principais impactos
são adolescentes independentes e inseridos no mercado de trabalho
(respectivamente 8 e 5 de 17 respostas / 47,06% e 29,41%).
18
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Para o cumprimento da provisoriedade da medida de acolhimento, a


discussão dos casos em rede é um caminho para seis profissionais (35,29%); outro
facilitador é priorização dos processos de acolhimento por todo o sistema judiciário
(6 de 17 respostas / 35,29%), ambos com impacto na diminuição do tempo de
acolhimento e agilização processual (12 de 17 respostas / 70,59%).
Verifica-se que o trabalho em rede, quando bem estruturado, é facilitador em
todos os pontos levantados, considerando suas diversas formas (parcerias,
discussões de casos, troca de informações, etc.). Para que tal estruturação
aconteça, sinaliza-se que é fator essencial a disponibilidade e o engajamento dos
atores envolvidos, além do conhecimento e respeito ao papel de cada um (7 de 17
respostas / 41,18%).
As reuniões periódicas e a formação de comissões intersetoriais também são
apontadas enquanto fatores facilitadores por cinco pessoas (29,41%). Ressalta-se
que a equipe técnica do Poder Judiciário, preferencialmente, deve compor tais
comissões e estar presente em reuniões, principalmente quando se trata de casos
de acolhimento institucional ou familiar, impactando em melhor conhecimento e
entendimento dos casos (6 respostas de 17 respostas / 35,29%), tendo em vista
alcançar percepções que vão além de relatórios e peças processuais. O trabalho em
rede também resulta em implicar cada ator ou serviço em ações intersetoriais
simultâneas, acordadas previamente.
Ao se tratar da relação entre o judiciário e os Serviços de Acolhimento, o
Setor Técnico Forense geralmente é entendido como mediador e até mesmo
interlocutor das demandas e orientações. O trabalho em parceria é visto como maior
facilitador (8 de 17 respostas / 47,06%) impactando em melhor compreensão dos
casos e ações assertivas em relação à situação da família (respectivamente 6 e 7 de
17 respostas / 35,29% e 41,18%). O acompanhamento conjunto das famílias
também é citado (4 de 17 respostas / 23,53%), entretanto é importante destacar a
necessidade de demarcarmos bem o papel de cada um, para que este não se torne
um trabalho em duplicidade, mas sim, um trabalho complementar e efetivo.
19
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Quanto aos aspectos dificultadores, de acordo com a categorização das


respostas, no que diz respeito ao retorno para a família natural observa-se que 16
participantes (94,12%) elencaram como fator importante para a dificuldade do
retorno da criança/adolescente à família natural a ausência ou insuficiência de
serviços/políticas públicas. Em seguida, aparece com cinco citações (29,41%) a
questão da dependência química por parte dos genitores; também com este
percentual a situação de não mobilização por parte da família para reassumir a
criança/adolescente. Ainda foi apontada por três técnicos (17,65%) a questão da
desarticulação da rede socioassistencial.
O impacto dessas situações, de acordo com 12 participantes (70,59%) é o
aumento do tempo de acolhimento. Para cinco profissionais (29,41%), as
dificuldades recaem sobre a família, a qual é culpabilizada pela dificuldade na
reintegração da criança/adolescente ao convívio familiar.
O que dificulta a inserção da criança/adolescente na família extensa, de
acordo com seis indicações (35,29%), é a falta de interesse dos membros desta
família em assumir a guarda das crianças/adolescentes. No entanto, para cinco
participantes (29,41%), a família extensa não apresenta possibilidade em acolher
estas crianças/adolescentes por também estarem em situação de vulnerabilidade ou
extrema pobreza. Outros quatro participantes (23,53%) consideram que faltam
mecanismos de mapeamento da rede de apoio da criança/adolescente acolhido. Por
fim, para três técnicos (17,65%), a postura do abandono familiar também está
presente na família extensa.
Tais situações impactam num maior tempo de acolhimento institucional, de
acordo com o apontado por 13 participantes (76,47%). Para quatro participantes
(23,53%) há um aumento no número de crianças/adolescentes com indicação de
colocação em família substituta.
A morosidade do sistema judiciário configura-se como um fator que dificulta
a colocação em família substituta, conforme apurado em nove respostas, o que
corresponde a 52,94% dos questionários. Observamos ainda que sete técnicos
20
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

(41,18%) apontaram que o elevado número de crianças/adolescentes que não


atendem ao perfil dos pretendentes, no caso da adoção, também contribui para a
dificuldade em colocação em família substituta.
Convém refletir sobre este apontamento e considerar que o desejo de 70,23%
dos pretendentes é por crianças de até 3anos de idade4, assim podemos inferir que
o perfil elencado pelos pretendentes se constitui num dificultador para a colocação
de crianças/adolescentes em família substituta.
Para outros quatro participantes (23,53%) a orientação aos pretendentes à
adoção carece de melhorias; aqui também se deduz que o técnico necessita
qualificar seu atendimento concernente aos pretendentes à adoção.
O impacto dessas dificuldades também resulta num maior tempo de
acolhimento institucional, no entendimento de sete participantes (41,18%) e,
consequentemente, crianças e adolescentes veem diminuídas as chances de serem
adotadas, o que foi observado em cinco respostas (29,41%).
A ausência e/ou insuficiência de projetos, programas ou políticas públicas
voltadas para os adolescentes foi citada por 12 participantes (70,59%) como um
fator que dificulta a preparação para a vida independente. Corrobora para esta
percepção o fato de não existirem Repúblicas na maioria dos municípios, de acordo
com o apontado por quatro participantes (23,53%). Uma equipe técnica
despreparada para lidar com estas questões foi verificada em três respostas
(17,64%), mesmo percentual para a citação de que os adolescentes oferecem
resistência a esta preparação.

A dificuldade encontrada na preparação para a vida independente faz com


que o adolescente, ao atingir a maioridade, não tenha perspectiva de ascensão
pessoal e profissional, conforme apontado por 15 participantes (88,23%).

4
Conforme o Conselho Nacional de Justiça: Cadastro Nacional de Adoção. Dados Estatísticos de
Pretendentes - Brasil www.cnj.jus.br Acesso em: 16 nov. 2014.

21
PODER JUDICIÁRIO
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Na questão sobre a dificuldade quanto ao cumprimento da


provisoriedade da medida de acolhimento, o destaque foi o entendimento de que
a família não se mobiliza adequadamente para reassumir a criança/adolescente.
Esta resposta aparece seis vezes (35,29%). Em seguida, foram pontuadas a falta de
investimento nos trabalhos com a família por parte da instituição de acolhimento, a
falta de políticas públicas e o sistema de trabalho burocrático, que perdura, no
Judiciário, com cinco indicações (29,41%) cada.
Também foram citadas as situações de grande volume de trabalho, programa
família acolhedora em número insuficiente para a demanda, ausência de família
extensa, investimento na família de origem por grande período de tempo. O impacto
de tais situações na visão de 12 participantes (70,59%) é o maior tempo de
permanência na instituição de acolhimento.
O principal fator que dificulta o trabalho em rede, elencado por sete
participantes (41,18%) foi a dificuldade na comunicação entre a equipe técnica dos
Fóruns e as instituições que compõem a rede de serviços socioassistenciais. Outro
fator de destaque foi a falta de clareza quanto aos papeis de cada ator da rede,
referida em seis repostas (35,29). Também foram apontadas: a resistência dos
serviços em relação à família e a falta de capacitação profissional, ambas com
quatro indicações (23,53%).
A dificuldade de se trabalhar em rede prejudica a busca de alternativas para o
desligamento de crianças e adolescentes das instituições de acolhimento,
prolongando assim a permanência nestas instituições, foi o que responderam 13
participantes (76,47%).
Com relação aos fatores que dificultam a relação entre o Judiciário e os
serviços de acolhimento, observa-se que, para cinco participantes (29,41%), o
grande volume de trabalho nas Varas gera, consequentemente, uma dificuldade em
se aprofundar no caso. Outros quatro participantes (23,53%) responderam que a
visão divergente entre a equipe técnica do judiciário e a do serviço de acolhimento
com relação a condutas no caso é algo que dificulta a relação entre estas duas.
22
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A questão de recursos humanos e materiais insuficientes para o


desenvolvimento de um acompanhamento de qualidade aparecem em três citações
(17,65%) e a dificuldade de relacionamento para com os técnicos da instituição de
acolhimento foi citada em dois questionários (11,76%).
Em menor escala, aparecem como fatores que dificultam a relação entre o
Judiciário e os serviços de acolhimento: a falta de capacitação dos técnicos desses
serviços, a rotatividade dos técnicos dos serviços de acolhimento, postura
centralizadora por parte do magistrado e do representante do Ministério Público e a
morosidade do Judiciário.
O impacto dessas dificuldades entre o Judiciário e serviço de acolhimento,
conforme seis participantes (41,18%) é a falta de sincronismo nas ações.
Diante das dificuldades levantadas ocorreu a reflexão sobre quais são as
possibilidades de intervenção. Constata-se que, para 14 dos 17 participantes
(82,35%) uma postura ético-política e a articulação do trabalho em rede são
condições imprescindíveis para a garantia de acesso das famílias às politicas
públicas, as quais em muitos casos, pela sua ineficiência e ineficácia dos
equipamentos do Estado não têm garantido os direitos que são assegurados aos
cidadãos.
Destaca-se a seguir respostas que demonstram tal movimentação relativa às
possibilidades de intervenção no que diz respeito a políticas públicas:

Sim, acredito que também é nosso o papel mobilizar e articular os


atores envolvidos, inclusive da sociedade civil (usuários) para que se
organizem e cobrem a efetivação ou a implantação de políticas
publicas que deem conta da demanda existente, o que é fundamental
para se evitar acolhimentos (agindo na prevenção/atenção básica) ou
quando for necessário, para que perdure pelo menor período
possível. (P 08)

23
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Fortalecimento da rede de serviços socioassistenciais, implantação


de uma república para jovens e melhorar a parceria com o Ministério
Público. Quanto à questão de moradia, há uma discussão sendo feita
para inclusão na Lei Municipal de Habitação de casos “sociais”, tais
como casos de crianças acolhidas como aqueles os quais merecem
maior atenção e prioridade na Política Municipal de Habitação, como
ocorre nos casos de calamidade, enchentes e áreas de risco. (P 04)

Os gestores das instituições de acolhimento precisariam assumir o


verdadeiro papel de medida de proteção; adequando a instituição às
orientações técnicas do MDS, selecionando e capacitando todos os
profissionais; garantindo formação continuada. Fiscalizações
periódicas e mais rigorosas das instituições. Políticas públicas de
investimento nas famílias para realmente ser atingida a emancipação
e autonomia [...]. (P10)

Depreende-se nas respostas de 16 participantes (94,12%) uma postura


política e militante das causas sociais e não apenas uma postura neutra e tecnicista
descontextualizada da realidade social. Identificou-se a valorização e a mobilização
dos técnicos judiciários nos conselhos de direitos, atuando no controle social para
que de fato se efetive as politicas públicas. Apontou-se ainda para a necessidade da
sensibilização do Poder Judiciário, do Ministério Publico e da Defensoria Pública no
que concerne a atuar priorizando o direito e o melhor interesse da criança e do
adolescente:

Disposição para articular o encontro com os atores sociais e


sensibilizar o promotor ante à ausência de políticas públicas, pois se
estas não existem ou são ineficazes não é possível realizar
intervenções eficazes. (P 12)

24
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Em relação a alguns deles o trabalho de intervenção persiste, como


por exemplo, o trabalho de discussão com a rede que pode a médio
e/ou longo prazo sensibilizar não só o Judiciário, mas os operadores
do Direito e da comunidade como um todo em atender o máximo
possível o direito de crianças e adolescentes acolhidos [...] (P03).

As respostas de dois técnicos judiciários continham que o laudo social ou


psicológico pode ser um instrumento de controle social e de mobilização visando
assegurar os diretos dos cidadãos. Segue uma dessas respostas que contém outras
possibilidades:
Denunciar no exercício de nossas atuações e nos laudos
psicológicos a ineficiência e a ausência de politicas públicas voltadas
à garantia dos direitos dos cidadãos, priorizar o atendimento em rede
construindo documentos como os fluxos de atendimento em rede e
formalizando tais atuações em um Plano Municipal de Atendimento.
Atuar de forma ética, crítica e ativa realizando uma avaliação
histórica e sócio-política do entorno dos casos que atuamos. Criar
grupos de estudo e discussão de casos com a rede e fortalecer os
grupos de estudo do judiciário [...] (P 15)

Além disto, outros três técnicos (17,65%) pontuaram que a atuação precisa
ser proativa tanto das equipes técnicas como por parte das autoridades judiciais,
promovendo encontros em rede, discussão de casos realizando uma avaliação que
considere contexto histórico, o entorno de cada núcleo familiar, bem como o
fortalecimento e estreitamentos das relações entre as equipes do judiciário e as
equipes do acolhimento institucional.
Quanto aos fatores internos e externos à família determinantes para o
acolhimento, a maioria sinaliza como fatores internos a dependência do álcool e de
drogas (16 de 17 respostas / 94,11%), conflitos e violência familiar (15 de 17
respostas / 88,23%).
25
PODER JUDICIÁRIO
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Como fatores externos: a ausência de políticas públicas de habitação,


educação, esporte, lazer e saúde (tratamentos contra drogadição, alcoolismo e
doenças mentais) apontados por 100% dos profissionais, além da desarticulação da
rede de serviços e proteção (16 de 17 respostas / 94,11%). Identificou-se o
envolvimento com a prostituição e o tráfico de drogas como fatores sintomáticos das
famílias (11 de 17 respostas / 64,70%).
Seguem algumas respostas que refletem a percepção dos técnicos:

Fatores Internos: desafeto na relação familiar, alcoolismo,


drogadicção, negligência. Fatores Externos: condição
econômica, ausência de moradia, ausência de programas
contra alcoolismo e drogadição, concentração / formação de
bolsão de miséria; falta de programas de atendimento ao
adolescente dependente químico, falta de programas que
visem à saúde mental tanto para o adulto como para crianças e
adolescentes. (P 3)

Internos: Presença de violência doméstica (maus tratos e


abuso sexual), uso de drogas e envolvimento dos genitores
com o tráfico, quadros de saúde mental sem apoio de
familiares, ausência de rede social de apoio nos núcleos
familiares em vulnerabilidade social, dificuldade de acesso das
famílias em extrema pobreza às politicas públicas que lhes
reservaria direitos, gravidez na adolescência sem estrutura
familiar e envolvimento com a prostituição. Fatores Externos:
A desarticulação da rede de serviços sociassistencial, rede de
serviço ineficiente e frágil para atuar na prevenção das
situações de violação de direitos que deveria ser desenvolvido
pelos CRAS juntos nas comunidades locais e
26
PODER JUDICIÁRIO
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consequentemente o aumento da demanda para os serviços do


CREAS, que não consegue acompanhar os casos os quais os
familiares estão com seus direitos violados gerando situações
criticas e de extremo risco acarretando a medida de
acolhimento institucional.
(P 15)

Internos: reprodução do ciclo de violência; distúrbios


psicológicos e/ou psiquiátricos; dependência química;
desestabilidade emocional; conflitos familiares. Externos:
insuficiência de políticas sociais básicas; ausência de serviços
especializados; aspectos da região (coronelismo,
assistencialismo); desconhecimento das atribuições dos
órgãos; o acolhimento muitas vezes é utilizado como única
opção, ao invés de ser a última. (P 5)

Nos casos de Destituição do Poder Familiar verifica-se que o fator de maior


presença apontado em 13 dos 17 questionários respondidos (76,47%) é a
dependência química na família.
O descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, negligência e o
abandono familiar aparecem com a mesma frequência que a
negligência/desproteção pelo Estado e ausência de políticas públicas e/ou oferta de
serviços, apontados em nove dos 17 questionários respondidos (52,94%).
A não adesão da família aos encaminhamentos teve destaque em cinco das
17 respostas (29,41%).
Outras questões pontuadas foram: abuso sexual, ausência de família extensa,
maus tratos e violência física; cada um deles apareceu três vezes nas respostas
obtidas, isoladas ou cumuladas com as questões acima.

27
PODER JUDICIÁRIO
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Em menor escala, foram apontados como fatores presentes nas ações de


Destituição do Poder Familiar: o envolvimento da família com o tráfico de drogas, a
impossibilidade de reorganização familiar, o despreparo de profissionais e a
ausência de busca ativa na família.
Em relação à mobilização da rede de apoio sociofamiliar, compreendendo
tal rede como composta por pessoas de referência para as crianças e adolescentes
acolhidos, independente de laços sanguíneos, verifica-se em oito respostas
(47,05%) que esta ação é dever dos Serviços de Acolhimento. Observa-se que,
dentre estas, três (17,64%) sinalizam que é necessário o incentivo do Setor Técnico
do Judiciário para que isto aconteça e também a intervenção conjunta.
Duas respostas (11,76%) apontam como ação do Setor Técnico, que
identifica essas pessoas por meio das entrevistas com a criança/adolescentes e
seus familiares.
Outros dois profissionais (11,76%) citam que a mobilização da rede
sociofamiliar tende a ser realizada por meio das orientações, encaminhamentos e
acompanhamento sistemático por parte do Serviço de Acolhimento e do CREAS.
Um profissional ressalta que pessoas que não possuem vínculo de
parentesco com a criança ou adolescente, só podem retomar o contato com os
acolhidos por meio de autorização judicial. Uma das respostas indica que esta rede
não é acionada.
Três participantes (17,64%) confundiram rede sociofamiliar com rede de
serviços socioassistenciais, assunto já pontuado em outras questões.
Em se tratando dos maiores desafios enfrentados no cotidiano do
trabalho dos técnicos, tendo em vista a realidade do Poder Judiciário,
observamos que a ausência ou insuficiência de políticas públicas (saúde,
assistência social, educação, lazer, esportes) foi o desafio apontado com maior
incidência pelos participantes, sendo oito (47,05%) o número daqueles que o
mencionaram.

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PODER JUDICIÁRIO
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Tal informação é relevante quando se considera que a ausência dessas


políticas, instrumentos de atuação da rede socioassistencial, tende a corroborar para
a judicialização das questões sociais, uma vez que passam a ser objetos de
intervenção do sistema jurídiciário. Nesse contexto, ao abordar a questão do
rompimento de laços parentais, Gois (2014, p. 29) afirma que,

Em face da insuficiência de políticas públicas de proteção social, a


inconsistência e a fragilidade da rede social primária são um fator
que emerge quando se analisa processos que resultam no
rompimento de laços parentais [...].

Outro desafio apontado por seis participantes (35,29%) refere-se à falta de


recursos materiais/físicos, tais como: equipamentos, veículo, mobília e até mesmo
sala para atendimento, contrariando o disposto nas normativas e nos Códigos de
Ética do/a Assistente Social e Psicólogo/a no que tange às condições éticas e
técnicas de trabalho5.
Foi pontuada pelo mesmo número de participantes a elevada demanda de
trabalho posta aos técnicos do judiciário, representada pelo número de processos
que não condizem com a quantidade de profissionais. Nesse ínterim, constatou-se
que quatro participantes (23,52%) pontuaram como desafio a falta de recursos
humanos no Setor Técnico. Infere-se que tal situação está relacionada a uma
conjuntura maior de precarização do trabalho que perpassa o sistema sociojurídico,
atingindo toda a classe trabalhadora. Um ponto a refletir refere-se ao risco de se vir
a comprometer a qualidade do serviço executado e o processo de adoecimento dos
profissionais.

5
Código de Ética do/a Assistente Social. Lei nº 8.662/93, de 13 de março de 1993.

Resolução CFESS 493/2006 de 21 de agosto de 2006.

Código de Ética Profissional do Psicólogo, em vigor desde 27 de agosto de 2005.

29
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A ausência de articulação dos técnicos do judiciário com a rede


socioassistencial dos municípios foi apontada por quatro participantes (23,52%)
como sendo um desafio a ser superado. Entende-se essa articulação como tendo
um papel fundamental na efetivação da garantia de direitos de crianças,
adolescentes e suas famílias, bem como no fortalecimento do diálogo e das ações
de enfretamento das questões que incidem no acolhimento institucional e familiar.
Três participantes (11,76%) apontaram como desafio no trabalho cotidiano a
natureza conservadora do sistema judiciário. Historicamente, compreende-se
que essa característica está relacionada à própria ousía da instituição que é, antes
de tudo, “o lócus de resolução dos conflitos pela impositividade do Estado”
(Borgianni, 2013, apud Sousa, 2014, p. 45). Contudo, avalia-se a importância de um
relacionamento horizontal e democrático entre o Poder Judiciário e os demais atores
do Sistema de Garantia de Direitos, visando o atendimento qualificado das
demandas apresentadas no cotidiano.
Também foi levantado pelos participantes (3 de 17 respostas / 17,65%) que
os prazos concedidos para a conclusão do trabalho são muito curtos,
contradizendo a questão da morosidade no andamento dos processos, apontada
pelo mesmo número de profissionais. Cabe salientar a necessidade de atenção para
que a exigência de respostas imediatas relacionadas às práticas desenvolvidas no
cotidiano profissional não prejudiquem a defesa de um exercício técnico qualificado
e comprometido com os valores e normas éticas construídos nos últimos anos.
Ainda para três participantes (17,65%) é necessário tornar efetivamente
prioridade as ações voltadas à infância e juventude, tanto pelo Tribunal de
Justiça, quanto pelos demais órgãos e instituições que integram o sistema de
proteção e prestação de serviços públicos a este segmento. A esse respeito,
destacam-se os marcos legais que preconizam a prioridade dessas ações, como a
Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Plano
Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, entre outros, e, em caso de

30
PODER JUDICIÁRIO
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omissão ou violação por parte do poder público, passíveis de controle social assim
como denúncias por parte da sociedade civil.
Igualmente importante constar os desafios que foram apontados apenas uma
vez (5,88%) pelos participantes, tais como: trabalho fragmentado e individualizado;
ausência de motorista; falta de conhecimento por parte de profissionais da rede
socioassistencial sobre as atribuições do Setor Técnico; despreparo por parte dos
profissionais da rede; falta de aprimoramento profissional; falta de efetividade do
trabalho da rede junto às famílias; limites com as dificuldades psíquicas e sociais de
genitores e família extensa; descompasso entre a legislação e garantia dos direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atuação técnica no judiciário frente aos casos de acolhimento deve ser


cotidianamente repensada para não se resumir em uma postura que apenas
responsabiliza as famílias por não conseguirem cuidar de seus filhos, quando a
realidade denuncia, em diversos casos, a insuficiência e a ineficiência das políticas
públicas municipais, estaduais e federais que, além de parcas, não possuem
característica emancipatória, pois não ofertam condições reais para o enfrentamento
da vulnerabilidade social que decorre da pobreza em um país economicamente
desigual.
Por meio de ações do cotidiano do trabalho – atendimentos, discussões de
casos, visitas às instituições, visitas domiciliares, orientações às equipes técnicas
dos serviços de acolhimento, participação nas Audiências Concentradas, reuniões,
elaboração de estudos, laudos e pareceres, estudos dos autos etc – é que se
multiplicam forças para o empoderamento de cada membro das famílias das
crianças e adolescentes acolhidos, visando garantir-lhes o direito de permanecerem
em suas famílias de origem ou, quando não for possível, a colocação em família

31
PODER JUDICIÁRIO
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substituta, que deve ser um recurso bem trabalhado tecnicamente, buscando o


melhor interesse da criança/adolescente.
Resgatar as possibilidades da família de origem sem perder o tempo da
criança que, cada ano que passa, faz diminuir as chances de adoção, exige
dedicação extrema aos casos de acolhimento em todas as fases (diagnóstico,
acompanhamento, desligamento e pós-desligamento), o que se torna difícil, tendo
em vista a dinâmica do judiciário, a demanda de trabalho e falta de recursos
humanos e materiais, conforme já apontado.
Diante da presteza, urgência e precisão das ações que tais situações exigem,
se observa neste texto diversos apontamentos quanto à necessidade da articulação
e desenvolvimento de um trabalho em rede eficiente, que consiga, considerando o
papel de cada serviço, manter ações simultâneas e complementares, com o objetivo
de compreender o grupo familiar e comunitário, o contexto social, cultural e a rede
de apoio com maior celeridade, prestar atendimento e orientação à família,
ponderando sobre seu histórico nos serviços, sua potencialidade e limites na
avaliação do caso.
O levantamento realizado permitiu observar que, muitas vezes, a oferta de
serviços é mínima ou mesmo desviada da perspectiva emancipatória do indivíduo
para o enfrentamento das causas que deram origem à condição de vulnerabilidade
social, tais como: a pobreza, a má distribuição de renda, a falta de acesso a bens e
serviços, entre outros.
Neste sentido, é fundamental a postura ético-política no exercício profissional,
não apenas uma atuação neutra e tecnicista descontextualizada da realidade social,
como alerta Hannah Arendt, compreender que a dimensão da ação é
indubitavelmente a que mais humaniza o ser do homem. Ação que promove a
liberdade dos homens enquanto inserida na pluralidade, os tornando aptos a
revelarem suas singularidades e ainda em concerto, determinarem o verdadeiro
poder político, essencial para constituição e preservação da esfera pública contra a
prática da violência. Para Arendt, também a experiência deve ser buscada. A
32
PODER JUDICIÁRIO
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singularidade de cada experiência tem um efeito desconstrutivo de regras gerais, e a


profundidade que a experiência confere à vida humana não se dá pela via da busca
de qualquer essência ou referência da natureza, mas pela memória dessa
experiência. E essa memória se dá sempre na forma de fragmento e de
particularidade.
Se todos, e não somente os "especialistas", como ressalta Arendt, são
capazes de pensar, são também capazes de fazer "milagres", de realizar o
imprevisível, o improvável, ou seja, todos são maiores e, portanto responsáveis até
mesmo pela ausência de ação, pela servidão voluntária a que porventura tenham se
submetido se demonstra que, pensar e ser livre, é uma questão de escolha, de
coragem de se valer do próprio entendimento.
Em cada laudo psicológico, em cada estudo social, em cada reunião com a
rede é possível se posicionar politicamente propondo mudanças sociais.
O levantamento realizado neste grupo de estudos no ano de 2014 pretendeu
iniciar a identificação e a discussão sobre a atuação dos técnicos judiciários frente
ao acolhimento de crianças e adolescentes em realidades sociais diferentes uma
vez que, mesmo estando todos atuando no Estado de São Paulo, os serviços que
deveriam ser ofertados pelos municípios conforme a Tipificação dos Serviços
Socioassistenciais bem como os demais serviços na área da saúde, educação,
esporte e lazer os quais respaldam a atuação com famílias, crianças e adolescentes
sob medida de proteção retratam contextos diferenciados. Assim, seria relevante dar
continuidade no ano de 2015 à discussão e problematização das questões
apresentadas no resultado do presente estudo e incentivar aos demais colegas a
expandirem a amostra desta pesquisa para todas as Comarcas do Estado.
Finaliza-se compreendendo que a atuação individual de cada técnico
judiciário pode fazer toda a diferença na história de vida das famílias, ao se
posicionar de forma ética e politica, considerando o contexto social e, a partir dele,
apontar sugestões quanto às mudanças nas políticas públicas, denunciar serviços
não prestados ou disfuncionais, apostando no fortalecimento das famílias. Assim,
33
PODER JUDICIÁRIO
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neste contexto, já se construirão novos caminhos, ao invés de simplesmente criticar-


se o Estado.

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Anexo I – (Questionário)

GRUPO DE ESTUDOS – ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E FAMILIAR


Pesquisa sobre a realidade das Comarcas representadas no Grupo de Estudos
ao que se refere ao trabalho realizado frente ao “Acolhimento Institucional e
Familiar”.
Identificação/Dados profissionais:
Nome (opcional): _____________________________Comarca:
__________________
Idade: ___ Sexo: ( ) Feminino ( ) Masculino Profissão: ( ) Assistente
Social ( ) Psicóloga
Tempo de exercício da profissão: _______________Tempo no Judiciário:
_____
Experiência de atuação na
QUESTIONÁRIO rede socioassistencial:
___________________________
1. Quais são os Serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade
existentes em sua Comarca?
( ) Serviço de Acolhimento Institucional, na modalidade Abrigo
( ) Serviço de Acolhimento Institucional, na modalidade Casa-Lar
( ) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora
( ) Serviço de Acolhimento em República

2. Você já atuou em avaliação para acolhimento institucional ou familiar?


( ) Sim ( ) Não
2.1. Se sim, em que momentos?
( ) Pré-acolhimento (diagnóstico)
( ) Durante o acolhimento (acompanhamento)
( ) Desligamento (reintegração familiar ou colocação em família substituta)

3. Quais intervenções foram utilizadas?


3.1. Entrevista:
( ) com a criança/adolescente
( ) com o núcleo familiar
( ) outros. Especificar: __________________

38
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3.2. Visitas
( ) Domiciliar
( ) Institucional

3.3. Reunião
( ) com o Serviço de Acolhimento
( ) com serviços da Rede SUAS – Sistema Único de Assistência Social
( ) com serviços da Rede SUS – Sistema Único de Saúde
( ) com o Sistema Educacional
( ) com projetos comunitários, pastorais
( ) com o Conselho Tutelar
( ) com a Defensoria
( ) com a Promotoria
( ) com Conselhos de Direitos
( ) outros. Especifique:

4. Que atribuições ou fazeres são fundamentais em sua área técnica? Responda,


dando especial destaque ao trabalho frente ao acolhimento e reinserção
familiar.

5. As Audiências Concentradas estão ocorrendo em sua Comarca? ( ) Sim ( )


Não

Em caso positivo:
5.1. Você já participou em alguma oportunidade? ( ) Sim ( ) Não

5.2. Onde geralmente são realizadas? ( ) No Fórum ( ) Na Instituição de


Acolhimento

5.3. Quais atores geralmente são convocados para as audiências


concentradas?
( ) Serviço de Acolhimento

39
PODER JUDICIÁRIO
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( ) CREAS
( ) Conselho Tutelar
( ) Outros. Especificar: ___________________

5.4. Como se dá a participação das crianças/adolescentes?

5.5. Como acontece a Audiência Concentrada nos casos em que houve


determinação de destituição do poder familiar?

6. Quais os fatores FACILITADORES e os impactos encontrados em sua


Comarca quanto à:

FACILITADORES IMPACTO

6.1. Retorno para


a família natural

6.2. Inserção na
família extensa

6.3. Colocação
em família
substituta

6.4. Preparação
para a vida
independente

6.5. Cumprimento
da provisoriedade da
medida de
acolhimento

6.6. Trabalho em
rede

6.7. Relação
entre o judiciário
e os serviços de

40
PODER JUDICIÁRIO
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acolhimento

7. Quais os fatores DIFICULTADORES encontrados em sua Comarca quanto à:

DIFICULTADORES IMPACTO

7.1. Retorno para


a família natural

7.2. Inserção na
família extensa

7.3. Colocação
em família
substituta

7.4. Preparação
para a vida
independente

7.5. Cumprimento
da provisoriedade da
medida de
acolhimento

7.6. Trabalho em
rede

7.7. Relação
entre o judiciário
e os serviços de
acolhimento

41
PODER JUDICIÁRIO
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8. Frente aos aspectos dificultadores apresentados na questão anterior, você


visualiza alguma possibilidade de intervenção?

9. Na realidade de sua Comarca, quais fatores internos e externos à família são


determinantes para o acolhimento institucional ou familiar?

10. Que fatores estão mais frequentemente presentes em casos de destituição familiar?

11. Nos casos de crianças e adolescentes em acolhimento institucional ou familiar,


como ocorre a mobilização da rede de apoio sociofamiliar?

12. Quais os maiores desafios enfrentados no trabalho, tendo em vista a realidade


do Judiciário?

42
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Lei 12.010/2009 e a entrega espontânea da mãe

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ADOÇÃO I”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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PODER JUDICIÁRIO
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COORDENADORES

Simone Trevisan de Góes- Psicólogo Judiciário – FR. I Santana


Wesley Heleno de Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Suzano

AUTORES

Ana Claudia Sarpi Chiodo – Psicólogo Judiciário – FR. IV Lapa


Ana Paula Duarte Xavier Tutia – Psicólogo Judiciário – Comarca de Santo André
Carolina Laserra Belino Pedroso – Psicólogo Judiciário – Comarca de Sorocaba
Célia Pereira de Lemos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Socorro
Cynthia Mara Gomes Silva de Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Fabiana Aparecida de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Miracatu
Gessylea Matiole – Assistente Social Judiciário – Comarca de Aparecida
Gisele Ferreira Bueno – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi Mirim
Helena Cristina de Souza Figuti – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Taubaté
Jana Pahins Duarte Zompero – Psicólogo Judiciário – Comarca de Andradina
Letícia de Souza Lucas – Psicólogo Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Luciana Andrade Pantuffi – Psicólogo Judiciário – Comarca de Santos
Maíla Rezende Vilela Luiz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Igarapava
Márcia Domingues Moraes Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Maria Angélica Del Esposte Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Jacareí
Mônica Scarmanhani Garrote – Assistente Social Judiciária – Comarca de Andradina
Nicéa Pires de Lemos – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itapeva
Sarita Érika Yamazaki – Psicólogo Judiciário – FR. VI Penha de França
Silvia Aparecida Fabbro Antonelli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Piracicaba
Tânia Mara Vasconcelos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Queluz
Thelma Heleno Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campos do
Jordão
Vanessa Teixeira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
dos Campos
Viviane Cristina de Souza Caroli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba

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PODER JUDICIÁRIO
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“A verdade é que a gente não faz filhos. Só


faz o layout. Eles mesmos fazem a arte-final”
(Luís Fernando Verissimo).

45
PODER JUDICIÁRIO
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INTRODUÇÃO

Motivados pela palestra de Dalva Azevedo de Gois em 2013, que tratou


sobre “Adoções Abertas”, os integrantes do GEA-I, na avaliação final, apontaram
interesse em pesquisar, dentre outros, o tema: “Lei 12.010/2009 e a entrega
espontânea da mãe”.
Tal interesse é reflexo da angústia dos profissionais que vivenciam
cotidianamente um paradoxo entre o que está estabelecido em lei e a prática sobre
adoção. São numerosos os casos de adoções prontas/abertas, em relação ao de
adoções realizadas via cadastro de pretendentes à adoção.
Além disso, temos nos deparado com um número crescente de mulheres
que manifestam desejo de entregar o filho em adoção 6, o que é um fenômeno novo
e suscita dúvidas e questões técnicas e éticas aos profissionais.
Percebemos a escassez de dados sobre o tema, bem como, a diversidade
de práticas nessas intervenções.
Diante deste quadro optamos por estudar textos referentes à entrega da
criança para adoção em duas modalidades: via judiciário ou por escolha direta de
pessoas.
Assim, estudamos textos e relatos de experiências sobre o tema.

6
Conforme o art. 13, parágrafo único da lei 12.010/09: “as gestantes ou mães que manifestem
interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da
Infância e da Juventude”.
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PARTE TEÓRICA

1.1 Dalva Azevedo de Gois


Com referência a palestra sobre o livro “Adoção Consentida: do
Desenraizamento Social da Família à Prática da Adoção Aberta”, a Dra. Dalva
Azevedo de Gois, Assistente Social Judiciário, aposentada do Tribunal de Justiça de
São Paulo, abordou a importância de dialogarmos sobre os enfrentamentos
encontrados pela profissão, com esforço mais efetivo no trabalho social, pois
vivemos numa sociedade contemporânea restritiva, ou seja, nem todos tem acesso
aos direitos básicos.
No que se refere à pesquisa que originou o livro, a palestrante referiu que
trabalhou por muitos anos como Assistente Social da área da saúde. Ao ingressar
no TJ, surpreendeu-se com os processos de adoção “intuitu personae”.
Inquietava-se com a ideia de a entrega espontânea da mãe ser mal
recebida, mal vista e não entendia a estratégia cultural das famílias em entregar os
filhos para conhecidos. Considerava estranha a forma como os juízes e promotores
tratavam a este tipo de adoção.
Os técnicos apresentavam discurso fragmentado sobre o assunto, pensando
que toda adoção pronta poderia se tratar de uma negociação (envolvendo dinheiro
ou vantagens) ou algo incorreto. Ela discordava desta visão.
Prestes a realizar o doutorado, formulou o projeto de pesquisa para
compreender o que estava oculto no processo de “adoção pronta” e iniciou pelo
panorama quantitativo.
Em uma nova etapa, refez a pesquisa sob o ponto de vista da mãe biológica,
formulando questões esclarecedoras que a levassem a compreender as condições
de vida, o motivo que levava a mãe a entregar seu filho, o processo da gravidez, a
definição e a entrega. Relatou que foi uma bela pesquisa, mas dolorosa – durante as
entrevistas ficava estampada no rosto das mães biológicas a dor pela entrega.
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Dra. Dalva também colocou que o primeiro contato com as famílias foi
realizado pela VIJ, para que a pessoa que fosse entrevistada soubesse sua função,
sua posição como doutoranda e o objetivo da pesquisa. O local da entrevista era
discutido e a maioria optou por fazê-la no campus da Universidade.
A pesquisa, concluída no final de 2005 (anteriormente à lei 12.010/09),
contou com cinco famílias, e cada qual participou de pelo menos três entrevistas;
sendo que nenhuma era beneficiária de programas sociais, pois a cobertura desses
programas, na época, comparadas aos dias atuais, era precária.
Na devolutiva da pesquisa, a Dra. Dalva apresentou três opções para as
entrevistadas: se elas queriam um exemplar do livro, a fita gravada ou a transcrição
de suas falas. A maioria optou pela fita e a transcrição, solicitando duas cópias,
sendo uma para elas e a outra para entregar à família da rede de apoio, queriam
que os filhos ouvissem suas vozes e entendessem que a entrega não era um
abandono, mas um ato de amor.
Com a pesquisa, a primeira conclusão da Dra. Dalva, durante a etapa
quantitativa, foi a de que esse tipo de adoção ocorria com maior frequência do que
aquela via Cadastro de Pretendentes à Adoção.
Como uma segunda conclusão: as mães que decidiram entregar seus filhos
tinham consciência de sua falta de condições e do que seria necessário para cuidar
e educar uma criança.
A Dra. Dalva também concluiu que os genitores escolhiam esse tipo de
adoção, fundamentados em critérios próprios. Precisavam ter algum tipo de contato
ou de informação a respeito do filho e garantir a possibilidade de aproximação com
os outros irmãos.
Optavam pela família que possuísse maior entendimento e experiência
sobre adoção, na esperança de que assumissem a responsabilidade de contar à
criança, em momento oportuno, o porquê de ela não estar com a mãe biológica.
Essas mães priorizavam pretendentes que tivessem casa própria para
morar, emprego que correspondesse às necessidades básicas e uma religião. A
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importância de ter uma religião estaria relacionada à possibilidade de desenvolver


na criança uma maior compreensão da vida e valorização do outro.
A pesquisa revelou que a mãe ou a família biológica não tomava a iniciativa
em procurar pelo filho, nem demonstrava interesse em intervir na família adotiva,
mas ficou absolutamente claro que as mães biológicas queriam ter qualquer
informação a respeito da criança. Para elas, a opção pela “adoção pronta”
sobressaía ao acolhimento, pois a possibilidade de vir a não ter notícia do filho, no
caso de ser criado por pessoas estranhas “causava um sentimento ruim”.
Aludiu que a entrega da criança, dentro da rede de convivência, ainda ocorre
nos dias atuais e escapa ao que a lei estabelece. Referiu que, após a pesquisa,
convenceu-se de que o Tribunal de Justiça deveria ter um olhar diferenciado para a
“adoção aberta”.
No entanto, na prática, a adoção pronta continua ocorrendo, pois a lei não a
extinguiu. Os pretendentes são orientados por terceiros a esperarem os três anos
exigidos na Lei 12.010/09 e, só depois, entrarem com processo de guarda e
finalmente, a adoção.
Destaca-se na apresentação realizada pela Dra. Dalva, a sua percepção
positiva a respeito das adoções abertas, os dados sobre a consciência (e critérios)
dos pais biológicos ao escolherem os pais adotivos de seus filhos.
Considerando a perspectiva da autora poderíamos pensar que a mãe que
entrega faz isso de modo consciente e vivencia, com dor, o processo de abrir mão
do filho. Por isso, ela precisa conhecer a pessoa ou família que vai recebê-lo.
Talvez, seja esta uma forma de se assegurar que o filho ficará bem e que a mãe
adotiva proporcionará à criança o conhecimento da situação que originou a sua
entrega, e deste modo venha a criança a concluir que sua mãe biológica não a
abandonou, mas usou de um ato de amor e cuidado para com ela.

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1.2 Fernanda Neisa Mariano

Fernanda Neisa Mariano, doutora em Psicologia, psicóloga do Tribunal de


Justiça paulista, em sua pesquisa de mestrado realizada em 2004, observou a alta
incidência de adoções “prontas” ou diretas, através da análise de processos em uma
comarca do interior do estado de São Paulo, fato que também é observável em
estudos em outras cidades brasileiras.
Diante do contexto encontrado, despertou seu interesse compreender as
diferentes configurações de adoção “prontas” ou diretas, concluindo assim, em 2008,
sua tese de doutorado intitulada “Adoções “prontas” ou diretas: conhecendo seus
caminhos e percalços”.
Inicialmente a autora contextualizou a adoção sob os aspectos sócio-
histórico e cultural. O percurso da pesquisa abordou o tema na perspectiva da
prática social à modalidade de adoção legal, bem como as raízes históricas das
políticas públicas para a Infância no Brasil, que na maioria das vezes estavam
voltadas às práticas assistencialistas e uma visão de pobreza como “algo que
corrompe”, associada à criminalidade. A adoção era interpretada como solução para
a criança pobre, era vista como uma alternativa de “salvá-las da pobreza” e dos
males ligados a esta. Este discurso permeava a legislação da época em que
vigorava o Código de Menores (década de 70 no Brasil).
A adoção sempre existiu como prática social no Brasil e era vivenciada
tendo como norte o campo da fé, era vista como uma boa ação, acolher enjeitados.
A regularização da adoção aconteceu somente no século passado. Outra
característica das adoções no Brasil era seu caráter urbano, sendo que nas
comunidades rurais não ocorria, isto pode ser explicado pelo papel do trabalho
infantil na manutenção da família rural.
Com intuito de apreender diferentes configurações de adoções “prontas”,
através do conhecimento dos diferentes cenários e protagonistas envolvidos, das
interações que podem ocorrer e dos múltiplos sentidos que vão ser construídos
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sobre esta prática adotiva por seus protagonistas, a autora entrevistou quatro
famílias adotantes, três mães biológicas que entregaram seus filhos, mediadores e
operadores do direito.
Uma das modalidades de adoção “pronta” estudada foi aquela em que os
adotantes são parentes ou pertencem à rede de apoio (vizinhos, amigos) da família
biológica. À autora pareceu implicar práticas históricas e culturais de manutenção e
sobrevivência de crianças nas famílias de camada popular.
As adoções realizadas nas instituições de abrigo mostraram-se permeadas
por múltiplos sentidos, entre eles, as formas de assistência à criança e ao
adolescente que vigoraram por muitos anos e com frequência ainda vigoram no
Brasil, nas quais a institucionalização ou a colocação em famílias substitutas tem
sido uma prática recorrentemente utilizada para crianças pobres ou que, por algum
motivo, não podem ser mantidas em suas famílias de origem.
Outra modalidade de adoção apreendida é a que se refere às adoções de
bebês. Esta apresentou uma multiplicidade de sentidos e formas de se realizar, as
quais englobam desde a comercialização de bebês até sua entrega aos adotantes
pela mãe biológica. Os protagonistas referiram-se à complexidade de cenários e de
formas de negociação, nas quais emergiram múltiplos repertórios discursivos de
abandono, trauma, maternidade e adoção.
De maneira geral, sentidos variados de adoção permearam as diferentes
configurações de adoções “prontas”, entre eles, a adoção como solução para as
crianças pobres ou como forma de inclusão social. Por outro lado, a entrega de um
filho para conhecidos parece ter ampliado o grau de satisfação e compreensão dos
protagonistas envolvidos, enquanto que o "silenciamento" e o menor grau de
negociação entre os protagonistas e os cenários foram associados a sentidos de
restrição e imposição.
Em sua tese, Fernanda abarca a falta de registros/dados da família biológica
nos autos processuais, em especial a falta de escuta da família de origem expõe o
jogo de poder nas relações burocráticas e hierárquicas.
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Expõe que a prática de adoções “prontas” foi proibida em vários países. No


Brasil, com o advento de novas legislações essa prática de “caminhos alternativos”
sofreu restrições, em diferentes comarcas do país, no entanto, denota que esse
movimento não é homogêneo. A adoção “pronta” é uma realidade que está em
constante transformação e pode ser uma forma de resistência ao Cadastro, exigido
pela legislação.

1.3 Maria Antonieta Pisano Motta

O livro de Maria Antonieta Pisano Motta, em sua 3ª Edição publicada em


2008, funcionou como um ponto de partida para a discussão sobre as mães que
entregam seus filhos em adoção.
Tendo focado os primeiros dois capítulos desta obra, pudemos acompanhar
o desenho histórico realizado pela autora, que perpassa as várias facetas da adoção
e até mesmo a história prévia da adoção e “do abandono de crianças” ao longo da
história mundial, citando desde o infanticídio na Idade Média até a Roda dos
Expostos (desativada recentemente em 1950).
Na Idade Média o infanticídio era comum e considerado até justificável
diante de uma situação de pobreza extrema ou para salvaguardar a reputação ou o
emprego da mulher.
A Roda dos expostos foi criada como uma alternativa para o grande número
de infanticídios cometidos, para proteção das crianças e destas mães que não
encontravam antes outra saída para fugir de uma situação em que seriam
rechaçadas pela sociedade. A Roda protegia também o segredo dos casais
adotantes, já que a infertilidade também era considerada um tabu social.
Porém, com o tempo, um grande número de crianças que não foram
adotadas aumentou, sendo transferidas para asilos infantis onde cresceram sem

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nunca ter tido a experiência de uma convivência familiar e acarretavam despesas ao


Estado.
Com este panorama, observamos os diversos caminhos e “soluções”
encontrados pela sociedade da época para que uma criança pudesse ser
desvinculada de sua mãe, independente da motivação e do desejo desta genitora.
O principal enfoque trazido por Maria Antonieta está na diferenciação entre
“entrega” e “abandono”. A autora esclarece sobre o significado de abandono, que
engloba entre outras formas: o maltrato infantil, a falta de cuidados e a exploração
da criança, que podem ocorrer nas famílias biológicas, que mantiveram seus filhos.

[...] sabemos da existência de crianças que mesmo vivendo com


seus pais biológicos são absolutamente desatendidas em suas
necessidades básicas de amor, carinho, cuidados e proteção; e há
aquelas que são exploradas nas ruas sob a ‘vigilância’ de suas
mães, ou pior ainda, sem contato algum com seus pais. Resta-nos a
questão: Quem são os verdadeiros filhos do abandono? (MOTTA,
2008, p. 45)

A autora propõe o uso do termo entrega, no lugar de abandono, uma vez


que este último estigmatiza a mãe biológica, como uma pessoa má que abandona o
próprio filho, bem como a criança que passa a ser vista como um abandonado, um
enjeitado pela própria mãe. A entrega já humaniza o ato, sem toda a carga de valor
de juízo moral que o termo abandono encerra.
No texto estudado foram abordadas ainda questões relacionadas ao mito do
amor materno que versa sobre a ideologia da maternidade nascida com a sociedade
burguesa patriarcal, atendendo a interesses da classe dominante da sociedade
daquela época. Mesmo com a evolução dos papéis das mulheres na sociedade,
conseguiu adquirir direitos em outras esferas, não se conseguiu o direito de ser “boa
mãe” de um modo diferente do que se conceituava no século passado.

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A autora expõe que o amor materno é um sentimento humano como outro


qualquer e como tal incerto, frágil e imperfeito. Ele não está profundamente inscrito
na natureza feminina. O mito do amor materno varia de acordo com as flutuações
socioeconômicas da história.
Do final do século XVIII até o início século XX, a mãe que se sacrificava
pelos filhos era valorizada socialmente visto que havia interesse em aumentar a
população demográfica, devastada pelas guerras e a criança era vista, como valor
mercantil, uma vez que trabalhava e aumentava a renda das famílias. Médicos,
teólogos e outros profissionais reforçavam o mito do amor materno, que ganhou um
peso teórico com a psicanálise, que enfatizava a importância da mãe no
desenvolvimento psico-afetivo da criança.
Até os dias atuais, a tomada da decisão da entrega da criança para adoção
geralmente é fruto de pressões de diferentes níveis da sociedade. A autora diz que
a vergonha e o medo de desafiar o mito do amor materno têm levado muitas
mulheres a abandonar sorrateiramente suas crianças em portas alheias, em latas de
lixo e em locais os mais variados a fim de não terem de abrir mão voluntariamente
do poder familiar, tornando assim pública a sua ausência de condição material e/ou
afetiva para exercer a maternagem.
Maria Antonieta aponta ainda as pressões e o sentimento de culpa que as
mulheres sofrem em decorrência da crença generalizada de que o instinto materno
faz parte da natureza da mulher “normal”. Portanto, mulheres sem filhos são
frequentemente estigmatizadas e a manutenção dos preconceitos geralmente
provoca sentimentos de exclusão e anormalidade.
Esclarece que:
[...] a adoção tem sido tomada como solução para esses problemas,
entretanto sua aparência tem sido moldada de acordo com certos
ideais sociais, entre eles o de que a família composta por adoção
seria de segunda categoria e, portanto, tudo deveria ser feito para
que a diferença entre a família adotiva e a família composta por laços

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de consanguinidade fosse negada. A mãe adotiva passa a viver um


momento paradoxal em que ao mesmo tempo vive a realização de
ser mãe mas deve pagar o preço do segredo e, muitas vezes, da
mentira pelo fato de não ser mãe biológica da criança (MOTTA,
2008, p.74-75).

A adoção fechada foi outro aspecto discutido pela autora, a saber que:
[...] os registros quanto a adoção são lacrados e subentendem uma
ruptura total no contato entre a criança e seus pais biológicos, e
dificultam, quando não impedem, qualquer acesso do adotivo às
informações sobre si mesmo, sobre suas origens (MOTTA, 2008,
p.76).

A adoção fechada se põe como uma barreira para possíveis buscas dos
envolvidos na adoção e “ao buscarem informações sobre sua história, nada mais
desejam do que ascender à categoria de ser alguém” (MOTTA, 2008, p.82).

2. Protocolo de atendimento interinstitucional às mulheres que manifestam o


desejo de entregar o filho em adoção durante a gravidez: a experiência de
Santos/SP

Em Santos/SP, tem sido notável o aumento no número de gestantes que


procuram a Seção Técnica de Psicologia e Serviço Social Judiciário da Vara da
Infância e da Juventude e do Idoso, com o objetivo de formalizar a entrega de seus
bebês em adoção.
Os dados colhidos apontam que, de 2011 a 2013, 10 mulheres procuraram a
Seção Técnica com essa intenção. Dos 10 bebês, 6 de fato foram encaminhados à
adoção, 3 permaneceram com as mães (que mudaram de ideia), e um ficou com o
pai.
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Frente à diversidade e complexidade das situações, e considerando-se as


diferentes maneiras como os profissionais da equipe técnica vinham trabalhando
esses casos foi criado no final de 2013 um grupo de trabalho composto por três
psicólogas (incluindo a chefe do setor) e uma assistente social.
Com a convicção de que era necessário oferecer a essas mulheres um
espaço de acolhimento, escuta e ajuda na elaboração de sua decisão iniciou-se uma
articulação com a rede local. O primeiro parceiro a ser chamado para pensar esse
acompanhamento foi a Casa da Gestante (serviço da Secretaria Municipal de Saúde
que contava com equipe multidisciplinar para atendimentos a gestantes
adolescentes e em situação de vulnerabilidade).
Em seguida, passou-se à articulação com outros serviços e profissionais
considerados fundamentais nesses casos: operadores do Direito (em especial o juiz
e o promotor da Infância e da Juventude), cartórios de registro civil, maternidades
locais, serviços de acolhimento, serviços de atenção básica da saúde (UBS) e da
assistência social (CRAS), e Conselhos Tutelares.
Foi agendada uma reunião com esses profissionais, e, para otimizá-la, foi
esboçado previamente o “esqueleto” de um fluxo de atendimento pela rede do
município, contemplando a sequência dos encaminhamentos, as atribuições de cada
serviço e/ou profissional envolvido, os procedimentos a serem realizados antes e
depois do parto.
Na referida reunião, fizeram-se presentes 34 profissionais. Foi discutida a
proposta do fluxo, e ajustados diversos pontos. Ficou acordado que a equipe técnica
da Vara da Infância e da Juventude e do Idoso redigiria a versão final do então
chamado “Protocolo de atendimento interinstitucional a mulheres que manifestam o
desejo de entregar o filho em adoção durante a gravidez”. Ao final, o documento
seria direcionado ao juiz, para que este o repassasse formalmente aos serviços e às
autoridades responsáveis.
Resumidamente, ficou estabelecido que todos os casos devem primeiro ser
encaminhados à Seção Técnica da Vara da Infância e da Juventude e do Idoso,
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onde a equipe realiza o atendimento inicial e formaliza o procedimento por meio de


informação ao cartório da Vara. Em paralelo, encaminha as mulheres à Casa da
Gestante, onde são acompanhadas, cabendo à equipe daquele equipamento enviar
relatórios ao Juízo. Durante este processo, o juiz já emite ofício com determinação
de acolhimento do recém-nascido, definindo para onde o bebê deve ser
encaminhado. Aos cartórios de registro civil, cabe a tarefa de emitir a certidão de
nascimento do recém-nascido logo ao nascer. Nos casos em que a mãe se recusa a
escolher o prenome, a maternidade é que faz o registro. As maternidades também
encaminham a informação do nascimento do bebê à Vara da Infância e da
Juventude e do Idoso, sendo que o serviço de acolhimento realiza a busca da
criança no hospital. Quarenta dias depois do nascimento, a equipe técnica da Vara
faz estudo, com sugestões cabíveis ao caso.
Nos casos em que a mãe desiste de entregar o filho, ficou acordado que o
Conselho Tutelar continuará monitorando a família e realizando os
encaminhamentos necessários por no mínimo seis meses.
Após exposição da experiência de Santos aos participantes do GEA-I, foram
discutidos alguns pontos.
Esclareceu-se inicialmente que o protocolo descrito voltava-se somente aos
casos em que a mãe expressasse o desejo de doar o filho durante a gestação.
Quando ela expressasse esse desejo durante ou após o nascimento, a maternidade
deveria encaminhar a situação ao Conselho Tutelar, que em seguida informaria a
Vara da Infância e da Juventude e do Idoso para as medidas cabíveis.
Quanto à questão de comunicar ou não a família extensa da gestante, foi
exposto que, em Santos, o assunto deveria ser abordado com a gestante, porém
provavelmente cada caso demandaria uma abordagem própria. Segundo a
profissional que relatou a experiência, a postura do Juiz de sua Comarca era a de
respeitar o desejo da mãe, entendendo que o direito da mulher estava acima do
direito da criança.

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Esse aspecto foi discutido pelo GEA-I, cujos integrantes se questionaram


sobre o direito da criança à convivência com sua família de origem. Ressaltou-se
que seria necessário avaliar criteriosamente a dinâmica da família e a vinculação
entre os familiares. Pontuou-se ainda a necessidade de cuidado nas situações em
que a gestante fosse adolescente ou quando a gravidez fosse fruto de estupro ou
incesto.
Neste momento, a equipe técnica de Santos já faz algumas considerações
sobre o “Protocolo de atendimento interinstitucional às mulheres que manifestam o
desejo de entregar o filho em adoção durante a gravidez”, que está implantado no
município desde o início de 2014.
Em que pesem os avanços obtidos com o estabelecimento do protocolo,
como maior articulação da rede, atenção mais cuidadosa aos casos, clareamento
dos papéis dos diversos serviços e profissionais entre outros, já se verificam
dificuldades.
A primeira delas diz respeito às mudanças ocorridas na rede local. A
principal foi a recente desativação da Casa da Gestante enquanto tal, sendo os
profissionais remanejados para outro serviço da Secretaria Municipal da Saúde.
Assim, não há mais o serviço de referência centralizado para o acompanhamento de
pré-natal por uma equipe multiprofissional nos casos de adolescentes grávidas e de
mulheres com gestações delicadas e/ou de risco, onde se incluem aquelas que
desejam entregar o bebê em adoção. No momento, o acompanhamento desses
casos se dá apenas em algumas unidades de saúde, alguns dias da semana e por
um único técnico de referência, o que evidentemente empobrece a qualidade do
trabalho.
Outra dificuldade refere-se às falhas de comunicação entre os serviços e a
morosidade nos procedimentos. Essas falhas são atribuídas a uma divulgação
insuficiente do protocolo, que ainda não chegou efetivamente às “bases”, apesar do
encaminhamento do documento final para todos os serviços que foram diretamente
envolvidos na elaboração do protocolo, bem como para os órgãos gestores das
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políticas de saúde e assistência social. Há que se destacar também uma certa


rotatividade dos profissionais nos serviços, o que dificulta consideravelmente a
continuidade do trabalho.
Entende-se que os problemas acima citados fazem parte da atuação em
rede – na qual é preciso a todo tempo relembrar os combinados, avaliar os
resultados, redirecionar as ações e devem ser encarados como motores para o
aprimoramento do trabalho.

CONCLUSÃO

No GEA-I deste ano, a partir dos textos discutidos refletiu-se que a adoção
pronta geralmente é mal vista no Brasil por subentender algum tipo de negociação.
De acordo com a Dra. Dalva Góis, a relação envolvendo vantagens/benefícios
estaria no imaginário das pessoas. Essa modalidade de adoção se diferenciaria da
adoção via Cadastro de Pretendentes.
Fernanda Mariano aponta que apesar da lei e da prioridade dada ao
Cadastro de Pretendentes à Adoção, as adoções “prontas” continuam acontecendo
e estão em constante transformação. Para a pesquisadora, a multiplicidade desta
prática adotiva ilustra a necessidade de estudos, olhares e ações que abarquem o
dinamismo e a pluralidade das configurações das famílias brasileiras, suas formas
de sobrevivência, manutenção e sustentação.
Através da tese de Maria Antonieta Pisano Motta, somos conduzidos a uma
posição mais humanizada com relação a esta genitora que entrega o filho em
adoção, ponderando que neste ato estão implicados muitos sentimentos por parte
da mãe que entrega e não apenas a frieza e a labilidade que se atribuía pela maioria
das pessoas e até mesmo por nós técnicos que atendem esta demanda.
As autoras estudadas trazem a realidade de várias formas de adoção,
mesmo dentro das configurações das adoções prontas.

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No entanto, a legislação vigente, tanto restringiu as adoções prontas, quanto


força uma homogeneidade nos processos de adoções no âmbito nacional,
desconsiderando as diferenças regionais.
Fica o questionamento sobre a possibilidade de uma legislação específica,
além da legislação de abrangência nacional, que considere as especificidades de
cada região / Estado, no que se refere às diferenças nas configurações familiares e
de convivência comunitária.
Observamos que a Lei 12.010/2009, não contempla as diversas formas de
entrega da criança em adoção. Desconsidera ainda, as entregas que acontecem nos
meios comunitário e que ocorre com mais frequência em determinadas regiões do
país.
Sendo assim, passamos a analisar de forma mais criteriosa os casos de
entrega voluntária dos filhos para adoção e exercer uma escuta mais apurada com
relação ao discurso desta genitora, que na maioria das vezes é julgada de forma
depreciativa e até mesmo desconsiderada (descartada) nesta relação adotantes-
criança adotiva.
As pesquisas estudadas sugerem que o atendimento realizado com
qualidade e profundidade necessárias, por todos os profissionais envolvidos no
atendimento da mãe que entrega o seu filho para adoção, garantindo a acolhida da
mãe e o registro da história da criança colocada em adoção, além da excelência no
atendimento da criança ou adolescente e os pretendentes à adoção, muito
contribuem para o sucesso de uma adoção.
No entanto, nem sempre o trabalho da equipe técnica do judiciário consegue
ser exercido com a dedicação necessária, em meio ao exacerbado volume de
trabalho, muito comum nas comarcas do judiciário paulista. Necessitando da
utilização de toda a rede de atendimento e proteção à criança e ao adolescente,
conforme relatado na experiência realizada na Comarca de Santos.
Outra questão a ser abordada e pensada mais a fundo seria a possibilidade
de ampliarmos o perfil oferecido pelos pretendentes na Planilha do Cadastro
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Nacional de Adotantes, de forma a investigarmos as famílias que estariam dispostas


a realizar uma adoção aberta, ou seja, mantendo contato com a família de origem,
podendo no futuro cruzarem-se estes dados em busca de uma possibilidade que
possa atender também o desejo desta mãe que entrega o filho em adoção, mas que
gostaria de poder saber de seu paradeiro e/ou manter contato com família adotante,
assim, como o desejo deste filho adotivo, que não quer perder o contato com a
família biológica.
Parece-nos muito limitado da parte dos técnicos considerar a adoção
fechada como a única possibilidade de adoção no Brasil, e mais ainda, como a única
forma “saudável” de adotar. Os seres humanos vivem histórias de vida diferentes,
influenciadas por diversos fatores, cabendo a nós o papel de ouvinte e porta-voz
destas necessidades.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. LEI Nº 12.010/2009. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm> Acesso
em: 26 de nov. 2014.

GUEIROS [atual GOIS], Dalva Azevedo. Adoção Consentida – do Desenraizamento


Social da Família à Prática da Adoção Aberta. São Paulo: Editora Cortez, 2007.

MARIANO, Fernanda Neísa. Adoções “prontas” ou diretas: conhecendo seus


caminhos e percalços. 2008. 329f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2008.

MOTTA, Maria Antonieta Pisano. Mães abandonadas: a entrega de um filho em


adoção. 3. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2008.

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ADOÇÃO DE GRUPO DE IRMÃOS


- REFLEXÕES E PERSPECTIVAS –

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ADOÇÃO II”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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COORDENADORAS

Sabrina Renata de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos


Silvia Nascimento Penha – Psicólogo Judiciário – DAIJ 1.3

AUTORES

Alberta Emília Dolores de Góes – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Itapecerica da Serra
Aparecida de Fátima Zacarin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales
Cristiane Calvo – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Cristina Rodrigues Rosa Bento Augusto – Psicólogo Judiciário – FR. X – Ipiranga
Diviane Luiza Santana – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Elisângela Fraga Ferreira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Jundiaí
Elizabeth Corrêa de Lacerda A. Costa – Psicólogo Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Fernanda Azevedo Cintra – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Gislaine Yonashiro – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itu
Janette Silva – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itapecerica da Serra
Jéssica de Moura Peixoto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão
Preto
Juliana da Conceição Velloso – Psicólogo Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Kátia Aparecida Cordeiro dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São José do Rio Preto
Maíra Cury Santana – Assistente Social Judiciário – FR XI – Pinheiros
Márcia Regina Criveli Bonacordi Gardino – Assistente Social Judiciário – Comarca
de São Manuel
Márcia Teixeira Azevedo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibiuna
Maria Aparecida Souza Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
Manuel
Marli Sousa Maciel Parejo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu
Mírian Cristina Scapa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Mônica de Barros Rezende – Psicólogo Judiciário – FR. IV – Lapa
Rodrigo Gonzales de Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itanhaém
Rute de Toledo Moraes – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Sabrina Renata de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Silvia Nascimento Penha – Psicólogo Judiciário – DAIJ 1.3
Silvia Peroba Carneiro Pontes – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
Sebastião
Sonia Regina de Francesco – Assistente Social Judiciário – Comarca de Palmeira
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D’Oeste

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Este trabalho é dedicado às crianças e


adolescentes em medida de acolhimento
institucional, especialmente aos grupos de
irmãos, os quais tão intensamente vivenciam
o desconstruir-se e o reconstruir-se no ser
família.

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AGRADECIMENTOS

Nossos agradecimentos aos palestrantes que muito contribuíram para que


nossas problematizações acerca da adoção de grupo de irmãos se transformassem
delicadamente em novas perspectivas do olhar e do fazer sobre o tema.

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INTRODUÇÃO

Durante o ano de 2014, o grupo dedicou-se ao estudo da “Adoção de grupos


de irmãos”.
A eleição deste tema explica-se, principalmente, pela recorrência com que
surge em nosso cotidiano profissional, trazendo consigo um extenso repertório de
questionamentos e indagações, quando não, angústia.
Não obstante, os dados estatísticos sustentam esta realidade e comprovam
que a maioria das crianças disponíveis à adoção possui irmão(s). Através de
consulta realizada junto ao Cadastro Nacional de Adoção em setembro de 2014,
verificou-se que 78% das crianças/adolescentes disponíveis à adoção em todo país
tem irmãos. Considerando a realidade específica do estado de São Paulo, este
número sobe para 82%.
A legislação protege a relação fraterna, determinando a manutenção dos
grupos de irmãos, pretendendo garantir o não rompimento definitivo dos vínculos
afetivos. Contudo, se a legislação é simples e objetiva, não se pode dizer o mesmo
da realidade presenciada. Não incomum, deparamo-nos com grupos muito extensos
ou grupos fraternos onde algum – ou alguns – de seus membros não possuem
características compatíveis àquelas desejadas pela maioria dos pretendentes.
Instaura-se, então, a polêmica: qual medida melhor atende aos interesses
destes irmãos? Como avaliar a existência de vínculo? Como sopesar a
individualidade de cada membro e a dinâmica conjunta entre eles? É legítimo
separar a fratria para garantir o direito à convivência familiar ao menos para algum
deles? Quais consequências podem trazer esta separação e tais consequências
podem inviabilizar a inserção numa família substituta? É efetivamente possível
garantir o contato dos irmãos que foram encaminhados para lares diferentes?
Restou-nos nítida a inquietação e riqueza inerente ao tema, revelando-se um
campo fértil, polêmico e intrigante, portanto, propício à exploração.

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Sendo assim, nossa proposta foi abordar o assunto, considerando suas várias
faces: ponderamos os aspectos jurídico-legais, buscamos aprofundar a
compreensão sobre vínculos e especialmente sobre vínculos fraternos, na
expectativa de compreender a correlação entre estes elementos.
Para tanto, recorremos à pesquisa bibliográfica sobre o tema, constatando a
relativa escassez e novidade da referida literatura. Desta forma, recorremos a outras
ferramentas didáticas que nos permitiram abordar o assunto.
Assistimos ao filme December Boys (Um verão para toda vida) e também
contamos com a participação expositiva da psicóloga Maria Luiza Ghirardi, que
recentemente escreveu um artigo específico sobre o tema. Recebemos ainda
Manoela Goldoni, membro da AMI – AMICI MISSIONI INDIANE, que nos trouxe sua
percepção e experiência prática na adoção internacional de irmãos.
Importante salientar que todo este movimento foi constantemente alimentado
pelo compartilhamento de nossas experiências cotidianas, favorecendo o
intercâmbio entre teoria e prática, do mesmo modo que revestindo de realidade as
proposições teóricas e legais.
Feitas as elucidações necessárias, apresentamos uma síntese de nossas
reflexões.

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1. Algumas considerações sobre o filme December Boys e seu


impacto sobre o grupo: Como ir além do sentimento de impotência
diante desses casos?

O filme December Boys narra a história de quatro meninos que viviam numa
instituição de acolhimento, conforme sinopse no anexo 1. Em relação ao filme, em
sua exposição, Ghirardi pontuou que a mobilização vivenciada pelo grupo e também
por ela, ao assisti-lo, pode dar acesso a conteúdos muito significativos sobre nossa
experiência nesses casos, uma vez que a princípio, enquanto obra cinematográfica
propriamente dita, ele poderia ser considerado um filme leve, apesar de ser um
drama, passível de fazer parte da programação da “sessão da tarde”, na televisão.
Diante disso, perguntou aos participantes se poderiam compartilhar os aspectos
mais relevantes para cada um.
Uma das integrantes do grupo destacou a frase do personagem que remete,
por suas memórias, ao enredo do filme, logo nas primeiras cenas, cujo sentido era
mais ou menos o seguinte: “o que mais me angustiava era a sensação de que algo
nos estava sendo roubado” (quanto aos seus sentimentos na instituição de
acolhimento onde vivia). Para a integrante do grupo, a percepção que teve foi de
que talvez nunca tenhamos acesso, enquanto profissionais, ao que seria estarmos
no lugar deles (crianças e adolescentes na instituição). Isso geraria também um
sentimento de impotência para nossa atuação, em alguns momentos, pois muito do
que ocorre, seja talvez inimaginável para nós. O que seria viver sem uma
experiência de família, por exemplo?
Nesse sentido, Ghirardi pontuou em sua exposição que o filme parece trazer
situações paradoxais e nos remete ao nosso próprio conceito de família,
despertando sentimentos de desamparo e abandono. Comentou que ele vem
quebrar alguns conceitos arraigados sobre família quando, por exemplo, a própria
relação entre os meninos os fez concluir, em certo momento da história, que já

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constituíam uma família. Essa percepção os colocou em outra posição e perspectiva


para a vida.
Ghirardi também nos trouxe uma reflexão sobre o que ensejaria aquilo que
chamamos de “impotência” e “não saber”, com alguns questionamentos: “Será que
de fato não temos nenhuma ideia daquilo que elas sentem?” – “Será que não
sabemos, ou não sabemos que sabemos?”. Isso porque poderíamos pensar que se
algo nos mobiliza emocionalmente trata-se possivelmente de conteúdo que também
conhecemos de algum modo, e sobre os quais podemos imaginar e fantasiar. Ao
longo do desenvolvimento pessoal, também conhecemos sentimentos de
desamparo e de abandono, os quais com o tempo passamos a nomear melhor.
Este é um dos pontos que trazem especial complexidade aos pareceres e
conclusões técnicas, pois aquilo que escrevemos, muitas vezes, parte de coisas que
nos mobilizam e intrigam. No entanto, nos casos atendidos, será necessário
discriminar e nomear “aquilo que é meu” e “aquilo que é dele”. Todo o trabalho de
preparação para a adoção também irá passar por esse processo de nomeação.

2. Do ideal ao real – dos meus sentimentos aos sentimentos do


outro – Como reconhecer a excepcionalidade necessária?

O Estatuto da Criança e do Adolescente, no Art. 28 § 4o, em sua última


atualização (BRASIL, 2009), afirma que os grupos de irmãos serão colocados sob
adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada
existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a
excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o
rompimento definitivo dos vínculos fraternais.
Contudo, na prática, muitas vezes nos deparamos com situações em que a
separação dos irmãos é suscitada. Sabemos da escassez e/ou até inexistência de
pretendentes à adoção para proles muito numerosas. Nestas situações, a

71
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manutenção do grupo fraterno torna impossível a colocação das crianças em família


substituta.
Por outro lado, observa-se que alguns grupos de irmãos não desenvolvem
uma relação de afinidade e não possuem vínculos tão significativos que os
impossibilitem de ser separados.
Ao pesquisarmos a literatura existente, verificamos que poucos trabalhos
abordam essa questão de forma específica. Existem textos que tratam de vínculo e
de relação fraterna, mas observamos a dificuldade de encontrar literatura específica
sobre a avaliação desses nos casos de adoção.
Dessa forma, decidimos refletir sobre a questão, buscando estudar os
conceitos de “vínculo”, de relação fraterna e de avaliação sobre a manutenção ou
separação do grupo de irmãos, quando da inserção em família substituta.

3. Algumas pontuações sobre o conceito de vínculo afetivo

Do ponto de vista psicológico, uma das concepções existentes é a de vínculo


afetivo como o enlace (trama, malha, tessitura) e como ligação que une duas ou
mais pessoas de uma maneira estável.
Ele é uma construção psíquica que implica diversas modalidades de alianças
conscientes e inconscientes, revelando investimento afetivo e garantindo a força e a
coesão interna do grupo.
O grupo fraterno vivencia continuamente sentimentos amorosos, de apoio,
reparação, solidariedade, lealdade, bem como os de competição, hostilidade,
rivalidade, ambivalência, inveja, ciúme e impulso de domínio e/ou sujeição frente a
determinado irmão. Sentimentos estes, absolutamente normais, no jogo da interação
e da vinculação entrem os irmãos. Vale ressaltar que a fratria é o lugar da
competição: os irmãos menores querem se igualar e superar os mais velhos e estes
querem manter sua superioridade.
O vínculo fraterno é definido pelo partilhar do mesmo laço de filiação em uma
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mesma família, contribuindo para a atmosfera de grande intimidade e cumplicidade


entre cada um. É uma construção psíquica comum aos membros da irmandade, que
lhes permite distinguir-se como subgrupo dentro do grupo familiar, estabelecendo
relações horizontais.
A relação fraterna poderá ser próxima ou distante, fria ou calorosa, amistosa
ou conflituosa e assim por diante.
Perante a separação de irmãos, nem todas as crianças/adolescentes reagem
da mesma forma, pois depende do vínculo que possuem. Alguns irmãos são muito
ligados e sofrerão com a separação, principalmente o(s) que porventura
permanecer(em) na instituição; outros não possuem ligação afetiva tão significativa,
talvez devido a grandes diferenças: de idade, interesses e necessidades.
Para que os irmãos possam construir um vínculo "suficientemente bom" é
preciso haver complementariedade em seus papéis, além da relação de intimidade e
certa coincidência em seus valores pessoais.
O vínculo entre eles pode desempenhar importante papel como suporte do
equilíbrio familiar em situações de crise, tais como separação dos pais, doença ou
morte de um dos genitores.
Em relação ao conceito de vínculo, em sua exposição a palestrante Ghirardi
sublinhou que a maneira como cada autor o compreende é variada. Do mesmo
modo, variam os conceitos sobre sua dinâmica e construção. Seria, portanto,
interessante que o pensássemos a partir de nossa prática.
Ghirardi ainda pontuou que o termo pode pressupor uma rigidez nas relações
humanas. Assim, prefere utilizar-se do conceito de laços afetivos, entendo-os
como relações mais fluidas que se estabelecem entre as pessoas.
No que diz respeito aos laços afetivos entre irmãos, Ghirardi lembra da
importância de se fazer referência ao “conceito de identificação” de Freud, como
trabalhado no texto “Luto e Melancolia”. Ela é nossa primeira e mais antiga forma de
estabelecer uma relação. Através da relação mãe-bebê, a criança introjeta aspectos
do outro como, por exemplo, o modo de olhar, de pensar e de sentir.
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PODER JUDICIÁRIO
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Importante pensar também que ninguém se identifica com alguém que lhe é
insignificante. Esse seria um ponto relevante a ser considerado no momento em que
se deseja avaliar a pertinência dos irmãos continuarem juntos ou separados.
Reportando-se ao filme, a expositora acenou para a reflexão sobre aquilo que
uniria e identificaria os personagens: um primeiro aspecto poderia ser o fato dos
garotos terem nascido no mês de dezembro, ligação promovida pela própria
instituição que comemorava seus aniversários conjuntamente; e um segundo
aspecto, no fato de serem órfãos e todos, por assim dizer, “estarem no mesmo
barco”.
Desse modo, no filme, os garotos foram tecendo relações entre si e através
da relação e convívio construíram traços de identificação, o que desmistificaria
também a crença de que basta o laço de sangue para construir um grupo de irmãos,
pois a convivência é fundamental. Podemos referir isso às regras e aos rituais que
os garotos vivenciavam na instituição, tornando-os unidos e cúmplices na interação
institucional. Pautados nestes aspectos, começaremos a fundamentar a nossa
avaliação sobre um grupo de irmãos.
Assim, se pensarmos no enredo do filme, seria possível supor que o garoto
mais velho parecia estar mais aberto para uma relação amorosa do que
necessariamente para estabelecer uma relação de filiação e o garoto mais novo, a
princípio, parecia expressar mais interesse em ser adotado.
Os meninos tinham idades diferentes e também apresentavam necessidades
singulares. Do mesmo modo, o lugar de cada um dentro de uma fratria não é o
mesmo. As crianças devem ser consideradas em suas diferentes fases de
desenvolvimento e demandas. Seria necessário observar como se relacionam e os
lugares e funções assumidos dentro do grupo em questão, seja ele consanguíneo ou
não.

4. História pregressa e a importância de analisar cada caso

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O grupo de irmãos traz consigo uma história de rupturas anteriores ao


acolhimento que deve ser considerada quando existe a possibilidade de colocação
em família substituta. É preciso ponderar que, ao sair da família biológica, a criança
perde uma série de elementos que até então lhe davam identidade e contorno.
Ao ser acolhida numa instituição a criança perde a convivência com a família,
sua casa, sua cama, seus pertences, os vizinhos, a escola e todo o cotidiano que
até então imprimiam significados em sua vida e asseguravam ambiente contínuo, de
alguma forma.
Assim, a institucionalização é acompanhada do luto pelo que é conhecido até
então. Se ocorrer o processo de Destituição do Poder Familiar e a colocação em
família substituta, o luto será revivido, pois a criança novamente perderá seu
cotidiano e o contexto reconstruído pelo acolhimento institucional. Dessa forma,
manter o grupo de irmãos unido, sempre que possível, é também preservar sua
história e o que sobrou de sua família de origem.
No entanto, embora a prioridade nesse sentido seja a manutenção do grupo
de irmãos, quando isso parece inviabilizar sua colocação em família substituta,
devemos privilegiar a relação fraterna existente ou a necessidade de terem pais?
Consideramos importante relembrar que, quando as crianças são filhos de
pais diferentes, muitas vezes, acompanhamos o desmembramento do grupo de
irmãos para as respectivas famílias paternas. Alguns deles, inclusive, permanecem
acolhidos, enquanto os demais retornam à família biológica.
Será que não deveríamos nos abrir para a possibilidade de separar irmãos
para adoção com a mesma abertura com que compreendemos sua separação para
o retorno à família de origem paterna? Um grupo de irmãos pode ter uma relação
afetiva, mas não significa que represente um vínculo de convivência que necessite
perpetuar.
A maioria dos trabalhos sobre a relação fraterna enfatiza a rivalidade
existente entre irmãos. No entanto, ela não se trata necessariamente de uma
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patologia, pois pode ser sadia ao desenvolvimento dos membros do grupo na


medida em que representa a identidade e o papel de cada um. Assim, alguns
autores defendem a tese de que para compreender uma pessoa é preciso conhecer
a situação em que ela se desenvolveu e, em especial, a posição que ocupava
quando criança no quadro da família.
Nesse sentido, o primogênito é aquele que “ensina” os pais a serem pais. O
segundo filho, de certa forma, tira do primeiro a exclusividade, cria a condição de
parentesco e familiaridade. Assim, o surgimento do irmão e sua figura pode
despertar a rivalidade nesta nova relação e a cada nascimento de um novo filho, a
função dos anteriores toma novos significados.
A diferença de idade entre os irmãos também é importante para determinar a
relação entre eles. Se for próxima, pode fazer com que a relação fraterna seja
estabelecida através da similaridade de interesses ou pode acirrar a rivalidade. Já
quando a diferença de idade é maior, pode em alguns casos distanciar o laço entre
aqueles que não pertencem a um mesmo universo de interesses, ou pode apontar,
em outras situações, para uma relação de proteção, como que parental do irmão
mais velho pelo mais novo.
A avaliação da manutenção ou separação do grupo de irmãos é difícil e
delicada. Observamos que muito tem se perdido na qualidade da escuta destas
crianças, como se fossem subestimadas na capacidade de fazer suas próprias
escolhas e indicar o que desejam ou sentem.
Assim, por exemplo, situações intrínsecas à vivência entre irmãos correm o
risco de serem interpretadas como desamor. Muitas vezes, os profissionais
envolvidos não conseguem avaliar o que realmente ocorre na relação fraterna e isso
pode inclusive submeter a criança a rótulos e estigmas, como tratar esse ou aquele
como um “irmão problema”.

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5. A importância da preparação para qualquer medida a ser tomada

Em sua exposição, Ghirardi apontou que tanto a preparação da criança


quanto a dos adotantes passará pela questão da nomeação de sentimentos e
fantasias, com a necessidade de que os profissionais tenham discernimento,
considerando a escuta da criança, sua individualidade e história de vida.
No filme, assim como na vida real, por vezes, as crianças são colocadas em
contextos onde há expectativa de que preencham demandas que lhe são alheias e
às vezes impossíveis, como, por exemplo, substituir o filho biológico do casal infértil
ou alegrar uma família na qual um membro está morrendo. Dessa forma, se
continuassem nesse caminho, as crianças poderiam tender a um movimento
denominado falso-self.
Foi observando o filme e o comentário do grupo que a expositora falou sobre
o conceito de “falso self” de Winnicott, referindo-o à uma manobra defensiva do
sujeito no sentido de se adaptar àquilo que é esperado pelo outro, abrindo mão de
seus próprios desejos e expectativas, passando a viver em função do outro.
Outra questão é que a situação de desligamento e ruptura dos vínculos
afetivos pode se configurar como um trauma e demandará sua elaboração psíquica.
As crianças que vivenciaram a institucionalização, muitas vezes, possuem
uma espécie de “rachadura” na construção dos seus primeiros relacionamentos, o
que as fragiliza no estabelecimento de novos vínculos afetivos, como que
permanecendo sempre em busca daquele primeiro olhar que lhes faltou.
No momento da colocação em uma família, elas podem manifestar
sentimentos de rejeição e a conduta de testar persistentemente os adultos
adotantes, com o intuito de descobrir o limite do afeto tão desejado e ao mesmo
tempo desconhecido.
Na palestra, foi pontuado que na ausência das figuras parentais, a tendência
dos irmãos mais velhos é cuidar dos irmãos mais novos, mostrando que todos estes
aspectos de relacionamento fraterno são de grande importância e devem ser
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PODER JUDICIÁRIO
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avaliados, quando da questão da permanência ou separação dos mesmos.


Ghirardi fez referências a sua experiência clínica no Grupo Acesso e
comentou que, diante de todo o complexo fraterno, é importante a observação dos
técnicos quanto às relações das crianças e de todas as partes envolvidas,
sublinhando também que, nos casos em que houver separação, se fará necessário
acompanhar a elaboração do luto.
Em relação à colocação em família substituta, foi ponderado que, após a
adoção, haverá deslocamento das funções anteriormente assumidas pela(s)
criança(s). Assim, a nova dinâmica deve ser trabalhada e vai demandar flexibilidade
de ambas as partes (pais/filhos) para se relacionarem.
No momento da avaliação dos pretendentes à adoção, é importante refletir
junto àqueles que anunciarem a pretensão de adotar irmãos. Será necessário que
eles denotem abertura para se relacionar com cada uma das crianças de modo
diferente e conforme a necessidade demonstrada por elas. Esses aspectos podem
aparecer na fala dos adotantes, que apresentarão ou não sinais de tal
disponibilidade.
Foi observado também que uma criança pode desenvolver relação de tal
simbiose e dependência com a outra que separá-las abruptamente pode provocar
danos profundos em um determinado momento da vida. Seria necessário, portanto,
um trabalho terapêutico anterior a fim de permitir que elas se desenvolvam no
sentido de construírem maior autonomia antes da separação.
O profissional, por sua vez, não deve tomar decisões ou encaminhamentos
precoces: nesses casos, é importante priorizar a escuta e o acolhimento da situação.
Nossos limites podem ser ampliados se conseguirmos fazer algo antes da colocação
propriamente dita. Muitas vezes, a preparação exigirá um período maior, com vistas
a favorecer uma avaliação mais profunda da questão.
Pelo grupo, em relação à preparação dos adotantes, foi lembrado que na
maioria das vezes as dificuldades surgem apenas quando a criança passa a
conviver com os mesmos. Neste caso, a intervenção profissional torna-se
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PODER JUDICIÁRIO
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imprescindível. Vale ressaltar que, em nosso cotidiano, observamos casos em que a


devolução da criança é a medida mais indicada. Não podemos assumir total controle
sobre as variáveis que implicam o processo de adoção para que seja bem sucedido.
O literal cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente no tocante ao
prazo máximo de dois anos de acolhimento ou a não separação do grupo de irmãos,
levando em conta de modo automático apenas a consanguinidade, pode-se
contrapor ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, deixando de
considerá-los como sujeitos. Assim, não incomum, atuamos num campo paradoxal.

6. Como vivem os irmãos após a separação?

– Algumas observações pós Adoção Internacional

Durante sua exposição, Goldoni nos relatou sua experiência como


representante de um organismo credenciado para a adoção internacional, ao longo
dos anos de trabalho na AMI, inclusive com a abordagem do desenvolvimento futuro
da criança na família italiana e na sociedade desse país.
A partir do momento em que recebe consulta sobre a possível adoção de um
grupo de irmãos que espera ser adotado, a instituição passa a buscar a manutenção
das crianças na mesma família. No entanto, a sua experiência mostra que é difícil
encontrar casais que aceitem a adoção de um grupo de irmãos numeroso. Da
mesma forma, a adaptação de muitas crianças a um casal e vice-versa se mostra,
em muitos casos, algo desgastante e exaustivo.
Ela observa que numa fratria numerosa, as carências também são muitas.
Assim, os modos dos irmãos surgem quase como que uma competição pela atenção
do casal, o qual, por mais que se divida, não consegue abarcar todas as
necessidades individuais destas crianças.

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Essas dificuldades não são impeditivas, nem contraindicariam por si só a


adoção conjunta, porém, em alguns casos, é natural que ambas as partes vivenciem
um desgaste que poderia não existir, se os irmãos fossem separados. Parece-lhe
que algumas crianças sentem muita falta de uma mãe só para si, nesse momento.
Outras sequer sabem o que realmente é ter uma mãe. Em alguns casos, dividir a
atenção, ainda que apenas com mais um irmão, pode se tornar algo muito
dispendioso.
Relatou perceber que, quando o grupo é separado, mas tem seus membros
adotados, todos ao mesmo tempo, eles apresentam no início um desejo constante
em ver os irmãos e saber se estão bem. Nos primeiros sete meses,
aproximadamente, após a chegada no país de acolhida, pedem por esse contato
para que então possam também se tranquilizar e seguir com a sua vida na nova
família. Após um tempo, contudo, observa que as crianças relaxam e passam a viver
de forma a se apropriar mais da história que estão construindo com os pais.
A situação se revestiu de significativa dificuldade, em sua experiência, em
alguns casos nos quais a separação dos irmãos se deu com a permanência de
algum membro da fratria no Brasil, sem que conseguisse ser adotado. Nessas
situações, uma parte da criança parece ficar presa nesta história, sendo difícil
aproveitar o que pode viver de forma plena no país onde foi acolhida.
Há casos em que aqueles que ficaram no Brasil e permaneceram em
instituições de acolhimento puderam manter contato e dessa forma saber notícias,
porém, ao atingirem a maioridade, por vezes, não se consegue mais localizá-los,
mudam-se e a própria instituição perde as informações sobre sua localização.
No entanto, há casos que suscitam dúvidas sobre o quanto a manutenção
desse contato é benéfica ou não e a palestrante problematiza sobre as
possibilidades da criança que foi adotada elaborar aquilo que descobrir acerca do
irmão que permaneceu no Brasil.

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Ela sublinhou também que, ao sugerir famílias que adotem conjuntamente ao


mesmo tempo grupos de irmãos separados em subgrupos, cuida para que sejam
indicados apenas aqueles adotantes que realmente se dispõem a manter o vínculo
entre eles. Na sua experiência, a faixa etária das crianças adotadas
internacionalmente varia de 8 a 10 anos. Há exceções quando dentro de uma
determinada fratria há crianças menores e/ou maiores.
Houve situações em que os irmãos mais novos foram colocados em família
brasileira e restou aos mais velhos a adoção internacional, parecendo questionável
essa forma de separação. Assim, quando a decisão ocorre nesse sentido, parecem
estar cumprindo estritamente o princípio legal de manter uma criança no país de
origem.
Porém, nesses casos, não foi privilegiada a relação fraterna, ainda que
através de convivência entre famílias próximas. Soa contraditório: há grande
hesitação em separar grupos de irmãos numerosos em famílias dispostas a manter
os vínculos na adoção internacional, mas não se percebe a mesma resistência em
separar o grupo, definitivamente, quando apenas algum(s) de seus membros são
encaminhados à adoção em nosso país.
Quando a adoção é feita por famílias diferentes que aceitam manter os
contatos entre os irmãos, garante-se a manutenção do vínculo para vida toda,
trazendo-nos o relato que os casais possuem uma relação sólida com a entidade de
adoção internacional e, em muitos casos, desenvolvem também um relacionamento
entre as famílias que adotaram.
Quanto ao percurso até que possam adotar, Goldoni relatou que, na Itália, os
casais devem procurar um serviço sócio sanitário do município. Durante a avaliação
do pedido, são realizadas entrevistas, cursos, visitas domiciliares e, quando
concluem que os casais estão realmente aptos a adotar, os próprios profissionais do
município encaminham relatório ao Judiciário.

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No poder judiciário italiano, eles serão novamente avaliados até que a


sentença seja proferida. Desde a primeira instância, o processo é avaliado por um
colegiado composto por juízes de direito e juízes honorários, que podem ser
inclusive psicólogos, assistentes sociais e demais profissionais cadastrados,
convocados de acordo com a demanda dos autos.
Esse processo tem duração de um ano e meio a dois anos e, após receber a
idoneidade para a adoção, os pretendentes optam pela adoção nacional ou
internacional. Quando escolhem a segunda opção, possuem até um ano para
escolher a entidade a qual irão se afiliar para dar andamento à adoção internacional,
de acordo com o país em que pretendem adotar.
Assim, parece faltar no Brasil uma preparação continuada e mais
aprofundada que possibilite aos casais adotantes realmente se tornarem aptos ao
que irão vivenciar com a chegada de uma criança. Tal preparação é algo
necessariamente vivenciado nas entidades de adoção internacional.
No Brasil, os casais que buscam espontaneamente os grupos de apoio e
conseguem ser assíduos acabam se preparando e o resultado fica evidente durante
o estágio de convivência. No entanto, como isso não é obrigatório, muitos postergam
as reuniões ou sequer procuram um grupo, e os problemas aparecem quando a
família e a criança mais precisam de apoio.
Goldoni observou que todo casal que quer adotar parece pensar inicialmente
num bebê. O desejo de uma relação que se inicie tão logo a criança nasce parece
intrínseco à adoção. No entanto, é com reflexão, conhecimento e preparo que se
possibilitam aos pretendentes condições de ampliar tais características.
A experiência vivida com a chegada da criança sempre será diferente e única,
mesmo com toda a preparação e reflexão prévia. Sentir na prática a rejeição e os
testes de vínculo é muito diferente de ouvir a respeito. No entanto, quanto mais os
pretendentes puderem ouvir experiências de outros adotantes, ler, estudar e
compreender, melhores recursos poderão reunir para enfrentar esse embate no dia-
a-dia.
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A expositora ressaltou que o estágio de convivência na adoção internacional é


uma experiência fora da realidade de qualquer família. Os pretendentes ficam num
país desconhecido, num hotel ou residência alugada, sendo que nesse período não
trabalham, assim como as crianças não frequentam escola. Além disso, a família
extensa não está por perto, oferecendo apoio e orientação. É como um período de
férias em que todos convivem intensamente vinte e quatro horas por dia.
Consideramos que, em alguns casos, a presença do irmão biológico pode
ficar como um lembrete vivo das vivências com a família biológica, impedindo que a
história seja reeditada.
A colocação conjunta dos irmãos pode gerar uma rivalidade grande no início,
até porque na maioria dos casos as crianças podem regredir a fases anteriores de
seu desenvolvimento e demandar dos adotantes uma atenção constante e única. No
entanto, superada essa fase inicial e retomando seu curso de desenvolvimento, a
relação fraterna se mostra importante e necessária.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A primeira conclusão a que chegamos ao longo dos trabalhos neste ano foi a
constatação de escassa bibliografia sobre vínculo fraterno na adoção, o que talvez
se justifique pelo fato da temática ser algo novo enquanto objeto de estudo da
ciência. Percebemos que a maioria da literatura produzida está centrada nos
aspectos conflitivos da relação fraterna.
Se a abordagem científica do assunto é recente, o mesmo se pode dizer do
artigo legal que expressa literalmente a prioridade de manutenção do grupo de
irmãos, uma vez que o mesmo foi incluído pela Lei 12.010, em 2009, de modo que
ainda não se desvelou, por exemplo, quais os impactos da lei e se ela alterou o
cenário da adoção no tocante à adoção de irmãos.
O estudo do tema favoreceu-nos a desmistificação do vínculo fraterno, que,
tal como o vínculo materno-filial, é socialmente construído. A ligação biológica não
favorece nem determina a qualidade da vinculação entre os irmãos, sendo este
relacionamento permeado por vários fatores e circunstâncias ensejadoras (ou não)
do mesmo.
Assim, é possível a existência de irmãos que não tenham construído tais
laços e/ou os tenham construído de formas diferentes para com cada membro da
fratria. A convivência e o contato diário são fatores fundamentais para a construção
do vínculo fraterno, sendo que isso pode acontecer inclusive entre aqueles que não
possuem consanguinidade.
Outro ponto interessante foi o reconhecimento da subjetividade que perpassa
o tema: é inevitável que nossas crenças, valores e experiências pessoais
influenciem o modo como concebemos os laços afetivos entre irmãos, o que
provavelmente também acontece com os demais atores sociais envolvidos na
adoção.
Também nos deparamos com a impossibilidade de criação de regras e/ou
“protocolos” para abordagem do assunto, dada a singularidade de cada caso e das
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peculiaridades inerentes aos diferentes tipos de relacionamento entre os irmãos.


Assim, mais uma vez, ficou evidente a importância de se conhecer as nuances da
cada situação, considerando-a como algo único.
Isso implica na imprescindibilidade da escuta e observação da
criança/adolescente para compreensão de tudo que os cercam – inclusive a questão
do vínculo fraterno - o que pode demandar um tempo diferenciado, bem como a
utilização de diversos instrumentais técnicos.
Disso, surge a necessária adequação dos Setores Técnicos, tanto com
relação aos recursos humanos (quantidade suficiente de profissionais), quanto aos
aspectos estruturais, tais como: espaços adequados e em quantidade suficiente
para os atendimentos, prioridade no uso dos veículos, etc.
Outro aspecto destacado se refere à importância da qualificação/capacitação
permanente de todos que trabalham direta e indiretamente com adoção, no sentido
de que tenhamos capacidade e conhecimento técnicos para avaliar as famílias, bem
como interpretar suas inter-relações dentro de uma perspectiva contemporânea, que
ultrapasse visões à priori, como, por exemplo, de pressupor a existência de vínculo
afetivo baseado apenas na questão da consanguinidade.
Nesta mesma direção, mostra-se fundamental o entrosamento, diálogo e
parceria entre os diversos atores que atendem a criança/adolescente para que
possam, conjuntamente, encaminhar a situação de modo a assegurar seus direitos.
Outro aspecto importante de nossas reflexões se deu a partir dos sentimentos
de “impotência” descritos pelos participantes do grupo de estudo em relação aos
casos de grupos de irmãos em adoção. Caberia, assim, repensar o que nomeamos
como tal e nos voltarmos para as nossas diferentes “potências”.
Ou seja, cada um de nós possui diferentes “potências”, que por sua vez, se
deparam com diferentes limites. Não obstante as próprias limitações, as do outro, do
Estado, da instituição e da sobrecarga de trabalho, cabe reconhecer o muito que os
profissionais têm contribuído para a efetivação dos direitos das crianças e dos
adolescentes. A partir de tal reconhecimento será possível concretizar ações
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efetivas dentro do que é viável, enquanto que, se nos determos entre a


onipotência/impotência, correremos o risco de ficarmos paralisados.
Nesse sentido, também foi importante esclarecer que a concepção de
“conflito” é diferente no campo do direito e no campo da psicologia, o que pode
explicar parte do paradoxo que vivenciamos. Enquanto no campo do direito os
conflitos devem ser necessariamente decididos e solucionados, do ponto de vista
psicossocial, eles demandam ser trabalhados. Nisso, desponta a necessidade de
tomar o tempo necessário para a avaliação da dinâmica singular de cada caso.
Embora necessário considerar e respeitar o dispositivo legal que recomenda a
conservação da fratria, é imprescindível ter clareza quanto ao princípio maior da
legislação que é a busca do melhor interesse da criança, o que pode ocasionar o
encontro de soluções aparentemente “inusitadas”, mas fundadas nas reais
necessidades da criança e do adolescente. Dessa forma, será a escuta do que é
“singular” a cada caso que trará ideias e possibilidades não imaginadas
anteriormente.
A Vara da Infância e da Juventude será dessa forma um espaço onde
poderão existir soluções realmente interessantes e eficientes para cada caso,
mesmo que através de proposições e encaminhamentos diferenciados e inovadores.

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ANEXO 1

SINOPSE – DECEMBER BOYS, Um verão pra vida toda (Filme).


Rod Hardy. 105min. color. drama. Warner, Austrália, 2007.
Eles nasceram no mesmo mês, por isso o orfanato os batizou de
Dezember boys (Os Garotos de Dezembro). Mas estes
adolescentes – Maps, Spit, Spark e Misty – têm muito mais em
comum. Sem esperanças de comporem uma família, eles
fortalecem os seus próprios laços familiares.
Então, notícias inesperadas dão conta que um deles poderá ser adotado por um
casal, e os companheiros de longa data compartilham mais alguma coisa: a
rivalidade para ser o escolhido. Um verão para toda a vida, uma pungente memória
de amizade e família, marca o primeiro grande papel de Daniel Radcliffe fora da
série Harry Potter. Ele interpreta Maps, um irmão mais velho nesse grupo, que vive
erros e acertos rumo à fase adulta. Compartilhe com esses garotos esta memorável
jornada rumo ao amadurecimento.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Constituição Federal do Brasil. Brasil: 1988.

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.609. Brasil: 1990.

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 12.010. Brasil: 2009.

CESCONETO, Rousel A.Z. Separação de irmãos no processo de adoção: análise e


consequências jurídico-sociais. Trabalho de Conclusão de Curso. Criciuma: UNESC,
2009.

GHIRARDI, Maria Luiza A.M. A relação fraterna na adoção: algumas reflexões.


Revista Pediatria Moderna, Ano L – Março, 2014.
<http://www.moreirajr.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=5742>. Acesso
em: 26 de nov. 2014.

GOLDSMITH, Rebeca; FÉRES-NARCEIRO, Terezinha. A função fraterna e as


vicissitudes de ter e ser um irmão. Psicologia em Revista, p. 293-308, 2007.

HAMAD, Nazir. A criança adotiva e suas famílias. Rio de Janeiro: Companhia de


Freud, 2002.

HARDY, Rod. DECEMBER BOYS, Um verão pra vida toda (Filme). 105min. color.
drama. Warner, Austrália, 2007.

HOUSSET, Danielle. Adoção de irmãos. In: FREIRE, F. (Org).Abandono e Adoção:


contribuições para uma cultura da adoção. Curitiba: Terra dos Homens: Vicentina, p.
119-126, 2001.
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PODER JUDICIÁRIO
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ROCHA, Maria Isabel de Matos. Separação de irmãos no acolhimento e na adoção.


In Revista timestral de jurisprudência [on-line]. n.187. Campo Grande: Tribunal de
Justiça, 2013.
<http://www.tjms.jus.br/_estaticos_/infanciaejuventude/artigosJuridicos/ARTIGO_SE
PARACAO_DE_IRMAOS.pdf>. Acesso em: 26 de nov. 2014.

OTUKA, Livia Kusumi; SCORSOLINI-COMIN, Fabio; SANTOS, Manoel Antônio dos.


A configuração dos vínculos na adoção: uma atualização no contexto Latino-
Americano. Ver. Bras. Crescimento Desenvolvimento Hum. São Paulo: v. 19, n. 3, p.
475-486, dez, 2009.
<http://www.revistas.usp.br/jhgd/article/viewFile/19935/22013>. Acesso
em 26 de nov. 2014.

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ADOLESCÊNCIA E DROGAS: AMPLIANDO O OLHAR

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “ADOLESCENTE EM


CONFLITO COM A LEI”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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COORDENADORAS

Elaine Cristina Major Ferreira da Silva - Assistente Social Judiciário - Varas


Especiais da Infância e Juventude
Simone Rodrigues Capela - Psicólogo Judiciário - Varas Especiais da Infância e
Juventude

AUTORES

Andrea Svicero - Assistente Social Judiciário - Núcleo de Apoio Técnico/DAIJ 1.2.1


Clara de Almeida Praxedes - Assistente Social Judiciário - Comarca de Campinas
Evelise Tavoloni - Psicólogo Judiciário - Comarca de São José do Rio Preto
Iara Dourado Nogueira Giotto - Assistente Social Judiciário - FR VII - Itaquera
Lidia Maria Vieira dos Santos - Assistente Social Judiciário - Comarca de Caçapava
Lucilena Vagostello - Psicólogo Judiciário - Serviço Psicossocial Vocacional
Mara Elisa Quitério - Assistente Social Judiciário - Varas Especiais da Infância e
Juventude
Maria Cristina Chaguri Ária - Assistente Social Judiciário – Comarca de Tatuí
Maria de Lourdes Carmezini - Assistente Social Judiciário - Comarca de Piracicaba
Maria José Graciliano da Silva Oliveira - Assistente Social Judiciário - Varas
Especiais da Infância e Juventude
Sonia Maria da Fonseca Lima - Assistente Social Judiciário - Comarca de Botucatu
Taciana de Freitas Calmon - Psicólogo Judiciário - Comarca de São José do Rio
Preto
Valkiria Martins de Oliveira - Assistente Social Judiciário - Comarca de Mairiporã

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INTRODUÇÃO

O uso de drogas é um fenômeno complexo e multifacetado, que abarca vários


campos do espectro psicológico e social. Tende-se a tratar da questão da droga de
forma binária, entre a polícia e a medicina (bandido X doente). Contudo, a droga vai
para muito além disso e o desconhecimento ou a resistência em admitir a sua
complexidade faz com que ela tenha um custo social tão elevado.
As discussões usuais sobre toxicomania revestem-se de cientificismo, mas
perpassam o campo moral: a sociedade posiciona-se frente a ela como o faz frente
às distintas formas de satisfação pessoal. E poucas coisas são mais assustadoras
do que maneiras diferentes de obtenção de prazer. É por isso que, quando se fala
sobre drogas, leva-se pouco em conta a realidade para afundar-se em discussões
que escondem uma posição moralista.
Inflaciona-se o problema das drogas como se sempre fossem casos
extremos, em que ela efetivamente destrói o consumidor. A droga pode exterminar
vidas, mas em muitos casos o consumo acha um equilíbrio estável. O mito de que as
drogas sempre irão, em algum momento, desestabilizar e prejudicar o seu usuário é
falso: o fato de ocorrer algumas vezes não quer dizer que acontecerá sempre.
A política antidrogas funciona de forma paternalista e, na intenção de
proteger, infantiliza o indivíduo. É inegável o poder destrutivo que as drogas podem
ter, mas é necessário enxergar a realidade efetiva da toxicomania generalizada em
que se vive. Ou seja, os “drogados” não são necessariamente só os outros; em certo
sentido, somos quase todos, pois há uma ampla disseminação de drogas legais que
são excluídas dessa discussão. Sem levar em conta tais fatos, não haverá
possibilidade de enfrentar os sérios problemas relacionados à dependência química.
Não é possível refletir sobre a política de drogas sem considerar o mal-estar
social, afinal, o mundo contemporâneo precisa de muita droga para funcionar. Se é
verdade que o uso de drogas pode acarretar problemas, também é verdade que os
problemas podem levar ao uso drogas. Os inalcançáveis ideais modernos criam uma
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PODER JUDICIÁRIO
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multidão de fracassados que, via de regra, recorrem a aditivos para dirimir a


sensação de impotência, especialmente na questão central da atualidade: a
exigência de ser feliz.
A política de “tolerância zero” não funciona no caso da droga e uma
sociedade livre de drogas é, nesse mundo competitivo e ansioso, uma utopia
ingênua. A sociedade está fortemente toxicômana: o pai não dorme sem o uísque e
o rivotril, a mãe toma antidepressivos há anos, o caçula não estuda sem ritalina, mas
o único “errado” é o filho que fuma maconha. Há remédios para dormir, ficar
acordado, mais focado, viabilizar uma ereção, calar a angústia, driblar a depressão,
estabilizar o humor etc. Assim, se a relação com a realidade é mediada pelas
drogas, elas estão simbolicamente no mesmo plano: se compradas do traficante da
esquina ou receitadas por um médico, desde que o uso ajude a suportar a vida,
trata-se da mesma questão.
O que não podemos negar é que é muito difícil não usar drogas para
amenizar a angústia de existir e de enfrentar a realidade. A questão é: por que só as
ilegais são combatidas com veemência? Por que o establishment grita tanto contra
as drogas ilegais e, aceita tão fácil a medicalização massiva até de crianças?
Temer o desconhecido é natural, por isso a política de erradicação das drogas
ilícitas encontra eco popular. Os piores preconceitos são dedicados às maiores
tentações e a droga não foge a essa regra. Porém, experiências de
descriminalização das drogas estão se proliferando com velocidade, abrindo outra
possibilidade de manejo desta questão, pela via da saúde.
Este trabalho pretende problematizar a questão, enfocando suas
repercussões especialmente sobre a juventude.

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1. CRONOLOGIA DAS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E AS DROGAS


AO LONGO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE

O termo droga teve origem na palavra droog (holândes antigo) que significa
folha seca; isso porque antigamente quase todos os medicamentos eram feitos à
base de vegetais. Há milhares de anos o ser humano tem contato
com vários tipos de drogas, seja para alterar o estado da mente ou do corpo. O
conceito, segundo a OMS, é qualquer substância que, introduzida no organismo,
interfere no seu funcionamento.
Pode-se dizer que não há uma história das drogas, mas uma história do uso
de drogas. O consumo dessas substâncias induz a um estado alterado de
consciência o que, para muitos, proporciona uma expansão da mente e uma nova
forma de estar no mundo.
As pinturas rupestres são um dos registros mais antigos da Pré-História e
alguns especialistas afirmam que tais desenhos podem indicar o uso de substâncias
psicoativas, especialmente os cogumelos alucinógenos.
Há estudos que apontam a importância das plantas psicoativas na evolução
humana e o início de nossa crença na existência de um ser superior, configurando-
se nas primeiras experiências religiosas (Ruck, 2009). Para a maioria das
sociedades antigas politeístas as drogas eram um caminho de acesso às
divindades, funcionando como uma espécie de portal para o reino dos espíritos.
No momento em que o cristianismo determinou que o único caminho para a
Salvação era a fé em Jesus Cristo (Eu sou o caminho, a verdade e a luz e Ninguém
vai ao Pai senão por mim), as drogas passaram a ameaçar o monopólio da Igreja na
esfera da conexão com Deus. Dessa forma, elas tornaram-se uma heresia a ser
combatida.
Nesse contexto começaram as primeiras leis proibicionistas. A visão das
drogas como uma atividade imoral principiou a partir dos séculos IV e V, com os

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ataques contra os não-cristãos que usavam substâncias psicoativas em seus rituais


secretos. Iniciou-se, então, a caça às “bruxas”, pois o conhecimento herbário foi
associado à prática da feitiçaria. Como consequência, a visão ocidental sobre as
drogas derivou dos preconceitos do cristianismo.
Com as grandes navegações, plantas psicotrópicas endêmicas de
determinadas partes do mundo foram levadas para outros lugares. A descoberta de
novos mundos significou a descoberta de territórios com diferentes usos de drogas.
O tabaco, a maconha e o ópio foram levados à Europa a partir das grandes
expedições.
No século XIX, as drogas, hoje consideradas pesadas, eram vendidas por
meio da indústria dos remédios patenteados. Naquela época não se conheciam seus
efeitos ao longo prazo, cujo objetivo era o alívio rápido da dor. Ópio, morfina e
cocaína eram destacados nos rótulos dos medicamentos que podiam ser adquiridos
como a aspirina dos dias atuais.
A partir do século XX, percebeu-se que o problema da dependência era uma
realidade e que o uso de drogas havia saído do controle. O vício passou a ser
atribuído aos entorpecentes e não apenas ao usuário. A reação das autoridades
direcionou-se à regulamentação com restrição do fornecimento aos médicos e a
proibição do uso recreativo. Porém, imediatamente, surgiu um mercado paralelo
para o fornecimento dessas substâncias. O que era considerado remédio passou a
ser droga ilícita a partir do momento em que essas substâncias, com um
empurrãozinho da indústria farmacêutica, saíram da medicina e “escaparam” para
sociedade.
Em termos sociais existe um aumento no uso abusivo de drogas que atinge a
juventude mundialmente, pois a sociedade é constantemente incitada ao consumo
(seja de mercadorias, remédios ou drogas). Muito provavelmente as drogas
continuarão fazendo parte da vida das pessoas, como vem ocorrendo desde os
primórdios da humanidade. Cabe à sociedade civil organizada pensar em novas
alternativas para lidar com essa questão, reconhecendo que o consumo é crescente
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e move um mercado milionário, superando a discussão polarizada do uso ou


abstinência, do bom ou ruim, da doença ou crime etc.
Portanto, é necessário levar-se em conta a complexidade dessa questão e
das relações interpessoais que se estabelecem no mundo atual, altamente
globalizado, mercantilizado, consumista, hedonista e imediatista que gera uma série
de dependências, inclusive pelas drogas consideradas ilícitas.

2. POLÍTICA DE GUERRA ÀS DROGAS

O debate a respeito do uso de drogas não é recente e sua ocorrência também


é frequente ao longo da história, em geral, marcada por forte ênfase no aspecto
moral.
Durante a primeira Guerra Mundial (1914-1918), a cocaína foi usada como
droga medicinal. Em 1920, a Lei Seca nos Estados Unidos da América (EUA) proibiu
o consumo de bebidas alcoólicas e deu origem a diversos movimentos criminosos
de contrabando e comércio ilegal de álcool (a máfia, os gangsters).
A partir de 1937, quando a maconha foi proibida nos EUA, iniciou-se o
combate ao narcotráfico nos moldes atuais, cujas consequências foram violência
atrelada ao crime organizado, explosão das populações carcerárias e o crescente
consumo de substâncias ilícitas.
Na década de 60, com o fenômeno da contracultura, os jovens usavam
drogas como forma de manifestar sua discordância ao capitalismo selvagem e para
difundir Love & Peace. O ex-presidente Richard Nixon declarou, em 1971, “Guerra
às Drogas”, estratégia mantida pelos governos subsequentes Ronald Reagan e
George Bush (pai).
Os EUA persuadiram os países europeus a adotar suas táticas proibicionistas
e as impôs aos países menos desenvolvidos, fazendo com que a produção de
drogas no mundo só aumentasse ao invés de diminuir nos últimos anos. Todavia,
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considerável parte da população mundial consome drogas, regularmente ou não.


Fazem-no pelas mais diversas razões, sejam elas culturais, medicinais, psicológicas,
religiosas ou mesmo para fins recreativos.
O proibicionismo, tanto do ponto de vista de sua (in) eficácia preventiva
quanto das consequências sociais, não chegou a um resultado efetivo. O consumo
de drogas é uma questão a ser enfrentada, mas jamais será extinto. As drogas
lícitas têm maior aceitação social do que as ilícitas, mas isso não representa menor
impacto destrutivo no ponto de vista biológico, psíquico ou social.
No final dos anos 1990 percebeu-se que a guerra contra as drogas
simplesmente não funcionou, pois a política de repressão e encarceramento em
massa custou astronomicamente caro, enriqueceu os traficantes e gerou um surto
de violência no mundo.
No Brasil sempre foi notável certa ausência do Estado ante a clara
necessidade de se elaborar uma política pública própria. O país deixou-se levar
pelas orientações de proibição penal absoluta, advindas dos EUA, e a partir da
segunda metade do século XX também da ONU. A importação da proibição não
poderá resolver plenamente a questão, na medida em que culturas diferentes
reclamam soluções específicas.
Além disso, no Brasil as iniciativas proibicionistas tiveram como consequência
o enriquecimento de alguns setores: construção civil para novos presídios, indústria
bélica e farmacêutica, além dos lucrativos centros de tratamento para dependentes.
O tema política de drogas no Brasil ainda está associado a uma visão repleta
de estigmas e estereótipos, que faz com que as pessoas, de uma forma geral,
enxerguem na repressão a única alternativa possível para lidar com a questão.
A política de guerra às drogas, além de gerar violência e exclusão social,
sabota o próprio fim a que ela supostamente se destina: promover a saúde das
pessoas. As atitudes e opiniões relacionadas a esse tema estão mudando em todo o
mundo e isso ajuda no combate à ideia de punição e encarceramento em massa,

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especialmente de determinados grupos: jovens, pobres, negros, com baixa


escolaridade.
É o momento de ampliar o debate, adotar e experimentar novas abordagens,
estudar os impactos do consumo de drogas na sociedade e rever a atual legislação
à luz da saúde pública. Mais importante é pensar a questão no âmbito da saúde e
não no criminal.

3. NATURALIZAÇÃO DA DROGA VINCULADA AO CRIME

Estudos apontam enorme abismo no que se refere ao consumo e tráfico de


drogas realizado por jovens de classes socioeconômicas abastadas e jovens pobres
das periferias de São Paulo. Como afirma a autora, Andréa Pires Rocha (2013):

O proibicionismo, a “guerra às drogas” e a criminalização da pobreza


são elementos situados no âmbito político ideológico, se
materializam na luta de classes e são utilizados para o controle
social.

Os jovens nascidos em mansões na cidade de São Paulo, com uma estrutura


que lhes garante conforto, educação da melhor qualidade, viagens ao exterior e
acesso a tudo que a condição econômica pode proporcionar, envolvem-se no tráfico
de drogas levados pela possibilidade real de grande lucro financeiro em curto prazo,
de prestígio, poder e adrenalina. Financiam uma rede de proteção que lhes garante
trabalhar com o ilícito, gozando de privilégios, da possibilidade de impunidade e
proteção.
Esta rede assegura a comercialização da droga, assim como a segurança e
liberdade: esses traficantes pagam mensalidades a policiais corruptos e a facções
criminosas. Há casos de traficantes que acompanham toda a trajetória da droga:
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plantio, produção e transporte. Utilizam-se das boas relações estabelecidas e têm


acesso a usuários de igual poder aquisitivo (alta elite), os quais são exigentes e
consomem drogas de “boa qualidade”.
As drogas, especialmente cocaína e maconha são comumente consumidas
por jovens em festas promovidas pelo próprio traficante em mansões de bairros
nobres. Para o funcionamento da engrenagem do narcotráfico uma peça importante
da máquina são os investidores: empresários, comerciantes e empreendedores, que
estabelecem por meio da atividade profissional uma relação ilegal e rentável que é a
lavagem de dinheiro.
Na capital paulista a distribuição é feita por numerosa frota de taxis,
motociclistas e “bickers” que fazem o serviço “delivery” da droga em bairros ricos.
Diferentemente desses jovens traficantes, os adolescentes pobres trabalhadores do
tráfico de drogas, como a própria condição socioeconômica determina, estão à
margem da sociedade e em situação de extrema vulnerabilidade. Com seus direitos
violados desde o nascimento, só têm visibilidade quando infringem a lei, conforme
destaca Rocha (2013):

A guerra às drogas não se dirige propriamente contra as drogas. Dirige-se, sim


como quaisquer outras guerras, contra pessoas – os produtores, comerciantes,
consumidores das substâncias proibidas, especialmente os mais vulneráveis
dentre eles, os mais pobres, marginalizados, desprovidos de poder, que são as
maiores vítimas da violência causada pela irracional insistência na proibição
das selecionadas substâncias psicoativas tornadas ilícitas.

Assim, a guerra às drogas é predominantemente voltada ao segmento de


adolescentes marginalizados e trabalhadores do tráfico que são encarados pela
sociedade como traficantes perigosos. Em contrapartida, ignora-se a parcela de
jovens nascidos em berços esplendidos, cercados pelos requintes e confortos que o
dinheiro pode proporcionar. Eles têm altos rendimentos com a prática de atividades

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ilícitas e sustentam uma rede criminosa de proteção camuflada pela legitimidade de


seus status quo que lhes garante os espaços necessários para as transações
comerciais ilegais, com segurança, e obtenção de lucros fabulosos.
Por meio de discursos ideologizados e ideologizantes, as manchetes
midiáticas estampam os adolescentes envolvidos com o tráfico mais como algozes
do que vítimas. Assim, eles se convertem em depositários da periculosidade social
e, nessa condição, tornam-se passíveis de punição e de exclusão. O psiquiatra.
Antonio Nery enfatiza que:

[...] a mídia nacional se interessa mais pelo horror disfarçado em


reportagens pseudocientíficas, do que pela informação técnica,
honesta, como se fosse a droga a causa de violência e não a
violência a causa de consumo do crack e outras drogas.

Enquanto olharmos e tratarmos o tema baseado na cultura da violência e


medo, manteremos os jovens confinados em guetos e submundos, quando na
realidade, cada vez mais, as drogas substituem espaços de diálogos, interação,
lazer e cultura. É necessário pensar em formas alternativas de lidar com esse
fenômeno em diferentes contextos sócio-históricos, econômicos e sociais.
Sendo assim, propõe-se o seguinte questionamento: ao serviço de que e de
quem estaria a naturalização das drogas vinculadas ao crime? A quais interesses
atende?

4. ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI COMO OBJETO


IDENTIFICADO DA PERVERSIDADE DA SOCIEDADE

De acordo com “O Panorama Nacional: a execução de medidas


socioeducativas de internação” (Conselho Nacional de Justiça, 2010/2011), o tráfico
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de drogas tem sido a segunda causa de internação de adolescentes na Fundação


Casa. Não tão surpreendentemente, os dados estatísticos apontam que a maior
parte dos internos são aqueles que, além de atuar na atividade do tráfico, pertencem
a uma classe social economicamente desfavorecida. Em muitos casos, os aparatos
de escolarização, lazer, saúde e moradia são deficitários e não atendem às suas
necessidades.
Esses jovens, considerados em situação de vulnerabilidade, estão à margem
dos recursos necessários à sua formação educacional, privados de reconhecimento
social e de acesso aos ideais vigentes na sociedade. A identificação com a cultura
de consumo, inalcançáveis para grande parcela da população, aumentam o
sentimento de fracasso e impotência.
Em uma ordem social determinada pelo consumo, a maneira de lidar com os
mesmos atos infracionais, praticados por jovens de divesos níveis sociais, é
diferenciada. E torna-se mais acentuada quanto maior for a possibilidade desse
jovem se engajar na cultura de consumismo. Assim, os adolescentes pobres,
usuários ou traficantes de drogas ilícitas, são os “eleitos” para representar, no
sistema de justiça juvenil, o mal estar social e os puníveis. Todo esse contingente de
jovens, a despeito de serem usuários e traficantes de drogas, sempre estiveram à
margem da justiça e foram excluídos do sistema de garantia de direitos, tornando-se
“invisíveis”.
O próprio ato infracional cometido por esses adolescentes, seja o tráfico ou
outros vinculados ao abuso de drogas, deve ser avaliado sob uma perspectiva mais
complexa, podendo ser compreendido como uma reação, ainda que inconsciente,
contra a sua invisibilidade em uma sociedade individualista, hedonista e excludente.
Assim, pode-se depreender que a sociedade e o Estado temem o
adolescente, que é julgado como sem perspectiva e que deve ser retirado da
comunidade pelo risco que representa para a própria formação social da qual ele é o
refugo. Eis ai mais uma perversidade histórica, pois esse jovem é julgado e
condenado ao posicionar-se contra sua invisibilidade.
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PODER JUDICIÁRIO
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5. JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIAIS: INTERNAÇÃO


COMPULSÓRIA E REDUÇÃO DE DANOS

A questão das drogas é de extrema complexidade e seu foco de


análise não se limita à esfera jurídica, da segurança pública, da internação
compulsória ou do encarceramento do dependente químico. Mais que
responsabilizar o usuário de drogas faz-se necessário convocar a sociedade
civil organizada para refletir sobre tal problema, investigando seus
determinantes históricos, socioculturais, políticos e econômicos.
As intervenções devem incluir o Poder Judiciário , Executivo e
Legislativo, além dos cidadãos em geral. Mais do que judicializar esses
conflitos, é imprescindível a efetivação do direito à saúde, com ações
preventivas e não coercitivas.
Pensando na criança e no adolescente como prioridades absolutas e
na doutrina da Proteção Integral, temos o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA, 1990), cujo artigo 98 preconiza a utilização de medidas
protetivas. Essas são previstas no intuito de promover o desenvolvimento
físico, psicológico e mental, a preservação do convívio familiar, o acesso à
educação, a participação social e a habilitação para o exercício profissional.
Dessa forma, o uso abusivo de drogas por crianças, adolescentes e jovens
precisa ser compreendido, sobretudo, na perspectiva da saúde pública.
É nessa premissa legal que devem ser sustentadas as intervenções,
especialmente do Judiciário, tendo em conta as medidas de proteção para a
infância, adolescência e famílias. E quais medidas podem ser aplicadas nesses
casos? Quais estratégias precisam ser implementadas? Como crianças,
adolescentes e suas famílias tornar-se-ão protagonistas nesse processo de
enfrentamento da questão das drogas? A internação compulsória é a melhor saída?
São viáveis os tratamentos baseados na redução de danos?

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A internação compulsória, do ponto de vista jurídico, é determinada nos casos


de comprovação médica de riscos para o paciente ou para terceiros. Mas o
afastamento do usuário de drogas da sua família e comunidade seria a melhor
solução de tratamento? Diante da resistência do paciente, é possível a aderência ao
tratamento? Se há a negação da doença, pode ocorrer um processo de
conscientização?
Esses questionamentos são necessários para garantir o direito à saúde, à
cidadania, à autonomia e à participação dos usuários de drogas no seu tratamento.
Não se nega a relevância da internação como alternativa terapêutica para
casos específicos e isolados. Questiona-se o uso dessa ferramenta de tratamento
que está para além de situações de saúde. Cabe, sim, evidenciar a forma como a
internação acontece em certos casos, sem a articulação com a rede de proteção.
Ainda é necessário ressaltar a lógica normalizadora pautada pelo imperativo da
abstinência. Essa é uma visão simplista para um problema multifacetado, correndo-
se o risco de localizar na associação entre o sujeito e a droga o cerne da drogadição
e, consequentemente, excluir as demais possibilidades de ação.
Nesse caso, a internação promoveria uma limpeza no ser que, após ter seu
corpo “desintoxicado”, estaria biologicamente livre dos efeitos que provocam o vício.
Porém, esse sujeito é devolvido para as mesmas condições de onde havia sido
removido, as quais oferecem o mesmo padrão de resposta. Assim, o indivíduo
permanece como o único responsável pelo sucesso ou fracasso do seu tratamento.
Enquanto medida protetiva, a internação psiquiátrica não assegura a eficácia
do tratamento de crianças e adolescentes. Por outro lado, como mecanismo
privilegiado de exercício de um poder de normalização, ela se constitui como lugar
de destino e de manutenção desta “adolescência drogadita”, forjando a existência e
naturalização dessa ordem social.
Como alternativa à abstinência absoluta, que muitas vezes é inviável, está a
proposta da redução de danos. Esse programa busca o conhecimento e o contato
com a realidade dos sujeitos a partir de suas escolhas e possibilidades concretas de
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mudanças. A meta da redução progressiva dos riscos e danos traz maiores chances
de pequenas mudanças no estilo de vida, sem demandar alterações radicais das
práticas e escolhas pessoais dos usuários. Busca-se, assim, viabilizar um processo
de conscientização que promova a superação da dependência física e psicossocial.

6. ABORDAGENS ALTERNATIVAS DO USO DE DROGAS

Neste tópico a intenção é apresentar a existência de trabalhos, ou mesmo


discussões sobre abordagens alternativas ao dependente de drogas voltadas aos
cuidados com a saúde ou engajamento a programas sociais e não de punição.
As Convenções Internacionais de Controle às Drogas dão aos seus Estados
Membros a flexibilidade para adotar tais abordagens, tendo como pano de fundo as
normas éticas e o pensamento essencialmente voltado ao bem estar do indivíduo,
na família, no grupo a que pertence e na sociedade de modo geral.
Para que de fato tais situações se solidifiquem, é imprescindível a construção
de políticas públicas comprometidas com a promoção, prevenção e o tratamento, na
perspectiva da integração social e autonomia das pessoas. No Brasil ainda são
poucos os incentivos que levam à adoção de uma abordagem voltada à saúde;
normalmente ainda se aplicam sanções penais.
O Ministro da Saúde, no final do ano de 2013, ao comentar sobre a Lei
relacionada às drogas no país vizinho, Uruguai, disse que: “o grande desafio que
temos aqui é montar uma rede de cuidados de saúde às pessoas que são vítimas do
uso abusivo de drogas, sobretudo o crack, para reduzir seu sofrimento e de suas
famílias. Temos que fortalecer as políticas de prevenção, principalmente as de
cuidado”.
Mesmo com os poucos incentivos na área saúde pública e proposições na
esfera dos discursos, há o trabalho da Prefeitura de Fortaleza, “Fortalecendo
Famílias”, envolvendo os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e
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PODER JUDICIÁRIO
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outras Secretarias Municipais. Este é um programa de prevenção ao uso e abuso de


drogas voltado para famílias de crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos.
Os principais objetivos são criar um espaço de reflexão no qual
pais/responsáveis e filhos possam construir maneiras eficazes de comunicação e
relacionamento, visando bem estar e fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários por meio do desenvolvimento de habilidades sociais.
Importante citar também a atuação do Centro de Atenção Psicossocial Álcool
e Drogas (CAPS ad). Trata-se de Unidade de Saúde pertencente ao Sistema Único
de Saúde, especializada em atender os dependentes de álcool e drogas dentro das
diretrizes determinadas pelo Ministério da Saúde, cuja base do tratamento do
paciente é permanecer na sua comunidade, em liberdade, propiciando sua
reinserção social.
Esse serviço oferece atendimento diário a pacientes que fazem uso prejudicial
de álcool e outras drogas, permitindo o planejamento terapêutico dentro de uma
perspectiva individualizada de evolução contínua, com o apoio e envolvimento da
família que é fundamental neste processo.
Objetivando a redução de danos, essas experiências ainda são incipientes no
Brasil, pois ainda prevalece o esquema proibicionista. Países da Europa como
Portugal e Holanda apresentam abordagens alternativas ao usuário voltadas à
saúde e à descriminalização.
Em Portugal, as drogas continuam sendo proibidas, mas seu consumo não é
mais crime; o usuário é considerado doente crônico que precisa de tratamento e as
sanções existentes são para os traficantes e produtores das drogas. O Ministério da
Saúde do referido país coordena as ações de prevenção que são articuladas com
outras áreas do governo.
Outro foco a ser observado na legislação portuguesa é a redução de danos,
que permite o fornecimento, por exemplo, de seringas descartáveis aos usuários de
drogas injetáveis. Tal iniciativa levou à diminuição de mais de 70% no diagnóstico do
HIV entre os adictos.
105
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A Holanda também segue a mesma proposta, em contraposição à política de


repressão; o consumo das drogas é tratado como questão de saúde pública. O
tratamento e as propostas de recuperação são ofertados a todos que buscam ajuda,
proporcionando condições para melhorar a qualidade de vida dos usuários e evitar o
contágio por doenças infectocontagiosas.
Pesquisas comprovam que a média de consumo de drogas na Holanda é
inferior a do restante do continente e o percentual de pessoas que usam drogas
injetáveis é o menor entre os 15 países da União Europeia.
Na América Latina, surge o Uruguai com a polêmica mais recente em relação
à lei sobre as drogas e em breve será o primeiro país do mundo a legalizar, regular e
participar da produção, venda e taxação de maconha. A lei ainda não está em vigor
e deverá ser sancionada em 2015, visando combater o tráfico e a economia do
mercado negro por meio de uma série de critérios para a comercialização.
Nos EUA há um contraste entre a política de guerra às drogas, que tem se
mostrado ineficaz na diminuição do consumo, e sua liberação nos caso do uso
medicinal, sendo permitido em cerca de 20 estados.
No final dos anos 90 os governos brasileiro e português começaram a trocar
ideias sobre possíveis soluções sistêmicas para o problema das drogas. Portugal
evoluiu nesse projeto e o Brasil pouco avançou. Na última década o problema das
drogas piorou em todos os aspectos: mais crack, mais uso, mais abuso, mais
dependência, mais crianças usuárias e traficantes e inflação da população carcerária
no país.

7. PROIBIR OU LIBERAR?

As discussões sobre a proibição, a descriminalização e legalização das drogas, em


diferentes países, são controversas e estão longe de chegar a um consenso.

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PODER JUDICIÁRIO
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A política proibicionista do século XX não conseguiu deter o consumo de substâncias


ilícitas nos Estados Unidos. Porém, essa experiência foi bem sucedida na Suécia, onde o
consumo de drogas, em especial de heroína, foi reduzido por meio de medidas legais mais
severas para o consumo. Por outro lado, na Holanda, a experiência de descriminalização do uso
da maconha aumentou o consumo dessa substância, mas conseguiu reduzir o de heroína.
(Araújo, 2007).
A literatura concorda que todas as drogas são potencialmente perigosas, porém, no
âmbito da saúde mental, os pressupostos que fundamentam os discursos proibicionistas e
liberalistas divergem sobre a origem da dependência. No primeiro caso, os posicionamentos
desfavoráveis à legalização tendem a focar na necessidade de evitação do contato com
substâncias ilícitas em razão do seu risco de gerar dependência. Nessa vertente, o psiquiatra da
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - Ronaldo Laranjeiras (2008, p.14) refere que “a
ação direta de qualquer droga com potencial de criar dependência reforça a chance de que ela
venha a ser usada novamente”.
Os defensores da descriminalização (Hardt, 2014; Escohotado, 2009) tendem a associar
muito mais a origem do abuso de drogas aos fatores psicossociais do que às características do
entorpecente. Em geral, considera-se o consumo de drogas abusivo quando compromete ou
impede a realização das funções psicossociais do indivíduo, como as responsabilidades
profissionais, por exemplo.
De acordo com Hardt, 10 a 15% dos usuários de álcool e 15 a 20% dos usuários de
crack não abusam dessas drogas, o que significa que a maioria deles não é dependente. Em
consonância, Dartiu Xavier (2013), também psiquiatra da UNIFESP, entende que o consumo
recreacional de drogas não é necessariamente problemático. Segundo ele “para maconha e
álcool é menos de 10% dos usuários que se tornam dependentes. Para crack por volta de 20 a
25% que se tornam dependentes”.
Para os liberalistas a origem da dependência relaciona-se menos às drogas em si e mais
aos problemas sociais ou psicológicos associados ao seu consumo. Assim, para Xavier (2013)
“A guerra não era para ser feita contra as drogas, e sim contra o que leva o indivíduo a se tornar
dependente”.
Os proibicionistas também pressupõem que a legalização aumenta o consumo de
drogas, sobretudo entre as pessoas que nunca usaram, e sobrecarrega o sistema de saúde
pública. Em oposição a esse argumento, os defensores da legalização, amparados nas
estatísticas sobre a dependência, consideram que a probabilidade de uma pessoa tornar-se
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PODER JUDICIÁRIO
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usuário eventual é bem maior do que o risco de se tornar dependente. Sendo assim, os usuários
ocasionais não necessitariam utilizar os serviços de saúde.
Do ponto de vista da segurança pública, o modelo coercitivo de combate às drogas
ilícitas não impediu que as organizações criminosas enriquecessem com o controle da produção,
da venda e da distribuição dos entorpecentes e, nesse cenário, os usuários foram criminalizados.
Para a vertente liberalista, a descriminalização deixa de estigmatizar e criminalizar o usuário.
Nesta perspectiva, entende-se que, a exemplo do que ocorre com as drogas lícitas, a
regulamentação e o controle das drogas ilícitas pelo Estado tenderia a reduzir a violência
associada ao tráfico e ao crime organizado.
Ainda segundo os proibicionistas, os pequenos traficantes – pessoas que traficam para
assegurar o próprio consumo - são os principais responsáveis pela chegada da droga ao
consumidor e não devem ser considerados meros usuários. Já no polo oposto, voltado para a
proteção e para a redução de danos, o processo educativo torna-se um grande aliado da
conscientização do uso. Nessa concepção, o usuário é retirado da condição de “vítima da droga”
e torna-se responsável pela sua administração e consumo.
As especificidades sociais (emprego, distribuição de renda), geográficas (rota de tráfico),
políticas, educacionais e culturais mostram-se relevantes para o sucesso ou fracasso das
políticas proibicionistas e liberalistas em diferentes países. Para além da polarização da
proibição-liberação das drogas, a reflexão sobre a criminalização de usuários, os efeitos da
legalização e a estrutura dos serviços de atendimento em saúde mental são fundamentais para o
desenvolvimento de políticas de enfrentamento mais efetivas para a realidade brasileira.

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CONCLUSÃO

A questão das drogas é histórica, complexa e polêmica e muito provavelmente


continuará fazendo parte da humanidade. Seria simplista, e até equivocado, focar a reflexão na
polaridade “liberação ou proibição” do uso de entorpecentes. Muitas são as tendências e
justificativas para defender um posicionamento ou outro. O que parece mais sensato é analisar
com profundidade a realidade do consumo existente.
Inúmeras são as estratégias de enfrentamento do uso de drogas ilícitas, porém verifica-
se que, de modo geral, a vertente punitiva e do encarceramento não tem atingido os resultados
esperados. O que se constata, então, é o aumento da produção, da distribuição e da venda de
drogas lícitas, farmacológicas e proibidas, inclusive para o segmento infanto-juvenil.
Não é mais possível negar a existência de usuários recreativos, abusivos e dependentes
de drogas em diversos contextos socioeconômicos. Esse fato implica rever os estereótipos
criados e até impostos aos ditos “maconheiros”, “crackeiros”, “viciados”, “nóias” etc., bem como
as formas de intervenção junto a esse público.
No âmbito da saúde pública houve avanços importantes com a política de redução de
danos, cuja prioridade não é a abstinência imediata e absoluta, mas o tratamento ambulatorial
com um plano de atendimento a curto, médio e longo prazo traçado junto ao paciente.
Na esfera da segurança pública, verifica-se que a maioria das apreensões atinge mais
diretamente os que trabalham para o tráfico de drogas do que os que gerenciam e administram
esse mercado. Portanto, temos de forma geral, o encarceramento da juventude pobre, negra,
moradora da periferia, excluída da escola, dos bens culturais e de lazer. Muitos desses
adolescentes em conflito com a lei e usuários de drogas só têm acesso aos direitos sociais,
quando cumprem uma medida socioeducativa de internação.
Se o tráfico de drogas tem sido uma alternativa de trabalho para uma grande parcela de
adolescentes sem perspectivas, é urgente rever as políticas públicas existentes e o sistema de
garantia de direitos. Esse deve ser um dos compromissos de todo cidadão que amplia o olhar
sobre os fatores determinantes dos atos infracionais e se responsabiliza em atuar nas suas
causas históricas, sociais e econômicas.

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PODER JUDICIÁRIO
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110
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
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DIVÓRCIOS ALTAMENTE LITIGIOSOS


Algumas reflexões

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “CASOS ALTAMENTE


LITIGIOSOS EM VARAS DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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COORDENADORAS

Lidia Rosalina Folgueira Castro – Psicóloga Judiciária – Varas da Família e das


Sucessões do Foro Central
Maria Isabel Strong – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e Juventude do
Fórum Central.

AUTORES

Albina Sonia Ribeiro- Psicóloga Judiciária- Vara da Família e Sucessões do Fórum


Central.
Alexandre Israel Pinto- Psicólogo Judiciário- Comarca de Registro
Célia Regina de Lima Costa- Assistente Social Judiciário – FR XI Pinheiros
Isaura Benigno da Cruz – Assistente Social Judiciário –FR V São Miguel Paulista
Jaqueline Fernanda Verônica de Jesus – Assistente Social Judiciário- Comarca de
São José dos Campos
Ligia Zago- Psicóloga Judiciária – Comarca de Sorocaba
Luciana Mattos – Psicóloga Judiciária- Comarca de Francisco Morato
Maíra Quillsi Malvoni – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Ferraz de
Vasconcelos.
Maria Aparecida Thomé Garcia- Psicóloga Judiciária- Comarca de Botucatu.
Márcia Verônica Bezerra de Carvalho Wolf – Assistente Social Judiciário- FD. De
Pariquera-Açu.
Maria Aparecida Fabiano Fabrício – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
Carlos.
Martha Regina Albernaz – Assistente Social Judiciário – FRIV Lapa.
Meire Obata Matsuo – Psicólogo Judiciário –Vara da Família e Sucessões do Fórum
João Mendes.
Miguel Clemente Lohmeyer – Psicólogo Judiciário - Vara da Infância e da Juventude
do Foro Regional I - Santana
Rosângela Maria Lenharo- Assistente Socia Judiciário- Comarca de Ibitinga.
Rubia Keli dos Santos – Psicólogo Judiciário –Comarca de Mogi das Cruzes.
Sandra Pinesso Cianfarani – Assistente Social Judiciária- Comarca de Votorantim
Sonia Regina Coutinho de Carvalho Pereira – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Santa Branca
Suziany Rodrigues Magalhães – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Cananéia.
Viviane Eugênia Gualtieri Fagundes – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Jundiaí.

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos “Casos Altamente Litigiosos em Varas de Família” surgiu


na vigência da Coordenadoria de Família e Sucessões do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, como decorrência do interesse de assistentes sociais e
psicólogos por essa problemática.
As coordenadoras do Grupo de Estudos, psicóloga Lídia Rosalina Folgueira
Castro e assistente social Maria Isabel Strong ainda enquanto membros das equipes
técnicas das Varas de Família e Sucessões constataram a incidência de casos
altamente litigiosos, com repercussões para as partes, especialmente crianças e
adolescentes e também para os técnicos.
O Grupo de Estudos foi proposto e iniciou suas atividades em 2014, com a
adesão de 21 assistentes sociais e psicólogos interessados, provenientes de várias
comarcas, da capital e do interior.
Os trabalhos do Grupo de Estudos iniciaram-se definindo o que são casos
altamente litigiosos em Varas de Família, utilizando como texto de referência
“Séparation et Divorce três conflituels: options à examiner”, editado pelo Ministério
da Justiça do Canadá, traduzido livremente por um dos membros do Grupo de
Estudos.
Fazendo parte da compreensão fenomenológica do assunto subdividiu-se o
tema em três outros aspectos correlatos. A exposição do trabalho final apresenta a
sequencia das discussões acerca do tema central e subtemas, em uma primeira
abordagem da controvertida matéria.
O Grupo de Estudos espera que este primeiro trabalho possa trazer subsídios
para despertar o interesse dos profissionais e autoridades, bem como a futura
implantação de politicas públicas no sentido da prevenção, atendimento e
encaminhamento de casos altamente litigiosos, em Varas de Família.

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PODER JUDICIÁRIO
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1. CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS EM VARAS DE FAMÍLIA

O divórcio altamente litigioso é um fenômeno que atinge de forma nefasta


toda a família e, principalmente, as crianças e adolescentes envolvidos.

O Ministério da Justiça Canadense, a fim de compreender as causas e as


consequências desse tipo de divórcio, encomendou um extenso trabalho de
pesquisa sobre o tema. Essa pesquisa foi realizada por um comitê misto. Mais do
que a simples compreensão do fenômeno, o Comitê propõe medidas de prevenção,
intervenção e acompanhamento dos casos altamente litigiosos.

Apesar das diferenças de contextos sócio político e econômico que possam


existir entre Brasil e Canadá, o estudo canadense, pela seriedade científica, pode
servir, no mínimo, para reflexão e inspiração a novas atuações nas famílias que
passam pelo divórcio, principalmente os altamente litigiosos.

O dossiê realiza, a princípio, uma revisão bibliográfica sobre os efeitos do


divórcio para o desenvolvimento infantil. Os dados parecem não ser conclusivos.
Stewart (2001) revisou artigos dos anos 1960 e 1970. Concluiu que os profissionais
pareciam divididos sobre os efeitos negativos do divórcio em longo prazo,
encontrando dados contraditórios.

Os estudos analisados após as décadas de 1960 e 1970, citados nesse


dossiê assinalam a mesma tendência já apontada por Stewart (2001), ou seja, não
há uma afirmação categórica, advinda de diferentes estudos e demonstrando com
precisão que o divórcio em si mesmo seja a causa de problemas de
desenvolvimento na criança.

Amato e Keith (1991) e Amato (1994) afirmam que as consequências do


divórcio são prejudiciais ao desenvolvimento infantil. Rutter (1981), contudo, detecta
que os estudos apontam diferenças na consequência do divórcio para as crianças
quando se toma por base o tempo transcorrido do divórcio. Em curto prazo, os
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PODER JUDICIÁRIO
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estudos apontam consequências negativas do divórcio para o desenvolvimento


infantil. Contudo, em longo prazo, nenhuma diferença significativa foi encontrada.

Peterson e Zill (1986) após um minucioso estudo com 2.301 crianças de pais
separados verificaram que as menos deprimidas conviviam com ambos os pais.
Nesta mesma linha, Jacbson (1978) constatou que quanto mais tempo a criança fica
longe de seu genitor, maior era o grau de desajustamento quanto à agressão e
dificuldades de aprendizagem. Ou seja, o fator preponderante parece advir não do
divórcio em si, mas do tempo de convivência entre pais e filhos, após o divórcio.

Um refinamento no estudo das questões relacionadas ao divórcio irá se


aprofundar nos divórcios litigiosos e o que estes provocam nos filhos. Neste campo
específico, os autores, Ayoub, Deutsh e Maragarone (1999), Gilmour (1998) estão
de acordo que as consequências para os filhos não são boas, acarretando maiores
problemas de desajustes.

Mas, o que o que torna um divórcio litigioso?

Para Stewart (2001) existem diferentes fatores que contribuem para o divórcio
se tornar litigioso. Ele dividiu em três níveis: externo, interno e relacional, conforme
especificado a seguir.

Como fatores externos que contribuem para o acirramento das disputas, há o


próprio funcionamento do sistema adversarial. Cada componente desse sistema
contribui para tornar o litígio ainda mais grave. Os advogados, por exemplo,
contribuem colocando em suas petições acusações graves, muitas vezes
desconsiderando o momento de fragilidade pelo qual passa a família. Os
profissionais da saúde, como os terapeutas de alguma das partes, muitas vezes se
colocam na defesa de seus pacientes, sem conhecer a outra parte envolvida. Em
relação ao sistema de julgamento, entende-se que pode favorecer como a sentença
do juiz seja vivida, de forma depressiva.

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PODER JUDICIÁRIO
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Para Stewart (2001), os fatores internos são os fatores intrapsíquicos dos


envolvidos: antecedentes de problemas mentais, de comportamentos abusivos e
violentos, senso frágil de limites, tendência à dependência, a agressividade verbal e
física.

Os fatores relacionais estão ligados à dinâmica que se forma entre as partes


envolvidas. Para tanto, contribuem como a individualidade de cada um se mescla
com a do outro e a dinâmica que se forma a partir daí.

O dossiê propõe uma série de intervenções, de diferentes níveis e instâncias,


para amenizar os casos altamente litigiosos.

Para isso, é necessário que os técnicos, entendidos como os profissionais


operadores do direito saibam “de qual família estão falando”, em suas características
próprias, sua história e elementos constitutivos para lidar e superar divórcio.

2. AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA

A família, ao longo de sua história foi se caracterizando como um espaço de


inserção e apoio para os indivíduos, embora não se possa negar a existência da
reprodução da desigualdade e da violência no âmbito familiar É dentro desse
contexto que surgem os casos nos quais os assistentes sociais e psicólogos do
Tribunal de Justiça são chamados a trabalhar.
É imprescindível compreender a inserção social e o papel que está sendo
atualmente destinado à família contemporânea e, da mesma forma, é necessária a
mobilização de recursos na esfera pública, visando à implantação de políticas
sociais de caráter universalista, que assegurem efetiva proteção social. Nesse
contexto, torna-se fundamental que o indivíduo e sua família tenham condições de
prover sua autonomia, sejam respeitados em seus direitos civis e sociais com

117
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

acesso à educação, à saúde, à justiça e ao trabalho e a possibilidade de elevação


do nível de qualidade de vida, enquanto aspectos inerentes à construção da
cidadania.
Para compreender os casos altamente litigiosos, suas particularidades e
avaliar as condições objetivas e subjetivas da família torna-se imprescindível
conhecer a família da qual se fala, suas configurações históricas e sociais.
Em uma abordagem contemporânea de família inicia-se este estudo pelo
processo de modernização adentrando as particularidades das novas configurações
familiares, escolhendo-se a questão do papel dos avós e a mulher do pai como
objeto de estudo.
Tomando como base Ariés (1981) a partir da segunda metade do século XIX,
o processo de modernização e o movimento feminista provocam outras mudanças e
o modelo patriarcal, vigente até então, passa a ser questionado. Começa a se
desenvolver a família conjugal moderna, na qual o casamento se dá por escolha dos
parceiros, com base no amor romântico. Contudo, pode-se afirmar que até o século
XX traços da família patriarcal ainda persistem na família conjugal moderna.

2.1 O processo de modernização e a família contemporânea

Em termos de constituição da família, é somente na segunda metade do


século XX que o casamento se afirma, pelo menos para os setores médios urbanos,
como uma escolha mútua, baseada em critérios afetivos sexuais e na noção do
amor.
O casamento e a família sofreram influências das mudanças sociais e,
principalmente, do movimento feminista nas três ultimas décadas do século
passado. No que se refere à união conjugal, observa-se uma tendência para o
debate/embate de questões como: relações de gênero, redefinições de papéis

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masculinos e femininos, comportamento sexual, constituição da mulher como


individuo e construção da individualidade e da identidade pessoal.
No Brasil, somente com a Constituição de 1988 a mulher e o homem são
igualados em direitos e deveres em relação aos filhos, sejam eles de qualquer
origem e natureza.
As mudanças sociais econômicas e culturais se refletem no aumento da
separação conjugal, no crescimento do divórcio, na diminuição dos índices de
casamento formal, na redução do número de filhos e do desejo das mulheres de tê-
los.
Aparecem como aspectos significativos da família contemporânea os novos
arranjos familiares, com famílias organizadas em torno de um só dos pais e mais
frequentemente a condição da mulher como chefe de família.
As famílias de classe média e as de camadas baixas tendem a se organizar
preconizando diferentes “modelos” (ou arranjos) de família.
A família hoje em dia é caracterizada pela união afetiva dos cônjuges, com ou
sem filhos, que se unem não mais por uma vida inteira, mas por um período
aleatório que, em mais de um terço dos casos, termina em separação.
As diferentes composições familiares podem ser classificadas atualmente
como: família nuclear (pai, mãe e filhos); extensa (incluindo três ou quatro
gerações); adotivas (inter-raciais ou multiculturais); monoparentais (chefiada por um
só dos genitores); reconstituídas (após a separação conjugal); casais sem filhos;
casais homossexuais (com ou sem crianças); várias pessoas vivendo juntas, sem
laços consanguíneos, mas com forte comprometimento mútuo; famílias anaparentais
e paralelas (extraconjugal).

Uma estrutura familiar originada do casamento ou da união estável


de um casal, na qual um ou ambos de seus membros têm um ou
vários filhos de uma relação anterior (...) é a família na qual ao
menos um dos adultos é um padrasto ou uma madrasta. Ou seja,

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que exista ao menos um filho de uma união anterior de um dos pais


(GRISARD FILHO, 2010 apud SOUZA; BELEZA; ANDRADE, 2012).

Nessas famílias apresenta-se com clareza o surgimento de novos laços de


parentesco, com uma multiplicação de pessoas que exercem as mesmas funções:
pai, mãe, meios-irmãos, novos avós, tios e primos.
Perante as famílias contemporâneas, surge a dificuldade dos pais e mães, ou
padrastos e madrastas, de sustentar sua posição de autoridade responsável perante
as crianças.
Segundo Souza (2012), com a expansão da rede familiar, delineiam-se crises
de autoridade e lealdade, sendo necessário que a nova família construa sua própria
identidade, articulando os direitos e deveres do grupo, respeitando a individualidade
social e cultural de cada membro, para obter a plena satisfação de seus integrantes.
De acordo com Kehl (2003): “Educar, no contexto contemporâneo, é assumir
riscos ante a geração seguinte”.
As relações intergeracionais aparecem como algo a ser decodificado e
administrado pela família contemporânea, uma vez que a “cultura dos jovens” se
expressa com conteúdos bem diferentes daqueles vividos por seus pais, provocando
assim, um embate entre eles.

2.2 O papel dos avós

As alterações nos arranjos familiares influenciaram no tipo de cuidado que os


avós dispensam aos seus netos. Aqueles que antes desempenhavam os papéis de
bonachões ou permissivos passam a ter atribuições de pais, devendo agora impor
limites e regras.
Em nossa sociedade, avôs e avós tendem a serem figuras privilegiadas no
imaginário das pessoas e com algumas exceções, amados e recordados com

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imenso carinho pelos netos. Contudo, por mudanças diversas, tem havido um
aumento considerável de casos em que os avós passam a desempenhar o papel de
pais, em alguns casos com todas as funções pertinentes, deixando de viver a
experiência de serem simplesmente avós.
Dellman-Jenkins et al. (2002) dizem que os avós tiveram seus papéis
expandidos e agora eles têm netos vivendo consigo, obtém sua custódia legal e lhes
oferecem cuidados diários, além de se responsabilizarem, também, financeiramente
por eles. A forma de vivenciar esses papéis não são novos, mas acontece em novas
circunstâncias bastante diversificadas, podendo sofrer influência dos novos arranjos
familiares.
No que se refere à estrutura familiar, há dois modelos distintos que englobam
avós e netos nessa situação de cuidado e papéis expandidos. Na primeira, há os
lares compostos por três gerações que teve considerável aumento a partir da
década de 1980, em que ambos os pais ou ao menos um deles reside com avós e
netos. Já na segunda, mais comum a partir da década de 1990, os pais estão
ausentes do lar e cabe aos avós todo o cuidado dos netos (GOODMAN &
SILVERSTEIN, 2002).
As estruturas familiares citadas trazem consigo exigências e consequências
distintas para os avós. Há avós que cuidam dos netos por um período do dia, porque
os pais precisam trabalhar e não tem outro local onde as crianças possam ficar
quando não estão na escola, ou ainda em tempo integral, porque toda a família
reside nos chamados lares multigeracionais devido a, por exemplo, dificuldades
financeiras.
Em relação às causas que conduzem avós a assumirem essa
responsabilidade, a literatura aponta alguns dos principais fatores: inserção das
mulheres no mercado de trabalho, dificultando-lhes o cuidar integral dos filhos;
dificuldades econômicas como desemprego dos pais e necessidade de ajuda
financeira por parte dos avós; necessidade de ambos os pais trabalharem para
proverem o sustento doméstico; divórcio do casal com retorno para casa dos pais,
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juntamente com os netos; novo casamento de pais separados e não aceitação das
crianças por parte do cônjuge; gravidez precoce e despreparo para cuidar dos filhos;
morte precoce dos pais devido à violência ou doenças como a AIDS; incapacidade
dos pais decorrente de desordens emocionais ou neurológicas; uso de drogas ou
envolvimento em programas de recuperação para usuários de drogas; envolvimento
em situações ilícitas e problemas judiciais. (SANTOS, 2003; MINKLER & FULLER-
THOMSON, 1999; DELLMAN-JENKINS ET AL., 2002; GOODMAN & SILVERSTEIN,
2002; GLASS JR. & HUNEYCUTT, 2002).

2.3 A mulher do pai, o seu lugar na dinâmica das novas famílias

Com os novos casamentos e as novas uniões estáveis e a consequente


recomposição familiar, a figura do padrasto e da madrasta passou a ser comum e ter
visibilidade na sociedade. De acordo com Borges (2007) vivemos uma transição nas
configurações atuais das famílias as quais carregam referências e valores de um
modelo familiar que não responde mais pelas novas dinâmicas familiares e
societárias.
O lugar de cada um nessas novas dinâmicas de casamentos desfeitos,
acrescida de agregados, mostra claramente a diferença entre a família ideal, que
ocupa o imaginário social com pai, mãe e filhos juntos e felizes, em confronto com a
família que se constitui com companheira, companheiro, às vezes do mesmo sexo,
filhos do primeiro casamento, de um ou dos dois e parentes de ambos.
Ser pai, mãe, filhos do pai e filhos da mãe, ter meios irmãos ainda é uma
situação nova que requer olhares atentos, pois, os lares de pais separados não
funcionam com as mesmas regras das antigas famílias nucleares: pai trabalhador,
mãe cuidadora dos filhos e da casa, filhos obedientes e todos morando na mesma
casa. Como essas novas famílias podem ter várias configurações, escolheu-se para
breves considerações a figura da Mulher do Pai, também conhecida como madrasta.

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Muitas pessoas fazem parte dessa nova família: a mulher do pai, o marido da
mãe, os filhos do marido da mãe, os filhos da mulher do pai que passam a conviver
junto como se fossem da “mesma família”. Com a madrasta e o padrasto a
criança/adolescente ganha também os “avós-drastos”, primos, tios, meios irmãos.
.Essa grande família tem como componente a proximidade afetiva e não a
proximidade dos laços de sangue.
Borges (2007) em seu livro: “A Mulher do Pai – Esta estranha posição dentro
das novas famílias”, aponta que “a mulher do pai não existe na instância jurídica da
família e não tem direito legal ao qual possa recorrer...” (2007:26). Ela é mulher do
pai, não faz parte da família dos filhos do pai, não é nada deles e os filhos do pai
não são nada seus. De acordo com a autora:

Do mesmo modo, a criança nada pode exigir juridicamente dos


novos parceiros dos seus pais. Nem herdeira da mulher do pai ela é,
nem direito a visitas ou pensão ela pode requerer. O direito familiar
está apoiado em outro tempo, no tempo da família nuclear, e é
necessário que seja atualizado. (BORGES, 2007, p.33)

O grau de parentesco entre a mulher do pai e os filhos do pai é apenas afetivo


e não jurídico, desta forma como consequência da inexistência dos laços jurídicos,
ela não pode exercer qualquer autoridade jurídica, nem a responsabilidade
educativa das crianças.
Essa personagem quando entra na família abala os sistemas familiares, pois
é uma pessoa nova, estranha que os filhos terão que conviver, muitas vezes
esperando que elas tenham atitudes parecidas com as da mãe.
Necessário é lembrar que a mulher do pai entra na família em razão do
adulto, o pai e não das crianças.
A entrada de um novo elemento na família, para a criança é muito
complicado, pois, é vista como um intruso, um rival, colocando fim aos sonhos que a

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criança alimentava de reconciliação dos pais biológicos; desta forma é um processo


doloroso para a criança que frequentemente assume um papel de opositora ao novo
elemento que o pai ou a mãe coloca na família. Ainda acrescenta Borges (2007,
p.26) que enquanto os filhos do marido “não são nada seus”, a mulher do pai
também tem tudo para se sentir invadida por eles, os “estranhos” que ocupam a sua
casa e a sua vida. Para Borges:

Como intrusa ou madrasta, ela ameaça o valor da mãe e não poderá


ser apreciada. Ao apreciá-los, os filhos podem sentir que estão
sendo desleal à mãe. As crianças têm uma lealdade apoiada no
vínculo primordial de proteção. São leais com a mãe, que sabem que
é a protetora “número um”. Se à mulher do pai é atribuída qualquer
ameaça à mãe, mesmo de substituição desta, eles a rejeitarão.
Assim como qualquer mau sentimento da mãe em relação à nova
mulher do ex é percebido pelas crianças. Quando a mãe tem forte
apelo ideológico na família nuclear, terá mais dificuldade em integrar
a nova mulher do seu ex como membro da família, afetando
negativamente a relação da criança com a mulher do pai. (BORGES,
2007, p.25).

A palavra madrasta tem a má fama de mãe pouco carinhosa, que maltrata os


filhos; vem a partir dos contos de fadas registrados numa época onde muitas mães
faleciam no parto, o pai não demorava a se unir com outra mulher, para quem os
filhos de um casamento anterior do marido, nem sempre eram bem vindos.
A definição de madrasta é: mulher que está no lugar da mãe, que casou com
o pai que cuida dos filhos dele, morando junto com eles. O simples fato de ser
mulher do pai não se caracteriza como madrasta. Quando um homem se casa com
outra mulher, mas os filhos continuam com a mãe biológica, esta outra não é
madrasta.

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Interessante observar que com a palavra padrasto não há valorização


negativa atribuída; padrasto designa o homem que substitui o pai ao casar-se com a
mãe-viúva.
As atribuições da mulher do pai se diversificam em razão da situação das
crianças, se visitam ou se residem com o pai. Quando as crianças eram visitas os
seus desejos e vontades eram sempre atendidos, para compensar os dias que
ficavam distante do convívio com o pai. Quando as crianças estão residindo com o
pai, as relações familiares são diferenciadas, a mulher do pai não recebe mais as
crianças em finais de semanas determinados judicialmente, nem em épocas
especiais, morando com o pai a vivencia é no cotidiano.
Do ponto de vista do Direito, a Constituição Federal de 1988 trouxe uma nova
visão da família, embasada nas relações de afeto. O Código Civil de 2002 em seu
artigo 1.595 inclui, além do cônjuge, o companheiro. No entanto, é o Estatuto da
Criança e do Adolescente, com as alterações da Lei 12.010 de 2009 que define a
família extensa e ampliada e, por consequência, insere a mulher do pai. Essa figura,
a mulher do pai, geralmente está “no olho do furacão” da família nos conflitos
judiciais, é personagem que pode facilitar a convivência pacífica ou mesmo acirrar
os conflitos.
As novas configurações familiares são desafios a serem pensados e
estudados, numa sociedade que está em constante mudança, principalmente se
forem consideradas as uniões homo afetivas e as famílias reconstituídas após o
divórcio/separação, onde o novo (a) companheiro do pai, não é necessariamente do
sexo oposto.
É nesse complexo contexto de várias nuances e de novas configurações
familiares que os assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça são
convocados a trabalhar, na área da família, em processos litigiosos e altamente
litigiosos.

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3. A ALIENAÇÃO PARENTAL

A Síndrome da Alienação Parental (SAP) foi definida em meados dos anos 80


pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner como um distúrbio infantil que
ocorreria especialmente em menores de idade expostos às disputas judiciais entre
seus pais. A despeito de inúmeras controvérsias sobre a SAP, ressaltadas por
Sousa (2010) e Brito (2010), textos que fundamentam esse trabalho, a SAP se
encontra no centro dos debates sobre litígio conjugal e guarda de filhos.

A SAP foi definida em meados dos anos 1980 Motta, Sousa e Brito (2010),
pelo psiquiatra norte americano Richard Gardner como um distúrbio infantil que
ocorreria especialmente em menores de idade expostos às disputas judiciais de
seus pais. A despeito de inúmeras controvérsias sobre o assunto, atualmente a SAP
se encontra no centro dos debates sobre litígio conjugal e guarda de filhos.

No cenário nacional, especialmente a partir da promulgação da lei sobre


guarda compartilhada, o assunto tem recebido amplo destaque, observa-se que, em
diversos países, despontam críticas e polêmicas em torno da síndrome, porém no
Brasil, desperta atenção a ausência de debates de reflexões sistematizadas sobre a
SAP.

Sousa e Brito (2010) salientam a falta de rigor científico na teoria de Gardner


e a insistência dele para que a referida síndrome fosse inserida no DSM IV (Manual
Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais). As autoras, em revisão aos
textos de Gardner, apontam que este desconsiderou a existência de pesquisas
sobre separação conjugal e guarda de filhos. Amparou-se, quase que
exclusivamente, em seus próprios estudos, os quais não explicava, de forma detida,
como havia realizado. Gardner fazia referência, com frequência, aos livros escritos
por ele, publicados em sua própria editora.

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As autoras salientam que a literatura sobre terapia de casal e família, bem


como diversos estudos e pesquisas sobre separação conjugal, por vezes se
estabelece uma relação intensa entre um dos genitores e um ou mais filhos, ao
mesmo tempo em que estes passam a rejeitar, de forma exacerbada, o outro
responsável. Esta forma de relacionamento recebeu diferentes designações por
diferentes autores: cisma, coalização, alinhamento, dentre outras.

No levantamento bibliográfico realizado por Sousa e Brito (2010), verifica-se


que diversos fatores podem contribuir para a existência desses comportamentos.
Enfatizam a importância de se oferecer atendimento às famílias, visando a
preservação das relações parentais. Apontam, também, dificuldades relativas ao
casal que se mesclam com aquelas que dizem respeito aos filhos. Ressaltam
questões individuais e geracionais envolvidas no cenário litigante e a predominância
de sentenças que privilegiam a figura materna em relação à guarda dos filhos, o que
contribui para que o pai tenha um papel secundário na vida deles.

O trabalho de Gardner, segundo Sousa e Brito (2010), estruturou e


disseminou uma teoria que transformou o fenômeno das alianças parentais no litígio
conjugal em uma síndrome, priorizando aspectos individuais e deixando de lado uma
gama de fatores que se encontram associados às situações de disputas judiciais.
Gardner, ainda segundo Sousa e Brito (2010), desconsidera as relações familiares e
a sua interação com os fenômenos sociais e mantêm uma visão determinista e
limitada, valorizando a punição e recomendando medidas judiciais ao genitor
alienador. Os questionamentos sobre a referida síndrome remetem às ideias de
Michel Foucault e sobre a possibilidade de pensar diferente sobre um determinado
objeto e situação apresentada.

Sousa e Brito (2010) examinando o tema SAP abandonam supostas


evidências, tentando revelar discursos subjacentes à ideia de que haveria uma
síndrome associada às situações mencionadas, amparadas num constante
questionamento: afinal, o que a teoria da SAP estaria encobrindo?
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Os mesmos autores, por fim concluem que a rápida difusão e naturalização


do tema SAP no cenário nacional contribui para uma visão unilateral que absolutiza
da existência de uma síndrome nas situações de litígio conjugal. Retorna, assim, a
ideia de que filhos de pais separados são mais problemáticos, portadores de
distúrbios, o que pode ser uma forma de patologização de comportamentos no
âmbito das relações familiares. As autoras apontam a necessidade de debates e
exame cuidadoso sobre a questão, pois a ausência dos mesmos pode ser uma
forma de anular os caminhos abertos pela lei sobre guarda compartilhada.

4. FALSAS DENÚNCIAS DE ABUSO: ALGUNS APONTAMENTOS

A onda de falsas denúncias que tem invadido os tribunais, por todo o país,
tem chamado a atenção pelo fato das acusações, em geral, surgirem no meio de um
litigio de “ex-casal” (pela guarda, pelo dinheiro ou pelo ciúme da nova relação, por
uma das partes). Abordado de forma lívida, por alguns advogados, com a finalidade
de garantir o direto da parte que defende, acabam colocando as crianças e
adolescentes em situação de violência psicológica.
O objetivo deste ensaio é apresentar, dentro do estudo de casos altamente
litigiosos, alguns apontamentos sobre a prática diária dos técnicos (assistentes
sociais e psicólogos) do judiciário e as dificuldades que os mesmos enfrentam ao
lidar com este tema, diante da atual falta de recursos técnico-estruturais. Esses
apontamentos são voltados não apenas à perspectiva do litigio (visão adversarial),
mas, especialmente, ao viés do comportamento humano (adulto) em sociedade
(visão de homem integrado) em prol dos interesses infanto-juvenis.
A trajetória metodológica adotada, para este ensaio está pautada na escolha
de autores e textos pertinentes ao tema. Para viabilizar a confecção do estudo foram
realizadas leituras de textos científicos (indicados pelo Grupo de Estudos: “Casos
Altamente Litigiosos”) e, também, em alguns livros que tratam da temática proposta.

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De acordo com o Dicionário Online Infopédia (2014)7, o termo “abuso” vem do verbo
abusar, que significa “ação de fazer uso incorreto, excessivo, injusto, impróprio ou
indevido de algo ou de alguém”. Por essa definição de abuso, temos: a) abuso de
poder; b) abuso de confiança; c) abuso de direito; d) abuso de representação; e)
abuso sexual. Embora todos esses tipos de abusos, de certa forma, possam causar
violência psicológica em crianças e adolescentes, optou-se por discorrer
exclusivamente sobre as falsas denuncias de abuso sexual infantil.
O abuso sexual infantil pode ser definido como qualquer interação entre uma
criança e alguém em estagio sexual de desenvolvimento mais adiantado, que tenha
por fim a satisfação sexual deste último. As interações podem variar desde atos em
que não se produz o contato sexual (voyeurismo, exibicionismo, produção de fotos,
etc.) até atos que incluem contato sexual com ou sem penetração (OMS, 2002).
É importante ressaltar que uma falsa denúncia de abuso sexual infantil
também pode ser considerada um tipo de abuso contra as crianças.
De acordo com Calçada (2008), as crianças são compulsoriamente
submetidas a uma mentira, sendo emocional e psicologicamente manipuladas e
abusadas. As vítimas de falsas acusações de abuso sexual, certamente correm
riscos semelhantes às crianças que foram abusadas de fato, ou seja, estão sujeitas
a apresentar algum tipo de patologia grave, nas esferas afetiva, psicológica e sexual.
Essa falsa denúncia passa a fazer parte de suas vidas e, por causa disso, terão de
enfrentar vários procedimentos (análise social, psicológica e judicial) com o intuito de
esclarecimento da verdade.
No Brasil, um dos motivos para a maior evidencia do tema deve-se a recente
Lei nº 12.318 de 26 de agosto de 2010, que dispõe sobre atos de alienação parental.
Na referida lei, as falsas alegações aparecem apenas ligadas à intenção de provocar
afastamento da criança de familiares injustamente acusados.
Nesse sentido, dispõe o parágrafo único do artigo 2º:

7
Fonte: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/abuso;jsessionid=L4ehuP9FGVBjEw+8Ne6CmA__

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São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos


assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados
diretamente ou com auxílio de terceiros: VI – apresentar falsa
denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para
obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou
adolescente. (BRASIL, 2010).

Assim, a referida Lei no contexto do divórcio dos pais visa ratificar o direito de
crianças e adolescentes à convivência familiar e sua integral proteção, direito esse
fundamental também assegurado na Constituição Federal e Estatuto da Criança e
Adolescente.
Tendo em vista as novas configurações familiares e deveres parentais
exercidos de forma igualitária (garantia legal) cabe aos técnicos judiciários,
assistente social e psicólogo o enfrentamento dessa questão no seio da família em
litígio, atuando na defesa do poder familiar, sempre visando o superior interesse da
criança.
Segundo Sirlei Martins da Costa, membro do IBDFAM, é no estágio mais
avançado do processo de alienação parental que surgem as falsas denúncias de
abuso sexual tornando-se evidente que, no contexto da separação, a proteção à
criança não se encerra com o julgamento do processo.
Devem ser indicadas medidas de proteção, programas de atenção e
acompanhamentos da rede de atendimento, com vistas à superação das situações
de violência e efetivação de direitos.
Amendola (2009) realizou importantíssima pesquisa de campo a partir da
prática psico-jurídica, cuja conclusão aponta para este mesmo sentido. Observam-
se, também, alguns desdobramentos da nova lei, como o documento produzido pela
Comissão de Inquérito Policial sobre pedofilia realizada pelo Senado Federal, em
2010, o qual aponta para a alta frequência da ocorrência das falsas alegações de

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abuso sexual, a contaminação da alienação parental na higidez dos laudos


psicológicos em avaliações de abuso sexual infantil, as condenações injustas, a
importância da nova Lei de Alienação Parental e a necessidade de mais estudos
sobre a alienação parental como motivo para as falsas alegações.
Na literatura nacional especializada, alguns textos iniciaram a discussão do
tema (CAVAGGIONI, CALÇADA e NERI, 2001; SHINE, 2003; CALÇADA, 2005;
GUAZZELLI, 2007; BRUNO, 2007; AMENDOLA, 2009; BANDEIRA e LAGO, 2009),
porém ainda são escassos artigos e pesquisas científicas que aprofundem o estudo
do assunto.

4.1 Crianças envolvidas em falsas denúncias de abuso sexual

O envolvimento de crianças em falsas denúncias de abuso sexual tem sido


observado em duas situações específicas, dentre outras, do Judiciário. A primeira
situação envolve as suas próprias imaginações/fantasias, que usurpa a crença
popular e bastante aceita, no senso-comum, de que “as crianças não mentem”.
Muitos problemas já foram detectados no passado por esta frase “mentirosa”.
É preciso ter muito cuidado com esta afirmação. É claro que as crianças
genuinamente não são dadas ao comportamento mentiroso, no sentido que o adulto
o faz, com perspicácia e até de forma maldosa, pois estes são conceitos que ainda
não fazem parte da estrutura infantil (HERMAN, 2005).
Para Herman (2005), até os sete/oito anos de idade (aproximadamente), as
crianças ainda não têm adquiridos os conceitos de moral, ética e propriedade,
sendo, portanto, natural que utilizem suas fantasias como fatos no mundo real. Isto
faz parte do desenvolvimento delas, assim como acreditar que o “Papai Noel” existe
e que alguns “Monstros Alienígenas”, às vezes, resolvem morar nos seus quartos.
Compreender que é natural, para as crianças, inventar estórias de “faz-de-conta” é
oportuno. Mas daí para condescender pura e simples com o senso comum (de uma

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psicologia ingênua) há um salto gigante que não nos é possível nem lógico anuir
(VINTERBERG, 2012).
De acordo com Amendola (2008), a literatura psicológica manifesta que,
quando uma criança mente (em certas circunstâncias) é porque algo (alguma
contingência) a fez acreditar naquilo. Cabe aos profissionais averiguar essa mentira
com profundidade, pois podem existir “muitas verdades” em torno do relato de uma
criança.
A segunda situação está atrelada à influência que a criança recebe de um
adulto (ou adolescente). Conforme apontam Rovinski e Cruz (2009), as crianças são
bastante sugestionáveis, devido à plasticidade neural e psíquica, em
desenvolvimento. Elas são suscetíveis à implantação das chamadas “falsas
memórias”, que é considerado, por alguns autores, como o estágio mais avançado
de alienação parental (CALÇADA, 2008).
Para Amendola (2008), a alienação parental sempre existiu e acontece
quando um dos genitores (geralmente uma pessoa que se sente abandonada por
outra e tomou a decisão de por fim à convivência conjugal) passa a manipular os
filhos para que estes se afastem e, até mesmo, odeiem aquele que havia deixado o
lar comum.
Ao tentar ferir a outra pessoa, o ex-cônjuge ativo do comportamento alienante
fere muito mais a criança (mesmo que esta não seja sua intenção). De acordo com
Amendola (2008), uma criança submetida a essas condições (de alienação parental)
sofre de um dos maiores medos do ser humano – o medo do abandono. Por isso, a
criança cria estratégias para não insultar o genitor-guardião.
Segundo a autora, é comum que essa criança se altere sem motivos quando
uma visita programada se aproxima e se negue veementemente encontrar o genitor-
alvo, enquanto o genitor alienador finge estar surpreso com esse tipo de reação da
criança. Por consequência, essa criança aprende cedo a manipular e
constantemente joga um genitor contra o outro na intenção de ganhar alguma
vantagem ou benefício.
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PODER JUDICIÁRIO
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Para Bone e Walsh (1999), a criança em um contexto de alienação parental,


também aprende a manipular para "sobreviver". Ela se torna especialista em decifrar
o ambiente emocional, contando “meias verdades” e “pequenas mentiras”. Essas
táticas servem como mecanismos de defesa, que são utilizados para evitar o conflito
com o genitor-guardião. Por isso é tão complexo e difícil a identificação do que a
criança está expondo é verdade ou mentira.
Rovinski e Cruz (2009) afirmam que existem poucas perspectivas para
identificar uma falsa denúncia de abuso sexual infantil, dentre elas destacam-se a
comunicação verbal e a não-verbal. Cabe aos profissionais, envolvidos no caso,
atentarem ao discurso artificial de uma criança, com termos que não condizem com
a faixa etária e nível de entendimento da criança (fica muito próximo de discursos de
adultos). A postura corporal pode dar alguns indícios também, porém revisões
recentes de dezenas de estudos sobre este tema, realizados em diversos países,
concluíram que não há sinais comportamentais confiáveis para detectar a mentira
(BULL, 2004; apud ROVINSKI e CRUZ, 2009).
Diante de uma separação conflituosa e face à acusação de abuso sexual
deve-se analisar cuidadosamente a presente alegação, bem como, confrontá-la com
a existência de provas materialmente objetivas, visto que há possibilidade da
suposta alegação de abuso ser falsa. Assim, a medida protetiva de suspensão de
visitas, inicialmente concedida pelos magistrados, não deverá habitualmente ocorrer,
pois mesmo com a intenção de resguardar o melhor interesse da criança, esta
medida acaba ferindo o direito que a criança possui de conviver com ambos os
genitores, os quais exercem em igualdade de condições, papel de suma importância
no desenvolvimento dos filhos.
Araújo (2010) recomenda que a visita não deva ser interrompida sem que
haja a comprovação do abuso, desestimulando assim o desenvolvimento da
alienação parental, além de desencorajar o genitor alienador em prosseguir com as
falsas alegações de abuso sexual. A conduta dos profissionais envolvidos deverá
ser antes de tudo, imparcial e cautelosa, haja vista que os mesmos deverão avaliar o
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caso de maneira mais abrangente possível e de forma multidisciplinar. Todas as


pessoas envolvidas deverão ser ouvidas e avaliadas, visando uma análise mais
próxima da realidade, imprescindível para a correta solução do caso em questão.

4.2 Dificuldades da Psicologia e do Serviço Social no Judiciário Frente ao


Abuso Sexual Infantil

Segundo Rovinski e Cruz (2009), a formação de um profissional mais


completo é um dos entraves da Psicologia Forense. A falta de preparo dos
profissionais (Assistentes Sociais e Psicólogos) durante a formação acadêmica é
evidente no nosso país, na medida em que são raros os cursos de graduação que
oferecem disciplinas específicas de psicologia jurídica e serviço social na área
jurídica, sejam curriculares sejam eletivas.
Os casos de abuso sexual infantil são permeados de incertezas, narrativas
abstrusas e dinâmicas complexas, que muitas vezes impedem uma análise
consubstanciada. De acordo com Herman (2005), na ausência de provas físicas,
não há um indicador específico que determine se uma criança foi sexualmente
abusada. Não existem efetivamente instrumentos psicológicos ou técnico-operativos
do serviço social, específicos e direcionados para a constatação do abuso sexual.
Brockhausen (2011) observa que nem toda falsa alegação de abuso sexual
ocorre por motivos intencionais ou retaliativos, conforme afirma Bernet (2010). Em
revisão bibliográfica sobre falsas alegações de abuso sexual o autor afirma que a
falsa alegação gerada a partir da programação do genitor presente na alienação
parental resume-se a uma pequena parcela dos motivos que originam as falsas
alegações. Dessa forma, fundamental é o diagnóstico da origem de uma falsa
alegação. A precisão do trabalho pode evitar estigmatização de pessoas que fizeram
uma falsa alegação, por outros motivos que não retaliativos. O autor elenca outros

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motivos para a falsa alegação, como a má interpretação, a sugestão acidental, o


delírio, a má comunicação infantil, a mentira infantil inocente, entre outros.
Durante o processo de Avaliação Psicológica (Forense) o papel do
entrevistador (no caso o psicólogo) precisaria se ater em ser um facilitador, isto é,
aquele que ajuda a criança expressar-se (respeitando o direito da criança de não
falar sobre o assunto), bem como investigar as congruências e contradições entre a
verdade processual e a verdade real. Não como um investigador de polícia, mas sim
como um investigador (pesquisador) acadêmico.
Conforme sugere Rovinski (2007), o psicólogo forense, no Laudo/Relatório
Psicológico, deve apresentar uma opinião técnica, baseada em achados clínicos e
indícios que devem ser sempre especificados. É importante que o trabalho escrito
seja descritivo e explicativo, pois o psicólogo forense não é testemunha ocular do
fato. Assim, seu resultado será sempre em termos de probabilidade (ROVINSKI,
2007).
A literatura nacional e internacional quase invariavelmente aponta que a
pessoa que abusa utiliza-se de táticas para manter a criança como cúmplice e
culpada pelo abuso, de forma a evitar que seja denunciada, podendo assim
continuar a agressão e não sofrer punição. Existe ainda a explicação de que
crianças abusadas sofrem diferentes tipos de ameaças que as mantêm presas em
um pacto de segredo com o abusador ou ainda que recebam recompensas pelo
abuso, como presentes, dinheiro ou benefícios. Crianças que sofreram abuso por
certo tempo tendem a não contar com seus responsáveis não abusadores pelo fato
de que, muitas vezes, os adultos negam a ocorrência de abuso devido à crise
pessoal ou familiar que pode ser gerada por uma revelação. Tal pode ocorrer, ainda,
por serem negligentes nos cuidados e atenção com a criança, incapazes de
perceber os sinais e sintomas evidentes de abuso e protegê-las.
Dessa forma, crianças sem ter em quem confiar passam a entender que não
devem falar sobre o assunto. Esta é uma das explicações porque crianças se

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mantêm em silêncio sendo abusadas por tempo prolongado sem que ninguém tenha
conhecimento.
Segundo Brockhausen (2011), o abusador nega a ocorrência do abuso
atribuindo mentira à criança – tanto o abusador como a vítima de falsa alegação de
abuso sexual assume nas entrevistas uma postura defensiva para se livrarem da
acusação. Em ambos os casos não demonstram a preocupação com o tratamento
da criança, sua saúde, detalhes do abuso, etc. Por isso, é preciso que o profissional
mantenha a mente verdadeiramente aberta quanto à possibilidade de ocorrência ou
não do abuso sexual.
A criança abusada pode negar que foi vitimizada e o profissional
inadvertidamente pode ser levado a arrancar um relato da criança confirmando um
abuso que não houve especialmente em casos de crianças menores que são mais
sugestionáveis e, portanto, tendem a responder conforme espera o entrevistador.
Levando em consideração tais teorias, é possível afirmar que muitos
profissionais se dão por satisfeitos na avaliação, diagnosticando ocorrência de
abuso mesmo sem obter a confirmação da criança, ou, ainda, entendendo que
qualquer confirmação da criança deva ser válida. A ausência de uma crítica
profissional maior pode ser desencadeada a partir da ideia prévia e fixa de que as
crianças abusadas são desacreditadas, desprotegidas ou amedrontadas e, portanto,
não podem ter suas afirmações avaliadas quanto à veracidade; ou, ainda, os
profissionais entendem não ser de grande importância obter o testemunho infantil
mais detalhado, fazendo desfecho apressado do caso, pois a criança teria sido
desprotegida por muito tempo, deixando assim de se aterem a maiores
investigações.
A posição do profissional em “querer proteger a criança” despertada pela
realidade factual de crianças vítimas pode levar o profissional dispensar uma atitude
mais próxima de ser imparcial, questionadora e flexível, embora esteja claro que a
consequência do trabalho do psicólogo e do assistente social é exatamente de

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

promover a proteção, a partir do atendimento que realizar. Diagnosticar uma falsa


alegação de abuso sexual também é proteger a criança.
Estudos atestam a grande frequência da ocorrência de Abuso sexual Infantil.
As estatísticas de abuso sexual são limitadas em razão de diversos fatores:
as pessoas e profissionais não levam adiante as denúncias, a criança não fala que
foi vitimizada, a família incestogênica esconde o abuso, as avaliações e exames
médicos restam inconclusivos ou negativos. Diante desses fatos, a literatura aponta
que o abuso é mais comum do que se tem notícia e estatística. A frequência de
ocorrência de abuso sexual infantil atestada pelos estudos pode levar os
profissionais a respostas viciadas, de forma que desconsiderem desde o início da
avaliação a possibilidade de falsa alegação.
Brockhausen (2011) elucida a importância de o profissional iniciar a avaliação
considerando que há 50% de possibilidade do abuso ser real e 50% de possibilidade
de ser falsa a acusação para, assim, evitar possíveis equívocos que ocasionam
prejuízos dramáticos tanto ao acusado quanto à criança. O autor aponta o exíguo
tempo dos profissionais para realizar o estudo da família como outro ponto
dificultador da prática dos técnicos judiciários, interferindo assim na qualidade das
avaliações: Observa-se, regra geral, têm sido que tais estudos se resumam a uma
ou duas entrevistas com cada pessoa envolvida na situação. Tal fato explica em
grande parte o caráter limitante dessas avaliações.
Avaliações para detectar abuso sexual são avaliações que ensejam
procedimentos complexos, o que demandaria um número maior de entrevistas.
Pelas características típicas da dinâmica inter-relacional e intrapsíquica de famílias
abusivas (o silêncio, a negação e o segredo da criança, a recusa da revelação pela
família face aos prejuízos decorrentes da revelação, a posição de defesa do
abusador, a negação ou omissão do abuso pelo progenitor não abusivo), a boa
coleta de dados torna-se tarefa difícil e demorada.
A autora, Brockhausen (2011) faz crítica também ao fato dos profissionais
utilizarem o termo “relato detalhado” da criança sobre o abuso sexual como um dos
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principais indícios para concluir ocorrência de abuso. Discorre que o necessário é


buscar o “relato vívido”:
O relato detalhado da criança abusada atestaria um conhecimento
inadequado sobre sexo e anatomia para faixa de sua idade e a fala da criança não
abusada seria diferente. No entanto, na prática, os profissionais frequentemente se
referem, nos seus relatórios, ao relato detalhado com frases curtas e pouco vívidas,
que não são possíveis de serem diferenciadas do falso relato, como por exemplo,
“ele mexeu aqui”, “ele beijou aqui” ou “ele colocou o pipi aqui”.
Furniss (1993) utiliza o termo “relato vívido” quando aborda este aspecto na
avaliação. O autor claramente explicita o que se entende por relatos vívidos, de
forma que não se assemelham às falas curtas e sem detalhes, conforme exempli-
ficado. O uso do termo “vívido” ao invés de “detalhado” talvez seja mais adequado
ao dar ênfase ao aspecto da experiência do abuso, presente na fala, em detrimento
da fala sobre um saber, que pode ser induzido, ensinado e, portanto, desconexo da
vivência.
Esta explicação pode ser clareada no exemplo clínico de Bernet (2006), no
caso de uma menina de seis anos, suspeita de sofrer abuso sexual, que fez o
seguinte relato: “Papai faz amor comigo quando estou na cama” (P. 247, tradução
da autora). O estudo detectou que a criança, quando disse “fazer amor”, se referia
ao beijo de boa noite. Caso esse detalhe não fosse investigado, poderia ser
apressadamente tomado de forma equivocada e ser altamente prejudicial às partes
envolvidas.
A autora destaca que hoje as crianças são expostas a sexo e linguagem
nunca antes vistos nas outras gerações. Diante dessa nova realidade da criança,
profissionais e pais podem ver abuso onde não há. Nesse sentido, mesmo diante da
ausência de indícios conclusivos, profissionais podem saltar para uma conclusão
precipitada face o contexto da demanda a que estão enlaçados – a necessidade de
uma resposta rápida para determinar uma medida efetiva e “proteger rapidamente a

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criança” a partir de dois ou três indícios de abuso, ou, ainda, a partir de indícios
colhidos através de fala verbal de terceiro, por exemplo, de quem acusa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, conclui-se que é emergente e necessária uma discussão


mais profunda sobre as novas configurações familiares, sobre a alienação parental,
sobre falsas alegações de abuso sexual infantil e suas conotações agravantes, para
os divórcios altamente litigiosos.
O questionamento do trabalho dos profissionais, das técnicas, dos operadores
do Direito, dos procedimentos e estrutura das instituições judiciárias deve ser visto
como uma possibilidade de novos e melhores rumos aos estudos e à práxis mais
rigorosa.
Existe imperiosa necessidade de maiores investimentos na capacitação
profissional, como, por exemplo, o aumento de diálogos e discussões mais intensas
sobre o assunto, promoção de cursos e palestras, maior regulamentação da atuação
profissional na área, incentivo às pesquisas nacionais e criação de resoluções e/ou
orientações úteis à práxis, no contexto atual. Assim, os profissionais que atuam nas
avaliações devem considerar a priori tanto sua veracidade quanto sua falsidade.
Em razão da complexidade e visão multifacetada do fenômeno divórcios
altamente litigiosos, deve-se atentar para uma cuidadosa qualificação e atuação
interdisciplinar, haja vista as diversas áreas do conhecimento envolvidas.
Nesse sentido, torna-se imprescindível a continuidade e aprofundamento dos
estudos acerca desse tema, tendo em vista uma melhor capacitação dos assistentes
sociais e psicólogos judiciários, na compreensão do fenômeno e sua lide cotidiana.

140
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

JUDICIALIZAÇÃO DA POBREZA: O ESTUDO SOCIAL COMO


INSTRUMENTO DE CONTRIBUIÇÃO À EFETIVAÇÃO DE
DIREITOS NO JUDICIÁRIO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL – “ESTUDO SOCIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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COORDENADORES:
Carlos Henrique de Francisco - Assistente Social Judiciário – F.D. Campo Limpo
Paulista
Célia Laura Camillo Muchatte Trento - Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pacaembu

AUTORES

Adélia Pedrina de Campos Almeida, Assistente Social Judiciário – Comarca de


Votorantim
Alana Beatriz Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Angelita Luiza Covre – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Aparecida Regina Signori Dantas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa
Fé do Sul
Carlos Henrique de Francisco – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de
Campo Limpo Paulista
Cassiana Firmino Franco – Assistente Social Judiciário – Comarca de Fernandópolis
Célia Laura Camillo Muchatte Trento – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pacaembu
Cristina de Carvalho Cruz Menezes – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Monte Azul Paulista
Fernanda Tonus de Melo Furtado de Mendonça – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Brodowski
Fabiane Cristina Vieira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Piracicaba
Gislley Costa Fontes – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Sebastião
Irene Benyhe – Assistente Social Judiciário – FR. V (São Miguel Paulista)
João Carlos Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itanhaém
Juliana Lapa Polac – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Bernardo do
Campo
Liliane Martins do Vale – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Marcelo Messias dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão
Pires
Márcia Cristina Campos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica da
Serra
Maria Lucia Bianchini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das Artes
Marilza Elorza Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Andradina
Quesia Gama Cruz Barbosa – Assistente Social Judiciário – FR. VII (Itaquera)
Sandra Maria Caldeira dos Reis – Assistente Social Judiciário – Comarca de Colina
Sandra Sueli Catarina David – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taboão da
Serra

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Sidneia dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comaca de Iguape


Sylvia Coutinho da Gama Pereira Correia – Assistente Social Judiciário – Foro
Distrital de Jandira
Terezinha Costa Barros de Sousa – Assistente Social Judiciário – FR. VII (Itaquera)

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PODER JUDICIÁRIO
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“A essência dos Direitos Humanos é o direito


a ter direitos”
(Hannah Arendt)
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INTRODUÇÃO

O presente texto cumpre a exigência do disposto nos regulamentos dos


Grupos de Estudos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Neste ano de 2014 o
Grupo de Estudos da Capital “Estudo Social” elegeu, como tema de aprofundamento
e debate entre os vinte e cinco assistentes sociais judiciários que participam do
grupo, a polêmica questão da pobreza e miséria humana no contexto da intervenção
do Poder Judiciário.
Contamos com a produtiva e valiosa colaboração da Doutora em Serviço
Social, Eunice Teresinha Fávero, que com sua prática profissional no judiciário
paulista e como professora universitária, nos fez pensar e repensar o papel e a
importância do laudo social frente à judicialização da pobreza.
O termo “judicialização da pobreza” nos remete a dois significados distintos,
mas que, em si, se complementam.
Um deles evidencia a concepção de que a promulgação da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 traz a universalização do acesso a todos os
direitos sociais. Todavia, a sua não efetivação, traduzida na ausência de políticas
públicas e no descompromisso da sua implementação, assinala um novo fenômeno
social a partir da busca, pela via judiciária, da efetivação desses direitos.
O outro, por sua vez, traduz a ideia de que moradores de áreas como morros,
favelas e bairros periféricos, enfim a pobreza representada, são alvos de
estigmatização, por estarem expostos a constantes situações de vulnerabilidade, as
quais os descaracterizam do padrão social pré-estabelecido pelo status quo de
aceitável, levando-os a serem apontados como uma ameaça; a visibilidade desta
população perpetua como algo a ser evitado, tendo sua identidade social pautada
pela ideia de miséria, ociosidade, crianças de rua, famílias desagregadas,
criminalidade, delinquência, enfim cidadãos inferiores, incapazes de gerir suas
próprias vidas.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

As reflexões realizadas pelo Grupo de Estudos da Capital – Estudo Social –


sobre a judicialização da pobreza apontaram, com clareza, as consequências das
demandas judiciais nas quais a situação de vulnerabilidade social figura como fator
presente e, não raro, determinante de situações como alcoolismo/drogadição,
negligência, maus tratos e prejuízos ao grupo familiar, os quais frequentemente
culminam em medidas como o afastamento de crianças e adolescentes do convívio
familiar e/ou na destituição do poder familiar.
Tais medidas, necessárias para salvaguardar o superior interesse de crianças
e adolescentes - principalmente após a análise dos riscos aos quais estão expostos
- por vezes imprimem ao protegido e seus familiares sofrimento e desesperança,
levando, quando delongam, à ruptura dos frágeis vínculos duramente construídos,
dificultando seu reestabelecimento e comprometendo a construção de novas
relações afetivas.
Diante dessa realidade, o grupo de Estudos da Capital – Estudo Social –
visou o aprofundamento do pensar nas ações que possam ser desencadeadas a
partir da elaboração do Estudo Social, levantando a construção histórica do saber de
nossa profissão no Judiciário e as possíveis contribuições para identificá-las e
apontá-las no laudo social, prevenindo a revitimização de famílias sob a égide da
pobreza, injustiça social e da ausência de políticas públicas que garantam seu
fortalecimento.

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UM POUCO DE HISTÓRIA: ESTIGMATIZAÇÃO, JUDICIALIZAÇÃO E


DIREITOS SOCIAIS

A palavra estigma representa algo de mal, que deve ser evitado; uma ameaça
à sociedade, isto é, uma identidade deteriorada por uma ação social.
A disparidade entre as classes sociais é um processo histórico que se
enraizou ideologicamente na cultura da sociedade brasileira desde o Brasil Colônia.
A pobreza, além de ser uma condição que abarca tantas dificuldades para se
viver com um mínimo de dignidade, estigmatiza, imprimindo nos indivíduos que nela
vivem o rótulo desqualificador de ser pessoa de segunda categoria.
Ilustrativos desse processo são as palavras do padre José de Anchieta (1534-
1597), célebre missionário jesuíta que veio da Europa para participar da
evangelização dos povos indígenas: “Pouco fruto pode se obter deles se a força do
braço secular não acudir para domá-los. Para esse gênero de gente não há melhor
pregação do que a espada e a vara de ferro.” (COTRIM, 1994, p. 33).
Essa frase sintetiza claramente que a discriminação social é um processo
histórico que está enraizado ideologicamente desde a invasão das Américas,
quando os europeus conquistaram brutalmente o continente e trouxeram um
conjunto de ideias de superioridade cultural, estigmatizando os povos conquistados
com representações de gente promíscua, sem alma e inferiores.
Ainda segundo Cotrim (1994), a formação da nação brasileira constituiu-se
exatamente da mistura de três povos, índios, africanos e europeus. No entanto, os
negros e os índios sempre foram tidos como gente bestial, selvagem e as
miscigenações raciais não aconteceram de maneira pacífica. A ideia da democracia
racial é falsa; índias e negras foram vítimas de estupro por europeus e foi dessa
forma que se constituiu a nação brasileira, de modo violento, excludente e
discriminatório, formando uma nação dividida: de um lado, aquela tida como
civilizada, e de outro, aquela perigosa, com tendências ao crime e à ociosidade. No

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PODER JUDICIÁRIO
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imaginário coletivo conservador esta população é tida como preguiçosos, malandros,


desagregados.
Essa separação já está embutida nos rituais de dominação de classe que
incluem um rigoroso afastamento do local de moradia dos pobres, quando se
constroem, por exemplo, conjuntos habitacionais sem a menor estrutura de
saneamento, escola, postos de saúde ou praças.
Segundo nos ensina Brisola (2012), o conceito de Estado Penal foi cunhado
por Loïc Wacquant, sociólogo francês radicado nos EUA, que estuda a segregação
racial, a pobreza, a violência urbana, a desproteção social e a criminalização na
França e nos Estados Unidos da América, no contexto do neoliberalismo.
Autor de obras como Do Estado Providência ao Estado Penal (1998), As
prisões da miséria (1999), Punir os pobres: o governo neoliberal de Insegurança
Social (2009), Wacquant questiona as estratégias de esvaziamento das ações de
proteção social estatal no contexto neoliberal e a emergência do Estado Penal.
Conforme o referido autor, desde os anos 80 do século XX assiste-se à
hipertrofia do Estado Penal, em detrimento de um Estado Social ou Estado de Bem-
Estar Social (Welfare State), referindo-se “ao modelo estatal de intervenção na
economia de mercado que, contrário ao modelo liberal que o antecedeu, fortaleceu e
expandiu o setor público e implantou e geriu sistemas de proteção social” (Pereira,
2010).
No livro “A máquina e a revolta”, Zaluar (2000) trabalha o medo da população,
sentido não pelo inesperado, mas pelo construído pela mídia. Há, segundo ela, um
processo de estigmatização dos pobres e uma ambiguidade vivida diante da
possibilidade de romper a barreira que separa as classes sociais. É necessário
desconstruir o tabu dos estigmas; eliminar a distância entre as classes.
“Somos iguais perante a lei?”, Zaluar pergunta. E responde: “Nem perante a
lei nem perante a riqueza produzida”. “Mas há entraves maiores e subliminares que
bloqueiam o contato social. Os pobres estão vivendo como que o avesso da

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civilização: nossa visão sobre eles é de quem passa na porta dos pobres, mas não
penetra seu mundo por ser perigoso.”
Segundo Nascimento (2012)

[...] desqualificar as famílias que divergem de um modelo instituído e


classificar os pais de negligentes é uma forma de criminalização da
pobreza, em uma associação imediata entre os pobres e o fora da
ordem.
A proteção é uma prática de regulação que produz a negligência, que
se instala por percursos de judicialização da vida. Na prática de
judicialização, o cenário mais imediato é o da punição, do castigo,
porque não há escuta ou lentes para outras possibilidades, só se
enxerga o caminho da errância.

O mais contraditório em tudo isso é que esta ideia está enraizada em nossa
cultura, em nossa própria identidade, onde o Poder Judiciário não foge à regra.
No estudo da temática vimos que a sociedade brasileira, reprodutora de uma
lógica histórico-cultural excludente elevou a desigualdade social a patamares tão
altos a ponto de cercear direitos básicos e acesso às condições mínimas de
assistência pública.
No artigo “A Desigualdade e Pobreza no Brasil”, 2000, p. 01, Barros,
Henriques e Mendonça retratam:

[...] Um país desigual, exposto ao desafio histórico de enfrentar uma


herança de injustiça social, que excluiu parte significativa de sua
população do acesso a condições mínimas de dignidade e cidadania.
[...]

Apontam ainda que

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

[...] em primeiro lugar, o Brasil não é um país pobre, mas um país


com muitos pobres. Em segundo lugar, os elevados níveis de
pobreza que afligem a sociedade encontram seu principal
determinante na estrutura da desigualdade brasileira uma perversa
desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de
inclusão econômica e social.

Em 2013, embora relatório apresentado pelo IPEA no Atlas PNUD, p. 7,


assinale que “o Brasil foi considerado um país de “alto desempenho” pelo relatório
do Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento”, ressalva que:

[...] se o Brasil é referência de um novo modelo de desenvolvimento


para o mundo, os desafios nacionais ainda são muitos. Os avanços
são notórios, mas as desigualdades ainda persistem. São vários
Brasis dentro do Brasil.

A desigualdade e a exclusão suscitam tensões e debates que, há muitas


décadas, apontam como premissa fundamental a promoção de políticas
assistenciais com foco no atendimento às classes populares. Como pano de fundo,
defende-se a ideia de que, uma vez atendida em suas necessidades mais básicas,
esses indivíduos em situação de pobreza supostamente teriam, além dos seus
direitos minimamente atendidos, a oportunidade de terem os seus destinos
modificados.
A busca da efetivação dos direitos sociais, seja através de sindicatos,
organizações não governamentais ou mesmo individualmente ou através de ações
judiciais, está em conformidade com a Constituição de 1988. É necessário, deste
modo, se ater em dois vieses nos quais é possível identificar a origem de tais ações:
um, dentro de uma perspectiva conservadorista de minimização de cidadania e que
vem sendo historicamente perpetuada, onde alguns indivíduos são menos cidadãos
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

do que outros; outro, o aumento da demanda desta população vulnerabilizada em


torno do acesso a justiça, onde aportam expectativas e possibilidades de
reconhecimento e resgate de direitos e cidadania garantidos por leis.
A este respeito, Iamamoto, 2000, p. 198, diz:

[...] No ângulo da dinâmica societária, os direitos dizem respeito,


antes de mais nada, ao modo com que as relações se estruturam.
Seria possível dizer que, na medida em que são reconhecidos, os
direitos estabelecem uma forma de sociabilidade regida pelo
reconhecimento do outro como sujeito de interesses válidos, valores
pertinentes e demandas legítimas. Para colocar em termos mais
precisos, os direitos operam como princípios reguladores de práticas
sociais, definindo regras de reciprocidade esperadas na vida em
sociedade, através da atribuição mutuamente acordada (e
negociada) as obrigações e responsabilidades, garantias e
prerrogativas de cada um. Como forma de sociabilidade e regras de
reciprocidade, os direitos constroem vínculos propriamente civis
entre indivíduos, grupos e classes.

Importante ressaltar que a judicialização decorre da necessidade de


atendimento aos direitos, individuais ou coletivos, sendo equacionados de forma
diferenciada pelo Poder Judiciário em razão do impacto que causa na administração
pública. No entanto, a regularidade com que vem ocorrendo este fenômeno aponta o
risco de se tratar o Poder Judiciário como primeira ou única instância responsável
pela garantia de direitos, passando a desconsiderar outros canais de viabilização
como, por exemplo, o Conselho Tutelar, ou desarticulando espaços de participação
popular nos Conselhos e Conferências, diminuindo o papel do cidadão no controle
social das políticas públicas.
Assim, citamos Aguinsky (2006) que faz a seguinte ponderação:

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

[...] transferir para o Poder Judiciário a atribuição de responder aos


desdobramentos da questão social pode ser positivo na medida em
que força da lei a ser aplicada, entretanto, se esta for maciça será,
possivelmente, ineficaz e injusta, pois privará do direito aqueles que
não recorreram a esta esfera estatal.

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PODER JUDICIÁRIO
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DESAFIOS E ESTRATÉGIAS

Em análise dos aspectos que caracterizam a judicialização das situações de


pobreza e tendo como foco a atuação do Serviço Social frente a esta demanda que
se acentua no cotidiano de trabalho, enquanto fruto da desigualdade social,
emergem os desafios da luta pela efetivação dos direitos sociais conquistados.
Fundamentada na legislação que rege a profissão do Serviço Social, em
especial o Código de Ética, a questão da luta pela concretização dos direitos é
intrínseca à atuação profissional.
Na especificidade do campo sociojurídico do Assistente Social Judiciário, o
maior desafio no que tange à judicialização se faz na constante busca pelo acesso e
garantia aos direitos, cuja expectativa do concreto se situa junto ao laudo social,
quando este se torna um instrumento que desvela a realidade social da população
alvo. Com base em fundamentos teóricos, metodológicos e éticos profissionais, o
laudo contido no Estudo Social deverá trazer à tona uma análise crítica da situação
de desigualdade social vivenciada no país/mundo, fruto da lógica do sistema
capitalista moderno e globalizado.
Dentre as ações a serem desenvolvidas para o enfrentamento da excessiva
judicialização, uma delas é a retomada do fortalecimento das lutas coletivas como
forma de reivindicação social para o reconhecimento e efetivação de direitos. Assim,
evita-se transformar o Sistema Judiciário em um espaço de busca por direitos
individuais, pois, do contrário, esta demanda não será visualizada dentro do contexto
histórico da sua formação.
Tal situação é enfatizada por Fávero (2014), a gerar, como consequência, a
culpabilização de famílias que sozinhas não conseguem garantir a proteção dos
seus membros.
Já Sierra (2011) coloca que além de descaracterizar a questão enquanto
problema de uma coletividade, ainda esvazia, enfraquece a luta em outros espaços.

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Entende “a judicialização não como um recurso ao cidadão, mas como um impasse


à participação democrática” (SIERRA, 2011, p. 258).
Ainda sobre este aspecto, Aguinsky (2006, p. 21) enfatiza sobre a ação do
Poder Judiciário:

[...] Teria uma ação infinitamente mais impactante e


transformadora nas relações sociais se agisse na prevenção
dos conflitos sociais, detendo-se mais ao interesse coletivo do
que ao despacho de ações ingressadas, via de regra, de forma
individual e por um reduzido segmento da população que
conhece os seus direitos.

A autora ainda cita: “a luta por direitos humanos, uma luta que,
necessariamente se trava na esfera pública e uma dimensão maior que aquela
expressa pelo Sistema de Justiça” (AGUINSKY, 2006, p. 24).
A necessidade de ações coletivas que, também envolvam outras categorias
profissionais e de outras áreas do conhecimento, é outro desafio a ser colocado:
Aguinsky (2006) esclarece a importância em se desenvolver competências
profissionais que através, da interdisciplinaridade, venham a promover a ampliação
das articulações entre as demandas dos usuários que buscam a justiça e as
políticas públicas enquanto universalização de direitos. É o fortalecimento da rede
de atendimento socioassistencial para que, bem articulada, possa atender às
famílias sem que estas necessitem recorrer à justiça. Afirma ainda:

[...] Há que se empreender uma práxis de acesso à justiça em


seu sentido amplo, sem uma análise reducionista e ingênua de
que a justiça será outorgada pelo Estado, como um outro ator
neutro e comprometido com o bem comum (AGUINSKY, 2006,
p. 25).

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PODER JUDICIÁRIO
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Fávero (2013, p. 523 e 524) aborda que, no Sistema Judiciário, há muitos


desafios impostos ao Assistente Social para que desempenhe seu trabalho em
acordo com os princípios profissionais no enfrentamento dessa demanda que se
apresenta.
Entre estes desafios a autora destaca a necessidade de produção de
conhecimentos para valorizar o saber profissional e para fundamentar o trabalho
cotidiano mediante a realização de pesquisas a serem consideradas instrumentos de
trabalho. Ainda coloca ações que fortaleçam a categoria profissional referente à sua
autonomia administrativa para o desenvolvimento de projetos de formação
continuada dos profissionais.
Ações a serem concretizadas, entendendo-se que se efetivarão em longo
prazo, mas que “não se dão isoladamente no espaço e local de trabalho, apartados
da conjuntura social e política nacional e mundial e sem articulações com outras
organizações sociais e políticas” (FÁVERO, 2013, p. 525).

A ABORDAGEM DA JUDICIALIZAÇÃO DA POBREZA NO LAUDO


SOCIAL

Desde a aprovação do Estatuto da Criança e Adolescente em 1990, a pobreza


não mais implica medida de afastamento de crianças e adolescentes do convívio
familiar. O artigo 23 do ECA institui que “a falta ou a carência de recursos materiais
não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”,
porém essa prática continua sendo adotada paradoxalmente à luz da proteção
integral, tendo em vista que a negligência passa a ser apontada como justificativa
para a intervenção do Estado junto às famílias pobres. “Assim, as intervenções
jurídicas e sociais continuam a punir os pobres, por exemplo, com a destituição do

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PODER JUDICIÁRIO
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poder familiar, com abrigamentos apressados, com a imposição de normas de


conduta” (Nascimento – 2012 p. 40).
Os Assistentes Sociais do Tribunal de Justiça, enquanto peritos que atuam na
elaboração dos Estudos Sociais, raramente se deparam com a ocorrência deste
fenômeno em famílias que não apresentem vulnerabilidade, pois esta condição
advém de situações impostas, muitas vezes através de gerações, ligadas fortemente
à herança da mais cruel expressão da questão social: a desigualdade. É nela que a
pobreza se apresenta como fruto do modo de produção capitalista, pois “a
desigualdade social é produto do próprio desenvolvimento das forças produtivas, e
não o resultado do seu insuficiente desenvolvimento, nem a condição para o
mesmo” (Montaño – p. 9 e10).

Desta situação, emerge o questionamento no que concerne às mais diversas


formas de contribuição que os pareceres e laudos técnicos, enquanto componentes
do Estudo Social, possam imprimir tanto à denúncia quanto à manutenção deste
estado de coisas, considerando que, nos alerta SIERRA, 2011 que:

[...] de acordo com Trindade e Soares (2009 p. 2), o assistente


social exerce certo poder ao influenciar os operadores do
direito, com suas avaliações e estudos. Trata-se de um poder
profissional que “se expressa na sua capacidade de avaliar, de
julgar ao emitir um parecer com uma sugestão ao opinar sobre
um caso, tendo um grande peso nos julgamentos judiciais”.

Advém daí a importância de se ter clareza quanto à finalidade do Estudo


Social e qual sua contribuição para a instrução de determinado processo. Assim, é
possível afirmar que “o estudo social ‘se coloca na direção do enfrentamento das
expressões da questão social com as quais o assistente social se depara no dia a
dia de suas atividades” (FÁVERO 2005, p.10 in Caderno dos Grupos de Estudos de
Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários – Nº 7 p.82 - 2010).
E ainda:

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

[...] No espaço de trabalho no Judiciário, o profissional encontra


diversas situações de violações de direitos, expressas por
pessoas que vivem muitas vezes em condições de apartação
social, que passam por experiências de violência social e
interpessoal, que estão por vezes em situações-limite de
degradação humana, com vínculos sociais e familiares
rompidos ou fragilizados, que vivenciam o sofrimento social
decorrente dessas rupturas e da ausência de acesso a direitos.
Nesse contexto, se o profissional trabalha em consonância com
a defesa e a garantia de direitos, ele avançará nessa direção
ao possibilitar um espaço de informação, de diálogo e de
escuta desses sujeitos, ao estimular a reflexão crítica a respeito
dos problemas e dilemas que vivenciam, ao agir, em conjunto
com eles, para conhecer e estabelecer caminhos viáveis para o
acesso a direitos (Fávero – 2013 p. 521).

Os Assistentes Sociais que atuam no Judiciário, em especial os que


compuseram o presente Grupo de Estudos de 2014, trazem inquietações relevantes
no que se refere à proteção oferecida pelo Estado àqueles que dele aguardam a
efetivação da justiça, e sobre o quanto seus estudos, laudos e pareceres contribuem
para a ratificação de uma condição de miserabilidade, protagonizando medidas que
punem aqueles que, invariavelmente, já foram vitimizados pelo modo de produção
capitalista.

Seguindo os ensinamentos de Iamamoto, sobre a questão social como:

[...] o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade


capitalista madura, que têm uma raiz comum: a produção social é
cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social,
enquanto a apropriação dos seus frutos se mantém privada,
monopolizada por uma parte da sociedade (Iamamoto, 2000, P)

O Serviço Social, tendo por objeto a questão social, deve posicionar-se atento
à efetivação das políticas públicas. Assim, não podemos:

- nos alienarmos da dimensão histórica no fazer profissional;

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PODER JUDICIÁRIO
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- esquecer que o saber profissional se converte em poder; o laudo social


precisa ser direcionado à proteção e garantia de direitos;

- ignorar que o vínculo social se dá com o trabalho, com o território, com a


cidade, com a família;

- nos alhearmos do produto da intervenção profissional, para tornar nossa


atuação/espaço de trabalho em sistematização produzida/divulgada.

Compete, portanto, ao Assistente Social Judiciário, durante a elaboração do


Estudo Social, levantar aspectos socioeconômicos, familiares e culturais, desvelando
a realidade social em suas conexões mais amplas e particularizadas, buscando
informações relacionadas ao mundo do trabalho, às políticas sociais, à dinâmica do
território vivido, com o objetivo de atingir a interpretação dessa realidade,
favorecendo a contextualização dentro de sua construção histórica, trazendo
aspectos importantes a respeito da sua capacidade protetiva e a existência, ou não,
de um aparato social capaz de fortalecê-la.
Dessa forma, os laudos e pareceres poderão evidenciar, também, se este
aparato responde satisfatoriamente a demanda que se apresenta, reavaliando as
posturas voltadas à culpabilização unicamente do indivíduo ou grupo, pelas
fragilidades que os cercam. A este respeito Eunice Fávero (2014 p. 16 e 17) diz:

[...] a realização de estudos fundamentados, teórica e


metodologicamente, sobre a realidade social vivida pelos sujeitos
pode fornecer subsídios à juízes, Defensoria e particularmente
Ministério Público no que se refere à responsabilização do Estado
quanto à proposição e execução de políticas sociais ou mesmo de
ações localizadas de atenção às demandas observadas, visando a
efetivação de direitos sociais”.

Romper com o paradigma da culpabilização é tarefa fundamental do


Assistente Social Judiciário, ao ter sua atuação desencadeada por um processo de
judicialização. Os pareceres podem representar importante instrumento na proteção

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PODER JUDICIÁRIO
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de direitos, ao oferecer uma análise alinhada ao projeto ético-político da profissão,


com sustentação técnica e teórica, capaz de apontar as lacunas do aparato social,
servindo de subsídio ao fomento de ações dirigidas à coletividade, como é o caso
das ações civis públicas.

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PODER JUDICIÁRIO
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CONCLUSÃO

As discussões e reflexões tecidas neste Grupo de Estudos no corrente ano


trouxeram à tona faces ambíguas da judicialização da pobreza, as quais mereceram
aprofundamento: o processo de judicialização, que deveria garantir o acesso à
justiça e a efetivação de direitos a todos, principalmente aos menos favorecidos, é o
mesmo que coloca as famílias pobres sob intervenção do Estado, levando-as a
situações de sofrimento social.
Brisola (2012) assevera que a população “disfuncional” ao capital, por sua
vez, constrói formas de resistência individuais e coletivas para sobreviver ao ataque
das forças instituídas. Neste cenário, o Estado lança mão do aparato policial e do
Judiciário no sentido de conter as “classes perigosas”. A mesma autora também
salienta que, em razão da formação sócio-histórica, associada aos novos contornos
da crise de acumulação do capital, a criminalização dos pobres e da pobreza no
Brasil cai como uma luva, tendo em vista o não reconhecimento histórico da
cidadania às camadas pobres.
O estigma e a criminalização dos pobres, da pobreza e dos movimentos
sociais, com a violação dos direitos humanos, exigem do assistente social leituras
críticas da realidade, embasamento teórico-metodológico e ético-político, para
compreender os processos econômicos, políticos e culturais em curso, a influência
da mídia a serviço do capital na ideologização da sociedade e os processos de
mudança no interior do Estado e sua captura pelo capital.
Dessa forma, a atuação profissional do Assistente Social no Poder Judiciário
deve favorecer o conhecimento da realidade vivenciada pela população a ser
avaliada. Tal conhecimento adquirido e, via de regra, disposto nos autos
processuais, além de servir de subsídio à decisão judicial deverá oferecer um
posicionamento profissional focado na garantia de direitos.
Nesta perspectiva, é próprio do Assistente Social Judiciário desvelar as
particularidades da questão social, analisá-las e contextualizá-las, respeitando-se a
163
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

autonomia técnica, visando “garantir a visibilidade da realidade social do usuário,


seus interesses e necessidades, sempre na perspectiva do compromisso
profissional com a emancipação humana”. (Iamamoto, 2005, pg. 262)
É fundamental, portanto, avançar na reflexão sobre o retrato da questão
social histórica no Brasil, que indica o permanente sistema de exclusão e injustiça
social, bem como sobre a insuficiência na execução das políticas públicas que
desencadeia o processo de judicialização, aqui compreendido como um
posicionamento do Poder Judiciário em conceder aquilo que não foi garantido pelo
Poder Executivo e também sua interferência e monitoramento sobre as famílias
pauperizadas. Neste sentido, aponta-se o risco de se entender esta atividade como
essencialmente governamental, do ponto de vista que “julgar o Poder Executivo é
administrar”, deixando o Poder Judiciário de ser o aplicador puro e simples da
legalidade e passando a ser guardião, mais que isso, passando a ser intérprete dos
princípios contidos na lei. Nesses espaços, onde as ações dos entes estatais se
misturam é quando, então, emerge a judicialização, o que não configura uma
inversão de papéis, mas sim onde se cumpre a exigência constitucional de
apreciação pelo Poder Judiciário.
Conforme Iamamoto (2005, pg. 262) é:

[...] necessário trazer para a reflexão a importância do olhar do


profissional do Serviço Social sobre as questões que hoje permeiam
o cotidiano profissional e que expressam a fragilização das relações
sociais, reflexo da violação de direitos pela não implementação das
políticas de Estado que garantam, efetivamente, a autonomia dos
sujeitos.

O sentido das considerações acima evoca a necessidade de redirecionar o


olhar profissional para uma cultura pública democrática, mediante a problematização
dos vários aspectos que travestem a questão social vivenciada por esses indivíduos.

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Implica na construção de um novo pensar, sob o foco da equidade, justiça e


dimensão ética e na prática de uma cidadania que legitime direitos já existentes,
redefinindo as relações entre Estado e sociedade.

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ANEXO

Apresentamos alguns LINKS úteis para pesquisa e menção de informações,


estatísticas e pareceres oficiais que contribuirão no desvelar da realidade e análise
dos dados nos Estudos Sociais:

 @ Trabalho: OIT ( Organização Internacional do Trabalho)


http://www.mte.gov.br/rel_internacionais/pub_Agenda_Nacional_Trabalho.pdf

 @ Políticas Públicas de Assistência : MDS ( http://www.mds.gov.br )

 @ Perfil da População: IBGE ( http://cidades.ibge.gov.br )

 @ População de Rua: FIPE ( Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas)


http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/3_12753
34714.pdf.

 @ Moradia Adequada: ONU ( Relatoria ) www.direitoamoradia.org.

 @ Saúde: OMS ( Organização Mundial de Saúde)


www.who.int/countries/bra/es / Ministério da Saúde : www.saúde.gov.br

 @ Educação: Ministério da Educação: http://mec.gov.br/

 @ Rede Socioassistencial ( Relatório de Informações Sociais)


http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/RIv3/geral/index.php

166
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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ZALUAR, Alba. A Máquina e a Revolta. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2000.

169
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A ATUAÇÃO DOS ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS


JUDICIÁRIOS E O PLANO NACIONAL DE PROMOÇÃO,
PROTEÇÃO E DEFESA DO DIREITO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E
COMUNITÁRIA: REFLEXÕES E DILEMAS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL – “FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
170
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

COORDENADORAS

Gracielle F. de L. Cardoso – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Vargem


Grande Paulista
Patrícia Vendramim – Psicóloga Judiciária – Comarca de São Caetano do Sul

AUTORES

Ana Rita de O. Leme Costa – Psicóloga Judiciária - Foro Regional III – Jabaquara
Cibele Moreira Giacone – Psicóloga Judiciária – Foro Regional IV – Lapa
Claúdia Figliagi Sellmann Nazareth – Psicóloga Judiciária – Comarca de Itapecerica
da Serra
Cristiane Andrade Garcia – Assistente Social Judiciário – Foro Regional IV – Lapa
Elisabeth Werneck Fontainha Simões – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Santa Branca
Elisângela Sastre - Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Fátima Aparecida de Lima - Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da
Infância e Juventude
Vargem Grande Paulista
Henilda Maria Amâncio – Assistente Social Judiciário – Comarca de Águas de
Lindoia
Leila Aparecida Bomfim – Assistente Social Judiciário – Varas de Família e
Sucessões do Foro Central
Lilian de Moura – Assistente Social Judiciário - Varas Especiais da Infância e
Juventude
Luciana Firmino – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Maria Bernadete Francisco - Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu
Marina Tomé Teixeira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mairiporã
Marlene Pereira de Lima - Assistente Social Judiciário – Comarca de Diadema
Mônica Menistrel de Oliveira - Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas
Mônica Sofia Toledo Zanotto – Psicóloga Judiciária - Varas Especiais da Infância e
Juventude
Regina Célia Andreazzi – Assistente Social Judiciário - Varas Especiais da Infância e
Juventude
Rosenilda Maria da Silva – Psicóloga Judiciária – Comarca de Mogi das Cruzes
Takeko Gushiken – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu

171
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Este trabalho é dedicado à Assistente Social


Judiciário Marlene Pereira de Lima que, por
anos, coordenou o Grupo de Estudos da
Capital “Família” com dedicação ímpar.
Expressamos nossos agradecimentos.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

1. INTRODUÇÃO

No ano de 2014, o Grupo de Estudos da Capital “Família” priorizou estudar o


“Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária” (PNCFC) por considerá-lo
referência necessária à atuação dos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários:

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito


de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e
Comunitária representa um importante instrumento para
mobilização nacional e suas diretrizes certamente se
transformarão em ações concretas e articuladas de
responsabilidade do Estado e dos diversos atores sociais, que
assumem, de forma renovada, o compromisso pela promoção,
proteção e defesa do direito de crianças e adolescentes à
convivência familiar e comunitária. (PNCFC, 2006, p.13-14).

Parte-se, então, do entendimento das equipes técnicas de Psicologia e


Serviço Social do Judiciário como importantes atores, no âmbito do Estado, na
proteção integral de crianças e adolescentes, envolvendo, de forma prioritária, a
convivência familiar e comunitária.
Atualmente, existe o consenso de que, para se assegurar tal proteção, o
grupo familiar constitui-se o locus privilegiado de atenção e intervenção:

A legislação brasileira vigente reconhece e preconiza a família,


enquanto estrutura vital, lugar essencial à humanização e à
socialização da criança e do adolescente, espaço ideal e
privilegiado para o desenvolvimento integral dos indivíduos.
(Idem, p.15).

173
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

E, de acordo com o art. 19 do ECA (Lei nº8.069/90),

Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado


no seio da sua família e, excepcionalmente, em família
substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em
ambiente livre da presença de pessoas dependentes de
substâncias entorpecentes.

Neste sentido, o PNCFC foi elaborado, colocando-se como marco referencial


para a construção de Políticas Públicas:

Este Plano constitui um marco nas políticas públicas do Brasil,


ao romper com a cultura da institucionalização de crianças e
adolescentes e ao fortalecer o paradigma da proteção integral e
da preservação dos vínculos familiares e comunitários
preconizados pelo ECA. A manutenção dos vínculos familiares
e comunitários está diretamente relacionada ao investimento
das políticas públicas de atenção à família.

Sendo que o PNCFC assevera que sejam esgotadas todas as possibilidades


e estratégias para a preservação dos vínculos familiares, inclusive, com apoio
socioeconômico e novas formas de interação, valorizando referências afetivas.

As estratégias, objetivos e diretrizes deste Plano estão


fundamentados primordialmente na prevenção ao rompimento
dos vínculos familiares, na qualificação do atendimento dos
serviços de acolhimento e no investimento para o retorno ao
convívio com a família de origem. Somente se forem esgotadas
todas as possibilidades para essas ações, deve-se utilizar o
recurso de encaminhamento para família substituta, mediante

174
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

procedimentos legais que garantam a defesa do interesse da


criança e do adolescente. (Idem p.13).

Assim, a articulação entre a leitura do referido Plano e a prática dos


integrantes do grupo, trouxe questões sobre a exequibilidade de certas prerrogativas
do PNCFC frente às próprias peculiaridades do desenvolvimento infantil, às
necessidades de crianças e adolescentes quando em situação de risco e/ou
vulnerabilidade em seu grupo familiar, ou ainda, frente à insuficiência dos Programas
de Atendimento.
Este trabalho pretende, então, trazer as reflexões realizadas no decorrer do
ano de 2014, pontuando algumas questões, cuja reflexão coletiva nos colocou
dilemas8.
A partir deste estudo inicial, pretende-se realizar, futuramente, um estudo
teórico de alguns aspectos relacionados a tais dilemas, visando propor alternativas
de atuação cotidiana.

2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO PNCFC

De acordo com o PNCFC, o Brasil traz em sua história, especialmente no


tocante à infância e família pauperizada, descaso com relação à preservação dos
vínculos familiares. As famílias pobres eram tratadas como incapazes de proteger,
orientar e educar seus filhos, sendo esse um argumento ideológico que, por
décadas, possibilitou ao Poder Público o desenvolvimento de políticas paternalistas,
voltadas ao controle e contenção social.

8
Segundo o Dicionário do Houaiss da Língua Portuguesa o sentido etiológico da palavra “dilema”
remete a “necessidade de escolher entre duas saídas contraditórias e igualmente insatisfatórias”.

175
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A partir disso, sustentou-se uma prática recorrente de suspensões provisórias


do poder familiar, ou a destituição dos pais, retirando-lhes seus deveres e
responsabilidades para com seus filhos.
Permitia-se, então, que crianças e adolescentes, por sua condição de
pobreza, fossem ‘recolhidos’, em nome da proteção, passando a viver em
instituições que se atribuíam a tarefa de cuidar integralmente de seus ‘internos’, que
levavam uma vida fechada e formalmente administrada, funcionando, assim, como
instituições totais, conforme definição de Goffman (1974):

Instituição total pode ser definida como um local de residência


ou trabalho onde um grande número de indivíduos com
situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por
considerável período de tempo levam uma vida fechada e
formalmente administrada” (Grifo nosso, Idem, p. 11) 9

No entanto, movimentos sociais e o trabalho de profissionais das áreas de


conhecimento, especialmente a partir das décadas de 1970, trouxeram profundos
questionamentos à forma como as crianças e adolescentes vinham sendo tratados,
particularmente os pobres, os institucionalizados e os em conflito com a lei.
A promulgação da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990), da Lei Orgânica do Serviço Social (LOAS, 1993) e a ratificação
da Convenção sobre os Direitos da Criança (1990) coroaram mudanças, que vinham
ocorrendo a partir do olhar multidisciplinar e intersetorial, em relação à infância e
adolescência quanto aos vínculos familiares e comunitários.
Assim, os avanços na legislação e nos paradigmas relacionados à infância e
adolescência, trouxeram transformações na atuação dos Psicólogos e Assistentes

9
Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Debates Psicologia: Editora Perspectiva, São

Paulo, 1974.

176
PODER JUDICIÁRIO
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Sociais Judiciários. As equipes técnicas das Varas de Infância e Juventude foram


construindo seu trabalho neste momento histórico entre a vigência do Código de
Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, durante vários anos, os
profissionais trabalharam ainda imbuídos de resquícios da cultura do Código de
Menores, apesar do ECA já ser vigente.
Por exemplo, ainda se manteve a FEBEM para os denominados ‘menores
infratores’, ‘menores carentes’ e ‘menores em situação irregular’, onde crianças e
adolescentes eram privados da convivência familiar e viviam confinados em suas
Unidades.
Outra prática comum era a destituição do então denominado ‘pátrio poder’,
sendo que as crianças eram mais facilmente disponibilizadas para adoção, inclusive
por estrangeiros.
A partir da nova legislação, as instituições totais foram sendo desativadas e
paulatinamente transformadas em abrigos provisórios. Os cuidados com a família
ganhou foco como maneira privilegiada de se garantir os direitos às crianças e
adolescentes.
A esse respeito, destaca-se o grande avanço do PNCFC ao afirmar:

[...] toda criança e adolescente tem direito a uma família e o


Estado e a sociedade têm o dever de propiciar condições que
os protejam nas situações de risco e enfraquecimento dos
vínculos familiares. As estratégias de atendimento deverão
esgotar as possibilidades de preservação desses vínculos, bem
como promover o apoio econômico. (2006, p. 19).

Assim, em casos de ruptura ou necessidade de afastamento da convivência,


cabe ao Estado a proteção das crianças e adolescentes, com o desenvolvimento de
programas, projetos e estratégias que contribuam para a constituição de novos

177
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

vínculos familiares e comunitários, buscando, inclusive, novas referências afetivas


no grupo familiar, priorizando o resgate dos vínculos originais.
Esse novo paradigma exige compromisso com uma mudança cultural que
atinja as relações familiares, comunitárias e do Estado com a sociedade, ampliando
a concepção de cidadania, de modo a incluir as crianças, adolescentes e suas
famílias com suas necessidades próprias.
Então, a seguir, descrevem-se, de forma sintética, os componentes do
PNCFC que instigaram as reflexões do grupo.

3. SOBRE O MARCO CONCEITUAL E OS RESULTADOS


PROGRAMÁTICOS DO PNCFC

O Marco Conceitual define, explicita e articula os conceitos que fundamentam


o Plano e os Programas que o operacionalizam, ou seja, os conceitos de Família,
Criança e Adolescente, Convivência Familiar e Comunitária, Acolhimento
Institucional, Programa de Família Acolhedora e Adoção.

3.1 Sobre Família

A família é compreendida sob uma nova perspectiva, não reduzindo o grupo


familiar à coexistência dos laços consanguíneos ou a um modelo naturalizado,
constituído pelas figuras parentais e sua prole, ou seja:

Não se trata mais de conceber o modelo ideal de família


devendo-se ultrapassar a ênfase na estrutura familiar para
enfatizar a capacidade da família de, em uma diversidade de

178
PODER JUDICIÁRIO
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arranjos, exercer a função de proteção e socialização de suas


crianças e adolescentes (Idem, p. 23).

Trata-se de uma concepção de base sócio-antropológica que transcende a


definição legal, reconhecendo a multiplicidade de arranjos, a riqueza dos diferentes
vínculos familiares e comunitários que podem ser mobilizados visando a proteção
integral das crianças e adolescentes.

A família pode ser pensada como grupo de pessoas que são


unidas por laços de consanguinidade, de aliança e de
afinidades. Esses laços são constituídos por representações,
práticas e relações que implicam obrigações mutuas [...] (Idem,
p.24).

3.2. Sobre Criança e Adolescente

O Plano reconhece a criança e o adolescente como sujeito de direitos,


incorpora a “doutrina da proteção integral” na sua plenitude, enfatizando a condição
peculiar destes sujeitos como pessoas em desenvolvimento.
Como sujeitos,

A criança e adolescente são vistos como indivíduos autônomos


e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que,
na sua relação com o adulto, não podem ser tratados como
seres passivos, subalternos ou meros objetos, devendo
participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo ouvidos
e considerados em conformidade com suas capacidades e
graus de desenvolvimento. (Idem, p. 25)

179
PODER JUDICIÁRIO
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Tal concepção implica que garantir a proteção da criança e do adolescente


transcende a visão e o ato de caridade e benemerência, constituindo-se, de fato, no
exercício da responsabilidade da família, da sociedade e do Estado na efetivação de
seus direitos.

3.3. Sobre Convivência Familiar e Comunitária

O direito à convivência familiar e comunitária ganha força na agenda pública


com o PNCFC. Com o Plano há,

A desnaturalização do conceito de família, a desmistificação de


uma estrutura que se colocaria como ideal e, ainda, o
deslocamento da ênfase da importância da estrutura familiar
para a importância das funções familiares de cuidado e
socialização, questionam a antiga concepção de
‘desestruturação familiar’ quando abordamos famílias em seus
diferentes arranjos cotidianos [...]. (Idem, p. 29).

De acordo com o Plano, a convivência comunitária envolve as relações com


os moradores da localidade de pertença da família, as instituições e os espaços
sociais, sendo que estes contribuirão para a construção das relações afetivas, das
identidades individuais e coletivas da criança e do adolescente.
Outro aspecto da convivência comunitária é a contribuição para o
fortalecimento dos vínculos familiares e a inserção social da família quando a
comunidade desenvolve suas próprias estratégias de atenção e proteção da criança
e do adolescente.
Então, nos casos em que ocorre o afastamento de crianças/adolescentes de
suas famílias de origem, o PNCFC recomenda sua permanência nas localidades e
comunidades que lhes são familiares.

180
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Em relação à restauração de direitos ameaçados ou violados, como estratégia


de ação, o PNCFC indica, entre outras coisas, uma rede de serviços de atenção e
proteção capaz de resguardar os direitos sociais, fortalecer a família e propiciar
cuidados alternativos às crianças e adolescentes.
Assim, o acesso à rede de serviços vem a ser determinante para as famílias
tornarem-se capazes de cuidar de seus filhos, uma vez que, se disponíveis e bem
estruturados, podem lograr a superação das dificuldades e a restauração de direitos
sem a necessidade de afastar a criança/adolescente de seu convívio familiar.
Esses programas têm a função de fortalecer a família a partir de sua
singularidade, estabelecendo de maneira participativa, um plano de trabalho que
valorize a capacidade do grupo familiar de encontrar soluções para os problemas
enfrentados com apoio técnico-institucional: “A existência e eficácia dos Programas
de Apoio Sócio Familiar são essenciais ao direito à convivência familiar e
comunitária e constituem um dos pilares deste Plano Nacional.” (Idem, p. 39)
Para a efetividade desses, o PNCFC chama atenção para a necessidade de
estrutura técnica e preparação dos profissionais, sendo que a estruturação de
programas dessa natureza pressupõe um arcabouço teórico-metodológico, um corpo
técnico devidamente qualificado e quantitativamente bem dimensionado face às
demandas existentes em cada território.
A interdisciplinaridade e a intersetorialidade são apontadas como condições
necessárias a tais programas, devendo existir a articulação de políticas sociais
básicas como a saúde, assistência social e educação, além de estreita parceria com
habitação, trabalho, esporte, lazer, etc.
Quando o afastamento da criança e do adolescente de sua família de origem
for inevitável, o caso deve ser levado de forma imediata ao Ministério Público e à
Autoridade Judiciária.
Ainda que condicionado a uma decisão judicial, tal afastamento, de acordo
com o PNCFC, deve estar pautado em recomendação técnica, a partir de estudo
diagnóstico por equipe Interdisciplinar, preferencialmente de Instituição Pública. Tal
181
PODER JUDICIÁRIO
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estudo deve incluir uma criteriosa avaliação dos riscos a que estão submetidas
crianças e adolescentes, bem como os recursos e potencialidades da família
extensa e da rede social de apoio, sendo importante ouvir todas as pessoas
envolvidas e, em especial, as crianças e adolescentes.
Lembrando que a decisão de afastamento da criança/adolescente de sua
família tem sérias implicações, a melhor solução seria aquela que melhor represente
o interesse da criança/adolescente e o menor prejuízo para o seu desenvolvimento.
No entanto, mesmo com tal afastamento, deve-se manter a atenção à família
de origem como uma forma de abreviar a separação e promover a reintegração
familiar: “Somente quando esgotadas as possibilidades de reintegração familiar é
que se deverá proceder à busca por uma colocação familiar definitiva, por meio da
adoção.” (Idem, p. 40).

3.4. Sobre Acolhimento Institucional

De acordo com artigo 101 do ECA, o Acolhimento Institucional é medida


provisória e excepcional, não implicando em privação de liberdade, sendo, o
dirigente da instituição, equiparado ao guardião para todos os efeitos de Direito.
O Acolhimento Institucional e os Programas de Famílias Acolhedoras são os
serviços responsáveis pelo acolhimento das crianças/adolescentes, devendo
prestar-lhes plena assistência, ofertando-lhes acolhida, cuidado, espaço para
socialização e desenvolvimento, garantindo-se a convivência comunitária, portanto,
sem tornarem-se instituições totais.
As entidades devem, de acordo com o PNCFC, preservar os vínculos
familiares e sugerir família substituta quando esgotadas todas as possibilidades na
família de origem, prestar atendimento personalizado, contribuir para o não
desmembramento de grupos de irmãos, promover atividades de educação, evitar a

182
PODER JUDICIÁRIO
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transferência para outros abrigos, preparar a criança/adolescente para a autonomia


e inserção na comunidade local.

3.5. Sobre Programa de Família Acolhedora

Como já descrito, quando for detectada a necessidade de afastamento da


família de origem para garantir a proteção da integridade física e psicológica de
crianças e adolescentes, os mesmos deverão ser atendidos em serviços que
ofereçam cuidados e condições favoráveis ao seu desenvolvimento saudável.
Além do acolhimento institucional, a Política Nacional de Assistência Social
contempla o Serviço de Acolhimento em Famílias Acolhedoras, também chamadas
de Famílias Guardiãs, Famílias de Apoio, Famílias Cuidadoras e Famílias Solidárias.
Trata-se de uma modalidade de atendimento na residência de tais famílias,
que visa oferecer proteção integral às crianças/adolescentes até que seja possível a
reintegração familiar, não devendo ser confundido com a adoção.
Esse serviço de Acolhimento em Famílias somente é valido se contemplar a
mobilização, cadastramento, seleção, capacitação, acompanhamento e supervisão
das famílias, o que necessita ser realizado por uma equipe multiprofissional.
Enquanto as crianças e adolescentes estiverem acolhidas nessas famílias, o
investimento no acompanhamento psicossocial se dará junto das famílias de origem,
com vistas à reintegração familiar e a articulação com a rede de serviços, com a
Justiça e com os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos.
Tal modalidade visa que o acolhimento seja legalizado com as
responsabilidades de guarda em favor da família acolhedora, fixada judicialmente,
sendo que a manutenção desta guarda vinculada à permanência da família no
Programa.

183
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

3.6. Sobre a Adoção

De acordo com o Art. 41 do ECA, a adoção é medida excepcional, irrevogável


e atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres de
quaisquer filhos, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo
impedimentos matrimoniais.
Embora a adoção exista desde a antiguidade, foi somente no século XX que
surgiram no Brasil as primeiras legislações a respeito do tema. Ao longo das últimas
décadas, sob a influência de uma nova concepção da infância e adolescência, o
Direito evoluiu de modo crescente rumo ao reconhecimento da adoção como
importante instrumento para, excepcionalmente, garantir o direito à convivência
familiar e comunitária.
Assim, foi se delineando uma nova cultura da adoção, orientada pelo
interesse superior da criança/adolescente, sendo que esse novo paradigma concebe
a adoção como um encontro de necessidades, desejos e satisfações mútuas entre
adotandos e adotantes (CAMPOS, 2001 apud PNCFC, 2006, p. 44).
O foco no interesse do adulto, outrora predominante, foi abandonado para se
alcançar a dimensão da Garantia de Direitos de crianças e adolescentes, com
especial atenção para aqueles que aguardam colocação em Família Substituta e,
por circunstâncias diversas, têm sido preteridos pelos adotantes, ou seja, grupo de
irmãos, crianças maiores e adolescentes, pessoas com deficiência,
afrodescendentes, entre outros.
Também é de competência da Autoridade Judiciária, ouvido o Ministério
Público, a colocação da criança ou adolescente em famílias substitutas, sendo que
estudos psicossociais devem subsidiar o processo.
O PNCFC aborda, ainda, a “adoções prontas” ou intuito personae e a adoção à
brasileira.
A primeira é a entrega direta de crianças, no geral bebês, para adoção, sem a
mediação da Justiça, que é procurada mais tarde tão somente para regularizar a
184
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

situação do ponto de vista legal. De acordo com o PNCFC, esse modelo inviabiliza a
garantia da excepcionalidade da medida e, como consequência, compromete a
adoção voltada à defesa do interesse superior da criança e do adolescente.
Já, a segunda implica no registro do filho de outrem como seu, acarretando
ainda maiores prejuízos à Garantia de Direitos da Criança.
Apontam-se também questões histórico-estruturais, resultando em graves
desigualdades sociais, como fatores que constituem verdadeiros obstáculos para as
famílias empobrecidas cuidarem de seus filhos, favorecendo a adoção por terceiros.

4. SOBRE O MARCO SITUACIONAL

O Marco Situacional apresentado no Plano (Idem p. 49) caracteriza a


realidade que o fundamenta, trazendo suas dimensões estatísticas.
São apresentados dados sobre as crianças e adolescentes brasileiros, suas
condições de vida, habitação, saúde e educação, com o impacto diferenciado sobre
os grupos sociais segundo a renda, regiões e origem étnica. São feitas
considerações sobre a parcela da infância e da adolescência que apresenta
demandas específicas de saúde e aquela com deficiência.
Destacam-se, então, algumas informações do IBGE (2000) apresentadas no
Plano:
Sobre a distribuição demográfica e etária:
- 61 milhões de crianças e adolescentes,
- 29 milhões são negras e pardas, 31 milhões são brancas.
- 27,2% tinham de 0 a 6 anos sendo acentuadas as diferenças regionais, étnicas e
sociais.
- maior concentração de crianças e adolescentes nas regiões mais pobres e nas
faixas populacionais com menor instrução e menor renda, 45% vivendo em famílias
com renda per capita de até ½ salário mínimo, sendo ainda maior entre crianças e
adolescentes negras e indígenas.
185
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

- o acesso à rede de água e esgoto não se encontra universalizado, com diferenças


acentuadas por região, com pior acesso para crianças e adolescentes que vivem no
meio rural, de etnias negra e indígena.
Sobre a Saúde e Educação:

- ainda é alta a mortalidade infantil, sendo, as doenças infecciosas e respiratórias,


suas principais causas. Os dados sobre desnutrição infantil são alarmantes.
- o acesso à escola ainda é desigual, um dos grandes desafios da educação de
crianças e adolescentes em nível nacional é promover a igualdade de condições de
acesso e permanência na escola prevista em Lei.
Tais indicadores revelam a necessidade de Políticas Públicas que se
encarreguem de forma mais ampla da realidade social, visando garantir a
convivência familiar.
O retrato traçado da infância e da adolescência mostra a vulnerabilidade dos
vínculos familiares e comunitários, sublinhando que suas causas não podem ser
reduzidas a dinâmicas intrafamiliares disfuncionais, ressaltando-se a força dos
fatores estruturais e históricos da sociedade brasileira.

4.1. Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente

O Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente é


reconhecido como um sistema complexo e bem articulado do ponto de vista
propositivo.
No entanto, a observação de sua funcionalidade, muitas vezes, não condiz
com o desejável, enfrentando-se ausências e fragilidades importantes em todas as
partes constitutivas do sistema. O PNCFC elenca detalhadamente as áreas que
merecem maior desenvolvimento/implementação:

186
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

- Políticas Públicas, principalmente sociais (educação, saúde, assistência social,


cultura, esporte, lazer, trabalho, previdência social, segurança pública), executando
suas ações intersetorialmente com qualidade, proporcionando o acesso efetivo e a
participação de seus usuários;
- Conselhos Tutelares, Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública,
Poder Executivo, Organizações Não Governamentais, Poder Legislativo, Conselhos
de Direitos e Setoriais e sociedade em geral deverão desempenhar ativamente as
suas tarefas e responsabilidades na rede de atendimento às crianças e aos
adolescentes afastados ou em vias de serem afastados do convívio familiar;
- Conselho Tutelar com boa estrutura logística, com capacitação para os seus
profissionais, respaldo do Poder Executivo local, articulado com a rede de serviços e
demais atores do Sistema de Garantia de Direitos;
- Poder Executivo desempenhando suas prerrogativas legais, sendo responsável
pela execução de políticas públicas;
- ONGS oferecendo complementação ao atendimento oferecido pelo Poder
Executivo e requisitando a participação ativa da comunidade na solução de seus
problemas; atuando de forma integrada com as outras organizações da rede de
atendimento, de acordo com a sua missão institucional e as necessidades locais de
trabalho especializado;
- Sociedade Civil organizada, participando ativamente nos Conselhos de Direitos
Setoriais, deliberando e monitorando as políticas públicas, sobretudo em nível
municipal;
- Poder Judiciário desempenhando suas prerrogativas legais, aplicando as medidas
legais de proteção; contando com equipe técnica interdisciplinar própria, articulada
com todos os atores sociais da região, monitorando as medidas legais deliberadas,
havendo estreita articulação com Conselho Tutelar, Poder Executivo e a sociedade
civil organizada, promovendo a proteção das crianças e adolescentes e prestando
atendimento efetivo as suas famílias;

187
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

- Ministério Público desempenhando suas prerrogativas legais, aplicando as


medidas legais de proteção e agindo na fiscalização e ou acompanhamento da
implantação e execução das diretrizes deste Plano;
- Poder Legislativo desempenhando suas prerrogativas legais, promovendo a
revisão das leis; monitorando e zelando para que o orçamento público contemple os
recursos necessários à implementação das políticas públicas e respeite o princípio
constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, determinando à
Prefeitura a efetiva e integral execução da política municipal deliberada, promovendo
por meio de audiências públicas o controle social com participação de todos os
atores sociais estratégicos;
- Conselhos de Direitos e Setoriais desempenhando suas prerrogativas legais,
sendo responsáveis pela discussão democrática e elaboração das políticas públicas
destinadas a crianças, adolescentes e suas famílias; participando do processo de
elaboração e discussão das leis orçamentárias, controlando as ações do Poder
Executivo, mobilizando a sociedade civil organizada, na busca de sua
conscientização e efetiva participação na solução dos problemas existentes;
- Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente (FDCA) e Fundo Municipal da
Assistência Social (FMAS) geridos de forma ágil transparente e responsável;
- Famílias participando ativamente da rede de atendimento, sendo protagonistas na
defesa dos direitos de sua comunidade;
- Sociedade mobilizada por meio de campanhas de divulgação e cobrando dos
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário o efetivo cumprimento de seus deveres
para garantir a implementação e a continuidade das políticas públicas;
- Participação popular no processo de elaboração e controle social sobre a execução
dos programas e dos orçamentos públicos;
- Sistema de registro e de tratamento de dados para cada caso de criança e
adolescente afastado de sua família, por intermédio do SIPIA- Módulo de
acompanhamento de crianças e adolescentes em Programas de Famílias
Acolhedoras e de Acolhimento Institucional;
188
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

- Conselho Municipal de Direitos, de Assistência Social e a Câmara de Vereadores,


através de suas assembleias e audiências públicas, se constituindo em espaços
privilegiados para articulação dos atores sociais locais e participação conjunta na
elaboração e monitoramento de políticas públicas de proteção social e de garantia
de direitos;
O Plano recomenda agilidade no fluxo de informações e troca entre atores
sociais estratégicos garantindo a otimização dos resultados no atendimento às
crianças e adolescentes e famílias em situação de vulnerabilidade e risco.

5. SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO, MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO

O PNCFC descreve detalhadamente os atores e respectivas funções para sua


gestão, abrangendo as três esferas de Governo. Informa sobre a Comissão de
Acompanhamento de sua Implementação e sobre o sistema de indicadores para seu
acompanhamento e avaliação (Idem p. 82):
Cada diagnóstico sugerido segue especificações que apresentam dados
completos sobre as características das famílias, crianças e adolescentes;
contextualizando e observando as variações de arranjos familiares, meio rural ou
urbano e pertencimento étnico, comparando com as médias nacionais e regionais
das famílias da população brasileira.
Em relação à adoção, o diagnostico proposto constitui-se em um completo
relatório que abrange as características das crianças, números de adoções que
tramitam nas VIJ, entregas espontâneas de crianças, os encaminhamentos que são
feitos, sempre contextualizando as informações como já citado.
O diagnóstico das políticas públicas visa identificar qual o perfil das políticas
em operação, qual metodologia utilizada, quem e quantos são os profissionais que
atuam e qual formação receberam, permanência no acolhimento institucional e
programas de famílias acolhedoras ou famílias substitutas de crianças e
adolescentes acolhidos, comparação das reinserções nas famílias de origem em
189
PODER JUDICIÁRIO
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relação ao acolhimento institucional ou famílias acolhedoras, das reinserções em


famílias quantas retornaram ao acolhimento institucional ou programas de famílias
acolhedoras e, por fim, qual a oferta de politicas publicas para as crianças e
adolescentes privados de convivência familiar.
Observamos que as especificações propostas pelo PNCFC são
extremamente detalhadas e apresentam um rico material, que possibilita o acesso
ao cenário em que estas famílias, crianças e adolescentes estão inseridas, as
fragilidades e medidas de proteção que vem sendo aplicadas.

6. ALGUNS DILEMAS LEVANTADOS: DISCUSSÃO

A leitura ou releitura do PNCFC confirma, de um lado, o avanço histórico e


cultural na concepção de Programas Sociais que devem nortear as práticas
institucionais frente à infância e adolescência no país. Por outro lado, coloca em
evidência a necessidade fundamental de se operar em rede de serviços
intersetoriais para alcançar as respostas necessárias ao atendimento na esfera
jurídica, entre outras.
No entanto, confrontando as diretrizes do PNCFC com o fazer diário dos
Assistentes Sociais e Psicólogos das Varas da Infância e Juventude, Família e
Sucessões e Varas Especiais da Infância e Juventude, depara-se com contradições
da realidade social, que acabam por trazer impasses e dúvidas sobre o melhor
procedimento a tomar.
Mais ainda, a crescente complexidade das questões psicossociais, com
mudanças profundas dos arranjos familiares, os deslocamentos, desenraizamentos
e adensamentos populacionais, a fragilização e/ou reconfiguração dos vínculos
sócio afetivos, a ampliação do uso de drogas, a insuficiência de políticas públicas
frente a tal dinâmica e a ausência ou fragilidade das redes de apoio, tal como
preconizadas no PNCFC, amplificam e aprofundam as inquietações e dúvidas.

190
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Com a intenção de sistematizar tais reflexões, apresenta-se algumas das


questões que mobilizaram as discussões do grupo, iniciando pelos princípios
centrais do PNCFC.
Primeiramente, a legislação brasileira reconhece e preconiza a família
enquanto estrutura vital, lugar essencial à humanização e à socialização da criança
e do adolescente, espaço ideal e privilegiado para o desenvolvimento integral dos
indivíduos.
Assim, toda criança e adolescente tem o direito a uma família, enquanto o
Estado e a sociedade têm deveres em relação à convivência familiar e comunitária.
Desse fundamento do Direito decorrem ações de políticas públicas expressas
no PNCFC. As estratégias de atendimento à criança e ao adolescente deverão
esgotar as possibilidades de preservação desses vínculos, bem como promover o
apoio econômico e elaborar novas formas de interação e referencias afetivas.
É exatamente a operacionalização dessas estratégias que vêm colocando em
confronto princípios orientadores e as condições objetivas de sua realização. Se tal
confronto vem desafiando as intervenções sociais e profissionais do conjunto de
instituições que lidam com a infância e adolescência, no Poder Judiciário, tais
dilemas parecem eclodir em seus contornos evidentes e emergenciais.
Dentre os vários pontos refletidos pelo grupo para a operacionalização do
PNCFC, pontua-se quatro dos dilemas mais presentes no cotidiano dos
profissionais:
1. O tempo adequado para os cuidados e proteção da criança,
especialmente afastamento de situações de risco, é, necessariamente, imediato
e o atraso na intervenção implica em danos muitas vezes irreparáveis no seu
processo de desenvolvimento. No entanto, o tempo necessário para a
recuperação de condições materiais e de algumas bases de saúde mental do
grupo familiar é, em geral, de caráter mediato ou longo; seu processo não é
linear e, em alguns casos, não se encontra recuperação suficiente para o amparo

191
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

das crianças/adolescentes. Acrescentando-se, ainda, o tempo prolongado dos


processos judiciais.
Apresentam-se, então, situações que fazem parte do trabalho
cotidiano dos chamados técnicos judiciários, dilemas importantes como:
 Até quando investir na família de origem? Quando esse
vínculo deverá ser rompido e ocorrer a colocação em família substituta?
 Qual o prazo que uma criança pode permanecer à espera da
recuperação das condições de sua família de origem, quando, tanto o
rompimento de vínculos, quanto a institucionalização nos primeiros anos de
vida podem ser determinantes para seu desenvolvimento psicoemocional?
 Seria, de fato, melhor para a criança a priorização do
encaminhamento para familiares consanguíneos, quando estes não
apresentam vínculos estabelecidos, moram distante ou não apresentam
predisposição para a guarda?
2. Por outro lado, se a delimitação do tempo de acolhimento institucional for
cumprida rigidamente, atuando como pressão para o retorno das crianças às
famílias de origem sem que estas tenham construído ou recuperado as
condições para cuidar de sua prole, expõem-se crianças e adolescentes a novos
danos, com consecutivas reinstitucionalizações.

Acrescenta-se, ainda, que não é infrequente a ausência ou fragilidade de


articulação da rede de apoio local para oferecer o suporte efetivo às famílias, que
resultem em progressos concretos, tal como preconizado pelo PNCFC.
Inúmeros foram os casos vivenciados e exemplificados pelo grupo relacionados ao
ingresso reiterado de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento, ou
retorno as suas famílias estando, essas, em condições iguais ou piores que as
iniciais.

192
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Por outro lado, o grupo também trouxe experiências positivas, nas quais o
investimento na família de origem rendeu o retorno satisfatório das crianças
envolvidas.
Outras questões emergem de tal dilema:
 Não seria mais adequado que o desligamento da instituição de acolhimento
ocorresse se efetivamente o diagnóstico psicossocial dos respectivos grupos
familiares indicassem condições favoráveis para o retorno da criança ou
adolescente?
 Qual o papel dos profissionais do TJ para a efetivação da rede de apoio local?
3. A pobreza – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma, em seu artigo
23, que “a pobreza não pode ser motivo de acolhimento institucional de crianças
e adolescentes”. O PNCFC descreve um conjunto de ações, entre as quais, a
busca de apoio da família extensa e o atendimento integrado devem ser
desenvolvidos por uma rede de serviços de Educação, Saúde, Habitação,
Assistência, etc.

Nos casos em que a Rede de Apoio funciona, observa-se descentralização


das responsabilidades entre as várias instituições, tais como: escola, assistência
social, serviços de saúde, entre outros, tornando exitoso também o papel do
Judiciário.
No que se refere à política pública de assistência social, há os serviços dos
CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência
Especializado de Assistência Social) voltados à proteção e auxílio à família, mas,
quando esses não dão conta das demandas familiares, ou operam isoladamente,
recai inteiramente sobre as famílias pobres a responsabilidade dos cuidados gerais
da prole.
Entre as famílias mais pobres, com limitações extremas para cuidar dos filhos,
destacam-se como problemas mais recorrentes:

193
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 Ausência de programas de habitação - sem condições de moradia os pais


recorrem ao Judiciário em busca da “internação das crianças”
 Limitações cognitivas dos pais para cuidarem de si e dos filhos. Os genitores
com tais limitações têm dificuldades de perceber a exposição dos filhos a
situações de risco, principalmente pela naturalização de tais riscos no
contexto onde estão inseridos. Nesses casos, observamos que tais
limitações, usualmente, estão relacionadas à dificuldade de acesso à
educação de tais famílias, que têm como principal foco a sobrevivência.
4. A saúde mental dos filhos e/ou dos pais. O PNCFC trata da necessidade
de inclusão de dados sobre a presença de deficiência, transtorno mental e outros
agravos e o direito dessas crianças e adolescentes à convivência familiar. Tal
levantamento é relevante para que se tenha uma dimensão quantitativa do
problema para gerar programas adequados.

Crianças e adolescentes com doença ou deficiência mental, em atendimento


no TJ, vivem em ambientes familiares geradores das perturbações, ou onde vigoram
modalidades de relações que agravam as dificuldades existentes. O retorno à
convivência familiar torna-se delicado quando o funcionamento do grupo familiar
concorre para o adoecimento.
Nesses casos, o acolhimento em abrigo teria de atender uma demanda de
saúde mental e o período de acolhimento muitas vezes teria de se prolongar. O
sistema de acolhimento institucional está preparado para atender tais demandas de
saúde mental?
O PNCFC também descreve os Programas de Proteção a Crianças e
Adolescentes Ameaçados de Morte. Também aqui, o problema observado está
associado à questão de saúde mental, uma vez que se observa, na prática
cotidiana, adolescentes sem condições pessoais para aderirem às normas do
programa, por serem pessoas com transtornos graves, incapazes de conter e
controlar as próprias forças destrutivas.

194
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Perguntamos, então:
 O que fazer quando o abrigo se mostra mais adequado para os cuidados da
criança ou adolescente, do que o ambiente familiar adoecido?
 Em que medida o sistema de acolhimento institucional está preparado para
atender tais demandas de saúde mental?

A reflexão em torno das questões apresentadas mobilizou o Grupo de


Estudos da Capital “Família” a dar continuidade, aprofundando esses temas no
próximo ano.
Os dilemas aqui abordados funcionaram como chaves reflexivas, à medida
que abriram diferentes perspectivas de análise frente aos desafios e obstáculos
encontrados na prática do PNCFC, como também mobilizou o grupo para a busca
de respostas e para o aprofundamento teórico-prático.
Todos os dilemas citados merecem ser explorados. O principal conflito
observado é que o Plano não dá conta de ajustar o investimento necessário para as
famílias a fim de que elas se tornem capazes de acolher seus filhos, por outro lado,
manter as crianças e adolescentes separados da convivência familiar implica
prejuízos em seus processos de desenvolvimento.
Assim, os dilemas apontados nos lançam problemas, entendidos em uma
acepção filosófica segundo a qual “Um problema pode ser definido como uma
questão que é necessária dar resposta [...]. Quando surge um problema, é
necessário pensar de forma a encontrar uma solução para o mesmo”.10

10
http://www.knoow.net/ciencsociaishuman/filosofia/problema.htm

195
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

REFERÊNCIAS

BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e


Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome – Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Brasília, dez.
2006.

________. Lei Federal n. 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente. Brasília: SEDH, 2003.

______. Lei Federal n. 12.010/2009. Dispõe sobre adoção. Brasília, 2009. Disponível
em:
<http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/infanciahome_c/adocao/Legislacao_ado
cao/Federal_adocao>. Acesso em: 10/08/2014.

196
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

REFLEXÕES SOBRE O COTIDIANO DA PRÁTICA


PROFISSIONAL DOS PSICÓLOGOS E
ASSISTENTES SOCIAIS DO TJSP

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL – “O COTIDIANO DA


PRÁTICA PROFISSIONAL – FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTICA DE SÃO PAULO


2014

197
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

COORDENADORAS
Aline Christina Torres – Psicóloga Judiciária – Varas Especiais da Infância e
Juventude
Luiza Gabriella Dias de Araujo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das
Cruzes

AUTORES
Cristina Carta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jales
Camila Fernanda Galvão Oliveira de Almeida – Psicóloga Judiciário – Comarca de
São José dos Campos
Camila Manduca Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão Pires
Carla Cristiane Oliveira Santos Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São Bernardo do Campo
Claudia Corrêa Gomes da Cunha – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Lorena
Deborah Souza Leite – Assistente Social Judiciário – FR. V São Miguel Paulista
Elaine Cristina dos Santos Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Tanabi
Eliana Cléia dos Santos Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itanhaém
Esther Almeida Santana – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itaquaquecetuba
Fátima Regina Correia dos Santos – Assistente Social Judiciária – FR. IV Lapa
Lisiane Schandler de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapeva
Maithe Ribas – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém
Mara Maria Ferreira de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Márcia Pulice Mascarenhas – Psicóloga Judiciário – FR. I Santana
Maria Beatriz da Rocha Alarcon – Assistente Social Judiciário – Vara da Família e
das Sucessões – Foro Central
Maria Helena Célia Cardoso – Assistente Social Judiciário –Varas Especiais da
Infância e Juventude
Patrícia Maura Silva de Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de Votorantim
Regiane Ortolam – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Regina Maria Sivieri de A. Gomes Serrão – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Itanhaém
Sonia Fatima da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica da
Serra
Sueli Aparecida Corrêa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba
Vanessa Aparecida Gonçalves – Assistente Social Judiciário – Comarca do Guarujá

198
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUCÃO

Neste ano o grupo de estudos contou com um enorme contingente de


participantes novas no grupo (3/4 do grupo) e também novas no Tribunal de Justiça,
muitas recém-contratadas. O planejamento feito no ano anterior não contemplava
este grupo. Além disso, as pessoas estavam se conhecendo e se adaptando ao
trabalho no Tribunal de Justiça; traziam inquietações e expectativas.
Para além da atuação nos casos rotineiros – que vão da vitimização,
violência, adoção até o contato com adolescentes infratores, entre outros, que em si
demandam dos técnicos conhecimentos específicos, o grupo destacou aspectos
institucionais negativos, como a burocratização dos serviços, precarização das
relações, sobrecarga de trabalho e a ausência de uma rede entre o trabalho dos
técnicos do judiciário com a comunidade, sendo que em muitos casos o
estabelecimento desta rede é desestimulado pelo próprio Judiciário, que dispõe do
serviço do técnico nem sempre oferecendo liberdade para que este priorize ações
que possam resultar em interconexões futuras entre o judiciário e o executivo.
Assim, ao invés de estudarmos um dos aspectos de nosso cotidiano, o que
normalmente realizamos todo ano, decidimos estudar O COTIDIANO. Esta ideia
poderia unir os novos integrantes e permitir que as angústias de cada um pudessem
ser acolhidas e discutidas no grupo, já que estas divergiam no objeto de
preocupação, mas não na preocupação com as idiossincrasias do sistema judiciário
em si.
Para tal, nossa tarefa inicial foi pesquisar a origem do nosso grupo de estudos
e tudo o que já foi abordado nele. Realizamos a leitura de FAVERO (2000). Eunice
Fávero, a autora do texto, foi quem iniciou o grupo de estudos Cotidiano da Prática
Profissional, que posteriormente ganhou o subtítulo – Família, em decorrência do
interesse dos seus membros de se focarem mais nos temas relativos à Família.
Neste texto os autores apresentaram uma retrospectiva de tudo o que foi estudado
no grupo em suas primeiras edições, bem como problematizaram o cotidiano de um
199
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

técnico a serviço da Infância e Juventude do TJSP. Relembraram que os primeiros


estudos sobre o adoecimento profissional tiveram como foco o indivíduo –
entendendo que o profissional já se encontrava doente, mas que aos poucos se
passou a considerar o contexto profissional como fator de adoecimento do indivíduo.
Embora nosso grupo seja formado por técnicos recém-contratados, já se
percebe um desgaste muito grande em todos em decorrência de problemas
institucionais. O texto citado trouxe para a grande maioria do grupo um sentimento
de conforto, por explicitar e traduzir a realidade vivenciada por todos, pois o
“adoecimento e o estresse atingem todos os trabalhadores, portanto, necessitamos
buscar indefinidamente estratégias de enfrentamento” (Fávero, 2000).
O texto também acarretou reflexões a respeito do papel do psicólogo e
assistente social no TJ, que deverá descobrir sua posição institucional com base não
somente nas atribuições delimitadas pelas Normas da Corregedoria na seção XLIX,
artigos 802 a 808 (TJSP, 2013), mas também considerando dimensões ético-
politicas e técnico-operativas das profissões da Psicologia e do Serviço Social, de
forma autônoma, atendendo a demandas diversas a partir das necessidades da
população atendida. O próprio artigo 151 do Estatuto da Infância e Juventude
(Brasil, 1990) garante nossa independência na manifestação técnica.
Experiências colocadas em práticas em outros setores e áreas de atuação
foram apresentadas como forma de lidar com estes aspectos da vida profissional. A
tendência atual é desenvolver um olhar crítico sobre as relações de trabalho com
enfoque na promoção da saúde apesar das dificuldades nas relações institucionais.
Em nossa prática temos o fato de que nós, que promovemos melhorias na vida da
população atendida, também estamos submetidos a pressões que não garantem
nossa própria saúde.
Pontuou-se que a Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do
Tribunal de Justiça está empenhada em avaliar o adoecimento dos profissionais no
contexto cotidiano das relações multifacetadas de trabalho. Além disso, a
Associação é vista como mais uma alternativa de resistência institucional por parte
200
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

dos Psicólogos e Assistentes Sociais.

Segundo FAVERO (2000):

[...] respostas somente se apresentam como possíveis quando esses


profissionais se dispõem a ultrapassar a insatisfação queixosa e a
superar os aparentes limites postos – ou impostos – no imediato da
prática [...]

São estas respostas que buscamos ao longo de 2014. Para complementar


nosso estudo, convidamos a assistente social Elisabete Borgianni, presidente da
Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo - AASPTJ, para uma tarde de conversa. Ela falou sobre a pesquisa em
andamento sobre o adoecimento dos funcionários do TJSP, discutiu o papel dos
técnicos como de resistência e garantidor de direitos humanos do público que
atendemos. Também ofereceu referências teóricas para aprofundarmos o nosso
debate.

201
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

DESENVOLVIMENTO

1. Adoecimento

O grupo de estudos encontra-se em processo de construção, delimitando o


tema a partir das expectativas individuais, manifestadas nos depoimentos, nos
questionamentos, nas angústias, na busca por troca de experiências e coleta de
material bibliográfico.
O tema escolhido no final do ano de 2013 tinha como enfoque o adoecimento
do profissional e seus reflexos na família de origem, considerando a exposição às
situações estressantes não só nas abordagens de atendimento, como também na
carência de recursos humanos, físicos e materiais, que levam à insegurança, ao
conflito e como sequela ao desgaste físico e mental.
Com a entrada nos novos integrantes, direcionamos a reflexão sobre o
adoecimento dos próprios profissionais Psicólogos e Assistentes Sociais e o quanto
este adoecimento influi negativamente no serviço que oferecemos.

2. Cotidiano e Resistência

Netto (1987) produz uma reflexão sobre o Cotidiano enquanto categoria de


análise da prática profissional. O texto nos remete à reflexão crítica da prática
profissional do Serviço Social trazida pelo movimento de reconceituação no Brasil,
que aborda a necessidade de ruptura com o conservadorismo e propõe uma ação
transformadora da realidade, baseada, sobretudo na construção de novos
paradigmas teóricos e metodológicos que possibilitem um “pensar e agir”
transformador, condizente com a realidade social.
Traz ao debate a necessidade do profissional romper com a alienação do
cotidiano, que o faz ser “engolido” pelas estruturas determinantes da prática
202
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

profissional. Lembra que pensar o cotidiano exige uma reflexão profunda acerca da
necessidade de compreender não apenas a aparência do real, mas sua essência e o
significado do fazer profissional.
O cotidiano é algo insuprimível, é o espaço de produção e reprodução da vida
e por isso possui elementos alienadores que nos “enganam”, pois não se constituem
apenas da superficialidade que nos é dada na imediaticidade do real. Ao contrário, o
cotidiano é expressão de um conjunto de determinações que podem ou não nos
impulsionar a reproduzir na ação profissional a ideologia dominante preconceitos e
senso comum ajustadores de padrões de comportamentos e análises
conservadoras.
Desta forma, é necessário estabelecer estratégias que possibilitem ao
profissional “suspender” o cotidiano para analisá-lo e refleti-lo criticamente, pois
sendo repleto de contradições, exige a mediação entre o singular e o universal, de
modo a privilegiar uma ação transformadora.
Refletimos de que modo poderiam ser desenvolvidas estratégias de
“suspensão” do cotidiano na realidade de trabalho que atuamos. O grupo relatou
experiências do Executivo no desenvolvimento de processos sistemáticos e
contínuos de Educação Permanente e Supervisão Profissional, que permitem fazer a
crítica e criar novas estratégias de ação.
Consideramos no debate que o processo de transformação da ação
profissional não se constitui apenas do agir individual, mas sim do comprometimento
coletivo. Por outro lado, refletimos que a reprodução dos valores na sociedade atual
reforça a responsabilização individual. A própria natureza de intervenção profissional
no Tribunal de Justiça nos leva a atuar isoladamente nos processos; assim, não
podemos “perder de vista” o todo, com risco desta realidade nos gerar frustração e
adoecimento. Desta forma a “suspensão” do real em alguns momentos, para
podermos analisa-lo de maneira mais afastada, pode e deve existir, constituindo-se
como um espaço de reflexão e rompimento com a alienação.

203
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Consideramos que devemos cuidar para não nos tornarmos profissionais


polivalentes numa realidade fragmentada, onde a avaliação psicológica e o estudo
social são partes constitutivas de um modo de produção taylorista.
Também devemos nos manter atentos sobre as mudanças históricas que
marcam a aplicação do Direito, numa realidade social que judicializa a vida e o
acesso às políticas sociais, com nítida desresponsabilização do papel do Estado.
Ao final pontuamos que é necessário ter ousadia para modificar as relações e
estabelecer novas estratégias de superação do real, de modo a fortalecer a
autonomia, o empoderamento e posicionamento crítico. Quais estratégias podemos
estabelecer para modificar o cotidiano profissional?

3. Sociedade e Judiciário

Um conceito importante para pensarmos a sociedade ocidental atual é o da


Modernidade Líquida, cunhado pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman.
Tfouni & Silva (2008), baseados no conceito do referido sociólogo, afirmam
que a partir dos anos 1970 o mundo foi atravessado por diversas transformações
societárias de ordem objetiva e subjetiva, como o neoliberalismo, a mundialização
do capital, a reforma do Estado, a reestruturação produtiva dentre outras.
Tais mudanças alteraram o modo de viver e se relacionar na sociedade. Esse
tempo de grandes transformações econômicas, sociais e culturais foi denominado
por certa linha de pensamento contemporâneo como pós-modernidade, um tempo
em que os grandes ideais da Modernidade – Razão, História e Humanismo –
esgotaram-se, resultando em uma modernidade fluida, distanciada da solidez e da
rigidez do passado (que era opressivamente estável), uma modernidade, nos termos
de Bauman, líquida, caracterizada pelo desapego, provisoriedade e acelerado
processo de individualização.

204
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

É um tempo em que tudo é muito rápido, muito fugaz e muito voraz.


Caracteriza-se por um individualismo exacerbado; pela mercantilização das relações
sociais em detrimento da construção de laços de afetividade; pelo forte apelo ao
consumo, que cria desejos e necessidades; pela insegurança, nas relações de
trabalho e nas relações pessoais, na medida em que estas passam a ser marcadas
pelo signo da provisoriedade.
Se na modernidade a mobilidade e a velocidade eram desejadas, na pós-
modernidade esse desejo se transforma em obrigação, se transforma, praticamente,
no mínimo exigido para permanecer vivo. Assim, o que na modernidade era parte de
um projeto de felicidade libertadora do homem, se transforma numa obrigação
carregada de angústia e mal-estar; o sujeito sente que ele mesmo “nunca é bom o
suficiente”. Dessa forma, paradoxalmente, quanto mais o desejo social é o de um
preenchimento, mais o sujeito sente o mal-estar do vazio, um vazio que para nós é
constitutivo do sujeito e seu desejo, mas que na pós-modernidade é exacerbado.
Definiu-se, durante as discussões, o desejo como impreenchível, como uma eterna
busca. O capital, por meio de imposição de seus produtos, representaria o papel de
“preenchedor”, fornecendo uma fantasia de satisfação do desejo insatisfazível. Este
mecanismo de fato é ilusório, uma vez que o desejo é definido pela sua
insaciabilidade, mas ele cria uma ilusão de que com algum objeto, ele será
preenchido, em um mecanismo de autoengano que cria insatisfações generalizadas.
Isto se agrava pois os objetos precisam a todo o tempo estar mudando, pois nos
baseamos na falsa crença de que algo novo irá nos trazer a satisfação que ainda
não alcançamos.
Como consequência desta liquidez, o tempo das cidades é do fim da era do
engajamento mútuo: todos estão ocupados o tempo todo. As questões públicas
perdem espaço para a discussão, pois:
[...] o aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento
da impotência coletiva na medida em que as pontes entre vida
pública e privada são destruídas ou, para começar, nem foram
construídas; ou, colocando de outra forma, uma vez que não há uma
205
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

maneira óbvia e fácil de traduzir preocupações pessoais em


questões públicas e, inversamente de discernir e apontar o que é
público nos problemas privados (BAUMAN apud TFOUNI; SILVA,
2008, p.180).

Trata-se de um tempo de crise do estatuto do real, há uma insegurança, um


abalo em seu conceito. Em meio a essa crise o sujeito depara-se com a
necessidade de criar uma fantasia do real (um fantasma do real), na medida em que
o real é insuportável. O ser humano, mergulhado nessa realidade/fantasia, estaria,
em contraposição, sempre em busca do real, ao mesmo tempo em que procura
evitá-lo. Esta fantasia pode fornecer ao sujeito alguma segurança em uma época tão
insegura. Neste sentido pode ser ideológica no sentido de que nos impede de ver o
todo do real desta nossa época. A busca do real se dá, segundo o texto, pelo
questionamento da fantasia, através da crítica do cotidiano.
À luz de tais conceitos, as discussões apontaram o Tribunal de Justiça como
uma instituição também inserida nessa modernidade fluida. Por exemplo, ele busca
mudanças no sentido de agilizar seus procedimentos, como por exemplo, a
digitalização dos autos de processos. Contudo, essa modernização do Tribunal
contrasta com a situação que se encontram seus usuários.
Além disso, o modo como os processos de trabalho nesta instituição estão
organizados dão ensejo à reprodução do individualismo, pois os profissionais são
responsabilizados individualmente por cada processo, estando por “sua própria
conta e risco”, vivendo a oposição entre liberdade e insegurança trazida pela pós-
modernidade.
Essas características incidem sobre o trabalho do psicólogo e do assistente
social inseridos no Tribunal de Justiça. Toma-se como exemplo a produção dos
relatórios e laudos, na medida em que, ao fragmentar a realidade e não buscar a
compreensão da totalidade, esses profissionais podem incorrer no risco de
culpabilizar o indivíduo ou a família, sem apontar os determinantes conjunturais.
206
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nesse sentido, considerou-se a necessidade de apontar nos relatórios


produzidos as falhas do Estado na promoção dos direitos. O não atendimento
imediato das demandas assinaladas, incluindo às necessárias para o nosso
cotidiano de trabalho, não justifica que deixemos de apontá-las, uma vez ser isso
parte importante do nosso papel na busca e compreensão do real enquanto
profissionais da Justiça.
Não são poucos os momentos e situações em que, como profissionais, nos
vemos diante da exigência de respostas rápidas e que muitas vezes não nos
competem. Sendo assim, a busca pelo real pode ser relacionada à já discutida
necessidade de “suspender” o cotidiano alienante da prática profissional refletindo
criticamente sobre ele por meio de uma ação transformadora da realidade e da
compreensão da essência do real, promovendo a mediação entre o singular e o
universal. Estratégias como a articulação de uma rede de serviços e o estudo da
teoria disponível foram apontadas durante as discussões como formas de superar a
insegurança no trabalho e suportar o real nesse contexto.
Ressaltamos, ademais, como instrumento de enfrentamento a esses
determinantes que não podem nos paralisar, a importância de realização de um
relatório anual das atividades do setor técnico, com pontuações não somente
quantitativas, mas também qualitativas, incluindo-se propostas de medidas
complementares (conforme apontado no Art. 807 das Normas da Corregedoria), que
registre e reflita sobre os desafios postos a este setor, pensando crítica e auto
criticamente o trabalho desenvolvido, em uma postura propositiva que confira
visibilidade para o trabalho realizado.
É necessário, portanto, questionarmos nossas próprias fantasias do real,
entendendo os usuários do serviço e nós mesmos, profissionais, não como vítimas,
mas como sujeitos que lutam.

207
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

4. Perspectivas: Revolução democrática de justiça

Boaventura de Souza Santos é um sociólogo português com grande


conhecimento da Brasil e publicou um livro com o título Para uma revolução
democrática da justiça, de 2009. Neste texto o autor aborda o tema da
democratização do acesso à justiça e o quanto a justiça e a sociedade estão
interligadas.
Nos Estados democráticos como o Brasil, em que os índices de
desenvolvimento são acompanhados por indicadores gritantes de desigualdade e
exclusão social, o afunilamento do projeto politico-cultural, a par do avanço e da
consolidação do capitalismo como modo de produção, transformou a emancipação e
a regulação social em duas faces da mesma moeda.
Progressivamente os indivíduos, especialmente os provenientes das classes
populares, têm a percepção de que as desigualdades sociais traduzem-se em
injustiças e consequentemente em violação de direitos. Reclamam, individual ou
coletivamente, para serem ouvidos e organizam-se para resistir. Essa nova
consciência de direitos e a sua complexidade, tornam o atual momento sociojurídico
tão estimulante quanto exigente.
A execução deficiente ou inexistente das políticas sociais transforma-se em
motivo para a procura dos tribunais. A via judicial torna-se alternativa para o alcance
de direitos frente à redemocratização e o novo marco constitucional.
Há um desconhecimento generalizado na população sobre as funções do
Judiciário. A inclusão social aumenta o poder de voz de minorias, que não vendo no
executivo uma resposta para seus anseios, buscam a judicialização como resposta a
estas questões sociais, que acabam colocando o Judiciário em evidência. Na
verdade, anteriormente apenas uma pequena parcela da população mais
esclarecida buscava o judiciário desta maneira. Com a popularização da solução
judicial, e a sobrecarga atual que o sistema judiciário sofre é que fica evidente a
falência do modelo em si. Ou seja, a judicialização de questões cotidianas menores
208
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

produz poucos resultados e se constitui em um fator de morosidade de todo o


sistema.
Como um exemplo citamos que muitas das situações que envolvem as
famílias nos processos em que atuamos, nem chegariam ao judiciário se houvessem
o bom uso de alternativas de discussão de conflitos na própria comunidade ou
mesmo no sistema de justiça, prévias ao litígio. Na cidade de São Paulo há algumas
experiências pontuais no trabalho com mediação em questões de família e questões
cíveis.
Considerando a morosidade da Justiça, a celeridade logo aparece como
forma de avaliar o desempenho do sistema da justiça. Se pensarmos em reformas
sobre a morosidade que decorre da sobrecarga de trabalho, do excesso de
burocracia, do positivismo e do legalismo, podemos ter uma justiça mais rápida, o
que não significa que ela seja também mais eficiente. Não basta, portanto, uma
justiça mais rápida, é necessária também uma justiça cidadã.
O conceito de Justiça, que é muito mais amplo do que o Poder Judiciário. Há
experiências como as promotoras legais populares, lembradas pelo autor, uma
iniciativa exemplar no que toca a importância do intercâmbio de saberes e
experiências no âmbito da atuação dos movimentos sociais, pois a democratização
da justiça interessa a toda a sociedade.
O texto propiciou a reflexão do grupo quanto à necessidade da Justiça “sair
do seu invólucro” para que ela se democratize. Também ponderou sobre a
dificuldade de acontecer uma revolução dentro dos tribunais de justiça, instituições
extremamente rígidas. Para um sistema judicial democrático, a justiça teria que
perder o isolamento que a caracteriza, teria que se articular com outras
organizações e instituições da sociedade que possam favorecer que ela assuma a
sua relevância politica. Para isso, a equipe técnica do judiciário possui um potencial
que avaliamos como ainda não explorado, pois são justamente as pessoas
preparadas para estabelecerem parcerias e construírem redes. O que ocorre,
porém, é que esta atividade é geralmente vista pelos juízes como perda de tempo. O
209
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

técnico ao invés de atender uma determinação individual estaria realizando outras


atividades que não impactam diretamente na angústia momentânea do magistrado,
mas que poderia construir uma interlocução com a sociedade promotora de
alternativas para o próprio magistrado. Esta situação é agravada pelo fato de que há
poucos técnicos para atender aos juízes da infância e juventude, daí se prioriza a
angústia momentânea ao invés de um trabalho de interlocução.
Segundo o autor, a formação universitária na área do Direito no Brasil ainda
apresenta um viés positivista, o que nos leva a compreender melhor a forma de agir
conservadora dos juízes. O pensamento positivista e funcionalista que embasa o
Direito é fragmentado, o que torna o Direito um corpo partido. Por exemplo, torna-se
mais fácil e rápido tirar o poder familiar de uma mãe usuária de crack do que
conhecer sobre os atendimentos e encaminhamentos possíveis para atender essa
mãe.
A forma de pensar unilateral do judiciário não traz respostas e neste contexto
o que a sociedade pode oferecer para as famílias? Existe uma rede de atendimento
que atenda realmente a estas famílias? Muitas vezes não existe proteção dentro das
instituições de acolhimento para onde as crianças e adolescentes são
encaminhados e impera a errônea ideia de que está melhor assim, pois “qualquer
coisa” é melhor do que a família de origem. O texto segue problematizando a
necessidade de aproximação entre Justiça e Cidadania e a necessidade da
existência de alternativas democráticas, que podem ser materializadas através dos
estudos e laudos social e psicológico. O entendimento dos técnicos do grupo de
estudos é de que a Psicologia e o Serviço Social, apesar de serem instâncias que
pertencem à “maquina judicial”, não podem moldar-se completamente a ela, pois
perderiam suas características e dinâmica próprias.
Foi discutida e refletida a necessidade da existência da interdisciplinaridade
para uma Justiça, de fato, democrática, e sua atual escassez neste sentido.
Constatou-se a dificuldade de se trabalhar em rede, de forma integrada, observando

210
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

que na maioria das vezes são trabalhos isolados e a “varejo”, e como tal prática
prejudica o todo, inclusive os resultados do próprio trabalho e dos objetivos.
Foi observada a diferenciação em termos da prática e lógica do trabalho do
Setor Técnico em relação ao trabalho cartorário. Enquanto o primeiro segue uma
dinâmica própria em termos de tempo e um trabalho de interpretação da realidade, o
trabalho cartorário é automatizado e mecanizado, que obedece a prazos e metas.
Os próprios juízes trabalham no varejo onde o seu trabalho é medido pela
quantidade, não pela qualidade. Estão sobrecarregados também. Em muitas
comarcas o contato com o juiz é escasso e o chefe de cartório toma para si a função
de “chefe” das equipes técnicas, sendo que muitas vezes pouco sabe sobre nossa
profissão, e tem muita dificuldade para entender a complexidade do estudo social e
psicológico. Geralmente eles têm uma lógica de processos e procedimentos
diferentes dos nossos e os procedimentos de nosso trabalho não ficam claros.
Outra atitude que entendemos como desqualificadora no nosso trabalho
psicossocial é o hábito de se valorizar apenas o parecer final do estudo,
desconsiderando todo o trabalho para se criar uma linha argumentativa que apenas
desemboca no parecer. O parecer, assim, se torna relativo a todo o restante, que é
desprezado. Mas é neste “miolo” que poderíamos pensar em intervenções criativas
ao caso que temos em nossa frente. Descartando-se a análise dos direitos, as
necessidades subjetivas dos sujeitos envolvidos no processo e as problematizações
realizadas sobre o caso, nosso parecer se torna uma verdade estática com muito
pouco poder de transformação social.
O autor nos traz possibilidades de pensar alternativas burocráticas que às
vezes não visualizamos. É necessário minimamente problematizar o sistema,
observar o que está posto. Não podendo perder de vista que nós vivemos num
momento muito difícil para a humanidade, num processo de empobrecimento no
mundo inteiro, as questões sociais se tornam extremamente graves e ao mesmo
tempo as políticas sociais são retiradas da cena contemporânea, a ponto de não

211
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darem mais conta dessa situação e por outro lado, revelam o processo de
despolitização gritante nesta perspectiva de controle democrático.
O movimento que vivemos é de alta alienação do sujeito. Quanto mais
individualizado e alienado menos se tem a perspectiva da mudança e de
responsabilização social, porque a perspectiva da individualização também cria a
ideia de que é melhor transferir a responsabilidade.
Ainda sobre a consciência política, lembramos que com as manifestações do
meio de comunicação social, o senso comum é enviesado para uma alienação
política. Tomamos como exemplo as desapropriações de prédios na cidade de São
Paulo. Em que se arbitra a constituição e nega-se o direito a moradia, absoluto, mas
se baseia no direito à propriedade, relativo, sem se oferecer uma alternativa de
moradia a eles. A mídia também se encarrega de realizar ataques à população sem
moradia, chamada de invasora, o que ao lado da ausência de respostas estatais de
garantia de direitos, induz os leigos a se posicionarem contra a população sem
moradia, um grave problema brasileiro.
O texto também analisa as iniciativas que são pouco conhecidas no próprio
judiciário, como a justiça comunitária e a resolução de conflitos. O autor esclarece a
diferença entre os juizados especiais e de primeira instância. O número de
processos que estes juizados recebem é bem diferente, o que nos fez pensar na
discrepância da materialização dos feitos para se atingir a efetiva democratização da
justiça.
Conclui-se com o questionamento: para quem se deve democratizar a
Justiça? De que vem existindo uma falta de democratização em várias instâncias da
sociedade como nas áreas da saúde, da educação e pela ausência de senso crítico
e político da própria população acerca de seus direitos. Há uma individualização e
alienação sobre o Sistema.
Diante da constatação de que pouco sabemos sobre a existência dessas
práticas alternativas nas comarcas, refletimos a respeito do isolamento institucional
vivenciado no Tribunal de Justiça. Às vezes estamos inseridos num espaço físico e
212
PODER JUDICIÁRIO
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não temos conhecimento do que se passa ao nosso redor, além de nem conhecer
nossos colegas de comarca e, principalmente tomar conhecimento dos juízes com
quem atuamos.
Refletimos sobre as experiências de práticas democráticas, tais como justiça
restaurativa, a mediação, os grupos de adoção e as oficinas de pais no judiciário.

5. Justiça Restaurativa

A Justiça Restaurativa é uma prática em crescimento em vários lugares do


mundo e consiste no resgate de técnicas comunitárias de justiça. Ela considera que
atrás de cada norma há valores que as fundamentam. Na Justiça Restaurativa os
valores cultivados são: esperança, interconexão, empoderamento, respeito,
participação, humildade, responsabilidade, honestidade, entre outros. É uma justiça
pautada na cultura da comunidade, que aproxima o poder decisório das pessoas
envolvidas no conflito, logicamente com o acompanhamento jurídico.
Como exemplo, citamos as tradições dos nativos neozelandeses. O sistema
de justiça da nova Zelândia absorveu práticas de justiça tribal da tradição dos
indígenas maoris. Um dos traços distintivos desta forma de fazer justiça é a
composição do encontro, que considera a presença dos membros das famílias,
amigos e outras pessoas de referência das partes do conflito (ofensor e vítima), que
são chamados de comunidades de apoio. Também participam um policial e a
assistência social. Cada participante tem seu papel, o ato é relatado, todos escutam,
refletem e se posicionam. O ofensor, com seu grupo de apoio, oferece uma proposta
de solução que é apresentada. Esta é analisada do ponto de vista jurídico e se for
plausível, é aplicada. Isto ocorre desde 1989 na Justiça Juvenil, e desde 2002 é
prevista sua aplicação na Justiça Criminal em caráter optativo. A Austrália também
desenvolve trabalho semelhante.

213
PODER JUDICIÁRIO
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Na África do Sul tivemos a experiência dos Círculos de Paz, que se


desdobraram após as Comissões de Verdade e Reconciliação, uma estratégia de
recomposição social do país, abalado pela memória de inúmeros e dolorosos crimes
motivados pelas disputas raciais. Nos Círculos de Paz pessoas da comunidade
treinadas para atuarem como facilitadores em encontros que objetivam uma melhor
compreensão do problema e a construção de um acordo.
No Brasil, experiências de Justiça Restaurativa começaram a ser introduzidas
a partir de 2004, através de experiências apoiadas pelo Ministério da Justiça e o
PNUD, em Brasília, Rio Grande do Sul e São Paulo/São Caetano do Sul.
Trata-se de uma mudança de paradigma na aplicação da justiça, conforme
podemos observar por este quadro (Zehr, 2008)

Nas Varas Especiais da Infância e Juventude, São Paulo capital, do Tribunal


de Justiça do Estado de São Paulo também tivemos um núcleo de práticas
restaurativas. Durante alguns anos ocorreram os denominados Círculos
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PODER JUDICIÁRIO
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Restaurativos, nos quais ofensores adolescentes, vítimas e a comunidade


participava da atividade, cujos facilitadores eram psicólogos e assistentes sociais
treinados. Nesta experiência, foram encaminhados para o projeto entre 2006 e 2010
o volume de 214 processos, sendo que em 57% dos casos houve círculo
restaurativo. O objetivo do Círculo Restaurativo é, semelhante ao anteriormente
explicado, permitir uma escuta empática de ambas as partes, o entendimento do
ocorrido, como este repercutiu para cada lado (ofensor e vítima). A vítima é muito
valorizada, já que está no centro do processo, suas necessidades são ouvidas e
entendidas pelo ofensor. O laço social aí fortalecido teria o objetivo de interromper a
escalada da violência na comunidade.
Os casos encaminhados eram atos de baixo potencial ofensivo (sem uso de
violência ostensiva) e que tivessem ocorrido em uma certa área da cidade, cuja
comunidade também havia participado do treinamento para facilitadores da
metodologia. Em 84% dos casos foram feitos acordos, sendo cumpridos em sua
maioria.
Esta forma de justiça horizontalizou a aplicação de uma reparação, e esta foi
tomada como uma responsabilidade do ofensor, promotora da pacificação da vítima.
A equipe de psicólogos e assistentes sociais que participou do projeto
destacou os seguintes pontos no trabalho com esta metodologia ao longo destes
anos:

• Reflexão sobre a atuação psicossocial nesta área historicamente


marcada por ações punitivas
• Maior aproximação e simetria com a rede de atendimento (decisões
em conjunto)
• Aproximação das situações e dos atores que vivenciam a violência
no ambiente escolar possibilitando o debate e o enfrentamento
conjunto

215
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• Oferece espaço humanizado e acolhedor para os usuários da Justiça

• Estabelece uma relação mais horizontalizada com os usuários


empoderando-os como sujeitos desta intervenção e não mero objetos

• Avaliação informal dos usuários (no momento final dos círculos)


como sendo esta uma proposta rápida e de simples aplicação para a
resolução dos conflitos

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CONCLUSÕES

Os psicólogos e assistentes judiciários inseridos na Infância e Juventude do


Tribunal de Justiça possuem um dever ético de agirem para além da atitude de
perito na qual constantemente a instituição o limita. Para além de atender a
demanda, seu papel também é o de garantir direitos à população atendida, ainda
que isto não seja quantificável da maneira que o Tribunal atualmente contabiliza.
Garantir direitos à população a partir do judiciário passa obrigatoriamente pela
função de fomentador de uma rede de suporte ao trabalho do juiz da infância. De
nada adianta o juiz realizar determinações se estas não puderem acontecer com
qualidade na comunidade. É o técnico que vai atrás das alternativas que serão
oferecidas ao juiz para aplicação em cada caso.
Devemos resistir em focar nossos laudos no parecer, e investir esforços numa
boa problematização do caso a ser avaliado. Ainda que desconsiderado pelas
demais instâncias dentro do Tribunal de Justiça, nosso relatório é um documento
que ficará para sempre acostado aos autos.
Participar de cursos, formações, grupos de estudos, da associação de
psicólogos e assistentes sociais, estabelecer parcerias com profissionais do
executivo, entre outras, são algumas formas de resistência que destacamos, já que
permite o nosso fortalecimento através da reflexão em conjunto e apoio mútuo.
Finalizando, reafirmamos que as transformações sociais que estão ocorrendo
exigem um judiciário capaz de realizar um enfrentamento crítico e criativo.
Boaventura de Souza Santos realiza uma provocação ao final do livro que aqui
repetimos: “a revolução democrática da Justiça nunca poderá ocorrer sem a
revolução democrática do Estado e da Sociedade”, mas que nos cabe recordar que
“esta tão pouco será possível sem a revolução democrática da justiça”.

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PODER JUDICIÁRIO
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REFERÊNCIAS

Brasil. Estatuto da Infância e Juventude. ECA. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 20 de nov. 2014.

CEAG. Apostila. Disponível em:


<http://ftp.tjmg.jus.br/jij/apostila_ceag/MODULO_IX.pdf>. Acesso em: 20 de nov.
2014.

Fávero, E. Temas do Cotidiano da prática profissional judiciária com crianças,


adolescentes e famílias. Caderno 1 dos grupos de estudos do Serviço Social e
Psicologia Judiciários (1996-1999), pp 38-54, texto mímeo, 2000.

Netto, J. P. Para a crítica da vida cotidiana. In: Cotidiano: conhecimento e crítica


(Orgs), Netto, J. P e Carvalho, M. C. B. de São Paulo: Cortez, 1987.

Santos. B. S. S. Para uma revolução democrática da justiça. 3a edição. São Paulo:


Cortez Editora, 2009.

Tfouni, F. E. V. & Silva, N. A modernidade líquida: o sujeito e a interface com o


fantasma. Revista Mal Star e Subjetividade. Fortaleza. Vol VIII, no. 1. Pp. 171-194.
Março 2008.

TJSP. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Corregedoria Geral da Justiça.


Normas de Serviço. Ofícios de Justiça. (Orgs) Santos, N. E.; Nalini, J. R. 2013.

Tribunal de Justiça de São Paulo. Coordenadoria da Infância e Juventude. Núcleo


da Justiça Restaurativa da Comarca de Tatuí. Justiça Restaurativa: uma mudança
de paradigma e o ideal voltado à construção de uma sociedade de paz. Disponível
em:

218
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

<http://www.tjsp.jus.br/Download/CoordenadoriaInfanciaJuventude/Pdf/JusticaResta
urativa/Artigos/Texto_Dr_Marcelo_Salmaso.pdf>. Acesso em: 20 de nov. 2014.

Zehr, H. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo.
Editora Palas Athena, 2008.

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PERÍCIA PSICOLÓGICA E
PERÍCIA SOCIAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “VARA DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014

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COORDENAÇÃO

Ana Paula Hachich de Souza – Psicóloga Judiciária – Comarca de São Vicente


Edna Fernandes da Rocha Lima – Assistente Social Judiciário – Varas da Família e
das Sucessões do Foro Central

AUTORES

Ana Paula Hachich de Souza – Psicóloga Judiciária – Comarca de São Vicente


Bárbara Luise Wacker Otero – Assistente Social Judiciário - Comarca de Embu
Carla de Paula Machado Rehder - Assistente Social Judiciário – FR IV - Lapa
Carmen Sylvia B. P. Camargo – Psicóloga Judiciária – FR VII – Itaquera
Claudia Gavião Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapetininga
Cristina Benedetti Sampaio – Assistente Social Judiciário – Varas da Família e das
Sucessões do Foro Central
Douglas Oliveira Batista – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Bernardo
do Campo
Edivania Alves Leal – Assistente Social Judiciário – FR XI – Pinheiros
Edna Fernandes da Rocha Lima – Assistente Social Judiciário – Varas da Família e
das Sucessões do Foro Central
Egli Maria Micheski – Psicóloga Judiciária – Comarca de Registro
Elenir Nascimento de Carvalho – Psicóloga Judiciária - Comarca de Ubatuba
Eliana Aparecida D. Giacobino – Assistente Social Judiciário - Comarca de Botucatu
Luciane Pereira Salgado – Psicóloga Judiciária – Comarca de Itanhaém
Maria Aparecida Fachin – Psicóloga Judiciária – Comarca de Fernandópolis
Maria Elaine Martins – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Marilda C. S. Brisola – Assistente Social Judiciário - Comarca de São José dos
Campos
Patrícia A. Guimarães A. Santos – Assistente social Judiciário – Comarca de
Aparecida
Paula Silveira – Psicóloga Judiciária - Comarca de Santos
Renata Vieira de Oliveira – Psicóloga Judiciária - Comarca de Itapecerica da Serra
Salvador Loureiro Rebelo Júnior – Psicólogo Judiciário - Comarca de Barueri
Sandra Aparecida Donaire – Psicóloga Judiciária – Comarca de Jales
Selma Modesto Pereira – Assistente Social Judiciário - Comarca de Registro
Tereza Cristina Felix – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José dos
Campos
Wadson do Carmo Alonso – Psicólogo Judiciário – Comarca de Santo André

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PODER JUDICIÁRIO
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INTRODUÇÃO

Quando pesquisamos a palavra perito no dicionário, encontramos a indicação de adjetivo


que qualifica aquele que é: “2. Experiente, hábil, prático, sabedor, versado.” Consta ainda no
verbete a opção da palavra como substantivo masculino, definindo “1. Aquele que é prático ou
sabedor em determinados assuntos. 2. Aquele que é judicialmente nomeado para uma
avaliação, exame ou vistoria”11.
Em sua origem latina, a palavra indica “o que tem experiência, o que sabe fazer
determinada coisa”12.
Com a finalidade de voltarmos à base, que necessita ser adequadamente edificada,
retomamos o tema fundamental de nossa atuação em Varas de Família e Sucessões: a perícia.
Diversos podem ser os materiais e as estruturas de uma edificação e não há só um projeto
arquitetônico possível de ser utilizado. Da mesma forma, diversas são as práticas, metodologias
e instrumentos aplicados no exercício profissional do assistente social e do psicólogo no
contexto jurídico.
Em uma sociedade perpassada por mudanças constantes, as pessoas mais apropriadas
de seus direitos, cada vez mais buscam o sistema de Justiça para resolver seus conflitos
familiares, e consequentemente, vem aumentando a demanda dos assistentes sociais e
psicólogos chamados a serem peritos.
Entretanto, muitas vezes as respostas puramente jurídicas não atendem às
necessidades dos jurisdicionados e nas entrelinhas das folhas dos processos, está a
subjetividade das famílias, que necessita de um olhar amplo, multi e interdisciplinar, tendo, o
assistente social e o psicólogo, a oportunidade de fornecer subsídios para uma resposta mais
adequada, mais sensível e compreensiva com a realidade dos envolvidos. Ou seja, um olhar
para além de uma perícia definida como coleta e apresentação de dados sobre um objeto, já que
as famílias e pessoas envolvidas não são objetos. Muitas vezes, esta é a única vez em que as
pessoas terão a oportunidade de refletir sobre seus conflitos e de desenvolverem e praticarem
autonomia, sem novas ingerências do poder judiciário sobre suas vidas.

11
Em: http://michaelis.uol.com.br/. Acesso em 21 de outubro de 2014.
12
Em: http://origemdapalavra.com.br/site/pergunta/origem-da-palavra-perito/. Acesso em 21 de outubro de
2014.

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PODER JUDICIÁRIO
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Para embasar a reflexão sobre todas essas questões, o Grupo de Estudos Vara de
Família utilizou como disparadores para as discussões, que aliaram teoria e prática, os seguintes
materiais: livros, dissertação de mestrado, uma palestra sobre a temática com representantes
dos respectivos Conselhos Regionais, que abordou as questões éticas de cada profissão, e um
exercício analítico das experiências dos participantes, adquiridas ao longo dos anos de prática
nos Setores Técnicos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Em um universo plural que corresponde às várias Comarcas que compõem o
Tribunal de Justiça de São Paulo, registra-se uma diversidade de fazeres na prática
pericial, reflexos das relações peculiares que os técnicos estabelecem com a
instituição, para além de suas formações acadêmicas e formas de ser no mundo.
Convidamos a todos a nos acompanharem nessa discussão.

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PODER JUDICIÁRIO
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DESENVOLVIMENTO

Os assistentes sociais e psicólogos possuem reconhecimento e legitimidade


perante o Estado brasileiro e a sociedade através de leis de regulamentação 13 da
profissão, tendo seus próprios Conselhos Profissionais para disciplinar e fiscalizar o
exercício profissional14.
Tanto o Conselho Federal de Psicologia quanto o Conselho Federal de
Serviço Social estabeleceram Códigos de Ética para a atuação e, ao analisá-los de
forma ampla, entendem como eixos dos Projetos Ético-políticos, o fazer profissional
embasado na formação adequada, compromissado com o aprimoramento e
direcionado para a promoção dos princípios básicos de liberdade, igualdade e
integridade, pautado nos valores que embasam a Declaração dos Direitos Humanos.
No Código de Ética dos Assistentes Sociais, o Princípio V defende o
“posicionamento em favor da equidade social, que assegure universalidade de
acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como
sua gestão democrática” (CFESS, 1993), visando a uma sociedade mais justa, sem
arbitrariedades e autoritarismo, contra a dominação e exploração de classe, etnia e
gênero.
No Código de Ética dos Psicólogos, a ênfase está na orientação para uma
atuação crítica, que leve em consideração determinantes sócio-históricos e políticos;
destacando-se, também, a importância do aprimoramento contínuo, sempre pautado
na Psicologia como Ciência, na universalização do conhecimento produzido e dos
serviços e do exercício profissional com dignidade.

13
Lei nº 8.662, de 07/06/1993: Regulamenta a profissão do Assistente Social, e Lei nº 4.119 de
27/08/1962: Regulamenta a profissão de Psicólogo.
14
Lei nº 5.766, de 20/12/1971: Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia e
dá outras providências.

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PODER JUDICIÁRIO
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Refazendo o histórico da inserção da categoria no Tribunal de Justiça de São


Paulo, temos que os primeiros a serem incorporados foram os assistentes sociais
nos idos de 1948 (Fávero, 2005), e, cerca de três décadas depois, os psicólogos
também adentraram o território da justiça. Atualmente, cada Tribunal Estadual
mantém regulamentações próprias sobre a atuação do Assistente Social e do
Psicólogo dentro de sua jurisdição, mas, de forma geral, a presença e atribuições
gerais das categorias na Justiça brasileira são reguladas pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) e pelo Código de Processo Civil (CPC).
Ambas as profissões, quando atuando em Varas de Família e Sucessões, tem
legitimidade na função de auxiliar do juízo (art. 139 do CPC), reconhecidamente
como perito ou expert, das quais o Juízo recorre quando necessita de conhecimento
científico que vai além de seus saberes, restritos às ciências jurídicas.
A legitimidade dessas figuras profissionais também se deu através da
instalação dos Setores Técnicos que auxiliam a Justiça da Infância e Juventude.
Como na maioria das Comarcas não existem técnicos exclusivos das Varas de
Família e Sucessões, ressalta-se a importância dos artigos constantes na “Seção III
- Dos Serviços Auxiliares” do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 150. Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta
orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe
interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da
Juventude.
Art. 151. Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições
que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios
por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem
assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação,
encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata
subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre
manifestação do ponto de vista técnico.

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PODER JUDICIÁRIO
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As funções dessas categorias profissionais são também reforçadas pelas


Normas da Corregedoria, que estabelecem que a atuação deverá acontecer nos
casos afetos às Varas de Infância e Juventude, Varas de Família e Sucessões e
Varas de Violência Doméstica (Seção XLIX -Dos Serviços Auxiliares - Subseção I -
Do Serviço Social e de Psicologia, Tomo 1, NSCGJ, 2013).
Levantamentos efetuados pelo CFESS/CRESS (Atuação de Assistentes
Sociais no Sociojurídico) apontam para as seguintes atribuições dos Assistentes
Sociais funcionários do judiciário, em Varas de Família: estudo social/perícia social;
atendimento e orientação ao público; acompanhamento a visitas de pais aos filhos,
mediante pedido judicial; participação em audiências, de modo a emitir opiniões
técnicas.
Dentre as atribuições, os termos estudo social e perícia social são frequentes
e, de acordo com os dados coletados, o “estudo social” aparece como atividade
fundamental do trabalho do assistente social no Poder Judiciário. Contudo, em
muitas situações, o estudo social se confunde com perícia social e, guardadas as
devidas semelhanças, não são sinônimos.
Mioto (2001) definiu a perícia social como um processo por meio do qual o
assistente social realiza o exame de situações sociais com a finalidade de emitir um
parecer sobre a mesma. O parecer nada mais é do que a opinião técnica sobre uma
determinada situação social emitida por um assistente social ou por uma equipe de
assistentes sociais.
A autora aponta que a perícia social se realiza por meio do estudo social,
entendido como a utilização articulada de vários instrumentos (entrevistas,
observação, visita domiciliar e análise de documentos) que permitam a abordagem
dos sujeitos envolvidos na situação.
Fávero (2003) chama a atenção para a dimensão da perícia social no
contexto jurídico, onde tem a “finalidade de subsidiar uma decisão, normalmente
judicial” (p. 43-44).

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PODER JUDICIÁRIO
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Conforme explana Suannes (2008), a Vara de Família e Sucessões cuida das


relações jurídicas dentro da família e está submetida aos Códigos Civil e de
Processo Civil. O conflito, chamado de lide, consiste em divergências sobre os
interesses dos envolvidos, que são chamados de requerente – aquele que requer
algo – e requerido – aquele que impede o outro de obter o que considera seu direito.
A autora, com vasta experiência em Varas de Família e Sucessões, aponta que a
decisão judicial baseia-se em provas, que podem ser documentais, testemunhais e
periciais e, quando requer conhecimento técnico-científico, o Processo Civil prevê a
nomeação de um perito, conforme já exposto.
Em Varas de Família e Sucessões, as referências para atuação podem ser,
portanto, encontradas no Código de Processo Civil. O Art. 145 dispõe que os peritos
devem ter nível universitário, estar inscritos em seu órgão de classe e comprovar
conhecimento sobre o que irão opinar mediante certidão do referido órgão; no
entanto, caso não haja profissionais com tal comprovação na localidade, a
nomeação do perito ficará à livre escolha do juiz. Dispõe a legislação que, para ser
designado psicólogo perito, não necessita o profissional integrar o quadro dos
serventuários da justiça, onde ingressa por meio de concurso público, com um rígido
processo de seleção, tendo sua prática normatizada pelas normas que regem o
funcionalismo público. Essas nomeações externas podem acontecer sob a alegação,
por parte dos Juízes, de que os peritos serventuários estão extremamente
sobrecarregados e, assim, são designados peritos particulares para aqueles casos
em que as partes conseguem honrar com os custos.
Nos Arts. 420, 421 e 429 do Código de Processo Civil fica elucidado que a prova pericial
será um exame, vistoria ou avaliação que resultará em um laudo, e que, para o desempenho da
função, podem o perito e os assistentes técnicos utilizarem-se de todos os meios necessários,
ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder de
parte ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com plantas, desenhos, fotografias e
outras quaisquer peças.
O Conselho de Serviço Social não possui uma legislação que normatiza a estrutura e o
conteúdo dos documentos escritos, mas o CFESS publicou neste ano de 2014 o manual
227
PODER JUDICIÁRIO
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“Atuação de assistentes sociais no Sociojurídico – subsídios para reflexão”, no qual são feitas
orientações sobre a realização da perícia social.
No caso do psicólogo, reunidas as informações necessárias para a realização do estudo
pericial, ele produzirá um laudo, também chamado de relatório, que, segundo a Resolução CFP
nº 007/2003, é o produto decorrente de uma avaliação psicológica, na qual é permitido o uso de
qualquer técnica reconhecidamente validada pela Psicologia, se atendo ao que é expressamente
permitido e proibido de acordo com as legislações durante o trabalho pericial.
Os psicólogos devem ficar atentos quanto ao uso de testes, visto que, de acordo com o
disposto na Lei nº 4.119/62, no § 1º do Art. 13, os resultados e materiais não devem ser
expostos a outros profissionais, mesmo que hierarquicamente superiores. Ainda, o profissional
deve se ater quanto à real necessidade de inserir produções espontâneas ou demais materiais
em seu laudo, pois isso pode expor a intimidade das pessoas atendidas, já que diversos agentes
têm acesso ao laudo quando juntado aos autos. Dispõe o Código de Ética Profissional:
Art. 6º - O psicólogo, no relacionamento com profissionais não
psicólogos:
b. Compartilhará somente informações relevantes para qualificar
o serviço prestado, resguardando o caráter confidencial das
comunicações, assinalando a responsabilidade, de quem as receber,
de preservar o sigilo.

Outro ponto abordado nas discussões do grupo diz respeito à construção do


laudo de forma interdisciplinar. Observou-se que em várias comarcas essa prática é
frequente.
No tocante ao Serviço Social, há a Resolução do CFESS nº 557/2009, que
versa sobre o trabalho interdisciplinar, norteando como dever do assistente social
“(...) destacar a sua área de conhecimento separadamente, delimitar o âmbito de
sua atuação, seu objeto, instrumentos utilizados, análise social e outros
componentes que devem estar contemplados na opinião técnica”. (Art. 4°, § 1º).
O CFP indica, na Resolução nº 017/2012, que o psicólogo perito, ao atuar em
equipe multiprofissional, deve preservar suas especificidades e seus limites de
intervenção, estabelecendo uma relação de colaboração e com respeito às
atribuições privativas de cada categoria.

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PODER JUDICIÁRIO
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Para a realização da perícia, é importante também levar em consideração os


motivos que podem tornar o perito suspenso ou impedido para atuar no caso em que
foi designado. Os artigos 134 e 135 do Código de Processo Civil tratam dos
impedimentos e suspeições que recaem sobre os juízes e, por consequência, ao
perito por ele nomeado.
Na atuação do psicólogo, qualquer trabalho que violar seu código de ética e
demais legislações pertinentes consiste motivo suficiente para que se declare
impedido, segundo disposto no Código de Ética Profissional:
Art. 2º - Ao psicólogo é vedado:
K - Ser perito, avaliador ou parecerista em situações nas quais seus
vínculos pessoais ou profissionais, atuais ou anteriores, possam
afetar a qualidade do trabalho a ser realizado ou a fidelidade aos
resultados da avaliação.

Ainda com base no Código de Processo Civil, em seu Art. 421, temos que as
partes envolvidas no processo podem indicar, em até cinco dias úteis, um assistente
técnico, que poderá elaborar quesitos a serem respondidos pelo perito designado
pelo juiz, e, ao final do trabalho deste profissional, elaborará uma manifestação
crítica a respeito do laudo. Ainda de acordo com a referida legislação, os motivos de
suspeição aplicados ao perito não cabem ao assistente técnico, pois este é da
confiança da parte:
Art. 422. O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que Ihe foi
cometido, independentemente de termo de compromisso. Os
assistentes técnicos são de confiança da parte, não sujeitos a
impedimento ou suspeição.

Não obstante, importante ressaltar que, o psicólogo ou assistente social ao


atuar na função de assistente técnico, também deve seguir o disposto na legislação
específica da profissão.

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Visando a normatizar e orientar a categoria profissional quanto ao trabalho do


Perito e do Assistente Técnico, o Conselho Federal de Psicologia emitiu a
Resolução nº 08/2010. A resolução, que dá destaque aos princípios éticos
profissionais e demais legislações, ressalta que o papel do perito deve ser imparcial,
enquanto o assistente técnico é de confiança de uma das partes. Quanto à relação
entre os profissionais, dispõe o Art. 2º:
Art. 2º: [...]
Parágrafo Único - A relação entre os profissionais deve se pautar no
respeito e colaboração, cada qual exercendo suas competências,
podendo o assistente técnico formular quesitos ao psicólogo perito.

No caso do assistente técnico da área do serviço social, o CFESS na


publicação “Atuação de assistentes sociais no Sociojurídico” pontua que
[...] a figura do/a assistente técnico é a expressão máxima de que
não existe uma verdade absoluta e inquestionável – tampouco
aquela produzida pela perícia. A depender dos interesses em
disputa, do referencial teórico, diferentes narrativas e conclusões
podem ser produzidas sobre um determinado fato” (2014, p. 49)

Assim, o assistente técnico poderá se manifestar em relação ao laudo do


perito judicial, todavia sem desqualificar o trabalho do perito judicial, uma vez que é
obrigado a respeitar a legislação profissional.
Compreende-se ainda que o perito judicial pode elucidar o assistente técnico
que se mostra pouco esclarecido quanto às questões legais e às especificidades da
atuação nesse contexto.
Entende-se a função do assistente técnico como a de um avaliador do
trabalho perito. É incabível que peritos e assistentes técnicos reproduzam a
dinâmica adversarial dos contraditórios. A relação entre ambos deve ser de
colaboração, pautada na ética e no conhecimento técnico, em que vários olhares
devem somar à compreensão do fenômeno em estudo.
230
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

De acordo com o Código de Processo Civil, o assistente técnico pode estar


presente no momento da colheita da prova, mas não deve interferir/intervir. Tais
práticas são possíveis em perícias das Ciências Exatas, tais como a engenharia,
química, contabilidade, entre outras, a prática é possível. Nas perícias em ciências
que têm a relação humana como foco de investigação, como a Psicologia e o
Serviço Social, a presença de uma pessoa a mais no momento da entrevista pode
constranger o periciando, principalmente se esta pessoa for da parte contrária.
Ressalta-se que, no intuito de evitar tal prática e estabelecer demais diretrizes sobre
o trabalho, o Conselho Federal de Psicologia emitiu as Resoluções nº 08/2010 e nº
17/2012, de suma importância para os psicólogos. Ambas ressaltam a autonomia
técnico-científica e a primeira veda expressamente a presença dos profissionais
durante o procedimento metodológico um do outro:
Resolução CFP nº 08/2010
Art. 1º - O Psicólogo Perito e o psicólogo assistente técnico devem
evitar qualquer tipo de interferência durante a avaliação que possa
prejudicar o princípio da autonomia teórico-técnica e ético-
profissional, e que possa constranger o periciando durante o
atendimento.
Art. 2º - O psicólogo assistente técnico não deve estar presente
durante a realização dos procedimentos metodológicos que norteiam
o atendimento do psicólogo perito e vice-versa, para que não haja
interferência na dinâmica e qualidade do serviço realizado.

Resolução CFP nº 17/2012


Art. 2º - O Psicólogo Perito deve evitar qualquer tipo de interferência
durante a avaliação que possa prejudicar o princípio da autonomia
teórico-técnica e ético-profissional, e que possa constranger o
periciando durante o atendimento.
Art.3º - Conforme a especificidade de cada situação, o trabalho
pericial poderá contemplar observações, entrevistas, visitas

231
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

domiciliares e institucionais, aplicação de testes psicológicos,


utilização de recursos lúdicos e outros instrumentos, métodos e
técnicas reconhecidas pela ciência psicológica, garantindo como
princípio fundamental o bem-estar de todos os sujeitos envolvidos.

O Código de Processo Civil também não proíbe a participação dos advogados


durante as diligências periciais, dentre as quais o momento das entrevistas.
Contudo, o Código de Ética do Psicólogo impõe que é dever do profissional zelar
pelo bem-estar da pessoa atendida, garantindo sua liberdade de expressão, e
defender a autonomia técnico-científica, não permitindo que demandas institucionais
afetem a qualidade do serviço prestado.
Shine (2010) aponta que, embora o intercâmbio entre os peritos psicólogos e
os advogados seja raro no contexto brasileiro, exceto quando da contratação de
assistentes técnicos, estes podem representar para os envolvidos no processo uma
segurança frente à situação desconhecida e ansiogênica da perícia.
Diante de requerimentos para que advogados e assistentes técnicos
acompanhem os trabalhos periciais ou de determinações judiciais para utilização de
testes ou diligências, cabe aos profissionais apresentarem argumentos
fundamentados e legais para assegurar sua autonomia.
Recentemente veio a público a resposta positiva da Corregedoria Geral de
Justiça do TJ-SP ao pleito da AASPTJ-SP de suspensão da Ordem de Serviço nº
01/2014 expedida pelo Juízo da Infância e Juventude de Bauru, que autorizava
advogados, defensores públicos e promotores de justiça a acompanharem as
diligências efetuadas pelo Setor Técnico daquela comarca.
Outro aspecto discutido no grupo diz respeito à cobertura de custos dos
técnicos nos processos de Vara de Família e Sucessões onde não haja gratuidade
judiciária. Conforme o Art. 806 das Normas da Corregedoria, os custos devem ser
depositados para o ressarcimento de gastos com as despesas do técnico e
transporte, devendo haver justificativas para isso.

232
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Art. 806. Nos processos afetos à Família e Sucessões, ressalvados


os casos de assistência judiciária, deverá ser determinado pelo juiz
da causa o depósito de valor de 10 (dez) cotas de ressarcimento das
despesas de condução dos oficiais de justiça, vigentes na época,
para a cobertura das despesas e transporte do técnico, desde que
sejam suficientemente justificadas. O requerente do laudo, ou o
autor, no caso de determinação de ofício ou a requerimento do
Ministério Público, será intimado a depositar esse valor em conta
com atualização monetária em estabelecimento competente (Banco
do Brasil S.A.) (NSCGJ, 2013).

Consta no parágrafo 1º do referido artigo que “O juiz do feito poderá fixar valor
superior ao limite constante no caput deste artigo, considerando a peculiaridade de
cada caso concreto” e, desta forma, é possível solicitar valor maior ao fixado acima,
desde que seja justificado e fundamentado.
Entre os participantes deste grupo de estudos, alguns psicólogos e
assistentes sociais informaram que fazem o requerimento de diligências como
parâmetros do valor solicitado. Verificou-se que muitos técnicos não fazem uso
desta possibilidade.
Outra atividade relacionada à atuação no judiciário é a participação dos
assistentes sociais e psicólogos em audiências. Expõe o Código de Processo Civil
que o perito pode ser convocado para audiência caso seja requerido pela parte,
desde que intimado 5 dias antes da data:
Art. 435. A parte, que desejar esclarecimento do perito e do
assistente técnico, requererá ao juiz que mande intimá-lo a
comparecer à audiência, formulando desde logo as perguntas, sob
forma de quesitos.
Parágrafo único. O perito e o assistente técnico só estarão obrigados
a prestar os esclarecimentos a que se refere este artigo, quando
intimados 5 (cinco) dias antes da audiência.
233
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Isto significa que o juízo pode convocá-lo a qualquer momento em que


necessitar de esclarecimentos. Neste diapasão, foi discutido que, embora o parecer
jurídico do CFESS nº 23/02 e a Resolução CFESS n° 559/2009 (esta última
suspensa devido a ação civil pública), vedem a participação do perito como
testemunha, a extinta Coordenadoria da Família do TJ-SP publicou parecer dizendo
que é passível o perito ser convocado na condição de testemunha.
Cezar-Ferreira (2007) defende a posição de que
[...] a presença de um especialista em conflitos
emocionais/relacionais de família certamente traria um acréscimo
àquelas possibilidades. Além de ajudar os magistrados a esvaziar a
mente de projeções, trar-lhe-ia um outro olhar da problemática e uma
interpretação das falas, que poderia subsidiá-lo no encaminhamento
de acordos ou na tomada de decisões. (p. 136)

Nesse sentido, é importante que o profissional comunique que prestará


informações na condição de perito, esclarecendo possíveis pontos controvertidos do
laudo já apresentado.
Com relação à realização da perícia psicológica, importante ressaltar que,
conforme expõe Shine (2010), citando Jurema Cunha e Lídia Castro, a perícia difere
da atuação no contexto clínico, pois exige que se leve em conta a realidade objetiva
e visa a subsidiar uma decisão judicial, podendo, inclusive, provocar mudanças
sociais. Já o psicodiagnóstico clínico geralmente é procurado como uma forma de
responder às angústias das pessoas, partindo da realidade subjetiva dos avaliados.
Suanes (2008) aponta que a perícia psicológica realizada no contexto jurídico
pode ser uma oportunidade de escuta. Acrescenta que diversos pesquisadores e
estudiosos da Psicologia no âmbito do direito, como Foucault, Marlene Guirado,
Leila Brito, Dayse Franco, dentre outros, vêm questionando a maneira não
interventiva das avaliações psicológicas e defendem um modelo interventivo e

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

interdisciplinar porque entendem que os conflitos trazidos pelas famílias,


principalmente os da Vara de Família, já existiam antes de chegarem ao judiciário.
Suanes refere que uma determinação de estudo psicológico demanda análise e
compreensão, em vez de julgamento, e que a avaliação pode ser utilizada para que
os envolvidos participem de forma mais ativa das decisões sobre duas vidas.
Caffé (2003), por sua vez, ressalta que a escuta analítica também acontece
sempre numa relação entre as pessoas. A estudiosa aponta algumas dificuldades,
como a abstinência do analista apregoada por Freud, o que, segundo ela, torna-se
difícil de aplicar no contexto judiciário, considerando-se que, na qualidade de
assistente do juiz, o perito herdaria o papel de julgador, o que induziria as projeções
do periciando em relação ao técnico perito e, consequentemente, faria com que o
perito assumisse um lugar transferencial normativo e sancionador.
A autora ressalta a importância de que o psicólogo evite permanecer no lugar
normatizador e sancionador, para propiciar condições transferenciais favoráveis à
realização de um bom trabalho. Para tal, ela indica que, apesar de demanda do
estudo ser do juiz, existe, também, uma demanda familiar, uma vez que houve uma
procura de uma intervenção judicial para seus conflitos. Essa demanda inconsciente
viabilizaria a construção de uma escuta analítica a partir da abertura de um espaço
para a fala deste conflito, não do ponto de vista jurídico, mas da compreensão do
discurso familiar de forma subjetiva, que pode levar ao início de um processo de
elaboração do conflito, proporcionando à família a possibilidade de diálogo.
Dal Pizzol (2006), sobre o perito social, o conciliador e o mediador familiar,
expõe que o perito social não intervém, cabendo-lhe, tão somente, observar, colher
dados. Todavia, segundo o autor, “ao perceber-se a possibilidade de acordo ou
necessidade de intervenção, o perito deve demonstrar tais considerações no final do
trabalho” (p.37).
Acrescenta que alguns aspectos são essenciais na perícia social: a história
familiar e do relacionamento conjugal, a dinâmica familiar, as motivações que
desencadearam o conflito, a situação socioeconômica dos envolvidos, aspectos de
235
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

saúde e vida escolar da criança em tela e o contexto em que convive o casal em


conflito, podendo abranger parentes ou pessoas significativas que participam da
dinâmica do conflito, avaliando as relações entre eles.
No contexto jurídico, é importante que o psicólogo esteja atento a diversas
questões. Uma delas é o demandante do serviço. A avaliação psicológica pode ter
sido solicitada pelo advogado da pessoa a ser atendida. Shine (2010) alerta que o
profissional deve esclarecer ao usuário que as informações e conclusões
psicológicas advindas da avaliação poderão ser utilizadas pelo advogado no
processo judicial. Assim, antes de realizar a avaliação, é importante que ele, no
contato com o advogado, elucide a que se destinarão os conhecimentos
psicológicos obtidos, a fim de não incorrer em falta ética.
O autor indica uma reflexão prévia sobre quem é o cliente da avaliação, se
são as pessoas a serem avaliadas ou o juiz. Shine (2010) cita Miranda Júnior, para
quem o cliente é o sujeito atendido. Já o próprio autor defende que o cliente é o Juiz
(no sentido de quem demanda o serviço) e a criança é o objeto de atenção
privilegiado. Para ele, focar a avaliação tendo a criança como cliente assemelha-se
ao modelo de atendimento psicoterapêutico e pode levar o profissional a não
conseguir avaliar que lugar a criança ocupa nessa disputa.
Alguns autores de referencial psicanalítico direcionam a avaliação psicológica
para a família, sendo as partes denominadas de usuários. Outros pensam que a
avaliação pode ser uma ferramenta de devolução à família do poder de decidir sobre
sua organização, mostrando a seus membros a própria responsabilidade na
manutenção do litígio e a competência em solucioná-lo.
Quando a solução é delegada ao Poder Judiciário, é possível que a
decretação da sentença não solucione o conflito; é comum que os grupos familiares
retornem com outras demandas processuais ou tragam novos fatos agravantes,
levando à cronificação do litígio. A busca pela justiça pode, portanto, ser lida como
um pedido de ajuda. Por isso, é de extrema importância que a condução da

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PODER JUDICIÁRIO
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avaliação psicológica e avaliação social no contexto jurídico se deem de forma


técnica e ética, para que os laudos produzidos não fomentem ainda mais o litígio.
Sobre a polêmica se o perito da psicologia e o perito do serviço social devem
atuar de forma interventiva, levantou-se nas discussões do grupo posicionamentos a
favor e contra, inclusive realizou-se reflexões sobre o que se entende como
intervenção.
Alguns psicólogos pontuaram que atuam de forma interventiva, utilizando o
momento da perícia para proceder a orientações e encaminhamentos que poderia
auxiliar promoção da autonomia das pessoas e da família.
No caso da perícia social, demonstra-se mais consensual entre os assistentes
sociais que o trabalho como perito também é interventivo, visto que o Serviço Social
é de natureza interventiva, explicitada no Código de Ética da categoria, como um
dos princípios fundamentais, a promoção da emancipação dos indivíduos sociais.
O assistente social tem como norteador, na realização de seu trabalho,
fundamentos de análise crítica da realidade, em consideração a fatores sócio-
históricos, políticos, culturais e econômicos do indivíduo ou família, de acordo com o
referencial teórico-metodológico e ético-político da profissão e utilização de
instrumentais técnico-operativos, sempre visando à efetivação e garantia de direitos
sociais, além de oferecer subsídios ao magistrado.
Cabe a reflexão de que tanto a perícia social quanto a psicológica abrangem
um “momento” da vida das pessoas envolvidas nas ações judiciais e o resultado
dessa avaliação, o laudo, perpetuar-se-á nos autos como uma verdade. Por isso,
cabe ao profissional ressaltar o caráter mutável da vida das pessoas e que as
situações vivenciadas pelos sujeitos envolvidos são passíveis de mudanças,
conforme ressaltado por Dal Pizzol (2006), para quem é importante que o parecer
seja situado sob o aspecto da temporalidade, por serem as relações interpessoais
dinâmicas. A mesma orientação é encontrada na Resolução do CFP nº 007/2003.
Shine (2010) aponta a diversidade de situações encontradas no contexto
jurídico. Quando o serviço for solicitado por um advogado para avaliar somente uma
237
PODER JUDICIÁRIO
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das partes, há o risco de que não seja esclarecida a questão pertinente ao bem-
estar das crianças e do grupo familiar, visto que o serviço pode ser utilizado de
forma parcial, visando a atender apenas aos interesses do contratante.
A situação é diferente quando se atua como perito nomeado pelo Juiz, pois
geralmente o profissional tem a possibilidade de avaliar todos os membros da família
com imparcialidade. Nas situações em que não for possível avaliar todos os
envolvidos, é importante que o profissional enfatize o caráter parcial de seu estudo.
Os assistentes técnicos também podem optar pelo trabalho imparcial, mas,
neste arranjo, é necessário que os advogados e respectivos clientes se alinhem
nesta postura cooperativa para que todos tenham a oportunidade de se expressar e
ser tratados com equidade.
Shine (2010) ressalta que, embora os profissionais que atuam no judiciário
estejam submetidos a uma carga excessiva de trabalho, é importante que procedam
a uma entrevista devolutiva ao cliente, conforme disposto no Código de Ética
Profissional do Psicólogo.
Com relação aos instrumentos e metodologias utilizadas para a realização da
perícia, o autor refere que, em sua prática profissional, se utiliza de contatos
telefônicos com os advogados para a convocação das partes, avaliando como um
processo mais rápido e econômico. Todavia, levantou-se entre os participantes
deste grupo, que a intimação via cartório é a estratégia mais usual no chamamento
das partes pelos profissionais da psicologia e por alguns assistentes sociais. Outros
assistentes sociais iniciam seus trabalhos realizando a visita domiciliar, agendada ou
não.
Outro ponto abordado diz respeito à prévia leitura crítica dos autos do
processo, considerada de forma uníssona pelo grupo como fundamental para o
exercício pericial, com a finalidade de mapear a dinâmica processual e subsidiar a
estratégia de avaliação.
Já quando o assunto é a entrevista – psicológica ou social, é esperado que o
trabalho seja conduzido por apenas um profissional, o que é mais comum no
238
PODER JUDICIÁRIO
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enquadre pericial; ainda que haja registro de co-peritagem, tradicionalmente o lugar


pericial é ocupado por uma só pessoa.
Surge, então, o questionamento sobre quem são os atores envolvidos na
entrevista. Considerando que se trabalha com uma família em litigio, pressupõe-se,
no mínimo, o envolvimento de três atores, além do perito: o requerente, o requerido
e o objeto de disputa. Há quem considere imprescindível estender o contato para
além do círculo familiar, incluindo outras pessoas de importância significativa numa
compreensão sistêmica. Cezar-Ferreira (2007) refere que as perícias mais modernas
“ampliaram e transformaram as possibilidades de avaliação, não rejeitando a
investigação do inconsciente individual, mas colocando o foco nas relações
familiares do sistema em estudo” (p. 134).
Shine (2010) cita Felipe (1997), que considera ponto pacífico a necessidade
de se entrar em contato com os companheiros atuais que vão desempenhar uma
função de suporte ou de exercício de cuidados e orientações típicas da função
parental.
Segundo o referido autor, a entrevista psicológica em situação bipessoal, isto
é, perito e periciando, é o procedimento técnico mais utilizado em perícias.
Entretanto, sabemos que há uma diversidade de arranjos, como a entrevista
conjunta dos envolvidos, das crianças em conjunto (em casos de mais de um filho),
de cada uma das partes em conjunto com o(s) filho(s).
Alguns autores entendem que as sessões realizadas em conjunto tenderiam a
exacerbar a polaridade entre as partes, em que cada um tentaria atrair o perito para
formar uma aliança consigo.
Em contrapartida, as sessões realizadas em conjunto favoreceriam a
observação relacional, os registros de como um se relaciona na presença do outro.
Quanto à modalidade de entrevista, Shine (2010) cita Suannes (1999), que
destaca a utilização da entrevista semidirigida, o que daria margem para que o
interlocutor expusesse com maior liberdade o conteúdo de seu pensamento, ao
mesmo tempo em que revela a dinâmica do seu comportamento na interação.
239
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Quanto ao tempo das entrevistas, Shine (2010) aponta uma tendência


dominante de um maior contato com os adultos do que com as crianças, baseada na
concepção de que o litígio em família é originário e subsidiário dos problemas de
separação do par conjugal, além de considerar que o enfoque nos adultos minimiza
a criança no conflito.
Finalizada a avaliação, deve ser elaborado o laudo. Uma das questões mais
controversas da produção desse documento é o seu caráter conclusivo,
entendendo-se conclusivo no sentido de ir ao mérito da ação em julgamento.
Não há consenso entre os autores, como também entre os participantes do
Grupo de Estudos, ou seja, há quem se posicione a favor de uma colocação ativa do
profissional e há quem seja a favor de que o posicionamento restrinja-se às esferas
da Psicologia e do Serviço Social.
Dal Pizzol (2006) defende a ideia de que, como os peritos são assessores do
magistrado, a manifestação técnica deve ser clara e capaz de contribuir para a
decisão judicial.
Shine (2010) cita Theodoro Júnior. (2002), para quem a avaliação do perito
não deve responder à questão final do julgamento, já que o perito é auxiliar da
justiça e não substituto do juiz, sendo o laudo não uma sentença, e sim uma fonte de
informação ao magistrado. O autor cita também Rovinski (1998), que alerta para o
perigo de se incorrer em um julgamento, competência do juiz.
Cezar-Ferreira (2007), em pesquisa realizada com juízes sobre recursos
psicológicos em Varas de Família e Sucessões, colheu, a partir da análise do
discurso de juízes, opiniões sobre os laudos:
Ambos os magistrados deixaram claro que a decisão final é deles e
que, portanto, a responsabilidade é sua. Nesse sentido lembraram que
o juiz é que tem que saber o que interessa a ele e que o perito deve
ater-se a perícia e não pretender tomar o lugar do magistrado, e que
certas afirmações podem ser muito graves e alterar profundamente a
vida das pessoas e que, depois, a responsabilidade pela decisão terá

240
PODER JUDICIÁRIO
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sido do juiz. [...] Outros juízes referem-se ao laudo pericial de forma


mais amigável, lembrando que uma deficiência em relação a esse
recurso é que só chega até o diagnóstico e uma deficiência da
utilização desse recurso, no âmbito da Justiça, é haver prazo. [...]
Chama a atenção, no entanto, que mesmo aqueles que fazem críticas
e têm restrições acabam por utilizar esse recurso, em determinados
casos, por ser o que existe na Lei [...] (p. 133).
.
A despeito de posicionamentos dos operadores do Direito, o Conselho
Federal de Psicologia, por meio da Resolução nº 008/2010, estabelece, em seu Art.
7º, que o psicólogo deve reconhecer os limites legais de sua atuação profissional,
sem adentrar nas decisões, que são exclusivas às atribuições dos magistrados.
Cezar-Ferreira (2007) alerta que
O trabalho do psicólogo é de extrema delicadeza e amplitude. Cabe
a ele, na interface com outras ciências e profissões, mostrar as
possibilidades de que sua especialidade dispõe, como cabe a ele,
em relação a si mesmo no trato com a Justiça, cuidar para não
assumir postura de operador jurídico, o que, no convívio com os
profissionais do Direito e no entrelaçamento dos atos processuais,
não seria difícil ocorrer. (p. 135)

No grupo, discutiu-se que devemos assumir nossas limitações, pois se


entende que trabalhamos com recortes da realidade. Além das questões próprias
das profissões, deparamo-nos com as dificuldades quanto às condições de trabalho,
variáveis de acordo com o Fórum – espaços físicos inadequados, sem privacidade,
não garantindo o sigilo profissional. Em nosso grupo, com participantes de várias
Comarcas do Estado de São Paulo, elencou-se: insuficiências nas estruturas físicas,
material e relacional entre equipes e outros operadores do direito, pressões
psicológicas em relação à hierarquia, dificuldades ao acesso de treinamento e
capacitação e muitas outras.
241
PODER JUDICIÁRIO
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CONCLUSÃO

Ao longo do ano de 2014, foram abordados em nosso Grupo de Estudos


temas fundamentais que envolvem a legislação e a prática cotidiana dos assistentes
sociais e psicólogos que trabalham no contexto do Judiciário. Tentamos especificar
algumas situações típicas das Varas de Família, como a atuação dos assistentes
técnicos e imposições metodológicas.
Os assistentes sociais e psicólogos que atuam no âmbito da interface entre a
Justiça e seu campo de formação profissional têm a obrigação de conhecer e zelar
pela legislação concernente, apropriando-se dos parâmetros legais e conscientes
das potencialidades e limitações de sua atuação dentro da instituição jurídica.
Conhecer as resoluções dos Conselhos Profissionais e orientar o trabalho segundo
os Códigos de Ética são uma forma de dar homogeneidade e qualificar as
profissões, promovendo o devido reconhecimento desses grupos profissionais.
Outra face necessária para a qualificação enquanto grupo é o aprimoramento
da competência técnica, aprendida e desenvolvida com a integração entre o estudo
e o cotidiano de desafios do trabalho. Portanto, o fazer técnico dentro de parâmetros
legalmente éticos é o que garante às pessoas atendidas um serviço de qualidade,
pautado por princípios baseados na garantia dos direitos humanos.
Assim, conclui o grupo, em sua maioria, pela importância de um trabalho que
também se mostre interventivo, o que acontece pela própria natureza das atuações
profissionais. A realização da perícia perpassa nossa própria subjetividade - a
escuta, a escolha das perguntas e o relatório constituem por si próprios uma
intervenção, podendo levar a reflexões que auxiliem na construção de uma solução
que beneficie o grupo familiar no tocante ao conflito. Tais procedimentos devem,
entretanto, sempre respeitar a imparcialidade e a ética profissional.
Por fim, a conclusão de que é necessário ao trabalho que realizamos o
acompanhamento das mudanças que ocorrem na sociedade, primando pela
atualização e constante capacitação profissional, a fim de oferecermos aos usuários
242
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

da justiça um serviço de qualidade, que promova a autonomia dos grupos familiares,


com um olhar crítico sobre a judicialização da vida.

243
PODER JUDICIÁRIO
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244
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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245
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER:


UMA COSTURA NECESSÁRIA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
246
PODER JUDICIÁRIO
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COORDENADORAS
Lucia Helena Rodrigues Zanetta - Psicóloga Judiciária - Vara do Foro Central de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Maria de Fátima de Jesus Agostinho Ferreira - Assistente Social Judiciário - Vara
do Foro Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

AUTORES
Alba Tereza Sousa de Macedo - Assistente Social Judiciário - Vara da Região Leste
2 de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Aline da Silva Fernandes - Assistente Social Judiciário - Vara da Região Leste 2 de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Ana Luísa de Marsillac Melsert - Psicóloga Judiciária - Vara da Região Leste 2 de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Caroline Bonello Valadão - Assistente Social Judiciário - Comarca de Piracicaba
Fátima de Almeida Freitas - Assistente Social Judiciário - Vara da Região Leste 2
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Frederico Dentello - Psicólogo Judiciário - Vara da Região Sul 2 de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher
Juliana Fernandes Iuan - Psicóloga Judiciária - FR VII – Itaquera
Katia Ackermann - Psicóloga Judiciária - Vara da Região Oeste de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher
Ianara Kelly de Oliveira Paula - Psicóloga Judiciária - Vara da Região Leste 2 de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Juliana Fernandes Iuan - Psicóloga Judiciária - FR VII - Itaquera
Kherley Dacylane Val Lima - Psicóloga Judiciária - Comarca de Fernandópolis
Lucimara de Souza - Psicóloga Judiciária - Vara da Região Norte de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher
Lucinete Rodrigues de Santana - Assistente Social Judiciário - Vara da Região
Norte de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
247
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Michelle Fonseca LIngiardi - Psicóloga Judiciária - Vara da Região Sul 2 de


Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Rita de Cassia Nunes de Oliveira - Psicóloga Judiciária - Vara da Região Leste 1 de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Silvia Vilela da Costa - Assistente Social Judiciário - Comarca de Santa Fé do Sul
Tais Monteiro Sousa - Psicóloga Judiciária - FR VII – Itaquera
Viviane Costa Carvalho Marques - Assistente Social Judiciário - Vara da Região
Oeste de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

248
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

“Nós vos pedimos com insistência


Nunca digam que isso é natural.
Diante dos acontecimentos de cada dia
Numa época em que reina a confusão
Em que corre o sangue;
Em que ordena-se a desordem;
Em que o arbítrio tem força de lei;
Em que a humanidade desumaniza-se
Nunca digam, nunca – isso é natural
A fim de que nada passe por imutável”.
(Bertold Brecht)

249
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

Este artigo é o resultado do trabalho do Grupo de Estudos de Violência


Doméstica, realizado durante o ano de 2014, com os profissionais das equipes
técnicas das Varas de Violência Doméstica da Capital, da Vara de Infância e
Juventude e da Vara de Família e Sucessões das regiões Norte, Leste I e II, Sul II e
Oeste e das Comarcas de Fernandópolis, Itaquera e Santa Fé do Sul.
Importante situar que este grupo se organizou tendo em vista a necessidade
da troca de informações e experiências entre Psicólogos e Assistentes Sociais que
estão lotados, majoritariamente, nas Varas de Violência Doméstica da
Capital/Interior.
Considerando que muitos profissionais estavam recém-chegados e foram, a
partir da realização das tarefas, se apropriando do trabalho, este grupo de estudo
se configurou importante ponto de apoio às dúvidas e angústias, como também fonte
de indicações teóricas para dar o suporte técnico necessário ao nosso fazer
profissional. Cabe salientar que houve a possibilidade de realizarmos uma reflexão
sobre a diversidade existente nos locais e condições atuais de trabalho.
Os métodos de estudos utilizados no decorrer do ano foram: leitura,
discussão de textos, exposição e debate a respeito de filmes, e um relato de
experiência com o psicólogo que apresentou a forma de atuação da ONG Coletivo
Feminista Sexualidade e Saúde com os homens envolvidos em processos.
A troca de experiências é importante, porém o grupo levantou a necessidade
de buscar embasamento teórico para a realização do trabalho, além daquele que
cada profissional já traz. Neste sentido, e tendo como objeto de trabalho nas Varas
de Violência Doméstica as mulheres em situação de violência, alguns temas se
mostraram centrais para uma compreensão mais aprofundada dos elementos que
norteiam esta temática.

250
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Estudamos a Lei Maria da Penha, textos sobre a Proteção Internacional dos


Direitos Humanos das Mulheres; Violência contra a Mulher no Brasil e no mundo; a
atuação psicossocial no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher,
Dinâmica Familiar; Alienação Parental; O Papel da Mulher na Sociedade;
Patriarcado; Gênero e Violência.
A partir da compreensão da amplitude da violência contra as mulheres, nos
mais variados contextos, definimos o tema.

251
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Seção 1. Contornos e dimensões contextuais da violência

A costura que pretendemos fazer é aquela que une os fios das teorias
consideradas pertinentes por nós com os fios das nossas vivências nas Varas de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e das Varas de Infância e
Juventude. Em cada tecido, em cada autor, por onde perpassam essas linhas da
costura, se assinala a necessária compreensão do fenômeno violência, que não se
esgota com esse artigo. Ao contrário, nos motiva a pesquisar e a entender, cada
vez mais, por onde e como a sociabilidade da violência se materializa e como
enfrentá-la coletivamente.
Costurar a dezenove mãos implica trazer à luz a riqueza da diversidade de
tecidos e fios, nesse artesanato intelectual, para pensar tal fenômeno.
Assim, sob o ponto de vista da teoria social crítica não se pode compreender
o fenômeno da violência desarticulado das questões mais amplas da sociedade.
Neste sentido, a forma de organização da sociedade capitalista, em sua
abrangência planetária, tem na Questão Social “o conjunto das expressões das
desigualdades sociais nela engendradas” (IAMAMOTO, 2010, p. 268).
A Questão Social, segundo Netto (2001), tem história recente. Enquanto
expressão ela surge para dar conta do fenômeno do pauperismo engendrado na
primeira onda industrializante iniciada na Inglaterra no último quartel do séc. XVIII.
A pauperização massiva da classe trabalhadora constitui o aspecto mais imediato
da instauração do capitalismo em seu estágio industrial-concorrencial, pois a
pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir
riquezas. Foi a partir da perspectiva efetiva de uma reversão da ordem burguesa
que o pauperismo designou- se como Questão Social.
Portanto, a Questão Social informa a desigualdade estruturante que mantém
a produção e a reprodução das relações sociais que organizam a sociedade.
Assim, a forma de produzir é também a forma de pensar, de viver e de se
relacionar.
252
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Se violenta é a forma de produzir da sociedade, pois retira do trabalhador a


riqueza do que ele produziu, na mesma magnitude é a sociabilidade da violência.
Tendo em vista que o ser social se constitui pela atividade do trabalho e que é pela
centralidade dessa categoria na vida humana que os homens e mulheres de todas
as épocas têm condições de tecer a história, como bem defendem, Marx e Engels (
2007, p.32):

[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda


existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber,
o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de
viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes
de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas
mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a
satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida
material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição
fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há
milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora,
simplesmente para manter os homens vivos.

Assim, nessa necessária articulação entre a reprodução da vida material e o


complexo fenômeno da violência encontramos uma chave de leitura importante
para alargar o conhecimento de tal fenômeno. Compreendemos que a violência é
um fenômeno histórico construído intencionalmente para legitimar os interesses
econômicos e políticos de uma determinada classe.
Por outro lado se pensarmos na raiz da palavra violência, entendemos que
ela traz em si mesma uma concepção de que, supostamente, o mais forte impõe
sobre o mais fraco seu poder. Nas palavras de Chauí ( 2006, p. 2-3):

Etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e significa: 1)


tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum
253
PODER JUDICIÁRIO
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ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a


vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar,
brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de
alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar);
4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que
alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5)
consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e
abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações
intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo
medo e pelo terror. [...]

Ao analisarmos o significado etimológico da palavra violência evidenciamos a


coisificação das relações sociais e interpessoais. Essa assertiva é corroborada por
Chauí (2006) quando a autora estabelece um paralelo entre violência e ética,
embora esta categoria não seja, diretamente, tratada neste artigo. Em seu
entendimento a autora pondera:

A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis,


dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é,
irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em
que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário,
livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão,
vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano
e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que
demos a esta palavra. (CHAUI, 2006, p.3).

Especificamente, no Brasil o complexo fenômeno da violência é


escamoteado por um discurso do senso comum de naturalização da pobreza,
somado a imagem, segundo Chauí (2006), de um “povo generoso, alegre, sensual,
solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo, que respeita as

254
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diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por suas


escolhas sexuais etc.”.
Sobre a naturalização da pobreza destacamos a figura de John Locke (1632-
1704), para resumidamente assinalar o caminho da naturalização da pobreza. O
autor, grande expoente da teoria política, defensor das ideias liberais e, portanto, da
propriedade privada, defende a ideia de que os indivíduos com aptidões e
capacidades irão desenvolvê-las de forma diferente. Considerando essa ideia, uma
pessoa que se esforçou mais obterá mais riqueza e conquistará o direito de ter
desigualmente mais bens que os outros. Infere-se, assim, que a desigualdade é
legítima e, por direito, é mérito de cada pessoa.
Essa ideia além de gerar a valorização da competitividade é perpetuada na
história, de forma a reproduzir a naturalização da desigualdade pela ideologia do
senso comum, pois a naturaliza de modo que a riqueza passa a ser considerada
fruto do trabalho, desconsiderando que esse trabalho só gera riqueza – na medida,
e na mesma proporção, em que cria pobreza.
A pobreza entendida como uma questão individual culpabiliza os sujeitos por
tal condição, assim assinala Barroco ( 2010, p. 170):

Através do senso comum, constroem-se estereótipos que


mecanicamente funcionam como juízos de valor sobre a realidade;
a desigualdade social, tratada como determinação natural,
possibilita a culpabilização dos indivíduos por sua condição social
[...].

Chauí (2006) compreende que a sociabilidade da violência estrutura e


organiza as relações sociais, em suas palavras:

[...] a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali


mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é,
como toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à
condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de
255
PODER JUDICIÁRIO
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alguém, que perpetue relações sociais de profunda


desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a
sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são
violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da
violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira,
as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões
econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de
funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, a intolerância
religiosa, sexual e política não são consideradas formas de
violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como
estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato
esporádico de superfície. Em outras palavras, a mitologia e os
procedimentos ideológicos fazem com que a violência que estrutura
e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser percebida,
e, por não ser percebida, é naturalizada e essa naturalização
conserva a mitologia da não-violência com a qual se brada pelo
“retorno à ética”. (Grifos nossos). (CHAUI, 2006, p. 9).

Assim, é importante ratificar com Chauí a urgente necessidade de não


compreender a violência como um fenômeno natural. Ela foi e é construída
socialmente, fazendo parte da estrutura da sociedade brasileira, em um conjunto de
relações, nas características contemporâneas e, principalmente, nos meandros da
produção e reprodução da vida material, na lógica de dominação-exploração do
modo de produção capitalista.
Acrescentamos, que com Chauí, apreendemos que a violência é um
fenômeno que nega e recusa a ética, especialmente porque reduz o sujeito
“racional, voluntário, livre e responsável” a uma coisa, a uma mercadoria, “como se
fossem irracionais, insensíveis, mudos, inertes e ou passivos”.

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1.1. A expressão da violência sob o aspecto psíquico: a pulsão e o narcisismo

Segundo Barus-Michel (2011), a violência apresenta-se como um estado de


alteração naquele que a exerce, que pode ser voluntário ou não, provocando algo
traumático, quando não pode ser evitado. Ela é a transgressão das proibições e
interroga as leis e a ética. Sempre se manifesta como exagero, deixando
transparecer nossa impotência e infligindo aos sujeitos feridas físicas ou psíquicas
de natureza traumatizante.
Podemos inferir através da psicanálise que no surgimento da pulsão a
violência é algo que, de repente, fica livre de qualquer obstáculo. Para Freud a
pulsão é uma energia instintiva (mais ou menos consciente) que serve para
satisfazer nossas necessidades. Pode ser também descrita como uma força interna
constante, que atua todo o tempo e direciona o comportamento do indivíduo para
um determinado fim. (BARUS-MICHEL, 2011).
O autor acima traz o conceito de Freud, para quem a pulsão é dual: suas
duas forças (amor e ódio) são indissociáveis e estão sempre presentes. Assim
sendo, tanto a pulsão pode assumir formas de paixão como também formas de
crueldade devastadora. A violência explode quando as inibições e os controles
cedem e quando as interdições não são mais interiorizadas. Quando a pulsão sem
controle eclode, ela libera a tensão e destrói tudo aquilo que a excita e a resiste.
Belloni (2004) destaca que para Freud a violência é necessária e inerente ao
ser humano. Manifesta-se como instinto agressivo, de morte (Thanatos), que em
equilíbrio com o instinto de vida (Eros), assegura a preservação da espécie. Além
disso, a violência pode também ser entendida como a negação da alteridade, sendo
o Outro negado como semelhante e diferente. A invasão destrutiva pode ser tanto
física quanto psíquica e atinge o outro em sua integridade física e psíquica, em
seus laços e sua identidade social. A vítima da violência é reduzida ao nada e
excluída de qualquer reconhecimento de sua singularidade.

257
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Para Rocha (1996), a violência desrespeita os direitos fundamentais do ser


humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado como sujeito de direitos
e deveres, e passa a ser olhado como um puro e simples objeto. (BELLONI, 2004)
O violento também é vítima e seu sofrimento gera a violência. Se o sujeito
fica fragilizado em sua identidade, decorrente de circunstancias materiais, sociais,
relacionais ou psíquicas, sofre um ataque narcísico que desconstrói as defesas. Se
ele tiver um ego forte conseguirá superar os percalços e se reconstituirá; caso
contrário poderá entrar em um processo depressivo ou se reafirmar por meio da
violência. A violência é a expressão da existência e restaura o narcisismo do
individuo.
Manifestações de violência são decorrentes principalmente do sofrimento,
que geralmente é vivido como humilhação. O comportamento violento garante uma
compensação narcísica, ao mesmo tempo em que demonstra desprezo por leis e
limites.
Os ingredientes presentes na violência são a excitação das pulsões,
fragilizações identitárias, empobrecimento da simbolização, insegurança e baixa
tolerância à frustração conforme Barus- Michel. ( 2011).
O ato violento é resultado de uma fragilidade que o sujeito violento não
consegue reconhecer. A violência depende tanto daquele que a inflige quanto
daquele que sofre e deve ser vista sempre como um fenômeno que possui uma
dimensão social, relacionada, por sua vez, às motivações internas dos sujeitos que
cometem atos violentos e/ou transgressores.

Seção 2. O papel da mulher na sociedade e o patriarcado

A discriminação contra mulher é um fenômeno que ocorre desde a


antiguidade, com indícios desse fato na sociedade desde 2.500 AC e o surgimento

258
PODER JUDICIÁRIO
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do patriarcado há milhares de anos, embora nem sempre as organizações


humanas foram patriarcais. (BASTOS, 2013).
Estudos antropológicos, da autora citada, demonstram que, no princípio
da história da humanidade, as sociedades humanas eram coletivistas, tribais,
nômades e matrilineares. Tais sociedades “primitivas” organizavam-se
predominantemente em torno da figura materna, os papeis sociais e sexuais de
homens e mulheres não eram definidos de forma rígida, as relações sexuais não
eram monogâmicas, sendo a convivência entre homens e mulheres bastante
igualitárias, havendo um envolvimento de todos os membros na coleta de frutas e
raízes, bem como no cuidado das crianças. (BASTOS, 2013).
Segundo Narvaz e Koller15, (apud BASTOS, 2013), somente com a
descoberta da agricultura, da caça e do fogo, foi que as comunidades passaram a se
fixar em um território, enquanto os homens, em geral, caçavam, as mulheres
costumavam cultivar a terra e cuidar das crianças. Mais tarde, estabelecida a
propriedade privada, as relações passaram a ser predominantemente monogâmicas
a fim de garantir herança aos filhos legítimos. Inicia-se então o controle sobre o
corpo e sexualidade das mulheres, instituindo-se a família monogâmica, a divisão
sexual e social do trabalho entre homens e mulheres, instaurando se a partir daí o
patriarcado, uma nova ordem social centrada na descendência patrilinear e no
controle dos homens sobre as mulheres.
Na Grécia, Apolo, o Deus da Razão, estava associado às ideias e a
masculinidade, a mulher, era vista como o oposto da verdade e do conhecimento,
uma alma inferior que se encontrava na escuridão. Na Alexandria, século I D.C., o
filósofo Filon lançou as bases ideológicas para a subordinação das mulheres,
associando a ideia de Platão de que a mulher era um ser de menor racionalidade,
em comparação com o homem, ao dogma teológico hebraico que acusava a

15
NARVAZ, Martha Giudice; Koller, Silvia Helena. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à subversão
criativa. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, V 18 n 1 jan/abr 2006.

259
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

mulher de ser insensata e causadora do mal (ADÃO E EVA). Dessa forma, a ideia
construída era a de que a mulher teria uma alma, carnal/sensual e o homem uma
alma racional/ de maior controle.
Para Aristóteles, o conhecimento racional era a mais importante
conquista humana e, por isso, os homens eram considerados seres mais ativos e
capazes de obter êxito nas áreas mentais, estabelecendo assim, a teoria do
dualismo hierarquizado, demonstrando a nítida dominação de um sexo sobre o
outro. Para este filósofo, havia uma regra natural da existência, ou seja, “a alma
tem domínio sobre o corpo, a razão sobre a emoção, o masculino sobre o
feminino”. (BASTOS, 2013).
Conforme a autora em referência, Rousseau também compartilhava
destas ideias sobre a mulher, assim como a maioria dos filósofos e pensadores da
antiguidade, pois acreditavam que o excesso de sensibilidade feminina dificultava
sobremaneira a evolução da sua inteligência, do sensível para o inteligível, pois
devido à sua fisiologia inferior a mulher é um ser “imutável” e inerte, que não
participa da evolução histórica da humanidade calcada na razão.
Segundo a mesma autora, o papel da mulher na sociedade sofreu fortes
mudanças a partir da Revolução Francesa, quando os filósofos iluministas
começavam a idealizar uma sociedade baseada no respeito à liberdade e aos
direitos individuais, como pontos basilares da nova organização societária. As
mulheres passaram também a reivindicar direitos civis e cidadania pois, nesta
época, a mulher ainda era tutelada pelo marido. Porém, apesar da intensa
participação popular das mulheres para quebrar os costumes da sociedade, elas
não conquistaram as almejadas mudanças, que só começaram no século XX, pois
os filósofos iluministas ainda acreditavam que a paixão e não a razão eram marcas
da personalidade feminina. (BASTOS, 2013).
Bastos também defende que tais ideias de inferioridade da mulher
ganharam força no século XIX, onde a medicina social, representando então a
ciência, continuava a atribuir à mulher o predomínio das faculdades afetivas, da
260
PODER JUDICIÁRIO
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vocação maternal inerente ao sexo, em detrimento às intelectuais, contribuindo


dessa forma para que a mulher não ultrapassasse a domesticidade e se dedicasse
apenas às atividades naturais de guardiã do lar do marido e dos filhos. (BASTOS,
2013).
Da mesma forma, a autora citada registra ainda que em meados do
século XVIII, com a Revolução Industrial, a absorção da força de trabalho da mulher
nas indústrias inseriu-as, definitivamente, no mercado de trabalho, ainda assim
havia grande discriminação em relação ao salário e à exploração.
É possível perceber que a partir de algumas ideias, são criadas
concepções e a partir destas, vão se estruturando formas de comportamento nas
sociedades, como verdades que não podem ser modificadas.
O papel social da mulher foi construído ao longo dos anos a partir de
premissas deturpadas e discriminatórias que se entranharam em nossa cultura
como códigos de conduta levando a mulher a se resignar, a obedecer primeiro à
autoridade do pai e depois do marido.

2.1. Conceito de gênero

Para Saffioti (1999), o gênero está longe de ser um conceito neutro. Pelo
contrário, ele “carrega uma dose apreciável de ideologia” justamente a ideologia
patriarcal, que cobre uma estrutura de poder desigual entre mulheres e homens.
Porque o conceito de gênero, na sua visão, não atacaria o coração da engrenagem
de exploração-dominação, alimentando-a. É uma categoria histórica da definição do
masculino e feminino, um conjunto de normas modeladoras dos seres humanos em
homens e mulheres, que são expressas nas relações destas duas categorias
sociais.
O conceito de gênero não explicita necessariamente desigualdades entre
homens e mulheres, sendo, muitas vezes, a hierarquia presumida. A diferença nas

261
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

relações entre homens e entre mulheres é que essa desigualdade de gênero não é
colocada previamente, mas pode ser construída e o é com frequência. Saffioti ainda
considera que o gênero, assim como a família e o território domiciliar contém
hierarquias, nas quais os homens figuram como dominadores-exploradores.
A tentativa de construir o ser mulher enquanto subordinado, ou melhor, como
diz Saffioti, como dominada-explorada, vai ter a marca da naturalização, do
inquestionável, já que dado pela natureza. Todos os espaços de aprendizado, os
processos de socialização vão reforçar os preconceitos e estereótipos dos gêneros
como próprios de uma suposta natureza (feminina e masculina), apoiando-se
sobretudo na determinação biológica. A diferença biológica vai se transformar em
desigualdade social e tomar uma aparência de naturalidade. As relações de gênero
refletem concepções de gênero internalizadas por homens e mulheres. Nas
palavras de Saffioti:

[...] Eis porque o machismo não constitui privilégio de homens,


sendo a maioria das mulheres também suas portadoras. Não basta
que um dos gêneros conheça e pratique atribuições que lhes são
conferidas pela sociedade, é imprescindível que cada gênero
conheça as responsabilidades do outro gênero.

A definição ideológica de gênero, enquanto ideológica, impõe-se no


relacionamento pessoal entre as pessoas, não só no trabalho, nas escolas e nas
ruas, mas em especial no interior da casa, no núcleo da família. Consideremos, por
ora, apenas as relações familiares fundadas por relacionamentos entre homem e
mulher. À medida que a ideologia patriarcal define os gêneros, define também
modos de relacionamento, e esses modos são fundamentados na violência, uma
vez que supõe a exploração e a dominação. Afinal, só pode haver dominação de
alguém se houver o exercício da violência – ou, no mínimo, a sinalização constante
de que ela pode ser exercida. Em certo sentido, portanto, a ideologia patriarcal que

262
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

define os gêneros envolve sempre ameaças, sobre a liberdade da mulher, seu


corpo, suas coisas.
Por conseguinte, enquanto ideologia, o conceito de gênero é por isso mesmo
falsificador. Isto é, ao mesmo tempo que há uma hierarquia presumida, há muitas
vezes uma ocultação dos meios violentos com as quais ela é exercida. Um exemplo
simples é a caracterização do homem como o guerreiro que traz para casa os bens
materiais, através do trabalho, e da mulher como a serva doméstica que mantém a
casa arrumada, cria os filhos e providencia os confortos, inclusive sexuais, do
macho, nas pausas de sua labuta. Palavras mais suaves poderiam ser usadas para
descrever esse e outros exemplos, mas o essencial permaneceria: um dominador-
explorador, e uma mulher, sobre quem o domínio e o uso são exercidos, a
dominada-explorada.
A falsificação envolvida na definição ideológica de gênero tem sua forma
mais aparente na afirmação de que há uma natureza, biológica mesmo, que
descreveria e fundamentaria as ações de dominação sobre a mulher, em particular
no âmbito doméstico. A diferença biológica entre os sexos é desvirtuada,
assumindo a forma de um discurso e de valores impostos desde a infância, como
que “programando” as pessoas e preparando umas para o exercício da violência
(ou suas ameaças) e outras para a submissão às agressões e obediência às
condições ameaçadoras.

2.2. Percurso histórico dos direitos da mulher


O movimento de reconhecimento das relações desiguais de gênero na
sociedade - reconhecimento este ressaltado pelas demandas trazidas pelas
mulheres ao Estado por meio de movimentos organizados em âmbito mundial - traz
à tona a necessidade de defesa e proteção do interesse das mulheres.
Piovesan (2014) descreve:

263
PODER JUDICIÁRIO
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Reivindicações feministas, como o direito à igualdade


formal (como pretendia o movimento feminista libertário
radical), o fomento da igualdade econômica (bandeira do
movimento feminista socialista), a redefinição de papéis
sociais (lema do movimento feminista existencialista) e o
direito à diversidade sob as perspectivas de raça, etnia,
entre outras (como pretende o movimento feminista
críticos e multicultural) foram, cada qual ao seu modo,
incorporadas pelos tratados internacionais de proteção
dos direitos humanos. (PIOVESAN, 2014. p. 21).
A resposta do Estado a estas diversas reivindicações é construída
historicamente e materializada em diversos tratados internacionais que refletiram na
legislação nacional atual para a defesa das mulheres.
O processo de construção da igualdade de gênero se dá de maneiras
diferentes em cada nação, tendo em vista suas peculiaridades socioculturais,
econômicas e religiosas. Salientamos que nem todas as nações reconhecem os
direitos das mulheres, portanto, não ratificam tais acordos. Mesmo assim, é
possível uma intervenção internacional para garantia dos direitos humanos, pois
estes estão para além dos limites do domínio nacional.
Considerando a dinâmica da realidade social, vale ressaltar que os
direitos até aqui conquistados não são estáticos, necessitam ser continuamente
afirmados e construídos objetivando de fato a igualdade entre homens e mulheres
na nossa sociedade.
No campo internacional, o feedback à constatação da violação dos
direitos da mulher começa a ser desenhado a partir da Segunda Guerra Mundial
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Esta declaração
reconheceu a dignidade da pessoa humana16 :

16
A Declaração, em seu artigo 1º “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”.

264
PODER JUDICIÁRIO
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[...] assegura, além disso, que não se admitirá qualquer forma de


discriminação por motivo de raça, sexo, religião, opinião, política ou
de outra natureza; origem nacional ou social, riqueza, nascimento
ou qualquer outra condição. Após anos de opressão, a igualdade
entre os sexos é positivada. Os direitos das mulheres passam a ser
finalmente reconhecidos como direitos humanos e, como tal,
merecedores da proteção estatal. (BASTOS, 2013, p.43).

Ainda, segundo BASTOS (2013, p. 46) em 1969, a Convenção de Viena


aprofundou, no campo jurídico e doutrinário a discussão sobre os direitos
humanos. No que tange aos direitos específicos da mulher, em 1979, com a
Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher – CEDAW definiu-se o conceito de discriminação
contra a mulher e sinalizou-se a respeito da situação de violência doméstica.
A incorporação da violência contra a mulher como violação dos direitos
humanos só foi contemplada na Conferência das Nações Unidas sobre Direitos
Humanos, em Viena, no ano de 1993, que salienta também a necessidade de
eliminar a violência pública e privada contra a mulher. Esta conferência:
[...] não apenas endossa a universalidade e a indivisibilidade dos
direitos humanos invocada pela Declaração Universal de 1948,
mas também confere visibilidade aos direitos humanos das
mulheres e das meninas, em expressa alusão ao processo de
especificação do sujeito de direitos e à justiça enquanto
reconhecimento de identidades.” (PIOVESAN, 2014, p. 24).
Em 1994 foi realizada em Belém do Pará, a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a violência doméstica contra a mulher que será
aprofundada no próximo tópico.

265
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Após, no ano de 1995, em Pequim, ainda houve uma importante


Conferência em que foram reforçadas pautas para a comunidade internacional que
tivessem o objetivo da igualdade de gênero: IV Conferência Mundial sobre as
Mulheres.

2.3. Os marcos legais da mulher no Brasil

De acordo com Fernandez, (2014) as legislações do Brasil Colonial se


constituíram de acordo com as leis de Portugal – sob as Ordenações Filipinas que
permitiam castigos às mulheres através da violência. A mulher era considerada
inferior em relação ao homem, destinada à subordinação e obediência ao pai e,
posteriormente, ao marido.
As mulheres negras escravas não eram consideradas cidadãs nas
constituições do Brasil colonial, logo, não eram sujeitos de direitos pelas leis
vigentes à época.
De acordo com a autora acima ao analisar as conquistas de direitos das
mulheres ao longo do processo histórico brasileiro, constatou que os direitos
humanos femininos foram evoluindo com a mudança das constituições brasileiras.
No entanto, no código penal brasileiro não houve grandes mudanças voltadas à
punição de crime de homicídios relacionados às mulheres envolvidas em histórias
de adultério.
A luta do movimento feminista levou a conquista ao direito de voto eleitoral
em 24 de fevereiro de 1932, através do decreto 21.076, sendo consagrado esse
direito na constituição de 1934. Na constituição de 1967 foi prevista a igualdade sem
distinção de sexo e o voto tornou-se obrigatório para homens e mulheres.
(FERNANDEZ, 2014).

266
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A Constituição Federal de 1988, no artigo 226, foi um importante avanço


referente a igualdade de gênero, que previu em seu parágrafo § 5 º a igualdade de
direitos e deveres entre homens e mulheres no exercício da sociedade conjugal.
Uma publicação da Ações Gênero Cidadania e Desenvolvimento – AGENDE,
(2004), traz a Convenção de Belém do Pará comentada, em comemoração aos dez
anos da sua aprovação. Constitui-se uma importante ferramenta de promoção da
emancipação das mulheres.
A referida Convenção, em seu artigo 1°, reconhece violência contra mulher
como qualquer ato ou conduta baseado no gênero que lhe cause morte, dano ou
sofrimento, físico, sexual ou psicológico na esfera púbica e privada. No artigo 2°
abrange violência, física, sexual e psicológica ocorrida no âmbito familiar ou unidade
doméstica ou em qualquer relação interpessoal quer o agressor compartilhe, tenha
compartilhado ou não sua residência incluindo-se entre outros os estupros, maus
tratos e abuso sexual.

2.4. Lei Maria da Penha

Em 1983, Maria da Penha Maia Fernandes, que se encontrava inserida em


um contexto familiar de violência doméstica, foi vítima de duas tentativas de
homicídio: levou um tiro nas costas, durante um suposto assalto, em sua casa, ficou
quatro meses internada e adquiriu paraplegia irreversível. Descobriu que o autor
dos disparos foi seu marido, o professor universitário colombiano, Marco Aurélio
Heredia Viveiros, pai de suas três filhas. No mesmo ano ele tentou matá-la
eletrocutada, simulando um defeito no chuveiro elétrico (BASTOS, 2013).
Segundo registros do autor citado, após o divórcio, passaram-se 19 anos e 6
meses para que o ex-marido de Maria da Penha fosse condenado e preso. A
sentença foi de 10 anos e 6 meses de reclusão, porém foi liberado em função de
incessantes recursos de seus advogados.
267
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Maria da Penha, indignada com a morosidade da justiça brasileira, levou o


caso à Organização dos Estados Americanos (OEA) que, em 1998, o apresentou à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio de petição conjunta das
entidades CEJIL-Brasil (Centro de Justiça e Direito Internacional) e CLADEM- Brasil
(Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher).
Em 2001, o Estado Brasileiro foi condenado por negligência e omissão em
relação à violência doméstica, em função de ser signatário da Convenção
Americana de Direitos Humanos e da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). A Comissão
Interamericana recomendou que o Estado rompesse o tratamento discriminatório
com respeito à Violência Doméstica contra as mulheres no Brasil (PIOVESAN,
2014).
A Comissão Interamericana recomendou ao Estado Brasileiro que realizasse
medidas reparatórias como campanhas de prevenção, programas de capacitação e
sensibilização dos agentes da justiça, entre outras. Neste sentido, em 2003 foi
adotada a lei 10.778, que determina a notificação compulsória, no território
nacional, de casos de violência doméstica contra a mulher nos serviços de saúde
públicos e privados.
Em 2004 foi instituído o Grupo de Trabalho Interministerial, com membros da
sociedade civil e do governo, para elaboração de medidas legislativas e propostas
para coibir a violência doméstica contra a mulher (PIOVESAN, 2014; SANTOS,
2008).
Em 7 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei 11.340 “Lei Maria da Penha”
que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher ,
com medidas de prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de
violência.
Santos (2008) pondera que a lei foi nomeada desse modo para reparar,
simbolicamente, Maria da Penha Maia Fernandes pela morosidade da Justiça
brasileira na condução do processo judicial contra o seu agressor, seu ex-marido.
268
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Afirma, ainda, que o processo de criação da “Lei Maria da Penha” mostrou uma
articulação estreita entre o governo e os movimentos feministas e das mulheres.
De acordo com Piovesan (2014), a Lei Maria da Penha trouxe sete inovações
no que se refere ao combate à violência doméstica e familiar contra a mulher:

 Mudança de paradigma no enfrentamento da violência


contra a mulher, sendo que a violência contra a mulher
passou de infração de menor potencial ofensivo para violação
de direitos humanos;
 Incorporação da ótica preventiva, integrada e
multidisciplinar, consagrando medidas de prevenção, por
meio de ações articuladas entre as três esferas
governamentais, e interação entre Poder Judiciário, Ministério
Público e Defensoria Pública, com a assistência social,
segurança pública, educação, saúde, trabalho e habitação.
 Fortalecimento da ótica repressiva, rompendo com a
perspectiva anterior da lei 9.099/95;
 Harmonização com a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção de Belém do Pará).
 Consolidação de um conceito ampliado de família, dando
visibilidade ao direito à livre orientação sexual;
 Estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas, a
fim de promover estudos e pesquisas relevantes dentro da
perspectiva de gênero.
 Incorporação da perspectiva de gênero para tratar a
violência contra a mulher, com a criação de Juizados
Especializados em Violência Doméstica contra a Mulher.

269
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Até a Lei 11.340/2006, os casos de violência doméstica eram julgados nos


Juizados Especiais Criminais (JECRIM) órgãos responsáveis por tratar das
infrações penais de menor potencial ofensivo (Lei (9099/95), equiparando a isso a
violência doméstica, em detrimento da garantia dos direitos humanos das mulheres
(PIOVESAN, 2014). A Lei Maria da Penha previu, em seu art.14, a criação de
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher.
Embora a Lei Maria da Penha não tenha atribuído caráter obrigatório à
criação de Varas e Juizados de competência específica, a Recomendação 9 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de março de 2007, sugeriu aos tribunais a
instalação dessas unidades de atendimento exclusivo na capital e no interior. Tais
juizados têm sido considerados como essenciais para a efetiva implantação da Lei
11.340/2006 (SANTOS, 2008).
Segundo Bianchini (2013), os Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, a fim de que possam operar em consonância com as convenções
internacionais de proteção dos direitos das mulheres, devem ter atuação que se
difere da aplicação tradicional da justiça criminal, que se restringe à aplicação de
responsabilidades criminais e distribuição de penas.
A autora, acima referida, afirma que a Lei Maria da Penha, pelo fato de ter
previsto que os Juizados teriam competência cível e criminal, permitiu que fosse
centralizado, em um único procedimento jurídico, todos os meios de garantia dos
direitos da mulher em situação de violência doméstica e familiar, que passaria a ter
julgados por um mesmo juiz pedidos de separação conjugal, ação de alimentos,
separação de corpos, entre outros. Bianchini (2013) compreende tal possibilidade
como um avanço em relação aos problemas concretos das mulheres, que tinham
que buscar seus direitos e se proteger da violência em diversos órgãos do Poder
Judiciário, o que dificultava sobremaneira o acesso à Justiça – pela demora, pelos
custos, pelas decisões contraditórias eventualmente elaboradas por juízes de
diferentes varas.
270
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Bianchini (2013), avaliou que ainda havia, no Brasil, um número reduzido de


Varas e Juizados especializados. Ainda: “Além da insuficiência de Juizados,
observa-se que a dupla competência (civil e criminal), em muitos casos, não está
sendo observada pelos juízes”. (p. 201)
Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça, ao pesquisar a distribuição de
Varas Especializadas em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Brasil,
concluiu que é necessário praticamente dobrar o número dessas, passando das 66
varas existentes atualmente para 120. A prioridade para a criação dessas 54 novas
varas ou juizados de violência doméstica contra a mulher seria, segundo o CNJ,
para cidades limítrofes, do interior e com grande concentração populacional, a fim
de se atender de forma adequada a demanda existente.
Atualmente, a cidade de São Paulo conta com sete Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, instalados na capital, nos Fóruns da Barra
Funda (Central), Butantã (Oeste), Santana (Norte), Vila Prudente (Sul 1), Santo
Amaro (Sul 2) – instalada temporariamente no Fórum do Butantã, Penha (Leste 1) e
São Miguel Paulista (Leste 2). Nas comarcas em que não há juizados exclusivos
estruturados, atualmente as varas criminais acumulam as competências cível e
criminal para processar ações dessa natureza.

Seção 3. Violência doméstica e familiar contra a mulher

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência


contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará considera a violência doméstica
quando “ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer
relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a
sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso
sexual”, nos termos do artigo 2º, alínea a.
Dessa forma, não é necessário que a violência ocorra no espaço da moradia
para ser considerada doméstica, desde que ocorra no âmbito relacional entre
271
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

pessoas que compartilhem ou tenham compartilhado o mesmo domicílio e ou entre


pessoas com vínculos atuais ou passados de parentesco, amizade ou amoroso. Por
ocorrer entre pessoas próximas, muitas vezes com convívio cotidiano, tende a se
repetir e aumentar, paulatinamente, a gravidade das agressões, sendo por isso
considerada de maior potencial ofensivo.
Segundo o texto comentado sobre a Convenção referida acima, a violência
doméstica “fundamenta-se em relações interpessoais de desigualdade e de poder
entre mulheres e homens ligados por vínculos consanguíneos, de afetividade, de
afinidade ou de amizade” (Convenção de Belém do Pará, pg. 10). O texto pontua
assim a dimensão da diferença de poder entre os gêneros, trazendo reiteradamente
ao longo dos comentários a construção sociocultural desta diferença ao longo dos
anos.
Os principais comentários tecidos sobre a Lei Maria da Penha, por Bianchini,
dos quais destacamos aqueles voltados aos aspectos assistenciais e protetivos,
considera violência familiar aquela "praticada por um ou mais membros de uma
família", que por sua vez foi definida como a “comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou
por vontade expressa" (Bianchini, 2013, p.242). Assim, a Lei Maria da Penha pode
ser aplicada nas relações de namoro por constituírem uma relação íntima de afeto,
mas não contempla a violência praticada contra mulher em outros espaços, tais
como trabalho e instituições públicas.
Foram especificadas cinco formas de violência, a saber: física, moral,
psicológica, sexual e patrimonial. Mas, a autora esclarece que é possível a inclusão
de outras formas de violência, desde que baseadas na questão de gênero.
Observa-se, contudo, que, embora a Lei Maria da Penha destine-se
primordialmente à mulher em situação de violência doméstica e familiar, também se
dirige a seus familiares, testemunhas e ao agressor.
Cabe ressaltar o destaque dado pela autora quanto à denominação utilizada
na legislação - mulher em situação de violência familiar - que tem por objetivo
272
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

romper com o estigma da vitimização e reforçar que a violência vivenciada pela


mulher é transitória, uma vez em outras circunstâncias que ela pode estar em
condição de igualdade com o homem.
No que se refere aos familiares e/ou testemunhas da mulher em situação de
violência doméstica e familiar, sejam crianças, adolescentes ou idosos, ainda que
do sexo masculino, a lei os envolve estendendo aos mesmos as medidas protetivas
de urgência. Isto é fundamental, pois, é muito comum que sejam atingidos pelo
contexto da violência especialmente os filhos.
Um dos principais aspectos levantados como necessários para efetivação do
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher refere-se ao
atendimento pela rede, com a devida quantidade e qualidade nos serviços, tal como
esta realidade requer. Segundo a autora: "é recomendável que sejam implantados
centros de educação e reabilitação de agressores e serviços especializados de
atendimento à mulher agredida, em lugar de solicitar exclusivamente a intervenção
do sistema legal." (Bianchini, 2013, p.244).
Entende-se, portanto, que a aplicação da lei no âmbito judicial é apenas
parte no processo de superação das situações de violência doméstica e familiar
contra a mulher, que pressupõe um atendimento integral e articulado na referida
rede.
Neste sentido a autora identifica três ordens nas medidas de assistência à
mulher:
1 - Medidas de proteção: preventivas, ou seja, anteriores a violência.
2 – Medidas de assistência: emergenciais, dirigidas à mulher que já se
encontra em situação de violência doméstica e familiar (assistência social, saúde e
trabalho).
3 - Medidas de segurança: também dirigidas à mulher que já se encontra nas
situações de violência (atendimento pela autoridade policial).
Dentre os avanços que a Lei Maria da Penha proporcionou, destaca-se a
definição da discriminação e da violência de gênero como enquanto violação aos
273
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

direitos humanos. Isto possibilita, inclusive, que os Estados sejam responsáveis por
conter esses abusos.
A Lei Maria da Penha, por exemplo, "representa uma das medidas
apresentadas pelo Estado para permitir que ocorra o aceleramento da igualdade de
fato entre o homem e a mulher.” (Bianchini, 2013, p.245). Inscreve-se enquanto
ações afirmativas e busca o empoderamento das mulheres frente à possível
diminuição das desigualdades de gênero, sejam sociais, políticas e econômicas.
Por isto, a Lei Maria da Penha é considerada de caráter transitório, visto que se
vislumbra seu vigor enquanto houver circunstâncias que a justifique.
Para alcançarmos tal realidade é fundamental a participação da sociedade,
do Estado e da família no processo de construção das condições necessárias para
o pleno exercício dos direitos das mulheres. Somos todos responsáveis.
As medidas protetivas são consideradas a principal inovação propiciada pela
Lei Maria da Penha. Podem ser requeridas diretamente pelas mulheres que se
encontram em situação de violência doméstica e familiar. Também é assegurado a
estas mulheres o direito de serem acompanhadas por advogados em todos os atos
processuais.
A Lei também prevê que, quando há dependentes menores, a equipe
multidisciplinar deve atuar previamente, antes da restrição ou suspensão de visitas
a eles.
A intenção da Lei é privilegiar a parte mais frágil, no caso, a vítima, que
poderá escolher um entre três possíveis Foros para andamento do processo:
domicilio ou residência da vitima, lugar do fato em que ocorreu a violência (ou
ameaça) e domicilio do agressor.
Desta forma, em que pese todos os avanços, garantias e conquistas trazidas
com a aplicação da Lei Maria da Penha, ainda se faz necessário maior
aprofundamento e apropriação nos diversos setores da sociedade acerca das
"especificidades da violência doméstica e familiar, bem como se dando conta das
dificuldades enfrentadas pelas mulheres em situação de violência doméstica e
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

familiar, em razão das características desse tipo de violência". (Bianchini, 2013,


p.247). Para tanto é imprescindível que haja formação continuada dos atores
institucionais envolvidos e sensibilização quanto à complexidade do fenômeno da
violência, que resulte em um tratamento mais humanizado da questão.
Neste sentido, Fernandes17 pontua que, pelo fato de frequentemente
envolver relações afetivas, o silêncio da vítima deve ser considerado de modo
particular e de forma ampliada, caracterizado, muitas vezes como:

[...] não registra o boletim de ocorrência, registra boletim e


renuncia ao direito de representar, retrata-se da representação e
inocenta o agressor em juízo. (FERNANDES, 2014, pg. 50).

Este silêncio pode ser compreendido de forma multicausal. A autora acima


elenca diversos aspectos, dentre eles: a violência psicológica do agressor para que
a mulher não denuncie, o sofrimento pela possível reação e pressão de familiares,
para que se inocente o agressor. Devido a ambiguidade afetiva presente na relação
com o agressor, muitas mulheres receiam que o parceiro seja prejudicado
socialmente, que os filhos sejam afetados emocionalmente com a denúncia e suas
consequências, além da preocupação com dificuldades financeiras que seriam
geradas sem o suporte do companheiro.
Importante considerar nessa dinâmica as questões subjetivas, tais como a
vergonha de ter exposta sua vida privada e ser estigmatizada. Produz-se uma
espécie de inversão da culpa, em que a vítima é levada a acreditar que é
responsável pelo ato violento e tenta encontrar justificativas para a violência, tais
como uso abusivo de álcool e ou drogas, desemprego, além da crença na mudança
do parceiro.

17
Fernandes, V.D. S. “Violência contra a Mulher no Brasil e no Mundo” in Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano
15, no. 38, p. 45-58, janeiro-abril/2014.

275
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A falta de capacitação e compreensão sobre a particularidade deste tipo de


violência, nas intervenções dos agentes públicos, tende a suscitar atitudes
discriminatórias e revitimizantes como destratar a mulher, não tomar providências,
tentar reconciliar a vítima com o agressor e questionar a culpa da mulher no evento.
Todos estes fatores causam sentimentos de desamparo, impotência,
angústia, isolamento, retraimento, embotamento afetivo, produzindo baixa
autoestima.
Conforme Fernandes (2014), o ciclo de violência contribui muitas vezes ao
retorno do silêncio. A primeira fase, denominada por ela “Tensão”, é caracterizada
por clima sobrecarregado, tenso e instável, de intenso nervosismo da parte do
homem, que adota conduta ameaçadora e violenta, agressões verbais e
humilhações. A mulher se retrai e tende a não contrariá-lo, a não irritá-lo, na
tentativa de controlar o comportamento agressivo dele, além de procurar
justificativas para as atitudes dela própria.
A evolução desta tensão culmina na segunda fase do ciclo, a “Explosão”, em
que o homem perde o autocontrole e agride a mulher de diversas formas (física,
sexual e psicológica), com grande intensidade. Ela percebe que não tem controle
sobre ele e devido ao medo e à impotência, não consegue reagir e suporta a
agressão.
Na fase seguinte, “Lua-de-Mel”, o homem se arrepende, e por medo de ser
abandonado ou punido, faz promessas e modifica seu comportamento, tornando-se
mais carinhoso, atencioso, abandonando vícios e procurando emprego. A mulher
acredita nessa mudança de comportamento, confiando que os episódios de
violência não mais se repetirão, apostando que seu afeto será capaz de modificar o
parceiro. No entanto, aos poucos o relacionamento volta à fase de tensão inicial,
configurando-se um ciclo repetitivo, em que a fase de explosão tende a ser mais
violenta a cada repetição e a de lua-de-mel mais curta. Segundo a autora, a
violência passa a ser recorrentemente o recurso emocional que o homem utiliza
para acalmar-se, sendo que somente ele pode interromper a sua explosão,
276
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

independentemente das atitudes da mulher. Assim, devido às características


emocionais e socioculturais envolvidas, faz-se necessário um atendimento
específico com estes homens, tal como previsto na lei.
Com relação ao trabalho com os homens, em um de nossos encontros,
contamos com a presença de Leandro Feitosa de Andrade, psicólogo do Coletivo
Feminista Sexualidade e Saúde. Leandro desenvolve um trabalho pioneiro de
atenção aos homens autores de agressão em parceria com o historiador Sergio
Flavio Barbosa e outros profissionais.
Os grupos, abertos, começaram em 2006 no município de São Caetano Sul
– SP, logo após a aprovação da lei Maria da Penha. Desde 2008 realizam o
trabalho em São Paulo sem interrupção. Os grupos, acompanhados por uma dupla
de técnicos, acontecem uma vez por semana com duração de 2 horas para 15
participantes, num total de 16 encontros. Os pressupostos para a formação dos
grupos são o de não funcionarem como recuperação ou reabilitação, mas sim
desconstrução de uma forma de sociabilidade machista. Os participantes não são
vistos como portadores de algum tipo de doença ou necessitados de autoajuda, o
grupo vê o homem tal como este é, ou seja, uma construção social.
Leandro expôs que há um projeto do Coletivo Feminista Sexualidade e
Saúde, juntamente com a Secretaria de Justiça/SP, para criação de 05 Centros de
Atendimento a homens autores de violência, na cidade de São Paulo. Explicitou
que a questão da violência não é um fenômeno atual, é presente em toda a história,
mas possui características específicas na contemporaneidade, condições e
conjunturas diferentes que permitem novas questões para pensar a violência
doméstica. Mencionou que, segundo pesquisas, o maior índice de homicídios
contra a mulher é dentro do domicílio, 86,5% dos agressores são conhecidos das
vítimas, dentre estes, 31,5% são namorados/cônjuges. De acordo com o
palestrante a causa do fenômeno da violência é o sistema de dominação-
exploração com raízes no patriarcado, sendo uma simbiose que consolida o poder
do homem-rico-branco-adulto-heterossexual. Deste modo, não se pode
277
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

desconsiderar todos esses fatores no momento da intervenção que tem a


perspectiva de transformação e de busca de igualdade nas relações de gênero.
Segundo sua reflexão, o patriarcado não acompanha as mudanças, nem as
transformações sociais e as conquistas dos direitos das mulheres. O acesso da
população feminina à educação de nível superior e trabalho remunerado gera
conflito e evidencia uma crise do homem em relação aos papeis sociais nas
relações conjugais, gerando sofrimento, por não mais se identificar ou se perceber
no papel de provedor ou mantenedor da família. Mesmo a mulher que não trabalha,
hoje tem mais acesso a informação através dos meios de comunicação, gerando
uma nova forma de sociabilidade. Destacou ainda a invisibilidade do sofrimento
masculino, visto que no universo patriarcal poucos homens dividem seus
sentimentos, na tentativa de enquadrar-se neste modelo.
Importante destacar que, em agosto de 2014, em evento promovido pela
Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar
do Poder Judiciário do Estado de São Paulo - COMESP para comemorar os oito
anos da Lei Maria da Penha foi lançado o projeto “A Tecnologia a Serviço do
Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”.
A iniciativa destacou a criação de um aplicativo que pode ser instalado em
smartphone com sistema operacional Android e que, conectado a uma rede de
pessoas e entidades públicas e privadas, atua em tempo real, instantaneamente, no
socorro a mulheres vítimas de violência. O programa já funciona no Rio Grande do
Sul, em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado.
O aplicativo pode ser instalado a partir do site www.plp20.org.br. Destina-se
às mulheres que possuem medidas protetivas e a sigla plp faz referência às
Promotoras Legais Populares, parceiras da ONG Geledès no respectivo projeto.

278
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa prática cotidiana e nossas reflexões propiciaram melhor compreensão


de que embora existam normativas nacionais e internacionais norteadoras da
proteção dos direitos das mulheres que sofrem as diversas formas de violências, há
enorme desafio para a viabilização e efetivação de atenção integral às
necessidades de todos, quer sejam vítimas ou agressores.
A violência contra a mulher é um fenômeno estruturante na sociedade
capitalista brasileira. Complexo e mundial, multicausal, inserido nos diferentes
campos culturais, sociais e políticos e presente em todas as classes sociais. Suas
consequências são devastadoras para crianças, adolescentes, mulheres, homens,
idosos, vítimas diretas ou indiretas de agressões.
Portanto, é imprescindível o cuidado em não naturalizar o fenômeno da
violência e não transformar os sujeitos em coisa, retirando-lhes as características
humanas.
Um dos desafios do trabalho das equipes técnicas nas Varas de Violência
Doméstica e da Infância e Juventude é o de desvendar e revelar as dinâmicas que
engendram o fenômeno da violência e, na compreensão de tal realidade, priorizar as
singularidades dos sujeitos atendidos.
Atualmente, a construção de ações articuladas entre os diversos atores da
Rede de Proteção e de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar é primordial
para a transformação dos paradigmas que envolvem a violência de gênero.

279
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

VIOLÊNCIAS E ABUSOS
PONTUAÇÕES SOBRE DEPOIMENTO ESPECIAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL - “VITIMIZAÇÃO”

Tribunal de Justiça do estado de São Paulo


2014

283
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

COORDENADORAS

Luciana Maziero Baptistella – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guarujá


Valéria Neves Camargo – Psicóloga Judiciário – Foro Regional IV – Lapa

AUTORES

Ana Paula da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Foro Regional Pinheiros
Ana Rita Pavão -Assistente Social Judiciário – Vara da Região Norte de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher
Bruna Kibrit – Psicóloga Judiciário – Varas Especiais da Infância e da Juventude
Dulce Alves Taveira Koller - Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das
Cruzes
Eliane Macedo Cliquet – Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da Infância e
da Juventude
Fernanda Lacerda Silva – Psicóloga Judiciário – Vara Região Sul I de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher
Laura Castelo Branco Silverio – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém
Maíra Alves Barbosa – Psicóloga Judiciário – Vara da Região Norte de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher
Maria Emília Lucas Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santos
Mônica Aparecida Mota Vale – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Arujá
Rosangela Rinaldi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santos
Samuel Rotband Berestein Grinspun – Psicólogo Judiciário – Comarca de Taubaté
Tatiana Cetertich – Assistente Social Juduciário – Foro Regional VII Itaquera

284
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

No inicio do ano de 2014 o Grupo de Estudos “Vitimização” deliberou,


coletivamente, aprofundar os estudos e a reflexão sobre o tema abuso sexual
infanto-juvenil e a função da justiça. Para tanto, foi considerada a chegada recente
de assistentes sociais e psicólogos, empossados do último concurso público, sendo
que muitos integrantes do grupo encontram-se lotados nas Varas Especializadas de
Violência Doméstica.

Com o aprofundamento das discussões, observou-se a necessidade de


também estudar os métodos e finalidades do “Depoimento Especial”, tendo em vista
a implantação de projeto-piloto pelo TJ - SP nas comarcas de Guarulhos, Atibaia,
Campinas e São Caetano do Sul e a recente ampliação do projeto em parceria com
a Instituição Childhood (que realiza trabalhos de combate à violência sexual na
infância) em outras comarcas do Estado, por meio de instalação de aparelhagem e
materiais pertinentes nas Varas Criminais e Especiais de Violência Doméstica e
Varas de Infância e Juventude (como câmeras filmadoras, objetos lúdicos,
preparação de sala específica para escuta) e oferecendo capacitação aos
profissionais Psicólogos e Assistentes Sociais lotados nestas Varas -Setores
Técnicos- para o exercício de entrevistar/escutar crianças e adolescentes vítimas de
abuso sexual com gravação áudio-visual como meio de prova nos autos.
É importante destacar que os Conselhos de Psicologia e de Serviço Social já
emitiram pareceres contrários à realização do referido Depoimento Especial pelos
profissionais de suas respectivas categorias. Fundamentaram-se, centralmente, nos
direitos e deveres éticos dos assistentes sociais e psicólogos, secundarizando em
suas fundamentações a proteção à infância. A AASPTJ (Associação de Assistentes
sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça de São Paulo), por sua vez, já se
manifestou desfavorável junto ao Conselho Nacional de Justiça.

285
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A preocupação e os estudos realizados pelos integrantes do Grupo de


Estudos de Vitimização priorizaram, essencialmente, a real defesa dos direitos da
criança e do adolescente, haja vista que o foco da inquirição das vítimas, nos
moldes do Depoimento Especial, está em antecipar produção de provas e elementos
para a punição do suposto agressor, resumindo-se a criminalização, ao Estado
Penal e não a responsabilização por meio de investimento na garantia de direitos e
Políticas Públicas e Sociais no combate e prevenção à violência sexual, inclusive
intrafamiliar, por meio de tratamentos terapêuticos, justiça restaurativa e
socializadora, no sentido do rompimento do ciclo da violência, efetivando o Estado
Social.
Cabe sublinhar que o tema em questão ainda encontra obstáculos por se
tratar de um tabu social. Poucos profissionais e organizações estão preparados para
lidar com situações de abuso sexual, sobretudo o intrafamiliar, que é o mais comum.
Há preconceito contra agressores sexuais, que são mal vistos socialmente, vistos
como “monstros”, além de preconceito contra os profissionais que trabalham com
tais agressores.
Conforme levantado por este grupo e outros órgãos e instituições
competentes, há uma grande carência de serviços públicos para atendimento das
crianças vítimas de violência sexual e, sobretudo, escassez de atendimentos aos
supostos agressores e às famílias abusadoras, em todas as áreas e políticas, tanto
na saúde, assistência social, educação, como segurança pública.
A demanda de investigação e estudo pelo Grupo deu-se também pela
inquietação em compreender melhor o atual fluxo de atendimento ofertado às
famílias e vítimas de abuso de sexual e sua efetiva garantia de direitos infanto-
juvenis, visando buscar respostas para a real necessidade do Depoimento Especial
como estratégia genuína de proteção à infância e juventude.
Inicialmente o grupo tratou de analisar textos do livro “Crianças vítimas de
abuso sexual”, organizado por Marceline Gabel, utilizados como plataforma básica
para entendimento do fenômeno de delitos sexuais, desde suas origens e
286
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

consequências a curto e médio prazo, numa abordagem sistêmica do tratamento


sociojudiciário da criança e do adolescente.
O grupo se aprofundou no tema utilizando-se ainda de outras leituras como:
“Escuta de crianças vítimas de abuso sexual no âmbito jurídico: uma revisão crítica
da literatura”, de Janaina PetryFroner e Vera Regina Röhnelt Ramires; “A
Credibilidade do Testemunho da Criança Vítima de Abuso Sexual no Contexto
Judiciário”, de Consuelo Biacchi Eloy; “A escuta de crianças vítimas de abuso sexual
intrafamiliar na concepção de profissionais que atuam no âmbito do Judiciário”, de
Janaína PertyFröner e Vera Regina Röhnelt Ramires; “Violência sexual e escuta
judicial de crianças e adolescentes”, livro organizado pela AASP TJ/SP em parceria
com o CRESS – SP e o protocolo de atendimento às crianças vítimas de abuso
sexual do TJ – SP “Atendimento não revitimizante de crianças e adolescentes
vítimas de violência, especialmente sexual – construção de plano interinstitucional
em âmbito estadual e implementação em caráter piloto do projeto no Estado de São
Paulo”.
Ademais, o grupo usou como método de análise as constantes trocas de
reflexões interdisciplinares entre os participantes. Também contamos com as
valiosas apresentações (e troca de idéias) de profissionais como Aurea Satomi
Fuziwara, Assistente Social judiciário do TJ-SP e, de Roberta A. Ribeiro, Assistente
Social da Prefeitura do Município de Jundiaí.
E por fim, para a elaboração do presente texto, os participantes se dividiram
em subgrupos de trabalho e, visando a transmissão do conteúdo investigado pelo
Grupo de forma mais didática, a redação ficou sistematizada da seguinte forma: 1)
Abuso sexual infanto-juvenil e a função da Justiça; 2) Atribuições da equipe
interprofissional na Justiça e garantia de direitos da criança e adolescente; 3)
Considerações e implicações do Depoimento Especial no Estado de São Paulo; 4)
Conclusões.

287
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ABUSO SEXUAL INFANTOJUVENIL E A FUNÇÃO DA JUSTIÇA

Para a discussão do tema “Abuso sexual”, decidiu-se estudar o livro Crianças


vítimas de abuso sexual, de organização de Marceline Gabel, além de outros textos
complementares. Antes de iniciar a discussão, faz-se necessária a conceituação do
termo “abuso sexual”. Gobbetti (2000, p. 35), em seu artigo organizado a partir da I
Jornada do CEARAS sobre abuso sexual, trata o abuso “como uma experiência que
excede à capacidade de elaboração da criança no que diz respeito à sua
sexualidade e, portanto, colocando um obstáculo ao seu desenvolvimento normal”.
Assim, é possível definir a relação de abuso sexual pelo excesso de
erotização sexual a qual a criança é submetida. O termo excesso, como nos mostra
a psicanálise, se refere ao fato de que alguma erotização é necessária para que a
criança se constitua como sujeito. Contudo, não se restringe à esfera quantitativa,
uma vez que a sexualidade está presente em toda a vida do indivíduo. Assim, não é
simples quantificar o grau de abuso apenas pelo tipo de atividade sexual praticada.
Segundo a autora, esta definição de abuso vai além da noção de contato corporal,
portanto a exposição de uma criança a atos de conteúdo sexual, mesmo que não
diretamente com ela, pode ser considerada abusiva. Desse modo, compartilhamos a
conclusão da autora de que “a ferida que causa o incesto não é uma ferida física, é
uma ferida psíquica” (Gobbetti, 2000, p. 36).
Nesse sentido, a mesma autora salienta que, ao longo da vida, a criança
passa por diferentes fases de desenvolvimento e a forma como ela pode ser afetada
por um ato sexual abusivo vai depender de seu momento de desenvolvimento e de
sua vivência do fato. Contudo, dentre as possíveis repercussões, o abuso pode
significar a quebra dos direitos da criança a um ambiente favorável a seu
desenvolvimento. Direitos esses que foram sendo construídos, no decorrer da
história da humanidade, a partir da percepção das necessidades da criança.
Com base no exposto e na literatura especializada sobre o tema, sabe-se que
a criança possui direitos, inclusive legalmente definidos, e que a relação de abuso
288
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

sexual afetará de alguma forma o seu desenvolvimento. Cabe, então,


questionarmos: se uma relação pressupõe ao menos duas pessoas, quem é a outra
ou as outras pessoas envolvidas? São pessoas estanhas à criança ou fazem parte
do seu ciclo de convívio? Estudos apontam que na grande maioria das vezes o
abuso é cometido por pessoas próximas à criança e, geralmente, dentro do próprio
contexto familiar: “Na maioria dos casos, o autor da agressão é uma pessoa que a
criança conhece, em quem confia e a quem, frequentemente, ama. O abusador
quase sempre tem uma relação de parentesco com a vítima e dispõe de certo poder
sobre ela, tanto do ponto de vista hierárquico e econômico (pai, padrasto e menos
eventualmente mãe), quanto do ponto de vista afetivo (irmãos, primos, tios e avós)”.
(Santos e Hippolito, 2009, p.29). Neste caso configura-se o abuso sexual
intrafamiliar ou incestuoso.
Por acontecer prioritariamente e ser mantido “em segredo” dentro da família,
o abuso sexual ainda é um tabu, ou seja, um tema pouco debatido e notificado.
Assim, os abusos revelados representam uma ínfima parte do que realmente
acontece e, com isso, não alcançamos a dimensão real da questão (Gobbetti,2000).
No entanto, essa dificuldade de lidar com a temática não se restringe à família, pois
os profissionais que atuam junto aos casos de abuso sexual e a sociedade como um
todo têm dificuldade em acreditar e aceitar que a família pode prejudicar o
desenvolvimento de suas próprias crianças, considerando que no Brasil,
historicamente, a família vem sendo definida como o lócus privilegiado de proteção
social e promoção de saúde (Cerveny; Berthoud, 2009).
Contudo, mediante o que foi mencionado anteriormente, corroboramos a
posição da autora que acredita ser inviável tratar a questão do abuso sexual infantil
sem falar em incesto. Sabemos que, ainda que se variem os tipos de proibição, a
proibição do incesto é encontrada em todas as culturas e é necessária ao
desenvolvimento do indivíduo na sociedade e a sua própria individuação. Segundo a
autora, “a relação sexual incestuosa é a concretização da fantasia mais primitiva do
indivíduo” (Gobbetti, 2000, p. 35). A realização do ato incestuoso apresenta
289
PODER JUDICIÁRIO
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aspectos destrutivos para o psiquismo da criança, pois suprime a diferenciação


subjetiva entre fantasia e realidade, o que terá como consequência para a criança a
inibição de sua capacidade de pensamento, além da dificuldade de se diferenciar e
se constituir como sujeito.
É importante ressaltar que se existe proibição é justamente porque existe um
desejo (Crivillé In Gabel, 1997, p.134). Nesse sentido, ressaltamos a necessidade de
reconhecer e ouvir o sentimento de culpa frequentemente manifestado pela vítima
ainda criança ou já adulta. “Contudo, é preciso compreender o que o constitui para
não se apressar em negá-lo ou desqualifica-lo. Reconhecê-lo já é se colocar em
posição de responder a ele de maneira adequada, isto é, em função da vivência da
criança mais do que em função do embaraço do adulto” (Crivillé In Gabel, 1997,
p.136). O sentimento de culpa da criança aponta para a relação de sedução
envolvida na dinâmica abusiva e geralmente contribui para a manutenção do silêncio
e do segredo na família.
No texto “Abordagem sistêmica do tratamento sociojudiciário da criança vítima
de abusos sexuais intrafamiliares”, o autor HervéHamon (In Gabel, 1997) discute a
questão do impacto da interferência do judiciário nos sistemas familiares
incestuosos. O autor descreve como famílias incestuosas aquelas que estão
configuradas pelo desrespeito às fronteiras das gerações, onde a filha ocupa o lugar
da mãe, implicando uma relação casal pai-filha, na qual a mãe se coloca na posição
de mãe do marido. Gobbetti (2000, p. 37) complementa esta ideia ao afirmar que a
relação incestuosa não se restringe à relação sexual em si, pois trata-se de “uma
consequência da perversão de papéis que é resultante de uma perversão ou não
internalização das leis sociais”, apontando esta ausência de funções como o mais
prejudicial nestas relações.
Outra característica dessas famílias é a impermeabilidade, ou seja, a
dificuldade de intervenção de agentes externos, implicando no afastamento de seus
membros e contribuindo para a manutenção do silêncio. O autor salienta que “o
incesto não é uma questão de classe social, mas de modo de funcionamento”
290
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

(Hamon in Gabel, 1997, p. 176), colocando a escola como um importante


instrumento para a revelação, bem como para a prevenção.
As famílias incestuosas também se organizam em torno do segredo, que
pode ser partilhado entre abusador e vítima, mas também pelo adulto que deveria
proteger a criança. O segredo envolve o poder, tanto do agressor (adulto) sobre a
vítima (criança), pela condição de superioridade, como da vítima sobre o agressor
pela possibilidade de revelação do abuso. Nesse sentido é importante ressaltar que,
embora existam casos em que a relação sexual incestuosa se dê por meio de
ameaça ou violência física, “a sedução é o que caracteriza a maioria dessas
relações, o que não torna suas consequências mais brandas” (Gobbetti, 2000, p.36).
Ao contrário, a sedução presente na relação sexual incestuosa mascara o aspecto
destrutivo pela presença de afeto, o que amplia muito a ambiguidade das relações e
contribui para a manutenção do segredo.
O autor trata ainda do confronto do sistema familiar com o sistema judiciário,
onde ocorre o desvelamento, ou descortinamento, do que todos já sabem, mas
escondem. Essa revelação nem sempre aparece como um pedido de mudança e
apoio, porém, mais frequentemente, como um pedido individual para que os fatos
cessem. Da mesma forma que os pedidos externos (de serviços sociais e médicos)
de “que as crianças sejam protegidas, afastadas, que o autor seja punido, que
cessem os abusos” (Hamon In Gabel, 1997, p.181).
Com a abertura do processo penal, o autor coloca que ocorre a revitimização
“o processo penal transforma novamente em vítima a criança que foi vítima de
abusos sexuais praticados, por um ascendente” (Hamon In Gabel, 1997, p.183). A
criança será submetida a exames médicos, perícias, interrogatórios. No entanto, é
possível identificar outro aspecto importante a respeito da perícia: o fato da criança
ser reconhecida como sujeito de direito (em especial, o direito à reparação) por meio
da escuta de sua palavra, até então, geralmente silenciada: “a criança submetida à
perícia, por ordem do juiz, é de fato reconhecida como sujeito de direito (à
reparação), e a perícia vai firmar sua necessidade, contanto que ela lhe dê o direito
291
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

à palavra sobre sua vitimação, em detrimento do silêncio dos adultos” (Viaux In


Gabel, 1997, p.128).

GARANTIA DE DIREITOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES E


ATRIBUIÇÕES DA EQUIPE INTERPROFISSIONAL NA JUSTIÇA

As iniciativas voltadas à proteção da criança e do adolescente são recentes


no Brasil. Historicamente a criança foi vista como um objeto à serviço dos interesses
do adulto, ora como seres incapazes, ora como anjos, ou ainda como adultos do
futuro, que na perspectiva higienista, precisavam ser preparadas, disciplinadas para
uma vida adulta útil (Bossa, 2002).
Alguns passos importantes na direção do reconhecimento dos direitos
humanos para uma população até então destituída de diretos foram: a Declaração
da Criança de 1924, o artigo 25 da declaração dos Direitos do Homem de 1948 e a
Declaração dos Direitos da Criança, aprovado com dez princípios pela ONU em
1959.
Todavia, podemos dizer que o grande salto no âmbito internacional ocorreu
aos 20 de novembro de 1989, com a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, que ao longo de seus 54 artigos, ratificada por 491 países (com exceção
dos Estados Unidos e Somália), apresentou para as sociedades democráticas uma
forma de tratamento das crianças em conformidade com princípios como: Direitos à
sobrevivência; Direitos ao desenvolvimento; Direitos à proteção; Direitos à
participação.
A Convenção Internacional dos Direitos da Criança acorda que:
 Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições
públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, terão primordialmente em
conta o interesse superior da criança. (art. 3.1)

292
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de


discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as
questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em
consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e
maturidade. (art. 12.1)
 Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida
nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja
diretamente, seja através de representante ou de organismo
adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de
processo da legislação nacional. (art. 12.2)
Dentre seus princípios destaca-se ainda:
1. O princípio do “superior interesse da criança”.

Para Azambuja o superior interesse da criança trata-se de um conceito não


definido e não fechado, mas que se relaciona diretamente com a dignidade da
pessoa humana. Para a autora:

O princípio do melhor interesse da criança encontra seu fundamento


no reconhecimento da peculiar condição de pessoa humana em
desenvolvimento atribuída à infância e juventude. Crianças e
adolescentes são pessoas que ainda não desenvolveram
completamente sua personalidade, estão em processo de formação,
nos aspectos físicos, psíquico, intelectual, moral, social, valendo
lembrar que “os atributos da personalidade infato-juvenil têm
conteúdo distinto dos da personalidade dos adultos”, trazem carga
maior de vulnerabilidade, autorizando a quebra do princípio da
igualdade; enquanto os primeiros estão em fase de formação e
desenvolvimento de suas potencialidades humanas, os segundos
estão na plenitude de suas forças [...]

293
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Miguel CilleroBruñol ao mencionar a Convenção Internacional (in: Azambuja,


2011) trás que:

A Convenção representa uma oportunidade certamente privilegiada,


para desenvolver um novo esquema de compreensão da relação da
criança com o Estado e com as políticas sociais, e um desafio
permanente para se conseguir uma verdadeira inserção das crianças
e seus interesses nas estruturas e procedimentos dos assuntos
públicos [...]
No Brasil o princípio colocado pela Constituição Federal em 1988, em seu
artigo 22718, inicia o reconhecimento da condição peculiar das crianças e
adolescentes em fase de desenvolvimento e obriga o mundo adulto à conformação
de um sistema especial de proteção aos seus direitos. Novos princípios
constitucionais passam a orientar as ações na área da infância (Ferreira, 2011),
como:
1. princípio da proteção integral;
2. principio do respeito à peculiar condição de pessoa em desenvolvimento;
3. princípio da prioridade absoluta;
4. princípio da igualdade de crianças e adolescentes;
5. princípio da participação popular, responsável pelo chamamento da
comunidade organizada a engajar-se na defesa dos direitos da criança.

18
Constituição Federal de 1988

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).
294
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Em 1990, a promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente marca no


Brasil a expressão máxima de segmentos sociais pelo desejo de rompimento
imediato do comportamento antigo da sociedade e da consolidação da passagem da
Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral (Assis, 2010).
Do ponto de vista jurídico, a adoção da Doutrina da Proteção Integral
promoveu o então “menor”, mero objeto do processo, para uma nova categoria,
passando à condição de sujeito do processo, estabelecendo assim uma relação de
direito e dever, levando-se em consideração a condição especial de pessoa em
desenvolvimento (Saraiva, 2006, p. 180), marcada pela ampliação da interface da
justiça com o campo socioeducativo e uma crescente intersetorialidade e
interprofissionalidade.
A política de atendimento à criança e ao adolescente prevista no Estatuto da
Criança e do Adolescente (artigo 86) requer um conjunto articulado de ações
governamentais (União, Estados, Distrito Federal e municípios), e da sociedade em
geral, que por meio de políticas de atendimento e recursos, busquem com absoluta
prioridade a garantia da proteção integral dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à liberdade, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Se por um lado são notórios os avanços no que tange ao novo paradigma de
sujeitos de direitos para todas as crianças e adolescentes, por outro, a efetivação de
uma rede de apoio, promoção e proteção da criança e adolescente e de políticas
públicas de apoio familiar ainda apresentam-se como um grande desafio a ser
alcançado.
É a partir desta conjuntura que a inserção de diferentes profissionais torna-se
necessária para que se garantam os direitos da Infância e Juventude. O contexto do
abuso sexual infantil é o tema que compartilhamos neste ano, sendo indispensável
pensar nos diversos atores envolvidos (ou que deveriam estar envolvidos) para o
acolhimento e tratamento de crianças vítimas dessas situações.

295
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Iolete Ribeiro da Silva (p. 19) aponta que diferentes estudos revelam “a
necessidade de mais investimentos na rede de promoção e proteção, a fim de
garantir atendimento de qualidade, capacitação para os profissionais, celeridade nos
serviços, ampliação de conhecimentos sobre funcionamento da rede e humanização
da escuta das crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência,
especialmente de violência sexual”.
Partimos do conceito de trabalho interdisciplinar descrito por SAUPE, R. ET
AL. (2005):

Na perspectiva contemporânea na qual este estudo se insere, a


interdisciplinaridade contempla: o reconhecimento da complexidade
crescente do objeto das ciências da saúde e a conseqüente
exigência interna de um olhar plural; a possibilidade de trabalho
conjunto, que respeita as bases disciplinares específicas, mas busca
soluções compartilhadas para os problemas das pessoas edas
instituições; o investimento como estratégia para a concretização da
integralidade das ações de saúde [...] (Comunic, Saúde, Educ, v.9,
n.18, set/dez, p.523).
Acredita-se que ao possibilitar tal estratégia, o trabalho com crianças vítimas
de abuso sexual passa a ser mais completo e acolhedor. Quando uma equipe se
articula para que se possa pensar em estratégias e se debruça sobre a mesma
questão, podendo articular saberes, o atendimento passa a ser algo construído por
vários atores, que juntos procuram melhores possibilidades para a garantia de
Direitos.
Nos casos de abuso sexual, o encaminhamento imediato de crianças e de
adolescentes aos serviços médicos, psicológicos, jurídico-sociais e educacionais,
bem como as ações de responsabilização e de assistência ao autor de violência
sexual contribuem, de um lado, para que o abuso tenha consequências físicas e
psicológicas menos danosas e, de outro, para que o ciclo de impunidade e violência
se interrompa.
296
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Essa ação pode trazer, consequentemente, a médio e longo termos, uma


redução dos índices de abuso sexual (SANTOS, 2007).O “princípio que preside o
conceito de Política de Atendimento no artigo 88 do ECA é o princípio da rede e não
o da pirâmide. Rede é um “conjunto articulado de ações”. Não se trata, portanto, de
um conjunto verticalizado de ações”(COSTA, 2005).
Além do ECA, outras legislações vem reforçar que a Política Pública deve ser
intersetorial e ocorrer através de um conjunto integrado de ações governamentais e
da sociedade civil. Outros documentos oficiais dos gestores da política de
atendimento à criança e ao adolescente no Brasil também afirmam as ações em
rede como a principal forma de enfrentamento a violência sexual contra crianças e
adolescentes, dada a complexidade do fenômeno.
A sub notificação ou ausência de dados sobre a violência sexual contra
crianças e adolescentes dificulta o reconhecimento desta problemática como
relevante para o enfrentamento público através de políticas que visem a, pelo
menos, reduzi-la. “Qualquer tipo de violência, no entanto, traz sempre
consequências para a criança ou o adolescente que a vivencia. Por isso é
fundamental que pais e profissionais, assim como educadores, médicos, psicólogos
e assistentes sociais, estejam preparados para perceber os sinais de violência,
abuso e exploração sexual e para romper o silêncio.”(MOURA et al, 2008, p. 20).
Dessa forma, o enfrentamento da violência familiar inicia com o rompimento
do pacto do silêncio do qual participam a família e muitos profissionais que se
omitem na notificação obrigatória dos casos de violência de que tem conhecimento,
muitas vezes por trabalharem sozinhos sem apoio institucional ou por não
possuírem referencial teórico específico que o ajudem a compreender o fenômeno.
Outras vezes por medo de perderem o controle das consequências da
notificação.(AZEVEDO E GUERRA, 2000)
Especificamente sobre o trabalho interdisciplinar com vítimas de abuso sexual
tem-se que a questão torna-se mais complexa, já que o atendimento pode envolver

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PODER JUDICIÁRIO
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temáticas que acabam por afetar os profissionais também, como raiva, impotência e
possíveis fantasias. Segundo Iolete Ribeiro da Silva:

A violência sexual é um problema complexo e delicado. Suas


múltiplas causas, interfaces e, principalmente, o sofrimento psíquico
de todas as pessoas envolvidas, exigem extremo cuidado dos
profissionais responsáveis pelo atendimento e de todos os
integrantes da rede de proteção.(Conselho Federal de Psicologia:
Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos
em situação de violência e a rede de proteção – Propostas do
Conselho Federal de Psicologia. – Brasília: Conselho Federal de
Psicologia, 2009, p.19)

Partindo do princípio da proteção integral e da criança como prioridade


absoluta, os profissionais que realizam o atendimento às crianças vitimizadas devem
proporcionar um espaço de “verdadeira escuta”, com o mínimo de interferência,
dispondo-se a ouvir o que a criança tem a falar (Azambuja, 2011). Como trazem
Fuziwara e Fávero (in: Azambuja, 2011):

[...] ouvir com os ouvidos, os olhos, a razão e os sentimentos, sem


que estes últimos se sobreponham à necessária interação
profissional e humanizada, para que o impacto que a revelação pode
causar não supere o entendimento de que a criança é um ser em
formação e toda e qualquer ação e reação frente à violência sofrida
vai afetá-la de alguma maneira [...] (2011, p. 46).
Dessa forma, a prioridade da escuta interdisciplinar é de concentrar-se na
promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e adolescente, tendo este como
o papel ético profissional dos diferentes atores que estão envolvidos no acolhimento,
tratamento e escuta daqueles que foram vitimizados e das famílias envolvidas.
Não compete ao profissional do Serviço Social e da Psicologia buscar a
verdade no discurso da criança e do adolescente vitimizados e sim a viabilização do

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acesso aos direitos fundamentais de todos os sujeitos envolvidos nas situações de


violência sexual (Nascimento, 2011, pg. 95). Não temos como objetivo a produção
de provas.
Em resumo, os desafios dos profissionais envolvidos são de ampliar o debate
acerca da questão da violência sexual infanto-juvenil, aprofundar os estudos e
pesquisas e problematizar as questões sobre este tema. A atuação profissional dos
assistentes sociais e psicólogos deve contribuir com a articulação da rede de
atendimento objetivando a proteção e os cuidados adequados a criança, ao
adolescente e suas famílias, sempre alinhada com os princípios éticos e políticos
que norteiam suas profissões.

CONSIDERAÇÕES E IMPLICAÇÕES DO DEPOIMENTO ESPECIAL


NO ESTADO DE SÃO PAULO

Para discutirmos a implementação da “Escuta Especial”, lemos o


PROTOCOLO CIJ Nº PROTOCOLO CIJ Nº 00066030/11 – Atendimento não-
revitimizante de crianças e adolescentes vítimas de violência, especialmente sexual-
construção de plano interinstitucional em âmbito estadual e implementação em
caráter piloto do projeto em cinco varas no Estado-embasamento legal autorização
pela Coordenadoria da Infância e da Juventude (anexo 1) e, entramos em contato
com os Profissionais da Equipe Técnica do Judiciário eleitos para implementação
em caráter piloto – Atibaia, Guarulhos, Campinas e São Caetano do Sul – para que
explanassem sobre tanto em nosso grupo, porém sem êxito.
Conforme leituras e aproximações com a metodologia atualmente intitulada
“Depoimento Especial” por meio de videoconferências, capacitação oferecida pela
Coordenadoria da Infância e Juventude e do Núcleo de Apoio de Serviço Social e
Psicologia do TJ/SP, em breve síntese, especificamente sobre a atuação da Equipe

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PODER JUDICIÁRIO
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Profissional do Judiciário, Assistentes Sociais e Psicólogos, farão preliminarmente o


estudo psicossocial da família e criança/adolescente vítima de violência, em especial
sexual, quando conhecerá a ação judicial, os encaminhamentos, acompanhamentos
e tratamentos realizados pela rede socioassistencial e garantias de direitos e
aproximará das partes envolvidas, tanto com o objetivo de estudo quanto
apresentação do Depoimento Especial, quando consultará a criança/adolescente e
responsáveis legais sobre a escolha da criança/adolescente em participar de
audiência tradicional com o Juiz ou Depoimento Especial, sendo o Profissional de
Psicologia prioritariamente, quem realiza o Depoimento Especial conforme o
protocolo.
O protocolo de atendimento antes denominado “Escuta sem Dano”, citamos
Rosa, que afirma que as iniciativas para evitar a revitimização no palco processual
são muitas(in Azambuja, Ferreira & Colaboradores 2011 p.90). Segundo Daltoé
Cezar (2007, p.62), os três principais objetivos da Escuta Especial são:

“(i) Redução do dano durante a produção de provas em processos


judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou testemunha; (ii)
A garantia de direitos da criança/adolescente, proteção e prevenção
de seus direitos, quando, ao ser ouvida em Juízo, sua palavra é
valorizada, bem como sua inquirição respeita sua condição de
pessoa em desenvolvimento; (iii) Melhoria na produção da prova
produzida.”

O procedimento é articulado em ambiente apartado, sem os rigores de uma


sala de audiência, e conduzido por profissional do serviço social ou psicologia, o
qual é o “instrumento” para a realização das perguntas formuladas desde outro
ambiente, servindo de “tradutor” das demandas.
Em sua dissertação sobre o tema, Luciane P. Bitencourt, articulando o tema
desde o ponto de vista da “revitimização”, aponta:

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

O discurso jurídico dos operadores do direito, revestido de poder,


dominação e principalmente falta de conhecimentos específicos
sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes não leva a uma
situação ideal de fala. A comunicação no processo, quando envolve
crianças e adolescentes vítimas-testemunhas e operadores jurídicos,
fica distorcida, não há um diálogo que possibilite o “encontro”, a
compreensão da vítima como sujeito de direitos. Os operadores de
direito buscam incessantemente a verdade dos fatos e nessa busca
esquecem que estão lidando com a vida de seres humanos e não
objetos processuais, pois as crianças e adolescentes que foram
objetos sexuais, no processo, tornam-se objetos processuais, meios
de prova para condenação do agressor. (BITENCOURT 2007, p.170)

Portanto, a par das críticas específicas e pertinentes, como a do Conselho


Federal de Psicologia, sobre a necessidade de respeito ao “silêncio” e ao desejo da
criança/adolescente, na formulação do projeto, confunde-se “direito de ser escutado”
com a “obrigação de produzir prova” e o de ser necessariamente “revitimizado” em
escutas em série (delegacia, psicólogo, em Juízo, com ou sem DSD). Através de
três pilares básicos, o autor estrutura seu texto, salientando que o DSD é
implementado sem a devida discussão democrática e social: através da matriz
inquisitória e seu consequente quadro paranóico; a contaminação ideológica em
face da compreensão da subjetividade; e a desresponsabilização e a sofisticação do
poder, dito “brando”, em nome ilusoriamente do “bem”.
Segundo o mesmo autor, ainda há dois mitos fortemente enraizados neste
suposto discurso protetor: “O Mito da Criança Pura” e o “Mito da Verdade”. O
primeiro versa sobre a pureza da criança, que por ser pura consequentemente
sempre diz a verdade, pressupondo ainda que a criança não é um sujeito de desejo.
O segundo mito refere-se ao fato de que é impossível e equivocada a pretensão de
que o inconsciente e a “fantasia fundamental” da criança não atravessem o
simbólico, ou seja, dizer que não haja uma confusão entre o registro “factual” e o

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registro “simbólico” no discurso e na memória fragmentada da criança quando esta é


inquirida – negando assim, a própria estrutura e dinâmica psíquica da mesma.
Lembrando que: “uma forte imaginação cria acontecimentos por si mesma”. Temos
que tomar muito cuidado, pois:

“Diante de um ato de violação qualquer, o discurso (dos supostos


protetores/salvadores/justiceiros das crianças e adolescentes)
sancionador violento e programado se posta a recriminar o adulto
faltoso, previamente culpado (sempre), por violar a pureza da
criança”. (Rosa in Azambuja, Ferreira & Colaboradores 2011, p.91)

A partir da leitura crítica do documento “Aprimoramento do atendimento


interinstitucional de crianças e adolescentes vítimas de violência, especialmente
sexual: Uma perspectiva em rede para a promoção de direitos”, redigido pela
Coordenadoria de Infância e Juventude do TJSP, à luz da farta bibliografia escolhida
pelo grupo que segue discriminada ao fim do texto, foi concluído que existem
diversos pontos que devem ser melhor esclarecidos e debatidos antes da
implantação do referido Projeto, tais discussões pretendem recolocar, de fato, a
centralidade da discussão na Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente.
A primeira discussão que se coloca é a respeito do Protagonismo da criança e
adolescente em sua história. Ora, ser protagonista significa ser o principal, decidir,
escolher e fazer, será que uma criança e adolescente, enquanto vítima ou
testemunha de crime, consegue pesar os riscos e benefícios advindos do impacto de
seu testemunho? Será que cabe a ele, ao ser instruído que tem o direito de não
falar, averiguar, uma a uma as propostas de proteção que a Rede pode oferecer e
rapidamente decidir se sente-se adequadamente protegido, a si e a sua família, e
depor?
De fato, não é possível admitir que a criança seja inquirida e gravada sem que
a mesma seja avisada sobre tal procedimento. No entanto, contar que ela possui

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uma capacidade que claramente extrapola suas possibilidades, não se traduz


também num abuso?
É surpreendente a perspicaz afirmação de FUZIWARA (2012) “para se obter
uma prova testemunhal, o Judiciário utiliza a mesma estratégia do abusador: seduz,
prepara as condições, retira o que lhe interessa e encerra o assunto”.Forte, porém,
parte daí a importância de se conhecer a dinâmica do abuso e a dinâmica judicial
para assim se construir protocolos que verdadeiramente detenham a revitimização e
produzam mudanças reais na sociedade.
É claro que interessa à sociedade, à Justiça, às vitimas e seus familiares que
haja maior eficácia do sistema Judiciário, no entanto, como fazê-lo sem revitimizar a
estas crianças e adolescentes? Outra questão advêm do questionamento do
encarceramento como solução para um problema tal complexo, do ponto de vista
cultural e até da saúde mental, como é a violência sexual contra crianças e
adolescentes. Se os abusadores sabidamente são parte da família da criança, o
afastamento decorrente do aprisionamento não esgota o contato com este. Mais
cedo ou mais tarde haverá contato entre eles e, considerando que não há no
Programa nenhum processo de articulação para escuta qualificada, bem como
acompanhamento psicossocial para o agressor, é questão de tempo para que o
mesmo, ao retornar para a sociedade novamente repita o padrão já estabelecido.
Nas avaliações realizadas em Vara de Infância, de Violência Doméstica e da
Família, não é incomum que crianças e adolescentes ao serem atendidos pela
equipe de Serviço Social e Psicologia das equipes técnicas, em situação de
violência, voltem atrás nas denúncias feitas anteriormente. Este fenômeno é
extremamente comum, ocorre que uma vez que não há peso de uma plateia ansiosa
para observar, há tempo para a equipe técnica buscar na linguagem corporal da
criança, nos desenhos, fase do desenvolvimento, enfim, em diversas outras fontes,
evidências que apontem para uma eventual ocorrência de violência.

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PODER JUDICIÁRIO
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Tais avaliações, em que pese que se tornam parte dos autos, portanto, prova,
tem como objetivo maior saber para melhor cuidar, o peso da palavra é devidamente
balanceado com outras formas de comunicação e levantamento de dados.
A gravação da fala da criança com o Psicólogo e o peso que há, e ela sabe,
que sua palavra colocará, provavelmente, um parente na prisão é uma fonte de
estresse muito grande para um ser ainda em formação, afora a problemática da
super-exposição do sofrimento infantil, um processo de espetacularização, os
psicólogos e assistentes sociais do Tribunal de Justiça possuem como dever ético,
reafirmado pelos respectivos Conselhos Profissionais chamar atenção para este
aspecto da proposta.
Frequentemente argumentarão que tais tipos de crimes não deixam outras
provas a não ser as memórias da vítima. Procedimentos mais céleres, de fato, uma
escuta quase que imediatamente posterior à possível violência sofrida, são
pertinentes, afinal, a passagem de alguns meses para uma criança já é muito
tempo.Uma vez que haja revisão de procedimentos e acordos entre a Rede de
Proteção e o Judiciário, seria possível diminuir drasticamente o número de pessoas
alheias à criança que falarão a este respeito com ela, afinal, a violência sofrida está
no âmbito da intimidade de um ser em desenvolvimento.
Outro questionamento diz respeito a uma mudança na função dos
profissionais dos quadros do TJSP. É possível realizar esta “escuta” como sugere o
Protocolo e ao mesmo tempo estar em dia com os deveres éticos profissionais? Se
houver necessidade da criança e do adolescente deporem frente a um juiz, como
ainda ocorre atualmente, possivelmente haveria um treinamento ou curso para que
as autoridades do magistrado paulista possam fazer as perguntas diretamente
àquelas testemunhas, sem necessidade de filtros, pois advogados e juízes
entenderão como conversar com uma criança sem desrespeitá-la em seus Direitos.
Costa (2005) nos aponta alguns elementos que podem aparecer como pano
de fundo para este descompasso entre um aparato legal extremamente avançado e

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PODER JUDICIÁRIO
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uma prática ainda marcada pela violação dos direitos humanos de crianças e
adolescentes:
São as culturas obstaculizadoras aos avanços da democracia
participativa e das práticas sociais e jurídicas superadorastanto
do assistencialismo, como da discricionariedade. São elas:
1. Nossa cultura política, ainda predominantemente
clientelista e fisiológica;
2. Nossa cultura administrativa, marcadamente burocrática
e corporativa;
3. Nossa cultura técnica, fortemente auto suficiente e
formalista;
4. Nossa cultura jurídica, ainda contaminada, em muitos
casos, por resíduos tóxicos da velha doutrina da situação
irregular;
5. Nossa cultura cidadã, ainda emoldurada por uma história
secular de passividade e conformismo.(COSTA, 2005)
Prevenir e combater a violência doméstica, o abuso e a exploração sexual de
crianças e adolescente é uma missão complexa e deve envolver diversas ações em
vários campos, com a atuação conjunta da sociedade civil e do poder público em
suas três instâncias governamentais.(MOURA et al, 2008).
Além de uma gestão intersetorial e em rede, outras estratégias a curto e
médio prazo podem ser adotadas no enfrentamento da violência sexual:
. Capacitação de profissionais a fim de possibilitar a prevenção, identificação
precoce dos casos e tratamento;
.Visitas domiciliares e acompanhamento das famílias mais vulneráveis
(agentes comunitários de saúde, médicos, assistentes sociais, dentre outros);
. Atendimento psicológico, social e jurídico às vítimas de violência e suas
famílias;
. Responsabilização e atendimento psicológico dos agressores;
. Estimular o exercício da maternidade e paternidade responsável;
. Implantação de um Plano de Enfrentamento à Violência contra crianças e
adolescentes que articule os programas e crie ações multiprofissionais, intersetoriais
e interinstitucionais.
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CONCLUSÕES

O Abuso Sexual ainda é um tabu, pouco debatido e notificado. Grande parte


dos casos se dá dentro da própria família, portanto tendo caráter incestuoso, ou
seja, quando tratamos de abuso sexual, estamos lidando com o tabu fundador da
cultura, sua proibição, fantasias, desejos e sobretudo o sentimento de culpa das
vítimas. O processo de perícia permite que ela se expresse e seja reconhecida como
sujeito de direito, por meio da escuta judicial e do rompimento do segredo .
Há que se diferenciar a perícia técnica do depoimento especial, cujo objetivo
principal é a coleta de provas que possibilitem a punição do suposto abusador. Se a
perícia técnica permite a escuta da criança, pautada no conhecimento de seu
desenvolvimento, decifrando desejos e fantasias familiares, sua oitiva, ou seja, a
transcrição de seu discurso sem interpretação e consideração de sua idade e fase
de desenvolvimento, pode significar a sua revitimização. Ainda que acompanhada
por técnicos, como previsto no projeto do Estado de São Paulo, é caracterizada
como oitiva e suas palavras são consideradas literalmente como verdade, sem que
se investigue seu significado mais profundo, que pode expressar, como no caso do
incesto, questões de toda uma dinâmica familiar, muito além do abusador e da
vítima.
A perícia, embora não seja em si um processo terapêutico, mas uma rápida
intervenção, pode propiciar elaborações e insights e facilitar uma aproximação mais
aprofundada do caso em questão.
Como diz Jean-Luc Viaux (in Gabel,cap5),“O momento da perícia não é
neutro, fazendo a investigação em nome da lei, do relato do abuso e da história da
criança, ela abre um diálogo com a família e a criança, sobre o processo judiciário e
a necessidade de reparação”.
Uma das questões que se apresenta com o depoimento especial é que,
colocado o profissional como auxiliar de uma oitiva, seu lugar como perito resulta

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prejudicado. Não seria todo o caminho de escuta da família também afetado,


inviabilizando uma intervenção profissional, ou melhor, interdisciplinar, envolvendo
profissionais que possam contribuir com seus diferentes saberes ? A anulação dos
profissionais , submetendo –se ao rito jurídico com a finalidade de punição do
agressor /abusador contribuiria com o real interesse da criança? Ou seria a
anulação dos direitos da própria criança?
A punição do suposto abusador pode ser considerada uma reparação pela
sociedade, mas pode não ser para a criança, no sentido de reparação psíquica.
Vimos que dentro do escopo da compreensão que temos sobre proteção
integral da criança e do adolescente, os profissionais devem propiciar um espaço de
escuta interdisciplinar que garanta o respeito aos diversos saberes
envolvidos.Como já dito,a atuação dos assistentes sociais e psicólogos deve
contribuir para a articulação da rede de atendimento, objetivando a proteção e os
cuidados adequados à criança e ao adolescente, consequentemente a sua família e
responsáveis por seu desenvolvimento e proteção.
No Depoimento Especial de São Paulo, o Profissional Psicólogo ou Assistente
Social que fizer a oitiva/inquirição/entrevista forense, deixa de atuar como avaliador
ou perito das questões sóciorelacionais e psicológicas daquelas crianças e
adolescentes e suas famílias, pois utilizará de outras metodologias e instrumentais
técnico-operativos, diferentes dos apreendidos em sua formação e utilizados nas
avaliações onde há interpretação, reflexão, comparação e análises, o que, na lógica
do discurso penal, são instrumentais que podem contaminar falas e respostas.
Outra questão de princípio ético e de atribuição profissional é o para quê
realizarmos tal oitiva/inquirição/entrevista forense? Para criminalizar e punir ainda
mais uma das classes desta sociedade fundada em relações de poder, autoritária e
regida pelo capital, a qual depende dos serviços e políticas públicas.
Avalia-se que esta metodologia de Depoimento Especial visa a punição dos
agressores, na velha lógica maniqueísta, visto que, ao saírem das salas de escuta,
essas crianças e adolescentes continuam reféns das políticas públicas fragmentadas
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e desarticuladas, continuarão a viver na mesma família e sociedade que produziram


e reproduziram a violência, pois sua fala foi utilizada apenas para incriminar e não
para protegê-la ou efetivar direitos essenciais de saúde, assistência social,
segurança pública para seu pleno desenvolvimento, emancipação e elaboração do
vivido.

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PODER JUDICIÁRIO
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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Cânone Editorial, 2007.

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PODER JUDICIÁRIO
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ANEXO 1

Coordenadoria da Infância e da Juventude


PROTOCOLO CIJ Nº PROTOCOLO CIJ Nº 00066030/11 – Atendimento não-revitimizante de crianças e adolescentes
vítimas de violência, especialmente sexual-construção de plano interinstitucional em âmbito estadual e implementação
em caráter piloto do projeto em cinco varas no Estado-embasamento legal autorização pela Coordenadoria da Infância
e da Juventude.
Por r. determinação do MM. Juiz de Direito Membro da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, faz-se publicar, para conhecimento, o r. parecer da Coordenadoria da Infância e da Juventude, exarado
as fls. do expediente em epígrafe.
(Parecer CIJ )
EXCELENTÍSSIMO DESEMBARGADOR COORDENADOR DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Atendimento não-revitimizante de crianças e adolescentes vítimas de violência, especialmente sexual-construção de plano
interinstitucional em âmbito estadual e implementação em caráter piloto do projeto em cinco varas no Estado-embasamento
legal autorização pela Coordenadoria da Infância e da Juventude.
Antecedentes e fundamentação
Com a edição da Resolução 20 de 2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, estabelecendo diretrizes para
a justiça em matérias relacionadas a crianças vítimas ou testemunhas, a 1ª Vara Criminal de São Caetano do Sul, da qual sou
titular, solicitou, em 2005, ao Egrégio Conselho Superior da Magistratura a sua especialização em vara de crimes contra a
criança e adolescente, o que foi acolhido, tornando-se, assim, a primeira vara especializada do Estado.
Na mesma época, após consulta à equipe interprofissional da vara, solicitou autorização à Egrégia Corregedoria Geral de
Justiça para implementação de projeto de “depoimento sem dano”, tal como existente no Rio Grande do Sul. A proposta
ganhou
igualmente autorização formal.
Com a criação da Coordenadoria da Infância e da Juventude, Vossa Excelência autorizou a tomada de providências para
conseguir financiamento para a compra de equipamentos, sua instalação e capacitação dos profissionais envolvidos.
Entendeu-se também necessária a ampliação da proposta para contemplar outras comarcas. Após consultas, definiu-se a
instalação em quatro varas da infância e da juventude, sendo duas de grande porte, Campinas e Guarulhos, e duas de médio
porte, Atibaia e São Caetano do Sul. Consigne-se terem sido consultadas outras varas, mas muitas delas não desejaram a
implementação do projeto.
Conseguimos financiamento junto à Secretaria de Reforma do Judiciário - Ministério da Justiça para a compra do equipamento,
que contemplou também a Vara de Violência Doméstica da Capital e que passa a compor o projeto. Obtivemos junto à
Childhood
Brasil para a sua instalação e com as empresas Medley e Robert Bosch para a capacitação. A ABMP - Associação Brasileira
de
Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude será instituição parceira no processo de
capacitação, recebendo e administrando os valores e a vinda da professora convidada. A capacitação realizar-se-á na Escola
Paulista da Magistratura.
A professora convidada é Irene Intebi da Argentina, Presidente da Sociedade Internacional para a Prevenção do Abuso
e Negligência de Crianças (ISPCAN). É psiquiatra infantil e psicóloga clínica. Coordenou a Área de Maus Tratos Infantis da
Secretaria Geral da Mulher em Buenos Aires. É membro fundadora da Associação Argentina para a Prevenção de Maus Tratos
e Abandono Infantil.

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A implementação do projeto é hoje recomendada pelo Conselho Nacional de Justiça, que, por sua Recomendação n° 33,
recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência nos processos judiciais, doravante chamado de Depoimento Especial.
No Estado de São Paulo, como Vossa Excelência poderá ver no fluxo em anexo, entendeu-se que não se trata
exclusivamente de um aprimoramento do modo de atendimento pela Justiça, mas sim de um complemento reordenamento
interinstitucional do atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência.
Para tanto, após a realização de seminário, constituíram-se três grupos de trabalho setorizados: atendimento inicial (saúde,
segurança e assistência social). Jurídico (juízes, promotores de justiça, defensores públicos e delegados de polícia) e das
equipes interprofissionais do Judiciário.
Previu-se, no primeiro, que três são as portas de entrada primárias de violência sexual: assistência social, pelo Programa
de Atenção Especializada em Famílias e Indivíduos - PAEFI, serviço de média complexidade ligada ao CREAS; as delegacias
de polícia e serviços de saúde.
Os demais serviços poderiam ser eventualmente espaços de revelação dos fatos, mas sem responsabilidade pelo
atendimento. De igual modo, o Conselho Tutelar não teria a incumbência de escuta da criança, mas de monitoramento de seu
atendimento, requisição de serviços e representação ao Ministério Público (para a tutela de direitos individuais ou socia is) ou
à Vara da Infância e da Juventude (nos casos do art. 194 do ECA)
Encontra-se, para tanto, em fase de elaboração um documento único de caracterização da violência, cujo preenchimento
será de atribuição do órgão que primeiramente receber a criança/adolescente. Entendeu-se que, salvo nos casos de flagrante
ou de revelação dos fatos em atendimento na saúde, a instituição primordialmente responsável pelo atendimento é o PAEFI/
CREAS. Uma vez caracterizada a violência, o documento será compartilhado entre as demais instituições, de modo que a
criança/adolescente não necessitará mais expor os fatos.
Paralelamente, o PAEFI/CREAS elaborará um plano de atendimento familiar para contemplar todas as necessidades da
criança/
adolescente e se us familiares, garantindo-se, com isso, seus direitos sociais e notadamente seu desenvolvimento.
No âmbito da justiça, e diferentemente do que ocorre em outros Estados, especialmente no Rio Grande do Sul, entendeu-se
que a apuração da violência contra crianças e adolescentes não pode ser feita unicamente com base na escuta da criança e
adolescente.
Isto porque sua fala deve ser contextualizada dentro de seu processo de desenvolvimento, indicando (in)compatibilidades
com o mesmo, e levantamento de outros indicadores de violência, que permitirão uma decisão mais segura e justa para
todos.
Por isso, compreendeu-se que a natureza da prova a ser produzida há de ser híbrida, tanto de avaliação pericial como de
depoimento, tendo a escuta como denominador comum interdisciplinar. Para tanto, como Vossa Excelência poderá ver no
documento em anexo, propõe-se a elaboração de quesitos prévios, com acompanhamento por videoconferência do relato
da criança/adolescente feito aos técnicos do Judiciário, e após relato livre pela criança e perguntas focalizadas pelos técnicos,
questões complementares pelos operadores do direito. Ao cabo da entrevista, os profissionais apresentarão estudo avaliativo.
Como Vossa Excelência pode perceber a proposta já contava com autorização formal da E. Corregedoria Geral de Justiça,
embora em versão anterior e mais simples, não me parecendo, salvo melhor juízo, necessária qualquer outra manifestação
daquela superior instância.
Ademais, o procedimento a ser observado encontra pleno respaldo legal, porque se seguem às normas do código de
processo civil relativas à avaliação, com apresentação de quesitos e elaboração de laudo ao final, embora de forma articulada
com o acompanhamento da escuta, portanto à semelhança do depoimento -, embora esta seja realizado em sala apartada,
filmada e transmitida para a sala de audiência, onde se encontrarão juiz, promotor, defensor e réu. Assegurar-se-á, com
isso, melhor oportunidade de defesa, pois o réu poderá acompanhar o depoimento, o que hoje não ocorre.

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Cuida-se, portanto, de uma otimização e aprimoramento de procedimentos hoje existentes, respeitadores dos direitos de
todos os envolvidos, inclusive dos profissionais participantes.
A capacitação presta-se justamente para entender com maior profundidade a dinâmica do abuso, as fases evolutivas
da criança/adolescente e os indicadores de violência, mas especialmente metodologia diferenciada de avaliação consistente na
entrevista da criança/adolescente, valorizando-se, assim, se u direito à participação, nos termos do ar!. 12 da Convenção
sobre os direitos da criança. Esperamos que, com ela, haja maior conscientização e compreensão por parte dos profissionais
do Judiciário sobre a adequação desta proposta à garantia de direitos de crianças e adolescentes e aos seus preceitos éticos.
Por determinação de Vossa Excelência, este magistrado, juntamente com o Núcleo de Apoio ao Serviço Social e de Psicologia
do TJSP e da psicóloga assessora desta Coordenadoria, procurou articular com os respectivos conselhos federais e
regionais de serviço social e psicologia.
Embora com resultados díspares, o fato é que existe sentença judicial cassando a validade da Resolução proibitiva de
participação de assistentes sociais no projeto. Da parte do Conselho de Psicologia, parece haver maior abertura para
acompanhamento.
Os psicólogos e assistentes sociais envolvidos parecem ter compreendido com maior profundidade a proposta e acatado
seus termos, dispondo-se a assumir o diálogo com os conselhos.
Todavia, a implementação deste projeto é um imperativo ditado pela normativa e experiência internacionais e pelo próprio
Conselho Nacional de Justiça. Embora entenda que os profissionais mais qualificados para a avaliação de abuso e violência
co ntra crianças e adolescentes sejam os assistentes sociais e psicólogos, havendo recrudescimento inesperado desses
profissionais e respectivos conselhos – como parece ser o caso do de serviço social -, não se deve descartar a contratação
para a avaliação de abuso e violência contra criança e adolescente de profissionais de áreas diversas, tal como já ocorre
em outros lugares do mundo, especialmente nos EUA. Contudo, isto deveria implicar a revisão da contratação de assistentes
sociais e/ou psicólogos (a depender do posicionamento específico de cada categoria/conselho) para as varas da infância do
Estado de maneira geral (à vista da esperada ampla disseminação do projeto). de forma a contemplar a entrada desses outros
profissionais no quadro do Tribunal e o atendimento das necessidades dos usuários da Justiça e as demandas institucionais do
próprio Tribunal. Oxalá O bom senso e comprometimento com os direitos de crianças e adolescentes imperem e o projeto
possa
prosseguir em seus termos originais e ajustes decorrentes da experiência.
Consigne-se, neste sentido que os documentos e fluxos apresentados são provisórios, pois, atento à natureza de piloto
deste projeto, entendemos fundamental seu desenvolvimento para avaliação, inclusive externa, sobre o modo como o projeto
será percebido e recebido por crianças e adolescentes, mas também pelos profissionais e instituições envolvidas,
podendo, portanto, receber modificações que serão sempre comunicadas a Vossa Excelência.
Merece registro ainda o entendimento dos integrantes dos grupos de trabalho de que será necessária a consolidação desta
proposta antes de sua disseminação às demais varas do Estado, até mesmo porque a implementação do projeto suscitou
amplo
debate entre categorias profissionais envolvidas, assim como com as instituições parceiras. A disseminação dependerá
da definição de consensos, mas também do aprimoramento da capacidade de atendimento pelas equipes do Estado, que,
hoje,
encontram-se sobrecarregadas.
À vista deste quadro, e uma vez consumada a capacitação, é fundamental a autorização final da parte de Vossa Excelência
para início das atividades do projeto de atendimento não-revitimizante de crianças e adolescentes vítimas de violência nas
seguintes varas da infância e da Juventude: Atibaia, Campinas, Guarulhos e São Caetano do Sul, sempre de modo articulado
com as varas criminais, enquanto não houver especialização em varas de crimes como criança e adolescente nesses locais.
A autorização também se faz necessária para a vara de violência doméstica da capital para os casos de atendimento de

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crianças e adolescentes.
Uma vez autorizado, sugiro a Vossa Excelência que se oficie às respectiva s Varas e equipes, dando-lhes ciência de Vossa
decisão. Parece oportuno também que se oficie às Varas Criminais das respectivas comarcas, informando-as do projeto, da
recomendação de observância do procedimento especial de escuta/avaliação em articulação com a Vara da Infância e da
Juventude que alberga o projeto e de vossa autorização para funcionamento. No caso de São Caetano do Sul já há
especialização
da vara em crimes contra a criança e adolescente com cumulação de competência com infância e juventude, não se fazendo
necessária a providência.
Sugiro também que seja oficiado em agradecimento às instituições que permitiram a implementação deste projeto, dando-se
ciência à Egrégia Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo desse valoroso apoio.
Sugiro igualmente a comunicação oficial ao Conselho Nacional de Justiça do início das atividades do projeto paulista.
Solicito por fim autorização para obtenção de financiamento para a supervisão aos profissionais envolvidos no projeto,
visando atendimento de qualidade neste período de implementação experimental.
É meu parecer.
SUB CENSURA.
São Paulo, 12 de abril de 2011.
Eduardo Rezende Melo
Juiz da Coordenadoria da Infância e da Juventude
DECISÃO: Aprovo o parecer. São Paulo, 12 de abril de 2011
(a) Desembargador ANTONIO CARLOS MALHEIROS, COORDENADOR DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Projeto de Aprimoramento do atendimento interinstitucional de crianças e adolescentes vítimas de violência,
especialmente sexual, e a implementação de métodos especiais de sua escuta no Estado de São Paulo.
Justificativa
A implementação de projetos piloto em quatro comarcas do Estado voltados a crianças e adolescentes, vítimas ou
testemunhas de crimes, especialmente sexuais, tem por objetivo aprimorar a garantia de direitos sexuais, ao desenvolvimento
de crianças e adolescentes, e a dignidade dessas pessoas em desenvolvimento, pelo Sistema de Justiça, de forma articulada
com outros atores institucionais.
A ação dá-se conjuntamente no contexto de uma reflexão sobre o papel social da Justiça e seu modo de organização e de
gestão de conflitos, sendo o método especial de escuta um dos aspectos a se considerar.
A motivação de implementação do projeto volta-se à superação de práticas e modos de intervenção que tem provocado
revitimização de crianças e adolescentes quando atendidas interinstitucionalmente, e especialmente pelos Sistemas de
Segurança e de Justiça.
Diversos fatores têm causado esta situação. A falta de sensibilidade, a falta de linguagem adequada, a falta de informação
e a própria dinâmica adversarial da colheita de provas (ou seja, quando pela própria dinâmica das provas, promotor e
advogado
procuram questionar a vítima ou testemunha visando ora a confirmação ora a contradição de sua palavra, como uma forma de
demonstrar a veracidade de seu depoimento), tanto em procedimentos cíveis ou criminais.
No entanto, a literatura aponta, sobretudo, a grande quantidade de intervenções e de inquirições sobre os mesmos fatos
pelos diversos programas de atendimento e seus profissionais, evidenciando a inadequação do modo de articulação dos
diversos
atores do Sistema de Garantia de Direitos.
O impacto deste modo de intervenção vem gerando nas crianças e adolescentes a sensação de descrédito de sua palavra

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e, em muitos casos, ineficácia da intervenção pelo sistema de justiça, tanto sob o aspecto protetivo - pela interferência que
esta múltipla intervenção provoca no processo terapêutico da criança -, como sob o aspecto da responsabilização do ofensor,
que muitas vezes é absolvido em razão da exaustão da criança/adolescente pela revitimização sofrida pelo sistema. As
conseqüências são o possível retorno da vítima aos cuidados do agressor, sem atendimento terapêutico ou responsabilização
do mesmo.
A implementação do projeto procura, assim, reordenar o modo de articulação destes diversos atores e aprimorar o modo de
atuação conjunto, especialmente na forma como a Justiça atua. Esta tentativa faz-se sob o marco de normativa internacional, e
de discussões teóricas e institucionais que ocorrem há décadas em outros países.
Em primeiro lugar, como se sabe, não vem sendo suficientemente reconhecido às vítimas um lugar especial no Sistema de
Garantia de Direitos. Faltam normalmente serviços de atendimento a elas e o próprio Sistema de Justiça não revela
preocupação
com seu cuidado, especialmente no âmbito dos processos criminais.
Com efeito, como o processo criminal é focado na defesa das liberdades dos réus, não entra em pauta a reflexão sobre
direitos de crianças e adolescentes vítimas, embora a normativa internacional venha, há anos, sinalizando a necessidade de
reequacionar este embate de valores, com mudanças institucionais.
É, então, dentro do marco de respeito de direitos humanos de ambas as partes, ofensores e vítimas, especialmente as
crianças
e adolescentes, que uma tentativa de reordenamento interinstitucional poderá se dar, devendo-se invocar particularmente os
arts. 12 e 44 da Convenção sobre os direitos da Criança; o art. 8º do Protocolo Facultativo sobre venda de crianças,
prostituição
e pornografia infantil (convenções ratificadas pelo Governo brasileiro) e, disciplinando-o, a Resolução nº 20, de 2005, do
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas.
Em segundo lugar, coloca-se o desafio de reordenamento institucional específico à Justiça.
O reconhecimento de sobreposições, senão conflitos de intervenções entre as varas criminais e da infância e da juventude
têm colocado à Coordenadoria da Infância e da Juventude o desafio de cumprimento da recomendação do Comitê de Direitos
da
Criança, do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, no sentido de que sejam criadas varas especializadas
em crimes contra a criança e, mais, que haja cumulação de sua competência com varas da infância. Exemplo disto já ocorre
na comarca de São Caetano do Sul, repete-se em outros Estados (Rio Grande do Sul, dentre outros) e está no planejamento
estratégico proposto ao Tribunal de Justiça do Estado.
Parte deste reordenamento passa pela adequação de espaços de atendimento, inclusive de espera no ambiente do fórum,
adequação do quadro funcional das equipes interprofissionais para atender o aumento da demanda, capacitação continuada,
dentre outros aspectos estruturais que vêm sendo contemplados no planejamento proposto ao Tribunal e nas ações já
desenvolvidas pela Coordenadoria.
No entanto, em terceiro lugar, entende-se que o horizonte normativo colocado e o reordenamento institucional, dependem
de mudanças culturais por parte dos operadores do direito e dos profissionais que atuam nas equipes do Judiciário,
percebendo
sua atuação numa perspectiva mais ampla de atuação que a meramente processual.
A definição de fluxos que, evitem esta múltipla escuta de crianças e adolescentes e, seu atendimento pautado pela garantia
de direitos pressupõe o estabelecimento de fluxos interinstitucionais e a prevalência de uma abordagem interdisciplinar da
própria escuta a ser realizada. Isto para que, um mesmo ato de escuta, possa contemplar as necessidades das distintas
instituições incumbidas do atendimento, assim como os diversos profissionais envolvidos.
Por isso este projeto não pode se dar unicamente no âmbito do Judiciário, demandando o envolvimento dos demais atores

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do Sistema de Garantia de Direitos, especialmente Segurança, Saúde e Assistência Social para o atendimento investigativo
inicial e os dois últimos para o suporte e atendimento terapêutico subseqüente.
E, para os aspectos processuais, o envolvimento do juiz criminal e da infância e da juventude – nos casos em que ainda
não houver cumulação de competência -, os promotores de justiça, os defensores públicos ou advogados e as equipes
interprofissionais das respectivas instituições. Com efeito, a escolha de procedimentos terá impacto nesta criança e
adolescente
– daí a defesa de produção antecipada de provas – e o modo de escuta também – por isso o entendimento de que a escuta
deve
ser interdisciplinar por direito, serviço social e psicologia, valendo tanto para o processo criminal como para o protetivo.
Só assim proporcionar-se-á uma garantia efetivamente sistêmica de direitos que considere a multidimensionalidade das
situações de violência e dos impactos das intervenções realizadas nestes casos.
Foi com este intuito que a Coordenadoria da Infância e da Juventude, previamente à implementação do projeto, constituiu
um Grupo de Trabalho para elaboração do projeto. O grupo foi composto por juízes, promotores de justiça, defensor, psicólogo
e assistente social judiciário e psicólogos e assistentes sociais atuantes na rede de atendimento especializada a crianças e
adolescentes vitimas de crimes sexuais, sem que representassem formalmente estas instituições, mas que conhecessem as
ponderações e objeções por elas formuladas. A este grupo somou-se encontros com os conselhos federais de psicologia e de
serviço social e com as redes de atendimento das comarcas escolhidas para a implementação do projeto.
Buscou-se, com isso, superar tons corporativistas para se pensar papéis institucionais e interdisciplinares que tenham
criança e adolescente como o ponto central em todo atendimento, reclamando, para tanto, a criação de novos métodos de
atuação que não apenas possam ser testados, como resultem em protocolos interinstitucionais e, mais tarde, na proposição de
estabelecimento de diretrizes por órgãos superiores e/ou legislação nacional.
Isto apenas poderá ocorrer se, para além de grupos de monitoramento e de supervisão do processo de implementação do
projeto – como a Coordenadoria está propondo - haja a previsão de mecanismos de controle e de garantia de direitos, para
cada etapa do fluxo, compreendida sob a lógica da garantia de direitos da criança e do adolescente, contemplando-se sua
especificidade como sujeito em processo de desenvolvimento, titular de direitos individuais e sociais.
O projeto, assim, tem um caráter de aplicação geral para todo e qualquer caso envolvendo crianças e adolescentes vítimas
ou testemunhas, embora, de início, entenda-se recomendável iniciar-se com os casos de crimes sexuais praticados contra
crianças e adolescentes e que não sejam contra o patrimônio.
Na implementação do projeto, entendeu-se necessário, ainda, o estabelecimento de critérios para a escuta de crianças
e adolescentes pelo Sistema de Justiça, seja como vítimas ou testemunhas, procurando-se evitar uma expansão indevida e
indiscriminada da inovação metodológica, fomentando-se o reconhecimento do direito da criança e adolescente de não ser
inquirida, seja como vítima e como testemunha (art. 44 da Convenção sobre os direitos da criança).
O Grupo entendeu também como recomendável a tomada de providências concomitantes à implementação do projeto.
Exemplificativamente, pode-se mencionar:
- Atendimento inicial integrado pela segurança e assistência social e, tanto quanto possível, pelo IML, visando apurar a
ocorrência efetiva de crime dentro de um contexto acolhedor, garantindo-se elementos que permitam a pronta intervenção da
justiça e o pronto atendimento terapêutico da criança, sempre com o intuito de evitar a múltipla repetição do relato e exposição
das experiências vividas pela criança/adolescente e sua conseqüente revitimização;
- Monitoramento do processo pelo Conselho Tutelar, sem atendimento direto às crianças e adolescentes;
- A criação de uma rede de comunicação para que o caso seja remetido com urgência ao Ministério Público, para a pronta
escuta ou escuta, válida para todo e qualquer processo judicial (processo cautelar de produção antecipada de prova)
- Assistência à criança/adolescente para que seja informada de todas as etapas do fluxo e possa opinar quanto à sua
participação

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- Atendimento psicoterapêutico e social à criança/adolescente e à sua família


- Acompanhamento especializado antes, durante e posteriormente todo o processo, mesmo posteriormente à sua escuta.
- Capacitação de todos os atores (magistrados, promotores de justiça e defensores públicos, psicólogos e assistentes
sociais) para se comunicarem adequadamente com crianças e adolescentes
- Capacitação específica dos assistentes sociais e psicólogos judiciários para escuta especializada da criança ou adolescente
vítima de violência
- Monitoramento do projeto por órgãos estaduais, estabelecendo-se diretrizes e protocolos de atendimento
- Acompanhamento autônomo por instituições de pesquisa.
Entende-se que estas providências representam direitos sociais e há comprometimento do Ministério Público, da Defensoria
Pública e do Tribunal de Justiça por sua efetivação.
O projeto procurou ser inovador ao contar com recursos tecnológicos de parceiros para permitir inclusive que a criança ou
adolescente sequer precisem comparecer ao fórum, se assim o desejarem, evitando-se os constrangimentos decorrentes do
ambiente ameaçador. Com isto estamos pensando as atribuições dos assistentes sociais e psicólogos judiciários como atores
fundamentais na proteção da criança e do adolescente.
O projeto conta com apoio da Secretaria de Reforma do Judiciário e da Childhood Brasil, além de apoios locais.
A escolha das cidades envolvidas volta-se ao estabelecimento de critérios comparativos no modo de organização da
justiça.
Duas delas são de médio porte: São Caetano do Sul e Atibaia. São Caetano do Sul é a única cidade do Estado que conta
com Vara Especializada em crimes contra criança e adolescente, com a especificidade de ter competência cumulativa com
infância e juventude. Atibaia tem população semelhante em tamanho e conta com a mesma estrutura organizacional, podendo
repensar o modo de sua estruturação de competências igualmente para comarcas de entrância intermediária.
Campinas e Guarulhos são cidades de grande porte, com vara privativa da infância e da juventude e diversas varas criminais.
O projeto será instalado na Vara da Infância e da Juventude e, para a utilização dos métodos, precisará se articular com as
Varas Criminais que se disponham a observar o procedimento a ser estabelecido coletivamente. O desafio será pensar um
fluxo
de atendimento entre a própria justiça visando evitar a repetição de atos que leve à revitimização de crianças e adolescentes.
Cogita-se, quando da instalação da Segunda Vara da Infância e da Juventude, que ela assuma a competência por crimes
contra
criança e adolescente.
Neste sentido, a Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tomando
como base normativa a Convenção sobre direitos da Criança, seu Protocolo Facultativo e a Resolução nº 20, de 2005, do
Conselho Econômico Social das Nações Unidas, apresenta o seguinte fluxo de atendimento interinstitucional e interdisciplinar
para garantia dos direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas em crimes sexuais:
Fluxo de atendimento e de procedimento
A) Atendimento inicial e cuidados antes da audiência ou da escuta especial:
1. O atendimento inicial de crianças e adolescentes deve ser feito, tanto quanto possível, por órgão especializado em
violência sexual, incumbindo ao Conselho Tutelar o monitoramento da garantia do direito. Caso a notícia chegue ao Conselho
Tutelar, comunicação imediata ao CREAS.
2. Havendo suspeita de abuso/exploração sexual, atendimento direto pelo PAEFI/CREAS de forma articulada com a
delegacia de polícia para que questões necessárias ao encaminhamento do inquérito possam ser contempladas na escuta
inicial, evitando-se necessidade de dupla escuta.
3. Caracterização da violência pelo órgão de atendimento, utilizando-se de instrumental único da segurança, saúde e

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assistência social e compartilhamento de uma via, com o respeito ao sigilo, aos demais órgãos, visando evitar a nova escuta
da
criança ou adolescente.
4. Articulação do atendimento pelo CREAS e delegacia com o IML para que a criança/adolescente não necessite repetir a
história outra vez por meio do instrumental único de escuta. 5. Elaboração a médio prazo de prontuário único informatizado
para utilização pelas secretarias de assistência social,
segurança e saúde.
6. Concomitantemente, o PAEFI/CREAS elabora plano de atendimento familiar para contemplar todas as necessidades da
criança/adolescente e sua família, articulando os serviços municipais de áreas distintas.
A-1) Direitos a serem considerados no atendimento inicial e modos de sua garantia
1) Direito a ser garantido:
a) direito ao atendimento;
b) direito à informação sobre os modos de garantia de seu direito judicialmente
2) Onde informa? No próprio programa de atendimento
3) o que é informado?
- Os programas disponíveis, horários, modo de atendimento, possibilidade de inserção;
- Sigilo das informações, mas direito de pessoas saberem que a criança/adolescente está sendo atendido, inclusive o
Sistema de Justiça;
- Que o detalhamento do processo judicial lhe será informado oportunamente por profissional especializado e com suporte
de profissional do programa de atendimento;
- Da diferença de papéis entre o programa de atendimento e da justiça;
- Direito da família de ser atendida, inclusive o agressor, neste mesmo programa, sempre que houver concordância por parte
da criança/adolescente
- Não havendo concordância, encaminhar agressor a outro programa ou garantir-se atendimento em dias e horários
diferentes, desencontrados.
- O atendimento conjunto só poderá se dar se for de consenso entre os todos os profissionais envolvidos, havendo
concordância da criança/adolescente e responsável e havendo a possibilidade da restauração dos laços familiares;
- Atenção à informação sobre o direito a aborto legal, procedimentos profiláticos de DST/AIDS; consideração de seus
horários para qualquer procedimento.
4) Quem informa? Profissionais do programa de atendimento e conselheiro (a) tutelar
5) Quando informa? Antes e durante o atendimento ou a qualquer tempo, havendo demanda da criança/adolescente por
mais informação
6) Como informa?
- Cuidado para que não haja indução ao se passar a informação (caso de aborto, por exemplo);
- Adequação das informações à idade da criança e seu grau de maturidade;
- Respeito à privacidade no momento de prestar informação;
- Respeito a ser acompanhada por terceiro de sua confiança ao passar as informações;
B) Articulação entre atendimento inicial (Sistema de Segurança, Assistência Social e Saúde) e Sistema de Justiça:
1) Havendo confirmação da suspeita de abuso/exploração, encaminhamento de relatório pelo CREAS ao Ministério Público.
a) O relatório deve contemplar informações sobre:
- A existência de indícios sobre abuso ou exploração sexual;
- Local, data, autor do abuso e formas como teria ocorrido
- Eventual conivência ou negligência de genitores/responsáveis para efeito de afastamento do lar ou colocação em família

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substituta
- O estado emocional da criança/adolescente e se ela tem condições de ser escutada
- Sua família e o suporte recebido.
- Adesão aos atendimentos por parte da criança/adolescente e família
- Necessidade de afastamento do ofensor ou de algum membro da família e se a criança/adolescente está com adulto
protetor.
- Necessidade de acolhimento institucional da criança/adolescente
- Comunicação ao Conselho Tutelar sobre a falta de aderência da família aos tratamentos propostos
2) Delegacia de polícia encaminha termos de depoimento colhidos e boletim de ocorrência concomitante e articuladamente.
3) Em casos de falta de aderência aos atendimentos, tendo sido comunicado o Conselho Tutelar, este deve aplicar medidas
protetivas à criança e adolescente e aos pais e responsáveis para que este suporte seja efetivamente seguido.
4) Em caso de resistência pela família, CREAS deve avaliar se, a despeito da falta de aderência, a criança/adolescente tem
condições de ser escutado sobre os fatos, o que deverá constar do relatório.
5) Em caso negativo, representação do Conselho Tutelar à Vara da Infância e da Juventude para processamento dos
responsáveis visando à adesão aos tratamentos e só então iniciar-se o atendimento.
C) Procedimento judicial, com eventual produção antecipada de provas para escuta interdisciplinar da criança/
adolescente e sua validade para todos os processos judiciais
1) Se houver trâmite célere do inquérito, recomendação é de proceder diretamente a denúncia, sendo excepcional a
cautelar.
2) Ministério Público (promotor criminal, em respeito ao princípio da identidade física do juiz (É necessário que o relatório
seja encaminhado ao promotor criminal em razão de garantias que constituem direitos humanos de toda pessoa acusada de
ser julgada pela mesma autoridade que presidiu o processo durante o qual foram colhidas as provas e realizada a defesa),
direito humano consagrado na Constituição Federal) avalia duração do inquérito e necessidade e conveniência de ajuizamento
de ação cautelar de produção antecipada de provas, fundamentado no relatório e recomendação técnica pelo CREAS,inclusive
sobre impacto da demora do procedimento judicial nos atendimentos da criança/adolescente, levando ainda em consideração
boletim de ocorrência e elementos investigativos produzidos pela polícia; Descrição dos fatos deve ser tanto quanto possível
assemelhada à que constará da denúncia. Ação deve ser distribuída e tramitar idealmente em vara cumulativa da infância e da
juventude e de crimes contra crianças e adolescentes.
3) Possibilidade de requerimento de medidas protetivas em favor da criança/adolescente, invocando-se lei Maria da Penha e
ECA, assim como a inclusão da criança/adolescente em programa de proteção contra vítimas e testemunhas ameaçadas. 4)
Juiz analisa pedido de medidas protetivas, decide fundamentadamente sobre o cabimento da ação cautelar, se o caso,
considerando particularmente as recomendações técnicas sobre o impacto na criança /adolescente da demora do trâmite do
inquérito e levando em consideração os requisitos para a tutela cautelar. Determina então citação de todos réus, tanto do
processo criminal, como de processo de família ou infância e juventude, considerando eventuais omissões ou negligências
praticadas por pais e responsáveis.
5) Designação pelo magistrado data da audiência com tempo suficiente para a atuação da equipe (sugestão de 15 dias)
6) Determinação pelo magistrado que a equipe técnica passe a integrar o atendimento da criança/adolescente no CREAS
para iniciar a vinculação e informá-la(o) sobre seus direitos.
7) Consideração da nomeação pelo magistrado de defensor público/advogado específico para garantir os direitos de crianças
e adolescentes vítimas ou testemunhas, tendo em mente a normativa internacional bem como sua condição de sujeito de
direitos
que devem ser observados no curso do procedimento
8) Equipe interprofissional do juízo informa os direitos à criança e adolescente no contexto do atendimento, com

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acompanhamento do advogado, se tiver ingressado nos autos


9) Defensor define com a criança/adolescente a pauta de direitos a serem defendidos durante o procedimento (por exemplo,
quer ou não depor; quer depor sobre alguns fatos, mas não sobre outros; quer ser acompanhada de uma pessoa específica;
quer ser ouvida pelo juiz, com ou sem a presença do réu na sala de audiência; prefere passar por escuta especial – melhor
detalhada abaixo).
10) Equipe elabora relatório informativo sobre os esclarecimentos prestados e a manifestação da criança/adolescente (termo
de concordância em participação na escuta e avaliação especial em anexo)
C-1) Direitos a serem considerados no atendimento inicial pelo Sistema de Justiça e modos de sua garantia
1) Direito a ser garantido:
- Direito à informação sobre participação no depoimento perante o Juiz ou em escuta especial, tanto para a criança e
adolescente como para o responsável;
- Informação sobre o impacto da escolha em relação à forma de escuta para garantia de seus direitos e suas conseqüências
psicossociais e jurídicas.
a) O que será informado?
- Sobre direito de ser ouvida, de expressar suas opiniões e de serem devidamente consideradas (art. 12 da Convenção
sobre os direitos da criança);
- Sobre as etapas do processo, sobre como se dá o depoimento perante o Juiz ou escuta especial;
- A finalidade do depoimento judicial ou da escuta especial;
- A importância que o depoimento judicial ou a escuta especial terão no processo;
- As conseqüências do processo para ela, sua família e para a pessoa que está sendo processada;
- Acesso/sigilo à informação;
- Direito de não depor;
- Direito de depor sem acompanhamento do depoimento ou da filmagem da escuta pelo (a) acusado (a);
- Direito de conhecer com antecedência o procedimento de filmagem e de registro das imagens e o que será feito com as
imagens e som;
- Direito de consultar alguém de sua confiança para tomar a decisão de depor e sobre que pontos depor;
- Direito ser acompanhado por alguém de sua confiança durante o depoimento(desde que não seja testemunha no processo)
ou durante a escuta especial;
- Direito de não responder todas as questões formuladas;
- Conhecimento da sala de audiência ou da sala onde seria realizada a escuta especial;
- Explicitação dos procedimentos técnicos a serem utilizados;
- Direito de saber quem são as pessoas que a ouvirão;
- Direito de conhecer as pessoas que presenciarão a escuta especial, antes de prestá-lo;
- Ciência dos mecanismos de reclamação caso qualquer direito não seja respeitado;
- Informação sobre seu representante legal para defesa de seus direitos apresentando-o, se necessário;
- Duração aproximada do depoimento ou da escuta especial;
- Direito a recesso ou interrupção do depoimento ou da escuta especial;
- Direito de escolher horário mais adequado para seu depoimento ou escuta, tanto quanto possível;
- Direito de escolher local da escuta (quando possível)
b) Onde será informado? No programa de atendimento
c) Quem informará? Equipe interprofissional da Vara, além de defensor/advogado da criança e adolescente e equipe do
programa de atendimento (como suporte)
d) Como será informado?

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- Cuidado para que não haja indução ao se passar a informação;


- Adequação das informações à idade da criança e seu grau de maturidade;
e) Cuidados complementares possíveis
- Parecer da equipe interprofissional do juízo, se o caso, com recomendação de que a criança e do adolescente não sejam
escutados por motivo específico, devidamente fundamentado;
- Petição do advogado no mesmo sentido, se o caso;
- Articulação da equipe interprofissional da vara com a do programa de atendimento quanto ao papel de cada uma durante a
escuta, ressaltando seu caráter interinstitucional e interdisciplinar, visando o suporte da criança/adolescente
f) Quando os direitos são informados? Antes do dia designado para o depoimento ou escuta especial, já ajuizada a ação.
Garantia de tempo suficiente para a criança/adolescente refletir sobre as informações e poder se posicionar.
g) Para que será informada? Proteção da criança e do adolescente; garantia de seus direitos; condição de uma participação
que promova emancipação
h) Mecanismos de controle: direito de defesa pelo defensor/advogado, informações e posicionamentos pela equipe
interprofissional2) Direito à assistência jurídica (art. 141 e 206 do ECA e art. 27 da lei Maria da Penha)
a) Advogado com direito a postular em favor da criança e do adolescente no curso do processo
b) Participar da audiência para garantia dos direitos dele(a) junto ao juiz, promotor e defensor do(a) acusado(a). Questão a
ser apreciada pelo magistrado, conforme item 4, supra.
3) Direito da criança ou adolescente a não depor. Cuidados:
a) equipe interprofissional deverá reiterar os esclarecimentos à criança/adolescente, a fim de sensibilizá-la sobre a
importância, inclusive para a sua defesa, de trazer os esclarecimentos necessários para a garantia de seus direitos, ainda que
isto implique em responsabilização do ofensor.
4) Direito da criança ou adolescente ser escutado na modalidade especial e em local e horário mais conveniente, em
sendo possível.
a) questão a constar das informações iniciais da equipe interprofissional
b) Juiz cientifica as partes e decide, com base no relatório da equipe e da manifestação do defensor da criança/adolescente,
se houver
c) definição do local da escuta, considerando a possibilidade de sua ocorrência em ambiente distinto do fórum, cientificando,
no dia da audiência, às partes
D) Definição da pauta de questões a serem abordadas com a criança e adolescente em sua escuta especial
1) Escuta especial é prova híbrida, tanto avaliação como depoimento. A avaliação é fundamental para coleta de outros
indicadores de abuso ou violência, levando em consideração a etapa de desenvolvimento da criança/adolescente, dinâmicas
familiares, contextualização do relato da criança/adolescente, dentre outros aspectos.
2) Juiz, promotor e defensor fazem quesitos prévios por escrito
3) Possibilidade de intervenção de assistente técnico
4) Juiz indefere quesitos que entenda impertinentes (art. 421 do Código de Processo Civil);
5) Equipe pode solicitar a realização de reunião prévia, a se dar no dia da escuta, da qual participará magistrado, promotor
e defensor para aparar arestas de entendimento sobre quesitos ou sobre a necessidade/pertinência dos quesitos
apresentados,
devendo o juiz proferir decisão
6) Possibilidade de consulta aos órgãos de consulta do TJ (Coordenadoria da Infância e da Juventude/Núcleo) sobre temas
em discussão
E) Procedimento da escuta especial – interfaces profissionais
1) Assistente social ou psicólogo judiciário informa à criança e adolescente do início da escuta e se ela tem alguma dúvida

321
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

sobre os direitos que lhe foram informados


2) Juiz decide sobre o modo como se procederá a escuta diante da manifestação a criança/adolescente e informação da
equipe (escuta especial ou depoimento tradicional)
3) Assistente social ou psicólogo judiciário realiza a escuta, seguindo procedimento padrão (estabelecimento de rapport,
prática de relato de recordações, relato livre da criança ou adolescente sobre o incidente suspeito, questões focalizadas
complementares pela equipe, sendo assistido, em outra sala, pelo magistrado, promotor de justiça, defensor e réu, além de
assistentes técnicos, sabendo a criança/adolescente que a estão assistindo
4) Assistente social ou psicólogo judiciário avalia se os quesitos foram contemplados no relato livre da criança/adolescente,
formulando novas questões, com possibilidade de parafraseá-las para utilizar-se de linguagem adequada à etapa de
desenvolvimento da criança/adolescente
5) Os profissionais têm plena liberdade para formularem questões complementares específicas à sua disciplina de atuação
e necessárias à elaboração de seus pareceres
6) Finda a entrevista, profissionais consultam o juiz por ramal telefônico se é necessário algum outro esclarecimento
7) Juiz avalia e consulta as partes e assistentes técnicos
8) Se não for necessário, conclusão da escuta com fechamento da entrevista
9) Sendo necessária complementação, faz-se recesso com a criança ou adolescente para se abrir espaço de discussão online
entre juiz e profissionais;
10) Juiz apresenta a série de quesitos complementares por ele deferidas ao profissional, que, por ramal telefônico, dialoga
com os operadores do direito sobre sua pertinência, inclusive sobre o caráter invasivo da intimidade/privacidade dessas
questões
ou sua inadequação ao estágio de desenvolvimento da criança/adolescente e possibilidade de ocasionar traumas secundários
e
revitimização (art. 425 do Código de Processo Civil)
11) Entrementes a criança/adolescente estará sendo acompanhada pelos outros profissionais do programa de atendimento
durante o recesso, se for necessário;
12) Resolvidas eventuais divergências, e definidas as questões consensualmente, dá-se continuidade à entrevista
13) Advogado da criança/adolescente acompanha o respeito a seus direitos neste procedimento
14) Profissionais do serviço social e da psicologia apresentam, ao final da escuta, relatório com parecer fundamentado,
com as suas considerações e conclusões (indicadores de abuso/violência, aspectos de comunicação não-verbal, intimidação/
ameaça, de justificativa formal de questões não-feitas, despreparo da criança/adolescente ou da família para enfrentar a
situação
de depoimento; consideração de laudos anteriores em outros processos, que tragam elementos que possam elucidar melhor
a situação, seja do ponto de vista da criança/adolescente, seja da família; necessidade de atendimentos complementares à
criança/adolescente e seus familiares e outras questões que entendam pertinentes)
15) Possibilidade de assistente técnico apresentar parecer com base na escuta assistida da sala da audiência
16) Sendo necessário o reconhecimento do acusado, será feito pelo procedimento tradicional, garantida proteção da criança/
adolescente.
1) Mecanismos de resolução de conflitos interprofissionais:
- Em caso de insistência em determinada pergunta pelo juiz, que um dos profissionais não se dispõe a fazer, avaliar com o
outro profissional presente se tem o mesmo entendimento e se concorda com sua formulação;
- Em caso negativo, completar a entrevista nos pontos em que não haja divergência;
- Discussão no recesso sobre possibilidades de reformulação da pergunta que atenda a todos; Se a pergunta for do juiz, partes
devem tomar providências processuais para garantir direito da criança/adolescente se a

322
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

questão for impertinente.


- Se a divergência for entre o profissional e o juiz, ambos devem fundamentar seus posicionamentos por escrito posteriormente
à entrevista
- Assessoria técnica pela Coordenadoria disponibilizada aos juízes e técnicos. Se houver violação de direito por parte do
técnico ou do juiz, a própria Coordenadoria pode encaminhar à Corregedoria.
- Supervisão continuada será garantida a todos os profissionais envolvidos no projeto.
E-1) Direitos a serem considerados durante a escuta pelo Sistema de Justiça e modos de sua garantia
1) Direitos e mecanismos de suporte e de proteção à criança/adolescente durante o depoimento ou a escuta:
a) informação, acompanhamento por pessoa de sua escolha e/ou técnico do programa de atendimento de sua escolha,
desde que não seja testemunha no processo;
b) direito a recesso;
- Papel da equipe técnica do programa de atendimento: acompanhamento, se a criança/adolescente o desejar; suporte
durante o depoimento ou a escuta, nas pausas e recesso, em momentos de crise, sem intervenção sobre o conteúdo do
depoimento ou escuta;
2) Direito à informação, especificado como:
- Conhecer previamente o juiz e a sala onde estarão as demais partes (promotor, defensor), se a criança ou adolescente o
solicitar;
- Direito de saber que o réu está presente à audiência, podendo assistir seu depoimento;
3) Direito à segurança por meio de:
- Sala de espera e de atendimento separadas, se possível adequadas a crianças e adolescentes;
- Confidencialidade da escuta, com dados protegidos
- Direito de defesa
- Proteção de sua imagem;
- Restrição à gravação da imagem de seu rosto, limitando-a à voz, embora filmada;
- Distorção de sua voz para preservação de sua segurança;
- Gravação da escuta para evitar a repetição do ato, mesmo em caso de depoimento judicial;
- Sigilo das informações e do depoimento (cd, a ser juntado no processo, só pode ser assistido pela equipe interprofissional,
juiz/promotor/defensor e pelo Tribunal, com controle);
- Mediação para que a criança/adolescente não exponha sua intimidade/privacidade além do necessário;
- Identificação de situações de ameaças ou de intimidação que possam afetar o depoimento ou a escuta especial, com
sugestão de interrupção;
- Direito à interrupção se a criança/adolescente tiver uma crise ou houver solicitação por parte dela
4) Direito à assistência jurídica, com acompanhamento por defensor ou advogado de sua escuta, representando-a
juridicamente, se já atuando no processo;
a) Papel do advogado da criança ou adolescente:
- Informar sua presença à criança/adolescente e que a representará durante o depoimento ou a escuta;
- Possibilidade de assessoria/entrevista com a criança durante a escuta;
- Garantia da privacidade e intimidade da criança/adolescente contra questões invasivas;
- Defesa do direito à segurança da imagem e da voz;
- Defesa do direito ao recesso e à interrupção;
- Direito ao sigilo e evitar a repetição do ato;
- Defesa em caso de ameaça ou constrangimento;
- Garantia de atendimento terapêutico pela efetivação de direitos sociais

323
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F) Métodos de registro e sua utilização


a) Gravação do depoimento
b) Possibilidade de utilização em outros processos, como prova emprestada;
c) Possibilidade de utilização em processos da vara da infância e da juventude, de família (ex. surge a notícia de abuso em
processo na vara de família), servindo para os processos criminais;
d) Possibilidade de utilização para pareceres complementares pela equipe
e) Procedimentos de segurança no aguardo da definição por parte do CNJ sobre modo de registro, manutenção e circulação
da mídia:
- constar do termo de audiência concordância por parte do MP, defensor e réu de que será feita a escuta especial;
- colher o termo de concordância em anexo da criança/adolescente e responsável antes da escuta (anexo);
- constar do termo que a mídia só poderá ser acessada pelo juiz, promotor e defensor do caso e que não poderá ser retirada
do cartório/vara, podendo ser assistida para efeito de alegações finais ou recurso em horárioterapêutico concomitantes e
subseqüentes à intervenção judicial:
1) Direito individual à reparação de dano:
a) Contemplação na sentença criminal
b) Possibilidade de ação cível subseqüente
c) Possibilidade de utilização de meios alternativos de resolução de conflitos, inclusive justiça restaurativa.
2) Direito social ao atendimento socioassistencial:
a) Orientação familiar ao responsável
b) Programas de transferência de renda aos responsáveis
c) Fortalecimento de vínculos familiares – PAIF
d) Colocação em família substituta pela Vara da Infância e da Juventude
e) Acolhimento familiar ou institucional
3) Direito social ao atendimento de saúde:
a) Atendimento psicológico/psiquiátrico pelo CAPS-I à criança/adolescente
b) Atendimento psicológico aos pais/responsáveis cuidadores
c) Atendimento psicológico/psiquiátrico ao ofensor, sobretudo se membro da família
G -1) - Articulação institucional da justiça para garantia de direitos
1) Relatório do CREAS como base para a tomada de providências pelo Conselho Tutelar;
2) Relatório do CREAS e escuta especial ou Promotoria da Infância e da Juventude para garantia de direitos individuais e
sociais;
3) Comunicação institucional entre vara criminal e da infância, caso não haja cumulação de competência.
H) - Formação dos profissionais envolvidos no projeto
1) Áreas em que os profissionais precisam de treinamento:
a) Dinâmica do abuso/exploração: foco na criança/adolescente, família em sentido lato, do agressor;
b) Aprimoramento da escuta dos profissionais
c) Comunicação verbal e não-verbal de crianças e adolescentes
d) Modo de informar
e) Modo de inquirir por parte do juiz
f) Modo de operar o programa de comunicação
g) Identificação e equacionamento das situações de ameaça, intimidação, constrangimento, crise
h) traumas decorrentes do abuso/exploração
i) políticas públicas existentes para garantia de direitos sexuais e reprodutivos e para enfrentamento à violência sexual,

324
PODER JUDICIÁRIO
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inclusive para atendimento da criança/adolescente, família e agressor;


j) gravação;
l) Preservação da imagem, distorção de voz – edição;
m) Mediação entre os profissionais envolvidos na escuta;
n) Meios de reparação de danos;
o) Direitos das crianças e adolescentes para operadores de direito da área criminal e de família, mas também para os da
infância e da juventude, naquilo que for específico e inovador em relação aos direitos sexuais e reprodutivos e aos métodos
especiais de escuta;
p) Interdisciplinaridade, articulação e integração do trabalho em rede interinstitucional;
q) Procedimentos de autocomposição entre os envolvidos na situação de crimes: mediação, justiça restaurativa.
1 - Profissionais que receberiam capacitação:
a) Juízes, promotores e defensores na área criminal, de infância e juventude e da família;
b) Profissionais do Sistema de Justiça da área de infância e da juventude e da família (assistentes sociais e psicólogos
judiciários);
c) Escreventes de sala – operação da mídia;
d) Profissionais do programa de atendimento;
e) Delegados de polícia e serventuários da polícia civil;
f) Polícia militar, conselheiros tutelares, educadores e profissionais da saúde – sobre o fluxo de atendimento.
Membros integrantes do Grupo de Trabalho
- Ana Cristina Marcondes (Assistente Social, Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e Psicologia do TJSP)
- Dayse César Franco Bernardi (Psicóloga Judiciária, então presidente da AASPTJSP e Coordenadora do Curso de
Especialização em Psicologia Jurídica do Instituto Sedes Sapientiae)
- Eduardo Rezende Melo (Juiz de Direito/Coordenadoria da Infância e da Juventude)
- Elaine Caravellas (Promotora de Justiça)
- Flávio Frasseto (Defensor público/Núcleo da Infância e da Juventude da Defensoria Pública)
- Lélio Ferraz de Siqueira Neto (Promotor de Justiça/CAO)
- Lucia Toledo (Psicóloga, programa de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência - Farol)
- Richard Pae Kim (Juiz de Direito/Coordenadoria da Infância e da Juventude)
Outros profissionais consultados
- Dalka Chaves de Almeida Ferrari – Coordenadora do CNRVV e membro da Diretoria do Instituto Sedes Sapientiae;
- Francilene Gomes Fernandes – Assistente social - CRAS Itaquera - Voluntária do CNRVV
- Denise Helena de Freitas Alonso - Psicóloga Judiciária
- Maria da Glória Rangel Gomes - Assistente Social Judiciária
- Marcia Machado Wightman Lopes - Psicóloga Judiciária
- Márcia Aparecida da Silva - Assistente Social Judiciária

325
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OS PAPÉIS PARENTAIS NO EXERCÍCIO DA GUARDA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ARAÇATUBA -


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014

326
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COORDENADORA
Ana Beatriz Benetti Salesse dos Santos - Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Gislaine Cavazzana da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba

AUTORES
Amanda Vaz Valeriano Silva - Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Ana Beatriz Benetti Salesse dos Santos - Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Angela Maria Candida da S. Facundo – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Buritama
Cássia Regina de Souza Preto - Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Cíntia Lupifierio Antônio Ramos - Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac
Claudia Lopes Ferreira - Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac
Clélia Ap. Torres Guedes - Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Cristiane Reberte de Marque - Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Edna Veronesi - Assistente Social Judiciário – Comarca de Birigui
Eliane Terezinha Quadrini - Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Fernanda Mara Trindade Vicente - Assistente Social Judiciário – Comarca de Birigui
Gislaine Cavazzana da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Graciela Ap. Franco - Assistente Social Judiciário - Comarca de Guararapes
Joice Josefina Pontin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Maria Cristina D. Sanches - Assistente Social Judiciário – Comarca de Mirandópolis
Marisha de Oliveira Santos - Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Marli Aparecida Giraldi - Assistente Social Judiciário – Comarca de Birigui
Miriam Marta Barbosa Scandarolli - Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Neuza Maria da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Regiane da Silva - Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes
Sandra Maria Martinez Duarte – Assistente Social Judiciário – Comarca de Birigui
327
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Silvanira Zotelli - Assistente Social Judiciário – Comarca de Mirandópolis


Sônia Ap. Guimarães da Silva - Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Susana Maria de Souza Moraes Borges - Psicóloga Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Susi Ainhagne Donato - Assistente Social Judiciário – Comarca de Ilha Solteira

328
PODER JUDICIÁRIO
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O dever da Justiça é devolver os direitos


àqueles aos quais foram violados: cabe à
equipe profissional, apontá-los.

329
PODER JUDICIÁRIO
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Introdução

O tema escolhido para estudo no ano de 2014, resultado de grande discussão


em busca de um assunto que atendesse de forma mais integral as necessidades
dos participantes, foi “Os papeis parentais no exercício da guarda”.
No processo de elaboração do tema inúmeras questões foram suscitadas, a
fim de dar materialidade ao tema, levantando situações concretas do cotidiano
profissional nas quais somos chamados a opinar sobre a responsabilidade parental,
do exercício da guarda, principalmente nas decisões judiciais referentes à disputa de
guarda, regulamentação de visitas, e nos casos de acolhimento institucional,
destituição do poder familiar; situações as quais com base em nosso conhecimento
teórico metodológico e compromisso ético-político, analisamos e construímos
subsídios as decisões judiciais.
Questões como:
 De que família estamos falando? Como a equipe tem olhado esta família?
 Quem detém o poder familiar tem consciência de seu significado?
 Nos casos de crianças e adolescentes acolhidos, quais as estratégias para
vivência do exercício do poder familiar?
 Qual o papel das equipes interdisciplinares nos processos envolvendo tais
temas?
 Como elemento de prova, como trazer a nossa fala, a nossa análise nos
autos processuais?
 O que é cuidado? O que propiciará o bom desenvolvimento da criança e do
adolescente?
 Qual o papel da rede de proteção neste cuidado à criança, ao adolescente e
sua família?

330
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Este artigo não terá o objetivo de responder a todas estas questões, mas sim
esboçar reflexões do grupo no que se refere a elas a fim de suscitar novas leituras e
novas pesquisas.
Para tanto, o trabalho foi dividido em capítulos com a seguinte estrutura: o
primeiro capítulo trata das reflexões sobre os papéis assumidos pela instituição
família na atualidade; no segundo capítulo foram traçadas considerações teóricas
acerca do Poder Familiar a partir da instituição da visão “filhocentrista” que coloca os
interesses dos filhos superiores aos dos adultos e, também, buscou-se compreender
a guarda além do Poder Familiar especificando as funções de cada uma
diferenciando os seus papéis, considerando que nem sempre quem detém a guarda
retém o poder familiar; no capítulo seguinte foram resumidamente teorizadas as
funções maternas e paternas a partir das necessidades de cada indivíduo conforme
o desenvolvimento e as características inerentes às suas fases; no quarto e último
capítulo foram abordados os fatores que influenciam no exercício das funções
materna e paterna dividindo-os ente fatores externos e internos. Para finalizar o
trabalho foram apresentadas as conclusões obtidas pelo grupo ao longo deste ano
de estudos.

1. Família: reflexões sobre os papéis assumidos pela instituição


na atualidade

Nas últimas décadas grandes transformações perpassaram a dinâmica da


família no Brasil e no mundo, modificações advindas das novas relações sociais,
econômicas, culturais e religiosas que ocorreram principalmente no final do século
XX, logo que como construção social, a família sofre influência do tempo histórico no
qual ela é analisada, assim como influencia o mundo e a sociedade que a
circundam. Segundo Rodriguez e Paiva (2009, p. 17), as principais mudanças se

331
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

referem ao “declínio do patriarcado, aumento no número de divórcios, controle da


natalidade e inserção da mulher no mercado de trabalho”; tal realidade vem
demarcando novos papéis a serem desempenhados por esta instituição frente ao
restante da sociedade e também por seus membros, principalmente dos membros
adultos em relação aos membros menores (crianças e adolescentes).
Tais modificações forçaram também uma revisão no conceito de família,
sendo entendido na atualidade segundo Simionato e Oliveira (2003, p. 57) como “um
sistema inserido numa diversidade de contextos e constituído por pessoas que
compartilham sentimentos e valores formando laços de interesse, solidariedade e
reciprocidade, com especificidade e funcionamento próprios”.
Teperman (2009) citando Cicarelli (2007) pontua que o modelo de família
nuclear mesmo que seja idealizado e promova uma sensação de estabilidade e
segurança, nunca foi sinônimo de "normalidade". Acrescenta que não existe uma
forma de organização familiar ideal que poderia garantir as condições necessárias
para a constituição do sujeito.
Neste sentido verificamos que a partir do momento em que a sociedade
passou a reconhecer que o modelo fechado e matrimonializado não consistiam em
modelo único e absoluto de família, foi se abrindo espaço para a diversidade de
famílias atualmente existentes: tais como: casais separados, famílias
monoparentais, famílias recompostas, famílias homoparentais, etc., as denominadas
famílias contemporâneas.
De acordo com Teperman (2009)

A contemporaneidade, no que diz respeito à família, nos permite dois


modos iniciais de aproximação: por um lado, há a ideia de que as
novas configurações familiares que vêm se manifestando com mais
intensidade nos últimos anos engendram a impossibilidade do
exercício adequado das tarefas parentais; por outro, a ideia de que,

332
PODER JUDICIÁRIO
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apesar das diferentes e novas configurações que possa adquirir, a


família resiste [...]

No que se referem à responsabilidade pelos membros menores, Kaloustian;


Ferrari (2011, p. 11) afirmam que

A família é o espaço indispensável para a garantia da sobrevivência


de desenvolvimento e da proteção integral dos filhos e demais
membros, independente do arranjo familiar ou da forma como vem se
estruturando. É a família que propicia os aportes afetivos e,
sobretudo materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar
dos seus componentes. Ela desempenha um papel decisivo na
educação formal e informal, é em seu espaço que são absorvidos os
valores éticos e humanitários, e onde se aprofundam os laços de
solidariedade.

A família vem a cada dia desempenhando papéis de maior relevância na


proteção de seus membros crianças e adolescentes; há de se fazer referência à
legislação em relação à responsabilidade pelos membros crianças e adolescentes,
ampliação do conceito de família, e também das reflexões sobre o direito a
convivência familiar, fazendo referência também a família extensa, desta forma se
faz necessário refletir sobre tais papéis, iniciando-se pela delimitação do significado
de Poder Familiar (exercício exclusivo dos pais), Responsabilidade Parental e
Guarda (a ser exercido por familiares ou terceiros em situações específicas).

2. O Poder Familiar: a instituição da visão “filhocentrista”

De acordo com o artigo 229 da Constituição Federal de 1988 “os pais tem o dever de
assistir, criar e educar os filhos menores”; na mesma linha o artigo 22 do Estatuto da Criança e
333
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

do Adolescente dispõe que “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos
menores, cabendo-lhes, ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as
determinações judiciais”. E ainda o Código Civil em seu artigo 1634

Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:


I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o
outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer
o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e
assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-
lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços
próprios de sua idade e condição.

Neste sentido verifica-se que houve a partir da Constituição de 1988 e das


leis adjacentes um reordenamento no sentido de filiação, atribuindo aos filhos o
centro das discussões e dos deveres dos pais, nos dizeres de Filho (2013, p. 38)

O que existe é uma uniforme concepção filhocentrista, que desloca o


seu fulcro da pessoa dos pais para a pessoa dos filhos, não mais
como objeto de direito daqueles, mas ele próprio é um sujeito de
direitos, e, consequentemente, com direito, dentre outros, ao seu
integral desenvolvimento, à filiação, ao respeito, à diferença, a ser
ouvido, à intimidade, à vida.

Em decorrência de tal reordenamento e mesmo das modificações advindas


nas questões relativas a direitos e deveres de homens e mulheres na relação

334
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

conjugal e com os filhos, segundo Azambuja et al. (2014) tem havido entre os
doutrinadores novas reflexões sobre o termo a ser utilizado para se fazer referência
aos atributos dos pais relativos aos filhos preferindo o uso da expressão autoridade
parental ou ainda responsabilidade parental; neste sentido refere que

[...] desfocada da relação de poder que os pais exerciam sobre a


prole para o entendimento de que a autoridade está relacionada ao
interesse dos filhos, enquanto pessoas em desenvolvimento, a
criança e o adolescente passaram de objetos de direito para a
condição de sujeitos de direito. (2014, p. 6)

Devido às inúmeras demandas do mundo atual, os pais parecem contar


atualmente com certa parceria entre eles, a “co-parentalidade”, na qual as funções
parecem estar sendo exercidas de acordo com a capacidade psicoafetiva dos
mesmos, diferentemente de uma época onde os papéis eram rigidamente definidos,
discriminados. Fato que parece tornar os homens mais próximos dos filhos nos
contatos iniciais da vida dos mesmos, em funções antes consideradas unicamente
da mulher.
Assim essa responsabilidade parental há de ser assumida pelos pais em
benefício e interesse dos filhos, haja vista que também a lei disciplinará as
consequências da não assunção de tais responsabilidades e deveres dos pais em
relação aos filhos, com a possibilidade de perda de um de seus atributos, como por
exemplo, o direito de guarda, assim como a suspensão ou destituição do poder
familiar19.
Importante mencionar que com as novas configurações familiares há também
novas discussões sobre o exercício da responsabilidade parental, retirando a íntima
ligação desta com a relação conjugal entre um homem e uma mulher. O

19
Artigos 1635 a 1638 do Código Civil

335
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

reconhecimento legal do direito de união civil entre pessoas do mesmo sexo, a


possibilidade de adoção por estes parceiros, assim como as muitas vertentes dos
estudos psicossociais vão delinear novas possibilidades de exercício dessa
responsabilidade parental, indicando que “as funções materna e paterna não se
relacionam diretamente com o gênero do indivíduo cuidador, mas com o papel a ser
exercido, que pode ser mais feminino, maternal, ou masculino, paternal.” (Rodriguez;
Paiva (2011, p. 18) apud Santos (2004)); sobre isso continuam as autoras, citando
Uziel (2002) “o fundamental para o desenvolvimento da criança é a possibilidade
desta manter relações saudáveis com seus responsáveis e irmãos, e que permitam
o desenvolvimento dos indivíduos que formam a família”. (idem, p. 19)
E assim, na família contemporânea ou pós-moderna, a relação de
parentalidade não pode ser vista apenas sob o enfoque biológico, sendo primordial o
aspecto socioafetivo presente na relação. Quando alguém se propõe a ser pai ou
mãe, dedicando ao filho carinho e atenção; ensinando e ajudando na construção da
personalidade de uma pessoa; participando efetivamente dos momentos importantes
e das descobertas daquele ser, está se inserindo no contexto socioafetivo, e neste
contexto o importante são as relações afetivas e de cuidado que se estabelecem e
não o fator genético e a sexualidade dos cuidadores.

2.1. A guarda para além do Poder Familiar

Segundo Filho (2013) citando Plácido e Silva, o vocábulo guarda significa


proteção, observância, vigilância ou administração, assim como custódia e cuidado
dos pais ou um dos pais em relação aos seus filhos; o Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990) avança ao indicar que tal guarda, assim estendida, poderá ser
exercida por terceiros, de forma provisória, para atender a situações específicas e
no interesse da criança, assim como em transição para adoção

336
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Art. 33 “A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e


educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o
direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser
deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e
adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.
§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de
tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta
eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de
representação para a prática de atos determinados.
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de
dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive
previdenciários”.

Além desses aspectos, o Estatuto também irá disciplinar sobre o conceito de


família, delegando a todos os membros adultos graus de responsabilidades
referentes aos membros crianças e adolescentes

Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos


pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela
que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do
casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou
adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.

O Estatuto ainda ao dispor da análise do pedido de guarda indica que [...]


levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade,
a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida (Art. 28 § 3o).
Dessa forma as atribuições referentes à guarda podem ser exercidas no
superior interesse da criança por outras pessoas que compõem essa família, ou

337
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terceiros com quem mantenha vínculos afetivos, logo que as análises precisam partir
das necessidades da criança, e essas como já referido acima, não se vinculam
necessariamente a pessoas e gêneros pré-definidos.
Segundo Meirelles (2014, p. 43) o próprio direito tem avançado no sentido de
entender os deveres dos pais em relação aos filhos, para os deveres que a família
tem em relação aos membros crianças e adolescentes, reforçando a questão da
análise do direito ao cuidado por parte dos mesmos. Segundo a autora “A família
surge [...] como lugar privilegiado do exercício do cuidado” por “força do princípio da
solidariedade, foram criados mecanismos jurídicos que facilitam ou mesmo
condicionam ações solidárias”. Assim podemos referir que a criança e o adolescente
tem o direito de serem cuidados. E isso como refletido pelo grupo passa pela
construção de um espaço para este ser se individuar.
E o exercício do cuidado por parte dos pais ou de terceiros responsáveis pela
criança ou adolescente, vai depender de como estas pessoas se constituíram
enquanto cuidadores, quais foram às experiências de cuidados que eles tiveram na
infância, na adolescência e mesmo na idade adulta; como eles se relacionam com o
meio no qual estão inseridos e mesmo com o perfil da criança ou adolescente que
está sob sua responsabilidade. Nos dizeres de Meirelles (2005, p. 45), “Adultos, que
não tiveram estas experiências de cuidados afetivos e efetivos, tem dificuldades ao
cuidarem e amorizarem suas crianças”.
Neste sentido ganha relevância, principalmente no contexto das famílias
pobres20, o papel da politica de atendimento, em especial a Assistência Social, no
que se refere a criar espaços dentro dos equipamentos sociais, de discussão sobre
o exercício dos papéis parentais e do cuidado às famílias atendidas.

20
Tendo em vista que como demonstra as pesquisas realizadas por Fávero ( ) a grande parte das
famílias cujos filhos estão acolhidos, ou os pais foram depostos do poder familiar são oriundos de
famílias pobres.

338
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No caso das crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional


verificamos que há necessidade de repensar as práticas da Infância e da Juventude,
assim como da política pública. No caso dos adolescentes, por exemplo, estes,
diante desta vivencia que normalmente se estende ao longo de vários anos, podem
apresentar lacunas no seu processo de desenvolvimento, pois não vivenciam uma
relação parental de responsabilidade, cuidado e proteção.

3. As funções materna e paterna:

3.1. A função Materna

A reflexão sobre função materna nos remete necessariamente a uma imersão


nas transformações de gênero ocorridas ao longo da história, mais especificamente
o lugar ocupado pelo homem e pela mulher na esfera trabalhista e familiar; segundo
Borges (2005, p. 23)

[...] as funções maternas e paternas têm sofrido mudanças em seu


exercício e parecem não estar rigidamente definidas entre homens e
mulheres, sendo vividas, ora por homens-pais, ora por mães, de
acordo, com suas condições psicoafetivas.

Tendo esta premissa devemos nos afastar de modelos antigamente vigentes


nos quais havia uma notaria cisão entre a função exercida pelo pai e a exercida pela
mãe, na qual ao primeiro incumbia estritamente à manutenção financeira da prole e
a segunda os cuidados físicos e educacionais dos filhos.
Neste mesmo prisma pontuamos que concomitante as transformações
supramencionadas devemos nos atentar para o fato da função materna ter que ser
redefinida ao longo do processo de desenvolvimento da criança, pois cada etapa
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estabelece diferentes necessidades. Para elucidar esta questão Borges (2005, p. 33)
com base nas analises realizadas nas obras de Winnicott (2000) expõe que “A
função materna nos primórdios da vida da criança é estabelecer condições
apropriadas para que o bebê possa se desenvolver” prossegue a explanação
citando

[...] que no início da vida do bebê a função materna está associada,


por um lado, a aspectos práticos de suprir as necessidades
fisiológicas, por outro, às necessidades psicológicas do bebê (...) Ao
falar de necessidades básicas Winnicott (1980), quer dizer
necessidades essenciais para a sobrevivência física e psíquica do
bebê como alimentação, calor, higiene, afeto, calor humano, desejo
pelo bebê, etc” (idem, p. 34)

Em consonância a autora esclarece que o âmbito das funções materna e


paterna perpassa fatores relativos ao real (cuidados físicos da criança em relação ao
ambiente); ao imaginário (capacidade de sonhar, expectativas em relação à criança
e ao contexto social em que ela está inserida) e ao simbólico (questões psíquicas).
Complementa que

As funções materna e paterna são funções que implicam em


atribuições concretas por parte dos adultos tutelares as quais tem
concomitante funções simbólicas importantes na estruturação da
personalidade dos indivíduos. As funções materna e paterna
enquanto simbólicas estão implícitas em atitudes de conduta tanto de
mães, pais, ou daqueles que acabam exercendo funções de cuidado
e educação de crianças. No desempenho da função materna e da
função paterna entram em jogo características pessoais do pai e da
mãe, bem como determinadas condições emocionais de cada um
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PODER JUDICIÁRIO
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que se referem às suas vivências na infância e suas capacidades de


elaboração de vivências de frustração, separação e do complexo de
edípico. O exercício da função materna e da função paterna, requer
uma série de atributos, aptidões e tarefas, que vão se modificando de
acordo com o desenvolver da criança. (BORGES, 2005, p. 20 e 21)

Refletir que função materna está diretamente associada ao desempenho de


atribuições que tem como objetivo garantir a saciedade das necessidades da criança
ao longo de seu desenvolvimento (necessidades que são mutáveis), implica na
forma como esta função é compreendida e vivenciada e por isso “Função materna e
função paterna implicam, portanto, adultos que desejam a criança e que são
continentes de determinados atributos que os tornam capazes de exercer cuidados
físicos e psíquicos com o bebê.” (BORGES, 2005, p.26)
Outro aspecto relevante à discussão da função materna é a compreensão de
que o seu desempenho ao longo dos anos não se restringe a figura feminina, já que
da mesma forma em que a mulher foi ocupando novos lugares na identificação
societária, dedicando seu tempo não só aos cuidados domésticos, mas também ao
mercado de trabalho, o homem também foi se apropriando de seu papel afetivo na
relação com os filhos, possibilitando a chamada co-parentalidade, a qual é definida
por Meirelles da seguinte forma “Se a parentalidade designa a relação pai-
mãe/criança, a co-parentalidade requer o entendimento dos pais a fim de partilhar,
como bem quiserem, os cuidados práticos, a educação e os carinhos” (idem, p. 91)

3.2. Função Paterna

A função paterna desde a gestação é ser favorecedor de condições para que


a gestante possa vivenciar o estado de mental de preocupação materna primária, ou
seja, para que ela possa vivenciar todas as mudanças físicas e psicológicas

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pertinentes à gestação e ao nascimento do filho. Assim pode-se pensar que por


condições favorecedoras Borges (2005) citando Winnicott (2000) denomina
condições ambientais e psíquicas adequadas para a mulher-gestante, dentre essas
condições estão: segurança, acolhimento, não interferência, procurando ser “agente
protetor” da gestação, principalmente dos últimos meses de gestação e durante o
período de amamentação. Esta função de retaguarda, mencionada, consiste numa
espécie de cobertura, com objetivo de poupar a mãe de voltar-se para fora para lidar
com o mundo que a cerca num momento em que necessita estar voltada para seu
bebê.
Logo após o nascimento do filho, o pai deve também ser capaz de ser
tolerante, para suportar a exclusão temporária desta relação dual e aguardar a
oportunidade de participar de forma mais ativa posteriormente.
E em momento posterior do desenvolvimento da criança, o pai terá a função
simbólica de interdição, onde precisa proporcionar a separação mãe-bebê, com
objetivo de aliviar a intensidade fusional para que a mãe possa recuperar-se e
retomar outros interesses.
Segundo Teperman (2009) a função paterna insere-se como facilitadora da
relação diática, mas também representante da proibição e da contextualização da
dupla. Este fato é o que promove organização, evitando uma confusão entre mãe e
bebê ou ainda uma mãe que acabe sendo intrusiva quando não é capaz de
discriminar suas próprias demandas da demanda da criança. Como o ego imaturo
da criança não consegue se defender, a figura paterna tem esta função.
Cabe abordar ainda, que com as mudanças na estrutura e constituição
familiar, as funções maternas e paternas deixaram de serem exclusivas de um dos
sexos, ou seja, função materna da mãe-sexo feminino e do pai-sexo masculino, pois
o sexo feminino pode vir a desempenhar funções paternas em alguns momentos e
vice-versa, sem comprometimento de qualidade da relação que estabelecem com a
criança.

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3.3 O desenvolvimento infantil e as características inerentes às fases

De acordo com estudos realizados por Piaget e outros pesquisadores do


desenvolvimento infantil, foram estabelecidas características de cada fase de
desenvolvimento da criança, enfocando ações, comportamentos e como se
comunica, as quais foram sintetizadas da seguinte maneira:

- Faixa etária de 0 a 3 meses


No primeiro mês, reage perante barulhos muito altos e pode se assustar com
barulho inesperado. Passa boa parte do tempo dormindo. Seu sistema visual é
limitado, portanto só enxerga algum objeto ou alguém se estiver bem próximo a ele.
No 2º ao 3º mês, o bebê já começa a acompanhar objetos e pessoas com os olhos e
reconhece os pais. Abre e fecha as mãos, leva-as à boca e suga os dedos. Segura
objetos com firmeza por certo tempo e consegue pegar objetos suspensos.
Desenvolve um tipo diferente de choro para cada problema que se apresenta. Com
brincadeiras e músicas o bebê fica agitado, realizando movimentos de pernas,
braços, sorri e dá gritinhos. Quando ouve a voz dos pais, o bebê vira a cabeça.
Comunica-se através do choro e ruídos. Imita alguns sons de vogal. Nesta fase, é
importante organizar a rotina do bebê, tornando os horários das atividades fixos,
como por exemplo, trocar a fralda depois da mamada ou dar banho todos os dias na
mesma hora. É importante que a rotina seja de forma razoavelmente metódica.

- Faixa etária de 4 a 7 meses


Fica na postura de bruços e se apoia nos antebraços quando quer ver o que
está acontecendo ao seu redor. Rola de um lado para o outro. Estende a mão para
alcançar o objeto que deseja, transfere-o de uma mão para outra e coloca-o na

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boca. Apresenta equilíbrio quando colocado sentado. Ri quando algo o agrada e


quando o desagrada mostra raiva através da expressão facial. Nesta fase, alguns
bebês podem demonstrar medo perante pessoas estranhas. Fica repetindo os seus
próprios sons e imita as vozes das pessoas ao seu redor. Movimenta a cabeça na
direção do som escutado.
Para de chorar ao ouvir música. Sorri quando quer atenção do adulto.
Formação do conceito de causa e efeito no momento em que está explorando um
brinquedo. Olha, chacoalha, e atira objetos ao chão.

- Faixa etária de 8 a 11 meses


Engatinha e senta sem apoio. Consegue ficar em pé com apoio. Aponta para
objetos ou pessoas. Pega pequenos objetos com o indicador e o polegar. Demonstra
raiva quando não é o centro das atenções. Reconhece sua imagem no espelho e
reage com euforia. Reclama quando é contrariado. Localiza a fonte sonora. Bate
palmas, joga beijo e entende quando lhe dizem tchau. Começa a compreender o
significado de alguns gestos. Balança a cabeça quando não quer alguma coisa.
Fase do treino com monossílabos do tipo: “ma-ma”, “da-da”, “ne-ne”.

- Faixa etária de 01 a 02 anos


Anda sem apoio. Com 1 ano e 6 meses pode começar a correr, subir em
móveis e ficar nas pontas dos pés sem apoio. Vira páginas de um livro ou revistas
(várias ao mesmo tempo). Gosta de rabiscar no papel. Sabe quando uma ilustração
está de cabeça para baixo. Mostra senso de humor. Nesta fase, o bebê ainda não
compreende as regras, contudo chora quando leva uma bronca e sorri quando é o
centro das atenções ou quando é elogiado. Quando está bravo, pode atirar objetos
ou brinquedos. É possessivo. Prefere não compartilhar brinquedos com as outras
crianças. Reconhece o próprio nome. A partir dos 18 meses começa a criar frases
curtas. A criança começa a formar frases com uma palavra só, tipo “nenê-papá,
nenê-naná”, mas até o término do ano constrói frases de até três palavras como:
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“quer ver tevê”. Esta é a fase das perguntas: “que é isso? Usa o próprio nome.
Reconhece as partes do seu corpo e de outras pessoas. Apresenta atenção para
histórias pequenas.

- Faixa etária de 02 a 03 anos


Tira os sapatos. Chuta bola sem perder o equilíbrio. Gosta de dançar,
consegue acompanhar o ritmo da música batendo palmas. Nesta fase a criança está
pronta para abandonar o uso das fraldas. As frases vão aumentando e surge o
plural. As crianças nesta fase tem uma ótima compreensão, entendem tudo que é
dito em sua volta. Pergunta: "cadê", "O que", "onde". Fala de si mesma na 3ª
pessoa. Chama familiares próximos pelo nome.

- Faixa etária de 03 a 04 anos


Consegue colocar suas roupas e tirá-las sem ajuda de um adulto. Gosta de
desenhar. Nesta fase já consegue segurar um lápis na posição correta. Consegue
pedalar. Brinca com as outras crianças. Apresenta interesse pelos sentimentos das
pessoas que estão ao seu redor, por exemplo, se perceber que seu pai está triste,
procura confortá-lo. Constrói frases com até seis palavras, sobre o dia a dia,
situações reais e pessoas próximas. Compreende a existência de regras gramaticais
e tenta usá-las. É comum a troca do '"r" pelo "l", a qual acaba por volta dos 3 anos e
6 meses. Compreende os conceitos de igual e diferente. É capaz de separar os
brinquedos por tamanho e cor. Lembra e conta histórias.

- Faixa etária de 04 a 05 anos


Consegue usar a tesoura, cortar papel. Maior domínio no uso de talheres.
Consegue pegar a bola com as duas mãos quando está em movimento. Está mais
sociável com as outras crianças. Se sente grande perto das crianças menores.
Sente vontade de tomar as suas próprias decisões. Nesta fase o vocabulário da
criança aumentou bastante, já fala muitas palavras. Expressa seus sentimentos e
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emprega verbos como “pensar” e “lembrar”. Também fala de coisas ausentes e usa
palavras de ligação entre as sentenças, como por exemplo: “e então”, “porque”,
“mas”, etc. Gosta de inventar e contar as próprias histórias. Consegue identificar
algumas letras do alfabeto e números.

- Faixa etária de 06 anos


Amadurecimento neuromuscular; coordenação e músculos mais
desenvolvidos. Faz perguntas sobre tudo. Começa a assumir responsabilidades.
Iniciativa e interesse por atividades de correr, pular, perseguir e fugir. Aceita
qualquer brinquedo. Revela curiosidade sexual. Ocorre a transição entre
individualismo e grupalização. O vocabulário é composto por até 2.500 palavras.
Demonstra afeição, apresenta dramatizações e consegue distinguir realidade e
fantasia.

- Faixa etária de 07 anos


Maior ocorrência de doenças infectocontagiosas, muita atividade. Maior
habilidade no uso dos grandes e pequenos músculos. Maior destreza e precisão de
movimentos. Coordenação óculo-manual. Compreende relações de tempo. Aumenta
o poder de concentração e atenção. Torna-se mais independente da mãe. Início do
pensamento abstrato. Demonstra falta de segurança. Aprecia brinquedos que
revelam controle de movimentos e jogos de velocidade. Capaz de compreender,
discutir e enfrentar situações emocionais. Controle emocional ainda instável.
Escolhe os amigos tendo em vista interesses comuns. Assusta-se menos com
objetos ou animais e aumenta o medo de coisas abstratas como morte, rejeição.

- Faixa etária de 08 anos


Ainda apresenta grande atividade física. Crescimento das pernas é mais
acentuado do que o de outras partes do corpo. Maior habilidade manual. Maior
habilidade em distinguir fatos e ficção. Maior compreensão de tempo e espaço.
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Brinca até a exaustão. Pega nos objetos com mais segurança e manipula-os
com destreza. Continua o interesse por historias de fadas e aumenta para histórias
reais que aconteceram no passado. Prefere ficar em grupo, mesmo que não haja
cooperação. Necessidade de pertencer a um grupo. Sentimento de competição.
Dificuldade no relacionamento com os irmãos. Está desenvolvendo o pensamento
lógico. Maior habilidade em exprimir ideias e definir seus problemas. Maior
capacidade em aceitar críticas e auto avaliação.

- Faixa etária de 09 anos


Crescimento lento, meninas crescem mais que meninos. Percebe
antagonismo entre os sexos. Independência em relação à família. Declina o
interesse pela fantasia. Procura amigos do mesmo sexo; melhor amigo. Pensamento
crítico.

- Faixa etária de 10 anos


Coordenação visual e motora quase igual à do adulto. Maior capacidade de
manter a atenção. Apresenta maior habilidade em generalizar e em pensamento
crítico. Capacidade de planejamento. Pronta a assumir maiores responsabilidades.
Gosta de se comparar com os outros; deseja status. Interesse em explorar e
experimentar. Maior independência.

- Faixa etária de 11 anos


Puberdade – meninas; muita atividade física nos meninos; independência.
Imitação dos pares. Pode surgir rebeldia em relação às autoridades. Maior
capacidade de abstração.

- Faixa etária de 12 anos

347
PODER JUDICIÁRIO
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Puberdade – meninas e meninos; maior sociabilidade. Imitação de pares e


adultos. Gosta de estar em companhia de adultos, participar das conversas, dar sua
opinião. Curiosidade intelectual.

4. OS FATORES QUE INFLUENCIAM NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES


MATERNA E PATERNA

Vários são os fatores que influenciam o exercício das funções paterna e


materna, no cuidado e educação dos filhos, perpassando pela situação familiar,
social e econômica e por outras vivências durante o desenvolvimento psicossocial
do individuo, e ainda pelo desejo de exercer a parentalidade, desejo este que pode
surgir durante um relacionamento ou advindo de uma gravidez inesperada. Para
ilustrar, foram elencados alguns fatores divididos em internos e externos, conforme
segue:

4.1 Fatores Externos:

a) Relações familiares e seus valores – que envolve aspectos socioculturais


Os aspectos socioculturais como fatores externos que afetam as relações
familiares no mundo pós-moderno e suas repercussões presentes na atualidade
remetem tanto à mãe quanto ao pai, vivências que são determinantes no
desempenho de suas funções. Observam-se na mãe diferentes tipos de
preocupações, tais como, o corpo e a estética, a sexualidade, as demandas do
mercado de trabalho e, no pai, por exemplo, questões relativas à paternidade
determinada por testes de DNA e os novos processos de reprodução assistida.

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A título de esclarecimento, os casos de paternidades reconhecidas por testes


de DNA se relacionam com a ausência da figura paterna durante a gestação e nos
primeiros meses/anos de vida da criança que vão refletir no desempenho, muitas
vezes, unilateral, do papel materno, sem o apoio da figura paterna. Nos casos que
envolvem a reprodução assistida os reflexos advindos desse tipo de reprodução se
vinculam especificamente à questão da “virilidade do homem que não conseguiu
reproduzir”, trazendo reflexos no seu desempenho enquanto figura de pai.
Considerando ainda as novas modalidades de famílias homoparentais e
monoparentais, observa-se que tais novas configurações também refletem no
exercício das funções materna e paterna. “Em cada um destes casos as vivências
das funções materna e paterna terão suas peculiaridades distintas, serão ou não
substituídas por alguém que a exerça ou serão falhas trazendo consequências à
formação do psiquismo de muitas crianças.” (BORGES, 2005, p. 38).
As relações familiares são relações primárias, ou seja, é o primeiro ambiente
que a criança vai conhecer e vivenciar suas experiências e o seu desenvolvimento
está diretamente vinculado à qualidade destas relações. Assim, um ambiente
familiar saudável será naturalmente potenciador de um crescimento saudável, na
medida em que ajuda a criança a desenvolver competências de relação intra e
interpessoal que a ajudarão a enfrentar os desafios do crescimento (NOGUEIRA,
2013). Na atualidade, dadas às novas configurações familiares, observa-se de forma
contundente o exercício das funções materna e paterna não apenas por pais e
mães, mas também por outros familiares que por diversos motivos assumem esses
papéis e, dentre estes familiares, mais comumente identificamos os avós que muitas
vezes assumem os cuidados dos netos enquanto os pais vão para o mercado de
trabalho.
Borges (2005, p. 37) citando Winnicott (1980) cita a importância de pai, mãe e
criança viverem juntos para que ocorra um bom desempenho de ambas as funções,
materna e paterna, entretanto, nas condições atuais, onde pode ocorrer de um dos

349
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pais estar ausente da vida da criança, esta ausência pode afetar o desempenho de
tais funções provocando modificações, transformações e/ou falhas em seu exercício.

O exercício das funções materna e paterna serão determinantes a


partir dos vínculos estabelecidos entre mãe-bebê, pai-bebê, mãe-pai-
bebê e mãe-bebê-pai, sendo importante considerar não apenas os
sujeitos e suas funções mas a interação entre eles. (BORGES, 2005.
51)

Observe-se que Winnicott (apud BORGES, 2005) aborda a questão da


modificação, transformação e possíveis falhas no exercício das funções materna e
paterna, o que não significa que uma criança não possa desenvolver-se em um lar
diferente da tríade mãe-pai-filho de forma saudável, necessitando de figuras de
referência que remetam à função materna e paterna, não necessariamente
desempenhadas por pais e mães biológicos e/ou adotivos. Consubstanciando esse
pensamento Borges (2005) considera que o desejo pelo filho, o lugar que este filho
irá ocupar, o contexto do lar onde a criança vai ser gerada, a harmonia e a forma de
convivência do casal (aqui consideramos as relações homoafetivas e até mesmo as
relações que envolvem o desenvolvimento de uma criança em um lar monoparental)
são fatores que vão influenciar nas possibilidades de desenvolvimento das funções
materna e paterna.

b) Situação socioeconômica, que envolve a participação da mulher no trabalho


A família apresenta sucessivas formas de organização e transformações que
estão associadas a cada momento histórico, tendendo a refletir o estado de cultura
do sistema na qual está inserida; passa por períodos contínuos de adaptações aos
novos contextos socioculturais, gerando impactos na estrutura da família.
Embora a força da herança cultural, no mundo moderno é possível para
ambos os sexos manifestarem comportamentos e assumirem funções no interior do
lar, o convívio se torna mais flexível para suportarem as exigências da vida

350
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contemporânea, mas ainda em relação à educação e desenvolvimento dos filhos


privilegia ideologicamente a família nuclear, a educação restrita às mulheres.
A participação feminina no trabalho externo, a oportunidade de estudos, a
qualificação, altera a função social da mulher provocando um redimensionamento no
ambiente familiar, funções mais igualitárias entre os gêneros quebrando a hierarquia
e o predomínio de um sexo sobre o outro. As funções passam a ser um pouco mais
compartilhadas, mas em outro âmbito, a igualdade em relação às obrigações e
direitos na vida familiar pode levar a mulher a um acumulo de tarefas.
Nas funções parentais cabe à família estabelecer condições apropriadas para
o desenvolvimento do filho, garantindo a sobrevivência física e psíquica através de
aptidões e tarefas que vão se modificando de acordo com o desenvolvimento da
criança. Portanto, a importância de programas que visem o apoio familiar, que
fortaleça a família e promova o crescimento e desenvolvimento dos seus membros
não apenas oferecendo serviços, mas promovendo seu empoderamento para que
melhore a sua capacidade de resolução dos problemas.

c) Acesso ou não às politicas públicas


O acesso ou não às políticas públicas pode influenciar nas potencialidades e
vulnerabilidades de homens e de mulheres no exercício da parentalidade e no
cuidado e educação dos filhos.
As famílias mudaram, entre os fatores que nos proporciona vislumbrar tais
mudanças estão: o aumento das uniões estáveis, o menor número de filhos, mais
mulheres no mundo do trabalho e exercendo a função de prover financeiramente
suas famílias, os homens compartilhando o cuidado da casa e dos filhos entre
outros.
Portanto as intervenções do Poder Público precisam acompanhar as
evoluções sociais e as diferentes formas de famílias, com a oferta do acesso às
políticas públicas que permitam aos sujeitos exercerem a capacidade do cuidado e
da proteção da família e seus membros, e isso pode depender da proteção que eles

351
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recebem ou não do Estado, mas também das redes externas e internas de apoio
que as famílias estabelecem.
Para tanto há de se ter a oferta de Políticas Públicas nas áreas de assistência
social, saúde, habitação, trabalho, cultura, esporte e lazer, com a oferta e acessos
das famílias aos serviços qualificados para que elas possam buscar conquistar a
autonomia e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitário
d) Suporte religioso e modelos parentais

O papel da parentalidade em seu exercício está vinculado à transmissão de


valores éticos, ou seja, e um desses aspectos a ser considerado são os aspectos
que envolvem a religiosidade, considerando os aspectos culturais, às tradições e a
ideologia da sociedade.
Religião é um sistema organizado de crenças, que incluem valores morais e
a crença na existência de um ser superior. Partilhada e institucionalizada, leva as
pessoas que a vivenciam a se envolverem em uma comunidade. (BERGOLD;
PRATI, 2014).
Assim a religião tende e pode oferecer valores que vão nortear e estruturar a
vida individual e familiar, permitindo a criação de uma identidade, sentimento de
pertencimento e a sensação de que há uma estrutura que apoia e orienta as
decisões cotidianas que envolvem a educação dos filhos, funcionado em alguns
momentos como auxiliar para que os filhos incorporem a autoridade paterna e as
regras e limites impostos. Entretanto há alternativas para essas questões sejam
incorporadas na educação dos filhos.
Outro aspecto avaliado como positivo de acordo com a literatura pertinente é
que a religiosidade amplia a rede social de apoio, favorece a interação familiar e
auxilia na aceitação e superação dos momentos de conflito.
O exercício da parentalidade na contemporaneidade exige flexibilidade e
adaptação constante, e cada contexto familiar apresenta demanda especifica e cabe
aos responsáveis identificar a forma que atenderá a essa demanda. Essa reflexão

352
PODER JUDICIÁRIO
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sobre a influencia da religiosidade é pertinente quando pensamos que nas famílias


que a vivenciam e traduzem essa experiência como positiva e com capacidade para
alterar o resultado esperado.
Em suma quando pensamos em transmissão, educação e parentalidade, a
religião dentro deste contexto assume relevância e, por ser compreendida como
responsável por auxiliar na construção da identidade dos filhos, como membros de
uma sociedade, facilita a incorporação de valores e modelos a ser seguidos, uma
vez que os filhos tendem a reproduzir de forma similar os valores e modelos
paternos.

4.2 Fatores Internos

a) Características de personalidade daqueles que vão exercer a função


paterna/materna
As características de personalidade das pessoas que irão exercer as funções
paterna/materna exercerão influência em como as crianças (filhos) serão cuidadas e
protegidas, pois além dos aspectos pessoais, a infância por eles vivida e a relação
estabelecida com seus cuidadores estarão presentes e servindo de modelo ou
contra modelo quando passarem a desempenhar tais papéis. Também serão
fatores de influência no exercício dessas funções, a maturidade emocional, ou seja,
a capacidade de estar preparado emocionalmente ou não para assumir
responsabilidades nos cuidados e proteção de crianças (filhos);
b) Heranças psíquicas (memórias afetivas)
Teperman no capítulo que se intitula “tornar-se mãe e pai”, menciona
acreditar que o exercício da função materna e paterna passa por etapas de
elaboração e aprendizagem emocional a partir de vivências, desde a tenra infância,
quando são transmitidos os desejos “de vir a ser” pais.
353
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Solis-Ponton (2004) diz que ao se tornar pai ou mãe o ser humano tem que
agir tendo seus próprios pais como modelo. E assim no momento que o homem e a
mulher que se descobrem pais entram em contato com os modelos aos quais se
identificaram. Algumas identificações processam-se no decorrer da vida do menino e
da menina de forma consciente, baseadas nos modelos admirados e percebidos
como agradáveis em nível de suas identificações sexuais e padrões culturalmente
aceitos, como, para as meninas o cuidar de crianças e de tarefas domésticas.
Outras ficam na ordem do inconsciente onde, tanto meninos quanto meninas, podem
se identificar com aspectos mais femininos ou aspectos mais masculinos dos pais.
Solis-Ponton (2004) aponta para o fato de que durante a gravidez e nos
primeiros anos de vida da criança a mãe está mais identificada com a imagem do
bebê que ela foi. Além disso, a mãe-mulher também se identifica ao mesmo tempo
com sua mãe e com o seu bebê.
c) Recursos internos – adaptabilidade, flexibilidade, equilíbrio emocional –
capacidade de sustentar física e emocionalmente as crianças / adolescentes,
autoestima
Capacidade de responder aos desafios colocados pelo temperamento e
desenvolvimento particulares do filho seja ele criança ou adolescente; bem como a
capacidade de aceitar e estar preparado para lidar com as características pessoais
que afetam o exercício da parentalidade.
Desde os primeiros meses de vida da criança, os pais e responsáveis devem
dedicar atenção ao desenvolvimento da autoestima, sendo imprescindível estimular,
elogiar, motivar e oferecer muito afeto.
d) Capacidade de comunicar-se com as crianças / adolescentes
A forma e a frequência com que se estabelece a comunicação com os filhos,
respeitando a fase específica do desenvolvimento e as características individuais,
contribui para a formação do vínculo e para o estabelecimento de um
relacionamento afetivo seguro com a criança/adolescente.

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e) Saúde física e mental – aspectos relacionados ao estresse, a depressão,


ansiedade e doenças crônicas
Faz referência ao bem-estar físico, emocional e psicológico que permite ao
individuo utilizar suas capacidades cognitivas e emocionais para se desenvolver
socialmente e manejar as contingências da vida diária. Quando ocorre um
desequilíbrio, seja na saúde física ou mental, este pode influenciar a forma do
individuo se relacionar com o outro e, neste caso específico, pode influenciar o
exercício da parentalidade.
f) Entender o papel de cuidador – envolvem as próprias experiências
intergeracionais, capacidade para impor limites, supervisão e adequado exercício da
autoridade ao estabelecer regras consistentes, tolerância à frustração
Ter consciência sobre a importância do papel parental no desenvolvimento
dos filhos, bem como empreender esforços construir um repertório de
comportamento parental focado nos interesses da criança, que a reconheça
enquanto um ser em desenvolvimento e a oriente, definindo limites para
potencializar o desenvolvimento integral da criança.
g) Características de personalidade das crianças / adolescentes em
contato com família
As características de personalidade irão influenciar os vínculos que serão
estabelecidos entre pais e filhos, dificultando ou facilitando as relações, havendo
necessidade dos adultos que assumirão os papéis de pai e mãe de terem
compreensão e capacidade para conduzir as dificuldades da melhor maneira
possível.
h) Capacidade de interagir de forma lúdica com as crianças (brincar)
Ferland (2006) considera o brincar como a atividade própria da criança,
cheia de sentido para ela, através da qual consegue desenvolver suas capacidades
de adaptação e de interação, conquistando assim sua autonomia.
A educação informal proporcionada pelos pais torna mais significativa as
aprendizagens vivenciadas pelos seus filhos e como tal a família deve participar em
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todos os momentos da vida de uma criança, principalmente na introdução do ato de


brincar. Se houver interações lúdicas entre pais e filhos, a criança poderá, através
da brincadeira, aprender a lidar de forma eficaz com as situações vivenciadas no
quotidiano, construir e reconstruir simbolicamente a realidade, recriar o que vive e
observar, aprender, compreender e produzir novos conhecimentos.
O lúdico está relacionado a tudo o que possa dar alegria e prazer,
desenvolver a criatividade, imaginação e a curiosidade, permitindo a
criança viver novas experiências, Ronca (1989) afirma: "O lúdico
permite que a criança explore a relação do corpo com o espaço,
provoca possibilidades de deslocamento e velocidade, ou cria
condições mentais para sair de enrascadas, e ela vai então,
assimilando e gastando tanto, que tal movimento a faz buscar e viver
diferentes atividades fundamentais, não só no processo de
desenvolvimento de sua personalidade e de seu caráter como
também ao longo da construção de seu organismo cognitivo (1989).

i) O impacto causado pelas situações novas vividas por pais e filhos


A dificuldade em lidar com o novo, o desconhecido, situações em que não
existe controle, todas essas possibilidades causam inseguranças e dependendo da
maneira como são assimiladas podem gerar conflitos, portanto a necessidade de
buscar orientação e ajuda para a resolução dessas dificuldades surgidas.
j) Sentimento de culpa – principalmente da mulher devido a sua inserção
no mercado de trabalho
A busca por novos papéis geraram inseguranças quanto ao desempenho da
função paterna/materna, surgindo o “sentimento de culpa” por não poder estar se
dedicando exclusivamente ao filho, e caso não consigam elaborar adequadamente
suas limitações e compreender que o importante são os vínculos estabelecidos,
pode ocorrer que os pais tentem suprir essas carências com bens materiais e outros,
o que será prejudicial à criança.
Todos os fatores internos citados são de extrema importância para o
desenvolvimento satisfatório da criança, e para tanto as pessoas que estiverem

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desempenhando os papéis de figura paterna/materna devem considerar os


seguintes aspectos:
Todos os fatores internos citados são de extrema importância para o
desenvolvimento satisfatório da criança, e para tanto as pessoas que estiverem
desempenhando os papéis de figura paterna/materna devem considerar o artigo da
Professora Elizabete Maria de Jesus Souza, o qual foi publicado na Revista Ponto E,
em 17/09/2014, onde ela apresenta o seguinte texto:
As experiências vividas na primeira infância serão decisivas para a
construção da personalidade de todo ser humano. É preciso considerar que a
personalidade é formada primordialmente pelas características hereditárias, depois,
pelas adquiridas durante toda a vida, determinando a interação do indivíduo com o
ambiente de desenvolvimento. Neste processo, a qualidade das relações entre pais
e filhos exerce uma influência determinante na formação psicológica destes.
Desde os primeiros meses de vida da criança, os pais e responsáveis devem
dedicar atenção ao desenvolvimento da autoestima, sendo imprescindível estimular,
elogiar, motivar e oferecer muito afeto. Da mesma forma, as crianças devem ter toda
a liberdade para expressar emoções autênticas: alegria, afeto, tristeza, medo e
raiva. Se for levada a reprimir suas emoções, desenvolverá uma personalidade
combalida, neurótica, plena de tensão, ansiedade, angústia, depressão e
insegurança. É preciso assegurar o direito de expressão, acolhendo e orientando-as
sobre como lidar com sentimentos de sua natureza humana.
A severidade, críticas e exigências exacerbadas, olhares e gestos com efeitos
negativos, mania de perfeição, a rejeição, as desqualificações e a indiferença só irão
prejudicar seu desenvolvimento.
Os pais devem proporcionar à criança o direito de se desenvolver sem
bloquear suas capacidades. O diferencial é respeitar cada fase de desenvolvimento.
Quando os pais sabem o que a criança está apta a fazer em cada idade, não faz
cobranças exageradas, nem críticas inapropriadas. Eles saberão orientá-las zelando
pela autoestima, desenvolvendo os valores existenciais, estéticos, intelectuais e
357
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morais, além de virtudes como a temperança, resultando no equilíbrio emocional,


contribuindo para a formação de personalidade de um indivíduo saudável e feliz.

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Conclusão

A realização do estudo referente à matéria “Os papéis parentais no exercício


da guarda”, definida como objeto de pesquisa no início do ano de 2014 pelos
integrantes do grupo de estudos realizado na cidade de Araçatuba – SP, que tem
como tema central “Família”, permitiu a apropriação de conhecimentos e possibilitou
a ampliação da visão em relação às condições concretas do exercício da
paternidade e da maternidade.
Nas reflexões acerca da prática profissional no cotidiano, foi verificado como
ponto comum entre as comarcas participantes que a articulação das políticas
públicas entre si ainda é muito frágil na garantia da atenção às necessidades
básicas e dos direitos sociais das famílias e de seus membros, o que pode interferir
no exercício dos papéis parentais e, consequentemente, no desenvolvimento de
suas crianças e adolescentes.
Tal ponderação parte do princípio que é dever do poder público prover meios,
condições e recursos que propiciem à população a satisfação de suas necessidades
de vida com o acesso ao trabalho, à assistência social, à habitação, à saúde, à
educação entre outros. Concepção confirmada pelo Manual para o Exercício da
Paternidade do Instituto Pró Mundo que além de todo o exposto ressalta que o
incentivo da participação dos homens na vida familiar e o acesso à educação de
qualidade pode trazer a redução da violência contra as mulheres e crianças no
âmbito das famílias e promover a contribuição deles na divisão das tarefas
domésticas.
Portanto, vislumbra-se que é necessário o fortalecimento da intersetorialidade
entre as políticas públicas na atenção às demandas sociais e satisfação dos direitos
das famílias e seus membros.
Conclui-se que nem sempre aquele que detém o poder familiar tem
consciência do seu significado e as formas de vivenciá-lo no contexto das famílias
em condição de vulnerabilidades e das que se encontra com crianças e
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adolescentes em medida de proteção de acolhimento institucional; foi refletido e


questionado sobre as concepções de família a partir da teoria em contraposição às
próprias práticas profissionais ao avalia-las e a responsabilidade ao constar tais
acepções nos autos processuais como elementos de provas para as decisões
judiciais; no que concerne a esse assunto admite-se que o presente estudo
propiciou maior embasamento teórico crítico para tal.
Além disso, foi possível estudar sobre o conceito jurídico de cuidado e a
interferência deste, a partir das funções maternas e paternas, para oferecer um bom
desenvolvimento às crianças e adolescentes, bem como o papel das políticas
públicas referente a este compreendido ao longo do estudo como fundamental no
seu exercício.
Nesse sentido, ao considerar as questões levantadas no início do trabalho
pode-se afirmar que o grupo pôde esboçar as reflexões propostas, e a partir das
discussões suscitadas ao relacionar a teoria com a prática profissional no âmbito do
judiciário foi possível elucidar considerações acerca do papel destes profissionais,
assistentes sociais e psicólogos, num contexto tão amplo e significativo, que exige
avaliação com emissão de parecer a subsidiar as decisões judiciais nas situações
em que os conflitos e/ou as violações de direitos são extremadas e não encontram
soluções fora do ambiente judiciário.

360
PODER JUDICIÁRIO
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363
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DISPUTA DE GUARDA:
FAMÍLIAS EM LITÍGIO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ASSIS – “FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2014
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Coordenadores:

Rosana Claudia Mouro Andreotti - Assistente Social Judiciário - Comarca de Assis


Thais de Cassia Ribeiro Pereira Rupel – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Chavantes

Autores:

Adalgisa Maria Serafim de Góis – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis


Ana Claudia Brancalhão – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis
Ana Lúcia Martins Fonseca – Assistente Social Judiciário – Comarca de Paraguaçu
Paulista
Antonella Di Nallo – Psicólogo Judiciário – Comarca de Assis
Bruno Amaral dos Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de Assis
Cintia Fernanda Pavaneti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Quatá
Damaris Bezerra de Lima – Psicólogo Judiciário – Comarca de Ourinhos
Fabiane Bolfarini Guiotti Campanatti – Psicólogo Judiciário – Comarca de Assis
Jocimar de Castro Cesar Perino – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis
Kátia Sayuri Santos Tanaka – Psicólogo Judiciário – Comarca de Ourinhos
Laura Bagalho Ferruci – Psicólogo Judiciário – Comarca de Ourinhos
Márcia Cristina Schwarz Mendes – Psicólogo Judiciário – Comarca de Assis
Marina da Motta Bordin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Paraguaçu
Paulista
Neide Dala Póla Brigatto – Psicólogo Judiciário – Comarca de Assis
Nélli Maria Bertolucci da Motta – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis
Roberta Schiavinato Felipe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Maracaí
Rosana Cesar de Oliveira Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Paraguaçu Paulista
Silvana Antônia Toniolo Nelli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

O presente trabalho compreende a produção do Grupo de Estudos formado


por Assistentes Sociais e Psicólogos da Circunscrição de Assis, Ourinhos e
Presidente Venceslau, cujo tema é “O COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL -
FAMÍLIA”, especificamente neste ano abordando o tema Disputa de Guarda:
Famílias em litígio.
Inicialmente é preciso considerar que a partir do século XVIII as alianças
conjugais estabelecem-se pela ordem do afeto, até então se davam em função de
bens e patrimônios. Nesta época valoriza-se o amor entre o casal e o amor entre
pais e filhos. É a era da modernidade. Para Roudinesco (2003), nesse período, o
filho aparece como responsabilidade dos pais e do Estado.
Já no século XX, por volta dos anos 60 e 70 houve intensas transformações
sociais. O movimento feminista, o advento da pílula, a introdução da mulher no
mercado de trabalho, a liberação sexual, o milagre econômico, a abertura para o
consumo, fatores de mudança que produzem novos arranjos conjugais e familiares,
colocam em cheque o modelo jurídico de família nuclear que permanecia inalterado
do período autoritário ao democrático: centrado no pátrio poder e, portanto,
assimétrico e hierárquico.
Nesse período as relações são voltadas à própria satisfação e não mais à
procriação e constituição de família (ROUDINESCO, 2003). Esta família pós-
moderna dissolve a hierarquia que dividia as esferas pertencentes a cada sexo e
geração. As individualidades passam a subordinar as relações entre os membros,
seja entre homem e mulher, seja entre pais e filhos. A ênfase no indivíduo é
acompanhada pelo ideal de igualdade no relacionamento, imprimindo uma nova
moral no campo das relações interpessoais, que se tornam negociadas.
Os princípios de deveres correlatos entre os sexos e o ideal de
indissolubilidade do casamento ruem neste panorama de mudanças, provocando
alterações na legislação: lei do divórcio (1977); Constituição Federal (1988); ECA
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PODER JUDICIÁRIO
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(1990); lei da paternidade (1992). A atual legislação preconiza a igualdade entre


homens e mulheres, reconhece como legítimas outras formas de união além do
casamento, a família em sua pluralidade, a igualdade de direitos entre todos os
filhos, nascidos dentro ou fora do casamento, e em relação à guarda dos filhos,
estabelece o critério de melhor interesse da criança.
Para fins didáticos o presente artigo encontra-se dividido em três partes: Na
primeira parte do texto, buscou-se discorrer acerca dos conceitos de conjugalidade e
parentalidade e as implicações decorrentes nas disputas de guarda. Posteriormente,
apresentou-se uma discussão sobre os aspectos que envolvem a criança e /ou
adolescente no contexto conflitivo da disputa de Guarda, abordando, também, os
aspectos históricos e marcos legais da consolidação dos direitos da infanto-
adolescência, além de abalizar os possíveis sentimentos da criança e do
adolescente que sofrem como objeto do processo de litígio dos pais. Por fim,
destacou-se o ordenamento jurídico no direito de família e a atuação da equipe
técnica do poder judiciário em casos concretos de situações litigiosas a respeito da
guarda de crianças e/ou adolescentes, bem como, o conceito do princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente e sua aplicabilidade nos litígios de guarda.

I – CONJUGALIDADE E PARENTALIDADE: IMPLICAÇÕES NA DISPUTA DE


GUARDA

Para Brazelton (2001), “tornar-se família é um dos processos de mudança


mais significativos da vida humana”. Compreende a passagem de valores, cultura e
comportamentos que moldam a relação com a sociedade e fundamentam o ser
individual.
É com a formação do casal que se forma a conjugalidade, onde o homem e a
mulher têm que renunciar a hábitos antigos, integrar o cônjuge em ocasiões que

367
PODER JUDICIÁRIO
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anteriormente viviam sozinhos e incluí-lo na maioria dos seus planos e projeções


futuras.
Segundo Diehl (2002, p.138), o termo conjugalidade surgiu como um
neologismo da palavra conjugar, ocasionando “a ideia de união, de ligação entre
duas pessoas, sem necessariamente a existência de um contrato formal entre elas”.
Na contemporaneidade há uma série de possibilidades de vivência da conjugalidade
e muitas delas se diferenciam do modelo tradicional de casamento. A família
contemporânea também sofre com grande número de divórcios, desta forma, a
parentalidade e a conjugalidade encontram-se dissociadas.
Ferés-Carneiro (1998) aponta que uma das maiores dificuldades do vínculo
conjugal é o fato do casal vivenciar em sua dinâmica duas individualidades e uma
conjugalidade, ou seja, dois sujeitos, duas identidades individuais, duas histórias de
vida, duas percepções de mundo que, na relação amorosa, coexistem com uma
conjugalidade, um desejo conjunto, uma identidade conjugal.
Assim, a transição para a parentalidade promove alterações na estabilidade
do sistema familiar, o que implica que o casal faça reajustes para alcançar um novo
equilíbrio, no qual passa a ser incluído um novo membro familiar – um filho – e com
isto, um novo subsistema, o parental.
De acordo com Houzel (2004), a paternidade e a maternidade constituem em
uma fase da existência na qual o indivíduo confronta-se com transformações
identificatórias profundas. Para tanto não basta ser genitor ou genitora para ser
designado pai ou mãe, é necessário “tornar-se pai e tornar-se mãe”. Processo
complexo, que inclui níveis conscientes e inconscientes do funcionamento mental.
Parentalidade é um termo considerado recente, passou a ser utilizado na
década de 60 pela psicanálise francesa. Para Houzel (2004), a parentalidade é um
processo relacionado à realidade psíquica de cada um dos pais, principalmente às
modificações que ocorrem durante gestação, pós-parto e interações entre bebê e
seus pais.

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PODER JUDICIÁRIO
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Conforme Ferés-Carneiro (1998), a parentalidade pode ser exercida de modo


satisfatório, consciente e coerente quando o casal parental constrói um
relacionamento satisfatório anterior ao nascimento do filho. Assim há a garantia de
grande parte dos elementos fundamentais ao exercício parental, como
estabelecimento de acordos, cumplicidade, afetividade e comunicação.
Julien (2000) e Roudinesco (2003) apontam que a consanguinidade não
assegura atualmente o exercício da parentalidade. Desta forma, o processo para se
tornar pai ou mãe passa a depender muito mais da história individual de cada um
dos pais e também do desejo deles.
Lebovici (1987) coloca que o processo de filiação tem início na transmissão
consciente e inconsciente da história infantil dos pais, bem como de seus conflitos
inconscientes e a relação destes com seus próprios pais.
Szejer (2002), afirma que a história de uma criança parte da história individual
de seus pais. O desejo de ter um filho atualiza as fantasias da própria infância de
cada um dos pais e do tipo de cuidados parentais que tiveram. Desta forma cada um
dos pais possui um estilo próprio de exercer a parentalidade, o que resultará em um
desempenho adequado ou inadequado dessa função.
Na literatura encontram-se diversas terminologias para os diferentes estilos
parentais. De acordo com Lidia Weber (2007), os pesquisadores americanos
definem quatro estilos básicos de ser pai ou mãe: participativo, autoritário,
negligente e permissivo. Contudo, o que caracteriza o bom estilo parental é o
equilíbrio entre limite e afeto.
Vários estudos têm apontado a transição para a parentalidade como um
período crítico para a satisfação conjugal. O casal precisa saber articular a
conjugalidade com a parentalidade. “A família terá de ser capaz de, alternadamente,
se fechar em si mesma, para repor forças, e de se abrir às novas oportunidades
exteriores, para enfrentar as mudanças imprevisíveis. Será a utilização sábia dessa
dinâmica, na vida conjugal e parental, que moldará o seu êxito e validará a sua
função redentora nas situações de fracasso” (SOUSA, 2006).
369
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

É preciso considerar que a ênfase da pós-modernidade está no indivíduo, e


como consequência as escolhas geralmente são voltadas para si mesmo; sem
pensar nos efeitos que podem advir dessas decisões frente aos outros que com ele
vivem ou convivem, nesse caso incluam-se os filhos na situação de pós-divórcio.
Nas situações de divórcio em que o casal possui filhos, o maior desafio tem
sido o da manutenção do exercício dos papéis parentais frente ao fim da
conjugalidade. Esse fato reconfigura a vida de toda a família e novos arranjos são
estabelecidos.
Nesse período após a separação conjugal, cada ex-cônjuge procura
reconstruir a sua identidade. O que se procura é deixar para trás tudo que o (a)
ligava ao ex-companheiro (a), contudo quando se tem filho (s), isso não é
completamente possível. Esse laço permanecerá para sempre, pois a parentalidade
os une.
Deve permanecer o critério do melhor interesse da criança, o que implica na
superação do entendimento dos cuidados e educação dos filhos como
responsabilidade natural à mulher, dando a ambos os pais o direito de pleitearem o
papel de guardião contínuo dos filhos.
O litígio instala-se quando a indefinição das fronteiras entre conjugalidade e
parentalidade se sobrepõe à responsabilidade parental em preservar o vínculo de
filiação. Frente aos excessos dos conflitos conjugais, o Direito de Família tem como
função primordial garantir as fronteiras de parentesco e de filiação, organizar as
balizas da linhagem familiar sem a qual a criança não poderá se constituir enquanto
sujeito.

II – A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NO CONTEXTO CONFLITIVO DA DISPUTA


DE GUARDA

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

O processo de especificação dos direitos da criança e do adolescente que se


deu a partir do século XVIII, possibilitou discussões que futuramente incidiram sobre
o surgimento do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente,
colocando em evidência os direitos da população infanto-adolescente, antes
esquecida, como pressuposto para qualquer discussão judicial que envolva este
segmento.
Em decorrência de todo esse envolvimento histórico em prol da criança e do
adolescente, no Brasil, onde efetivamente a legislação evoluiu no sentido de
garantia de direitos da criança/adolescente, o princípio do melhor interesse da
criança foi adotado como norma nos litígios de guarda. Desta forma, rompido o elo
conjugal, deve-se, sempre, ter em vista o melhor interesse da criança porque cessa
a relação de conjugalidade, mas a relação de parentalidade deverá sempre ser
exercida e compartilhada entre pais e filhos.
Porém, as circunstâncias advindas da inconformidade dos genitores com o
fim da vida conjugal influenciam na disputa de guarda de filhos, e assim aplicar o
princípio do melhor interesse da criança não é uma tarefa fácil.
O Estatuto da Criança e do Adolescente nos auxilia nessa tarefa ao
preconizar em seu artigo 22 que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e
educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação
de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Assim, estas relações não
mudam com a separação judicial, ou seja, a titularidade e o exercício do poder
familiar não sofrem alterações. Embora a convivência entre pais e filhos comumente
seja desfavorecida com a separação, não há de se falar em diminuição do poder
familiar (SARATY, 2012).
A criança não cresce saudavelmente sem a construção de um vínculo afetivo
estreito com um adulto. A personalidade da criança e do adolescente se molda
essencialmente no meio familiar e vai depender da forma como os genitores
exercem e mantêm essa convivência. Desta forma, a convivência familiar é uma

371
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

necessidade da criança, colocando-se ai no mesmo patamar do direito à vida, pois é


na família que o indivíduo encontra refúgio e apoio para a sua sobrevivência.
Pelo exposto, não há dúvidas que o consenso quanto à guarda dos filhos
menores, entre os pais em processo de separação é fundamental para que se
efetive o melhor interesse da criança, porém, na falta deste consenso, prevalecendo
a discórdia e a disputa acirrada entre ex-cônjuges, é de extrema importância que o
Estado intervenha e imponha sentença que assegure os interesses do menor. Os
filhos continuam fazendo parte daquela relação finalizada, e precisam conviver com
aqueles que um dia formaram um casal. A separação é da família conjugal, não da
família parental.
Isto posto, devemos ressaltar que a tentativa de conceituar o princípio do
melhor interesse da criança é bastante difícil, pois este princípio “não é um fim em si
mesmo, mas um instrumento operacional à determinação da guarda utilizado pelo
juiz” (GRISARD FILHO apud SARATY, 2012, p. 19). Para tanto, é de suma
importância que os magistrados contem com o apoio de uma equipe composta de
Psicólogos, Psiquiatras e Assistentes Sociais que o auxiliem na formação de um
entendimento completo sobre a situação daquela família.
Como vimos, a dificuldade de conceituar o termo “melhor interesse” advém da
subjetividade que tal princípio carrega, uma vez que não existe fórmula exata para
sua concretização. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é
então, sinônimo de conjunto, isto é, reflete-se mediante junção de vários conceitos.
Muito mais do que um termo jurídico, configura-se na prática de observações,
cuidados, amparos, garantias e atenções feitas para assegurar os direitos do infante,
ressaltando-se a necessidade da interdisciplinaridade com outras áreas das
Ciências Humanas, Sociais e da Saúde (SARATY, 2012).
As crianças possuem uma sensibilidade muitas vezes subestimada pelos
adultos e com isto são capazes de perceber claramente a tensão própria dos
conflitos de relacionamento, ainda que os pais não discutam diante delas. Para
Maldonado (2009, p. 149), “Nem sempre a separação é traumática para os filhos e
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

nem causa de problemas eternos”. Pior do que a separação são os conflitos


constantes e relacionamentos mal resolvidos, que têm o poder de provocar tensão
permanente, opressão e mal estar.
Neste sentido, deve ficar bem elucidado que o tumulto emocional do homem e
da mulher que se separam pode contagiar a relação de pai/mãe e filho, bem como
sentimentos de raiva, insegurança, mágoa e vingança, que estão entre o casal, na
linha de fogo, quase sempre envolvem os filhos.
Mesmo após o término da relação conjugal, muitos casais persistem com a
lide, causando sofrimento aos filhos. Pode-se afirmar que o maior problema das
crianças e adolescentes não decorre da separação em si, mas dos conflitos do
vínculo do ex-casal que são expressos por meio dos filhos. Em alguns casos, a
divergência entre o casal litigante pode ser tão grande e irreconciliável que passa a
ser não apenas motivo de separação, mas até de ação judicial pela guarda dos
filhos (MALDONADO, 2009).
As agressões e hostilidades de um casal em disputa judicial pela guarda dos
filhos podem colocar essas crianças e adolescentes em uma linha de fogo, ou seja,
“sobra” para os filhos a insegurança, o medo e a angústia de ser objeto de disputa.
Sobre isto Maldonado (209, p. 187) argumenta que “Os adultos sabem que estão
agindo de maneira inadequada com as crianças, mas, quando os sentimentos estão
em ebulição, não se controlam. E muitos não se dão conta da natureza suicida
desse tipo de conduta”.
Mediante estes apontamentos iniciais, utilizaremos mais uma vez dos
argumentos de Maldonado (2009), para indicar algumas maneiras de colocar os
filhos na linha de fogo, aumentando neles, a ansiedade e os problemas a serem
enfrentados:
 Utilizá-los como: mensageiro, escudo ou armas de ataque;
 Instruí-los para pedir a um dos genitores: mais dinheiro,
brinquedos caros, benefícios que revertam em favor do outro, informações
sobre o ex-cônjuge.
373
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

É sabido que a separação para os filhos é uma passagem de vida da maior


importância, pois muita coisa muda e a rearrumação é extensa. Entretanto, cada
criança e/ou adolescente vivencia o processo de separação ao seu próprio modo, ou
seja, há crianças e adolescentes que precisam de mais tempo para digerir a
separação em detrimento de outros. Isso depende de muitos fatores (Maldonado,
2009):
 Pessoas mais vulneráveis, sensíveis ou fragilizadas, se
traumatizam mais facilmente.
 Trauma tipo “gota-d’agua”
 Como a situação é manejada, ou seja, se as crianças e
adolescentes recebem uma ajuda adequada ou não.
Ajuriaguerra (1998) complementa estas discussões ao passo que caracteriza
alguns sintomas possíveis de serem apresentados por crianças e adolescentes que
sofrem o impacto da separação e estão com pensamentos e sentimentos
concentrados neste acontecimento familiar:
 Fracasso ou desinteresse escolar;
 Queixas hipocondríacas;
 Acesso de angustia;
 Episódios de anorexia ou de insônia;
 Distúrbio do comportamento;
 Estado depressivo e sintomas neuróticos.
Outro ponto importante a ser observado em crianças e adolescentes é que
com o evento da separação, os pais passam a residir separadamente, sendo comum
a ocorrência de visitas aos genitores e nesta situação, ao retornar para a casa, estes
filhos podem apresentar comportamentos específicos que merecem atenção, pois
indicam o sofrimento infanto-adolescente. Essas condutas são basicamente uma
linguagem que expressa a angústia pela dificuldade de viver com os pais em um

374
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

casamento conturbado ou no período de adaptação a separação (MALDONADO,


2009), conforme listados abaixo:
 Agitação;
 Choro fácil;
 Agressividade;
 Reclamações constantes;
 Retração;
 Abatimento.
Ainda Maldonado (2009), coloca que esses sintomas tendem a diminuir ou a
desaparecer quando passado o maior período de turbulência, que a família
consegue se reorganizar dentro de um novo contexto. Entretanto, quando os
conflitos importantes persistem mesmo após a separação, surgem outros sintomas
que articulam sentimentos de sensibilidade, perda, tristeza e dor, sendo eles:
 Roubar dinheiro e outros pertences;
 Atirar coisas pela janela;
 Telefonar para mãe em prantos para que ela saia mais cedo do
trabalho e volte para casa;
 Ficar apático e desligado;
 Recusar-se a ir à escola.
Vimos que o processo de separação é um evento bastante importante na vida
familiar. Quando isto acontece de forma litigiosa, as consequências para todas as
partes envolvidas são maiores, causando grande sofrimento. Há casos em que após
este evento já bastante significativo, o litígio permanece e a divergência é tão grande
e irreconciliável que passa a ser motivo de ações pela guarda dos filhos,
contribuindo para as dificuldades emocionais de crianças e adolescentes.
A guerra pelos filhos pode chegar ao extremo, quando não se consegue
ultrapassar os sentimentos negativos de mágoa, raiva, ressentimento e desejo de

375
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

vingança, formando a base para a SINDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL. Para


Maldonado (2009, p. 181), nesta síndrome,

[...] os aspectos positivos do ex-cônjuge são negados, ressaltam-se


as dificuldades ou até mesmo cria-se a imagem de um monstro a ser
evitado a todo custo. Os comportamentos mais comuns dessa
síndrome são: evitar o contato telefônico, inventar desculpas para
dificultar ou impedir a visitação, depreciar ou insultar o ex-cônjuge na
presença dos filhos, sabotar informações ou tomar decisões
importantes sobre a vida das crianças sem consultar o genitor. Em
casos mais graves, o alienador chega até mesmo a fazer denúncias
de abuso físico ou sexual para afastar os filhos do convívio
“perigoso” e permanecer na relação simbiótica com os filhos.

Por fim, podemos perceber que na prática, em uma disputa de guarda, ao


contrário do que estabelece o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do
Adolescente, querer os filhos por perto nem sempre tem razões tão nobres.

III- O ORDENAMENTO JURÍDICO NO DIREITO DE FAMÍLIA E A ATUAÇÃO


PSICOSSOCIAL NOS CASOS DE DISPUTA DE GUARDA

No ordenamento brasileiro de tempos passados (CC 1916), a questão da


Guarda era vinculada ao comportamento dos genitores na constância do
matrimônio. Tal critério se pautava de certo teor punitivo, dada a necessidade de se
apontar um culpado pela separação, para que o “prêmio” (a guarda do filho), fosse
entregue ao outro “inocente”. Se houvesse a culpa recíproca os filhos poderiam
permanecer com a mãe.

376
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A Lei do Divórcio também dava preferência ao deferimento da Guarda ao


cônjuge inocente.
Com o princípio da isonomia entre homem e mulher e a necessidade de
proteção e do interesse da criança, a doutrina e jurisprudência abandonaram o rigor
excessivo da letra fria da lei. Assim, de acordo com o atual Código Civil a Guarda
será deferida a quem revelar melhores condições de exercê-la.

Definição de Guarda

A guarda, decorrência do poder familiar, traduz um conjunto de obrigações e


direitos em face do menor, especialmente de assistência material, moral e
educacional, além de vigilância, proteção, segurança: um direito-dever que os pais
ou um dos pais estão incumbidos de exercer em favor de seus filhos.
No desempenho da guarda existem duas especificidades:
A guarda jurídica, que se refere às relações de caráter pessoal, deveres e
responsabilidades que surgem do poder familiar, como o sustento, educação,
respeito e honra, e a guarda física (Judicial), que se caracteriza pela ideia de
posse, custódia.
Nos casos em que os pais e os filhos vivem juntos, o que vigora é a Guarda
Comum ou Originária, ou seja, ambos os cônjuges exercem plenamente todos os
poderes inerentes do poder familiar (a guarda jurídica e a guarda física).
Com a cisão da família, define-se a guarda judicial, podendo ser: guarda
única ou unilateral; guarda alternada; aninhamento ou nidação e guarda
compartilhada.

Características das Modalidades de Guarda

Guarda Unilateral

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Aquela atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua. Deve ser


concedida ao genitor que revele melhores condições para exercê-la. Ao outro é
resguardado o direito de visitas.

Guarda Alternada
Cada genitor exerce a guarda em períodos exclusivos, alternadamente. Não
há compartilhamento da guarda. O menor alterna-se em períodos pré-estabelecidos
com o pai ou com a mãe. Ex: janeiro a julho com o pai e agosto a dezembro com a
mãe. Nesta atende-se mais o interesse dos pais do que o dos filhos.
Procede-se praticamente à divisão da criança e esse arranjo gera ansiedade
e tem escassa probabilidade de sucesso (Maria Berenice).

Aninhamento ou Nidação
Neste arranjo familiar o menor permanece morando no mesmo imóvel, no
mesmo local, sendo que os pais se mudam de casa e se revezam para permanecer
em períodos diferentes junto dos filhos. É uma espécie peculiar e pouco usada. As
crianças/adolescentes continuam sob o mesmo teto, no mesmo ambiente e com a
mesma rotina, havendo alternância nos períodos de convívio com os genitores, os
quais se revezam neste sentido.

Guarda Compartilhada
Trata-se da responsabilização conjunta e exercício de direitos e deveres do
pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos
filhos comuns.
Não há exclusividade na guarda. Os pais atuam simultaneamente,
corresponsabilizando-se pelo filho, que tem uma moradia fixa.

Atuação Técnica

378
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

O Trabalho dos técnicos no Tribunal de Justiça pressupõe um encontro entre


os conhecimentos do Serviço Social e da Psicologia com o Direito, que levaram a
uma adequação dos referidos profissionais para atuarem nesse contexto, com
atribuições específicas para o emprego dos conhecimentos teóricos de cada
categoria.
A atuação do Serviço Social e da Psicologia no Judiciário é realizada por
determinação judicial e tem a finalidade de perícia.
Há de se enfatizar que as partes procuram o Judiciário para resolver os
conflitos da família porque não conseguiram outra forma de lidar com o sofrimento
advindo deles, portanto, o trabalho dos técnicos pressupõe a escuta dos envolvidos
para que se compreenda a situação sociofamiliar, auxiliando os pais na continuidade
do desempenho do papel parental após o rompimento da conjugalidade.
Segundo alguns estudiosos no assunto, a guarda dos filhos é um dos temas mais
difíceis da atuação. Atualmente, o princípio do melhor interesse da criança, ou
seja, deixar de considerá-la como um objeto e passar a reconhecê-la como um
ser vulnerável em processo de desenvolvimento, que necessita para tanto, ser
protegido e receber cuidados e atenção especiais, deve ser levado em
consideração quando se pensa sobre a guarda.
Assim sendo, alguns autores apontam elementos que devem ser observados
para se analisar o melhor interesse da criança no tocante à guarda judicial, ou seja:
amor, a afeição e o vínculo da criança;
continuidade do ambiente familiar;
preferência racional da criança;
idade e sexo da criança;
existência de irmãos;
disposição da parte em orientar, suprir as necessidades afetivas;
capacidade material e cuidados médicos;
adequação moral das partes envolvidas,
saúde física e emocional das partes e
379
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

capacidade que cada parte tem em facilitar o contato com o outro.


Os técnicos devem avaliar, após o rompimento conjugal, a capacidade dos
genitores de proporcionarem à criança e ou ao adolescente a filiação materna e
paterna garantindo assim, seu direito à convivência familiar e a preservação de sua
integridade. É importante frisar que o direito da criança ou adolescente ser ouvido
não pode ser confundido com delegar a eles o poder de escolha entre os genitores.
Aos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários é dada a possibilidade de
utilizar métodos de coleta de dados adequados à especificidade do caso,
resguardando-se os mesmos princípios técnicos e éticos que orientam a sua
profissão, tendo assegurada sua livre manifestação técnica, com a ressalva de que
eles responderão pelos seus Laudos.
Há de se ressaltar a relevância de, no início da intervenção, comunicar às
partes o objetivo do trabalho técnico e de obter o consentimento dos entrevistados
sobre as informações que poderão constar no Laudo.

Aspectos Relevantes na Elaboração do Laudo


O relatório/laudo deve apresentar os procedimentos e as conclusões geradas
pelo processo de avaliação, encaminhamentos, intervenções e sugestões, limitando-
se a fornecer informações relacionadas à demanda e atendo-se ao âmbito de sua
área de trabalho, portanto, não apresentando diretrizes jurídicas. Não deve ser
realizado julgamento moral das partes, e tampouco indicada qualidade ou defeito
das mesmas.
Há de se considerar ainda a necessidade de realizar entrevistas devolutivas
às partes.

Alternativas na Solução de Conflitos Judiciais (Lide X Cultura de Paz)

Conciliação;
Mediação;
380
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Oficina de Pais e Filhos: empoderamento/comunicação não violenta

Oficina de Pais e Filhos


Essa Oficina tem por objetivo transmitir aos pais técnicas apropriadas de
enfrentamento dos conflitos familiares e de comunicação, viabilizando a tomada de
consciência sobre as consequências que os conflitos geram nos filhos; e
informações sobre Alienação Parental, Guarda, visitas e alimentos.
Apesar da Oficina não ser de competência dos Setores Técnicos, tampouco
exclusividade dos Assistentes Sociais e Psicólogos, o referido instrumento traz no
seu bojo duas técnicas inovadoras de abordagem na solução de conflitos dentro da
Vara de Família e, consequentemente, nas disputas de Guarda. Sendo elas:

“Empowerment” – Empoderamento
Derivado do inglês, esse termo significa uma ação coletiva desenvolvida pelos
indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões e de consciência
social. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de
conhecimento e superação de uma realidade instalada.
O empoderamento possibilita a aquisição da emancipação individual e
também da consciência coletiva para a superação da dependência.
O empoderamento devolve ao indivíduo: poder, dignidade e principalmente a
liberdade de decidir e controlar o próprio destino, com responsabilidade e respeito
ao outro.

Comunicação não violenta


A Comunicação Não Violenta (CNV) é um processo de pesquisa contínua,
desenvolvido por Marshall Rosemberg e uma equipe internacional de colegas, que
apoia o estabelecimento de relações de parceria e cooperação, em que predomina a
comunicação eficaz.
381
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Enfatiza a importância de determinar ações com base em valores comuns,


intrínsecos aos seres humanos conviventes em sociedade.
Desse modo, a CNV é uma forma de expressar os sentimentos assumindo a
responsabilidade por eles ao invés de culpar o outro e ainda, mostrando à outra
pessoa, de forma clara, o que poderá fazer para tornar a sua vida melhor.
A CNV é pautada em quatro vertentes:

Observação: distinguir o que é observado do que é juízo de valor;


Sentimento: distinguir o que é sentimento do que é opinião;
Necessidade: se os valores são universais ou apenas estratégias;
Pedido: definir pedidos e não fazer exigências ou ameaças

Na medida em que a CNV se alicerçar nesses componentes, entendemos que


as dinâmicas dominatórias, desresponsabilizantes e rotulantes serão dirimidas.
A CNV enxerga uma continuidade das esferas pessoal, interpessoal e social.
O ideal da CNV é conseguir que as necessidades, desejos, anseios e esperanças
não sejam satisfeitas à custa do outro. Seu princípio chave é a capacidade de
expressar sentimentos e necessidades sem usar julgamentos, críticas e juízos de
valor.

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PODER JUDICIÁRIO
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A separação conjugal é um período delicado e de novas adaptações tanto


para os pais quanto para os filhos e a maneira como os pais vivenciam este
processo irá influenciar na maneira como irão se relacionar com seus filhos. Nos
casos de separação do casal, infelizmente, nem sempre as crianças são poupadas
das brigas e discussões dos pais e do processo de disputa de guarda.
É importante o casal separado ter em mente que, em alguns casos, a
separação acaba sendo tão digna quanto o casamento. Entretanto, o silêncio feito
em torno da separação, como se este processo fosse errado, geralmente permeado
de discussões e muito sofrimento, é extremamente prejudicial à criança e/ou
adolescente.
A maioria dos autores pesquisados afirmam que os pais devem assumir a
responsabilidade pela separação do casal e fazer um trabalho de preparação com
os filhos.
A criança tem a necessidade de continuar amando tanto o pai quanto a mãe
e se nada lhe é explicado, isto pode comprometer seu equilíbrio emocional. Por isso,
ressalta-se mais uma vez a importância das conversas francas, pois as crianças são
totalmente capazes de assimilar e absorver a realidade que vivem.
Portanto, se a criança tiver o apoio incondicional dos pais, amigos, familiares,
professores, poderá entender as mudanças que irão ocorrer após a separação dos
pais, minimizando as consequências durante o período de adaptação da nova vida.
Por isso, é importante que mesmo separados os pais permaneçam unidos na
educação e no bem estar dos filhos.
Mediante estas considerações, é imprescindível que os profissionais que
compõem o Setor Técnico do Judiciário, psicólogos e assistentes sociais, ao
atuarem nos processos de disputa de guarda, conheçam amplamente a temática da

383
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

parentalidade e da conjugalidade, para discerni-los claramente e possam assim


assegurar o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
Conclui-se que a tendência contemporânea de se romper com a judicialização
demasiada dos conflitos, especialmente os conflitos familiares, tem sido amplamente
difundida entre os operadores do Direito e não obstante, a prática dos Assistentes
Sociais e Psicólogos Judiciários não só acompanham essa tendência, como
compreendem e colaboram com esse posicionamento na sua atuação, acreditando
na capacitação e superação dos conflitos pelos próprios sujeitos envolvidos na lide.

384
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

DEMANDAS PSICOLÓGICAS E SOCIAIS EM DIREITO DE


FAMÍLIA: A ALIENAÇÃO PARENTAL E A GUARDA
COMPARTILHADA EM DEBATE

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – BAURU – “FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
389
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Coordenação:

Ana Lúcia Capasso Jardim do Nascimento, Assistente Social Judiciário, Comarca de


Bauru.
Maurício Ribeiro de Almeida, Psicólogo Judiciário, Serviço Psicossocial Clínico,
Comarca de Bauru.

Integrantes:

Ana Célia Corbin Vieira Assistente Social Judiciário, Comarca de Lençóis Paulista.
Ana Emília Pascoal, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Ana Paula Cardia Soubhia, Assistente Social Judiciário, Comarca de Pederneiras.
Ana Paula Gonçalves Calazans, Assistente Social Judiciário, Comarca de Duartina.
Bernadete de Lourdes Salles Baccini, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Cátia Cristina Xavier Mazon, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Célia Regina César Monteiro, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Danielle Pacheco Leme, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Denise Ferraz de Aguiar, Assistente Social Judiciário, Comarca de Santa Cruz do
Rio Pardo.
Ecléa Corrêa de Lacerda Silva, Assistente Social Judiciário, Comarca de Bauru.
Edelmaris Campanha de Moraes e Lima, Assistente Social Judiciário, Comarca de
Lençóis Paulista.
Edilaine Borges Losilla, Assistente Social Judiciário, Comarca de Bauru.
Ivandra Carla Carneiro, Assistente Social Judiciário, Comarca de Bauru.
Jane Rossana de Campos, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Laís Elaine Catini Sattin, Assistente Social Judiciário, Comarca de Lençóis Paulista.
Lúcia Aparecida da Fonseca, Assistente Social Judiciário, Comarca de Bauru.
Lucia Maria Rodrigues de Almeida, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Lúcia Pereira dos Santos Martarelli, Assistente Social Judiciário, Comarca de Itaí.
Márcia Vilma Isabel Morales dos Santos, Assistente Social Judiciário, Comarca de
Bauru.
Maria Aparecida Castilho Forner, Assistente Social Judiciário, Serviço Psicossocial
Clínico, Comarca de Bauru.
Mariana Rosa Cavalli Domingues, Psicóloga Judiciário, Comarca de Lins.
Melissa Fernanda Fontana Torres, Psicóloga Judiciário, Comarca de Lins.
Renata Aparecida Baria Ramos, Assistente Social Judiciário, Comarca de Lins.
Rosângela Aparecida Tonelli de Oliveira, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Rosangela Frediani Motta Vaz, Psicóloga Judiciário, Comarca de Bauru.
Saulo Camargo, Assistente Social Judiciário, Comarca de Bauru.
Solange Aparecida Serrano, Psicóloga, Comarca de Bauru.
Taciano Luiz Coimbra Domingues, Psicólogo Judiciário, Comarca de Lins.
390
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

A instituição familiar sofre inúmeras transformações na sociedade brasileira,


sejam estas relacionadas à sua estrutura sejam ao modo de funcionamento. A título
de exemplo pode-se citar os diversos grupos familiares nos quais se encontram
além dos arranjos tradicionais (composição da família nuclear) arranjos
monoparentais, de co-parentalidade ou pluriparentalidade.
De acordo com Osório (2002) a família não pode ser entendida por meio de
um único conceito e, em uma perspectiva mais radical, não há possibilidade nem
mesmo de conceitua-la, mas apenas descrevê-la. Isso quer dizer que é possível
apontar as várias estruturas ou modalidades assumidas pela família ao longo dos
tempos, porém, não há como defini-la ou encontrar um único elemento que seja
comum a todas as formas de família ao longo da História.
Apesar dessa particularidade, Osório (2002, p. 13-14) alerta que ”não
podemos prescindir de uma definição, ainda que precária e limitada, que nos facilite
a comunicação e nos ajude a discriminar o fundamental do fortuito”. Esses desafios
não invalidam a necessidade de se procurar um conceito operativo para discutir a
família que seja suficientemente abrangente para servir de parâmetro para o nosso
tempo (OSÓRIO, 2002).
Tais considerações indicam que a família ainda conserva algumas funções
importantes, tais como: cuidados básicos, socialização, transmissão de valores,
conhecimentos. Assim, pode-se pensar a família como uma instituição importante
para assegurar a sobrevivência biológica da espécie e concomitante a essa função
propiciar a matriz para o desenvolvimento psíquico dos descendentes e
aprendizagem da interação social (OSÓRIO, 1992).
A força da família e do casamento na sociedade brasileira está atrelada a um
dado interessante e também paradoxal uma vez que pesquisas dos últimos anos
indicam que crescem o número de divórcios, mas na mesma velocidade se registra

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

um elevado número de casamentos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE) - Censo Demográfico de 2010, o número de divórcios
no Brasil cresceu 20% na última década e revela uma evolução dos estados
conjugais dos brasileiros, pois se comparado com pesquisa realizada no ano de
2000, o percentual de separados passou de 11,9% para 14,6%. Tais dados têm
apontado um aumento significativo do número de divórcios, especialmente a partir
de 2007, quando os divórcios puderam ser requeridos por vias administrativas nos
Tabelionatos de Notas, desde que se verificasse consenso entre os cônjuges e
inexistência de filhos menores de idade ou de incapazes.
No que tange as estatísticas de nupcialidade o IBGE (2012) também
constatou elevação. O Percentual encontrado nesse ano foi de 6,9 uniões por mil
habitantes, mesma taxa do ano anterior. Na análise dos últimos 10 anos, entre 2002
e 2012, percebendo-se uma tendência de elevação das taxas.
A despeito das citadas mudanças e maior flexibilidade nos vínculos conjugais
Observa-se que o ideal de família e de casamento ainda se mantém no imaginário
social, revelando que a necessidade gregária do ser humano, apesar dos avanços
tecnológicos e de outros dispositivos de subjetividade (relacionamentos virtuais,
técnicas de reprodução assistida), ainda vigoram na sociedade contemporânea.
As mencionadas transformações têm reservado aos filhos uma posição de
destaque, uma vez que nos casos de separação se tornam objeto de desejo e de
disputa dos pais separados e é no bojo dessas transformações que os direitos e
deveres parentais se veem desafiados e levados à necessidade de ressignificação
uma vez que se mostram necessários aos cuidados dos filhos, porém, reivindicam
novas bases para se constituir e se firmar em uma sociedade que passa por
mudanças aceleradas.
Se o processo de democratização política encontrado no Brasil nos últimos
anos tem suscitado a possibilidade de novas práticas de parentalidade é também
sob o princípio da democratização que os desafios ganham consistência e requerem

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

a formulação de leis e legislações que garantam o princípio da igualdade entre pais


e mães após a separação conjugal.
No Brasil nos últimos sete anos surgiram duas leis específicas no Direito de
Família de modo a delimitar os poderes entre genitores separados e também a
garantir que a saúde mental e o desenvolvimento da criança não fossem abalados
frente aos conflitos conjugais e familiares surgidos após a separação.
Influenciados por essas discussões que tocam a família e os arranjos
necessários para os cuidados dos filhos, após a separação, os integrantes do Grupo
de Estudo de Bauru e Região organizaram suas atividades no ano de 2014 de modo
a aprofundar essa temática. Durante o ano estudou-se nos encontros o impacto do
divórcio na criação dos filhos, as inovações trazidas pelas legislações que tratam do
Direito de Família, bem como as questões específicas da Alienação Parental, os
princípios da Guarda Compartilhada e as implicações éticas envolvidas nesse
trabalho. A seguir passamos a descrever os principais resultados fruto do estudo de
textos e das discussões promovidas.

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1 ASPECTOS PSICOSSOCIAIS EM DIREITO DE FAMÍLIA

O Código Civil em sua LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002, em parte especial,


trata do Direito de Família referenciando-se ao Livro IV, desde o direito pessoal, do casamento,
das relações de parentesco e disposições gerais da filiação, do reconhecimento dos filhos, da
adoção e do poder familiar, dentre outros como direito patrimonial, da união estável e demais.
A avaliação psicossocial no contexto do judiciário é uma realidade recente no
Brasil, igualmente são as produções científicas sobre a temática, na qual grande
parte são frutos de dissertações e teses de pós-graduação, livros publicados por
profissionais envolvidos com a área de atuação.
Mattos (2013) faz uma retomada histórica da inserção do psicólogo no Poder
Judiciário, incentivado principalmente pelo escopo do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), em 1990, na qual determinou a manter uma equipe
multidisciplinar destinada a assessorar a Vara da Infância e Juventude, sendo que a
princípio não estaria subsidiando as Varas de Família, porém como trata de proteção
dos direitos infanto juvenis passou a estender o atendimento.
Shine (2003), Psicólogo Judiciário em São Paulo, embasado nas obras de
Michel Foucault retoma a história dos procedimentos judiciários gregos com enfoque
no inquérito e no desenrolar nos séculos XVIII e XIX da prática do exame, saber que
adentra os campos das ciências humanas e abre espaço para os profissionais de
saúde mental, psicologia, serviço social e psiquiatria.
No contexto judiciário brasileiro a prova documental, a testemunhal e a
pericial foram instituídas pelo Código de Processo Civil, Lei 5.869 de 11 Janeiro
1973, em seu artigo 145 ao determinar que quando a prova do fato depender de
conhecimento técnico ou científico, o juiz será assistido por perito, e que deve a
prova pericial (art. 420) consistir em exame, vistoria ou avaliação, com prazo para
entrega do laudo (Brasil, 1973).

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Os peritos são escolhidos pelo juiz para subsidiar processos judiciais no


enfoque estudado nas varas de família, conforme instruções do Código de Processo
Civil:
§ 1 do Art. 145 – Os peritos serão escolhidos entre profissionais de nível
universitário, devidamente inscritos no órgão de classe competente, respeitando o
disposto no Cap. VI, Seção VII deste Código (Código do Processo Civil, 1973).
Comumente as avaliações em Vara de Família são solicitadas à profissionais
psicólogos e assistentes sociais, por isso a avaliação não é restrita a avaliação
psicológica e foi na prática tecendo aspectos psicossociais.
Para Costa, Penso, Legnani e Sudbrack (2009), embora o próprio Código do
Processo Civil não conceitue o que chama de perícia restringindo-se a
procedimentos de exame, vistoria ou avaliação, na atuação profissional os conceitos
foram se estabelecendo com contribuições de estudos psicossociais que possuem
uma dimensão não apenas do psicopatológico, ampliando o escopo da
compreensão das relações e aspectos da dinâmica da subjetividade dos envolvidos,
cerne das decisões judiciais.
A atuação do psicólogo junto as Varas de Família tem ocorrido, em sua grande maioria,
em torno da temática guarda de filhos, regulamentação de visitas e alienação parental, com
elementos relevantes das mudanças nas composições familiares e da judicialização da vida.
Por ora, tem-se uma alteração recente no Código Civil sobre a guarda compartilhada, e
também um projeto de lei que tramita no congresso de outras alterações, ao qual foi dado
destaque nesse estudo.
Na redação atualizada do Código Civil de 11.01.2003 dispõe que a guarda deverá ser
estabelecida conforme:
Art. 1.548. Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que
haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela
atribuída a quem revelar melhores condições de exercê-la.
Parágrafo único. Verificando que os filhos não devem permanecer
sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à pessoa
que revele compatibilidade com a natureza da medida, de

395
PODER JUDICIÁRIO
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preferência levando em conta o grau de parentesco e a relação de


afinidade e afetividade, de acordo com o disposto na lei específica.
(CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2002).
O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 117/2013 que tramita atualmente no Senado prevê
que quando há desacordo entre os pais quanto à guarda do filho, se os dois estiverem aptos
para exercer o poder familiar, o juiz deverá aplicar a guarda compartilhada, sendo a exceção
quando um dos genitores declarar que não deseja a guarda.
Embora seja relevante compartilhar o desenvolvimento dos filhos, na prática o que se
avalia nas varas de família, é que o litígio muitas vezes transforma as relações familiares em
disputa de poder que dificulta o diálogo e entendimento do melhor interesse da criança e do
adolescente.
Há muitos desafios a serem percorridos pelo psicólogo dentro do espaço judiciário, e que
é corroborado pela literatura de vários pesquisadores já referenciados acima e também em
estudos internacionais.

Huss (2011), em seus estudos norte-americanos, aborda o conflito entre o direito e a


psicologia, afirmando que a psicologia é descritiva, já que descreve o comportamento humano, e
o direito é prescritivo porque dita ou prescreve como os humanos devem se comportar.
Enquanto a psicologia aceita que é provável haver mudanças durante a busca da verdade, a lei
se baseia em decisões legais anteriores.
Em várias perspectivas de estudos, ainda há que se construir espaços para a construção
social do melhor interesse de crianças e adolescentes, além da proposição de leis que regulam a
convivência social, a escuta de grupos como associações e profissionais envolvidos na temática.
Atualmente alguns grupos como a Organização Não Governamental Apase (Associação
de pais e mães separados) divulga palestras, cursos e consultoria, também no âmbito
internacional como a Associação Portuguesa Pela Igualdade Parental e Direitos dos Filhos há o
incentivo à coparentalidade por meio de ações, eventos, cartilhas, reuniões.

2 SINDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL: ENTRE CONTROVÉRSIAS E


NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO

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PODER JUDICIÁRIO
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Alienação Parental (AP) é a campanha denegritória feita pelo alienador com o


intuito de afastar os filhos do alienado. De outro modo, a Síndrome de Alienação
Parental (SAP) consiste nos problemas comportamentais, emocionais e em toda
desordem psicológica que surge na criança ou adolescente após o afastamento e a
desmoralização do genitor.
Esta aparece geralmente quando há a disputa de custódia dos filhos que
passam a denegrir a imagem de um dos genitores sem nenhuma justificativa. Este
comportamento, geralmente, é acentuado com o apoio do outro genitor e/ou
familiares.
Segundo Guilhermano (2012), a SAP viola o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana e o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente,
pois se trata de um abuso emocional e de um jogo psicológico que os deixa
desprotegidos, podendo-lhes causar graves transtornos psíquicos quando adultos.
Observando a frequência desses casos na sociedade brasileira, começou a
surgir a necessidade da criação de uma Lei que protegesse principalmente a criança
vítima de tamanha tortura psicológica.
Foi criada, então, a Lei de nº: 12.318, de 26 de agosto de 2010. Esta, além de
basear-se nos princípios constitucionais citados, também observou o Código Civil
vigente e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O termo SAP foi adotado porque síndrome significa um conjunto de sintomas
que aparecem geralmente juntos. São eles:
- Campanha denegritória contra o genitor alienado;
- Racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para a
depreciação;
- Falta de ambivalência;
- Fenômeno do “pensador independente”;
- Ausência de culpa sobre a crueldade e/ou a exploração
contra o genitor alienado;
- Uso de situações e frases emprestadas do pai alienante;
- A presença de encenações “encomendadas”;
- Propagação da animosidade aos amigos e/ou à família
extensa do genitor alienado.

397
PODER JUDICIÁRIO
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Tipicamente, as crianças que sofrem SAP exibirão a maioria


desses sintomas (se não todos). Gardner (2002, p. 03).
Há outros comportamentos preocupantes, resultantes da SAP, tais como:
mentir compulsivamente; manipular pessoas, situações, informações; exprimir
emoções falsas, mudar seus sentimentos em relação ao alienado (de amor-ódio à
aversão total); exprimir reações psicossomáticas semelhantes às de uma criança
verdadeiramente abusada, entre outros. (SILVA, apud GUILHERMANO, 2012, pag.
18).
As vítimas da SAP podem se tornar pessoas com graves problemas como
“depressão crônica, transtornos de identidade, comportamento hostil,
desorganização mental, e, às vezes, até suicídio”. Pode apresentar ainda doenças
psicossomáticas, ora ansiosa, ora deprimida, nervosa e, principalmente, agressiva”.
(FONSECA, 2006 apud GUILHERMANO, 2012, pag. 18).
A criança que sofre alienação parental é vítima de abuso emocional. Há o
enfraquecimento progressivo do vínculo entre ela e o genitor, que pode se perpetuar
pelo resto da vida.
A criança afastada desta convivência sofre com a ausência do outro genitor,
por gostar deste e por não poder expressar seus sentimentos.
Por vezes a criança ou adolescente se sente culpada por amar o outro
familiar e por perceber na vida adulta que colaborou para que a alienação parental
acontecesse.
A SAP pode ser tratada de forma eficaz com a intervenção de profissionais
especializados no assunto, por meio da adoção conjunta de medidas legais e
terapêuticas.
Quando o estágio alienatório é mais leve o recomendável é a Mediação
Terapêutica (que presume a interdisciplinaridade entre o Direito, com a psiquiatria e
a psicologia) e quando o estágio alienatório é mais grave, se torna indispensável a
intervenção judicial, para além de tentar reestruturar a relação do filho com o não

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

guardião, deve-se impor ao genitor guardião a responsabilização pelas atitudes de


violência emocional contra o filho e contra o outro genitor.
No Brasil, as famílias que vivenciavam este conflito, impulsionaram a criação
da Lei no. 12.318 de 26 de agosto de 2010. A seguir alguns trechos da Lei.
Art.: 2º Considera-se ato de alienação parental a interferência na
formação da criança e do adolescente promovida ou induzida por um
dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou
adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância para que
repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único: São formas exemplificativas de alienação parental,
além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia,
praticados diretamente ou com auxílio de terceiros.
I – Realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no
exercício da paternidade ou maternidade;
II – Dificultar o exercício da autoridade parental;
III - Dificultar contato de criança ou adolescente com o genitor:
IV – Dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência
familiar;
V – Omitir deliberadamente ao genitor informações pessoais
relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares,
médicas e alterações de endereço;
VI – Apresentar falsa denúncia contra o genitor, contra familiares
deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles
com a criança ou adolescente;
VII – Mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando
dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro
genitor, com familiares deste ou com avós.

2.2 Síndrome da Alienação Parental: A Perspectiva do Serviço Social

Valente (2008, p. 70), afirma que em geral a família tem dois eixos
norteadores, podendo ser o modelo bipolar de família nuclear ou a família
pluriparental.
Richard Alan Gardner foi um psiquiatra americano que nasceu em 1931 e
faleceu em 2003. Trabalhou na Universidade Columbia, na divisão psiquiátrica

399
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

infantil de 1963 a 2003. Na década de 1980 se interessou pelo estudo de casos


judiciários sobre violência sexual (identificação de falsas denúncias).
Gardner (MOTTA, 2011) notou que em alguns casos judiciários as ações de
um genitor levavam ao afastamento do outro genitor, promovia uma “lavagem
cerebral” na mente dos filhos e o afastamento e destruição do vínculo afetivo
(desqualificação). A existência da Síndrome de Alienação Parental (SAP) torna-se
possível por meio de uma triangulação entre Alienador, Filho e Alienado.
“Um genitor promove uma campanha denegritória em relação ao ex-cônjuge
perante o judiciário, utilizando o seu(s) filho(s) como meio de emprestar credibilidade
às suas acusações” (MOTTA, 2011, p. 109).
Para os assistentes sociais, a descrição da Síndrome de Alienação Parental
ultrapassa as fronteiras da medicina e das ciências do comportamento.
Cabe a estes profissionais, engajados na proteção à criança e à família
alargar o conceito de Gardner. É essencial compreender que a síndrome não se
instala repentinamente, podendo manifestar-se em diversos contextos e situações
relacionadas à separação dos pais.
A alienação parental aparece nos litígios de família e consiste em restringir ou
eliminar o papel do “visitante” (geralmente o pai) na vida da criança.
É comum observar nos tribunais o surgimento da alienação parental,
principalmente em situações como as descritas abaixo:
- pais se separam e passado um tempo, o genitor visitante assume outro
relacionamento, o guardião passa então a criar obstáculos às visitas e contatos com
o filho;
- crianças nascidas de um namoro ou de uma relação eventual entre os pais.
Muitas vezes não há afinidade entre os pais e os avós passam a assumir os
cuidados com os netos, podendo reforçar o processo de alienação;
- crianças nascidas de pais adolescentes, em que um dos avós assume os
cuidados com a criança para que o pai ou a mãe possa trabalhar. A ausência da

400
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

mãe ou do pai pode engendrar sentimento de posse por parte da pessoa que cuida
da criança, dificultando o acesso à figura materna ou paterna;
- crianças cujos pais se separaram depois de anos de violência doméstica.
Muitas vezes, a genitora se muda com os filhos para outro endereço, não
informando ao genitor o paradeiro da família;
- crianças cujo guardião vem a falecer precocemente correm o risco de serem
alienadas daquele que não exercia a guarda. A pessoa mais próxima do falecido
guardião teme que o pai ou a mãe vivo subtraia aquele que representaria a
continuidade do falecido.
Ouvimos com frequência guardiões dizerem que não permitem visitas do
genitor (a) porque a pensão alimentícia não é paga, ou não é paga a contento.
Outra situação comum é a diferença social entre os casais, principalmente se
um deles advém de comunidades carentes e violentas.
Questões ligadas à moral sexual também são desculpas adotadas pelos
alienadores, que visam privar o direito da criança à convivência com o outro familiar.
São vários os motivos que levam o guardião alienador a afastar a criança do
genitor alienado, alegando que estão agindo desta forma em defesa da criança.
Assim sendo, não é fácil ajudá-los a compreender que a sua visão dos fatos é
unilateral e muitas vezes distorcida.
Amigos e familiares devem colaborar neste processo e tentar evitar que a
alienação se instale em definitivo.
Cabe ao profissional ter habilidade para lidar com esta situação, não se tornar
mais um componente no processo de litígio e contribuir de modo construtivo para a
solução do conflito.
Geralmente, as famílias que litigam na justiça não se encontram no modelo
idealizado de família nuclear. Seus integrantes muitas vezes já refizeram uma ou
mais vezes suas vidas amorosas/conjugais. Neste contexto, surge a
pluriparentalidade e cabe aos profissionais evitarem uma postura normativa, que
levaria a qualificar estas famílias como desviantes, “desestruturadas” ou
401
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

“disfuncionais”. É preciso entender as dificuldades pelas quais estas famílias


passam.
No Brasil, é comum que a genitora seja a detentora da guarda, cabendo ao
pai o direito de visitas. Trata-se de uma questão histórica e cultural que a mãe seja a
responsável pelos cuidados com os filhos, do nascimento até a vida adulta. Isso
pode justificar o motivo pelo qual na maioria das vezes, a mãe é a alienadora e o pai
o alienado.

2.3 Síndrome da Alienação Parental: A Perspectiva da Psicologia


A Síndrome da Alienação Parental é pouco conhecida por psicólogos,
advogados e juízes no âmbito da separação conjugal. No entanto, devido ao
aumento das demandas relacionadas aos processos de separação o fenômeno
ganha cada vez mais atenção dos profissionais da psicologia.
Para Féres-Carneiro (2008), o divórcio é costumeiramente vivenciado como
uma situação dolorosa e estressante que provoca nos cônjuges sentimentos de
fracasso, impotência e perda, havendo um luto a ser elaborado. Em outro vértice há
a condição dos filhos que ficam privados do direito de ter um contato íntimo e
contínuo com ambos os pais. Este afastamento pode acarretar sérios danos para o
desenvolvimento emocional da criança.
A maioria das crianças prefere que os pais não se separem, pois assim
poderiam conviver com ambos no espaço doméstico e não tomarem partido no
conflito conjugal. Dessa forma a guarda conjunta se apresenta como a mais
adequada para promover a saúde psíquica da criança. Contudo, é necessário que
os pais tenham maturidade emocional para separar as questões conjugais das
parentais, focando o bem-estar psíquico da criança acima de seus interesses
pessoais.
Algumas características são frequentemente encontradas nos genitores
alienadores:

402
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

- O alienador é intolerante com qualquer comportamento do genitor alienado –


implica com aspectos irrelevantes;
- Pais alienadores têm dificuldades para aceitar as imperfeições próprias e a
dos parceiros;
- O genitor alienador não fica aliviado em saber que seu filho não foi ferido [...]
fica desapontado;
- Pais alienadores costumam não compreender a importância do convívio da
criança com outros adultos e pessoas além dele próprio e seus familiares;
- O alienador tende a achar que o alienado e as pessoas a sua volta são
incompetentes para cuidar das crianças.
Para Bone e Walsh (1999) “O genitor alienador utiliza as diferenças entre os
genitores como sendo falhas do outro genitor, em vez de apresenta-las como fonte
de riqueza. O clima emocional que se cria é claramente alienador para o filho”.
Outro aspecto importante é o desejo de exclusividade do genitor alienador
para com seu filho. O genitor alienador exige dos filhos que escolham entre um dos
pais, provocando o temor de serem abandonados. Podem até mesmo criar uma
relação simbiótica, assim, a criança pode sentir que o genitor é o único vínculo
confiável para sua vida. Este adulto, muitas vezes, é psicologicamente fragilizado e
busca na criança um suporte para suas demandas emocionais.
O genitor alienador acusa o alienado, mas é ele quem geralmente mais causa
danos aos filhos. As consequências são muito graves, principalmente se o conteúdo
da campanha contrária ao alienado vier acompanhado por falsas denúncias de
abuso sexual, físico ou psicológico.
A intervenção psicológica, nesses casos, deve buscar entender, junto com os
pais, a relação existente entre os problemas que a criança, ou o adolescente, está
apresentando e a interação familiar para poder, a partir deles e com eles,
transformar essa realidade. Desta forma, é possível fazer ressurgir nos pais a
questão da responsabilidade que eles têm sobre seus filhos e do poder que têm
enquanto pais os quais se encontram impotentes na situação de pais divorciados.
403
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Segundo Gardner a Terapia Familiar é a melhor alternativa no tratamento dos casos


moderados de alienação parental. Outra sugestão deste autor seria a utilização de
um mediador terapêutico para ajudar a recuperar o vínculo saudável do filho com o
genitor alienado.
A função parental de cuidar, de promover e validar o crescimento e
desenvolvimento saudável dos filhos deve ser enfatizada a ambos os pais os quais
precisam ter maturidade para que seus filhos possam sê-lo mesmo que estejam
separados. Os psicólogos devem trabalhar com eles a necessidades de separar os
conflitos conjugais dos parentais, sem a inclusão dos filhos, em que o ex-casal
continuará responsável por desenvolver as funções de cuidar, de proteger e de
promover as necessidades materiais e afetivas deles.

2.4 Síndrome da Alienação Parental – Divórcio e Separação – Um conflito para


os filhos
A síndrome da alienação parental é uma questão discutida na separação do
casal e no divórcio quando o casal disputa a guarda dos filhos e/ou quando o
divórcio litigioso traz consequências que afetam o comportamento dos filhos.
A separação e o divórcio são situações que muitas vezes provocam grandes
estresses e desencadeiam conflitos, os quais podem trazer consequências
desastrosas quando tem crianças envolvidas e disputas sobre a guarda dos filhos.
Um dos parceiros ou ambos por se contrapor e não aceitar as questões
discutidas no divórcio exerce comportamentos inadequados e prejudiciais às
crianças, principalmente quando as usam para tirar proveito e angariar vantagens
sobre o parceiro, influenciando o comportamento e às vezes criando alianças
perigosas com os filhos como forma de ataque ao outro.
Maier e Lachmam (2000) verificaram que o afastamento dos pais na infância
devido ao divórcio prediz consequências negativas para saúde da criança que
podem afetar tanto as condições psicológicas como físicas.

404
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

As crianças sofrem emocionalmente e psicologicamente, quando seus pais se


divorciam e estas consequências negativas são potencializadas quando os filhos
são constantemente expostos a conflitos entre seus pais.
Do mesmo modo, a relação entre a criança e seus pais pode mudar em razão
do poder parental que cada um exerce durante o processo de separação, instigando
muitas vezes as crianças a agir contra o outro parceiro.
As crianças durante este período de transição e adaptação são suscetíveis a
incorporar as perdas e a tristeza de cada um dos envolvidos e a tentar cobrir e
satisfazer a necessidade de atenção dos progenitores, principalmente quando
detectam que um está sofrendo mais do que o outro.
No entanto, a vulnerabilidade emocional da criança não permite a ela ter uma
maior compreensão sobre o que está acontecendo, ficando a mercê da manipulação
que um dos pais, ou ambos, podem fazer na tentativa de atacar o parceiro por meio
de chantagens emocionais. Em tal contexto a criança é usada como escudo ou
como ataque, levando-a a angariar vantagens para si.
Estas consequências podem, inclusive, influenciar de tal forma os filhos,
podendo refletir em suas relações emocionais futuras no sentido evitar relações
mais consistentes ou comportamentos de maior agressividade, tais como crises de
ciúme ou decorrentes de conflitos amorosos.
No período de separação as crianças enfrentam maior ansiedade, medo do
futuro, inseguranças, sentem-se confusas e perdidas, não sabendo em quem
acreditar. Consideram que a atenção que teriam de ambos os pais pode não mais
ser oferecida.
As crianças vivenciando os conflitos reais de uma separação litigiosa podem
construir crenças acerca de um apoio social precário e assim construir autoimagem
insatisfatória, medo do abandono, dificuldades interpessoais, queda de rendimento
escolar e cognitivo, auto culpabilidade.
O efeito do estresse de uma separação litigiosa pode ser diminuído se pelo
menos um dos pais oferecer proteção e recursos positivos para este enfrentamento.
405
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A experiência em casos de separação tem demonstrado a importância dos


serviços sociais de apoio e incentivo positivo para a criança após o ajustamento
paternal por consequência de um divórcio. Nesse sentido o apoio e o
acompanhamento psicológico da criança durante o processo de adaptação auxilia
no esclarecimento, na expressão dos sentimentos e no acolhimento das fantasias
que a criança mantém como uma tentativa de enfrentar os conflitos parentais.
Além disso, quando existem tensões sobre os familiares, os avós desde que
apresentem comportamentos e atitudes adequadas, podem prestar apoio
complementar as crianças.

3 A GUARDA COMPARTILHADA – ENTRE O IDEAL E O REAL: UM


CAMINHO AINDA A SER CONSTRUÍDO

No dia 13 de junho de 2008 foi sancionada a Lei Nº 11.698/2008, que dispõe


sobre o instituto da guarda compartilhada. No Código Civil passa a valer:
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
§ 1o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos
genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda
compartilhada, a responsabilização conjunta e o exercício de direitos
e deveres do pai e da mãe, que não vivam sob o mesmo teto,
concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
O tema da guarda compartilhada é um assunto amplamente discutido na
mídia o que levanta muitos questionamentos, tais como: com quem a criança irá
morar? Como serão tomadas as decisões se o pai e a mãe não chegarem a um
acordo? Quem ficará responsável pelas despesas do filho? Será que a equipe de
psicólogos e assistentes sociais do judiciário participará dessas decisões? Como os
profissionais do judiciário irão trabalhar com a guarda compartilhada?
A guarda compartilhada refere-se a uma modalidade em que os pais e as
mães dividem a responsabilidade legal sobre os filhos ao mesmo tempo e
406
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

compartilham as obrigações pelas decisões relativas aos descendentes menores de


18 anos (PEREZ, 2005).
As decisões relativas à família, destacando a responsabilização pelos filhos,
devem ser tomadas de comum acordo entre ambos os genitores. Destaca-se neste
tipo de guarda que os pais precisam estabelecer acordos referentes ao local de
habitação da criança ou adolescente, à educação (formação pessoal e vida escolar)
e à participação econômica.
A guarda compartilhada só é possível quando o ambiente familiar pós-
separação ou pós-divórcio é propício ao diálogo e à participação igualitária de
ambos os pais [...]. Do contrário, o exercício parental por parte do não detentor da
guarda restringe-se a uma atuação distante e meramente fiscalizadora. (LIMA, 2006,
p. 23).

3.1 Alguns aspectos práticos da guarda compartilhada


Trata-se da possibilidade de um convívio amplo, fundamentado na
comunicação e informalidade, que proporciona a preservação dos laços afetivos
entre pais e filhos. Este estreitamento de vínculos visa o bem estar dos filhos (LIMA,
2006).
Nestas situações, a criança ou o adolescente tem capacidade de se adaptar
ao contexto de vida dos genitores, além de conseguir criar vínculo com a casa do pai
e com a casa da mãe.
Permitir à criança o convívio com pai e mãe, vai deixá-la segura, e o medo do
abandono não terá espaço, resultando em crianças que se adaptarão bem a
situações novas, que poderão lidar com frustrações e limites. Torna-se
imprescindível que ela se adapte com o fato de ter duas casas, pois esta é a
realidade posta: seus pais têm cada um a sua casa, e continuam sendo seus pais.
Logo, ela tem duas casas. (SILVA, 2008, p.2)
Referente ao pagamento da pensão alimentícia, na guarda compartilhada os
pais acordam em dividir as despesas com os filhos e em assumirem a co-

407
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

responsabilidade pelo sustento material destes filhos, mediante acordo, homologado


judicialmente.
É saudável para as crianças/adolescentes sentirem cotidianamente a
participação dos pais em sua formação e educação. Cabe destacar a pesquisa de
Brito (2007) realizada com jovens adultos – filhos de pais separados, que procurou
analisar como percebem as mudanças que ocorreram em suas vidas em decorrência
do rompimento conjugal dos pais, especialmente em relação à convivência familiar.
Dentre alguns resultados, salientamos que foi observado que o rompimento da
relação conjugal acarreta, comumente, um complexo processo de mudanças para os
diversos componentes do núcleo familiar, sendo necessário estar atento para que os
filhos não sejam fortemente atingidos por desdobramentos que possam trazer
prejuízos ao seu bem-estar. Apontaram os entrevistados que muitas alterações em
suas vidas decorrentes do divórcio dos pais não foram passageiras, sugerindo que a
redução acentuada no relacionamento com um dos genitores, geralmente o pai,
acarretou sentimentos e vivências de perda no relacionamento anos depois.
A guarda compartilhada pressupõe que os genitores elevem os interesses dos
filhos acima de seus próprios e das dificuldades emergidas no contexto do litígio,
além de conseguirem uma convivência minimamente boa, haja vista que os
fundamentos da guarda compartilhada são os acordos que podem ser estabelecidos
entre os pais em prol da educação (formal/formação pessoal), do sustento e do local
de habitação dos filhos.
A aplicação da guarda compartilhada, preservando a proteção integral dos
direitos da criança e do adolescente depende da realidade sócio familiar, de cada
caso, e do estado emocional dos envolvidos (filhos/mãe/pais).
Estudos realizados por Brito e Gonsalves (2009) identificaram algumas razões
apontadas por Juízes de Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul, que negaram a guarda compartilhada, apontando razões que a
contra indicariam. Avaliando tais decisões as autoras apresentam contrarrazões
para tais argumentos, dentre estes:
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1) Sobre a justificativa de que a “desarmonia entre o ex-casal” seria impeditiva


para a guarda, as autoras refutam que autores como Gréchez (1996) e Thery,
(1998) pontuam que, ao exigir bom relacionamento entre os ex-cônjuges,
unifica-se o que é do âmbito da conjugalidade ao da parentalidade – que
deveriam ser dissociados, após o desenlace conjugal. Observando-se ainda
que os conflitos se referem ao momento presente, ou seja, a uma fase
transitória, podendo ser alterada com o passar do tempo.
2) Contra os argumentos dos juízes que priorizam as “decisões infanto juvenis
(ênfase na palavra da criança)” – as pesquisadoras apontam que diversos
pesquisadores, destacando-se Wallerstein e Kelly (1998), a solicitação para a
criança expressar com quem deseja permanecer, pode acarretar sentimentos
de culpa. E foi observado que muitas crianças se sentem aliviadas por não
precisarem escolher com qual pai gostariam de residir (Brito, 2006).
3) Para os apontamentos que indicariam que a guarda compartilhada implicaria
em “quebra de rotina”, é importante levantar que um dos sinônimos de
convívio, seria trato diário (FERREIRA, 1986, p. 472), assim, países como a
Nova Zelândia optaram em substituir os termos custódia e acesso (no Brasil,
guarda e visitação), por cuidado diário e contato. Destacando-se ainda que a
dinâmica da família realmente será alterada com a separação conjugal, sendo
que ambos os genitores podem facilitar a rotina da criança dividindo tarefas,
como levar e buscar na escola ou outras atividades.
4) Justificativas quanto à “Inexistência de motivos justificáveis” para a mudança
da guarda única para a compartilhada são contrapostas pela pesquisa
realizada por Brito (2006). A autora observou que a queixa dos filhos de pais
separados é de que a separação conjugal resultou no distanciamento do
genitor que não deteve a guarda unilateral, bem como dos demais membros
da família extensa deste.
5) Sobre o argumento de que os ex-cônjuges possuem “residências distantes”,
segundo as autoras: “Sem dúvida pode ser operacionalmente mais simples o
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

exercício da guarda compartilhada quando os pais morem em bairros


próximos, porém, nada impede que seja estabelecida esta modalidade de
guarda quando residem em cidades distantes, ou até mesmo em países
diferentes.
6) Algumas sentenças excluem a possibilidade de guarda compartilhada em
razão da “tenra idade da criança”: em interpretação das autoras à afirmação
de Poussin e Lamy (2005, p.70): “É difícil a criança se acostumar a um novo
lugar em dois dias. Contrariamente, quando esta frequenta com mais
assiduidade a casa do pai, possui tempo para se adaptar ao ritmo daquele,
sentindo menos as mudanças de lar”.
Com base nessas contrarrazões, caberia à equipe de psicologia e Serviço
Social do Judiciário que atua com famílias em situação de litígio e/ ou processos de
guarda, estabelecer com os genitores reflexões sobre o exercício das funções
paternais, do poder familiar, da importância de participarem cotidianamente da
formação dos filhos, dentre outras que favoreçam o estabelecimento das relações
familiares.

4 Questões Éticas

A proposta do Grupo de Estudos de Bauru sobre o tema denominado de


Questões Éticas tem por objetivo um recorte muito específico – as questões éticas e
os seus processos disciplinares –, sob a ótica dos impactos nas equipes compostas
por Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
dilemas estes suscitados pela ética ou moralidade. Logo, ética é o estudo filosófico
do comportamento normativo, ou seja, dos comportamentos que “devemos” e dos
que “não devemos” manifestar.
Os profissionais do Tribunal de Justiça lidam diariamente com situações de
alta complexidade e componentes da vida humana que requerem um alto grau de

410
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responsabilidade social e de comportamentos orientados por princípios éticos


envolvendo uma intricada combinação de conhecimentos, capacidades, interesses e
atitudes. Assim, a preparação técnica, o constante aprimoramento e compromisso
com os usuários são fundamentais para a efetivação da ética e a sua materialização
no campo social.
Desta forma com o objeto de estudo devidamente delimitado, tendo como
recorte a defesa dos profissionais que atuam no judiciário paulista em processos
éticos acionados pelos respectivos Conselhos Profissionais de Serviço Social –
Conjunto CFESS/CRESS e de Psicologia – CFP/CRP.
Os provimentos nº 50/1989 e nº 30/2013 em seu Art. 802, § 1º informa que
“compete à equipe interdisciplinar [Assistentes Sociais e Psicólogos] fornecer
subsídios por escrito mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim
desenvolver seus trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento,
prevenção e outras, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária,
assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.” Assim, ficam evidentes
os limites impostos aos profissionais que atuam no judiciário, mesmo que possuam
relativa liberdade técnica, em uma instituição altamente hierarquizada. Muitas vezes,
até a liberdade técnica sofre ingerência de alguns juízes, que determinam as
equipes interprofissionais que os estudos, principalmente os estudos sociais, sejam
realizados na casa (leia-se visita domiciliar), indicando uma imisção do juizado na
autonomia do profissional na escolha de instrumentos, técnicas e procedimentos a
serem adotados pelos profissionais de Serviço Social. Outro exemplo é a
determinação judicial de que o estudo psicológico seja realizado com a presença da
criança junto ao requerente.
Tem-se observado um aumento considerável do número de processos éticos
disciplinares nos últimos anos, segundo estatísticas realizadas pelo setor jurídico da
AASPTJSP (Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça
de São Paulo).

411
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Quando um órgão disciplinador recebe uma denúncia contra um profissional


instala-se um processo inicial de averiguação, que poderá instaurar um processo
ético disciplinar propriamente dito ou optar pela improcedência e seu respectivo
arquivamento.
Após a instalação de um processo ético disciplinar, o seu trâmite será como
um processo judicial comum, com a realização de audiências, a oitiva de
testemunhas, a juntada de documentos, entre outros; - respeitando o princípio da
ampla defesa e do contraditório.
Tanto o profissional de Serviço Social como o de Psicologia devem tomar
alguns cuidados para se protegerem de processos éticos disciplinares. As
normativas expedidas pelos respectivos conselhos, à observância aos Códigos de
Éticas de cada categoria, o alinhamento ao corpo teórico da área de atuação, são
fundamentais para se evitar a instauração de processos disciplinares.
No Tribunal de Justiça a manifestação dos profissionais se dá
primordialmente por meio de informes escritos na forma de laudos e pareceres, que
por sua própria forma de apresentação propiciam a possibilidade de
questionamentos das conclusões obtidas pelo profissional de Serviço Social e da
Psicologia. Ambas as profissões contam um arcabouço teórico e linhas de atuação
diferenciadas, que poderão ser questionadas, caso não sejam embasadas
teoricamente e devidamente referenciadas. Quanto a isto, os profissionais deverão
ter atenção redobrada quando da elaboração dos relatórios, apresentando a
metodologia utilizada, fundamentando-os teoricamente e, quando necessário,
oferecendo os esclarecimentos solicitados por juízes, por advogados e pelas partes.
A Resolução CFESS nº 557/2009 em seu Art. 4º, § 1º informa que o
Assistente Social que faz atuação conjunta com outra categoria profissional e/ou
equipe multiprofissional, deve destacar sua área de conhecimento separadamente,
delimitando o âmbito de sua atuação, seu objeto, instrumentos utilizados, análise
social e outros componentes que devem estar contemplados no parecer profissional.

412
PODER JUDICIÁRIO
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A atuação conjunta entre Assistente Sociais e Psicólogos no Tribunal de


Justiça é uma prática costumeira adotada por ambos os profissionais, visando
principalmente à otimização do tempo, dos recursos (principalmente físicos – sala
para atendimento), tendo como fim último agilizar o atendimento dos usuários. Não
obstante, a Resolução CFESS nº 493/2006 Artigos 1º e 2º informam que o
atendimento aos usuários de Serviço Social está atrelado à existência de espaço
físico adequado ao número de atendidos e as abordagens individuais e coletivas.
É sabido que as condições mínimas para as intervenções profissionais nem
sempre são as ideais. Muitas vezes, o número elevado de atendimentos em
decorrência das solicitações judiciais e as próprias demandas espontâneas
sobrecarregam não só o profissional, como também, as próprias dependências da
instituição, que em condições normais já não possuem uma estrutura física
adequada.
A apresentação de Laudos e Pareceres Técnicos deve contemplar uma
estrutura minimamente formal, mas flexível, que propicie a sua adaptação às
necessidades profissionais, institucionais e das particularidades requeridas pela
situação em foco. Alinhavar em sua estrutura as habilidades profissionais na coleta
dos dados (técnico-operativo), a sua interpretação em consonância com a
fundamentação teórica devidamente referenciada (teórico-metodológico), a
manifestação dentro das especificidades de cada profissão são fundamentais para o
saneamento de questionamentos posteriores (ético-político).
Os profissionais têm liberdade para a escolha dos instrumentos, métodos e
técnicas a serem utilizados na realização de estudos psicossociais, contudo deverão
estar embasados por um corpo teórico de sustentação que darão aporte ao
profissional, devendo ser citados e quando necessário, devidamente explicados,
uma vez que se direcionam a profissionais de outras áreas ou até mesmo a um
público leigo.
O aprimoramento permanente do profissional é essencial. Deverá ter
conhecimento das leis que embasam a situação estudada (como exemplo: ECA,
413
PODER JUDICIÁRIO
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Código Civil, entre outros) assim como as normativas específicas de cada profissão
(código de ética, normativas, pareceres entre outros).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio de pensar sobre a alienação parental e guarda compartilhada


remete a questões que, em todo momento, permeiam a prática dos profissionais
envolvidos na assistência e na prestação de justiça às famílias. A complexidade do
trabalho desempenhado exige, destes profissionais, o esforço cotidiano de
confrontar as indagações que emergem na prática. Afinal, lidam com situações
complexas cujas respostas não podem ser encontradas em fórmulas milagrosas, ou
modismos passageiros (VALENTE, 2008, p. 83).
A família representa o espaço privado em constante relação com o espaço
público, que recorre ao Estado para dirimir e resolver conflitos advindos da ruptura
dos relacionamentos. No bojo desse processo, observou-se uma transição no
conceito de anos tenros para a do de melhor interesse da criança. Ou seja, no
primeiro modelo a criança pequena, filha de pais separados era colocada
automaticamente sob a guarda da genitora, porém, no segundo modelo o que deve
ser priorizado é o bem-estar físico e mental da criança e não as necessidades
parentais. Tal mudança abriu espaço para que ambos os pais estejam em posição
de igualdade frente aos direitos e deveres relativos à criança, favorecendo a
ampliação do conceito de equidade entre os sexos.
É notório que profissionais como assistente social, psicólogo, médico, juiz e
outros ligados a área do Direito de Família se preocupem com questões
relacionadas à síndrome de alienação parental e à guarda compartilhada e orientem
as famílias a reorganizar suas ações pensando no bem-estar dos filhos. Entretanto,
não é possível chegar a uma posição que contemple todas as questões envolvidas,
considerando que as leis destacadas são novas e começam a ser implementadas,
carecendo de estudos que permitam debates mais aprofundados.
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Quanto aos procedimentos éticos estes devem permear constantemente a


atuação dos profissionais, pois respalda e fundamenta suas ações, pois toda
profissão define-se a partir de um corpo de práticas que busca atender demandas
sociais, estando submetida à observância de códigos de ética das profissões
regulamentadas que delimitam a constituição de faltas ético-disciplinares, e que em
algumas situações de interdisciplinaridade necessitam constantemente serem
compreendidas pelas profissões interdependentes em uma sociedade complexa,
multifatorial, social, cultural e historicamente construída.

415
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

6 REFERÊNCIAS

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Brasília, DF: Senado.

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disciplinar a guarda compartilhada.

BRITO, L.M.T. Família Pós-Divórcio: A Visão dos Filhos. Revista Psicologia Ciência
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BRITO, L.M.T. e Gonsalves, E. N. Razões e Contrarrazões para aplicação da


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FÉRES-CARNEIRO, Terezinha. Síndrome de Alienação Parental e a tirania do
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Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do
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416
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

GARCIA, S.M.G.A. (Org.) Apostila - Assistente Social Legislação e Normas. São


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GARCIA, S.M.G.A. (Org.) Apostila - Psicólogo Legislação e Normas. São Paulo,


2014 (não publicada).

GARDNER, Richard A. O DSM IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome


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2002. Departamento de Psiquiatria Infantil da Faculdade de Medicina e Cirurgia da
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GUILHERMANO, J. F. – Alienação Parental: Aspectos Jurídicos e Psíquicos –


Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do título de Bacharel em Direito
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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Menor. 2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação Em Direito) - Centro
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SHINE, S. A Espada De Salomão: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos.


São Paulo: Casa Do Psicólogo, 2003.

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Universidade Católica do Rio Grande do Sul em 29 de junho de 2012, p. 18.
Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa...juliana_guilhermano.pdf>.
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tirania do guardião: aspectos psicológicos, sociais e jurídicos. Organizado pela
Associação de Pais e Mães Separados – Porto Alegre: Equilíbrio, 2008.

418
PODER JUDICIÁRIO
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ALGUMAS INTERFACES DA GUARDA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – JUNDIAÍ – “VARA


DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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PODER JUDICIÁRIO
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COORDENADORAS:

Edileuza Rodrigues Méllo – Assistente Social Judiciária – Comarca de Cordeirópolis


Tamara Cristina Barbosa Soares – Psicóloga Judiciária – Comarca de Limeira

AUTORAS:

Ana Cristina Marques Zechim Oliveira – Assistente Social Judiciária – Comarca de


Bragança Paulista
Ana Maria Dalla V. Biolchi – Assistente Social Judiciária – Foro Distrital de Campo
Limpo Paulista
Carmem Silvia Gaudenci – Assistente Social Judiciária – Comarca de Vinhedo
Cíntia Cardoso Vigiani Carvalho – Psicóloga Judiciária – Comarca de Jundiaí
Cláudia Maria Nóbrega – Psicóloga Judiciária – Comarca de Bragança Paulista
Deise Akemi Castelluccio – Psicóloga Judiciária – Comarca de Bragança Paulista
Denise Fernandes – Assistente Social Judiciária – Comarca de Vinhedo
Eduarda Vieira Silva – Assistente Social Judiciária – Comarca de Bragança Paulista
Elisângela Sanches Dias – Assistente Social Judiciária – Comarca de Jales
Elzira Alberto – Assistente Social Judiciária – Comarca de Franco da Rocha
Helene Yuri Anaguchi Tiba – Assistente Social Judiciária – Comarca de Itu
Joyce Calixto Porto – Psicólogo Judiciário – Comarca de Franco da Rocha
Juliane Tonetti – Assistente Social Judiciária – Comarca de Francisco Morato
Lecticia Rodrigues Souza – Assistente Social Judiciária – Comarca de Franco da
Rocha
Leda de Fátima Giaretta – Assistente Social Judiciária – Comarca de Itatiba
Maria Aparecida de Jesus Garcia – Assistente Social Judiciária – Foro Distrital de
Cajamar
Maria Helena Pompeu – Assistente Social Judiciária – Foro Distrital de Pinhalzinho
Maria José Casaroto Vilela – Psicóloga Judiciária – Comarca de Bragança Paulista
Maria Lucília de Oliveira – Assistente Social Judiciária – Comarca de Várzea Paulista
Regina Célia Antonialli Zancheta – Assistente Social Judiciária – Comarca de
Bragança Paulista
Renata Dias Ramos – Psicóloga Judiciária – Comarca de Limeira
Sandra Maria de Souza Moraes Oliveira – Psicóloga Judiciária – Comarca de
Bragança Paulista
Silvana Salino Ramos – Assistente Social Judiciária – Comarca de Francisco Morato

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

“Nossa vida se assemelha a uma colcha de


retalhos; a cada dia, com os nossos atos, as
nossas escolhas, vamos acrescentando
mais coerência, mais harmonia, entre as
peças, à primeira vista, desconexas...

Com muita paciência, persistência, vamos


vivendo, alinhavando com muito zelo os
emaranhados de nossa vida”.

(Aimara Schindler)

421
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

Há vários anos, o Grupo de Estudo de Jundiaí vem refletindo sobre as


questões que envolvem processos judiciais relacionados à Vara de Família. Tais
questões parecem instigar os profissionais dos setores técnicos do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, pois neste ano o Grupo teve várias novas
inscrições, tanto de psicólogos como de assistentes sociais judiciários.
Nossa proposta anterior era de continuarmos a discussão sobre as práticas
alternativas para resolução de conflitos, em processos que envolvam guarda de
filhos. Entretanto, no decorrer de 2013, tomamos conhecimento da existência de
práticas bem sucedidas nesse sentido. Podemos citar o trabalho relacionado às
oficinas de pais e filhos desenvolvidas na Comarca de São Vicente e que teve como
precursora e uma de suas organizadoras a Exma. Juíza de Direito Doutora Vanessa
Aufiero da Rocha que incentivou sua equipe técnica a desenvolver essa prática nas
demandas relacionadas a divórcios e separações conjugais de modo geral, cujas
partes tenham filhos em comum. Tomamos conhecimento também, que outras
Comarcas já estão seguindo esse exemplo. Diante disso, o Grupo mudou o foco das
discussões neste ano, se voltando para as questões de nosso cotidiano no que diz
respeito aos processos de guarda de filhos.
Assim, nos dividimos em subgrupos para discutirmos questões que
emergiram a partir das primeiras reuniões, advindas de observações e inquietações
manifestas pelo Grupo, as quais têm como objetivo aprimorar nosso trabalho diário
em avaliações nos casos de disputa de guarda.
A chegada de novas integrantes ao Grupo proporcionou uma refrigeração às
ideias e desta forma, foi possível elencar tópicos importantes de serem analisados
em processos de guarda, a saber: a guarda como instituto jurídico; a guarda
compartilhada como uma possibilidade; a alienação parental como síndrome da
guarda adoecida e direito à convivência familiar ou direito à visitas.
422
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Para discussão dos temas elencados foram utilizados textos técnicos e legais,
estudos de casos, exemplos do dia a dia de trabalho, filmes, palestras e dinâmicas
de grupo.
O que a princípio parecia uma ‘colcha de retalhos’ aos poucos foi tomando
forma, de modo que este trabalho é uma maneira de compartilharmos nossas
inquietudes, desconfortos e preocupações, mas também de apresentarmos nossas
reflexões, as quais, esperamos, possam contribuir para construção do lugar
profissional de cada pessoa que se envolve cotidianamente com essas questões.
Segundo Acioli; Carvalho; Stotz (2001, p. 102-103):
A construção de conhecimento implica uma interação
comunicacional, em que os sujeitos com saberes diferentes, porém
não hierarquizados, se relacionam a partir de interesses comuns.
Nessa perspectiva todos somos educadores e fazemos circular
saberes diversos e de diferentes ordens, construídas no
enfrentamento coletivo ou individual de problemas concretos.

Desta forma, construímos coletivamente um conhecimento com a troca de


saberes diversos entre os profissionais de Psicologia e Serviço Social, que
empiricamente o fazem no cotidiano de forma individual, ainda que como
expressões da questão social se apresentem de forma coletiva. Assim passamos a
compartilhar, na sequência, nossas reflexões, para que sirvam também de
provocação a novas indagações/reflexões e sínteses/ações, materializando-se na
práxis profissional comprometida com a transformação e a superação das
contradições.

A GUARDA COMO INSTITUTO JURÍDICO

Antes de nos determos sobre as questões que envolvem a guarda de


crianças ou adolescentes, precisamos considerar a mudança significativa no
conceito de família nos dias atuais.
423
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

O conceito de família convencional: pai, mãe e filhos, em que o pai era o


provedor e a mãe permanecia no lar para cuidar e zelar da educação da prole torna-
se cada vez mais distante. As constantes evoluções sociais levaram a modificações
no exercício dos papéis sociais e parentais, na constituição da família e
consequentemente na forma com que o relacionamento entre crianças e
adolescentes com seus genitores é vivenciado, em especial quando rompida a
conjugalidade.
A doutrina da proteção integral à criança e adolescente, tem seu fundamento
na Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 227, coloca-os como absoluta
prioridade:
É dever da família, da sociedade, e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8.069 de 1990) vem


reafirmar os direitos previstos na Constituição, quando expõe:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo de proteção
integral de que esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros
meios, as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e
do poder público, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária.

A guarda no ordenamento jurídico brasileiro é uma das prerrogativas do poder


familiar. Neste sentido, ela obriga à assistência material, moral e educacional à
criança ou adolescente.
No Código Civil:

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Art. 1634, II Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: tê-los
em sua companhia e guarda.
No ECA:
Art. 33 A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e
educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de
opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser
deferida, liminar e incidentalmente, nos procedimentos de tutela e
adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.
§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de
tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta
eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de
representação para a prática de atos determinados.
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de
dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive
previdenciários.
§ 4º Salvo expressa e fundamentada determinação em contrário, da
autoridade judiciária competente, ou quando a medida for aplicada
em preparação para adoção, o deferimento da guarda de criança ou
adolescente a terceiros não impede o exercício do direito de visitas
pelos pais, assim como o dever de prestar alimentos, que serão
objeto de regulamentação específica, a pedido do interessado, ou do
Ministério Público.

Inerentes à guarda são os cuidados e a proteção de que crianças e


adolescentes necessitam por estarem em fase peculiar de desenvolvimento.
Quando falamos em guarda como instituto jurídico, precisamos, antes de
tudo, pontuar algumas questões aí envolvidas.
Se tomarmos a palavra guarda, verificamos que é derivada do alemão
“warten” (espera), que deu origem ao termo inglês “warden” e ao francês “garde”.
Significam proteção, observação, vigilância e administração.
Ainda sobre a guarda, o mesmo ordenamento jurídico (ECA) prevê em casos
específicos:

Art. 34 O poder público estimulará, por meio de assistência jurídica,


incentivos fiscais e subsídios, o acolhimento, sob a forma de guarda,
de criança ou adolescente afastado do convívio familiar.
Art. 92, IX, § 1º O dirigente de entidade que desenvolve programa de
acolhimento institucional é equiparado ao guardião, para todos os
efeitos de direito.

425
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Art. 248 Deixar de apresentar à autoridade judiciária de seu


domicílio, no prazo de cinco dias, com o fim de regularizar a guarda,
adolescente trazido de outra comarca para a prestação de serviço
doméstico, mesmo que autorizado pelos pais ou responsável.

As espécies de guarda podem ser exercidas de diferentes formas, variando


entre guarda comum, guarda compartilhada, guarda unilateral ou guarda casuística,
de acordo com cada situação.
No que se refere a crianças e adolescentes que, em decorrência do poder
familiar devam permanecer sob os cuidados de seus genitores, após a separação do
casal, o Código Civil prevê:

Art. 1583 A guarda será unilateral ou compartilhada


§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores
ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a
responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da
mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos
filhos comuns.
§ 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores
condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos
filhos os seguintes fatores:
I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
II - saúde e segurança;
III - educação.
§ 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a
supervisionar os interesses dos filhos.
Art. 1.584 A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
I - requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em
ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável
ou em medida cautelar;
II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou
em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e
com a mãe.
§ 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o
significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de
deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo
descumprimento de suas cláusulas.
§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do
filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.
§ 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de
convivência sob a guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento
do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico profissional
ou da equipe interdisciplinar.
§ 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula
de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de

426
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prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de


horas de convivência com o filho.
§ 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai
ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a
natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e
as relações de afinidade e afetividade.
Art. 1585 Em sede de medida cautelar de separação de corpos aplica-se
quanto à guarda dos filhos as disposições do artigo antecedente.
Art. 1586 Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem
dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos
antecedentes a situação deles para com os pais.
Art. 1587 No caso de invalidade do casamento, havendo filhos comuns,
observar-se-á o disposto nos arts.1584 e 1586.
Art. 1588 O pai ou a mãe que contrair novas núpcias não perde o direito de
ter consigo os filhos, que só poderão ser retirados por mandado judicial,
provado que não são tratados convenientemente.
Art. 1589 O pai ou a mãe, em cuja guarda não estiverem os filhos, poderá
visita-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro
cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e
educação.
Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a
critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente.

Embasados nesses ordenamentos ao juiz compete sentenciar, buscando


sempre o “melhor interesse da criança”, considerando, como mencionado no início,
sua condição de pessoa em desenvolvimento.

A GUARDA COMPARTILHADA COMO POSSIBILIDADE

O conceito de Guarda é amplo e reserva certa subjetividade, se definindo por


um valor maior a ser protegido: o bem estar e a preservação da criança e/ou
adolescente enquanto seres em formação e desenvolvimento.
A guarda compartilhada, objeto do presente capítulo, pode ser definida como
uma modalidade em que ambos os genitores, ou pessoas diversas a estes, exercem
autoridade parental equivalente e tomam decisões conjuntas, bem como participam
de forma ativa na vida dos filhos comuns. Assegura que a paternidade e a

427
PODER JUDICIÁRIO
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maternidade sejam exercidas em igualdade de condições independente da


continuidade do relacionamento conjugal.
Na guarda compartilhada, os filhos são mantidos em uma residência principal
eleita por consenso entre os genitores ou pelo magistrado ao avaliar as condições
de cada parte. Tal decisão visa à preservação de uma referência para a criança/
adolescente e o estímulo do cultivo de atividades cotidianas que contribuam para o
fortalecimento da convivência comunitária, dentre outros aspectos.
Uma das principais vantagens da guarda compartilhada é a flexibilização do
horário de visitação e do período de férias, uma vez que a convivência com o genitor
ou pessoa diversa com quem a criança/ adolescente não reside é estimulada. E
quanto maior convivência, maior a chance dos laços afetivos se fortalecerem e dos
guardiões se comprometerem e se responsabilizarem.
Outra vantagem é a de que o poder parental sobre o filho independe de com
quem ele reside uma vez que a guarda compartilhada é caracterizada pela
manutenção responsável e solidária dos direitos e deveres inerentes ao Poder
Familiar, devendo os genitores participarem das atividades cotidianas dos filhos
tanto quanto possível, o que garantirá um envolvimento contínuo e estável com a
vida deles. Novamente o guardião não residente com a criança/ adolescente é
chamado a sair do papel de coadjuvante e de mero provedor financeiro.
Ao pesquisar mais profundamente sobre este tema, verificamos que não
existe consenso entre os magistrados sobre as situações que ensejariam a
aplicação deste instituto. Desta forma, para a construção do raciocínio acerca do
tema partimos de quatro questões que nos pareceram importantes abordar pela
frequência com que se apresentam no cotidiano de trabalho dos profissionais dos
Setores Técnicos. São elas:
1 - Na ausência de interesse ou de paradeiro de um dos genitores, a guarda
pode ser compartilhada entre o (a) genitor (a) que está presente e os avós ou outra
pessoa diversa aos genitores?

428
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2 - Deve o outro genitor ou outro interessado “fiscalizar” os cuidados


exercidos pelo guardião?
3 - É possível o compartilhamento da guarda entre genitores que moram em
municípios diferentes?
Conforme citado anteriormente, no artigo 1583 do Código Civil, a guarda
compartilhada é “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do
pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos
filhos comuns”. Porém, o artigo 1.584, que inicia com “A guarda unilateral ou
compartilhada poderá ser”, em seu parágrafo 5º, faz a seguinte ressalva: “se o juiz
verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a
guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida,
considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e
afetividade”.
Desta forma, podemos compreender que juridicamente é possível que a
guarda compartilhada seja exercida por um dos genitores e um membro da família
extensa e/ou pessoa diversa. São as circunstâncias do caso concreto que apontarão
ao magistrado a conveniência, para a garantia do “melhor interesse” das crianças/
adolescentes envolvidos, possibilitando o compartilhamento da guarda com pessoas
diversas dos genitores, em garantia ao direito à convivência familiar.
A guarda é um dos atributos do poder familiar, competindo aos genitores o
seu exercício. O fim do casamento ou da união estável não deve comprometer a
continuidade dos vínculos parentais, uma vez que o exercício do poder familiar não
deixa de existir com a separação. Por outro lado, não quebrar paradigmas gerados
por uma interpretação “nua e crua” da Lei, que não permite considerar as diversas
variáveis de uma situação, pode colocar em risco a defesa dos interesses das
crianças/adolescentes que devem estar acima dos interesses daqueles que
disputam a sua guarda.
Um estudo cuidadoso deve ser feito pelos profissionais dos Setores Técnicos,
uma vez que a guarda por família extensa poderá ser aplicada em casos
429
PODER JUDICIÁRIO
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específicos, como por exemplo, ausência de um dos genitores por morte ou


paradeiro ignorado ou limitação intelectual. Não podemos desconsiderar que avós,
idosos, e crianças/ adolescentes pertencem a gerações diferentes e que os conflitos
transgeracionais podem ser um problema na convivência. Em razão de tais conflitos,
tratando-se de pais que ofereçam condições minimamente satisfatórias do exercício
parental, não se deveria utilizar um compartilhamento da guarda entre pais e avós. A
princípio, no melhor interesse da criança, o papel parental deve ser exercido pelos
genitores e os avós terem direito às visitas.
O artigo 1.584 do Código Civil, em seu paragrafo 2º, prevê a possibilidade de
imposição da guarda compartilhada aos genitores pelo magistrado quando não
houver acordo entre as partes. Porém há controvérsias quanto a esta aplicação,
uma vez que para o exercício da cooperação há, a princípio, a necessidade de uma
convivência harmoniosa entre o casal e que estes tenham superado as possíveis e,
quase certas, mágoas e ressentimentos da separação. Uma guarda compartilhada
imposta pode gerar ainda mais conflito e desacerto.
Por outro lado o compartilhamento da guarda pode impedir os genitores de
utilizarem os filhos como arma numa disputa em que os segundos possam ser vistos
como “aliados” dos primeiros. Também pode contribuir para o exercício crescente e
contínuo do diálogo e do respeito entre os genitores. O indivíduo ex-cônjuge perderá
a importância perante o indivíduo genitor.
A separação do casal não deve alterar a relação deste com os filhos. É
preciso distinguir o casal parental do casal marital sendo que o primeiro deverá
permanecer unido no propósito de preservar o melhor interesse dos filhos.
Em relação à fiscalização dos cuidados exercidos pelo guardião, verificamos
que nos casos de guarda compartilhada ambos os guardiões guardam
responsabilidades com os filhos e devem ter uma participação efetiva na vida
destes. Não devem invadir o espaço nem desautorizar um ao outro sendo
necessário que aprendam a confiar um no outro.

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

O artigo 1.583, do Código Civil aponta que a guarda unilateral obriga o/a
genitor/a que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, uma vez que o
papel parental não se esgota em prover meios materiais. Na guarda compartilhada a
regra é a mesma, porém a supervisão se dá através de uma participação mais
efetiva na vida dos filhos, o que garante um acesso mais amplo às informações
relacionadas a estes.
Consideramos que no caso de os genitores morarem em municípios
diferentes, porém próximos, é possível compartilhar a guarda porque o que será
compartilhado são as responsabilidades parentais e deverá ser priorizado que a
criança permaneça em um domicílio. A participação na vida dos filhos e as decisões
é que são compartilhadas, podendo os genitores se deslocar para atenderem os
interesses dos filhos, como por exemplo: consultas médicas e reuniões escolares,
dentre outras. O exercício do poder familiar continuará se dando por ambos os
genitores. A localização não é o impedimento, a não ser em se tratando de
distâncias significativamente grandes que inviabilizam o contato. Nestes casos, o
mais indicado é a guarda unilateral uma vez que a guarda compartilhada implica em
consenso entre as partes/ genitores e compartilhamento de responsabilidades no
exercício de educação e formação dos filhos.

A ALIENAÇÃO PARENTAL: GUARDA ADOECIDA

Como vimos falando ao longo deste texto, a convivência familiar é direito da


criança e do adolescente que deve ser respeitado, sobretudo, diante da dissolução
do casamento ou da união estável de seus genitores. Para tanto, o ordenamento
jurídico disciplina como serão exercidas a guarda e a visitação, ressalvando que a
interrupção do convívio familiar, mesmo após o divórcio do casal ou o fim da união
estável, é medida de exceção.

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PODER JUDICIÁRIO
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Apesar disto vislumbra-se uma hipótese em que concretamente o


direito à convivência familiar é desrespeitado. É o caso de atitudes
tomadas por um dos genitores com o objetivo de romper o contato do
outro com a prole sem merecer nenhum respaldo legal, e, por vezes,
através de falsas denúncias que ensejam, no âmbito do judiciário,
disputas de guarda. Fala-se então na existência de alienação
parental, caso em que ilegalmente a convivência familiar poderá
cessar (Clarindo, 2013).

A esta dinâmica de funcionamento familiar (e todas suas consequências)


convencionou-se chamar Alienação Parental ou, em certos casos, como veremos a
seguir, Síndrome de Alienação Parental.

– Lei 12.318/2010

Em 2010 foi promulgada no Brasil a Lei de Alienação Parental, que conceitua


este termo como uma interferência na formação da criança e/ou adolescente para
que repudie o genitor. Podem ser alienadores os genitores, avós ou quem tem a
criança/adolescente sob sua autoridade.
Destacamos alguns trechos da lei sobre alienação parental, para
esclarecimento.
Formas exemplificativas de Alienação Parental:
 Fazer campanha de desqualificação;
 Dificultar o exercício da autoridade parental;
 Dificultar contato/convivência familiar;
 Omitir informações sobre a criança/adolescente ao genitor;
 Apresentar falsa denuncia contra genitor ou familiares deste;
 Mudar domicílio sem justificativa para local distante.
A lei coloca ainda que a alienação parental fere o direito fundamental da
criança/adolescente e constitui abuso moral e, por conta disto, a tramitação deste
processo é prioritária, com urgência de medidas provisórias. Havendo indício de

432
PODER JUDICIÁRIO
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alienação parental, o juiz poderá determinar a perícia psicológica ou biopsicossocial


que pode ser realizada em 90 dias, com possibilidade de prorrogação de prazo.
O texto da lei ainda traz explicitamente o que deve contemplar o laudo
pericial:
 Entrevistas;
 Exame dos autos;
 Histórico do relacionamento do casal e da separação;
 Cronologia de incidentes;
 Avaliação da personalidade dos envolvidos;
 Manifestação da criança/adolescente feito por profissional/equipe
habilitada;
O juiz poderá cumulativamente ou não:
 Declarar ocorrência de alienação parental e advertir o alienador;
 Ampliar a convivência com o genitor alienado;
 Estipular multa ao alienador;
 Determinar acompanhamento psicológico/social;
 Determinar alteração ou inversão da guarda;
 Determinar fixação cautelar do domicilio da criança/adolescente;
 Declarar a suspensão da autoridade parental.
A guarda será dada preferencialmente ao genitor que viabilize efetiva
convivência com o outro, quando inviável a guarda compartilhada.
Alteração do domicilio da criança/adolescente é irrelevante para a
competência da ação.

– Comentários sobre a lei de alienação parental

Mesmo antes da lei da alienação parental, nosso sistema jurídico já dispunha


de instrumentos suficientes para sancionar atos de alienação parental que
433
PODER JUDICIÁRIO
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abrangiam desde a previsão do abuso do direito como ato ilícito funcional até
medidas mais gravosas como a suspensão e destituição da autoridade parental. No
entanto a lei 12.318/10 traz maior segurança jurídica e tem uma função pedagógica/
psicológica.
Segundo Teixeira e Lima (2013), a alienação parental se caracteriza por
atitudes que visam um afastamento da criança do outro genitor, que pode se dar de
várias formas e inclusive com manipulação da psique: programação mental para
repudio do outro genitor e a implantação de falsas memórias. Trata-se de um
processo que visa reduzir ou mesmo eliminar os vínculos afetivos do filho com o
outro genitor.
Ainda segundo as mesmas autoras, a alienação é uma cadeia de
acontecimentos que vagarosamente vai se instalando em um processo na psique do
filho, a qual deverá findar o mais brevemente possível. Para efeitos didáticos se
divide o processo de alienação em três partes: prevenção, identificação e sanção.
- A prevenção evita a judicialização e pode ser feita com informações aos
genitores e profissionais que lidam com infância e juventude; deve ser dada a
conhecer as sanções para o alienador e a conscientização dos danos.
- A identificação é a intervenção imediata do judiciário com caráter inibitório,
com celeridade e cautela tendo em vista o melhor interesse da criança. Pode-se
aplicar a mediação nos casos de alienação numa tentativa dos pais perceberem
formas de interromper este processo alienador.
- Na fase processual é importante a prudência com liminares. A tramitação é
prioritária visto que a demora consolida distâncias, comportamentos e falsas
memórias.
No artigo 5º. da Lei da Alienação Parental está presente a perícia psicológica
ou biopsicossocial. Deve-se buscar na perícia psicológica avaliar a integridade
psíquica da criança enquanto que na biopsicossocial pretende-se uma investigação
do relacionamento da criança com os pais, familiares e sua convivência social. É
preciso ter prudência em relação às denuncias de abuso sexual, principalmente, em
434
PODER JUDICIÁRIO
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termos do afastamento do suposto abusador. A perícia também deverá avaliar


integralmente a situação da criança/ adolescente a fim de verificar se sua fala traduz
atos realmente acontecidos ou a manipulação do genitor alienador.
Como medidas preventivas à alienação parental sugere-se oficina de pais e
mediação, bem como a divulgação do tema na comunidade, como por exemplo, em
cursinhos de noivos.

- Alienação Parental: uma Polêmica Necessária

É sabido que o grande expoente da Síndrome da Alienação Parental (SAP) foi


Richard Gardner, psiquiatra forense norte-americano. Segundo ele, essa síndrome
ocorria principalmente em crianças expostas a disputas judiciais entre os pais, as
quais desenvolviam um distúrbio infantil. Entretanto, atualmente, existem autores
que questionam alguns aspectos da teoria de Gardner. Dentre eles a doutoranda em
Psicologia Social e especialista em Psicologia Jurídica, Dra. Analícia Martins de
Sousa, de quem apresentaremos sucintamente, a seguir, algumas contribuições.
Tal autora acredita que a alteração do comportamento de crianças que
vivenciam o litígio dos pais precisa ser apreendida na intersecção das relações
familiares com os fenômenos sociais. Questiona-se se existem fenômenos sociais
que contribuem para a emergência de comportamentos exibidos por crianças e
responsáveis em litígio conjugal. E ainda, como esses comportamentos poderiam se
formar.
Uma de suas críticas é que a teoria de Gardner apresenta uma visão
determinista e limitada, focada no indivíduo sem considerar o contexto social,
colocando assim o rótulo de SAP em uma gama de comportamentos. Em seus
textos, aponta que Dallam (1999) faz críticas ao rigor científico da teoria, pois a
maioria dos estudos de Gardner não está publicada em revistas científicas, as quais

435
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

submetem os artigos à avaliação de profissionais que consideram princípios


científicos.
Ao que parece, Gardner faz referências quase exclusivas aos próprios
estudos, os quais não explica como foram realizados. A impressão é de que se
baseia em suas observações e suposições a partir dos casos que atendeu como
avaliador para a Justiça.
Segundo os estudos de Gardner, o dado psicológico tem relevância principal.
O avaliador deve desvelar características que são do alienador, uma “verdade
interna” dele. As condições histórico-culturais, econômicas, políticas, como vem
sendo forjadas ao longo do tempo não são consideradas.
A teoria de Gardner parece propor um saber sobre o indivíduo, tornando-se
uma verdade inquestionável sobre ele. Não é por acaso que esta teoria obtém ampla
receptividade. No momento atual vive-se uma proliferação de novas síndromes,
espécie de sindromização do sofrimento humano e patologização dos
comportamentos. Podemos ver a Psiquiatria oferecendo explicações para
comportamentos ditos desviantes. Explicações que recaem apenas sobre o
indivíduo. O indivíduo é visto como a fonte de todos os males. Há uma
desconsideração do contexto social.
Na opinião de Sousa (2010), Gardner disseminou a ideia/teoria que
transformou o fenômeno das alianças parentais no litígio conjugal numa síndrome. O
fato de profissionais observarem no contexto do litígio comportamentos semelhantes
aos que Gardner descreve não faz disso uma síndrome. A referida síndrome não
consta, por exemplo, dos Manuais de Transtornos Mentais utilizados atualmente,
como o CID-10 e o DSM-V.
A autora chama a atenção para categorias já existentes nos referidos
manuais que poderiam ser utilizadas em caso de necessidade de um diagnóstico de
transtorno psiquiátrico. NO DSM-IV-TR há um capítulo “Outras condições que
podem ser foco de atenção clínica,” no qual existem cinco categorias de problemas
de relacionamento. Um deles é descrito como: Problemas de relacionamento entre
436
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

pai/mãe/criança: (...) deve ser usada quando o foco de atenção clínica é um padrão
de interação entre pai/mãe/criança associado com prejuízo significativo individual ou
familiar, ou desenvolvimento de sintomas clinicamente significativos no
pai/mãe/criança. (DSM-IV-TR, p. 688). Assim, seria possível evitar a criação de
novas síndromes e transtornos desnecessários.
Importante ressaltar que o rótulo de síndrome ou enfermidade mental pode
aprisionar os indivíduos em um diagnóstico, quando os comportamentos passam a
ser vistos exclusivamente como resultado de uma patologia. A diversidade e
complexidade dos comportamentos humanos não podem ser contidas inteiramente
na descrição de um transtorno ou doença. Poderíamos acrescentar ainda que
Gardner propõe graus da síndrome: leve, moderado, grave. Assim, põe sob o rótulo
de SAP uma gama de comportamentos, ampliando a extensão da síndrome.
Sousa (2010) observa a semelhança entre o surgimento da Síndrome de
Alienação Parental com o desenvolvimento do tema da violência doméstica nos
Estados Unidos. Em 1960, nos EUA, criaram a Síndrome da Criança Maltratada, que
teve pais tipificados como imaturos, sexualmente promíscuos, usuários de drogas e
psicopatas. Os pais foram entendidos como os responsáveis isolados pelas lesões e
ferimentos nas crianças. A citada síndrome responsabiliza a psicopatologia dos pais
pelas agressões contra as crianças. No caso da SAP parece semelhante. “Sob o
slogan de síndrome de alienação parental, patologizam e culpabilizam pais,
vitimizam crianças e defendem a intervenção na família visando à coerção e à
penalização.” (Sousa, 2010, p. 134.)
Ao analisar as publicações sobre o tema em território nacional, a autora
constata que há certa confusão sobre quem porta a síndrome. Há autores que
declaram que quem porta é o pai alienador, outros, a criança.
Constatou também que os autores nacionais acrescentam contribuições às
proposições de Gardner, especialmente julgamentos morais. Cita como exemplo: “a
SAP é o palco de pactualizações diabólicas, vinganças recônditas (...) que se
espalham como metástases de uma patologia relacional e vincular.” (Trindade, 2007,
437
PODER JUDICIÁRIO
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p.103) Ou: “A Síndrome da Alienação Parental é uma doença devastadora que


compromete o presente e o futuro das crianças.” (...) Cartilha da Apase. In: Sousa,
2010, p. 146.
Nas publicações nacionais termos como: programação, desprogramação,
implantação de falsas memórias, falsas denúncias de abuso sexual, são
reproduzidos e naturalizados, sem preocupações quanto a definições ou
problematizações sobre o uso dos mesmos.
Outro ponto importante a se destacar é que vários estudos já apontaram e
discutiram a relação intensa que se estabelece entre o genitor guardião e os filhos,
com o alijamento do outro genitor. Nestes, os autores em geral relacionam os
diversos fatores que estariam contribuindo para a existência desses
comportamentos, chamando a atenção não só para as questões individuais (como
na teoria da SAP), mas para a gama de fatores que envolvem o litígio conjugal. Se
estes estudos já existiam, porque a lei foi criada apenas a partir do slogan da
Alienação Parental? Sousa (2010) acredita que o slogan facilitou a criação da lei.
A autora oferece duas hipóteses como explicação. A primeira delas estaria
apoiada na ideia de que denominações de impacto são boas para venda e
propagação. Cita o preceito formulado por Bauman (2004) de que “o novo é melhor”.
Neste sentido, exemplifica que a organização norte-americana Parental Alienation
Awareness Organization (PAAO) determinou o dia 25 de abril como o Dia da
Consciência sobre a Alienação Parental. Criou uma extensa linha de produtos à
venda, como botons, camisetas, bonés, canecas, adesivos, bola, urso de pelúcia,
cartões, calendários, etc. Podemos ver, neste exemplo, as relações familiares e
seus efeitos convertidos em objetos de consumo.
Outra explicação para a referida lei ter sido criada, para Sousa (2010), é que
a SAP acompanha outra tendência da atualidade: a patologização dos
comportamentos. É notório o aumento das categorias diagnósticas nos manuais
classificatórios. Estudos anteriores não buscavam confirmar a existência de

438
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

patologias, mas davam prioridade à compreensão da dinâmica que se estabelece na


família a partir da separação.
Neste sentido, coloca – e nós sublinhamos seu questionamento – será que a
SAP é um problema que se alastra por diversos países ou um novo produto que,
com o objetivo de venda, provoca alarde e sensibilização dos consumidores,
conquistando cada vez mais defensores, movimentando mercado editorial com
novos títulos, etc.? (Sousa, 2010)
Não temos a pretensão de negar a existência das alianças parentais nas
situações de litígio conjugal. Provavelmente em alguns casos há a chance de existir
psicopatologias envolvidas, mas da forma como vem sendo encaminhada a
discussão sobre a SAP, com a banalização do conceito de síndrome, a patologia
parece se tornar a regra e não a exceção.
A patologização de comportamentos no contexto da separação
conjugal pode ser, na verdade, uma forma de privatização e
individualização de dificuldades vivenciadas por muitos genitores,
desvitalizando, com isso, uma maior discussão na sociedade sobre a
igualdade de direitos de mães e pais separados. (Sousa, 2010, p.
157)

Foi observado um caráter determinista de vários autores: as crianças


reproduzirão comportamento manipulador ou terão dificuldade de relacionamento e
adaptação. Referem que pode provocar problemas psiquiátricos para o longo da
vida. É notório e grave que tais previsões fatalistas e deterministas são difundidas ao
grande público, sem a devida crítica. Para Sousa (2010), a função desses discursos
não é convencer por evidências científicas, mas pela mobilização da revolta, do
sentimento de indignação, diante da conduta de sordidez ou da patologia estrutural.
Além disso, o tratamento proposto por Gardner é assimilado pelos
profissionais psicólogos sem qualquer restrição ou discussão quanto aos
procedimentos e possíveis resultados. A despeito dos inúmeros questionamentos e
polêmicas envolvendo a SAP em outros países, aqui já há profissionais e serviços

439
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

especializados em seu tratamento. O discurso de SAP parece seguir uma tendência


atual: a de clamor por punições.
No contexto francês é indicado que a criança resida com o genitor que se
mostra mais apto a aceitar a participação do outro. Este é um recurso civil que se
afasta da penalização. Na Suécia, foi criado o serviço de “conversas cooperativas”,
onde psicólogos dos juízos de família atendem famílias para orientar em questões
de cuidado dos filhos após o rompimento conjugal.
No Brasil, privilegia-se o diagnóstico e a punição. Usam-se patologias para
explicar o comportamento humano e a punição/tratamento para resolver os
problemas sociais.
Encontrar em um sujeito um aspecto interno que o diferencie do
restante da população proporciona uma espécie de alívio àqueles
que se eximem de assumir sua parcela de responsabilidade [...]
como se um caso considerado isolado fosse um lapso a ser corrigido
individualmente, sem comprometer os sistemas que interagem com
este sujeito. (Martins, 2008, p. 38).
Portanto, é necessário contextualizar cada conflito familiar, evitando-se
patologizar a questão e buscando compreender como se dão as relações que
permeiam a dinâmica familiar. Desse modo, deve-se lançar um olhar complexo
sobre essas interações, considerando que o mais importante é o direito à
convivência familiar, que deve ser garantido à criança/adolescente.

DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR OU DIREITO À VISITA?

Em nosso cotidiano profissional são muitas as inquietações com relação aos


atendimentos realizados, conforme exposto na introdução. Uma delas é o problema
da convivência familiar dentro de um esquema estipulado de visitação.
Temos observado que na disputa pela guarda dos filhos o casal tende a optar pela
guarda unilateral, que na maioria das vezes acaba atribuindo ao genitor não
guardião o direito de visita ao filho. Diante disso, levantamos alguns

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questionamentos para refletir sobre esta situação e em especial tentar definir qual a
contribuição da equipe técnica do juízo na garantia deste direito à convivência
familiar.
Considerando sumariamente que a guarda é uma prerrogativa do poder
familiar, ela está intimamente ligada ao exercício deste poder, que se exerce em
família e que deve primar, sobretudo, pelo bem estar e pela proteção daquele que é
alvo desta guarda. Sendo assim, o guardião deve pensar na proteção integral da
prole acima de qualquer outra demanda. É neste momento que a inquietação
relativa ao exercício da guarda e o direito à convivência familiar suscita alguns
questionamentos quando em nossas intervenções nos processos advindos da vara
de família.
O maior deles refere-se a uma questão paradigmática que precisa ser
esclarecida para que tenhamos maior propriedade junto a nossa intervenção. É
necessário que se reflita se o direito a que nos referimos é direito de convivência
familiar ou direito de visita.
Se observarmos mais a legislação brasileira, veremos que a convivência
familiar aparece como base legal na Constituição Federal datada de 1988 em seus
artigos 226 e 227:
Art. 226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações
Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e À
CONVIVÊNCIA FAMILIAR e comunitária, além de colocá-los a salvo
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de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,


crueldade e opressão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente datado de 1990 também traz em seu


texto a propositura da convivência familiar como um direito no artigo 19:
Art. 19 Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e
educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família
substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em
ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes.
Verificamos assim que os textos legais de maior calibre apontam a
convivência familiar como postulado para o desenvolvimento integral da criança e do
adolescente e como premissa de uma boa vinculação com a comunidade e
sociedade em geral.
De outro lado, observamos que o direito de visita ao genitor não guardião
aparece somente em 2002 com o atual código civil em seu artigo 1589:
Art. 1.589 O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos,
poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar
com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua
manutenção e educação.
Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a
critério do juiz, observados os interesses da criança ou do
adolescente.
Destacamos que o anteparo de ambas as legislações está calcado em
princípios éticos que norteiam determinadas doutrinas. No caso específico da
Constituição Brasileira o princípio da dignidade humana é o mais importante e mais
amplo deles. Este princípio diz respeito à garantia plena de desenvolvimento da
família e de todos que a compõem, “[...] para que possam ser realizados seus

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anseios e interesses afetivos assim como garantia de assistência educacional aos


filhos, com o objetivo de manter a família duradoura e feliz.” (Diniz, 2007, p. 18)
Este mesmo princípio apontado por Kant (2004) propõe que as pessoas
sejam tratadas como um fim em si mesmas e não como um meio. Se quisermos aí
traçar um paralelo entre guardiões, genitores e sua prole, podemos dizer que cada
pessoa deve ser observada como única e que as relações estabelecidas entre uns e
outros jamais é igual.
Neste sentido se tomarmos como comparativas ambas as legislações,
veremos que há uma distinção terminológica entre elas. Enquanto o Estatuto da
Criança e do Adolescente e a Constituição Federal falam em convivência familiar, o
Código Civil menciona o termo visita. Por isto suscita a pergunta: Seria o direito de
convivência familiar ou o de visita?
E não somente esta indagação, como também tantas outras passam a fazer
sentido quando confrontamos ambas as terminologias e seus significados.
Poderíamos ainda indagar: Como se estabelece este convívio?
Considerando que a convivência e a necessidade de socialização são partes do ser
humano, poderíamos dizer que nenhuma pessoa poderia viver isolada. Ninguém
prescinde do outro para tornar-se humano. Portanto a convivência é essencial ao
homem e ela só se estabelece com o ato de conviver.
Conviver, pois, é interagir, participar, socializar e isto pressupõe afeto. Não
existe convivência saudável e prazerosa se não existir afeto. Este é o primeiro
sentimento que une as pessoas. O afeto, por sua vez, também é qualidade inerente
aos seres humanos e se desenvolve a partir da relação com o outro. Pode ser
aperfeiçoado ou degradado conforme a experiência pessoal de cada um. Conforme
Valle e Guzzo (2004, p. 41) “é o afeto que a criança recebe que a estimula a atuar
no seu ambiente e o desenvolvimento infantil costuma ser proporcional à quantidade
de interações que ela vivencia”.
Portanto, afeto e convivência estão intrinsecamente associados. Em uma
relação dialética de interdependência, precisam um do outro para bem existirem e
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PODER JUDICIÁRIO
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para contribuir com um desenvolvimento humano saudável. Dentro desta


perspectiva, o ambiente familiar é considerado como essencial para propiciar essas
interações afetivas.
De acordo com Szymanski (2004, p. 7):
É na família que a criança encontra os primeiros "outros" e com ela
aprende o modo humano de existir. Seu mundo adquire significado e
ela começa a constituir-se como sujeito. Isto se dá na e pela troca
intersubjetiva, construída na afetividade, e constitui o primeiro
referencial para a formação da sua identidade.

Neste caso, como estabelecer convivência se não há uma relação afetiva, ou


ainda, como estabelecer afeto se não há convívio?
Diante deste paradoxo, imaginemos como é possível, então, que crianças e
adolescentes filhos de pais separados possam desenvolver ambas as relações, já
que, como apontado também por Winnicott (2008) o vínculo da criança com os
genitores é importante para que ela se converta em um adulto saudável e
independente. Assim, como propiciar as interações de um filho com o genitor que
não detém sua guarda, de modo a garantir a convivência familiar de forma plena?
Retomando nossa provocação inicial de tentar definir qual a contribuição da
equipe técnica do juízo na garantia deste direito à convivência familiar, foi possível
refletir com o grupo que muitas são nossas contribuições ao atuarmos junto à vara
de família em processos que envolvam guarda e direito de visita, as quais
discorreremos a seguir.
Inicialmente devemos compreender que o direito de visita é muito mais que
um mero encontro. Ele de fato diz respeito à convivência familiar, que é um direito
tanto dos genitores como dos filhos. Esta máxima deve estar sempre presente em
nossa intervenção profissional.
Para esta garantia precisamos estar atentos a algumas questões elementares
durante o processo de estudo. É necessário oferecer uma escuta qualificada aos

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membros do núcleo familiar para que não se tenha uma visão parcial da situação e
possamos compreender as motivações conscientes e inconscientes relativas ao
pedido de guarda, além de analisar as causas da separação.
Outros aspectos que devem ser ponderados no estudo referem-se ao
relacionamento atual de ambos os envolvidos, o que pode ser observado em
entrevistas conjuntas, além de individuais, assim como por meio de atendimentos
aos demais membros da família extensa. É importante também analisar como se dá
a interação dos filhos com ambos os genitores, tanto isoladamente como com a
presença de ambos.
Durante estas reflexões, o grupo teve a clareza de que o papel da equipe
técnica do juízo está bem definido, sendo ele o de subsidiar a decisão judicial.
Contudo, nosso compromisso ético político profissional faz com que estejamos
imbuídas de um sentimento ainda maior na defesa deste direito de convivência
familiar e, portanto, acreditamos que devemos ser provocadores para que esta
discussão seja ampliada e suscite o surgimento de um serviço que esteja além dos
estudos processuais propostos.
Entendemos que para a garantia deste direito de convivência familiar, assim
como está posto no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de
Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, e para que este
seja tomado como prioridade absoluta, é necessária a criação de seviços públicos
que dêem conta desta demanada. Neste sentido, talvez uma alternativa seja a
implantação de iniciativas como a Oficina de Pais e Filhos, promovido pela
Coordenadoria da Família e Sucessões do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo. O projeto parte da experiência com casais envolvidos em divórcios e
dissoluções de união estável no intuito de servir como um instrumento para a
pacificação das relações, auxiliando os pais na função de proteger os filhos
contra os efeitos danosos decorrentes da vivência na interação conjugal em
conflito, reduzindo traumas decorrentes das mudanças das relações
familiares.
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CONCLUSÃO

No decorrer deste ano, o grupo de estudos problematizou questões


relevantes da prática profissional no campo sócio jurídico, almejando refletir sobre as
práticas cotidianas, construindo um saber profissional alicerçado sob a ótica da ética
e da justiça. É importante frisar que, por mais esmero que tratemos este trabalho
final, dificilmente ele conseguiria contemplar a riqueza de nossas discussões em
grupo, que são muito mais vivas e dinâmicas que o texto escrito.
A demanda do setor psicossocial em Varas de Família nos coloca em um
local privilegiado de trabalho que permite abordar aspectos teóricos, legais e
práticos para amenizar e minimizar os conflitos instalados, quando possível. Porém,
esta não é tarefa fácil, uma vez que se tratam de conflitos familiares que
transcorrem, principalmente, na dimensão de relacionamentos entre pais e filhos.
Por isso, procuramos este ano, com o olhar focado na guarda e em algumas
de suas múltiplas implicações, aprofundar esta temática. Podemos afirmar, sem
sombra de dúvidas, que o trabalho deste grupo de estudo, tem contribuído para
formar profissionais mais conscientes de sua atuação, além de ser um espaço para
compartilhamento de angústias, preocupações, dúvidas e anseios e construção
coletiva de conhecimento.
Este trabalho final nos permite compilar a trajetória anual do grupo que
reafirma concepções acerca de temas que permeiam as demandas de Varas de
Família e Sucessões e sob o viés psicossocial, tendo em vista a atuação
interdisciplinar das duas áreas de conhecimento.
Na construção deste artigo, primeiramente destacamos o tema da “Guarda
como Instituto Jurídico”, apresentando a construção social e evolutiva do conceito de
família, que atualmente demanda de aparatos legais para buscar resolução de
litígios comumente frequentes, devido aos novos arranjos familiares que se
estabelecem. Portanto, apresentamos os tipos e formas de guarda para assegurar o

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instituto protetivo, bem como as possibilidades das famílias regularizarem a posse


de fato.
Ainda dentro do Instituto da Guarda, consideramos fundamental o
aprofundamento do estudo da guarda compartilhada. Para tanto, trabalhamos a
“Guarda Compartilhada como possibilidade”, estudando a legislação, o conceito e
debatendo, a partir de estudos concretos, a aplicabilidade, inclusive ressaltando que
ainda não há consenso entre os magistrados quando é juridicamente possível apor
esta modalidade para melhor resolução dos conflitos e primar pelo maior interesse
das crianças e adolescentes.
Aprofundamos o conhecimento sobre “A alienação parental: guarda
adoecida”, realizando leitura da legislação vigente e compreendendo os conteúdos
que devem constar nos laudos periciais. Também ressaltamos no texto a
importância de ações preventivas, as formas de identificação e os procedimentos
pós-judicialização. Ao estudar a Síndrome da Alienação Parental (SAP) entendemos
que com a banalização do conceito de síndrome, a patologia parece se tornar a
regra e não a exceção.
Ao tratar o tema da regulamentação de visitas, o grupo enfatizou em “Direito à
convivência familiar ou direito à visita?” as variantes da família e a importância de se
analisar a dinâmica familiar e a interação entre as partes e entre filhos e genitores.
Assim, tratamos do tema como prioridade para defesa e proteção dos direitos das
crianças e adolescentes destacando o compromisso ético-político profissional da
equipe técnica para a consolidação deste direito.
Acreditamos que as questões que envolvem Vara de Família (não apenas as
abordadas neste texto, mas muitas outras) nos convocam ao desafio de repensar
criticamente, a cada dia, nossa postura e intervenção profissional, a fim de subsidiar
adequadamente a decisão judicial, mas além disso, de garantir o melhor interesse
da criança e do adolescente envolvido na questão.

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PODER JUDICIÁRIO
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“Considerações sobre Alienação Parental”

GRUPO DE ESTUDO DO INTERIOR – LIMEIRA – “A


PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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COORDENADORAS

Rosângela Aparecida Blumer - Psicóloga Judiciária da Comarca de Limeira


Clarice Ana Kruger Gerber - Assistente Social Judiciária da Comarca de Limeira

AUTORES

Adriana Fabrício Melão - Assistente Social Judiciária da Comarca de Araras


Ana Paula Medeiros – Psicóloga Judiciária da Comarca de Limeira
Beatriz do Prado Vitali - Assistente Social Judiciária da Comarca de Araras
Carolina de Lima Sampaio – Assistente Social Judiciária do Fórum Distrital de Rio
das Pedras
Carolina Meira Cavalcante - Assistente Social Judiciária da Comarca de Santa
Bárbara D’Oeste
Clarice Ana Kruger Gerber - Assistente Social Judiciária da Comarca de Limeira
Fernanda Loureiro Omena Pereira – Psicóloga Judiciária da Comarca de Brotas
Flávia Bortoleto Ortolani – Assistente Social Judiciária da Comarca de Cerquilho
Francine Renata Papani – Psicóloga Judiciária da Comarca de Campinas
Mafalda Regina Serra - Assistente Social Judiciária da Comarca de Nova Odessa
Maria Gardênia R. de Gouveia - Assistente Social Judiciária da Comarca de Araras
Patrícia C. de Toledo Mantovani - Psicóloga Judiciária da Comarca de Limeira
Rosângela Aparecida Blumer – Psicóloga Judiciária da Comarca de Limeira
Sandra Alcalde Avanzi – Assistente Social Judiciária da Comarca de Americana
Shirlei de Paula Bonifácio – Psicológica Judiciária da Comarca de Americana
Valéria Barbosa – Assistente Social Judiciária da Comarca de Limeira
Valéria Cristina Pereira Verzignasse – Psicóloga Judiciária da Comarca de
Americana
Valeska Teixeira dos Santos - Psicóloga Judiciária da Comarca de Mogi Mirim

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"Se não vejo uma criança, é porque alguém


a violentou antes, e o que vejo é o que
sobrou de tudo que lhe foi tirado. Essa que
vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa,
cama e comida, essa que vive a solidão das
noites sem gente por perto, é um grito, é um
espanto. Diante dela, o mundo deveria parar
para começar um novo encontro, porque a
criança é o princípio sem fim e o seu fim é o
fim de todos nós".

(Betinho - Herbert de Souza)

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PODER JUDICIÁRIO
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INTRODUÇÃO

Esse foi o segundo ano que o grupo estudou um tema referente à Vara Cível.
Anteriormente, por seis anos nosso grupo de estudos teve como foco “O Trabalho
Interdisciplinar nos casos de Adoção”, debatendo sobre os diversos subtemas
relativos à situação de adoção (o Conceito de Família, o Mito do Amor Materno, a
Destituição do Poder Familiar, a Avaliação dos Pretendentes à Adoção, o
Desacolhimento e a Colocação da Criança em Família Substituta, entre outros);
sempre tendo como foco principal o trabalho desenvolvido cotidianamente pelos
Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários na Justiça da Infância e Juventude.
No ano de 2013 o tema eleito pelo grupo foi a atuação dos Assistentes
Sociais e Psicólogos Judiciários nas Varas Cíveis (Família), uma vez que a
totalidade dos integrantes do nosso grupo trabalha em Comarcas do Interior do
Estado de São Paulo, nas quais, infelizmente, são raras as Varas Especializadas de
Infância-Juventude e de Família; onde geralmente temos Varas Cumulativas Cível,
Criminal-Infância e Juventude. Nestes locais, é muito comum a atuação solitária ou
de reduzidíssimo número de técnicos judiciários, além de muitas dessas cidades
apresentarem alto índice populacional e como consequência o elevado e crescente
número de processos em tramitação em seus respectivos Fóruns.
As discussões sobre a atuação da equipe interprofissional na área cível levou-
nos à reflexão de nosso papel enquanto peritos, considerando tanto aspectos de
ordem técnicas quanto éticas. Ao nos atentarmos para questões subjacentes aos
processos de separação litigiosa, de guarda ou modificação de guarda de filhos, de
regulamentação de sistema de visitas, uma especialmente nos chamou a atenção
em virtude das crescentes reclamações nos autos: a possível existência da
Síndrome de Alienação Parental (SAP).
Assim, dando sequência às discussões, esse foi o tema eleito pelos
integrantes do grupo como objeto de trabalho no ano de 2014, sempre levando em
consideração nossa prática profissional inserida em um contexto interdisciplinar. A
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fim de introduzir a temática foi estudado e discutido o livro “Síndrome da Alienação


Parental – um novo tema nos juízos de família”, de Analicia Martins de Sousa,
publicado em 2010 pela Cortez Editora.
O livro é resultado de uma dissertação de mestrado na área da psicologia
social, que procura realizar uma revisão bibliográfica sobre a temática desde sua
origem, englobando uma visão sócio-histórica. Além disso, procura-se investigar a
inserção da alienação parental na realidade brasileira.
Alguns documentários e textos complementares a respeito da legislação e
sobre mediação e conciliação também subsidiaram nossos debates e a elaboração
do presente artigo.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO

Este estudo tem como principal intenção expor ao leitor algumas ideias do
livro “Síndrome da Alienação Parental”, de Analicia Martins de Sousa, utilizado pelo
grupo como disparador das discussões referentes ao tema.
A Síndrome da Alienação Parental foi proposta inicialmente pelo psiquiatra
norte-americano Richard Gardner (1931/2003). Baseadas em sua teoria, diversas
associações de pais separados iniciaram um processo de difusão do tema no Brasil,
sobretudo a partir de 2006. Diante deste quadro, a autora realizou uma pesquisa de
mestrado sobre o tema, que deu origem ao mencionado livro. É importante destacar
que este livro não busca confirmar a presença da SAP, mas sim conhecer as origens
desta teoria e questioná-la, em decorrência das diversas controvérsias e da
ausência de cientificidade dos estudos de Gardner.
Primeiramente, é preciso destacar que no momento em que esta pesquisa foi
realizada havia um projeto de lei (PL 4.053/08) que visava diminuir, ou sanar, os
casos de SAP neste país. Em decorrência deste projeto, em 26 de agosto de 2010,

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foi sancionada a Lei nº12.318, que dispõe sobre a alienação parental, definindo-a
como:
Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por
um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou
adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que
repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculos com este. (Art. 2º, BRASIL, 2010).

Destaca-se que a Lei nº12.318/10 trata do tema sem defini-lo como síndrome,
diferentemente do que foi preconizado pela teoria de Gardner. Para este autor, a
SAP “seria um distúrbio infantil que ocorreria especialmente em menores de idade
expostos às disputas judiciais entre seus pais” (SOUSA, 2010, p. 15). Além disso, a
SAP ocorreria quando há uma tentativa de exclusão, sem justificativa, por parte de
um dos responsáveis em relação ao outro, sendo que o distúrbio resulta de uma
soma entre esta manipulação e a colaboração da criança no ato de excluir o outro
genitor. Ainda, a SAP seria resultado de aspectos individuais e psicológicos
resultantes do litígio conjugal, ideia questionada por outros autores.
Gardner também compreendia que os profissionais atuantes nos juízos de
família necessitavam conhecer de modo aprofundado a SAP, de forma que ele listou
sintomas que poderiam ser utilizados para a sua identificação, como: difamação do
genitor, incoerência no discurso, apoio ao genitor alienador e argumentação
emprestada deste genitor. Assim, os profissionais deveriam, após diagnosticar a
SAP, propor tratamentos que envolvessem a imposição de psicoterapia, chamada
de “terapia da ameaça” (ESCUDERO; AGUILAR; CRUZ, 2008, p. 303), além de
outras medidas mais extremas, como a mudança de guarda, redução do valor da
pensão alimentícia, utilização de transmissores eletrônicos para rastrear a
comunicação entre genitor alienador e criança e, em casos extremos, a detenção do
alienador.

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Deve-se destacar que o intuito de Gardner seria o de comprovar a existência


de uma síndrome e, embora o psiquiatra norte-americano “tenha se empenhado em
difundir sua teoria sobre a SAP por meio da publicação de inúmeros livros e artigos,
não empreendeu pesquisa científica sobre o assunto” (SOUSA, 2010, p. 12). Por
isso a decisão da autora em refletir e realizar um exame cuidadoso acerca da
existência, ou não, da mencionada síndrome, bem como ao que e a quem serviria a
proliferação deste discurso dominante.
Ressalta-se que o mencionado autor não conseguiu confirmar empiricamente
seus estudos, embora objetivasse a comprovação da existência da SAP com a sua
divulgação em manual médico, fato que não ocorreu com a publicação do mais
recente Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais - DSM-V, ocorrida,
na versão em português, em 2014 (APA, 2014).
Gardner, assim como os autores brasileiros que buscaram difundir suas ideias
sobre a SAP, desconsideraram em suas análises aspectos importantes que
perpassam o contexto de separação conjugal como: as questões de gênero, as
construções históricas dos papéis parentais e o tratamento jurídico e legal
dispensado a homens e mulheres ao longo dos tempos.
Estudiosos sobre o rompimento conjugal apontam a separação do casal como
sendo por si só um evento que gera sofrimento em seus membros, podendo
tornar-se ainda mais complexo quando se tem filhos envolvidos. É bastante comum,
nas diversas pesquisas sobre a temática da separação conjugal e guarda de filhos,
os autores já identificarem uma intensa relação que pode ser estabelecida entre os
filhos e aquele genitor que lhe dispensa maiores cuidados e dedicação, em relação
ao outro genitor, após a separação do casal. Esses autores denominaram tal
fenômeno com diferentes expressões, sendo as mais utilizadas: “aliança”,
“alinhamento”, “cisma”, “coalisão” e “discórdia”. Diferentemente de Gardner, esses
autores buscaram relacionar diversos fatores que contribuiriam para a existência
desses comportamentos, indo além da mera volição individual dos envolvidos.

459
PODER JUDICIÁRIO
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Além dos aspectos individuais, fortemente divulgados, “(...) existem outros,


que dizem respeito ao campo jurídico e à tradição cultural, nos quais os atores
sociais encontram-se inseridos (...) [desse modo] o encaminhamento das mudanças
que se seguem à separação do casal não depende exclusivamente de uma
disposição pessoal dos pais” (SOUSA, 2010, p. 30), como querem aqueles que
defendem a existência da SAP.
No entendimento da pesquisadora Analicia Martins, este fenômeno de
alinhamento comum nos casais que possuem filhos e se separam parece ter
transmutado em uma síndrome que visa mais patologizar e individualizar a
problemática que compreendê-la para preveni-la:

Especificamente no que concerne a SAP, é fundamental que se


coloque a questão: o que fez com que nos últimos anos essa
síndrome ganhasse tanta notoriedade no sistema de Justiça e entre
especialistas do campo psi, não só nos EUA, mas também em
diversos países? (SOUSA, 2010, p. 92).

Entretanto, na atualidade existem algumas tendências que vão ao encontro


destes argumentos levantados por seguidores das ideias de Gardner, a saber:
psicologização e psiquiatralização dos comportamentos tidos como “desviantes” e
como exceções à regra; patologizando e individualizando condutas decorrentes de
complexas imbricações que culminam com o afastamento de um dos genitores da
vida da criança após a separação do casal. Outra tendência presente em nossa
sociedade é a de punir os indivíduos tidos como doentios, sendo consenso a adoção
de medidas coercitivas como os principais instrumentos inibidores da ocorrência da
SAP.
Apreendemos desta análise que as condições histórico-culturais, econômicas
e políticas ficam excluídas da reflexão sobre a problemática, e, somente o dado
psicológico é considerado neste contexto. Vive-se um momento fecundo na

460
PODER JUDICIÁRIO
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contemporaneidade quanto à proliferação de discursos sobre novas síndromes,


numa espécie de “sindromização” do sofrimento humano e de patologização de toda
sorte de comportamentos.

Se a teoria de Gardner tem algum mérito, por certo, é o de confirmar


a associação entre esses saberes [(psiquiatria e justiça)], que ao
longo do tempo tem se mostrado estratégia eficaz de controle social.
Contribuindo, dessa forma, para a manutenção de um status quo
(SOUSA, 2010, p. 94).

Além disso, a disseminação de um novo termo, de fácil identificação e que


causa forte impacto nos cidadãos conquista muitos adeptos, ou talvez,
consumidores do conceito de SAP ou Alienação Parental, como ocorre no Brasil,
sem que haja uma discussão mais aprofundada, sequer, acerca da diferenciação
existente entre os referidos termos.
A fim de contribuir com tal reflexão crítica, a autora faz um apanhado de
ideias de diversos autores que não mencionam as terminologias SAP e alienação
parental, mas as situações que se referem à conjugalidade e parentalidade, aliança
dos filhos com o guardião, contendas no litígio de família, e os discursos na
sociedade contemporânea moderna sobre a existência de um instinto materno. Em
nosso entendimento, estes aspectos não foram aprofundados pela autora nesta
obra, mas podem indicar alguns caminhos para novas leituras e estudos pelos
profissionais interessados.
A insuficiência de redes sociais de apoio a essas famílias, bem como a
ausência de políticas públicas e legislações que busquem dar suporte efetivo às
relações parentais após o rompimento conjugal, não parecem ser relevantes aos
autores nacionais que trataram da SAP, bem como aos nossos legisladores quando
promulgaram a Lei de Alienação Parental sem a devida discussão e aprofundamento

461
PODER JUDICIÁRIO
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da temática que, no Brasil, se desvencilhou das polêmicas e simplificou-se a ponto


da alienação parental ser confundida e divulgada como SAP.
Além disso, a própria contenda nos juízos de família investidos pelo modelo
adversarial propicia a disputa entre os consortes, saindo um deles vitorioso ao final
da lide e o outro derrotado, sendo prejudicial, sobretudo, aos infantes. Também o
tempo transcorrido desde a decisão dos consortes pela separação até o momento
da decisão judicial quanto à guarda dos filhos, por si só já é prejudicial, assim como
o fato da prevalência da guarda unilateral, que coloca o não detentor da guarda na
posição de mero visitador e contribuidor financeiro do sustento do filho.
Diante disso, a autora aponta que algumas equipes de psicologia do poder
judiciário perceberam como inadequada a realização de avaliações individuais dos
membros do grupo familiar visando analisar quem possui o melhor repertório de
cuidados com os filhos, “e passaram a privilegiar a dinâmica relacional da família,
buscando os recursos próprios a cada contexto familiar para resolução do conflito
vivido” (SOUSA, 2010, p. 36).

DISCUSSÕES REALIZADAS PELO GRUPO

A ideia original do grupo era a de conhecer as melhores formas de avaliação


para casos em que ocorreriam a Síndrome de Alienação Parental. A partir da leitura
do livro utilizado como base, ao longo do ano, questionou-se a existência desta
Síndrome. O grupo adquiriu um novo olhar sobre a temática, compreendendo que a
ocorrência da alienação parental não deve ser atrelada à presença de uma
síndrome, cuja existência não foi comprovada até o momento.
Com relação ao livro utilizado como base, trata-se de uma revisão
bibliográfica que faz constantes referências à teoria de Gardner. O grupo não leu
diretamente os textos deste autor. Por este motivo, ressalta-se que o grupo tomou
conhecimento a respeito desta teoria por meio do olhar apresentado no trabalho da
pesquisadora Analicia Martins de Sousa.
462
PODER JUDICIÁRIO
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Utilizando como disparador das discussões o livro da mencionada autora, o


grupo sentiu a necessidade de buscar outras fontes de informação sobre o tema,
que enriquecessem a discussão. Assim, foi de grande importância tomar
conhecimento da Lei que dispõe sobre a alienação parental no Brasil, uma vez que é
essa publicação que norteia as discussões judiciais que envolvem o ato de alienar.
Pontuou-se que a aprovação desta Lei pode ter sido falha no sentido de que ocorreu
antes da realização de reflexões a respeito da existência, conceituação e
problematização da SAP.
No Brasil, muitas publicações a respeito deste tema são oriundas das
Associações de Pais Separados, o que pode torná-las tendenciosa, tendo em vista
que os autores podem sofrer influências pessoais que interferem na construção dos
trabalhos. Desta maneira, seria necessária a realização de pesquisas promovidas
por estudiosos da área, a fim de analisar a temática em uma perspectiva cientifica.
O documentário de Alan Minas, “A morte inventada”, tem como objetivo
disseminar discussões a respeito da alienação parental, sobretudo para promover o
conhecimento dos profissionais que trabalham com esta temática. Este
documentário utiliza relatos de vítimas já adultas, que sofreram com o afastamento
de um dos genitores, provocado pelo outro, durante a infância. Com isso, pode-se
observar as consequências relatadas por estas vítimas, que vão desde o
ressentimento pelo alienador até a dificuldade de relacionamento na fase adulta
(MINAS, 2009).
A partir do contato com este documentário, com os dizeres de Gardner e com
a legislação brasileira, o grupo discutiu a respeito das intervenções realizadas
quando se é detectado um caso de alienação parental. Foi possível observar que
Gardner defende que sejam promovidas intervenções punitivas e coercitivas ao
alienador, muitas vezes resultando no afastamento deste com a criança. O grupo,
então, realizou discussões no sentido de refletir as possíveis consequências à
criança deste afastamento, de modo que ocorreria um prejuízo duplo: pela alienação
em si e pelo distanciamento do genitor com quem possui um vínculo.
463
PODER JUDICIÁRIO
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Desta maneira, o grupo entende, a priori, que o trabalho a ser realizado com
os envolvidos seria por meio de técnicas psicoterapêuticas, que poderiam auxiliá-los
a um melhor manejo da situação em que estão inseridos. O grupo também destacou
a necessidade de que sejam realizados, com o auxílio da rede multidisciplinar,
trabalhos preventivos, que promovam a sensibilização dos pais no sentido de que o
término da conjugalidade não representa o término da Parentalidade e, por
consequência, acarretem na diminuição de divórcios litigiosos.
Vala ressaltar que a teoria da alienação parental é nova e a escassez de
estudos dificulta uma análise ampla e aprofundada do tema, sobretudo no que tange
às intervenções e interlocução com o Judiciário. Assim, é possível realizar uma
crítica a Gardner, que generaliza as consequências da SAP e não considera a
individualidade e o contexto em que cada um está inserindo, deixando de analisar
que a presença de consequências dependerá de diversos fatores.
Diante destas ideias, pode-se compreender a necessidade de uma reflexão
crítica a respeito da real existência da SAP. Todavia, dizer que a síndrome não
existe não significa excluir a presença do fenômeno da alienação parental, que pode
ser entendido como “atos praticados pelo guardião do menor, com o objetivo de
afastá-lo do convívio do genitor não guardião e demais familiares” (AZEVEDO, 2012,
não paginado), e que não deve ser negada em nossa prática de trabalho.
O grupo compreende que os estudos realizados neste ano foram proveitosos
por terem proporcionado uma aproximação entre os profissionais e as discussões
que permeiam a alienação parental. Porém, tais conclusões remetem a uma
necessidade de que o grupo aprofunde o tema, promovendo outras reflexões.

464
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (2014). DSM-V: Manual diagnóstico e


estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Editora Artmed.

AZEVEDO, Luiz Paulo Queiroz e. Análise crítica da lei de alienação parental em face
da eficácia dos meios alternativos de solução de conflitos familiares. Jus Navigandi,
Teresina, ano 17, n. 3402, 24 out. 2012. Disponível em http://jus.com.br/artigos/22882.
Acesso em: 04 ago. 2014

BRASIL. Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e


altera o art. 236 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm. Acesso em: 25
ago. 2014.

ESCUDERO, A.; AGUILAR, L.; CRUZ, J. La lógica del síndrome de alienación


parental de Gardner (SAP): “terapia de la amenaza”. In Revista de la Asociación
Espanõla de Neuropsiquiatría, v. XXVIII, n. 102, 2008, p. 263-526.

MINAS, A. A morte inventada. [Documentário]. Produção de Caraminhola. Direção


de Alan Minas. Brasil, 2009, 80 min.

SOUSA, Analicia Martins de. Síndrome de Alienação Parental – um novo tema nos
juízos de família. São Paulo. Cortez Editora, 2010

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REPERCUSSÕES DA TECNOLOGIA NA CONSTRUÇÃO DA


SUBJETIVIDADE DOS SUJEITOS E AS IMPLICAÇÕES NAS
RELAÇÕES FAMILIARES.

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – MARÍLIA –


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014

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COORDENADORAS:
Maristela Colombo – Psicólogo Judiciário – Chefe - Seção Técnica do Serviço de
Atendimento Psicossocial – Comarca de Marília
Mara Cristina Lourenço Lara Leite Pavanello – Psicólogo Judiciário – Seção Técnica
de Serviço Psicossocial da Comarca de Marília

PARTICIPANTES:

Adriana Felipov – Psicólogo Judiciário – Comarca de Marília


Berenice de Lara Silva – Psicólogo Judiciário – Comarca de Marília
Carlos David de Freitas - Psicólogo Judiciário – Vara da Infância e Juventude –
Comarca de Marília
Carmen Silvia Righetti Nobile – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cândido
Mota
Cirene Pereira Alves – Psicólogo Judiciário – Comarca de Marília
Cleia Leila de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de Getulina
Deisiane Orben Lopes – Psicólogo Judiciário – Comarca de Avaré
Edna Maria Chaves – Assistente Social Judiciário – Seção Técnica do Serviço de
Atendimento Psicossocial – Comarca de Marília
Eliana Aparecida G. Albonette Frois – Assistente Social Judiciário - Comarca de
Garça
Gislaine Fátima Sbaraglini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Getulina
Janice Maria do Prado - Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Madalena Balbo Barbosa – Assistente social Judiciário – Comarca de Pompéia
Maria Abigail Farinazzi – Assistente Social Judiciário – Seção Técnica do Serviço de
Atendimento Psicossocial – Comarca de Marília
Maria Aparecida Pareschi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cândido Mota

Nanci Adelina Rocha Kurata - Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e


Juventude – Comarca de Marília
Paula da Cruz Moscão – Psicólogo Judiciário – Comarca de Avaré
Simone Salete Longo Zelonh – Psicólogo Judiciário – Comarca de Avaré
Valeska dos Santos Juliotti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Getulina
Walkíria Rodrigues Duarte – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pompéia
Zoraida Martins Espinoza Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Avaré

467
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

As transformações das relações sociais, as mudanças socioeconômicas, o


crescimento da tecnologia e a informatização, a reestruturação do mercado e das
relações de trabalho, entre outros fatores, contribuíram para o surgimento de novas
configurações de família.
Os papéis sociais exercidos no contexto familiar foram se reconfigurando,
influenciados pelo processo de reestruturação produtiva do mercado e dos
sucessivos momentos de crise.
No grupo de estudos dos assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo realizado na comarca de Marília, era recorrente a discussão
sobre as questões da informatização no mundo atual. Assim, surgiu neste ano de
2014, a necessidade de nos aprofundarmos sobre o tema para compreender como
as relações se constroem frente a essa nova modalidade tecnológica denominada
informatização.
Nossos questionamentos e preocupações passavam pelas influências e
modificações da sociedade atual, frente à exposição a essas novas tecnologias da
informação. O desejo era refletir sobre os diferentes usos dessa nova ferramenta,
nas relações pessoais, sociais e familiares, na educação, no trabalho, nos espaços
públicos e privados.
Embora seja visível que nossa sociedade esteja em constante mutação, e em
velocidade assustadora, não parece ser tão fácil perceber as mudanças internas e
mais profundas que estão ocorrendo nos homens e mulheres desta virada de século
e de milênio.

468
PODER JUDICIÁRIO
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HISTÓRIA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO

Desde a pré-história os homens têm procurado entender o Universo e


transformar o meio ambiente em que vivem, valendo-se das disponibilidades
materiais e dos fenômenos naturais que ocorrem na Terra, no sentido de atenderem
os seus desejos mais profundos - viver mais, trabalhar menos e com menor esforço
físico, não sofrer (principalmente não sentir sede, fome e dor), ter mais prazer
(tempo disponível para o lazer), preservar a espécie e ter poder para impor a sua
vontade em situações de conflitos individuais ou coletivos (LONGO, 2003).
No início, as transformações provocadas pelo homem eram extraordinariamente
lentas; inovações capazes de modificar significativamente o status quo das
sociedades ocorriam raramente, às vezes espaçadas de séculos, de tal modo que,
ao longo de uma vida, tudo parecia definitivo: hábitos, costumes, profissões, divisão
do poder, etc.
Gradativamente, já ao longo da Idade Média e da chamada Idade Moderna
até o início da Revolução Industrial, as mudanças sociais causadas pelas inovações
começam a se tornar mais frequentes e profundas.
A partir da segunda metade do Século XIX, as transformações produzidas pelo
homem foram extraordinariamente aceleradas, resultado da organização e
sistematização do trabalho voltado para o uso de conhecimentos científicos na
produção de tecnologias que resultassem em novos ou melhores produtos e
serviços que satisfizessem os seus desejos centrais e suas necessidades imediatas.
Desde então, o conhecimento científico deixou de ser um bem meramente
cultural para tornar-se insumo importante, senão o mais estimado, para a geração
de inovações tecnológicas (LONGO, 1989).
Longo (1989), afirma que a ciência (que tem por objetivo desvendar e explicar os
fenômenos da natureza) e a tecnologia (que visa transformar a natureza no sentido

469
PODER JUDICIÁRIO
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de atender desejos e necessidades humanas) percorreram caminhos distintos até o


Século XIX.
No Século XX, a partir da Segunda Grande Guerra, a ciência e a tecnologia
passaram a fazer parte central das políticas e estratégias nacionais dos países mais
desenvolvidos. As alterações ambientais e comportamentais resultantes da
introdução contínua de inovações tecnológicas são de tal magnitude que as
instituições sociais em geral - inclusive a família - muitas vezes, não têm conseguido
acompanhá-las e adaptar-se às mesmas, o que vem causando sérias crises.
Assim, estabelece-se um descompasso entre a nova realidade social resultante do
avanço científico e tecnológico e a capacidade de adaptação dos cidadãos e de
reação e reorganização dos grupos ou entidades sociais para o trato dessa nova
realidade.
É preciso ter presente que novas tecnologias podem alterar hábitos, valores,
prioridades e a própria visão que o homem tem de si mesmo e do mundo, exigindo,
em consequência, novas regras de convivência social e, certamente, novas práticas
profissionais, nova educação para os jovens e atualização contínua para os adultos.

CONSIDERAÇÕES DE MARCUSE SOBRE A TECNOLOGIA

Para Marcuse, vivemos na era da sociedade da técnica, do progresso técnico,


que oferece aos homens uma confortável falta de liberdade na medida em que nega
individualidades, mas oferece comodidades [...] Criam-se falsas necessidades
materiais e intelectuais aos indivíduos que propiciam uma aparente sensação de
felicidade, mas que, no entanto, perpetuam a “labuta, a agressividade, a miséria e a
injustiça” (MARCUSE,1978, p. 26).
Segundo Marcuse, até mesmo sensações como o amor e o ódio são
manipulados pelo interesse social predominante, no caso, o interesse da sociedade
industrial. Há uma falsa sensação de liberdade criada por meio de comodidades
oferecidas pelo desenvolvimento da tecnologia.
470
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Em Ideologia da Sociedade Industrial, Marcuse nos fala que o


desenvolvimento extremo da tecnologia junto com a contestação da sociedade pelos
marginalizados deverá ter efeitos revolucionários, muito embora a sociedade atual
que tem como base a tecnologia, percebendo este potencial revolucionário, tenta
incansavelmente evitar este avanço - não da tecnologia, mas do potencial
revolucionário que nela pode surgir.
Para o autor, fica a ideia de que a tecnologia pode ajudar na desalienação do
homem, na medida em que poderia libertar o homem do “mundo do trabalho, de
necessidades e possibilidades alheias a ele; ficaria livre para exercer autonomia
sobre uma vida que seria sua” (MARCUSE, 1978, p. 24).
Todavia opera o oposto, usa-se a tecnologia para tapar os olhos de homens e
mulheres para seu reconhecimento como seres alienados, com seu “confortável”
avanço técnico e assim, faz com que continuem “encantados” e menos libertos.
No período contemporâneo, os controles tecnológicos parecem ser a própria
personificação da Razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais - a tal
ponto que toda contradição parece irracional e toda ação contrária parece
impossível. (MARCUSE, 1978, p. 30).

TECNOLOGIA E A HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL

Consideramos útil, nesse artigo, conhecer a história da vida privada no Brasil


para entender o contexto onde se estabeleceu essa revolução tecnológica.
Historicamente falando, a tecnologia começou a inserir-se no Brasil por volta de
1950 com mudanças em outros aspectos que tinham relação com o posterior
advento da mesma.
A percepção do Brasil como um país “do futuro”, sempre nesse tempo verbal
que não se cumpria satisfatoriamente, foi colocada em uma perspectiva mais
próxima quando, na década de 50, chegaram ao país algumas comodidades
proporcionadas pela tecnologia que já estavam disponível há mais tempo em países
471
PODER JUDICIÁRIO
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da Europa e particularmente nos Estados Unidos. Essa expectativa de entrada na


era da modernidade iria se reverter no final da década de 1970, trazendo uma
profunda desilusão.
Por volta de 1950, o Brasil começava a mostrar uma face de pujança, em
meio ao seu parque industrial que o inseria na economia moderna: aço, petróleo,
gasolina, óleo diesel, asfalto. Centrado neste leque, via-se também o aumento do
sistema rodoviário, integrando melhor um país de dimensões continentais.
No Brasil, começaram a entrar em cena também alguns cuidados com a
mulher, já incorporados na sociedade americana: produtos de beleza vendidos porta
a porta – como a Avon, absorventes higiênicos substituindo os “paninhos”, cuja
marca principal viria a ser identificada como sinônimo do produto – Modess, sabão
em pó, escova e pasta de dentes. Tudo isto causaria um impacto no setor de
higiene, modificando os hábitos de consumo, por sua praticidade.
A sociedade brasileira começava a buscar referências no estilo de vida
americano, o american way of life. Antes disto, nossa massa formadora de opinião
se referenciava na França, com seu modo europeu mais discreto e austero. O
vestuário, até então, quase todo feito sob medida, começou a ser produzido em
massa.
A indústria automobilística se instalou no país alavancando consigo outros
setores, como a agricultura. Métodos mais modernos de cultivo, com o emprego de
tecnologia nos implementos agrícolas e adubos, começaram a provocar uma
mudança na paisagem social do Brasil. Com a modernização tecnológica do campo,
a estrutura se modificou de forma impactante, milhões de pessoas se deslocaram do
campo para a cidade. Naquele momento de crescimento urbano e industrial, essa
mão de obra despreparada para o novo trabalho possível, assumiu novos postos na
cidade, modificando a estrutura social e a face das regiões em desenvolvimento
mais acelerado.
O progresso era medido entre os brasileiros pela maior capacidade aquisitiva
de bens de consumo, dentro dos padrões americanos. Alguns importantes
472
PODER JUDICIÁRIO
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benefícios passam a ser oferecidos no trabalho nas indústrias ou nos serviços


organizados, como direitos trabalhistas, jornada de oito horas diárias, férias
remuneradas entre outros. A vida familiar, antes organizada de forma patriarcal, com
participação ativa da família extensa na criação dos filhos, se modificou, com a
mulher assumindo novos postos de trabalho. A visão “econômica” do produto
“homem” era o que havia prevalecido até então, acima mesmo de resistências
culturais baseadas na tradição.
Com o advento da modernidade, o país do futuro pavimentava seu caminho,
buscando a construção da experiência de “nação” brasileira. Ainda não seríamos
bem sucedidos, calcados em um modelo estereotipado americano.
O período autoritário representado pelo governo militar a partir de 1964,
moldou ainda uma forma eficaz de garantir a dominação dos ricos e privilegiados: a
indústria cultural americanizada. A americanização da publicidade brasileira tem um
papel fundamental na difusão dos padrões de consumo moderno e dos novos estilos
de vida. A nova classe média está plenamente integrada aos padrões de consumo
moderno de massas, de alimentação, de vestuário, de higiene pessoal. Tem todas
as maravilhas eletrodomésticas, hospeda-se em hotéis razoáveis, tem maior acesso
aos bens de consumo.
As décadas seguintes foram marcadas pelos reflexos de uma euforia inicial,
quando se achava que faltaria pouco para o país chegar à modernidade. A partir dos
anos 1980, esse alegre otimismo, foi revertido: “as dúvidas quanto a possibilidades
de construir uma sociedade efetivamente moderna tendem a crescer e o pessimismo
ganha, pouco a pouco, intensidade” (NOVAIS, 1998, P.560).
O Brasil entra em grave recessão econômica e as diferenças sociais entre
ricos e pobres, nos dão o título de país das desigualdades sociais. Por três décadas
tivemos um crescimento econômico rápido, mobilidade social e padrões de consumo
moderno, para posteriormente (1998) descobrir as fragilidades econômicas do nosso
capitalismo periférico, sobre as quais assentamos nossa vida social, a permanência

473
PODER JUDICIÁRIO
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do caráter plutocrático do Estado Brasileiro mesmo depois da “abertura democrática”


(Novais, 1998).
Com a globalização faltam empregos e a mobilidade torna-se descendente,
muitos sofrem o rebaixamento de seu padrão de vida e nível de consumo.
Consequentemente, acirra-se a concorrência. A competição exacerbada, selvagem,
transforma a violência num recurso cotidiano para a sobrevivência. O Brasil atinge
índices de violência nunca antes imaginados, refletindo as desigualdades
escandalosas que insistem em denunciar nossa fragilidade e contradições.
A vida em família não é mais governada pelo passado, pela tradição, senão
pelo futuro, pela ascensão individual, traduzida antes de tudo pela corrida ao
consumo. Estamos diante de uma família sitiada pela vida cada vez mais
competitiva, pelos falsos valores tanto do mercado desregulado e selvagem como
dos meios de comunicação de massas. Sitiada pela difusão crescente das drogas,
um meio cada vez mais empregado para escapar de um mundo sem sentido, sem
futuro e insuportável. Os pais ficam sem parâmetros que regulem o comportamento
social de seus filhos, há ausência de valores nos quais possam se apoiar. Esta é a
origem social das patologias da vida privada.
Chegamos enfim ao paradoxo: o individualismo tão exaltado leva ao
esmagamento do indivíduo como pessoa, isto é, à perda de qualquer horizonte de
vida fora da competição selvagem e implacável do consumismo exacerbado.

AS INFLUÊNCIAS DA TECNOLOGIA NA INDÚSTRIA CULTURAL

Theodor Adorno21 chamou de indústria cultural a exploração da arte com


fins econômicos, na qual a racionalidade da técnica identifica-se com a identidade

21
A Filosofia de Theodor Adorno, considerada uma das mais complexas do século XX, fundamenta-
se na perspectiva da dialética. Uma das suas importantes obras, a Dialética do Esclarecimento,
escrita em colaboração com Max Horkheimer durante a guerra, é uma crítica da razão instrumental,
conceito fundamental deste último filósofo, ou, o que seria o mesmo, uma crítica, fundada em uma
474
PODER JUDICIÁRIO
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do próprio domínio pelo poder econômico. O termo “indústria cultural” foi empregado
pela primeira vez em 1947, na publicação da Dialética do Iluminismo,
de Horkheimer e Adorno, e visa a substituir “cultura de massa”.
Para Adorno, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus
consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas
determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto
consumidores, a indústria cultural reduz a humanidade às condições que
representam seus interesses e exerce um papel específico de portadora da ideologia
dominante, a qual dá sentido a todo o sistema.
A indústria cultural, cúmplice da ideologia capitalista, contribui eficazmente para
falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de
tal forma que o resultado final constitui uma espécie de anti-iluminismo.
Considerando-se que o iluminismo tem como finalidade libertar os homens do medo,
tornando-os senhores e liberando – os do mundo da magia e do mito, e admitindo-se
que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência e da tecnologia, tudo
levaria a crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a ciência e
sobre a técnica. Mas, ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se
vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica, poderoso instrumento
utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência das
massas.
A indústria cultural nas palavras do próprio Adorno “impede a formação de
indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir
conscientemente”. O próprio ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o
fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais
avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um prolongamento do trabalho.

interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema


capitalista (que Adorno chama de "indústria cultural"). Também uma crítica à sociedade de mercado
que não persegue outro fim que não o do progresso técnico.

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Para Adorno, a diversão é buscada pelos que desejam esquivar-se do


processo de trabalho mecanizado para colocar-se, novamente, em condições de se
submeterem a ele. A mecanização conquistou tamanho poder sobre o homem,
durante o tempo livre, e sobre sua felicidade, determinando tão completamente a
fabricação dos produtos para a distração, que o homem não tem acesso senão a
cópias e reproduções do próprio trabalho. O suposto conteúdo não é mais que uma
pálida fachada: o que realmente lhe é dado é a sucessão automática de operações
reguladas. Em suma, diz Adorno, “só se pode escapar ao processo de trabalho na
fábrica e na oficina, adequando-se a ele no ócio”.
Tolhendo a consciência das massas e instaurando o poder da mecanização
sobre o homem, a indústria cultural cria condições cada vez mais favoráveis para a
implantação do seu comércio fraudulento, no qual os consumidores são
continuamente enganados em relação ao que lhes é prometido, mas não cumprido.
Exemplo disso encontra-se nas situações eróticas apresentadas pelo cinema.
Nelas, o desejo suscitado ou sugerido pelas imagens, ao invés de encontrar uma
satisfação correspondente à promessa nelas envolvida, acaba sendo satisfeito com
o simples elogio da rotina.
Não conseguindo, como pretendia, escapar a esta última, o desejo divorcia-se de
sua realização que, sufocada e transformada em negação, converte o próprio desejo
em privação: a indústria cultural não sublima o instinto sexual, como nas verdadeiras
obras de arte, mas o reprime e sufoca. Ao expor sempre como novo o objeto de
desejo (o seio sob o suéter ou o dorso nu do herói desportivo), a indústria cultural
não faz mais que excitar o prazer preliminar não sublimado que, pelo hábito da
privação, converte-se em conduta masoquista.
Assim, prometer e não cumprir, ou seja, oferecer e privar, são um único e
mesmo ato da indústria cultural. A situação erótica, conclui Adorno, une “à alusão e
à excitação, a advertência precisa de que não se deve, jamais, chegar a esse
ponto”. Tal advertência evidencia como a indústria cultural administra o mundo
social.
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PODER JUDICIÁRIO
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Criando “necessidades” ao consumidor (que deve contentar-se com o que lhe


é oferecido), a indústria cultural organiza-se para que ele compreenda sua condição
de mero consumidor, ou seja, ele é apenas e tão-somente um objeto daquela
indústria. Desse modo, instaura-se a dominação natural e ideológica.

TRANSFORMAÇÕES SUBJETIVAS

No que diz respeito às transformações subjetivas, Costa (2002) argumenta


sobre a necessidade de novos referenciais. Não há dúvidas que nossos
comportamentos e hábitos sofreram alterações em função do desenvolvimento de
novas tecnologias.
Alguém que tenha uma geladeira que já parou de funcionar pode
desconhecer as transformações que este eletrodoméstico gerou na
nossa relação com o mercado de suprimentos? Quantos de nós,
acostumados que estamos às calculadoras de bolso, ainda sabemos
fazer contas de cabeça ou na ponta do lápis? (COSTA, 2002, p.
193).

É difícil compreender que algumas tecnologias têm impactos bem mais


intensos sobre os seres humanos, chegando mesmo, ainda que em raros casos, a
gerar transformações internas profundas.
Em outras palavras, embora seja fácil detectar que novas tecnologias
têm o poder de alterar nossos hábitos e nossas formas de agir, é
bem mais difícil registrar que algumas tecnologias também podem
alterar radicalmente nosso modo de ser (como pensamos, como
percebemos e organizamos o mundo externo e interno, como nos
relacionamos com os outros e com nós mesmos, como sentimos,
etc.). (COSTA, 2002, p. 193)

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Quanto à tecnologia da informação, a internet é vista pela autora como um


espaço de vida alternativa, na qual a escrita é o meio privilegiado de comunicação e
experimentação de novas formas de ser. O sujeito contemporâneo, tecla para se
comunicar, constrói relacionamentos, registra pensamentos, dá sentido às suas
experiências múltiplas e diversificadas, entre outros.
Tomando-se como partida a criança do século XXI, ela já nasce respirando
tecnologias. A curiosidade e a espontaneidade naturais fazem com que ela se utilize
das mesmas como extensões do corpo.
Assim, essa geração conforme Tapscott (1999), está familiarizada com o mundo das
Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, da mesma forma que seus
pais se aventuraram com a televisão. A Internet é a principal ferramenta dessa
relação, na qual se dá o que chamamos de infância digital, que constrói seu
conhecimento independente do controle dos pais e das instituições, por terem mais
autonomia, uma vez que dominam o mundo digital de uma forma natural.
Como vemos, a tecnologia é onipresente na sociedade atual e ao
relacionarmos os adolescentes à mesma, a primeira coisa que devemos considerar
é que essa geração também nasceu e cresceu em meio a esse furacão de
inovações tecnológicas. Portanto, a tecnologia não é algo novo para eles, mas sim
algo que sempre fez parte de suas vidas, ao menos para a maioria dos
adolescentes, tanto assim que são conhecidos como “nativos digitais”.
Alguns anseios e peculiaridades desta fase como, o desafio à limites e
regras, fantasia e abuso da imaginação, a necessidade de pertencimento e inclusão
social, exibicionismo e consumismo, são próprios da adolescência , em qualquer
período ou lugar, apenas permeados pelo contexto histórico e cultural do momento
em que vivem.
As novas tecnologias (redes sociais, celulares de última geração e etc.) são
muito mais atrativas, pois permitem uma comunicação e expressão mais interativa
entre os pares. O consumismo na adolescência também é acentuado pelo acesso
facilitado às informações e propagandas.
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É necessário analisar e considerar que a tecnologia vem sendo um elemento


influenciador na formação da identidade social dos adolescentes, podendo ser algo
positivo ou negativo em suas vidas, dependendo da maneira como é utilizada.
No mundo do adulto contemporâneo, apesar de parte ainda estar dividida
entre a comunicação analógica e digital, observa-se um número expressivo de
homens e mulheres que já se inseriram e se adaptaram às novas tecnologias;
estando sujeitos às influências desta nova ferramenta, tanto nas relações afetivas
como de trabalho, ou seja, na sua forma de ser e estar no mundo.
Quanto ao mundo do trabalho, constatou-se pelos estudos efetuados que a
capacidade laborativa foi transferida do homem para a máquina, acabando por
diminuir sua criatividade no exercício do mesmo.
A informatização, de alguma forma provoca uma invasão na vida pessoal do
sujeito, que permanece com a sensação de não desligamento mental do trabalho.
Essa tecnologia apesar de ser inovadora, propor-se como facilitadora e agilizadora
no mundo do trabalho, por vezes, tem como consequência a escravidão e o
adoecimento do homem.
Nas considerações de Chauí sobre “Espaço, tempo e mundo virtual”, o mundo
está on-line durante vinte e quatro horas, sem obstáculo de distância, poder e
política, ocorrendo a dissolução da sociedade e a objetividade do mundo se
desfazendo assim o quadro da nossa compreensão anterior do mundo. Não há mais
a condição simbólica e sim a luta pelo signo, ou seja: sucesso, poder, etc. Pontua
que vivemos num mundo novo e incompreensível, virado ao contrário e gigantesco.
No entanto, explica que o processo de pensamento é lento e é necessário paciência
para adquiri-lo, bem como se deve perceber o que se sabe e aceitar o que não se
sabe. O que ocorre na atualidade é a solução instantânea para obtê-lo; aperta-se o
botão e a resposta aparece. Assim, observa-se uma dificuldade para tolerar,
aguentar e suportar a dúvida do que não se sabe, requisitos para a construção do
pensamento, como se pensar e esperar doesse e fizesse sofrer.

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Assim, essa tendência humana de evitar a dor e a frustração também aparece


nas relações amorosas e interpessoais, fazendo com que o sujeito contemporâneo
busque fugir da realidade, refugiando-se no mundo virtual onde supostamente tem
controle destas emoções. O homem cria artificialmente figuras idealizadas, para se
relacionar, que nunca vão lhe dizer não ou desaparecer e estarão, virtualmente
sempre disponíveis e amorosas, reproduzindo deste modo, o desejo primitivo da
criança de viver no principio do prazer.
Para Cortela (2009) as pessoas perderam a capacidade de criar e de
reinventar, lançando mão da tecnologia como forma de preencher esse vazio
existencial. O autor relaciona o modo de vida atual com a forma como as pessoas se
relacionam entre si, na família e com a sociedade. Aponta que há uma urgência e
uma pressa para a realização dos desejos e com isso as pessoas estão se
afastando e deixando de viver coisas básicas, simples e essenciais. Fenômenos
estes que levam a uma sociedade muito competitiva e individualista onde não há
espaço para o coletivo.
Esse sujeito modificado pelos impactos das novas tecnologias acaba gerando
transformações nas dinâmicas familiares, impondo-se novos desafios e inquietações
na família.
Ainda segundo o autor se por um lado a tecnologia pode trazer conforto e
agilidade ao ser humano, por outro, ele perde oportunidades e experiências
fundamentais para seu desenvolvimento, especialmente as crianças e jovens desse
novo século. É preciso resistir à sedução do repouso e aceitar desafios.
Para ele a tecnologia não é neutra já que produz efeitos, mas resta pensar e utiliza-
la criticamente para não ser submetido por ela.
Destaca como um fenômeno central desta era digital, também denominada de
instantânea, freneticamente veloz, fast, a falta de paciência e de tolerância,
incluindo as experiências vividas em família. Explica, ainda, que com o modo de
organização e hábitos atuais as crianças e adolescentes não tem a oportunidade de
vivenciarem processos, ou seja, fazer passo a passo até que depois de um tempo e
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de etapas se obtenha um produto ou algo que se deseja. Deste modo crescem sem
apreender que é preciso esforço e paciência, o que influencia seu modo de ser e de
se relacionar com o mundo. Privados de frustrações muitas vezes não desenvolvem
uma personalidade ética.

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TECNOLOGIA E DEPENDÊNCIA

Pensando a questão do uso da tecnologia por adolescentes na internet e


jogos eletrônicos, podemos falar em um comportamento disfuncional quando
identificamos uma perda da capacidade de escolha de determinados
comportamentos e não avaliação correta das consequências negativas destes.
Segundo Vieira Jr. et allii, [...] o comprometimento relativo ao abuso nesse aspecto
vai se manifestar na vida pessoal, profissional, familiar, afetiva, podendo mesmo
atingir a saúde como um todo.
Com a popularização e barateamento dos computadores pessoais,
impulsionados pela criatividade de Steve Jobs, dá-se início a uma era de
comunicação digital nunca vivida antes, com o aumento de dependência tecnológica
em todas as camadas sociais. Mesmo os jovens que não possuíam acesso em casa,
passaram a utilizar lan houses para tal.
Instalada a patologia no que tange à dependência da internet e/ou jogos eletrônicos,
o adolescente e/ou adulto vê reduzida sua capacidade de escolha quanto ao
momento, frequência ou duração das atividades e esta relação acaba se tornando
disfuncional.
A internet se torna uma fonte de prazer de satisfação rápida e barata que,
protegida pelo próprio ambiente – a casa, tende a evitar confrontos naturais que
comumente ocorrem em relações face a face. Muitos se refugiam numa segunda
personalidade, criando uma vida paralela, como é possível no site “Second Life”.
Cria-se uma vida alternativa para preencher o vazio das realizações frustradas na
vida real.
Não se pretendendo reduzir a discussão sobre o diagnóstico polêmico, outro
aspecto que hoje em dia tem chamado muito a atenção dos estudiosos é o aumento
de portadores do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH. Ainda
que não haja uma comprovação de que os jogos eletrônicos causem ou piorem o

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quadro instalado, sabe-se que dispender maior tempo com a internet aumenta a
gravidade do quadro.
Por outro lado, há estudos que apontam que os jogos online compartilhados
com amigos podem melhorar a atenção e habilidades espaciais e memória. Assim,
como em quase tudo que se refere a esse novo campo epistemológico, há
controvérsias, havendo necessidade de um período maior de avaliação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões propostas pelo grupo de Estudo de Marília ampliaram e


aprofundaram o conhecimento, e por que não dizer, desconstruíram as ideias pré-
concebidas sobre o tema.
Não parece haver dúvidas de que nossos comportamentos e hábitos podem
sofrer alterações em função do desenvolvimento de novas tecnologias. O difícil é
perceber que algumas destas têm impactos bem mais profundos sobre os indivíduos
podendo ocasionar, em alguns casos, transformações internas radicais.
Em outras palavras, embora seja de fácil compreensão que as novas
tecnologias têm o poder de alterar nossos hábitos e nossas formas de agir, é bem
mais difícil registrar que algumas dessas alterações também podem modificar
profundamente nosso modo de ser.
Também os profissionais que se dedicam a diversos tipos de atendimento
psicossocial, por vezes, não se dão conta que eles próprios estão inseridos nesse
processo de transformação, isto influencia não apenas seu desenvolvimento pessoal
como o seu fazer profissional.
Diante dessa constatação, faz-se necessário dar prosseguimento a discussão
do tema, oportunamente, considerando as questões éticas que envolvem as
demandas tecnológicas.

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
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TAPSCOTT, Dan. Geração Digital: a crescente e irreversível ascensão da Geração


Net. Trad. Ruth Gabriela Bahr. São Paulo: Makron Books, 1999

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PODER JUDICIÁRIO
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A PERÍCIA EM SITUAÇÃO DE ABUSO SEXUAL CONTRA


CRIANÇA E ADOLESCENTE; ENFOQUE NAS DEMANDAS
SOCIAIS E PSICOLÓGICAS JUDICIÁRIAS

GRUPO DE ESTUDO DO INTERIOR – PRESIDENTE


PRUDENTE – “COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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PODER JUDICIÁRIO
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COORDENADORAS

Irene Cristina Corrêa de Brito Farah – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente


Venceslau
Vanuza da Fonseca de Matos Tedesco – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau

AUTORES

Adriana Lario Ramalho Rodrigues - Assistente Social Judiciário - Comarca de


Presidente Prudente
Alessandra Pereira da Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Teodoro
Sampaio
Ana Cristina Turino Silva - Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Andréia da Silva Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Ângela Maria de Carvalho Ribeiro - Assistente Social Judiciário – Comarca de
Junqueirópolis
Anna Maria Britto de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rancharia
Célia Regina Grigoleto Rosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Cristiana Kuniko Urahama Iwama – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Dracena
Daniela Franco Motta Nesso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Denise Ocolati Vitale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Elisandra Murer Fruchi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Dracena
Elisangela Carvalho de Lima Paulino – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau
Esther Akemi kavano Katayama – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Francisneide Soares da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente
Irene Cristina Corrêa de Brito Farah – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Katiúscia Cristina Pereira – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Iepê
Letícia Mara Batalini Menosse Galeti – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente
Linda Delaine da Silva Ibañez Tiago – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Luci Meire Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirapozinho

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PODER JUDICIÁRIO
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Luciana von Ha Oliveira Stringheta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente


Prudente
Lucilene Almeida Bertone de Cápua – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Santo Anastácio
Maria Auxiliadora Rolo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Maria Célia de S. Vergara – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirapozinho
Pedrina Celismara G. Dornelas – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Bernardes
Ruth Y. Hayashida Tomiyoshi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Selma Regina Luces Fortes Andrade e Machado – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Presidente Prudente
Sonia Maria Moretti Chaves – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Sylvia Arlene Baldo Patrício – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Vanuza da Fonseca de Matos Tedesco Judiciário – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Presidente Epitácio
Vera Lúcia Vieira Ferreira Screpanti – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau

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PODER JUDICIÁRIO
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INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado do trabalho realizado pelo Grupo de Estudo


“Cotidiano da prática profissional” da região de Presidente Prudente, sobre o tema
perícia social e psicológica em situação de abuso sexual intrafamiliar de crianças e
adolescentes.
Face à complexidade que envolve a avaliação psicossocial nas situações de
violência sexual nos processos jurídicos (na Vara da Infância e Juventude),
aprofundou-se o tema a partir de definições de alguns autores, elegendo o conceito
abaixo como base norteadora para a compreensão do fenômeno.
O abuso sexual contra crianças e adolescentes é uma das modalidades de
violência doméstica que:
[...] configura-se como ato ou jogo sexual, relação hetero ou
homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou
adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança
ou adolescente ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre
sua pessoa ou de outra pessoa. (GUERRA 1998, p. 31)

Verificou-se por meio de estudo bibliográficos que aproximadamente 80% dos


abusos são praticados por familiares ou pessoa conhecida e confiável. (AZAMBUJA
apud ZAVASCHI et al., 1991, p. 131)
Considerando que a incidência do abuso sexual intrafamiliar é relevante,
compreende-se que as avaliações psicossociais das situações abusivas ocorridas
nas relações familiares são de extrema importância no enfrentamento do fenômeno,
tanto do ponto de vista diagnóstico para a indicação de medidas judiciais, como de
prevenção. Dessa forma, elegeu-se como objetivo do grupo compreender o
fenômeno da violência sexual infanto-juvenil intrafamiliar e suas vicissitudes, com
vistas a subsidiar aspectos teóricos e metodológicos da avaliação psicológica e
social.
A partir desta proposta, o presente artigo inicia-se pela identificação da
dinâmica familiar incestogênica, seguindo-se o levantamento de Indicadores da
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ocorrência em relação à vítima, agente agressor(a) e coagressor(a), dinâmica do


abuso e fatores de risco na ocorrência de violência sexual intrafamiliar. Na
sequência foram apontados os objetivos e procedimentos metodológicos da perícia
social e psicológica.

DINÂMICA FAMILIAR INCESTOGÊNICA

A família desempenha um papel de destaque no processo de socialização e


na proteção de seus membros, sendo o grupo social básico onde as primeiras
relações sociais dos indivíduos são construídas.
Na constituição das relações familiares, os vínculos e as emoções se
expressam e possibilitam a estruturação da mente humana. As vivências no grupo
familiar podem desenvolver experiências de realização ou de fracasso, levando as
pessoas envolvidas a um crescimento ou ao contrário, em direção a uma
desintegração.
Quanto mais o grupo familiar possibilitar a seus membros a satisfação de
suas necessidades físicas, emocionais, intelectuais e permitir as expressões de
amor, raiva, medo, alegria, agressividade, sexualidade etc., mais integrada ela será.
Porém, o potencial destrutivo é enorme quando as relações se desorganizam e
ocorre um empobrecimento de cada um dos membros envolvidos e de toda a
família.
Segundo Scodelario (2002, p..97):
[...] na formação de um grupo familiar integrado, cada membro se
reconhece enquanto sujeito consciente de si mesmo e do outro, com
condições de amar e respeitar a si e aos demais como pessoas
separadas e diferentes, de reconhecer suas necessidades, seus
desejos e sentimentos, responsabilizando-se e fazendo as
reparações necessárias.

Entretanto, quando as relações familiares se desorganizam, ocorre uma falta


de contenção e de limites nas pessoas, o que leva a um padrão repetitivo de

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violência e um empobrecimento das relações afetivas. O desempenho da função


paterna (introduzir o indivíduo no mundo da realidade, com limites e proibições) e a
função materna (ser continente, oferecer proteção) ficam prejudicados, o que pode
levar a ocorrência do incesto, que é uma das formas de violência sexual intrafamiliar.
Entende-se por incesto envolvendo crianças e adolescentes,
[...] toda atividade de caráter sexual, implicando uma
criança/adolescente de zero a dezoito anos e um adulto que tenha
para com ela, seja uma relação de consanguinidade, seja de
afinidade ou de mera responsabilidade. (AZEVEDO E GUERRA,
1989)

Segundo Azevedo e Guerra (1989), a família incestogênica deve ser


entendida como aquela na qual as interações entre seus membros, através de
mensagens verbais e não-verbais, implícitas ou explícitas, são manipuladoras da
criança ou adolescente vítima, forçando-a a uma transação interdita culturalmente: o
incesto.
A dinâmica intrafamiliar fundada em padrões interacionais abusivos é
considerada um fenômeno derivado de vários fatores individuais e sociais
(experiência de socialização, características psicopatológicas, fatores situacionais de
estresse, fatores culturais, sociais, características dos pais e/ou filhos). É importante
que a compreensão deste fenômeno não se limite a uma intervenção centrada na
díade autor-vítima, mas na família como totalidade e em sua dinâmica de
funcionamento.
Furniss (1993), apud Oliveira (2012), postula que lidar com o abuso sexual,
sobretudo intrafamiliar, implica defrontar-se com dinâmicas fortemente
fundamentadas em segredo que concorrem para manter a coesão do grupo familiar
e essas se dão em torno de aspectos destrutivos.
Segundo Hamon (1997), apud Oliveira (2012), a lei moral e social na família
incestogênica é infringida e dá lugar à lei familiar resumida no respeito ao segredo.
Quando a comunicação não é aberta, possibilita a instalação de um
conveniente complô do silêncio, no qual a criança-vítima se cala enquanto os

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demais membros negam a realidade, sendo este um dos fatores que mais
favorecem a continuidade e a (re)produção da violência dentro da família,
conduzindo à perpetuação do abuso por várias gerações.
Scodelario (2002) aponta que o silêncio se instala e se mantém por diversas
razões por parte do cônjuge não agressor: para manter a unidade familiar e não lidar
com perdas, por medo do agressor e cumplicidade inconsciente, somado ao papel
protetor extremamente fragilizado e ataque às próprias percepções.
Do ponto de vista da vítima (criança/adolescente), a mesma autora aponta
que essa mantém o silêncio pelo temor de perder o afeto dos familiares, porque
acredita que ninguém vai protegê-la, receia que não acreditem nela, que a julguem
culpada, que sofra agressões e/ou retirada da família.
Além do complô do silêncio, a dinâmica das famílias de transação incestuosa
se caracteriza por uma grande confusão ao nível das fronteiras intergeracionais, dos
papéis e das identidades no interior do próprio sistema. Neste sentido é comum a
filha cuidar da casa ou dos irmãos menores ou ainda ocupar o lugar de companheira
sexual do pai, enquanto a mãe infantilizada fica esperando que os filhos a protejam.
As práticas familiares incluem o respeito inconteste à autoridade do pai de família, a
obediência necessária dos filhos, a discriminação entre papéis de gênero com
consequente defesa da mulher-criança como objeto sexual do poder masculino.
A família incestogênica tem dificuldades em reconhecer, aceitar e respeitar os
limites. A lei é dada pelo abusador, ele exerce o poder de forma arbitrária - é seu
desejo, seu prazer e suas necessidades que prevalecem.
A fronteira organizacional dessa família é pouco permeável ao exterior, como
se ela suprisse as necessidades de seus membros e eles não tivessem, nem
pudessem buscar nada além dos muros da própria casa ou das determinações do
“chefe”. Assim, apresentam resistências em socializar e inserir culturalmente seus
filhos. A consequência é a de um “viver simbiótico”, com relações exteriores
rarefeitas e pouco consistentes, levando, na maior parte das vezes, ao
empobrecimento e restrição nas trocas afetivas.
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A dificuldade na comunicação entre seus membros é outra característica, na


qual as pessoas não expressam livremente seus sentimentos, limitando-se ao
superficial e utilizando outros padrões de comunicação como mentiras, segredos,
mensagens de duplo sentido e discurso confuso.
Essa forma de funcionamento tem estreita relação com dificuldades no
processo de simbolização e elaboração das experiências emocionais,
permanecendo os conflitos intrapsíquicos de forma menos consciente, não
emergindo de forma direta na comunicação.
Na família abusiva, o afeto (pelo menos entre certos membros) é dado de
forma erotizada; as relações entre seus membros são hierarquicamente assimétricas
e caracterizadas por desigualdade e subordinação; uso intenso de mecanismos de
defesa, em especial dos mecanismos de cisão, de negação e de identificação
projetiva; autoestima rebaixada, questões e situações que levam os envolvidos a
vivenciar sentimentos de desvalorização e impotência.
Cabe ressaltar que a dinâmica de violência e de padrões de relações
incestogênicas revela indicadores de comportamento de cada membro familiar
(vítima, agressor e cônjuge) que devem ser investigados. Para caracterizar a
ocorrência do abuso, vários indicadores devem estar associados, uma vez que
isoladamente podem estar relacionados a outros problemas psicossociais.
As decorrências do abuso sexual variam desde efeitos mínimos até
problemas mais graves, com repercussões sociais, emocionais e/ou psiquiátricas e
dependem de fatores relacionados à idade da vítima e do agressor, do tipo de
relação entre eles, da personalidade da vítima, bem como, do tipo, gravidade,
duração e frequência da agressão, além da resolubilidade de ações de proteção.
Nas crianças e adolescentes vítimas ocorrem manifestação de sintomas como
tristeza, ideação suicida, medo exagerado de adultos, comportamento e
conhecimento sexual avançado para a idade, preocupação excessiva com questões
sexuais, conduta sexual anormal, masturbação frequente, exibicionismo, baixa

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autoestima, abuso de substâncias químicas, sonolência, enurese, encoprese, tiques


e manias, isolamento social, dificuldades escolares, irritabilidade, entre outros.
Analisando o agente da agressão sexual, observa-se que apresenta discurso
sedutor e que dificilmente reconhece que possa ter prejudicado alguém da sua
família, justificando, na maioria das vezes, que foi provocado e que a culpa não é
sua; pelo contrário, que não se trata de uma violência, mas de atender a
necessidade e desejo que a vítima também tem.
É comum o agressor depreciar a pessoa vitimizada e isso lhe favorece, de
certa forma, ter o controle e o poder sobre ela. Na figura do abusador condensam-se
o excesso de transgressão, o abuso de poder e a ausência de interdição imposta
pela cultura. Com frequência o abusador não consegue evitar o ato agressivo por
falta de condições internas, falta de limites ou ainda por ter dificuldade de encontrar
outras formas de expressar e comunicar seus sentimentos, o que caracteriza um
desenvolvimento emocional deficiente.
As mães de crianças sexualmente abusadas costumam ser caracterizadas
como passivas, dependentes, imaturas, sexualmente inibidas, incapazes de proteger
suas crianças, tendo dificuldade de formar vínculo emocional com as mesmas,
envolvidas em inversão de papéis com a filha (funções domésticas e parceria sexual
com o pai). Muitas vezes, a mãe fica conivente com o agente da agressão e
fragilizada, tem receio e dúvidas em relação aos seus direitos e capacidades para
defender a si e a seus filhos.
Além da compreensão das características dos envolvidos na relação abusiva,
aponta-se a necessidade de reconhecer aspectos da dinâmica do abuso sexual que
Sgroi (1982), apud Oliveira (2012) assinala ser dividida em cinco etapas.
Na primeira etapa, ocorrem aproximações gradativas nas quais o adulto tenta
ganhar a confiança da criança que pretende abusar através de atividades lúdicas,
não expressando interesse de conotação sexual.

495
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Na segunda, o autor do abuso insere atividades que lhe confiram satisfação,


intensificando o caráter sexual com atitudes invasivas ao corpo da criança, a qual
experimenta desconforto e dificuldade para interromper a interação abusiva.
A terceira etapa é caracterizada quando o autor do abuso tenta mantê-lo em
sigilo, utilizando-se de argumentos lúdicos, subornos e ameaças, situação que, na
maioria das vezes, só se interrompe quando a vítima sai de casa ou apenas quando
adulta.
Ainda, segundo o mesmo autor, a dinâmica pode evoluir para a quarta fase, a
da revelação, que pode se dar de forma acidental (quando um terceiro presencia
situações abusivas ou evidencia sinais ou sintomas), ou de forma proposital (por
iniciativa de uma das partes envolvidas em pedir auxílio), sendo muito rara a
revelação feita pelo autor do abuso.
Nesta etapa, a família vivencia expressiva crise pelo rompimento do complô
do silêncio, questões conflitivas são postas em evidência e os lugares estabelecidos
e relativamente estabilizados ao longo do ciclo familiar ficam ameaçados, de
maneira que a coesão possibilitada pela interação abusiva já não mais pode
prosseguir.
Também nesta etapa, a família é forçada a ampliar significativamente sua
permeabilidade a intervenções externas, vez que, diante da revelação de um abuso,
é imprescindível a atuação de diversos segmentos para garantia dos direitos da
criança.
A quinta etapa refere-se à supressão da alegação do abuso, pois os
envolvidos percebem os impactos que ocorrerão na vida familiar e as ameaças de
desintegração dela decorrentes.
Como uma forma de orientar a avaliação social e psicológica, com base nas
reflexões acima, procurou-se elencar os principais indicadores sociais, psicológicos,
familiares e físicos que, correlacionados, poderão ser determinantes no
apontamento da ocorrência de abuso sexual intrafamiliar contra criança e o
adolescente.
496
PODER JUDICIÁRIO
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INDICADORES DA OCORRÊNCIA DO ABUSO SEXUAL

INTRAFAMILIAR
O abuso sexual intrafamiliar é um fenômeno multicausal que, segundo
Azevedo (1995), envolve a experiência de socialização, características
psicopatológicas, fatores situacionais de estresse (desajustes, violência,
desemprego, isolamento, família numerosa, comportamento desafiante etc...), a
posição social (idade, sexo, Status socioeconômicos e rede suporte social), posição
cultural (representação de criança, atitude para com a infância/adolescência,
violência/castigo, mulheres e sexualidade) características particulares da vítima.
[...] o fenômeno da violência é causado por múltiplos e diferentes
fatores socioeconômicos-culturais, psicológicos e situacionais. A sua
definição implica uma abordagem sociopsicointeracionista, que faz
parte do modelo explicativo multicausal. Nesse modelo as condutas
humanas são concebidas como decorrentes da interação indivíduo-
sociedade, sendo âmbito psicológico condicionado pelo social, tal
condicionamento produzido historicamente. As marcas da história
pessoal dos indivíduos revelam-se no contexto da história
socioeconômica. (FERRARI & VECINA, 2002, p.81)

A avaliação social e psicológica nas situações de violência sexual implica no


conhecimento da realidade da família e a existência de indicadores que apontam
para a ocorrência ou não do fato.
Os indicadores não poderão ser considerados isoladamente como definidores
do abuso sexual intrafamiliar, uma vez que podem ocorrer em diferentes situações.
O profissional deverá levar em conta a interatividade entre esses, e a ocorrência
simultânea e continuada.
Serão relacionados abaixo indicadores que poderão nortear a avaliação social
e psicológica.

497
PODER JUDICIÁRIO
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Indicadores comportamentais da vítima

- conhecimento e comportamento sexual precoce, preocupação excessiva com as


questões sexuais;
- falta de confiança nos familiares;
- perturbações do sono;
- exibições inapropriadas de afeto;
- isolamento social;
- desempenho do papel maternal em caso de vítima do sexo feminino;
- comportamento regressivo;
- mudança de humor, de comportamento alimentar, desobediência;
- dificuldade na sociabilidade na escola;
- falta de concentração nas aulas;
- queda no rendimento escolar;
- relutância em participar de atividades físicas no ambiente escolar;
- envolvimento em atos infracionais e/ou transgressões de normas e regras;
- fuga de escola ou de casa;
- tentativas de suicídio ou auto mutilação;
- abuso ou dependência de álcool ou outras drogas;
- ataques histéricos;

Indicadores comportamentais do agressor

- problemas no controle de impulsos, imaturidade, regressão;


- excessivamente auto centrado, fortes necessidade de dependência, pobre
capacidade de julgamento, baixa tolerância à frustração;
- necessidade de poder e dominação compensatório aos sentimentos de
inferioridade ou de insuficiência;
498
PODER JUDICIÁRIO
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- histórico de abuso sexual na infância;


- vivência de conflitos ou perdas de relações heterossexuais adultos;
- desinteresse sexual por mulheres adultas;

Indicadores comportamentais do co-agressor

- passividade, dependência e imaturidade;


- mulheres sexualmente inibidas, incapazes de proteger suas filhas, promove o
abuso sexual (de modo sutil ou explicito) a fim de desviar as demandas sexuais de
si própria;
- com dificuldade para formar vínculo emocional com a filha;
- inversão de papéis com a filha
- antecedentes de vitimização sexual

Indicadores sociofamiliares

- isolamento social do grupo familiar;


- tendência ao fanatismo religioso;
- restrição à livre expressão de sentimentos/pensamentos;
- supervisão inadequada das crianças;
- na organização familiar, o agressor assume maior responsabilidade no cuidado
diário da prole;
- adultos dormindo com crianças etc.

DA PERÍCIA SOCIAL E PSICOLÓGICA

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PODER JUDICIÁRIO
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A perícia psicossocial tem como objetivo avaliar o contexto intrafamiliar para


subsidiar decisão judicial na propositura de medidas protetivas, com finalidade de
interromper o ciclo de violência e superação do risco pessoal e social.

Perícia do Serviço Social:

 Compreender o contexto sociofamiliar e relações sociais e comunitárias;

 Identificar fatores de risco e vulnerabilidade no contexto familiar da


criança/adolescente vítima do abuso;

 Identificar as potencialidades da família (original e extensa) e capacidade


de proteção;

 Identificar a rede social de apoio;

 Manifestar-se em relação à violação de direitos;

 Propor medida de proteção e contribuir com a efetivação de direitos.

Perícia da psicologia:

 Identificar características da psicodinâmica familiar;

 Identificar características psicológicas do suposto agressor;

 Identificar características psicológicas do cuidador não agressor;

 Identificar características psicológicas da criança (prejuízos emocionais de


modo amplo e possivelmente ligados ao abuso);

500
PODER JUDICIÁRIO
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 Identificar fatores de risco e vulnerabilidade no contexto familiar da


criança/adolescente vítima do abuso;

 Avaliar a credibilidade do relato;

 Posicionar-se quanto à ocorrência da denúncia;

 Propor medida de proteção e contribuir com a efetivação de direitos.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Da perícia social
O Serviço Social é uma profissão essencialmente interventiva. Tal
particularidade se expressa no processo avaliativo da perícia em situações de abuso
sexual, à medida que dá visibilidade à realidade vivida e às necessidades dos
usuários e propõe medidas protetivas para viabilizar o acesso a direitos.
Segundo Fávero (2011), a realidade dos sujeitos compreende a sua inserção
na coletividade, que envolve seus valores culturais, suas relações com a família,
trabalho, território de moradia e a efetividade da política pública no cotidiano dessas
pessoas. “O conteúdo significativo do estudo social, expresso em relatórios ou no
laudo social, reporta-se à expressão ou expressões da questão social e/ou à
expressão concreta de questões de ordem psicológica...” (FÁVERO, 2011 p. 29)
No Poder Judiciário, o Assistente Social contribui como perito, na medida em
que, após o estudo social, emite um parecer ou opinião técnica sobre determinada
situação.
Imbuídos de conhecimento teórico-metodológico, de um posicionamento
ético-político e habilidades técnico-operativas, o Assistente Social ao planejar seu
processo de intervenção, deverá inicialmente ouvir as versões com cuidado para
não fazer interpretações precipitadas, equivocadas ou preconceituosas.

501
PODER JUDICIÁRIO
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O assistente social judiciário, no processo avaliativo, representa ao sujeito a


intervenção do Estado na sua vida privada, sendo imprescindível ter clareza do
impacto desta ação.
A intervenção do Poder Judiciário junto aos indivíduos, famílias e
grupos sociais, requer uma análise enquanto intervenção do
Estado na família. Uma intervenção que representa riscos e
dificuldades, especialmente no que se refere ao estabelecimento de
limites entre o direito à proteção e o direito à privacidade, por exemplo.
Que ação realizar e como empreendê-la, de maneira a contribuir com a
proteção como direito, e não como inserção na vida privada do sujeito
ou da família, enquanto detentor de um saber-poder direcionado pelo
autoritarismo, pelo preconceito, pelo controle de comportamento e
atitudes? (FÁVERO, 2009)

A operacionalização da avaliação requer selecionar quais instrumentais serão


utilizados, quais sujeitos envolvidos serão abordados e quais conhecimentos são
imprescindíveis para análise social.
Entende-se que o profissional tem autonomia para escolher os instrumentais
a serem utilizados para apreender a realidade em estudo. Dentre eles pode-se citar:
entrevistas individuais, conjuntas e/ou colaterais; observação técnica; visita
domiciliar e/ou institucional; reuniões técnicas; consulta documental e/ou
bibliográfica; contatos com a rede familiar e social e encaminhamentos.
Os instrumentais apresentados não são específicos da profissão, desse
modo a sua aplicação depende da habilidade de cada profissional e particularidade
de cada situação. A abordagem, interpretação/análise e registro do estudo social
serão orientados pela concepção de homem e de mundo.
O resultado da avaliação é apresentado por meio de relatórios/laudos
descritivo-analíticos com parecer e/ou ainda respostas a quesitos. Eventualmente o
parecer pode ser verbal em audiência.
A contribuição da perícia social em situações de violência sexual intrafamiliar
extrapola a compreensão do fenômeno e a indicação de medidas de proteção a um
grupo familiar, uma vez que dá visibilidade às demandas sociopolíticas.

502
PODER JUDICIÁRIO
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Da perícia psicológica
A perícia psicológica é realizada por psicólogos que devem possuir
conhecimentos teóricos e técnicos específicos na sua área de atuação a fim de
integrar os conhecimentos da área de saúde mental e do Direito, uma vez que o
objetivo comum é de contribuir para a garantia de direitos dos indivíduos e da
sociedade. Por isso, o cliente do psicólogo será tanto o sujeito(s) periciado(s), como
o sistema mais amplo que representa a sociedade e que orienta os propósitos
judiciais.
Nesse sentido, é necessário que o perito estabeleça os objetivos da
avaliação, escolha procedimentos metodológicos e elabore documentos que são
encaminhados à autoridade requerente e que por vezes não estarão de acordo com
os interesses do periciado.
O Conselho Federal de Psicologia faz a seguinte recomendação no que se
refere ao relacionamento com o periciado.

Enfatizamos aqui os cuidados em relação aos deveres do psicólogo nas


suas relações com a pessoa atendida, ao sigilo profissional, às relações
com a justiça e ao alcance das informações - identificando riscos e
compromissos em relação à utilização das informações presentes nos
documentos em sua dimensão de relações de poder. (Resolução CFP
007/2003)

Os instrumentos utilizados e a elaboração do relatório devem estar em


consonância com o órgão máximo fiscalizador da profissão, Conselho Federal de
Psicologia. Dessa forma, a avaliação psicológica forense abrange o uso de
entrevistas, aplicação de testes psicológicos aprovados pelo SATEPSI (Resolução
CFP 002/03), levantamento de dados históricos da vida do periciado e que se
referem ao episódio em questão, consulta a diferentes fontes de documentos que
devem redundar em relatório consistente e coerente.
Os psicólogos, ao produzirem documentos escritos, devem se basear
exclusivamente nos instrumentais técnicos (entrevistas, testes,
observações, dinâmicas de grupo, escuta, intervenções verbais) que se

503
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

configuram como métodos e técnicas psicológicas para a coleta de dados,


estudos e interpretações de informações a respeito da pessoa ou grupo
atendidos, bem como sobre outros materiais e grupo atendidos e sobre
outros materiais e documentos produzidos anteriormente e pertinentes à
matéria em questão. Esses instrumentais técnicos devem obedecer às
condições mínimas requeridas de qualidade e de uso, devendo ser
adequados ao que se propõem a investigar. (Resolução CFP 007/2003)

O laudo/relatório psicológico deve apresentar linguagem clara, concisa e


harmônica, a fim de relatar de maneira objetiva e metódica, restringindo-se às
informações que se fizerem necessárias que levaram às conclusões acerca do
estudo realizado e dos questionamentos formulados previamente.

Nos casos de abuso sexual há uma grande preocupação quanto a


identificação do fenômeno, uma vez que os atos libidinosos podem não deixar
marcas ou provas físicas, e não há indicador específico ou instrumentos
psicológicos próprios que determinem se uma criança foi sexualmente abusada.
Assim, é indicado que a avaliação técnica seja abrangente e contextualizada, uma
vez que o seu objetivo é fornecer subsídios para a autoridade judiciária garantir a
proteção e direitos de crianças e adolescentes.

Observe-se ainda que na maioria dos casos de abuso sexual intrafamiliar há


o envolvimento de crianças muito pequenas, com compreensão e comunicação
limitadas e que não conseguem discriminar o ato praticado pelo cuidador, que
deveria ser de proteção, com aquele que é uma forma de abuso, além de terem um
vínculo afetivo com o suposto agressor.

Por isso, é necessário que a perícia psicológica em casos de abuso sexual


de crianças e adolescentes contemple uma série de procedimentos metodológicos
que garantam uma visão ampla e aprofundada dos aspectos psicológicos dos
envolvidos.

504
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Rovinski (2004) sugere a realização de entrevistas conjuntas, com vistas à


observação da dinâmica familiar, para atentar o grau de incongruência entre as
necessidades da criança e as habilidades parentais despendidas. A coleta dos
relatos da situação vivenciada pelos envolvidos, a congruência ou ambivalência
entre os diferentes relatos a partir do discurso, se o afeto corresponde à experiência
narrada, a análise das repercussões físicas e psíquicas que podem estar
relacionadas à situação abusiva, bem como a ocorrência de manipulação, indução
ou outra motivação para a denúncia.

Todos estes cuidados se fazem necessários, uma vez que há a possibilidade


da ocorrência de falsas denúncias que podem ser motivadas em casos de litígios
familiares de disputa de guarda, pensão alimentícia e alienação parental, quando
uma das partes pretende prejudicar e afastar sistematicamente o outro da
convivência com a criança. Esta, por sua vez, pode apresentar sintomas físicos ou
psicológicos semelhantes a crianças abusadas que podem levar a conclusões
equivocadas.

Dentre os recursos disponíveis, a entrevista psicológica é de suma


importância, uma vez que possibilita analisar a comunicação verbal e não verbal,
levantar dados de diversas fontes. No entanto, demanda cuidados como um
ambiente protegido e acolhedor, que leve em consideração a idade e sexo da
vítima, o tipo de pergunta (aberta ou fechada) e a credibilidade de seu testemunho
(confiabilidade e validade).

Segundo levantamento realizado por Schaeferet et al. (2012), observou-se


que na Universidade de Michigan (Faller, 2003) é utilizado um protocolo de
entrevista em três etapas que consistem em:

[...] a etapa inicial (rapport, estabelecimento das regras básicas da


entrevista, avaliação do nível de desenvolvimento do avaliado, bem
como se o menor sob avaliação consegue distinguir realidade e
fantasia, investigação de outras questões sobre a sua vida), a etapa
505
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

focalizada no abuso (empregar perguntas abertas, indagar se o


examinado conhece o motivo pelo qual está ali, estimular o relato
livre e desenvolver questionamentos a partir do que é emitido) e a
etapa do encerramento (informar ao periciado sobre os próximos
passos a serem tomados, colocar-se disponível, ajudá-lo a
restabelecer o equilíbrio, incluindo a manifestação de sentimentos,
pensamentos e atitudes em relação à revelação e a situação
vivenciada). (SCHAEFERET,L.S. et al, 2012, p.227).

Azevedo e Guerra (1995) construíram um protocolo técnico de avaliação


multiprofissional denominado Dossiê Diagnóstico Multiprofissional que consta de
ficha de abertura e acompanhamento, formulário de entrevista e observação social
e psicológico da vítima, dos responsáveis (figura materna/figura paterna); formulário
de laudo médico ginecológico; formulário de laudo psiquiátrico; escala
psicopatológica e escala de avaliação psicológica da família incestogênica.

Além do relato da criança é importante estar atento à análise de


confiabilidade, ou seja, a análise de indicadores de credibilidade e validade do
relato emitido pela criança ou adolescente sobre a suposta situação abusiva.
Segundo estudo realizado por Schaeferet et al. (2012) um dos métodos utilizados
amplamente é o Stement Validity Assessment (SVA; Steller e Boychuk, 1992), que
é composto por três etapas: entrevista semiestruturada, análise de conteúdo
baseada em critérios (CBCA – Criteria-Based Content Analysis) e a lista de controle
de validade dos resultados obtidos pelo CBCA (Vrij, 2005).

Vieira (2007) e Rovinski (2004) referem-se à grade de John Yullie (1988)


para análise da declaração feita pela criança através de 19 critérios subdivididos
em: características gerais da declaração, específicas, particularidades do conteúdo;
conteúdos relativos às motivações da declaração e elementos específicos com
relação ao delito.

506
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Face à inexistência de instrumentos psicológicos específicos para


constatação de violência sexual, diversos autores destacam a importância de se ter
cuidado na busca de manifestações comportamentais e psíquicas ligadas à
vitimização, uma vez que muitos destes sintomas estão presentes em outros
quadros, de maneira que é preciso avaliar se há nexo causal entre o evento
traumático vivido e as manifestações, a história de vida da vítima e a dinâmica
familiar.

Pesquisas tem sido desenvolvidas utilizando-se diversos instrumentos e


metodologias que auxiliem no diagnóstico do fenômeno da violência, uma vez que
avaliam de forma indireta os sintomas e/ou comportamentos que podem estar
relacionados ao abuso sexual infantil. Cabe ressaltar que parte deles ainda não foi
adaptada à população brasileira, visto que se trata de projetos pilotos de pesquisa
que buscam evidências consistentes da ocorrência do abuso.

Tardivo e Pinto Junior (2010) desenvolveram um instrumento de uso


multidisciplinar denominado Inventário de Frases na Avaliação da Violência
Doméstica1 (IFVD) cujo objetivo é auxiliar a identificação de crianças e adolescentes
em situação de violência doméstica brasileiras.
Harbigzang (2008) utilizou métodos quantitativos adaptados para uso no país
para avaliar a efetividade de um modelo de grupoterapia cognitiva-comportamental
para meninas vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Usou a entrevista
semiestruturada baseada no Ter Metropolitan Toronto Special Committeeon Child
Abuse (1995), traduzida para o português e adaptada por Kristensen (1996); o
Inventário de Depressão Infantil (CDI), elaborado por Kovacs (1992) e adaptado
para o uso no Brasil, por Gouveia, Barbosa, Almeida e Gaião (1995); A Escala de
Estresse Infantil (ESI) das autoras brasileiras Lipp e Lucarelli (1998). O Inventário de
Ansiedade Traço-Estado para crianças (IDATE-C), elaborado por Spielberger (1970)
e adaptado para o país por Biaggio e Spielberger (1983) e uma entrevista
estruturada com base no DSM IV;/SCID para avaliação de transtorno do estresse

507
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

pós-traumático também adaptada para o Brasil por Del Bem, Vilela, Cripp, Hallak,
Labate e Zuardi (2001). Adaptaram ainda o CAPS – Children’s Attributions and
Perceptions Scale de Mannarino, Cohen e Berman (1994), proposto para mensurar
questões específicas do abuso em crianças sexualmente abusadas.
O uso de recursos lúdicos e bonecos anatômicos também devem ser feitos
com cautela a fim de não induzir ou levar a situações fantasiosas sobre a questão do
abuso.
O cuidado principal da atuação do psicólogo na realização da perícia em
casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, consiste em trabalhar e
buscar o melhor interesse da criança através de uma atitude empática e
acolhedora, para que esta se sinta confiante e segura o suficiente para oferecer
informações sobre a violência sofrida.

Dessa forma, a atuação profissional deve se pautar pela ética e a busca por
compreender o fenômeno como complexo, multifatorial, com determinantes culturais
e políticos, além das particularidades individuais e familiares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As causas da violência sexual são múltiplas e complexas, portanto, os fatores
que a induzem não poderão ser vistos de forma isolada. Momentos históricos,
contextos culturais, sociais e econômicos, aspectos psíquicos e emocionais
precisam ser inter-relacionados.
Sendo o abuso sexual um fenômeno multicausal, sua compreensão exige o
conhecimento dos projetos sociopolíticos e econômicos que influenciam a
sociabilidade dos indivíduos, desta forma valores machistas, patriarcais,
desigualdade de gênero e poder econômico definem o modelo de relação de poder
de nossa sociedade se reproduzindo no cotidiano da vida familiar,
consequentemente nas relações entre adulto e criança/adolescente.

508
PODER JUDICIÁRIO
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Ao deparar-se com o fenômeno do abuso sexual intrafamiliar, o profissional


se vê diante do dilema de desvelar e dar visibilidade a um segredo, até então restrito
ao ambiente privado da família.
A família com características incestogênicas mantém sua coesão através do
complô do silêncio, de forma que tende a negar os fatos e suprimir dados ou indícios
da ocorrência do fenômeno.
Quando o segredo é desvelado, coloca-se em risco a organização do núcleo
familiar, o que provoca outros impactos emocionais e sociais nos seus
componentes.
O ambiente privado da família se torna público, as bases da lealdade e da
aglutinação familiares não mais se sustentam e ela é forçada a ampliar
significativamente sua permeabilidade às intervenções externas, para que haja o
rompimento deste ciclo de violência, a partir do redimensionamento das relações e
dos conflitos. Se essas intervenções não levarem ao rompimento do silêncio e à
quebra do ciclo, a família não opera mudanças e a criança pode ser revitimizada.
O fenômeno é complexo e de difícil compreensão e visibilidade, o que exige
do profissional aprofundamento teórico e habilidade técnica para intervenção nessa
dinâmica. A avaliação técnica nestas situações requer instrumentalidade22
profissional e, para tanto, faz-se necessária a constante reflexão técnico-operativa,
teórico-metodológicas e ético-política.
A perícia social e psicológica no judiciário é o meio de aproximação do
profissional à realidade vivida pelos sujeitos envolvidos numa determinada situação

22
.... a instrumentalidade no exercício profissional refere-se, não ao conjunto de instrumentos e
técnicas (neste caso, a instrumentação técnica), mas a uma determinada capacidade ou propriedade
constitutiva da profissão, construída e reconstruída no processo sócio-histórico. (YOLANDA,
GUERRA, A Instrumentalidade no trabalho do assistente social,
http://www.ebah.com.br/content/ABAAABcBEAE/yolanda-guerra-a-instrumentalidade-no-trabalho-
assistente-social1)

509
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

que demanda ação judicial. Nas situações de violência sexual, além de compreender
as peculiaridades da dinâmica familiar e indicar medidas de proteção, a perícia traz
a tona demandas sociopolíticas que podem provocar mudanças de paradigmas e de
garantia de direitos.
Além disso, é primordial que os profissionais de psicologia e serviço social
que atuam na área forense possam se aperfeiçoar através de capacitação
continuada e envolvimento em projetos de pesquisa em parceria com instituições de
ensino, bem como aprimorar e desenvolver técnicas e metodologias de avaliação
para melhor compreensão e diagnóstico do fenômeno no contexto brasileiro.
O sistema judiciário deve possibilitar o redimensionamento do conflito e para
isso precisa estar atento para não contribuir com a manutenção do segredo e o
restabelecimento de relações familiares abusivas. Ao mesmo tempo compreender a
dinâmica multicausal e interinstitucional deste fenômeno é fundamental para que a
atuação interdisciplinar possa assegurar a proteção integral da criança e do
adolescente.

510
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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513
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

MEDIAÇÃO FAMILIAR E OFICINAS DE PAIS:


NOVAS POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO PARA OS
TÉCNICOS DO JUDICIÁRIO RUMO À CULTURA DA PAZ

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – RIBEIRÃO PRETO –


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014

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COORDENADORES

Fernanda Aguiar Pizeta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto


Vitor Alex Salerno – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Pirangi

AUTORES

Adriana do Vale Ferreira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto


Ana Roberta Prado Montanher – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Andreia Cristina Medeiros Bossa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ribeirão Preto
Armando Viana de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araraquara
Camila Ferreira Messias Lélis – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pitangueiras
Eliana Binhardi Zanineli da Rocha – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sertãozinho
Estela Cabral Sargento – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fabiana Marchetti Castro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araraquara
Fátima Neive Urizzi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Descalvado
Fernanda Aguiar Pizeta - Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fernanda Neísa Mariano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fernanda Renata Paziani Pereira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Flávia Abade – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cajuru
Heloísa Chaves Nascimento de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sertãozinho
Janaína Corrêa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Joyce Pires Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Lara Franco Zanini – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Lucivani Brondi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Maria Stela Setti Moreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tambaú
Marisley Vilas Boas Soares – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jaboticabal
Marli Salvador Correa da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lins
Mirza de Cássia Borbato Gândara – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Cravinhos
Nina Rosa do Amaral Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Regina Célia Borsato Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Sandra Simonne Rossi Felipe – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Silvia Helena Sarti Avanci Duarte – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão
Preto
Sueli Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Vanessa Cilene Cezário Fiorelli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão
Preto
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Vitor Alex Salerno – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirangi

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos de Ribeirão Preto (GERP), durante o ano de 2014,


estudou o tema “Família e Litígio” priorizando subtemas importantes para o
aprimoramento profissional dos psicólogos e assistentes sociais que atuam no
Tribunal de Justiça.
No presente artigo, destacou-se a apresentação dos subtemas que vêm
sendo considerados norteadores de uma prática profissional, em consonância com a
cultura da paz e com a busca de estratégias de enfrentamento de litígios associadas
à autonomia, à responsabilização social, ao resgate do diálogo e à mudança de
perspectiva frente aos conflitos interpessoais.
Observa-se, em diferentes instâncias de trabalho no Tribunal de Justiça, o
“inchaço” da instituição devido à atual tendência da sociedade de judicializar
conflitos, buscando solucionar problemas de relacionamentos pessoais ou familiar
por meio do aparato legal. Dentro de uma sociedade que se organiza a partir de uma
lógica adversarial, o que se espera, é que essa tendência aumente
exponencialmente em futuro próximo (AZEVEDO et. al, 2013).
Destaca-se que, nas disputas judiciais em que crianças e adolescentes estão
envolvidos diretamente, há que se considerar que consequências decorrentes do
litígio acabam por trazer prejuízos importantes aos desfechos desenvolvimentais
infanto-juvenis. Sobre isso, vale lembrar que pesquisas longitudinais realizadas com
filhos de pais separados demonstraram que a boa qualidade da relação entre os
pais após a separação e a continuidade da relação da criança com ambos os pais,
após o divórcio, são os fatores centrais associados ao bom ajustamento dos filhos a
longo prazo na nova dinâmica familiar (WALLERSTEIN, 1985; BRITO, 2007)
Assim, a criação e utilização de instrumentos e procedimentos de trabalho
que possibilitem a reflexão e a conscientização dos pais, bem como uma melhora na
comunicação rumo a uma efetiva resolução da disputa, são fundamentais.

517
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nesse sentido, abordar-se-á neste artigo: a Mediação Familiar, tal como vem
sendo realizada no contexto do judiciário por psicólogos e assistentes sociais; e a
Oficina de Pais e Filhos, segundo os moldes preconizados pelo Conselho Nacional
de Justiça.

MEDIAÇÃO FAMILIAR NO CONTEXTO DO JUDICIÁRIO

A mediação vem sendo conceituada como um processo dialógico de


resolução de conflitos. Um instrumento capaz de ser promotor de mudança de
mentalidades, num processo de construção de uma cultura da paz que se baseia na
produção de entendimentos através do diálogo.
Historicamente, o instituto da Mediação no Brasil e no exterior é muito mais
antigo que a decisão do Conselho Nacional de Justiça de organizar os serviços que
atuem a partir de métodos consensuais de solução de conflitos no âmbito do
judiciário, em uma perspectiva mais ampla de reconhecimento dos direitos
subjetivos, pautados na afetividade, na valorização dos direitos fundamentais, nas
diferenças e no ideal de igualdade (BARBOSA, 2008).
Pode-se indicar como marcos legais e regulatórios que favoreceram tal
medida:
• Constituição Federal (1988) - Art. 226 - “A família, base da sociedade,
tem especial proteção do Estado”.
• Lei do Divórcio (1977) - Art. 3º, § 2º - “O juiz deverá promover todos os
meios para que as partes se reconciliem ou transijam, ouvindo pessoal e
separadamente cada uma delas e, a seguir, reunindo-as em sua presença, se assim
considerar necessário.”.
• Normas da Corregedoria de 2013 do TJ/SP - atribuições dos
assistentes sociais e psicólogos judiciários, as quais preveem a atuação desses
profissionais.

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

• Código do Processo Civil - dá liberdade ao juiz para, a qualquer tempo,


tentar conciliar as partes.
• Código Civil Brasileiro (2006) - que passa a denominar a autoridade
parental como poder familiar e enfatizar o melhor interesse da criança para as
decisões quanto à sua guarda.
• Resolução 125 do CNJ (2010) - “Política Judiciária Nacional de
Tratamento dos Conflitos de Interesses”.
Outro aspecto a ser observado, segundo Antonio (2013), são os referenciais
utilizados por algumas abordagens teórico-metodológicas de mediação, dentre os
quais os pensamentos de Spinoza, Edgar Morin e Humberto Maturama.
Partindo desses referenciais e considerando a base legal da atuação
profissional, o trabalho de mediação foi conceituado pela referida autora (ANTONIO,
2013, p. 32) como:

[...] um processo de trabalho exercido por um profissional (ou uma


equipe) qualificado, com uma metodologia própria e interdisciplinar
de base afetiva e ética, para que duas ou mais pessoas que tenham
laços familiares – sejam eles consanguíneos ou não – e que passam
por uma situação de litígio busquem respostas mais responsáveis,
autônomas e exequíveis sobre o conflito, tendo como perspectiva
uma cultura de paz e dos direitos humanos.

A mediação familiar no contexto do judiciário se caracteriza por ser uma


proposta que colabora no sentido de promover diálogos e consenso com vistas ao
encontro de um estado de paz na família. Nessa perspectiva, segundo Antônio
(2013, p. 33):

A mediação deve colaborar para descortinar as origens e as causas


dos desejos, compreendendo-os, e não os dominando, a caminho de
uma perspectiva ética de que a felicidade é compartilhar com outros
a fruição do bem. [...] Esta perspectiva ética da afetividade direciona
para que o percurso do mediando, seja compreender como está
afetado ou como afeta o outro, tenha conhecimento de si, mas
também procure conhecer o outro, perceba que o outro é um sujeito
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

tanto quanto ele, atingido por emoções, sentimentos e necessidades,


e cercado por contingências.

Entendemos, a partir desta premissa, que o processo de mediação é um


contínuo, cuja palavra traz a ideia de “processualidade”, de construção por meio de
vários atos em movimento, tendo em vista um objetivo elaborado a partir dos
interesses de cada um.
A referida autora traz para o bojo das questões a importância da perspectiva
ética da afetividade no processo de mediação familiar, afirmando que esta, enquanto
alternativa para administração de conflitos, procura sempre perceber e considerar o
outro com seus recursos sociais, objetivos e subjetivos – privilegia o reconhecimento
e a ressignificação das diferenças, e não o aprisionamento dos conflitos.
Como experiência concreta de um trabalho de Mediação desenvolvido no
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, destaca-se a atuação em mediação
familiar da Comarca de Santos-SP, implantada em 2007, quando duas assistentes
sociais judiciárias passaram a oferecer o serviço de mediação aos envolvidos em
processos judiciais tramitando nas Varas de Família e Sucessões e Infância e
Juventude daquela Comarca.
Verificou-se resultados positivos dessa experiência de trabalho de mediação
que visava:
• Melhorar a comunicação entre as partes envolvidas, auxiliando-as através
de um processo reflexivo a tomada de decisões com vistas a um acordo
dentro de um projeto de vida.
• Substituir a lógica ganhador-perdedor pelo desenvolvimento do diálogo na
perspectiva da cultura da paz.
• Fortalecer o relacionamento familiar, resgatar a confiança e respeito entre
as partes.
• Abreviar o tempo e o desgaste afetivo e financeiro de um litígio judicial.
• Ampliar, consolidar e garantir no cotidiano os direitos, sobretudo o das
crianças, adolescentes e idosos.
520
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A respeito da própria ação profissional e postura ética do mediador, a


literatura destaca os seguintes aspectos: proporcionar condições para a reflexão e a
ação; construir espaço de encontro entre os mediadores que contemple os desejos;
cultivar a compreensão de que o corpo e o intelecto manifestam; promover o
encadeamento e a articulação das ideias na perspectiva de esclarecimento;
distinguir vontade e apetite, impulsos e paixões, conhecimento e desejo; e sair do
mundo imaginativo, que pode levar a confundir ideias e imagens, afeições no corpo
e no intelecto, ou seja, sair da paixão para que se possa perceber os verdadeiros
desejos (ANTONIO, 2013).
Essa experiência de mediação na Comarca de Santos, apresenta aspectos
práticos do trabalho de mediação, tais como: metodologia e os procedimentos
jurídicos, o perfil da população atendida, caracterização dos litígios e a incidência da
intervenção por meio da mediação familiar nos processos instaurados. No contexto
em questão, os processos encaminhados ao Setor de Mediação são, em sua
maioria, ações de guarda e regulamentação de visitas, dentre outras oriundas das
Varas da Família, Infância e Juventude e Cíveis, que tramitam em primeira instância.
A entrada dos casos no referido Setor obedece um fluxo sistemático:
Inicialmente os juízes encaminham as partes, que podem ou não aceitar o
atendimento, sendo recomendada a suspensão dos processos. Tal fluxo prevê que,
a partir do aceite das partes, acontece o primeiro encontro, que é coletivo,
estabelecendo-se, então, o plano de atendimento caso a caso, que consiste em
média de oito atendimentos, com possibilidade de prorrogação até no máximo 12.
De forma mais detalhada, apresentar-se-á aspectos relativos à dinâmica dos
atendimentos em mediação da Comarca de Santos.
O atendimento inicial contempla o acolhimento; a explanação dos objetivos;
as possibilidades e os limites do trabalho, com reserva de horário semanal
conveniente às partes. Ressalta-se que é esclarecido às partes ainda que os
atendimentos são sigilosos e que, portanto, não serão encartados aos autos pelo

521
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

mediador nenhum conteúdo oriundo das sessões de mediação (exceto em situação


em que a ética profissional exija a quebra da confidencialidade).
A partir de então, as partes comparecem juntas aos atendimentos de
mediação, sem a presença dos advogados, os quais são atendidos se solicitarem,
na medida em que são identificados como “parceiros” do processo de mediação.
Destaca-se que, se necessário, são realizados contatos e reuniões com a rede de
atendimento, solicitados pelo mediador. Quanto ao encerramento do trabalho,
pontua-se a possibilidade de ser antecipado pelo desligamento espontâneo de uma
das partes, situação comunicada ao Juiz do feito, sem explanação das razões.
Ao final do trabalho, é realizada avaliação escrita e verbal, utilizada
posteriormente para fins estatísticos quanti e qualitativos.
Antonio (2013) dá ênfase a aspectos facilitadores desta intervenção,
destacando a possibilidade de articulação no sistema forense, adequada estrutura
física; o sigilo e o acolhimento oferecidos. A referida autora, a partir de dados do
Setor de Mediação da Comarca de Santos, entre os anos de 2008 e 2010,
analisados por meio de estatística descritiva quanto ao tipo de ações encaminhadas,
ao número de atendimentos, tempo entre distribuição do processo e
encaminhamento dos autos para a mediação e existência de perícia nos autos,
previamente ao atendimento pelo Setor de Mediação. Na referida Tese de
Doutorado, os dados sugerem que a maioria dos casos participa de nove
atendimentos ou mais, que são oriundos de ações afetas à matéria de família, que
encaminham aos autos ao referido Setor com até seis meses após a distribuição do
processo e nos quais ainda não havia sido realizada perícia psicológica ou social.

OFICINA DE PAIS E FILHOS

A realidade trazida pela literatura e a prática dos psicólogos e assistentes


sociais que atuam em Varas de Família demonstra o quanto uma situação de

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

divórcio com suas implicações (conflitos frequentes entre os genitores, a disputa de


guarda, as regulamentações de visitas, rupturas de laços familiares ou alienação
parental) produzem estresse nos filhos ou outros transtornos de ordem física,
psíquica e social.
Toda essa experiência fez com que se pensasse em um instrumento de apoio
a essas famílias, que estão passando pelo processo de separação e têm filhos,
surgindo então as Oficinas de Pais e Filhos, um programa desenvolvido pela
Meritíssima Juíza de Direito Dr.ª Vanessa Aufiero da Rocha e uma equipe
interdisciplinar da Comarca de São Vicente, programa este baseado na experiência
de outros países e que passou a ser recomendado pelo CNJ aos Tribunais de
Justiça (Recomendação nº 50 de 08 de maio de 2014) como “política pública na
resolução e prevenção de conflitos familiares”.
Entende-se que os conflitos fazem parte da vida das pessoas e eles podem
ser enfrentados de formas diferentes e transformados em possibilidade de melhoria
da qualidade dos relacionamentos pessoais.
No âmbito jurídico, a Oficina de Pais e Filhos fundamenta-se na cultura da
paz e em políticas de pacificação, estando relacionada à prevenção e resolução não
violenta dos conflitos e também a uma educação transformadora.
Nesse contexto, a Oficina de Pais e Filhos é utilizada como um programa
educacional interdisciplinar, sendo um instrumento para pacificação das relações
familiares em situação de divórcio e auxiliando os pais a protegerem seus filhos das
consequências prejudiciais dos conflitos vivenciados dessa situação, conforme
descrito na Cartilha do Instrutor (Conselho Nacional de Justiça, 2013):

A Oficina de Pais e Filhos tem como objetivo instrumentalizar as


famílias que enfrentam conflitos jurídicos relacionados ao divórcio ou
à dissolução da união estável, nos quais vários ajustes e mudanças
pessoais ocorrem. A participação na Oficina pretende auxiliar o casal
em vias de separação a criar uma efetiva e saudável relação parental
junto aos filhos. (p. 07)

523
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

As oficinas, além de oferecerem recursos às famílias para entenderem o que


ocorre com os filhos após a separação, no sentido de que possam colocar em
prática mudanças eficientes para o bom entendimento familiar, reduzindo o dano
emocional a todos os envolvidos, pretendem prevenir a alienação parental, na
medida em que procura conscientizar o casal sobre a importância dos filhos
conviverem com ambos os pais, bem como dos malefícios que o afastamento
parental poderá lhes ocasionar. Segundo a Cartilha do Instrutor (Conselho Nacional
de Justiça, 2013):

Os casais que conseguem lidar de forma positiva com a separação


garantem aos filhos um ambiente acolhedor e favorecem que eles
não apenas sobrevivam, mas amadureçam positivamente após o
divórcio. (p. 06)

O público alvo do programa são famílias em processo judicial que revelam


abordagem destrutiva dos conflitos relacionados à ruptura do relacionamento em
detrimento dos filhos menores, bem como multiplicadores que queiram reproduzir o
curso em outras esferas, além do judiciário.
Em relação à sua metodologia, a Oficina de Pais e Filhos foi projetada para
ser executada em uma única sessão, com duração de cerca de quatro horas, sendo
previsto um intervalo. Além disso, são feitas recomendações quanto à sua dinâmica,
sugerindo-se que; os pais que participam da Oficina formem dois grupos, que
ocupam salas distintas, sendo cada grupo composto por cerca de dez a vinte
adultos, conforme o espaço disponível; os ex-casais sejam divididos entre as duas
salas, visando a garantia de um ambiente tranquilo, livre de eventuais brigas e
discussões, bem como para que a presença de um não iniba o outro notadamente
nos momentos destinados à interação e à expressão de seus sentimentos; cada
grupo seja misto, ou seja, composto por homens e mulheres, para que aqueles

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ouçam o ponto de vista destas e vice-versa, sobretudo durante as dinâmicas de


grupo.
Os jovens, filhos dos casais que participam da Oficina, em número variável,
são subdivididos em dois grupos: - Grupo das crianças de seis a onze anos
incompletos; Grupo dos adolescentes de doze a dezessete anos.
São realizadas as seguintes atividades:
* oficina de pais – explanações feitas pelo(s) instrutor(es), apresentação de
vídeos, período para questionamentos, discussões e prática das habilidades
desenvolvidas e dinâmica de grupo;
* oficinas dos filhos - explanações feitas pelo(s) instrutor(es), atividades
lúdicas; apresentação de vídeos e dinâmica de grupo.
Quanto aos instrutores, as oficinas podem ser executadas voluntariamente
por Assistentes Sociais, Psicólogos, Pedagogos, Advogados, Mediadores, Juízes de
Direito e Promotores de Justiça. Destaca-se que a atuação de Assistentes Sociais e
Psicólogos Judiciários pode se dar, conforme sua disponibilidade, entendendo-se
que um trabalho desta natureza está previsto no art. 151 do ECA, e que parcerias
também podem ser estabelecidas com Faculdades/Universidades afins.
Espera-se do instrutor, independente de sua formação profissional, uma
postura acolhedora, neutra e imparcial, bem como que procure reconhecer e validar
os sentimentos dos participantes, notadamente nos momentos de interação,
tratando todos com educação, cordialidade e compaixão. Conforme diretrizes do
Programa referendado pelo CNJ, os instrutores não devem dar conselhos ou
orientações individuais, recomendando-se em casos em que haja demanda das
partes que procurem um profissional especializado se for o caso, salientando-se que
a Oficina de Pais e Filhos consiste em um programa educacional e preventivo,
apontado na Cartilha do Instrutor (Conselho Nacional de Justiça, 2013):

Considerando que as famílias que enfrentam esse delicado momento


de reorganização familiar sentem-se muitas vezes fragilizadas,
desgastadas e desamparadas, espera-se do instrutor,
525
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

independentemente de sua formação profissional, uma postura


acolhedora, neutra e imparcial, para que os participantes da oficina
sintam-se efetivamente acolhidos pelo Poder Judiciário e dispam-se
de seus temores e ansiedades. (p. 13)

Por fim, salienta-se que conforme as possibilidades e as necessidades de


cada Comarca, a Oficina poderá ser executada de uma forma diversa da sugerida,
orientando-se, por exemplo que: nas Comarcas em que houver limitação de espaço
físico ou de instrutores, os membros da família poderão ser encaminhados para a
Oficina em dias distintos; nas Comarcas em que não houver profissional
especializado para lidar com as crianças (psicólogo, assistente social ou pedagogo),
a Oficina poderá ter como público alvo apenas os pais e os filhos adolescentes ou
somente os pais; e, a critério dos instrutores, o conteúdo pode ser trabalhado em um
número maior de sessões de menor duração.

CONCLUSÕES

A Mediação Familiar e a Oficina de Pais e Filhos constituem-se estratégias de


ação inovadoras que podem repercutir positivamente nas famílias que vivenciam
situações de conflito familiar decorrentes principalmente de divórcio. De cunho
marcadamente pedagógico e reflexivo, as Oficinas de Pais e Filhos e a Mediação
Familiar, respectivamente, acrescentam qualidade aos serviços oferecidos pela
justiça, possibilitando canais diferenciados e complementares de diálogo com as
famílias que a acessam. A efetividade de tais serviços, identificada pela participação
das partes e pela composição de acordos posteriores ou decorrentes de tais ação
sinalizam para a necessidade de maior divulgação dessas estratégias.
Destaca-se que a rede pública de serviços socioassistenciais não contempla
em suas políticas ações dessa natureza, dedicadas ao público alvo a qual elas se
destinam, além de não haver equipes especializadas para atenderem demandas
próprias do âmbito da justiça, como é o caso das famílias que se encontram em

526
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

processo de divórcio/separação e disputa pela guarda de filhos, dado este que


confirma a sua importância e a sua adequação ao contexto do judiciário.
Vale ressaltar alguns desafios para sua implementação, tanto no nível prático
quanto no nível político. No cotidiano de algumas comarcas, as equipes técnicas se
deparam com dificuldades relacionadas à sobrecarga de trabalho ou mesmo à
carência de profissionais, o que impede a execução de ações além das periciais. Há
ainda o aspecto político, que implica em receber apoio dos magistrados para a
realização de capacitação e destinação de parte da carga horária para a prática da
Mediação e organização de Oficinas. Todo trabalho requer planejamento e
reavaliação permanente para que não corra o risco de cair nas armadilhas do senso
comum ou da prática esvaziada de sentido. E a execução de trabalhos como a
Mediação e a Oficina de Pais e Filhos exige capacitação da equipe, estabelecimento
de parcerias, planejamento das atividades, carga horária e espaço físico adequados
e avaliação permanente com relato dos resultados obtidos.
Outro ponto relevante a ser citado é o engajamento dos profissionais da
justiça na proposta social de cultura da paz. Após a proclamação da década 2001-
2010 como a Década Internacional da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência
em Benefício das Crianças do Mundo, pela Organização das Nações Unidas (ONU),
a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura) assumiu a missão de construção da paz e vem trabalhando com propostas
relacionadas à prevenção e à resolução não violenta de conflitos.
De acordo com documento publicado recentemente pela entidade
representante da UNESCO no Brasil (UNESCO, 2010), a cultura de paz é assim
definida:

É uma cultura baseada em tolerância e solidariedade, uma cultura


que respeita todos os direitos individuais, que assegura e sustenta a
liberdade de opinião e que se empenha em prevenir conflitos,
resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaças não

527
PODER JUDICIÁRIO
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militares para a paz e para a segurança, como a exclusão, a pobreza


extrema e a degradação ambiental. A cultura de paz procura resolver
os problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de
forma a tornar a guerra e a violência inviáveis.

Conclui-se que os assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça do


Estado de São Paulo não devem se manter alheios a estas propostas devendo
desenvolver possibilidades de viabilização de atividades profissionais de prevenção
de conflitos e de garantia dos direitos individuais, sobretudo aqueles vinculados à
proteção das crianças e adolescentes.

528
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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23
O material utilizado nas oficinas, ou seja, “As Cartilhas (Cartilha do Divórcio para os Pais,
Cartilha do Divórcio para os Filhos e Cartilha do Instrutor) e os slides (slides da Oficina de Pais e
slides da Oficina de Filhos) podem ser obtidos gratuitamente através de solicitação ao Ministério da
Justiça, através do e-mail conciliar@mj.gov.br, ou através de download no site do Conselho Nacional
de Justiça” (cartilha do instrutor, p.12).

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Guarda para avós: conflito ou cooperação?

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – CAMPINAS –


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO


2014
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COORDENADORAS

Marcia Silva - Assistente Social Judiciário - Comarca de Campinas


Maria Amália do Val Simoni - Psicóloga Judiciário - Comarca de Campinas

AUTORES

Adriana Leite de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Americana


Ana Silvia Osti Cuan - Assistente Social Judiciário – Comarca de Capivari
Bruna Aguiar Pacini Diogenes Pinheiro - Psicóloga Judiciário - Comarca de
Campinas
Camila Cardoso de Souza - Psicóloga Judiciário - Comarca de Sumaré
Carla Pontes Donnamaria - Psicóloga Judiciário - Comarca de Campinas
Clarice Piazzon Teixeira - Assistente Social Judiciário - Comarca de Campinas
Claudia Maria Zoppe - Assistente Social Judiciário - Comarca de Serra Negra
Clélia Maria Lopes Reato – Assistente Social Judiciário - Comarca de Campinas
Flávia Hayesa Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa
Bárbara D’Oeste
Idalina Vieira Fontes - Assistente Social Judiciário - Comarca de Monte Mor
Lygia Ferreira Gomes Perchon - Psicóloga Judiciário - Comarca de Campinas
Mara Silvia Martins - Assistente Social Judiciário - Comarca de Mogi Mirim
Maria Aparecida de Vasconcelos Pompeo - Psicóloga Judiciário - Comarca de Mogi
Mirim
Maria Helena Lealdini Monzoli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi
Guaçu
Maria Isabel Monfredini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapira
Ninia de Barros Barbosa L. Costa - Assistente Social Judiciário - Comarca de Itu
Rita Rovaris Gardinali - Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi Guaçu
Rosane do Rocio Cordeiro Thiel - Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas
Silvia Dominiquini Medeiros Marino – Psicóloga Judiciário– Comarca de Campinas
Thabata Melissa Biancofiori – Psicóloga Judiciário – Comarca de Indaiatuba

Grupo Relator

Maria Aparecida de Vasconcelos Pompeo - Psicóloga Judiciário - Comarca de Mogi


Guaçu
Maria Isabel Monfredini - Assistente Social Judiciário - Comarca de Itapira
Silvia Dominiquini Medeiros Marino – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

DE AVÓ PARA FILHA


“Nada fará mudar o passado,
O bom e o ruim, já se foram
Deixando seu legado em cada história.
Não foi possível ser a mãe idealizada,
Será mesmo que ela existe?
Ou existe a mãe que foi possível ser?
Pois ser pai e mãe é aprender no caminho.
Façamos pois, as pazes com nossas derrotas
Com nossas imperfeições e escolhas.
O caminho da vida segue sua trilha
E seu milagre deslumbra
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PODER JUDICIÁRIO
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No nascer de outra criança:


-um neto! Agora, já não é minha vez.
Mas estou perto
Cuidando novamente de você
Simplesmente estando disponível.
Sem inveja de seu lugar
Respeitando seu tempo
Suas tentativas de fazer melhor
Quem sabe, quando é acerto, ou erro?
Respeito.
Observo seu amor
Sou feliz
Conforta-me a idéia que de alguma forma,
Sou parte deste sentimento.
E mais feliz
Por receber um presente inigualável
De ver a corrente da vida prosseguindo
De forma tão linda,
Num balbucio de um bebê.
Feliz também,
Pensando que já não sou tão indispensável
Pois em seu filho, virá a força para viver e se ultrapassar.
Se tudo isto vem com um beijo fofo
Repleto de carinho, sem cobranças
Então é perfeito, perfeito.
Como nada que possa ter vivido ontem”.
(CIDA POMPEO)

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INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos de Campinas elegeu como tema das reflexões de 2014 a


guarda exercida por avós. Tais reflexões consideraram diversos e importantes
aspectos dessa temática, a saber: papéis dos avós; mães e pais “incapazes” de
maternar e paternar; dificuldades reais e imaginárias para maternar e paternar;
disputas entre avós; motivações “saudáveis” ou não para ajuizar ação de guarda; e
por fim, o que os profissionais podem fazer além da elaboração do laudo.
Importante ressaltar que a guarda exercida por avós apresenta muitas
possibilidades de arranjos e, por isso, tais casos requererem análise ainda mais
cuidadosa de cada situação, tendo em vista que as dificuldades apresentadas estão
diretamente relacionadas às histórias de vida dos envolvidos. As discussões
permitiram identificar dois aspectos que parecem diferenciar as situações de guarda
exercida por avós, por um lado, a condição sócio-econômica das famílias carentes
que, aparentemente quanto mais desprovida de recursos materiais mais permite que
os avós assumam a guarda dos netos. E, por outro a série de mudanças que o
conceito de pessoa idosa (de acordo com o Estatuto do Idoso, pessoa com 60 anos
ou mais) e os paradigmas referentes a essa condição vem apresentando ao longo
do tempo, o que consequentemente tem interferido no papel e função dos avós.
Exemplo disso é a ampliação da expectativa de vida, que por permitir que essas
pessoas se mantenham produtivas e intensamente ativas, também implica que boa
parte dessa população acabe acumulando a responsabilidade de cuidar de gerações
mais novas e mais velhas.
Como os avós são responsáveis pela transmissão das memórias familiares, o
fator tempo também é uma questão importante, pois considerando a velocidade com
que as mudanças se processam na atualidade, como é possível transmitir memórias
em um mundo que muda tão rápido?
As mudanças alteram aspectos culturais, as novas demandas do mundo
“moderno” acabam gerando outras necessidades e novas respostas. A pressa, o
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consumo desenfreado, o descarte, a preocupação excessiva com o próprio bem


estar, a fragilidade da construção e destruição de laços e a superficialidade, levam a
crer que, diferente do que ocorria em épocas anteriores, quando os indivíduos se
empenhavam na realização de algo para conquistar recompensas, atualmente, se as
recompensas não vem de imediato, ou se surgem muitas dificuldades, o plano inicial
é abandonado.
A busca de satisfação desponta como objetivo supremo a ser
alcançado, praticamente uma obrigação do homem, sendo que
qualquer obstáculo que surja no percurso é percebido como injustiça
[...] Para se atingir as metas, não se aceitam adiamentos, havendo
quase uma tirania do imediato para se conseguir e se obter objetos
vistos como vantajosos e pelos quais se anseia, em um contexto
onde a condição provisória de objetos e situações é uma realidade.
(BRITO, 2012, p. 568)

Todas essas questões surgiram ao se pensar o papel dos avós nas famílias e,
consequentemente se apresentam relacionadas aos pedidos de guardas feitos por
eles. Há situações nas quais os pais não se apoderam de seu papel e função, há
outras em que esses papéis e funções são “usurpados” pelos avós mas, também há
casos de avós que assumem o cuidado porque essa é a única alternativa para evitar
o acolhimento institucional.
Tendo em vista que os pedidos de guarda por avós são demandas presentes com
relativa frequência na rotina do Assistente Social e do Psicólogo do Tribunal de
Justiça e requerem olhares apurados, dada à importância que assumem tais
questões, os encontros do grupo em 2014 foram dedicados a essas reflexões.

DE QUE TIPO DE AVÓS AS CRIANÇAS PRECISAM?

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O imaginário popular, influenciado pelos contos de fadas apresenta avós com


figuras de bons velhinhos. As avós seriam quituteiras, acolhedoras, contadoras de
histórias, e por isso, entre os avós idealizadas das histórias e as diferentes pessoas
reais de nossos dias, há uma distância tão acentuada que não é possível saber de
quais avós está se falando.
A diversidade de papéis, relações e expectativas envolvendo os avós reflete a
complexidade da sociedade atual, influenciada por fatores econômicos, sociais e
culturais em rápida e contínua mudança.
Há avós sexagenários que, viveram em extrema pobreza, foram fragilizados
por condições inadequadas de vida e, não correspondem às condições de saúde e
vitalidade que o conhecimento científico conquistou. Outros indivíduos na terceira
idade - também chamada melhor idade – e, já aposentados, que necessitam arcar
com o ônus do sustento de filhos e netos dependentes de sua aposentadoria, às
vezes, a única fonte de renda familiar. Avós que, com árduo trabalho de uma vida,
conquistaram casa própria e algum conforto, dividem o espaço com filhos e netos,
incapazes de arcar com aluguéis e despesas da própria casa. Tais situações
diminuem a qualidade de moradia e, muitas vezes os idosos perdem o pouco
conforto adquirido em prol dos descendentes.
Segundo pesquisas, 54% dos avós que vivem com os filhos, têm o próprio
rendimento como a principal fonte de renda familiar, ocupando a posição de
provedores e não de economicamente dependentes dos filhos. É bom lembrar que,
atualmente, o Benefício de Prestação Continuada para idosos (LOAS) faz uma
substancial diferença em famílias com baixo poder aquisitivo.
Por outro lado, aqueles avós que tiveram melhores condições, mantiveram o
foco na vida profissional e investiram na qualidade de vida, ao receberem netos,
estão em forma e são capazes de contribuir com eles através da própria experiência.
Mesmo assim, há entre eles, os de avós que resistem à aposentadoria e não
dispõem de tempo para auxiliar os genitores nos cuidados com netos, já que
atualmente ambos os cônjuges necessitam trabalhar e estudar.
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Ainda sobre o papel dos avós nas famílias, na contramão da figura parental
idealizada estão, de um lado, os avós abusivos, negligentes e/ou destrutivos que
comprometem o grupo familiar e, na outra ponta, os avós que são maltratados pelo
próprio grupo familiar.
Já que nem a figura frágil, doce e abnegada das velhinhas de crochê dos
estereótipos e, nem os estudantes de terceira idade que ocupam as academias e
salas de aula das faculdades pode representá-los. Então, quem são os avós?
Não há normas para definir tal papel e funções e, pesquisas que tracem o
perfil dos avós atuais, sem perder de vista, características culturais, sociais e
históricas são escassas.
Falar de avós é se referir a individualidades e fazer menção à pessoas com
diversidade de histórias, escolhas e valores, que chegam à maturidade com sua
bagagem existencial, seus vínculos afetivos e projetos pessoais.
Mas de que avós as crianças precisam?
Segundo Dolto(1998), os avós representam a continuidade, confirmam para a
criança que seus pais também já foram pequenos e que a vida prossegue em seu
ciclo. Liberados da responsabilidade de educar e, teoricamente, mais disponíveis
para desfrutar das relações familiares, os avós seriam para as crianças aquelas
figuras potencialmente capazes de transmitir segurança e apoio, além de terem o
poder de fazer com que se sintam únicas.
Além disso, os avós representariam um apoio importante para os pais nos
momentos difíceis, ou emergenciais, garantindo a eles a manutenção daquela figura
de consolo e afeto a quem recorriam na infância, sem com isso terem que abrir mão
papel de adultos e de principal referência dos próprios filhos. Caberia aos avós estar
presentes quando necessários e, do contrário, se afastar.
Os avós que as crianças precisam são figuras de afeto e segurança para si e
para os pais, aqueles capazes de renunciar à competição com seus genitores pelo
seu amor e cuidados. Pessoas que compreendem que falharam na educação dos
próprios filhos, se perdoam por isto e permitem que eles, por sua vez, aprendam por
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si, a serem pais e mães. Não impõem suas idéias prevalecendo-se da sua condição
familiar, mas opinam, quando requisitados, se utilizando de sua experiência de vida.
São pessoas que permitem que as novas gerações tenham acesso ao passado, aos
valores familiares e as tradições, num meio cultural que muda a cada momento. Os
avós são representantes de uma herança simbólica, mantida ou recriada ao longo
das vidas e que deveria ser transmitida por meio de relações saudáveis e
sucessivas entre as gerações, o que nem sempre é possível.

QUEM SÃO OS AVÓS QUE RECORREM AO JUDICIÁRIO?

As ações que envolvem os avós no judiciário podem ser divididas em


consensuais e litigiosas.
No caso das consensuais, os genitores apresentam dificuldades ou são
incapazes de assumirem a responsabilidade pelos filhos e, muitas vezes não há
maiores questionamentos entre eles quanto ao papel, a representação e as
responsabilidades da função materna e paterna. Fazem parte dessas situações:

a) Ausência dos genitores por falecimento ou detenção. Neste caso, os avós são os
candidatos preferenciais para assumirem a guarda, porque como geralmente já
mantêm alguma convivência com a criança, sua presença pode minimizar a
ausência dos pais tornado o afastamento menos doloroso. Além disso, avós de
crianças que têm genitor e/ou genitora detidos, podem preservar uma boa imagem
do(s) pai(s), manter viva a memória do(s) mesmos e preservar os laços que os
unem.

b) Genitores sem condições de assumir a guarda. Atualmente existe a chamada


geração de filhos do crack que assim como no caso de usuários de drogas, de

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moradores de rua, de pais que tiveram relações casuais, ou de gravidez na


adolescência, constituem exemplos de situações onde não há estrutura para manter
e educar uma criança. Casos de genitores que são dependentes químicos já
representa uma maioria significativa do número de crianças em acolhimento e numa
situação de risco como essa, os avós são as primeiras pessoas procuradas pelos
Conselhos Tutelares para assumir o cuidado da criança ou adolescente.

c) Genitores que não assumem efetivamente as funções parentais e as delegam aos


avós. Normalmente isso é observado nos rearranjos familiares, quando o genitor
inicia novo relacionamento e há filho(s) do(s) parceiro(s) anterior(es). Há genitores
que deixam os filhos para viverem a própria vida e outros que não assumem a
paternidade e deixam a responsabilidade dos cuidados aos avós que, por fim, se
tornam a referência de educação, aprendizado e crescimento.

d) Outra situação compreende avós que pleiteiam a guarda, em comum acordo com
os genitores, sob a justificativa de incluir os netos num plano de saúde, ou ainda
para deixar-lhes um benefício. Neste caso, a guarda de fato é dos pais, que se
encarregam de todos os aspectos da educação dos filhos.
Como a guarda é um instrumento importante que concede amplos poderes,
não deve ser banalizada e estas situações devem ser cuidadosamente analisadas.
Assumir a maternagem contínua de um neto, na fase posterior da vida, pode ser
para alguns, tarefa aceita com alegria, e para outros, um fardo involuntário. Os
cuidados com uma criança representam uma tarefa fisicamente exaustiva e uma
preocupação contínua. Na adolescência, os netos necessitam de conduta firme e, ao
mesmo tempo, flexível e aberta ao mundo moderno e suas demandas. Nem sempre
os avós desejam , têm vitalidade, ou estão preparados, para tal função, mas muitas
vezes são a fonte de segurança possível num momento de crise familiar.
Pontuamos ainda, que o adolescente tem necessidade de se identificar com a
vida e os avós, muitas vezes debilitados, representam sua finitude. Não seria a
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PODER JUDICIÁRIO
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continuidade esperada, isto é, que adolescentes venham a cuidar dos avós, no auge
de sua abertura para a vida e sua própria necessidade de cuidados.
Em outra vertente, estão as disputas de guarda entre genitores e avós em
litígios de maior ou menor intensidade. Há casos em que os genitores se separam e
os avós perdem a convivência contínua com os netos. Enquanto os filhos muitas
vezes estão recompondo a vida amorosa, voltados para outros interesses, esses
avós, acostumados à proximidade dos netos, se ressentem do rompimento da
convivência e em tais situações mobilizam o filho a lutar pela guarda com o objetivo
de reconquistarem seu lugar junto à criança. Nestes casos o perito atento, logo
percebe que o genitor não está motivado a assumir a criança, visto que entra na
disputa por sentimentos de pena, por excessiva dependência emocional dos pais e
como não quer querendo desagradá-los apresenta uma gana de motivações não
pertinentes.
Como é necessária argumentação para constituir o pleito, são citadas
inadequações da parte contrária, iniciando ou acentuando uma situação conflituosa
que, certamente, terá efeitos ainda piores sobre a criança.
Atualmente ainda é comum que o maior ônus dos cuidados diários com a
prole sejam da mulher. Como as tarefas ainda são pouco compartilhadas com o pai,
é comum que em casos de separação o genitor mantenha sua rotina de atividades,
enquanto muitas vezes para se adequar a nova situação de cuidado dos filhos a
genitora tem que rever prioridades e abrir mão de projetos.
Outra situação frequentemente observada é de genitoras muito jovens e
imaturas que deixam a cargo das avós o cuidado dos filhos, não exercem a
maternagem veem nesse arranjo a possibilidade de continuar sua vida interrompida
por uma gravidez. Confiar nos avós constitui uma forma de ver o filho assumido por
pessoa de confiança, sem que isto represente um abandono e dentro do seio
familiar. Porém, quando os avós decidem regularizar a guarda, ajuizando ação,
essas mães realizam um movimento de resgate da criança, porque sua perda do
filho aparentemente aponta sua incompetência e descaso.
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PODER JUDICIÁRIO
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O desfecho é o surgimento de um conflito até então inexistente ou velado e a


relação de anterior cooperação, facilmente se transforma em competição, com
prejuízo para a criança. Integrado ao lar dos avós e acostumada à dinâmica familiar
compartilhada com eles, é comum que a crina ou adolescente rejeite o retorno para
a mãe. Tal circunstância, constitui um desafio para o perito, com a função de avaliar
o melhor interesse da criança nesta situação. Nestes casos um dos argumentos
mais utilizados pelos genitores é que que a preferência da criança ocorre porque
junto aos avós tem tratamento privilegiado (mimos), não tem regras nem imposição
de limites. Tal colocação é pertinente em muitos casos, ma em outros, os avós são
mais afetivos que os genitores e em função da rotina de cuidados desenvolveram
bons vínculos com os netos. Tentar se colocar no lugar da criança percebendo
quanto sua posição é difícil, constitui exercício para compreender o quanto ela se
sente preocupada e responsável por não magoar nenhuma das pessoas que fazem
parte de sua história e que são importantes para ela.
Outros casos apresentam avós que necessitam desesperadamente do neto,
com o qual mantêm uma relação simbiótica. A criança pode desejar deixa-los para
morar com os pais, porém, a expressão de sua vontade acarreta culpa, pois
geralmente nestes contextos ela é envolvida em chantagens emocionais de toda a
ordem. A escuta atenta e a devida intervenção pode contribuir para que a criança se
liberte da situação de dependência dos avós, o que a impede de crescer e
conquistar autonomia.
É necessário salientar a questão de avós que se sentem fracassados, ou
culpados, em sua missão de pais e tendem reparar o passado maternando os netos.
Interessante observar que nos casos litigiosos, ao invés da reparação surgir na
forma de apoio e amparo às dificuldades dos pais, algumas vezes denota uma
usurpação deste lugar. Lembramos que estes sentimentos de inadequações não são
conscientes e sim racionalizados como necessidade de proteger os netos.Estas
situações ocorrem, com maior frequência, entre mães e filhas, surpreendendo pela
intensidade do esgarçamento das relações entre as duas gerações, em contraste
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PODER JUDICIÁRIO
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com as demonstrações de afeto da avó pelo neto. Ou seja, avós buscam a guarda
dos netos por necessidades subjetivas, mesmo que os genitores reúnam condições
(biopsicossociais) para assumir as responsabilidades inerentes aos seus papeis e
funções parentais. As necessidades podem estar associadas à construção das
subjetividades no contexto histórico de cada grupo familiar.
Quando surgem intensos conflitos ente as partes, mantêm-se vivas as
impressões emocionais ou vivências passadas, o que pode impedir a reconstrução
de novos padrões de relacionamentos, focados nas funções parentais. Muitas vezes,
as relações não resolvidas entre mãe e filha eclodem com foco no neto, atualizando
ressentimentos do passado, sob o disfarce da proteção.
Quando é possível, no cotidiano do trabalho, o profissional dar visibilidade a
estas questões, emerge uma possibilidade de mudança do conflito para a
cooperação. Entretanto, tais intervenções nem sempre são bem sucedidas, devido
ao próprio enquadre do trabalho no judiciário, que gera uma postura defensiva das
partes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema escolhido por este grupo de estudos oportunizou compartilharmos


leituras, discussões de casos e reflexões acerca de aspectos vivenciados no
cotidiano da atuação de assistentes sociais e psicólogos judiciários do TJ. O
interesse pelo tema surgiu pela observação do crescimento significativo da demanda
de pedidos de guarda envolvendo a figura dos avós e em função da necessidade de
compreender a multiplicidade de questões associadas às configurações familiares
contemporâneas.
Os estudos e os debates em grupo permitiram concluir que o universo familiar
tem uma grande variedade de formas de organização, com crenças, valores e
atitudes, peculiares que são motivados pela constante busca de soluções frente às
vicissitudes da vida.
Cada família constrói ou reedita sua “cultura”, seus códigos, seus ritos, sua
história. e muitos aspectos influenciam tal construção. Aorganização familiar é
influenciada por aspectos sociais, políticos, econômicos, tecnológicos e ideológicos.
Os casos estudados revelaram que, ao buscar o poder judiciário para a
solução de seus conflitos, apresentados sob a forma de pedidos de guarda, alguns
indivíduos buscam encontrar o melhor arranjo em benefício das crianças e
adolescentes. Mas para outros, as necessidades pessoais decorrentes de questões
subjetivas, intensificam os conflitos e isso se sobrepõe às necessidades das
crianças e adolescentes.
Cabe aos peritos considerar a diversidade de manifestações que chegam ao
judiciário concretizadas nas ações de guarda, para que ao perceber as diferentes
formas de emoção, seja capaz de interpretá-las e de alcançar seus significados.
Lembrar que o foco do trabalho é o bem estar (biopsicossoacial) de crianças e
adolescentes que estão em franco desenvolvimento e manter uma postura
compreensiva no contato com todos os litigantes, independentemente de suas

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motivações, da situação concreta e das decisões da guarda também tem mostrado


benefícios.
A escuta atenta e a postura compreensiva permitem ao perito ir além da
avaliação e encontrar a melhor condução do caso. Auxiliar familiares a expor
dificuldades e encontrar significados para elas, permite movimentos na direção das
mudanças. A avaliação psicossocial pode acontecer em situação de cooperação, na
qual as partes podem se conscientizar dos aspectos que cercam a questão e
mantêm o conflito e assim buscar alternativas mais favoráveis para a situação.

545
PODER JUDICIÁRIO
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