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CADERNO DOS

GRUPOS DE
ESTUDOS

SERVIÇO SOCIAL
E
PSICOLOGIA
JUDICIÁRIOS

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


Presidente
Desembargador PAULO DIMAS DE BELLIS MASCARETTI

ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES – EJUS


Diretor
Desembargador ANTONIO CARLOS VILLEN

CADERNO DOS GRUPOS DE ESTUDOS


Serviço Social e Psicologia Judiciários

Número 13

SÃO PAULO
2016
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

SUMÁRIO

A INTERFACE DO SETOR TÉCNICO JUDICIÁRIO COM OS DIVERSOS


ATORES DA REDE DE PROTEÇÃO NO TRABALHO COM AS FAMÍLIAS DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES ACOLHIDOS/AS ............................................... 14

Introdução........................................................................................................................................ 16
1. A necessidade de superar estigmas, o paradoxo da medida de proteção e a
ineficiência das políticas públicas ............................................................................................ 17
2. O fluxo da medida de acolhimento institucional ............................................................. 22
3. O fluxo do acolhimento institucional emergencial .......................................................... 25
4. Possíveis estratégias para atuação em rede no trabalho com as famílias de
crianças e adolescentes acolhidos/as .................................................................................... 27
Conclusão........................................................................................................................................ 30
Referências ..................................................................................................................................... 32

DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM PROCESSO DE ADOÇÃO


................................................................................................................................ 34

Introdução........................................................................................................................................ 37
1. Fundamentação teórico-jurídica .......................................................................................... 38
2. O que leva à devolução.......................................................................................................... 42
3.Possibilidades de intervenção em situações de devolução de
crianças/adolescentes durante estágio de convivência da adoção .............................. 46
Conclusão........................................................................................................................................ 51
Referências ..................................................................................................................................... 53

DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR: INTERESSE DE QUEM?........................ 54

Introdução........................................................................................................................................ 57
1. Reflexões sobre família .......................................................................................................... 59
2. Sobre papéis e vínculos parentais ...................................................................................... 67
3. Pesquisa: "Realidade social: direitos e perda do poder familiar: desproteção
social x direito à convivência familiar e comunitária” e a atuação dos assistentes
sociais e psicólogos judiciários nos casos de destituição do poder familiar .............. 71
Conclusão........................................................................................................................................ 76
Referências ..................................................................................................................................... 79
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O SETOR TÉCNICO JUDICIÁRIO E O ATENDIMENTO À(O) ADOLESCENTE


EM CONFLITO COM A LEI: PENSANDO UMA PRÁTICA GARANTISTA ........... 80

O setor técnico judiciário e o atendimento à (ao) adolescente em conflito com a lei:


pensando uma prática garantista ............................................................................................. 82
Adolescência .................................................................................................................................. 83
Sistema de responsabilização da (o) adolescente ............................................................. 86
O fazer profissional e a prática garantista ............................................................................. 89
Notas sobre a socioeducação ................................................................................................... 90
Referências ..................................................................................................................................... 96

CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS EM VARAS DE FAMÍLIA: CONCEITUAÇÃO,


CARACTERÍSTICAS E PERSPECTIVAS .............................................................. 97

Introdução...................................................................................................................................... 101
1. O que é um caso altamente litigioso e quais são as suas características? ......... 103
1.1 Qual o provável conflito subjacente que dificulta o processo de separação e
origina os casos altamente litigiosos nas Varas de Família? ........................................ 108
2. As consequências do litígio familiar no cotidiano do judiciário ................................ 111
2.1 Dificuldades na definição da pensão alimentícia, na composição da guarda e na
convivência dos filhos com ambos genitores. .................................................................... 111
2.2 As possíveis consequências do litigio parental na subjetividade dos filhos ...... 117
3. Dos agravamentos ................................................................................................................. 119
3.1 Alienação parental, falsas acusações, afastamento e suspensão da convivência
entre a criança e um dos genitores ....................................................................................... 119
4. Sobre as alternativas para enfrentamento dos conflitos ............................................ 127
4.1 Oficina de pais e filhos ....................................................................................................... 129
4.2 A prática da mediação familiar em diferentes países ............................................... 131
4.2.1 Portugal ............................................................................................................................... 131
4.2.2 Espanha .............................................................................................................................. 133
4.2.3 Bélgica ................................................................................................................................. 134
4.2.4 França .................................................................................................................................. 134
4.2.5 Argentina............................................................................................................................. 136
4.2.6 Canadá ................................................................................................................................ 136
4.2.7 Estados Unidos ................................................................................................................. 140
4.2.8 Brasil .................................................................................................................................... 142
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Conclusão...................................................................................................................................... 143
Referências ................................................................................................................................... 145

GÊNERO, SEXUALIDADE E ATUAÇÃO PROFISSIONAL: ENFRENTANDO


CRISTALIZAÇÕES NO JUDICIÁRIO ................................................................... 148

Introdução...................................................................................................................................... 150
Desenvolvimento ......................................................................................................................... 151
Conclusão...................................................................................................................................... 163
Referências ................................................................................................................................... 164

O SERVIÇO SOCIAL NO JUDICIÁRIO: A ELABORAÇÃO DO ESTUDO SOCIAL


À LUZ DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO PROFISSIONAL ................................. 165

Introdução...................................................................................................................................... 168
1. A inserção do serviço social no judiciário ....................................................................... 170
2. O estudo social e sua dimensão ético-política .............................................................. 177
Conclusão...................................................................................................................................... 185
Referências ................................................................................................................................... 187

REFLEXÕES ACERCA DAS FALSAS ACUSAÇÕES DE ABUSO SEXUAL ..... 189

Introdução...................................................................................................................................... 191
Alienação parental e falsas acusações de abuso sexual ............................................... 191
Conclusão...................................................................................................................................... 196
Referências ................................................................................................................................... 197

JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO PARADIGMA EM CONSTRUÇÃO ....... 198

Introdução...................................................................................................................................... 201
1. Do que estamos falando quando nos referimos à justiça restaurativa? ............... 202
2. A justiça restaurativa no Brasil: algumas aproximações ............................................ 207
2.1 Justiça restaurativa no estado de São Paulo .............................................................. 209
3. Base legal da justiça restaurativa no Brasil ................................................................... 211
Conclusão...................................................................................................................................... 214
Referências ................................................................................................................................... 216
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REFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE DO SERVIÇO SOCIAL NAS VARAS DE


FAMÍLIA................................................................................................................ 217

Introdução...................................................................................................................................... 220
Inquietações sobre a identidade profissional do serviço social nas demandas das
varas de família como motivação para a criação do grupo de estudos e a adesão
dos profissionais .......................................................................................................................... 220
Identidade profissional e o projeto profissional do serviço social ................................ 225
O estudo social/perícia social como principal ação profissional para o assistente
social em vara de família .......................................................................................................... 227
Mudanças do novo código de processo civil e os riscos à autonomia e ética
profissional .................................................................................................................................... 229
Conclusão...................................................................................................................................... 233
Referências ................................................................................................................................... 234

IMPLICAÇÕES DA CONJUGABILIDADE NA PARENTALIDADE: O OLHAR DA


EQUIPE TÉCNICA ................................................................................................ 235

Introdução...................................................................................................................................... 237
1. A influência da conjugalidade e do divórcio no exercício parental ......................... 238
2. Dinâmicas, comportamentos e atributos parentais...................................................... 243
3. O olhar da equipe técnica sobre as questões apresentadas ................................... 252
Conclusão...................................................................................................................................... 254
Referências ................................................................................................................................... 256

AUTORES E AUTORAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E


ADOLESCENTES: ANÁLISE A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA ..................... 257

Introdução...................................................................................................................................... 260
1.Contextualizando o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes,
e autores de violência ................................................................................................................ 265
2. Serviços e programas destinados às vítimas de violência, familiares e autores de
violência ......................................................................................................................................... 269
2.1 NPV - Núcleos de prevenção de violência da unidade de saúde nível: municipal
.......................................................................................................................................................... 269
2.2 Serviço de proteção social às crianças e adolescentes vítimas de violência ... 270
2.3 CRAMI - Centro regional de atenção aos maus-tratos na infância ...................... 273
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2.4 CEARAS - Centro de estudos e atendimento relativos ao abuso sexual ........... 274
3. Determinações sociais como um dos elementos para compreender a violência
sexual perpetrada pelos autores homens contra crianças e adolescentes .............. 275
4. Análise psicológica de uma dinâmica familiar abusiva............................................... 285
Conclusão...................................................................................................................................... 292
Anexos............................................................................................................................................ 295
Anexo I - Análise do filme: uma (possível) leitura do real a partir do filme “O quarto
de Jack”.......................................................................................................................................... 295
Anexo II - O que constava no Boletim de Ocorrência e no Termo de Declarações 299
Referências ................................................................................................................................... 301

O SERVIÇO SOCIAL E A PSICOLOGIA NO JUDICIÁRIO - CONSTRUINDO O


SEU FAZER PROFISSIONAL E A INTERFACE COM A REDE DE
ATENDIMENTO .................................................................................................... 305

Introdução...................................................................................................................................... 308
Resgatando nossa história ....................................................................................................... 309
Construção das atribuições ..................................................................................................... 310
Evolução da interlocução da equipe técnica do TJ com a rede ................................... 314
Realidade do trabalho com a rede de atendimento na região ...................................... 315
Conclusão...................................................................................................................................... 321
Referências ................................................................................................................................... 322

OS IMPACTOS DAS DEMANDAS ATUAIS DO TRABALHO DO ASSISTENTE


SOCIAL E PSICÓLOGO NO JUDICIÁRIO NA SAÚDE DOS TÉCNICOS ........... 323

Introdução...................................................................................................................................... 326
1. A precarização do mundo do trabalho no século XXI ................................................. 327
1.1 A crise do capital nas últimas décadas e seus reflexos na pessoa que trabalha
.......................................................................................................................................................... 327
1.2 A precarização do mundo do trabalho .......................................................................... 329
1.3 Saúde do trabalhador ......................................................................................................... 331
1.4 Psicodinânima do trabalho segundo Dejours.............................................................. 333
2. O trabalho profissional do assistente social no poder judiciário: do processo
histórico até as demandas atuais........................................................................................... 337
2.1 A proposta de inserção do Serviço Social no Judiciário .......................................... 337
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2.2 A consolidação do Serviço Social no Poder Judiciário ............................................ 339


2.3 O Juizado de Menores e o Serviço Social ................................................................... 340
2.4 A construção da função de perito ................................................................................... 342
2.5 As configurações profissionais atuais do assistente social no Poder Judiciário
.......................................................................................................................................................... 344
2.6 As novas demandas do Serviço Social no Poder Judiciário .................................. 347
3. O trabalho profissional do psicólogo no Poder Judiciário: do processo histórico
até as demandas atuais ............................................................................................................ 350
3.1 A inserção do psicólogo no Tribunal de Justiça de São Paulo .............................. 350
3.2 Avaliação psicológica na Instituição Judiciária ........................................................... 355
3.3 Especificidades das Varas de Infância e Juventude ................................................ 356
3.3.1 O estudo psicológico na Vara da Infância e Juventude ....................................... 357
3.4 Especificidades das Varas de Família e Sucessões ................................................ 358
3.4.1 O estudo psicológico nas Varas de Família e Sucessões .................................. 358
3.5 Novas demandas ................................................................................................................. 359
Conclusão...................................................................................................................................... 361
Referências ................................................................................................................................... 363

APROXIMAÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES:


ASPECTOS TEÓRICOS, METODOLÓGICOS E PRÁTICOS DA ATUAÇÃO DOS
PROFISSIONAIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA .................................................. 366

Introdução...................................................................................................................................... 370
1. Aproximações acerca da trajetória de acolhimento da criança/adolescente e o
acompanhamento familiar ........................................................................................................ 371
1.1 A família de origem e as crianças e adolescentes que estão em instituição de
acolhimento ................................................................................................................................... 375
2. A destituição do poder familiar ........................................................................................... 377
2.1 Aspectos fundamentais acerca do poder familiar ...................................................... 377
2.2 A entrega de um filho: considerações sobre o abandono materno ...................... 378
3. A adoção e seus desdobramentos ................................................................................... 380
3.1 O Processo de preparação dos pretendentes à adoção ......................................... 381
3.2 Aspectos do curso preparatório para os pretendentes à adoção ......................... 383
3.3 O estágio de convivência .................................................................................................. 385
3.3.1 Aspectos legais:................................................................................................................ 385
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3.3.2 Atuação dos profissionais da Vara da Infância e da Juventude no processo de


Adoção – Aspectos Teóricos ................................................................................................... 386
3.3.3 Atuação dos profissionais da Vara da Infância e da Juventude no processo de
adoção – aspectos práticos ..................................................................................................... 387
4. Devolução de crianças / adolescentes adotados ou em estágio de convivência 389
Conclusão...................................................................................................................................... 394
Referências ................................................................................................................................... 396

GUARDA COMPARTILHADA: MULTIPLICIDADE DE DESAFIOS NAS


AVALIAÇÕES PSICOSSOCIAIS ......................................................................... 398

Introdução...................................................................................................................................... 400
A guarda compartilhada – foco na lei ................................................................................... 402
Guarda dos filhos - multiplicidade de desafios .................................................................. 409
Referências ................................................................................................................................... 416

A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES E OS REBATIMENTOS NA


PRÁTICA PROFISSIONAL DOS ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS DO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO ................................... 418

Introdução...................................................................................................................................... 420
1. Judicialização .......................................................................................................................... 420
1.1 Judicialização das relações familiares .......................................................................... 421
2. As (re) configurações das relações familiares .............................................................. 424
3. Limites e possibilidades da atuação do setor técnico frente à judicialização das
relações familiares ...................................................................................................................... 427
Conclusão...................................................................................................................................... 430
Referências ................................................................................................................................... 432

GUARDA COMPARTILHADA E ALIENAÇÃO PARENTAL – NAS TRAMAS DAS


RELAÇÕES SOCIAIS ........................................................................................... 434

Introdução...................................................................................................................................... 436
1. Família e conflito – de que lugar falamos?..................................................................... 437
2. Guarda compartilhada .......................................................................................................... 440
3. Alienação parental ................................................................................................................. 444
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Conclusão...................................................................................................................................... 450
Referências ................................................................................................................................... 452

DA PARENTALIDADE À ALIENAÇÃO PARENTAL ........................................... 455

Introdução...................................................................................................................................... 458
1. Exercício da parentalidade: reflexões sobre a maternagem e a paternagem ..... 459
2. Alienação parental - distúrbio patológico ou disfuncionalidade no exercício da
parentalidade? ............................................................................................................................. 465
Conclusão...................................................................................................................................... 471
Referências ................................................................................................................................... 472

A ESCUTA DE CRIANÇAS NAS SEPARAÇÕES LITIGIOSAS .......................... 473

Introdução...................................................................................................................................... 477
1. Um breve perfil das famílias em situação de litígio ..................................................... 479
2. Algumas consideraçôes sobre desenvolvimento infantil ........................................... 481
3. A escuta de crianças e adolescentes em processos altamente litigiosos ............ 488
Conclusão...................................................................................................................................... 493
Referências ................................................................................................................................... 495

FAMÍLIA E QUESTÕES DE TRANSGÊNERO ..................................................... 497

Introdução...................................................................................................................................... 499
A família ......................................................................................................................................... 499
A modernidade líquida e as relações humanas ................................................................ 502
Construção das identidades sexuais e identidades de gênero .................................... 504
As questões de gênero na perspectiva das políticas públicas e práticas jurídicas 508
Atuação de psicólogos e assistentes sociais junto a famílias ....................................... 509
Desafios ......................................................................................................................................... 510
Referências ................................................................................................................................... 512

OFICINA DE LAUDO PSICOSSOCIAL: CONSTRUINDO A ANÁLISE SOCIAL E A


PSICOLÓGICA ..................................................................................................... 513
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Introdução...................................................................................................................................... 516
1. A análise social e a análise psicológica em um processo de cadastro de
pretendentes à adoção .............................................................................................................. 517
2. A análise social e a análise psicológica em um processo de guarda .................... 526
3. A análise social e a análise psicológica em um processo de interdição ............... 531
Conclusão...................................................................................................................................... 538
Referências ................................................................................................................................... 539

A AUSÊNCIA DO PROFISSIONAL DE PSICOLOGIA NAS COMARCAS E OS


SUPOSTOS REBATIMENTOS NA PRODUÇÃO DO ESTUDO PSICOSSOCIAL
NOS PROCESSOS NAS VARAS DE FAMÍLIA E SUCESSÕES E INFÂNCIA E
JUVENTUDE ........................................................................................................ 542

Introdução...................................................................................................................................... 544
1. A inserção do serviço social e da psicologia no judiciário brasileiro e paulista .. 545
2. As expressões da questão social e os rebatimentos no trabalho interdisciplinar
.......................................................................................................................................................... 549
3. Contexto atual das comarcas que não possuem psicólogos ................................... 551
Conclusão...................................................................................................................................... 557
Referências ................................................................................................................................... 559

DESENVOLVIMENTO INFANTIL E MÉTODOS DE ESCUTA ............................. 561

Introdução...................................................................................................................................... 564
1. Desenvolvimento infantil ...................................................................................................... 565
2. Protocolos ................................................................................................................................. 568
2.1 Entrevista cognitiva ............................................................................................................. 569
2.2 RATAC .................................................................................................................................... 571
2.3 NICHD ..................................................................................................................................... 572
3. Relato de experiência ........................................................................................................... 574
3.1 A implantação da escuta especial na realidade de São Caetano do Sul/SP .... 574
3.2 Estabelecimento do fluxo com a rede ........................................................................... 575
Conclusão...................................................................................................................................... 578
VULNERALIBIDADE OU RISCO? APROXIMAÇÕES TEÓRICAS E A PRÁTICA
DOS ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS JUDICIÁRIOS ............................ 581
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Introdução...................................................................................................................................... 586
1. Considerações teóricas sobre vulnerabilidade e risco ............................................... 587
2. Tipos de risco e fatores de proteção no desenvolvimento de crianças e
adolescentes................................................................................................................................. 590
2.1 Violência doméstica ............................................................................................................ 593
2.1.1 Violência física .................................................................................................................. 593
2.1.2 Violência psicológica e a exposição à violência conjugal .................................... 594
2.1.3 Violência sexual ................................................................................................................ 595
2.1.4 Negligência......................................................................................................................... 596
2.2 A Violência doméstica e a prática infracional.............................................................. 596
2.3 Os fatores de proteção ....................................................................................................... 597
2.3.1 Atributos disposicionais da própria criança .............................................................. 598
2.3.2 Características da família .............................................................................................. 598
2.3.3 Fontes de apoio individual ou institucional disponíveis ........................................ 598
2.4 Competências psicossociais como fator de proteção .............................................. 599
3. Atuação da equipe técnica psicossocial do Tribunal de Justiça diante de
situações de risco de crianças e adolescentes ................................................................. 599
4. Papel da rede e as políticas públicas .............................................................................. 604
5. Análise de documentários ................................................................................................... 608
5.1 Análise do filme “Preciosa – uma história de esperança” ....................................... 608
5.2 Análise do filme “Juízo” .................................................................................................... 613
Conclusão...................................................................................................................................... 619
Referências ................................................................................................................................... 621
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A INTERFACE DO SETOR TÉCNICO JUDICIÁRIO COM OS


DIVERSOS ATORES DA REDE DE PROTEÇÃO NO
TRABALHO COM AS FAMÍLIAS DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES ACOLHIDOS/AS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E FAMILIAR”

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2016
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COORDENADORAS

Ana Paula Martinez – Psicóloga Judiciário – Comarca de Piracicaba


Elen Tavares de Sá – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

AUTORES

Alexandra de Lima Dalonso Urbano – Assistente Social Judiciário – Foro Regional VII
- Itaquera
Ana Luísa de Marsillac Melsert – Psióloga Judiciário – Foro Regional II - Santo Amaro
Andrea dos Anjos Pereira da Silva Amantéa – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Caçapava
Eliane Ferraz Coca – Assistente Social Judiciário – Foro Regional VII - Itaquera
Gracielle Feitosa de Loiola – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Vargem
Grande Paulista
Haroldo Tuyoshi Sato – Psicólogo Judiciário – Comarca de Sorocaba
Josiane Dacome – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Hortolândia
Karina Serrano Moya – Psicóloga Judiciário – Foro Regional VII - Itaquera
Leniane Facci – Assistente Social Judiciário – Foro Regional VII - Itaquera
Márcia Cristina Campos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica da
Serra
Marina Tomé Teixeira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mairiporã
Monica Giacomette Secco – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de
Hortolândia
Paula Antonia Pansa Brumatti – Assistente Social Judiciário – Foro Regional VII -
Itaquera
Paula Lúcio dos Santos – Assistente Social Judiciário – Foro Regional III - Jabaquara
Samira Leinko Matsuda Raphael – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itaquaquecetuba
Sandra Aparecida Bossetto – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional VII - Itaquera
Talita Afonso Chaves – Psicóloga Judiciário – Comarca do Guarujá
Valquíria Gomes de Moraes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tremembé
Viviane Souza Duque Garcia – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taubaté
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INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é o de promover a reflexão sobre o trabalho com


famílias de crianças e adolescentes acolhidos/as e o papel dos Setores Técnicos do
Judiciário neste contexto, com base na vivência dos/as profissionais membros deste
Grupo de Estudos.
Tal reflexão remete ao reconhecimento fundamental da incompletude dos
órgãos e instituições e da apropriação das atribuições e papéis desempenhados
pelo diversos atores que compõem a rede de proteção aos direitos da infância e
juventude.
Remete ainda ao reconhecimento do arsenal de normativas e
regulamentações historicamente construídas a partir da mudança de paradigma da
situação irregular para a proteção integral, demarcada com o advento da Lei Federal
8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Esse foi o caminho escolhido neste ano por este Grupo de Estudos: à luz das
normativas que dispõem sobre o fluxo dos procedimentos para o acolhimento
institucional e de referencial teórico pertinente, foram dados os passos com base na
partilha das experiências que contemplam a diversidade das atuações nas
Comarcas, guiando para o reconhecimento da relevância da interface dos Setores
Técnicos do Judiciário com os demais atores da rede de proteção.
É o conceito de rede que norteia a atuação de todo o sistema de garantia de
direitos enquanto uma necessária construção coletiva e contínua. Como ensina
Oliveira (2007), a organização em rede excede a somatória das instituições
prestadoras de serviço, pois envolve a interlocução entre elas em torno de um
objetivo comum.
Com o intuito de reintegrar as crianças e adolescentes em medida de
proteção de acolhimento às suas famílias, os órgãos e as instituições, materializadas
pelas ações desenvolvidas pelos/as seus/suas diversos/as técnicos/as e
representantes, devem unir esforços para promover a efetivação de suas
responsabilidades e atribuições, sob a ótica do melhor interesse da
criança/adolescente.

16
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Trazer as famílias ao centro da rede para a garantia da proteção social é o


desafio e a tarefa que são postas em pauta, na consideração que o trabalho com
famílias não pode ser relegado nem dissociado das intervenções que visam o
desligamento das crianças e adolescentes dos serviços de acolhimento.

1. A NECESSIDADE DE SUPERAR ESTIGMAS, O PARADOXO DA


MEDIDA DE PROTEÇÃO E A INEFICIÊNCIA DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS

Alertam Fávero, Clemente e Giacomini (2008) que na relação entre as


famílias, o Judiciário e os serviços de acolhimento de crianças e adolescentes, os
familiares se queixam sobre a aparência de que seus esforços nunca são suficientes
e que sofrem pressão dos/as profissionais, retratando o estigma sofrido pelas
famílias.
O sociólogo Erving Goffman (1988, p.14), que utilizou o termo cientificamente
“estigma”, originalmente um termo grego que se aplicava ao campo religioso
atribuindo-o a fenômenos sociológicos, definiu o estigma como algo que diferencia
um indivíduo, família ou grupo social do que a sociedade que os inclui sugere como
comportamento ou identidades normais:

(...) Em todos estes exemplos de estigma, entretanto, inclusive aqueles em


que os gregos tinham em mente, encontram-se as mesmas características
sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na
relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e
afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção
para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica
diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não se afastam
negativamente das expectativas em questão serão chamados de normais.

Este trecho aponta para o estigma como uma espécie de identidade social
deteriorada, que tira todas as chances do indivíduo, família ou grupo social ser
percebido como possuidor de atributos positivos.
Coloca-se a noção de que os significantes sociais, que podem estar
relacionados com a pobreza, ou fracasso familiar, estejam incidindo sobre
determinadas famílias, devido a um processo social de projeção destas

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

características, induzindo-as, realmente ao fracasso, devido ao mecanismo das


profecias auto realizadoras. Por este motivo, é importante estar atento à história
destas famílias com quem os técnicos do judiciário têm que trabalhar para uma
maior aproximação às suas realidades.
Por outro lado, a sociedade atribui o significante social de fracasso social para
aquelas famílias que tem seus membros acolhidos culpabilizando-os ao invés da
responsabilização da coisa pública, com foco na individualização da questão, sem a
correlação com o aspecto conjuntural, distanciando-se da realidade socioeconômica
e cultural das famílias.
Pichon-Riviére (1991, p. 273), analisando os conceitos da psiquiatria clássica,
que apontava a causa da doença mental como endógena, ou seja, interna ao
indivíduo, aponta como esta culpabilização leva a uma postura conservadora do
psiquiatra, que deixa de analisar os aspectos sociais que levaram o sujeito a se
tonar doente.
Apesar de focalizar o indivíduo doente mental, e a noção de endogeneidade
de sua doença, pode-se transpor tais conceitos para famílias disfuncionais e
culpabilização social destas, pois Pichon-Rivière aponta para que um indivíduo
doente mentalmente seja o porta-voz de uma família doente, que por sua vez é
porta-voz de uma sociedade doente. Por este motivo, sua psiquiatria social propõe
que se trabalhe o indivíduo, sua família e também a sociedade, de forma
concomitante.
O sujeito, já onerado pela perversidade do sistema sócio-econômico-político
vigente, é revitimizado pela ausência de políticas públicas eficientes, culminando na
necessidade da intervenção do Sistema de Justiça.
As famílias entregues a própria sorte, com parcos recursos, não conseguem
romper com o ciclo de violência em todos os seus aspectos. O resultado é o
equipamento de Justiça assoberbado com processos judiciais recorrentes, e

[...] chegamos ao grande paradoxo do abrigamento: ainda que a pobreza


não possa justificá-lo, é a violação de direitos básicos, em geral por parte do
poder público, o gerador da inclusão das crianças, adolescentes e famílias
pobres no sistema de justiça (GUEIROS; OLIVEIRA, 2005, p.127).

Nessa linha “o abrigo, portanto, é o espaço para onde são canalizadas as


situações resultantes das faltas e das omissões originadas por muitos, mas que em

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geral acabam sendo centralizadas nas famílias” (GUEIROS; OLIVEIRA, 2005,


p.128).
Os serviços de acolhimento por vezes são usados como depositário daquilo
que não cabe em lugar algum, ou como meio exclusivo de acesso aos direitos
sociais, tais como habitação, saúde e educação.
Também referenda Avarca (2011, apud RODRIGUES, 2015, p. 142) que “as
famílias pobres continuam sendo público privilegiado de intervenções que levam em
conta aspectos morais, religiosos e higiênicos”.
Cabe aqui ressaltar que as primeiras intervenções sociais basearam-se nos
aspectos religiosos e morais, e quando a medicina começou a retirar esta
prerrogativa de intervenção social dos religiosos e moralistas, empunhou a bandeira
da higienização dos espaços urbanos periféricos e da população pobre que aí
residia. Verifica-se nestes tipos de intervenção social, uma espécie de intervenção
de tipo arcaico, pré-científico, conservadora, enfim.
O relatório da pesquisa desenvolvida por Fávero (2014) durante os anos de
2011 a 2013 na cidade de São Paulo, na qual foram estudados 96 autos com
sentenças de destituição do poder familiar, envolvendo 121 pessoas, apresenta
dados que constatam que a pobreza ainda é motivo gerador do acolhimento de
crianças e adolescentes e que poucas são as ações efetivas de trabalho que
garantem a proteção social das famílias, materializados na ausência de informações
nos processos.
Destaca-se como exemplo, alguns dados dessas pessoas referentes à renda,
à moradia, ao acesso aos serviços socioassistenciais e de saúde: apenas 2%
estavam vinculadas a programa de transferência de renda; 8% pernoitava em
abrigos públicos; 19% viviam em situação de rua, portanto, sem espaço de acolhida
que garantisse alguma dignidade; 12% moravam em casa construída em alvenaria,
todavia sem informações sobre a qualidade e dimensões da construção, e condições
socioterritoriais; em apenas 36% foram localizadas informações sobre o tipo de
serviço de saúde utilizado e não foram localizadas informações sobre acesso a
programas de proteção social em relação 75% das pessoas.
Depreende-se que este cenário sinaliza a ineficiência e/ou a dificuldade de
acesso aos serviços e políticas públicas.

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Os motivos que levam meninos e meninas aos abrigos se perpetuam como


dificuldades para a sua reinserção. Isso indica que as políticas de atenção a
crianças e adolescentes não estão devidamente articuladas com ações de
atenção as suas famílias, o que poderia não apenas evitar a
institucionalização, como também abreviá-la, quando se mostrar
excepcionalmente necessária.(GUEIROS; OLIVEIRA, 2005, p. 126)

Além da ausência de políticas públicas, a mínima inclusão das famílias em


programas de assistência social e o pouco diálogo entre os atores, outros aspectos
que prejudicam as relações entre as famílias, o Judiciário e os Serviços de
Acolhimento apontados pelas autoras Fávero, Clemente e Giacomini (2008)
envolvem:
● a idealização de que o acolhimento é a solução para todas as violações;
● pouca informação da família sobre o significado da medida;
● a relação de subalternidade entre os órgãos;
● a substituição do papel educativo da família pelo serviço de acolhimento, no
caminho da desresponsabilização das funções parentais.

Sobre este último aspecto, vale mencionar que, dentre os doze princípios
dispostos no ECA que regem a aplicação das medidas de proteção, encontram-se a:

IX - responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada de modo


que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente;
X - prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança
e do adolescente deve ser dada prevalência a medidas que os mantenham
ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível,
que promovam a sua integração em família substituta;

No cotidiano das práticas profissionais junto aos Serviços de Acolhimento


percebe-se que poucas são as experiências relatadas sobre a participação das
famílias nas atividades de rotina das crianças e adolescentes acolhidos/as que
excetuam as visitas comumente regimentais (no geral, uma vez por semana, por um
determinado horário), embora o § 4º do art. 92 do ECA preveja que tais serviços
devam estimular o contato da criança ou adolescente com seus pais e parentes,
com vistas à preservação dos vínculos familiares, a promoção da reintegração
familiar e a preparação gradativa para o desligamento (incisos I e VIII do art. 92),
podendo contar com o auxílio do Conselho Tutelar e dos órgãos de assistência
social.

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Segundo Assis e Farias (2013), o acompanhamento da família de origem é


mais uma orientação apresentada no Plano Nacional de Convivência Familiar e
Comunitária, objetivando evitar o distanciamento entre a família e as crianças/
adolescentes. Deve começar logo no início do acolhimento, isto é, desde a inclusão
da criança ou do adolescente no serviço e o trabalho a ser desenvolvido deve ter o
compromisso na realização de um plano de atendimento que envolva a família, a
rede de serviços e o sistema de justiça.
Para além, é necessário que o profissional do Serviço de Acolhimento
enfatize os motivos da decisão judicial, bem como suas possíveis consequências
(ASSIS, FARIAS, 2013), evidenciando as dimensões objetivas e subjetivas
envolvidas, seja na perspectiva de reintegração familiar, seja para evitar possíveis
afastamentos posteriores.
A preocupação quanto à reinserção familiar e ao acompanhamento pós-
desacolhimento também são mencionados por Assis e Farias (2013), salientando
que se deve evitar que a primeira seja feita de forma precipitada podendo ocasionar
conflitos futuros na relação entre as crianças e seus responsáveis, havendo a
necessidade da preparação de todos os envolvidos e, após o reestabelecimento do
convívio familiar, o acompanhamento da família por pelo menos seis meses.
Verifica-se ainda que a inobservância e, por vezes, a ausência do Projeto
Político Pedagógico nos Serviços de Acolhimento que comungue com as
necessidades das crianças, dos adolescentes e de suas famílias, tende a acentuar a
personificação das ações, distanciando-se de uma prática institucional que vise o
caráter provisório da medida.
Com as mudanças oriundas da Lei 12.010/09, o Provimento CNJ 32/2013
sobre as audiências concentradas, percebe-se o perigo extremado da interrupção da
medida de acolhimento a qualquer custo, sem que a situação que ensejou a
aplicação da medida tenha sido superada ou enfrentada.
Agrava-se quando se verifica que tal prática ocorre principalmente em
situações de maior complexidade, nas quais a criança/adolescente demanda mais
atenção dos educadores, desestabilizando o Serviço, tais como os casos de
transtorno mental, dependência química e conflitos familiares.
Outra situação preocupante é a execução de ações meramente pró-forma,
desde o preenchimento da guia de acolhimento, à elaboração do Plano Individual de

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Atendimento (PIA) e audiências concentradas. Quando assim executadas, tais


ações contribuem em nada para qualquer mudança significativa na realidade das
crianças/adolescentes e suas famílias.
Vale ressaltar que todas essas situações podem se agravar diante do
proposto no Anteprojeto de Lei do Ministério da Justiça em consulta pública até
04/12/16 que propõe alterações nos procedimentos para adoção, visando a
prevalência da inserção em família substituta em detrimento do trabalho com as
famílias de origem.
Aponta-se que a atual situação pode se agravar considerando a conjuntura de
desmonte das políticas e o retrocesso das legislações que ferem direitos
historicamente construídos com a possível aprovação da PEC 241/55.

2. O FLUXO DA MEDIDA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Mediante os estudos das legislações pertinentes constata-se que existem


fluxos definidos, porém, na prática, nem sempre são seguidos a contento.
O ECA dispõe no art. 101, § 3º que crianças e adolescentes somente poderão
ser encaminhados ao Serviço de Acolhimento por meio de uma Guia de
Acolhimento, expedida pela autoridade judiciária, na qual obrigatoriamente constará,
dentre outros:

I - sua identificação e a qualificação completa de seus pais ou de seu


responsável, se conhecidos;
II - o endereço de residência dos pais ou do responsável, com pontos de
referência;
III - os nomes de parentes ou de terceiros interessados em tê-los sob sua
guarda;
IV - os motivos da retirada ou da não reintegração ao convívio familiar.

Via de regra não são esses os conteúdos que aparecem nas guias expedidas.
Em complementaridade, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da
Justiça de São Paulo (NSCGJ), em seu art. 877, rezam que:

Parágrafo único. Para a regularidade formal da medida é obrigatória a guia


de acolhimento institucional individual, a ser expedida eletronicamente pelo
portal do CNJ, juntando-se nos autos cópia com a numeração de controle
automaticamente gerada pelo sistema, procedendo-se de igual forma

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quando do desligamento institucional (CNJ – INSTRUÇÃO NORMATIVA nº


3, de 3 de novembro de 2009).

O § 4º do art. 101 do ECA apresenta a responsabilidade do Serviço de


Acolhimento em elaborar, imediatamente após o acolhimento da criança ou do
adolescente, um Plano Individual de Atendimento (PIA), visando à reintegração
familiar. Em complementaridade, as NSCGJ apresentam que:

Art. 856. No Procedimento de Acolhimento Institucional, o juiz poderá


instruí-lo com cópias da ação principal, que serão enviadas à instituição de
acolhimento. § 1º De imediato, assinando o prazo de 30 (trinta) dias, com as
cópias necessárias, o Juiz requisitará do programa de acolhimento
institucional ou familiar, a ser elaborado por sua equipe técnica, o envio do
Plano Individual de Atendimento – PIA, com os requisitos legais (ECA, art.
101, §§ 4º, 5º e 6º). § 2º Recebido o PIA, caberá ao juiz encaminhar os
autos ao setor técnico para manifestação. Feito isso, independentemente
de despacho, abrir-se-á vista ao Ministério Público. Após, o Juiz da Infância
determinará, se necessária, a complementação do PIA. (grifo nosso)

Ora, se o PIA já foi elaborado, onde entra o papel articulador do Setor Técnico
Judiciário com o Serviço de Acolhimento, com a criança/adolescente e sua família?
Enfim, uma vez determinado o acolhimento institucional da
criança/adolescente, o Serviço de Acolhimento tem a obrigatoriedade de reavaliar
periodicamente cada caso, com intervalo máximo de seis meses, conforme disposto
no inciso XIV do art. 94 do ECA, e dar ciência dos resultados à autoridade
competente (nesse caso, ao juiz). Cabe, portanto, ao dirigente da entidade que
desenvolve o programa de acolhimento institucional ou familiar remeter o relatório
circunstanciado acerca da situação de cada criança ou adolescente acolhido e sua
família (§ 2º do art. 92).
O juiz, por sua vez, com base em relatório elaborado por equipe
interprofissional ou multidisciplinar, decide de forma fundamentada pela
possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta, como
preconiza o § 1º do art. 19 do ECA e,

Se, antes da revisão semestral da medida de acolhimento, a reintegração


ou integração familiar, na conformidade do PIA aprovado ou homologado,
se concretizar, o juiz, colhendo manifestação das Seções Técnicas e
ouvido o Ministério Público e, eventualmente, o Defensor, decidirá, no prazo
de 5 (cinco) dias.(NSCGJ, 2016, Art. 862, grifo nosso).

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O objetivo da reavaliação periódica é favorecer que a permanência da criança


e do adolescente em programa de acolhimento não se prolongue por mais de 2
(dois) anos, em consonância com o § 2º do mesmo artigo.
Consequentemente, o art. 859 das NSGCJ preconiza que:

O Juiz da Infância e Juventude, sem prejuízo do andamento regular,


permanente e prioritário dos processos sob sua condução, realizará
“Audiências Concentradas”, em cada semestre, preferencialmente nos
meses de abril e outubro, e sempre que possível nas dependências
das entidades de acolhimento, com a presença dos atores do sistema
de garantia dos direitos da criança e do adolescente, para reavaliação
de cada uma das medidas protetivas de acolhimento, diante de seu
caráter excepcional e provisório, com a subsequente confecção de atas
individualizadas para juntada em cada um dos processos.3 § 1º Para a
audiência concentrada convocar-se-ão todos os órgãos integrantes da rede
socioassistencial, da saúde, da educação, da habitação, trabalho, emprego
etc, responsáveis pelo atendimento e acompanhamento da criança e/ou
adolescente e respectiva família; a equipe técnica do programa de
acolhimento institucional ou familiar; os interessados na assunção da
criança e/ou adolescente (a família natural – pais, ou pai ou mãe –, ou a
família extensa – avós, tios, primos, irmãos, etc. – ou, eventualmente, a
família substituta); a criança ou o adolescente – aquela ouvida se
compreender e este ouvido obrigatoriamente acerca das propostas do PIA;
o Assistente Social-Judiciário e o Psicólogo-Judiciário que
acompanham o caso. Deverão ser ainda intimados o Ministério Público,
Defensoria Pública, Advogado Dativo ou Constituído. Deverão também ser
convocados para o ato o escrivão judicial da própria vara e o Conselho
Tutelar. § 2º Na audiência concentrada serão discutidas as propostas
constantes do PIA, de modo a vincular o Poder Público a prestar os serviços
a seu encargo e a família ou o interessado a se submeter aos
acompanhamentos e tratamentos necessários. (grifo nosso)

Entretanto, o magistrado poderá excepcionalmente deixar de realizar a


Audiência Concentrada, desde que devidamente justificado por despacho
fundamentado, e considerando estritamente o superior interesse daquele acolhido,
conforme previsto no Provimento CG Nº 13/2016.
Verifica-se, pois, que aos setores técnicos cumpre a participação nas
Audiências Concentradas e a manifestação devida nas situações em que há
indicação de reintegração ou integração familiar em período menor a seis meses.
Para que esta participação e manifestação sejam orgânicas, é imprescindível que
os/as profissionais tenham possibilidade de acompanhar as situações das
crianças/adolescentes e suas famílias desde a etapa inicial da medida.

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3. O FLUXO DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL EMERGENCIAL

Há situações em que o risco ao qual a criança/adolescente está exposto/a é


tão eminente que não permite aguardar o trâmite processual acima mencionado,
gerando a execução da medida de acolhimento institucional com urgência.
Para tanto, é assegurado no art.93 do ECA que

As entidades que mantenham programa de acolhimento institucional


poderão, em caráter excepcional e de urgência, acolher crianças e
adolescentes sem prévia determinação da autoridade competente, fazendo
comunicação do fato em até 24 (vinte e quatro) horas ao Juiz da Infância e
da Juventude, sob pena de responsabilidade.

O promotor de justiça Murillo José Digiácomo1 defende que, por analogia à


este artigo, também o Conselho Tutelar (CT), quando responsável pela aplicação da
medida em caráter emergencial, tem o mesmo prazo para efetivar a comunicação do
fato ao juiz.

(...) o Conselho Tutelar somente está legalmente autorizado a aplicar a


medida protetiva de acolhimento institucional quando constatada a falta dos
pais (art. 98, inciso II, primeira parte, da Lei nº 8.069/90), ou em situações
extremas e emergenciais (o chamado “flagrante de vitimização), devendo
em qualquer caso, comunicar o fato à autoridade judiciária em, no máximo,
24 (vinte e quatro) horas após o acolhimento institucional.

De igual modo, o art. 863 das NSCGJ iguala o Serviço de Acolhimento e o


Conselho Tutelar no dever de comunicar ao Juízo da Infância e Juventude, no prazo
de 24 (vinte e quatro) horas os casos de acolhimento institucional sem prévia
intervenção judicial.
Ressalta-se aqui a imprescindibilidade de capacitar os Conselheiros Tutelares
para a utilização desse recurso, evitando a judicilialização constante, o asilamento
como alternativa para a falta ou ineficiência de trabalho social com as famílias na
base ou para a dificuldade de acesso aos serviços e políticas públicas.
Por vezes, observa-se que a motivação para o acolhimento emergencial
incide na falta de preparo de alguns/as conselheiros/as tutelares, que adotam tal
ação como primeira medida de proteção, sem antes esgotar todos os recursos, além
da dificuldade em caracterizar potenciais situações de risco. Nota-se, portanto, a

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http://www.mppr.mp.br/arquivos/File/OConselhoTutelareamedidadeabrigamento.pdf
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fragilidade desse órgão, que deveria investir-se do poder requisitório para garantir os
acessos quando não alcançados pela própria família.
Destaca-se aqui a experiência da Comarca de Jundiaí em que a rede
socioassistencial se compromete a discutir junto ao Conselho Tutelar os casos em
que há a possibilidade de se sugerir a aplicação de medida de acolhimento
institucional ou familiar.
Nas situações em que ocorre o acolhimento emergencial e foi encaminhado
ao juízo apenas uma comunicação sucinta, conforme o § 1º do art. 863 das NSCGJ,
o juiz requisitará da instituição de acolhimento - com prazo de 48 horas para
atendimento - relatório resumido a respeito dos motivos da medida. Se a
comunicação inicial for insuficiente, ou recebido o relatório resumido, as Seções
Técnicas do Juízo deverão se manifestar, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas,
conforme o § 2º do art. 863 das NSGCJ.
Tal normativa conduz à reflexão sobre a possibilidade de precarização da
avaliação técnica, considerando as impossibilidades e limites institucionais e a falta
de profissionais.
Nestas manifestações indica-se, geralmente, a necessidade de realização de
estudo, já que dificilmente é possível um profissional da área de Serviço Social ou
Psicologia manifestar-se tecnicamente sem tempo hábil para acessar a família em
questão.
Ademais, é imprescindível cuidar para que as manifestações em tempo
exíguo não reflitam uma prática fiscalizadora, tendo em vista a atuação prévia da
rede socioassistencial (CRAS, CREAS, Escola, Conselho Tutelar), que impacta
diretamente na relação dos Setores Técnicos com os demais atores. Uma atuação
de caráter fiscalizatório, retira o/a técnico/a do espaço de trabalho coletivo, para
ocupar uma posição verticalizada em relação aos outros serviços.
Na sequência do fluxo, o Juiz abre, com urgência, vista ao Ministério Público
(MP) e providencia, se possível, a imediata reintegração familiar da criança ou
adolescente. Não sendo possível, é imprescindível que seja proposta a ação de
Afastamento do Convívio Familiar pelo MP ou por quem tenha legítimo interesse,
segundo o art. 864 das NSGCJ e conforme o parágrafo único do art. 93 do ECA:

Recebida a comunicação, a autoridade judiciária, ouvido o Ministério


Público e se necessário com o apoio do Conselho Tutelar local, tomará as

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medidas necessárias para promover a imediata reintegração familiar da


criança ou do adolescente ou, se por qualquer razão não for isso possível
ou recomendável, para seu encaminhamento a programa de acolhimento
familiar, institucional ou a família substituta, observado o disposto no § 2º do
art. 101 desta Lei.

4. POSSÍVEIS ESTRATÉGIAS PARA ATUAÇÃO EM REDE NO


TRABALHO COM AS FAMÍLIAS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
ACOLHIDOS/AS

No caminho percorrido que contemplou a discussão e a reflexão a partir das


vivências dos membros deste Grupo, à luz dos fluxos baseados nos artigos do ECA
e das NSGCJ, do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNFC) e
de outras bibliografias pertinentes, evidencia-se a diversidade de atuações e
procedimentos nas Comarcas e Foros Regionais.
Existem locais onde todos os processos de crianças/adolescentes em
acolhimento são acompanhados, contando com um/a técnico/a de referência de
cada área (Serviço Social e Psicologia) e fóruns onde os processos não são
encaminhados em sua totalidade aos Setores Técnicos.
Relatos indicam que a insuficiência de psicólogos/as judiciários/as em
algumas Comarcas, além de resquícios de subalternidade entre as diferentes áreas
do saber por vezes resultam em acompanhamentos exclusivos pelo Serviço Social.
Historicamente, reconhece-se que a implantação dos Setores Técnicos do
Judiciário teve por única finalidade a emissão de pareceres enquanto auxiliares do
Juízo, havendo inclusive restrições quanto à saídas para visitas domiciliares e
reuniões com a rede de serviços.
Observa-se que, embora exista uma parcela de profissionais que ainda
preserva esta postura, outros/as avançaram na amplitude das possibilidades da
atuação, além do que atualmente o TJSP conta com um novo quadro de
profissionais mesmo que ainda insuficiente.
Vale ressaltar que, diante da atual conjuntura política do país e o avanço
neoliberal, todo o cuidado é pouco em um cenário perpetrado de retrocessos, pelo
qual o individualismo tende a engolir as práticas de construção coletiva.

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Assim, uma alternativa para transformar queixas individuais em demandas


coletivas é a participação dos/as técnicos/as do Judiciário nas reuniões dos
Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA),
contribuindo para fomentar a necessidade de aprovação de projetos de base
direcionados para o desenvolvimento do trabalho social com as famílias, como tem
ocorrido na Comarca de Taubaté.
Todavia, há uma crítica quanto aos espaços dos conselhos, sobretudo em
municípios de pequeno porte, da ingerência de pessoas que ocupam cargos
políticos e “usam” equivocadamente essa ferramenta, causando indisposição e
inviabilizando parcerias.
Quanto à efetivação do trabalho em rede avalia-se que um dos pressupostos
é a inexistência da relação de subalternidade entre os serviços, com a valorização
dos contrapontos advindos de diferentes lugares e perspectivas, a fim de que as
ações garantam o melhor interesse das crianças e adolescentes acolhidos/as e de
suas famílias.
É preciso atuar na perspectiva da superação da hierarquização e da
hegemonia e investir na horizontalidade, sem que se percam as atribuições de cada
serviço.
Nesta direção, a atuação dos Setores Técnicos se renova a partir da
realização permanente de reuniões conjuntas com os serviços de acolhimento para
discussão dos casos, ressaltando-se ainda a importância do trabalho interdisciplinar
e intersetorial.
A experiência desenvolvida no fórum Jabaquara, por meio do “Encontro de
Parceiros”, traduz outra possibilidade de articulação: o fomento junto à rede da
região sobre a necessidade de um trabalho estruturado com as famílias dos/as
acolhidos/as, que gerou a discussão sobre a elaboração de um projeto piloto, a ser
executado pelo CREAS, que assumiu o papel de articular as frentes necessárias
para a implantação (espaço, técnicos, temáticas a serem discutidas com as famílias,
entre outros).
A mobilização para promover as intervenções junto às famílias também é
fomentada em outras Comarcas por meio de reuniões com a rede de atenção
específica do caso, porém, a impossibilidade de um trabalho mais amplo de

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articulação se estabelece mediante a crescente demanda imposta aos Setores


Técnicos.
É preciso reconhecer os avanços no estabelecimento de algumas políticas
públicas constituídas e solidificadas em normativas, apesar disso, estas precisam
ser cobradas em sua execução.
Sob esta ótica, depreende-se que alguns profissionais que compõem a rede
ainda entendem que os/as técnicos/as do Judiciário possuem maior influência nessa
“cobrança” e criam uma expectativa que por vezes é frustrada por esbarrar em
limites institucionais.
Alternativas possíveis são as ações de fomento junto à rede de atenção à
saúde, que tem potencial técnico para assumir um trabalho visando atuar nas
relações familiares, promovendo espaços de escuta e de oportunidades para que as
famílias trabalhem seus conflitos.
A utilização das Unidades Básicas de Saúde como pontos de acesso em
cada comunidade/território e um representante de cada setor para discussão e
condução das situações de violência que podem culminar na medida do acolhimento
foi uma ação proposta na Comarca de Caçapava, cujos membros do Setor Técnico
participaram de uma Comissão que reestruturou o atendimento em rede no
município e que está em vias de se materializar em legislação municipal.
Alerta-se para a discussão em prol da terapia familiar enquanto política
pública, na garantia de apoio, acompanhamento e reflexão.
Possibilidade existente, porém tímida, é o estabelecimento de parcerias com
as universidades na oferta de atendimento psicoterapêutico familiar, a exemplo da
Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL).
Por fim, uma estratégia que está ao alcance de todos/as os técnicos/as do
Judiciário é apontar nos laudos a insuficiência de projetos, programas ou políticas
públicas, numa postura de resistência, mantendo uma atuação sistemática frente às
vicissitudes que se apresentam.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Ao cuidar do lugar de proteção da criança, cuida-se também da criança. É


nessa lógica que as reflexões e discussões foram conduzidas para a necessidade
permanente da execução emancipatória do trabalho social com as famílias das
crianças/adolescentes acolhidos/as.
O trabalho social com as famílias perpassa a emergente atuação em rede,
ainda que muitos/as profissionais, nos mais diversos espaços sócio-ocupacionais
não estejam habituados a atuar com famílias, privilegiando ainda a lógica do
atendimento individual.
Evidencia-se que o trabalho preventivo com as famílias em situação de
vulnerabilidade social é fundamental, porém, a realidade aponta que muitas vezes
elas só têm acesso às políticas públicas quando encaminhadas ao Judiciário
mediante situação de acolhimento institucional.
Neste contexto, infelizmente, o fenômeno da judicialização da questão social
se materializa e se petrifica a conduta em que se elege o asilamento como única
saída.
Esta conduta vai, porém, na via contrária de todos os avanços da política
pública, que aponta o asilamento como institucionalização das pessoas e famílias,
retirando-lhes o direito à convivência. O asilamento foi condenado por estudiosos e
técnicos que lidaram com a questão da saúde mental, como Rotelli (1981) e
Basaglia (2001), como fator de empobrecimento do indivíduo, retirando-o do circuito
das trocas sociais.
A característica do papel do Setor Técnico Judiciário, na qualidade de
profissionais peritos/as nas específicas áreas de conhecimento, não deve limitar
nem impedir uma atuação interventiva. Por isso, o ideal seria que todos os
processos de acolhimento fossem acompanhados pelas duas áreas do saber, ou
seja, que a atuação fosse de fato interdisciplinar, o que por diferentes razões, nem
sempre ocorre.
Percebe-se que o referenciamento dos processos de acolhimento depende do
entendimento de cada juiz/a sobre a necessidade de acompanhamento do caso pelo

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Setor Técnico de Serviço Social e Psicologia, agravado ainda pela falta de


psicólogos/as na totalidade das Comarcas, culminando, por vezes, em
determinações para que um/a profissional de cada área atenda, semanalmente,
mais de uma Comarca por tempo determinado, dificultando o trabalho integrado
entre os setores.
Identifica-se uma variedade de procedimentos e diferenciadas ações no
tangente ao trâmite dos processos de acolhimento institucional nas comarcas,
envolvendo os setores técnicos, segundo levantamento deste Grupo de Estudos.
Entende-se a indispensabilidade de discussões entre todos os níveis
hierárquicos para refletir o fazer profissional, construindo coletivamente diretrizes
que considerem as especificidades de cada território e a articulação já existente.
Destaca-se a importância da manutenção dos Grupos de Estudos como
espaço de discussão, conquista e fortalecimento profissional, que permite a troca
reflexiva de experiências, gerando impactos positivos nas atuações dos/as
profissionais que os integram.
Fica o desafio aos setores técnicos de lançar mão das possíveis estratégias
abordadas neste texto, para a contribuição direta da superação dessa lógica
perversa e, que, no miúdo da atuação profissional, emanem outras perspectivas de
ação mais amplas e abrangentes.

31
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Graal, 2001.

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Acesso em: 04 abr. 2016.

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Famílias e medida de proteção abriga - realidade social, sentimentos, anseios e
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Quem são, como vivem, o que pensam, o que desejam. São Paulo: Paulus, 2008.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.


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familiar. Revista Serviço Social e Sociedade. Ano XXVI, n. 81, mar 2005. São Paulo:
Cortez Ed.

OLIVEIRA, Rita De Cássia Silva. Quero voltar para casa: o trabalho em rede e a
garantia do direito à convivência familiar e comunitária para crianças e adolescentes
que vivem em abrigo. 2 ed. São Paulo: AASPTJ - SP, 2007.

PICHON-RIVIÈRE, Enrique. Psiquiatria: uma nova problemática. São Paulo: Martins


Fontes, 1991.
32
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

RODRIGUES, Patrícia D'elboux. A provisoriedade do abrigo e a produção de afetos:


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ROTELLI, Franco. (1981) O inventário das subtrações. In ROTELLI, Franco; DE


LEONARDIS, Ota; MAURI, Diana. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM


PROCESSO DE ADOÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO I”

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2016
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COORDENADORAS

Simone Trevisan de Góes – Psicóloga Judiciário – Fórum I - Santana


Helena Cristina de Souza Figuti – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Taubaté

AUTORAS

Aline Cristina Cardoso – Psicóloga Judiciário – Fórum Itaquera


Aline Cristina Carta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul
Ana Cláudia Sarpi Chiodo – Psicóloga Judiciário – Fórum IV - Lapa
Ana Paula Duarte Xavier – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santo André
Daize Pereira dos Santos Oliveira – Assistente Social Judiciário – Vara Central
Débora Carmem Ferreira Récio – Psicóloga Judiciário – Fórum I - Santana
Emília Almeida Junqueira Franco – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Auriflama
Fabiana Aparecida de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Roseira
Gessylea Matiole – Assistente Social Judiciário – Comarca de Aparecida
Gisele Xavier Marques Verniz – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
Carlos
Giovani Diniz Santos – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Lilian Duarte dos Santos Almagro – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Márcia Domingues Moraes Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Maria Helena Célia Cardoso – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de
Hortolândia
Marina Corcovia – Assistente Social Judiciário – Vara Central
Meire Obata Matsuo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guarujá
Mônica Aparecida Mota Vale – Assistente Social Judiciário – Comarca de Arujá
Patrícia Martin Beraldo – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de Louveira
Roberta Bechelli Duarte Migliaresi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém
Sarita Erika Yamazaki – Psicóloga Judiciário – Fórum VI - Penha de França

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Telma Dantas da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Arujá


Vanessa Teixeira de Oliveira – Assistente social Judiciário – Comarca de São José
dos Campos
Viviane Cristina de Souza Caroli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A devolução é silenciosa, escondida, oculta, em segredo... Apenas, nos


corredores dos Fóruns, o silêncio do abandono e o choro dos inocentes... E
a institucionalização termina o trabalho de destruição da personalidade e da
auto estima já abalados. São as Kátias, as Luanas, os Cleitons, as Giseles,
os Josés das nossas horas mais infelizes.

(ROSA, Andreza, apud ROCHA, Maria Isabel de Matos, 2009, p. 6)

INTRODUÇÃO

Os participantes do "Grupo de Estudos Adoção I" escolheram, no ano de


2016, refletir sobre a Devolução de Crianças e Adolescentes em processo de
adoção, entendendo que este tema traz consigo vários debates sobre o cadastro de
pretendentes à adoção, a preparação destes e das crianças e adolescentes para
adoção, o acompanhamento do estágio de convivência, a idealização da
criança/adolescente (e da próp1ria adoção) pelos pretendentes e como lidar com a
criança/adolescente após o acolhimento institucional (posterior à devolução),
influência do serviço de acolhimento neste processo, diferença do tempo jurídico e
do tempo emocional pós-devolução, entre outros.
Inicialmente buscou-se realizar pesquisa bibliográfica, sendo observada a
escassez de publicações sobre tal realidade. Embora se tenha notícias que a
devolução de crianças e adolescentes ocorra com certa frequência nos tribunais, o
debate e a reflexão ainda são incipientes. Destaca-se uma pesquisadora que tem
publicado artigos e livros relacionados ao tema, Maria Luiza de Assis Moura
Ghirardi, psicanalista do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Grupo Acesso que
realiza estudos, intervenção e pesquisa sobre adoção. Foi a partir dos textos desta
autora, bem como a sua palestra no GEA-I que foi possível aprofundar as reflexões
durante o ano.
Outros autores também foram pesquisados como Maria Berenice Dias,
Alberta Emília Dolores de Goes, Patrícia Glycerio R. Pinho, Christiane Ladvocat,
Sabrina D´Avila da Cruz e Camila Edith da Silva. Paralelamente um grupo de

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

profissionais participou do Seminário Interlocuções entre o Direito, a Psicologia e a


Psicanálise: pesquisas e intervenções na adoção, em especial da mesa redonda
sobre a entrega de um filho e o mito do amor materno, realizado no mesmo dia de
um dos encontros do GEA-I. Na ocasião não foi autorizada a dispensa dos membros
do grupo para a participação do evento, embora a temática fosse relevante e de
interesse para o debate de 2016.
No capítulo “Fundamentação Teórico-Jurídica” buscou-se sistematizar os
termos e os conceitos utilizados quando se trata da devolução de crianças e
adolescentes. Durante as pesquisas realizadas pelo Grupo foi identificado que o
termo “devolução” (ou seu equivalente) é ainda muito pouco estudado. Contudo, tal
conceito trata do mesmo assunto: a separação, a reedição do abandono, que
culmina com o retorno da criança ou do adolescente à instituição de acolhimento,
ferindo o direito à convivência familiar e comunitária.

No capítulo “O Que Leva à Devolução” procurou-se refletir sobre algumas


situações que podem ser consideradas como motivadoras ou de risco para a
ocorrência da devolução de crianças e adolescentes em estágio de convivência ou
mesmo após a adoção judicialmente concretizada.

No capítulo “Possibilidades de Intervenção em Situações de Devolução de


Crianças/Adolescentes Durante Estágio de Convivência da Adoção” aborda-se
procedimentos pós devolução considerando as peculiaridades e as particularidades
dos sujeitos em cada situação. Considera-se que este é um momento delicado que
muitas vezes nos faz deparar com nossos limites profissionais. No entanto, permite a
reflexão do nosso fazer diário que vai desde a habilitação dos pretendentes, a
preparação da criança/adolescente, passando pelo acompanhamento do estágio de
convivência até a situação de devolução de fato.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-JURÍDICA

A adoção é medida excepcional devendo ocorrer somente quando esgotados


os recursos de manutenção de crianças e adolescentes na família de origem ou

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extensa. Dá-se como alternativa para garantir a estas crianças e adolescentes o


direito à convivência familiar e comunitária.

Conforme art. 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção atribui a


condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive
sucessórios, desligando-os de qualquer vínculo com pais e parentes biológicos.

A medida também é considerada irrevogável, portanto, incorreto seria falar de


devolução nesta modalidade, uma vez que após a sentença concessiva da adoção
transitar em julgado, não há possibilidade para a devolução (ECA, art.48). Porém, na
prática, embora esta questão seja pouco explicitada, observamos que ela ocorre
com certa frequência.

O termo “devolução” apesar de não ser a melhor palavra para designar a


desistência da família substituta da criança e/ou adolescente é o termo empregado
pela doutrina jurídica. Existem divergências quanto à expressão utilizada, por isso há
autores que procuram empregar outras palavras. Góes (2014) compreende que
embora o termo possa causar desconforto, ela particularmente opta por utilizá-lo,
principalmente pelo impacto que a situação de devolução causa às crianças que a
vivenciam.

Para discorrermos sobre a temática de crianças e adolescentes devolvidos no


período avançado de estágio de convivência elegemos duas autoras da linha teórica
da psicanálise para conceituar o termo devolução, bem como contribuições de uma
militante de grupo de apoio à adoção.

Ghirardi (2015) depreende a devolução como uma experiência que reedita no


psiquismo da criança vivências anteriores ligadas ao abandono. Considerando-a
como todo retorno da criança a uma situação que lhe é anterior ao estabelecimento
do vínculo com os adotantes, e que dessa forma, implica seu rompimento. A autora
utiliza este mesmo termo para denominar situações de abandono de crianças e
adolescentes por pais com filiação legal adotiva.

Pinho (2014) emprega o termo devolução para caracterizar as situações em


que ocorre a desistência da adoção; ela refere que este termo é amplamente
utilizado no Brasil. Segundo a autora, na literatura americana usa-se o termo

39
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“disruption”, ou seja, interrupção, para tratar desta temática. O termo devolução


denota um caráter consumista que equipara a criança a uma mercadoria, destaca-a
para percebermos a lógica e o sentido que circunscreve o próprio termo.

Pertinente se faz a contribuição de Hália P. Souza2 a qual defende o uso do


termo desistência em detrimento ao termo devolução; para ela, devolução remete à
ideia de colocar a criança e/ou o adolescente na condição de mercadoria, de algo
que foi emprestado. Também destaca que a devolução é uma palavra ampla e
generalizada e contempla pelo menos dois casos distintos: a “interrupção” e a
“dissolução”. Quanto à interrupção, remete ao termo utilizado na literatura
internacional, que se dá quando os adotantes desistem de completar o processo
antes de a adoção ser legalmente efetivada. Em outro sentido, fala-se em
“rompimento ou dissolução”, quando ocorre a entrega da criança após a sentença
judicial de adoção.

De acordo com o dicionário Aurélio (Ferreira, apud Ghirardi, 2015, p.33),


devolver significa:

[...] mandar ou dar de volta o que foi entregue, remetido, esquecido; restituir
algo a alguém por não haver legitimidade sobre o objeto. Sugere também
uma apropriação indevida de algo que se entende não lhe pertencer.

Durante as pesquisas bibliográficas realizadas pelo Grupo identificamos que a


fundamentação teórica do termo “devolução” (ou seu equivalente) é ainda muito
pouco estudada. Contudo, tal conceito, independentemente do termo diferenciado
empregado por cada autor, trata do mesmo assunto: a separação, a reedição do
abandono, que culmina com o retorno da criança ou do adolescente à instituição de
acolhimento, ferindo o direito à convivência familiar e comunitária.

Para compreensão desta temática no aspecto jurídico, Ghirardi (2008, p. 5)


diz:

A justiça não reconhece o conceito de devolução. Perante a lei, toda a


adoção é irrevogável e, portanto, devolver a criança adotada é considerado
equivalente a abandonar um filho biológico. A única possibilidade prevista

2
Militante do Grupo de Apoio Adoção Consciente - GAACO e da Associação Nacional de Grupos de
Apoio à Adoção - ANGGAD

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

na lei é o retorno da criança, ou sua “restituição” durante o estágio de


convivência, período em que adotantes têm apenas a sua guarda e que
antecede a decretação da sentença da adoção. Durante esse período, os
adotantes podem desistir da criança a ser adotada em virtude de
dificuldades encontradas na relação com ela.

Quando tratamos de adoção, acreditamos que o estágio de convivência seja


um período de extrema importância para adaptação da criança e do adolescente à
família substituta e consequentemente a gradual consolidação do processo de
filiação.

Para o Promotor do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, (Costa, apud Góes,


2014) o estágio de convivência previsto no Art. 46 do ECA não pode ser visto pelos
pretendentes como um “test drive”, mas como período de adaptação da criança à
família.

Além das possíveis causas elencadas que podem levar os pretendentes ou os


pais adotivos à devolução de uma criança/adolescente, podemos entender essa
ação como fruto da dualidade entre real e imaginário, entre realidade e expectativa,
referente à idealização do filho desejado. Dessa forma, os adotantes costumam
depositar no filho a causa do fracasso da adoção, eximindo a eles mesmos, adultos,
de toda a responsabilidade, o que inviabiliza os cuidados e a possibilidade de
mudança da situação.

Assim sendo, se o filho é a causa do fracasso, é ele quem deve ser excluído,
acreditando que ele não conseguiu se adequar aos moldes daqueles adotantes, ou
seja, o filho não atende aquilo que eles esperavam, culminando com a devolução.

Quando a devolução acontece, não há dúvidas dos danos que causa à


criança e/ou adolescente, sendo que dentre eles o dano moral, o psicológico e o
afetivo são os mais sérios, pois são os mais difíceis de reverter pela vida afora.

A devolução também prejudica o aspecto social da criança, que, caso não


consiga uma nova possibilidade de inserção em outra família, passa a ter um futuro
comprometido, com um destino afetivo, pessoal, humano e familiar imprevisível, sem
perspectivas ou com perspectivas sombrias.

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Considera-se ainda que o prejuízo patrimonial também pode ser significativo,


já que o retorno para a instituição de acolhimento implica perda de conforto material.

O casal ou a pessoa que devolve a criança e/ou adolescente, considerada a


princípio por eles como “adotável”, tira destes a oportunidade de ser adotados por
uma família que realmente esteja disposta a formar um vínculo de filiação e a
legaliza-lo.

2. O QUE LEVA À DEVOLUÇÃO

Durante as discussões realizadas ao longo do ano e, em consulta à literatura


especializada foram elencadas algumas situações que podem ser consideradas
como motivadoras ou de risco para a ocorrência da devolução de crianças e
adolescentes em estágio de convivência ou mesmo após a adoção judicialmente
concretizada, o que se caracteriza como um novo abandono.

No processo de adoção, a formação de vínculos entre o requerente e a


criança ou o adolescente que está sendo adotado é essencial para sua efetivação.
Existem casos, no entanto, que mesmo com a convivência a formação dos vínculos
é precária ou inexistente, dificultando o verdadeiro reconhecimento da
criança/adolescente como filho ou integrante do núcleo familiar no âmbito afetivo.

Como já dito anteriormente é comum que os adultos não se coloquem como


parte desse processo, transferindo a responsabilidade por uma eventual devolução a
características inerentes à criança/adolescente. Muitas vezes, no convívio diário, os
adotantes se deparam com questões pessoais de ordem psíquica e emocional até
então adormecidas, contribuindo para uma conjuntura conflituosa e de sofrimento
emocional que pode culminar na desistência da adoção.

Segundo Pinho (2014), no confronto com as dificuldades do dia a dia, o


adotante acaba encarando uma desistência como a única alternativa para resolução
do problema.

Em seu livro “Devolução de Crianças Adotadas”, Maria Luisa Ghirardi foca


nas questões psíquicas que podem ser entraves ao processo de adoção, quando o
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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adotante não consegue se identificar com o filho adotado ou reconhecer nele a


criança projetada, imaginada na idealização da adoção.

Segundo a autora, a legitimação da adoção é feita culturalmente, uma vez


que não há fator biológico que auxilie. Assim, muitas vezes os pretendentes usam a
inexistência desse fator para justificar a devolução, quando, o que se verifica é que
são impulsionados por fantasias como a de roubo de um filho que não seja seu,
idealização da família de origem, altruísmo, luto do filho não gerado e criança em
situação judicial indefinida.

Da impossibilidade da gravidez biológica, sentimentos de autodesvalorização


podem surgir nos adotantes, originando defesas ligadas ao sentimento de altruísmo
e a idealização da criança.

Quando existe uma idealização é provável que haja a fantasia de que a


criança será grata e estará pronta para receber e dar amor, atendendo ao particular
desejo dos adotantes. Essa ideia desconsidera os conflitos inerentes à relação
afetiva na convivência diária e pode levar ao sentimento de fracasso quando os
adotantes se deparam com a situação real e suscitar nos referidos a possibilidade
da devolução como resolução da questão.

Ghirardi (2015) adverte que, nos casos em que a elaboração do luto do filho
perdido ou não gerado não foi bem sucedida, a adoção pode representar uma
“lembrança da ausência”, trazendo sofrimentos e complicações ao processo de
vinculação. Importante lembrar também que, em toda relação entre pais e filhos,
existem momentos de sofrimento no qual um trabalho de luto se faz necessário, uma
vez que os genitores terão de abandonar a fantasia do filho ideal para aceitar o filho
real, buscando razões para valorizá-lo.

Uma constatação frequente é que o fenômeno da devolução parece ser mais


incisivo com adolescentes e crianças mais velhas. Esses indivíduos, quando
chegam para a adoção, apresentam histórico de vida e aspectos de personalidade
mais consolidados do que uma criança em tenra idade, além de, comumente, terem
desenvolvida vinculação afetiva com a família de origem. Assim, do possível
confronto das fantasias e idealizações dos adotantes com o histórico da

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

criança/adolescente e suas características podem gerar conflitos propulsores à


devolução.

Percebeu-se durante os estudos que, muitas vezes, nos casos de adoções


frustradas, os pretendentes enxergam no adotando algo que pode ser testado e se
não estiver do seu agrado poderá ser devolvido, remetendo a uma relação de
consumo, ou seja, caso a criança não atenda as expectativas dos pretendentes,
sentem que podem devolvê-la, como um produto adquirido em uma transação
comercial.

Goes (2014, p.90) traz proposições que relacionam o processo de devolução


a maneira como as relações são estabelecidas na pós-modernidade, as quais
apresentam um caráter mercantil, e revela baixa tolerância à frustração. Citando
casos em que a devolução ocorre quando o pretendente consegue o almejado filho
biológico, a autora em questão, afirma que essa situação

[...] faz pensar sobre a sociabilidade na pós-modernidade em que as


relações interpessoais ocorrem na lógica à dos bens de consumo, ou seja,
quando algo já não nos interessa, ficou obsoleto ou apresenta algum defeito
é rapidamente descartado ou trocado.

Durante o ano, o grupo discutiu de que maneira o processo de avaliação para


habilitação, realizado pelos setores técnicos de Serviço Social e de Psicologia deste
Tribunal poderia identificar nos candidatos questões indicativas de possíveis
situações de devolução.

Após ingressarem com pedido de habilitação, os pretendentes passam por


avaliação social, psicológica e participam de um curso preparatório obrigatório.
Havendo sentença favorável à habilitação, os referidos são incluídos no cadastro do
fórum de jurisdição, no cadastro estadual e no Cadastro Nacional de Adoção.

Quando há determinação judicial para que uma criança/adolescente seja


colocada em família substituta, iniciam-se buscas pelos cadastros por pretendentes
que atendam ao perfil. Em seguida, localizando pretendentes disponíveis e com
interesse na adoção de determinada criança/adolescente, ocorre aproximação
monitorada pelas instituições de acolhimento e setores técnicos do Tribunal de
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Justiça. Havendo interesse recíproco, inicia-se o estágio de convivência com a


formalização do pedido de guarda. Durante este período os técnicos da Vara
acompanham o estágio de convivência com emissão de relatórios periódicos,
informando ao juiz todo o percurso já decorrido e se há alguma dificuldade de
adaptação de ambas as partes, além de orientar e realizar encaminhamentos que se
julguem necessários.

No texto estudado de sua autoria, Pinho (2014) pesquisou casos nos quais
ocorreram devolução após estágio de convivência ou adoção. A autora concluiu que
não é sempre possível para as equipes técnicas antever as complicações que
surgirão do encontro com a criança e não identificou, nos casos em que analisou,
uma relação direta entre dificuldades na habilitação e desistência da adoção de
crianças.

Nas discussões pontuou-se a importância de entender junto aos


pretendentes, durante a avaliação para habilitação, quais seriam suas motivações
para a adoção de um filho, procurando identificar sentimentos altruístas, demais
fantasias e idealizações que já estariam expressas no discurso e posicionamentos
dos pretendentes. Deixar de considerar a importância dessa questão neste trabalho
pode representar um fator de risco a uma futura adoção.

Da mesma forma, apesar de não terem sido encontrados dados concretos na


literatura fazendo relação entre o acompanhamento no estágio de convivência e
devolução, ponderamos que negligenciar o período e não amparar as dificuldades
expostas pode contribuir para que os conflitos se exacerbem e ratifiquem uma
desistência como única forma de solucioná-los.

Além dos aspectos relacionados à avaliação, preparação e acompanhamento


dos pretendentes, Dias (2016) explana que um dos motivos que contribuem para
uma possível devolução pode estar ligado à falta de preparo da criança/adolescente
a ser adotado.

Ponderou-se que para o processo de adoção ser favorável ao


desenvolvimento do adotado, é salutar a elaboração de aspectos psíquicos e sociais
que acercam a ruptura dos laços com a família de origem, a própria situação de

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

acolhimento e criação de novas vinculações afetivas, considerando as


particularidades de cada criança/adolescente e suas histórias.

Assim, quando os profissionais envolvidos no trabalho junto às


crianças/adolescentes em situação de acolhimento ou disponíveis para adoção não
levam em conta a imprescindibilidade da preparação do indivíduo para ser inserido
em uma nova família, podem colaborar para uma experiência negativa que culmine
em uma devolução.

Somando-se aos profissionais que compõem o sistema judiciário, as


instituições de acolhimento exercem importante papel nessa conjuntura, vez que
atuam diretamente e diariamente com as crianças/adolescentes acolhidos. Podem,
então, colaborar ou prejudicar o andamento da adoção, dependendo do modo como
conduzam o trabalho junto aos referidos. Como exemplo, discutiu-se ser comum que
funcionários dos locais de acolhimentos desenvolvam vínculos afetivos com as
crianças/adolescentes, podendo muitas vezes dificultar o desligamento institucional
e inserção em nova família.

Dessa forma, lembramos que precárias condições de trabalho dos


profissionais que atuam na área, como falta de capacitação, acúmulo de serviço,
estruturas físicas problemáticas, entre outros fatores, podem afetar diretamente a
qualidade do atendimento prestado durante não só a avaliação dos candidatos à
adoção, mas também na preparação destes, das crianças/adolescentes e
acompanhamento no estágio de convivência.

3. POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO EM SITUAÇÕES DE


DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS/ADOLESCENTES DURANTE ESTÁGIO
DE CONVIVÊNCIA DA ADOÇÃO

Segundo Ghirardi (2016, p.114),

[...] na fantasia dos pais adotivos, a questão da origem da criança estará


marcada por uma experiência factual enlaçada com a eventualidade da sua
devolução. Percebemos então que, a despeito do espanto inicial e da
irrevogabilidade que caracteriza a sentença de uma adoção, a devolução da
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

criança é uma possibilidade intrínseca à vivência adotiva e dela faz parte.


Isto porque a Lei não é suficiente para conter certos impasses que podem
ocorrer na relação afetiva. Afinal, o filho biológico, quando rejeitado, poderá
vir a ser abandonado. O adotado, pelo fato de ter antes pertencido a
alguém, poderá ser devolvido.

Conforme a autora, a despeito das fantasias inerentes de devolução durante o


processo de adoção, quando esta se concretiza muitos são os afetos mobilizados
em todas as pessoas envolvidas: na criança/adolescente devolvido, nos adotantes e
suas famílias, nos profissionais da Justiça, na instituição de acolhimento e em outros
que atuam. Afetos esses que se reportam ao que há de mais primitivo em nossa
constituição psíquica e por isso mesmo aparentemente tão avassaladores.

Quando se pensa em intervenções pós-devolução não se pretende dar uma


“receita de bolo”, já que se torna necessário considerar as peculiaridades e
particularidades dos sujeitos em cada situação de devolução. Consideramos que
este é um momento delicado que muitas vezes nos faz deparar com nossos limites
profissionais. No entanto, permite a reflexão do nosso fazer diário que vai desde a
habilitação dos pretendentes, a preparação da criança/adolescente, passando pelo
acompanhamento do estágio de convivência até a situação de devolução de fato.

Para evitar que sejamos todos capturados por angústias inomináveis e


fiquemos paralisados ou pior, que passemos a produzir "acting outs"3 consideramos
ser importante iniciar uma reflexão sobre as intervenções possíveis diante de uma
devolução efetivada.

Na nossa prática, entendemos que primeiramente será necessário


observarmos como o estágio de convivência está sendo vivenciado pela
criança/adolescente e se ela foi informada pelos pretendentes a respeito da
possibilidade da sua devolução. Consideramos relevante que sejam os pretendentes
a informar à criança sobre sua decisão, podendo contar, se o caso, com a
participação dos técnicos do Judiciário.

3
Termo usado em psicanálise para designar as ações que apresentam, a maior parte das vezes, um
caráter impulsivo, rompendo relativamente com os sistemas de motivação habituais do indivíduo,
relativamente isolável no decurso das suas atividades, e que toma muitas vezes uma forma auto ou
hetero-agressiva. Vocabulário da Psicanálise (1986).

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O enquadre do atendimento com a criança, neste momento, exigirá


delicadeza, respeitando-se ao máximo o tempo e a compreensão de cada criança.
Um exemplo é o que Yara Ishara4 apresentou em palestra sobre o tema “Enquadre
de entrevistas com crianças no âmbito jurídico. Procedimentos de aproximação entre
crianças e pretendentes à adoção”, onde narrou a experiência do uso da produção
espontânea de desenhos de uma criança que foi devolvida para intermediar a
aproximação com uma nova família.

Aos técnicos do judiciário também cabe procurar garantir à criança que ela
não ficará desamparada, buscar uma vaga em instituição de acolhimento que melhor
atenda as suas necessidades. Quando possível, considera-se nesse momento, se o
melhor é que a criança retorne para a mesma instituição de acolhimento ou não.
Importante analisar as individualidades e as necessidades da criança e da instituição
naquele momento. Por exemplo, há crianças que escolhem retornar para o
acolhimento onde estava porque lá reencontrará amigos e educadores com quem
quer reatar laços. Outros preferem outro acolhimento no qual serão “anônimos” e
não precisarão justificar seu retorno a ninguém.

Novamente acolhida a criança/adolescente, será de suma importância a


inserção em atendimento psicológico para que a criança tenha oportunidade de
narrar e elaborar a experiência vivida, que muitas vezes, ocorre sem consulta ou
participação da criança. Elaborar e compreender os aspectos da devolução/rejeição
será fundamental para preparar a criança para uma nova colocação familiar.

O psicólogo clínico, neste caso, poderá ser um “mediador” na nova colocação,


pois será ele quem traduzirá à nova família toda a dinâmica emocional da criança,
suas dificuldades e percepções.

A manutenção do acompanhamento psicológico no estágio de convivência


com a nova família poderá auxiliar os pretendentes a compreender comportamentos
e emoções da criança/adolescente.

4
Psicóloga do TJSP e mestranda do IPUSP, no evento: “Interlocuções entre o Direito, a Psicologia
Jurídica e a Psicanálise: Pesquisas e Intervenções na Adoção”, ocorrida em 06/05/2016, no Instituto
de Psicologia da USP.

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Consideramos fundamental abrir um espaço-tempo de escuta dos adotantes


e, em alguns casos de suas famílias, visando a um melhor entendimento e
clarificação dos motivos da devolução, para que seja transformado em tomada de
decisão consciente.

A esse respeito, Ghirardi (2016) disse em palestra no GEA-I:

Minha experiência clínica também revela situações em que os adotantes, ao


serem acolhidos em sua angústia diante da fantasia da devolução,
expressam o alivio e até satisfação em constatar que “a devolução não
precisa ser a única (e a última) saída para ultrapassar os intensos conflitos
com a criança”.

Outras são as situações em que não se pode conter o ato da devolução e,


também aquelas em que ela pode até se fazer necessária, quando traduz
sentimentos extremos de rejeição dos adotantes, e entende-se que a criança não
deve continuar a sofrer os maus-tratos decorrentes dessa forma de abandono. A
devolução pode vir a representar um ganho para a criança dentro da lógica da
menor perda.

A escuta iniciada junto com os pretendentes deve continuar com a


criança/adolescente na instituição de acolhimento e após este período de reflexão e
identificadas as demandas subjetivas e objetivas geradas, a rede de atendimento
deve ser acionada para acompanhar a criança/adolescente. Articulação em Rede,
neste momento, deverá considerar a criança/adolescente na totalidade de suas
necessidades, contribuindo para sua vivência do luto e fortalecimento emocional.
Não devemos esquecer que todos os profissionais que acompanham o
processo de adoção são fortemente impactados quando uma criança é devolvida.
Afinal, somos todos humanos e, como canta Caetano Veloso "cada um sabe a dor e
a delícia de ser o que é", mas não podemos nos furtar da constatação de nossa
responsabilidade, pois decisiva pode ser nossa atuação no manejo adequado
dessas situações.

Nessa esteira, refletimos sobre a importância das discussões de casos intra e


interequipe profissional, da busca pelo aporte teórico e da formação continuada, por
vezes, da psicoterapia. Consideramos que os profissionais igualmente têm que

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elaborar os afetos suscitados para minimizar a identificação paralisante. Para tanto,


são preciosos os espaços de escuta grupal para fazer a palavra circular e ventilar os
afetos, tornando possível o efetivo atendimento da criança/adolescente e dos
adotantes e assim delinear nossa intervenção.

Faz parte do acompanhamento a escuta interdisciplinar, importante para gerar


um espaço de reflexão sobre a realidade que os sujeitos estão vivenciando no
processo de adoção e as possibilidades de superação dos desafios diários de
convivência em família. Além de contribuir para entendimento da nova dinâmica
familiar, ainda possibilitará o protagonismo dos sujeitos envolvidos e fortalecerá o
sentimento de pertencimento, refletindo sobre as responsabilidades de cada
membro da nova família.

A devolução não é uma ação/opção consciente dos adotados e nesse jogo de


forças eles são a parte mais vulnerável e, muitas vezes, passiva no processo. O
desgaste emocional causado pela ruptura da vivência com a família adotante
somadas com a/as ruptura/s anteriores fragilizam a criança/adolescente que passou
pelo trauma da devolução, necessitando de elaboração dos sentimentos
despertados por este momento. A criança/adolescente está vivenciando o luto
causado pela frustração de mais uma ruptura e em sendo assim, não há
possibilidade imediata de nova colocação, havendo a necessidade de respeitar o
seu tempo.

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CONCLUSÃO

As discussões, os estudos e as pesquisas realizadas neste ano levaram à


conclusão de que o campo de análise quanto aos aspectos que circundam uma
situação de devolução em processo de adoção é ampla e não se esgota no que foi
apresentado.

Procuramos expor aqui algumas das principais questões discutidas durante


os encontros do Grupo de Estudos Adoção I e que podem oferecer direcionamentos
para estabelecimento de ações que abarcam uma conjuntura de devolução, fonte de
sofrimentos aos envolvidos, em especial às crianças e adolescentes que são foco do
nosso trabalho enquanto equipes técnicas do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Destacamos como pontos relevantes a serem melhor observados na atuação


dos profissionais no processo de adoção na tentativa de reduzir as chances de
devolução, ou seja, de um novo abandono:

1. Preparação mais cuidadosa dos pretendentes e das


crianças/adolescentes, com aprofundamento das questões inerentes
ao processo;
2. Acompanhamento técnico criterioso durante o estágio de convivência,
momento em que podem surgir os conflitos entre a idealização da
criança pelos pretendentes e a criança real;
3. Respeito à singularidade de cada processo, não havendo uma fórmula
ou tempo preestabelecidos para a sua conclusão. Deve-se considerar
o tempo de elaboração dos envolvidos, que muitas vezes não
corresponde ao tempo jurídico.

Para garantir que estas questões sejam bem trabalhadas nos deparamos com
a necessidade da ampliação das equipes técnicas, através de concurso público, com
capacitação permanente e adequadas condições de trabalho.

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Importante ainda ressaltar o projeto de Lei em tramitação, que privilegia a


celeridade nos processos de Destituição do Poder Familiar e de Adoção, que em
determinadas situações poderão contribuir para o fracasso do trabalho como foi
preconizado acima.

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REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice: Filhos do Afeto - Questões Jurídicas. Revista dos Tribunais.
p. 133.
GHIRARDI, Maria Luiza de Assis Moura, Devolução de crianças adotadas – Um
estudo Psicanalítico. Primavera Editorial – Sedes Sapientiae, 2015.

GHIRARDI, Maria Luiza de Assis Moura, FERREIRA, Marcia Porto (org). Laços e
Rupturas: Leituras Psicanalíticas sobre Adoção e o Acolhimento Institucional. São
Paulo: Escuta: Instituto Tortuga, 2016.
GOES, Alberta Emília Dolores. Criança não é brinquedo! A Devolução de crianças e
adolescentes em processos adotivos. Rio de Janeiro: [Syn]thesis, vol. 7, n°12014, p.
85-93. Cadernos do centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Bertrand. Vocabulário de Psicanálise. 9 ed. São
Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1986.
PINHO, Patrícia Glycerio R., Devolução/Quando as Crianças não se tornam filhos.
In: Guia de Adoção: No jurídico, no Social, no Psicológico e na Família. São Paulo:
Roca, 2014.
ROCHA, Maria Isabel de Matos. (NERY, Nelson Júnior: NERY, Rosa Maria de
Andrade / coordenação). Crianças “devolvidas”: quais são seus direitos? Revista de
direito privado. RT: São Paulo. n. 2. p. 75 a 113. Abril-julho de 2000.
SOUZA, Hália Pauliv de. Adoção Tardia: a devolução ou desistência de um filho? A
necessária preparação para adoção. Curitiba: Juruá, 2012.

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DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR: INTERESSE DE


QUEM?

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO II”

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2016
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COORDENADORAS

Jéssica de Moura Peixoto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão


Preto
Cristiane Calvo – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto

AUTORES

Alberta Emília Dolores de Góes – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Itapecerica da Serra
Andrea de Carvalho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Miracatu
Cristina Rodrigues Rosa Bento Augusto – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional do
Ipiranga
Débora Nunes de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das
Artes
Elaine de Camargo Meira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Miguel
Paulista
Elisângela Fraga Ferreira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jundiaí
Fernanda Azevedo Cintra – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Germanne Patrícia Nogueira Bezerra Rodrigues Matos – Assistente Social Judiciário
– Foro Central - Capital
Juliana da Conceição Velloso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Kátia Aparecida Cordeiro dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São José do Rio Preto
Luiza Gabriella Dias de Araujo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das
Cruzes
Maria Aparecida Souza Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Botucatu
Maria Rosa Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional VII -
Itaquera
Marli Sousa Maciel Parejo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu
Paula Puertas Beltrame – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
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Renata Dias Galan Sommerman– Psicóloga Judiciário – Foro Regional Penha de


França
Rodrigo Gonzales de Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itanhaém
Rute de Toledo Moraes – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Sabrina Renata de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Thabata Dapena Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jacareí

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INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudo Adoção II selecionou como tema para estudo no ano de


2016 a “Destituição do Poder Familiar”, escolha justificada, principalmente, por sua
inerente relação com a adoção, já que é a medida precedente à mesma.
“Poder familiar” é o conjunto de direitos e deveres dos genitores, que abarcam
a guarda, educação e sustento, relativos aos filhos menores de dezoito anos. Como
é sabido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) privilegia a permanência da
criança e do adolescente junto à sua família de origem e cria dispositivos para evitar
a separação – ainda que temporária – entre eles. Todos os esforços devem
convergir para que a criança/adolescente permaneça junto dos seus, de modo que,
se for inevitável o acolhimento quando da ocorrência de risco, os investimentos
priorizem a reintegração da criança/adolescente ao seu meio de origem.
A diretriz legal é bastante categórica ao definir a prioridade da família
biológica, princípio que é extensamente reiterado ao longo do ECA. Contudo, diante
de situações em que os ascendentes biológicos não cumpram com os seus deveres,
criou-se um mecanismo legal capaz de romper os vínculos jurídicos de filiação. O
Código Civil, em seu artigo 1638 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo
129, inciso X, artigos 155 a 153) preveem o rompimento definitivo dos laços de
parentesco, tornando a criança/adolescente disponível à colocação em família
substituta, no intuito de lhe garantir o direito fundamental da convivência familiar.
Indiscutivelmente, a destituição do poder familiar é uma medida drástica, pois
promove o rompimento irrevogável dos vínculos parentais. Pode representar
garantia de direitos, quando protege a criança e o adolescente de situações que a
colocam em risco, decorrente do abuso ou omissão do poder familiar. Mas também
pode contribuir exatamente para o inverso, legitimando a violação dos mesmos,
especialmente quando não há outras possibilidades para esta criança e/ou
adolescente ou quando há evidências de que a situação de risco contempla toda a
família, vítima de uma violência estrutural, caracterizada pelo não acesso às
políticas públicas. Assim, circunstâncias peculiares exigem intervenção técnica

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qualificada por parte dos assistentes sociais e psicólogos que atuam em processos
desta natureza.
Esse pequeno sobrevoo sobre o tema deixa notória sua complexidade e
aspecto multifacetado. Assim, constatamos a necessidade de elencar subtemas
para estudar a Destituição do Poder Familiar em sua completude.
Após discussões e reflexões enriquecedoras, consensualmente entendeu-se
viável o aprofundamento de três aspectos: reflexões sobre a família e as diversas
configurações familiares, papéis/vínculos parentais e a atuação dos assistentes
sociais e psicólogos judiciários no contexto de processos que tratam de destituição
do poder familiar.
Refletir questões sobre a família decorre da convicção de que independente
da configuração, sua função enquanto meio pioneiro e primordial para o
desenvolvimento do ser humano é inquestionável e atemporal. Buscamos
compreender a família na contemporaneidade enquanto elemento dinâmico, que
influencia e é influenciado pelo contexto vivido.
Por conseguinte, entendemos viável o estudo dos papéis parentais e vínculos
no intuito de alcançar subsídios teóricos e considerá-los à luz da realidade cotidiana,
dos cuidados ideais e do processo de construção desses vínculos. Por derradeiro, e
objetivando sintetizar e conectar os assuntos abordados, fizemos um paralelo com a
realidade das famílias em situação de vulnerabilidade e risco social 5 acompanhadas
pelo judiciário e a importância da atuação do assistente social e psicólogo nos casos
referentes à destituição do poder familiar.
Nossas reflexões e discussões foram fomentadas por diferentes
metodologias: recorremos a artigos acadêmicos (acessíveis no item Bibliografia) e
acessamos materiais audiovisuais, como “Amor Ltda.” e o documentário “O começo
da vida”. Não obstante, a fim de enriquecer o debate, contamos com a preciosa
participação da assistente social Profª Drª. Eunice Fávero, profissional cujo percurso

5
Segundo a Política Nacional de Assistência Social, são considerados em situações de
vulnerabilidade e risco: “famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade,
pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e
sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às
demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do
núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal
e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco
pessoal e social.” (BRASIL, 2004, p.33)

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no Tribunal de Justiça é expressivo, tendo desenvolvido na área acadêmica uma


reconhecida pesquisa sobre o perfil dos pais e mães destituídos do poder familiar.
Em razão da complexidade inerente ao assunto estudado, vale registrar que
alguns temas transversais emergiram no percurso de nosso trabalho, citando, por
exemplo: negligência, abandono (por risco e sob cuidados) e questões referentes à
rede de suporte das famílias.
A produção escrita que segue é a compilação das discussões e reflexões
acumuladas durante todo esse ano. Empenho e cuidado máximo foram empregados
na tentativa de conseguir reproduzir e socializar, com a maior fidedignidade possível,
a riqueza do conteúdo abordado.
Atendendo a critérios didáticos, o texto está organizado da seguinte forma: o
primeiro item traz considerações relevantes sobre família; já o segundo destina-se a
expor o conteúdo produzido a respeito do tema papel parental / vínculos; o terceiro
tece considerações referentes à intervenção do assistente social e psicólogo
judiciários em processos, cuja temática refere-se à destituição do Poder Familiar. O
encerramento ocorre através do item “Considerações Finais”, onde registramos
nossos comentários e reflexões derradeiros.

1. REFLEXÕES SOBRE FAMÍLIA

A família é objeto de estudos de diversas áreas do conhecimento, dada a sua


relevância para a formação e desenvolvimento do indivíduo, pois é reconhecida
como lugar privilegiado de proteção, afeto, pertencimento, constituindo-se em rede
primária de sociabilidade e solidariedade, também permeada por conflitos e
adversidades. Sabemos que ela influencia e sofre influências do contexto em que se
encontra inserida e a observação histórica de sua trajetória revela constantes
transformações na sua estrutura e concepção.
Nessa perspectiva, a leitura do texto “O abandono da razão: a descolonização
dos discursos sobre a infância e a família” de Cláudia Fonseca nos trouxe uma série
de reflexões importantes acerca da forma como abordamos os conceitos de família e
da criança vitimizada. O olhar antropológico traz um ponto de vista diverso do
habitual, ao considerar que o discurso científico é reflexo de cada momento

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histórico. Embora o texto tenha sido escrito em 1999, as reflexões ali colocadas são
atuais, evidenciando o quanto ainda tentamos superar paradigmas há mais de uma
década identificados.
Ao longo do processo sócio-histórico, a família sofreu importantes
transformações. Destacam-se as mudanças nos papéis de gênero que, a partir da
organização da família burguesa, construiu um modelo baseado na família nuclear,
com o paradigma de que o homem deveria exercer o papel de provedor, enquanto à
mulher caberiam as funções afetas ao universo familiar e os afazeres domésticos.
Com o desenvolvimento da sociedade capitalista, a partir da Revolução
Industrial (final do século XVIII e início do século XIX) e da divisão entre o mundo do
trabalho e o mundo familiar, ocorreram diferentes mudanças na vida social e nos
processos econômicos. Com o avanço da ciência mecânica e o aumento das linhas
de produção, acrescido a preocupação com a redução de custos, os donos do
capital encontraram nas mulheres e nas crianças a mão-de-obra barata para
ampliação dos lucros almejados. Destacamos, neste contexto, a flexibilização dos
papéis familiares: o homem deixou de ser o único provedor, houve a inserção e a
permanência da mulher no mercado de trabalho, bem como, a inclusão dos filhos no
mundo laboral.
As relações de poder no contexto familiar sofreram importantes
transformações com a redução da autoridade e hierarquia no tocante às figuras
parentais.
No século XX, além da expansão da mulher no mercado de trabalho,
podemos destacar o avanço tecnológico nas questões de ordem familiar, como a
descoberta da fertilização in vitro, da utilização de exames de DNA para
comprovação de paternidade, a disseminação da pílula anticoncepcional, separando
a sexualidade feminina da maternidade. Outros aspectos propulsores de mudanças
foram a expansão do Movimento Feminista e a promulgação da Constituição Federal
de 1988, tornando direitos e deveres compartilhados entre homens e mulheres, o
direito de filiação quando comprovada a paternidade e a legalização do divórcio e,
posteriormente, o casamento homoafetivo.
Analisando a história da família, podemos notar que: “[...] a sociabilidade
familiar regida pela lógica da tradição passa para uma sociabilidade regida pelas

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leis” (MOREIRA; BEDRAN; CARELLOS, 2011, p.165). A família começa a ter


direitos garantidos, mas também obrigações definidas.
Não obstante, “a família contemporânea sofre processo contínuo de
reinvenção de si mesma, embora persista como o centro de referência para
delimitação da subjetividade e também como alvo prioritário de cuidado de políticas
públicas” (MOREIRA; BEDRAN; CARELLOS, 2011, p. 164).
Entretanto, persiste a naturalização quanto aos papéis de gênero, que são
reforçados a partir da perspectiva de que cabe ao feminino o ‘cuidado’. Ancorados
nessa perspectiva naturalizada sobre as demandas de esfera doméstica, as
mulheres ainda são a principal referência de cuidados para as crianças, idosos,
doentes, dentre outros.
Quanto ao homem, ainda se espera que exerça o papel de provedor da
família, embora vivamos em uma época em que há o desemprego estrutural, a
precarização das condições de trabalho e renda, entre outros.
Apesar das diversas modificações já ocorridas, há um enraizamento dos
paradigmas anteriormente criados e muitos técnicos ancoram o seu fazer
profissional em uma perspectiva que desconsidera as mudanças em curso que
afetam a vida familiar. Cria-se uma padronização do que se espera dos indivíduos e
da família, sem considerar seu contexto social e histórico.
A situação de vulnerabilidade e de risco social repercute na relação afetiva
entre seus membros, nos papéis que desempenham e na autoridade parental, ou
seja, a limitação socioeconômica e cultural contribui para precarização das relações
familiares. Cria-se o mito de que famílias empobrecidas não oferecem proteção,
pois, subjetivamente, não dispõem de recursos e apresentam, muitas vezes,
transtornos mentais e dependência química, como se este fosse um padrão de
famílias pobres. É fato que o contexto de vulnerabilidade torna-se elemento
desencadeador de riscos preexistentes, contudo, é necessária uma análise crítica
sobre esta realidade. Neste contexto, as famílias que não atendem aos padrões
historicamente construídos são, por vezes, desqualificadas nos diferentes serviços
socioassistenciais e, particularmente, na esfera da Justiça.
Sobre tal aspecto, Minuchin (2008), ao dissertar sobre as famílias norte-
americanas e a necessidade de proteção à infância, aponta a diferenciação entre a
atuação junto às famílias de classe média e aquelas de baixa renda, referindo-se à

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“intrusão” de instituições no âmbito privado das famílias pobres. Segundo o autor, ao


entrarem no espaço da família (físico e psicológico), com ideias preconcebidas sobre
como a dinâmica familiar deveria estar funcionando, profissionais, muitas vezes,
provocam outras demandas e conflitos, ao invés de contribuírem para a superação
da problemática. Ademais, são citados casos de famílias nucleares nas quais as
intervenções são voltadas para as mulheres (mães), enquanto os homens (pais) são
excluídos do processo de avaliação e atendimento. As orientações são excessivas e
divergentes, minando a autoridade que compete às famílias, que são “tuteladas” e
se esgotam com as “intrusões” de todos profissionais. Segundo o referido autor,
famílias mais simples (mais pobres) são as mais suscetíveis, pois estão fragilizadas,
não apresentam oposição e, muitas vezes, não têm crítica de sua situação e
consciência de seus direitos.
Trazendo a discussão para a realidade brasileira, torna-se imprescindível
situar a atual conjuntura em que boa parte da população padece pela presença do
desemprego estrutural, da precarização das condições de trabalho que afetam a
classe trabalhadora como um todo. Diante desse panorama, em muitas regiões de
atuação, o que se pode notar é que a rede de atendimento às famílias em situação
de vulnerabilidade e risco social, geralmente, não é afinada e não apresenta um
posicionamento integrado com intervenções assertivas. Ao serem inseridas na rede
de proteção pública, as suas demandas nem sempre são ouvidas e tampouco
coincidem com as indicações para tratamento, o que inviabiliza o rompimento com a
situação de risco: “a situação de pobreza e miséria dificulta um julgamento mais
preciso entre a prática abusiva e a impossibilidade de prover os requisitos para seu
crescimento e desenvolvimento” (Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa
do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, 2004).
Dessa forma, instrumentais desenvolvidos para favorecer a garantia de
direitos mostram-se pouco eficazes. As audiências concentradas, por exemplo,
realizadas pelo judiciário com a cooperação de todos os serviços que atuam no
caso, (quando ocorrem) parecem cumprir um protocolo e nem sempre atendem
efetivamente os objetivos quanto à proteção da criança e do adolescente. A questão
principal que nos fica é: as intervenções estão em benefício de quem?
Geralmente, as medidas de proteção servem como um tamponamento de
carências e não necessariamente como intervenção para mudanças nas relações

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familiares e sociais (MOREIRA; BEDRAN; CARELLOS, 2011). A realidade destes


núcleos familiares não é de proteção, inexistindo, por parte da família, entendimento
espontâneo da situação como ela é. Neste contexto, o ciclo de violência se repete
por gerações.
Com base nos autores: Moreira, Bedran e Carellos (2011), tal padrão de
repetição cria mitos familiares, sendo que todos os membros da família passam a
acreditar que não têm competência para romper este ciclo. Assim, descrentes de
seus próprios recursos, as famílias reeditam a violência. Tal conduta facilita a
entrada das medidas de proteção, como o acolhimento institucional. Dessa forma,
ocorre o atravessamento do espaço público no espaço privado e, muitas vezes, a
carência daquela situação específica é sanada, sem efetivamente contribuir para
transformação das relações familiares.
Os mesmos autores ressaltam que:

A medida de abrigo, tomada em defesa dos direitos da criança e do


adolescente, comporta alguns riscos, entre eles o de reforçar certa
fragilização da autoridade parental, ao mesmo tempo em que amplia o
poder jurídico tutelar sobre a família, desfacelando mais ainda os já difusos
vínculos familiares na sociedade contemporânea (2011, p. 169).

Assim, a violação ou a destituição dos direitos produz e perpetua a exclusão,


retroalimentando as desigualdades e potencializando o sofrimento de todos os
envolvidos (MOREIRA; BEDRAN; CARELLOS, 2011).
Para a real mudança de paradigma, é necessário o rompimento com práticas
estigmatizadoras, baseadas em uma visão idealizada. Família precisa ser percebida
e respeitada enquanto espaço de conflitos e contradições, como parte de um
sistema hegemônico e afetada pela desigualdade e exclusão social.
E qual o papel dos técnicos neste contexto? Muitas vezes, percebemos que a
tentativa é de se apagar “incêndio” e se buscar o mal menor, mas não há eficácia na
resolução da problemática. Se por um lado a retirada da criança/adolescente de seu
ambiente violador consiste em uma medida protetiva imediata, aquelas demandas
que concorreram para a decretação de tal medida nem sempre são atingidas pelas
ações dos órgãos executivos, dada a existência de um conjunto de vulnerabilidades
que vão além das transformações das relações de cuidado no núcleo familiar no
qual a criança/adolescente estava inserida. A garantia de direitos ocorre numa
realidade contraditória, pois nem sempre atende as reais necessidades da família.

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Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente são previstas


mudanças a fim de romper com a cultura da institucionalização. No que se refere ao
acolhimento de crianças e adolescentes, tal medida deve ser provisória e
excepcional, respeitando-se o direito à convivência familiar e comunitária,
prioritariamente na família de origem. Sob este aspecto, é necessário o
desenvolvimento de políticas públicas capazes de contribuir para o fortalecimento da
família, evitando-se a medida de acolhimento, ou, ao menos, garantindo sua
provisoriedade, cenário este que parece ainda distante da realidade.
Em 2006, a construção do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa
do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária
fomentou discussões, trazendo propostas concretas, como o Reordenamento das
Instituições de Acolhimento, que prevê a adequação dos serviços ofertados no país
pelos padrões definidos no documento (Orientações Técnicas: Serviços de
Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes, 2006).
Embora tal reordenamento deva ocorrer até 2017, observa-se que ainda é
expressiva a quantidade de instituições em modelos asilares, caracterizadas pela
rigidez às regras, rotinas padronizadas, ausência de relações afetivas.
Acerca dos progressos e dificuldades no tocante à proteção à infância e
juventude, devemos ponderar também que, embora a escuta da criança/adolescente
seja elemento garantido e privilegiado pela legislação vigente, essa escuta ainda é
incipiente e incapaz de reproduzir com fidelidade a percepção/opinião do público
infanto-juvenil. Isso porque, em razão da condição de ser humano em
desenvolvimento, e, portanto, desprovido da maturidade necessária, crianças e
adolescentes são representados por interlocutores, especialmente profissionais das
esferas assistenciais e jurídica. Ou seja, sob o ponto de vista legal, crianças e
adolescentes são sujeitos de direitos, mas não são compreendidos como sujeitos
políticos.
Repensando a trajetória dos direitos infanto-juvenis, percebemos que sua
evolução acompanha e é acompanhada pelo conceito e compreensão do que é
infância. Assim como são perceptíveis as mudanças quanto aos papéis de gênero, o
olhar sobre a infância sofreu alterações ao longo da história: se no passado as
crianças eram consideradas adultos em miniatura, na atualidade as mesmas são
criadas como “crianças absolutas”.

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Cláudia Fonseca (1999) cita a definição de “absoluto”, segundo o Novo


Dicionário Aurélio: “o que não tem limites, não depende de outrem, não sujeito a
condições, superior a todos os outros, que não admite contradições” (pg. 11). Trata-
se da conceituação contemporânea da criança enquanto “projeção de fantasmas
adultos”, evidenciando uma visão dicotômica entre aspectos da infância (liberdade,
prazer e brincadeira) em contraponto às características da vida adulta (disciplina,
responsabilidade e trabalho), sendo que tais termos mostram-se mutuamente
excludentes. A citada autora segue, realizando reflexões acerca do conceito de
infância em diferentes momentos históricos. Ressalta a diferença do olhar em
relação à criança pobre versus a criança rica, crianças rei versus pais algozes,
pontuando ainda a súbita mudança de status que a criança em perigo passa a ser
considerada como um adulto perigoso logo que completa 18 anos.
Embora inegáveis todas as mudanças ocorridas na atualidade, ainda nos
deparamos com ampla utilização, por parte de profissionais envolvidos com esta
temática, de expressões como “família desestruturada” e “menor”, o que indica a
necessidade de desconstruir paradigmas e conceitos, inclusive científicos. Quando
utilizamos o termo “família desestruturada”, qual é a estrutura a qual nos referimos?
Quais expectativas nós, profissionais, depositamos sobre estas famílias? Quais
modelos utilizamos quando entramos em contato com os diferentes universos
familiares?
Ao considerarmos que há uma única estrutura familiar de referência,
desconsideramos todas as outras formas das famílias se organizarem, das mais
diversas maneiras. Neste sentido, é necessário desconstruir a lógica de pensamento
até então utilizada, com vistas a identificar que existem diferentes famílias, que
vivem em diferentes épocas e em diferentes regiões, não sendo possível
homogeneizar e ter um único referencial como modelo. Nas palavras de Claudia
Fonseca (1999), “[...] numa sociedade complexa, podem coexistir diversas
configurações familiares – cada uma com sua lógica interna. Diferentes condições
de vida engendram visões diferentes de mundo e – por extensão – sensibilidades
familiares particulares” (p. 6).
O papel social da família depende, então, da posição que ocupa no espaço
social, do seu poder econômico, de sua rede de relações, entre outros. No contexto
destas discussões, projetos neoconservadores como o Estatuto da Família, dentre

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outros, indicam retrocesso, pois se baseiam exclusivamente no modelo burguês da


família nuclear.
Ao não considerar tais reflexões, corremos o risco de utilizar nossas
referências pessoais como modelo idealizado de referência de organização familiar.
Tendo em vista a complexidade de fatores envolvidos, conclui-se que as
questões de cada família, em particular, não são só delas, mas também da
sociedade e do Estado. Neste contexto, coloca-se a dificuldade da atuação dos
psicólogos e assistentes sociais do Judiciário: como elaborar um parecer conclusivo
em processos de destituição do poder familiar quando somos capazes de
compreender que não existe uma verdade absoluta, e sim uma vida dinâmica e não
conclusiva? Em busca de qual verdade nos colocamos?
No entendimento de Cláudia Fonseca, “quando o modelo torna-se exclusivo,
apresentando-se como a única representação legítima da realidade, perde seu valor
científico, e – com esse – também se perde o poder de travar análises originais para
a compreensão de nossa realidade” (1999, p.5).
Diante destas reflexões, surge a questão: qual trabalho tem sido efetivamente
realizado com as famílias? A crença de muitos profissionais de que a família não irá
mudar gera uma prática na qual “os serviços destituem o poder familiar antes
mesmo do Juiz”. A fim de se beneficiar a criança, destitui-se a família, penalizando
ambas (criança e família). Culpabilizam-se os pais e não se atribuem
responsabilidades ao Estado, que não “cuida” das famílias apesar da garantia de
Políticas Públicas previstas com a Constituição Federal de 1988. Pelo contrário,
assume uma postura de desresponsabilização, reduzindo investimentos, de forma
cada vez mais intensa, sucateando os serviços, desfacelando o sistema de garantia
de direitos.
Em nossa prática profissional, observamos a necessidade de atentarmos para
que ranços conservadores sejam descontruídos em prol de um trabalho coerente
com a realidade atual.
Por fim, concluímos que a família, ao ser considerada o centro de políticas
sociais, deve ser fortalecida em sua autonomia, como condição necessária para a
superação das situações de vulnerabilidade e risco, com vistas ao rompimento da
relação de dependência e à garantia da emancipação humana. Para tanto, os
profissionais da rede de proteção devem se pautar em uma atuação que respeite as

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decisões e as diferentes configurações familiares (MOREIRA; BEDRAN;


CARELLOS, 2011). É necessário superar práticas situadas no senso comum, na
visão culpabilizadora da família, sem uma análise apurada do contexto do qual faz
parte.

2. SOBRE PAPÉIS E VÍNCULOS PARENTAIS

A fim de provocar reflexões sobre os vínculos parentais e a importância dos


mesmos para o desenvolvimento saudável e das relações na primeira infância,
realizamos discussão acerca de capítulos do livro “A criança e seu mundo” de
D.Winnicott e de um dos capítulos do livro “Adoção, vínculos e rupturas: do abrigo à
família adotiva” de Cynthia Peiter.
O texto de Winnicott traz elementos significativos para nos ajudar a pensar
nas famílias que atendemos no judiciário. O trabalho do autor nos norteia para
alguns cuidados básicos quando distingue o que seria ideal para uma criança.
Descreveremos a seguir alguns conceitos fundamentais para o autor.
Winnicott aponta que a criança nasce fundida emocionalmente à mãe. A mãe,
alinhada ao seu filho, vai aos poucos, identificando suas necessidades e
correspondendo adequadamente à fome, ao frio, ao calor, à dor, entre outras
sensações. É o atendimento da mãe às necessidades do bebê que vai lhe
assegurando que o mundo é bom ou ruim.
Nesta fase inicial, o pronto atendimento da mãe às necessidades da criança é
fundamental para que o bebê sinta o mundo como bom e acolhedor. Se a mãe é
ausente ou pouco implicada às necessidades do filho, seu choro prolongado vai
aterrorizando o bebê, dando-lhe a sensação de aniquilamento. Conforme o bebê vai
se desenvolvendo, vai conseguindo tolerar a espera por mais tempo.
Ressalta-se que conforme o bebê cresce, vai conseguindo posicionar-se de
forma diferente em relação ao mundo. Quando começa a sentar-se, passa a ver o
mundo sob nova perspectiva, percebendo objetos e contextos anteriormente não
identificados.
Winnicott correlaciona o desenvolvimento motor ao emocional. Estudos
indicam que, ao nascer, a criança consegue enxergar a distância exata do colo da

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mãe ao seu olhar. À medida que se desenvolve, a visão se integra, podendo


visualizar imagens mais nítidas, assim como mais distantes, podendo também
contribuir com a percepção de que a mãe existe, ainda que esteja mais longe.
Dessa forma, o bebê ao berço, sem visualizar a figura de um adulto, fica
totalmente dependente que este se dirija a ele e lhe atenda às necessidades. Já o
bebê que senta consegue interagir mais com o ambiente e tolerar cada vez mais a
espera e a angústia ante a “demora” da mãe em lhe atender.
Conforme a criança se desenvolve, a mãe vai podendo “falhar” cada vez
mais, ou seja, no início da vida, cada ausência, cada demora em atender às
necessidades do bebê são sentidas como algo aterrorizante. Com o passar do
tempo, o bebê vai encontrando recursos para lidar com a espera, vai podendo se
distrair com seu entorno, assim como vai podendo consolidar dentro de si
experiências pregressas positivas que lhe asseguram que a mãe virá lhe atender. É
a esperança de que há o bom e que esse lhe retornará.
Winnicott atribui o conceito de “mãe suficientemente boa” para a cuidadora
que possui essa capacidade de atender a necessidade do bebê e “falhar” com ele o
tolerável para cada etapa do seu desenvolvimento.
Para o autor, a mãe que nunca falha, ou seja, que sempre atende ao filho,
antecipando suas necessidades ou impedindo que se frustre, acaba impedindo a
criança de criar em seu mundo imaginário espaço de desejo, de linguagem e de
simbolização. O objeto de desejo ou de necessidade surge antes mesmo que a
criança identifique seus sintomas e suas necessidades, deixando-o alheio a si e ao
seu interior.
Por outro lado, a mãe que “falta” em momentos precoces da vida ou que
“falha” além da capacidade de tolerância do bebê confere a ele a mesma sensação
de aniquilamento. Tais experiências, se ocorrem de forma constante e prolongada,
podem deixar marcas profundas no psiquismo do indivíduo.
O bebê carece de um olhar para si, precisa de atenção integral, sendo
essencialmente parte da relação e, gradativamente, a mãe vai apresentando à
criança “o mundo em pequenas doses” para que possa assimilar a realidade e se
constituir como pessoa. Aqui, a assistência física estaria associada à assistência
psicológica e para que esta tarefa seja bem sucedida, a “regressão” da mãe aos

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estágios indissociados e primitivos da mente para compreender e atender ao filho se


faz necessária nos cuidados, nas brincadeiras e no mundo imaginativo infantil.
Vale ressaltar que Winnicott parte seus estudos da análise de crianças após a
segunda guerra mundial. Dessa forma, analisa crianças cujos vínculos primitivos
foram impossibilitados ou rompidos de forma brusca, passando à institucionalização
em locais nos quais cuidados eram coletivos.
Dessa forma, refletimos que tanto situações em que a criança permanece
com a família, mas não consegue ser atendida em suas necessidades individuais,
com um olhar atento e afetivo, como em situações de acolhimento em tenra infância
configuram experiências de risco ao desenvolvimento psíquico.
Uma criança em tenra idade que enfrenta rupturas neste vínculo mãe-bebê
permanece com “buracos” em sua existência. Pode haver a possibilidade de
resgatar tal ruptura, se houver uma relação restaurativa com um adulto que se
apresente ao vínculo com qualidade, seja com uma mãe biológica disponível, seja
com uma mãe adotiva devotada.
Além da função materna, a função paterna é de extrema relevância em vários
momentos do desenvolvimento do bebê. É fundamental que o pai perceba a
importância da simbiose materna no início da vida do filho, possibilitando e
facilitando esse encontro inconsciente. Para tanto, é uma das funções paternas
cuidar das questões externas para que a mãe possa se disponibilizar para o bebê.
Neste aspecto, refletimos sobre as dificuldades para desenvolver uma
maternagem adequada em casos em que a parturiente também necessita suprir as
despesas da casa. Como se dedicar ao filho se não há quem zele pelo mundo
externo? Dessa forma, Winnicott aponta a importância da função paterna junto à
mãe para que esta possa cuidar do bebê.
O documentário “O começo da Vida” explora essas questões da maternidade
e paternidade.
Conforme o bebê vai se desenvolvendo, vai integrando a capacidade visual e
motora, percebendo de forma mais ampla e integrada o mundo a sua volta,
começando a perceber o pai como um terceiro na relação familiar. O mundo passa a
fazer parte da relação que antes consistia apenas no relacionamento mãe-bebê.

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Winnicott também aborda em seus textos aspectos do cotidiano, sendo que a


criança necessita de rotinas. Assim, o pensamento do autor ainda se mostra
bastante atual.
Em contrapartida, diante de toda análise feita pelo autor e da compreensão
sobre a importância das relações afetivas permeadas pelo cuidado e proteção de
seus pais, ponderamos ser esta uma realidade muito diferente daquela vivenciada
pela extensa maioria das famílias atendidas no judiciário, especialmente em
processos de Destituição do Poder Familiar.
Como já destacamos anteriormente, são famílias em que a fragilidade dos
vínculos afetivos – decorrentes muitas vezes de um contexto de violência,
adoecimento mental, omissão da figura paterna, situação de desemprego ou
miséria, necessidade da mulher se submeter a intensa jornada de trabalho para a
subsistência dos filhos, que ficam em muitos casos desprotegidos em casa diante da
ausência da rede de apoio familiar e da falta de políticas sociais para suprir tal
demanda – se expressam em um modelo de relacionamento entre pais e filhos muito
distante do ideal.
Dessa forma, são muitos os desafios do trabalho com famílias no judiciário,
como: a atuação voltada à prioridade da criança em detrimento da família biológica,
a culpabilização das famílias, ao serem responsabilizadas pela proteção de suas
crianças sem o devido respaldo do Estado para o fortalecimento da autonomia para
viverem em condições dignas de vida e, no caso de crianças acolhidas, o foco no
potencial cuidador/ guardião, que nem sempre está preparado para lidar com as
questões que se apresentam no trabalho com a criança e o adolescente em situação
de acolhimento.
No livro “Adoção- vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva”, de Cynthia
Peiter, o capítulo intitulado “Abandono, desamparo e adoção” trata do contexto dos
pais adotivos, da origem da adoção, que, por vezes, pode ser associada ao roubo,
abandono, negação.
Para os pretendentes, a adoção pode parecer que os levará a ocupar um
espaço que seria de outra família. Assim, muitos casos de devolução de crianças
poderiam estar relacionados à fantasia do roubo. Pelo ponto de vista da criança, a
autora contextualiza que o sentimento é de abandono.

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A autora finaliza que “todos, independente da filiação biológica ou adotiva,


tivemos que ser adotados por nossas mães, por nossos pais, por nossas famílias, no
sentido de filiação afetiva”. No entanto, ainda hoje a adoção é romanceada e pouco
se aborda as dificuldades inerentes, sem considerar que a história de vida antes da
adoção deve ser elaborada pela criança e não esquecida ou anulada.

3. PESQUISA: "REALIDADE SOCIAL: DIREITOS E PERDA DO


PODER FAMILIAR: DESPROTEÇÃO SOCIAL X DIREITO À
CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA” E A ATUAÇÃO DOS
ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS JUDICIÁRIOS NOS CASOS
DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR

Visando maior aprofundamento sobre a situação de violação de direitos de


famílias que tiveram o poder familiar destituído, realizamos um encontro com a Prof.ª
Dr.ª Eunice Terezinha Fávero, assistente social judiciária, que, diante do incômodo
em relação à forma como se dão os processos de Destituição do Poder Familiar
(DPF), sem a devida consideração da realidade social dos envolvidos, debruçou-se
em um estudo aprofundado sobre esses processos.
Intitulada "Realidade Social: Direitos e Perda do Poder Familiar: desproteção
social x direito à convivência familiar e comunitária”, a pesquisa, que se iniciou no
ano de 1996 e foi divulgada em 2001, utilizou como referência processos de
Destituição do Poder Familiar que tramitavam em Varas da Infância e Juventude da
cidade de São Paulo, Varas estas escolhidas em função da grande demanda de
atendimento.
A respeito dos resultados desta pesquisa, que apontou uma grande
porcentagem de indivíduos que viviam em situação de pobreza, foi lançado o livro
“Questão Social e Perda do Poder Familiar”. Tendo em vista as alterações do ECA,
principalmente em função da lei 12.010/2009, a Profª Drª. Eunice resolveu atualizar
a pesquisa, após 10 anos. Em relatório final deste trabalho, fez uma comparação
entre os novos dados e aqueles obtidos em 2001.

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Neste comparativo, a pesquisa indicou que os números de DPF diminuíram,


muito embora a gravidade das situações vividas por esta população tenha se
ampliado, com uma clara degradação da vida humana e impotência diante desta
realidade.
Na pesquisa realizada em 2010, foram utilizadas como referência as seis
Varas da Infância e Juventude mais representativas, totalizando 96 processos com
sentenças de destituição do poder familiar, envolvendo 121 pessoas - 66 apenas
mães e 5 apenas o pai e 25 pai e mãe – que perderam o poder familiar. No trabalho
anterior, o número de mulheres era bem superior, sendo possível notar a
inexistência de homens. Em 2010, embora o número de homens não seja muito
expressivo, há uma sinalização de que mudanças socioculturais estão em curso.
No entanto, ao relacionarmos este dado com a prática no judiciário,
observamos situações em que os nomes dos pais constam nos autos, contudo,
muitas vezes mostram-se omissos diante das situações de risco em que se
encontram seus filhos, recaindo sobre as mães, desamparadas neste processo, toda
responsabilidade por aderir às orientações e assumir papel protetivo. Elas ainda são
fortemente responsabilizadas pelo "descuido" com relação aos filhos, especialmente
quando se trata de mulheres negras e pobres que não tiveram acesso às
oportunidades. A pesquisadora confere a isso a presença de uma cultura baseada
na construção social de gênero e etnia, que permeia nossa sociedade e a prática
profissional, expressando-se nos pareceres tanto dos Técnicos do Judiciário, de
Defensores Públicos, Promotores de Justiça e Juízes.
Retomando a pesquisa, a Profª Drª. Eunice salientou que é significativo o
número de processos de Destituição do Poder Familiar onde a justificativa declarada
para a medida de acolhimento institucional seria a falta de condições materiais dos
pais. Também foram apontadas situações de violência, questões relacionadas à
saúde mental, bem como dependência de substâncias psicoativas (onde o crack
passa ser a droga predominante, o que não se via na pesquisa anterior). Ressaltou
que todas estas situações envolvem uma realidade onde os indivíduos estão no
limite do sofrimento mental.
Ao discutir a questão da drogadição, a convidada referiu-se a uma pesquisa
realizada com quatro mães dependentes químicas que tiveram apoio contínuo da

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rede socioassistencial, sendo possível a manutenção da convivência com os filhos,


garantindo-se a autonomia pessoal e a dignidade humana.
Pontuou que a realidade social destas famílias inclui a extrema precarização
em relação à escolarização, trabalho e moradia. Em relação a esta última, nos
relatórios técnicos, pode ser encontrado como justificativa para o acolhimento
institucional o fato da residência não ser "decente" ou adequada.
Outro ponto importante nos relatórios técnicos diz respeito à utilização
frequente do termo negligência, usado para destacar famílias que não conseguem
cuidar adequadamente de seus filhos, não havendo discussão ou questionamento
acerca dos motivos que levaram a esta situação. Ao não problematizar a questão,
profissionais deixam de evidenciar a questão social inerente a essas famílias.
Sobre este aspecto, refletimos também sobre o trabalho do Conselho Tutelar,
que, em muitas localidades, tem atuado como “patrulhador” de famílias, rotulando-as
ao invés de orientar, pouco intervindo quando se faz necessário. Da mesma forma, o
Estado deixa de cumprir seu papel, de garantir direitos sociais (estabelecidos pela
Constituição Federal de 1988) e acesso às políticas públicas capazes de responder
às necessidades dessas famílias, não contribuindo para que consigam, por seus
próprios meios, garantir condições de desenvolvimento e proteção aos seus filhos.
Assim, transfere à família toda a responsabilidade pela situação de risco.
O papel dos técnicos nestas ações seria conhecer o mais profundamente
possível a realidade destes indivíduos, interessando-se sobre o que sentem,
pensam, evitando contribuir para a responsabilização puramente individual, sendo
que estas famílias também sofreram grave abandono do Estado. O próprio
magistrado deve se atentar para evitar uma atuação baseada em juízos de valor, a
partir de uma visão pessoal, de acordo com sua concepção de mundo, sob o risco
de uma leitura enviesada do caso.
Ao dissertar sobre negligência, a autora faz uma diferenciação entre os
termos negligência e abandono. O primeiro, embora pouco estudado, vem sendo
comumente utilizado como justificativa para as ações de Destituição do Poder
Familiar. Já o termo abandono pode ser configurado nas seguintes formas:
- Sob risco, onde a situação é mais grave e gritante: a criança ou adolescente
sofre risco de morte.

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- Sob cuidado, onde a criança ou adolescente embora tenha sido deixado, o


foi sob os cuidados de alguém, havendo uma preocupação por parte dos genitores
ou responsáveis.
A preocupação em destacar as duas situações tem como base a relevância
do trabalho dos técnicos para modificar a visão geralmente vinculada pela mídia do
que é abandono. Considerando que os meios de comunicação formam o
pensamento e consciência dos seres sociais, tal visão deturpada contribui para
estigmatizar ainda mais estas mães que entregam seus filhos em decorrência das
mais diversas fragilidades sociais e emocionais.
Toda esta discussão sobre a realidade das famílias não tem a pretensão de
uma defesa intransigente da manutenção da criança no seio da família de origem, a
todo custo, mas de estimular a reflexão sobre em que condições muitas crianças são
retiradas de suas famílias, evidenciar a situação de abandono em que se encontram
mães e pais que perderam o poder familiar de seus filhos e ressaltar a importância
dos vínculos afetivos entre crianças e adolescentes e sua família natural. Vínculos
estes que, por mais precários que sejam, têm um papel fundamental na história
daquele indivíduo.
Criança e adolescente devem ser reconhecidos enquanto parte de um
contexto familiar, que precisa receber os devidos cuidados para poder se estruturar
minimamente e desenvolver suas potencialidades. Cuidados estes que não devem
ser limitados ao momento de maior fragilidade da família, como durante a situação
de acolhimento institucional, mas que devem ser contínuos. Evidencia-se que é
comum durante o processo de acolhimento institucional, a família receber diversos
encaminhamentos e orientações, mas depois de findada a medida, a família é
novamente abandonada pela rede de garantia de proteção, sob a errônea
justificativa de que com o desacolhimento, a criança deixa de ser prioridade. Sem o
aparato da rede, as famílias poder vir a fracassar novamente, culminando em novas
situações de risco e, consequentemente, no reacolhimento.
Os avanços no campo da legislação da infância e juventude ocorreram após
intensas mobilizações, discussões e persistências. Havia uma realidade baseada no
modelo asilar e disciplinador das instituições de acolhimento, voltadas apenas para
crianças e adolescentes em situação irregular, ou seja, pobres, órfãos,
abandonados, em situação de rua, em conflito com a lei. Sob uma visão

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estigmatizada, defendia-se o internamento como única alternativa viável para o


desenvolvimento destas crianças e adolescentes, para que elas se tornassem
pessoas de “bem”, longe de suas famílias, que eram consideradas incapazes de
criá-las.
Atualmente, temos a doutrina da proteção integral norteando as políticas
sociais voltadas à infância, algo transformador e que precisa ser reconhecido.
Contudo, são muitos os desafios para que a cultura arraigada da institucionalização
e da culpabilização das famílias seja superada. A Profª Drª. Eunice aposta na
articulação entre os movimentos sociais, mas, tão importante quanto isso, no papel
dos técnicos para garantir os avanços conquistados. Para tanto, a pesquisadora
evidencia a necessidade dos seguintes aspectos da prática profissional:
- Estabelecer com o sujeito um elo de confiança, esgotando todas as
possibilidades de conhecer a subjetividade do indivíduo; respeito ao ser humano e
sua história de vida.
- Perceber que as situações vividas são dinâmicas e que cada situação é fruto
de um momento específico e está vinculada a determinado contexto histórico e
social.
- Aproximar-se da realidade vivida por esta população, e, neste sentido,
conhecer seu território, sem que este procedimento seja fiscalizador, preocupando-
se sempre com a garantia de direitos;
- Dar importância aos laudos das equipes, alertando sobre o cuidado
necessário com conceitos e palavras usualmente utilizados para não estigmatizar os
responsáveis.
A Profª Drª. Eunice ressalta que é essencial que os técnicos estejam sempre
conscientes de seu papel ético, tomando cuidado para não assumir o papel de
julgadores, visto que estamos inseridos em uma instituição que tem esse fim.
Por último, a pesquisadora cita projetos de lei, cujo propósito conservador,
pretende alterações no ECA, tais como a legalização da adoção direta e
desburocratização do processo de preparação dos pretendentes, com perigo de
retrocessos nas conquistas em relação à convivência familiar. Assim, defende que
os técnicos (psicólogos e assistentes sociais) precisam se unir, buscando o diálogo,
a articulação e o fortalecimento das relações, como os grupos de estudo, para,
juntos, criarem espaços e formas de resistência.

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CONCLUSÃO

Como esclarecido inicialmente, a Destituição do Poder Familiar é uma


medida jurídica e de contornos drásticos, vez que rompe definitiva e legalmente o
vínculo entre pais e filhos menores de idade, exigindo-se discernimento para sua
recomendação e aplicação.
A pesquisa literária e as discussões realizadas tornaram evidente que a
destituição ocorre num cenário contraditório. Isso porque, embora a legislação seja
contundente em determinar que a ausência ou a insuficiência de recursos materiais
não são motivos que por si só justifiquem a retirada (ainda que temporária) da
criança/adolescente de seu meio de origem, a realidade cotidiana, corroborada
através da pesquisa realizada por Eunice Fávero, demonstra que a pobreza é
elemento presente na totalidade das famílias destituídas de seus descendentes.
Não obstante, malgrado o ECA compartilhe a responsabilidade pela defesa e
garantia dos direitos infanto-juvenis entre família, comunidade, poder público e
sociedade em geral, a destituição ocorre, na maioria das vezes, quando apontado o
“fracasso” unilateral da família. Ela é solitariamente responsabilizada pela
desproteção de suas crianças e seus adolescentes, penalizada com a separação
definitiva de seus membros.
Conforme mencionado anteriormente, é fundamental que as atuações dos
assistentes sociais e psicólogos judiciários considerem o contexto geral, atentando
para as contradições em que são inscritas as suas intervenções. Outrossim, ao
mesmo tempo que é necessário considerar as peculiaridades de cada caso, é
fundamental perceber as famílias atendidas como pertencentes a uma sociedade
excludente, que preza a divisão de classes e a manutenção de verdadeiros abismos
sociais. O momento atual é bastante explícito nesse sentido, acenando
vigorosamente para retrocessos no tocante a direitos sociais que sequer foram
consolidados em sua plenitude.
É imprescindível que as intervenções profissionais sejam compatíveis com
os respectivos projetos ético-políticos, observando a complexidade intrínseca à
garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, já que resta impraticável e

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incoerente ignorar que essa garantia relaciona-se diretamente com o acesso que
pais/familiares/ responsáveis têm aos direitos sociais. Qualquer ação ou propósito
que ignore essa complexidade incorre no risco de não atender verdadeiramente ao
interesse das crianças e dos adolescentes.
Exemplo disso é o anteprojeto de Lei citado no item anterior que, em
síntese, pretende contribuir para a celeridade da adoção. Embora a finalidade
declarada seja acelerar o encaminhamento de criança/adolescente à família adotiva,
restou notório que a preocupação em promover tal agilidade desconsidera os
direitos mais elementares do público infanto-juvenil. A ideia simplória, aliás, de fixar
prazos processuais para o estágio de convivência, bem como diminuir o período
referente à adoção internacional viola a peculiaridade existente em cada situação,
favorecendo sobremaneira a ocorrência de adoções que posteriormente podem se
converter em devoluções. Na adoção internacional, a criança seria inserida em outra
cultura com mudanças/rupturas súbitas e bruscas. Em caso de devolução, esta
ocorre por meio da institucionalização em um país que lhe é totalmente estranho,
contexto que requer ainda mais cautela.
Não menos grave é a proposta de retirar a intervenção judiciária na
condução da adoção em determinadas circunstâncias, autorizando a entrega direta,
desfavorecendo a avaliação criteriosa de pretendentes pela equipe multidisciplinar
judiciária. Tal fato abre a possibilidade de sérias violações de direitos, como por
exemplo, a existência de relações que visem favorecimento econômico, aí incluído o
tráfico de crianças e adolescentes.
Em suma, o texto legal é um flagrante retrocesso, já que, ao invés de
majorar a proteção, bem estar e segurança das crianças e adolescentes, expõe ao
risco, remetendo-nos aos primórdios da adoção no Brasil, que serviam à finalidade
de atender exclusivamente aos anseios dos adultos.
Desta forma, tal projeto, ainda que seja vinculado à sociedade, sob o
discurso de atender ao melhor interesse da criança, evidencia um caráter
adultocêntrico e prioriza a adoção como alternativa para a ausência de políticas
públicas cada vez mais precarizadas, o que se mostra preocupante.
A conjuntura atual nos leva a questionar se, de fato, o Estado está
preocupado com a infância e a juventude brasileira, haja vista a aprovação na
Câmara dos Deputados da PEC 241/2016 (no dia 25/10/16), que congela por 20

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anos investimentos em políticas sociais essenciais para garantir direitos às crianças


e adolescentes, previstos constitucionalmente e no ECA.
Em suma, a luta pela garantia de direitos é ampla e permeada por diferentes
adversidades, tais como a ausência de aparato público suficiente e eficaz (políticas
públicas e serviços), deficiência que vivenciamos dentro da própria instituição
judiciária, dadas às dificuldades enfrentadas, relacionadas, no nosso caso à
incompletude e insuficiência no quadro de assistentes sociais e psicólogos, bem
como às condições muitas vezes precárias que encontramos para a execução do
trabalho.
Neste contexto, cabe aos profissionais e todos os atores integrantes do
sistema de garantia de direitos criar alternativas de enfrentamento e resistência,
lutando por melhores condições de trabalho, ocupando espaços de reflexões,
construindo propostas capazes de refrear o movimento de perda de direitos já
conquistados. Assim, compreendemos que a efetivação de direitos seria
fundamental para alterar a realidade da maioria das famílias de crianças em situação
de acolhimento institucional, contribuindo para que todos tenham acesso a uma vida
digna e, consequentemente, evitando rompimento de vínculos, atendendo
verdadeiramente ao melhor interesse da criança e do adolescente.

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REFERÊNCIAS

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990,


com alterações pela Lei n. 12.010, de 3 de agosto de 2009.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações


Técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília, DF:
CNAS, 2009.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Plano Nacional


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79
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O SETOR TÉCNICO JUDICIÁRIO E O ATENDIMENTO À(O)


ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI: PENSANDO
UMA PRÁTICA GARANTISTA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2016

80
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Claudia Guzzardi Altieri – Psicóloga Judiciário – Fórum das Varas Especiais da


Infância e Juventude da Capital

Elaine Cristina Major Ferreira da Silva – Assistente Social Judiciário – Fórum das
Varas Especiais da Infância e Juventude da Capital

AUTORAS

Celia Rodrigues Monsao – Assistente Social Judiciário – Comarca de Boituva

Fernanda Caldas de Azevedo – Assistente Social Judiciário – Fórum das Varas


Especiais da Infância e Juventude da Capital

Gislley Costa Fontes – Assistente Social Judiciário - Comarca de São Sebastião

Graziele Galindo do Vale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Fernandópolis

Iara Dourado Nogueira Giotto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Amparo

Josiane Biondo – Assistente Social Judiciárip – Fórum das Varas Especiais da


Infância e Juventude da Capital

Ligia Aparecida Recco Spinelli – Assistente Social Judiciário – Comarca do Guarujá

Maria Gorette Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itariri

Natália Teodoro Pimentel – Assistente Social Judiciário – Fórum das Varas


Especiais da Infância e Juventude da Capital

Nêmora Suely Melo Fernandes – Psicóloga Judiciário – Comarca de Casa Branca

Tatiana Cetertich – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Caetano do Sul

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O SETOR TÉCNICO JUDICIÁRIO E O ATENDIMENTO À (AO)


ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI: PENSANDO UMA
PRÁTICA GARANTISTA

Diante da complexidade e contradições do mundo contemporâneo, do quadro


de violência estrutural e do contexto de violações de direitos, ficam evidentes as
consequências negativas e crescentes na sociedade globalizada, muito
especialmente, em relação às(aos) adolescentes, as(os) quais reagem e se
posicionam frente a esta realidade. Resistir à reprodução de valores impostos e
enfrentar com êxito a batalha ideológica contra a competição, o consumismo
compulsório, o imediatismo, o individualismo, o hedonismo etc., é um desafio a ser
enfrentado pelo conjunto da sociedade.

A persistência da exploração, da má distribuição da riqueza socialmente


produzida, do pauperismo, da injustiça social, da ausência de cidadania e proteção
integral da infância e da adolescência, vem acompanhada de uma resposta, muitas
vezes, indesejada e de reprovação coletiva. Na maioria das vezes, esta é de caráter
retributivo, reforça a concepção de punição como apanágio dos problemas
existentes, reproduzindo a violência.

A ausência de políticas públicas consistentes, de um sistema de garantia de


direitos eficiente e coeso, de uma educação de qualidade voltada ao protagonismo
juvenil e de um novo paradigma de Justiça, inviabilizam uma intervenção preventiva
em relação à(ao) adolescente em conflito com a lei, mesmo diante do respaldo legal,
como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE).

Pensar alternativas e estratégias de enfrentamento consciente da questão


da(do) adolescente em conflito com a lei é um desafio, especialmente para as(os)
profissionais do Serviço Social e da Psicologia, além dos demais atores que formam
a rede de proteção integral à infância e juventude que estão comprometida(o)s com
a prática garantista de direitos. Nesse processo, também devem participar as(os)

82
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

adolescentes e suas famílias, as(os) quais são diretamente afetados pelas decisões
estabelecidas.

Partindo desta inquietude teórico-prática, este artigo traduz a finalidade de


refletir sobre a prática profissional das(dos) Assistentes Sociais e Psicólogas(os)
Judiciária(os) que trabalham com adolescentes em conflito com a lei na direção da
garantia de direitos destas(es). Para tanto, parte da conceituação da adolescência
de forma a compreender esta fase e os sujeitos que a vivem. Aborda o sistema de
responsabilização da(o) adolescente, trazendo notas sobre a socioeducação
alcançando as práticas profissionais na direção garantista.

ADOLESCÊNCIA

A adolescência é uma etapa evolutiva peculiar ao ser humano, cujo estudo e


reconhecimento como período específico do desenvolvimento deu-se em meados do
século XX. No entanto, as referências a essa fase de vida e interesse por suas
particularidades datam da antiguidade egípcia e greco-romana.

A impulsividade e turbulência da juventude já eram notadas também muito


antes de se estabelecer a adolescência como um período do desenvolvimento
biopsicossocial. São as palavras de Aristóteles (884-322 a. C. apud Chipkevitch,
1994, p.112) que melhor traduzem as(os) adolescentes:

Os jovens são apaixonados, irascíveis e tendem a se deixar levar por seus


impulsos, particularmente os sexuais, e nesse sentido não conhecem a
continência. Também são volúveis e seus desejos inconstantes, além de
transitórios e veementes. Levam tudo ao extremo, seja amor, ódio ou
qualquer outra coisa. Acham que sabem tudo...

Concebemos o estabelecido estágio de desenvolvimento como uma das


formações culturais de maior proeminência histórica.

Reconhecido é o desafio imposto à sociedade em lidar com as dores e


saberes de “adolescer” no quadro da modernidade. A ela coube a transmissão de
valores socioculturais tidos como ideais pela cultura contemporânea, quais sejam:

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

independência, autonomia, triunfo financeiro/social, sucesso amoroso/ sexual, entre


outros.

Para a comunidade social, embora o corpo dessa(e) jovem já apresente


compatibilidade aos ideais modernos de força física, pode-se identificar consenso
popular sobre a incompletude de sua maturação psicológica. A ciência confere
unidade ao fenômeno da adolescência ao indissociar aspectos biológicos,
psicológicos, sociais e culturais como constituintes do processo maturativo. Em
razão da singularidade desta leitura, faz-se tarefa complexa determinar o início e
final desse período.

Contudo, o sujeito adolescente vive a contradição criada pela sociedade entre


o ideal de autonomia e sua impossibilidade real de exercê-la, já que é grande
demais para algumas coisas e nem tanto para outras.

Recusada(o) como par dos adultos, indignada(o) pela moratória socialmente


estabelecida e perseguida(o) pela indefinição de meios para concluir essa etapa,
a(o) adolescente se afasta dos indivíduos mais velhos e cria microssociedades, ou
tribos urbanas - modo de socialização juvenil por meio da qual lhe é permitido o
exercício do papel social. Estes grupos constituem-se a partir de pontos de
identificação e pretendem consolidar a identidade de jovem.

A inserção em grupos costuma atender à demanda do reconhecimento pelos


pares. Este fluxo poderia responder ao desejo pelo pertencimento sociocomunitário,
não fosse a barreira posta pela sociedade. Este processo de espera é denominado
por Calligaris (1998), como a moratória imposta ao jovem pela sociedade.

Ainda de acordo com Caligaris, a fim de se “vingar” desta espera, a(o) jovem
deseja construir uma identidade que fale dela(e) enquanto indivíduo e assim vive o
tempo de experimentar e testar limites. Ou seja, “já que os adultos não me querem
lá, eu vou me vingar bagunçando o mundo deles”.

Em se tratando das primeiras referências a essa(e)s jovens, representada por


seus cuidadores principais, há que se responder ao convite à ressignificação dessas
relações. Se o estágio da adolescência é considerado por muitos como período de
transformação, as inúmeras variáveis que perpassam este período trazem uma

84
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sobrecarga ao jovem que pode indispor de suficiente capacidade de elaboração


destes conteúdos.

As alterações biopsicossocias e os estímulos emitidos pelo meio compõem


cenário complexo, primeiramente para os adultos que as(os) rodeiam. Quando estes
não acolhem a(o) jovem, não mantendo sua disponibilidade para amar e impor
limites, podem não se fazer referência positiva e provocar sentimento de desamparo
difícil de assimilar. Isso porque pais de adolescentes precisam necessariamente se
implicar nesse processo, de modo a compreender os lutos aos quais também
precisam se submeter, a contar da perda do corpo da(o) filha(o) pequena(o) e da
dependência infantil. (WINNICOTT, 2011)

A(o) jovem amplia suas relações para além do contexto familiar, buscando por
meio de grupos sociais, como já abordado, identificação e autoafirmação. Testam os
mecanismos de controle social a partir das primeiras relações objeto-parentais
internalizadas, a fim de estabelecer sua identidade adulta.

Inerente a este período é a vulnerabilidade, a angústia pelos lutos infantis


necessários, a ansiedade pela chegada da castração que inevitavelmente ocorrerá
no universo adulto, exigindo-se uma autogestão não aprendida durante a infância.
A(o) adolescente vive uma ambivalência ao lidar com a imposição do gozo irrestrito
e a captura midiática que se faz predadora de desejos, canalizando e manipulando
esse gozo.

Assim, é preciso atentar a quem e como se oferece contorno a essa


subjetividade. Aprendendo, respeitando e valorizando esta imaturidade,
interpretando e convivendo com estas manifestações, descobrindo os meios de
contê-las, canalizá-las, organizá-las e combiná-las com as práticas sociais vigentes,
tornando-se desafios que as comunidades devem enfrentar com disponibilidade ao
diálogo, à divergência, à diversidade, à negociação e sempre que possível, aos
acordos que contemplem necessidades mútuas.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

SISTEMA DE RESPONSABILIZAÇÃO DA(O) ADOLESCENTE

O profissional que atua junto ao adolescente em conflito com a lei precisa ter
claro o significado da medida socioeducativa e a complexidade do sistema de
responsabilização, sendo esta questão o ponto de partida da sua intervenção. Essa
análise exige uma reflexão crítica e uma visão histórica da resposta do Estado
diante da prática infracional. (FRASSETO, 2007).

O paradigma anterior à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança


e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, concebia a(o) adolescente como
totalmente incapaz de entender o caráter ilícito daquilo que praticava e de ser
conduzida(o) conforme esse entendimento. Tal concepção a(o) equiparava ao adulto
inimputável, porém sem as mesmas garantias e direitos de defesa.

Na nova doutrina, a(o) adolescente passou a ser sujeito de direitos e pessoa


em situação peculiar de desenvolvimento, com capacidade para entender seus atos
e ser responsabilizada(o) por eles. A partir do ECA, convencionou-se uma faixa
etária para a responsabilização, ou seja, a partir dos 12 anos, sendo que essa idade
não é um padrão em todos os países do mundo.

A medida socioeducativa é uma resposta oficial do Estado diante de um ato


infracional equiparado a crime no Código Penal, praticado por adolescente entre 12
e 18 anos incompletos.

Como diferença fundamental entre a Justiça Juvenil e a Penal, o caráter


retributivo não justifica por si só a imposição da resposta do Estado nem a
manutenção desta resposta. A medida socioeducativa só vai se sustentar a partir de
critérios e necessidades específicas identificadas no diagnóstico polidimensional e
na construção do PIA junto à(ao) adolescente e sua família, tendo em conta o
caráter socioeducativo como princípio da intervenção.

Segundo Frasseto (2007), no caso de um(a) adolescente, por exemplo,


praticar um homicídio com 12 anos, e receber somente aos 17 anos uma medida de
internação, esta não fará sentido dentro da lógica do sistema socioeducativo, por,
possivelmente não existir mais a necessidade da sua aplicação: um dos critérios
para execução e manutenção da medida, conforme o próprio ECA diz, é a presença
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de necessidades pedagógicas, o que muda um pouco a lógica do direito penal, para


uma lógica que precisa aferir a utilidade ou não da resposta.

Ainda conforme o autor, o foco do trabalho socioeducativo engloba as


condições pessoais, familiares, culturais e sociais da(o) adolescente, sendo que a
questão da medida não se justifica a partir da perspectiva de reincidência. Portanto,
o uso de tal aparato faz-se unicamente para legitimar a sua exclusão da
responsabilização e nunca para validar a sua inclusão. FRASSETO (2007).

Utilizar o juízo de probabilidade para excluir a(o0 adolescente do sistema de


responsabilização é legítimo. O que não é válido é a perspectiva de futuro para
incluí-lo no referido sistema, porque isso viola garantias e direitos fundamentais.

Mas o que fazer quando tais violações ocorrem? Qual deve ser a postura do
profissional do Serviço Social e da Psicologia?

É importante entender o uso e aplicação do ECA, muito especialmente na


relação entre as medidas protetivas e socioeducativas, para evitar que as primeiras
só sejam efetivadas durante o decurso processual do ato infracional. É paradoxal ter
que cumprir deveres, obrigações, regras, normas e leis, sem poder exercitar os
direitos sociais fundamentais, já que a doutrina da proteção integral não é cumprida
em sua totalidade.

O descuido com a infância muito provavelmente implicará em sérios danos


ao seu desenvolvimento biopsicossocial, com consequências negativas durante a
adolescência. Não atuar preventivamente para evitar a ocorrência do conflito com a
lei, por falta de políticas públicas consistentes e comprometidas na área da
educação, saúde, assistência social, lazer, cultura, moradia, emprego etc. é
comprometer o futuro das(os) jovens e negar-lhes sua condição de sujeito, de
protagonista e de cidadão.

Retirar da(o) jovem a oportunidade de formação, capacitação, iniciativa e


participação crítica e criativa no mundo, é desconsiderar e anular suas
potencialidades, muitas vezes só expressas e reconhecidas durantes o cumprimento
da medida socioeducativa.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No entendimento de Frasseto, há uma falsa dicotomia entre pena e medida


socioeducativa. Ambas objetivam a defesa da sociedade através da educação e da
ressocialização da(o) infrator(a). Ressaltando ainda que o reconhecimento do
caráter punitivo deixa bem claro que embora desejemos respostas apenas
educativas, elas ainda se tratam de uma utopia.

Como lidar com a pseudo-socioeducação, quando prevalece o caráter punitivo frente


ao educativo? Quando as medidas socioeducativas são aplicadas para suprir a
suposta ausência de apoio familiar, sem considerar o abandono estatal? Ou quando
é usada como mecanismo de regulação de más condutas e conquista do “bom
comportamento” juvenil? São ainda gritantes os mecanismos utilizados pelo Estado
para lidar com as complexidades que envolvem situações de adolescentes em
conflito com a lei, a ponto de se tornar um importante objeto de estudos científicos
pela ANCED – Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do
Adolescente em parceria com o Conselho Federal de Psicologia acerca da
“psiquiatrização” e/ou “medicalização” que as medidas socioeducativas adquiriram
no contexto de sua execução.

Trata-se de uma prática perversa que busca justificar a ineficiência e ou


incapacidade do Estado na aplicação de medidas socioeducativas, sobretudo no que
se refere às medidas de internação, nas quais se atribuem aos “transtornos
mentais”, a causa dos conflitos e agressividades envolvendo adolescentes nessa
condição. Nesta perspectiva, desviam-se as discussões sobre os reais fundamentos
desses conflitos, diretamente ligados à ausência e ou ineficácia de políticas públicas
de enfrentamento e garantia de direitos de crianças e adolescentes, também quando
em conflito com a lei, conforme já abordado.

Os profissionais que atendem a (o) adolescente em conflito com a lei devem


considerar o princípio da incompletude institucional, aproximando as políticas
públicas e fortalecendo os princípios que norteiam a doutrina da proteção integral,
levando-se em conta, a importância do trabalho em rede, numa articulação com o
Sistema de Garantia de Direitos, para pensar uma intervenção sensata, conjunta,
contínua e que rompa gradualmente com intervenções ora de cunho tutelar e
assistencial, ora de ordem repressiva, punitiva e excludente. Este é o desafio que
precisa mobilizar a prática profissional garantista.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O FAZER PROFISSIONAL E A PRÁTICA GARANTISTA

A conquista da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do


Adolescente/ECA, da doutrina da Proteção Integral etc. são marcos legais admitidos
pela jurisprudência dos tribunais e consolidados em tratados internacionais e
proclamados em declarações universais, porém parece que não são suficientes na
efetivação de direitos fundamentais, uma vez que sua execução esbarra na estrutura
socioeconômica, na lei de mercado, na mercantilização e reificação do ser humano.

O papel da(o) Assistente Social e da(o) Psicóloga(o) Judiciário nas Varas da


Infância e Juventude é amplo e ao mesmo tempo específico. Fornecer subsídios
teóricos e técnicos às decisões judiciais, bem como orientar e acompanhar o manejo
das questões adstritas à matéria, são uma parte da sua competência. Deve-se ter
sempre como pano de fundo do trabalho da equipe técnica, o respeito às garantias
individuais cidadãs, e mais especificamente os direitos garantidos aos cidadãos em
desenvolvimento, assegurados em Leis específicas (ECA, SINASE, Tratados
Internacionais, etc).

No caso dos adolescentes em conflito com a lei, a(o) Assistente Social e a(o)
Psicóloga(o) tem um importante papel, já que a especificidade da questão requer um
acompanhamento e manejo difícil, à medida em que o binômio
direito&dever impera. A responsabilização pela atuação infracional se faz
necessária, para que a(o) adolescente possa superar questões facilitadoras dessa
atuação. A subjetividade dessa(e) adolescente deve ser alvo de cuidados e de
respeito, ao contrário do que usualmente se pratica. O sistema de
responsabilização juvenil está pautado em diretrizes que na prática buscam a
“pasteurização” do ser, principalmente quando uniformizam comportamentos e
querem padronizar também expressões e reações emocionais. Reprimir
necessidades básicas e desejos não é definitivamente um manejo potente em um
esperado processo de responsabilização.

Explicitamente falando, a intersecção da punição e proteção é um dos


campos mais difíceis para o exercício dos saberes profissionais. E é nesse campo
que o Serviço Social e a Psicologia devem se unir sem se diluir, para buscar garantir

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e promover direitos e deveres. Além de identificar, compreender e estimular a


positividade possível dos potenciais internos da(o)s atendidos.

Nesse sentido, os subsídios fornecidos para melhor embasamento das


decisões judiciais, nunca devem atender a outros interesses que não sejam os
da(o)s adolescentes e suas famílias ou responsáveis, tendo em conta o cenário de
desproteção social decorrente do desmonte das políticas públicas adotadas pelo
atual modelo econômico. Ainda que a atuação profissional ocorra em um órgão em
que a hierarquia seja uma constante que perpassa as relações, deve prevalecer a
livre manifestação do ponto de vista técnico com o compromisso ético-político
sempre pautando o fazer profissional.

NOTAS SOBRE A SOCIOEDUCAÇÃO

O debate que envolve a socioeducação – e consequentemente a prática


profissional do(a) assistente social e do(a) psicólogo(a) que atuam nas medidas
socioeducativas – é permeado por dilemas e contradições, tal qual o próprio sistema
penal juvenil. Um dos principais tensionamentos reside no fato de não haver uma
clareza acerca da natureza das medidas socioeducativas, uma vez que estas
transitam entre dois universos distintos: o punitivismo repressivo e a condução ético-
pedagógica, impulsionando à análise crítica da implementação das medidas
socioeducativas.

Considera-se, portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o


Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) avanços resultantes
das conquistas no campo dos direitos humanos, mas por meio de uma retomada
sócio-histórica a fim de compreender o atual sistema penal juvenil, é possível
denotar que o “novo” e “velho” se fundem e se chocam constantemente no trato com
os(as) adolescentes em conflito com a lei.

Contextualizando historicamente a responsabilização penal juvenil de crianças


e adolescentes no Brasil, Oliveira e Silva (2011 apud Mendez, 1993) demarcam três
períodos: 1. o Penal Indiferenciado; 2. o Tutelar e 3. o de responsabilização penal
contemplado pelo ECA.
90
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O Penal indiferenciado, resumidamente, pode ser caracterizado pelo


tratamento de modo indiferenciado aos adultos e às crianças/adolescentes suspeitos
de cometer prática criminal. É também o período caracterizado pelo surgimento dos
primeiros Códigos Penais brasileiros. O primeiro, instituído em 1830, foi considerado
um avanço no âmbito do Direito Penal frente às arbitrariedades cometidas contra os
direitos humanos. Neste, a idade estipulada para a menoridade penal foi de quatorze
anos.

O período Tutelar foi assim denominado especialmente em virtude de seu


caráter assistencial, compreendendo que as crianças/adolescentes deveriam ser
cuidadas e tuteladas. Trata-se de um período demarcado pela construção de uma
nova concepção de infância em todo o Ocidente, sendo reconhecida distintamente
do período de vida adulta, e que, portanto, demandaria um trato diferenciado.

Tal concepção passou a refletir na legislação da época, também chamada de


legislação menorista, sendo o primeiro Código de Menores instituído em 1927. A
alteração da idade penal, contudo, ocorreu apenas com a promulgação da
Constituição de 1937 e com o Código Penal de 1940.

A intervenção junto a essa parcela da população passou a ocorrer sob novas


bases científicas. No que tange ao tratamento dispensado aos “delinquentes” 6,
Oliveira e Silva (2011) refere que o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), no
governo Vargas, implantou uma política claramente definida em bases repressivas.
Aos saberes científicos era dada ênfase às ciências biológicas e psicológicas para
justificar os comportamentos inadequados socialmente.

Importa salientar que mesmo com a reforma do Código de Menores, em 1979,


durante a Ditadura Militar, agora sob a influência do Welfare State europeu, as
práticas repressivas, assistencialistas e tuteladoras continuaram a ser reproduzidas.

Os “desajustamentos” eram analisados sob a ótica da ausência da moral,


da falta da formação de valores, hábitos e atitudes desejáveis dentro do
considerado padrão liberal, bem como resultado da falta de “afeto e amor da

6
Cabe ressaltar que adotamos esta expressão por uma questão de contextualização histórica.

91
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

família”. Os que tinham “comportamentos desviantes”, como os


considerados “menores abandonados e delinquentes”, eram classificados
como marginais, e a Funabem e a Febem introduziram cientificamente,
numa perspectiva interdisciplinar, os jargões técnicos do “carente”, do
“biopsicossocial” e outros termos que denotaram o “uso do conhecimento
científico” da época (OLIVEIRA E SILVA, 2011, p. 86-87).

O que pode ser observado após o período demarcado pelo estado de


exceção e com o advento da Nova República é a tentativa de romper com os
modelos penais até então adotados. Nesse sentido, o ECA surge pela primeira vez
com a ideia de criança e adolescente como sujeitos de direito7. Ainda que possa ser
responsabilizada(o), a(o) adolescente também passa a ser portadora de direitos,
dentro de um sistema garantista que visa “proteger” ao invés de “tutelar”.

A ideia de socioeducação surge nesse contexto como forma de


responsabilizar tanto a(o) adolescente autor(a) de ato infracional quanto o Estado
frente aos seus deveres. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) infere que as medidas socioeducativas são de natureza sancionatória, vez
que responsabiliza judicialmente as(os) adolescentes, mas na sua execução deve
prevalecer a garantia de direitos e o desenvolvimento de ações de caráter educativo.

Há, no entanto, diferentes interpretações acerca da natureza e da finalidade


das medidas socioeducativas, conforme observa-se abaixo8:

Oliveira e
Oliveira Silva (2011
Costa
Textos e Silva SINASE Cunha (2013) apud
(2006)
(2011) Frasseto,
1999)

7
Conforme aponta a autora, os direitos que já incorriam no Sistema Penal Adulto é estendido ao
Juvenil: “como, por exemplo, com o devido processo legal; o princípio do contraditório; a ampla
defesa; a presunção da inocência; a assistência judiciária; a presença dos pais e dos responsáveis
nos procedimentos judiciários; ser informado das acusações e não responder; a confrontação de
testemunhas; a interposição de recursos; a apelação para autoridades em diferentes instâncias
hierárquicas; o habeas corpus e outros direitos (OLIVEIRA E SILVA, 2011, p. 90).
8
Quadro elaborado pelo próprio Grupo de Estudos a partir das leituras realizadas no decorrer do ano
de 2016.

92
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Medida Natureza As MSE’s Prevalência Duas MSE tem


Socioeduc punitiva, corresponde da ação dimensões: por
ativa retributiva m a: 1- socioeducati jurídico- finalidade a
reação sancionatória prevenção
x va sobre os
(MSE) punitiva da (responsabiliz social, a
finalidade sociedade aspectos ação judicial proteção
educativa ao delito meramente através das dos bens, e
. cometido sancionatóri restrições estão a
pelo(a) os: legais) e serviço do
É o que adolescente ético- patrimônio
perspectiva
diferencia aplicadas de pedagógica e da defesa
as MSE’s ético-
forma (garantia de da
das pedagógica.
vertical e direitos e ao sociedade –
penas impositiva, desenvolvime MSE são
criminais, O objetivo
porém da medida é nto de ações aplicadas
assim respeitando educativas). em defesa
como a possibilitar a
um trâmite inclusão do meio
brevidade processual social e não
da social de
no qual o modo mais do
execução adolescente adolescente
eo célere
possa possível e, . Para o
cumprime perceber que autor,
nto principalmen
pôde se te, o seu natureza e
pedagógi defender, a finalidade
co. pleno
medida desenvolvim se igualam:
socioeducati ento como coercitivas,
va não é pessoa. impositivas,
arbitrária, o punitivas.
(a) Beirando a
adolescente tendência
foi patrimonialí
responsabiliz stica e a
ado. E esta lógica de
deve segurança
contribuir do cidadão.
para o seu
desenvolvim
ento como
pessoa e
cidadão.

Assim, resumidamente, neste debate, por um lado entende-se que a natureza


das medidas socioeducativas é de conteúdo punitivo e coercitivo, tendo em vista que
sua aplicação é motivada essencialmente com o intuito de “proteger a sociedade”,
mas, por outro, considera-se que é preciso reconhecer a finalidade educativa –

93
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

conforme previsto no SINASE – que as tornam diferentes das penas imputadas pelo
sistema adulto.

Os limites e impasses que vêm sendo observados na execução das medidas


socioeducativas remetem a essa análise sobre a natureza versus finalidade das
medidas, uma vez que, se a socioeducação não encontra as condições necessárias
para se efetivar na prática, prevalece o caráter punitivo e sancionatário, sendo as
medidas socioeducativas apropriadas pela lógica dominante no sentido de exercer o
controle sociopenal da juventude pobre.

Ademais, o modelo de socioeducação vigente, especialmente no meio


fechado, não raro tem se aproximado da lógica positivista criminológica, apropriada
pelo Código de Menores. Para além do esforço individual (e por vezes, coletivo) de
profissionais e educadores, a lógica institucional tem valorizado cada vez mais
aspectos relativos ao comportamento das(dos) adolescentes, à disciplina e ao
controle das mentes, de modo que a socialização passa a ser sinônimo de
padronização dos corpos e da forma de pensar.

Oliveira e Silva (2011) afirma que existe uma relação entre as medidas
socioeducativas e protetivas que é “tênue, tensa e passível de ambiguidades” (p.
163-164) e apresenta problemáticas bastante atuais: a vulnerabilidade social, que
exige proteção, endossando a aplicação de medidas socioeducativas. Afirma que
existe uma concepção tutelar assistencial como pano de fundo das medidas
socioeducativas de meio aberto (não raras vezes nos deparamos com sugestões
técnicas que indicam a liberdade assistida para fins de encaminhamento a cursos,
matrícula escolar ou outras demandas de ordem protetiva) ou ainda o
direcionamento de adolescentes sem vínculos familiares para a medida de
semiliberdade. (Oliveira e Silva, 2011).

Deste modo, as conclusões de Oliveira e Silva (2011) indicam que a


socioeducação está distante da perspectiva da(o) adolescente como sujeito do
processo educativo.

Então a socioeducação tem funcionado, na prática do sistema de


administração da Justiça, como uma educação que oprime e é utilizada
como um mecanismo de regulação e sinais de controle sociopenal para as
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“más condutas”, que são identificadas como “mentes perigosas” para a


sociedade. O discurso socioeducativo é usado para dar uma face flexível e
humanitária à inflexibilidade do controle penal do adolescente [...] nos
processos analisados foram identificadas concepções e práticas
sociojurídicas de cunho tutelar assistencial, ilustradas durante a aplicação
das medidas socioeducativas, seja a partir de pareceres técnicos, seja da
representação dos promotores, seja dos despachos dos defensores e,
sobretudo, das sentenças judiciais” (Oliveira e Silva, 2011, p. 175-176 –
Grifos nossos).

Enfim, refletir sobre uma prática profissional garantista da(o) Assistente Social
e da(o) Psicóloga(o) do Judiciário, requer ter como ponto de partida a
contextualização da(o) adolescente e desta fase, assim como, fazer com que este
sujeito de direitos sinta-se inserido no processo de socioeducação proposto e mais
do que isto, que ele faça parte deste planejamento identificando o que traz de
aquisição da sua vivência cotidiana de modo que estes sirvam de compreensão e
superação crítica de suas dificuldades, buscando espaços nos quais ele próprio
construa termos pessoais e sociais, a partir de uma ideia de totalidade. (COSTA,
2006)

95
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

ABERASTURY, Arminda. Adolescência normal, por Arminda Aberastury e Maurício


Knobel. Trad. De Suzana Maria Garagoray Ballve. 5 ed. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1886.
ANCED (Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente).
Justiça Juvenil: A visão da sobre seus conceitos e práticas, em uma perspectiva dos
Direitos Humanos.
BRASIL. Lei nº 12.594, de 18 de Janeiro de 2012.
CALLIGARIS, C. Lei e Comunidade: Algumas propostas. In: Pineiro. P.S. São Paulo
sem medo: um diagnóstico de violência urbana. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. p.
59 a 71.
CARVAJAL, G. Tornar-se adolescente: aventura de uma metamorfose: uma visão
psicanalítica da adolescência. São Paulo: Cortez, 2001.
COSTA. Antonio Carlos Gomes da. Por uma Política Nacional de Execução das
Medidas Socioeducativas – Conceitos e Princípios Norteadores. Brasília: Secretaria
Especial dos Direitos Humanos, 2006.
CUNHA, Liziane Giacomelli Henriques da Cunha. A socioeducação e a produção de
conhecimento na área do Serviço Social: entre a renovação e o conservadorismo.
185 folhas. Dissertação - Programa de Pós Graduação de Serviço Social/ Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2013.
FRASSETO, Flávio. Posicionamento. Justiça Juvenil da ANCED sobre seus
conceitos e práticas, em uma perspectiva dos Direitos Humanos. São Paulo,
novembro de 2007.
OLIVEIRA E SILVA, Maria Liduína de. Entre proteção e punição: o Controle
Sociopenal dos Adolescentes. São Paulo: UNIFESP, 2011.
OSÓRIO, Carlos: Adolescente Hoje. Porto Alegre: Artmed, 1992.

WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins


Fontes, 2011.

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CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS EM VARAS DE FAMÍLIA:


CONCEITUAÇÃO, CARACTERÍSTICAS E PERSPECTIVAS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL

“CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS”

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2016
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COORDENADORAS

Maria Isabel Strong – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional XI de Pinheiros

Glausa de Oliveira Munduruca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Barra Bonita

AUTORAS

Ana Maria I.L.de Á. Camargo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Miracatu

Egli Maria Micheski – Psicóloga Judiciário – Comarca de Registro

Erica Fragoso Pacca – Assistente Social Judiciário – Comarca de Juquiá

Izaura Benigno da Cruz – Assistente Social Judiciário – FR. V - São Miguel Paulista

Letícia Côrtes de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de Taubaté

Ligia Zago – Psicóloga Judiciário – FR. X - Ipiranga

Luciana Mattos – Psicóloga Judiciário – FR. XII - N. Senhora do Ó

Lucy Vianna Alcebíades – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guarujá

Márcia Aparecida Thomé Garcia – Psicóloga Judiciário – Comarca de Botucatu

Maria Angélica Del E.Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jacareí

Maria Aparecida F.Fabrício – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos

Marina Coutinho de Carvalho .Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Suzano

Paula Melissa Cunha Tosta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jacareí

Priscila A. Marchioli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes

Rosangela Maria Lenharo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibitinga

Rosenilda Maria da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes

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Sandra P. Cianfarani – Assistente Social Judiciário – Comarca de Votorantin

Sonia Regina C.Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Suzano

Sueli Aparecida Correa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba

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AGRADECIMENTOS

À MM Juíza de Direito Dr.ª Vanessa Aufiero da Rocha pela brilhante iniciativa


da implantação da Oficina de Pais e Filhos na cidade de São Vicente e pela
gentileza e disponibilidade de partilhar o seu conhecimento conosco.

À psicóloga judiciário Profa. Dra. Lídia Rosalina Folgueira Castro por ter
idealizado e fundado este Grupo de Estudo, deixando as suas marcas e por ter
novamente nos presenteado com sua eloquente apresentação.

100
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Os processos jurídicos são narrativas, obras em que cada parte tenta
provar a veracidade de suas versões. Nenhuma narrativa deve ser tomada
como totalmente verdadeira. Qualquer versão é tendenciosa. Na sua
maioria, quando há divergências e brigas a serem arbitradas na Justiça,
ambas as partes se esforçam para responsabilizar o outro pelo caos
deflagrado a partir de seus atos. Cada membro do casal que se desfaz luta
para defender a sua versão, em que ele é a vítima e o outro o algoz.
Estimular esse ataque ou defender um ponto de vista isolado sem pensar
no conjunto é expor os filhos desse divórcio a uma longa e destrutiva
batalha emocional, em que os próprios pais – que deveriam ser os seus
protetores primordiais – serão aqueles que os convocam, explícita ou
implicitamente, para o meio da arena. Nessa hora, cada um de nós,
sejamos profissionais, parentes, amigos, colegas de trabalho, confidentes
etc., deve ter cuidado para não cair na tentação de que nosso apoio a um
ou a outro não termine por afastar aqueles que precisam somar esforços
para estabelecer os vínculos possíveis após a separação. Nessa hora, é
preciso definir posições: ou seremos parte da solução, ou faremos parte do
problema.” (BRUN, Gladis, in Bonoto, 2013, p. 09).

INTRODUÇÃO

Desde a Constituição de 1988, vivemos sob a égide da doutrina de proteção


integral à criança e ao adolescente, sendo função dos agentes públicos promover e
garantir a execução de políticas que assegurem os direitos fundamentais à
população infanto-juvenil. O Estatuto da Criança e do Adolescente reafirma os
direitos previstos e dá cumprimento ao texto constituinte, legislando sobre a
operacionalização da proteção especial às pessoas que estão em condição peculiar
de desenvolvimento.

Em ambas as legislações a convivência familiar é destacada como um direito


fundamental à criança e ao adolescente, sendo imprescindível para o saudável
desenvolvimento humano. Também fica determinado que os direitos e deveres que
dizem respeito à guarda e cuidados com os filhos devem ser exercidos em igualdade
de condições pelo homem e pela mulher.

Neste sentido, os casos altamente litigiosos em Varas de Família merecem


atenção especial visto que ferem direitos fundamentais reconhecidos legalmente e
trazem consequências nefastas ao saudável desenvolvimento da personalidade de
crianças e adolescentes.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O presente trabalho refletiu e se aprofundou nos estudos acerca dos casos


altamente litigiosos, por intermédio das reuniões deste grupo de estudo, que se
iniciou em 2014. No presente ano, em nossas reuniões, refletimos sobre as
prováveis origens desse litígio jurídico-familiar e o contexto que envolve tais casos.
Consideramos que pensar sobre esses casos é tarefa fundamental para nossa
categoria, pois apesar de serem frequentes em nossa práxis, a produção sobre o
tema é escassa e pouco divulgada na literatura especializada em nosso país.

A experiência cotidiana no Setor Técnico Judiciário constata que o


rompimento de vínculos atinge os membros de uma família nas peculiaridades de
cada ser humano que a compõe. Nesse processo de ruptura pode ocorrer o
encontro com diferentes vivências do passado associadas a ressentimentos e
rancores das vivências do dia a dia da relação atual, principalmente, no que se
refere à conjugalidade. Nos casos de separação e divórcio muito (ou altamente)
litigiosos, esses sentimentos negativos reverberam-se em expressões e atitudes de
disputas que acentuam os conflitos que já existiam na vigência da união conjugal.
Tratam-se de casos aparentemente inconciliáveis, nos quais são comuns
boletins de ocorrência, disputas judiciais sobre alimentos, guarda e visitas. A
violência e o sentimento de ódio aparecem como pano de fundo para diversas
situações conflitantes. Acentuam-se os motivos para a discórdia entre os genitores e
o cenário jurídico torna-se o palco para exageros e extravagâncias. Comumente, há
uma exposição excessiva da vida íntima dos genitores e dos filhos, na qual detalhes
são amplificados e aspectos negativos do ser humano são enfatizados.

Não raro, durante as entrevistas com os assistentes sociais e psicólogos do


judiciário, os genitores relatam situações diferentes daquelas apresentadas nas
petições, evidenciando-se que os advogados, ainda impregnados pela cultura da
adversidade e do litígio, intensificam as divergências entre as partes. A figura do
assistente técnico também emerge neste cenário amplificando a disputa.

Dada a complexidade destes casos, faz-se necessário maior compreensão


sobre o tema, a definição desses casos altamente litigiosos, além de verificar como
se configuram na realidade do Judiciário do Estado de São Paulo e na realidade das
pessoas envolvidas nesses processos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1. O QUE É UM CASO ALTAMENTE LITIGIOSO E QUAIS SÃO AS


SUAS CARACTERÍSTICAS?

A principal fonte literária que possuímos a respeito dos casos altamente


litigiosos provém de um documento preparado por Glenn Gilmour (2004) e
apresentado ao Ministério da Justiça do Canadá. Neste documento, o autor traz à
tona elementos essenciais presentes nos casos altamente litigiosos, tais como: a
persistência do conflito após a separação, a longevidade das disputas, a cronicidade
das questões bélicas, os impasses na comunicação entre os ex-cônjuges, os
prejuízos à subjetividade dos filhos e a ineficácia das intervenções mediativas, ou
seja, a incapacidade dos genitores de se beneficiar da mediação.

Em relação à decisão do rompimento conjugal, foi citado o estudo de Kressel


e colaboradores (1980) que identificou quatro padrões distintos na forma de
relacionamento dos casais que decidiam se divorciar. Esses padrões envolviam
desde níveis baixos a extremamente elevados níveis de conflitos, comunicação
comprometida devido à ausência ou empobrecimento das reflexões a ocorrências de
interlocução frequentes e abertas, ambivalência sobre a decisão (incapacidade de
"deixar ir") e divergências entre os participantes.

Acerca dos pais envolvidos em elevados níveis de conflitos, ressaltou-se o


trabalho de Johnston e Roseby (1997) que pontuou sobre os múltiplos critérios que
se sobrepunham nesses casos, tais como: altos índices de acusações, de raiva e de
desconfiança, abuso verbal, agressão física intermitente, dificuldade constante de
comunicação e de colaboração na assistência às crianças, e isto, pelo menos, dois
ou três anos após a separação. A configuração dos dados indicava que a principal
característica desses pais cujo "divórcio falhou" seria provavelmente o fato de que
eles possuíam dificuldade de distinguir as suas próprias necessidades daquelas dos
seus filhos e não conseguiam protege-los dos seus próprios problemas emocionais e
da raiva ou das suas disputas contínuas. Concluiu-se ainda que a maior ameaça
era o risco aumentado de que essas crianças repetissem o ciclo das relações
conflituosas em seus relacionamentos familiares vindouros.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Sobre este aspecto, Johnston (1994) analisou a literatura sobre o impacto dos
conflitos dos pais sobre as crianças e concluiu que a agressão física e a hostilidade
entre os pais foram associadas a elevado número de problemas de comportamento
nessas crianças, bem como dificuldades emocionais e habilidades sociais
rebaixadas quando comparadas às crianças de famílias que não vivenciavam o
litígio. Verificou-se também que, em geral, as crianças que presenciavam a agressão
física entre os pais tinham mais sintomas do que aquelas que vivenciavam uma
separação não violenta de seus pais. Esta tendência foi ainda mais acentuada entre
as crianças abusadas.

Apesar de reconhecer as limitações dos estudos em relação aos fatores


preditivos de uma relação mais problemática entre pais-criança e a possibilidade de
maior desajuste da criança, Johnston concluiu sobre a influência nos filhos dos
distúrbios emocionais dos pais e dos conflitos entre eles após o divórcio.

O documento canadense destacou, também, o trabalho de Johnston e


Campbell (1988) acerca de litígios entre as partes, no qual foi verificado que, nos
casos mais graves, os genitores frequentemente não conseguiam chegar a um
acordo ou ainda que a disputa continuava, mesmo após um contrato de mediação
ou da obtenção de uma ordem judicial. Os referidos autores também buscaram
compreender o que ocorria fora dos muros dos tribunais e verificaram que o conflito
tinha adquirido várias formas, desde a resistência à liquidação das questões de
divórcio, medo e fuga do outro como também a recusa de se comunicar,
desconfiança, animosidade pessoal e amargura até o confronto com raiva, incluindo
ameaças e violência explosiva.

No acompanhamento durante os últimos doze meses de embate entre os ex-


casais, a equipe de pesquisa apurou que três quartos dos pais haviam cometido
agressão física de acordo com a escala Strauss de Táticas de Resolução de Litígios
e mais de quatro quintos tinham sido violentos no passado. Em média, os pais
haviam agredido fisicamente um ao outro uma vez por mês e as crianças tinham
participado de dois terços desses episódios.

A forma do conflito mais comum relatada foi o abuso verbal caracterizado por
insultos e menosprezo em média uma vez por semana. Muitas vezes, essas

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

agressões verbais ocorriam por telefone ou no momento da transferência da criança


de uma casa para outra. Metade da população estudada nessa pesquisa era
composta por genitores que haviam se separado há mais de dois anos e menos de
um terço da amostra haviam se divorciado nos últimos doze meses.

Diante da constatação de que 29% das famílias já tinham obtido julgamento


do divórcio, questionou-se os motivos pelos quais esses pais não conseguiam
negociar as suas diferenças e fazer planos para fornecer alguma estabilidade para
os seus filhos após o rompimento oficial da conjugalidade. Diante das observações
realizadas no estudo, os autores desenvolveram o conceito de impasse Transição-
Divórcio.

Esse conceito apontou que a incapacidade de resolver a disputa seria


considerada sintomática da resistência familiar para mudar a dinâmica já
estabelecida. Em casos de divergência crônica, a trajetória normal de mudança e de
recuperação era nula. Segundo Johnston e Campbell (1998), os pais não eram
capazes de tirar proveito do divórcio para resolverem questões afetivas entre eles e
permaneciam nesta fase de transição. Na verdade, a forma de disputa sobre a
guarda tornava-se o seu novo modelo de relacionamento.

De acordo com os autores, considerando-se os conflitos representados nas


contendas litigiosas é possível observar o surgimento de impasses em três níveis:

a) no nível externo, o conflito seria incrementado por pessoas influentes, tais como
membros da família estendida, novos parceiros ou profissionais/cuidadores que
formam um tipo de coalizão ou aliança com um dos genitores em processo de
divórcio e legitimam as reivindicações;

b) no nível de interação, o conflito seria a continuação de uma relação conflituosa ou


o produto de uma separação traumática ou ambivalente dos genitores;

c) no nível intrapsíquico ou interno, os conflitos seriam usados para gerenciar


sentimentos intoleráveis despertados pelo divórcio (como por exemplo: humilhação,
tristeza, desamparo e culpa) em pais psicologicamente vulneráveis.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Esses impasses persistentes aumentam o sofrimento e as dificuldades na


separação e configuram um modelo de relacionamento nefasto, que traz em seu
cerne os conflitos anteriormente vivenciados na vida conjugal.

A literatura revisada e apresentada no documento canadense versou,


também, sobre a duração e sobre o desenvolvimento de cada forma de conflito que
depende das características dos mesmos quanto ao grau de normalidade ou
patologia. Elevados níveis de conflito foram observados de forma comum no
momento inicial da separação, ou seja, quando ocorre a apresentação do pedido de
divórcio e até o julgamento final. As disputas subsequentes ao julgamento do
divórcio são consideradas insolúveis e representam sinais da existência de uma
disfunção familiar.

A revisão dos estudos indicava que, durante o período de três anos, era
improvável os pais envolvidos em disputas tornarem-se cooperativos e demonstrava
um panorama de conflito legal, de hostilidade, sendo o exercício das
responsabilidades parentais neste contexto mais um elemento desencadeador de
discussões entre os genitores. As disputas, as difamações e sabotagem mútua da
paternidade ou maternidade mesclavam-se com frequentes tentativas de
comunicação e de coordenação dos esforços parentais.

A estatística dos estudos apontou que um quarto dos divórcios muito litigioso,
após três anos e meio da separação, revelava casais suscetíveis a viverem graves
litígios caracterizados por profunda desconfiança em relação à capacidade do outro
genitor para cuidar bem da criança e por diferentes percepções dos métodos
educacionais.

Johnston (1994) resumiu outros estudos com alto grau de violência nas
famílias que vivenciavam graves conflitos e destacou que em divórcios muito
litigiosos podem ocorrer a presença de sujeitos com transtornos mentais, transtornos
de personalidade e problemas de vício. Uma questão crucial levantada por esses
estudos foi repensar se as manifestações psicopatológicas refletiriam os transtornos
de personalidade e/ou os distúrbios emocionais permanentes ou se eram prováveis
reações ao alto nível de estresse devido ao divórcio e às disputas legais.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nos Estados Unidos, o protocolo do Estado de Idaho é um instrumento que


auxilia os juízes a manejarem os casos de divórcio muito litigiosos e apresenta a
seguinte caracterização destes casos:

[...] dentro de um continuo onde conflito parental pode se manifestar de


várias maneiras, sendo comum: a violência verbal e as ameaças, ausência
de histórico de abuso que limitaria o acesso ao outro progenitor, ameaças
de processos judiciais, tentativas contínuas para influenciar a criança a
tomar partido contra o outro genitor sobre questões isoladas e
comprometimento mental causado por abuso físico ou sexual, abuso de
drogas ou álcool ou sérios problemas psicológicos (Brandt 1998: 33).
[tradução livre]

O protocolo prevê pedidos de guarda temporária e pedidos de proteção ---


incluindo ordens de proteção às crianças, bem como relativas à violência doméstica
---, e também versa sobre a disfunção familiar causada por abuso de drogas,
menciona as frequentes mudanças de advogados, aborda a recusa da criança para
visitar um dos pais, a incapacidade dos genitores para distinguir as suas próprias
necessidades das necessidades da criança e ainda ressalta que os divórcios
envolvendo crianças na faixa etária do nascimento aos três anos requerem uma
observação especial devido ao risco extremo de danos psicológicos.
Stewart (2001), também citado no documento canadense, sugeriu que se
considerem os litígios no divórcio dentro de um continuo onde possa se relacionar os
eventos que levaram à separação com os recursos disponíveis na família e na
comunidade, a fim de auxiliar os pais e as crianças a se adaptarem às mudanças.
Segundo o autor, as famílias que vivenciam altos níveis de conflitos geralmente
apresentam fatores exteriores marcantes, tais como: antecedentes de condenações
criminais (violência doméstica e crimes sexuais), intervenção de órgãos de proteção
à criança, múltiplas mudanças de advogados, requerimentos constantes submetidos
ao tribunal, longo prazo para chegar a algum tipo de acordo, múltiplos
depoimentos/petições e recusa constante em reconhecer o direito de visita. Além
destas marcas externas, revelam também: histórico de depressão, raiva, perda de
autoestima e recusa em estabelecer comunicação; comportamentos violentos;
tendência a denegrir o outro genitor; incapacidade de distinguir as necessidades das
crianças das próprias necessidades; concepções rígidas e inflexíveis das relações
interpessoais e do desenvolvimento infantil; desconfianças e suspeitas; tendência à
dependência; frágil senso de limites; rivalidades tanto no casamento como na
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

separação; agressão verbal e física entre os genitores; tendência a implicar as


crianças nos conflitos do par parental e tendência de alienar a criança do outro
genitor.
O psiquiatra Eric Hood, do Instituto Clarke, mostrou-se cético em relação às
tentativas de estabelecer critérios para a definição de divórcio muito litigioso e ele
teria ressaltado três aspectos externos como indicadores de que as partes não
estavam conseguindo resolver a disputa, são eles: a) as várias mudanças de
advogado, o que pode indicar que o cliente não se mostra capaz de aceitar
conselhos e/ou orientações; b) o número de vezes que um arquivo é levado perante
o tribunal e c) o tempo necessário para chegar a um acordo. O autor considerou que
os fatores externos apontados por Stewart serviriam para distinguir os casos de
divórcios muito litigiosos dos casos de divórcios pouco litigiosos.
De fato, pensar nos fatores externos como um modo de distinguir os casos
altamente litigiosos das demais demandas judiciais pode ser uma estratégia de
triagem visando-se ao adequado manejo e encaminhamento dos casos. Mas, além
disso, devemos também buscar compreender os fatores internos, as características
dos vínculos, bem como a natureza dos conflitos que alimentam as discórdias e
dificultam os acordos entre os genitores.

1.1 Qual o provável conflito subjacente que dificulta o processo de separação


e origina os casos altamente litigiosos nas Varas de Família?

Na experiência dos Setores Técnicos do judiciário paulista, verificou-se que


as disputas e as rivalidades entre os genitores divorciados apontavam para um
cotidiano permeado por sujeitos que demonstravam sensibilidade a vivências de
perdas, supostamente, desde estágios mais primitivos do seu desenvolvimento.
Observou-se nos casos mais graves, resistências e recusas ao diálogo, bem como a
dificuldade de perceber e atender a necessidade dos filhos que clamavam por um
ambiente saudável.

Nesse contexto, geralmente, não se priva os filhos (crianças e adolescentes)


dos cuidados materiais e das necessidades básicas de cuidado com educação e
lazer, tampouco lhes é negado o conforto material conforme o poder aquisitivo de

108
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

cada família. Trata-se aqui dos prejuízos nas relações íntimas que dão sustentação
à construção da subjetividade na medida em que as incompatibilidades parentais
resultam em uma rotina de conflitos perpetuada após a dissolução da união entre os
pais.

Os pais adotam uma postura na qual, muitas vezes, não conseguem perceber
concretamente as necessidades dos filhos, agem como se não houvesse distinção
entre o eu e o outro.

Essa constatação nos remete às questões psíquicas relacionadas às


primeiras relações amorosas e à construção da subjetividade. Em termos
psicanalíticos, refere-se à travessia edípica e suas possíveis configurações em
termos de estrutura psíquica. Trata-se, portanto, de um tema denso que extrapola a
nossa proposta de estudo deste ano.

No entanto, buscando lançar luz sobre o assunto, reportamo-nos ao texto de


Araújo e Do Carmo (2014, p.188) quando citam a teoria de Winnicott sobre o
desenvolvimento afetivo e tratam do luto que o sujeito é submetido pela perda de um
objeto afetivo:

Não é a perda do objeto que determina “a doença”, e sim o estágio de


desenvolvimento emocional, o momento de vida em que a perda ocorre.
Quando essa ocorre num estágio de desenvolvimento emocional, no qual a
criança ou o bebê ainda não são capazes de uma reação madura a ela, o
ego não pode lamentar a perda, ou seja, sentir o luto (ARAÚJO e DO
CARMO, 2014).

No campo jurídico, observamos em muitos casos que o sujeito sensibilizado


por perdas significativas não demonstra a capacidade de ver o outro em sua
singularidade, pois aparentemente está voltado às próprias dificuldades afetivas e às
perdas não elaboradas que são revitalizadas pelo enfrentamento do estresse da
separação conjugal.
As autoras acima citadas destacam que essas perdas ocorridas em estágios
primitivos do desenvolvimento são revividas em momentos posteriores, conforme a
situação a ser enfrentada, e nesse novo cenário os ressentimentos deflagrados pela
dificuldade de lidar com o luto da separação conjugal “estrutura-se num processo de
destruição, desmoralização e descrédito do ex-cônjuge” (ARAÚJO e DO CARMO,
2014, p.188).
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Diante de tais condutas observadas, essas autoras novamente reportam-se a


Winnicott (1956) no desenho da tendência antissocial onde o sujeito ainda manifesta
(de forma inconsciente) um sentimento de esperança em reaver aquilo que foi
perdido: “quando existe uma tendência antissocial, houve um verdadeiro
desapossamento (não uma simples carência), quer dizer que houve uma perda de
algo bom que foi positivo, e que foi retirado” (ARAÚJO e DO CARMO, 2014, p.188).
Na rotina das varas de famílias podemos observar casos altamente litigiosos
nos quais as pessoas buscam confirmar judicialmente seu ponto de vista e alcançar
seus objetivos através de postura rígida e destrutiva. Agindo deste modo, as
pessoas satisfazem demandas internas que desconhecem e, novamente, evitam o
luto e o confronto com questões internas que lhes são insuportáveis.

A postura bélica evidencia que o sujeito considera o outro genitor responsável


pelas dificuldades vivenciadas, ou seja, o mecanismo de projeção parece atuante e
pode aliviar o sujeito temporariamente. No entanto, as dificuldades internas
persistem e impulsionarão o sujeito a novas requisições judiciais, engendrando
assim um círculo vicioso.

De acordo com Justo, citado por Araújo e Do Carmo (2014, p.188):

[...] a conduta antissocial visa resgatar a mãe provedora perdida pelos


sintomas nos quais ele vive maniacamente a fantasia do controle e domínio
absoluto. Ele estaria tentando inconscientemente e de forma defensiva e
atuadora quebrar as barreiras e superar quaisquer obstáculos para reaver o
paraíso perdido. Um ato de apropriação à força do objeto primário,
travestido pelos substitutos: ganho de controle, do poder, do dinheiro, da
respeitabilidade. Um ato de anulação de qualquer reconhecimento da
função paterna interditora – da lei (JUSTO, 2009, p. 71).

Ao lutarem, os genitores permanecem vinculados e, sem perceber, continuam


investindo no relacionamento. Supostamente, eles visam ao resgate de suas ilusões.
Conforme mencionado anteriormente, o litígio torna-se a base do novo modelo de
relacionamento dos genitores que, no campo jurídico, desembocará nas dificuldades
quanto a definição da pensão alimentícia, da guarda e da convivência com os filhos,
bem como situações ainda mais graves como atos de alienação parental, falsas
denúncias e outras condutas que expressam tendências antissociais através de
variadas manobras perversas, nas quais as mentiras, o desrespeito ao outro e a
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

dificuldade de conter a própria agressividade são condutas comuns e, muitas vezes,


consideradas normais.

Essas condutas se refletem na rotina diária das crianças e adolescentes que


experimentam um ambiente permeado de estresse e sentimentos complexos e
contraditórios relacionados às figuras parentais mais significativas: os pais. As
crianças e adolescentes atingidos pelas tramas conflitivas são vitimizadas pelo
ambiente hostil que muitas vezes são travestidas de coerção pelas decisões de
adultos legitimados pelo judiciário.

2. AS CONSEQUÊNCIAS DO LITÍGIO FAMILIAR NO COTIDIANO DO


JUDICIÁRIO

2.1 Dificuldades na definição da pensão alimentícia, na composição da guarda


e na convivência dos filhos com ambos genitores.

É função do judiciário fazer prevalecer as leis estabelecidas socialmente


através do processo democrático. Há muitos anos, o direito à convivência familiar foi
reconhecido como prerrogativa ao pleno e saudável desenvolvimento da criança e
do adolescente. As Leis brasileiras nº 11.698 (13 de junho de 2008) e 13.058 (22 de
dezembro de 2014) alteram alguns artigos do Código Civil, instituem a guarda
compartilhada e sedimentam os direitos e os deveres dos pais em relação aos filhos.

No entanto, diante da quebra da estrutura familiar em decorrência da


separação, dissolução e/ou divórcio alguns genitores debatem-se contra o direito do
outro e envolvem a prole em situações inadequadas, inclusive no que se refere a
dificultar ou privar os filhos da convivência com o genitor não guardião.

Nesta feita, geralmente, um dos primeiros motivos de discórdia está


relacionado ao amparo material aos filhos, ou seja, à pensão alimentícia. O valor
monetário que deverá ser destinado aos cuidados da prole é tema contundente que
traz em seu cerne a problemática do sucesso ou do fracasso da vida profissional
e/ou financeira de cada genitor, bem como dúvidas quanto à adequada
111
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administração da pensão alimentícia, questionamentos sobre as desigualdades no


mercado de trabalho e disputas de gênero. Aqueles que apresentam dificuldade
para reconhecer suas possibilidades e limites tenderão a sobrecarregar o outro com
demandas excessivas tornando a figura do juiz essencial ao restabelecimento de um
certo equilíbrio.

Salienta-se, no entanto, que as determinações judiciais podem suscitar


dificuldades internas dos genitores em relação à figura de autoridade. Conforme
esclarece Duarte (2013), muitos destes pais apresentam em seu histórico de vida
problemas para aceitarem e para se submeterem às interdições. Estes problemas
que se originaram nas relações primordiais com os pais, ou seja, na triangulação
edípica, possuem aspectos inconscientes, determinam o posicionamento do sujeito
e podem ser revividos diante de diferentes figuras de autoridade. Desta forma,
podemos compreender que as imposições legais despertam conflitos profundos em
relação à figura de autoridade levando o sujeito a lutar contra as determinações e
prolongar a disputa através de inúmeras petições ou contestações.

Na práxis cotidiana do Setor Psicossocial, observamos que alguns genitores


tendem a requerer a guarda unilateral como forma de se esquivar da obrigação de
“dar” algo ao outro e de fornecer amparo. A ideia de que o outro terá autonomia para
administrar o dinheiro da pensão alimentícia pode causar angústia e tornar-se fonte
de aborrecimentos. Evidencia-se a desconfiança instigada pela fantasia de que o
genitor guardião usufruirá do recurso financeiro destinado ao filho. Fantasias deste
teor alimentam e intensificam os conflitos gerando sentimentos negativos que
dificultam a apreensão racional dos dados da realidade objetiva e a diferenciação
das variadas situações, tais como: o tipo de guarda a ser estabelecido, os valores
monetários que garantam o amparo material e o contato com os filhos ou regras de
visitação.

Segundo a psicanalista Groeninga9, a discórdia financeira desdobra-se


facilmente em problemas relacionados à guarda e às visitas, pois,
inconscientemente, o genitor que se sente prejudicado tende a se defender

9
Videoconferência transmitida em meados de 2016 como parte do trabalho desenvolvido pelo Grupo
de Trabalho sobre Família (GTFam) do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

112
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atacando o outro naquilo que lhe for possível, sendo frequente a tentativa de impedir
ou dificultar o contato do ex-cônjuge com o(s) filho(s).

A conferencista ponderou também que apesar da Constituição Federal (1988)


ter trazido avanços no conceito de família e igualado os direitos entre os gêneros,
ainda vivemos em uma sociedade machista. As mulheres sofrem com duplos
encargos e uma separação abrupta que não lhe garanta condições materiais
fatalmente a conduzirá ao mercado de trabalho e, consequentemente, ela terá
menos tempo disponível para os filhos. Neste contexto, não raro os genitores
requisitam a guarda dos filhos sob a alegação de terem melhores condições para
cuidar dos mesmos.

De acordo com Duarte (2013), o declínio da família tradicional nuclear (pai,


mãe e filhos) e o surgimento das novas configurações familiares têm despertado
angústia nos membros familiares que perderam os referenciais sobre o seu papel e
a sua função no âmbito familiar. A autora, atuando como psicanalista, observou que
os pais biológicos, geralmente, apresentam temores diante da convivência do filho
com o padrasto ou com a madrasta. Ao vivenciarem tal situação emerge o medo da
exclusão e a angústia de castração é reatualizada levando os genitores a condutas
imaturas. Além disso, algumas mulheres demonstram dificuldade de aceitar a
importância da figura paterna na vida do filho. Imbuídas do imaginário social da
valorização do instinto materno apresentam reações emocionais negativas ao se
depararem com a necessidade de reconhecer a importância do Pai na subjetividade
da criança/adolescente.

Rovinski (2013) ponderou que algumas mulheres ainda se mantem presas no


conceito de posse dos filhos e possuem dificuldade de aceitar que os pais estão em
um mesmo patamar de direitos. Diante da possibilidade da guarda compartilhada,
elas com frequência confundem interesses genuínos dos pais de conviverem com os
filhos com agressão à sua própria pessoa.

Essas considerações parecem refletir angústias inerentes às


mudanças/transições sociais e revelam a necessidade de reflexão e elaboração
destes aspectos que inevitavelmente compõem o imaginário social.

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Havendo discórdia, graves conflitos e/ou problemas de comunicação entre os


genitores, questiona-se sobre a aplicabilidade da guarda compartilhada. Trata-se de
tema polêmico e relativamente novo no Brasil. Existe muita discussão, mas poucas
pesquisas científicas sobre o assunto, tornando fundamental a análise concreta dos
casos por equipes multidisciplinares.

O trabalho de Johnston, relatado no documento canadense anteriormente


citado, indicou que a aparente associação entre a guarda compartilhada e
consequências negativas para os filhos foi circunscrita em pequena proporção da
amostra de famílias que vivenciavam elevado nível de litigio. Ou seja, é fundamental
o desenvolvimento de pesquisas e monitoramento destes casos para que nossa
práxis seja pautada em dados científicos e não em especulações substanciadas por
crenças e ideias preconcebidas.

Evidentemente, uma determinação judicial estabelecendo a guarda


compartilhada não soluciona e tampouco ameniza os conflitos vivenciados no âmbito
familiar, mas fixa a responsabilidade de ambos genitores pelo bem estar e educação
dos filhos e pode se configurar como fator inibidor de agravamento dos conflitos,
restando ao Setor Público o estabelecimento de políticas que auxiliem essas famílias
a superarem os seus impasses e estabelecerem planos de responsabilidade
parentais. Retornaremos a este assunto no item 4.

Johnston e Campbell (1988), no livro Impasses of Divorce: The Dynamics and


Resolution of Family Conflict, examinaram 80 famílias na Califórnia em processo de
divórcio que não conseguiam chegar a um acordo ou a disputa persistia mesmo
após um contrato de mediação e decisão judicial. As autores constataram que dois
terços das famílias estavam envolvidas em disputa sobre a guarda e visitas,
enquanto outros não concordavam com as visitas. Observaram que a maioria
desses pais sentia profunda desconfiança em relação à capacidade do outro para
cuidar da criança. Nesse emaranhado de discórdias e desconfianças, os genitores
queixavam-se de que a outra parte recusava-se ouvir, falar e fazer planos ou
coordenar projetos relativos às crianças verbalizando a máxima: “não tem conversa”.
Muitos acusaram o ex-cônjuge de negligência e em 7,5% das famílias estudadas
haviam sérias acusações de abuso sexual ou físico.

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Estas acusações justificam, de modo racional, muitos requerimentos de


guarda unilateral. No entanto, ao analisarmos estes casos, geralmente, verificamos
que a maior parte dos requerimentos encobrem a dificuldade para aceitar a
participação do outro genitor na vida do filho. Alguns pais alegam que a criança teria
começado a apresentar prejuízos comportamentais, tais como, hostilidade, tristeza,
inibições e/ou reações psicossomáticas durante a visita ou após contato com o
genitor descontínuo. Diante dessas reações da criança, supõem que a presença do
outro causa prejuízos e acreditam que as visitas deveriam ser espaçadas ou
interrompidas. Desconsideram que a emoção de ver o genitor não guardião pode
causar intensas reações psicossomáticas (por exemplo, vomitar) e isso se constitui
em uma linguagem corporal a ser decifrada pelos adultos a fim que a criança
compreenda que o seu corpo está expressando algo, que ela ainda não consegue
formular verbalmente (DOLTO, 2011). Ou seja, essas reações revelam a importância
do genitor descontínuo na subjetividade da criança e expressam a necessidade da
mesma de se aproximar fisicamente. Desta forma, a ampliação da convivência
poderá ser benéfica à criança.

A crença de que o contato restrito, através de visitas quinzenais, poderia


reduzir o sofrimento/reações infantis e diminuir a influência do outro na vida da
criança ou adolescente merece ser repensada, pois conforme salientado por
Groeninga, a falta de proximidade dá margem às fantasias e estas costumam ser
piores e mais poderosas do que os dados da realidade. Nas palavras de Dolto
(2011, p.44):

Não se protege a segurança da relação privando o filho do conhecimento do


outro genitor. Ao contrário, isso constitui a promessa de uma enorme
insegurança futura e que já estaria presente desde a instauração de tal
medida, visto que é uma anulação de uma parte da criança através da qual
lhe é indicado, implicitamente, que esse outro é alguém desvalorizado e
falho (DOLTO, 2011).

As ponderações da autora evidenciam que qualquer interferência judicial na


dinâmica familiar possui desdobramentos significativos e, portanto, devemos
aprofundar nossos conhecimentos e refletir constantemente sobre nossa atuação
profissional.

115
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Sobre a descontinuidade do contato entre pais e filhos, Leite (2015)


assinalou que, no contexto do divórcio litigioso, modifica-se a relação paterno-
materno-filial e ocorre o afastamento da criança em relação a um dos genitores (o
que sai de casa) quebrando uma estrutura que, até então, servia de parâmetro ao
convívio do filho com seus pais. Este modelo é substituído por sistemas de visitas ou
várias combinações de custódia que, geralmente, não atendem as expectativas
daqueles genitores que desejam maior participação na vida e educação dos filhos.

O referido autor ressaltou que os temas de guarda e de visitação são os mais


difíceis de solução pelo Poder Judiciário, visto que se constituem tentativas de
compensar o afeto rompido com o divórcio e os laços existentes na díade pai-mãe. A
quebra na triangularidade pai-mãe-filho tem consequências nas formas de contato
cotidiano entre estes que são difíceis de serem reorganizadas e enfrentadas. O que
antes era contínuo e duradouro torna-se transitório e efêmero, regulado por datas e
horários predeterminados, o que não contempla os sentimentos e os anseios dos
envolvidos e tampouco as necessidades do filho. Ou seja, a visitação é insuficiente
para garantir a continuidade da construção dos laços afetivos dos filhos com seus
genitores e é um meio de sobrevivência da corresponsabilidade parental, sendo
necessária a superação e substituição das tradicionais formas de convívio
estipuladas (como as visitas quinzenais) por aquelas que garantam o amplo convívio
com ambos os genitores sempre que possível, objetivando o melhor interesse da
criança. Neste sentido, Leite considera que tanto os mediadores quanto os setores
técnicos judiciários podem contribuir de forma efetiva para a concretização desta
nova realidade.

Nos casos altamente litigiosos, diante da dificuldade de composição e de


acordo entre as partes, medidas alternativas como as visitas assistidas e
contratação de acompanhantes terapêuticos (AT) tem sido utilizadas em situações
de transição, por alguns juízes da Capital, como forma de assegurar o direito do
genitor manter contato com o filho. Entretanto, o direito de visita do genitor não deve
prevalecer sobre o bem estar da criança. Nos casos de denúncias de abusos e
maus-tratos, por exemplo, pode ser determinado judicialmente encontros assistidos
durante o período de apuração das alegações como forma de proteger a criança ou
adolescente e garantir a manutenção do vínculo. Nestas circunstâncias, os

116
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profissionais que acompanham as visitas tem a oportunidade de observar e analisar


as reações da criança e do suposto agressor, podendo, inclusive, propor a
interrupção das visitas quando considerar mais benéfico à criança.

2.2 As possíveis consequências do litigio parental na subjetividade dos filhos

O divórcio pode ser compreendido como um processo disparador de


mudanças, de acontecimentos que vão muito além dos aspectos jurídicos e
perpassam aspectos psicológicos e sociais. Dependendo da forma como os
envolvidos lidam com estes aspectos, o processo pode se estender por longos anos,
levando consigo o conflito que permeava a relação e que não foi superado com a
separação dos genitores. No Brasil, o psicólogo Vainer (1999) descreveu a anatomia
de um divórcio interminável, evidenciando a dificuldade de muitos casais de se
separarem e de se libertarem apesar de já o terem feito oficialmente.

O longo período do processo de divórcio, de instabilidade e de vivência de


sentimentos profundos, geralmente, distancia afetivamente os pais dos filhos na
medida em que os genitores ficam absorvidos em seus próprios problemas e
frustações. Em geral, os filhos participam do clima de hostilidade e de conflito nutrido
pelos pais. O ambiente torna-se ainda mais tenso para os filhos quando o guardião
inconformado com o rompimento ou com as causas dele passa a dificultar ou
impedir o contato com o outro genitor.

Neste processo, os filhos podem se sentir relegados a segundo plano, o que


dá margem às vivências de abandono e de rejeição. Vislumbra-se, desta forma, que
o divórcio altamente litigioso não acarreta apenas ruptura nas relações conjugais,
mas afeta de maneira importante as relações de parentalidade, gerando nos filhos o
sentimento de perda de um ou de ambos os pais.

Uma breve revisão das pesquisas sobre as consequências dos divórcios


litigiosos na vida dos filhos foi realizada por Glenn Gilmour (2004). Em termos gerais,
a maioria dos estudos abordava o divórcio como um momento extremamente difícil
para as crianças. Além das mudanças na rotina de vida, a diminuição da renda
familiar e contatos mais restritos com os genitores, os estudos indicavam que o
impacto dos conflitos parentais sobre os filhos variava de acordo com a faixa de

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desenvolvimento psicossocial que eles se encontravam. Geralmente, as crianças


menores, mais suscetíveis e vulneráveis, apresentavam aumento de hostilidade com
manifestação de comportamentos agressivos e dificuldades de aprendizagem.
Depressão, ansiedade, inibição nos relacionamentos sociais, comportamentos
antissociais, baixa autoestima, sintomas psicossomáticos, uso de álcool e drogas na
adolescência também foram usualmente relatados como mais frequentes em filhos
de pais separados do que em crianças de famílias intactas. Ressaltou-se, no
entanto, que a ruptura da conjugalidade, por si, não possuía o condão de trazer
consequências nefastas aos filhos. Algumas pesquisas revelavam adaptação
positiva das crianças após a separação e o divórcio, indicando que os prejuízos
parecem ser decorrentes de um conjunto de fatores, entre eles: as discórdias, a
gravidade dos conflitos, as vulnerabilidades pessoais e o nível de violência
vivenciado no âmbito familiar.

A literatura na Psicologia é vasta no sentido de alertar sobre os possíveis


prejuízos aos filhos das rupturas parentais abruptas, impulsivas e litigiosas.
Naqueles divórcios, cuja decisão dos cônjuges foi tomada de modo impulsivo, em
geral, não há espaço para que a criança desenvolva capacidade de manejo da
situação. Os filhos, não tendo condição de elaborar a separação, sentem-se
puxados em ambas as direções pelo amor e pelo ódio aos pais que, em muitos
casos, competem abertamente pela lealdade dos filhos. Mesmo em casos menos
difíceis, o conflito de lealdade está presente na criança. Este conflito pode gerar
tristeza, infelicidade, medo das consequências do divórcio, receio de perder um dos
genitores e medo da solidão expondo-as a um maior risco de alienação parental,
situação frequente em divórcios litigiosos.

Ao rever a literatura sobre este tema, Leite (2015) concluiu que devido à
dificuldade dos genitores em lidar com as dores que emergem durante a ruptura do
vínculo, tais como a tristeza e o ódio, estes sentimentos são manifestados através
do embate entre o casal parental no qual os filhos estão no epicentro da disputa e,
muitas vezes, são usados como instrumento de revide. O uso dos filhos como aliado
de um e arma contra o outro, ou seja, a “coisificação do filho” (expressão utilizada
pelo referido autor) abre as portas para a alienação parental.

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3. DOS AGRAVAMENTOS

3.1 Alienação parental, falsas acusações, afastamento e suspensão da


convivência entre a criança e um dos genitores

O fenômeno da Síndrome de Alienação Parental foi o termo utilizado por


Gardner (1999), para descrever as alianças parentais que ocorriam comumente em
situações de disputa de guarda. O psiquiatra americano constatava em sua prática
varias situações nas quais um dos genitores programava o filho para distanciar-se e
alienar-se do outro com o intuito de conseguir ganhos que o favorecessem na
disputa judicial. É característico da alienação parental a influência do alienador para
que a criança odeie um dos seus genitores, sem que haja justificativa plausível para
rejeitá-lo, ainda percebe-se a contribuição da criança nas movimentações de
rejeição em relação ao genitor alienado.

No Brasil, a Lei nº 12.318/1010 dispõe sobre atos de alienação parental e


objetiva regular o convívio saudável de filhos com pais após a separação. Se na
época de sua promulgação haviam poucas pesquisas sobre os temas alienação
parental e falsas denúncias, existindo como base das discussões o trabalho de
Gardner, atualmente observamos um crescente aumento de estudos 11, havendo
maior número de pesquisadores que se dedicam ao assunto e, ao mesmo tempo,
certa banalização do conceito entre os operadores do direito.

De acordo com a referida lei, a alienação parental ocorre quando o guardião


interfere negativamente na formação psicológica do filho, promovendo atos que
desqualifiquem o outro genitor, dificultem o exercício da autoridade e convivência

10
A Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010 define atos de alienação como sendo “a
interferência na formação psicológica da criança ou adolescente promovida ou induzida por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou
vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de
vínculos com este”.
11
No Brasil, a partir do trabalho incitado por Maria Berenice Dias, ex-desembargadora do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi realizado o primeiro simpósio no qual se discutiu incesto
e alienação parental de forma interligada. O simpósio foi promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito
da Família (IBDFAM) e pela Escola Superior de Magistratura do Rio Grande do Sul, em 2006.

119
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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entre a criança e sua outra figura parental. Para tanto, pode produzir falsas
denúncias e/ou omitir informações sobre filho ao genitor não guardião.

Sobre tal situação, cabe destacar as conclusões de Brockhausen (2011)


quando indica que os termos atos de alienação e alienação parental utilizados na Lei
12.318/10, embora baseados no conceito original formulado por Gardner não
necessariamente se equivalem à teoria deste, ou seja, o estabelecimento de
aproximações e diferenças entre esses conceitos torna-se mais uma tarefa
importante aos operadores do Direito para uma intervenção mais precisa que
impeça distorções e confusões.

A fim de evitar a banalização do conceito, bem como seu uso indevido


especialmente nos conflitos que chegam ao âmbito judicial, mostra-se importante
esclarecer que um simples ato não deve ser enquadrado como alienação parental
sem considerar seu contexto e sua frequência, por exemplo.

Oliveira e Brito (2013) indicam a tendência atual de se reduzir questões da


esfera política e social a concepções individualizantes, enquadrando desvios e
tensões no processo de judicialização do viver. Nessa lógica, conflitos familiares,
mudanças geradas pelo divórcio e o modo de elaboração dos sujeitos são
destituídos de sua variabilidade e enquadrados na esfera da alienação parental.

Segundo as considerações de Sousa e Brito (2011), existem diferentes


fatores que permeiam o contexto da separação e que podem contribuir para o
desenvolvimento das alianças parentais. Há uma diversidade de respostas para o
modo como as crianças e adolescentes vivenciam a separação dos pais e a
possibilidade da guarda única contribuir com o estreitamento de vínculos entre os
filhos e o guardião, conduzindo ao afastamento daquele pai que não permaneceu
com a guarda é uma realidade nos casos atendidos no judiciário.

Brockhausen (2011) também faz uma importante consideração sobre esta


problemática ao destacar que a definição da Lei alerta sobre questões menores de
alienação realizando um tipo prevenção e engloba situações familiares menos
conflituosas que são permeáveis a intervenções que não apenas jurídicas, como a
mediação e o tratamento psicológico. Estas alternativas devem ser observadas
pelos profissionais que atuam na área, uma vez que medidas radicais nem sempre
120
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são as mais adequadas. Existem vários tipos e intensidades de alienação que


requerem diferentes medidas judiciais e os profissionais devem permanecer atentos
às peculiaridades de cada caso.

No mesmo sentido, de acordo com Valente (2012) faz-se necessário que os


profissionais tenham sensibilidade e cautela ao receber as queixas recorrentes
durante as situações de litígio, buscando contribuir de modo construtivo para a
resolução de conflitos passíveis de serem dissolvidos fora do contexto jurídico.

Decorridos trinta anos das primeiras formulações realizadas por Gardner,


Rovinski (2013) destacou algumas contribuições trazidas pela literatura estrangeira
no sentido de compreender a Síndrome de Alienação Parental (SAP) de forma mais
dinâmica e menos reducionista, entendendo-se que a busca de soluções passa por
uma postura mais compreensiva e menos punitiva. Entre estes estudos, citou-se a
pesquisa longitudinal desenvolvida por Kopetski e colaboradores (2006) no Estado
do Colorado (USA), bem como os achados de Nicolas (1997, Califórnia) e de Berns
(2001, Austrália) que indicam a presença de distúrbios familiares (nomenclatura
dada anteriormente a SAP) em torno de 20% a 30% dos casos, havendo prevalência
de mães alienadoras na proporção de dois para um (duas mulheres para cada
homem), sendo as características de personalidade e de comportamento do sujeito
alienador semelhantes, independentemente do gênero.

O psicólogo Douglas Darnall (2008) tentando eliminar o reducionismo implícito


na palavra síndrome e buscando ampliar a compreensão do fenômeno da alienação
parental, estabeleceu uma classificação de tipos de alienadores parentais: o ingênuo
(reconhece a importância do outro genitor, mas eventualmente, de forma não
consciente, denigre a imagem daquele), o ativo (impregnado por sentimentos de
raiva decorrentes da separação, age de forma ativa e incisiva visando à ruptura de
vínculo entre a criança e o genitor alienador, mas, ao repensar sobre o próprio
comportamento é capaz de arrepender-se e sentir culpa pelo que fez) e o
obsessivo/obcecado (determinado a destruir o ex-cônjuge e qualquer vínculo deste
com a criança, não possui autocontrole nem insight sobre os malefícios de sua
conduta, apresenta crenças irracionais que são justificadas pela busca do bem estar
e segurança da criança, abandona os serviços de atendimento quando seu
comportamento é questionado).
121
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Baker (2007) buscou delimitar e descrever as características de


personalidade do alienador e, dentre os achados, foram citados alguns quadros
psicopatológicos, tais como: alcoolismo, personalidade antissocial, borderline,
histriônica ou narcisista. Contudo, pontuou que este caminho é inócuo, pois não há
fundamento científico para a correlação entre posturas de pais alienadores e
diagnósticos clínicos, sejam de transtornos mentais ou distúrbios de personalidade.
Alertou, por fim, que os laudos que incluem características da personalidade dos
genitores geralmente incrementam as disputas na medida em que estas informações
podem ser utilizadas para atacar e agredir o outro.

Conforme salienta Rovinski (2013, p.93/94):

[...] a compreensão da dinâmica do alienador, como aquele que se sente


ameaçado e que age, muitas vezes, de forma não consciente, mostra o
quanto a disputa judicial pode se tornar uma ameaça a ele, de modo a
intensificar suas condutas disfuncionais (ROVINSKI, 2013).

Destaca-se, neste sentido, a importância da competência técnica dos peritos


judiciais para identificarem os quadros patológicos e as situações conflitivas, bem
como revelarem nos laudos apenas o necessário para a compreensão do caso a fim
de evitar o acirramento da disputa. Neste sentido, Groeninga (2008) pondera sobre a
importância de abandonarmos o raciocínio dualista (vencedor/perdedor,
alienado/alienador) para compreendermos a contribuição de cada um na dinâmica
instalada, pois, tratando-se de família os direitos são complementares.

Em recente livro sobre alienação parental, Leite (2015, p.346), pós-doutor em


Direito de Família, percorreu diversos escritos relacionados às causas da alienação,
discorreu sobre a proposta de Gardner, esmiuçou aspectos da Lei nº 12.318 e
considerou:

[...] fundamental que a previsão legal estampada na Lei, seja efetivamente


aplicada, sem vacilações, sem hesitação... para que o alienador entenda
que seu projeto de destruição tem limites, é imoral, é covarde e não pode
ter o aval do Poder Judiciário (LEITE, 2015).

Contrariamente a este posicionamento, poder-se-ia argumentar que a


inversão de guarda e/ou aplicação de multa não cessa o problema, pois o alienador
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continuará ocupando o lugar de pai ou de mãe na subjetividade do filho e


influenciará na construção de sua personalidade.

Isto posto, ponderamos que se faz necessário, além de barrar os


comportamentos nefastos do genitor via aplicação da Lei, auxiliá-lo a compreender o
mal que engendra em seus atos e a necessidade do estabelecimento de novas
condutas na relação com os filhos. Para tanto, o encaminhamento à psicoterapia é
altamente recomendável, conforme destaca Motta (2012) ao assinalar que, em
terapia, o alienador poderá superar seus conflitos pessoais e questões atinentes à
conjugalidade ainda não resolvida. A autora ainda complementa que o atendimento
psicoterapêutico apresenta-se como necessário não apenas ao genitor alienador,
mas também às crianças e ao sujeito que foi alienado visando-se ao
restabelecimento do sentimento de confiança e dos vínculos afetivos que foram
prejudicados.

Em seu recente trabalho, Duarte (2016) propôs técnicas de mediação familiar


junto a famílias nas quais ocorrem situações de alienação parental, destacando a
função de mediação do psicanalista na sua prática clínica (ambiente extrajudicial),
propondo que este profissional no tratamento com as crianças, conduza
intervenções e sensibilize ambas as figuras parentais quanto aos sintomas dos filhos
ocasionados pelo litigio familiar.

Dentre as diversas tentativas para conter ou barrar o sentimento de satisfação


do genitor alienador em suas manobras perversas, Duarte (2013) relatou ter sido
discutido em evento sobre Alienação Parental (Rio de Janeiro/2009) que os
magistrados estavam encaminhando os casos extremos de alienação parental às
equipes interdisciplinares visando à criação de espaço de mediação e
reaproximação com o genitor alienado, bem como indicando tratamento psicológico
familiar. Em alguns casos, instituindo a guarda compartilhada e aplicação de multa
e/ou inversão da guarda nos casos mais drásticos.

É possível observar um fenômeno crescente de denúncias de abuso sexual


nos casos altamente litigiosos de disputa de guarda onde há configuração de
alienação parental. Segundo Silva (2009), as acusações de abuso sexual em
processos de separação e guarda, normalmente são falsas e Amendola (2009)

123
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aponta que a falsa denúncia de abuso sexual tem, por consequência mais imediata,
o afastamento das crianças do genitor acusado.

Diante de tais afirmações, conclui-se que esta prática ou manobra perversa


caracteriza uma forma de abuso infantil, uma vez que progressivamente diminui o
vínculo afetivo da criança com um dos seus genitores e impede que ela venha a se
desenvolver saudavelmente, construindo representações inadequadas de suas
figuras parentais e posteriores projeções destas em suas relações futuras com seus
pares na vida adulta.

Calçada (2008), em seu estudo sobre as acusações de abuso sexual


originadas dentro do fenômeno denominado alienação parental, ressaltou que
alguns estudiosos tem denominado as falsas acusações como “Síndrome de
Medéia”, fazendo uma alusão ao clássico de Eurípedes, onde o sentimento de
abandono sofrido por Medéia seria uma ferida narcísica, isenta de culpa pelos
assassinatos cometidos em nome do amor. Assim, as “Medéias modernas”, segundo
a autora, desejariam vingar-se de seus ex-esposos ou ex-esposas destruindo,
impedindo e obstruindo a relação do outro genitor (a) sem convívio com o filho.

Ainda, as denúncias de abuso sexual não são mais frequentes que outras
denúncias falsas como maus tratos físicos, negligência, abuso emocional ou uma
história forjada de maus tratos à mulher para sustentar a incompatibilidade do
vínculo filial (CALÇADA, 2008).

A mesma autora pontuou como um elemento facilitador de denúncias falsas e


de diagnósticos errados de abusos, o fato dos profissionais e dos operadores de
direito se basearem apenas no relato da mãe como fonte única de informações para
os casos de possível abuso, quer de natureza sexual, quer de supostos maus tratos
considerando que até hoje prevalece, na maioria dos casos, o direito do exercício do
poder da guarda dos filhos para o gênero feminino.

Ponderou a sugestionabilidade infantil e o fenômeno do “implante de


memórias” ou “falsas memórias”, que seria a recordação de um fato ou de uma
experiência que nunca ocorreu. As falsas memórias são erros de memórias que
surgem a partir de uma falsa informação e o efeito da falsa informação tende a
produzir uma redução das lembranças verdadeiras e um aumento de falsas
124
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

lembranças.

Sobre esta temática, salienta-se, ainda, que a emoção pode afetar a memória
tanto em crianças quanto em adultos, observando-se que as recordações mais
precisas são aquelas vividas em situações com forte carga emocional (positiva ou
negativa) do que em situações ou eventos neutros. Em nossa práxis, na coleta de
dados, é de suma importância considerar as vulnerabilidades da memória humana e
comparar os relatos fornecidos pela criança em diferentes momentos, pois na
maioria dos casos de abuso sexual, a fala de acusação permanece, enquanto que,
na falsa acusação o discurso muda de acordo com as circunstâncias.

Calçada (2008) enfatizou que métodos impróprios, usados por profissionais


mal preparados para este tipo de atendimento, podem contaminar a memória da
criança, vez que ela responde ao que esperam dela. Dentre eles, perguntas
sugestivas e indutoras, interrupções nas falas das crianças, além de expressões
faciais do técnico que represente como reforço positivo ou negativo, ou expondo
suas crenças, subornos ou recompensas, o que pode comprometer a precisão dos
relatos infantis.

As crianças supostamente vítimas de abuso sexual atendidas no âmbito


judiciário mostram-se por vezes confusas entre a fantasia e a realidade e muitas
vezes é difícil detectar ou mensurar com exatidão a sua ocorrência.

É comum observar nestas crianças sentimento de culpa e de traição ao mesmo


tempo. Culpa pela sensação de estar traindo ambos os pais na interferência que
acredita estar fazendo na relação entre os dois genitores e, também, pela falsa
acusação propriamente dita, quando ocorre, de maneira paralela, o sentimento de
traição, mas, somente quando a criança tem consciência de que deve mentir para
agradar o genitor alienante, geralmente a mãe.

As consequências de uma falsa acusação de abuso sexual deixam marcas


cruéis e indeléveis, tão graves quanto às de um abuso sexual real, onde as crianças
podem ficar sujeitas a apresentar algum tipo de patologia nas esferas afetiva,
psicológica e sexual, vez que vivenciam um conflito interno na relação triangular pai,
mãe e filho (CALÇADA, 2008).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Por sua vez, Duarte (2013), ponderou que as falsas denúncias de abuso
sexual são ainda mais difíceis de serem avaliadas quando se tratam de crianças
pequenas que vivenciam a fase fálica (em torno de três anos de idade). Neste
período do desenvolvimento, a criança ainda não possui o domínio da linguagem,
repete palavras/frases sem compreender o significado das mesmas, as forças
pulsionais (vida/morte/amor/ódio) acirram a vivência edípica e contribuem na
construção das teorias sexuais infantis.

Salienta-se aqui os ensinamentos de Roudinesco e Plon (1998, p.697) ao


discorrerem sobre a teoria da sedução: “é tão grave desprezar o abuso sexual
quanto confundir a fantasia com a realidade”. Muitas manifestações sexuais no
desenvolvimento psicossexual de um sujeito criança, consideradas normais para os
psicanalistas (como por exemplo, a masturbação infantil ou a sexualidade polimorfa),
ainda são desconhecidas pelos profissionais da área jurídicas, sendo dever dos
peritos fornecer esclarecimentos sobre estes aspectos.

Observa-se que é pratica comum dos juízes de Varas de Família


suspenderem a convivência da criança com o seu genitor acusado de perpetrar
vitimização sexual contra o filho, sob o imperativo da necessidade de proteção
integral da criança. Contudo, Amendola (2009) faz considerações a respeito da
importância de se preservar a convivência entre os genitores e filhos em famílias de
pais separados, nas quais foi suscitada a possibilidade da ocorrência de vitimização
sexual intrafamiliar, pois tal atitude poderia prejudicar a relação entre genitor
acursado e filho, fomentar alianças prejudiciais entre a criança e o genitor guardião e
prejudicar o andamento das investigações criminais.

Gardner (1987, citado por Lago & Bandeira, 2009) enfatizava que, quase a
totalidade dos casos de acusações de abuso sexual no contexto de disputa de
guarda seria falsa. Este alto número de falsas acusações evidencia a necessidade
de criticidade dos profissionais diante das avaliações do abuso e a compreensão
das funções de tais acusações nos processos de divórcio.

Sabe-se que, no contexto aqui explanando, de alta beligerância entre os


genitores, podem eclodir graves acusações, tais como: de alienação parental e de
abuso físico, sexual e/ou psicológico, estratégias usadas muitas vezes com o

126
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

objetivo de dificultar e até mesmo cessar a convivência entre a prole e o genitor não
guardião.

Tais acusações aumentam a complexidade dos casos fazendo com que as


medidas protetivas legalmente cabíveis, das quais, em casos extremos, determina-
se a inversão de guarda, possam acabar por intensificar ainda mais os conflitos
entre os genitores, causando maior sofrimento à criança ou adolescente envolvido.

Acerca de tais situações, o nosso grupo de estudo trocou experiências de


casos crônicos de alienação parental nos quais as tentativas de afastamento do
genitor alienador e/ou de aproximação do genitor não guardião poderiam revitimizar
a criança ou adolescente, sendo necessário o encaminhamento das partes à
psicoterapia. Também foram citados casos em que a inversão de guarda com
suspensão de visitas do genitor alienador foi bem sucedida, garantindo a integridade
psíquica da criança/adolescente.

Desta feita, demarca-se a importância da produção de estudos


interdisciplinares e reflexões aprofundadas que abarquem a singularidade dos
sujeitos envolvidos nos processos judiciais e os reflexos das determinações judiciais
na vida da criança e de suas famílias para entendimento sobre as melhores
aplicações processuais e os encaminhamentos possíveis nos casos com alta
belicosidade e grande sofrimento familiar.

4. SOBRE AS ALTERNATIVAS PARA ENFRENTAMENTO DOS


CONFLITOS

A prevenção, por meio de sensibilização e de conscientização, constitui uma


das ações primordiais dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) que
devem atuar em rede com outros órgãos governamentais, inclusive com o judiciário.
Através destas unidades públicas, busca-se garantir o acesso da população aos
direitos fundamentais, contribuindo para que os indivíduos apropriem-se de sua
condição de cidadão inserido em um mundo em constante transformação.

127
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No transcorrer da história e do desenvolvimento social, os Direitos Humanos


evoluíram abrangendo diversos aspectos da complexidade humana. Segundo a
Teoria das Gerações de Direitos Humanos, a 1ª geração relaciona-se às liberdades
públicas e aos direitos políticos; os direitos de 2ª geração referem-se aos direitos
sociais, econômicos e culturais; os direitos de 3ª geração são os direitos difusos,
coletivos, individuais e homogêneos; enquanto os direitos de 4ª geração são
referentes à bioética, ao biodireito e à informática.

A 5ª geração de direitos humanos contempla o Direito à Paz e, atualmente, é


possível se falar da 6ª geração de direitos humanos que são entendidos como
Democracia e Cidadania, pois o objetivo central do estado democrático de direito
reside na busca da preservação dos direitos fundamentais, da dignidade da vida
humana e do meio ambiente, do qual todos fazem parte.

Nesta esteira de garantia de direitos e de nova proposta de Paz, o Conselho


Nacional de Justiça instaurou no Brasil o Movimento pela Conciliação ao constatar
que para cada dez novas demandas propostas no Poder Judiciário brasileiro,
apenas três demandas antigas eram resolvidas (Brasil, 2015).

A grande inovação, no entanto, adveio da Resolução nº 125 do CNJ, de 29 de


novembro de 2010, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento
adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências e, dessa forma, organizou e padronizou a matéria em todos os
Tribunais de Justiça do País. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo criou
através do Provimento do Conselho Superior da Magistratura nº 1868/2011, o
Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos – NUPEMEC.

Observa-se assim, preocupação e interesse do Poder Judiciário em


encaminhar soluções que possam conciliar questões e demandas judiciais utilizando
tecnologias mediadoras, empoderando as pessoas a buscarem a resolução mais
viável para seus litígios.

Na área do Direito de Família, a criação de ambientes não adversariais de


resolução de disputas consiste em um dos maiores desafios para esta política
pública e para o próprio Poder Judiciário. Não é fácil modificar a cultura de

128
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“ganhador-perdedores” para outra que preserve os direitos humanos, especialmente


das crianças e adolescentes envolvidos em intermináveis litígios familiares.

Contudo, adequando-se às exigências do CNJ, algumas iniciativas de valor já


se fazem presentes, tal como a implantação dos Centros Judiciários de Solução de
Conflitos – CEJUSCS, já em atividade em diversas Comarcas, utilizando Métodos
Alternativos de conciliação e mediação.

Os serviços prestados por estes Centros incentivam a auto composição das


partes para solução do conflito à partir da realidade atual que enfrentam. São
considerados como ampliação do acesso à justiça e um direito do cidadão,
tornando-se uma maneira mais rápida e eficiente de resolver conflitos, evitando seu
prolongamento indefinido.

A Escola Paulista da Magistratura tem se empenhado na formação e


capacitação de conciliadores e mediadores, ministrando cursos aos funcionários do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e outros.

Outra forma de promover a conciliação e a paz entre as famílias foi instaurada


em São Paulo através das Oficinas de Parentalidade, também chamadas de Oficina
de Pais e Filhos. Iniciou-se na Comarca de São Vicente e foi instituída pelo CNJ por
meio da Recomendação nº 50/14 como política pública, na resolução e prevenção
de conflitos familiares. Foi recepcionada como método adequado de solução de
conflitos pelo NUPEMEC e inserida nas práticas dos CEJUSCS por meio do
Provimento CSM 2327/16.

4.1 Oficina de pais e filhos

Outra forma de sensibilizar e preparar as partes litigantes para promover a


conciliação e a pacificação entre as famílias são as Oficinas de Parentalidade
implantadas em São Paulo, também chamadas de Oficinas de Pais e Filhos.

Iniciou-se na Comarca de São Vicente e foi instituída como política pública


pelo CNJ por meio da Recomendação nº 50/14, voltada para resolução e prevenção
de conflitos familiares. Foi recepcionada como método adequado de solução de

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

conflitos pelo NUPEMEC e inserida nas práticas dos CEJUSCS por meio do
Provimento CSM 2327/16.

A partir de uma palestra da Dr.ª Vanessa Aufiero da Rocha, MM Juíza da


Comarca de São Vicente especialmente proferida ao Grupo de Estudos de Casos
Altamente Litigiosos em Varas de Família, uma das colegas que compõe o atual
Grupo teve a oportunidade de participar de uma das oficinas oferecidas em São
Vicente, que foi instalada pela iniciativa pioneira da Dr.ª Vanessa Aufiero da Rocha.

A reunião ocorreu em uma única tarde, nas instalações de uma faculdade do


município, no horário das 14h às 18h. A participante permaneceu como
observadora, juntamente com outros que também tinham o mesmo interesse, numa
das salas destinadas aos litigantes.

Os observadores formaram um semicírculo, com os observados também


nesse formato, porém, mais afastados. Foi solicitado o silêncio e a não interferência
dos observadores durante a reunião.

A programação abordou temas relacionados à experiência da separação para


os adultos, para os filhos e aspectos da alienação parental. Foram utilizadas
dinâmicas de grupo, material audiovisual, vídeos e filmes, além de explicações
verbais visando a estimular a interatividade.

O tema Alienação Parental, considerado de grande importância, foi um dos


últimos a ser abordado, próximo ao encerramento da Oficina. A valiosa função da
Oficina de Pais merece um tempo maior para sua destinação, uma vez que são
muitos os passos para reflexão, porém se realiza em uma única tarde e percebeu-se
que alguns participantes mostraram-se desejosos de participar novamente da
Oficina, ou que o tempo da Oficina fosse ampliado.

Diante do interesse é importante implementação de parcerias com serviços


públicos que atendam essa demanda ou que o Estado disponibilize recursos
humanos para dedicação exclusiva remunerada para esse tão valioso trabalho de
preparação para a sessão de mediação, desafogando o trâmite judiciário, tão
assoberbado atualmente.

130
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Sabe-se que o Centro de Referência Especial de Assistência Social


(CREAS), abarca o Programa de Atendimento Especializado as Famílias e
Indivíduos (PAEFI) e tem como um de seus objetivos contribuir para o fortalecimento
da família no desempenho de sua função protetiva e trabalhar o rompimento de
laços. Poderia ser uma das instâncias a ser contatada nos municípios visando-se a
implantação das Oficinas de Parentalidade e continuidade do trabalho.

A Dra. Vanessa Aufiero da Rocha, em palestra proferida em São Paulo, a


convite do Grupo de Estudos Casos Altamente Litigiosos em Varas de Família
apresentou os dados empíricos favoráveis sobre os resultados alcançados pelas
Oficinas de Parentalidade, na prevenção e redução dos casos litigiosos, e
consequente diminuição do numero de processos judiciais.

Dessa forma, as Oficinas de Parentalidade vêm cumprindo as


recomendações do CNJ e do TJSP quanto à conciliação e busca pela paz nas
famílias.

4.2 A prática da mediação familiar em diferentes países

Na Europa, na América do Norte e em alguns países da América do Sul. A


prática da mediação e da conciliação já foi instituída judicialmente há mais tempo do
que no Brasil. Apresentamos a seguir algumas dessas experiências apontadas como
exitosas e de inspiração para a implantação de modalidades de justiça, no país.

4.2.1 Portugal

Em Portugal, o princípio da autonomia da família, previsto pela própria Carta


Constitucional Portuguesa prevê pertencer aos pais o direito prioritário de educação
e manutenção dos filhos, sem a interferência injustificada do Estado ou de terceiros.
Desta forma, a interferência do poder judiciário nas relações familiares é tratada
como exceção à regra da autonomia da família.

A mediação familiar aparece como uma ferramenta bastante útil, evitando-se


assim que, por excesso de processos, uma demanda judicial possa levar muito

131
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

tempo para se resolver, sendo prejudicial para a manutenção das relações


familiares.

Segundo consta, Portugal, assim como muitos outros países pertencentes à


Comunidade Europeia, já possui legislação específica que permite e regulamenta a
prática da mediação. Porém, em Portugal, surge a questão de como a mediação
familiar pode ser realizada diante do caráter indisponível dos direitos de família.

Temos, portanto, um cenário de “desjudicialização” das questões familiares,


onde o indivíduo é chamado a se responsabilizar pelas decisões a serem tomadas
em relação à sua família. E nesse contexto, a mediação se mostra perfeitamente
eficiente e coerente, capaz de dar efetividade ao princípio da reserva da intimidade
da vida privada, assim como ao princípio da paternidade responsável.

A União Europeia normatizou o processo de mediação, publicando em 1998 a


Recomendação do Comitê dos Ministros dos Estados Membros do Conselho da
Europa, dispondo sobre a Mediação Familiar, texto modificado e em vigor desde
2005.

Em Portugal, a Lei que dispõe sobre a organização, competência e o


funcionamento dos Julgados de Paz, criou um serviço de Mediação, que põe à
disposição de qualquer interessado essa modalidade como alternativa de resolução
de controvérsias.

A prática do serviço de mediação determina que qualquer conflito pode ser


submetido ao processo de mediação, mesmo não estando expressamente previsto
na lei, excepcionando apenas aqueles que tenham por objeto direitos indisponíveis,
em conformidade com a lei civil portuguesa. Mesmo assim, a lei se ocupa de permitir
que direitos a princípio indisponíveis, de natureza de ordem pública, como por
exemplo, os direitos de menores, sejam submetidos à negociação entre as partes.

Tem-se claro que o objetivo da Lei sobre os Julgados de Paz é possibilitar


que as partes em conflito possam participar ativamente da busca pela solução para
o mesmo, permitindo que as mesmas cheguem a um acordo.

Em Portugal, a mediação tem como princípios norteadores, a simplicidade,


adequação, informalidade, oralidade e economia processual. Regulamenta de forma
132
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ampla a atividade do mediador, prevendo os requisitos necessários para executar


essa função, os critérios de seleção e a forma como serão remunerados pela
atividade. Fundamental se faz que o mediador tenha uma formação apropriada,
possuindo habilitação em curso de mediação devidamente reconhecido pelo
Ministério da Justiça Português. Os conhecimentos teóricos e práticos do mediador
devem ser utilizados para auxiliar as partes a, por si mesmas, encontrarem a
solução para os conflitos.

Em 2007, o Secretário de Justiça Português com o objetivo de regulamentar o


serviço de mediação em novas localidades do território português, ampliou o rol de
matérias suscetíveis à prática da mediação e adequou o serviço público a essa
prática.

4.2.2 Espanha

A prática da mediação, acompanhando um movimento existente na Europa


que foi influenciado pela prática americana, teve a regulamentação na Espanha em
1979, com a criação do Instituto de Mediação, Arbitragem e Conciliação, órgão
pertencente ao Ministério do Trabalho, iniciando efetivamente no início da década de
1990, quando foi aberto na Catalunha um centro privado de mediação, financiado
por empresas privadas.

Em 1991 foi criada a Associação Espanhola de Estudos da Família, para


realização da mediação, reforçando a percepção das vantagens na sua prática.

Algumas comunidades espanholas tem autonomia, no que diz respeito aos


conflitos familiares, pela Constituição Espanhola de 1978. Para a competência de
legislar sobre a forma de proteção à família e aos menores editaram suas próprias
leis, prevendo e regulamentando expressamente a prática da mediação nesse
âmbito de conflitos.

Ao longo dos anos 1990 muitos outros serviços foram sendo criados, o que
possibilitou a expansão da oferta dos serviços de mediação por quase toda a
Espanha. Contudo, a legislação espanhola limita a utilização da mesma,
principalmente quando há evidências de maus-tratos aos integrantes menores de

133
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

idade do núcleo familiar ou quando uma das partes possui algum problema de saúde
mental comprovado.

4.2.3 Bélgica

Na Bélgica, a lei de 2005 representou um marco para a atividade das práticas


alternativas de resolução de conflitos, modificando o Código Judicial no âmbito da
mediação, determinando que pode ser objeto da mediação toda controvérsia objeto
de uma transação. Admite a mediação dos conflitos patrimoniais de família e
também dos conflitos relativos aos efeitos pessoais, bem como as disputas
envolvendo filhos menores. A legislação belga pôs fim à mencionada discussão
sobre a possibilidade da disposição sobre direitos absolutos, bem como forma de
resolução dos conflitos que resultarem da execução do contrato que está sendo
firmado.

O processo de mediação belga tem como princípios a voluntariedade das


partes que devem se manifestar positivamente pela realização desse tipo de
resolução de conflitos e a confidencialidade do processo como garantia essencial da
participação sincera das partes. O Juiz só poderá recusar a homologação do mesmo
em casos de contrariedade à ordem pública ou violação aos direitos de menores.

4.2.4 França

Sob a influência da prática nos EUA e no Canadá, vários diplomas legais


especificamente referentes ao processo de mediação foram promulgados em
França, instituindo a prática da mediação no âmbito dos conflitos familiares. Para
regulamentar a formação dos mediadores e a prática do procedimento já em 1988
foi criada uma Associação para a promoção de Mediação Familiar.

Em 1995, relativa à organização das jurisdições e ao processo civil, penal e


administrativo, foi regulamentada de forma sistêmica o processo de mediação e
conciliação no âmbito do processo judicial, prevendo inclusive que a conciliação
entre as partes deve ser entendida como missão do juiz. Cabe às partes acordarem
pela participação do processo de mediação e essa participação não pode ser
imposta pelo juiz.
134
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Houveram controvérsias se a mediação familiar estaria restrita a esfera


judicial, sendo concluído que nada obstaria que a mediação fosse praticada de
modo extrajudicial, pois, apesar da lei não regulamentar essa prática, ela também
não a proíbe.

A Lei traz exigências quanto à pessoa do mediador, que deverá ser uma
pessoa idônea, não podendo ter se envolvido com práticas de atos que atentem
contra os bons costumes, devendo ser qualificado para o conflito específico que irá
mediar, além de provar que não possui qualquer relação com a causa mediada, a
fim de se garantir sua imparcialidade.

Outra regra que pelas características do processo de mediação pode ser


questionada é referente ao tempo máximo que deve durar o processo de mediação,
três meses, podendo esse prazo ser prorrogado uma vez, por igual tempo. Ou seja,
as partes teriam no máximo seis meses para serem auxiliadas pelo mediador e
assim tentarem chegar a um acordo.

Acontece que, pelas peculiaridades do conflito familiar, limitar o tempo da


mediação pode colocar em risco a eficácia da mesma. Por outro lado, permitir que
esse processo seja interminável poderia fazer com que as partes o confundisse com
um processo terapêutico. A própria pessoa do mediador poderá ser considerada
apta a decidir pelo fim ou não da mediação, na medida em que perceba que essa
forma específica de condução do conflito já não se mostra útil para o caso concreto
em discussão. O Novo Código de Procedimento Civil permite que o mediador
comunique ao Juiz as dificuldades que estão sendo vividas no processo mediatório e
o juiz pode decidir pelo fim do mesmo.

Importante esclarecer que na França, o acordo resultado da mediação terá


força executiva e nas demais situações, terá força de um contrato firmado entre as
partes.

Quanto à prática específica da mediação familiar, o sistema jurídico francês a


reconheceu em 2002, no âmbito do exercício da autoridade dos pais. Essa lei amplia
o objeto da mediação familiar, no momento em que possibilita a negociação de
direitos no âmbito do divórcio, tanto pessoais quanto patrimoniais. Havendo

135
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

desacordo entre os pais, o juiz deve tentar conciliá-los, indicando o serviço da


mediação, de forma a facilitar a busca por uma conclusão satisfatória para o litígio.

Finalizando, o Código Civil Francês elenca a mediação entre as medidas


prioritárias a serem tomadas pelo Juiz, para conciliar as partes envolvidas em
conflitos familiares.

Diante do estudo das características peculiares dos conflitos existentes no


âmbito das famílias, é possível perceber o quão complexos são os mesmos, e como
a atividade do Poder Judiciário, da forma como está regulamentada, não tem
demonstrado eficiência no trato desses conflitos.

4.2.5 Argentina

Na Argentina, a mediação foi divulgada através da Lei nº 24.753, impondo-a


como instância obrigatória antes da submissão da demanda ao juiz. Essa
obrigatoriedade é muito criticada em razão do caráter voluntário da mediação, no
entanto pode contribuir para sua divulgação, a fim de que todos tenham contato com
os seus benefícios, bem como para conscientizar os cidadãos da necessidade de
uma mudança no modo de condução e resolução das lides.

Existe, também, um Projeto de Lei para que a mediação seja usada no âmbito
familiar, o que hoje não ocorre, por não ser obrigatória, conforme disposto no artigo
2º da dita Lei.

4.2.6 Canadá

O Ministério da Justiça do Canadá utiliza o Plano de Responsabilidades


Parentais nos casos altamente litigiosos, no intuito de estabelecer regras a serem
cumpridas pelos pais, contribuindo para a redução dos conflitos entre o casal,
privilegiando as discussões e resoluções em relação à parentalidade, no melhor
interesse da criança.

Nos planos de responsabilidade parentais, os pais envolvidos em uma ação


de divórcio podem estabelecer de forma descritiva seus deveres e obrigações para
cuidar de seus filhos. Segundo os especialistas em divórcio altamente litigioso, faz-

136
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

se necessário estabelecer um plano de responsabilidades parentais criteriosamente


estruturado, com o intuito de reduzir os conflitos entre os pais. Os autores falam da
menor capacidade dos casais que vivem graves conflitos de entrar em acordo sobre
o plano de responsabilidades parentais, sendo necessários mecanismos
suplementares, para a organização do plano.

Em tais situações é necessário recorrer a um coordenador de tarefas


parentais, que segundo Garrity e Baris (1994: 101-120) citado por Gilmour, (2004),
deve ser:

[...] Uma pessoa com experiência em solução de problemas e nos métodos


de mediação e de comunicação, que conheça os aspectos jurídicos do
divórcio, a psicologia dos adultos e do desenvolvimento, e os problemas de
adaptação que o divórcio acarreta às crianças (GILMOUR, 2004).

Esse coordenador de tarefas teria como tarefa primordial elaborar um plano


de responsabilidades parentais com a intenção de minimizar o conflito entre os pais,
visando:

- garantir os acordos em relação à moradia dos filhos e ao


esquema de visitas;

- mediar os conflitos entre os pais;

- ensinar ao casal métodos de comunicação, fornecer dados


sobre o desenvolvimento infantil e sobre os problemas das
crianças em casos de divórcio;

- ter o poder de modificar o acordo de visitas também para


reduzir os conflitos;

- garantir o convívio e relacionamento equitativo e contínuo de


ambos os pais com seus filhos;

- dar a “palavra final” nas questões que geram impasse entre


os pais.

137
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os autores Garrity, Baris, 1994 e Gilmour 2004, apresentam quadros


diferenciados para ilustrar o papel do coordenador em níveis diferentes de conflitos
mínimos, moderados e suficientemente graves. Nos casos suficientemente graves, o
coordenador é indicado para:

- adaptar os métodos de comunicação entre o casal;

- modificar as visitas para reduzir os conflitos;

- recomendar as visitas monitoradas quando necessário, no


intuito de proteger as crianças, assegurando que as crianças
tenham contato com os dois genitores;

- recomendar a avaliação dos genitores, quando necessário;

- verificar os casos de alienação parental, organizando as


visitas e plano de comunicação nesses casos;

- reunir-se com as partes quantas vezes forem necessárias,


normalmente com intervalo semanal para esses encontros.

Referem os autores citados que nesses casos, os casais discutem com muita
frequência sobre os detalhes das visitas, sobre as formas de educar os filhos e as
informações referentes às crianças. O papel do coordenador é modificar essa forma
de comunicação, para reduzir a exposição das crianças ao litígio. Gilmour, 2004
sugere práticas que podem integrar os planos de responsabilidades parentais:

- as crianças podem ser conduzidas pelos pais até a moradia


do outro que receberá a visita, se ambos tiverem veículos
próprios, evitando assim as despedidas abruptas;

- ter um caderno de registro que acompanhe os filhos em seus


deslocamentos. Nesse caderno pode-se comunicar sobre
medicamentos que estão sendo utilizados, alimentos a
restringir, atividades que precisam ser realizadas, entre outros;

138
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- fornecer um lugar neutro para as transições dos filhos, caso o


conflito e discussões entre os pais sejam graves e calorosos
(lugares públicos, tais como bibliotecas ou museus);

- caso os momentos de transição ainda sejam motivo de


acirramento do conflito, substituir o plano de visitas por plano
onde aconteça menos transições, e as crianças permaneçam
por períodos mais longos com cada um dos pais;

- salienta-se que toda exceção ao calendário de base das


visitas deverá ser detalhadamente acordado no plano;

- quando o conflito é muito acirrado, festas de aniversário e


datas comemorativas devem ser comemoradas nas duas
residências, com horários estabelecidos para a permanência
em cada uma;

- assegurar que os filhos falem com seus pais ao telefone de


forma privada;

- deixar claro que não há substituição às faltas nas visitas.

No Canadá, o Instituto Clarke de Psiquiatria de Toronto utiliza o programa


“For Kid’s Safe” (pela causa das crianças). Realizam sessões psicopedagógicas e
terapêuticas que:

- ajudam os casais a compreender as necessidades de seus


filhos;

- ajudam a identificar as dificuldades da relação parental;

- refletem com os pais para assumirem a responsabilidade da


sua contribuição para o prolongamento do conflito;

- negociam um melhor plano de responsabilidade parental

139
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4.2.7 Estados Unidos

Devido a um reconhecimento cada vez maior da necessidade de formar os


pais para um comportamento parental melhor, Geasler e Blaisure (1998), citado por
Gilmour 2004, examinaram programas de educação dos tribunais dos Estados
Unidos.

Em Idaho, EUA, em casos altamente litigiosos, faz parte do protocolo dos


juízes incluir um plano de compartilhamento e responsabilidades parentais no
processo e no julgamento, que inclui detalhadamente um plano de visitas e, quando
apropriado, já indicado um coordenador das tarefas parentais, que fica responsável
por arbitrar as divergências entre as partes na elaboração e execução do plano. Os
principais elementos de um plano de responsabilidade parental para família
altamente litigiosa deveriam ser:

- o menor contato possível ou nenhum contato entre os pais;

- um plano bem detalhado, deixando pouco lugar aos acordos


decididos pelos pais;

- hábitos regulares (rotina) para as crianças;

- tomada de decisões confiada principalmente a um dos


genitores;

- a possibilidade de que o direito de visita seja limitado ou


exercido sob monitoramento/vigilância;

- as comunicações entre os pais feitas através de um “registro


de comunicação”;

- o intercâmbio/transição das crianças em terreno/ambiente


neutro. (Stewart; 2001-51, apud Gilmour,2004).

Segundo os autores, os programas de educação são mais eficazes que os


livros e palestras, porque são focados no desenvolvimento de habilidades. Assim, os
pais divorciados podem aprender formas não violentas de comunicação entre eles e
140
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

os filhos. Em geral a eficácia dos programas varia de acordo com o nível de conflito.
Esses programas, especificamente, focam o ensino da prática de habilidades, e não
informações sobre assuntos diversos, apresentando a possibilidade de
aperfeiçoarem o exercício das responsabilidades parentais.

No condado de Los Angeles, entre janeiro e maio de 1997, 147 países


seguiram um programa informativo que observava:

- os efeitos do divórcio e de comportamentos litigiosos sobre as


crianças;

- legislação em relação à guarda e direito de visitas;

- planos de compartilhamento de responsabilidades já


existentes;

- consequências da inobservância das ordens judiciais;

- habilidades necessárias para melhorar a comunicação e


resolver as disputas.

Comparados a um grupo controle, foi observado que aqueles que seguiram o


programa eram normalmente mais cooperativos, apresentavam menos desacordos e
negociavam as questões da guarda com os ex-cônjuges, o que diminuía
sensivelmente a violência entre eles.

No Tribunal do Condado de Multhnomah, em Portland, Oregon, Mclsaac e


Finn, em 1999, criaram o programa “Parentes Beyond Conflict” (“Pais além dos
conflitos”), que se inspira no programa Contemnor do Tribunal de Conciliação do
condado/comarca de Los Angeles (“Los Angeles Country Conciliation Court’s
Contemnor Program”). O Programa tinha como objetivos: aumentar a empatia dos
pais para com os filhos e mostrar o efeito dos seus comportamentos sobre os filhos.

Treze famílias envolvidas em alto litígio foram convocadas por um juiz para
participarem do programa. Cada pai recebeu material didático com informações
sobre os seis encontros, com duração de duas horas cada um. O curso focava a
aquisição de habilidades parentais. Aos participantes, estabeleciam-se regras, na
primeira sessão. Os membros do grupo deveriam respeitar-se e não denegrir o outro
genitor. Após dois meses do curso, treze pais apresentaram a utilização de
conceitos ensinados de forma construtiva. Portadores de doença mental, com
141
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

antecedentes de violência crônica e usuários de drogas e álcool, não foram incluídos


nesse grupo.

4.2.8 Brasil

No Brasil, uma atenção especial ao conflito familiar está obtendo sucesso


com a utilização das sessões de Mediação, que já estão sendo adotadas como
forma alternativa de resolução de conflitos de natureza familiar, entre outros,
tornando-se importante técnica de trabalho na resolução desses litígios.

A mediação, com consideração especial à família, se faz cada vez mais


necessária como alternativa de solução complementar, visto que a justiça se mostra
não suficiente, em muitos casos, frente à crescente dissociação familiar das ações
de divórcio e também das ações de regulamentação de guarda e do poder familiar.

O excesso de ações no sistema judiciário e a falta de condições para lidar


com questões originárias do conflito familiar, como a esfera psicossocial dos
vínculos afetivos e as questões parentais, levaram o Poder Judiciário a se tornar um
sistema congestionado.

O objetivo da Mediação entre as partes conflitantes é o de levar a uma


situação de paz no âmbito das famílias. O consenso é uma maneira de preservar a
família, especialmente as crianças e adolescentes, evitando que questões delicadas
inerentes ao ambiente interno da mesma sejam levadas a público, por meio de um
processo litigioso.

142
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

O grupo de estudo sobre casos altamente litigiosos de 2016 debateu


intensamente ao longo dos encontros sobre as principais características destes
casos e sobre as situações ocorridas no âmbito do judiciário que acabam por
agravar o litígio entre as partes, sendo algumas delas: a postura adversarial de
alguns advogados que desestimulam uma composição racional entre as partes, o
posicionamento antiético de alguns assistentes técnicos que se posicionam como
defensores da parte que os contratou, a morosidade do andamento processual e a
relutância dos juízes em aplicar sanções.

Por outro lado, a implantação do novo Código do Processo Civil que prevê
audiências de conciliação, salvo em raras exceções, e as recomendações do
Conselho Nacional de Justiça apontam para mudança de postura rumo à política de
pacificação social.

Um novo patamar de resolução de conflitos familiares vem se implantando,


compreendendo-se, afinal, que o ciclo conflito/superação do conflito pelo sujeito é
inerente e necessário ao desenvolvimento humano.

Discorremos neste trabalho sobre a importância de sensibilizar os litigantes


sobre os prejuízos desta conduta aos filhos, de orienta-los a participar da Oficina de
Pais e Filhos disponibilizada pelo Conselho Nacional de Justiça na modalidade on-
line e sobre a necessidade de trabalharmos em rede e impulsionar o
estabelecimento de políticas públicas que atendam as demandas oriundas dos
processos de ruptura da estrutura familiar.

Fundamental, também, é a capacitação dos profissionais que atuam nesta


área através dos estudos nos Grupos de Estudo, bem como a atualidade de se
organizar um evento interdisciplinar por intermédio da Escola Judicial dos Servidores
do TJSP – EJUS sobre a complexidade do tema.

143
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Destacamos a importância da atuação da equipes técnicas visando à


compreensão das situações conflitivas e ao fortalecimento dos laços parentais, bem
como a importância do grupo de estudo na sistematização das informações. Ao
Setor Técnico do Judiciário impõem-se o desafio de abordar estes casos de modo a
amenizar o nível de violência na relação entre os genitores visando à garantia dos
direitos das crianças e dos adolescentes.

144
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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147
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

GÊNERO, SEXUALIDADE E ATUAÇÃO PROFISSIONAL:


ENFRENTANDO CRISTALIZAÇÕES NO JUDICIÁRIO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL – FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORES

Rachel de Souza da Costa e Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


São Roque
Raimundo Nonato Lopes Neto – Psicólogo Judiciário – VIJ Itaquera

AUTORES

Aline Christina Torres – Psicóloga Judiciário – Varas Especiais da Infância e


Juventude
Bruna Rafaela Ortiz de Camargo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapetininga
Camila Manduca Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão Pires
Cassia Pauletti – Assistente Social Judiciário – VIJ Tatuapé
Elaine Aparecida Bon Gerevini – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Carapicuíba
Fernanda de Souza Monteiro – Assistente Social Judiciário – VIJ São Miguel
Paulista
Julieta Camargo Silva de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itapetininga
Kherley Dacylane Val Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos
Campos
Luciana Rodrigues da Silva – Assistente Social Judiciário – VIJ Santana
Mara Maria Ferreira de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Márcia Pulice Mascarenhas – Psicóloga Judiciário – VIJ Santana
Patrícia Maura Silva de Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de Votorantim
Raquel Csuraji de Paula – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mauá
Regiane Ortolam – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Rodrigo de Oliveira Moreira Silva – Psicólogo Judiciário – Comarca de Peruíbe
Veridiana Eloia Bandeira – Assistente Social Judiciário – VIJ Santana

149
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

As reflexões do Grupo de Estudos - Cotidiano da prática profissional de


assistentes sociais e psicólogos/as do TJSP, ora apresentadas, partiram de
inquietações e questionamentos dos participantes quanto ao próprio lugar de sua
atuação, buscando ampliar esta para além da concepção tradicional de perito. Isto é,
através da reflexão sobre seus limites e possibilidades, e na sua relação com os
operadores / aplicadores do Direito que atuam nas Varas da Infância e Juventude e
nas Varas de Família e Sucessões, assim como, a relação com outros órgãos/atores
da instituição e da rede socioassistencial, foram abordadas novas formas de se
pensar o trabalho com os usuários, para além da postura meramente avaliativa.

Leila Brito (2012) analisa, a partir de considerações de Miranda Júnior, em


relação às equipes de profissionais que atuam junto aos juízes especificamente nas
Varas de Família, que existem algumas divergências. Segundo ela, existem: 1) os
profissionais que defendem a realização de práticas periciais; 2) os profissionais que
atuam “pautados na escuta da singularidade e pela intervenção na dinâmica
familiar”; 3) e os que oscilam entre esses dois aspectos. Brito (2012) cita ainda
alguns autores, como Costa, Penso, Legani e Sudbrack que defendem a realização
de um estudo psicossocial no lugar da perícia que facilitaria a adoção de uma
“dimensão interventiva”. Para Brito (2012), nos últimos anos, as demandas ao
sistema de Justiça têm crescido, e com isso têm surgido também novas e inúmeras
possibilidades de atuação na Psicologia Jurídica. A esse respeito, a autora
considera que deveria ser uma rotina constante às demandas que são direcionadas
especificamente aos psicólogos do Judiciário as atitudes de “suspeita e
desconfiança” ao que lhes é pedido, e que tal atuação esteja construída “com
discernimento, conhecimento, certeza e ética” (BRITO, 2012, p.204.)

Sendo assim, algumas questões estruturais e sistêmicas da atuação foram


levantadas, pensando desde a forma como a instituição compreende o trabalho
técnico, mas, especialmente, como o corpo técnico pensa o Judiciário e sua atuação
neste espaço. Além disso, focando como o Serviço Social e a Psicologia
150
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

intercambiam interpretações sobre os conflitos apresentados ao problematizar seus


aspectos históricos, emocionais, afetivos, sociais, éticos e humanos.

Neste sentido, dentre as muitas possibilidades – além da atuação pericial,


como é definida pelo Código de Processo Civil - colocadas a fim de repensar
criticamente o cotidiano, o caminho percorrido foi (re)pensar as relações de gênero
como uma das mediações possíveis para debater e qualificar o trabalho com
famílias no TJSP. Isto se deu através do aprofundamento teórico para o
enfrentamento cotidiano das cristalizações presentes nas condições de gênero
vigentes.

DESENVOLVIMENTO

Com base nos estudos de Foucault, a partir das explanações de Érika Reis
(2009), o debate centrou-se nas relações de poder que se encontram diluídas na
prática cotidiana no Judiciário e os discursos que constroem o que é a verdade
nesse contexto. Tal debate abre a possibilidade para resgates históricos a respeito
de como a sexualidade tem sido concebida a partir de modelos religiosos e modelos
de família burguesa, que disciplinam o que é normal, esperado e adequado.

Neste aspecto, ressaltam-se as ideologias dominantes que mantêm homens e


mulheres presos a identidades naturalizadas, que limitam as possibilidades
singulares de suas existências e acabam por produzir muitos conflitos relacionais,
abordando assim de modo estrutural as identidades de gênero e dos papéis
cristalizados atribuídos ao pai e à mãe, articulando evidências históricas produtoras
de práticas normalizadoras12, normas que reproduzem outras normas.

Reis (2006), a respeito das práticas normalizadoras, ao explanar conjunturas


específicas em acontecimentos ao longo da história, depreende que através das
disciplinas surgiu o poder da norma ligado a outros poderes que buscaram regular a
vida e “os processos de nascimento, produção e morte” e assim conduzir a conduta
dos indivíduos através da construção de “discursos da verdade”:
12
Para Saraiva (2008) uma função normalizadora é aquela que adestra e anula a subjetividade dos
sujeitos.

151
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

São discursos que se sobrepõem aos discursos jurídicos propriamente


ditos, que circulam neste ambiente, mas que emergem de múltiplas
instituições, intervindo, assim, na elaboração das leis, no espaço das
audiências, nas sentenças judiciais, na forma como os operadores do direito
conduzem os seus trabalhos, no modo como assistentes sociais e
psicólogos articulam sua intervenção com relação às famílias, e ainda na
maneira aguerrida pela qual os indivíduos dão prosseguimento às suas
reinvindicações de justiça – ou melhor, reinvindicações de poder e de
identidade (...)” (REIS, 2009, p. 144)

Ressaltamos a necessidade de posicionamentos éticos constantes sobre os


paradigmas e ideologias que perpassam nossas atuações no Judiciário, exigindo
uma postura ética e técnica que vai além de um lugar de perito, considerando que as
análises feitas nas avaliações e laudos apresentados pela(o)s assistentes sociais e
psicóloga(o)s são importantes também para “empoderar” os sujeitos envolvidos nos
conflitos.

Refletimos ainda sobre as demandas dos setores técnicos quanto aos


estudos a serem realizados, a expectativa que o sistema judiciário muitas vezes
impõe sobre a atuação dos profissionais e as exigências de celeridade nos
processos judiciais, e como isso interfere de modo direto e indireto sobre a prática
dos profissionais do Serviço Social e Psicologia, no Judiciário, que muitas vezes são
responsabilizados pela morosidade do sistema.

Discutiu-se também sobre o lugar de decisão colocado pelos indivíduos que


procuram a instância judiciária, e como tal instituição sustenta um viés ambíguo de
cobrar e punir, a partir de normas mais que diretrizes, ao invés de incentivar a
autonomia e a responsabilidade dos sujeitos envolvidos em conflitos. Nesta
perspectiva, Saraiva (2008), ao falar sobre questões técnicas d(o)as profissionais,
evoca reflexões éticas necessárias, tendo em vista que para o autor as dimensões
éticas e técnicas são indissociáveis:

O lugar e a função do psicólogo nas instituições são questões éticas, já que


é a um sujeito que o psicólogo endereça sua prática – a menos que se
queira exercer uma prática sobre um indivíduo tomado como mero objeto
dessa prática. Questões técnicas traem sua dimensão ética a partir do
momento em que pressupõem e envolvem a subjetividade. (SARAIVA,
2008, p. 186).

A expectativa sustentada, muitas vezes, pelas famílias é a de que o Judiciário


é o espaço onde os seus conflitos serão definidos e dissolvidos. Na figura do Juiz, e
152
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

na sua decisão, é depositada a esperança de que os conflitos de entendimento e


verdades sejam solucionados. Explanou-se sobre de que modo a(o)s assistentes
sociais e psicóloga(o)s poderiam ampliar sua atuação e contribuir para uma
desconstrução, na sua prática diária, junto às famílias, promovendo, no mínimo,
autonomia dos sujeitos em relação aos conflitos apresentados, repensando o lugar
técnico com uma proposta mais interventiva.
No entanto, tal desconstrução exige um movimento questionador, tanto amplo
como contínuo, que possui inúmeros obstáculos: prazos, demanda, entendimento
equivocado do lugar da(o) assistente social e da(o) psicóloga(o) por parte do
sistema judiciário, que exige desses profissionais um enquadramento, muitas vezes
limitante.
Apresentou-se ainda reflexões sobre (re)situar a prática da(o)s psicóloga(o)s
e assistentes sociais no Judiciário. A esse respeito, Saraiva (2008), aprofundando
reflexões de Coimbra e Nascimento (2004), considera necessária a análise do
espaço profissional que ocupam como produtores de verdade e os efeitos que
possuem, buscando entender a origem e as engrenagens das instituições que
atravessam e constituem a atuação profissional, questionando “as bases históricas
que a nortearam, explicitando as forças instituídas que a engessam numa
perspectiva linear e naturalista de conceber o ser humano, o saber a intervenção
técnica”.
As desconstruções e reconstruções apresentadas apontam provocações,
pontuados também por Ayres, Coimbra e Nascimento (2008, p.44), ao refletirem
sobre os desafios no Judiciário: “encontrar formas de atuação baseadas em um
paradigma ético-político que afirme subjetividades críticas de sua realidade, com
algum grau de autonomia perante suas vidas, condição que historicamente lhes vem
sendo retirada”.
Neste aspecto, reflexões necessárias foram apresentadas sobre a relação do
Setor Técnico com os Magistrados. Ponderou-se sobre a necessidade de
embasamento da avaliação psicossocial, dos posicionamentos técnicos,
considerando a dimensão ético-política da prática profissional como uma construção
que vai para além da perícia.
Saraiva (2008) aponta reflexões sobre o contexto da prática jurídica, em
especial à psicologia jurídica, entendendo a necessidade da mudança de

153
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

perspectiva que estabelece como imperativa a necessidade de (re)situar os objetivos


da intervenção profissional da(o) psicóloga(o). Aponta assim as reflexões de Brito
(2001) “‘desengessar’ o sujeito das propostas normativas da psicologia pericial, tão
caras às práticas psicológicas tradicionais. Classificar o sujeito para fins jurídicos é
simplesmente enquadrá-lo em determinada patologia, escamoteando o caráter
dinâmico e dialógico da experiência humana.”

“Essa nova perspectiva, longe do caráter disciplinador e adaptativo de que


se revestiu grande parte das teorias e práticas psicológicas tradicionais,
pretende situar o indivíduo em sua singularidade, remetendo-o às próprias
ações e implicando-o nelas, a fim de que se torne responsável por seus
atos e agente de existência. Esse trabalho, sem dúvidas, só pode ser
realizado a partir de um constante autoquestionamento por parte dos
profissionais que se proponham a exercê-lo, pela perda de referências
anteriores que outrora nortearam a atuação do psicólogo.” (AYRES,
COIMBRA e NASCIMENTO, 2008, P. 187).

Visou-se assim “colocar em análise o lugar que ocupamos, nossas práticas de


saber-poder enquanto produtoras de verdades – consideradas absolutas, universais
e eternas – seus efeitos, o que elas põem em funcionamento” e problematizar
“articulações coletivas que contemplem diferentes instituições que atravessam o
tecido social, o Judiciário e a nós próprios” (COIMBRA, AYRES e NASCIMENTO,
2008, p.37) .

Apesar de ter ênfase nas interfaces entre Psicologia e Direito, as discussões


fomentadas buscaram construir uma reflexão mais ampla sobre as relações de
gênero construídas historicamente, postas e repostas no dia a dia, e, por isso,
também presentes no cotidiano profissional de assistentes sociais e psicólogas/os
que atuam em Varas de família e Varas de Infância no Tribunal de Justiça de São
Paulo.

As reflexões de Reis (2009) partem da concepção do humano como um ser


produtivo e auto produtivo, que constrói também discursos e práticas sobre si e para
si, processo sócio histórico através do qual os seres humanos se tornam, dentre
outros aspectos, dotados de sexualidade. Os discursos, práticas e táticas
construídas em torno da sexualidade se objetivam em regras, normas, condutas e
comportamentos. Mas não somente isso, os discursos sobre sexualidade (ou as
ficções reguladoras dos corpos) constituem subjetividades.
154
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Pensar a sexualidade é algo antigo, tão antigo quanto os próprios humanos e


as suas diversas formas de expressão. Historicamente, em meio a tal produção de
instituições, práticas e discursos, o sexo também se torna um dos aspectos mais
importantes na produção de sentido, de meio para expressão da individualidade
humana.

Foucault aponta que, inicialmente através de práticas discursivas religiosas,


mas muito mais eficazmente pelos discursos científicos, onde se mescla humano e
natureza, social e biológico, sensação e anatomia em um constructo que apresenta,
impõe e reproduz continuamente modos de ser, formando redes de identidade que
demarcam não estritamente os comportamentos sexuais, mas também “as condutas,
os sentimentos, as emoções, enfim, as modalidades expressivas, ou melhor,
performativas, requeridas de cada um como pré-requisito de sua inserção social”
(REIS, 2009, p.66).

Já no mundo antigo dos romanos e gregos, Foucault rastreia a produção de


especulações acerca da sexualidade. Mas a dimensão mais universal da
normatização da sexualidade somente é conferida pelo cristianismo durante a Idade
Média. Pari passu com o imenso poderio econômico exercido pelas instituições
religiosas cristãs durante o feudalismo, foram forjados (não como simples proposta,
mas como regra e exigência para todos) os preceitos morais que conduzirão os
séculos seguintes no mundo ocidental, destacando-se: o duplo padrão de
moralidade entre homens e mulheres, o casamento, a monogamia, a reprodução
como função exclusiva da sexualidade e a desqualificação do prazer.

Para atingir o alcance pretendido com tais preceitos morais, os discursos


religiosos precisaram criar um mecanismo de poder inovador no campo da
sexualidade, o poder pastoral: um poder externo que por meio de táticas
individualizantes e ao conhecer intimamente aqueles à que se dirige, prescreve,
transmite, orienta, educa, controla, vigia, pune e zela pelas normas.

O mecanismo do poder pastoral, uma vez inventado, pôde ser exercido pelo
padre, mas também (guardadas as devidas proporções) em práticas mais
tradicionais, pelo/a médico/a, psiquiatra, psicanalista e psicólogo/a. Acrescente-se
que o ranço conservador outrora presente nas origens do Serviço Social, permite
incluir também o/a assistente social nesta lista.

155
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nas sociedades capitalistas, de poder mais onipresente, o poder pastoral


apresenta-se também em grandes máquinas disciplinares, sobretudo presentes na
instituição do Estado moderno ocidental, como escolas, prisões, quartéis, serviços
sócio assistenciais, hospitais e outros serviços de saúde, etc. Aparelhos ideológicos
amplamente subsidiados e justificados pelas ciências “enquanto saberes voltados
para produção de verdades sobre os sujeitos” (REIS, 2009, p.69).

Mas além do poder exercido pelo Estado é necessário que tais discursos
sejam reconduzidos em um plano mais individualizado e cotidiano e este é o papel
desempenhado pela instituição familiar, - outro importante polo de exercício do
poder pastoral na medida em que sendo alvo prioritário dos discursos e práticas
normalizadoras torna-se também reprodutora destes, fazendo-os circular e, na
sociedade moderna, transformando seus próprios membros em agentes de
disciplinarização e normalização. Afinal, estes modelos e padrões têm força porque
“nós mesmos os recolocamos em funcionamento, ao longo de nossas práticas
cotidianas” (REIS, 2009, p. 64).

Presente objetiva e subjetivamente na vida cotidiana, este poder categoriza


as pessoas, prendendo-as a certa identidade condicionada por regulações políticas
e práticas disciplinares. Neste sentido, são construídas “linhas de comportamento
coerentes esperados de homens e mulheres, produzindo normas e ficções
reguladoras disfarçadas em leis do desenvolvimento” (REIS, 2009, p.74), ou seja,
despolitizando a produção sócio-histórica do gênero ao enquadrá-lo no “masculino”
e no “feminino”. Novamente: ressalta-se a participação ativa de profissões como
Psicologia e Serviço Social na produção e reprodução de tais ficções de gênero.

A história da ciência moderna construída na sociedade capitalista revela as


constantes tentativas de corrigir e enquadrar os comportamentos humanos e excluir
aqueles que não condizem com a norma imposta. O método científico é construído
de uma maneira hierarquizada, de modo a colocar as ciências biológicas e naturais
como se estivessem num patamar superior, e fossem sempre mais racionais,
corretas, objetivas, práticas e, por isso, mais perfeitas do que as ciências sociais e
humanas.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Essa hierarquia das ciências foi socialmente construída, concedendo a


matérias como a matemática atributos de ser uma ciência exata, dotada de
neutralidade e imparcialidade inquestionáveis.

Por conseguinte, a problemática reside na questão de diversas áreas do


saber humano se apegarem a um discurso fisiológico e biológico para justificar
estereótipos que foram construídos socialmente. Assim, gera-se uma reprodução
limitadora referente à construção do papel da mulher e do homem, do pai e da mãe
na sociedade.

Portanto, buscou-se questionar que historicamente as ciências estariam


envoltas nessa relação de poder, e que esse discurso pode acabar excluindo
diversos grupos sociais que não se adequam no modelo estabelecido. Como
resultado, excluem-se outras possibilidades de se construir a sexualidade e as
identidades de gênero. Portanto, torna-se necessário problematizar os discursos
científicos naturalizantes, já que estão sujeitos a relações de poder e de verdade.

A produção de discursos que cristalizam normas e comportamentos não é


aleatória, pois “produz seres humanos sexuados e generizados como forma de
melhor regulá-los no espaço social” (REIS, 2009, p. 76). Na medida em que são
repetidos à exaustão estes discursos acabam ganhando o estatuto de verdade e
estas representações de gênero são absorvidas e interiorizadas.

Butler apresenta pesquisa que demonstra que não existe determinante


biológico para o gênero: “uns bons 10 por cento da população apresentam variações
cromossômicas que não se encaixam exatamente no conjunto de categorias XX-
fêmea, XY-macho” (BUTLER apud REIS, 2009, p.80). Conclui-se, assim, que as
identidades sexuais são socialmente construídas e não biologicamente
determinadas.

Neste aspecto, discutiu-se que uma visão mais flexível acerca da sexualidade
humana pode viabilizar as diversas expressões de orientações sexuais, identidades
de gênero e diversidade sexual. Numa direção oposta, a rigidez na construção da
sexualidade acaba por excluir outras possibilidades de expressão social, que não se
enquadram na norma heterossexual.

157
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Uma vez tido como identidade “natural” que constituiria a “essência” de cada
indivíduo tais ficções de gênero geram regras de produção da verdade vinculados à
reprodução das relações de poder vigentes, que determinam e enquadram o que é
“normal” ou “anormal”, “adequado” ou “inadequado”, “aceitável” ou inaceitável”.

De modo que à identidade feminina são atribuídos rótulos e características


como: mãe-esposa-dona-de-casa, bela-recatada-do-lar, mulher-nervosa, instinto
materno, solteirona, passiva, fraca, histérica, afetiva, delicada, cuidadora, sedutora,
perigosa, tagarela, vingativa, traiçoeira e a mãe-que-não-adere. À identidade
masculina cabem o vazio da paternidade (em decorrência da supervalorização da
maternidade), o desprestígio da figura paterna (tido como incapaz), homem-pai-
provedor, pai-que-não-quer-pagar-pensão, viril, infiel, machista, forte, que-não-
chora.

Louro (200), ao abordar as definições, convenções, crenças, identidade e


comportamentos sexuais não são resultados de um simples fenômeno natural,
propõe:

“ (...) eles têm sido modelados no interior de relações definidas de poder. A


mais óbvia dessas relações já foi assinalada na citação de Krafft-Ebing: as
relações entre homens e mulheres, nas quais a sexualidade feminina tem
sido historicamente definida em relação à masculina. Mas a sexualidade
tem sido um marcador particularmente sensível de outras relações de
poder. A Igreja e o Estado têm mostrado um contínuo interesse no modo
como nos comportamos ou como pensamos. Podemos observar, nos
últimos dois séculos, a intervenção da medicina, da psicologia, do trabalho
social, das escolas e outras instâncias, todas procurando nos dizer quais as
formas apropriadas para regular nossas atividades corporais. As diferenças
de classe e de raça complicam, ainda mais, o quadro. Mas, juntamente com
isso, apareceram outras forças, acima de tudo o feminismo e os
movimentos de reforma sexual de vários tipos, os quais têm resistido às
diversas prescrições e definições. Os códigos e identidades sexuais que
tomamos como dados, inevitáveis e "naturais", têm sido frequentemente
forjados nesse complexo processo de definição e auto-definição, tornando a
moderna sexualidade central para o modo como o poder atua na sociedade
moderna.” (LOURO, 2000, p.28-29)

No âmbito destas categorias de enquadramento, na contemporaneidade


podemos observar o padrão ”mulher-mãe-guerreira-que-dá-conta-de-tudo”. A partir
pseudo valorização das famílias chefiadas por mulheres (já que no plano mais
aparente e imediato estes arranjos familiares escapam ao modelo hegemônico
patriarcal) têm sido apontado em críticas às políticas sociais contemporâneas,
especialmente na Assistência Social, certo “familismo”, que responsabiliza a mulher

158
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pelas múltiplas expressões de vulnerabilidade, sendo esta impelida a buscar


estratégias de superação por meio de sua rede de solidariedade, reforçando a
desigualdade de gênero, a sobrecarga feminina e o papel da “mulher cuidadora”
(MIOTO; CARLOTO, 2015).

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de


significado num sexo previamente dado”, defende Butler (apud Reis 2010, p.
25), “[…] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual
os próprios sexos são estabelecidos.”

Pinafi et al (2011) ao abordarem conceitos de Butler, explicam que a autora


diz que ainda estamos presos ao sistema sexo/gênero que produz e separa o corpo
em dualidades, e pelo sistema heteronormativo, que torna as relações
hierarquizadas. Tais sistema produzem opressões e desigualdades entre as
pessoas e uns sobre os outros;

“Para Wittig, a restrição binária que pesa sobre o sexo atende aos objetivos
reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsória; ela afirma,
ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade compulsória irá
inaugurar um verdadeiro humanismo da “pessoa”, livre dos grilhões do
sexo.” (BUTLER, 2003, P.41 APUD PINAF ET AL, 2011, p. 279

Como norma, as ficções reguladoras atuam na ocultação das


descontinuidades de gênero, de tudo aquilo e aqueles/as que não correspondam ao
padrão homem, branco, heterossexual, cristão, ocidental, rico. Evidentemente
grande parte da população mundial escapa a este perfil, e, por isso mesmo, tratam-
se de ficções, pois os grupos reais, as pessoas reais não são reconhecidas:
homossexuais, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers,
interssexuais, assexuais, mas também homens/ meninos que sofrem violência
doméstica e sexual, “homens passivos, mulheres viris, pais que cuidam de bebês,
mulheres que abdicam da maternidade” (REIS, 2009, p.77), etc.

Pinafi et al (2011), ao apresentarem os estudos de Preciato (2008) sobre


gênero, afirmam que se levamos em conta que não somos naturalmente homens ou
mulheres, masculinos ou femininos,

“passamos a nos perceber e perceber os outros como efeitos mais ou


menos realistas de repetições performativas decodificáveis como
masculinas ou femininas. Ao caminhar por entre os corpos anônimos,
159
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

suas masculinidades e suas feminilidades [...] aparecem [...] como


caricaturas daquelas que, sozinhas, graças a uma convenção
tacitamente pactuada, parecem não ser conscientes .” (PINAFI ET
AL, 2011, p. 273)
Para as autoras, o conceito de gênero privilegia a análise dos processos que
produziram as distinções entre os sujeitos nas sociedades atravessadas por
pressupostos de masculinidade e feminilidades, compreendendo-os como
características de homens e mulheres, e citam Scott (1995, 9.86) que apresenta o
conceito de gênero como “elemento constitutivo das relações sociais baseadas entre
o sexos” e como “uma forma primária de dar significados às relações de poder”
(SCOTT, 1995, p. 86, apud PINAFI et al, p.276-277, 2008). Complementando tais
conceitos, as autoras acrescentam:

“O gênero é imposto e sua construção “é o produto e o processo tanto


da representação quanto da autorrepresentação” (LAURETIS, 1994,
p. 43). O sujeito passa a sentir-se homem ou mulher, como se fosse
uma essência de seu “si” (ou seu self), sem questionamento e sem
consciência de que essa forma de existência é uma produção e,
portanto, pode ser mutável. Esse processo é gestionado, imposto, e
aprisiona os sujeitos em duas únicas categorias de existência.”
PINAFI et al, P. 277, 2008)

Desta feita, depreende-se que não é “apenas” a identidade do sujeito que fica
atrelada a estas identidades de gênero, é sua própria vida, posto que as ficções
reguladoras (justamente para cumprirem seu efeito de regularem) se ramificam em
todos os espaços da vida social, sendo as identidades de gênero atuantes desde o
nascimento à morte, condicionando inclusive trajetórias e expectativas de vida 13.
Neste sentido, determinadas expressões de gênero matam, como apontam os dados
da LGBTfobia:

Somos a nação que mais mata pessoas trans no mundo. De acordo com
a ONG alemã Transgender Europe e seu mapa de monitoramento, foram
546 casos entre 2011 e 2015. Para se ter uma ideia, o segundo lugar, o
México, teve 190 no mesmo período. Quando contamos os assassinatos de
lésbicas, gays e bissexuais nestes últimos quatro anos, o número,
contabilizado pelo Grupo Gay da Bahia, salta para 1.560. Já as denúncias
de violência reportadas ao poder público federal por meio do Disque 100
totalizam 8.099. Os dados vêm de diferentes frentes, e a fragmentação das

13
Cf.: CFESS. CFESS Manifesta – Dia Mundial do Orgulho LGBT. Brasília, 28 jun.2012. Disponível
em http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta2012_orgulhoLGBT_site.pdf. Acessado em 14
set.2016.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

informações é um dos principais problemas enfrentados por uma sociedade


que precisa urgentemente de políticas públicas que eduquem os cidadãos
sobre a diversidade. (grifo nosso).

Essa “rede de normalidade” (e de heteronormatividade) amarra as pessoas a


arranjos classificatórios de gênero que tem consequências punitivas para aqueles/as
que não desempenham adequadamente as funções esperadas. Isso sem dúvida
restringe as possibilidades de humanização e de expressão da diversidade humana.
Como questiona um manifesto do CFESS: “até quando o determinismo biológico
deve permanecer enclausurando vidas, em nome de uma construção sócio-histórica
binária, que ora afirma o masculino, ora afirma o feminino como possibilidades
excludentes?”3 (grifo nosso).

Com base na obra de Judith Butler, Reis (2009) defende que as


características, condutas e comportamentos atribuídos como “naturais” aos gêneros
são atos muito mais performativos do que expressivos: trata-se de performance, da
encenação continuamente repetida dos códigos de feminino/ masculino, posto que
não há uma identidade de gênero “verdadeira” ou “essencial” a ser revelada.

Afinal de contas, as tradicionais concepções essencialistas e naturalizantes,


ao buscarem a “origem do gênero” não fazem mais que “engessar a produção de
diferenças” (REIS, 2009, p.65) e, portanto, restringir as potencialidades e
diversidades humanas. Nas palavras de Reis: “a identidade de gênero, ou a
identidade sexual, não é, portanto, uma categoria fixa e fundante, da mesma forma
que o corpo sexuado nada mais é do que um conjunto de fronteiras individuais e
sociais que são politicamente significadas e mantidas” (REIS, 2009, p.80). Como
sintetizado na bela e célebre frase de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher,
torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 13).

Como performance inventada e não natural, enquanto criação humana, as


identidades de gênero tal como foram produzidas e reproduzidas, podem ser
revistas, deslocadas, subvertidas, reconfiguradas e reposicionadas, com a
possibilidade de formarem outras performances, dissonantes e desnaturalizadas.
Em que pese a força do instituído, são perceptíveis pequenos avanços no exercício
destes papéis de gênero, em que novas relações de poder estão sendo formadas,
pois as normas não param de se movimentar.

161
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A possibilidade dessas subversões abre fissuras, brechas e caminhos para


pensar criticamente as ficções reguladoras dos corpos sexuados e generizados. E,
concebendo o poder como algo que “não pode ser retirado nem recusado, mas
somente deslocado” (REIS, 2009, p. 84), as identidades profissionais também
podem ser deslocadas, na busca incessante por linhas de fuga dentro das malhas
do poder. Antes conservadoras, as identidades profissionais podem ser
ressignificadas e subvertidas, imprimindo outro caráter e direção às práticas
profissionais de assistentes sociais e psicólogos/as.

162
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Nesta esteira acerca dos papéis sociais, discutiu-se também sobre a falta de
clareza dos profissionais do Serviço Social e da Psicologia concernentes as suas
funções específicas, bem como a incompreensão da sociedade sobre as atribuições
dessas categorias. Esse desconhecimento resulta em estereótipos e incertezas nos
locais em que esses profissionais atuam, tendo como consequência a atribuição de
tarefas que não são de competência dessas áreas do conhecimento.

No entanto, considerando a diversidade de locais em que esses profissionais


atuam, comentou-se que não há como se chegar a uma resposta absoluta e restrita
das atribuições dessas ocupações, visto que na verdade, não há uma especificidade
estanque do exercício profissional. Essa ausência de especificidade pode inclusive
abrir a possibilidade da construção de uma proposta de trabalho de acordo com a
situação, visto que não há uma rigidez na construção histórica dessas profissões.

Nesse sentido, a prática profissional no contexto das varas de família pode


contribuir para construir contextos, linhas de fuga para essas normas, considerando
que são ficções que não correspondem à realidade. A realidade pode ser mais bem
explicada pela diversidade humana, possuidora de um potencial imenso e multiforme
para se expressar. A atuação em disputas de guarda na área de família demonstra
que as pessoas, não raras vezes, ficam presas nessas ficções.

Sendo assim, a atuação de assistentes sociais e psicólogos/as no TJSP pode


ser importante para que os sujeitos encontrem espaços de reflexão das identidades
de gênero, a fim de reconhecer identidades não hegemônicas e pensar
conjugalidades que subvertam o modelo dominante de família. Pois, ainda que sob
outras denominações e permeada por outras questões, diversidade sexual e de
gênero também são demandas para estes profissionais. Adensando, enfim a luta
“por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e
totalmente livres!” (como já ensinou Rosa Luxemburgo).

163
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira,
1980.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças; AYRES, Kygia Santa Maria; NASCIMENTO, Maria
Livia. Construindo uma psicologia no Judiciário. IN: PIVETES: Encontros entre a
Psicologia e o Judiciário, 2008, Curitiba: Juruá, 2013.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo
Horizonte, 2000.
MIOTO, R.C.; CAMPOS, M.S.; CARLOTO, C.M. (Orgs.). Familismo: direitos e
cidadania – contradições da política social. São Paulo: Cortez, 2015.
PINAFI, Tânia; PERES, Wiliam Siqueira; TOLEDO, Lívia Gonsalves; SANTOS,
Cíntia Helena. Tecnologias de gênero e lógicas de aprisionamento. Revista Bagoas.
N.06. 2011. P. 267-282
REIS, Érica Figueiredo. Varas de família: um encontro entre Psicologia e Direito.
São Paulo: Juruá, 2009.
SANTOS, Marcia Regina Ribeiro dos; COSTA, Liana Fortunato. Campo psicossocial
e jurídico: relações de poder nas decisões de conflitos familiares. Estudos de
Psicologia, Campinas, 27 (4), out./dez., 2010, p. 553-561.
SARAIVA, José Eduardo Menescal. É possível re-situar a prática Psi no Judiciário?
In: COIMBRA, Cecilia Maria Bouças. PIVETES: Encontros entre a Psicologia e o
Judiciário, 2008, Curitiba: Juruá, 2013.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O SERVIÇO SOCIAL NO JUDICIÁRIO: A ELABORAÇÃO DO


ESTUDO SOCIAL À LUZ DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO
PROFISSIONAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL

“ESTUDO SOCIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2016

165
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COORDENADORES

Carlos Henrique de Francisco – Assistente Social Judiciário – Foro das Varas


Especiais
João Carlos Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itanhaém

AUTORES

Adélia Pedrina de Campos Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Votorantim

Alana Beatriz Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva

Ana Rita Pavão – Assistente Social Judiciário – Foro Regional I Santana

Angelita Luiza Covre – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos

Aparecida Regina Signori Dantas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa


Fé do Sul

Camila Renata Ognibeni Migliorini – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Estrela D’Oeste

Daniele Luzia Nardi Sumaio – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ouroeste

Fabiane Cristina Vieira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Piracicaba

Fernanda Tonus de Melo Furtado de Mendonça – Assistente Social Judiciário –


Comarca de Brodowski

Liliane Martins do Vale – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes

Mariana de Almeida Pecci Maddalena – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Guarujá

Marilza Elorza Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Andradina

166
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Marisa Tiemi Akinaga – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

Patrícia Silva dos Santos – Assistente Social Judiciário – FR VII - Itaquera

Poliana Maria Albrechet Machado – Assistente Social Judiciário – FR V – São Miguel


Paulista

Priscila de Almeida Prado – Assistente Social Judiciário – FR III - Jabaquara

Quesia Gama Cruz Barbosa – Assistente Social Judiciário – FR VII - Itaquera

Sandra Sueli Catarina David – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica


da Serra

Terezinha da Costa Barros de Sousa – Assistente Social Judiciário – FR VII -


Itaquera

Thamara Gloria de Almeida Borges – Assistente Social Judiciário – FR VII - Itaquera

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A ética envolve sempre um ato de religação consigo mesmo, com os outros,


com a comunidade de destino, com a humanidade, com a história, com o
cosmo. Assim, a ética mergulha na incerteza do mundo, da vida, dos
grandes e minúsculos atos. O humano, simultaneamente, sábio e louco vive
de acertos e erros, de sucessos e insucessos, de avanços e retrocessos, de
vida e morte em pequenos goles e abissais. Nesse sentido, julgamentos
éticos devem ser postos entre parênteses.

(BARBOSA, VALE, CARDOSO E SANTOS, 2015, pg. 05, apud KANT.)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe refletir sobre a Ética do Serviço Social e a


inserção deste no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Sugere também
analisar os desafios que permeiam o cotidiano profissional quando se pensa no
desenvolvimento de uma práxis pautada no compromisso social voltado à
consolidação do seu projeto ético político profissional. Nesse aspecto, busca
vislumbrar obstáculos e possibilidades institucionais que se apresentam
cotidianamente no exercício deste projeto a partir da apreensão crítica que se impõe
frente às demandas do tempo presente.

Ao se pensar no Serviço Social e nas inúmeras expressões da questão social


presentes na contemporaneidade, é importante refletir sobre o processo evolutivo da
profissão e a sua inter-relação com as transformações ocorridas na sociedade pós-
industrial, percurso este compreendido e apreendido sob a luz de um movimento
histórico-político desencadeador de mudanças significativas.

Em busca de melhor entendimento, parece importante voltar o foco para a


efervescência dos movimentos sociais surgidos após o final da 1ª Guerra Mundial,
mais notadamente na Europa, a partir do movimento operário e do fortalecimento de
um ideário socialista que desvelaria novas demandas sociais, latentes naquele
momento de surgimento e expansão das escolas de Serviço Social naquele
continente. Nesta perspectiva, Iamamoto (2005, p. 166) aponta que:

168
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O Tratado de Versailles procura estatuir internacionalmente uma nova


política social mais compreensiva relativamente à classe operária. É
também momento em que surgem e se multiplicam na Europa as escolas
de Serviço Social. No plano interno, como foi visto, os grandes movimentos
operários de 1917 a 1921 tornaram patente para a sociedade a existência
da “questão social” e da necessidade de procurar soluções para resolvê-la,
senão minorá-la.

No Brasil essa movimentação se traduz pelo surgimento de um novo perfil


interventivo nas instituições assistenciais de São Paulo e do Rio de Janeiro a partir
de 1920, com clara influência do pensamento católico, em discurso que sugere
ações além da mera caridade, quando igreja, burguesia e Estado criam mecanismos
de controle social dentro de

uma perspectiva embrionária de assistência preventiva, de apostolado


social, atender e atenuar determinadas sequelas do desenvolvimento
capitalista, principalmente no que se refere a menores e mulheres.
(IAMAMOTO, 2004, p.166)

A institucionalização do Serviço Social como profissão ocorre num contexto


sócio-político e econômico caracterizado pela contraditória relação entre o capital e
o trabalho, pela luta de classes sociais em contraponto à consolidação do
capitalismo monopolista. Iamamoto (2004, p. 111). assinala que o exercício
profissional do Assistente Social

se institucionaliza dentro da divisão capitalista do trabalho, como partícipe


da implementação de políticas sociais específicas levadas a efeito por
organismos públicos e privados, inscritos no esforço de legitimação do
poder de grupos e frações de classes dominantes que controlam ou têm
acesso ao aparato estatal

Se por um lado a demanda desses profissionais expressa a necessidade de


intervenção frente às tensões sociais desencadeadas pelo desenvolvimento social,
por outro desnuda as mazelas crescentes em decorrência das diferenças sociais e
da pobreza de significativa parcela da população. Nesse contexto, o assistente
social se constitui enquanto agente institucional, cuja atuação se interpõe entre os
serviços prestados à população e o atendimento aos interesses institucionais. Um
profissional chamado a atuar no campo social, em aspectos particulares da situação
169
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de vida da classe trabalhadora, a intervir como “fiscalizador da pobreza14”,


centralizando as informações relativas à saúde, moradia, educação, relações
familiares, infraestrutura urbana, dentre outras, utilizando-se de instrumentais de
controle social, mantendo uma postura de neutralidade frente ao caráter educativo
dos programas implementados em conformidade aos padrões socioinstitucionais
dominantes.

O Serviço Social é uma profissão que se estruturou persistentemente, ao


longo do século, nos movimentos e nos debates da sociedade, de forma tal que sua
particularidade terminou sempre refletindo, em suas representações e em suas
ações, os movimentos da prática social no mercado de trabalho.

O Serviço Social, implantado no Judiciário Paulista,

vem construindo e alargando os espaços de trabalho no interior da


instituição, ao longo dessas últimas décadas, em razão, sobretudo da
necessidade de intervenção, cada vez mais premente, em situações
judiciais e junto aos servidores. Estas se apresentam, na maioria das vezes,
enquanto expressões concretas da questão social mais ampla que gera
desigualdades e falta de acesso a direitos sociais fundamentais. Assim, os
objetivos profissionais no âmbito do Judiciário e as atividades que os
assistentes sociais implementam se põem estreitamente vinculados aos
cidadãos envolvidos, em especial, em ações judiciais. (FÁVERO; MELÃO;
JORGE, 2005, p. 102).

1. A INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NO JUDICIÁRIO

De acordo com Faria (2010), o Sistema Judiciário, no Brasil, começa a ganhar


corpo no período colonial, por volta de 1532, quando o estabelecimento do sistema
de capitanias hereditárias, doadas aos fidalgos portugueses, delegava a estes
também, o privilégio de exercer a justiça em seus limites territoriais. Alapanian
(2008, p. 99) traz importante consideração sobre as características do Poder
Judiciário no Brasil, e destaca que “as particularidades do nosso sistema judiciário
são decorrentes das características próprias da formação do Estado brasileiro, sua
herança colonial e a constituição da sua classe dominante [...] ”.

14
Cf. IAMAMOTO, 2004, pg 113

170
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O que se observa nas leituras sobre o Poder Judiciário neste período é que
sua formação se dava com vistas a atender aos interesses econômicos de Portugal,
o qual, aliado às elites agrárias, buscava garantir a expansão dos lucros via
arrecadação de impostos e tributos, além da formação de uma ordem penal que se
configurasse em impedimento às ameaças diretas à dominação de Portugal. Desta
forma, o Poder Judiciário foi organizado para operar dentro de limites e sob a égide
dos códigos, sistema este que se estruturou tendo como diretriz o modelo português,
desconsiderando as peculiaridades da nação que se formava.

A última Constituição, promulgada em 1988, incumbe ao Judiciário o poder e


o dever de desenvolver todo o Sistema da Justiça no país. Este Poder é
institucionalizado para o julgamento dos interesses e litígios entre os cidadãos
brasileiros, cujo princípio fundamental, é estar a serviço da coletividade na
distribuição da justiça. No âmbito estadual permanece a Justiça Comum, cabendo a
esta a competência residual, ou seja, tudo o que não for competência das Justiças
especializadas ou da Justiça Federal.

Necessário lembrar que o Tribunal de Justiça de São Paulo foi criado no ano
de 1873, com a promulgação da primeira Constituição Federal pós-república, datada
em 24 de Fevereiro de 1891 e da promulgação da Constituição do Estado, ocorrida
em 14 de Julho de 1891, que dispôs sobre as funções judiciais e tem como
característica ser “uma instituição formal, tradicional, conservadora, austera,
hierarquizada e altamente burocratizada.” (VIANA, 2015, p. 26).

O Serviço Social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo existe desde


o ano de 1949, quando da promulgação da lei 560, de 27 de Dezembro de 1949 que
criou o “Serviço de Colocação Familiar”, sendo o primeiro diretor desse serviço o
assistente social José Pinheiro Cortez, o qual permaneceu nesta função de 1950 a
1979.

Esse trabalho só existia na capital e, posteriormente, foram criados novos


serviços dentro do Tribunal de Justiça, destinados a ocupação dos cargos por
assistentes sociais, ampliando o espaço profissional.

Davidovich (1992) ainda traz que

171
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

logo no início da década de 1940 o Serviço Social se apresentava social e


institucionalmente necessário à sociedade brasileira. Neste período o país
contava com seis escolas com formação específica para a área. Como
marco, podemos destacar a Escola de Serviço Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, fundada em 1936.

Sabemos que a dimensão que o Serviço Social adquiriu em ser


institucionalmente necessário à sociedade brasileira se deu em um contexto
histórico em que o sistema capitalista impunha sua dominação e a burguesia
necessitava manter sua condição, de maneira que a profissão passa a ser um veio
para a operacionalização das ações imbuídas da dimensão do controle, da
repressão e do ajustamento aos padrões estabelecidos pela sociedade burguesa.
Nesse sentido, Iamamoto (2004, p. 23) explicita que

A prática institucional do Serviço Social, demandada pela classe


trabalhista e por seus representantes do Estado para intervir junto
aos trabalhadores, é apreendida como uma atividade auxiliar e
subsidiária no exercício do controle social e na difusão da ideologia
dominante.

A intensidade dos diversos acontecimentos ocorridos na sociedade àquela


época, em especial os relacionados com a criança e o adolescente, desencadeia a
realização da 1ª Semana de Estudos sobre Problemas de Menores, promovida pelo
Tribunal de Justiça, Procuradoria Geral de Justiça, Juizado de Menores e Escola de
Serviço Social, em junho de 1948. As propostas do evento foram sendo afirmadas e
consolidadas pelos Assistentes Sociais no sentido de auxiliar a Justiça de Menores
nas ações pré-judiciárias (prevenção), judiciárias propriamente ditas e pós-judiciárias
(acompanhamento dos casos).

Em 1949 observa-se um movimento, ainda que tímido e com caráter


conservador, no sentido de desenvolver uma nova postura diante da problemática
da criança e do adolescente e da necessidade em conhecer sua realidade e
dinâmica social, o que segundo Davidovich (1992, p. 47) representou

uma tomada de consciência sobre os inconvenientes para o menor nos


regimes de internação que magistrados, técnicos e outros interessados na
problemática do menor vinham sentindo e que uma pesquisa realizada sob
os auspícios da então ‘Revista de Serviço Social’ publicada sob a direção
do Padre Sabóia de Medeiros, puseram em evidência. Dois aspectos
fundamentais nessa tomada de consciência: as contra indicações da

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

internação e o fato de que grande maioria dessas internações decorria da


situação de pauperismo, do qual a família era mais vítima do que causa.

A implantação do Serviço Social no Tribunal de Justiça do Estado de São


Paulo foi vinculada ao Juizado de Menores da Capital, mediante a instituição da Lei
nº 560/49, que explicita em seu artigo 6º, parágrafo 5º que: “Na Comarca de São
Paulo o chefe do Serviço, de preferência Assistente Social diplomado por Escola de
Serviço Social, será designado pelo Juiz de Menores.”

A partir deste momento o trabalho desenvolvido pelos Assistentes Sociais


junto do Tribunal de Justiça foi se expandindo, sendo reorganizado em 1957,
quando foram criadas as Seções de Informações e de Serviço Social, logo
conhecido como Serviço Social de Gabinete, com o fim de assessorar o Juiz na
tomada de decisões sobre casos específicos.

Com o redirecionamento dos serviços técnicos e participação dos Assistentes


Sociais, novas funções foram instituídas e alguns profissionais chegaram a assumir
a função de Assistente Social Chefe junto aos departamentos de: Recolhimento
Provisório de Menores; Plantão Permanente; Casa de Plantão; Serviço de Plantão
Permanente; Serviço de Menores Desaparecidos; Serviço de Autorização e
Fiscalização e, ainda, de Assistente Social Diretor do Centro de Observação
Feminino e Centro de Recepção e Triagem.

Pocay (2006, p. 02) destaca que

frente às demandas sociais, esses profissionais, que detinham um saber


específico acerca das relações sociais e familiares e dos problemas sociais
enfrentados pelo Judiciário nas ações, ocuparam cada vez mais os espaços
dentro da estrutura funcional do Tribunal.

De formação generalista, o assistente social passou a ter na Justiça de


Menores um espaço privilegiado de ação.

Cabe mencionar que em 1969 o Decreto-lei nº 158 estendeu as atribuições do


Juiz de Menores a todas as crianças e adolescentes sob sua jurisdição, embora não
fossem delinquentes ou não estivessem em situação de abandono.

173
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em 1979, com a promulgação do segundo Código de Menores Lei nº


6.697/79, o Serviço Social no interior do Poder Judiciário Paulista apresentava-se
consolidado, mesmo que em muitas situações desenvolvendo uma prática de cunho
assistencialista, favorecida pela conjuntura da política do Bem-Estar do Menor, que
tinha como um dos objetivos suprir carências biopsicossociais da infância vulnerável
socialmente.

O Provimento nº 1636, de 15/04/80 do Conselho Superior da Magistratura


regularizou a atuação do Assistente Social junto às Varas de Família e Sucessões,
dando maior legitimação à participação do Serviço Social no interior da instituição.
Alguns anos depois, com a entrada dos Psicólogos no Tribunal de Justiça de São
Paulo, a partir do primeiro concurso público, em 1985, estes profissionais passam a
compor, junto com os assistentes sociais, as equipes multiprofissionais da instituição
judiciária, tornando-se referência para o restante do País.

Por força da Lei Federal n° 8069/90, que implantou o Estatuto da Criança e do


Adolescente, as chamadas equipes técnicas ou interprofissionais (artigos n os 150 e
151) foram qualificando-se, integrando-se e tornando-se obrigatórias em todo o
Brasil.

Ao ser chamado a intervir neste contexto, o Serviço Social, como destaca


Faria (1999)

passa a se inserir em uma instituição que tem como competência a


aplicação das leis, ou seja, a distribuição da justiça o que pressupõe julgar.
Um novo momento, pleno de desafios e sedento por uma reflexão mais
profunda, além da inerente necessidade de dialogar com outras áreas, se
vislumbrava para o Serviço Social, no sentido de novos espaços de atuação
e articulação, com vistas a uma intervenção comprometida e com condição
de trazer à tona, de fato, aspectos que envolvem as questões sociais em
sua totalidade. (apud FÁVERO, p. 166).

Observa-se que a legitimidade e a identidade do Serviço Social junto ao


Poder Judiciário passam a exigir os conhecimentos específicos do Serviço Social,
uma vez que os estudos e as análises dos Assistentes Sociais ganhavam foco de
subsídio às decisões judiciais. Ao ser o Assistente Social solicitado como auxiliar
para fornecer subsídios à ação judicial, considerando o conhecimento teórico-
metodológico da profissão, esta relação se dá em um contexto intermediário entre a
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

população e o magistrado. Esta condição permite caracterizar o Assistente Social,


segundo Fávero (1999) “como um ator complementar", fato este que pode demandar
uma atuação subordinada que apenas trabalhe na linha da reprodução social focada
no controle e na repressão, ou na perspectiva do embate profissional, dada pela
clareza de suas competências e atribuições, que pode lhe permitir atuar com mais
autonomia.

A atuação do Assistente Social junto ao Poder Judiciário se dá a partir das


manifestações da questão social em sua interseção com o Direito e com a Justiça,
requerendo conhecimentos específicos em sua formação. E neste sentido Fávero in
CFESS (2003, p. 33) afirma com propriedade que

O trabalho que o assistente social desenvolve [...], é composto por um


objeto, constituinte e constituído pela realidade social, que aparece via de
regra [sobretudo nas ações que envolvem crianças, adolescente, famílias],
por meio da violência social – ou violência da pobreza; por meio da violência
interpessoal e intrafamiliar, pela negligência, ausência de trabalho ou
trabalho precário, pela ausência ou insuficiência de políticas sociais
universalizantes e redistributivas, situações que muitas vezes são
permeadas por conflito e rompimento de vínculos na esfera familiar. Cabe
destacar ainda que o Serviço Social conquistou, dentro da própria estrutura
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, espaços, por exemplo, o
trabalho que desenvolve no atendimento aos funcionários do Tribunal.

O exercício profissional do assistente social no Poder Judiciário se realiza

numa das instituições básicas do Estado constitucional moderno em cujo


âmbito exerce uma função instrumental (dirimir conflitos), uma função
política (promover o controle social) e uma função simbólica (promover a
socialização das expectativas à interpretação das normas legais).(FARIA,
2010, p.9).

Ainda de acordo com a autora, o Poder Judiciário não ficou imune às


transformações ocorridas no capitalismo, das quais advêm novas formas de
organização econômica (a transnacionalização, a globalização) e novas
configurações do poder.

Essas múltiplas mudanças contribuem para o aprofundamento da exclusão


social e a consequente “judicialização da pobreza” nas suas mais variadas formas. A
ausência ou insuficiência de políticas sociais, redistributivas e universalizantes, por

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

parte do Poder Executivo, justifica a constante busca de soluções para estas


situações no sistema judiciário, última instância para o alcance da efetivação de
direitos.

Diante desse quadro, o Poder Judiciário tem como desafio alargar os limites
de sua jurisdição e também rever suas estruturas organizacionais e seus padrões
funcionais para procurar abrir espaços mais claros para a sua atuação, através da
conquista de uma identidade funcional mais precisa e com maior legitimidade
política. Faria (2001, p. 8) complementa

Em plena fase de reestruturação do capitalismo, esse poder se vê diante de


um cenário novo, incerto, cambiante, no qual o Estado-nação vai perdendo
sua autonomia decisória e o ordenamento jurídico vê comprometida sua
unidade, sua organicidade e seu poder de “programar” comportamentos,
escolhas e decisões [...] O tempo do processo judicial é tempo diferido. O
tempo da economia globalizada é o real, isto é, o tempo da simultaneidade.

Ocorre que na lógica do funcionamento do campo jurídico estão inscritos os


efeitos da apriorização, revelada na língua jurídica que combina elementos da língua
comum com elementos estranhos ao seu sistema, explicitado na linguagem retórica
da impessoalidade e da neutralidade. Estes processos da linguagem jurídica
produzem outros dois efeitos: o efeito da neutralização expresso nas construções
passivas e nas frases impessoais que marcam a “impersonalidade” da norma, na
qual o enunciador torna-se sujeito universal, imparcial e objetivo.

Dentro desta perspectiva, a manifestação dos juízes nos processos tem “o


poder de falar e agir em nome do grupo”, ou seja, de (re)produzir o discurso que é
próprio da corporação, podendo expressar a ideologia dominante através da
linguagem retórica, autônoma, da impessoalidade, da neutralidade e da
universalidade, sendo capaz de produzir efeitos, considerando a função ideo-política
do Direito e a sua dimensão simbólica, de uma ilusão de igualdade de todos perante
a lei.

Observa-se assim que, neste espaço sócio-ocupacional, o Assistente Social


se depara com as mais diversas situações de violação de direitos. Violência social,
muitas vezes pelo abandono do Estado ao negar políticas públicas eficientes,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

violências interpessoais que geram vulnerabilidades, rupturas e ou fragilização de


vínculos, violência pela ausência de perspectivas e de acesso a direitos. Fávero
(2013, p. 521), reflete que

se o profissional trabalha em consonância com a defesa e a garantia de


direitos, ele avançará nessa direção ao possibilitar um espaço de
informação, de diálogo e de escuta desses sujeitos, ao estimular a reflexão
crítica a respeito dos problemas e dilemas que vivenciam, ao agir, em
conjunto com eles, para reconhecer e estabelecer caminhos viáveis para o
acesso a direitos.

Necessário lembrar que o Serviço Social é uma profissão historicamente


construída nos meandros das relações sociais estabelecidas a partir do advento
capitalista, tendo se mantido aliada aos interesses da classe dominante e com uma
ideologia embasada no pensamento cristão neotomista até meados de 1960,
quando é desencadeado o Movimento de Reconceituação profissional e de ruptura
com o conservadorismo. A partir deste momento inicia-se um re-pensar a profissão,
seus objetivos, seu foco, sua atuação, num processo de amadurecimento
transformador de mudanças e de construção de propostas, levando a novas
produções de teorias e um novo posicionamento político da profissão que supõe a
erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação. (CÓDIGO
DE ÉTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL, 1993, p. 22)

2. O ESTUDO SOCIAL E SUA DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA

Partindo do conceito de que “a ética é parte da práxis, ação prática e social


consciente mediada por valores emancipatórios, que visa interferir na realidade
social para objetivá-los” (BARROCO, 2012), impõe-se ao trabalho do Serviço Social
no âmbito do Judiciário a reflexão sobre práticas imediatistas e de reprodução
espontânea da realidade, em contraponto à dimensão ético-política do projeto
profissional expresso pelo Código Ética e a compreensão da complexidade das
expressões da questão social, objeto de avaliação para a elaboração dos Estudos
Sociais e outros instrumentais de uso profissional.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Conforme apontam Braz e Barata (2010), ainda que a prática profissional do/a
assistente social não se constitua como práxis produtiva, efetivando-se no conjunto
das relações sociais, nela se imprime uma determinada direção social por meio de
diversas ações profissionais, balizadas pelo projeto profissional que a norteia. Esse
projeto profissional por sua vez conecta-se a um determinado projeto societário cujo
eixo central vincula-se aos rumos da sociedade como um todo. Ainda com relação a
esta questão os autores pontuam

Não há dúvidas de que o projeto ético-político do Serviço Social brasileiro


está vinculado a um projeto de transformação da sociedade. Essa
vinculação se dá pela própria exigência que a dimensão política da
intervenção profissional põe. Ao atuarmos no movimento contraditório das
classes, acabamos por imprimir uma direção social às nossas ações
profissionais que favorecem a um ou a outro projeto societário. Nas diversas
e variadas ações que efetuamos [...] das ações mais simples às
intervenções mais complexas do cotidiano profissional, nelas mesmas,
embutimos determinada direção social entrelaçada por uma valoração ética
específica. (BRAZ e BARATA, 2009, p. 5).

Importante destacar que desde o final dos anos de 1970, o Serviço Social
brasileiro vem construindo este projeto profissional comprometido com os interesses
das classes trabalhadoras e como afirmam Braz e Barata (2009, p. 12),

A chegada dos princípios e ideias do Movimento de Reconceituação


deflagrado nos diversos países latino-americanos somado à voga do
processo de redemocratização da sociedade brasileira formaram o chão
histórico para a transição para um Serviço Social renovado, através de um
processo de ruptura teórica, política (inicialmente mais político-ideológica do
que teórico filosófica) com quadrantes do tradicionalismo que imperavam
entre nós.

Frisa-se que nosso projeto ético-político é bem claro e explícito quanto aos
seus compromissos:
tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor ético central
– a liberdade concebida historicamente, como possibilidade de escolher
entre alternativas concretas; daí um compromisso com a autonomia, a
emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais.
Consequentemente, o projeto profissional vincula-se a um projeto societário
que propõe a construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou
exploração de classe, etnia e gênero. (NETTO, 1999, p. 104).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Conforme já apontado, o Serviço Social tem na questão social o elemento


central de sua intervenção, a qual se particulariza no cotidiano profissional de
variadas formas. Cumpre esclarecer que esta surge no bojo do capitalismo e
expressa a contradição básica existente nesta forma de sociabilidade, ou seja, a
relação capital X trabalho, refletida na socialização da produção e apropriação
privada dos meios de produção. Vale dizer que as políticas sociais emergiram como
resposta do Estado para o enfrentamento das expressões da questão social,
pressionado pelo movimento da classe operária, que reivindicava melhores
condições de vida frente ao processo de industrialização e urbanização ocorrido à
época.

Para além dos elementos constitutivos da realidade social na qual os sujeitos


encontram-se envolvidos, o cotidiano profissional do assistente social é composto
ainda pelos instrumentos dos quais ele lança mão para o exercício do seu trabalho,
e pela atividade do trabalho em si, a qual é norteada por uma finalidade, isto é, o
trabalho realizado comporta um conteúdo e é guiado por uma intencionalidade, com
vistas a um resultado, “uma direção que não é neutra, não é a-histórica, é por outro
lado, condicionada pela visão de mundo, pelos valores, crenças, hábitos,
fundamentos teóricos, princípios éticos que constroem o agir profissional.” (CFESS,
2011).

O estudo social se apresenta, atualmente, como suporte fundamental à


aplicação de medidas judiciais dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente,
Lei Maria da Penha, Estatuto do Idoso, Estatuto da Pessoa com Deficiência e na
legislação civil referente à família. A solicitação, via de regra, se dá diretamente a
assistentes sociais servidores do Poder Judiciário ou a assistentes sociais
nomeados como peritos, ou por meio de profissionais que atuam em organizações
que têm seu objeto de trabalho de alguma forma vinculado à instituição judiciária.

Observa-se que para o desenvolvimento deste trabalho, geralmente o


assistente social estuda a situação, realiza uma avaliação, emite um parecer, por
meio do qual muitas vezes aponta medidas sociais e legais que poderão ser
tomadas.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Assim, é na relação entre estrutura, conjuntura e vivência cotidiana que se


expressa o trabalho do Assistente Social. Neste contexto é preciso atentar-se ao
entrelaçamento do profissional com as demandas típicas da Instituição, como a forte
presença da reprodução do sistema, a falta de crítica sobre a realidade expressada,
o imediatismo das ações, o distanciamento na troca de conhecimentos e o senso
comum, pois

Dadas as peculiaridades das demandas atendidas pelo Serviço social, a


herança conservadora da profissão e a influência da ideologia dominante na
vida cotidiana, o assistente social não está imune aos apelos moralistas e
preconceituosos que rondam o imaginário social. (BARROCO, 2012, p. 45).

Sendo assim, a prática profissional do/a assistente social no âmbito judiciário,


pelas próprias características institucionais se coloca, então, como um desafio para
a liberdade e autonomia, uma vez que é o Estado intervindo na vida desses sujeitos.
Isso implica em relações verticais de poder-saber, tanto na relação
instituição/profissional, quanto na relação profissional/usuário; e

transpor essa relação para o plano horizontal, por meio de reconhecimento


do usuário como sujeito histórico-social, possuidor de direitos, observando
os princípios éticos fundamentais da profissão [...] é o primeiro e constante
passo a ser dado para a efetivação de um trabalho com direção social
comprometida com o direito à cidadania, à democracia e à justiça social.
(FÁVERO, 2012, p. 171).

Sobre isso, a elaboração do Estudo Social, recorrente instrumento da prática


profissional, tem o compromisso social com a defesa intransigente dos direitos. Sua
construção referencia-se em uma análise comprometida com as transformações
societárias e com suas implicações no contexto de vida da população. É preciso
considerar “a totalidade dos sujeitos, sua inserção em uma sociedade que é real e
se configura de maneira objetiva, com rebatimentos objetivos.” (BERBERIAN, 2013,
p.50).

Seguindo esta linha de análise, compreendemos que a elaboração do estudo


social deve contemplar o sujeito (singular) inserido na universalidade mais ampla em
que vive. Os sujeitos estão inseridos em uma coletividade e “convivem e sofrem os
condicionantes e determinações da realidade local, conjuntural e mais ampla que os

180
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

cerca.” (FÁVERO, 2011, p. 29). O estudo social que subsidia decisões judiciais
contempla os dados da realidade social do sujeito, e, portanto, devem ser analisados
e interpretados criticamente, assumindo o compromisso com a ampliação e garantia
de direitos e não como prática cerceadora, disciplinadora e moralizadora. É preciso
ter uma visão ampliada do objeto de intervenção, considerando que a questão social
perpassa o cotidiano dos sujeitos em todas as suas dimensões, ou seja, uma análise
crítica que supere a realidade imediata.

A construção do estudo deve contemplar o indivíduo social e a realidade que


condiciona sua história de vida, conforme aponta Fávero, analisando as influências
familiares, os condicionantes culturais, as determinações sociais relacionadas ao
mundo do trabalho, às políticas sociais e ao território onde vive (FÁVERO, 2009, P.
628).

Neste contexto, o estudo deve desvelar as condições existentes que


interferem na capacidade dos sujeitos de exercerem suas responsabilidades, pois
“famílias que vivem e convivem em condições limites de vida e sobrevivência, muitas
vezes perpassadas pelo uso/abuso de drogas, desemprego/subemprego, exposição
às diversas manifestações de violência, fragilidade dos vínculos familiares, entre
outros desdobramentos da questão social” (BERBERIAN, 2013, p. 50), são
esquecidas pelo Estado que, em tese, deveria atuar como provedor de um sistema
de garantia de direitos.

O estudo social possui 03 dimensões: teórico-metodológica; ético-política e


técnico-operativa, que são acionadas pelo profissional a partir da identificação do
objeto de estudo (o que estudar) e dos objetivos e finalidades de seu conhecimento
(por que e para que fazer), partindo para sua operacionalização (como fazer).

Ao realizar a leitura dos autos processuais e identificar a demanda, o


profissional define quais os instrumentais técnico-operativos irá utilizar para a
construção do estudo (visita domiciliar, entrevista social nas dependências do
Fórum, articulação com a rede intersetorial de proteção social, observação
participante e pesquisa bibliográfica, entre outros). Depois disso, ainda é preciso
discernir quais informações, colhidas no estudo, devem constar do registro (relatório

181
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

social, laudo social), visto que a produção escrita irá materializar e sintetizar uma
aproximação da realidade apreendida.

A leitura dos autos é o primeiro contato do/a profissional com a situação e não
é apenas uma leitura: é um estudo aprofundado dos documentos que compõem o
processo judicial e que vai balizar a escolha da metodologia a ser adotada para o
prosseguimento do estudo social, lembrando que os instrumentais utilizados pelo/a
assistente social são de livre escolha do/a profissional, como aponta o Art. 2º do
Código de Ética do Assistente Social: “Constituem direitos do/a assistente social: i-
liberdade na realização de seus estudos e pesquisas, resguardados os direitos de
participação de indivíduos e grupos envolvidos em seus trabalhos.” (BRASIL, 2012,
p.26).

A entrevista, do ponto de vista ético, deve iniciar-se com a apresentação do


profissional e a informação dos objetivos do trabalho que está sendo realizado. De
acordo com sua finalidade, este instrumento visa abordar aspectos referentes à
cultura, ao processo de socialização, à história e aos projetos de vida. Embora haja
diferentes situações que o/a assistente social judiciário encontre em seu cotidiano
profissional dentro do TJSP, há informações socioeconômicas e familiares que
devem ser conhecidas, que vão subsidiar o desvelamento da realidade social
estudada, apresentando os sujeitos e suas condições sociais, seu acesso ou não à
educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à alimentação; sobre seu território e o
acesso a bens e serviços sociais e culturais; suas relações familiares, seus valores
(FÁVERO, 2009, p.633).

Já a visita domiciliar constitui-se como mais um instrumento de aproximação


de aspectos da realidade dos sujeitos, da observação de sua inserção no território,
da percepção do cotidiano das relações, que muitas vezes não são apreendidos no
ambiente impessoal dos fóruns. Não deve ser, portanto, uma conduta de fiscalização
ou de invasão da privacidade da vida desses sujeitos.

A articulação com a rede, seja ela familiar ou intersetorial, se faz presente no


cotidiano do assistente social quando é identificada a necessidade do acesso a
direitos, recursos e cuidados pelos sujeitos atendidos. Da mesma maneira, os
encaminhamentos devem ser realizados de maneira ética, uma vez que se trata da

182
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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relação do assistente social com outros profissionais. Além disso, é preciso atentar
para o respeito às informações dos sujeitos que circulam dentro da rede e até
mesmo para que os sujeitos não tenham que repetidamente contar sobre a situação
que estão vivendo, nos diversos serviços em que são atendidos.

As informações coletadas durante a realização do estudo social pelos


instrumentais citados acima serão materializadas sob a forma de relatórios, laudos e
informes. Cabe ao/a assistente social discernir quais destas informações constarão
no documento, garantido o sigilo profissional. Os documentos produzidos pelo/a
profissional de Serviço Social devem apresentar aos/as seus/suas interlocutores/as
(operadores do direito, usuários do sistema sócio jurídico, outros profissionais) uma
aproximação da realidade social apreendida com o estudo social. Utilizando uma
linguagem técnica, mas compreensível, o/a assistente social irá materializar suas
percepções sobre a situação estudada em suas correlações com a totalidade.

O relatório/laudo social é produção de conhecimento e não apenas


transcrição de relatos. O/a assistente social deve lançar mão de um arcabouço
disponível para a construção do conhecimento a respeito da situação estudada. Tal
arcabouço ancora-se à matriz teórico-metodológica a qual encontra referências na
crítica radical à ordem social vigente - a da sociedade do capital - que produz e
reproduz a miséria ao mesmo tempo em que exibe uma produção monumental de
riquezas, sendo tais referências, elemento constitutivo do projeto ético-político do
Serviço Social.

Daí a importância do constante aprimoramento intelectual e a pertinente


cautela para que o cotidiano não se torne massivo e robótico. Além disso, é
necessário tomar o devido cuidado para que o senso comum, bem como juízos de
valor, não estejam presentes na construção dos documentos, evitando assim
prejulgamentos e re-vitimização da população atendida, trabalhando sempre na
direção da garantia e efetivação de direitos.

Durante o corrente ano, a assistente social judiciário Rita de Cássia Oliveira


proferiu uma palestra para os participantes deste grupo de estudos com o tema
“Registros em Serviço Social: estudo social, laudos, relatórios e pareceres”. Rita fez
a diferenciação entre laudo e relatório social, na qual referiu que o laudo é mais

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

comumente usado no judiciário como elemento de prova para subsidiar decisões


judiciais. O relatório, por sua vez, é a descrição e interpretação de uma determinada
situação/expressão da questão social, cujo nível de detalhamento vai depender da
finalidade do estudo. Já o parecer social é uma exposição/ manifestação sucinta da
análise feita, apresentada de maneira conclusiva e/ou indicativa. Com relação ao
relatório social, a palestrante trouxe como referência a autora Eunice Fávero, que
nos diz que este

É o documento no qual constam o registro do objeto de estudo, a


identificação dos sujeitos envolvidos e um breve histórico da situação, a
finalidade à qual se destina, os procedimentos utilizados, os aspectos
significativos levantados na entrevista e a análise da situação. (FÁVERO,
2009, p. 632).

Complementando a compreensão acerca do laudo social, Fávero considera


que, por ser permeado de interpretações e análises, ele deve apresentar um parecer
conclusivo, do ponto de vista do Serviço Social, a respeito da situação estudada: “o
parecer social sintetiza a situação, apresenta uma breve análise e aponta
conclusões ou indicativo de alternativas, que irão expressar o posicionamento
profissional frente ao objeto de estudo.” (FÁVERO, 2009, p.633).

Finalmente, uma última consideração importante a ser feita é sobre o uso dos
relatórios e laudos sociais pelos operadores do direito. O Comunicado nº 651/2014,
da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

orienta aos magistrados de Primeira Instância Corregedores Permanentes


dos Setores Técnicos e os com competência criminal que a atuação dos
psicólogos e assistentes sociais judiciários nos inquéritos e processos que
tenham por objeto delitos previstos na Lei Maria da Penha deve se restringir
a acompanhamentos e encaminhamentos previstos no art. 30 da Lei nº
11.340/2006. Outrossim, recomenda que não se determine aos referidos
técnicos do juízo a produção de nenhum tipo de prova quer nos autos do
inquérito policial, quer nos do processo penal.

Nesse sentido, cabe esclarecer que o estudo social não deve constituir-se
como produção de provas para apuração da veracidade dos fatos ou criminalização
de sujeitos: é instrumento de desvelamento da realidade social em que sujeitos de
direitos estão inseridos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Cabe finalizar trazendo o apontamento elaborado por Fávero que nos diz

Na comunicação via laudos, relatórios e pareceres estabelecida no contexto


sociojurídico, a “intervenção” tem continuidade de forma indireta, ou seja, a
mensagem enunciada nesses documentos, subsidiará decisões a respeito
da vida de um indivíduo ou grupo social; tais documentos irão intermediar o
“diálogo” entre a realidade do usuário e a dos demais profissionais que
terão acesso a eles, como juiz promotor, psicólogo, defensor, etc.
(FÁVERO, 2009, p. 31)

No espaço do judiciário, o assistente social geralmente é subordinado


administrativamente a um juiz de direito - ator privilegiado nesta instituição, na
medida em que sua ação concretiza imediatamente a ação institucional. Esta
relação de subordinação, não raras vezes, determina relações de subalternidade,
em razão do autoritarismo muitas vezes presente no meio institucional. Todavia, o
assistente social é autônomo no exercício de suas funções, o que se legitima,
fundamentalmente, pela competência teórico-metodológica e ético-política por meio
da qual executa seu trabalho. Autonomia garantida legalmente, com base no Código
de Ética Profissional, na lei que regulamenta a profissão, no próprio ECA, na
legislação civil.

A imersão num cotidiano tenso, complexo e, via de regra, autoritário, torna


permanente o desafio dos profissionais no que se refere ao exercício da liberdade e
da criatividade. Torna permanente o desafio em fazer com que esse campo de
poderes do qual faz parte, se mantenha direcionado para a garantia de direitos
humanos e sociais, para a efetiva proteção às crianças, adolescentes e famílias, e
não para o disciplinamento e a regulação social, de cunho coercitivo e moralizador.

A dimensão mais ampla deste desafio é resistir à tensão e à alienação que o


rotineiro ambiente de trabalho propicia e fazer das ações singulares, operadas no
cotidiano, espaços de garantia e de ampliação de direitos, de denúncia da situação

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de espoliação social vivida por muitos dos sujeitos presentes nas ações judiciais,
numa articulação com lutas coletivas, negando o caráter autoritário, controlador e
disciplinador que as práticas judiciárias historicamente construíram.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

ALAPANIAN, Sílvia. Serviço Social e poder judiciário: reflexões sobre o direito e o


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BARROCO, Maria Lúcia Silva; TERRA, Silvia Helena. Código de Ética do/a
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187
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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188
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFLEXÕES ACERCA DAS FALSAS ACUSAÇÕES DE


ABUSO SEXUAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
189
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORA

Elisângela Sastre – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba

AUTORAS

Cristiane Andrade Garcia – Assistente Social Judiciário – Comarca da Lapa


Deborah Souza Leite – Assistente Social Judiciário – Fórum de São Miguel Paulista
Erica Luciane Voltani – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itanhaém
Maria José Graciliano da Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – Fórum
Regional Nossa Senhora do Ó
Marilda Campos Simões Brisola – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
José dos Campos
Noemia de Oliveira Carvalho Sé – Assistente Social Judiciário – Fórum Central
Suzana Pilar Barreiro Jamardo – Assistente Social Judiciário – Fórum de Itaquera
Tainah Rosa Resplande – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jacareí

190
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O grupo de estudos com o tema “Família” teve como norteador para as


discussões, no ano de 2016, o tema Alienação Parental, com viés nas falsas
acusações de abuso sexual, contextualizando com as relações familiares
fragilizadas; propondo uma reflexão para conhecermos a realidade social das
famílias envolvidas, as mudanças que têm ocorrido em sua organização e como isto
tem afetado as relações; as dificuldades que as pessoas enfrentam para lidar com a
separação conjugal, sem envolver os filhos, principalmente quando existem
processos judiciais.
Utilizamos, para tanto, especialmente, o conteúdo apresentado no livro
“Falsas Acusações de Abuso Sexual e a Implantação de Falsas Memórias”, de
autoria de Andréia Calçada, buscando fazer paralelo com os casos atendidos no
cotidiano profissional de Assistentes Sociais e Psicólogos das diversas Comarcas
representadas no grupo.

ALIENAÇÃO PARENTAL E FALSAS ACUSAÇÕES DE ABUSO


SEXUAL

A alienação parental configura-se como um conjunto de sintomas que são


caracterizados por leve, moderado e severo.

As primeiras análises sobre este fenômeno se iniciaram em meados dos


anos 1980 nos Estados Unidos, tendo como precursor o psiquiatra norte
americano, Richard Gardner, que denominou como Síndrome da Alienação
Parental – SAP, a influência que um dos genitores, mais especificamente da
figura feminina/mãe, exerce sobre os filhos para que estes tenham uma
visão negativa sobre o pai, processo este que se iniciava quase que
exclusivamente após a separação, em geral, litigiosa em que além da
disputa pela guarda da criança também estavam no rol de disputas a
partilha de bens. (Texto Alienação Parental, Revista Digital Lusobrasileira).

191
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, que dispõe sobre a alienação


parental, se refere a atos e não síndrome, conforme Artigo 2º:

Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação


psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a
sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie o genitor ou que
cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

A referida lei também dá exemplos de atos pelos quais podemos detectar a


ocorrência de alienação parental:

Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além


dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados
diretamente ou com auxílio de terceiros:

I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício


da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;

III - dificultar contato da criança ou adolescente com genitor;

IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;

V - omitir deliberadamente ao genitor informações pessoais relevantes


sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações
de endereço;

VI - apresentar falsa denúncia contra o genitor, contra familiares deste ou


contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou
adolescente;

VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a


dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com
familiares deste ou com avós.

O Artigo 3º estabelece que a prática dos atos relacionados no parágrafo único


do artigo 2º fere os direitos da criança e do adolescente à convivência familiar,
previstos no Estatuto da Criança e Adolescente (Lei nº 8.069/90).

Na prática do trabalho no Judiciário, observa-se que existem poucos


processos cuja natureza da ação seja especificamente de alienação parental. Em
sua maioria, esta questão encontra-se diluída nos processos de Guarda e
Regulamentação de Visitas.
Acerca das falsas denúncias de abuso sexual, refletimos sobre as
repercussões dos processos litigiosos, não apenas às partes integrantes do litígio
192
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

(ex-casal), mas também se propagando aos demais membros do núcleo familiar.


Segundo Mônica Guazzelli (p. 2), “quando o vínculo conjugal se desfaz, todos os
membros da família precisarão se adaptar a uma nova condição familiar, e terão um
novo formato e esquema familiar”. Sobre esse aspecto, destacou-se ainda o litígio
como forma de perpetuar o vínculo, ressaltando assim as dificuldades que certos
adultos têm de separar-se do ex-parceiro.

No período do litígio os vínculos tendem a se perpetuar, dando a possibilidade


da continuidade da relação conjugal sobre os moldes das discórdias e, geralmente,
a parte que encontra dificuldade para aceitar a separação busca a manutenção dos
vínculos através do litígio.

Outro aspecto é que esta disputa está muitas vezes associada à ideia de
posse dos filhos. No que tange a essa questão, Lenita Pacheco Lemos Duarte, em
“A Guarda dos Filhos na Família em Litígio”, constante no texto de Guazzelli (p. 4),
diz que

quando se inicia uma disputa emocional e judicial em torno da guarda,


muitas vezes associada à ideia de posse dos filhos acirram-se os ânimos
entre os ex-cônjuges, que se utilizam de diversos tipos de estratégias para
provarem sua superioridade e poder, [...], dessa forma, oprimem e agridem
os que estão ao seu redor, sem medir os efeitos de sua verbalização, ditos
e ações, principalmente sobre a prole.

Em casos de separação ou dissolução da união estável, é crescente e


expressivo o número de pessoas que procuram a Justiça para garantir seus direitos
em relação à guarda dos filhos, à pensão a eles destinada e ao direito de visitas. Se
a separação for litigiosa, além da disputa quanto à convivência familiar de um dos
genitores e da família extensa com a(s) criança(s) e/ou adolescente(s), muitas vezes
o processo envolve acusações de negligência e abuso sexual.

Neste contexto, com muita frequência, as equipes técnicas do judiciário estão


sendo convocadas para opinar sobre a alienação parental, através de parecer
técnico e perícias.

Ressalta-se que as perícias Social e Psicológica devem buscar a garantia do


direito à convivência familiar, e não especificamente apontar a existência ou não da
alienação parental. Além disso, considera-se que a alienação parental é uma das

193
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

manifestações da questão social, que cada vez mais tem sido judicializada, uma vez
que está diretamente relacionada ao não exercício pleno da convivência familiar.

Nesses casos, faz-se necessário avaliar como os genitores estão lidando com
os filhos, e se o genitor que detém a guarda da criança/adolescente está
proporcionando ou não a convivência familiar com o genitor não detentor da guarda.

Os processos de separação litigiosos são longos e difíceis, causando


sofrimento para todos os envolvidos. Além disso, muitos cônjuges/companheiros não
conseguem aceitar a separação, e passam a usar e manipular a prole como forma
de agredir o antigo cônjuge/companheiro, configurando-se, assim, a alienação
parental.

Guazzelli (p. 4) avalia que:


a partir da ruptura do vínculo que unia o casal, [...] a família deixa de existir
como existia, [...] gerando insegurança e sofrimentos a todos os membros,
todavia quando, além disso, surge a Síndrome de Alienação Parental, o
sofrimento das crianças se torna ainda mais agudo, quando genitor
alienador passa a destruir a imagem do outro perante os filhos.

Por sua vez, Maria Berenice Dias refere que “quando não consegue elaborar
adequadamente o luto da separação, desencadeia um processo de destruição, de
desmoralização, de descrédito do ex-cônjuge” (GUAZELLI, p. 5). Assim, inicia-se
uma série de situações para dificultar os contatos com o genitor não detentor da
guarda para o afastamento natural e o prejuízo na relação parental.

Nesse contexto, a denúncia de abuso sexual ou de maus-tratos poderá ser


implantada falsamente pela simples “razão patológica que advêm da raiva, do ódio,
do desejo de vingança e similares” (GUAZELLI, p. 5), mesmo que para isto a própria
prole seja sacrificada por estar dentro desta zona de conflitos, que diz respeito
exclusivamente à relação conjugal rompida, e não na condição de filhos.

Consideramos que uma das expressões máximas da Alienação Parental seja


a falsa acusação de abuso sexual. Na discussão sobre o “abuso sexual infantil e a
falsa denúncia”, salientamos a análise da autora que muitas vezes o alienador
poderá ser beneficiado com o “ônus da morosidade do processo” e o mais comum
que mesmo o réu não sendo culpado, normalmente, recairá sobre ele.

194
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Discutimos, ainda, que a implantação de falsas memórias na criança poderá


ser espontânea ou sugerida uma situação que não aconteceu. Em seu texto,
Guazzelli (p. 7) expõe que o alienador passa então a narrar à criança atitudes do
outro genitor que jamais aconteceram, ou que aconteceram em modo diverso do
narrado. Ainda sobre o tema de falsas memórias, importa referir que vários
estudiosos têm pesquisado profundamente o assunto e, conclusivamente, afirmam a
possibilidade de memórias serem criadas, referindo inclusive que adultos muitas
vezes apresentam recordações de fatos e situações que nunca lhes aconteceram.

Assim, dificilmente os profissionais avaliadores saberão o que aconteceu


acerca do suposto abuso, acrescentando que alguns advogados muitas vezes
orientam a criança para a avaliação, e alguns assistentes técnicos acabam sendo
tendenciosos para a parte que estão defendendo. Na prática dos atendimentos nas
Varas de Família, algumas vezes se observa que possivelmente a criança/
adolescente é orientada a verbalizar o indicado pelo acusador. Também ocorre que
os acusadores muitas vezes se sentem ofendidos quando avaliados, pois se
posicionam “acima do bem e do mal”.

Pode-se afirmar que a alienação parental é um abuso emocional que pode


repercutir para o resto da vida da criança/ adolescente. Em situações como estas,
quando não há intervenção, a situação acaba sendo perpetuada.

Diferentes medidas são tomadas quando a denúncia formulada é de abuso


sexual, em comparação às medidas tomadas em relação à denúncia de abusos
físicos. Nas denúncias de abuso sexual, por cautela, as visitas podem ser
interrompidas ou monitoradas até que seja provado o contrário.

Na maioria das vezes, não é possível afirmar categoricamente que houve o


abuso. Geralmente, o que temos é a observação de fortes indicativos, ou seja,
temos recursos que nos levam a presumir que a denúncia é verdadeira, mas não
temos como afirmar.

Houve diversos relatos sobre atuações ocorridas em casos relacionados ao


nosso tema, onde geralmente a denúncia do abuso é feita por um dos genitores,
sendo este um tema complexo, já que normalmente a única testemunha é a própria
vítima e temos apenas os relatos da criança.
195
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

O presente trabalho não tem a pretensão de esgotar a discussão acerca dos


temas Alienação Parental/ Falsas denúncias de abuso sexual, ou mesmo apontar
um modelo de atuação em casos desta natureza; configurando-se como um convite
à sua reflexão.

Considerando que o grupo se constituiu majoritariamente de Assistentes


Sociais, a discussão pautou-se mais especificamente sob a perspectiva Social, e na
garantia do direito à convivência familiar e comunitária.

Não podemos deixar de enfatizar que a falsa denúncia é também um abuso,


que a partir do momento que a criança foi exposta a essa situação, submetida a uma
mentira, essa falsa denúncia passa a fazer parte de sua vida e causar prejuízos que
muitas vezes são devastadores. Em destaque que o profissional não pode
desconsiderar que o abuso sexual infantil intrafamiliar pode acontecer independente
de classe social, bem como a possibilidade de haver falsas denúncias, porque
ambos os problemas se fazem presentes e um não exclui o outro.

Nesse sentido, ressaltamos a importância de avaliação profissional


aprofundada, se possível, contatando outras pessoas que conheçam a criança, além
daquelas envolvidas diretamente no processo. Ainda, refletimos sobre os riscos de
uma visão unilateral do guardião, fazendo-se necessária cautela por parte do
profissional na avaliação e elaboração do parecer conclusivo, de modo que o
trabalho seja realizado em um contexto mais amplo.

O profissional possui um limite enquanto avaliador, sendo o abuso sexual


considerado uma das mais graves violências; e o papel do perito é o de apontar os
indícios, não o de afirmar se houve ou não abuso sexual, assim como não podemos
indicar se houve ou não alienação parental, pontuando sobre a importância da
avaliação multidisciplinar.

196
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação


parental.

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memórias. APASE. São Paulo: Ed. Equilíbrio, 2008.

BRASIL. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do


Adolescente).

GUAZELLI, Mônica. Falsa Denúncia de Abuso Sexual. Disponível em:


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ROCHA, Edna Fernandes da. Serviço Social e Alienação Parental: elementos para o
debate. In: Alienação Parental Revista Digital Lusobrasileira. IV Congresso Nacional
II Internacional Alienação Parental. Ribeirão Preto, Brasil. 4, 5 e 6 de junho de 2015.

197
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO PARADIGMA EM


CONSTRUÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL

“JUSTIÇA RESTAURATIVA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2016

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Andrea Svicero – Assistente Social Judiciário – Seção Técnica de Justiça


Restaurativa da Coordenadoria da Infância e Juventude

Silvia Nascimento Penha – Psicóloga Judiciário – Núcleo de Apoio Profissional do


Serviço Social e da Psicologia

AUTORAS

Angélica Cristina de Oliveira Micheletti de Andrade – Assistente Social Judiciário –


Comarca de Itápolis

Carla Pontes Donnamaria – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

Eliene de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mongaguá

Fabiana Maria Dias Aranha – Assistente Social Judiciário – F VEIJ da Capital

Jacqueline Ferreira dos Santos – Psicóloga Judiciário – Comarca de


Pindamonhangaba

Josiane Moraes – Assistente Social Judiciário – F VEIJ da Capital

Leni Coimbra Massei – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

Luciana de Mattos Dias – Psicóloga Judiciário – Comarca de Lucélia

Luciana Maziero Baptistella – Assistente Social Judiciário – Comarca do Guarujá

Luciane Lilian Pereira Salgado – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém

Maria Bernadete Francisco – Assistente Social Judiciário – Comarca Botucatu

Maria Lucia Bianchini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das Artes

Mônica Sofia Zanotto – Psicóloga Judiciário – F VEIJ da Capital

Rubia Carla Ribeiro – Psicóloga Judiciário – F VEIJ da Capital

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Sieyla de Carvalho Pinto da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Peruíbe

Silvia Dominiquini Medeiros Marino – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

Takeko Gushiken – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu

Valeria Pavani da Silva – Assistente Social Judiciário – FD Paulínia

Zilda Rodrigues Nogueira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales

200
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Em 2012 foi criada a Seção Técnica de Justiça Restaurativa da


Coordenadoria da Infância e Juventude do TJSP15, como fruto da necessidade de
mobilizar, apoiar e articular a Justiça Restaurativa junto às Varas da Infância e
Juventude do Estado. Uma das atividades promovidas por esta Seção é o
acompanhamento sistemático dos locais que iniciaram a implantação da Justiça
Restaurativa, com a realização de encontros bimestrais com os profissionais que
atuam nesta área.
No último encontro desse grupo em 2014 surgiu a proposta de inserir a
Justiça Restaurativa entre os temas dos grupos de estudos já existentes na
instituição judiciária através da Escola Judicial dos Servidores, como resposta à
necessidade percebida de aprofundamento dos estudos teóricos e de produção de
conhecimento específico baseado na reflexão sobre as práticas existentes,
legislações vigentes e aspectos próprios do judiciário paulista.
Conforme publicação disponibilizada no DJE de 22 de janeiro de 2016, foram
abertas as inscrições de assistentes sociais e psicólogos judiciários para o Grupo de
Estudos “Justiça Restaurativa”, sendo disponibilizadas 25 vagas.
Ao longo de dez encontros, assistentes sociais e psicólogos judiciários de
treze comarcas iniciaram uma jornada de compreensão conceitual, por meio de
leituras e dinâmicas, a partir das quais também puderam se aproximar de elementos
inerentes ao chamado Processo Circular.
Tal movimento suscitou questionamentos pessoais e profissionais, bem como
o ensejo de um aprofundamento, a partir do que fomos conhecendo, discutindo,
refletindo, debatendo.
Para o ano de 2016, valemo-nos de autores clássicos da Justiça Restaurativa,
como Howard Zehr e Kay Pranis, bem como de textos e publicações que, antes de
tudo, nos situassem sob os umbrais da chamada Cultura de Paz, fonte da qual
emanam, dentre outras abordagens, metodologias e práticas - como por exemplo, a

15
A Seção Técnica de Justiça Restaurativa da Coordenadoria da Infância e Juventude do TJ/SP foi
criada através da Portaria 8656/2012.

201
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

mediação e a conciliação -, também a Justiça Restaurativa, em suas mais diversas


formas de aplicação.
Com a publicação da Resolução 225 do CNJ, em maio do corrente,
entendemos oportuno nos apropriarmos de seu conteúdo e trazê-lo igualmente à
nossa grupal reflexão. Isso nos levou a uma aproximação - sem que contássemos
com tempo hábil para nos aprofundarmos - à publicação subsequente, também do
CNJ, coordenada por Fabio B. da Cruz, denominada “Justiça Restaurativa:
horizontes a partir da Resolução CNJ 225”.
O presente artigo, construído a partir da trajetória deste grupo que, como
dissemos, foi constituído neste ano que se encerra, tem como objetivo geral
sistematizar, ainda que de modo parcial, algo das reflexões que nos acompanharam
enquanto grupo durante nossos encontros.
Não se trata, portanto, de um texto encerrado. Antes, poderíamos fazer uso
da analogia do ‘aperitivo’. Tal como este que, trazendo um gosto bom ao paladar,
leva os comensais a se sentarem à mesa para saborearem e desfrutarem de pratos
diversos, este artigo almeja despertar nos leitores o ‘gosto’ pela temática, e deixar-
se interpelar pelas chispas reflexivas que, em meio a essas linhas, apresentamos.

1. DO QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO NOS REFERIMOS À


JUSTIÇA RESTAURATIVA?

Deparamo-nos cotidianamente com o “espetáculo da violência16” (SOARES,


2011, p. 21), seja em nossa vida privada, seja em nossos espaços de trabalho.
Historicamente, a violência atinge todos os setores da sociedade, sendo um

16
Olhe à sua volta. Leia as manchetes dos jornais. Veja as reportagens na TV. Pare na lanchonete,
na esquina, na fila do cinema, e ouça as conversas. Não é muito diferente das que você ouve em
casa, entre sua mãe e sua tia, entre seu pai e o irmão dele, entre eles e os amigos. Talvez você puxe
esse assunto com colegas, vizinhos e professores. A impressão que a gente tem, circulando pela
cidade – praticamente por qualquer cidade – é que o tema predileto de quase todo mundo é a
violência. A grande maioria dos que morrem vítimas de violência tem entre 15 e 24 anos, ou 15 e 29
anos, são em geral, pobres, do sexo masculino, moram nos bairros menos valorizados e,
frequentemente, são negros. (SOARES, 2011, p. 19)
202
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

fenômeno multideterminado e, como tal, complexo17. Trata-se de um fenômeno


social e cultural, constituído por questões psicossociais, histórico-culturais e
socioeconômicas, resultado de uma sociedade estruturalmente desigual que produz
e reproduz a pobreza, a violência e tantas outras expressões da Questão Social18.
Nesse sentido, há que se pensar criticamente a realidade, construindo estratégias
de enfrentamento que considerem os fenômenos sociais para além de sua mera
aparência. Do contrário, corremos o risco de cair na armadilha do senso comum e
banalizarmos e/ou naturalizarmos nosso olhar para as relações sociais ou mesmo
para nossas intervenções profissionais.

Pensemos sobre a questão da criminalidade, sobretudo em um país


como o Brasil que ocupa o “quarto lugar no ranking mundial de encarceramento”
(SALMASO, 2016, p. 19). Como você acha que os envolvidos em crimes ou atos
infracionais deveriam ser tratados? Pode ser que, como muitas pessoas, você
também seja favorável à “ampliação do poder estatal de punir como a única
proposta viável para debelar os problemas relativos às pessoas – em especial, aos
jovens [adolescentes] – envolvidas em situações de violência e em conflito com a lei”
(ibidem, p. 18).
Para avançarmos no debate sobre este novo paradigma de justiça lhes
convidamos a ler o relato a seguir, extraído do livro “Justiça: pensando alto sobre
violência, crime e castigo”, de Luiz Eduardo Soares:

O sentido de uma história depende do ponto a partir do qual


começamos a contá-la. “[...] O taxista era uma fonte inesgotável. Até que,
finalmente, pescou minha atenção. Parei de contemplar céu, mar, prédios e
bairros históricos, e me concentrei no que ele dizia. E dizia com ênfase, com
uma força verdadeiramente dramática, em um tom que oscilava entre a fúria
da indignação e da delicadeza das emoções sutis. Fui envolvido pelos
sentimentos de meu interlocutor. A história me interessou, como interessaria

17
O termo violência, de natureza polissêmica, é utilizado em muitos contextos sociais. Como exemplo,
podemos pensar que o termo violência pode ser empregado tanto para um homicídio quanto para
maus–tratos emocionais, verbais e psicológicos. Na esfera conjugal manifesta-se com frequência
através dos maus-tratos; ao submeter à mulher a práticas sexuais contra a sua vontade; maus –
tratos físicos, isolamento social; ao proibir o uso de meios de comunicação; o acesso aos cuidados de
saúde; a intimidação. No ambiente profissional observa-se a presença de assédio moral. (REZENDE;
TARTARO; SACRATAMENTO, 2006, p. 96) Disponível em: <
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942006000300009> Acesso em
19 nov. 2016
18
Segundo Iamamoto (1999, p. 27), a Questão Social pode ser definida como: O conjunto das
expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que têm uma raiz comum: a
produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a
apropriação dos seus frutos se mantém privada, monopolizada por uma parte da sociedade.
203
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a qualquer ser humano. E talvez esteja aí uma das chaves do fascínio que a
violência exerce sobre todo mundo, por atração ou repulsa. Ela faz, em nós,
uma ligação direta com nossas emoções mais profundas e primitivas: terror,
amor, ódio, prazer, dor, as seduções do poder, o desamparo da impotência,
a proteção paterna, o cuidado materno, a solidão e o abandono, a
devastação de nossa identidade e da autoestima, a incomunicabilidade, a
indiferença, o desprezo, a solidariedade, o egoísmo mais extremo e o
altruísmo heróico, a generosidade e a compaixão, a afirmação que é vida e
a negação radical, que é morte.
Ele contou o seguinte: um adolescente fez sinal; o ônibus parou. O garoto
entrou. A porta se fechou atrás dele. Havia poucos passageiros: um em pé,
sete ou oito sentados. O jovem sentou-se.
O motorista do ônibus era amigo do taxista, amigo mesmo, quase irmão -
parceiro da vida inteira. Cresceram juntos. Começaram, juntos, a trabalhar.
Casaram-se na mesma época. As esposas tiveram o primeiro filho mais ou
menos no mesmo período. Eram quase uma família só.
Subitamente, pondo-se em pé, o adolescente anunciou o assalto. Daí em
diante, as informações não são claras. O que se sabe é que o rapaz atirou
no motorista e fugiu com o dinheiro que roubou dos passageiros. O tiro
atingiu um órgão vital. O amigo do taxista não resistiu. Já chegou ao
hospital sem vida. “Uma estupidez, uma estupidez”, gritava meu interlocutor.
“O senhor sabe o que vai acontecer com esse bandido, esse assassino,
esse monstro?”, indagou.
Eu mal conseguia pensar no que dizer. Não foi preciso. Ele mesmo
respondeu: “Nada. Não vai acontecer nada, porque nosso país é a terra da
impunidade. Esse pessoal dos direitos humanos vai proteger o garoto. O
delinquente não vai para a prisão porque é menor de idade. Daqui a dois,
três anos, o homicida está por aí, livre, matando outros pais de família. Ele
deveria ser linchado. Pena não haver pena de morte no Brasil. Queria ver
esse cara torrando na cadeira elétrica” [...]
“E agora?”, perguntava o taxista. “E agora? O que será da viúva? O que vai
acontecer com os cinco filhos? Que futuro os espera? Ela sempre trabalhou
em casa. Nunca se profissionalizou. Cuidava da casa e já era demais:
pouco dinheiro, a garotada para alimentar, problemas para administrar, a
educação dos meninos e das meninas… E agora?”.
“Provavelmente”, prosseguiu ele, “os mais velhos vão ter de abandonar os
estudos e trabalhar. Como são muito novos, o jeito vai ser vender bala nas
esquinas. Longe de casa e da escola, e perto de gente que mora nas ruas,
entre drogas e esmolas, os meninos vão acabar se perdendo. Aquele
monstro não só tirou a vida de um pai de família, como matou o futuro dos
filhos”.
Fiquei ali, em silêncio, olhando sem ver as belas paisagens de Recife que
passavam pela janela. Imaginei o sofrimento dos filhos e da esposa do
motorista de ônibus assassinado. Até que percebi que as duas pontas da
história se encontravam: o início e o fim. Tomei coragem e disse ao taxista:
“Veja o senhor como são as coisas: esses meninos que ficaram órfãos são
vítimas, assim como o pai.”. Fiz uma longa pausa. O motorista quebrou o
silêncio, complementando: “São pobres vítimas indefesas. E sinto muita
tristeza por eles.”. Tomei fôlego e continuei: “Imagine o senhor esses pobres
meninos, pré-adolescentes, crianças, ainda, daqui a pouco podem estar na
rua, sentindo-se abandonadas, com a autoestima esmagada. Porque, como
o senhor disse, por mais que a mãe se esforce, vai ser muito difícil que ela
consiga sustentar toda a família, mantendo todos os meninos na escola,
trabalhando fora e, ao mesmo tempo, educando as crianças e dando a
todas elas o amor de que precisam, agora mais do que nunca”.
“Justamente”, concordou o taxista.
“Pois é”, prosseguiu, “esses meninos correm o risco de ir para a rua,
envolver-se com drogas, crimes, armas…”.
O taxista me interrompeu: “Tudo de ruim, coitados”.

204
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Um dia”, retomei meu raciocínio, “um dia, um deles, desesperado atrás de
dinheiro - talvez para comprar crack -, entra num ônibus, rende passageiros
e, sem pensar, atira no motorista e foge”.
Olhei para o taxista. Ele devolveu o olhar, de relance. Percebi que estava
começando a entender aonde eu queria chegar.
Concluí: “O senhor acha que, nesse caso, se isso viesse a acontecer, o
órfão de seu amigo mereceria ser chamado de monstro? O senhor
participaria do linchamento dele? O senhor, se fosse juiz e se nosso país
tivesse pena de morte, o condenaria à morte?”.
O taxista dirigia, olhando fixo para frente. Não disse mais nada.
Quando parou, dentro do campus da universidade, na frente do prédio em
que eu daria a palestra, olhou para mim e respondeu: “Não”.
Paguei a corrida. Recebi o troco. Desejei boa-tarde. Agradeci. Quando eu
saía do carro, o taxista disse, numa voz mais baixa do que seu tom habitual:
“Nunca tinha pensado por esse lado”. Não perdi a oportunidade e completei
meu argumento: “Uma história muda de sentido, dependendo do ponto a
partir do qual se comece a contá-la. Talvez entendêssemos de uma forma
um pouco diferente o significado do assassinato do motorista do ônibus se a
história de quem o matou tivesse sido contada desde o início. Não se trata
de passar a mão na cabeça de quem comete uma atrocidade inominável
como essa. Não se trata de subestimar a brutalidade desse ato
injustificável. Trata-se de compreender como foi possível um ser humano ter
se desumanizado a ponto de matar outro ser humano daquele jeito. Se
quisermos que isso não se repita, teremos que agir para mudar essa
realidade capaz de desumanizar uma pessoa. Não adianta, nem é justo,
agir por vingança. Isso só acrescenta à história violenta mais um capítulo
violento. Ou seja, isso só gera mais violência, quando o que eu e o senhor
desejamos não é a vingança, é que violências assim não se repitam”.
Ele balançou a cabeça: “Tem razão”. (grifo nosso)

O texto acima deixa claro que grande parte da sociedade enxerga o crime/ato
infracional através do paradigma punitivo, consonante com a Justiça Tradicional, a
qual considera mais relevante saber quem transgrediu a lei e qual a pena merecida
do que compreender os reais motivos que levaram o sujeito a se envolver na
criminalidade19.

Em nosso sistema tradicional de justiça, especialmente no criminal, o


foco do processo está no estabelecimento da culpa com sua consequente
punição. Ou seja, busca-se punir o mal – o crime, com outro mal – a pena,
configurando o procedimento retributivo. Já o sistema restaurativo propõe
uma mudança de paradigma, pela qual se deve tirar o crime de seu
pedestal abstrato e passar a encará-lo como um dano e uma violação de
pessoas e relacionamentos, tendo como objetivo a reparação do dano e a
restauração das relações rompidas pelo conflito, por meio da participação
ativa de todos os envolvidos, conferindo segurança a todos. (BACELAR e
SANTOS, 2016, p. 81-82) (grifo nosso)

Nesse sentido, a Justiça Restaurativa

19
Comparativo entre a Justiça Tradicional e a Justiça Restaurativa segundo Brancher e Flores (2016,
p. 98): Tradicional: Culpa, Perseguição, imposição, castigo, verticalidade, coerção; Restaurativa:
Responsabilidade, encontro, diálogo, reparação do dano, horizontalidade, coesão.
205
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“requer, no mínimo, que cuidemos dos danos sofridos pela vítima e de suas
necessidades; que seja atribuída ao ofensor a responsabilidade de corrigir
aqueles danos, e que vítimas, ofensores e comunidade sejam
envolvidos nesse processo” (ZEHR, 2012, p. 36). (grifo nosso)

Howard Zehr (2012, p.13), pioneiro em sistematizar as experiências de fazer


justiça restaurativa, faz três perguntas essenciais para trilharmos o entendimento
deste novo paradigma. São elas: “enquanto sociedade, como devemos reagir às
ofensas? Quando acontece um crime ou quando é cometida uma injustiça, o que
precisa ser feito? O que pede nosso senso de justiça?”. Este mesmo autor afirma
que

Justiça Restaurativa é um processo para envolver tanto quanto possível,


todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa, num processo
que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações
decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas
e endireitar as coisas, na medida do possível. (p.49)

Salienta-se, portanto, que a Justiça Restaurativa

[...] visa, primordialmente, à mudança dos paradigmas em todas as


dimensões da convivência – relacional, institucional e social –, ou seja,
à construção de um poder com o outro, em que todos e cada qual sejam
alçados à posição de “sujeito transformador”, igualmente corresponsáveis
pela transformação, rumo a uma sociedade mais justa e humana.
(SALMASO, 2016, p. 20) (grifo nosso)

Ao longo dos encontros do grupo de estudos compreendemos que o objetivo


principal da Justiça Restaurativa é a mudança de paradigma, daquele retributivo
(punitivo) para o restaurativo, tomando como foco central os danos e consequentes
necessidades, tanto da vítima como também do ofensor e da comunidade,
instituindo a ideia de corresponsabilidade entre todos os envolvidos naquela
violência/conflito, seja de forma direta (autor/vítima) ou indireta (família, comunidade,
rede de proteção social).

A noção de corresponsabilidade também é central na Justiça Restaurativa


[...]. Assim, nos procedimentos restaurativos se deve buscar desvelar tais
corresponsabilidades, tanto em relação à situação de ofensa, como também
quanto à reparação de danos e a atendimentos das necessidades de todos
os envolvidos. À evidência, os procedimentos restaurativos não se destinam
a “qualificar melhor a culpa do adolescente e/ou do autor do ato ofensivo”,
tampouco são procedimentos que visam transferir a culpa para terceiros.
Eles se prestam para que todos aumentem a capacidade de consciência
sobre o ocorrido e se responsabilizem com aquilo que devem se

206
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

responsabilizar de acordo com o seu grau de envolvimento. (PENIDO;


MUMME; ROCHA, 2016, p. 180).

Efetivamente, não são ‘Justiças’ que se contrapõem, mas que concebem


ações desde pontos de vista distintos. E é importante ressaltar, desde já, que a
existência de uma não anula e nem impede a da outra, podendo inclusive se
complementar em alguns casos.

2. A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: ALGUMAS


APROXIMAÇÕES

Até aqui tentamos compreender o que é a Justiça Restaurativa, mas vocês


devem estar se perguntando de onde surgiu esse conceito, pois bem, o conceito e a
filosofia da justiça restaurativa se inserem nos espaços institucionais a partir das
décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos da América, Canadá e Nova Zelândia, que,
inspirados nos costumes aborígenes e indígenas dos maoris e dos navajos,
começaram a se valer dos métodos utilizados por essas comunidades para a
resolução de conflitos, por meio de processos dialógicos e com a participação ativa
de todos os atores atingidos pelo problema. Em 1989, a Nova Zelândia aplicou a
Justiça Restaurativa para todo o sistema penal da Infância e Juventude. (GOMES;
BACELAR; MUNIZ, 2016, p. 321)

No Brasil, a Justiça Restaurativa surgiu formalmente no ano de 2005 20, por


meio da Secretaria da Reforma do Judiciário/Ministério da Justiça, que elaborou o
projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro, e,
juntamente com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/PNUD,
apoiou três projetos-piloto de Justiça Restaurativa. Um destes projetos foi realizado
no Estado de São Paulo, na Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São
Caetano do Sul; os outros dois foram implementados no Juizado Especial Criminal

20
Ressalta-se que antes disso o Brasil já vivenciava algumas experiências pontuais de Justiça
Restaurativa, a exemplo do estado do Rio Grande do Sul que em 4 de julho de 2002 trabalhou o
chamado “Caso Zero”, aplicação de prática restaurativa envolvendo dois adolescentes em conflito na
3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre. Disponível
em:<http://www.justica21.org.br/j21.php?id=89&pg=0#.WEVdytIrIdU> Acesso em: 20 nov. 2016.
207
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de Bandeirante, em Brasília/DF, e na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e


Juventude de Porto Alegre/RS, com competência para executar as medidas
socioeducativas.
Em 04 de fevereiro de 2010, o Tribunal de Justiça do estado da Bahia
inaugurou seu primeiro Núcleo de Justiça Restaurativa, implantado na extensão do
2° Juizado Especial Criminal, com aplicação referente aos delitos de menor potencial
ofensivo.
O estado do Rio Grande do Sul destaca-se tanto com os centros
restaurativos, para onde são encaminhadas as pessoas ou os processos, quanto
com o projeto Justiça para o Século 21 – Instituindo Práticas Restaurativas, que tem
por objetivo divulgar e aplicar as práticas restaurativas como estratégia de
enfrentamento e prevenção à violência (BRANCHER, 2008).
O estado do Paraná, de forma incisiva, iniciou suas atividades restaurativas
em 2014, ocasião em que o Tribunal de Justiça criou uma comissão exclusiva,
formada por desembargadores, juízes e servidores com o fim de estudar e orientar
os servidores e membros daquele tribunal na aplicação das práticas restaurativas.
Já em 2015, o Ministério Público do Paraná fundou o projeto MP Restaurativo,
visando, também, à disseminação e implementação do método restaurativo
(BACELAR; SANTOS, 2016, p. 82)
Desse modo, o que se tem é o avanço das implantações das práticas
restaurativas21 pelo país, através de diversas iniciativas, que são impulsionadas pelo
Judiciário.
Entretanto, observa-se que as práticas restaurativas têm sido aplicadas em
diversas áreas que não apenas dentro do Poder Judiciário, mas também nas
comunidades, escolas, famílias, espaços de trabalho. “Aceitar que a Justiça
Restaurativa é prioritariamente e exclusivamente dos Tribunais de Justiça é reduzi-la
a uma área do conhecimento humano” (PENIDO; MUMME; ROCHA, 2016, p. 206).
A Justiça Restaurativa, reitere-se, trata do valor de justiça, portanto, ousa-se
extrair deste conceito, uma universalização de direitos, que são traduzidos em

21
Práticas Restaurativas compreende a utilização de diferentes metodologias de estruturação e
promoção de encontros entre as partes envolvidas, objetivando a facilitação do diálogo, a superação
de conflitos e a resolução de problemas de forma consensual e colaborativa. Diferentes metodologias
podem ser escolhidas e utilizadas segundo as circunstâncias do caso, objetivando proporcionar um
ambiente seguro e protegido para o enfrentamento das questões propostas. (Brancher; Flores, 2016,
p. 110)
208
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

diversas formas de organização social, incluindo necessariamente a participação, a


expressão de todos, o convite ao compromisso de rever condutas e
comportamentos, a responsabilidade individual e principalmente, coletiva, ou seja,
social.

2.1 Justiça Restaurativa no estado de São Paulo

O Judiciário de São Paulo inicia as primeiras ações de Justiça Restaurativa,


de forma sistematizada, no ano de 2005, como um dos projetos-piloto que
formalizaram a introdução da Justiça Restaurativa no país, conforme dito
anteriormente. São Caetano do Sul, Guarulhos e Varas Especiais da Infância e da
Juventude, região de Heliópolis, da Capital, são as localidades que registram os
seus primeiros projetos no Estado, todos na área da infância e da juventude.
Concomitante à implementação dos primeiros projetos, a Escola Paulista de
Magistratura (EPM) cria, ainda em 2005, o Centro de Estudos de Justiça
Restaurativa e, em 2011, o Núcleo de Pesquisas em Justiça Restaurativa. Essas
estruturas produziram conhecimento na área, assim como promoveram a necessária
formação de gestores e facilitadores de Justiça Restaurativa.
Em 2012, com o entendimento de que a implementação da Justiça
Restaurativa com qualidade demandava um serviço de apoio, orientação,
sustentação e supervisão, foi instituída a Seção Técnica de Justiça Restaurativa,
inserida no Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e de Psicologia da
Coordenadoria da Infância e Juventude - CIJ. Também foi formado um Grupo Gestor
da Justiça Restaurativa, composto por juízes dedicados ao tema e pela assistente
social responsável pela Seção, todos integrantes da Coordenadoria da Infância e
Juventude, tendo contado, também, com uma consultora da sociedade civil, para a
implementação e a expansão da Justiça Restaurativa no Estado.
Importante ressaltar que independente do procedimento adotado para a
resolução do conflito22 existe a necessidade de se envolver ofensor, vítima, seus
familiares ou pessoas de referência para ambos, a comunidade direta ou

22
Dentre os procedimentos existentes podemos citar VORP – processo vítima-ofensor, sigla em
inglês; conferência familiar, círculo restaurativo, processo circular, entre outros.

209
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

indiretamente atingida pela ofensa e representantes da Rede de Garantia de


Direitos.
Pretende-se, assim, a transformação dos conflitos nas três dimensões que o
envolvem – relacional, institucional e social. A dimensão relacional diz respeito
diretamente ao procedimento adotado para lidar com um conflito. Aqui contempla-se
formação e capacitação específicas de pessoas para coordenarem e realizarem
esses procedimentos, como facilitadores.

No âmbito da dimensão institucional, as próprias pessoas que compõem


determinada instituição, na qual acontecerão os processos circulares, são
convidadas a pensar a estrutura organizacional e como se dá o convívio
dentro dessa própria instituição. Assim porque, em regra, as relações
interpessoais nas instituições, historicamente, vêm girando em torno de uma
lógica hierárquica, excludente e punitiva, que é causa de insatisfação e de
sentimento de injustiça para todos, não raras vezes fazendo-se como
“molas propulsoras” de atos de transgressão e violência. E, assim, de nada
adianta os procedimentos restaurativos resolverem os conflitos pontuais,
“no varejo”, se as suas causas geradoras não são vistas e desativadas.
Nesse passo, as instituições passam a repensar e a reformular as suas
práticas e as formas de relacionamento das pessoas que a compõem, de
modo que todos tenham vez e voz, que as necessidades de cada qual
sejam ouvidas e compreendidas, em um ambiente realmente democrático, e
para que as pessoas se sintam como pertencendo àquele espaço e
participem ativamente dos acordos, de projetos e da elaboração das regras
de convívio. Por fim, na dimensão ou no eixo social, a Justiça
Restaurativa traz a corresponsabilidade da sociedade e dos Poderes
Públicos para pensar e buscar soluções aos problemas relativos à violência
e à transgressão, o que é absolutamente justo e necessário, pois vivemos
em uma sociedade injusta e violenta para com todos. Se alguém comete
algo errado ou violento, certamente essa pessoa ostenta responsabilidade
pelo caminho escolhido. Mas, por outro lado, deve-se ter a coragem
necessária para enxergar que essa pessoa não fez isso sozinha, pois existe
uma série de falhas e omissões ao longo da história de vida dela que
influenciaram na escolha errada, muitas dessas geradas pela própria
injustiça nas relações sociais. (SALMASO, 2016, p. 63-65) (grifo nosso)

Para a construção e concretização do trabalho em todas essas dimensões, a


metodologia para a implementação da Justiça Restaurativa está baseada no Pólo
Irradiador, sistematizado pela professora e consultora Mônica Mumme23, voltado à
efetivação de uma mudança de paradigma que consolide as ações em curso e dê
condições para a sua expansão.
Conforme a própria autora explica, ‘Polo Irradiador’ é uma metodologia
acolhida por uma instituição que demonstra interesse em expandir a proposta da
23
Mônica Maria Ribeiro Mumme é Psicóloga. Idealizadora de cursos de formação sobre Justiça
Restaurativa. Coordenadora de projetos sobre convivência justa e pacífica. Diretora do Laboratório de
Convivência.
210
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Justiça Restaurativa no que se refere à incorporação dos princípios norteadores,


bem como com um feixe de ações necessárias para sua implementação,
fortalecimento e consolidação. O estado de São Paulo, até o momento, conta com
alguns “Pólos Irradiadores” de Justiça Restaurativa, são eles: Itajobi, Tietê, Laranjal
Paulista, Tatuí, Santos, São Vicente e capital.
Além disso, algumas Comarcas que já contavam com projetos de Justiça
Restaurativa, anteriores à proposta do Pólo Irradiador, estão buscando um
alinhamento com essa metodologia. Campinas é um exemplo disso. Com uma
história que remonta ao ano de 2008, mas com o entendimento quanto à
necessidade de construção de uma Rede efetiva (com fluxos e procedimentos) em
torno de ações para a efetiva irradiação da Justiça Restaurativa, contando com a
presença da promotoria, do judiciário e de outros profissionais e representantes da
rede de garantia de direitos, e com o apoio da Seção Técnica de Justiça
Restaurativa da CIJ, vem discutindo as possibilidades para a implementação dessa
metodologia na Comarca, com todos os desafios que uma metrópole impõe.
A Justiça Restaurativa também prevê a formação de um Grupo Gestor
Interinstitucional em cada localidade, composto por órgãos e entes públicos de
diversas áreas, bem como por representantes da comunidade e de instituições, para
que sejam pensadas e implementadas políticas públicas e uma Rede de Apoio ou de
Garantia de Direitos para dar suporte às necessidades das mais variadas ordens,
que aparecem nos procedimentos restaurativos, tanto de ofensores quanto de
vítimas, como também das famílias e da própria comunidade (Ibidem, p. 55).

3. BASE LEGAL DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL

Destaca-se que, no âmbito internacional, países como Nova Zelândia,


Canadá, EUA e África do Sul já tinham diplomas legais a respeito. Menciona-se,
também, a Resolução n. 12/2002, do Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas, que, após se reportar às suas Resoluções 199/26 (“Desenvolvimento e
implementação de medidas de mediação e Justiça Restaurativa na Justiça Criminal”)
e 2000/14 (“Princípios Básicos para a utilização de Programas Restaurativos em

211
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Matérias Criminais”), conceituou o que se entende por “Justiça Restaurativa”,


normatizando o seu procedimento.
No âmbito do Sistema de Justiça brasileiro a Lei 9.999/95 (Dispõe sobre os
Juizados Especiais Cíveis e Criminais) e a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente) nos deram as primeiras brechas para a aplicação da Justiça
Restaurativa. Por exemplo, no ECA temos o instituto da remissão, por meio do qual
seria possível aplicar a Justiça Restaurativa.
Em 2012 com a Lei 12.594 (Sinase), especificamente em seu art. 35, incisos
II e III, teremos o primeiro diploma legal que dispõe expressamente sobre a
aplicação de medidas restaurativas para adolescente em conflito com a lei.
Em 2013 tivemos a primeira emenda à resolução 125/2010 do CNJ (dispõe
sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências) que incluiu, no
art. 7º, o parágrafo 3º que diz que os “Núcleos poderão centrar e estimular
programas de mediação penal ou qualquer outro processo restaurativo” [...].
No que concerne à normatização acerca da Justiça Restaurativa no estado de
São Paulo tivemos o Provimento n. 35/2014 da Corregedoria Geral de Justiça do
Estado de São Paulo (ajustado posteriormente pelo Provimento n. 29/2015 da
CGJ/SP) que dispõe sobre a implementação da Justiça Restaurativa no âmbito das
Varas da Infância e Juventude.
Em agosto de 2015 o CNJ, por meio da Portaria n. 74, criou um grupo de
trabalho com o objetivo de desenvolver estudos e propor medidas para contribuir
com o desenvolvimento da Justiça Restaurativa no país. O grupo, composto de
representantes do CNJ e magistrados de diversas regiões brasileiras que se
destacam pela difusão da prática, foi responsável por elaborar uma minuta de
resolução para implantação e estruturação de um sistema restaurativo de resolução
de conflitos em tribunais estaduais e federais. Assim, no segundo semestre de 2015,
adveio a “Meta 8 do CNJ” cujo objetivo era “Implementar projeto com equipe
capacitada para oferecer práticas de Justiça Restaurativa implantando ou
qualificando pelo menos uma unidade para esse fim até 31/12/2016”.
Por fim, em maio de 2016 o CNJ aprovou a Resolução 225 que dispõe sobre
a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências. Realçamos o art. 1º da referida Resolução que entende a Justiça

212
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Restaurativa como “um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos,


técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores
relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio
do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de
modo estruturado” [...]. A Resolução buscou legitimar ações interdisciplinares e
interinstitucionais para além das ambiências forenses, considerando a complexidade
do fenômeno da violência em suas múltiplas causas. Além de prever cuidadosa
forma de implementação da Justiça Restaurativa, considerando os contextos
institucionais e sociais onde esta vier a ser efetivada.

213
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Como diz o próprio título deste trabalho, Justiça Restaurativa é um tema


relativamente novo, e, em muitos sentidos, ainda em construção. É inspirada, pode-
se dizer, em práticas milenares de resolução de conflitos, mas que exige a
revisitação de muitos dos valores que aprendemos ao longo de nossas vidas, uma
verdadeira troca de lentes, tal como sugere Howard Zehr.
A Justiça Restaurativa dá a todos os envolvidos a oportunidade de contar a
sua experiência vivida a partir de um conflito/violência, de expressar os seus
sentimentos, alcançar melhor entendimento de como a situação aconteceu, de como
poderá ser evitada no futuro e, especialmente, um modo de seguir em frente, sem
que, para isso, ninguém precise ser isolado ou excluído do grupo ou de sua
comunidade, pelo contrário, que possa experimentar sentimentos de verdadeiro
pertencimento.
Os procedimentos restaurativos parecem simples, porém a sua aplicabilidade
exige de todos os envolvidos um (des)aprender. Por exemplo: ter em mente que não
somos nós que sabemos o que é melhor para o outro, que a responsabilidade nunca
é individual e que transformações duradouras dependem igualmente de ações do
coletivo.
Entre os principais desafios das práticas restaurativas está o de assegurar
que todas as pessoas envolvidas em um ato de violência/conflito tenham a mesma
chance de expressar as próprias experiências e expectativas, que os facilitadores
jamais sugiram acordos, escutem sem julgar e perguntem sem induzir.
Não por acaso o papel de quem conduz qualquer procedimento de justiça
restaurativa é denominado de “facilitador”. Afinal, não será alguém para determinar,
sugerir, ou induzir. A facilitação é para que as pessoas do encontro tenham vez e
voz para dizer do que elas precisam e do que elas podem oferecer para o acordo
que será construído nesse coletivo, tendo como palavras-chave: voluntariedade
(jamais se impõe participação) e corresponsabilidade (para a resolução do feito e
compromissos de futuro).

214
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Vale ressaltar que qualquer pessoa pode ser um facilitador de justiça


restaurativa, desde que tenha um pensamento sobre violência coerente com o
paradigma em que irá atuar e que receba capacitação específica para isso. No
Tribunal de Justiça de São Paulo, os facilitadores formados são, em sua maioria,
psicólogos ou assistentes sociais, mas isso não significa que sempre serão esses
profissionais. Ou seja, não há pré-requisito de uma formação profissional para essa
prática.
O TJ/SP tem proporcionado diversas formações, podemos citar as
capacitações realizadas por meio da EPM (Escola Paulista de Magistratura) em
2008 e 2013, pela Coordenadoria da Infância e Juventude em 2012 e 2016 e pela
Escola Judiciária de Servidores (EJUS) em 2015.
Assim, entendemos que este artigo sobre Justiça Restaurativa não é
conclusivo, pelo contrário, as discussões ao longo deste ano trataram de sucessivas
aproximações ao entendimento deste novo paradigma, instigando as participantes
do grupo de estudo a viver e construir a justiça como um valor a ser experimentado
não apenas em nosso trabalho, mas também em cada relação na qual nos
constituímos enquanto profissionais e, principalmente como seres humanos.

215
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRANCHER, L. 2008. Iniciação em Justiça Restaurativa: formação de lideranças


para a transformação de conflitos. [Projeto] Justiça para o Século 21: Instituindo
Práticas Restaurativas. Porto Alegre: AJURIS.

BACELAR, Robert P. e SANTOS, Mayta L. Mudança de cultura para o desempenho


de atividades em Justiça Restaurativa. In: Justiça Restaurativa: Horizontes a partir
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SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: Pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio
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ZEHR, Howard. Trocando as lentes - um novo foco sobre o crime e a justiça. São
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216
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE DO SERVIÇO SOCIAL


NAS VARAS DE FAMÍLIA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL

“SERVIÇO SOCIAL NAS VARAS DE FAMÍLIA E


SUCESSÕES: PARTICULARIDADES E IDENTIDADE
PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2016
217
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORA

Rita de Cássia Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – Seção Técnica de


Serviço Social da Vara da Infância e da Juventude - Foro Regional IV Lapa

AUTORAS

Adriana Ribeiro Delgado – Assistente Social Judiciário – FR Itaquera


Aline Pereira Lança Passos – Assistente Social Judiciário – FR Santana
Andreza Cristina Oliveira da Silva Calixto – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Campinas
Bianca da Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – FR Jabaquara
Carolina Homem de Melo Lacerda Martins – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Eldorado
Dina da Silva Branchini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Poá
Dulce Alves Taveira Koller – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das
Cruzes
Giselle Pinheiro Gonçalves – Assistente Social Judiciário – FR Ipiranga
Glaucia Cristina de Melo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cordeirópolis
Greicieli Ramos Almeida Rufino – Assistente Social Judiciário – FR Santo Amaro
Isabel Cristina Silva Cohen – Assistente Social Judiciário – FR Central
Maria Valeria de Barros Castanho – Assistente Social Judiciário – FR Central
Maria Zenaide Ribeiro – Assistente Social Judiciário – FR São Miguel Paulista
Martha Regina Albernaz – Assistente Social Judiciário – FR Lapa
Quelli Folles de Oliveira – Assistente Social Judiciário – FR Sto. Amaro
Regina Celia Andreazzi – Assistente Social Judiciário – F. Varas Especiais
Sheyla Miyuki Shibata – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mauá
Silvania Teixeira de Carvalho Mendes – Assistente Social Judiciário – FR Central
Simei da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí
Thais Felipe Silva dos Santos – Assistente Social Judiciário – FR Central
Ticiana de Oliveira Schultz – Assistente Social Judiciário – FR Central

218
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Vanessa Aparecida Gonçalves – Assistente Social Judiciário – Comarca de São


Bernardo do Campo
Viviane de Paula – Assistente Social Judiciário – FR Nossa Senhora do Ó

219
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Em atendimento ao requisito de funcionamento dos Grupos de Estudos


promovidos pela Escola Judicial dos Servidores do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo cujo objetivo final é a elaboração do Caderno dos Grupos de Estudos –
Serviço Social e Psicologia, disponibilizado no site da EJUS e no Portal do Servidor,
elaboramos este texto que registra a motivação para a criação do GE Serviço Social
nas Varas de Família e Sucessões: particularidades e identidade profissional, sua
organização e funcionamento no primeiro ano de existência e apresenta as reflexões
realizadas sobre a identidade profissional e as particularidades do estudo e da
perícia social, focalizando as mudanças do Código de Processo Civil que incidem
sobre as perícias e que vêm gerando situações de ingerência na autonomia
profissional do assistente social e riscos de violação de princípios do Código de
Ética Profissional.

INQUIETAÇÕES SOBRE A IDENTIDADE PROFISSIONAL DO


SERVIÇO SOCIAL NAS DEMANDAS DAS VARAS DE FAMÍLIA
COMO MOTIVAÇÃO PARA A CRIAÇÃO DO GRUPO DE ESTUDOS E
A ADESÃO DOS PROFISSIONAIS

Considerando a existência de vários grupos de estudos voltados para as


temáticas da família em geral e para as especificidades das demandas de Varas de
Família, qual a razão da proposição de mais um grupo sobre esse tema e só com
assistentes sociais?

Como assistente social no TJ-SP há 22 anos, trabalhamos durante dez anos


em VIJs, realizando estudos e pesquisas sobre o acolhimento institucional e a
defesa do direito ao convívio familiar e comunitário. Há doze, temos trabalhado

220
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

exclusivamente nas demandas de VF, realizando estudos e perícias sociais que


contribuem para a decisão judicial nos processos de concessão ou modificação de
guarda de filhos, regulamentação ou suspensão de visitas de pais, alienação
parental, abuso sexual intrafamiliar e interdição.

A proposta de criação desse grupo partiu de nossa premente inquietação


quanto à identidade profissional do trabalho do assistente social nas demandas de
Varas de Família e Sucessões especialmente nas situações em que se destacam o
teor emocional presente nos conflitos dos ex-casais e seu pertencimento a classe
social média ou média alta.

Empiricamente observamos mudanças no perfil da população atendida no


Serviço Social das VFs do Foro Regional onde atuamos: as famílias de classe média
e média alta deixaram de ser exceções e vêm se tornando cada vez mais presentes
como sujeitos do estudo/perícia social.

Recentemente tivemos a aprovação da Lei da Guarda Compartilhada e da Lei


de Alienação Parental (12.318/2010), esta com características punitivas caso se
comprove a prática alienadora do convívio com um dos pais. Tal dispositivo legal, a
nosso ver, tem contribuído para o acirramento dos conflitos pós separação conjugal
e o litígio processual e também para o aumento de falsas denúncias de abuso
sexual articuladas às de verificação de alienação parental.

Compreendendo o Serviço Social como profissão inserida na divisão sócio


técnica do trabalho, que historicamente vem atuando no antagonismo presente nas
relações de classes sociais - tendo como objeto profissional as expressões da
questão social, entendida, conforme Iamamoto (1997), como a contradição inerente
ao sistema capitalista e a exploração de uma classe social sobre a outra, parece-nos
mais evidente, o alinhamento do projeto profissional do Serviço Social com as
demandas típicas da Vara de Infância e Juventude, o que certamente não garante
por si só que ele seja efetivado.

A população usuária da Justiça de Infância e Juventude (crianças,


adolescentes, famílias de origem ou extensa), em geral, vivencia a pobreza e formas
diversas de não acesso a bens e direitos fundamentais que se expressam como
transferência de cuidados dos filhos (guarda), entrega de bebês (adoção),

221
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

abandono, maus tratos, abuso sexual, violência intrafamiliar, ato infracional (medidas
socioeducativas), acolhimento institucional, destituição do poder familiar.

O trabalho do assistente social nas VIJs também se dá por meio da


elaboração do estudo ou da perícia social, mas diferentemente das VFs, há outras
formas de atuação que privilegiam reuniões e articulação com a rede de serviços
que compõe o sistema de garantia de direitos, especialmente com os serviços de
acolhimento institucional, centros de referência de assistência social, conselhos
tutelares, etc. além de orientações, supervisão, etc.

Após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente tornou-se


crescente o número de assistentes sociais, que prestam ou prestaram seus serviços
para essa instituição, que desenvolveram pesquisas e estudos (especialmente de
mestrado) voltados às demandas de Varas da Infância e Juventude, contribuindo de
forma relevante para ampliar debates e embates relacionados a violação de direitos
de crianças, adolescentes e famílias.

Enquanto o Serviço Social do TJSP vêm produzindo estudos e pesquisas


relativos às demandas de VIJs, embora venha atuando junto à Justiça de Família em
São Paulo desde a década de 195024 é quase inexistente a produção teórica nessa
área. Tal constatação se dá inversamente em relação à Psicologia do TJSP.

Numa rápida observação sobre as publicações do Serviço Social25 e da


Psicologia do TJSP, podemos inferir que enquanto as(os) assistentes sociais fazem
pesquisas e publicações sobre temáticas da VIJ, as(os) psicólogas(os) o fazem
sobre a VF.

Rocha (2016), numa desafiante escolha da alienação parental como tema de


pesquisa em sua tese de doutorado, explicitou esse vazio que se soma à primazia
do aporte dos conhecimentos legais e da psicologia, acentuando a inquietação

24
Cf. Fávero (2005) e Alapanian (2008) que se dedicaram a pesquisar sobre a história do Serviço
Social no TJSP, a designação de uma assistente social para trabalhar em demandas de Vara de
Família ocorreu entre 1960 e 1961, mas a legitimação dessa atuação se deu em 1980 com a
publicação de um provimento.
25
Das assistentes sociais do TJSP, destacam-se as teses de doutorado de Maria de Lourdes Bohrer
Antonio, “Relações afetivas em litígio e a mediação familiar”, defendida em 2013 na PUCSP e de
Edna Fernandes da Rocha Lima, “Alienação Parental sob o olhar do Serviço Social: limites e
perspectivas da atuação profissional nas varas de família”, defendida em 2016, também na PUCSP.
Há também o artigo de Fávero de 2008, “Famílias: Serviço Social e Justiça- apontamentos sobre
demanda e prática profissional”. In KOGA Dirce; GANEV Eliane; FÁVERO Eunice (orgs). Cidade e
questões sociais. São Paulo: Andross, 2008.
222
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

relativa a identidade profissional do assistente social nas VFs. Destacamos a fala de


duas assistentes sociais que trabalham com demandas de VF e foram entrevistadas
em sua pesquisa:

Não, não... acho que falta muito, muita coisa... Geralmente, quando você
quer procurar alguma [referência], você é obrigada a cair ou para a área do
Direito ou para a da Psicologia. Coisas do Serviço Social, nossa, nossa...
Vamos pensar num artigo do Serviço Social, inserido num livro, ou numa
revista, por exemplo, ainda assim é menos que o da Psicologia e do pessoal
do Direito. (AS 3).

É porque é pouco. E quando eu busco no Direito, claro que me traz


elementos elucidadores, eu acho importante a leitura, a gente falou da
questão interdisciplinar, nós dialogamos com estas áreas do conhecimento,
com a Psicologia... a Psicologia tem mais produção, com o Direito,
Sociologia menos. Mas eu quero do Serviço Social. Eu fico pensando
assim: Qual o fundamento teórico para a gente discutir a questão da
alienação [parental] no Serviço Social? Então é isso, nós vamos discutir
dentro das relações do conceito de família, nós vamos ter que fundamentar
nosso pensamento. (AS 4). (Rocha, 2016)

Procuramos compreender o significado dessa ausência de produção


acadêmica do SS nas VF partindo de nós mesmos. A primeira evidência é o vínculo
com o compromisso de classe social explicitado pelo nosso projeto ético político e
que para nós foi motivador para a realização de pesquisas nas VIJs. Tais estudos
desvelaram que a perda do convívio das famílias pobres (em geral representadas
pelas mães) com suas crianças e adolescentes é mais uma forma de espoliação
social por elas vivida, decorrentes do processo de reprodução da desigualdade
social da sociedade capitalista. Entretanto, embora sem o contexto da privação total
de convivência familiar, consideramos que nas VFs também estão postas questões
relacionadas ao convívio familiar e comunitário.

Partimos de um esboço de criação do grupo com a ideia de que estudaríamos


as relações de gênero e gerações na família com vistas à reprodução deste espaço
como de provisão das necessidades de seus membros, a judicialização da
privacidade familiar na relação entre as esferas pública e privada, a identidade
profissional do assistente social na relação com o psicólogo, o operador do direito
(juiz, promotor de justiça, defensor público, advogado) e os usuários (adultos,
crianças e adolescentes).

Como inquietações próprias trouxemos algumas questões:

223
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- Como temos pensado o direito à convivência familiar e comunitária - que


emerge imediatamente relacionado às demandas da JIJ tais como acolhimento
institucional, perda do poder familiar, adoção - em relação às medidas legais de VF
(guarda unilateral, guarda compartilhada, regulamentação de visitas, alienação
parental, interdição)?

- Quais as expressões da questão social nos processos judiciais que


envolvem famílias de classe média alta? O que particulariza o estudo social em
relação ao psicológico nas situações em que há grande ênfase de conflitos e litígio,
com predominância das questões emocionais?

- Dimensão ética-metodológica da elaboração do estudo/perícia social e da


escuta cotidiana de crianças e adolescentes em situações de conflito familiar.

Como motivação para a escolha deste grupo, os participantes destacaram a


busca de maiores subsídios para atuação nos processos de Varas de Família,
identificada como uma demanda que se diferencia da de Vara de Infância, mas que
para aqueles que acumulam as demandas de ambas as Varas, acaba sendo foco de
pouco estudo ou aperfeiçoamento do relatório e do laudo social, diante da urgência
dos processos de Vara de Infância e do acúmulo de trabalho.

O grupo foi composto em sua maior parte por profissionais com pouco tempo
de trabalho na instituição, tratando-se da primeira participação em Grupo de Estudos
do TJ-SP para a maioria.

Das 25 assistentes sociais inscritas espontaneamente para tal grupo, 24


participaram das reuniões das quais: 15 são da capital (4 FR Central, 3 FR Santo
Amaro, 2 FR Lapa, 1 Fórum das Varas Especiais, 1 FR Santana, 1 FR São Miguel
Paulista, 1 FR Ipiranga, 1 FR Itaquera), sendo que dez delas atendem
exclusivamente demandas das Varas de Família.
A partir da pergunta sobre os desafios e a necessidade de ampliação de
conhecimento relacionada às demandas de Varas de Família foram apresentados
temas, questões e problematizações que se articulam com a busca da identidade
profissional dos quais se destacou como central a inquietação advinda do caráter
fortemente emocional nas demandas de alienação parental, falsa denúncia de abuso
sexual, interdição, objeto do estudo e da avaliação da psicologia.

224
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considerando que o desenvolvimento do trabalho do assistente social nas


Varas de Família, se dá prioritariamente por meio dos estudos e perícias sociais, os
participantes trouxeram inquietações a respeito dos limites e possibilidades da
perícia social: “Simplesmente perito ou existe intervenção profissional, é possível as
duas funções juntas?”; “O laudo social é o objetivo do trabalho profissional ou a
expressão dele?”; “Como fazer emergir as expressões da questão social que
envolvem os litígios e que configuram para a família, enquanto lugar de
redistribuição de recursos e cuidados, uma perda em sua totalidade? O laudo pode
ser uma forma de se denunciar a violação de direitos?”; “Qual o limite do Serviço
Social frente a forte presença de questões de ordem subjetiva nas famílias em
litígio? Como fazer uso de palavras nos laudos que remetem a conceitos da
psicologia (vínculo, apego, conflito de lealdade)?”

O eixo condutor dos estudos e encontros de 2016 foi sendo construído


conforme interesses e expectativas do grupo a partir do primeiro encontro, abrindo-
se para estudo e discussão de questões que vêm incidindo em nosso processo de
trabalho como as mudanças do Código de Processo Civil em relação as perícias, a
Nota Técnica do Cress-Sp sobre mediação de conflitos, dentre outras.

IDENTIDADE PROFISSIONAL E O PROJETO PROFISSIONAL DO


SERVIÇO SOCIAL

Consideramos importante para a defesa da autonomia profissional do


assistente social no judiciário, a contribuição oferecida por Martinelli que em seus
estudos sobre a profissão faz uso da categoria identidade.

Para Martinelli a perspectiva sócio histórica, ou histórico–crítica, é crucial para


compreender a identidade. Sendo assim o conceito de identidade profissional é
construído historicamente, e, portanto só pode ser desvelado dialeticamente, de tal
forma que “torna-se indispensável a busca de interpretação da realidade, a partir do
desvendamento de suas múltiplas determinações: sociais, políticas, econômicas,
históricas, culturais”(1998:147).

225
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A autora ressalta a importância dessa categoria numa perspectiva da


dialética, no campo da alteridade e do movimento, recuperando seu conceito a partir
de Kant, destacando a contribuição de Hegel e de Marx.

É como categoria politica, sócio-historica, que pulsa com o tempo e o


movimento, que vamos encontrar a identidade nos marcos da referência da
dialética, onde a importância da categoria, em relação às práticas sociais,
reside exatamente no fato de expressar a sua forma de ser e de aparecer,
instituindo-se portanto como elemento definidor de sua participação na
divisão social do trabalho e na totalidade do processo social. (1998:144,145)

Martinelli aponta que falar de identidade implica a superação da noção do


idêntico e também da “ruptura do princípio da permanência”, que orienta práticas
sociais e especialmente as profissionais como “eternas reprodutoras do já vivido”.

Durante as discussões do grupo foram postas diversas situações da prática


profissional do Serviço Social na Vara de Família, pontuando-se a relação com os
usuários atendidos pela justiça, com a instituição judiciária e com profissionais, e
outras questões que impactam sobre a prática profissional, em especial as
alterações contidas no novo Código de Processo Civil.

Ficou evidenciado que apesar da referência teórico-metodológica e ético-


politica adotada pela categoria, a prática mescla elementos do conservadorismo,
resquício do Serviço Social Tradicional, com práticas embasadas nos princípios e
valores estabelecidos no Código de Ética Profissional.

Sendo assim, a identidade profissional do Serviço Social na Vara de Família


foi construída ao longo da historia e consequentemente vem se transformando como
a própria profissão, que ao longo das décadas vem questionando o
conservadorismo, amparado na teoria social crítica, e, portanto construindo um
projeto profissional compromissado com os princípios éticos e políticos que o
norteiam.

Trata-se de uma construção histórica em que os conflitos e as contradições


são constitutivos dela.

As alterações constantes no Novo CPC levantam questões e apresentam


novos conflitos que impactam na construção da identidade profissional, e exigem
posicionamentos da categoria como: a presença do Assistente Técnico nas

226
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

entrevistas, a mediação de conflitos, a respostas a quesitos em casos de interdição,


a prova simplificada, entre outros.

Nesse sentido, pensar a identidade do Serviço Social nas Varas de Família


requer refletirmos sobre o legado conservador da profissão que se reproduz nas
demandas dos processos judiciais para cumprir atribuições/intervenções que não
nos competem, bem como determinações que violam nossa relação com o usuário.
A determinação judicial quanto a utilização de procedimentos técnicos durante o
estudo social, por exemplo, a realização de visita domiciliar, além de interferir em
nossa autonomia profissional reforça o caráter fiscalizador historicamente a nós
atribuído e que é contrário ao projeto profissional contemporâneo.

Tal ingerência requer posicionamento coerente do profissional a partir da


construção coletiva como categoria profissional, amparado pelo código de ética
profissional e lei de regulamentação da profissão.

O ESTUDO SOCIAL/PERÍCIA SOCIAL COMO PRINCIPAL AÇÃO


PROFISSIONAL PARA O ASSISTENTE SOCIAL EM VARA DE
FAMÍLIA

Mioto (2001) denomina a perícia social como um processo por meio do qual o
assistente social realiza exame, vistoria ou avaliação de situações sociais com a
finalidade de emitir um laudo social para subsidiar a decisão judicial. Neste sentido,
constitui atribuição privativa do assistente social por exigir um conhecimento técnico
e um saber específico, adquiridos por meio da graduação em Serviço Social.

A perícia social compõe prova em um processo judicial o que, em nosso


entender, demarca a diferença entre perícia e estudo social.

O resultado do trabalho do perito assistente social é a produção de


conhecimento, neste caso, para subsidiar a decisão judicial. Inferimos assim, que a
materialização da pericia social se dá pelo laudo social que expõe os elementos da
situação em análise.

227
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Entendemos que o estudo social se constitui em um instrumento utilizado


para o conhecimento e análise da realidade socioeconômica, familiar e cultural e
abarca a utilização de alguns procedimentos técnico-operativos, tais como: leitura
critica dos autos, entrevistas individuais e conjuntas, observação participante, visitas
domiciliares e institucionais, contatos com a rede secundária, discussão de caso,
estudo bibliográfico, dentre outros.

De acordo com Mioto (2001), a perícia social possui quatro pilares de


sustentação:

-Competência técnica – capacidade do profissional no uso dos instrumentos


de trabalho;

-Competência teórico metodológica – conhecimento teórico especifico que


embase a atuação profissional;

-Autonomia - liberdade para decidir sobre as alternativas que conduzirão a


formação de sua convicção profissional e

-Compromisso ético – compreensão e defesa dos princípios contidos no


código de ética da categoria.

A perícia social se constitui em um processo de intervenção, que em geral


ocorre por orientações relativas à dinâmica familiar e reflexões socioeducativas,
assim como por encaminhamentos às pessoas atendidas.

Partindo do pressuposto da interferência na relação interpessoal, em seu


texto Mioto (2001) explicita o caráter interventivo da perícia social ainda que seu
objetivo primordial seja a construção do conhecimento sobre a realidade social de
uma ou mais pessoas que será registrado em um laudo e parecer social com vistas
a contribuir para uma decisão judicial. Além disso, ela destaca a importância de
observamos a relação entre as pessoas por meio das entrevistas conjuntas, cujo
resultante também se torna um conteúdo a ser analisado sob a ótica profissional do
assistente social.

A escuta dos sujeitos, tendo como parâmetro dar voz aos envolvidos na
situação em analise, se coloca com significativa importância no trabalho, redefinindo
a situação apresentada nos autos, sob o ponto de vista social, com cautela e
respeito ao usuário, na procura da não intensificação da lide.
228
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Entendemos o estudo social como instrumento abrangente, o que indica a


necessidade da priorização dos fatos relevantes para a compreensão da demanda.
Neste sentido, a escolha dos elementos ético-político-teórico-metodológicos é
fundamental para compor a elaboração do laudo e para a emissão de
posicionamento profissional.

No estudo de algumas referências de relatório social, alguns apontaram para


o modelo descritivo, o qual foi percebido como menos comprometedor. O relatório
analítico seria mais dificultoso, exigindo maior tempo para fazê-lo, representando
maior exposição do saber profissional. Em geral, preocupa-se em revelar a realidade
da população atendida e de subsidiar da melhor forma possível as decisões
judiciais.

MUDANÇAS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E OS RISCOS


À AUTONOMIA E ÉTICA PROFISSIONAL

Nas discussões sobre as mudanças do NCPC ganhou destaque a


necessidade de interlocução com a legislação que regulamenta nossa profissão e
com a própria organização do processo de trabalho, a fim de que o melhor interesse
das crianças e dos adolescentes atendidos continue preservado.

Embora tanto os processos judiciais de VIJ quanto os de VF devem se pautar


no CPC, as mudanças em vigor desde março de 2016 vêm impactando mais
diretamente o cotidiano profissional do assistente social nas Varas da Família, por
vezes, até mesmo colidindo com os pressupostos do Código de Ética Profissional.

O NCPC é permeado pela premissa de que o processo judicial pode se


encerrar a qualquer tempo a partir da mediação ou da conciliação de interesses.
Conforme o artigo 694 “nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos
para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxilio de
profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação”.

229
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesse sentido, a tendência é de aumentar a demanda institucional para o


assistente social atuar na mediação ou conciliação de conflitos26, sendo que o
CRESS-SP emitiu em 2016 a Nota Técnica com Posição Preliminar sobre Serviço
Social e Mediação de Conflitos, considerando incompatível a MC ser exercida como
profissão ou cargo concomitante com o exercício profissional do assistente social.

Em seu artigo 464, nos parágrafos 2º, 3º e 4º, o NCPC apresenta alguns
mecanismos que ampliam atribuição já prevista de participação do perito em
audiência, de forma que pode ser prejudicial aos interessados no processo e ao
profissional.

O parágrafo 2º fala sobre a possibilidade de ser determinada, em substituição


à perícia, a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for
de menor complexidade, destacando, conforme § 3º que tal prova consistirá apenas
na inquirição de especialistas, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que
demande especial conhecimento cientifico ou técnico.

Como tal mudança abrange a todas as áreas de conhecimento, é provável


que em muitas delas, a prova técnica simplificada seja absolutamente pertinente,
contudo, tendo em vista que o Serviço Social, via de regra, é chamado a avaliar e
emitir seu parecer em casos de alto grau de litígio e ainda está pautado na análise
das relações entre indivíduos e/ou grupos envolvidos no litígio, consideramos que a
utilização de tal instrumento, poderá comprometer a qualidade da avaliação técnica.

Em mais dois artigos se fortalece a perspectiva de participação do profissional


em audiência: a) o art. 699 - quando o processo envolver discussão sobre fato
relacionado a abuso ou alienação parental, o juiz, ao tomar depoimento do incapaz,
deverá estar acompanhado por especialista e b) o ar.t 751- não podendo o
interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá onde estiver, podendo a entrevista ser
acompanhada por especialista, conforme parágrafo 2º.

26
A formação de mediadores e conciliadores também foi um tema que trouxe inquietações no grupo,
tendo em vista o estímulo cada vez maior do CNJ na inserção da Mediação e Conciliação como
alternativa para a resolução dos litígios nas Varas de Família. Foram trazidos diversos
questionamentos quanto à contribuição da mediação enquanto solução de conflitos relacionada à
redução de processos e lentidão do judiciário, bem como mecanismo garantidor de acesso à Justiça.
Ainda, a compatibilidade ou não da mediação de conflitos com as dimensões teórico-metodológicas,
técnico-operativas e ético-políticas do Serviço Social. Para tanto, trouxemos como pauta da
discussão o parecer preliminar do CRESS nesse sentido.
230
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Embora a participação em audiência faça parte das atribuições dos


assistentes sociais judiciários, conf. Prov. 30/2013 CGJ, entendemos ser mais
coerente com a complexidade das ações judiciais em que nosso parecer é
demandado, que nossa contribuição profissional se dê privilegiadamente por meio
da perícia social possibilitando pareceres mais contextualizados e assertivos.

Em virtude dos atendimentos previamente agendados seja no Fórum ou na


residência dos interessados ou mesmo em outras instituições (escola, posto de
saúde, etc.), caso a participação em audiência seja imprescindível, destaca-se a
necessidade de planejamento com antecedência, conforme §4º do art. 477.

A presença do Assistente Técnico nas diligências, conforme §2º do art. 466,


foi um dos pontos mais discutidos e polêmicos do grupo de estudos. De forma geral
é consenso entre os profissionais que participaram do grupo de estudos que essa
participação fere os princípios do código de ética profissional de serviço social. Em
virtude desse entendimento, convidamos a Assistente Social Eliê Damares, que
trabalha como assistente técnica, para um debate sobre essa questão. A profissional
se posicionou contrária a essa participação, defendendo seu posicionamento “no
Serviço Social o trabalho do assistente técnico tem início após o laudo social ser
inserido pelo perito nos autos judiciais”.

Tendo em vista as particularidades do nosso trabalho nas situações de


avaliação, estudo e perícia social, entendemos que ingresso de assistente(s)
técnico(s) pode constranger e inibir os entrevistados, em especial as crianças e
adolescentes, bem como contraria o art. 11º do Código de Ética do Serviço Social,
ao qual também deve se sujeitar o assistente técnico dessa área, que veda ao
Assistente Social na alínea “a” intervir na prestação de serviços que estejam sendo
efetuados por outro profissional, salvo a pedido desse profissional; ou quando se
tratar de trabalho multiprofissional e a intervenção fizer parte da metodologia
adotada. Bem como fere, no entendimento destas subscritoras, o princípio do sigilo
profissional descrito nos arts. 15-17 do Código de Ética.

A respeito de tal matéria há também Comunicado do Núcleo de Apoio


Profissional de Serviço Social e Psicologia do TJSP, publicado no DJE de
16/12/2008, que possivelmente será atualizado tendo em vista o ofício do Serviço

231
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Social encaminhado pela juíza corregedora da Vara Central de Família para o


referido Núcleo.

Entendemos a necessidade de organização política junto aos mecanismos de


defesa, como CRESS, CFESS, AASPTJ dentre outros, para que o Serviço Social se
legitime cada vez mais dentro dos espaços sócio ocupacionais. Dessa forma,
pretendemos continuar e aprofundar os debates sobre os desafios e as
possibilidades do Serviço Social dentro da atual conjuntura brasileira.

Aguarda-se a emissão de algum parecer por parte do CRESS-SP ou mesmo


do Conselho Federal de Serviço Social CFESS que dê respaldo para a(o)s
assistentes sociais tal qual possuem a(o)s psicólogos.

232
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Ao nos reportarmos à nossa proposta inicial para esse grupo de estudos,


concluímos que, nesse primeiro ano de trabalho, deixamos de aprofundar o estudo e
a reflexão sobre a perícia social, laudos, relatórios e pareceres em VFs e outros
temas e autores, por termos sido atravessadas, pelas demandas operativas
institucionais, especialmente as relativas à aprovação do NCPC.

Até o momento, o Serviço Social conta com pouco respaldo sobre a atuação
em Vara de Família e, dentre outras questões, sobre a participação do assistente
técnico nas etapas do estudo social.

Nesse sentido, esse grupo foi um espaço privilegiado para o estudo e a


discussão das mudanças ocorridas, contribuindo para um posicionamento
profissional coletivo na defesa dos direitos dos usuários da justiça e dos
profissionais assistentes sociais. E isso também significa o fortalecimento de nossa
identidade profissional como assistentes sociais atuando em Varas de Família...

233
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

FAVERO, E.T. Famílias: Serviço Social e Justiça- apontamentos sobre demanda e


prática profissional. In KOGA Dirce; GANEV Eliane; FÁVERO Eunice (orgs). Cidade
e questões sociais. São Paulo: Andross, 2008.

FÁVERO, Eunice Teresinha. O Estudo Social – fundamentos e particularidades de


sua construção na Área Judiciária. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO
SOCIAL – CFESS (org.) O Estudo Social em Perícias, Laudos e Pareceres
Técnicos: contribuição ao debate no Judiciário, Penitenciário e na Previdência
Social. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 10.

MARTINELLI. M. L. Uma abordagem socioeducacional. In: MARTINELLI, Maria


Lúcia; RODRIGUES, Maria Lucia; MUCHAIL, Salma Tannus (Orgs.). O uno e o
múltiplo nas relações entre as áreas do saber. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1998a. p.
139-151.

MIOTO, Regina Celia Tamaso. Perícia Social: proposta de um percurso operativo.


Serviço Social e Sociedade. São Paulo, 2001. v. 67. p 145-158.

LIMA, Edna Fernandes da Rocha. Alienação Parental sob o olhar do Serviço Social:
limites e perspectivas da atuação profissional nas varas de família. São Paulo: PUC,
2016. Tese (Doutorado em Serviço Social).

SÃO PAULO. Nota Técnica Serviço Social e a Mediação de Conflitos. Conselho


Regional de Serviço Social de São Paulo, 2016.

234
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

IMPLICAÇÕES DA CONJUGALIDADE NA PARENTALIDADE:


O OLHAR DA EQUIPE TÉCNICA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“VARA DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Ana Paula Hachich de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Vicente

Edna Fernandes da Rocha Lima – Assistente Social Judiciário – Varas de Família do


Foro Central

AUTORES

Ana Paula da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

Aparecida de Fátima Zacarin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales

Carmen Sylvia B. P. Camargo – Psicóloga Judiciário – FR VII - Itaquera

Claudia Gavião Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapetininga

Cristina Benedetti Sampaio – Assistente Social Judiciário – Varas de Família do Foro


Central

Elenir Nascimento de Carvalho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ubatuba

Eliana Cléia dos Santos Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Itanhaém

Iara Carvalho de Lorenzo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araraquara

Karen Schurhaus da Silva – Assistente Social Judiciário – FR XII - Pinheiros

Mara Regina Perez Fernandes - Psicóloga Judiciário – FR VI - Penha de França

Maria Aparecida Fachin – Psicóloga Judiciário – Comarca de Fernandópolis

Maria Elaine Martins – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba

Paula Silveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santos

Salvador Loureiro Rebelo Júnior – Psicólogo Judiciário – Comarca de Barueri

Sandra Aparecida Donaire – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jales

Wadson do Carmo Alonso – Psicólogo Judiciário – Comarca de Santo André


236
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Com o aumento do número de divórcios e frente às novas configurações


familiares que vêm se formando ao longo dos tempos, tornaram-se bastantes
diversas as situações que envolvem o exercício da parentalidade. Assim, frente às
novas demandas com as quais nos deparamos na atuação no contexto judiciário, o
Grupo de Estudos Vara de Família escolheu, em 2016, se aprofundar sobre as
relações entre a conjugalidade e as relações entre pais e filhos. As inquietações
diziam respeito às capacidades que os pais deveriam ter ou aperfeiçoar para
possibilitar aos filhos um desenvolvimento salutar.

O estudo englobou conceitos de parentalidade e seu exercício pelos pais e/ou


outras pessoas da família, principalmente em casos de ruptura conjugal, sendo este
um fator que influi sobremaneira na coparentalidade. Foram abordadas as dinâmicas
familiares e os comportamentos parentais e sua relação e influência sobre a criação
e educação de crianças e adolescentes.

Além disso, buscamos referências sobre como desempenhar o trabalho


pericial no campo da Psicologia e do Serviço Social no contexto do pós-divórcio e,
principalmente, como desenvolver um trabalho voltado para a autonomia da família e
não contribuir para o acirramento dos conflitos.

Para tanto, os estudos ao longo do ano englobaram textos de especialistas


sobre o assunto, o documentário O Começo da Vida e uma roda de conversa com
uma renomada profissional da área, Rosely Sayão, que compareceu a um dos
encontros a fim de debater conosco suas ideias e conceitos, contribuindo para a
discussão da temática.

237
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1. A INFLUÊNCIA DA CONJUGALIDADE E DO DIVÓRCIO NO


EXERCÍCIO PARENTAL

O trabalho cotidiano exercido pelas equipes de Psicologia e Serviço Social


nas Varas de Família e Sucessões implica na constante reflexão sobre as
necessidades das crianças e adolescentes e, assim, sobre a forma como pais e
responsáveis exercem a maternagem e a paternagem.

O documentário O começo da Vida (2016), por exemplo, dentre várias


reflexões, traz a tese de que uma intensa participação dos pais, principalmente no
primeiro setênio de vida de seus filhos, garante melhores elementos de pertença e
ampliação dos recursos psicológicos, emocionais e sociais.

O documentário refere, ainda, que a parentalidade pode ser desempenhada


por qualquer pessoa que tenha interesse emocional na criança e requer como valor
fundamental o estabelecimento de uma vinculação afetiva, a qual teria como função,
a princípio, integrar os milhares de ligações neurais que se formam a cada segundo
nos bebês e crianças, proporcionando, assim, o desenvolvimento saudável delas.

Já segundo Mesquita (2013), a parentalidade possui duas dimensões


fundamentais, essenciais para operacionalizar o conceito: o exercício de se implicar
na relação com os filhos, ou seja, o envolvimento parental, e o exercício de se
envolver na relação parental com o outro do par parental, denominada
coparentalidade. Estas duas dimensões podem compor ou não o repertório de
princípios e comportamentos dos pais.

A autora expõe que o exercício da parentalidade pode ser de qualidade


quando o par parental se compromete com suas responsabilidades (na educação,
nos cuidados, nas tomadas de decisões e manutenção da prole), quando está em
contato direto com os filhos e quando se dispõe (física e emocionalmente) às
relações com os filhos, e tais fatores independem se os pais ainda formam um casal
ou se a família foi atravessada pelo divórcio.

238
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Para ela (2013), a parentalidade implica a dimensão de coparentalidade, que


corresponde ao modo como o casal parental (pai e mãe), ainda em convivência ou
separado, coopera no exercício das suas funções paternas e maternas.

Para Wagner (2011), os conceitos de conjugalidade, parentalidade e


coparentalidade se tornam fundamentais para a compreensão da dinâmica familiar e
das rupturas. A autora define os conceitos da seguinte forma:

 Conjugalidade: interação na relação afetiva de um casal, não se limitando


àquelas relações formalizadas por lei;
 Parentalidade: conjunto de responsabilidades quanto às necessidades dos
filhos de maneira global;
 Coparentalidade: parentalidade exercida com uma responsabilidade em
conjunto com alguém, pelo bem-estar dos filhos.
O termo coparentalidade, assim, pode ser utilizado não somente em situações
de divórcio, pois se refere a um interjogo de papéis, um cuidado global dos filhos. A
parentalidade existe anteriormente à separação e continuará a existir após o
divórcio. A autora afirma que casais com forte carga emocional conflitiva dificilmente
conseguem definir fronteiras nítidas entre a parentalidade e a conjugalidade.

Importante ressaltarmos que esta dimensão não está necessariamente


atrelada à parentalidade, uma vez que encontramos, em nossa prática profissional,
muitos casais conjugais com problemas na parentalidade, enquanto outros
desenvolvem uma ótima parentalidade após o divórcio.

A autora explica que o conceito de envolvimento parental é uma das


dimensões do conceito de parentalidade e expõe que ele é formado por um conjunto
de aspectos: o tempo despendido pelo pai/mãe em interação com o filho (brincando,
ajudando-o nos trabalhos de casa, entre outros); a presença do pai/mãe e sua
disponibilidade (estar em casa ocupado, mas podendo assistir o filho, se
necessário); responsabilidade do pai/mãe pelo bem-estar e cuidados com a criança
(participar nas decisões concernentes ao filho, providenciando recursos econômicos,
por exemplo).

Simplesmente conceituar a parentalidade não operacionaliza o trabalho


cotidiano das perícias no Poder Judiciário, mas a ligação afetiva com os filhos e o
239
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

envolvimento com o outro do par parental fornecem indícios sobre o referido


conceito, embora isso não seja suficiente para a compreensão global que se deseja
ter a respeito das famílias.

Pode-se interpretar o engajamento e a coparentalidade respeitosa como


atitudes positivas, que, a princípio, também dependem do momento que a família
atravessa, visto que o exercício da parentalidade é dinâmico.

Grzybowski e Wagner (2010) apontam que, na sociedade atual, o divórcio


entre casais se tornou um fato comum e que, quando envolve filhos, acrescenta
complexidade à situação, pois passa a existir uma série de deveres e
responsabilidades a serem compartilhados.

Como, muitas vezes, as relações pós-divórcio envolvem hostilidade entre as


pessoas envolvidas em decorrência do término da relação amorosa, essas questões
se entrelaçam e se confundem, podendo impedir o pleno desenvolvimento das
relações interparentais.

A este respeito, Dolto (1989) ressalta que a situação de conflito entre os pais
e a decisão de separação deve ser conversada com os filhos, ressaltando que a
separação pode ser vista como uma solução. A autora destaca que deve ficar claro
para os filhos que os desentendimentos existentes entre o casal não os exime dos
compromissos com os filhos. Para ela, o divórcio pode ser visto de uma forma
positiva na medida em que traz uma solução legal para a situação de conflito que
envolve todos os membros da família.

A autora afirma que, mesmo durante a convivência conjugal, a mãe deve


permitir e introduzir o pai nesta relação. A este respeito, ela fala de uma importante
mudança nos costumes atuais na hora do parto. Hoje em dia, é comum os pais
estarem presentes na sala no momento do parto. Assim, do ponto de vista simbólico,
este pai já começa aos poucos a ser introduzido ao filho através da segurança e do
afeto que oferece à mãe. Segundo ela, é a partir desta triangulação inicial (pai-mãe-
bebê) que a criança se estruturará psiquicamente e passará a estabelecer outros
vínculos sociais no futuro.

240
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Estudo realizado por Grzybowski e Wagner (2010) aponta que, quando há a


ruptura do relacionamento amoroso do casal, são muitas as relações que se
estabelecem entre os fatores envolvidos no exercício das funções parentais e que
parecem marcar o exercício da coparentalidade pós-divórcio: a qualidade da relação
conjugal; os vínculos emocionais anteriores pais-filhos; o vínculo que uniu o casal e
se os filhos foram fruto de uma escolha mútua; se a separação foi conflituosa; se um
dos ex-cônjuges ainda tem forte vínculo afetivo e/ou sexual pelo outro.

Segundo tais estudos, os vínculos parentais parecem ser mais importantes na


determinação da coparentalidade quando dizem respeito à relação do pai com os
filhos, enquanto para os pesquisados, com relação às mães esse vínculo seria tido
como natural.

Apontam, ainda, que a coabitação também se mostra fortemente relacionada


à forma da coparentalidade. As mães têm mais práticas educativas individuais do
que os pais por, na maioria das vezes, assumirem os cuidados cotidianos;
entretanto, o fato de não haver coabitação não exclui o desenvolvimento de uma
coparentalidade saudável.

O entrelaçamento das variáveis apresentadas conduz a diferentes tipos de


coparentalidade: a solidária, com apoio mútuo, planejamento do futuro dos filhos,
cooperação, respeito, valorização, divisão de tarefas, foco no bem-estar dos filhos; a
destrutiva e conflitante: sem cooperação, excludente, permeada por críticas,
desrespeito, brigas e sem divisão de tarefas e responsabilidades; a inexistente,
quando cada um educa ao seu estilo, com pouco ou nenhum contato entre eles.

As autoras concluem que não é possível a indissociabilidade do subsistema


conjugal do parental e que a interdependência entre eles aponta para uma questão
central: o envolvimento parental se relaciona ao envolvimento conjugal, não sendo
possível investir apenas na relação pais-filhos sem um investimento na elaboração
dos conflitos do ex-par conjugal.

Já Cúnico e Arpini (2014), em pesquisa realizada no Rio Grande do Sul sobre


os papéis parentais pós-divórcio sob o olhar das mulheres chefes de família 27,

27
Campos (2010), em artigo que trata sobre a existência de uma chefia feminina, chama a atenção para a
utilização deste termo, pontuando que, enquanto para a figura masculina este termo ganha conotação de
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

levantaram diversas hipóteses e constataram que as mudanças que ocorrem na


dinâmica da família após a separação conjugal estão relacionadas à forma como o
casal se relacionou durante a convivência amorosa.

De acordo com a pesquisa, ocorre de pais se afastarem dos filhos com o


objetivo de se afastarem da ex-companheira. Os dados apontaram que outra
variável importante para a participação ou o afastamento paterno é o
posicionamento da nova companheira do pai, que pode levar à intensificação dos
conflitos ou colaborar para o exercício da coparentalidade.

As autoras identificaram que alguns pais podem se afastar dos filhos por
questões culturais, visto que comumente os filhos ficavam sob a guarda da mãe, o
que reforça uma não participação paterna nos cuidados deles e uma crença de que
é melhor que os filhos sejam cuidados pela mãe. Mesmo com as mudanças no atual
contexto, em que a paternidade vem sendo valorizada, a pesquisa apontou que os
mitos em relação à valorização da maternidade permanecem. Por sua vez, muitas
mães também entendem que suas relações com os filhos são mais fortes e, assim,
consideraram serem mais importantes para eles.

Ao analisar o material do estudo, o grupo de estudos observou que, muitas


vezes, nas relações em que as mães coabitam com seus filhos, elas podem exercer
uma relação de poder e controle. Percebem a figura paterna como secundária na
relação com os filhos e boicotam o ex-companheiro. Nesse sentido, situações em
que há acusação de maus-tratos ou alienação parental devem ser muito bem
analisadas pelos peritos.

Para operacionalizar as análises e buscar subsídios para compreender e


auxiliar os pais e seus filhos, entendeu-se que explorar o repertório social,
comportamental e emocional dos pais seria de grande valia.

‘status”, para a mulher, ser “chefe de família” significa mais responsabilidades, além daquelas que histórica e
culturalmente já lhe são delegadas: cuidados e educação dos filhos, além das tarefas domésticas. Geralmente,
é atribuído este reconhecimento apenas quando da ausência masculina e, ocasionalmente, em situações em
que a mulher se encontra em situação de vulnerabilidade socioeconômica. A autora, assim, traz algumas
reflexões significativas. Para aprofundamento do tema, sugerimos a seguinte leitura: CAMPOS, M. S. Para que
serve pensar a existência de uma ”chefia feminina” na família atual? In: DE MARTINO, M. (Org.) Infancia,
Familia y Género - Múltiplas problemáticas, múltiples abordajes. 1 ed. Montevideo: Ediciones Cruz del Sur,
2010, p. 55-74.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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2. DINÂMICAS, COMPORTAMENTOS E ATRIBUTOS PARENTAIS

Como exposto acima, a boa qualidade da coparentalidade está relacionada


ao exercício em que pai e mãe cooperam, articulam e agem conjuntamente, com
confiança recíproca na elaboração do conjunto de regras e decisões, tendo um
acordo sobre a coordenação das ações e participação ativa nos principais elementos
relacionados à vida dos filhos, incluindo práticas educativas, comunicação fluídica,
entre outros aspectos.

O simples ato de cooperar pode ser interpretado como uma qualidade


parental, já que, de acordo com Mesquita (2013), cooperar é agir conjuntamente
com o outro em vista da realização de um fim comum, com base na confiança
recíproca e visando à elaboração de um conjunto coordenado de regras e educação
com relação aos filhos.

Para as/os participantes do grupo de estudos, outra atitude parental


considerada fundamental é a comunicação parental, visando à troca do “discurso”
pelo “diálogo” e do “mandar” por “construir regras”. A comunicação deve ser entre os
pais, mas, também, com os filhos sobre as decisões que afetarão toda a
organização familiar.

Outras dimensões que devem ser exploradas e compreendidas dizem


respeito: à importância do filho na vida dos pais; ao conhecimento que estes
possuem a respeito de seus filhos; à disposição psicológica e emocional para
desenvolver novas formas de cuidado; à possibilidade de ampliação ou mudança de
papéis na relação com os filhos.

Uma questão bastante explorada no grupo foi o exercício da paciência com as


crianças e adolescentes, pois a realidade mostra que “criar filhos” é trabalhoso e que
a responsabilidade de desenvolver um ser humano demanda muita energia
psicológica e disponibilidade social e emocional.

Atitudes parentais como a valorização da expressividade da criança, a


presença constante e o apoio continente de pelo menos um dos genitores são
apresentadas como ferramentas que facilitam a construção de valores como a

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empatia e o reconhecimento do outro, ajudando a criança a estabelecer relações de


pertencimento e a estruturar sua personalidade.

Dolto (1989), ao abordar as habilidades parentais, usa o termo ventilação dos


afetos quando se refere à capacidade positiva dos pais de transformar em palavras
as angústias e sentimentos referentes à separação, realçando que muitas vezes é
indicado que conversem com outras pessoas antes de levar o assunto aos filhos.
Ressalta que o assunto separação deve ser sempre colocado em palavras, mesmo
que seja difícil para os pais falar sobre ele, pois considera as crianças capazes de
entender a realidade dos acontecimentos. Ao transformar o conflito em palavras, ele
se torna consciente, impedindo que os filhos possam idealizá-lo ou transformá-lo em
fantasia. Para ela, a não ventilação destes afetos através de conversas traria sérios
prejuízos ao desenvolvimento das crianças e adolescentes.

A autora afirma que esta ventilação de afetos se dá de maneira diferente nos


casos nos quais há processo judicial, pois, nestes casos, existe um deslocamento
sintomático que varia de um caso para outro. Considera que os operadores do
direito deveriam cientificar os pais de que, ao abrir o processo, “estão mais à procura
de pretextos do que de uma solução justa para os filhos e para eles próprios” (1989,
pág. 28).

Ao utilizar o termo ventilação do afeto, a autora salienta a importância de que


se possa humanizar a separação, transformando-a em palavras. A respeito dos
casos em que as coisas não são ditas, ela aponta a possível ocorrência de um
recalcamento deliberado ou inconsciente que pode ou não se transformar em
conflito psíquico, gerando mais sofrimento após o divórcio.

No trabalho pericial, analisar a capacidade de separar e elaborar os


problemas da conjugalidade do constante exercício de cuidar dos filhos e de
perceber a importância do outro genitor na vida da criança, elencando o filho como
norteador das escolhas, também é de suma importância durante a compreensão da
dinâmica familiar.

Quando estes aspectos são positivos, favorecem que os filhos se apresentem


mais equilibrados emocionalmente e confiantes quanto ao amor destes pais, sem
precisar se colocar em uma relação de escolha e pertença parcial.
244
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Tanto durante a convivência conjugal como no período pós-divórcio, é comum


que o raciocínio se oriente a pensar nas mães como as mais “hábeis” no trato com
os filhos. Contudo, não existe “um” jeito certo de cuidar dos filhos e esta virtude não
é exclusiva de mulheres; os homens cada vez mais são atuantes e desejosos de
participar da vida de seus filhos.

Não podemos ignorar que existe uma relação diretamente proporcional entre
o tempo de convivência e o exercício da maternagem, visto que historicamente a
guarda dos filhos tem sido concedida às mulheres. No entanto, há um aumento
perceptível na participação do pai desde a gestação, acompanhando todas as
etapas da criança, não mais como elemento secundário ou apenas como provedor,
mas como papel principal coparental, ou seja, agindo conjuntamente.

Ao analisarmos a evolução da parentalidade ao longo da história, é


inequívoca a percepção de que as relações foram sendo configuradas e
reconfiguradas. Na atualidade, parece haver um encorajamento a uma paternidade
responsável, em que os pais estão buscando um maior envolvimento, acessibilidade
e responsabilidade perante os filhos, rompendo o estereótipo de que cuidar dos
filhos é função materna.

De acordo com Balancho (2012), um pai que tenha uma resposta atenta,
meiga e centrada na criança e atitudes de controle parental moderado (limites,
regras, encorajamento a autonomia) tenderá a ser um bom pai, pois seus filhos mais
facilmente poderão alcançar autoestima elevada, sucesso acadêmico,
desenvolvimento cognitivo adequado e menos problemas de comportamento que
aqueles que têm pais controladores, autoritários e que não correspondem as
necessidades dos filhos, pois pensam, sobretudo, nas suas próprias necessidades e
desejos.

A autora apresenta dados de que pais que participam voluntariamente das


atividades escolares dos filhos, por exemplo, desenvolvem filhos com maior sucesso
acadêmico e melhor integração nas atividades extracurriculares. No que se refere à
adolescência, aqueles que se sentem amados e seguros na relação com o pai
tendem a uma menor incidência de gravidez e uso de drogas, violência e suicídio
(Balancho, 2012).

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Muitas vezes, o fato de os pais não serem mais ativos na educação dos filhos
se deve ao fato de que algumas mães se reservam o protagonismo na criação dos
filhos e exercem o controle autoritário das tarefas parentais, não cedendo espaço
para os pais, por vezes desacreditando que eles queiram, devam ou tenham
capacidade para fazê-lo. Na prática cotidiana profissional, é comum ouvir que muitos
homens só aprenderam a ser pais após o divórcio.

A autora aborda outras questões. Para ela (2012), o pai que passa seu tempo
com o filho, cuidando dele e tratando de sua rotina pelo menos duas vezes na
semana cria um adulto mais compassivo e compreensivo. Este grupo de estudos
considerou que, sendo os pais e mães modelos na educação dos filhos, cabe a eles
promover a autonomia, atribuindo aos filhos responsabilidades e poder de acordo
com sua idade para construírem seus próprios conhecimentos.

No que se refere aos comportamentos parentais necessários para a


promoção de um desenvolvimento saudável aos filhos, Gomide (2006) identifica e
nomeia sete práticas educativas, sendo duas consideradas positivas (monitoria
positiva e comportamento moral) e cinco negativas (abuso físico, disciplina relaxada,
monitoria negativa, negligência e punição inconsistente). A autora define Estilo
Parental como um conjunto de práticas educativas utilizadas pelos pais com o
objetivo de educar, socializar e controlar o comportamento de seus filhos, as quais
podem favorecer o desenvolvimento de características pró-sociais ou permitir o
aparecimento de atitudes antissociais, e especifica como as práticas podem
favorecer ou dificultar o desenvolvimento infanto-juvenil.

Em síntese, entende-se monitoria positiva quando pai e mãe têm


conhecimento acerca das atividades, gostos e preferências do filho. Quanto ao
comportamento moral, os pais ensinam valores como honestidade, empatia e senso
de justiça aos filhos, apresentando modelos positivos a eles.

Já com relação à punição inconsistente, ocorre quando os pais educam de


acordo com o humor do momento e não de forma contingente ao comportamento da
criança, deixando-as confusas quanto ao que é certo ou errado em seus
comportamentos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A autora define negligência quando os pais são ausentes, não se interessam


pelos filhos e não representam um papel significativo em suas vidas.

A chamada disciplina relaxada acontece quando os pais determinam regras e


acabam eles mesmos por desrespeitá-las ou esquecê-las. Por outro lado, quando
determinam regras em excesso, estas geralmente são desobedecidas e têm como
consequência uma relação pai/filho baseada na hostilidade, insegurança e
dissimulação. Adicionada a uma fiscalização também excessiva da vida dos filhos,
relembrando-os constantemente sobre as regras, este modelo educativo é chamado
de monitoria negativa (ou supervisão estressante). Essa monitoria envolve, ainda,
manipulação psicológica através da indução de culpa e retirada do amor, o que,
segundo ela, leva a consequências deletérias no desenvolvimento psicossocial dos
filhos.

Evidencia-se, então, que, de acordo com Gomide, a habilidade parental


consiste em promover uma educação pautada em práticas e controle afetuosos, com
limites claros e firmes por parte dos pais, resultando em uma maior capacidade
relacional dos filhos.

Já a inabilidade parental envolve diversas variáveis, estas por seu turno


bastante complexas e decorrentes da própria história de vida dos genitores.

Segundo Gomide (2006), pais que praticam o abuso físico utilizam práticas
corporais lesivas na tentativa de controlar o comportamento dos filhos. Para a
autora, o abuso físico e a negligência se mostram como os principais
desencadeadores de comportamentos antissociais de crianças e adolescentes.

Dolto (1989) também apresenta um exemplo do que considera prejudicial na


criação dos filhos quando chama a atenção para mães que obedecem a seus filhos.
Refere que esses filhos continuam sendo bebês por muito tempo, porque a mãe lhes
obedece como se eles fossem os porta-vozes de uma lei infantil que ela considera
que talvez esteja no coração de cada mulher: amar um único homem.

Esta autora desaconselha que um adulto volte para a casa dos pais após a
separação, uma vez que, nessa situação, na perspectiva dos filhos, isto pode
significar que o seu pai ou mãe voltou a se tornar criança. A autora salienta que é

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

preciso que os pais saibam que as soluções de facilidade se pagam caro mais tarde
e que é importante para os filhos que os pais se comportem como cidadãos adultos.
Segundo ela, o retorno para a casa dos pais é uma regressão para a criança, que se
descobre ao lado de pais artificialmente transformados em irmãos mais velhos,
machucados pela vida e que já não são modelos de adultos.

Conforme a discussão realizada pelo grupo, outra situação bastante


prejudicial para as crianças e adolescentes é quando os pais ficam deturpando e
difamando a imagem do outro e de sua família, criando paradoxos para a criança, ou
seja, a criança vive o dilema de não saber quem está falando a verdade, ou mesmo
pode acreditar que pai e mãe são exemplos ruins. Outrossim, deve-se reconhecer
que nem todos os pais e mães investem ou estão minimamente maduros para o
exercício parental.

Quanto à participação parental, Balancho (2012) esclarece que ter um pai


físico não significa necessariamente ter um pai, quando se trata da função simbólica.
É inquestionável que os filhos precisam ser cuidados e, não havendo o desejo dos
pais de cuidarem deles, é necessário encontrar alguém que o faça. Mas como lidar
com essa realidade no cotidiano Jurídico? Uma medida jurídica é capaz de tornar
alguém pai ou mãe?

O documentário “O começo da Vida” (2016) aponta que é de importância


fundamental a participação de outras pessoas significativas para as crianças, que
sejam capazes de proporcionar condições para uma infância saudável e o
desenvolvimento pleno. Sabemos que as funções parentais podem ser exercidas
independentemente do gênero e que não existe uma maneira, no singular, de cuidar
dos filhos, mas maneiras, no plural, e para os filhos é saudável conviver com essa
diversidade.

Em algumas culturas, os filhos são educados por outros agentes de


socialização, compreendendo a parentalidade como um exercício não privativo dos
pais. Através dos relatos de pais, professores, médicos e especialistas em
educação, o documentário explora a importância das relações afetivas estabelecidas
com os pais ou seus substitutos, uma vez que a partir dessa interação as crianças

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

recebem as referências de que necessitam para compreender e explorar o universo


que as cerca, o que pode resultar numa relação positiva ou não com a vida.

Nessa perspectiva, também aponta para a importância de se reconhecer e


valorizar a função do cuidador da criança, o que, em uma sociedade de fato
preocupada com a infância, seria revertido em políticas públicas por meio de
investimentos e garantias direcionadas aos adultos que desejassem dedicar um
período da vida para exercer exclusivamente a parentalidade.

Ao comparar o desenvolvimento à fundação de uma casa, o documentário


destaca a necessidade de que as primeiras etapas do de vida da criança sejam
vivenciadas de forma suficientemente positiva para que as fases seguintes possam
se sobrepor sem causar danos à estrutura do todo.

Não obstante a maior parte dos “requisitos” elencados anteriormente seja de


ordem subjetiva (disponibilidade emocional, capacidade de se envolver, elaborar,
refletir), existe um consenso de que é necessário haver um “tempo” real para que
filhos e pais estejam juntos, uma vez que vínculos são construções. Além disso,
questões de ordem financeira também afetam o tempo de convivência, qualidade de
vida e, consequentemente, a qualidade da relação.

Para além das questões subjetivas e práticas, é fundamental, também, a


análise do contexto social.

Na sociedade brasileira, as famílias estão cada vez mais sob a


responsabilidade de mulheres, sobretudo nas classes sociais mais baixas, enquanto
os homens que procuram assegurar seu lugar de cuidador dos filhos empiricamente
são pertencentes a grupos com maior estabilidade financeira, evidenciando que a
questão socioeconômica parece dar contornos para o tipo de participação paterna
que a criança ou adolescente receberá.

A pobreza, nesse contexto, é vista como sendo uma profunda violação dos
direitos humanos, pois implica em restrições para o exercício da parentalidade e dos
cuidados e atenção que a infância requer; dessa forma, crianças negligenciadas
seriam aquelas expostas a lares muito desorganizados, sobrecarregadas por

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

repetidas circunstâncias negativas e inseridas num círculo de falência por parte dos
pais, da família, da sociedade, da escola e dos governos.

A falta de acesso aos direitos sociais básicos muitas vezes tem relação direta
com situações nomeadas como negligência, podendo, no entanto, tal fato ser visto
como negligência do Estado, e não dos pais e mães que não conseguem ter acesso
aos serviços necessários. A ausência de uma figura de apoio às mães que são
abandonadas e têm de se responsabilizar sozinhas por todas as tarefas parentais
também pode afetar sobremaneira o exercício parental e colocar em risco o
desenvolvimento sadio das crianças e adolescentes.

O grupo debateu, ainda, mudanças significativas trazidas pela


contemporaneidade, como o fato de crianças e adolescentes não terem
conhecimento sobre alguns processos referentes à própria vida e à realidade; muitas
vezes, as crianças e adolescentes parecem não compreender as relações a que
estão submetidos e como afetam outras relações com suas escolhas, podendo, tal
condição, dificultar o alcance da autonomia. Parece-nos que, com o andar das
gerações, a noção do passo a passo se perdeu e o que se tem hoje são
adolescentes desconectados de seu próprio processo de desenvolvimento,
conectados apenas com a satisfação de seus desejos.

Conforme discutido pelo grupo com a psicanalista Rosey Sayão, embora


muitas mudanças conceituais tenham acontecido ao longo dos séculos no que se
refere às fases da infância e adolescência, algumas situações parecem persistir,
com nova roupagem: se antes crianças e adolescentes eram vistos como
miniadultos, atualmente são vistos como miniconsumidores, independentemente da
classe social.

No que tange os pais, para eles, os modelos tradicionais de seus pais e de


criança também se alteraram, havendo choques de gerações dentro de uma mesma
família. Dentro desta lógica que transversa todas as classes sociais, como os
adultos de famílias rompidas pelo divórcio ajudarão seus filhos a serem autônomos?

Incluídos neste cenário “fetichista”, de apelo à imagem, à estética e ao


consumo, e ao mesmo tempo de perda de referenciais a serem seguidos ou
contestados, encontram-se pais com receio de perder o amor de seus filhos,
250
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

tornando-se seus pares em vez de figuras de autoridade-afeto, e adolescentes com


latente sofrimento e dificuldades de se tornar adultos autônomos. Os filhos, diante
da insegurança apresentada, tiranizam seus pais e figuras de autoridade, visto que
os papéis estão enfraquecidos e os lugares na organização familiar confusos, muitas
vezes com atitudes de manejo parental inábil, pouca autoridade, educação
terceirizada, entre outros possíveis exemplos de lacunas muito comuns no cotidiano
das famílias.

No enfoque para o desenvolvimento da autonomia e independência dos filhos,


é importante que a família aceite e permita o ir e vir deles, sendo um porto seguro e
um ponto de apoio nesse processo e utilizando estratégias educativas que
contemplem o afeto e o controle, favorecendo, assim, o desenvolvimento de
melhores níveis de satisfação vital no sujeito e um autoconceito adequado. (Wagner,
2011).

Para o desenvolvimento da autonomia, além de ser necessário o próprio


desejo para tal, as diversas relações estabelecidas também influenciam esta
aquisição (família, vizinhos, escola, avós, entre outros), possibilitando que seja
preservada a ligação com a família e a sociedade.

Para a autora (2011), a autonomia deve ser entendida sob dois olhares: dos
filhos, principalmente adolescentes, e dos pais. Assim, os pais devem aprender a
escutar e respeitar os filhos e suas reações, tendo em vista a individualidade dos
mesmos, para que possam expressar sua afetividade, desejos e medos, de forma a
fomentar a sua autonomia. Já os filhos, comumente se distanciam dos ensinamentos
e valores transmitidos pelos pais para conseguir estabelecer seu próprio cabedal de
princípios, de forma individualizada, a despeito da enorme influência que o grupo
também exerce.

Nesta fase, são comuns sentimentos ambivalentes e atitudes contraditórias


por parte dos pais que, por vezes, prejudicam o processo de aquisição de autonomia
dos filhos.

Por fim, dentre as diversas variáveis apresentadas, este grupo de estudos


elencou a capacidade empática dos genitores como fundamental para o exercício de
uma parentalidade saudável. Podemos entender como empatia a capacidade de se
251
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

colocar no lugar do outro genitor ou do filho - a fim de “traduzir” seus sentimentos e


reais necessidades.

3. O OLHAR DA EQUIPE TÉCNICA SOBRE AS QUESTÕES


APRESENTADAS

O grupo, após diversos debates, considerou que, de forma geral, é importante


que os assistentes sociais e psicólogos estejam atentos a aspectos como: a
importância de equilíbrio de responsabilidades e direitos de ambos os pais por meio
da participação ativa no cotidiano dos filhos e do compartilhamento das decisões
referentes à saúde e à vida escolar; a capacidade de ambos de colocar regras e
limites; o reconhecimento de que ter filhos demanda tempo, dedicação, investimento
financeiro e emocional; a disposição para desenvolver novas formas de cuidados
dos filhos; a capacidade de elaboração dos conflitos conjugais e da separação para
enxergar a necessidade deles; entre outros.

Após o estudo e a leitura dos textos, debate sobre o documentário e


discussões sobre as práticas profissionais, o grupo considerou, também, que um dos
papéis dos técnicos do Poder Judiciário nas lides das Varas de Família é auxiliar nas
questões que perpassam o fim do relacionamento familiar conjugal para que mais
soluções autônomas sejam construídas pelos pares, sem a necessidade de nova
judicialização dos conflitos.

É importante escutar dos adultos responsáveis quais são suas referências


pessoais de pai, mãe e família, a fim de compreender a forma como lidam com seus
filhos, já que os papéis parentais passam por mecanismos internos de história
pessoal e acabam por se traduzir em (des)valores (GRZYBOWSKI, 2011). Nesse
sentido, Rosely Sayão apontou em sua palestra que é importante que cada família
escolha os valores e virtudes que consideram importantes para a educação dos
filhos.

Outro aspecto que deve ser avaliado diz respeito aos desequilíbrios de poder
na família que impedem o exercício da parentalidade por um dos genitores; em

252
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

alguns casos, a intervenção técnica pode sensibilizar os envolvidos a facilitarem o


exercício da coparentalidade.

Os técnicos, aqui peritos, têm a incumbência de buscar um olhar global sobre


a família, principalmente para não oferecer a elas um atendimento baseado em um
viés moralista e julgador.

Para as/os psicólogas/os, a parentalidade deve ser analisada caso a caso,


levando em conta os vínculos estabelecidos entre os membros da família frente à
realidade psíquica de cada um e a dimensão simbólica da parentalidade, bem como
as funções parentais, que podem estar disvinculadas do gênero e da condição de
filiação biológica. São aspectos importantes, ainda, as vivências individuais e
familiares transgeracionais e a interação social.

No tocante à parentalidade, os assistentes sociais podem direcionar sua


análise compreendendo aquela família única, respeitando suas dinâmicas, dentro do
entendimento de que há diferentes configurações familiares, em um contexto
histórico, social, político e cultural, na perspectiva de proteção dos direitos da
criança e adolescente, em especial o direito à convivência familiar e comunitária.

É importante evidenciar que a parentalidade perpassa as relações que são


estabelecidas pela criança com os adultos de seu meio social e familiar, com sua
rede de apoio e proteção.

O/a assistente social e a/o psicóloga/o devem distinguir o que é desproteção


daquela criança pelos pais por condicionamentos individuais das questões de
desproteção da família por um sistema excludente, sem atendimento universal de
políticas públicas, culpabilizando a família por questões macrossocietárias.

Por fim, observamos que a interdisciplinaridade está no fato de que as duas


categorias contribuem para uma visão mais global e atuam de forma a possibilitar
que as famílias exerçam a parentalidade de maneira mais adequada e saudável,
sempre baseada na luta pela garantia de direitos.

253
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Na análise do grupo, concluímos que cabe às/aos assistentes sociais e


psicólogas/os do TJ que atendem litígios envolvendo convivência familiar alçar um
olhar apurado e crítico às situações, pautando-se nas respectivas fundamentações
teórico-práticas e, juntamente com o exercício da empatia, procurar facilitar a
interação das famílias atendidas.

Assim, as/os profissionais devem, durante o atendimento das demandas


judiciais que se apresentam, buscar conhecer as histórias apresentadas por cada
um e apontar as potencialidades das famílias, dentro do contexto socioeconômico e
cultural apresentado por elas, de forma a atender adequadamente ao direito da
criança e/ou adolescente de convivência com ambas as linhagens familiares.

Buscamos, a partir dos estudos, elencar alguns indicadores a respeito de


atributos parentais que podem dificultar o favorecimento de um desenvolvimento
salutar dos filhos, a saber: dificuldade de se desvencilhar dos conflitos advindos do
relacionamento com o ex-cônjuge; superproteção por parte dos genitores;
dificuldades de reconhecer o crescimento e favorecer a gradativa autonomia dos
filhos, tratando-os continuamente come bebês e, principalmente, colocar a criança
como objeto de disputa dos pais e cometer atos de alienação parental.

Outra conclusão a que o grupo chegou foi de que é fundamental um olhar


atento sobre as configurações familiares, pois, muitas vezes, a parentalidade está
submersa e emaranhada à conjugalidade, situação comum em contextos de
separação. A situação se torna mais preocupante quando as dificuldades
decorrentes da ruptura conjugal perduram e continuam prejudicando o exercício
saudável da parentalidade, sendo esse um aspecto a ser refletido com a família.

Concluímos, por fim, que o material de estudo aponta para a importância do


acolhimento das famílias por parte da equipe técnica, demonstrando empatia para
as dificuldades vivenciadas por elas, mas com a possibilidade de evidenciar que os

254
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

conflitos foram e são coconstruídos, e como a criança e/ou o adolescente pode


acabar se tornando invisível para os pais no emaranhado dos litígios e acusações.

Por fim, o grupo também avaliou a importância da constante qualificação dos


técnicos, uma vez que muitos dos temas atuais não estavam presentes na formação
profissional de ambas as profissões, além das diversas mudanças nas legislações
quanto às relações parentais, como as leis da guarda compartilhada e da alienação
parental, bem como alterações no ECA. Destacamos, ainda, a necessidade de se
valorizar iniciativas como os grupos de estudos, para que os profissionais
mantenham esse rico espaço de troca e crescimento, dada a relevância do trabalho
que desempenhamos para as famílias atendidas e à sociedade .

255
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BALANCHO, L. S. Ser Pai Hoje: a paternidade em toda sua relevância e grandeza.


Curitiba: Juruá, 2012. p. 112.

CÚNICO, S. D. e ARPINI, D. M. (2014). Conjugalidade e parentalidade na


perspectiva de mulheres chefes de família. Psicologia em Estudo, Maringá, 19(4),
693-703. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/pe/v19n4/1413-7372-pe-19-04-
00693.pdf.> Acesso em: 06.out.16.

DOLTO, F. Quando os pais se separam. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.


GOMIDE, P. Inventário de Estilos Parentais – IEP: modelo teórico, manual de
aplicação, apuração e interpretação. Petrópolis: Vozes, 2006.

GRZYBOWSKI, L. S e WAGNER, A. Casa do pai, casa da mãe: a coparentalidade


após o divórcio. Psicologia: Teoria e Pesquisa Jan-Mar 2010, Vol. 26 n. 1, pp. 77-87.
Acessado em 02/10/2016 em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722010000100010

GRZYBOWSKI, L. S. Ser pai e ser mãe: como compartilhar a tarefa educativa após
o divórcio? In: WAGNER, A. e col. Desafios Psicossociais da Família
Contemporânea. Porto Alegre: Artmed, 2011.

MESQUITA, M. Parentalidade: contributo para definição de conceito. Coimbra:


Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas - Universidade de Coimbra,
14/02/2013. Disponível em: <http://www.barometro.com.pt/2013/02/14/parentalidade-
contributo-para-uma-definicao-do-conceito/>. Acesso em: 9.out.16.

O COMEÇO da vida. Direção: Estela Renner. Documentário, Brasil, 2016.

REICHERT, C. B. Educar para a autonomia: desafios e perspectivas. In: WAGNER,


A. e col. Desafios Psicossociais da Família Contemporânea. Porto Alegre: Artmed,
2011.

256
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AUTORES E AUTORAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA


CRIANÇAS E ADOLESCENTES: ANÁLISE A PARTIR DE
UMA EXPERIÊNCIA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
257
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Lucimara de Souza – Psicóloga Judiciário - Vara da Região Norte de Violência


Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum de Santana
Maria de Fátima de Jesus Agostinho Ferreira – Assistente Social Judiciário - Vara
do Foro Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum
Criminal da Barra Funda

AUTORES

Aline da Silva Fernandes – Assistente Social Judiciário - Vara da Região Leste 2 de


Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum de São Miguel Paulista
Célia Pereira de Lemos – Assistente Social Judiciário – Segunda Vara Criminal de
Socorro
Cristina de Carvalho Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Monte Azul
Paulista
Elisangela Sanches Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales
Estevam Colacicco Holpert – Psicólogo Judiciário – Vara da Infância e Juventude
de Itaquera
Fausto Santos Borges – Psicólogo Judiciário – Vara da Infância e Juventude de
Itaquera
Ianara Kelly de Oliveira Paula – Psicóloga Judiciário - Vara da Região Leste 2 de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum de São Miguel Paulista
Irles de Souza – Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da Infância e
Juventude
Juliana Fernandes Iuan – Psicóloga Judiciário - Vara da Infância e Juventude do
Fórum Regional I – Santana
Leila Zanella – Assistente Social Judiciário - Vara da Infância e Juventude, Família
e Sucessões – Fórum do Ipiranga
Luciana Rosa Machado – Psicóloga Judiciário - Vara da Região Leste 1 de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum da Penha

258
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Lucinete Rodrigues de Santana – Assistente Social Judiciário - Vara da Região


Norte de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum de Santana
Maria Cristina Marques Ribeiro – Psicóloga Judiciário – Comarcas de Ribeirão Pires
e Rio Grande da Serra
Mariana Suemi Hamaguchi – Assistente Social Judiciário - Vara da Região Leste 1
de Violência Doméstica e Familiar – Fórum da Penha
Marta Rosana de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José do
Rio Preto
Roberta Goes Linaris – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Silvia Videira Zaparoli – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba
Silvia Vilela da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul

259
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos sobre Violência Doméstica e Familiar, após o ingresso


dos novos profissionais, realizou votação para definição do tema e optou por dar
continuidade ao conteúdo já estudado no ano anterior, de modo a aprofundar várias
questões sobre os autores e autoras de violência sexual contra crianças e
adolescentes.
Esta escolha se deu em virtude da peculiaridade do trabalho desenvolvido no
Tribunal de Justiça, ou seja, nós, profissionais, atendemos a todos os envolvidos em
situações de violência, geralmente, as vítimas, os familiares e os averiguados; bem
como pelo alto número de processos em que atuamos com esta modalidade por
meio de estudos psicossociais realizados junto aos processos e inquéritos policiais
das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, das Varas de Família
e Sucessões, das Varas de Infância e Juventude, das Varas Especiais da Infância e
da Juventude e nas Varas das Comarcas do interior do Estado de São Paulo.
Nos encontros realizados este ano, tivemos a oportunidade de trocarmos
experiências a partir de nossa prática profissional de assistentes sociais e de
psicólogos, bem como discutimos a realidade vivenciada, os desafios e as condições
de cada local de trabalho. A fim de subsidiar nossas discussões, assistimos e
debatemos filmes como: O quarto de Jack, O Lenhador, A caça, Filhas da Índia,
entre outros que conduziram nossa reflexão.
Consideramos importante convidar profissionais que, de alguma forma,
atuaram em atendimentos a autores de violência, seja na prática profissional com as
vítimas, com autores e autoras de violência sexual contra crianças e adolescentes,
seja orientando trabalho de pesquisa sobre o assunto.
Em especial, destacamos a dissertação de mestrado da advogada Simone
Foyen, orientada pela Dr.ª Eunice Teresinha Fávero, assistente social aposentada
com larga experiência no Tribunal de Justiça e grande contribuição na análise deste
espaço sócio-ocupacional. Eunice é autora de muitos livros e periódicos na área
sociojurídica e aceitou nosso convite, dispondo-se a conversar sobre a orientação da
dissertação de Simone, cujo título é “A violência sexual contra a criança no contexto
260
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

doméstico, sua proteção e a responsabilização do abusador: uma análise sobre a


produção da prova”; sobre a responsabilidade da equipe técnica quanto ao
depoimento sem dano; as repercussões da Lei Maria do Rosário e a contribuição da
Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça.
No mês de agosto de 2016, a assistente social Kelly Rodrigues Melatti – que
atua no CREAS de São Mateus, docente da Faculdade Mauá e integrante da
diretoria do CRESS/SP – apresentou a sua experiência acerca do período em que
atuou no CRAMI de Santo André e da ocasião em que atendeu crianças e
adolescentes vítimas de violência sexual, familiares, autoras e autores que
cometeram violências.
Em sua apresentação, Kelly abordou o tema da dissertação de mestrado “A
reprodução da violência doméstica e suas interfaces com a lógica da dominação” e
socializou conosco reflexões importantes sobre a interface da violência e o modo de
ser capitalista, entendendo a violência no âmbito de um conjunto de opressões que
são produzidas e reproduzidas no cotidiano. Discorreu ainda acerca da hierarquia
das relações sociais que pressupõe a manutenção de esquemas patriarcais de
pensamento, reforçando, sobretudo, as expressões da questão social, tais como
opressões de classe, gênero, raça, etnia e de gerações.
Mencionou também a naturalização da violência como um fenômeno
multicausal; o modo de pensar capitalista influenciando na função social atribuída à
violência doméstica no contexto da reprodução ideológica da dominação; a
sociabilidade regida pela mercadoria, produtora de comportamentos coisificados,
expressos na valorização da posse mercantil, na competitividade e no
individualismo.
Citou casos atendidos em sua prática profissional e os dilemas enfrentados
entre a violência e ética: a agressão física e a violação do outro como ato ideológico;
indagou se estamos a perceber e a reproduzir esta lógica no cotidiano e, em
seguida, propôs uma reflexão ético-política das possibilidades de fortalecimento de
um agir ético, recusando o imobilismo e superando a questão punitiva e de
responsabilização para um patamar de atendimento especializado com respostas
coletivas para a superação da violência.
No mês de setembro de 2016, o psicólogo Bruno Cervilieri Fedri, que
atualmente trabalha no CRAVI – Centro de Referência e Apoio à Vítima, apresentou

261
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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sua experiência quando trabalhou no CRAMI - Centro Regional de Atenção aos


Maus-Tratos na Infância do ABCD, em que atuou como psicólogo na unidade de
Santo André. Descreveu a realização do atendimento terapêutico que efetuou, bem
como o acompanhamento dos autores de violência sexual contra crianças e
adolescentes no CRAMI e no CRAVI.
Bruno destacou os desafios enfrentados pela equipe técnica composta por
assistentes sociais e psicólogos, bem como as especificidades do atendimento,
tecendo considerações sobre o atendimento interdisciplinar ao autor de violência
sexual. Mencionou ainda que não há um consenso entre os especialistas quanto à
nomenclatura utilizada para caracterizar pessoas que praticam abuso sexual.
Ressaltou o compromisso com a ética profissional e com os direitos humanos
no atendimento, de modo a enxergar todos os envolvidos como sujeito de direitos.
Discursou sobre o preconceito e a estigmatização e, em seguida, abordou o abuso
sexual, uma das formas mais comuns de violência contra crianças e adolescentes,
que é praticado no âmbito de uma relação de poder. As vítimas tendem a apresentar
comportamentos sexuais não compatíveis com suas idades, preocupação
exacerbada com o corpo, dificuldades de lidar com limites, utilizam roupas como
forma de promoção ou de proteção de suas sexualidades e confundem amor com
sexo.
Em relação aos indivíduos que abusam sexualmente, mencionou que estes
tendem a serem pessoas amigáveis, amáveis, bem apresentadas e preocupadas
com a aparência, bem como apresentam histórico de violência intrafamiliar,
especialmente no que tange à diferenciação de papéis na família, mantêm
relacionamentos interpessoais marcados pela hierarquia e poder; no que se refere
aos homens, apresentam grande temor de dependência.
Quanto aos pré-requisitos para o profissional que realiza o atendimento, este
deve ter o direito de: poder escolher se deseja atender a pessoa, conhecer e
respeitar seus limites profissionais e pessoais, manter seu compromisso com os
direitos humanos, a saúde e a integridade da pessoa atendida.
Bruno ressaltou também a importância do trabalho interdisciplinar, ou seja, da
Psicologia e do Serviço Social caminharem juntos, de entenderem a história de vida,
os relacionamentos interpessoais, a promoção da integração e da responsabilização
da pessoa que abusa, e que isto ocorre quando o indivíduo que pratica abuso sexual

262
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

percebe que ele cometeu o abuso por se sentir autorizado a fazê-lo e que ambos
são vítimas, em todas as situações.
Alertou ainda que o atendimento da equipe deve ser realizado de forma clara,
evitando pactos de silêncio, de maneira a informar ao atendido os limites do sigilo
profissional, bem como mantendo espaço de discussões de casos.
Os métodos de estudos utilizados no decorrer deste semestre foram: leitura,
discussão de textos, exposição e debate a respeito de filmes, troca de experiências
com profissionais convidados, rodas de conversa com os componentes do Grupo e
análise de estudos psicossociais. Após debatermos a respeito das dificuldades e do
cotidiano profissional dos técnicos das Varas que atuam com casos de violência
sexual contra crianças e adolescentes, decidimos analisar um atendimento realizado
pelo Serviço Social e Psicologia e, a partir desta realidade, estabelecermos relação
com o conteúdo apontado na bibliografia e a rotina de trabalho com a qual os
componentes do Grupo se deparam.
Tivemos como objetivo principal analisar a realidade social e psicológica a
partir dos estudos da nossa rotina de trabalho, identificando os recursos existentes
no território, e, para a interpretação dos dados do caso escolhido, utilizamos
bibliografia voltada aos homens e mulheres autores de violência sexual contra
crianças e adolescentes.
A priori, elencamos a trajetória das legislações importantes na defesa das
vítimas, bem como a composição da rede socioassistencial existente para
atendimento a todas as pessoas envolvidas. Posteriormente, dividimos os
componentes em dois subgrupos, de forma que o primeiro analisou o caso escolhido
sob a perspectiva da prática profissional da Psicologia e, o segundo, sob o ponto de
vista do Serviço Social.
A fim de interpretarmos a realidade do caso pesquisado e discutido,
estabelecemos relação entre o que a bibliografia aponta, fazendo entrecruzamentos
com a situação apresentada. Deparamo-nos com a hipótese levantada incialmente
que aduz à escassez de locais adequados para realização de acompanhamento às
autoras e autores de violência, bem como às vítimas e aos familiares envolvidos.
Concluímos, por conseguinte, que a violência sexual contra crianças e
adolescentes é majoritariamente praticada por homens em relação às mulheres, em

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

todos os ciclos de vida, ou seja, na infância, na adolescência, na juventude, na fase


adulta e idosa.
Faz-se importante considerarmos que esta modalidade de violência pode
ocorrer também por parte das mulheres, mas a supremacia masculina na sociedade
capitalista é alarmante. Face a esta realidade, a ocorrência de violência praticada
pelos homens em relação às mulheres, é alta, injusta e desproporcional.
Compreendemos que, apesar da realização de campanhas, das constatações
e dos debates ocorridos no ano de 2016, em vários espaços públicos, sobre autores
de violência, masculinidades, violência de gênero e a violência sexual cometida
contra crianças e adolescentes, não podemos ficar inertes diante de dados
alarmantes. É necessária a criação e implantação de locais que realizem
atendimento adequado e pertinente aos autores de violência sexual, às vítimas e
aos familiares que necessitarem, em relação a todas as classes sociais.
Atualmente, nem as vítimas recebem um atendimento digno após as
consequências devastadoras em suas vidas, depois de serem acometidas por
diversas formas de violência.
Houve um acréscimo de discussões e implantação de iniciativa de grupos
reflexivos formado por homens que infringiram a Lei Maria da Penha e cometeram
violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive com o início de um grupo no
Tribunal de Justiça no Fórum do Butantã; contudo, no tocante aos homens que
cometeram violência sexual e admitiram que necessitam de ajuda e
acompanhamento, não existem locais que prestem atendimento específico. Somente
o CEARAS – que atende a todos os membros da família, inclusive o agressor, desde
que receba um ofício encaminhado pelo Tribunal de Justiça – e o SPVV que têm
atendido os agressores, mas entendendo que o objetivo maior do local é a atenção
às vítimas.
A maior parte dos homens agressores não admite ter cometido violência e
aquela parcela que admite, aguarda a condenação, visto que o réu confesso é preso
em caráter imediato. Acreditamos que, para além da penalização, é necessário
existir na política de saúde, da esfera executiva, profissionais capacitados que
consigam atender quem comete violência, a fim de que haja a interrupção do ciclo
da violência e para que exista a possibilidade de tratamento e de uma recuperação e
transformação de uma realidade tão complexa.

264
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1. CONTEXTUALIZANDO O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA SEXUAL


CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES, E AUTORES DE
VIOLÊNCIA

A violência sexual contra crianças e adolescentes acontece em todo o mundo


e é atribuída a uma série de fatores sociais, culturais, econômicos e psíquicos.
Trata-se de uma violação de direitos humanos universais à pessoa em
desenvolvimento. Conforme o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente e o artigo
227 da Constituição Federal, é dever da família, da sociedade e do Estado colocar
as crianças e os adolescentes a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência e exploração sexual da criança e do adolescente.
A exploração sexual pressupõe uma relação de mercantilização, na qual o
sexo é fruto de uma troca, seja ela financeira, de favores ou presentes. As crianças
ou adolescentes são tratados como objetos sexuais ou como mercadorias, e, em
algumas circunstâncias, pode estar relacionada a redes criminosas, segundo
Faleiros.
O abuso sexual não envolve dinheiro ou gratificação. Acontece quando uma
criança ou adolescente é usado para estimulação ou satisfação sexual de um adulto.
É normalmente imposto pela força física, pela ameaça ou pela sedução. Pode
ocorrer dentro ou fora do âmbito familiar. O abuso sexual com contato físico
corresponde a carícias nos órgãos genitais, tentativas de relações sexuais,
masturbação, sexo oral, penetração vaginal e anal. Essas violações podem ser
legalmente tipificadas como atentado violento ao pudor, corrupção de menores,
sedução e estupro. Existe uma compreensão mais ampla de abuso sexual com
contato físico que inclui contatos forçados.
Segundo Faleiros:

O problema da violência intrafamiliar está envolto em relações complexas


da família, pois os abusadores são parentes ou próximos das vítimas,
vinculando sua ação, ao mesmo tempo, à sedução e à ameaça. A violência
se manifesta pelo envolvimento dos atores na relação consanguínea, para
proteção da honra do abusador, ara preservação do provedor e tem
contado, muitas vezes, com a complacência de outros membros da família,
que nesse caso, funciona como clã, isto é, fechada e articulada.
(FALEIROS, 1998, p. 7).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O autor ressalta o problema no âmbito de segredo familiar, de modo que


diversos conceitos são abordados em contexto nacional e internacional. Atualmente,
os conceitos têm contribuído para a definição das diversas violências sexuais
cometidas contra crianças e adolescentes. O Código Penal prevê como crime o
estupro (artigo 213), o atentado violento ao pudor (artigo 214), a sedução (artigo
217), a corrupção de menores (artigo 218) e a pornografia (artigo 234). Os números
são assustadores e têm mobilizado diversas ações no sentido de repensarmos
formas de enfrentamento desta violação de direitos.
A violência sexual contra crianças e adolescentes configura-se como o
envolvimento destes em atividades sexuais com um adulto ou com qualquer pessoa
mais velha ou maior, nas quais haja uma diferença de idade, de tamanho ou de
poder, em que a criança é usada como objeto sexual para gratificação das
necessidades ou dos desejos do adulto, sendo ela incapaz de dar consentimento
consciente, em decorrência do desequilíbrio nas relações de poder ou incapacidade
mental ou física.
As crianças e adolescentes não estão preparados física, cognitiva, emocional
ou socialmente para enfrentar uma situação de violência. A violência sexual pode
acarretar graves prejuízos ao desenvolvimento das crianças e adolescentes, tais
como alto nível de ansiedade, tristeza profunda, agressividade, medo, pavor em
relação ao autor ou autora de violência, confusão de sentimentos, pensamentos
suicidas, isolamento, regressão no desempenho escolar, condutas antissociais,
distúrbio do sono, aversão ao próprio corpo ou a pessoas do sexo do agressor ou
agressora, gravidez ou doenças sexualmente transmissíveis.
Entende-se por autor de violência sexual qualquer pessoa que se aproxime
da criança ganhando sua confiança e afeto para praticar atos sexuais abusivos. Esta
estratégia é adotada pela maioria dos autores e, em pequena escala, pelas autoras
de violência sexual.
Na grande maioria das vezes, os autores de violência são pessoas da família,
tal como pais, padrastos, tios, primos, avós, irmãos mais velhos, entre outras. Via de
regra, as pessoas abusivas não respeitam as necessidades ou peculiaridades de
suas vítimas e suas ações podem envolver outras formas de violência contra a
criança ou adolescente.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Foyen (2014) ressalta que a sociedade rejeita o autor de abusos sexuais,


sobretudo quando a vítima é criança ou adolescente. Azambuja (2011) aponta que
precisamos ter um posicionamento contra a violência e não contra a pessoa que a
exerce; assevera que para quebrar o ciclo do abuso sexual é necessário,
principalmente, trabalhar com a pessoa que a pratica, pelo fato de a violência, em
muitos casos, prosseguir com outras vítimas. No universo pesquisado pela autora,
houve predominância de homens como abusadores, de modo que estes mantinham
grau de parentesco com a vítima de acordo com a seguinte ordem: o padrasto
figurou em primeiro lugar, seguido do pai, do tio, do primo, do cunhado, da mãe, do
avô, ex-companheiro da mãe, vizinhos, amigo da vítima, motorista de transporte
escolar, amigo da mãe da vítima, ficante da vítima em uma festa, o pai da amiga da
vítima, monitor do abrigo e amigo do irmão da vítima.
Os dados coletados na pesquisa realizada pela autora coincidem com outros
estudos realizados. A busca de conhecimento sobre o abusador é uma iniciativa
importante, de maneira que o poder público deve criar ações de combate e
enfrentamento da violência, priorizando não somente medidas protetivas e
preventivas, mas a criação de locais em que os envolvidos possam ser atendidos
com o cuidado e tratamento adequados.
Em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, marcou-se uma
nova etapa do sistema de garantia de direitos em âmbito internacional,
ultrapassando questões extremamente relevantes do ponto de vista ideológico,
cultural, religioso, econômico, civil e social; tal declaração tornou-se um marco
histórico, regulamentando direitos e garantias atribuídas às crianças.
Em 1959, a Declaração sobre os Direitos da Criança, proposta pela
Organização das Nações Unidas – ONU, constituiu um marco histórico de criação de
garantias e proteção à criança. A convenção expande os direitos da criança, tendo
sido ratificada em 1990. Em 1988, havia sido consolidado um sistema de proteção
diferenciado para a criança com a concepção de proteção integral, presente no ECA
- Estatuto da Criança e do Adolescente.
No texto constitucional, além de tentar colocar a criança a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, a lei
pune severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do

267
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adolescente, de acordo com o artigo 227 da Constituição Federal, em seu parágrafo


4º.
O ECA, em conformidade com a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, sustentou a luta pela criação de planos de enfrentamento à violência sexual
contra a criança. Em 2000, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente – CONANDA aprovou o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência
Sexual Infanto-juvenil, sendo a primeira iniciativa do Estado no ensejo de
estabelecer progressos para a minimização das consequências do abuso sexual
contra crianças. Estabeleceu diretrizes para a criação de políticas públicas que
visassem um embate desta forma de violência, sendo aperfeiçoado em 2003,
quando o plano foi atualizado no sentido de combater a exploração sexual infantil e
criar programas e serviços destinados ao atendimento de crianças vítimas de
violência sexual.
Em 2008, houve a criação de campanhas, como o Disque 100, bem como a
realização do III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes, sediado no Brasil. O Plano Nacional aprovado em 2013
firmou novamente o compromisso social de proteger os direitos das crianças quanto
à proteção contra a violência sexual.
Os autores de violência sexual geralmente são vistos como pessoas que
devem ser punidas, entretanto, é preciso dar atenção à situação considerando-se
todos os sentimentos e aspectos como um problema de saúde pública, cujo impacto
se dá na vítima, no abusador, na família e na sociedade.
A abordagem em relação aos autores de agressão sexual de crianças e
adolescentes permite uma melhor compreensão das possibilidades de intervenção
governamental nessa problemática. Prosseguimos com a expectativa no sentido de
permanecer exigindo estratégias de intervenção eficazes e adequadas, bem como
uma busca de fundamentação teórica sobre o tema e a implementação de ações
interdisciplinares com o intuito de superar a defasagem atual.
Ao nos depararmos com situações que necessitam de encaminhamento,
detectamos uma grande escassez de locais nos diversos territórios de abrangência
dos componentes do Grupo de estudos.
O que constou de modo unânime entre os profissionais foi a menção a
encaminhamentos à área da saúde, que não possui equipe técnica suficiente para

268
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realizar atendimento em todas as regiões, nem é possuidora de conhecimento


especializado para atuar de maneira eficaz com os autores de violência.
Ressaltamos que os NPV- Núcleos de Prevenção de Violência existem em algumas
localidades. Nas comarcas do interior de São Paulo, os profissionais mencionaram
que não foram implantados, até o momento, locais como os NPV - Núcleos de
Prevenção de Violência na área da saúde e os SPVV- Serviço de Proteção às
Vítimas de Violência, ligados ao CREAS.

2. SERVIÇOS E PROGRAMAS DESTINADOS ÀS VÍTIMAS DE


VIOLÊNCIA, FAMILIARES E AUTORES DE VIOLÊNCIA

2.1 NPV - NÚCLEOS DE PREVENÇÃO DE VIOLÊNCIA DA UNIDADE DE SAÚDE


NÍVEL: MUNICIPAL

Programa ao qual é vinculado: Atenção Integral à Saúde da Pessoa em


Situação de Violência - Redes de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde
Lei de Criação: Documento Norteador de Atenção Integral às Pessoas em
Situação de Violência do Município de São Paulo
Descrição do que é Ofertado ao Jovem: Os núcleos possuem equipes de
referência que organizam o acolhimento e o cuidado qualificado às pessoas em
situação de violência, tanto em relação às vítimas quanto aos autores da violência.
Objetivos: Minimizar o impacto da violência sobre os indivíduos, famílias e
comunidade; organizar e garantir ações de prevenção e assistência às pessoas em
situação de risco ou violência; fortalecer a Rede Integrada de Cuidados;
proporcionar acesso continuado à equipe de Saúde, possibilitando um espaço de
escuta qualificada frente às ocorrências de violência; e singularizar as intervenções
conforme as necessidades de cada indivíduo ou coletivo que demande ajuda dos
profissionais de saúde.
Temporalidade do Programa: Permanente
Público-Alvo: Pessoas em situação de violência

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2.2 SERVIÇO DE PROTEÇÃO SOCIAL ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES


VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA

Outro local para o qual a maioria dos profissionais realiza encaminhamentos é


o CREAS - Centro de Referência especializado da Assistência Social. Na cidade de
São Paulo, há 10 anos, existem os SPVV - Serviço de Proteção às Vítimas de
Violência, que são locais conveniados com a prefeitura criados para atender às
vítimas de violência e os familiares envolvidos. Como não existem serviços que
ofereçam atendimento especializado aos autores de violência, a Psicologia e o
Serviço Social têm realizado atendimentos psicossociais e não terapêutico.
Caracterização do serviço: Serviço referenciado ao Centro de Referência
Especializado da Assistência Social – CREAS e que oferece um conjunto de
procedimentos técnicos especializados por meio do atendimento social e
psicossocial, na perspectiva da interdisciplinaridade e articulação intersetorial,
visando ao atendimento às crianças e aos adolescentes vítimas de violência
doméstica, abuso ou exploração sexual, bem como aos seus familiares e, quando
possível, ao agressor, proporcionando-lhes condições para o fortalecimento da
autoestima, superação da situação de violação de direitos e reparação da violência
vivida.
Esse serviço está vinculado ao CREAS e mantém relação direta com a equipe
técnica deste Centro, que deverá operar a referência e a contrarreferência com a
rede de serviços socioassistenciais de proteção social básica e especial e com o
Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Conselhos Tutelares, outras
Organizações de Defesa de Direitos e demais políticas públicas, no intuito de
estruturar uma rede efetiva de proteção social.
Para garantir o comando único e a gestão estatal, a equipe técnica do CREAS
é responsável pelo acompanhamento da prestação do serviço, devendo ter
assegurados em suas atribuições:
 A realização de reuniões mensais de coordenação técnica de
monitoramento e avaliação com as executoras do serviço;
 O acesso aos relatórios, prontuários e Plano Individual de Atendimento
- PIA dos casos atendidos;

270
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

 A proposição de estudos de casos em conjunto com a executora,


principalmente aqueles com maior dificuldade de adesão à proposta de trabalho;
 A articulação com Sistema de Garantia de Direitos, com o Poder
Judiciário e outras secretarias;
 A inclusão no Cadastro Único;
 A articulação com o CRAS para inserção na rede socioassistencial da
Proteção Social Básica quando for o caso;
 A inserção na rede socioassistencial de Proteção Social Especial e nos
programas de transferência de renda quando for o caso;
 O acompanhamento às visitas domiciliares quando necessário.
Usuários: crianças e adolescentes de 0 a 17 anos e 11 meses, de ambos os
sexos, vítimas de violência, abuso e exploração sexual, bem como suas famílias.
Objetivo geral: Assegurar a promoção, defesa e garantia de direitos de
crianças e adolescentes vítimas de violência, abuso e exploração sexual.
Objetivos específicos:
 Identificar o fenômeno e os riscos decorrentes;
 Prevenir o agravamento da situação;
 Promover a interrupção do ciclo de violência;
 Contribuir para a devida responsabilização dos autores da agressão ou
exploração;
 Favorecer a superação da situação de violação de direitos, a reparação
da violência vivida, o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, a
potencialização da autonomia e o resgate da dignidade;
 Fortalecer a Convivência Familiar e Comunitária;
 Articular em rede com as demais políticas públicas, fortalecendo, dessa
forma, a prevenção à violência;
 Proporcionar atendimento psicossocial por meio de procedimentos
individuais e grupais;
 Contribuir com o sistema de informações sobre a violação dos direitos
da criança e do adolescente;
 Garantir articulação e comunicação permanente com os órgãos do
Sistema de Garantia de Direitos;

271
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

 Garantir a qualificação continuada dos profissionais envolvidos no


atendimento destinado às crianças e aos adolescentes vitimados pela violência;
 Contribuir para o fortalecimento de ações coletivas de enfrentamento à
violência, ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, na
compreensão de que a rede articulada potencializa recursos.
Funcionamento: Dias úteis, por um período de 8 (oito) horas diárias,
flexibilizando o horário de acordo com a necessidade dos usuários.
Forma de acesso ao serviço: Encaminhamento por parte do CREAS, CRAS,
Poder Judiciário e Conselhos Tutelares.
Unidade: Espaços/locais (próprios, locados ou cedidos) administrados por
organizações sociais sem fins econômicos.
Abrangência: Distrital
O serviço é organizado da seguinte forma:
 O atendimento psicossocial é desenvolvido através de ações ou
serviços oferecidos individualmente e em grupos (crianças e adolescentes),
incluindo a família, a escola e os agressores. Busca-se trabalhar preventivamente a
promoção da saúde mental e do bem-estar, bem como melhorar o processo de
ensino-aprendizagem em seu aspecto global: cognitivo, emocional e social, com
uma atuação mais próxima, acolhedora e compreensiva, promovendo a escuta e o
acolhimento aos grupos. Nessa atividade atuam as áreas de Pedagogia, Serviço
Social e Psicologia.
 O objetivo do atendimento psicossocial no Serviço de Proteção Social
às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e
suas Famílias é efetuar e garantir o atendimento especializado, e em rede, a
crianças e adolescentes em situação de violência e também a suas famílias, por
profissionais especializados e capacitados (BRASIL, 2006).
 O atendimento psicossocial é um instrumento fundamental para a
garantia dos direitos de crianças e adolescentes, que tem como referência básica os
princípios de prioridade absoluta, por serem sujeitos de direitos e em condição
peculiar de desenvolvimento.
 Configura conjunto de atividades e ações psicossocioeducativas, de
apoio e especializadas, desenvolvidas individualmente e em pequenos grupos
(prioritariamente), de caráter disciplinar e interdisciplinar, de cunho terapêutico – não
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confundir com psicoterapêutico –, com níveis de verticalização e planejamento


(início, meio e fim), de acordo com o plano de atendimento previamente
desenvolvido pela equipe.
 Esse atendimento deve ser operacionalizado, prioritariamente, pelos
grupos de apoio às crianças e aos adolescentes e pelo grupo de apoio às famílias e
de oficinas socioeducativas.
 Entende-se, por atendimento, a atenção física, jurídica, psicológica,
econômica e social prestada a todas as pessoas envolvidas na situação de
violência. O atendimento deve ser compreendido ainda como conjunto de ações
internas do CREAS e dos demais serviços da rede, e deve estar voltado, além da
atenção emergencial para a redução de danos sofridos pelos sujeitos, para a
mudança de condições subjetivas que gerem, mantenham ou facilitem a dinâmica e
as ameaças abusivas.
 As ações devem ser potencializadoras da autonomia, favorecendo a
participação na rede social ampliada, compreendendo crianças e adolescentes como
sujeitos desejantes e de direitos.
 Os profissionais envolvidos no atendimento psicossocial devem,
portanto, estar aptos a lidar permanentemente com o novo, sendo capazes de
observar, interpretar e compreender as situações que se apresentam. Para tanto,
devem ser instrumentalizados com sólido instrumental teórico (que permita leitura e
interpretação da realidade apresentada) e estratégias metodológicas e técnicas
(que possam ser utilizadas como referências de suas ações).

2.3 CRAMI - CENTRO REGIONAL DE ATENÇÃO AOS MAUS-TRATOS NA


INFÂNCIA

Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância, do ABCD, é uma


ONG fundada em 1988 com a missão de propiciar atendimento psicossocial a
crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e desenvolver ações
preventivas que lhes possibilitem incondicional defesa e proteção. Atuando nas
cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e Diadema, seu trabalho é
baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e prega o diálogo, carinho

273
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e respeito nas relações, além de oferecer apoio às famílias, a fim de que percebam
e repensem suas atitudes em relação aos cuidados e educação de seus filhos.
Realizam atendimento aos autores de violência sexual contra crianças e
adolescentes numa perspectiva psicossocial. Há anos realizaram psicoterapia, mas
no momento não ocorre. Os responsáveis esclareceram que acolhem todos os
envolvidos e que os agressores são atendidos semanalmente ou quinzenalmente,
de acordo com a necessidade e com o contrato estabelecido entre as partes.

2.4 CEARAS - CENTRO DE ESTUDOS E ATENDIMENTO RELATIVOS AO


ABUSO SEXUAL

Este centro foi criado em 1993 no Departamento de Medicina Legal, Ética


Médica e Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo. A proposta de criação deste Centro teve sua origem nos estudos
realizados pelo Prof. Dr. Claudio Cohen, oriundos de sua tese de Doutorado
publicada sob o título “O incesto um desejo” (COHEN, 1993).
O CEARAS caracteriza-se pelo atendimento familiar e pela articulação com a
Justiça. Prioriza-se o atendimento familiar por compreender que o incesto é um
problema que envolve toda a família e é muito mais abrangente do que a relação
sexual entre alguns membros do grupo familiar. O vínculo com a Justiça é baseado
na importância da lei social quando as leis familiares são transgredidas. A denúncia
como pré-requisito ao atendimento deve-se ao fato de que, por um lado, representa,
em algum nível, a possibilidade de busca de limite externo e a quebra do segredo
familiar; este tipo de mudança é uma forma de viabilizar o processo terapêutico. Por
outro lado, na ausência de uma denúncia judicial, esta deveria ser feita pelos
terapeutas que tomam contato com este tipo de caso envolvendo crianças e
adolescentes (tal como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA),
comprometendo a formação dos vínculos de confiança necessários ao atendimento.
Ademais, o CEARAS prioriza o atendimento familiar, dirigido a todos os
membros da família envolvidos afetivamente, e não obrigatoriamente a família
biológica. A partir disto, caso seja percebida a necessidade de atendimento
individual para algum membro da família, este é oferecido paralelamente ao
atendimento familiar. A frequência dos atendimentos é semanal em todos os níveis,

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de modo que possuem uma duração mínima de um ano e máxima de um ano e


meio. Cada atendimento individual é realizado por um membro da equipe, e o
familiar, por um ou dois outros terapeutas, sendo que esta definição leva em conta a
complexidade da família em questão.

3. DETERMINAÇÕES SOCIAIS COMO UM DOS ELEMENTOS PARA


COMPREENDER A VIOLÊNCIA SEXUAL PERPETRADA PELOS
AUTORES HOMENS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

O essencial é saber ver, mas isso exige de nós


uma aprendizagem de desaprender.

O que nós vemos das coisas são as coisas.


Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),


Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender [...]

Fernando Pessoa

Dando sequência à proposta do presente trabalho, à luz da teoria apreendida


no decorrer dos encontros do Grupo de Estudos, do arcabouço teórico-metodológico
do Serviço Social, articulando-o ao cotidiano específico do exercício profissional de
assistentes sociais em um estudo de caso real, busca-se compreender a dinâmica
da violência perpetrada pelos homens que figuram em processos de Vara de
Violência Doméstica e Familiar contra mulher enquanto autores de abuso sexual
contra crianças e adolescentes. Contudo, sabemos que ocorrem abusos sexuais
perpetrados pelo gênero feminino.
Em 2015, outro artigo nosso privilegiou uma primeira aproximação ao tema
supracitado. Destacamos naquela oportunidade, do ponto de vista do Serviço Social,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a construção sócio-histórica de gênero e como nós, assistentes sociais, intervimos


em situações de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Assim, os homens são os sujeitos em destaque desse tópico, mas eles não
estão sozinhos. Com eles estão as mulheres na fase da adolescência e na fase
adulta. São estes sujeitos que nos oferecem o rico material de análise para o
presente texto em construção.
Para tanto, é imperioso ressaltar que não é possível fazer uma análise – do
ponto de vista do Serviço Social, mesmo que breve – da vida objetiva desses
homens sem apresentar o cenário em que eles se movem. Dito de outra forma, se
fossemos considerar somente a singularidade de um sujeito, sem a articulação das
necessárias dimensões das condições de vida material impostas pelas contradições
da vida social em sua organização societária que se expressa em sua conjuntura e
na vivência em um núcleo familiar, incorreríamos no erro de uma leitura rasa,
estreita, desprovida de fundamentos e, por conseguinte, reproduziríamos a ideologia
do senso comum.
Com isso, não estamos afirmando que a violência da pobreza seja a causa da
violência sexual e/ou da violência doméstica, o que compreendemos é que a
violência estrutural favorece e potencializa as demais violências.
Sabemos que crimes de abuso sexual contra menores de idade ocorrem nas
diversas classes sociais (PINHEIRO, 2009). No entanto, as denúncias, estas sim,
chegam ao aparelho Judiciário, vindas notoriamente da classe trabalhadora mais
vulnerável.
Muitas vezes, as crianças ficam expostas às investidas de um abusador pela
própria configuração habitacional comum entre os ocupantes, o que facilita os
encontros, pois não há limitação de ambientes privativos. Assim, devido à circulação
de pessoas, tanto por familiar, como por vizinhos, há maior possibilidade de que
alguém perceba as violações de direitos à integridade infanto-juvenil e faça uma
denúncia aos órgãos competentes locais.
Em outras camadas sociais, como por exemplo, na burguesia, a violência
intrafamiliar se dá de forma velada, sem exposição pública policial, pois os possíveis
abusadores “resolvem” essas questões respaldados em suas posses econômicas,
criando saídas que são decididas exclusivamente no âmbito doméstico. Neste
sentido, as crianças e adolescentes recebem proteção exclusivamente do ponto de

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

vista financeiro, de lazer e de formação em escolas privadas, mas, inversamente,


podem ser negligenciadas em relação ao afeto e ao aconchego, tal como destacado
por Azambuja (2011, p. 344).
Desta forma, nas classes sociais mais privilegiadas, as crianças vitimizadas
poderão levar para a sua vida uma amplitude de danos, caso esses dramas não
sejam resolvidos em sua totalidade e delicadeza.
De forma diferente, porém não menos constrangedora, a criança pobre, cujo
caso foi levado à Justiça, teve que se submeter a um processo desgastante, com
suporte técnico/institucional sempre debatido pelos operadores na busca de um
melhor trato.
Igualmente, Kelly Rodrigues Melatti, assistente social, endossou nosso ponto
de vista: “[...] entendendo a violência no conjunto das opressões que são produzidas
e reproduzidas na vida cotidiana. É pensar a violência e suas conexões necessárias
com o modo de produção capitalista e debatendo o modelo de organização da
sociedade capitalista”28.
É justamente esse modelo de organização societária que explicita, no
cotidiano das famílias, as diversas violências, conforme revelou Melatti:

[...] Não é a família que dá origem aos processos de violência, o que muitas
vezes é expresso por ditados populares no nível do senso comum, do tipo:
“aprendeu em casa”, denotando uma retomada do valor conservador
familiar. Essa lógica é inversa. A família é que expressa a centralidade que
a violência, entendida como a redução do sujeito a uma condição de objeto,
possui na realidade do modo de produção capitalista. Trata-se de um ciclo
contraditório, que atua no cotidiano, com o imediatismo que este propõe.
(MELATTI, 2011, p. 53).

A primeira informação acerca de nosso caso em análise é que se trata de


abuso sexual contra uma adolescente que contava, na época do Boletim de
Ocorrência, com 13 anos. Ela se encontrava em um veículo estacionado em rua
erma em horário avançado (por volta das 23h) com seu genitor, tendo sido
abordados por dois policias militares. No exame sexológico, ficou comprovado o
abuso sexual, isto é, a ciência médica identificou que havia espermatozoides na
vagina da adolescente, de modo que o material ficou à disposição para a análise. O

28
Fala expositiva proferida em um dos encontros do nosso Grupo de Estudos no ano de 2016.

277
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que não foi identificado foi o autor da prática abusiva, uma vez que os autos foram
arquivados.
Com essas informações primárias, são oportunas as palavras de Melatti ao
justificar o motivo porque considera a violência um fenômeno multicausal:

[...] é um desrespeito ético; o outro deixa de ser sujeito na sua dimensão


humano-social e passa a ser tratado como um objeto e, nesse processo há,
por vezes, a reprodução da violência, mercadorizando e coisificando as
relações sociais de maneira hierárquica, cultural e geracional. (MELATTI,
2011, p. 11).

A mesma autora (MELATTI, 2011, p. 20) estende a compreensão acerca da


violência, mas no espaço doméstico, como um “fenômeno complexo, que envolve
aspectos culturais, sociais, políticos, ideológicos, psíquicos, emocionais e éticos”.
A real condição da família, que ora passamos a apresentar, é uma das
expressões da Questão Social imposta pelo modo de produção capitalista e que nos
coloca em contato direto com diversos tipos de violências a que os membros da
família estão expostos. Como o Serviço Social, em sua análise, privilegia as
verdades histórico-ontológicas dos sujeitos, que desvelam em sua totalidade a
realidade que é produzida e determinada socialmente, assim, todos os membros
dessa família vivenciam condições precárias da vida social, inclusive o homem
adulto (genitor) cuja denúncia de abuso sexual pesa sobre si.
A família nuclear da adolescente é composta por seus genitores (pai com 37
anos e mãe com 30 anos) e mais cinco irmãos (três meninos com 2, 7 e 12 anos e
duas meninas com 9 e 11 anos). A filha primogênita do casal foi concebida quando a
genitora ainda era adolescente. Tal fato é uma realidade em nossos atendimentos
do cotidiano profissional quando olhamos para a classe trabalhadora; é possível
observar que meninas adolescentes vivenciam a maternidade precocemente e/ou
que mulheres adultas tiveram seus filhos antes dos 18 anos de idade.
A família não tem acesso à política habitacional, pois residem em território de
ocupação, em área irregular, sem infraestrutura. Inclusive a melhoria das condições
de habitabilidade (dormitórios separados para os meninos e para as meninas) foi um
desejo, uma perspectiva do projeto de vida da adolescente, noticiado em entrevista.
Todos os filhos têm acesso à educação pública, estão matriculados em
Unidade Escolar e frequentam regularmente as aulas, com exceção do menino de

278
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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dois anos, que não possui garantido o direito a uma creche. A mulher adulta da
família possui nível de escolaridade baixíssimo, conseguiu estudar até o 4º ano do
Ensino Fundamental; o genitor possui Ensino Médio, recentemente concluído na
modalidade à distância.
Os relatos dos adultos nas entrevistas identificaram que devido à necessidade
de sobrevivência, iniciaram já fase da adolescência o trabalho na roça (local em que
se conheceram e casaram-se com autorização judicial), não tendo acesso ao
conhecimento no espaço da escola.
Compreendemos que a inserção precoce na vida laboral favorece a evasão
escolar, contribuindo para a permanência de um ciclo empobrecedor da classe
trabalhadora.
Por outro lado, a inserção no mercado de trabalho formal de pessoas com
baixa escolaridade precariza ainda mais o vínculo empregatício com baixíssima
renda, com extensa jornada de trabalho, sem acesso ao direito previdenciário, com
condições precárias do espaço de trabalho, entre outros. É o caso dos genitores da
adolescente; a mãe é empregada doméstica, trabalha das 10h às 19h, de segunda a
sábado, possui vínculo empregatício, mas sem arrecadação previdenciária, sendo
que sua renda mensal é de pouco mais que um salário-mínimo.
O genitor da adolescente é trabalhador desempregado. Sobrevive dos
chamados “bicos” como segurança, eletricista, pintor e encanador. Em relação à
renda, em média, recebe em torno de um a dois salários-mínimos, pois depende da
quantidade de dias trabalhados na semana. Na data da entrevista, encontrava-se
desempregado e recebia o seguro-desemprego. No último trabalho, permaneceu por
um ano, tendo saído da portaria do prédio no qual trabalhava por discussão com um
dos moradores, somada à agressão física e verbal. Afirmou que, ao ser chamado de
nordestino, desferiu um soco no rosto do morador. Foi realizado Boletim de
Ocorrência, mas o caso teve desdobramentos.
Analisar a situação de vida da classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2007),
no caso particular dos genitores da adolescente, é reconhecer a centralidade que o
trabalho possui na vida dos sujeitos sociais e os impactos da inserção (ou não) no
mercado formal de trabalho.
Neste sentido, o trabalho é uma categoria ontológica e dá-se pelo fato de ser
a primeira forma de atividade humana, presente em todas as sociedades. O trabalho

279
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é uma categoria que atravessa a história da humanidade, é uma atividade presente


em todas as épocas. As históricas palavras, mas sempre atuais, de Marx e Engels
nos ajudam a compreender melhor o “primado do trabalho na constituição dos
indivíduos sociais”.

[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda


existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o
pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para
poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida,
bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico
é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a
produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico,
uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como
há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente
para manter os homens vivos. (MARX; ENGELS, 2007, p. 32).

O trabalho horizontaliza o sentido da vida humana ao produzir e reproduzir o


que se necessita para a sobrevivência, assim como para satisfazer as necessidades
pessoais dos trabalhadores. O trabalho, ainda que precarizado, alienado, explorado,
desigual, tece uma rede complexa de relações sociais e de sociabilidade.
A falta de recursos financeiros advindos do trabalho para suprir as condições
objetivas de vida dos membros da supracitada família os inseriu na Política de
Assistência Social, e por meio do Programa de Transferência de Renda – Bolsa
Família, recebem mensalmente ¼ (um quarto) do salário-mínimo vigente. O que
revela a tentativa de alargar a proteção social desses sujeitos de direitos, mas ao
mesmo tempo, o Estado sobrepõe a assistencialização da pobreza em detrimento
do direito do trabalho.
Por causa do trabalho, a fim de suprir as necessidades materiais básicas da
família, a genitora da adolescente passa boas horas da semana fora do espaço
doméstico, tendo somente o domingo para estar com os filhos. Poderíamos nos
perguntar qual é o significado dessa ausência materna e quais são impactos na vida
de seus filhos.
Na entrevista, foi possível identificar alguns elementos dessa falta de
convivência: o limite de um convívio dialógico entre a genitora e a adolescente, em
que o genitor ressaltou ser de competência da mãe; a dificuldade explícita em
conversar com a filha temas relacionados a sexualidade, o que acabou por ficar a
cargo do genitor, em reuniões com todos os filhos, sem o devido cuidado em relação
à maturidade de cada um deles.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O genitor é quem passa a maior parte do tempo no interior da casa com os


filhos, pois seu trabalho é incerto. É quem está periodicamente responsável pelos
cuidados dos filhos, mas, igualmente, é quem exerce maior poder hierárquico sobre
a prole.
Nessa interface da esfera jurídica com a esfera executiva, no que diz respeito
ao acesso a bens e serviços, identificamos que a família está desprovida de
atividades de lazer ou culturais. Quando analisamos quais e como as expressões da
Questão Social incidem na vida de uma família, a falta de espaços para tais
atividades públicas, gratuitas e de qualidade reflete o não pertencimento ao território
de moradia, justamente porque o território periférico não oferece tais condições, o
que configura uma das expressões da Questão Social.
Reiteradas vezes temos observado, por meio de nossos atendimentos, que o
território de moradia das famílias tem ofertado aos seus moradores diversos espaços
para manifestação de suas crenças, seja qual for a denominação religiosa. O que
estamos afirmando é que esses sujeitos internalizam certas crenças que acabam
moralizando, por demasiado e com extrema rigidez, a vida cotidiana de seus
membros, chegando mesmo a aderir a um discurso arraigado de valores de
determinada religião, em detrimento de espaços que possam garantir maior
liberdade de pensamento e de expressão. Em entrevista, esse discurso foi a tônica
do genitor da adolescente.
Outro elemento que enfatizamos em nossa análise é concernente à dinâmica
de relacionamento entre o casal, os pais da adolescente. A genitora expôs um
histórico de violência vivenciada ao longo do relacionamento (“ele ficava dizendo pra
mim que eu era feia e mal feita”) caracterizada por meio da violência de gênero,
neste caso, a humilhação, ridicularização e isolamento, ou seja, formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher, que são vivenciadas pela genitora.
Tal violência pode ter sido motivo de ruptura de vínculos entre os adultos,
deixando o genitor com a responsabilidade dos cuidados da prole, pois todos os
filhos permaneceram na residência, uma vez que foi a genitora quem se ausentou
do espaço interno da moradia por seis meses, com retorno posterior.
Outro fator importante é o isolamento social dessa família, uma das principais
formas de manifestação no que se refere à violência de gênero, a qual tem como
objetivo o controle e a submissão. A violência embutida às mulheres desta família

281
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

impossibilitou a manutenção dos vínculos sociais, limitando a rede social e


colocando-as em situação de isolamento e fragilidade.

O conceito de redes sociais se apresenta como uma alternativa para a


abordagem da dinâmica nas relações sociais que as mulheres que sofrem
violência estabelecem com o seu entorno e os serviços que as acolhem,
constituindo-se um caminho possível pra a compreensão da complexidade
da vida social envolvida na violência doméstica contra a mulher. (DUTRA et
al., 2013, p. 1294).

Na esteira do enfoque sobre o isolamento social que fragiliza os vínculos e


oculta as violências intrafamiliares e domésticas, como supramencionado,
compreendemos que, não raramente, crianças e adolescentes são vítimas de
diversas formas de violência. Como é o caso da adolescente em questão. Ainda hoje
encontramos pessoas que as consideram (em especial as meninas, negras e de
baixa renda) como inferiores, não sujeitos de direitos e propriedades dos adultos.
Apesar de crescentes os debates e reflexões sobre o tema, é frequente
vermos nos contextos e espaços sociais (escolas, igrejas, famílias, organizações) a
reprodução de uma cultura de “posse” do adulto sobre a criança, que tira desta
última a condição de sujeito de direito, reduzindo a “objeto” ou “coisa”. Sendo assim,
nessa lógica, podemos subentender que elas são passíveis de serem possuídas.
No âmbito de alguns núcleos familiares, tal concepção ainda é mais
arraigada, legitimando a violência e o senhorio dos pais sobre seus filhos.
Se levarmos em consideração o caso em tela, é possível notar que em
determinado momento o genitor expressa que recebeu uma educação rígida, na
qual apanhava e sentia-se intimidado pelo pai. Entretanto, não entendia tal conduta
como violência, vez que, em sua concepção, é normal a aplicação de castigos
(inclusive físicos) como forma de correção.
Nesse contexto, é patente a perpetuação e naturalização da ideologia do pai
(detentor da autoridade e do poder) ter o “DIREITO” de “educar” o filho através da
“agressão física”. Tanto que ele reproduz tal ideia ao afirmar que ensinar supõe
castigos (inclusive divinos) e dá “aval” à professora de um dos filhos para dispor do
mesmo método em caso de não obediência da criança.
Em se tratando, ainda, de violência, Bruno Cervilieri Fedri, psicólogo, em sua
fala durante uma das reuniões do Grupo de Estudos, ao abordar o tema do abuso,
frisou que a violência sexual é sempre praticada dentro de uma relação de poder e
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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hierarquia. “Um sempre é mais forte”, por exemplo, na relação pai/filha,


patrão/empregada; professor/aluna, etc. Características próprias da construção
sócio-histórica do patriarcalismo.
Importante salientar, nesta análise, a interface da violência doméstica com a
política de saúde, pois podemos articular outras áreas do saber a fim de
enfrentarmos a situação da violência sexual a que crianças e adolescentes estão
expostas.
A família faz uso do Sistema Único de Saúde e é referenciada pela Unidade
Básica de Saúde do território. No entanto, não foi identificado que a adolescente
tenha sido atendida por médico especialista após o exame sexológico, embora a
genitora tenha sido orientada, em entrevista, a encaminhar a filha. Isso porque o
material encontrado no corpo da adolescente pode trazer alguns riscos para a
saúde: doenças sexualmente transmissíveis e gravidez.
Entretanto, Minayo (2005) assevera que a violência não é, em si, um tema
específico da área da saúde; contudo, afeta esse setor, pois provoca lesões,
traumas, mortes físicas e emocionais, causando amplo impacto na forma como
determina o modo de vida das pessoas nos aspectos biopsicossociais e
econômicos. De acordo com Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (2002, p.
27), a Organização Mundial da Saúde incluiu a violência como um dos mais graves
problemas de saúde pública e social no mundo.
Do ponto de vista de quem trabalha diretamente na área da Saúde, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) registra acerca da obrigatoriedade de
notificação de situações constatadas ou suspeitas de violência contra a criança,
assim como o faz o Ministério da Saúde que, apoiado no ECA, determina a todos os
profissionais e instituições de saúde que atendem no Sistema Único de Saúde a
obrigatoriedade do preenchimento da Ficha de Notificação de suspeita ou
confirmação de maus-tratos, assim como em relação à violência sexual contra
crianças e adolescentes e, posteriormente, o seu encaminhamento ao Conselho
Tutelar local.
A Lei Federal nº 10.788, de 24 de novembro de 2003, institui a
obrigatoriedade de notificação compulsória nos casos de violência contra crianças,
adolescentes e mulheres adultas, ocorrida em qualquer ambiente. Na realidade, a
notificação compulsória é um registro sistemático e organizado realizado em

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formulário próprio, utilizado em casos de conhecimento, suspeita ou comprovação


de violência contra a mulher. Não é necessário conhecer o agressor, mas é
obrigatório o preenchimento deste documento por parte do profissional de saúde.
A importância do intermédio da notificação compulsória se dá pela
possibilidade de realizar um mapeamento das formas de violência, dos agentes e
das proporções, sendo provável, assim, o desenvolvimento de ações voltadas à
prevenção, assistência e avaliação dos resultados, pois cabe ao Estado o combate à
violência, independentemente de seu tipo, de modo que através de legislação é
plausível caracterizar, coibir e punir estas condutas.
Em nosso entendimento, a adolescente está desprotegida, não só pelas
expressões da Questão Social (que é caso de Política com responsabilidade do
Estado) que incidem sobre a vida material da família, mas igualmente pela situação
de violência sexual que vivenciou, podendo ser (ou não) continuada.
E pode, presumivelmente, ser prosseguida pelas violências assinaladas e
com as ambiguidades e dúvidas que se colocam para o entendimento da genitora
em relação se o pai da adolescente (“Não acredito que o pai tenha feito isso com a
própria filha, não acredito. A minha filha negou, ela disse que não foi nada disso, eu
confio nela. Eu quero saber toda a verdade. Eu falo do que me contaram, também
não quero dormir com um homem que tenha caso com minha filha e se eu aceitasse
isso eu seria cúmplice”) teria cometido tal (ou tais) ato(s) abusivo(s), mesmo porque
nem ela mesma consegue se autoproteger da violência de gênero a que é
submetida pelo esposo.
Um dos elementos que assinalamos reiteradamente como forma de
enfrentamento à violência é a garantia dos direitos sociais, conforme preconiza a
Constituição Federal de 1988:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,


a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição. (BRASIL, 1988).

Em uma sociedade em que a desigualdade social imposta pelo metabolismo


do capital impõe à classe trabalhadora condições sub-humanas, extremamente
violentas, defender a política social é estratégia para a disputa de projetos
societários, assim como tentativa de diminuição das violências, pois temos
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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vivenciado em nossos atendimentos, de forma geral, a miserabilidade em que vivem


as famílias.

4. ANÁLISE PSICOLÓGICA DE UMA DINÂMICA FAMILIAR ABUSIVA

Antes de voltarmos nosso olhar sobre esse suposto autor de violência sexual,
parece-nos necessário relembrarmos um aspecto peculiar acerca do fenômeno do
abuso sexual contra crianças e adolescentes.
Sempre que qualquer ouvinte se depara com uma revelação de abuso é
comum o pensamento, mais cedo ou mais tarde: “será que isso é mesmo verdade?”
“Será que não é imaginação?” E caso não consiga se decidir entre uma hipótese ou
outra, é comum a proposição por um meio termo, dando origem a outra questão:
“Será que isso não é uma mistura de imaginação e realidade?” Nesse último caso,
ainda outro raciocínio surge: “se houve alguma coisa, será que não estamos
exagerando?”
Todas essas perguntas e suas possíveis explicações perpassam as mentes
de todos os envolvidos numa revelação de abuso sexual e o tempo todo que durar o
desvelamento dessa revelação inicial.
Isso porque, como nos ensinou a literatura científica sobre o assunto, o autor
de violência sexual cria para si próprio e para a criança ou adolescente um ritual,
que se inicia na realidade, com algo aparentemente inocente, caminha para o abuso
em si. Este, de traumático, do ponto de vista da vítima, e de perverso, do ponto de
vista do vitimizador, cria a dúvida (“eu não consigo acreditar que isso está
acontecendo!”) e tem um desfecho novamente na realidade, com algo também
aparentemente inocente. Todo esse ritual, que é o momento do abuso, fica num
momento, espaço e sensações que não se sabe se é real ou imaginário.
No caso analisado, quem nomeia a realidade do abuso é a policial militar no
momento em que olha para a cena do quase flagrante e diz: “Esse cara é safado,
estuprando a filha dentro do carro!”
Conforme nos ensina Furniss:

Somente o processo de nomear e as exatas palavras ditas em voz alta


criam o abuso sexual como realidade psicológica para a família e para os
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

membros da família. Sem as palavras, faladas clara e audivelmente, o


abuso não existe” (p. 45). [...] Nomear o abuso em voz alta tem [...] o efeito,
às vezes surpreendente, de que a pessoa que pronuncia as palavras passa
a ser vista como a pessoa que cria o abuso. [...]. A primeira pessoa, e
frequentemente é o profissional, que usa linguagem sexual e nomeia o
abuso, passa a receber a culpa pela crise familiar e serve de bode
expiatório para ela... como se a pessoa que quebrou o segredo familiar
fosse, na verdade, a pessoa que cometeu e é responsável pelo abuso.
(FURNISS, 2002, p. 46).

Embora o nomear a violência crie o abuso sexual como realidade para a


família, ele o cria num instante, num flash. No entanto, uma realidade tão cruel, tão
traumática, às vezes só pode ser enfrentada, num primeiro momento, com o
mecanismo de defesa da negação, como verificamos no discurso de Marcela: “Não
tava acontecendo nada, meu pai tava conversando dentro do carro, tava
conversando sobre o dia-a-dia meu, sobre minha mãe, sobre meu pai, essas
coisas...”.
A adolescente, por sua vez, também não consegue olhar para o espelho
criado pelas palavras da policial, e se refugia na dúvida: “será que isso, de fato, está
acontecendo comigo?” E conclui: “isso que estão falando é mentira [...] eu não tinha
coragem de fazer isso com meu pai e nem meu pai de fazer comigo”. Se fosse
realidade, a adolescente parece dizer para si mesma, “eu não teria coragem de fazer
isso e acho que meu pai também não teria”. Mas, nota-se que ela não usou o verbo
no condicional, ela o usou no passado e num passado real. Com essa frase, Marcela
parece nos dizer que houve um tempo em que ela distinguiu bem a realidade e não
teve coragem “de deixar” o pai “fazer isso”, mas depois, o seu conceito de realidade
foi atacado pelo autor do abuso (seu pai, sua figura de autoridade, sua referência
afetiva, seu protetor) durante o processo do ritual e agora ela se perdeu entre
imaginação e realidade.
E assim, num momento de lucidez e de desdém, Marcela abre sua entrevista
para falar do suposto abuso sofrido com estas palavras, repletas de ambiguidade:
“agora não tenho muita imaginação” para isso.
É importante mencionar que a adolescente continuou a conviver com seus
pais no período entre a denúncia e a realização das entrevistas, fator relevante
como influenciador de seu discurso.
Além dos elementos factuais que podem sugerir a ocorrência de um contato
sexual entre pai e filha, há, do ponto de vista psicológico, algumas correspondências

286
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

entre o perfil dos familiares e o que encontramos na literatura a respeito de casos de


violência sexual contra crianças. Para Dell’Aglio, Moura e Santos, no Brasil, “o abuso
sexual ocorre com uma frequência maior em meninas, dentro do seu ambiente
familiar”. Além disso, segundo as autoras, “é frequente a presença de assimetria e
hierarquia dessas relações, evidenciando desigualdade e relações de subordinação,
expressas por meio do poder dos pais sobre os filhos e do homem sobre a mulher”
(2011, p. 55). No presente caso, esta assimetria é reforçada pelo fato de que o
genitor é missionário da igreja, o que, de início, coloca o seu desejo como legítima
representação da vontade divina.
Encontramos a mãe de Marcela ainda atônita. Mesmo depois do quase
flagrante, inicialmente, ela se aproximou do discurso da filha em termos de
imprecisão, mas também pela ideia da “incerteza”: “Eu acho que eu sei, no caso, o
que aconteceu até agora não sei”. Ao longo da entrevista, “incerteza” e “certeza” se
confundiram, mesclaram-se, e a mãe começou a descrever algo que ela já teria
conhecimento, mas que parece temer nomear; antes que isso ocorresse, ela se
antecipou, refutou e negou: “Eu acho que não é verdade o que tá acontecendo”.
Sem recursos internos para lidar com o sofrimento psíquico despertado pela
revelação do abuso, refugiou-se novamente na negação e disse: “esse negócio está
muito errado, não acredito em nada disso”.
Em outro artigo, Dell’Aglio e Santos (2008) focam a atenção no perfil das
mães de crianças vítimas de violência sexual. Assim, as hesitações e flagrantes
denegações da genitora frente aos fatos apresentados são consistentes com as
características descritas pelas autoras em seu estudo: “medo exagerado da solidão
e de ser abandonada, capacidade limitada de tomar decisões e percepção de
desamparo e de incompetência”. Comumente, afirmam, estas mães têm
“dependência afetiva e financeira de seus companheiros, e são submissas às ordens
da família de origem, demonstrando obediência aos pais e reproduzindo esse
comportamento na relação conjugal, ao evitar confrontos”.
Na abordagem psicanalítica, seria impossível tratar de um provável caso de
incesto sem mencionar o conhecido Complexo de Édipo. Recorrendo à tragédia de
Sófocles, Freud procura, inicialmente, retratar a fase do desenvolvimento infantil em
que a criança rivaliza com o genitor do mesmo gênero, tendo o genitor do sexo
oposto como objeto do seu desejo. Assim, de forma geral, o complexo de Édipo

287
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

deveria levar à aceitação da castração (ou a sua possibilidade) como fato psíquico,
estabelecendo os papéis de gênero. No entanto, a evolução da clínica e dos
costumes levou alguns psicanalistas a aprimorarem este modelo.
Para Betts, Weinmann e Palombini:

não se trata apenas de um ‘não te deitarás com tua mãe’ dirigido à criança,
mas da mensagem endereçada à mãe: ‘não reintegrarás teu produto’. O pai
é aqui suporte da lei, porém mediado pela mãe, a qual o instaura nesse
lugar de quem lhe faz lei. (BETTS; WEINMANN; PALOMBINI, 2014, p. 224).

Por Complexo de Édipo, então, entende-se um movimento de desejo e


renúncia em aceitação a uma lei maior, que diz respeito à organização da própria
ordem social. Esta aceitação seria condição, portanto, para a ascensão à posição de
adulto autônomo e sexualmente maduro.
Do ponto de vista da psicanálise, a violência supostamente cometida contra a
adolescente, não diz respeito à ocorrência ou não do ato sexual entre pai e filha,
propriamente (já que alguns podem recorrer ao argumento de que a menina
‘consentiu’ com o agressor, ou o ‘seduziu’). A violência, no caso, está no fato de o
genitor renunciar ao papel de pai para se satisfazer como homem, contra uma
menina que ainda não teve a oportunidade de se perguntar o que é ser mulher. A
adolescência é uma fase de resolução do Édipo, em que os ideais infantis são
confrontados com os papéis sexuais adultos.
O caso em análise traz um conjunto de elementos que comumente fazem
parte da dinâmica de relacionamento das famílias nas quais existem situações de
violência doméstica. Tal conjunto de elementos indica desequilíbrio de poder nas
relações intrafamiliares. Segundo Souza e Silva:

Cabe apontar como uma das características de interação familiar, nos lares
onde ocorre o fenômeno da violência intrafamiliar, a existência de uma
disfunção, evidenciando a desigualdade de gênero e geração. Essa
desigualdade nada mais é do que a assimetria de poder – a submissão do
mais fraco pelo mais forte [...] a violência intrafamiliar determina um padrão
de relacionamento abusivo entre pai, mãe e filho, que leva ao desencontro,
à estereotipia e à rigidez no desempenho dos papéis familiares. (SOUZA E
SILVA, 2002, p. 75).

As mesmas autoras mencionam aspectos comuns da relação mãe-filha nos


casos de abuso sexual intrafamiliar, tais como falta de diálogo, distanciamento
afetivo, negligência e rivalidade em relação às questões de sexualidade, fator este
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que pode colocar a criança/adolescente vítima como corresponsável pelo abuso


sofrido.
Ressalta-se que existe histórico de violência contra a mulher, da parte de
Oswaldo (genitor) contra Marlene (genitora), manifestando mais uma vez a
discrepância de poder nas relações intrafamiliares e a vulnerabilidade a que estava
sujeita a genitora a partir da retomada do casamento, visto como indissolúvel por
ambos os cônjuges.
Em relação à questão religiosa e à indissolubilidade do casamento, nota-se
que a manutenção da união conjugal é priorizada por ambos os cônjuges, evitando o
rompimento do equilíbrio/unidade familiar. Isso pode ser compreendido pelos ideais
religiosos de indissolução familiar e de rigidez no desempenho dos papeis familiares,
conforme citam Souza e Lemos:

A construção sócio religiosa do feminino reproduz-se por meio da mulher


sofredora, submissa, possibilitando o ocultamento de vivências conflituosas
e mantida sob a afirmação da “necessidade sagrada” da sujeição feminina e
da manutenção do casamento. (SOUZA; LEMOS, 2009, p. 05).

Em relação ao suposto autor, pai da vítima, este negou a ocorrência abusiva.


Rememorou a data do (possível) delito e descreveu o que motivara o encontro com
a filha adolescente: “Ela foi levar o remédio, era umas nove e vinte e cinco, nove e
meia, ela foi de ônibus”. Em seguida, o horário do encontro: “Cheguei era dez e vinte
e cinco”; “Fiquei conversando até umas onze e meia”. Por fim, o que manteve pai e
filha fora do lar: “Eu tava conversando com a minha filha, eu sempre gosto de
conversar, eu poderia conversar em casa, às vezes não tenho tempo”. Atribuiu a
denúncia a um equívoco de interpretação da polícia: “Quando as pessoas olha, olha
com olhar de maldade”.
Da mesma forma, o indivíduo que se descreve como “ético e confiável”
também não se motivou a esclarecer a acusação que lhe foi imputada: “Eu vou
provar que não pratiquei esse crime, o que vai mudar? Exatamente nada, o que
importa é saber o cidadão que sou!”; “Eu não quis fazer o exame, não ia mudar o
percurso da minha história”.
Conforme estudos realizados com autores de abuso sexual (MARQUES,
2008; SATTLER, 2011), estes negam sempre, minimizam a situação abusiva,
colocam a responsabilidade em outras pessoas, apresentam comportamento
289
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

cooperativo e agradável. Para Pinheiro e Fornari (2011) o fenômeno da negação


impede que o sujeito que abusa de crianças e adolescentes entre em contato
consciente com o significado e as consequências prejudiciais de suas próprias
condutas.
Em situações de abuso sexual intrafamiliar, cometido pelo pai ou padrasto,
pautado pela inversão de papeis, o objetivo terapêutico de levar o agressor à
aceitação da responsabilidade pelo abuso o leva à possibilidade de desenvolver o
papel da verdadeira paternidade, devolvendo também à vítima sua posição/papel de
criança e adolescente e filha, aliviando seu sentimento de culpa (FERRARI, 2002).
Entende-se que durante as avaliações psicológicas realizadas na justiça, em
função da natureza coercitiva e da importância do resultado final da avaliação, os
examinandos podem ser incentivados a distorcer a verdade, a fim de obter
resultados compatíveis a seus interesses (ROVINSKI, 2013). Portanto, neste
contexto, não é possível levar o sujeito à reflexão terapêutica sobre o ato abusivo,
porém, trata-se de momento crucial no qual ele pode começar a entrar em contato
com o significado da ação.
O genitor do caso ora analisado passou um tempo considerável da entrevista
abordando temas referentes aos direitos das crianças, como desigualdade social,
justiça e injustiça, criminalidade, entre outros, e aproveitou para construir uma
autoimagem de indivíduo ético/confiável: “Meu pai não me deixou herança, mas o
que ele me deu, a educação de casa, isso falou muito alto pra poder influenciar no
meio da sociedade”. Também exaltou suas próprias qualificações no exercício das
funções parentais: “Filho, eu não posso lhe dar o mundo, mas eu posso lhe dar o
suficiente pra você viver sobre ele”; “Se eu fosse ruim eu seria ruim pros outros filhos
também”.
Para Balier (1997), concomitantemente aos aspectos regredidos e arcaicos de
sua personalidade, os autores de abuso sexual costumam apresentar modos de
organização evoluídos, devido a clivagem do ego, o que leva tais indivíduos, mesmo
sendo autores de abusos sexuais, a não destoarem da “normalidade” em outros
contextos de suas vidas; em síntese, eles podem apresentar padrões morais e
religiosos rígidos, uma vida regrada fora de casa e, concomitantemente,
comportamento agressivo com a família e perturbações sexuais.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No caso analisado, o acusado foi refratário ao tema “sexualidade” e, num


primeiro momento, associou sua esquiva a um anseio por proteger os filhos mais
novos: “Eu penso que eles nunca saibam (denúncia) e tenho certeza que nunca vão
saber, tem coisas que tem que isolar, nossos filhos é criança”. Quanto à sexualidade
da filha, vítima no caso, este também parece ser um tema “proibido”: “Não sei, essa
coisa de relação sexual, eu não quero comentar nem falar com ela (filha)”.
Sanfelice e De Antoni (2010) constataram em seu estudo que os autores de
abuso sexual apresentavam desconhecimento e desconforto ao falar sobre o tema,
demonstrando constrangimento, vergonha e inibição, denotando falta de
experiências emocionais que possibilitassem compreender sua própria sexualidade.
Nota-se, no caso, importante isolamento social da família, mencionado
algumas vezes por Oswaldo, o que pode indicar algum rompimento em relação às
regras sociais. Tal fenômeno também é evidenciado no entendimento que este
manifesta sobre os tipos de poder existentes e a subjugação deles a um poder
divino.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Ao concluirmos nossas análises, entendemos que o fenômeno da violência


sexual, por toda sua complexidade, não deva ser analisado somente do ponto de
vista da vítima, conforme nosso posicionamento inicial no corpo desse artigo. O
nosso projeto profissional nos desafia a entender e intervir nesta expressão da
questão social e psicológica a partir de todos os fatores que a envolvem.
Acreditamos que desta forma ampliamos as possibilidades para garantir a proteção
que todos os sujeitos de direitos envolvidos demandam.

Embora os avanços legislativos e muitos entendimentos jurídicos recentes


constituam-se como notáveis progressos no âmbito da conscientização, a
questão, todavia, extrapola a implementação legislativa e o campo do direito
e só pode ser enfrentada e combatida mediante a busca de compreensão
da complexidade social. Mais do que proteção legal é preciso falar de
políticas sociais de proteção às vítimas ou segmentos vulneráveis que
sejam integrais, que toquem as questões de fundo e não apenas acomodem
na previsão e prescrição normativa ante os casos acontecidos.
(PONZILACQUA, 2013, p. 17).

Compreendemos que acolher e encaminhar as demandas dos supostos


abusadores sexuais, além dos rebatimentos individuais, poderão propiciar à família
ou ao grupo em que se inserem, fortalecimento e mudanças profundas em sua visão
sobre os processos abusivos vividos. Trata-se de um processo longo, mas não
impossível. Sattler ressalta que:

Um dos desafios imposto aos profissionais dispostos a trabalhar com


violência familiar é o de se posicionar contra a violência e não contra a
pessoa que a exerce. Isso significa desenvolver a capacidade de não
rechaçar o abusador, mas, pelo contrário, interessar-se por sua pessoa e
empatizar com suas experiências. (SATTLER, 2011, p. 236).

Salientamos que nossa visão não exclui o fato de que os abusadores sexuais
devam ser julgados perante a Lei, pela violação de direitos cometidos. Contudo,
refletimos que o cumprimento da Lei, do ponto de vista criminal, não é suficiente
para que abusos sexuais intrafamiliares sejam extintos. Apontamos que a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

desconstrução de elementos sócio-históricos ligados especialmente ao patriarcado


são essenciais neste processo.

A violência não é apenas ruptura de laços. Contraditoriamente, é também


dimensão das relações sócio-históricas que se expressam na vida cotidiana,
não sendo, portanto, atingível somente na imediaticidade expressa pela
descoberta de um ato de violência. Além disso, sua revelação implica
rupturas e resistências dos sujeitos envolvidos na relação violenta, que
pode ser episódica e isolada, ou ter sido perpetrada ao longo de dias e até
anos. Pode inclusive, ter sido vivenciada por mais de uma geração da
mesma família. (FUZIWARA; FÁVERO, 2011, p. 36).

No caso analisado, como observamos, diversas são as demandas desta


família, ligadas ou não à situação de violência, que contribuem para as condições de
vulnerabilidade dos sujeitos. Em relação ao suposto abusador, identificamos
aspectos relacionados à questão do trabalho informal, das condições de
escolaridade, de sua história de vida (em que ainda na infância colaborou com a
manutenção dos cuidados de seus familiares), da rigidez na educação (que em seu
relato foi reproduzida com seus filhos), a situação da moradia, além de fatores
subjetivos, relacionais, entre outros.
Nas situações de violência intrafamiliar, as dinâmicas relacionais são
predominantemente abusivas, nas quais cada componente familiar assume um
papel nas relações disfuncionais; não existem fronteiras intergeracionais ou papeis
estabelecidos, as relações são assimétricas e ocorre o isolamento do grupo familiar.
Mesmo com os limites impostos à nossa atuação profissional, no espaço
sócio-ocupacional em questão, voltamos nossos olhares para o encaminhamento
destas demandas. Porém, em especial no caso dos supostos agressores sexuais, é
comum nos depararmos com a escassez de serviços para o atendimento destes.
Foram identificados somente alguns serviços citados acima nas regiões em que
atuam os participantes do nosso grupo. E, quando encaminhados, nem sempre é
possível ter conhecimento da realização ou não do acompanhamento. A maioria dos
serviços volta-se ao atendimento da vítima e de familiares, contudo, nem sempre o
suposto abusador está inserido neste atendimento pela Rede socioassistencial e de
saúde mental.
Assim, apontamos a imperiosa necessidade de que nosso fazer profissional
saliente, seja em nossos estudos psicológicos e sociais, seja nas reuniões em Rede
ou em outros espaços, que a violência sexual precisa ser entendida e atendida a
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

partir dos múltiplos fatores e sujeitos que a envolvem. Os serviços que atendem os
homens que figuram nos processos como abusadores são primordiais para o
enfrentamento da violência sexual. Nessa perspectiva, desconsiderar o sujeito que
agride sexualmente, não contribuirá, de maneira alguma, para o processo em sua
totalidade.

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ANEXOS

ANEXO I - Análise do filme: uma (possível) leitura do real a partir do filme “O


quarto de Jack”

“A ciência descreve as coisas como são;


a arte, como são sentidas, como se sente que são”.

Fernando Pessoa

Consideramos ser de fundamental importância para o Serviço Social revelar


os modos de reprodução do ser social para conhecermos as expressões do seu
cotidiano. A arte é uma dessas manifestações.
Oportunamente, o Grupo de Estudos de Violência Doméstica vem oferecendo
como importante contribuição sugestivos enredos de filmes, com intuito de melhor
compreendermos a realidade envolta pelo fenômeno da violência – matéria do nosso
trabalho nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.
O filme hollywoodiano “O quarto de Jack”, produto da indústria
cinematográfica, é uma dessas obras que apresenta diversos aspectos capazes de
nos remetermos à realidade complexa e violenta de tantas famílias em seus diversos
arranjos; algo análogo ao que, cotidianamente, deparamo-nos em nossos
atendimentos.
Dentre estes aspectos do referido filme, sob o ponto de vista do Serviço
Social, destacamos a construção do cotidiano e a possibilidade de deciframento do
real. Para tanto, nossa interlocução dar-se-á com a pesquisadora e docente Maria
Lucia Martinelli.
Partimos do princípio que a identidade social de Jack, filho de Joy, foi forjada
pelo signo da violência, em um cotidiano adverso, dentro de um cativeiro, mas não
somente. A mãe, por sete anos esteve sob o jugo de seu sequestrador, e o filho, por
sua vez, em seus primeiros cinco anos de vida. Tal violência se expressa pelo
sequestro, estupro, cativeiro, pelas condições objetivas de vida - que são precárias –
dentre outros aspectos. Contraditoriamente, é nesse cotidiano, é nesse espaço onde
comem, dormem, brincam e aprendem que a identidade social de Jack é tecida;
para ele, o quarto era o mundo, o seu mundo.
295
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Importante destacar que para não cairmos nas armadilhas dos


determinismos, Martinelli (2010, p. 2) oportunamente ressalta a categoria identidade
em seu universo plural, porque transitórias. Assim, identidades: “[...] nunca estão
prontas, transformam-se, assim como se transformam também as condições sócio-
históricas em que se deu a sua construção [...].”
A tentativa da mãe de amenizar a situação de violência em que ambos foram
submetidos se expressa pelo lúdico e imaginário: a criança tem um cachorro
imaginário, os objetos do quarto, como as duas cadeiras, mesa, pia, planta, são
todos seres que ganham vida: “bom dia cadeira um, bom dia planta...”,
cumprimentava Jack. A sabedoria da mãe da criança é capaz de trazer vida para
aquele espaço.
Para Karl Marx, tudo, todas as coisas, estão impregnadas do seu contrário; o
cotidiano de Jack apresenta essa contradição. É um cotidiano violento e aterrador
mas, ao mesmo tempo, é um cotidiano construído para amenizar as marcas da
violência e com capacidade de planejar a ruptura desse ciclo.
É Martinelli quem apresenta o cotidiano como lócus privilegiado de construção
da história e que pode permitir, a partir do seu desvendamento, buscar caminhos de
intervenção. Em suas palavras:

[...] É neste espaço de interação entre estrutura, conjuntura e cotidiano que


nossa prática se realiza. É na vida cotidiana das pessoas com as quais
trabalhamos que as determinações conjunturais se expressam. Portanto,
assim como precisamos saber ler conjunturas, precisamos saber ler
também o cotidiano, pois é aí que a história se faz, aí é que nossa prática
se realiza. Certamente não estamos pensando no cotidiano como um
espaço repetitivo, vazio, mas sim como um espaço contraditório e complexo
onde a realidade se revela, onde os problemas se expressam. Saber ler a
conjuntura a partir do cotidiano, significa identificar acontecimentos,
contextos, relações de força, para saber onde e como atuar [...].
(MARTINELLI, 2006, p. 14-15).

As famílias que atendemos apresentam suas formas de viver também sob o


signo da violência. São vidas que chegam a doer. O que fazemos com essas
revelações em nossos atendimentos? Como e com qual finalidade produzimos
documentos a partir desses atendimentos? Quais encaminhamentos fazemos e qual
efetividade isso produz para os sujeitos de direitos?
Nosso trabalho diário é com a escuta das famílias, que é um dos
instrumentais de suma importância que temos; como aponta Martinelli: “[...] se
296
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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trabalhamos com a história oral é porque temos um real interesse em conhecer


essas experiências individuais, articulando-as aos processos sociais mais amplos”
(2012, p. 9).
Como Jack e sua mãe, as pessoas que atendemos estão imersas em
contextos sócio-históricos extremamente violentos e violentadores. Crianças que
apresentam em suas falas o desejo de viverem em outra situação e com outras
possibilidades, mas, como Jack, determinada realidade em que vivem é também o
seu mundo.
De fato, a instância do cotidiano é a instância da reprodução social. Como
não naturalizá-lo? Como interrogá-lo? Como ter um olhar político sobre esse
cotidiano?
Outro aspecto nos chama atenção: a tentativa de saída do ciclo de violência
em que Joy e Jack foram expostos é concatenada com a explicitação, do que foi
possível, do mundo real para uma criança de cinco anos.
O filme mostra que foi muito sofrido e violento, para a criança, ter seu mundo
imaginário quebrado: “eu não quero essa sua história fedida”; “eu quero voltar a ter
quatro anos”, diz Jack. A criança sentia-se segura e protegida naquele quarto,
naquele mundo, mas para sua mãe era a prisão de sete anos.
Mas, foram os dados da vida real que Jack forneceu à autoridade policial que
possibilitaram a liberdade para ele e para sua mãe: claraboia, galpão, espaço
grande, três paradas do carro e um pedaço de sua mãe: um dente.
A contemplação do real, do mundo exterior, feita pela criança, é comovente,
chegando mesmo a perguntar para a mãe, na cama de um hospital, se estavam em
outro planeta.
Para nós, assistentes sociais, decifrar o real é o desafio do cotidiano de
trabalho. A aparente e imediata demanda que nos chega por meio da escuta das
pessoas que atendemos é, sem dúvida, uma vivência singular que, ao mesmo
tempo, está impregnada de suas contradições, de questões mais complexas do
universal, da totalidade.
Destarte, a riquíssima reflexão de Martinelli é mais que oportuna para essa
questão:
Nosso ato profissional é muito mais pleno do que o atendimento imediato da
solicitação. É muito maior do que isso. Certamente, vamos prestar o
atendimento, mas tendo até mesmo a coragem em alguns momentos de
recolher aquele gesto espontâneo da resposta imediata. A nobreza de
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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nosso ato profissional está em acolher aquela pessoa por inteiro, em


conhecer a sua história, em saber como chegou a esta situação e como é
possível construir com ela formas de superação deste quadro. Se
reduzirmos a nossa prática a uma resposta urgente a uma questão
premente, retiramos dela toda sua grandeza, pois deixamos de considerar,
neste sujeito, a sua dignidade humana. Em um belo texto, intitulado “O
narrador”, o filósofo Walter Benjamim (1994, p. 220 - 221), refletindo sobre o
alcance das práticas humano-sociais, nos diz que é preciso construir
práticas que nos permitam unir “a mão e o gesto, a voz e a palavra”, ou
seja, que tenham inteireza, que se façam a partir da centralidade do
humano. (MARTINELLI, 2006, p. 11-12).

À primeira vista, em nossos atendimentos, temos o impulso de dizer que as


histórias são iguais – afinal, trata-se da mesma questão, a violência intrafamiliar, a
violência contra crianças e adolescentes por homens que figuram nos processos
como averiguados. No entanto, as histórias pessoais devem ser consideradas como
únicas e singulares em suas determinações social, política, econômica, ética,
cultural, contrariando o que é próprio dessa sociedade, ou seja, ocultar suas
inerentes contradições.
As crianças que atendemos nas diversas Varas também apresentam
sofrimento pela ruptura ou perda de parte de seu mundo lúdico pela violência a que
foram submetidas por adultos que deveriam protegê-las. Cabe salientar que para
muitos desses adultos as suas histórias de vidas foram marcadas pela violência.
Decifrar o real é, para nós, reconhecer a verdade ontológica das famílias que
acolhemos e escutamos. Para a família de Joy e Jack, mesmo em ficção, as
condições materiais favorecem a reconstrução objetiva e subjetiva de vida. Já as
famílias que atendemos no mundo real das Varas, encontram acentuadas
dificuldades de se reconstruírem.
Contudo, não nos enganemos: a história da vida real concretizada pelo
cotidiano também passa pelos caminhos da utopia, como algo que ainda não é, que
ainda não chegou a ser, mas que se constitui em uma possibilidade concreta, dadas
as devidas oportunidades, via Políticas Públicas, aos sujeitos que atendemos.

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ANEXO II - O que constava no Boletim de Ocorrência e no Termo de


Declarações

 B.O. lavrado em 28.03.2013, genitores e adolescente foram ouvidos


nesse dia.
 Exame sexológico positivo para espermatozoides e material ficou
disponível para teste.
 Policiais faziam o patrulhamento e abordaram pai e filha no interior de
um carro, em rua escura e no banco traseiro. O pai estava sem camisa e sem sapato
e havia lençol cobrindo os vidros do carro.
 Foram conduzidos à Delegacia.
 A adolescente, então com 13 anos na data do B.O., já com a presença
da mãe na Delegacia, foi questionada pelos policias sobre o que se passou no
interior do carro. A adolescente negou qualquer contato físico com o pai e disse
apenas que estava conversando. Estavam primeiro em uma lanchonete e depois
foram para o carro e que conversavam questões ligadas à família.
No entanto, no local onde foram abordados, a adolescente, apartada do pai
pelos policiais, teria dito em separado para um policial que a mãe tinha traído o pai e
ele descobriu e brigaram. A menina teria ficado com raiva da atitude da mãe e com
pena do pai e, por vingança, passou a se relacionar sexualmente com o genitor, e
que isso já tinha acontecido por três vezes e sempre naquele local, no carro dele.
Para o outro policial, a adolescente teria contado, de maneira confusa, que já tinham
feito sexo oral, anal, vaginal. Disse que passou a gostar do pai, a amá-lo, e que
havia praticado sexo algumas vezes, inclusive na residência.
 Na Delegacia o pai negou as declarações da filha e disse que a filha e
ele jamais fariam uma coisa destas com a mãe dela.
 A mãe, na Delegacia, disse que a filha teve dois namorados e que ela
confirmou que manteve relação sexual com um dos rapazes de 18 anos.
 O suposto namorado disse em 07.08.2013, que ficou com a
adolescente por três vezes (abraços e beijos) e negou relação sexual. Disse que a
adolescente teria pedido permissão ao pai e que este por não ter consentido não
procurou mais a adolescente.

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O suposto namorado disse que o pai da adolescente o procurou no trabalho


dizendo que a filha não era mais virgem, e perguntou se ele manteve relação sexual
com ela, o que foi negado pelo suposto namorado. O pai da adolescente também
teria perguntado se ele havia recebido intimação para depor na delegacia e que,
intrigado, perguntou o que estava acontecendo. Sem responder ao questionamento
do rapaz, o pai da adolescente pediu para que ele dissesse na Delegacia que não o
conhecia e que nunca conversaram.

300
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe
sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá
outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
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304
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O SERVIÇO SOCIAL E A PSICOLOGIA NO JUDICIÁRIO -


CONSTRUINDO O SEU FAZER PROFISSIONAL E A
INTERFACE COM A REDE DE ATENDIMENTO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - ARAÇATUBA


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016

305
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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COORDENADORA

Susana Maria de Souza Moraes Borges – Psicólogo Judiciário – Comarca de


Araçatuba

AUTORAS

Amanda Vaz Valeriano Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba


Ângela Maria Candida da S. Facundo – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Cássia Regina de Souza Preto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Cíntia Lupifierio Antônio Ramos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac
Claudia Lopes Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac
Fabiana Bacelar de Matos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Andradina
Graciela Ap. Franco – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Lianara Carmona Vallego – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guararapes
Márcia Kioko Hiraga – Assistente Social Judiciário - Comarca de Guararapes
Miriam Marta Barbosa Scandarolli – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Nair Yayoi Haikawa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pereira Barreto
Regiane da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes
Sintia Mara de Souza Ferreira da Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Birigui
Sirlene Guimarães Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Andradina

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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AGRADECIMENTOS

Agradecemos carinhosamente as colegas assistentes sociais Clélia Aparecida


Torres Guedes, Sonia Aparecida Guimaraes da Silva, Marli Aparecida Giraldi, Nair
Yayoi Haikawa, Maria Cecília de Paulo Eduardo e as psicólogas Nilse Maria Marotta
de Clemente, Sandra Aparecida Abdala, Fátima Aparecida Celestino de Brito e
Elizangela Martins Oliveiras pelas fundamentais contribuições no resgate da história
de nossa inserção na região de Araçatuba, história esta construída por sujeitos
históricos e que merece ser rememorada, para que aprendendo com ela possamos
evoluir enquanto pessoas e profissionais.

307
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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INTRODUÇÃO

A inserção formal do Serviço Social no quadro de servidores do Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo data de 194829, porém somente na capital e nos
grandes centros regionais do Estado; a psicologia se inseriu enquanto campo de
saber neste espaço sócio ocupacional na década de 1980, seguindo a lógica do
Serviço Social, de contratação a principio somente na capital.
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, no
qual em seus artigos 150 e 151, determina a criação e manutenção de equipes
interprofissionais, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo amplia seu quadro
de servidores por meio de contratação via concurso público de profissionais de
Serviço Social e Psicologia, a fim de responder às demandas sociojurídicas até
então não reconhecidas pelo Estado. E atualmente os profissionais do Setor de
Serviço Social e Psicologia encontram-se divididos em 317 Comarcas, sendo que
destas somente 24 possuem Varas especializadas da Infância e Juventude.
Ao longo de décadas de existência tanto o Serviço Social como a Psicologia
foram construindo suas intervenções nas mais diversas demandas deste espaço
sócio ocupacional, pautados nas legislações das respectivas categorias profissionais
e quando construídas, em aparatos institucionais.
No presente artigo intentou-se realizar uma retomada histórica da inserção
dos assistentes sociais e psicólogos nas Comarcas das Circunscrições de Araçatuba
e Andradina, com representantes no grupo de estudo, tendo como objetivo conhecer
e refletir sobre o lugar das equipes interprofissionais do Judiciário na articulação com
a rede de atendimento.

29
Manual de procedimentos técnicos

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

RESGATANDO NOSSA HISTÓRIA

Por meio de convênio entre a Secretaria da Promoção Social do Estado de


São Paulo e o Tribunal de Justiça, em 1987/1988 foram contratadas as primeiras
assistentes sociais para Araçatuba, Birigui e Penápolis. A Secretaria era responsável
pelo pagamento das profissionais e acompanhamento do trabalho realizado.
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, e a
necessidade de formação de equipes de trabalho nos Juízos da Infância e
Juventude foi realizado o primeiro concurso para Assistentes Sociais e
Psicólogos/as no interior do Estado; desta forma em 1991, assistentes sociais foram
contratadas nas Comarcas de Bilac, Birigui, Guararapes, Araçatuba, Pereira Barreto
e Andradina e psicólogas para as sedes de circunscrições (Araçatuba e Andradina).
A partir da posse, os profissionais nomeados tiveram que definir, apropriar e
consolidar este novo espaço sócio-ocupacional, já que a normativa existente 30 não
correspondia as necessidades daquela conjuntura, uma vez que o país vivia um
período de construção de uma política de direitos voltada a infância e juventude,
tendo a promulgação do ECA como marco para implementação desta nova política,
o que exigiu do TJ e dos profissionais uma postura diferenciada frente a realidade
que se apresentava como demanda para intervenção dos assistentes sociais e
psicólogos recentemente contratados; tal realidade foi vivenciada pelos profissionais
da região.
Diante desta constatação, deliberaram no momento da posse, em São Paulo,
a realização de reuniões de autoassessoria. As convocações e a preparação destas
reuniões, no que se refere à infraestrutura, ficavam a cargo das profissionais de
Serviço Social da Comarca de Araçatuba, no entanto, a pauta e o material a ser
discutido ficavam sob a responsabilidade de todos os participantes. Nas primeiras
reuniões, os cerimoniais de abertura do evento eram presididos pelos juízes da
Comarca de Araçatuba, garantindo, deste modo, o caráter formal/institucional destes
eventos, o que possibilitava a liberação das demais profissionais de suas
respectivas comarcas.

30
Até aquele momento o trabalho dos assistentes sociais e dos psicólogos era baseado no Código de Menor de
1979 e no Provimento n.º 116 do Conselho Superior de Magistratura.

309
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Inicialmente, as discussões pautavam-se em torno da apropriação deste novo


espaço sócio ocupacional e das competências profissionais. Tais discussões
possibilitaram a reafirmação do protagonismo profissional na garantia dos direitos,
na medida em que participaram ativamente da organização da sociedade civil para a
criação dos órgãos responsáveis pela política de garantia de direitos das crianças e
adolescentes nos municípios (Conselhos Municipais de Direito da Criança e do
Adolescente e os Conselhos Tutelares).
A partir da organização dos profissionais, que se reuniam em grupos de
estudos, foram promovidos cursos e supervisão sobre o trabalho profissional e
principalmente sobre as legislações e políticas públicas da área da infância e
juventude recém-publicadas.
A relação entre profissionais e Juízes da Infância se dava diretamente; e as
equipes técnicas se constituíam no elo entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo,
além de passar a serem profissionais de referência e ‘confiança’ dos juízes.
Após ampla mobilização dos profissionais, tendo na vanguarda a Associação
dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(AASPTJSP), em 2005 houve a realização do segundo concurso para
preenchimento de vagas em todo o Estado; na ocasião foram contratadas
assistentes sociais para preenchimento de vagas em todas as comarcas da região
de Araçatuba, no entanto, somente foram chamadas psicólogas para as sedes de
circunscrição.
Em 2012 foi realizado novo concurso para preenchimento de cargos para
assistentes sociais e psicólogos para todo o Estado, sendo a primeira vez que foram
disponibilizados cargos para as comarcas do interior; outra conquista para as
categorias foi a contratação de psicólogos/as para algumas comarcas das
circunscrições, embora persistindo ainda a demanda de profissionais nas comarcas,
logo que das 11 comarcas, somente 6 tiveram profissionais contratados.

CONSTRUÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES

De acordo com o Manual de Procedimentos Técnicos (2007), os primeiros


concursos para assistentes social no Tribunal de Justiça de São Paulo ocorreram
310
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

em 1967 e 1979. A partir daí, os próximos concursos realizados nos anos de 1985,
1990 e 2005 marcaram também o ingresso de profissionais da psicologia nos
Setores Técnicos do judiciário paulista.
No que tange às atribuições profissionais, ainda conforme o Manual de
Procedimentos Técnicos (2007),

O provimento 116/80, do Conselho Superior de Magistratura, de


17/04/1980, normatizou a atuação dos assistentes sociais nas Varas de
família e Sucessões e em 12 varas Distritais da Comarca de São Paulo.
Em 1995, o Provimento n. 236/85 do Conselho Superior de Magistratura,
retomou alguns pontos do anterior e incluiu a atuação dos Psicólogos,
dispondo também sobre a organização dos Setores Técnicos (Serviço
Social e Psicologia). Um pouco mais adiante, o Provimento de n. 6/91 da
Corregedoria Geral da Justiça, atualiza a inserção das equipes técnicas
(p.39).

Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, o Tribunal


de Justiça considerando a necessidade de adaptação do antigo Provimento resolveu
alterá-lo passando a vigorar nos termos do Provimento de n. 6/91 da Corregedoria
Geral da Justiça que resolve que os Assistentes Sociais e Psicólogos se constituirão
em Serviços Auxiliares (ECA Art. 151), e na Subseção I destaca suas atribuições,
dentre elas:

24. Os assistentes sociais e os psicólogos executarão suas atividades


profissionais junto às Varas da Infância e Juventude onde estiverem lotados
e nas Varas da Família e das Sucessões dos foros correspondentes,
Central e Regionais cumulativamente.
24.1 Compete à equipe interprofissional fornecer subsídios por escrito
mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver
trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e
outras, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária,
assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
26. Os psicólogos elaborarão seus laudos técnicos a partir das entrevistas e
de observações efetuadas nos próprios recintos dos foros Central e
Regionais em que estiverem lotados.
27. Os setores técnicos de Serviço Social e de Psicologia apresentarão
anualmente ao seu Juiz Corregedor Permanente o relatório de suas
atividades, com avaliação do trabalho realizado e proposta de medidas
complementares.
28. Os assistentes sociais e psicólogos darão plantões diários, de segunda
às sextas-feiras, no horário das 13 às 18 horas, em cada Foro, Central e
Regionais, para atendimento e orientação dos interessados encaminhados
exclusivamente pelas Varas da Família e das sucessões.

311
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Importante ressaltar que nas Comarcas do interior a realidade se diferenciava


uma vez que, de forma geral, os Setores Técnicos não atuavam exclusivamente nas
Varas de Família e Sucessões e nas Varas da Infância e Juventude, tendo em vista
que as Varas são cumulativas.

As atribuições dos assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça


de São Paulo foram construídas por meio de intensas discussões dos
profissionais do judiciário. Essas atribuições foram normatizadas pela
Secretaria de Recursos Humanos (antigo Departamento Técnico de
recursos Humanos) e após aprovação da Presidência do Tribunal de Justiça
de São Paulo, publicadas. O Comunicado n. 308/2004 (D.O.J. de
12/03/2003) versa sobre as atribuições dos assistentes sociais e o de n.
345/2003 (D.O.J. de 26/05/2003) sobre as atribuições dos psicólogos.
(Manual de Procedimentos Técnicos, p. 39-40, 2007).

De acordo com informações prestadas pelas profissionais que atuavam na


época, as ações eram calcadas principalmente nas questões de família, nos pedidos
de providências judiciais, procedimentos verificatórios e adoção, que consistiam em
avaliação e acompanhamento psicossocial de casos notificados pelo Conselho
Tutelar. Não havia a rede de atendimento e tudo se concentrava no fórum. Os
assistentes sociais também eram instados a realizar estudo em processos
previdenciários, situação que gerou grande questionamento, motivando uma
consulta por parte das profissionais da Comarca de Araçatuba sobre tal atuação e a
instauração do processo 687/2003, sendo dado parecer favorável às alegações dos
profissionais, afirmando que,

Os Assistentes Sociais são concursados para prestarem serviços junto às


Varas da Infância e da Juventude e de Família e Sucessões, mas não para
desempenharem função em processos que versam sobre matéria
previdenciária. Não bastasse isso, a prova a ser feita nos processos
judiciais em questão é ônus do Poder Executivo, que não pode ser
assumido pelo Poder Judiciário, já carente de recursos materiais e
humanos, não se justificando, portanto, venha o Poder Judiciário assomar
para si tais responsabilidades. Assim, o parecer é no sentido de se
responder à consulta formulada afirmando que há desvio de função na
designação de Assistente Social Judiciário para atuar em processos que
versem sobre matéria previdenciária, de forma que esta designação não
deve ser feita. (TJ/SP, 2009).

A partir de tais consultas e da articulação da Associação dos Assistentes


Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça de São Paulo (AASPTJ-SP) e consulta
do Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e Psicologia foi publicado o

312
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Comunicado n.º 345 de 26 de maio de 2004, que disciplinou sobre as atribuições da


equipe interprofissional no Poder Judiciário Paulista31.
A publicação das atribuições foi fundamental para que se pudessem evitar os
desvios de funções até então presentes no cenário deste espaço sociocupacional.
Em 2010 é publicado o parecer CIJ (Coordenadoria da Infância e juventude)
n.º04/10 que delibera pela inadmissibilidade dos pedidos de providências e
procedimentos verificatórios, o que irá redefinir a atuação das equipes técnicas, nos
processos relacionados à Infância e Juventude, segundo o parecer tais pedidos de
providências:

[...] revelam um Judiciário que ora se coloca no lugar do Poder Público, para
fazer arremedo de acompanhamento de famílias, ora se põe como
intermediário de acesso a atendimentos que deveriam ser garantidos
universalmente à população e, se não o forem, deveriam ser objeto de
ações civis publicas a serem ajuizadas pelo Ministério Público ou pela
Defensoria Pública.

Ao redirecionar as demandas que até então eram objetos de intervenções


judiciais, termina também por redirecionar a atuação dos assistentes sociais e
psicólogos que segundo as reflexões feitas à época passariam a cumprir a função
para a qual foram contratados, ou seja, dar subsídios à decisão judicial a partir da
avaliação da situação familiar, mas também e principalmente dos serviços públicos,
e das lacunas apresentadas pela rede de atendimento.
Em março de 2016, a Secretaria de Planejamento de Recursos Humanos
(SPRH) do Tribunal de Justiça de São Paulo, através da Portaria nº 9.277/2016
amplia as atribuições da Equipe Técnica Judiciária, sem uma discussão prévia com
as categorias envolvidas, reacendendo novas discussões ao generalizar a atuação
dos profissionais ao incluir os itens “Cumprir as determinações dos superiores
hierárquicos e executar tarefas afins, quando o serviço exigir”.

31
AS atribuições estão disponíveis. No site:
http://www.tjsp.jus.br/Corregedoria/Corregedoria/NucleoApoioProfissionalServicoSocialPsicologia

313
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

EVOLUÇÃO DA INTERLOCUÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA DO TJ COM


A REDE

Historicamente as equipes interprofissionais da região tiveram um papel


importante na construção da rede de proteção à criança e ao adolescente nas mais
variadas comarcas.
Foi realizado um trabalho pioneiro no auxílio da construção da política pública
na área da Infância e Juventude, inclusive na criação dos Conselhos de Direitos e
nos Conselhos Tutelares. À época os profissionais desempenhavam uma função
interventiva, na formulação dos programas e projetos, como também na sua
execução. As medidas socioeducativas também ficavam sob a responsabilidade das
profissionais. Desta forma o trabalho foi de grande importância para a construção da
rede de proteção à criança e ao adolescente.
Tal protagonismo permaneceu durante toda a década de 1990, auxiliando na
construção das principais políticas públicas e das instituições responsáveis pela sua
execução.
Na década de 2000 várias foram as mudanças ocorridas na organização da
política pública e no papel do Judiciário neste contexto, o que acarretou também a
modificação no papel exercido pela equipe interprofissional do judiciário.
As leis referentes à política de assistência social proporcionaram a inclusão
de outros atores naqueles processos que até então tinham como protagonistas as
equipes interprofissionais do TJ.
Em 2009 a Lei 12.010 vem reafirmar o direito da criança e do adolescente à
convivência familiar e irá traçar novos paradigmas na atuação dos Poderes
Judiciário e Executivo em vários aspectos, principalmente no que se refere à criança
e/ou adolescente em medida de acolhimento institucional que requisita a intervenção
conjunta da rede.
A estruturação da Política de Assistência Social, com o Sistema Único de
Assistência Social, organizou e efetivou atendimento socioassistencial às crianças,
adolescentes e famílias cujos direitos foram ameaçados e/ou violados, sendo mais
um marco relevante para identificação das atribuições dos profissionais do Judiciário
e do Executivo para o atendimento adequado a este público no sistema de garantia
de direitos.
314
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Tais modificações motivaram reflexões no Judiciário e também sobre o lugar


ocupado por sua equipe profissional na rede de proteção que a partir de então
modifica sua atuação de uma dimensão interventiva para uma dimensão mais
pericial, ou seja, se até aquele momento os profissionais do judiciário realizavam o
acompanhamento familiar na perspectiva executiva, a partir de então o trabalho
passa a ser realizado de forma mais avaliativa em relação à situação vivenciada e
de encaminhamentos para quem tem a função de executar.

REALIDADE DO TRABALHO COM A REDE DE ATENDIMENTO NA


REGIÃO

Atualmente o trabalho da equipe interprofissional do Judiciário se dá de


maneira distinta nas mais variadas Comarcas, tendo em vista, principalmente a
organização da rede de atendimento, de acordo com o perfil do município, assim
como as condições de trabalho da própria equipe judiciária, tendo em vista que em
algumas comarcas há defasagem no número de profissionais.
A seguir apresenta-se tal realidade:

 Comarca de Birigui - Em Birigui ainda não há um trabalho estruturado do


setor técnico do judiciário com a rede socioassistencial. A participação das
técnicas do judiciário vem acontecendo, esporadicamente, nas reuniões para
discussões dos casos de algumas crianças e adolescentes que se encontram
acolhidos na Casa Abrigo de Birigui (construção do PIA). As trocas e
discussões de casos acontecem com mais frequência com a equipe técnica
da Casa Abrigo. O setor técnico realiza encaminhamentos para a rede
socioassistencial e de saúde do município, mas ainda há pouca articulação e
integração com os serviços.
 Comarca de Andradina: São realizados trabalhos em rede, tais como
elaboração de Planos Individualizados de Atendimentos de crianças em
medida de acolhimento, acompanhamento de adolescentes em medidas
socioeducativas, implantação de projetos como os de apadrinhamento afetivo,
prevenção de violência nas escolas, orientação de mulheres vítimas de
315
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

violência antes de audiências decorrentes da lei Maria da Penha. A equipe


elabora e executa cursos para pretendentes a adoção, treinamento para
equipes de cuidadores em serviços de acolhimento, visitas de fiscalização a
serviços de acolhimento institucional e de medidas socioeducativas, atende
em plantões, participa de audiências concentradas, acompanha mandados de
busca e apreensão de crianças e adolescentes em medidas protetivas.
 Comarca de Pereira Barreto: As instituições que compõem a rede sócio-
assistencial de Pereira Barreto são: CRAS, CREAS, Conselho Tutelar, Equipe
técnica do Judiciário (Comarca de Pereira Barreto), Casa Abrigo, NASF,
Escolas, Serviço de Saúde Mental, Representantes das UBS, Responsáveis
pelas Creches. As reuniões ordinárias ocorrem mensalmente, em todas
as primeiras quartas-feiras de cada mês, convocadas e organizadas pelos
CRAS, porém cada instituição participante pode solicitar a inclusão de novas
situações. As reuniões seguem a seguinte dinâmica: no primeiro momento,
discutem-se situações que envolvem crianças e adolescentes, no segundo
momento, situações que envolvem pessoas com deficiência e idosos. Os
planos de intervenção levam em conta as deliberações ocorridas nestas
reuniões, sejam em relação às crianças e adolescentes, sejam em relação
aos demais segmentos sociais. Destacamos que a rede passou a se reunir e
debater as situações que demandam a intervenção psicossocial dos diversos
órgãos públicos e privados a partir da implantação do CRAS, que ocorreu no
primeiro semestre do ano de 2015. As reuniões da rede socioassistenciais
contribuem na análise e posterior deliberação sobre as intervenções
profissionais dos diversos órgãos e na possibilidade de assegurar o respeito à
privacidade e dignidade dos usuários, bem como, garantir os direitos sociais e
o comprometimento dos diversos órgãos na promoção dos usuários, tendo
em vista que possibilita a apresentação e a apreensão das situações que
determinam a existência das demandas sob diferentes e até divergentes
“olhares”, e ainda a percepção de intervenções equivocadas de algum dos
atores da referida rede.
 Comarca de Bilac/ SP: Constitui-se em Vara única e conta hoje com um
setor técnico formado por duas Assistentes Sociais atendendo três municípios
caracterizados como pequeno porte de acordo com o SUAS – Sistema Único

316
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de Assistência Social, sendo Bilac/ SP com 7.052 habitantes, Gabriel


Monteiro/ SP com 2.705 habitantes e Piacatu/ SP com 5.287 habitantes,
conforme o censo do IBGE de 2010. A equipe atua com ênfase nas Varas de
Família e Criminal em detrimento da Vara da Infância e Juventude,
ressaltando que os casos que demandam estudo psicológico são
encaminhados à Comarca de Araçatuba/ SP. Na Vara Criminal a atuação
pauta-se nos casos de deferimento de Medidas Protetivas da Lei Maria da
Penha em que a vítima possui filho menor de idade e a medida protetiva de
afastamento do agressor foi estendida ao mesmo, cuja avaliação consiste em
verificar a necessidade de manutenção da respectiva medida em relação à
criança/adolescente envolvido, garantindo-lhes proteção integral. Informamos
que a Comarca não possui Instituição de Acolhimento a crianças e
adolescentes que, quando necessitam de acolhimento institucional,
geralmente são encaminhadas à Comarca de Buritama/ SP. Além disso, o
índice de acolhimento Institucional, de colocação em família substituta e/ou
adoção bem como de adolescentes em conflito com a lei nesta Comarca são
baixíssimos, reduzindo a atuação da equipe na Vara da Infância e Juventude.
Contamos com Serviços de Proteção Social Básica de Assistência Social e de
atendimentos básicos de Saúde e Educação, que são suficientes para o
atendimento da demanda nos respectivos municípios. Alguns serviços de
média e alta complexidade de Saúde e Assistência Social são realizados
através de parcerias com municípios vizinhos. Este setor viabiliza a
comunicação com equipes responsáveis pela execução dos
acompanhamentos sociais, com Coordenadores e Diretores de Escolas,
Técnicos da Saúde e demais profissionais do município através de
discussões de casos, de encaminhamentos e orientações diversas. Esta
articulação nem sempre ocorre de maneira sistemática e continuada,
geralmente acontecem informalmente no dia a dia, conforme as demandas
postas. Dentre os Serviços desempenhados junto à rede de atendimento
consideramos a assessoria que este setor realiza aos Conselheiros Tutelares
com orientações sistemáticas quanto às medidas e providências a serem
tomadas frente às notificações recebidas por àquele Órgão. Ponderamos que
esta atuação provém do histórico desempenhado por este setor técnico que

317
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

contribuiu para organização e criação dos Conselheiros Tutelares intervindo


na construção das políticas públicas municipais, somado à falta de
investimento de capacitações e treinamentos para estes profissionais de
suma importância na garantia de proteção às crianças e adolescentes.
Destarte, visto a atual conjuntura da Comarca o setor social atualmente
cumpre com suas atribuições no campo sócio jurídico com vistas a atender as
demandas postas, sendo a atuação perita predominante no setor.
 Comarca de Guararapes: composta pelos municípios de Guararapes e
Rubiácea e tem jurisdição sobre cerca de 35 mil habitantes. A rede de
atendimento e de atenção e proteção às crianças, adolescentes, mulheres,
idosos, famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade ou risco do
município de Guararapes é formada pelos órgãos institucionais regulares das
áreas da Saúde, Educação, Assistência Social e outros, além de contar com
outras organizações e entidades sociais como: Amor Exigente; Instituição de
Longa Permanência para Idosos “Asilo São Francisco de Paulo”; Instituição
de Acolhimento “Casa Abrigo Nosso Lar”; Centro de Atendimento
Multidisciplinar Educacional - CAME; Centro de Recuperação e Integração do
Excepcional – CRIE; Escola Profissionalizante Conceição Laura Alves e
Centro Social Escadinha do Céu (responsável pela execução das Medidas
Socioeducativas em meio aberto). Guararapes conta também com as
entidades que executam o serviço de fortalecimento de vínculo para crianças
e adolescentes de 6 a 15 anos: Centro Educacional Dom Orione, Educandário
Nossa Senhora Aparecida e Fundação Mirim. Já no município de Rubiácea,
além dos órgãos institucionais regulares, a rede de proteção conta com os
Projetos Guri e Espaço Amigo, que atendem as crianças e adolescentes
daquela localidade. Os profissionais da rede de atendimento da Comarca tem
se reunido para discutir casos em encontros pontuais, cuja frequência varia
de acordo com as demandas apresentadas.
 Realidade de Araçatuba: A Comarca de Araçatuba, formada pelos
municípios de Araçatuba e Santo Antônio do Araranguá, sendo que a equipe
composta por oito assistentes sociais e oito psicólogos é vinculada
hierarquicamente a 2ª Vara de Execuções Criminais, da qual a Infância e
Juventude são anexas; apesar disso a equipe tem atuação em processos das

318
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Varas de Família e Cíveis, sendo que nos últimos anos esta demanda vem
aumentando consideravelmente, em virtude das mudanças legislativas
propostas pelo Código de Processo Civil, Lei do Idoso, entre outras, o que
vem requerendo do profissional um repensar do seu papel, logo que nas
áreas da Família e Cível nossa atuação se dá nos termos do código civil,
enquanto peritos somente. Nos processos da Infância e Juventude, a partir
das mudanças trazidas pela Lei 12.010/2009, assim como da lei 12.574/2012,
houve também um redirecionamento da demanda, sendo que atualmente as
maiores demandas desta área são os acolhimentos institucionais, apuração
de ato infracional e cadastro de pretendentes a adoção. Nos últimos tempos
fomos recorrentemente chamados a realizar Estudo Social em processos de
vaga em creche, o que indica um processo de judicialização dos direitos
sociais, frente à minimização destes. Araçatuba é considerado um município
de grande porte e conta com uma rede de serviços na área da educação e
assistência social relativamente organizada, sendo que a maior demanda na
política de educação é por creche, sendo esta insuficiente para o atendimento
da demanda, e na área da assistência social, projetos em contra turno escolar
para atendimento de crianças e adolescente em situação de vulnerabilidade;
no que se refere à rede de serviços da saúde, o município conta com CAPS
AD e atendimento na área da saúde mental, sendo que se sente a ausência
do CAPS I, que está em fase de implantação. No que se refere à articulação
com a rede, a equipe do Judiciário compõe quatro grupos de discussão e
ação juntamente com outros atores da rede:
o Núcleo de Estudos em Medidas Socioeducativas, criado a partir do
Plano Municipal de Medidas Socioeducativas em meio aberto;
o Grupo Olhar em rede, criado para pensar ações no combate à violência
contra criança e adolescente;
o Grupo de trabalho para o reordenamento das instituições de
acolhimento;
o Reuniões mensais para discussão de situações de risco envolvendo
crianças e adolescentes em acolhimento institucional e/ou em vias de
acolhimento.

319
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Estes grupos e espaços de reflexão e intervenção contribuíram para a


construção de uma vivencia de rede por parte dos profissionais do judiciário,
sendo que estas equipes tem tido um papel importante na articulação,
representação do judiciário, assim como na elaboração de propostas para as
políticas voltadas aos atendimentos de crianças, adolescentes e suas
famílias; principalmente voltadas a desjudicialização das demandas sociais.
A experiência do trabalho em rede tem refletido na melhoria dos serviços
prestados, e também na ampliação da visão tanto do judiciário em relação à
política pública, quanto dos demais atores em relação ao judiciário. Além
deste trabalho, na realização dos estudos sociais e psicológicos os contatos
com os outros atores da rede de serviços são frequentes e essenciais para a
coleta de informações e ampliação da compreensão da realidade dos
envolvidos nos processos. Tal contato se dá com as escolas municipais e
estaduais, com a rede de serviços da saúde, assistência social e com o
Conselho Tutelar.

320
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

O cotidiano de trabalho dos assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo tem se mostrado a cada dia mais denso, reflexo da
complexidade das relações sociais, advindas das modificações impostas pela
sociedade capitalista, dentre elas o processo de minimização de direitos sociais e
aumento do conservadorismo institucional e ideológico.
Tais modificações impactam diretamente nosso trabalho, em ao menos duas
vias: a da judicialização dos conflitos, demandas e direitos sociais, seja pela via do
acesso ao direito, logo que o Poder Judiciário configura como uma via de acesso
individual a direitos sociais que são negados pelo Executivo, seja pela criminalização
dos extratos mais empobrecidos da classe trabalhadora (concretizados nos pedidos
de acolhimento institucional, apuração de atos infracionais, entre outros); e da
precarização das condições de trabalho, seja do ponto de vista da estrutura
física/material na qual nosso trabalho se dá, seja pela via do aumento considerável
de demandas “fora do lugar”, das quais temos, após a publicação das alterações em
nossas atribuições, dificuldades em rebatê-las.
Tal realidade requer dos profissionais uma capacidade cada vez maior de
crítica; e organização, pra dentro do Tribunal de Justiça, entre os pares, mas
também para fora, ou seja, o fortalecimento do trabalho em rede aparece como uma
das estratégias a serem utilizadas visando à ampliação da análise e a defesa e
materialização dos direitos da população atendida, demanda esta que justifica de
maneira ética e política nossa inserção neste espaço sócio ocupacional.

321
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n.º 8.069 de 13 de julho de 1990. Estabelece o Estatuto da Criança e do


Adolescente. Brasília. 1990

BRASIL. Lei n.º 12.010, de 3 de agosto de 2009. Altera o Estatuto da Criança e do


adolescente.

FAVERO. E.T. MELÃO, M.; TOLOSA JORGE, M. R. (Orgs.). Serviço Social e


Psicologia no Judiciário: construindo saberes, conquistando direitos. São Paulo:
Cortez, 2005.

SÃO PAULO. Comunicado n.º 345 de 26 de maio de 2004. São Paulo: Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. 2004. Disponível em
http://www.tjsp.jus.br/Corregedoria/Corregedoria/NucleoApoioProfissionalServicoSoc
ialPsicologia. Consulta em out. 2016.

SÃO PAULO. Manual de procedimentos técnicos. Atuação dos profissionais de


serviço social e psicologia. Infância e Juventude. Volume I. São Paulo: Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, 2006-2007. p. 169.

SÃO PAULO. Manual do curso de iniciação funcional para assistentes sociais e


psicólogos judiciários. São Paulo: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1991-
1992. p 276.

SÃO PAULO. Parecer CIJ (Coordenadoria da Infância e juventude) n.º04/10. São


Paulo: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 2010.

SÃO PAULO. Portaria nº 9.277/2016. São Paulo: Tribunal de Justiça do Estado de


São Paulo, 2016.

322
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

OS IMPACTOS DAS DEMANDAS ATUAIS DO TRABALHO


DO ASSISTENTE SOCIAL E PSICÓLOGO NO JUDICIÁRIO
NA SAÚDE DOS TÉCNICOS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ASSIS


“O COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016

323
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Rosana Cláudia Mouro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis


Flávia Domingues de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis

AUTORAS

Adriana Felipov – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília


Ana Cláudia Brancalhão – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis
Ana Lúcia Martins Fonseca – Assistente Social Judiciário – Comarca de Paraguaçu
Paulista
Ana Paula Ferreira de Castro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Antonella Di Nallo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis
Cíntia Fernanda Pavaneti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis
Fabiane Bolfarini Guiotti Campanatti Pereira – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Assis
Laura Moreira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Palmital
Márcia Cristina Schwarz Mendes – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis
Maria Aparacida Pareschi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Candido Mota
Roberta Schiavinato Felipe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Maracaí
Rosana César de Oliveira Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Paraguaçu Paulista
Roseclair Keller de Oliveira Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis
Sílvia Maria Rossi Barreto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cândido Mota
Thais de Cássia Ribeiro Pereira Rupel – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Chavantes
Vanessa Aparecida Tusco Bregagnoli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Quatá

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Entremos nessa realidade fluida para compreender o sertão,


que nos devolverá mais claros a nós mesmos e aos outros. O
Sertão é o Mundo.
(Cândido, 1994: 59).

Dedicamos este trabalho a todos


professores convidados ao longo da
construção deste trabalho, que trouxeram
contribuições importantes para nossa
reflexão sobre o tema.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente trabalho compreende a produção do Grupo de Estudos formado


por Assistentes Sociais e Psicólogos da Circunscrição de Assis, Ourinhos e Marília,
cujo tema é “O COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”, especificamente
neste ano abordando o tema Os impactos das demandas atuais do trabalho
profissional do Assistente Social e Psicólogo no Judiciário na saúde dos
técnicos.
Inicialmente é preciso considerar que o significado de trabalho, o qual
assumirá neste trabalho o sentido da principal atividade do ser humano, ou seja,
aquela que dita as regras do nosso viver, ocupando nosso espaço e tempo,
definindo nosso vocabulário, estabelecendo hora de comer e dormir, interferindo no
que somos e temos. Logo, nesta concepção, o trabalho significa mais que uma
necessidade material, mas também é considerado uma fonte de realização pessoal.
Sabemos que as empresas privadas são regidas pelo sistema capitalista,
dentro do sistema de gestão do trabalho e assumindo políticas de gerenciamento de
recursos humanos inerentes a este sistema. No entanto, as instituições não
privadas, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acabam
acompanhando o sistema vigente capitalista de produção e reprodução da vida
social.
Neste sentido, é no âmbito desta ampla discussão do mundo do trabalho que
procuraremos estabelecer um paralelo entre a importância do trabalho na vida
psíquica do trabalhador, mais especificamente dos assistentes sociais e psicólogos,
atuantes no interior do judiciário paulista.
Estes profissionais que compõem o chamado setor técnico do juízo foram
cada qual, inseridos em um período específico da história desta instituição pública e
assumem diversas funções dentro do poder judiciário. Funções estas que estão
passando cotidianamente por ressignificações à medida que a sociedade e o mundo
do trabalho se alteram de forma dinâmica.
Para fins didáticos o presente artigo encontra-se dividido em três partes
constitutivas. Na primeira parte do texto, buscou-se discorrer acerca dos conceitos

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de trabalho, suas condições e consequências na vida e saúde do trabalhador, a


partir de diferentes correntes teóricas. Posteriormente, apresentou-se uma
discussão dividida em dois capítulos sobre o trabalho profissional do assistente
social e do psicólogo no poder judiciário, traçando um paralelo entre sua
consolidação histórica até as atuais demandas e condições de trabalho dos preditos
profissionais.
Com isto, desejamos contribuir com reflexões sobre o cotidiano da prática
profissional do trabalho técnico do assistente social e psicólogo no poder judiciário,
todavia sem esgotarmos o assunto, o qual consideramos tão rico, importante e
dinâmico.

1. A PRECARIZAÇÃO DO MUNDO DO TRABALHO NO SÉCULO XXI

1.1 A crise do capital nas últimas décadas e seus reflexos na pessoa- que-
trabalha

Para discutir a qualidade de vida no trabalho e o processo de adoecimento


que acomete os trabalhadores dos setores técnicos do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo torna-se necessário fazer uma reflexão sobre a precarização das
relações de trabalho no século XXI, para isto recorremos às últimas décadas de
desenvolvimento do capitalismo global. Para Alves (2014): “a precarização do
trabalho é um traço estrutural do modo de produção capitalista. (...) e não se reduz
tão somente a questão salarial, mas também a precarização existencial e do homem
que trabalha”.
De acordo com Alves 2016, vivemos uma profunda crise do capitalismo. A
situação pode ser expressa pela crise financeira de 2008/2009 que atingiu o núcleo
orgânico dos países desenvolvidos. Já no mundo de economias periféricas, como o
Brasil, os sinais iniciais da instabilidade financeira, começaram a serem sentidos
somente no início dos anos 2010, atingindo seu ápice no momento atual. Para o
autor diferentemente das crises econômicas de fins do século XIX, e 1970/80 que
foram de caráter lucrativo, a atual está mais próxima a grande depressão de 1929,
considerada a primeira crise de hegemonia financeira. Assim, o mercado de trabalho
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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começou a se degradar efetivamente a partir da recessão de 2015. É claro que o


cenário externo é um cenário de crise: a desaceleração da China, a brusca queda
dos preços das commodities, a recessão nas economias da União Europeia e o
crescimento medíocre da economia dos Estados Unidos compõem um panorama de
instabilidade financeira e crise do capitalismo global que se abate sobre nossa
economia — pelo menos desde 2014.
O traço estrutural da crise se expressa principalmente pela crescente
precarização do trabalho vivo. As grandes inovações tecnológicas, juntamente a
disseminação dos valores ideológicos e utopias empresariais, contribuem para
degradação da pessoa humana. O movimento toyotista das grandes corporações
exemplifica o que o autor denuncia, pois essa carrega em sua essência a captura da
subjetividade do trabalho vivo pelo capital. O fracasso do neodesenvolvimentismo, o
avanço neoliberal, leva o trabalhador para algo pior do que a precarização,
entendida por Giovanni Alves (2016) como um estado de barbárie.

Depois de dez anos de governos neodesenvolvimentistas, com a


economia brasileira crescendo e resultados positivos nos indicadores
sociais do mercado de trabalho — taxa de desemprego e índice de
formalização salarial —, assistimos hoje a uma regressão social de largo
espectro.

Para Alves (2016), isso fica claro se observarmos os ataques aos direitos dos
trabalhadores ocorridos nos últimos anos. É o caso da chamada PEC da
Terceirização, que segundo esse, é a mais terrível forma de degradação do trabalho:
“Terceirização ampla, geral e irrestrita é a antessala da barbárie social amplificada e
intensificada no Brasil do século XXI”, analisa.
O desemprego é a forma mais terrível de degradação do mercado de
trabalho, principalmente no Brasil, onde não existe historicamente uma rede de
proteção social eficaz contra os efeitos danosos do desemprego. O desemprego
torna as pessoas desamparadas, à mercê da irracionalidade social que prolifera nas
metrópoles. Aqui podemos pensar na violência urbana vitimando contingentes cada
vez maiores, o uso disseminado de drogas e as variadas formas de destruição.

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1.2 A precarização do mundo do trabalho

Em lançamento recente do livro A tragédia de Prometeu: A degradação da


pessoa humana-que trabalha, o professor Giovani Alves problematiza a
precarização do trabalho e seus reflexos na vida da classe trabalhadora e na
economia do país.

A precarização do trabalho nas condições da crise do capitalismo brasileiro


na última metade da década de 2010 se apresenta constituída de modo
global pela ampliação da nova precariedade salarial e pela precarização das
condições de existência social do trabalho vivo. (ALVES, 2016).

A CLT nos próximos anos deve ser exposta ao risco do aprofundamento da


flexibilização da legislação trabalhista (“flexibilização é eufemismo para precarização
laboral”). Nunca antes na história deste país, a CLT passou por tantos atos de
degradação de direitos trabalhistas. Por exemplo, a Lei da Terceirização, o PL 4330
e que está no Senado como PLC 30/2015, permite a terceirização sem limites.
Temos também o PLS 432/13 de Flexibilização do Conceito do Trabalho Escravo,
que desconfigura e ameniza o conceito de trabalho escravo. Outra ofensiva patronal
é a redução da idade de trabalho (PEC 18/2011), que autoriza o trabalho de regime
parcial a partir dos 14 anos. Mas o que mais preocupa é a prevalência do negociado
sobre o legislado, ou seja, só vale o que estiver na CLT se acordo ou convenção
coletiva não dispuser em sentido diferente. O texto, que será votado pelo plenário
da Câmara e, se aprovado pelo plenário do Senado, representará o maior retrocesso
já havido nas relações de trabalho, porque flexibiliza e cria condições para precarizar
os direitos dos trabalhadores, especialmente em momento de retração da atividade
econômica.
A precarização do trabalho implica também a disseminação do trabalho
flexível por meio das remunerações flexíveis vinculadas a metas de produção. Cada
vez mais, as organizações púbicas ou privadas vinculam a forma-salário a metas de
produtividade, contribuindo para o estresse da pessoa-que-trabalha. A precarização
do trabalho se expressa também na jornada de trabalho inflexível onde a pessoa-
que-trabalha reduz seu tempo de vida a tempo de trabalho. Os locais de trabalho
reestruturados, tanto no setor privado como no setor público, incorporam novos

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métodos de gestão de caráter toyotista acoplados às novas tecnologias


informacionais que intensificam o trabalho.
A sociedade brasileira é um exemplo candente da degradação das condições
de existência social do trabalho vivo nas regiões metropolitanas ocorrido
principalmente nos últimos quinze anos. Por exemplo, não se resolveram problemas
da profunda crise urbana que estressa as pessoas-que-trabalham no plano da
circulação social (o aumento do tempo de trajeto de casa para o local de trabalho
nas grandes cidades). Identificamos um conjunto de novos fenômenos sociais —
“vida reduzida”, crise de sentido humano, carecimentos radicais, etc. — que
compõem o novo e precário mundo do trabalho no Brasil do século XXI. O efeito
social é o aumento dos adoecimentos laborais — depressão, estresse, síndrome do
pânico, Síndrome de Burnout, etc. - que “explodiram” na era do
neodesenvolvimentismo. Como sociólogo, Alves observa não apenas a dimensão da
macroeconomia do trabalho ou a dimensão da morfologia social do trabalho, mas
também a dimensão do metabolismo social onde, por conta do choque de
capitalismo que o Brasil sofreu nos últimos quinze anos, está permeado de formas
de estranhamento social.
Pode-se refletir que:

(...) as profissões caracterizadas pelo trabalho ideológico tem uma


característica fundamental – elas envolvem, extensa e intensamente, a
subjetividade das pessoas-que-trabalham – o trabalho ideológico com
implicação estranhada, possui alta carga de estressamento, que nas
condições da precarização existencial, faz aumentar o adoecimento laboral
(precarização do homem que trabalha). (ALVES, 2014, p. 17)

Dentre os trabalhadores da sociedade encontram-se os assistentes sociais e


psicólogos que trabalham numa relação direta com as expressões das questões
sociais, e considerando:

(...) a ampliação dos conflitos sociais e a necessidade de controle social, o


conjunto de profissões que representam o trabalho ideológico torna-se um
campo através do qual os homens tornam-se conscientes destes conflitos e
neles se inserem mediante luta. (Alves, 2013)

O Brasil é hoje um território privilegiado para observarmos a barbárie social


que caracteriza o capitalismo global no século XXI.

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De acordo com Alves 2016, a ampliação da informalidade é o espectro do


aumento da nossa miséria social caracterizada não apenas pela alta desigualdade
social, marca distintiva do Brasil no cenário mundial, mas a crescente concentração
de renda. A informalização do mercado de trabalho representa superexploração da
força de trabalho, outra marca distintiva do capitalismo retardatário no Brasil. O
processo de combate às desigualdades sociais deve se arrefecer também caso um
governo neoliberal reduza ou extinga programas sociais de combate à pobreza
absoluta ou pobreza extrema.

1.3 Saúde do trabalhador

Para a abordagem deste tema, consideramos importante trazer à reflexão


dois conceitos importantes para a saúde do trabalhador, ou seja, o que se entende
por trabalho e o que se entende por saúde.
O trabalho aqui é compreendido em sua concepção totalizante, como
atividade cujo fim é utilizar as coisas naturais ou modificar o ambiente e satisfazer as
necessidades humanas, implicando em: 1) dependência do homem em relação à
natureza; 2) reação ativa a essa dependência; 3) grau mais ou menos elevado de
esforço, sofrimento ou fadiga, que constitui o custo humano do trabalho. O trabalho
é, portanto, central na vida do ser humano.
A concepção de saúde é a concepção dada pela Organização Mundial da
Saúde, na qual a saúde é entendida como umestado de completo bem-estar físico,
mental e social, e não apenas ausência de doenças e enfermidade; capacidade de
um indivíduo ou grupo de indivíduos de realizar suas aspirações, satisfazer suas
necessidades e mudar ou enfrentar o ambiente. É um conceito positivo, enfatizando
recursos sociais e pessoais, tanto quanto as aptidões físicas. Neste contexto a
saúde é, também, um processo social que pressupõe o estado de bem-estar, a ação
sobre o ambiente e a interação social.
Em seu objetivo, o campo da saúde do trabalhador visa: “conhecer e intervir
nas relações de trabalho e saúde-doença, tendo como referência central o
surgimento de um novo ator social: a classe operária industrial, numa sociedade que
vive profundas mudanças políticas, econômicas, sociais” (LACAZ apud Vizzaccaro-
Amaral, 2013a, p.55).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Assim, o campo da saúde do trabalhador considera a determinação social do


processo saúde-doença e aborda “o sofrer, adoecer, morrer das classes e grupos
sociais inseridos em processos produtivos”: a partir da Saúde Coletiva (LACAZ apud
Vizzaccaro Amaral, 2013a, p.56). É uma concepção que se liga e contrapõe-se ao
campo da Saúde Ocupacional (SO), uma vez que a Saúde Ocupacional tem seu
foco voltado para a história natural da doença e para a tríade agente hospedeiro
ambiente, do modelo biomédico.
Vale lembrar que a partir desta diferenciação surge a Psicologia do Trabalho,
com o objetivo de estudar os efeitos do trabalho na saúde mental do trabalhador.
Diferentemente da psicologia organizacional, cujo foco e voltado para as questões
de Recursos Humanos.
A partir dessas concepções, abordaremos os impactos positivos e negativos
do trabalho sobre a saúde. Impactos positivos: a) o trabalho é a ação do homem
sobre a natureza; b) o trabalho possibilita a interação entre os seres humanos; c) o
trabalho é um meio para a subsistência e d) o trabalho pode ser fonte de prazer e
bem-estar. Nesta direção, o trabalho é meio para a saúde. Impactos negativos: a)
pode ser direto, quando é a causa de algum tipo de danos ou agravo à saúde e à
vida do trabalhador; b) indireto, quando é fator de risco para a saúde e para a vida
do trabalhador.
Os impactos negativos do trabalho sobre a saúde atinge a Previdência Social
que se onera com os benefícios acidentários (Auxílio Acidente e Auxílio
Suplementar), Aposentadorias por Invalidez, Pensão por Morte e Auxílio Doença;
atinge, ainda, a Saúde Pública que presta atenção ao fator doença e provoca
impactos Jurídicos, em razão da judicialização das relações de trabalho.
De acordo com o Prof. Dr. André Luís Vizzaccaro-Amaral, as possíveis formas
de enfrentamento dos impactos negativos do trabalho para a saúde do trabalhador
seriam: a) ações de gestão de pessoas: gestão participativa (ouvir o trabalhador e
permitir-lhe agir sobre seu trabalho); b) ações da gerência de recursos humanos:
atenção ao sistema de higiene e segurança do trabalho; atenção ao sistema de
relações trabalhistas; atendimento a modelos de QVT e de responsabilidade social;
atenção aos indicadores de rotatividade, absenteísmo e produtividade;
Monitoramento de indicadores de saúde mental, ampliando o Programa de Controle

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Médico e Saúde Ocupacional (PCMSO); c) serviços externos: contratação de


serviços de consultoria e de assessoria.

1.4 Psicodinânima do Trabalho segundo Dejours

Christophe Dejours, médico francês, especialista em medicina do trabalho,


em psiquiatria e psicanalista abordou em suas pesquisas a psicodinâmica do
trabalho, desenvolvidas, sobretudo, na década de 80.
Para o pesquisador as empresas privadas são regidas pelo sistema
capitalista, dentro do sistema de gestão do trabalho e dentro da nova política de
gerenciamento de recursos humanos dada por ele. Porém, as instituições não
privadas, acabam acompanhando o sistema vigente (capitalista).
O trabalho dita as regras do nosso viver, ocupando nosso espaço e tempo,
definindo nosso vocabulário, estabelecendo hora de comer e dormir, interferindo no
que somos e temos.
O trabalho é a principal atividade do ser humano, sendo que Freud define
saúde mental como sendo a capacidade de amar e trabalhar. (homem- trabalho –
saúde).
Considerando a importância do trabalho na vida psíquica do trabalhador o
tema passou a ser pesquisado, a priori na Europa, tornando-se o estudo da
psicologia do trabalhado e saúde do trabalhador.
A obra de Dejours representa um marco da Psicopatologia do Trabalho,
sendo que não se pode abordar qualquer assunto sobre sofrimento no trabalho, sem
que se passe por algum conceito elaborado pelo pesquisador.
A gênese do pensamento dejouriano sobre o sofrimento humano encontra-se
nos fundamentos do desenvolvimento industrial do século XIX, caracterizado pelo
crescimento da produção, êxodo rural e concentração de novas populações
urbanas, portanto, com destacado cunho sociológico.
O período era de precárias condições de trabalho, emprego de crianças na
produção industrial, salários insuficientes para a subsistência e elevado número de
acidentes. A sociedade industrial convivia com alta morbidade, crescente
mortalidade e uma longevidade, extremamente, reduzida, e a batalha pela saúde era
a própria luta pela sobrevivência.

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O sofrimento no trabalho constitui-se uma das consequências da insistência


do ser humano em viver em um ambiente que lhe é adverso. A relação do homem
com o trabalho nunca foi fácil, até mesmo a etimologia da palavra denota algo
penoso e, até mesmo, indesejado (“tripalium”, instrumento de tortura feito com três
paus). Houve tempos em que as patologias associadas ao trabalho eram, em sua
grande parte, somáticas. No entanto, essa realidade tem mudado, especialmente, no
período pós anos 1960, quando o trabalho começou a ganhar componentes, cada
vez mais, psicopatológicos, sendo, justamente, a partir dessa época que se inicia o
desenvolvimento do pensamento dejouriano.
A organização do trabalho pode favorecer um tipo de sofrimento capaz de
desencadear doenças e acidentes.
Apesar dos avanços, as teorias administrativas ainda trabalham com a
concepção de homem econômico, que trabalha só por dinheiro (sobrevivência),
porque o homem só precisa ser racional e destituído de afeto (homem abstrato).
Para Dejours, as exigências do trabalho e da vida são uma ameaça ao próprio
trabalhador, que acusa riscos de sofrimento (o que era conhecido como Miséria
Operária), que se compara a uma doença contagiosa, devendo ser encarada e
tratada como tal, surgindo daí um movimento denominado higienista como resposta
social ao perigo.
Foi a partir do início dos anos 80 que a Psicopatologia do Trabalho se
preocupou em fundamentar a clínica do sofrimento, na relação psíquica com o
trabalho. Nessa nova abordagem o trabalho na clínica psicológica, pode então
ultrapassar seus conceitos filosóficos, econômicos e sociológicos, passando a ser
definido como uma psicopatologia, sendo que a etiologia (o agente causal) dessa
psicopatologia tem sua origem nas pressões do trabalho; pressões essas que
comprometem o equilíbrio psíquico e a saúde mental, na organização do trabalho.
Dejours afirma que as relações de trabalho, dentro das organizações,
frequentemente, despojam o trabalhador de sua subjetividade, excluindo o sujeito e
fazendo do homem uma vítima do seu trabalho. Um dos mais cruéis golpes que o
homem sofre com o trabalho é a frustração de suas expectativas iniciais sobre o
mesmo, à medida que a propaganda do mundo do trabalho promete felicidade e
satisfação pessoal e material para o trabalhador; porém, quando lá adentra, o que se
tem é infelicidade e, na maioria das vezes, a insatisfação pessoal e profissional do

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trabalhador, desencadeando, então, o sofrimento humano nas organizações.


Segundo Dejours, essa situação deu-se com maior intensidade após a
década de 1960, quando houve uma aceleração desigual das forças produtivas, das
ciências, das técnicas e das máquinas. Todos esses fatores, aliados às novas
condições de trabalho - que podem ser entendidas por meio do ambiente físico
(luminosidade, temperatura, barulho); do ambiente químico (poeiras, vapores, gases
e fumaças); do ambiente biológico (presença de vírus, bactérias, fungos, parasitas);
pelas condições de higiene, de segurança e as características antropométricas do
posto de trabalho nas indústrias; facilitaram o aparecimento de sofrimentos
insuspeitos na vida dos operários. Os sofrimentos insuspeitos estão associados a
fatores históricos, laborativas e àqueles favoráveis ou não para a vida do
trabalhador, relacionados à própria vida humana e ao trabalho. São discriminados
como: a) sofrimento singular (dimensão diacrônica): é herdado da história psíquica
de cada indivíduo; b) sofrimento atual (dimensão sincrônica): ocorre quando há o
reencontro do sujeito com o trabalho; c) sofrimento criativo: quando o sujeito produz
soluções favoráveis para sua vida, especialmente, para sua saúde; e d) sofrimento
patogênico: é ao contrário do sofrimento criativo, ou seja, quando o indivíduo produz
soluções desfavoráveis para sua vida e que estão relacionados à sua saúde.
A normalidade é considerada um enigma na nova dinâmica da Psicopatologia
do Trabalho, pois, a maioria dos trabalhadores não consegue preservar um equilíbrio
psíquico e manter-se na normalidade, a exceção passou a ser a regra, ou seja, a
regra hoje é o sofrimento e não a normalidade. A partir dessa constatação, as
investigações na área da Psicopatologia do Trabalho centram-se, não mais na
direção das doenças mentais, mas, nas estratégias elaboradas pelos trabalhadores
para enfrentarem, mentalmente, a situação de trabalho. A partir desse novo
paradigma, Dejours (1994) define a normalidade como o equilíbrio psíquico entre
constrangimento do trabalho desestabilizante ou patogênico e defesas psíquicas.
O equilíbrio psíquico seria o resultado de uma regulação que requer
estratégias defensivas especiais, elaboradas pelos próprios trabalhadores, porém, a
normalidade conquistada e conservada pela força é transpassada pelo sofrimento.
Nesse caso a “normalidade” não é um dado natural, ela é uma luta contra a doença
mental. A “normalidade” é transpassada pelo sofrimento, assim o sofrimento é o
espaço de luta entre o bem-estar e a doença mental. (DEJOURS)

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O bem-estar está relacionado à ideia de ambiente gratificante e, assim,


quando o trabalho é realizado em tal ambiente, leva os trabalhadores a gostarem do
produto realizado.
Quando há flexibilidade na organização do trabalho, ocorre a ressonância
simbólica. Isso permite que o indivíduo aborde a situação de trabalho sem ter que
deixar sua história, seu passado e sua memória no “vestuário”. Ele pode ali investir
sua curiosidade epistemológica. Pela intermediação do trabalho, o sujeito engaja-se
nas relações sociais.
É o que permite a articulação, bem sucedida, entre o singular (história do
trabalhador) e o coletivo (história do trabalho). Tal situação permite que o trabalho
seja favorecido.
Já, a ideia de sofrimento está relacionada à subjugação do trabalho e, quando
isso ocorre, ocasiona raiva ao produto. Percebe-se, assim, que o trabalho está
conformado pelo afeto. Essa ideia de afeto implica “amor” ou “ódio” ao trabalho e
gera outros binômios paralelos: “alegria” ou “tristeza”, “entusiasmo” ou “desânimo”,
“anelo” ou “desprezo”. Como a grande maioria das vezes, o trabalho acaba se
associando mais à ideia de sofrimento, as pessoas acabam rompendo o conceito
afeto/trabalho tornando o primeiro restrito ao lar, à família, expulsando o segundo de
sua relação afetiva; e, assim, o trabalho fica “desafetivado” e, consequentemente,
insuportável.
O sofrimento patogênico gera empobrecimento dos relacionamentos afetivos
(ex. não tem disposição em casa para com a mulher e os filhos), repressão do
funcionamento psíquico dentro e fora da organização. O indivíduo teme que as
solicitações psíquicas desestabilize o ritmo psíquico (embotamento do afeto) que
custou estabelecer. O trabalho o desliga dos familiares e o trabalhador se torna
intolerante, reage com violência contra seus filhos, que se calam e se imobilizam.
O Sofrimento patogênico interfere na produtividade, pois gera:
- Individualismo;
- Desengajamento subjetivo;
-Demonstração generalizada;
- Perda da qualidade;
- Risco de acidente;
- Absenteísmo;

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- Medo de contar que está doente (isolamento).

2. O TRABALHO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO


PODER JUDICIÁRIO: DO PROCESSO HISTÓRICO ATÉ AS
DEMANDAS ATUAIS

2.1 A proposta de inserção do Serviço Social no Judiciário

Resgatando a história das primeiras inter-relações do serviço social com o


judiciário, devemos nos deter inicialmente em uma análise dos primórdios do Juízo
Privativo de Menores na capital paulista, instituído pela Lei 2.059, de 31 de
dezembro de 1924. A referida legislação previa a criação do aludido juízo e a
composição de sua equipe, a qual abrangia os seguintes profissionais: promotor,
médico, escrivão, escrevente, comissário de vigilância, oficial de justiça, servente e
porteiro.
Nesta época, a figura do médico, integrante do corpo de funcionários do
juizado de menores, revela a estreita relação com a importância que era dada a
questões de hereditariedade e eugenia. Sobre isto, podemos destacar:

Os estudiosos da hereditariedade defendiam que os filhos tendem a ser


semelhantes aos pais, que transmitem as características boas e más,
inclusive as referentes à personalidade e tendências de comportamento. Já
a eugenia buscava a formação de gerações sadias através da escolha de
parceiros compatíveis, defendendo a realização de exames pré-nupciais e
outros instrumentos da medicina para evitar a degeneração dos indivíduos
ao longo das gerações. (ALAPANIÁN, 2008, p. 27).

Somente cerca de um ano depois, com um novo decreto, tal Juízo muda esta
composição inicial e na nova equipe a figura do médico é abolida, emergindo os
primeiros contatos do serviço social como profissão, diretamente relacionado ao
Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores, setor que compreendia o
abrigo de menores e demais estabelecimentos de proteção e reforma, direcionados
à criança e ao adolescente.
Logo, observamos que a motivação para a inserção do assistente social junto
ao Poder Judiciário tem como pano de fundo as questão da criança e do
337
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adolescente, até então chamados de menores, tratados na época como


irregularidades, pessoas que estavam desajustadas. E com este escopo dá seus
passos iniciais, neste espaço institucional, ainda nos primórdios da profissão no
país.
Posteriormente, em 1938 com nova mudança na legislação, o serviço social
passa a exercer funções de fiscalização e vigilância de menores em situação de
abandono, delinquência e também em situação de trabalho. É importante a
lembrança de que esta atuação dos assistentes sociais estava vinculada às funções
judicantes e policiais e à ação da ordem pública, subordinados ao juiz, buscando
atenuar o caráter policial das ações, dando-lhes um caráter protetivo.
Em 1948, temos um marco importante para o avanço do serviço social no
judiciário, pois é nesta data que desponta o mais importante movimento ocorrido em
nível nacional sobre o tema do período, ou seja, a I Semana de Estudos do
Problema de Menores, promovida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
em parceria com personalidades vinculadas à Igreja Católica e a Escola de Serviço
Social, esta última já contava com doze anos de existência.
As discussões do período indicavam que a saída para o problema do menor
consistia em auxiliar a família como espaço para o ajustamento ou reajustamento do
menor abandonado ou delinquente. Defendia-se um trabalho preventivo que
pudesse oferecer às famílias condições básicas, para estas exercerem seu papel na
sociedade, baseado nos preceitos cristãos.
No ano seguinte (1949), os estudos prosseguiram e realizou-se a II Semana
de Estudos do Problema de Menores, organizada pelos mesmos agentes
institucionais preditos. Acerca do discurso deste evento, podemos asseverar, de
acordo com Fávero:

(...) permaneceu a perspectiva de doutrina cristã permeando cada discurso,


cada proposta, com ênfase na necessidade de ampliar o movimento de
assistência social aos menores, numa direção de mudança de mentalidade,
de tomada de consciência para a realização da justiça social. (APUD
ALAPANIÁN, 2008, p. 43).

338
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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2.2 A consolidação do Serviço Social no Poder Judiciário

Em resposta aos estudos alavancados pelas Semanas de Estudos do


Problema de Menores, no ano de 1950 é implantado em caráter experimental pelo
Juizado de Menores da Capital, o Serviço de Colocação Familiar 32, contando com
duas assistentes sociais cedidas.
Para Fávero, formalmente, a participação do assistente social no judiciário
ganhou legitimidade neste período, a partir de legislações específicas que
direcionam a atuação profissional do Assistente Social junto ao Juizado de Menores
no Serviço de Colocação Familiar do Estado de São Paulo. “O serviço social tem
sido uma profissão privilegiada [...] sendo demandado e introduzido formalmente no
então chamado Juizado de Menores de São Paulo, no final de década de 40/início
dos anos 50.” (1999, p. 26).
Mais tarde o Serviço de Colocação Familiar mudou sua proposta e
transformou-se num programa de subsídios a famílias que tinham dificuldades em
manter seus filhos. A implantação desse Serviço estabelecia que os componentes
do mesmo, além de serem pessoas de ilibada conduta moral, fossem se possível,
assistentes sociais e que o chefe do Serviço fosse, preferencialmente, um assistente
social diplomado por Escola de Serviço Social e designado pelo Juiz de Menores.
É importante pontuarmos que neste período, temos um fortalecimento
gradativo do já implantado Juizado de Menores, o qual passa a assumir os serviços
não ofertados pelo poder executivo, adotando diversas funções e desta vez com a
perspectiva crescente de profissionalização do trabalho. Neste processo, os
assistentes sociais tiveram uma importante participação, já que a militância do
Serviço Social, associada ao fato dos profissionais já estarem inseridos na atuação
do Juizado, contribuíram para que a profissão se consolidasse na operacionalização
das propostas de expansão do judiciário paulista.
Para Alapanián (2008, p. 68):

A defesa do Serviço Social como profissão capaz de auxiliar o Juizado de


Menores a desempenhar uma ação social mais efetiva, graças à prevenção
e ao acompanhamento sistemático de cada caso, vinha sendo feita pela

32
Esse serviço visava à assistência ao menor com até 14 anos de idade, “proveniente de família
pobre, colocando-o de forma provisória e remunerada em um lar substituto, até que a família de
origem se reajustasse ao que se consideravam condições normais de vida”. (FÁVERO, 1999, p. 72).
339
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Escola de Serviço Social desde 1948, quando da I Semana de Estudos.


Enfatizando o caráter técnico-profissional da formação dos assistentes
sociais, a Escola de Serviço Social afirmava serem eles os profissionais
melhor qualificados para uma tarefa que quase nada tinha a ver com a boa
vontade, necessitando de preparo e de qualificação.

2.3 O Juizado de Menores e o Serviço Social

Se nos anos 1950, vimos a consolidação do serviço social como profissão


dentro do judiciário paulista, bem como a expansão do Juizado de Menores, após os
anos 1960, o referido juizado tornou-se uma importante estrutura, com uma grande
equipe e diversos serviços de apoio, tudo isso graças a uma conjuntura política
favorável. (ALAPANIÁN, 2008).
O período mais produtivo do Juizado de Menores da Capital do Estado de
São Paulo foi o que abrangeu os anos entre 1956 e 1965, sob o comando do juiz de
direito Dr. Aldo de Assis Dias.
Este momento também foi bastante significativo para o avanço do Serviço
Social no trabalho especializado com o que hoje chamamos de infância e juventude.
Nas palavras de Alapanián (2008, p. 90-91), “O Serviço Social nesse período
cresceu no interior do Juizado de Menores na mesma proporção e ritmo, como o
principal agente técnico, auxiliar do Juízo em praticamente todas as ações jurídicas
e assistenciais desenvolvidas”.
Sobre este mesmo período, de acordo com Fávero (1999), de 1948 e 1958
vários serviços de atendimento à criança e ao adolescente passaram a ser
centralizado no Juizado de Menores. Com isso, múltiplas frentes de trabalho foram
abertas para os assistentes sociais que atuavam no Juizado, principalmente a partir
de 1956, com o juiz de menores, Dr. Aldo de Assis Dias.
É em 1957 que os assistentes sociais começam a atuar nas Varas de Família,
atendendo ao dispositivo do Código Civil no que tange a possibilidade do juiz
nomear um perito para que lhe forneça subsídios à decisão.
A partir deste momento o trabalho desenvolvido pelos assistentes sociais
junto do Tribunal de Justiça foi expandindo de maneira que esse serviço passou por
uma reorganização sendo criadas as Sessões de Informações e de Serviço Social,
logo conhecido como Serviço Social de Gabinete, com o fim de assessorar o Juiz na

340
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

tomada de decisões sobre casos específicos. Com a estruturação dos serviços


técnicos e participação dos Assistentes Sociais, novas funções foram instituídas de
acordo com a estrutura organizacional e funcional, e alguns profissionais chegaram
a assumir a função de Assistente Social Chefe junto aos departamentos de:
Recolhimento Provisório de Menores; Plantão Permanente; Casa de Plantão;
Serviço de Plantão Permanente; Serviço de Menores Desaparecidos; Serviço de
Autorização e Fiscalização; e ainda Assistente Social Diretor do: Centro de
Observação Feminino e Centro de Recepção e Triagem.
Para Alapanián (2008), a expansão aludida coloca o serviço social em
atuação em quase todos os setores do juizado que envolvem o atendimento á
população, sendo que a profissão apresenta-se como peça chave na edificação da
estrutura montada pelo juiz de menores, dando caráter técnico-profissional às
atividades. Por estes motivos, o serviço social torna-se imprescindível para o tribunal
de justiça paulista, gozando de proximidade e prestígio junto ao juiz.
Todavia, ao mesmo tempo em que a estrutura foi crescendo, oportunizando
em um campo de atuação consolidado do assistente social, alguns problemas
começaram a surgir. Os principais, apontados por Alapanián (2008), se referem
justamente ao tamanho da organização administrativa que a máquina do judiciário
paulista se tornou, mostrando-se confusa, complexa e de custo elevado. Outro
ponto, refere-se à dificuldade de contratação de profissionais, os quais estavam
trabalhando submetidos a contratos precários, cargos comissionados ou caráter
voluntário e até mesmo por vinculação de estágio.
Sobre este cenário, “Após 1964, com a mudança na conjuntura política e o
retorno ao regime ditatorial, a situação ficou pior. O executivo voltou a monopolizar o
poder. E o judiciário perdeu muito de sua autonomia”.
Neste ínterim, justifica-se a necessidade de uma forma estrutura de atuação
do poder judiciário, sugerindo que, naquele momento, o poder executivo já havia
consolidado uma estrutura, criando um aparato de alta qualidade com capacidade
para atender os menores, prova disso é que 1969 criou-se a Secretaria Estadual de
Promoção Social. Logo, não havia mais necessidade do Juizado extrapolar suas
funções, invadindo o campo do poder executivo.

341
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2.4 A Construção da Função de Perito

Posteriormente, ao período de expansão acima assinalado, críticas à


estrutura do Juizado de Menores com proposta assistencial e um complexo tutelar,
só cresciam e a política nacional para a área forçava mudanças. Em virtude deste
remodelamento do poder judiciário e a passagem das unidades de atendimento
relativa aos menores para o poder executivo, a estrutura do Juizado de Menores da
Capital restou bem reduzida e os assistentes sociais mantiveram-se presentes em
praticamente todos os setores restantes que mantinham contato direto com a
população.
A partir de 1978, a estrutura do Juizado de Menores sofreu uma redução das
atividades, com concentração nas ações judicantes e de fiscalização do trabalho do
menor. No entanto, o volume de trabalho não parou de crescer e os assistentes
sociais continuaram atuando como assessores nas decisões dos juízes, suas
atividades foram ganhando nova expressão e o Serviço Social investiu em novas
modalidades de intervenção.
Para Alapanián (2008, p. 151):

Passada a crise ocasionada pela saída das unidades de atendimento, as


atividades dos assistentes sociais foram ganhando nova expressão e, voltando-se
mais para a ação judicante, o Serviço Social investiu em novas modalidades de
intervenção. Uma delas foi a construção da ideia de que o assistente social era o
“perito do social” (...).

Sobre esta nova forma de atuação, é sabida que desde a entrada do Serviço
Social no Judiciário, em 1949, assistentes sociais eram requisitados por alguns
juízes das Varas de Família para elaborar estudos sociais de casos, contudo foi
apenas por volta de 1978, 1979 que se discutiu a formalização e a ampliação desse
trabalho.
Assim, formula-se a ideia de que o assistente social pode se tornar um perito
social com características especiais, ou seja, um perito que visa à intervenção e não
apenas aprecia a situação. Utilizando uma terminologia própria do judiciário, pois a
atuação do perito está prevista no Código Civil.
Com este intuito, ainda em 1979, o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo abriu concurso público para o provimento de cargos de assistentes sociais nas
Varas de Famílias e Sucessões do centro e mais doze Varas Distritais.
342
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Além do subsídio ao juiz, coube ao Serviço Social assumir o plantão para


orientação da população e o acompanhamento, nos finais de semana, das visitas de
pais e demais familiares aos menores, realizadas por ordem judicial.
O Código de Menores de 1979 (Lei n° 6697/79) contribui para a formalização
do trabalho profissional dos assistentes sociais no Judiciário, em seu artigo 4º, inciso
III que indicava que a aplicação da lei deveria levar em consideração também o
estudo de caso, realizado por equipe de que participe pessoal técnico, sempre que
possível.
Segundo Faria (2010), neste período estabelece-se um provimento do
Conselho Superior da Magistratura normatizando a atuação do Assistente Social
junto às Varas de Família e Sucessões dando maior legitimação a participação do
Serviço Social no interior da instituição.
Posteriormente, foi concluído o processo de descentralização do judiciário da
capital, a Vara de Menores deixou de ser Vara Única e foram criados Foros
Regionais da capital. Além disso, temos a implantação das audiências
interprofissionais, que consistiam em, além da presença do juiz e das partes em
audiência, também o curador, o advogado, o assistente social e o psicólogo. Com
estas audiências, o juiz pretendia simplificar o serviço, pois ali mesmo eram emitidos
os pareceres e opiniões de todos e dada a sentença.
Neste processo, temos a consolidação de mais duas finalidades de ação do
Serviço Social, que de acordo com Alapanián (2008, p. 165) estavam relacionadas à
“função de levantar e relatar ao juiz dados sobre o meio e a realidade em que vive o
menor e sua família, bem como indicar a essas famílias e ao próprio juiz os recursos
existentes na comunidade (...)”.
Em 1985 o Tribunal de Justiça abriu novo concurso público para o provimento
de 50 cargos de assistentes sociais para as Varas de Menores e Serviço Social do
Trabalho, consequentemente o número de profissionais foi gradativamente sendo
ampliado e, com a pressão dos juízes do interior, criou-se também cargos para
essas comarcas.
O assistente social passa ainda a utilizar de instrumentos (entrevistas, visitas
domiciliares entre outros) que permitiam conhecer a realidade apresentada ao juízo
e conhecedor dos recursos da comunidade, agregou condições para relatar de

343
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

forma ordenada o problema que se apresentava e sugerir soluções de


encaminhamento.

Diante do progressivo agravamento dos problemas sociofamiliares e da


dificuldade em obter saídas para as situações individuais, os assistentes
sociais foram se especializando em construir subsídios para que as
decisões judiciais fossem viáveis e adequadas à realidade, de tal modo que
se tornam imprescindíveis. (ALAPANIÁN, 2008, p. 170).

Por fim, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, em seus


artigos 226 a 230, origina-se os parâmetros para a Lei nº 8069/90 – Estatuto da
Criança e do Adolescente, que substituiu o Código de Menores de 1979. A
participação dos profissionais do Judiciário foi significativa para a reformulação
dessa lei e o modelo de atuação dos técnicos nas Varas de Infância e Juventude,
implementado pelo Judiciário paulista, foi consagrado. Após a entrada em vigor do
ECA, há um detalhamento das funções da equipe de profissionais do judiciário, a
qual está relacionada ao ato de:

(...) fornecer de subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na


audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento,
orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata
subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do
ponto de vista técnico. (ALAPANIÁN, 2008, p. 174).

2.5 As configurações profissionais atuais do Assistente Social no Poder


Judiciário

Conforme afirma IAMAMOTO (2005), acerca do novo perfil dos assistentes


sociais, pode-se afirmar que se busca construir um profissional afinado com a
análise dos processos sociais, tanto em suas dimensões macroscópicas quanto em
suas manifestações cotidianas, um profissional criativo e inventivo, capaz de
entender o “tempo presente, os homens presentes, a vida presente” e nela atuar,
contribuindo, também, para moldar os rumos de sua história.
Além disso, o trabalho profissional do assistente social assume uma ação
ética que extrapola a moral em si, relacionada à liberdade, à autonomia de decisões,
à defesa dos direitos humanos e cidadania, que segundo Magalhães (2001, p. 53):

(...) requer procedimentos de Serviço Social, a intervenção e diagnósticos


que, devidamente ordenados e relatados em seus elementos mais

344
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

significativos permitem oferecer à Autoridade Judiciaria um perfil das partes


– na medida em que apresentam aspectos da historia da vida destas – bem
como, identifica e caracteriza as condições de vida das partes, à época da
realização do estudo.

Aos Assistentes Sociais Judiciários é dada a possibilidade de utilizar métodos


de coleta de dados inerentes à especificidade do caso, resguardando-se os mesmos
princípios técnicos e éticos que orientam a sua profissão, tendo assegurado sua livre
manifestação técnica, com a ressalva de que eles responderão pelos seus Laudos.
As atribuições dos assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça de
São Paulo foram construídas por meio de intensas discussões dos profissionais do
judiciário. Essas atribuições foram normatizadas pela Secretaria de Recursos
Humanos (antigo Departamento Técnico de Recursos Humanos) e após aprovação
da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo. O Comunicado nº 308/2004
(D.O.J. de 12/03/2003) que versa sobre as atribuições dos assistentes sociais foi o
primeiro parecer a titulo de orientação para evitar desvio de função.
As alterações nos dispositivos legais e as mudanças na política de
atendimento à criança e aos adolescentes, família, idoso e violência doméstica, têm
possibilitado a redefinição de funções entre o Judiciário e Executivo.
Ressalta-se que, diante da compreensão da incompletude institucional há
necessidade de um novo posicionamento para o trato das questões do campo sócio
jurídico. Podemos citar alguns fatores que vem modificando a atuação profissional
dos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários no Tribunal de Justiça, contribuindo
também para a ampliação do quadro funcional como:
 A necessidade de democratização e acesso a Justiça;
 A implementação dos Conselhos Municipais de Direito (da Criança e do
Adolescente e Conselhos Tutelares; Idoso, Assistência Social, Portador de
Deficiência, entre outros)
 A Criação do Conselho Nacional de Justiça instituído em 2004, presidido pelo
Supremo Tribunal Federal;
 O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária;
 A criação em 2006 do SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Sócio
Educativo;
 Implementação do Sistema de Automação da Justiça - SAJ;

345
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Cabe ainda mencionar que o Conselho Nacional de Justiça (Emenda


Constitucional nº 45/2004) mostrou-se sensível à importância inquestionável da
atuação do psicólogo e assistente social junto às questões que se apresentam no
âmbito do Poder Judiciário, e editou a Recomendação nº 2, em 25 de abril de 2.006.
Essa medida adverte que os Tribunais de Justiça dos Estados adotem as
providências necessárias à implantação de equipes interprofissionais, próprias ou
mediante convênios com instituições universitárias, que possam dar atendimento às
Comarcas dos Estados nas causas relacionadas à família, crianças e adolescentes
entre outros.
Em 09 de junho de 2005 surge o Núcleo de Apoio Profissional de Serviço
Social e Psicologia do Tribunal de Justiça de São Paulo criado pela Portaria n.º
7243/2005 e subordinado diretamente à Corregedoria Geral da Justiça. O Núcleo foi
criado tendo em vista a necessidade de assessoramento técnico aos profissionais e
a padronização das rotinas existentes; a normatização e centralização de diretrizes
de trabalho de ordem técnica e administrativa, a orientação e acompanhamento de
profissionais (de Serviço Social e Psicologia) no exercício de suas funções
interdisciplinares. O Núcleo vem avaliando e qualificando também, projetos
profissionais que trazem uma substancial melhoria na atuação de ambas as áreas
dentro do judiciário paulista.
O Tribunal de Justiça definiu que nos fóruns onde há Vara Especializada da
Infância e Juventude, os profissionais devem ficar lotados nesse juízo e respondem
disciplinarmente ao Juiz Corregedor Permanente da Vara. Comum é o assistente
social e psicólogo que atua em processos que tramitam em outras Varas. Isso
significa dizer que os profissionais respondem diretamente pelos trabalhos que
desenvolvem para cada um dos juízes dessas Varas, ou seja, para o Juiz do Feito
(NSGC Cap. XI, seção IV, art.º 24.2). Nos locais onde não há Vara Especializada da
Infância e da Juventude a lotação dos assistentes sociais e psicólogos se dá na
Secretaria do Fórum, o que equivale dizer que o Juiz Diretor do Fórum é o superior
hierárquico desses profissionais.
Além do exposto é importante considerarmos que o assistente social judiciário
tem uma significativa atuação nos processos judiciais, ou seja, a partir do momento
que o processo chega à seção técnica, o profissional deverá tomar as providências
para cumprir a determinação, no intuito de oferecer subsídios à decisão judicial. Os

346
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

profissionais têm liberdade para utilizar as técnicas e os instrumentos que


entenderem como os mais adequados e devem respeitar os Códigos de Ética das
profissões.
O trabalho com as “partes” resultará um registro escrito (Estudo Social), quer
seja uma informação, um relatório ou um laudo, em que é assegurada a sua livre
manifestação técnica. Não se inclui nesta liberdade de opinião a recusa destes
profissionais em realizarem tarefas ou responder a quesitos formulados, a não ser
nas hipóteses previstas em lei - a não ser a perícia de sua esfera de competência ou
a existência de vínculos afetivos ou parentesco com uma das partes envolvidas no
processo. A liberdade de opinião está também limitada aos princípios da lei e éticos.
No mundo jurídico, importante ressaltar que a evolução humana, as
mudanças de valores sociais, éticos e morais trazem a necessidade de adequação
jurídica à realidade concreta. Nesse contexto, observamos que os objetos de
intervenção do Serviço Social Judiciário tem se ampliado na medida em que a
demanda de atuação sofre alterações.
No Provimento CG nº 08/2016, se observa que além da Vara da Infância e
Juventude, Família e Sucessões e Maria da Penha, a nova regulamentação
estendeu o atendimento dos Setores Técnicos ao atendimento aos idosos em
situação de risco. A última Portaria nº 9.277/2016 do TJ/SP detalha as novas
previsões de atuação do trabalho técnico, dentro do Judiciário paulista.
Ainda que a ampliação técnica de atendimento tenha sido efetivada, chama a
atenção a nova vertente que o Judiciário Paulista, em consonância com a
necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e
aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios - uma
tendência do Direito brasileiro tem implementado, no que diz respeito à
“desjudicialização” das lides. Podemos citar como exemplo dessa nova visão, as
Oficinas de Parentalidade e a própria Mediação/Conciliação.

2.6 As novas demandas do Serviço Social no Poder Judiciário

Em relação à Vara da Infância e Juventude, a Lei 12010/2019, a chamada


“Nova Lei da Adoção”, mudanças significativas aconteceram especialmente quanto
ao tempo de acolhimento e a prioridade de se investir no trabalho e orientação à

347
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

família biológica, extensa e afetiva, com o objetivo de reinserir a criança e o


adolescente ao seu ambiente de origem.
Com a vigência do Novo Código de Processo Civil, através da Lei nº 13.105
de 16 de março de 2.015, houve inúmeras inovações no âmbito da produção de
prova pericial. Com isso, algumas atribuições do Assistente Social, como perito
foram alteradas. Vamos elucidar apenas as de mais destaque
Em vários casos o juiz estará diante de fatos que versam sobre questões
técnicas ou cientificas que ele não domina e não possui conhecimento, necessitando
ser auxiliado, constante ou eventualmente por um perito especializado na respectiva
área. Quem é o perito?

Art. 149. São auxiliares da Justiça, além de outros cujas atribuições sejam
determinadas pelas normas de organização judiciária, o escrivão, o chefe
de secretaria, o oficial de justiça, o perito, o depositário, o administrador, o
intérprete, o tradutor, o mediador, o conciliador judicial, o partidor, o
distribuidor, o contabilista e o regulador de avarias.
Art. 156. O juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de
conhecimento técnico ou científico. (Código de Processo Civil, Lei
13105/2015).

Além disso, os assistentes sociais são chamados a assumir novas funções,


relacionadas à chamada Prova Técnica Simplificada, sobre isto:

Art. 464. §2º - De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em


substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada,
quando o ponto controvertido for de menor complexidade.
Art. 464. § 3º A prova técnica simplificada consistira apenas na inquirição de
especialistas, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande
especial conhecimento cientifico ou técnico. (Código de Processo Civil, Lei
13105/2015).

Nesta situação, em muitos casos, apesar da necessidade de conhecimentos


técnicos ou científicos especializados para a comprovação de determinado fato,
pode ocorrer que a causa não envolva questões de alta complexidade. Nesta
hipótese o juiz poderá de ofício, ou a requerimento das partes, substituir a perícia
por prova técnica simplificada, a qual consiste apenas na inquirição do especialista
sobre os pontos controvertidos da causa. Durante sua arguição, o especialista
poderá se utilizar de qualquer recurso tecnológico de transmissão de sons e
imagens.
Outro fator importante dentre as novas demandas profissionais do assistente
social judiciário, temos o trabalho profissional acompanhado pela presença do

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assistente técnico, ou seja, situação que dentro da ação judicial é facultado o


direito das partes indicarem um assistente técnico que são de sua confiança. Desta
forma, os peritos e os assistentes técnicos são chamados a atuar no processo para
dirimir as contradições postas no âmbito judicial. Sobre isto, as novas
configurações legais discorrem:

o
Art.. 466 § 2 - O perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso
e o acompanhamento das diligências e dos exames que realizar, com prévia
comunicação, comprovada nos autos, com antecedência mínima de 5
(cinco) dias. (O perito técnico deve permitir que o Assistente Técnico possa
acompanhar todos os procedimentos). (Código de Processo Civil, Lei
13105/2015).

Como tanto os peritos quanto os assistentes técnicos são regidos por normas
ético-profissionais é imprescindível que se construa uma relação de dialogo e
entendimento, pois quem irá decidir sobre a lide é o magistrado.
Outra tendência atual trata-se da conciliação / mediação:

Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para
a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de
profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e
conciliação.
Parágrafo único. A requerimento das partes, o juiz pode determinar a
suspensão do processo enquanto os litigantes se submetem a mediação
extrajudicial ou a atendimento multidisciplinar.
Art. 695. Recebida a petição inicial e, se for o caso, tomadas as
providências referentes à tutela provisória, o juiz ordenará a citação do réu
para comparecer à audiência de mediação e conciliação, observado o
disposto no art. 694.
Art. 696. A audiência de mediação e conciliação poderá dividir-se em tantas
sessões quantas sejam necessárias para viabilizar a solução consensual,
sem prejuízo de providências jurisdicionais para evitar o perecimento do
direito.
Art. 699. Quando o processo envolver discussão sobre fato relacionado a
abuso ou a alienação parental, o juiz, ao tomar o depoimento do incapaz,
deverá estar acompanhado por especialista. (Código de Processo Civil, Lei
13105/2015).

A legislação atualizada ainda trata das mudanças nas ações de interdição /


curatela:

Art. 751. O interditando será citado para, em dia designado, comparecer


perante o juiz, que o entrevistará minuciosamente acerca de sua vida,
negócios, bens, vontades, preferências e laços familiares e afetivos e sobre
o que mais lhe parecer necessário para convencimento quanto à sua
capacidade para praticar atos da vida civil, devendo ser reduzidas a termo
as perguntas e respostas.
o
§ 1 Não podendo o interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde
estiver.
o
§ 2 A entrevista poderá ser acompanhada por especialista.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Art. 753. Decorrido o prazo previsto no art. 752, o juiz determinará a


produção de prova pericial para avaliação da capacidade do interditando
para praticar atos da vida civil.
o
§ 1 A perícia pode ser realizada por equipe composta por expertos com
formação multidisciplinar.
o
Art. 755 § 1 A curatela deve ser atribuída a quem melhor possa atender
aos interesses do curatelado. (Código de Processo Civil, Lei 13105/2015).

Com a edição da lei 11.340/2006, especialmente do artigo 30, tornou explicita


a determinação de atuação dos Assistentes Sociais judiciários em procedimentos
criminais de violência doméstica. Porém, os profissionais devem atuar na
apresentação de trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras
medidas voltadas para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção
às crianças e aos adolescentes.

Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras


atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer
subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública,
mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de
orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a
ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e
aos adolescentes.

3. O TRABALHO PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO NO PODER


JUDICIÁRIO: DO PROCESSO HISTÓRICO ATÉ AS DEMANDAS
ATUAIS

3.1 A inserção do psicólogo no Tribunal de Justiça de São Paulo

Partiremos do princípio que a Psicologia é uma Ciência muito jovem, apenas


em 27 de agosto de 1962, pela Lei Nº 4.119 que passou a ser regulamentada a
profissão de Psicólogo no Brasil.
Ao buscarmos a etimologia da palavra Psicologia, encontramos o “estudo da
alma”, no sentido metafísico como a essência do homem. Logo traduzimos pelo
estudo da subjetividade humana. Assim sendo, estamos diante de uma Ciência que
além de ser muito jovem busca estudar e trabalhar com algo nada mensurável

350
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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quantitativamente, porém extremamente relevante no tocante às emoções e afetos


humanos, traduzindo o comportamento e relações intra e intersubjetivas.
A Psicologia se aproxima do Direito no final do século XIX, tendo como um
dos marcos a publicação ,em 1937, do Manual de Psicologia Jurídica, do psiquiatra
espanhol Mira y Lopes, traduzido e lançado no Brasil no ano de 1955 com grande
repercussão. Nesta obra, o autor não apenas defende a psicologia enquanto ciência,
mas discorre sobre o trabalho no âmbito jurídico, apresentando a Psicologia do
Testemunho, que “tinha por objetivo verificar, através do estudo experimental dos
processos psicológicos, a fidedignidade do relato do sujeito envolvido em um
processo jurídico”. (ALTOÉ, 2001,p.1)
Desta forma, a Psicologia Jurídica, pela via dos testes psicológicos e
avaliações de criminosos, buscava, inicialmente, estudar o comportamento humano
no âmbito das relações humanas com a Justiça. Auxilia a Ciência do Direito, que é
fundamentalmente positivista a enxergar o caso a partir de outra ótica, ou seja, da
subjetividade humana.
Eliezer Schineider, professor de Psicologia Jurídica da UERJ, foi um dos
primeiros pesquisadores a se interessar por essa área, embora fosse advogado de
formação. Seus interesses centravam-se no estudo da personalidade do criminoso,
no papel da punição e da influência do sistema penal na recuperação da
delinquência. (BRITO, 2012). A princípio, o trabalho se detinha no estudo dos
adultos criminosos e adolescentes infratores, consequentemente, “a Psicologia era
identificada como uma prática voltada para a realização de exames e avaliações,
buscando identificações por meio de diagnósticos”. (LAGO et al, 2009, p.484).
A psicologia jurídica ainda é um campo pouco definido, com baixa produção
científica e muito recentemente é que está sendo inserida nas bases curriculares
dos cursos de graduação em Psicologia. Conforme Altoé (2001), o primeiro curso
de especialização em Psicologia Jurídica do país foi lançado na UERJ, em 1986,
contudo, já em 1980 a referida universidade criava uma área de concentração,
dentro do curso de especialização em psicologia clínica, chamada “Psicodiagnóstico
pra Fins Jurídicos”. Apenas em 2000 o Conselho Federal de Psicologia cria o Título
de Especialista nas suas diversas áreas e dentre elas, a Psicologia Jurídica.
As primeiras atuações de psicólogos no TJSP datam de 1980, quando um
grupo de voluntários “orientava pessoas que lhes eram encaminhadas pelo Serviço

351
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Social, basicamente apoio a questões familiares, tendo como objetivo principal sua
reestruturação e manutenção da criança no lar”. (CESCA, 2004, p.41).
Acerca disto, versa Brito:

No Brasil, os primeiros trabalhos realizados por psicólogos jurídicos junto ao


Judiciário seguiram o caminho anteriormente trilhado pelos médicos na
elaboração de perícias. Com diagnósticos no campo da psicopatologia,
cabia ao profissional fornecer um parecer técnico-científico visando a
fundamentar as decisões dos magistrados. Nesse sentido, esses psicólogos
não eram servidores do Judiciário, mas profissionais indicados como peritos
pelos magistrados, visando à realização de diagnósticos psicológicos.
(2012, p. 197).

A inserção do psicólogo no Poder Judiciário, desta forma, se deu de maneira


muito paulatina, com uma entrada informal iniciada como trabalho voluntário com
famílias carentes na extinta FEBEM (Fundação para o Bem Estar do Menor). (LAGO
et al, 2009, p. 484-485).
Nesta esteira, o Conselho Federal de Psicologia, quando reformula seu
Código de Ética Profissional no ano de 1979, define os parâmetros e limites da
atuação no contexto judiciário no capítulo “Das relações com a justiça”:

Art. 18. O psicólogo, no exercício legal da profissão, pode ser nomeado


perito para esclarecer a justiça em matéria de sua competência. Parágrafo
único. O psicólogo deve escusar-se de funcionar em perícia que escape à
sua competência ou por motivo de força maior, desde que dê a devida
consideração à autoridade que o nomeou.
Art. 19. O psicólogo deve procurar servir, imparcialmente, à Justiça, mesmo
quando um colega for parte na questão.
Art. 20. O psicólogo perito deverá agir com absoluta isenção, limitando-se à
exposição do que tiver conhecimento através dos exames e observações e
não ultrapassando, nos laudos, a esfera de suas atribuições.
Art. 21. O psicólogo deverá levar ao conhecimento da autoridade que o
nomeou a impossibilidade de formular o laudo, em face da recusa da
pessoa que deveria ser por ele examinada.

Apenas em 1985 ocorreu o primeiro concurso público, com a criação de 60


cargos efetivos e 16 de chefia, inicialmente na Capital do Estado de SP, o que, de
acordo com Cesca (2004, p. 41), “significou a consolidação do posto de psicólogo no
sistema judiciário”, todavia essa mesma pesquisadora ressalta que “a relação entre
a psicologia e as práticas jurídicas ainda se dá de forma estremecida e o lugar do
psicólogo nesta área ainda esta por se consolidar”. (2004, p. 42).
Ainda sobre a inserção do psicólogo no Tribunal de Justiça de São Paulo,
Brito (2012, p. 197) destaca que “o provimento de lei CCXXXVI, do Conselho
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Superior de Magistratura, regulamentou a atuação dos psicólogos do Tribunal de


Justiça, disciplinando as funções nas Varas de Menores e nas Varas de Família
cumulativamente”.
O psicólogo judiciário iniciou suas atividades, portanto, em plena vigência do
Código de Menores (1927-1990), quando:

[...] as crianças e jovens considerados “perigosos” e “em situação de risco”


eram passíveis de serem apreendidos pela polícia e pelos juízes da 1ª e 2ª
Varas, sendo levados para delegacias ou para internatos. (ALTOÉ, 2001,
p.4)

Em 1988, com a nova Constituição Federal do Brasil, a “Constituição


Cidadã”, e a criação dos diversos Conselhos, dentre eles o CNJ – Conselho
Nacional de Justiça – é que se institui a Equipe Interprofissional no Poder Judiciário,
vindo a ser ratificada em 1990, quando as crianças e jovens foram contempladas
com uma Lei: a de nº 8.069/90, que inspirado na Doutrina da Proteção Integral, os
reconhecem enquanto sujeitos de direitos, e cria o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA).
A partir desta nova perspectiva, em 1991 acontece o primeiro concurso
público para as 56 Circunscrições do Interior do Estado de São Paulo.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), surgem
novos debates e posicionamentos quanto a prática do psicólogo judiciário, que
prioritariamente era voltada para a elaboração do psicodiagnóstico. (ALTOÉ, 2001).
A implantação das equipes interprofissionais foi vista como obrigatória após o
ECA, que no artigo 150 prevê as equipes interprofissionais como um serviço auxiliar
do juiz, e no artigo 151, que define, entre outras, as atribuições dessa equipe como a
de: fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e
bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento,
prevenção entre outros, tudo sob imediata subordinação à autoridade judiciária,
assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
As funções e atribuições do psicólogo no judiciário são reguladas por leis
gerais e específicas:
- leis que regulamentam a profissão do psicólogo;
- Código de Ética Profissional;
- Resoluções do Conselho Federal de Psicologia;

353
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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- leis federais ECA, CPC, CC, LOAS, bem como Normas, Provimentos e
Portarias específicas da instituição.
Em 2010 o Conselho Federal de Psicologia lançou três Resoluções que
versam sobre o trabalho nesta área, sendo elas: Resoluções nº 008/2010, que
dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder
Judiciário e Resolução nº 010/2010, que institui a regulamentação da Escuta
Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência, na
Rede de Proteção, esta última suspensa desde 2012, em virtude de ações ajuizadas
pelo Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em
desfavor da regulamentação em debate.
A ocupação do lugar de psicólogo no TJSP ocorreu então como a criação de
um campo de trabalho, delineando-se até ser definido como a construção de um
estudo psicossocial, que apresenta uma conotação mais compreensiva e
discursiva do que a conotação contida em perícia de ordem do psicológico ou
do psicopatológico, ou seja, há um reconhecimento de que as questões a
serem mediadas no judiciário possuem uma dimensão da ordem social,
ampliando muito a compreensão da configuração dos conflitos e trazendo uma
possibilidade de que o trabalho do psicólogo tenha também, uma dimensão
interventiva.
Na capital as equipes foram organizadas, como especializadas nas Varas de
Família, Varas da infância, Varas Especiais e Setor Psicossocial, enquanto no
interior, a organização das equipes (sede circunscrição) ou “euquipes” (comarcas e
varas distritais) ocorreu de forma a atender toda a demanda das varas e anexos da
Infância e Juventude, bem como, cumulando atendimento nas varas cíveis em
matérias de Família e Sucessões.
Ainda nos dias de hoje, a quantidade de Psicólogos está em numero bem
reduzido aquém do necessário para lidar com as diversas solicitações do Sistema
Judiciário, que dia a dia vem apresentando uma crescente demanda, extremamente
dinâmica quanto às vicissitudes das relações e conflitos humanos que buscam a
intervenção jurídica. Como bem observa Lago et al (2009, p.486) “a avaliação
psicológica ainda é a principal demanda dos operadores do Direito. Porém, outras
atividades de intervenção como acompanhamento e orientação, são igualmente

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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importantes”, alertando para a visão reducionista que enxerga o profissional da área


apenas como mero “parecerista” ou ainda como um “investigador” .
Desta forma é aberto um leque de possibilidades das atribuições do
Psicólogo Judiciário, que além da Vara da Infância e Juventude tem crescido sua
atuação em conflitos de ordem familiar (divórcio, Guarda, alienação parental) têm-se
ainda questões relacionadas a doentes mentais, pessoas portadoras de
necessidades especiais, idosos, violência doméstica, ou seja, a crescente
dificuldade das pessoas pensarem e refletirem sobre seus atos e desejos; direitos e
deveres.
Com tamanha especificidade e contínua construção teórica e Técnica é
imprescindível que o profissional da Psicologia Judiciária se coloque em constante
formação pessoal e profissional, pois sua função principal é assessorar como perito,
as decisões judiciais. Contudo, como adverte Lago et al (2009, p. 486) ao oferecer
subsídios aos magistrados “o psicólogo pode recomendar soluções para os conflitos
apresentados, mas jamais determinar os procedimentos jurídicos que deverão ser
tomados”.
Como em qualquer outro campo a Psicologia Jurídica vem se transformando
continuamente, exigindo que os profissionais jamais permaneçam numa postura
acomodada ou cristalizada, uma vez que a nossa cultura tem se mostrado voraz em
suas amplas e complexas diversidades da subjetividade humana.
Finalmente, Bernardi (apud ALTOÉ 2001, p.9), psicóloga do TJSP sintetiza:

(..) a importância da atuação do psicólogo na instância judiciária “repousa


na possibilidade desse profissional abordar as questões da subjetividade
humana, as particularidades dos sujeitos e das relações nos problemas
psicossociais, expressos nas Varas da Infância e Juventude, com o
contexto social e político que as definem”.

3.2 Avaliação Psicológica na Instituição Judiciária

O Judiciário tem como função precípua a distribuição da justiça, por meio da


resolução dos conflitos surgidos na sociedade e concretizados em Ações, que são
discutidas em Juízo.
As Ações, de modo geral, são ajuizadas por Promotores de Justiça,
Advogados e Defensores Públicos que representam as partes (pessoa envolvidas

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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nos processo judiciais), sendo o advogado o profissional legalmente habilitado a


orientar, aconselhar e representar seus clientes, bem como lhes defender os direitos
e interesses em Juízo e fora dele.
Na década de 30 a justiça penal adotou a medicina como um saber
necessário aos processos judiciais para avalição de responsabilidade, por meio de
perícias psiquiátricas. A análise da história da implantação da Psicologia no TJSP,
que ainda é recente e contemporânea, ilustra que enquanto a medicina adentrou ao
Fórum via o conceito de loucura/periculosidade, a psicologia adentrou via os
problemas da família no trato com seus filhos.
Neste sentido, em 1994 – TJSP concluiu que o exame criminológico não
era atribuição do psicólogo judiciário, mas de equipe interdisplinar do
executivo – IMESC (Instituto de medicina Social e de Criminologia do Estado
de São Paulo).

3.3 Especificidades das Varas de Infância e Juventude

O ECA transformou os menores (objetos de direito) em sujeitos de direito,


evidenciando o direito à proteção da criança e do adolescente e, portanto, a
perspectiva de verificar a necessidade de proteção para quem se encontra em
situação de risco, em vulnerabilidade social.
Ao Juízo da Infância e Juventude cabe tomar conhecimento e aplicar medidas
de proteção quando ocorre à violação de direitos da criança e do adolescente
decorrente da ação ou omissão seja dos pais, da sociedade ou do Estado.
As representações expõem fatos e solicitam providências. Podem ser feitas
pelo: Ministério Público, Conselho Tutelar, escolas, hospitais, outras instituições,
advogados ou pelos próprios interessados na resolução de um problema. Nesses
processos estão presentes uma gama de dificuldades em que estão implicadas
relações sociais e problemas psicológicos que aparecem de forma fragmentada,
multifacetada e, por vezes, de difícil percepção, o que requer entender as
particularidades no campo humano-social em uma perspectiva multiprofissional que
se possa vislumbrar um desfecho, recuperando direitos e assegurando a cidadania.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As avaliações têm como objetivo primeiro verificar as condições de


permanência e, portanto, de manutenção dos vínculos da criança e adolescente com
sua família de origem ou se é necessário afastar a criança ou adolescente da
convivência de seus pais ou responsáveis. Assim sendo, quando há possibilidade de
permanência, os profissionais devem realizar orientações, encaminhamentos e
acompanhamento para verificar e assegurar as condições de atendimento pela rede,
das necessidades da criança e adolescente que tiveram seus direitos violados.
Por outro lado, quando há ausência ou insuficiência dos serviços necessários
ao suporte a essas famílias, deve constar em seus relatórios, os prejuízos à
criança/adolescente apontando sugestões para outras providências.

3.3.1 O estudo psicológico na Vara da Infância e Juventude

Na Infância e Juventude, em que a maioria das questões implica em


verificação da ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente, cabe ao
psicólogo utilizar os recursos de sua especialidade para dimensionar a problemática
psicológica dos envolvidos na situação social e jurídica.
A atuação implica no estabelecimento de um programa de intervenção no
caso, com avaliação, elaboração de relatório dos Autos, acompanhamento,
orientação e encaminhamento das pessoas envolvidas.
A intervenção também tem vista à promoção e manutenção de uma política
de garantia de direitos da Infância e Juventude.
O processo de avaliação utiliza-se de instrumentos técnicos como entrevistas,
testes, observações, estudo de campo, dinâmicas de grupo, escuta e intervenções
verbais, sendo importante assinalar que na situação judiciária a adequação dos
instrumentos está relacionada à natureza do processo (verificatório), da natureza e
gravidade das questões tratadas no processo (a criança e o adolescente em
situação de risco), tempo institucional (urgência/prazos).
O relatório/laudo deve apresentar os procedimentos e as conclusões geradas
pelo processo de avaliação – encaminhamentos, intervenções, sugestões, limitando-
se a fornecer informações necessárias relacionadas à demanda, solicitação e
petição. Devem, também, ser indicativos das políticas de atendimentos necessários
à garantia de direitos das pessoas atendidas e esmiuçar as possibilidades da

357
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situação-problema, considerando a rede de relações dos implicados e dos recursos


sociais de sua realidade.

3.4 Especificidades das Varas de Família e Sucessões

Nas Varas de Família e Sucessões a atuação se dá como peritos em


processos que envolvem crianças e adolescentes (guarda e regulamentação de
visitas). Casos em que estão previstos o princípio do contraditório e a atuação de
assistentes técnicos.

3.4.1 O estudo psicológico nas Varas de Família e Sucessões

Assim como nos casos da Vara da Infância e Juventude, o processo de


avaliação utiliza-se de instrumentos técnicos como entrevistas, testes, observações,
estudo de campo, dinâmicas de grupo, escuta e intervenções verbais, sendo
importante assinalar que na situação judiciária a adequação dos instrumentos está
relacionada à natureza da Ação.
A intervenção técnica visa analisar os padrões relacionais da família e suas
repercussões em seus diferentes membros, especialmente nos filhos, sem enfatizar
sintomas, e sem traçar diagnósticos individuais. Podendo abordar:
- as fases de desenvolvimento da criança/adolescente;
- a percepção dos vínculos afetivos da criança/adolescente com as principais
figuras de apego no passado, na atualidade, e perspectivas para o futuro, levando
em conta o melhor interesse da criança;
- aspectos da psicodinâmica da estrutura de personalidade das figuras
parentais e possíveis figuras substitutas, traços patológicos e saudáveis de suas
estruturas psíquicas, evidência de dependência química, comportamentos abusivos;
- as relações intrafamiliares e inserção em outros sistemas e instituições;
- características dos vínculos entre os adultos e deles com a criança;
- história de vida pessoal e familiar das figuras parentais, padrões de
repetição de comportamentos que indicam disfuncionalidades, dados inconsistentes,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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segredos, mitos que podem estar relacionados de alguma forma com a temática
enfrentada;
- devolutiva.
O relatório/laudo deve apresentar os procedimentos e as conclusões geradas
pelo processo de avaliação – encaminhamentos, intervenções, sugestões, limitando-
se a fornecer informações necessárias relacionadas à demanda, solicitação e
petição.

3.5 Novas Demandas

Ao longo do tempo novas demandas foram criadas a partir de mudanças


legais tais como a atuação do psicólogo nas varas ou processos de Violência
Doméstica Familiar Contra a Mulher, Curatela e Oficinas de Parentalidade.
A Lei nº 11.340 de 07/08/06 conhecida como “Lei Maria da Penha” cria
mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher (gênero), sendo a
atuação do Setor Técnico prevista segundo o Artigo 30 da referida Lei: realização de
trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas voltadas
para a família, com especial atenção às crianças e adolescente.
Em relação à Curatela, o Estatuto da pessoa com Deficiência (Lei nº
13.146/15) trouxe uma série de alterações, dentre elas, há uma nova atribuição
prevista denominada “equipe multidisciplinar”. Mencionada novidade tem previsão
no artigo 1771, do Código Civil, o qual enuncia que o magistrado, ao ouvir
pessoalmente o interditando, deverá ser auxiliado por tal equipe multidisciplinar.
Neste sentido, as orientações do Núcleo de Apoio dos Assistentes Sociais e
Psicólogos do TJSP, é de que a atuação do psicólogo judiciário, especificamente,
abordará a dinâmica familiar e demais relações humanas do Interdito em seu
cotidiano. O estudo tem como objetivo a análise da qualidade da atenção e dos
cuidados oferecidos ao Interdito, assim como as condições e disponibilidades da
pessoa que assumirá pela Curatela/tutela. Ficando evidente que a avaliação
referente às capacidades mentais e habilidades do Interdito não é de atribuição do
Psicólogo Judiciário.
A Oficina de Parentalidade é um projeto pioneiro no Brasil, que pretende
ajudar pais e filhos envolvidos em processos de separações conjugais. Com o apoio

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e incentivo do Conselho Nacional de Justiça está sendo desenvolvido pelo Tribunal


de Justiça do Estado de São Paulo, e seu funcionamento regulamentado com o
Provimento CSM 2327/2016, que dispõe no artigo 5º, parágrafo 1º, “A Oficina
também pode ser executada pela Equipe Multidisciplinar do Fórum, nos termos do
artigo 151 do ECA”.
O principal objetivo é transmitir aos pais técnicas apropriadas de
enfrentamento dos conflitos familiares e de comunicação (“empoderamento” e
comunicação não violenta), visando a tomada de consciência a respeito das
consequências que os conflitos causam para os filhos. Visam ainda oferecer
informações legais sobre alienação parental, guarda, visitas e alimento. Com relação
aos filhos, o objetivo é esclarecer sobre o rompimento do relacionamento conjugal
de seus pais, e sobre os seus direitos.
A Oficina foi organizada com a finalidade de resgatar a responsabilidade das
pessoas por sua própria vida.
Observamos que as alterações legais acabem trazendo, consequentemente,
alterações nas normatizações que regulamentam a atuação do Psicólogo no TJSP.
Alterações estas que se traduzem em ampliação das atribuições dos profissionais
sem a necessária capacitação e contratação de profissionais para atenderem as
novas demandas, o que associado, muitas vezes, às condições inadequadas de
atendimento (espaço físico, material), são fatores estressantes, que repercutem na
saúde/adoecimento dos técnicos do TJSP.
Por outro lado, considerando que somos atores neste processo de construção
de nossa atuação profissional dentro da instituição, se faz necessário a participação
nos estudos, reflexões e discussões realizadas nos GRUPOS DE ESTUDOS e de
TRABALHOS do TJ, bem como AASPTJ e CONSELHO PROFISSIONAL, em
relação às Novas Leis em implantação, tais como: “Alteração do Código de
Processo Civil, que introduz a prova simplificada” e nos “Artigos 158/159 do...
outras perícias a serem realizadas por perito oficial”, a fim de se que as
instituições judiciárias possam referenciar e uniformizar procedimentos comuns à
prática dos Psicólogos por meio de normatizações, como já fez o TJRJ em seu
comunicado CGJ nº 1247/2016 de 08/07/2016.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

Os autores citados ao longo do artigo referem à importância de se discutir a


inter-relação trabalho /saúde mental. O tema em discussão tem cada vez mais
despertado o interesse entre as várias profissões, pesquisadores e instituições. O
cotidiano do trabalho e as diversas variáveis sociais, psicológicas e conjunturais,
encontra-se em constante interação, o reflexo desses diferentes cenários
certamente se farão sentir na saúde do trabalhador. Sendo assim, o presente
trabalho teve a intenção de abordar o mundo do trabalho e seus impactos na saúde
do trabalhador focando em especial em duas categorias funcionais do Tribunal de
Justiça de São Paulo são elas os Assistentes Sociais e os Psicólogos judiciários.
Inicialmente descrevendo a inserção desses profissionais ao longo das últimas
décadas e o contexto em que ocorreram tais práticas.
Devemos considerar preliminarmente que vivemos num mundo de incertezas,
sendo o Brasil hoje um cenário preocupante caracterizado pelo aumento da
desigualdade social, somado pela crescente concentração de renda, incrementando
a violência urbana, o desemprego e as diversas expressões das questões sociais e
das múltiplas incertezas globais.
Diante desse panorama destacamos o aumento da demanda técnica, que
exige dos profissionais uma resposta rápida as diferentes necessidades que batem
cotidianamente as portas do judiciário. A ausência de uma equipe interdisciplinar nas
diversas comarcas do interior paulista sobrecarrega muitos profissionais tornando o
trabalho muitas vezes isolado, rotineiro, sem uma reflexão que subsidiaria práticas
mais salutares, criativas, as quais repercutem diretamente na organização do
trabalho e na saúde do trabalhador. É importante pensarmos formas de resistência à
mecanização, que pode tornar a prática apenas uma execução de necessidades
emergentes de um sistema burocrático que reproduz as contradições sociais.
Outro fator que vem contribuindo para a precarização do trabalho no âmbito
do setor técnico do judiciário paulista está relacionado às profundas alterações das
legislações pertinentes à área, as quais são intrínsecas ao dinamismo da sociedade
moderna. Este cenário impõe uma necessidade de que os técnicos do judiciário se

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

tornem especialistas em múltiplas demandas, extremamente atuais, sem ao menos


serem capacitados ou preparados para tal. Percebemos uma grande ampliação da
linha de atuação dos assistentes sociais e psicólogos que atuam nesta instituição,
em detrimento de seu reconhecimento, condições de trabalho, equipe mínima etc.
Cada vez mais existem situações no interior das organizações públicas e/ou
privadas que corroboram para o crescimento das tensões, e que repercutem no nível
dos desempenhos profissionais, dos conflitos interpessoais e da eclosão de
problemas psicossomáticos. Os fatores subjetivos e psicossociais vêm sendo
identificados na análise dos diferentes problemas no mundo do trabalho, como o
absenteísmo, as crescentes denuncias de assédio moral, a precarização dos
vínculos trabalhistas, as terceirizações, o estresse e a eclosão de graves transtornos
mentais, incapacitando para a vida laboral contingentes de trabalhadores.
Finalizando, estamos diante de um tema complexo que exige um
aprofundamento e uma análise mais acurada acerca desse mecanismo vivo do
trabalho, especificamente no Tribunal de Justiça e seus impactos na saúde nas
categorias funcionais em perspectiva no estudo. Há, portanto, uma necessidade de
melhor compreensão da Instituição Tribunal de Justiça de São Paulo, sua
complexidade e hierarquização. Aponta-se um vasto campo de investigação, para
isso intenciona-se a continuidade da problematização do tema em grupos de estudo
futuros.

362
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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procedimentos técnicos da atuação dos profissionais de serviço social e psicologia.
Disponível:
http://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/pdf/manual_de_procedimentos.pdf.
Acesso em: 3 jun 2016.

__________.Portaria nº 9.277/2016 – DJE – 23/3/2016 –pg. 2 e 3 – Atribuições.

__________.Provimentos 50/1989 e 30/2013 – Atualizada até 21/10/2016 (Normas


judiciais da Corregedoria Geral da Justiça).

__________.Resolução nº 125/2010 e Recomendação nº 50/2014. Conselho


Nacional de Justiça.

365
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

APROXIMAÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES: ASPECTOS TEÓRICOS,
METODOLÓGICOS E PRÁTICOS DA ATUAÇÃO DOS
PROFISSIONAIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – BAURU

“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2016
366
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Deisiane Orben Lopes – Psicóloga Judiciário – Comarca de Avaré

Lucia Pereira dos Santos Martarelli – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Bauru

AUTORES

Ana Paula Gonçalves Calazans – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Duartina

Carlos Felipe de Freitas Rossi – Psicólogo Judiciário – Comarca de Bauru

Denise Ferraz de Aguiar – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Cruz do


Rio Pardo

Denise Vitório – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru

Ecléa Correa de Lacerda Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru

Edelmaris Campanha de Moraes e Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Lençóis Paulista

Hilma Aparecida Camilo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cerqueira


César

Ivandra Carla Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru

Laís Elaine Catini Santtin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lençóis


Paulista

Maria Camila Lopes Lenharo Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Bauru

Silvia Regina Gonçalves Serrano – Assistente Social Judiciário – Comarca de Gália

Simone Salete Longo Zelonh – Psicóloga Judiciário – Comarca de Avaré

Solange Aparecida Serrano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru


367
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DEDICATÓRIA

Ao nosso colega Maurício Ribeiro de


Almeida, que subitamente nos deixou
após o primeiro encontro dessa
temporada, nossa saudade e admiração.

Um homem além do seu tempo que


deixou uma enorme lacuna e um grande
legado. Um questionador perplexo e
indignado, o que o fazia lançar grandes
desafios e movimentar o seu entorno.

Intenso e inexplicável em seu amor


pela natureza, pela família e pelos
amigos. Viveu de forma simples, mas,
teve sua grandiosidade.

Sempre com um toque de bom humor,


mesmo ao refletir sobre a “maldita
desigualdade social”.

Você chegou de mansinho, devagar,


rindo muito, deixando presentes, alegrias
e de repente, se foi, deixando o doce
sabor da nossa criança.

Obrigado pelo que nos deixou, pelos


horizontes que ampliou, pelos nossos
lanches e bombons que comeu, pelo doce
sabor da criança que ficou e pelo que
jamais esqueceremos. Valeu a pena!

“E então o lavrador levantará os olhos,


o mineiro sorrirá rompendo as pedras...
o mecânico, limpo, recém lavado, cheio
de aroma de sabão, mirará meus poemas,
e eles dirão, talvez: "Foi um camarada".
Isso é bastante, essa é a coroa que
quero.” (Pablo Neruda)
368
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus;

Que nos concedeu vida, saúde e perseverança para completar mais esta jornada.

Aos nossos familiares;

Pelo amor, compreensão e colaboração que nos dispensaram naqueles momentos


que tanto necessitamos.

A todos os participantes deste Grupo de Estudos 2016;

Através da dedicação, respeito, interesse, empenho e colaboração de cada um, foi


possível realizarmos um rico e proveitoso debate sobre o tema estudado e além das
lembranças que ficarão, a produção do nosso texto é o que materializará o nosso
trabalho durante este ano de 2016.

Às psicólogas Jane e Célia;

Que iniciaram conosco o Grupo de Estudos e por motivo de força maior, não
puderam concluir, mas gentilmente se dispuseram a contribuir com algumas
palavras de homenagem para nosso saudoso colega Maurício.

Muito obrigado!

369
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

No ano de 2016, o Grupo de Estudos de Bauru, com o tema Família, sentiu a


necessidade e interesse em estudar as questões que envolvem as crianças e
adolescentes acolhidos: sua trajetória de institucionalização e a participação da
família de origem, que muitas vezes não é suficiente para exercer o poder familiar,
sendo por derradeiro, imperioso o processo de destituição do poder natural dos pais,
para que a criança possa então vir a ter uma chance de vida familiar por meio da
adoção.

O processo de adoção implica em pessoas habilitadas para tal, sendo


realizado pelo Tribunal de Justiça a preparação e habilitação dos mesmos, momento
em que se trabalha com os pretendentes vários aspectos que permeiam a colocação
da criança vitimizada em uma família, até então desconhecida, havendo a
necessidade de sensibilidade por parte do adotante para acolher a criança de forma
interessada e realmente desejosa de viver com esta, uma relação filial.

Nesse caminhar, nem sempre o objetivo é atingido satisfatoriamente, o que


resulta, em alguns casos, na devolução da criança pelo adotante, causando ainda
mais sofrimento a este ser já fragilizado, situação que para nós profissionais produz
grande sensação de impotência e frustração. Todavia, nos cabe continuar a jornada
na busca pelo sucesso em possibilitar que as crianças e adolescentes, hoje
acolhidos, venham a superar essa fase e possam novamente viver numa família que
os acolha efetivamente.

Na sequência, apresentamos as nossas reflexões sobre o tema.

370
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1. APROXIMAÇÕES ACERCA DA TRAJETÓRIA DE ACOLHIMENTO


DA CRIANÇA/ADOLESCENTE E O ACOMPANHAMENTO FAMILIAR

Ao iniciarmos as considerações referentes aos Serviços de Acolhimento de


crianças e adolescentes, pontuamos que ao longo das últimas décadas com a
constituição de novas diretrizes regulatórias, tais como, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), Plano Nacional de Promoção Proteção e Defesa dos Direitos de
Crianças e Adolescentes a Convivência Familiar e Comunitária, Tipificação Nacional
de Serviços Socioassistenciais, entre outros, novas perspectivas e conceitos de
Acolhimento Institucional e Familiar foram introduzidas.
Nesta perspectiva, os serviços de Acolhimento Institucional e Familiar passam
a compor o rol de serviços públicos ofertados pela Política Pública de Assistência
Social.
A Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais caracteriza como
modalidades de Acolhimento destinada a proteção de crianças e adolescentes os
seguintes serviços:
a) Serviço de Acolhimento Institucional, nas modalidades de Abrigo
Institucional e Casa-Lar;
b) Serviço de Acolhimento em República;
c) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora;
Neste sentido, os atores que compõem o Grupo de Estudo Bauru, sinalizam
que nas Comarcas de atuação preponderantemente é operacionalizado o Serviço de
Abrigo Institucional e somente na Comarca sede o Serviço de Acolhimento em
Família Acolhedora, fato que pode ser analisado na perspectiva de manutenção do
tradicional modelo de acolhimento, bem como, na perspectiva de que os serviços de
Família Acolhedora demandem uma estrutura que em Municípios de menor porte
não se aplica a realidade.
Com relação às ações de acolhimento, observamos que frequentemente seu
início ocorre por meio do envio de relatório encaminhado pelo Conselho Tutelar, no
qual deveriam constar em anexo, relatórios dos órgãos que compõem a rede de
proteção social da criança e adolescente, sobre o histórico de atendimento ao
núcleo familiar e o esgotamento das medidas possíveis junto ao grupo familiar.
Contraditoriamente, verificamos que após a medida de acolhimento, o núcleo
371
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

familiar passa a ser atendido efetivamente e com o “acesso ao direito facilitado”, em


função da prioridade de atendimento de crianças e adolescentes em situação de
acolhimento institucional ou familiar.

Os Autos são encaminhados para os Setores Técnicos para o preenchimento


e atualização das fichas do Sistema de Controle e Acompanhamento de Crianças e
Adolescentes Abrigados (Sistema implantado pelo Provimento nº 36/2005) e
atualização do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas – CNCA (O Provimento
CGJ nº 96/2014 trata do preenchimento obrigatório de questionário do referido
cadastro, no que se refere às audiências concentradas de crianças e adolescentes
acolhidos).
Cabe ainda aos assistentes sociais e psicólogos do judiciário:
- Manifestar-se sobre o Plano Individual de Atendimento - PIA (Previsto
pelo art. 101,§4º ao 6º do ECA), além de realizar um trabalho de colaborador em sua
construção. Também cabe a eles apontarem possíveis inconsistências com relação
ao desenvolvimento das atividades dos órgãos do Sistema de Garantia de Direitos
(SGD), ou observar se a participação da criança e adolescente em sua construção
está sendo efetivada;
- Participar das Audiências Concentradas (O Provimento CNJ 32/2013
dispõe sobre o procedimento e o art. 19, §1º, do ECA trata da atuação da equipe
interprofissional), com a apresentação de relatórios de monitoramento, cujo objetivo
é:

A avaliação, pela equipe interprofissional da Vara não apenas da família,


mas – importante - também dos programas municipais de atendimento,
tanto o de acolhimento como outros envolvidos no plano (tornando-se
fundamental que estes profissionais sejam capacitados para um
entendimento compreensivo das políticas públicas e de seus indicadores),
conforme art. 19, §1º, do ECA, visando a verificação da responsabilidade
primária e solidária do poder público, nos termos do art. 101, inc. III, do ECA
(TJSP-CIJ, 27/05/2010, p.6-7).

No tocante a questão, cabe-nos apontar que a partir do ECA e segundo o


referido Parecer da Coordenadoria da Infância e Juventude do TJSP, de 27/05/2010,
não compete as equipes técnicas das Varas assumir a responsabilidade de
atendimento às famílias, uma vez que a política de atendimento é municipalizada,

372
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...] pelo contrário, que a Justiça, por sua equipe e pelos operadores do
direito (Juiz(a), Promotor(a) de Justiça e Defensor(a) Público(a)), avaliem se
efetivamente os direitos individuais e sociais das crianças, adolescentes e
suas famílias estão sendo garantidos e se os programas, tanto de
acolhimento, como municipais, apresentam índices de sucesso na
reintegração familiar (TJSP-CIJ, 27/05/2010, p. 06, grifo nosso).

Assim, compondo uma aproximação com a vivência profissional na Comarca


de Bauru, registramos a interface do trabalho dos profissionais do judiciário com os
demais membros da Rede de Proteção da Criança e do Adolescente.
Desta forma, pontuamos que a atuação de assistentes sociais e psicólogos
judiciários nas ações de acolhimento, devem priorizar a mediação e articulação com
o SGD. As intervenções realizadas com os sujeitos envolvidos inserem-se na vida
privada a fim de apreender o cotidiano e a dinâmica das relações interpessoais. Em
decorrência, cabe aos profissionais, fomentar o atendimento humanizado no âmbito
judiciário. Este diálogo com o Direito refere que em suas práticas profissionais no
espaço institucional da Justiça e os trâmites de aplicação da lei, contribuem para
operacionalizar o poder legal, ao mesmo tempo em que operam o poder profissional
balizado por suas formações. Diante desse espaço contraditório, de judicialização de
expressões da questão social, realizam sua intervenção em diálogo constante com
os equipamentos institucionais disponíveis frente às políticas públicas,
particularmente com os serviços destinados ao acolhimento familiar e institucional.

Cabe ainda, a participação mensal em reuniões de discussão dos casos


junto à rede de atendimento à família (Provimento CNJ nº 36/2014, art. 7º, inciso II):
Serviço de Acolhimento, CRAS, CREAS, Conselho Tutelar e eventualmente serviços
de saúde e/ou outros envolvidos, para avaliação da situação e definição conjunta de
estratégias.
Narrando sobre esta perspectiva do trabalho em rede, esclarecemos que o
órgão gestor da Política de Assistência Social elabora um calendário anual de
reuniões mensais a realizar-se no Serviço de Acolhimento.
Nestas reuniões, o Serviço de Acolhimento apresenta a situação de cada
criança ou adolescente. É realizado um levantamento das demandas familiares e o
grupo propõe ações e pactuam o que cada serviço irá desempenhar para o
acompanhamento de cada família, através de atendimentos individuais ou grupais,
visitas domiciliares, encaminhamentos para acessar políticas públicas, inserção em
373
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

programas sociais ou de preparação para o mercado de trabalho, entre outras


ações.
Tal estratégia tem permitido a aproximação entre os saberes e a construção
de caminhos mais assertivos frente às expressões da questão social impostas a
estes grupos.
Ainda na Comarca Sede, ocorre a primeira Audiência Concentrada, pela
qual o Juiz da Vara da Infância e Juventude homologa o PIA, ouve o familiar que
estiver presente, estabelece as metas para a família e determina o
acompanhamento pela rede, com apresentação de relatório das ações efetivadas e
relatório de monitoramento pelo Setor Técnico do Juízo.
Com relação a perspectiva do trabalho em rede segundo Bourguignon (2011),
destaca a constituição do trabalho social em rede como estratégia promissora ao
alcance de alternativas bem-sucedidas de resposta às demandas sociais, já que se
compromete com a busca por integralidade e intersetorialidade de organizações,
serviços e programas, profissionais, informações e ações. Portanto,

O termo rede sugere a ideia de articulação, conexão, vínculos, ações


complementares, relações horizontais entre parceiros, interdependência de
serviços para garantir a integralidade da atenção aos segmentos sociais
vulnerabilizados ou em situação de risco social e pessoal. (Bourguignon,
2011, p.4)

O trabalho realizado por este grupo indica a presença de ações em rede em


todas as Comarcas representadas, que pressupõe a articulação dos Serviços de
Acolhimento, equipes do Judiciário e demais serviços que compõem a rede de
proteção social a criança e ao adolescente.
Segundo Ferrari (2016), o trabalho em rede desafia os profissionais nele
envolvidos a se abrirem para a construção de espaços articulados propícios à
ampliação de debates, ou seja, à interlocução entre os diversos executores de
políticas previstas em diferentes serviços e programas, assim como a formatação de
agendas conjuntas em que objetivos e ações sejam compartilhados.
Ainda segundo a mesma autora, esse contexto desvela, portanto, a
necessidade de clareza sobre a impossibilidade de ser e fazer tudo no campo
jurídico, aceitando a inevitável dependência de outras organizações e profissionais
para a construção do profissional sociojurídico.

374
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesta perspectiva, a construção do grupo sinaliza de forma positiva para a


prática de atuação dos profissionais do campo sociojurídico como parte integrante
desta teia de relações do trabalho em rede, porém se mostra necessário a
disponibilidade de compartilhar os saberes e informações acerca das demandas
postas a estes profissionais.
Registramos os limites quanto à participação nesta atuação em rede dos
profissionais vinculados a algumas políticas públicas mais tradicionais, tais como,
educação, saúde, habitação, entre outras.
Entretanto, apesar dos pequenos avanços ainda há que se ter em mente as
reflexões expressas por Iamamoto (2010), para a autora, são práticas coletivas que
permitem atribuir uma “unidade de diversidades” que demarca atuações
interdisciplinares, como as que o trabalho em rede pressupõe, à medida que é a
partir da formação e da capacidade teórica-metodológica de cada especialista
envolvido que se torna possível descortinar os nexos existentes na situação sobre a
qual se debruçam e dispor de múltiplas habilidade para realizar as ações propostas.
Tal produção de “zona de interferência” inerente às redes que são colocadas
em funcionamento corresponde, para Vasconcelos e Morschel (2009, p. 734),

A uma aposta que incide no fazer, no investimento em zonas problemáticas


para as quais não encontramos respostas em nossos repertórios, nem
mesmo em nossas cartilhas – ainda que estas nos forneçam pistas –
arrancando-nos de nossas seguranças e nos impelindo a construir novos
itinerários.

Considerando que grande parte da nossa atuação profissional se traduz a luz


de famílias em situação de conflitos, aprofundaremos as questões familiares, bem
como sua interface com os serviços de acolhimento.

1.1 A família de origem e as crianças e adolescentes que estão em instituição


de acolhimento

Conforme pesquisas realizadas, observamos que há algumas características


em comum entre as famílias de crianças em acolhimento institucional, tais como o
elevado índice de drogadição, vulnerabilidade social e repetição de um ciclo de
violência e abandono transgeracional.

375
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Com base no fenômeno da transgeracionalidade, o qual define que a forma


como cada indivíduo exerce a parentalidade é influenciada por conteúdos, fantasias
e fantasmas vinculados aos seus modelos parentais, observamos que muitas das
famílias que acabam por negligenciar seus filhos estão perpetuando um ciclo de
violência do qual também foram vítimas. Isto porque muitos destes pais foram
privados em seus cuidados e, por não terem elaborado adequadamente conteúdos
advindos desta relação, tendem a perpetuar este modelo parental.

Outro fator preponderante na manutenção deste ciclo de abandono e


negligência se refere à condição de vulnerabilidade social que acompanha diversas
gerações de uma mesma família. O ECA pontua que a carência de recursos
materiais não constitui motivo para a perda do poder familiar. Entretanto, o que
visualizamos na prática é que a miséria social e o descaso do poder público com
estas famílias impede seu empoderamento e cerceia sua busca por autonomia e
independência. Como forma de fuga desta realidade, alguns membros destas
famílias recorrem a substâncias entorpecentes, o que dificulta com que elas rompam
com este ciclo de abandono.

Com relação às crianças, pesquisas demonstram que o processo prolongado


de institucionalização deixa profundas marcas em sua psique, que se não
elaboradas, refletirão em sua saúde física e emocional. Isto porque para ter um
desenvolvimento pleno, a criança necessita de cuidados específicos circundados
pelo afeto de seus cuidadores. Porém, a própria rotina institucional, promove uma
descontinuidade de cuidadores, o que deixa os laços afetivos fragilizados,
dificultando a estruturação do eu e provocando alto nível de insegurança pessoal,
medo e falta de confiança no outro.

Dentro de uma instituição, as características individuais de cada criança por


vezes acabam relegadas, pois não há como as atender de forma personalizada.
Necessidades básicas de afeto, carinho e estimulação ficam em segundo plano. A
padronização promove o cerceamento de seus interesses e desejos individuais e
tolhe seu processo de desenvolvimento.

Frente a estas dificuldades, Cuneo (2007) elenca algumas consequências


emocionais deixadas pelo processo de institucionalização prolongada: doenças

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

psicossomáticas, baixa autoestima, sentimentos de rejeição, isolamento, menos-


valia, inferioridade, falta de motivação, humor deprimido, tendência a se
autodepreciar, elevado índice de agressividade e de problemas comportamentais,
sentimentos de ansiedade, frustração e depressão.

Analisamos que estes infantes já foram expostos a situação de


vulnerabilidade física, social e emocional em seus lares e tornam-se novamente
vítimas em meio a este processo de institucionalização prolongado, visto as
consequências que terão em seu desenvolvimento.

Em que pese todo o trabalho da rede junto à família de origem como


preconizado pelo ECA, que prevê em seu art. 100, inc. IX, § 1º, que o acolhimento
institucional ou familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como
forma de transição para a reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para
colocação em família substituta, muitas vezes a reintegração familiar não se
configura a medida de proteção mais adequada para a criança/adolescente,
ensejando um outro caminho, a destituição do poder familiar e a colocação em
família substituta, temas que apresentaremos a seguir.

2. A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR

2.1 Aspectos fundamentais acerca do poder familiar

Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves, “poder familiar é o conjunto de


direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos
menores” (2002, p. 107). Sendo assim, o poder familiar é instituído no interesse da
criança e do adolescente e não em prol dos pais.

O poder parental faz parte do estado das pessoas e por isso não pode ser
alienado, nem renunciado, delegado ou substabelecido. Qualquer convenção, em
que o pai ou mãe abdiquem desse poder, será nula, somente podendo perdê-lo na
forma e nos casos expressos em lei. São eles: artigo 226, § 7° da Constituição

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Federal; artigos 1631, 1635, 1637 e 1638 do Código Civil; artigos 7º, 22, 24, 162,
163 da Lei nº 8.069/90.

Na ocorrência de violação aos direitos relativos ao poder familiar, o Estado


deverá intervir buscando a solução que melhor atenda aos interesses da criança e
do adolescente. Os pais devem prestar conta à sociedade e o Estado tem a
obrigação de proteger a criança e o adolescente. Quando os direitos dos filhos são
desrespeitados ou interrompidos por alguma razão, pelos pais, pode haver a perda,
suspensão ou restabelecimento do poder familiar com relação a um ou a ambos os
genitores.

Ainda que a medida acima rompa vínculos familiares e afetivos das partes, ou
apenas de uma delas, também oportuniza que a criança ou adolescente encontre
nova família e tenha seus direitos garantidos com base no princípio do melhor
interesse da criança.

Iniciado o processo judicial para destituição do poder familiar dos pais, com
base nos relatórios apresentados pelos atores da Rede de Proteção, a equipe
multiprofissional da Vara da Infância e da Juventude atua assessorando o
magistrado no conhecimento dos aspectos socioeconômicos, culturais,
interpessoais, familiares, institucionais e comunitários atinentes ao caso.

Neste momento a situação de perda do poder familiar pode ser revertida


desde que as causas que ensejaram a referida Ação tenham sido superadas.

Observamos que historicamente o exercício do poder familiar dos pais nem


sempre é desejado por estes, podendo resultar num ato ainda controverso que tanto
pode ser percebido como um ato de falta de amor, como de amor e responsabilidade
diante das demandas que lhes são apresentadas.

Desta forma, em continuidade abordaremos as questões que perpassam a


entrega voluntária para adoção, na perspectiva do rompimento dos vínculos.

2.2 A entrega de um filho: considerações sobre o abandono materno

Durante a maior parte da história humana, não se esperava que uma criança
fosse criada sem interrupções por sua mãe biológica. Na versão atual de
moralidade, a condenação do abandono materno se remete a noção naturalizada de
378
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

família. Sendo a mulher mais próxima à natureza, haveria exigências particulares


dirigidas à mãe. Diferente da paternidade que tolera eventuais separações sem
necessariamente colocar em risco o status paterno, a maternidade implicaria
obrigatoriamente numa atitude contínua, ininterrupta. Não somente o “amor materno”
é visto como reação normal de qualquer mulher que acaba de parir, como se exige
que ela demonstre uma constância que dura há décadas na resolução de amar e
cuidar do filho. Qualquer infração desse princípio representaria uma ameaça ao seu
status de mãe.

Entretanto, devemos lembrar que não é “qualquer abandono” que é


condenado. Essa norma é aplicada variavelmente, dependendo das demandas
trazidas pelos diferentes atores da cena. Por exemplo, a mulher que usa sua
capacidade corporal para gerar um filho a ser entregue a outra é, em geral, louvada
por sua generosidade. No outro extremo, há condenação do abandono da criança
exposta. A culpa na responsabilidade individual e na parentalidade privatizada
esconde a necessidade de políticas públicas que amparem a criança e seus
cuidadores.

Segundo levantamento realizado pelo Grupo de Estudos e Apoio à Adoção na


cidade de Joinville (GEAAJ), sobre o perfil das mães que entregam seus filhos, a
dificuldade em exercer a função materna das entrevistadas foi atravessada por seus
próprios conflitos internos e pelo sentimento de rejeição e abandono quando
crianças. Consequentemente projetaram externamente algo que está presente em
sua subjetividade; ou seja, na sua posição materna reatualizaram o abandono vivido
na infância.

Sabemos que, para a psicanálise, se a mulher tem um filho é porque houve


um desejo em tê-lo – mas nem todas as mulheres que entregaram um filho em
adoção o fizeram sofrendo intensamente a dor da perda, pois não desejaram
efetivamente exercer a função materna. Entretanto, quando este desejo existe e é
atravessado pela impossibilidade objetiva de exercê-lo, a entrega do filho é marcada
pela dor da perda e pelo sofrimento. Ou seja, a decisão da mãe em entregar um
filho para adoção pode ter vários significados, desde a aceitação da impossibilidade
de criá-lo, sua rejeição em relação ao seu filho por seus próprios conflitos internos
ou o desejo de não exercer a função materna.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Infelizmente, o preconceito e pontos de vista sem a necessária reflexão


teórica e metodológica ainda permeiam muitos espaços por onde passam estas
mulheres. Preconiza-se incessantemente no processo de entrega em adoção a
defesa dos interesses da criança (ECA), e o posicionamento mais comum dos
profissionais diante das mães biológicas é o de que elas não têm a mesma
importância que o filho. Atualmente, a doação de um filho é simbolizada pela
“rejeição e abandono de uma criança pela mãe”. É preciso desmitificar essa
associação genérica entre doação e abandono. Ainda, preconiza-se muitas vezes
manter o vínculo com a mãe biológica a qualquer preço.

A permanência de mães com um filho sem que esta tenha condições


externas, internas ou ambas para fazê-lo, pode levar as mães a abandonarem seus
filhos em outro momento, favorecendo a ocorrência do problema da adoção tardia e
colocando em risco o desenvolvimento afetivo da criança. Considerando tais fatores,
verifica-se que a ausência de elaboração adequada na doação de um filho pode
explicar alguns casos nos quais o ciclo abandono-adoção tende a se repetir. Esta
ocorrência aponta para a necessidade de favorecer um espaço onde seja possível
escutá-las.

Neste sentido, entendemos que uma das estratégias de retomada de


experiências positivas em relação a proteção das crianças e adolescente se refere a
possibilidade de inserção em família substituta por meio da adoção, tema a ser
abordado na sequência.

3. A ADOÇÃO E SEUS DESDOBRAMENTOS

Ao introduzirmos as questões referentes á Adoção, salientamos que a luz do


Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela


ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou
adolescente, nos termos desta lei.

380
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

13§ 1º Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente


ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de
desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida,
e terá sua opinião devidamente considerada.

14§ 2º Tratando-se de maior de doze anos de idade, será necessário seu


consentimento, colhido em audiência.

15§ 3º Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e


a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as
consequências decorrentes da medida.

16§ 4º Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda


da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco
de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de
solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento
definitivo dos vínculos fraternais.

17§ 5º A colocação da criança ou adolescente em família substituta será


precedida de sua preparação gradativa e acompanhamento posterior,
realizados pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da
Juventude, preferencialmente com o apoio dos técnicos responsáveis pela
execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.

18§ 6º Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente


de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório:

I – que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural,


os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não
sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta lei
e pela Constituição Federal;

II – que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua


comunidade ou junto a membros da mesma etnia;

III – a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável


pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de
antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá
acompanhar o caso.

Neste sentido, o primeiro passo é a preparação dos pretendentes à adoção, o


que veremos a seguir.

3.1 O Processo de Preparação dos Pretendentes à Adoção

O Estatuto da Criança e do Adolescente enfatiza a indicação de que a


adoção deve servir principalmente às necessidades da criança e do adolescente,
com a obrigatoriedade de que os pretendentes à adoção sejam previamente
avaliados.

381
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No art. 50 § 1º determina que a autoridade judiciária manterá, em cada


comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de
serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção.

O Provimento CGJ 05/2005 trata do cadastramento em juízo e prevê que o


pretendente à adoção deverá ser atendido pelo Setor Técnico da Vara da Infância e
Juventude, ou, na impossibilidade, por cartorário devidamente preparado para
prestar as informações necessárias ao processo de habilitação. Os próprios
requerentes preencherão requerimento em modelo padronizado que deverá ser
protocolado no cartório acompanhado dos devidos documentos. Os autos devem
então ser remetidos ao Setor Técnico para agendamento das entrevistas com
Assistentes Sociais e Psicólogos, que no prazo de 45 dias deverão apresentar
parecer conclusivo. Após o deferimento da inscrição o Diretor do Cartório deve
comunicar a CEJAI em 24 horas com as planilhas preenchidas (conforme
regulamentado pelo Comunicado CEJAI 6/2006). Por fim, retorno dos autos ao Setor
Técnico para que se sejam anotados os pretendentes no Livro de Registro de
Pessoas Interessadas na Adoção.

Podemos considerar a avaliação dos pretendentes em duas fases:

Primeira fase - Orientações para melhor situar os pretendentes quanto a sua


realidade e os procedimentos que serão utilizados na avaliação.

É indicado possibilitar um espaço de troca e esclarecer: a organização do


cadastro, a importância dos estudos social e psicológico, o perfil das crianças que
são colocadas em lar substituto e a realidade social de suas famílias.

É importante observar como os requerentes se colocam frente a estes


aspectos e como entendem a situação dessa criança. Isso vai apontar se possuem
mais abertura ou dificuldade para adotar e se possuem necessidade de mais
orientações ou encaminhamentos.

Segundo levantamento da CEJAI em 2007, algumas Varas organizam formas


de trabalho diferenciadas com os pretendentes: individuais ou grupais.

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Os grupos devem desenvolver principalmente atividades de orientações


gerais, encaminhamentos, indicação de material para pesquisa, participação junto à
rede social e atividades junto à comunidade e abrigos.

Segunda fase – Aspectos Técnicos.

O profissional deve buscar a imparcialidade, evitar o prejulgamento e ter


clareza do poder que a situação de avaliação e o lugar institucional lhe confere,
buscando sempre estabelecer uma vinculação positiva com os atendidos.

Nessa perspectiva, Mendes (2006) diz que se procura saber sobre eles
enquanto pessoas, particularmente no que se refere às suas capacidades de
estabelecer relações afetivas com os outros. Há três situações que contribuem para
a avaliação dessa questão: a forma como eles falam de outras pessoas, a maneira
como tratam um ao outro e a forma como tratam o profissional.

Sugere-se que o trabalho seja realizado desde o início pelas duas áreas
(Serviço Social e Psicologia) e entende-se como fundamental que seja finalizado por
meio de entrevista devolutiva, que pode ser agendada independentemente da
sentença judicial.

A elaboração dos relatórios de avaliação psicossocial requer observação de


alguns aspectos específicos, que, embora não haja um padrão estabelecido, o
Tribunal de Justiça disponibiliza em sua página oficial um roteiro com as orientações
para elaboração de avaliação de pretendentes à adoção internacional que também
poderá ser utilizado para os cadastros nacionais.

3.2 Aspectos do Curso Preparatório para os Pretendentes à Adoção

O Provimento 36/2014 apresenta diretrizes normativas para a realização dos


Encontros Preparatórios Obrigatórios, estabelecendo periodicidade, aspectos a
serem abordados, bem como os que são de responsabilidade da equipe técnica da
Vara da Infância e Juventude. Contudo, poderão ser estabelecidas parcerias com a
rede socioassistencial através de Grupos de Apoio à Adoção.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na comarca de Bauru é realizado quadrimestralmente o Curso de Preparação


Psicossocial e Jurídico para os Postulantes à Adoção, ministrado pela equipe
técnica do judiciário, representante do Ministério Público, Defensor Público e
Magistrado, podendo abranger as comarcas vizinhas que pertencem a 32ª
Circunscrição. Em alguns casos, as comarcas de pequeno porte, quando da
demanda, realizam o referido curso independentemente da sede.

Verificamos que algumas Comarcas contam com a colaboração de Grupos de


Apoio à Adoção, independentes e não governamentais, que desenvolvem os cursos
preparatórios, emitindo certificado, cabendo às equipes técnicas a complementação
das informações referentes aos aspectos jurídicos da adoção.

Na Comarca de Ourinhos, por exemplo, está estabelecido desde 1994, o


GIAARO - Grupo de Incentivo e Apoio à Adoção da Região de Ourinhos que é
utilizado pelas Comarcas pertencentes à 25ª Circunscrição Judiciária, cujo objetivo é
apoiar e incentivar a adoção e diminuir o tempo de permanência das crianças nos
abrigos.

A metodologia utilizada pelo GIAARO são quatro encontros, com duração de


duas horas, durante quatro semanas, onde são abordados os temas: mitos e
preconceitos na adoção, aspectos legais na adoção, convivência na família adotiva e
criança real X criança ideal.

Foi também realizada pesquisa sobre outros grupos de apoio a adoção e suas
experiências, tendo sido contatado o grupo de adoção existente no município de
Curitiba-PR, que realiza reuniões mensais, inclusive com apoio pós-adoção, pois foi
identificado pela coordenação que tal suporte é de grande relevância e minimiza as
devoluções.

Na Comarca de Itapeva-SP, está em fase de implantação um Grupo de Apoio


à Adoção coordenado por técnicas do judiciário que realizaram mobilização junto à
comunidade, alertando sobre a importância da família para o desenvolvimento da
criança e a quantidade de acolhidos institucionalmente.

De acordo com a experiência profissional, bem como os estudos já


realizados, a preparação dos pretendentes à adoção é primordial para o sucesso da

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adoção, minimizando a possibilidade de devolução de crianças; contudo verifica-se


grande dificuldade na operacionalização e oferta de cursos preparatórios.

A realidade das Comarcas aponta para falta de condições materiais, físicas e


de recursos humanos. Salvo exceções, não há envolvimento do magistrado e
representante do Ministério Público nessa questão e nem sempre é possível contar
com Grupos de Apoio à Adoção, o que pode dificultar e prejudicar a qualidade dessa
preparação aos pretendentes à adoção.

3.3 O Estágio de Convivência

3.3.1 Aspectos Legais:

O Estágio de Convivência da criança e adolescente com a família adotiva está


assim descrito no ordenamento jurídico:

Art. 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança


ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as
peculiaridades do caso.
o
§ 1 O estágio de convivência poderá ser dispensado se o adotando já
estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo suficiente
para que seja possível avaliar a conveniência da constituição do
vínculo. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
o
§ 2 A simples guarda de fato não autoriza, por si só, a dispensa da
realização do estágio de convivência. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência
o
§ 3 Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora
do País, o estágio de convivência, cumprido no território nacional, será de,
no mínimo, 30 (trinta) dias. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
o
§ 4 O estágio de convivência será acompanhado pela equipe
interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude,
preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da
política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão
relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009).

No tocante a dispensa do Estágio de Convivência quando o adotando já


estiver sob a responsabilidade do adotante, vale salientar que em 07.11.2012, o CNJ
publicou a Recomendação nº 08/2012, que dispõe sobre a colocação de crianças e
adolescentes em família substituta por meio de guarda, nos seguintes termos:

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

RESOLVE:
Art. 1º Recomendar aos juízes com jurisdição na infância e juventude que
ao conceder a guarda provisória, em se tratando de criança com idade
menor ou igual a 3 anos, seja ela concedida somente a pessoas ou casais
previamente habilitados nos cadastros a que se refere o art. 50 do ECA, em
consulta a ser feita pela ordem cronológica da data de habilitação na
seguinte ordem: primeiro os da comarca; esgotados eles, os do Estado e,
em não havendo, os do Cadastro Nacional de Adoção.

O olhar do profissional da Vara da Infância e Juventude no tocante a tão


delicado período, deve ir para além da normativa, sendo necessária sensibilidade e
habilidade para lidar com as situações que podem emergir no contato entre o
adotante e o adotando, quando o ideal imaginário se depara com o real, o qual
muitas vezes requer flexibilidade e paciência para esperar o amadurecimento da
relação.

3.3.2 Atuação dos Profissionais da Vara da Infância e da Juventude no


Processo de Adoção – Aspectos Teóricos

O ato de adotar não é apenas uma caridade, trata-se de algo muito mais
complexo. Fala-se da aceitação e da inclusão de uma nova pessoa no seio familiar,
envolvendo relações de parentesco e sucessões. É oferecer afeto, amor, educação,
reconhecendo a criança como se fosse um filho consanguíneo.

Na atualidade as possibilidades de se adotar uma criança são mais amplas e


menos reducionistas, pois todas as pessoas que atendam aos requisitos legais
podem fazê-lo, independente de estrato socioeconômico, orientação sexual ou
estado civil. Atualmente, com as atualizações na legislação e a criação do Estatuto
da Criança e do Adolescente, observa-se que o principal objetivo da adoção é
proteger e garantir os direitos básicos fundamentais à criança e/ou adolescente,
consentindo a vivência em um lar que possa lhe suprir as necessidades básicas.

Infelizmente e não raro, ocorrem problemas na convivência entre postulante e


adotando, gerando conflitos que podem se agravar e culminarem para a devolução
da criança ao sistema público. O estágio de convivência é um dos grandes
responsáveis por evitar tal situação e garantir a melhor adaptação do novo filho à

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nova família. Neste momento observa-se a formação dos laços afetivos, as trocas de
experiências sociais e culturais, onde ocorre o intercâmbio de vivências e muitas
vezes o surgimento de sintomas que retratam a época do abrigamento ou os
traumas adquiridos na família de origem.

É inegável a importância de uma melhor preparação dos postulantes ao cargo


de pais, para haver a certeza de que querem ter um filho e aquela criança é a certa,
transmitindo amor, aceitação e segurança ao adotado. Vale ressaltar que cada
criança passa por um processo de subjetivação diferente, conferindo-as uma
singularidade que as diferenciará das outras em situações semelhantes. Por esse
motivo, nova família, agora composta por uma figura parental e um ou mais filhos
deverá ter seu estágio de convivência focado nas características de seu sistema
familiar.

Então, o estágio de convivência torna-se fundamental na identificação e


estruturação da família desejada (vez que a ideal é utópica). Com a finalidade de
lograr sucesso nesta nova etapa repleta de mudanças e situações novas é
indispensável o apoio de equipes multidisciplinares constituídas por psicólogos e
outras áreas do conhecimento, com objetivo de esclarecer e orientar os envolvidos
na construção da nova família, vez que em grande parte dos eventos, os sujeitos
desconhecem os saberes necessários para lidarem e terem autonomia diante da
nova situação.

Lembramos que quanto maior a criança ou adolescente, mais tempo se


tornará necessário para estabelecimento dos novos vínculos e rompimento dos
antigos, assim como maiores as chances de fatores que possam vir a complicar a
relação criança(s)-pai(s), pelo fato de que o processo de subjetivação já estará
presente de forma mais forte, bem como as memórias mais frescas e armazenadas,
no que diz respeito às experiências já vivenciadas.

3.3.3 Atuação dos Profissionais da Vara da Infância e da Juventude no


Processo de Adoção – Aspectos Práticos
O estágio de convivência tem início a partir do momento que os postulantes a
adoção da criança ou adolescente obtiveram o Termo de Guarda, cujo período é

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fixado pelo Juiz, assumindo, assim, os cuidados de guarda e proteção, conforme


prevê o art. 46 do ECA.

Recomenda-se o acompanhamento pelo Setor de Serviço Social e Psicologia,


visto ser um momento decisivo no estabelecimento das relações entre o adotante e
o adotado, seu círculo familiar e social.

É necessário verificar se a criança está conseguindo ter um espaço na família


como filho e como estão sendo estabelecidos os novos papéis de cada um.

Existem características apresentadas pela criança/adolescente que devem


ser avaliadas por ambas as equipes, quais sejam: atitudes; hábitos alimentares, de
higiene, lazer, rotina diária, etc.; habilidade, percepção e controle; perspectiva de
tempo; reações agressivas; comunicação verbal e não verbal; necessidades
reveladas (segurança, independência, estabelecimento das interações sociais e
demonstrações sociorelacionais, reconhecimento, etc.); desenvolvimento global da
criança (aspecto físico, dificuldade cognitiva e/ou comunicação, comportamentos).

Cabe ao Serviço Social focar sua atenção no estabelecimento das novas


relações sócio familiares do adotando e, neste sentido, oferecer um espaço de
escuta e orientação que, além das observações realizadas no decorrer do
acompanhamento, evidenciarão como está ocorrendo o acolhimento da
criança/adolescente no núcleo familiar, na família extensa e na rede social dos
adotantes.

Acrescenta-se ainda, com relação aos adotantes a análise da percepção da


família em relação às alterações com o ingresso de novos membros; como está se
processando a nova dinâmica familiar; dificuldades surgidas e como foram
enfrentadas; existência de preconceitos e como a família supera tais questões com a
criança; inserção da criança/adolescente na família extensa e nos grupos sociais
que a família está inserida; inclusão da criança/adolescente no ambiente escolar
regular e em outros cursos complementares; como os adotantes lidam com a
aceitação das diferenças do adotando (no núcleo familiar, na família extensa e na
comunidade); como estão se estabelecendo as relações parentais (percepção
quanto à aceitação, a dificuldade ou não em inserir a criança enquanto novo
membro da família); modificações na dinâmica do casal e ocorrência de crises
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

conjugais, ou com outros membros da família; como os adotantes lidam com a


saúde, hábitos e costumes do adotando; como os adotantes se colocam em relação
às “birras” e “manhas” e a colocação de limites; como os adotantes lidam com a
história de vida do adotando.

Neste sentido, considerando que podem ocorrer problemas e conflitos na


convivência e no relacionamento familiar, na sequência, analisaremos as possíveis
causas de devolução de filho adotivo.

4. DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS / ADOLESCENTES ADOTADOS OU


EM ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

O que leva alguns pais adotivos a desistirem de seus filhos por meio da
devolução? Quais são as possíveis vivências e consequências para as crianças e
adolescentes que passam por tal experiência? O que podemos pensar e fazer como
profissionais envolvidos nesses casos?

A experiência de ter atuado em casos de devolução e as inquietações


expostas nas perguntas acima nos mobilizaram a estudar esse tema, objetivando
levantar a produção bibliográfica acerca do tema, relacionando-a com a nossa
experiência com os casos atendidos.

Uma das poucas referências bibliográficas encontradas e que consideramos


muito importante é o livro de Ghirardi (2015) que apresenta resultados de sua
pesquisa que teve como objetivo compreender os processos psíquicos dos pais
adotivos envolvidos na experiência da devolução, destacando aqueles aspectos da
subjetividade que poderiam funcionar como indicadores para o rompimento do
vínculo com a criança. A autora priorizou a compreensão das motivações
inconscientes dos pais que desistem de suas crianças.

A devolução aponta para o insucesso da adoção e expressões de violência,


rejeição e frustração são experimentadas por todos aqueles que de alguma maneira
vivenciam o processo ligado à devolução, sejam os adotantes, a criança/adolescente
ou o profissional que em sua prática depara-se com ela. O sofrimento
389
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

experimentado pelos adotantes é consequência de expectativas extremadas que


depositam na adoção e na criança e, como decorrência, experimentam sentimentos
ligados ao fracasso.

Segundo Ghirardi (2015), a justiça não reconhece o conceito de devolução.


Perante a lei, toda adoção é irrevogável e, portanto, devolver a criança adotada é
considerado equivalente a abandonar um filho biológico. A única possibilidade
prevista na lei é o retorno da criança ou sua restituição durante o Estágio de
Convivência, período em que os adotantes têm apenas a sua guarda e que
antecede a decretação da sentença da adoção. Frequentemente o procedimento
adotado pelo Judiciário nos casos de devolução (e também nos casos de restituição)
segue a tramitação das situações de abandono ou de entrega da criança: instaura-
se um processo de destituição do poder familiar (ou de cancelamento da guarda) e
segue-se o concomitante acolhimento. Esse procedimento é praticado a despeito da
irrevogabilidade da sentença da adoção e tem o objetivo de evitar a permanência da
criança no núcleo familiar que a rejeita, vitimiza de maus-tratos, humilhações e
abusos.

A devolução assim oficializada é apenas uma entre muitas devoluções


possíveis, entendendo-se a devolução como uma experiência que reedita, no
psiquismo da criança, outras e antigas vivências ligadas à rejeição e ao abandono.
Ghirardi (2015) aponta que a devolução pode ocorrer em momentos que incluem as
tentativas de estabelecimento de vínculo afetivo durante o estágio de convivência ou
após a sentença da adoção ter sido decretada, apesar do caráter de irrevogabilidade
que acompanha o estatuto da adoção. A ocorrência das devoluções, sejam elas
amparadas ou não pela Lei, realçam não apenas a importância do processo de
seleção dos candidatos à adoção, como também ressaltam a importância do caráter
das intervenções que se dão no momento agudo de conflitos, inclusive durante o
estágio de convivência.

A referida autora em sua experiência clínica considera que do ponto de vista


da subjetividade do casal, pode haver o temor que estão retirando a criança de um
outro lugar, de uma outra família. Tais fantasias de roubo podem em alguns casos
se associar à devolução. A possibilidade do reaparecimento da família biológica

390
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pode deixar exposto para os adotantes a presença de outra família, e portanto, outra
origem.

Outro aspecto ressaltado por Ghirardi (2015) das vivências dos adotantes diz
respeito ao sentimento de perda, reavivando experiências anteriores ligadas a
possíveis lutos não concluídos: do filho biológico, infertilidade. A adoção põe em
relevo a necessidade da assimilação de uma história pregressa que vem junto com a
criança, pois dela faz parte. E implica para os adotantes deparar com o diferente,
com a alteridade e assim a necessidade de ser feito o luto das perdas.

A busca das origens é parte do desenvolvimento de toda criança que


inaugura sua pesquisa a partir da curiosidade sobre a origem dos bebês. Por meio
das perguntas que faz aos adultos, expressa a necessidade de dar sentido à sua
pequena existência. Ghirardi (2015) alerta que a experiência clínica com adoção é
reveladora de que a abordagem das origens é uma das questões que mais angustia
os pais adotivos, dada a possibilidade de suscitar uma variedade de temores e
diferentes fantasias. Revelar à criança que ela é adotada, reedita para os pais,
experiências sentidas muitas vezes como penosas, por estarem ligadas às perdas
intrínsecas que os motivaram à adoção, tais como a infertilidade e o filho biológico
imaginário. São também frequentes as fantasias e o medo de que a criança um dia
saia em busca da família de origem. Pode haver uma espécie de sentimento de
estranheza, e os adotantes não se reconhecem como pais – às vezes chegam a
desejar devolver a criança, ou seja, destitui-la do lugar de filho, como se fosse
possível uma anulação retroativa.

Outro fator a ser levado em consideração apontado por Ghirardi (2015) são
as expectativas elevadas sobre a criança e, se há um desvio em relação ao ideal,
ela passa a ser vista como inadequada. Há uma quebra dos ideais pretendidos
quando a criança por meio de seu comportamento não corresponde às expectativas
parentais e isso também pode contribuir para a ocorrência de uma devolução.

Outra referência encontrada que aborda a devolução é o texto de Franco


(2016), onde a autora aborda a importância da preparação das equipes técnicas que
deverão acompanhar o processo de adaptação e oferecer o apoio e os
esclarecimentos necessários. Devem ser verificadas as dificuldades do

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

relacionamento, os desejos e a probabilidade do sucesso da adoção pretendida.


Importante lembrar que essas crianças e adolescentes já vivenciaram decepções e
rejeições que resultaram rupturas.

Franco (2016) aborda a questão da jurisprudência que vem impondo aos


adotantes que desistem da adoção, o dever de pagar alimentos e indenização por
danos morais e materiais ao menos para subsidiar o acompanhamento psicológico
de quem teve mais uma perda, até ser novamente adotado. A autora considera
necessária a criação de leis que determinem punições severas aos adotantes,
obrigando-os a indenizar as crianças e adolescentes, caso eles sejam devolvidos ao
Poder Público, em valor proporcional aos gastos oriundos de tratamentos
psicológicos, na tentativa de minimizar o trauma provocado pelo novo abandono,
bem como a devolver aos cofres públicos o montante recebido por ocasião da
licença maternidade e estipular pensões alimentícias pagas pelos adotantes às
crianças e adolescentes que devolveram, em período que se fizer necessário,
analisados caso a caso.

Franco (2016) aponta que uma vez que as habilitações e avaliações dos
pretendentes são feitas em ocasiões anteriores ao contato com a realidade,
encontra-se a necessidade de uma reformulação nos mecanismos de
acompanhamento e nas orientações para os mesmos, bem como disponibilizar um
número maior de vagas para os profissionais envolvidos, capacitando-os por meio
de cursos de atualização permanente, visando a identificação de pontos relevantes
que indiquem o real preparo dos interessados na adoção.

A partir das considerações desses autores e de nossa vivência profissional,


consideramos que no encontro de crianças e/ou adolescentes com uma família
adotiva pode haver uma fase inicial muito boa de encantamento, seguida de
momentos de afastamento, agressão e testes de limites, ou seja, períodos de crises
“normais”, nos quais está ocorrendo o conhecimento entre eles e a formação dos
vínculos afetivos. Nessas situações é sempre indicado que os pais adotantes não
ameacem “devolver” como controle de comportamento e caso sintam que as
dificuldades estejam mais complexas, há a necessidade de buscar ajuda
profissional.

392
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Entendemos como importante um efetivo trabalho de acompanhamento aos


candidatos à adoção, a realização do curso preparatório de pretendentes à adoção,
o acompanhamento das crianças e adolescente à espera de adoção e o
acompanhamento do estágio de convivência como medidas preventivas de
devolução.

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CONCLUSÃO

Ao finalizar o presente artigo, registramos que os participantes do Grupo de


Estudos Bauru, avaliam como fundamental a proposta de manutenção destes
espaços de troca de saberes os quais possibilitam o amadurecimento teórico,
metodológico e ético político de uma fazer profissional permeado pelas contradições
e expressões da questão social que incidem nas famílias, crianças e adolescentes e
na sociedade.

Pontuamos que houve um consenso no que tange a necessidade de um


trabalho efetivo de toda a rede socioassistencial no atendimento das crianças e
adolescentes acolhidos, assim como das suas famílias, visando primeiramente a
reintegração familiar, quando esta se mostrar a medida mais adequada. Todavia, na
impossibilidade real do retorno para o seio da família biológica, importante se faz a
instauração de procedimento judicial para destituição do poder familiar que permite a
colocação em família substituta por meio da adoção.

Nesse sentido, a Vara da Infância e da Juventude se vale do cadastro de


pessoas habilitadas e interessadas na adoção, no âmbito da Comarca de origem da
criança, do Estado e Nacional. Para tanto, no decorrer do processo de habilitação os
assistentes sociais e psicólogos judiciários tem um papel importante na preparação
dos pretendentes, na realização de criteriosa avaliação psicossocial e na promoção
do curso preparatório.

Concomitante a preparação dos pretendentes, e de extrema necessidade


para o sucesso da adoção, está o acompanhamento das crianças e adolescentes à
espera de adoção, no sentido de trabalhar a ruptura dos vínculos que ainda possam
existir para com a família biológica, que não respondeu positivamente para seu
retorno ao lar, bem como para que consiga se abrir para uma nova família.

A inserção do adotando na família adotiva também carece de


acompanhamento sistemático e atento por parte dos técnicos do judiciário, momento
esse definido como Estágio de Convivência, visando-se a prestação de orientações,
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aconselhamentos, encaminhamentos, sempre com o olhar voltado para o bem estar


da criança e do adolescente. Nesse acompanhamento, infelizmente, em alguns
casos pode emergir situações que revelam a inadequação da colocação naquela
família adotiva, sendo possível ocorrer a devolução, a restituição, ou ainda a retirada
da criança/adolescente dos pretendentes à adoção, ensejando assim, a aplicação de
medidas que visem minimizar os danos à criança/adolescente, e até aos
pretendentes, e reorganizar estratégias de atuação para possibilitar nova tentativa
de colocação em família substituta, sempre tendo em vista a excepcionalidade e
provisoriedade da medida de acolhimento.

As aproximações constantes do presente artigo são frutos da construção


grupal e sinalizam para alguns questionamentos que devem ser aprofundados por
cada leitor diante de seu cotidiano profissional, considerando as contribuições
ofertadas para tal reflexão: Como podemos nos preparar para uma atuação mais
qualificada junto às crianças e adolescentes acolhidos, aos pretendentes à adoção e
especialmente nos casos de devolução? Como trabalhar nossas angústias e
impotências diante desses casos?

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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397
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

GUARDA COMPARTILHADA: MULTIPLICIDADE DE


DESAFIOS NAS AVALIAÇÕES PSICOSSOCIAIS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – CAMPINAS

“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2016
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Marcia Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas


Maria Amalia do Val Simoni – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

AUTORAS

Adriana Leite de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Americana


Adriana Miquelini Lavoura – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapira
Aparecida Madalena Da Silva – Assistente Social Judiciário – Foro Distrital de
Paulínia
Cláudia Maria Zoppe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Serra Negra
Fernanda Soares Aguiar – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibaté
Flavia Hayesa Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa
Barbara D’oeste
Idalina Martins Vieira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Monte Mor
Laura Bagalho Ferruci – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas
Lygia Ferreira Gomes Perchon – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas
Maria Aparecida De Vasconcellos Pompeo – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Mogi Guaçu
Maria Isabel Monfredini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapira
Mariana Sarmento Abrahao – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araraquara
Miriam Amaral Naves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Americana

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos de Família – Campinas definiu neste ano estudar sobre


Guarda Compartilhada, tema que continua suscitando reflexões, uma vez que a lei
ainda não é automaticamente aplicada, havendo entendimentos diversos.

Neste sentido, o Grupo resolveu se debruçar sobre esta temática e refletir


sobre os desafios do trabalho, visando tanto subsidiar as decisões judiciais quanto
favorecer as relações familiares.

Os estudos feitos pelos profissionais do Judiciário podem, além de observar a


normativa legal, serem alinhados com a resolução da ONU, de 1997, que
estabeleceu que a década a ser iniciada em 2000 fosse dedicada à Cultura da Paz,
preconizando a não violência em benefício das crianças do mundo, uma vez que
propõe novas formas de resolução de conflitos com valorização e respeito as
opiniões diversas favorecendo uma troca entre os indivíduos que possam acordar
sobre ações que favoreçam a coexistência pacifica.

É notória a mudança da família ao longo do tempo, entre elas a entrada da


mulher no mercado de trabalho e, paulatinamente, a participação do homem nos
cuidados com os filhos, favorecendo o estabelecimento de novas relações
familiares. Na família patriarcal há diferenças marcadas entre os pais, sendo a
mulher cuidadora e homem provedor, embora seja importante lembrar que os vários
modelos de família coexistem.

Parte da população masculina passa a assumir cuidados diários com seus


filhos e hoje meninos e meninas passam a ser cuidados por ambos os pais, desta
forma sendo efetivamente filhos de pais e mães.

Esta entrada do homem no papel de cuidador rompe com a desvalorização da


mulher, de modo que tanto um quanto o outro podem vivenciar diferentes facetas
nesta sociedade pluralista, com igualdade e não hierarquização, superando a
necessidade de existirem opressores e oprimidos. Possibilitando que haja partilha e
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

não divisão, convergência e não divergência e, ainda, a reintegração do homem que,


tradicionalmente tem um papel específico no público, ao ambiente privado da
família.

Estas novas relações podem favorecer a reintegração do humano com o meio


ambiente e que o principio do prazer possa ser integrado. Desta forma
reconhecemos que as funções de manutenção e cuidado tão marcadas e diferentes
no patriarcado agora podem ser desempenhadas por um ou outro genitor.

Ao profissional cabe ultrapassar o importante papel do perito para ser aquele


que também pode contribuir com o novo papel que o Poder Judiciário assume de
construtor da Paz, sendo o profissional aquele que refletirá com o individuo quanto a
necessidade/possibilidade de ser o protagonista na resolução de seus próprios
conflitos, ultrapassando a Cultura do litígio.

Necessário ultrapassar a guerra e a luta pelo poder e dominação. A briga


como resolução de conflito é patriarcal e muitas vezes é trazida pelos indivíduos ao
judiciário, numa reprodução de como lidam com tais questões na sociedade, uma
vez que é comum tal forma de resolução de conflito.

Ao profissional cabe refletir e sensibilizar os pais sobre como lidam com a


separação e a nova organização de vida, inclusive lembrando que os conflitos são
parte da vida e que a diferença é como lidam com ele, buscando transformá-los e
não somente revidar e atingir o outro. A parentalidade e a conjugalidade não se
confundem e a parentalidade será continua.

Nas normativas legais dos últimos anos o afeto surgiu como valor jurídico,
desta forma o desejo do individuo pode ser apresentado pelo profissional, em seu
laudo, como fator importante a ser considerado.

O estudo é oportunidade de reflexão a respeito das reais necessidades dos


filhos, que inclui além do direito à convivência com ambos os pais e seus familiares
a substituição de uma forma de resolver conflitos de disputa para uma forma
baseada no diálogo e na cooperação mútua a fim de favorecer o convívio saudável e
seu pleno desenvolvimento.

401
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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O final do relacionamento conjugal não necessariamente resulta em prejuízo


aos filhos, uma vez que as discussões diárias podem causar danos mais graves. No
entanto, a forma como os pais administram os conflitos após a separação poderão
ter repercussão na vida dos filhos que podem aprender como resolver os seus
próprios conflitos de forma agressiva ou pacífica. De forma geral, os conflitos de
longa duração são muito prejudiciais ao desenvolvimento dos filhos.

Do profissional se espera que esteja atento e disponível para acolher o


individuo, proporcionando reflexões acerca do que o traz ao judiciário e de como tais
situações podem ser transformadas por suas ações e novas posturas, dando sentido
as relações que quer (r)estabecer com seus filhos e o pai/mãe destes.

O profissional pode demonstrar a importância dos pais refletirem sobre as


reais necessidades de seus filhos, reconhecendo o outro tal como é com suas
qualidades e defeitos que, portanto, vai requerer deste uma aceitação de que o outro
não pode ser modificado somente pelo seu desejo.

A este pai/mãe cabe também estar aberto a uma nova concepção de família,
distinguindo conjugalidade da parentalidade afetiva e solidária.

Se o Tribunal de Justiça ao receber um conflito tiver apenas uma decisão


formal, sem oferecer a oportunidade de que este conflito seja transformado pelos
indivíduos, ele terá feito somente a parte burocrática sem que as pessoas possam
efetivamente ter recebido ou criado uma solução, através da auto responsabilização.

A GUARDA COMPARTILHADA – FOCO NA LEI

A guarda compartilhada é um tema recente considerando o aparato jurídico e


as profundas transformações sociais, culturais, econômicas e comportamentais que
se refletem no âmbito da família.

No século passado ocorreram profundas mudanças de paradigmas


relacionadas à proteção da infância e da juventude. Embora tenham ocorrido vários
avanços no âmbito legal, no Brasil, nas duas últimas décadas, é possível destacar a
Lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente – que engloba a proteção à
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infância e adolescência, com primazia da proteção integral, sendo este segmento


reconhecido em fase especial de desenvolvimento e seus direitos assegurados com
prioridade absoluta – e a Lei 10.406/02 Código Civil – que trouxe alterações
importantes e modificou alguns conceitos diante do contexto familiar, dentre eles
elencamos a alteração do vocábulo homem por pessoa, o estabelecimento de um
conceito mais amplo de família, acrescido da mudança da expressão pátrio poder
para poder familiar.

Considerando a dissolução de uniões, cujos relacionamentos englobam filhos


e ou a disputa pela guarda dos filhos, por um período de tempo considerável a
guarda ficou praticamente vinculada à figura materna, sendo então a guarda
unilateral a modalidade mais usual aplicada em casos de separação. No entanto,
para romper essa situação, de quase normalidade da guarda unilateral para as
genitoras, foi instituída a guarda compartilhada como outra modalidade.

Com a promulgação da Lei nº 11.698 de 13 de junho de 2008 e da Lei 13.058


de 22 de dezembro de 2014 a guarda compartilhada foi instituída e disciplinada. As
alterações no Código do Processo Civil e disciplinadas por estas leis ofertaram à
criança e ao adolescente o reconhecimento de conviverem sob a responsabilidade
de ambos os pais e, aos pais, a possibilidade de assumirem conjuntamente a
responsabilidade perante os filhos. Entretanto, apesar deste avanço, evidenciam-se
também desacertos, visto que aspectos importantes não foram devidamente
explicitados diante destes ordenamentos jurídicos.

Tem-se que as mudanças nas funções e papéis parentais, considerando as


transformações no contexto das relações estabelecidas por homens e mulheres –
novas formas de viver em família, mudanças nas relações interpessoais, mães que
trabalham fora e pais afetuosos que se mostram disponíveis nos cuidados com os
filhos - alteraram papéis estereotipados definidos pela condição de gênero, sendo
manifesto também por homens o desejo de cuidar dos filhos.

Estudos e pesquisas quanto à importância do vínculo e convivência dos filhos


com ambos os pais, colaboram para que as atuações profissionais contemplem a
complementariedade das funções parentais, além de não eximir os pais de direitos e
deveres e para que os filhos também tenham preservado o seu superior interesse.

403
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Atentos à concepção de família, à alteridade dos papéis de homem e mulher,


às relações estabelecidas e aos ordenamentos jurídicos, o lugar que os filhos e os
pais ocupam e precisam ocupar, deve ser ressignificado e este é um desafio que se
coloca à sociedade.

A dissolução de uma união com filhos gera, por vezes, mudanças profundas e
imprime a necessidade de reestruturar e reajustar papéis. O reorganizar das
relações privilegia a preservação do laço parental, mesmo quando os vínculos
conjugais deixam de existir, a coparentalidade precisa ser preservada. A
possibilidade da guarda compartilhada pode contribuir ou não para o resgate das
competências dos pais e priorizar o interesse dos filhos, de modo que se respeite
suas demandas, rotinas e referências.

Atualmente tem-se uma maior compreensão da importância e da necessidade


da preservação dos vínculos com ambos os genitores, uma vez que é deles a
responsabilidade na formação dos filhos. Assim, é muito importante garantir que os
papéis sejam desempenhados pelos pais, com participação efetiva de ambos na
vida dos filhos.

É notório que a guarda compartilhada atende tanto aos filhos que necessitam
conviver com pai e mãe, quanto a um número expressivo de homens que se sentem
realizados com as funções parentais e não querem mais ser somente provedores e
“pais de fim de semana”. Atende igualmente aos filhos de pais (biológicos ou
adotivos) em relacionamento homoafetivo. Assim como a mãe, uma vez que pode se
sentir sozinha e sobrecarregada sem ter com quem compartilhar as demandas dos
filhos.

Alguns autores e magistrados defendem a guarda compartilhada mesmo


quando há litígio entre os pais, pois o que se busca é a responsabilização conjunta
em relação aos filhos e não a harmonização dos ex-cônjuges. Estes acreditam que
possa haver harmonia como pais, mesmo que já não se harmonizem como casal.
Outros acreditam que o tempo e as mudanças na situação socioafetiva dos
genitores se encarregam de dirimir/amenizar os conflitos.

Outros autores e magistrados defendem que a guarda compartilhada é


adequada somente por mútuo consenso dos pais, quando o casal rompe o laço
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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conjugal, mas consegue manter o laço parental, por meio de uma comunicação mais
limpa, sem ruídos e conflitos. Esses autores acreditam ainda que para o bom
funcionamento deste tipo de guarda, os genitores precisam ter maturidade, manter o
foco no melhor interesse dos filhos, além de respeitar e colaborar com o ex-cônjuge
na realização das funções parentais.

De acordo com a legislação em vigor, a guarda compartilhada pode ser


aplicada desde que não haja qualquer impeditivo para o deferimento da guarda em
relação a um dos genitores, como violência contra os filhos, alcoolismo/drogadição,
doenças mentais, vontade expressa de não ser guardião, entre outras.

As dinâmicas familiares não são estanques, bem como o ciclo de vida da


família aponta para diferentes necessidades de pais e filhos com o passar do tempo.
Assim, a sentença judicial pode ser revisada por motivo grave ou para melhor
atender os interesses dos filhos.

Outro aspecto a ser salientado, é a necessidade de ampla divulgação do


significado da guarda compartilhada, para que não seja confundida com a guarda
alternada. A guarda alternada é a alternância de moradia dos filhos e da
responsabilidade dos pais; cada genitor fica como responsável único pelos filhos e
pelas decisões que por acaso precisem ser tomadas no período de tempo em que
estes estiverem em sua casa; geralmente não há pagamento de pensão; não há
compartilhamento de responsabilidades pelos genitores, mas sim a divisão das
responsabilidades; este modelo é criticado por não oferecer estabilidade às crianças
e adolescentes pela mudança constante de moradia. Na guarda compartilhada é
recomendável à fixação de uma residência base-referência na casa de um dos
genitores, para melhor garantir a estabilidade emocional dos filhos. Assim, a guarda
compartilhada implica em maior equilíbrio do tempo de convívio dos filhos com
ambos os genitores, sem que isso implique em uma divisão matemática do tempo
com cada genitor.

Dentre os vários aspectos que englobam o deferimento da guarda


compartilhada, diante de estudos, discussões e reflexões é possível aventar
algumas vantagens e desvantagens, expostas a seguir:

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Vantagens:

Maior integração dos genitores no desempenho de suas funções


parentais;

Maior participação dos genitores na vida dos filhos;

Reforço do poder familiar;

Pode ser um instrumento eficaz para prevenir/inibir a alienação parental;

Pode proporcionar maior percepção da diferenciação das questões da


conjugalidade das questões da parentalidade;

Acaba com a expressão “ganhar a guarda do filho”, que encerra o


pressuposto de que se alguém ganhou, outro perdeu;

Atribui a ambos os pais o exercício equilibrado do Poder Familiar; evita o


distanciamento de um dos pais;

Favorece a continuidade das relações entre pais e filhos mesmo com o fim
do casamento dos genitores;

Evidencia o interesse dos filhos, já que estes se desenvolvem melhor se


houver relacionamento harmônio entre os genitores;

Menor sentimento de culpa e frustação do genitor não guardião;

Privilegia a igualdade entre os genitores; ambos têm os mesmos direitos e


as mesmas obrigações; diminui a síndrome do poder do genitor guardião;

Ambos os pais se tornam responsáveis conjuntamente por possíveis


infrações que os filhos adolescentes possam vir a cometer;

Diminui a pressão da mãe (em geral) de ser responsável isoladamente


pelas decisões sobre questões importantes da vida dos filhos;

Diminui a possibilidade de utilização dos filhos como “moeda de troca” ou


“instrumento de vingança”.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Evita que os filhos sejam estimulados a decidir com qual genitor desejam
ficar, situação que causa aflição, angústia e desgaste emocional pelo medo de
magoar um dos pais - priorizar os interesses e necessidades dos filhos não
significa delegar a eles a tarefa de decidir com quem desejam morar.

Ponderações:

A guarda compartilhada por si só não tem o poder de harmonizar as


relações familiares, da mesma forma que a divisão mais igualitária do tempo de
convívio dos filhos com ambos os genitores também não resolve e não pacifica
todos os conflitos entre os ex-cônjuges;

A expressão “divisão equilibrada do tempo” tem gerado confusão e a


crença de que os filhos devam passar matematicamente o mesmo período de
tempo na casa de cada genitor, transformando a guarda compartilhada em
guarda alternada;

A divisão do tempo de convívio fomenta tentativas de modificação ou


mesmo de suspensão do pagamento de pensão alimentícia para os filhos. O uso
da guarda compartilhada como forma de reduzir ou eliminar o pagamento da
pensão alimentícia foge ao objetivo desta modalidade de guarda;

A lei da guarda compartilhada não deixa clara a questão do pagamento de


alimentos aos filhos. O entendimento mais geral é de que a lei não exime um dos
pais do pagamento da pensão, pois haverá a fixação da moradia base da criança
e o genitor que não ficar com a custódia física deverá pagar alimentos. Assim,
como um dos pais deverá exercer a custódia física, este fato acarreta em
consequência a obrigação de prestação de alimentos pelo outro genitor, muitas
vezes acirrando conflitos. É importante salientar que o dever de prestação de
alimentos é recíproco entre pais e filhos, de acordo com o artigo 1.696 do Código
Civil.

A imposição da guarda compartilhada como regra geral não é suficiente


para a conscientização dos genitores e mudanças de comportamentos e atitudes
em favor do melhor interesse dos filhos;

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Pouca divulgação das diferenças entre guarda compartilhada e guarda


alternada considerando que a doutrina e jurisprudência nacional não referendam
esta última;

A imposição da guarda compartilhada – mesmo não havendo consenso ou


vontade dos pais – pode ser vista como mais uma intervenção do Estado em
certas escolhas da esfera íntima da vida familiar e acirrar ainda mais o nível de
conflito. Nesse sentido questiona-se se o Poder Judiciário deve ter a incumbência
de dirimir as divergências entre os genitores em relação à condução da vida
cotidiana dos filhos;

Pais que buscam a guarda compartilhada para evitar a mudança dos filhos
para outros estados e até mesmo para o exterior e não com o objetivo de
compartilhar responsabilidades e ter maior participação no cotidiano de sua prole;

Nem sempre atende ao melhor interesse dos filhos. A imposição do


modelo não leva em consideração as peculiaridades de cada caso, atribuindo
prioridade ao modelo e não ao interesse particular de cada criança;

A imposição do modelo sem análise interdisciplinar de cada caso (serviço


social e psicologia) gera o risco de causar danos a quem se propunha proteger –
a criança e o adolescente – contrariando o princípio de seu melhor interesse; e

A guarda compartilhada é de fato uma modalidade muito eficaz, mas não


pode ser usada como a única solução para a concretização dos direitos de filhos
de pais separados.

A questão das visitas também não está contemplada na legislação e pode


causar desencontros e desentendimentos entre os genitores de modo a
desorganizar a vida dos filhos. A questão das visitas também não está contemplada
na legislação e pode causar desencontros e desentendimentos entre os genitores de
modo a desorganizar a vida dos filhos.

Por fim, se for decidido pela guarda compartilhada pode se avaliar a


necessidade de estabelecimento de pensão, uma vez que quanto ao total
compartilhamento culturalmente ainda está bastante distante da nossa realidade.
Observa-se ainda que não se pode deixar de avaliar que há uma questão de corte
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de renda nessa situação, sendo que as disputas mais acirradas de


compartilhamento da guarda envolvem questões econômicas, com prejuízos
financeiros aos extremos das classes sociais.

Ressalva-se como avanço da Lei 13.058/2014 o artigo 1584 § 6º, que se


refere à obrigação de qualquer estabelecimento público ou privado de prestar
informações aos pais sobre seus filhos, em qualquer modalidade de guarda. Cabe
destacar que não raro escolas se recusam/recusavam a prestar informações ao
genitor não guardião.

A questão da guarda compartilhada, como explicitado, transcende inúmeros


aspectos. Atentos aos aspectos históricos, a alteridade de dinâmicas, as
concepções, ao aparato jurídico e as relações estabelecidas, tem-se um imenso
desafio: possibilitar aos pais e filhos a proteção e garantia de seus direitos,
compartilhando cuidados e ao mesmo tempo ter esta lei que não pode ser aplicada
indistintamente, pois pais e mães podem dispor de desejos e condições distintas no
exercício da coparentalidade.

GUARDA DOS FILHOS - MULTIPLICIDADE DE DESAFIOS

A separação do casal pode representar uma saída emocionalmente saudável,


se os cônjuges estão infelizes e decidem caminhar para uma solução que lhes
permita dar um sentido significativo a suas vidas. Se por um lado representa o alívio
por uma situação emocional insustentável, por outro não se faz sem um alto custo
para todos os envolvidos.

Ela representa a perda da convivência diária com pessoas significativas e da


família idealizada, das rotinas a que se está habituado, o sentimento de fracasso e
impotência, acompanhado de depressão e baixa da autoestima. Trata-se de um
processo psicológico comparável às outras perdas de alto estresse, como a de um
familiar próximo, gerando igual processo de luto com as fases correspondentes de
elaboração.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os genitores terão, dali em diante, que construir uma nova identidade, mudar
sua organização diária e padrão econômico, muitas vezes, tornando-se novamente
dependentes dos pais. Para muitos, é acrescido a culpa pela decepção causada
diante das expectativas da família de origem, o sentimento de solidão e raiva, a
insegurança diante do novo.

É neste turbilhão emocional que as crianças se situam na separação, que as


atingirá de forma diferente conforme a dinâmica familiar, a faixa etária, as figuras de
apego e os tutores de resiliência.

Por mais que possa ser aparentemente amigável, a separação se assenta


numa situação de frustração e quando os ex-cônjuges partem para uma demanda
judicial, o diálogo está ausente e os recursos psicológicos que mobilizariam a
solução do conflito, esgotados.

Os profissionais que trabalham no judiciário, frequentemente refletem que no


aspecto psicológico, não há como se falar num verdadeiro compartilhamento da
guarda, quando se chega a uma disputa judicial. Pontuamos que os ex-cônjuges se
mobilizaram para contratar advogados, submeterem-se a entrevistas que
devassarão sua vida particular, expondo familiares e entregando a um terceiro
estranho, as decisões sobre seus próprios filhos. Deduzimos então, que todo este
gasto emocional e material, não se faz numa base de cooperação e neste caso,
como compartilharão, sem o diálogo.

É evidente que as crianças e adolescentes se beneficiariam muito de seus


pais serem capazes de discernir conjugalidade de parentalidade e poderem dar
exemplo adulto de administrar conflitos, preservando o vínculo e a imagem um do
outro para os filhos. É neste sentido a sinalização de que a guarda compartilhada
seria realmente o melhor para a família, resta saber, em que medida esta é a guarda
possível.

O foco da intervenção profissional no judiciário é o bem-estar da criança,


denominado, o “melhor interesse da criança.” Mas, de que as crianças precisam?

As necessidades infantis são variáveis de acordo com sua faixa etária e sua
história e personalidade individuais. Afeto e segurança são, certamente,

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

fundamentais. As figuras de apego também mudam no decorrer da vida da criança,


ora tendendo para a mãe, ora para o pai, ou avós, padrinhos, sem que isto
represente a anulação da importância das pessoas significativas. Por exemplo, é
comum que um adolescente sempre apegado à mãe, sinta necessidade de morar
com o pai na adolescência, isto não precisaria ser levado internamente como
rejeição e perda, pela mãe.

Durante o desenvolvimento, passamos pelas chamadas “crises”, períodos de


turbulências decorrentes do crescimento físico e psicológico, gerando mudanças que
fazem parte da vida, embora sejam períodos conturbados. Segundo Françoise Dolto
(Etapas decisivas da Infância, pg 218):

[...] por volta dos seis meses, a idade dos primeiros dentes, seis a dez
meses, a idade do desmame, quinze a dezoito meses, a idade da
locomoção, três a quatro anos de idade, a fase dos primeiros contatos
sociais, sete a oito anos, a chamada idade da razão, que corresponde aos
juízos morais pessoais referentes às intenções dos atos- independente de
seus efeitos- e a idade de discriminação nítida entre sonho (estará um dia,
completa esta discriminação?), enfim, doze, treze anos, a idade da
formação púbere [...] a criança não nasce boa, nem má, aliás. Ela nasce
com necessidades de viver nos diversos planos: os instintos, a afetividade,
o psiquismo, e com uma aspiração de todo seu ser para o absoluto.

Concluímos então, que atender o melhor interesse da criança não se trata de


buscar sua satisfação e prazer e sim, conduzi-la ao seu crescimento integral (físico,
social e emocional) e das melhores condições de desenvolvimento de suas
potencialidades.

Independente da faixa etária, na fase de separação dos pais, um filho


necessita de algumas condições básicas para prosseguir sua caminhada em direção
à maturidade:

- a garantia de que não é responsável pelo rompimento da relação de seus


pais, nem necessita compensá-los pelo sofrimento.

- a segurança de que continuará sendo amado por ambos os genitores.

- a liberdade interna e externa para continuar afetivamente ligado a ambos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- o direito de conviver com os irmãos e pessoas significativas de ambas as


linhagens.

- não ser usado como substituto na vida amorosa dos pais.

- isenção, em sua educação, de chantagens emocionais e seduções que


comprometam a manutenção dos limites e regras.

- a manutenção, na medida do possível, de suas rotinas e grupos de amigos.

- o fornecimento de condições materiais de sustento.

- compreensão de que a separação é opção e responsabilidade dos pais, da


qual não participa.

- o sentimento que foi gerado numa relação amorosa, apesar de um


rompimento posterior e que tem pais dignos de serem honrados.

A síndrome de alienação parental é uma questão ainda polêmica; a aliança da


criança, ou adolescente com um dos genitores e suas consequências, é facilmente
identificável pelo técnico. Porém, a culpabilização, em forma de lei e consequente
punições, ainda é um desafio para os profissionais porque se trata de dinâmicas
complexas e não passíveis de serem reduzidas a culpados e inocentes. Na
maratona dos laudos técnicos, muitas vezes, é esperado pelos advogados, juízes e
partes, que o profissional se posicione nesta direção, apontando o responsável
direto pela situação criada.

Além disto, a sentença judicial pode sinalizar, mas não garante a quebra da
resistência da criança, ou dos genitores, ao restabelecimento da convivência. A
desconstrução da alienação parental é um grande desafio para o profissional, pois
extrapola o enquadre da atuação do perito, que se vê às voltas com visitas
assistidas, quando os recursos judiciários falham.

Em situações cristalizadas, onde se esbarra na grande dificuldade da criança


no contato com um dos genitores, é necessário avaliar até onde se pode ir sem
prejudica-la ainda mais. A pressão sobre a criança , quando o encontro é forçado
pelo judiciário, acaba por retirá-la da zona de conforto e expô-la à ansiedade e

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estresse, visto a confusão de sentimentos e a insegurança sobre como deve se


portar no conflito de lealdade.

Por outro lado, deixar a ela o poder de decisão sobre o afastamento, é um


pesado encargo, visto que ela não tem maturidade para uma opção que pode
implicar na exclusão de um dos genitores de sua vida, com todas suas
consequências.

Quando é possível ao setor técnico uma postura flexível e compreensiva, se


há condições de levar as partes a refletirem e cooperarem em função da criança, a
atuação leva a um ganho significativo. Porém, esta não é a regra, visto que os
litigantes estão frequentemente dispostos a imporem seus próprios pontos de vista e
não acreditam numa solução conciliatória, além de que, o enquadre do judiciário não
é propício a este tipo de intervenção.

Há ainda, participações nos relatos que a criança cria por si mesma, não é
necessariamente, um discurso implantado pelo alienador.

O que mais se observa em nossa prática, é que as soluções impostas de


forma autoritária, têm menor chance de terem sucesso. A melhor possibilidade é
quando existe a crença de que uma opção menos conflituosa seja o melhor para
todos, especialmente, para os filhos. Além disto, compartilhar exige algum tipo de
recurso interno, pois há pessoas que não conseguem empatia e se sentem muito
ameaçadas pela possibilidade de ceder. Se a postura habitual diante da vida, é o
egocentrismo e a incapacidade de considerar o ponto de vista e necessidades do
outro, será bastante difícil uma posição mais flexível nos assuntos concernentes aos
filhos e ex-cônjuge na separação. Neste caso, não será uma determinação judicial
que modificará a forma de agir, ao contrário, poderá exacerbar o conflito.

Há muitas dificuldades na atuação profissional para caminhar para soluções


conciliadoras, quando se é um perito do judiciário, a começar pelo enquadre da
relação com o técnico, que é diferente de uma relação de ajuda de uma
psicoterapia, por exemplo. A atuação dos advogados se faz na valorização do litigio
e do ganha e perde e, infelizmente, colaboram com frequência para a manutenção
da disputa.

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O profissional pode e deve estimular reflexões que possam levar à


flexibilidade de posturas dos litigantes e maior abertura para soluções pacíficas.
Quando o conflito está cristalizado e enrijecido, há limites a estas intervenções e a
demora habitual do judiciário no atendimento da demanda acaba por colaborar para
esta cristalização do litigio.

As alternativas a estes problemas representam grandes desafios; certamente,


o trabalho pré-processual seria mais eficaz, do que a fase de pericia para a
cooperação entre as partes. Seria preciso capacitar melhor as pessoas que atuam
como mediadores e apresentar projetos que possam contribuir para a escuta dos
litigantes e uma reflexão inicial, antes de partir para a disputa. Embora utópico,
haveria necessidade da rede de proteção social incluir o trabalho com as famílias na
fase de elaboração das separações e até, a aproximação da criança, ou
adolescente, com o genitor excluído na separação.

Temos a considerar que a guarda compartilhada é uma lei recente, que


aponta para uma mudança cultural, transformações que constituem um processo.
Acreditamos que o desenvolvimento humano aponta para a cultura da paz, do
respeito à diversidade e à tolerância. Porém, não sabemos se é este o rumo que
será tomado, haja vistas a discussão recente sobre indícios de uma tendência dos
países desenvolvidos ao isolacionismo. A saída da Inglaterra da União Européia e a
eleição do novo presidente americano estão suscitando discussões pessimistas
sobre os caminhos da humanidade.

Porém, dentro do judiciário brasileiro, neste momento, há uma tendência ao


alinhamento ao que denominamos Cultura da Paz, saindo de uma posição dualista
de ganha e perde, característica das disputas judiciais, para soluções mais
integradoras. Observamos a valorização dos laços afetivos, a busca pela Justiça
Restaurativa, a procura por soluções conciliatórias nas Varas de Família, com
iniciativas e projetos interessantes, como é o caso das Oficinas de Parentalidade.

Trata-se de um movimento, uma tendência, que se encontra longe de ser uma


realidade objetiva de nossos dias.

O compartilhamento guarda no termo, uma indicação de igualdade, afinidade,


mas é necessário considerar que compartilhar exige o respeito às diferenças e a
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integração do que opiniões diversas, é o caminhar na diversidade. Compartilhar não


necessariamente significa igualdade, da mesma forma que a Justiça.

415
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014.

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compartilhada. G1. São Paulo, 23/12/2014

DOLTO, Françoise. Etapas decisivas da Infância.

GOMES, Denise M. Tutores de Resiliência da família. In Manual de Terapia Familiar


Vol II.Org OSORIO, L C, VALLE; M.E.P. 2011 São Paulo: Artemed, 2011.

GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda Compartilhada – Um novo modelo de


responsabilidade parental. 8 ed. Revista dos Tribunais, 2016.

GROENINGA, Giselle Câmara. Artigo: Guarda Compartilhada e relacionamento


familiar - algumas reflexões necessárias.

GROENINGA, Giselle Câmara. Artigo: Guarda Compartilhada: a efetividade do


poder familiar - algumas reflexões necessárias.

GUIMARÃES, Ana Cristina Silveira Guimarães e GUIMARÃES, Marilene Silveira.


Artigo: Guarda – um olhar interdisciplinar sobre casos judiciais complexos.

GUIMARAES, Ana Cristina Silveira; GUIMARAES, Marilene Silveira. Guarda – um


olhar interdisciplinar sobre casos judiciais complexos. In: Aspectos Psicologicos na
Prática Jurídica Zimerman, Org David, COLTRO; Antonio Carlos Mathias. Ed
Millennium.

416
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

KEHL, Maria Rita. Em defesa da família tentacular. Artigos e Ensaios. 2003

MULTEDO, Renata Vilela e ALMEIDA, Vitor. Artigo: Guarda Compartilhada: entre o


consenso e a imposição judicial.

MURARO, Rose Marie, BOFF, Leonardo. In: Feminino e Masculino. 5 ed. Sextante.
2002.

OLIVEIRA, José Antônio Cordeiro de. Monografia: Guarda Compartilhada:


vantagens e desvantagens de sua aplicabilidade.

OSORIO, Luiz Carlos. Novos rumos da família na contemporaneidade. In: Manual de


Terapia Familiar Vol II. São Paulo: Artemed, 2011.

ROSA, Conrado Paulino da. Nova Lei da Guarda Compartilhada. São Paulo:
Saraiva, 2015.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES E OS


REBATIMENTOS NA PRÁTICA PROFISSIONAL DOS
ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - DRACENA


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
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COORDENADORAS

Angela Maria de Carvalho Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Junqueirópolis
Cristiana Kuniko Urahama Iwama – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Dracena

AUTORAS

Danielle Regina Possibon Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Adamantina
Elisandra Murer Fruchi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Dracena
Fátima Vidotte Ferrari – Assistente Social Judiciário – Comarca de Adamantina
Jeise Cristina Alves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tupi Paulista
Josy Ferreira Primo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pacaembu
Lizandra Belloni de Paula Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Dracena
Marta Ritshuko Mori Kanno – Assistente Social Judiciário – Comarca de Panorama
Priscila Alves Matos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Flórida Paulista
Regina Furtado Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pacaembu
Rosângela Vieira de Aguiar do Vale – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Adamantina

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INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta algumas reflexões acerca do cotidiano e prática


profissional dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo.
A percepção da crescente intervenção do Poder Judiciário nas relações
humanas trouxe o conceito da Judicialização para o espaço de estudo.
O debate percorreu inicialmente sobre a judicialização de uma forma geral e
suas manifestações33 recorrendo a diversos autores que abordam a temática em
questão.
Diante da diversidade apresentada e a partir do levantamento estatístico
realizado nas Comarcas representadas neste grupo definiu-se como objeto de
estudo – a Judicialização das Relações Familiares – tanto no que se refere às
construções históricas e contexto das (re) configurações da família, quanto nas
demandas apresentadas à intervenção e a realidade do trabalho dos profissionais,
limites e possibilidades da atuação dos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários
frente à judicialização das relações familiares.

1. JUDICIALIZAÇÃO

A judicialização, de uma maneira simplificada, pode ser definida como o


acionamento excessivo do Judiciário para resolução dos diversos conflitos das
relações humanas.
O fenômeno da judicialização da vida, na contemporaneidade, pode ser
compreendido como o movimento de regulação normativa e legal do viver, em que
os sujeitos se apropriam para a solução dos conflitos cotidianos. Assim, o Poder
Judiciário legitima seus modos de operação reproduzindo-se o controle, o
julgamento e a punição das condutas, justificando tais ações na inviolabilidade dos
direitos, do melhor interesse, proteção e bem-estar de algumas vidas.

33
Judicialização da vida, da questão social, da pobreza, da saúde, da educação, do ativismo judicial,
dos conflitos, da política, das relações familiares.
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Fabris (2016, p. 01-02), na obra Pela não Judicialização dos Conflitos,


ressalta:

[...] Na realidade, parece existir um movimento de judicialização do cotidiano


representado pela formulação de pedido de ajuda à resolução de conflitos e
demandas do dia a dia por meio da utilização de procedimentos que visem
obtenção de uma decisão judicial.

As decisões que repercutem em toda sociedade estão sendo decididas por


órgãos do Poder Judiciário, o que não é comum, já que tradicionalmente compete às
instâncias políticas como o Congresso Nacional e o Poder Executivo, surgindo,
assim a questão: estaria o Poder Judiciário invadindo o que é da função do Poder
Legislativo?
Para Ruscheinsky, Aloisio; Demari, Melissa (2015, p. 352-353):

[...] O fenômeno da judicialização é observado na grande recorrência de


demandas sociais, dirigidas contra o Estado/Executivo, para sanar a
omissão estatal na efetividade de direitos sociais. Contudo, a judicialização
não tem sido observada apenas em demandas dos indivíduos contra o
Estado ou grandes corporações financeiras, mas também, em relação às
demandas interpessoais.

É sabido que não compete ao Judiciário instituir lei, porém, uma vez não
garantido ao cidadão a efetividade dos seus direitos básicos para desenvolvimento
de sua vida, o Poder Judiciário tem o dever de apreciar as questões levadas a ele
mediante a imposição de guarda da Constituição Federal.
Segundo o jurista Luís Roberto Barroso (2008), no artigo Ano do STF:
Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática:

A judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema


de controle de constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que
permitem que discussões de largo alcance político e moral sejam trazidas
sob a forma de ações judiciais. Vale dizer: a judicialização não decorre da
vontade do Judiciário, mas sim do constituinte.

1.1 JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES

Numa atenta análise da contemporaneidade, é possível compreender que as


mudanças ao longo dos anos, como os avanços tecnológicos, as transformações no

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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campo político, na esfera do trabalho, entre outros fenômenos, irradiam seus efeitos
em todas as dimensões da vida humana, sejam elas físicas, psíquicas ou sociais.
Assim, as relações entre os indivíduos também vão sendo transformadas,
inevitavelmente eclodindo nas dinâmicas familiares, alterando suas formas de
convivência, organização, conforme o contexto em que estejam inseridas.
A exigência do trabalho externo feminino, a dissociação de papéis
(historicamente definidos), são alguns exemplos de acontecimentos que trouxeram
também novos valores, um processo de individualização do sujeito, busca pela
igualdade dos sexos, etc.

[...] os confrontos entre os sexos surgidos com a destradicionalização da


família emergem fundamentalmente na vida em comum, têm seu cenário de
disputa na cozinha, na cama, e no quarto das crianças. Seu ruído de fundo
e seu signo são as eternas discussões sobre a relação ou a muda
confrontação no casamento; refugiando-se na solidão e refugiando-se dela;
perdendo a confiança no outro, que de repente já não se pode
compreender; sofrendo com a separação; deificando as crianças; lutando
por uma porção de vida própria, que deve ser arrancada ao outro e, ainda
assim, com ele dividida; percebendo a opressão no ridículo do dia a dia; a
opressão que se é para si mesmo. Dê a isto o nome que se queira:
‘entrincheiramento dos sexos’, ‘recuo à subjetividade’, ‘era do narcisismo’.
Este é precisamente o modo pelo qual uma forma social – a trama
estamental da sociedade industrial – implode no âmbito privado [...] (BECK,
2010, p. 163).

O aumento da complexidade da vida moderna revelou a vulnerabilidade da


instituição família, e ao mesmo tempo a fragilidade das relações familiares, na
dificuldade de seus membros em cumprir seu papel conjugal, provedor e protetivo.
A ausência ou fragmentação das políticas públicas também são responsáveis por
essa fragilização.
Dessa forma, os indivíduos vêm buscando cada vez mais a intervenção
Estatal para auxílio da resolução de seus conflitos familiares, o que tem levado à
judicialização das relações familiares.

O Judiciário se tornando o centro das transformações em curso da família,


na medida em que nele desembocam todas as questões comportamentais
controversas da contemporaneidade. Esse fenômeno se caracteriza por
uma maior abrangência do poder do Estado na regulação do convívio
familiar e vem sendo denominado de “judicialização das relações familiares”
(ANTUNES, 2010, p. 60).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os litígios de família têm sido cada vez mais levados à apreciação judicial, e
na verdade, percebe-se que esse aumento progressivo nas Varas de Família é
intrínseco à ideia da busca pela garantia de direitos, amplamente difundida na
sociedade atual.

... Na realidade, parece existir um movimento de judicialização do cotidiano


representado pela formulação de pedido de ajuda à resolução de conflitos e
demandas do dia a dia por meio da utilização de procedimentos que visem
obtenção de uma decisão judicial (FABRIS, 2016, p. 01-02).

O Grupo fez um levantamento estatístico em suas Comarcas no decorrer do


primeiro semestre de 2016, cujo resultado obtido, dentre as demandas
encaminhadas aos setores técnicos, foi o aumento (unânime) da disputa de guarda
(varas de família), como consequência de divórcios e dissolução de uniões estáveis.
A grande questão a ser refletida pelos setores técnicos: A intervenção Estatal se
mostra suficiente para atender as reais necessidades dos envolvidos?

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2. AS (RE) CONFIGURAÇÕES DAS RELAÇÕES FAMILIARES

Pensar na judicialização das relações familiares nos leva a olhar para a


família, procurando compreender como esta se encontra constituída e qual sua
dinamicidade na contemporaneidade.
É sabido que a família, historicamente, ocupa um papel de destaque na
organização do sistema social. Suas transformações resultam dos diferentes
contextos: social, político, econômico, científico (pílula anticoncepcional,
inseminação artificial, exame de DNA) e cultural, apresentando ao longo dos
séculos, características e significados variados que exprimem as formas dos sujeitos
experimentarem o mundo. Motivando a busca pela compreensão dos novos arranjos
familiares existentes na contemporaneidade, abrangendo sua individualidade, os
novos papéis e a diversidade de parentescos de seus membros.
De acordo com os referenciais estudados, há formas distintas de aludir as
fases evolutivas da família, seja no contexto brasileiro ou em esferas mais amplas.
Destaca-se o termo “família tradicional” para expor um padrão construído
inicialmente pela valorização e perpetuação da linhagem, manutenção do patrimônio
e o poder do patriarca sobre os demais membros.
Após intensas rupturas e modificações, a afetividade e o cuidado mútuo
passaram a compor as relações familiares e os membros a ocuparem espaços e
funções mais flexíveis no âmbito privado, resultante de modificações societárias. Se
antes a família se mantinha pela consanguinidade e pela força do sobrenome, pela
preservação dos bens patrimoniais, hoje já não reflete a realidade social na qual
vivemos, tornando-se um padrão arcaico e pouco contemplativo das necessidades
atuais. Nota-se na contemporaneidade uma diversidade de arranjos familiares, que
se fundamenta, se justifica e se entrelaça pelos vínculos de afeto e de afinidade.
Nesse sentido, a família contemporânea é formada por pessoas que se unem
tanto mais pelo sentimento de pertencimento social do que propriamente pelo grau
de parentesco que apresentam.
Da mesma forma que as configurações mudaram ao longo dos anos, o IPEA -
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, divulgou em setembro de 2008 que o
formato da família brasileira está se diversificando, o papel de cada membro familiar
também sofreu alterações – o homem, outrora provedor único e exclusivo, transita

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

com mais leveza pelo ambiente doméstico, auxiliando a mulher nos cuidados com os
filhos e na execução das tarefas domésticas. Já a mulher, depara-se com as
diversas jornadas de trabalho, entretanto, com maior autonomia para circular por
outras esferas que não seja a privada, na qual por muito tempo ficou aprisionada
socialmente.
Nesta perspectiva, homens e mulheres não têm um lugar definido e ambos
podem circular por todos os espaços possíveis, cabendo-lhe neles, na medida em
que a sociabilidade humana se abriu para novos paradigmas, ousando romper as
muralhas do moralmente correto e das convenções sociais ditadas pela ordem
burguesa.
Vale ressaltar que há, ainda, um longo caminho a percorrer, principalmente na
questão da liberdade de gênero. Pois embora sejam inegáveis os avanços
conquistados, a partir dos movimentos sociais de luta e da organização política, as
relações enfrentam os resquícios desiguais decorrentes do conservadorismo e da
cultura do machismo que insistem em atravessar o direito à igualdade entre as
pessoas.
No contexto brasileiro, as novas formas de organização familiar são oriundas
das modificações contínuas na realidade e transcorrem territórios e limitações, neste
sentido Kowalski (2007, p.21) complementa com a ideia de que:

Os modelos e as formas de organização dos arranjos familiares estão


diretamente ligados ao modelo de produção econômica, à influência do
patriarcado na estrutura cultural, social e no processo de inclusão da mulher
no mercado de trabalho. No Brasil, a família se constitui e é influenciada por
essas mudanças. No entanto, há particularidades que não podem ser
generalizadas a outras conjunturas e outras culturas (...).

O processo de (res) significação do conceito de família brasileira repercute


nas legislações, as quais, aparentemente, têm procurado se adequar à realidade
vigente, instituindo alterações significativas que vão desde o reconhecimento da
união conjugal de pessoas do mesmo sexo, com direito de adotarem crianças e
adolescentes à validação da filiação socioafetiva e multiparental.
Nessa toada, destaca-se o papel preponderante do Poder Judiciário na
garantia e na efetivação de direitos, tendo na atualidade o desafio de dar respostas
às questões de família, que outrora não eram levadas ao conhecimento do poder

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

público, sendo resolvidas na esfera da vida privada e que nos dias atuais tem sido
cada vez mais publicizadas e regulamentadas.
As demandas de Família são variadas, de diversas naturezas, contudo, o
presente artigo voltará sua atenção para a guarda de filhos e aos aspectos a ela
inerentes.
A escolha pela guarda não foi aleatória, pelo contrário, resultou de uma
pesquisa quantitativa realizada junto às comarcas, conforme citado anteriormente.
No contexto das relações familiares contemporâneas a rapidez com que as
uniões conjugais se iniciam é a mesma de quando chegam ao fim. Segundo dados
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE (2014, p.50), o número de
divórcios no Brasil cresce a cada ano, indicando a efemeridade das relações.

A elevação sucessiva, ao longo dos anos, do número de divórcios


concedidos revela uma gradual mudança de comportamento da sociedade
brasileira, que passou a aceitá-lo com maior naturalidade e a acessar os
serviços de Justiça de modo a formalizar as dissoluções dos casamentos.

Os litígios envolvendo guarda de filhos não são determinados pelo tempo de


duração dos casamentos e sim pela qualidade das relações empreendidas na
constância da união – se a relação conjugal era desprovida de comunicação
assertiva, de respeito e confiança mútua e se o exercício da parentalidade era
unilateral mesmo durante a sociedade matrimonial, os resquícios disso tendem a se
potencializar com o rompimento do relacionamento.
Vê-se que a maior dificuldade dos genitores é discernir conjugalidade de
parentalidade, sendo que a sociedade conjugal se encerra, mas a relação de
parentalidade se estende para além dela. Ribeiro (apud Souza 2010, p.21)
complementa que:

Embora tenha havido a separação de fato do casal, não foi efetuada a


separação emocional. O ex-casal continua vivenciando sentimentos de
raiva, traição, desilusão com o casamento, e uma vontade consciente, ou
não, de se vingar do outro pelo sofrimento causado. Os filhos, por vezes,
são envolvidos no conflito como uma forma de atingir o ex-companheiro, o
que acaba contribuindo para a manutenção do litígio.

Quando conjugalidade e parentalidade ficam fusionados, aparentando


unicidade, os rebatimentos disso recaem sobre os filhos que se tornam alvo de
disputa dos pais, como prêmio a ser conquistado com exclusividade integral, não
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sendo possível sob essa ótica, compartilhar a guarda e as responsabilidades a ela


inerentes. Nessa perspectiva, o papel denota valor maior que os laços de
parentesco e de afetividade, como se o documento legitimasse a relação materno-
filial e/ou paterno-filial e não o seu inverso.
Na medida em que os conflitos não conseguem ser dirimidos no particular,
porque não há acordos que caibam na lógica dos litigantes, estes são levados a
público para serem julgados pelos tribunais e nessa esfera de justiça o magistrado
desempenha papel central e dele se espera soluções mágicas e rápidas.
As respostas oriundas da esfera judiciária, na maioria das vezes, não
contemplam os anseios da população que nela confiam, no entanto, recorrer à
Justiça para sanar assuntos familiares tem se mostrado a única possibilidade de
resolução da lide, não vislumbrando outros meios.
Isso evidencia a fragilidade das políticas públicas voltadas para a família no
contexto dos litígios, como também, sinaliza para a judicialização das relações
familiares.

3. LIMITES E POSSIBILIDADES DA ATUAÇÃO DO SETOR TÉCNICO


FRENTE À JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES

A competência para cada categoria profissional que forma a equipe técnica no


campo Judiciário é preestabelecida por normativas internas e as incumbências
inscritas são dadas na perspectiva hierarquizada. A partir disso, os profissionais
desenvolvem suas atribuições de maneira subordinada a outros profissionais, o que
constitui, sobretudo, uma hierarquização de saberes.
Os profissionais são desafiados a resistir à tensão institucional no campo
jurídico, que conota um ambiente de caráter autoritário, disciplinar e controlador de
ações.
De acordo com FÁVERO, et. al.:

O conhecimento atualizado e consistente do projeto profissional, posto pelo


referencial ético-político, teórico-metodológico e técnico-operativo de cada
área, impregna fortemente o agir profissional, da mesma forma que o
distanciamento desse projeto. Assim, conforme o nível de envolvimento e
de compromisso assumido pelo profissional com a questão e debates posto

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pela profissão na contemporaneidade, ele pode definir os objetivos para


uma ou outra direção, como por exemplo, para o compromisso com a
defesa, ampliação e garantia de direitos, como para o controle, de cunho
disciplinar e normatizador, de comportamentos considerados desviantes de
convenções moralizantes (2015, p. 123).

Ainda segundo FÁVERO (idem, p.124), “inexiste atualmente um projeto


institucional amplo, de investimento organizado nas instâncias nas quais o
assistente social e o psicólogo atuam majoritariamente”, sendo que os espaços e
ações disponibilizados ao aprimoramento profissional dependem da postura e visão
do magistrado.
Assim, cabe aos técnicos do Judiciário apresentarem através de sua
criatividade e “fazer-saber” materializadas nos Laudos e Pareceres, práticas que
possibilitem descortinar a moralidade dos discursos do “não-dito”, buscando tecer
ações que ancorem os processos de mudanças que se refletem nas relações
familiares, bem como interagem com as estruturas sociais, econômicas, políticas e
culturais, nas quais as famílias e suas relações se configuram na dinâmica entre a
esfera pública e os espaços da vida privada.
De tal modo, tornou-se evidente a necessidade dos profissionais promoverem
e ampliarem seu foco de atuação em direção às políticas públicas existentes, as
ações preventivas que sejam fora do espaço institucional jurídico e que possibilitem
aos sujeitos das relações familiares alcançarem direitos aclamados na esfera pública
de forma mais justa e equânime. Isso também supõe compreender o cotidiano
profissional em suas contradições e conflitos institucionais, de forma a perceber
possíveis mediações e estratégias que possam contribuir para um aprofundamento
do compromisso ético-político profissional.
Igualmente, o Poder Judiciário, ao resolver as situações meramente através
de mecanismos regulatórios do processo judicial em si, não alcança a complexidade
das desavenças, dos ressentimentos e das insatisfações dos sujeitos em suas
relações.
A questão da morosidade no Judiciário encontra-se também como desafio a
ser enfrentado pelos profissionais que atuam neste campo. A lentidão e o volume de
processos acumulados nesta esfera reduz a possibilidade do agente técnico
fornecer respostas ágeis às demandas por garantia de direito. Contribui para

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

dificultar o andamento e o encaminhamento das necessidades dos sujeitos, criando


uma crise na instituição e acirra os conflitos das relações familiares.
Os conflitos vivenciados na esfera privada são entendidos pelos operadores
do direito como falhas ou incapacidades dos indivíduos de resolverem suas
situações particulares. Dessa forma, não só se pratica a violência como também
viola-se direitos básicos.

Sob a justificava de humanização do sistema jurídico, leis e processos


passam a regular danos, afetos, interferências, humilhações. Entretanto,
temos percebido que essa humanização pretende garantir o bem estar e a
proteção dos direitos individuais é a mesma que perpetua uma lógica
punitiva, enquadrando algumas vidas no banco dos réus.
Contraditoriamente, em favor do ser humano e de seus direitos, clama-se
por mais intervenções jurídicas, práticas de controle, encarceramento e
punição, alimentando a judicialização de nossas vidas e “fazendo de cada
um de nós que aceita essa condição ora juiz, ora acusador, algoz e vítima”.
(AUGUSTO, 2009, p.13)

A justiça é um sistema que ritualiza e distribui a palavra, conforme o lugar


estabelecido e lugar das provas para decisão da autoridade. O peso do discurso
depende do peso do poder de quem fala. Que poder tem o louco, o velho, a criança,
a mulher? A fala da defesa e as falas da acusação são incluídas ou excluídas,
segundo esses critérios, da realidade dos sujeitos ou seus discursos. Assim, o papel
do profissional psicossocial, no paradigma da disputa, é o de fornecer ao juiz
elementos para que se produza o processo de uma viabilização de equivalências de
falas e provas dos contendores.
Essa intervenção esbarra nas condições de funcionamento da própria justiça,
no seu jogo de poder e também nas dificuldades da família, na falta de
infraestrutura, na burocracia e na falta de alternativas ao Poder Executivo. Há, ainda,
a ausência de articulação com a comunidade no enfrentamento dos conflitos e
também de condições estruturais próprias do sistema capitalista para enfrentar
situações como o desemprego, a precarização do trabalho, a expulsão do campo, a
miséria e a pobreza.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

O estudo da temática Judicialização das Relações Familiares possibilitou


apreender que as transformações societárias tiveram um impacto na instituição
família, no tocante ao desempenho de seu papel conjugal, provedor e protetivo.
Constatou-se que a ausência e fragmentação das políticas públicas
acentuaram a fragilização das relações familiares. Nesse sentido, os sujeitos
passaram a recorrer cada vez mais ao Judiciário para a resolução de seus conflitos
e garantia de direitos.
Nas Varas de Famílias, conforme levantamento realizado pelas profissionais
do grupo, tal judicialização se manifestou prioritariamente na grande demanda de
processos de disputa de guarda como consequência do aumento de divórcio e
dissolução de união estável e da transferência de demandas da esfera privada para
outras instâncias.
Nesse contexto, torna-se também conflituosa a relação entre o psicossocial e
os outros operadores do direito e das políticas sociais, pois ainda inexiste uma visão
estruturada do trabalho em redes, devido à fragmentação dos poderes do Estado e
das atividades do Poder Executivo. Existe muitas vezes um descompasso entre a
ordem jurídica, o ordenamento político e as relações sociais. O psicossocial precisa
levar em conta essas três dimensões em sua atuação no Poder Judiciário, ou seja,
tanto a legalidade, como os dispositivos das políticas públicas e as condições de
vida dos sujeitos e suas relações de conflito. Essas dimensões estão estruturadas
por relações econômicas e de poder, além de suas implicações culturais e
ideológicas.
Compete aos profissionais técnicos atuando em demandas de família uma
atividade de cunho avaliativo e de subsídio aos juízes, indicando possibilidades de
solução da questão apresentada pelo litígio judicial. Será através de uma escuta
diferenciada que direcionará questões conflituosas às conclusões mais adequadas e
justas. Essa instrumentalidade técnica dota o profissional com um saber que
permeia sentidos de poder, possibilitando intervir e contribuir de forma mais
contundente na decisão final do processo que se faça necessária a sua atuação.

430
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A superação de limites supõe o estabelecimento de atitudes críticas da parte


dos profissionais, enquanto agentes éticos, de avançarem em suas práticas, no
compromisso com a democracia, com as demandas das relações familiares, na
garantia da efetivação dos Direitos Humanos e na construção de uma sociedade
justa e igualitária.

431
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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SOLU+%E7+%F2ES%D4%C7%D8%20-%20Trabalho%20completo.pdf> Acesso
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433
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

GUARDA COMPARTILHADA E ALIENAÇÃO PARENTAL –


NAS TRAMAS DAS RELAÇÕES SOCIAIS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - FRANCA

“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2016

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COORDENADORAS

Ana Maria Alves da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca


Flávia Peres Fernandes – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca

AUTORES

Abigail Aparecida de Paiva Franco – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Franca
Ariadne Pedrosa de Macedo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca
Cássia Beraldi Lucas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Cláudia Regina Borges – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Cristiane Barbosa Rezende – Assistente Social Judiciário – Comarca de Batatais
Danila Carrijo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Denise Jesuína Faria Tostes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Josiane Avelar Saborito Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Keila Rezende Cunha – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca
Leandro Soares da Silva – Psicólogo Judiciário – Comarca de Franca
Maria Cecília Nogueira Audi - Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Maria Helena de Oliveira Borges – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Maria de Lourdes Trova Cuba – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Marina Pereira Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará
Mariscler Regivane da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Morro Agudo
Mateus Beordo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará
Michelle Barbosa de Oliveira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Franca
Monica Cássia Fonseca Gimenes – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Franca
Pauliane Thereza Cardoso – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Raquel Renzo da Silva Pequiá – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Valéria de Senne Badaró – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca
Vanessa de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Altinópolis

435
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INTRODUÇÃO

O ano de 2016 marca a criação do Grupo de Estudos Família de Franca/SP, o


qual surgiu da movimentação dos profissionais da Comarca, na perspectiva da
criação de um espaço ampliado de reflexões, trocas e debates frente às demandas e
exigências cotidianas vivenciadas no exercício profissional junto ao Judiciário.
Ao iniciarmos a formatação das atividades a serem desenvolvidas ao longo do
ano, diversas temáticas foram problematizadas dentre elas: Guarda Compartilhada e
a Alienação Parental, as quais elegemos para construção do presente texto.
No processo de desenvolvimento dos temas, foi proposta uma dinâmica de
trabalho que contou com a participação de palestrantes e momentos outros de
debates entre os participantes do Grupo, que apoiados em textos e legislação
referentes aos conteúdos, buscou-se aproximar e conhecer as temáticas, suas
complexidades, nuances, possibilidades e contornos construídos pela sociedade.
Neste sentido, o debate como um todo, perpassou a reflexão de aspectos
relacionados à família reconhecendo-a como aquela que é “[...] um conjunto vivo,
contraditório e cambiante de pessoas com sua própria individualidade e
personalidade” [...]. (Bruschini 1981, p. 77 in BRASIL, 2006, p. 30), “a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou vontade expressa” (BRASIL, 2007, Art. 5º, inciso II,
parágrafo único).
Esse conjunto e as relações construídas na interação entre as pessoas passa
a se constituir, dentre outros aspectos, também como [...] palco de diversos conflitos
geracionais e de gênero, podendo ou não ser espaço de negação ou desconstrução
de relações protetoras. (MIOTO; SILVA; SILVA, 2007, p. 202).

O termo família assume caráter contraditório ao ser considerado como uma


instituição social ora forte, ora fraca. Forte, pois é a fonte da reprodução
humana, da socialização primária das crianças, de transmissão de valores e
pode ser palco de solidariedades e refúgios diante da efemeridade da
existência. Fraca, porque também pode comportar tiranias, violências e
rupturas geradoras de inseguranças ou emancipações (PEREIRA, 2008. p.
36 in OLIVEIRA 2012 p. 23/24).

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Portanto, quando nos referimos a família na atualidade, nos reportamos a


“[...] família mediatizada entre o individual e o coletivo, portadora de uma história
social, familiar, transgeracional e pessoal, constituindo se em grupos existentes em
determinado contexto político, econômico e social.” (OLIVEIRA, 2012, p. 24 )
Apresentado em três partes distintas: família/conflitos, guarda compartilhada e
alienação parental, o presente artigo busca, sem pretensão de esgotar o debate,
apresentar as pontuações, reflexões e contribuições do Grupo de Estudos Família
de Franca/SP.

1. FAMÍLIA E CONFLITO – DE QUE LUGAR FALAMOS?

Um resgate histórico, no que tange as transformações vividas nos arranjos e


composição familiares, nos permite apreender que as alianças conjugais
estabelecidas até o século XVII, se davam, principalmente, em função dos bens e
patrimônios que os grupos pudessem assegurar.
Adentrando um pouco mais na análise e evolução das configurações de
família, observa-se que as profundas mudanças vividas pela sociedade a partir dos
séculos XVIII e XIX, tanto nos aspectos sociais como econômicos, políticos e
culturais, impactaram a forma de organização, constituição e dinâmica familiar.
Dentre as principais transformações está o fato de que, as relações conjugais
passam a ser estabelecidas, tendo como motivação maior, o afeto e a satisfação
própria. Ganha centralidade a questão da individualidade.
Este novo cenário, que passa a ser delineado com relação à família, guarda
estreito vínculo com o protagonismo que a mulher assume, notadamente no século
XX, com o movimento feminista, o surgimento da pílula anticoncepcional, sua
inserção no mercado de trabalho, dentre outros.

A partir do advento da Revolução Industrial nos moldes da expansão


econômica capitalista ocorreram diversas mudanças de ordem econômica,
técnica e científica, que por sua vez repercutiram na sociedade e
provocaram profundas alterações na mesma, as quais refletiram nas
famílias e trouxeram uma redefinição no papel de homens e mulheres, a
partir de sua inserção no mercado de trabalho. (SILVA, 2011, p.69/70)

437
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Na esteira destas mudanças, dois aspectos merecem destaque no contexto


de nossa reflexão, a necessidade de redefinição dos papéis, até então
desempenhados por homens e mulheres, cuja expectativa permeava a busca de se
criar maior igualdade e reciprocidade nas relações e o fato dos filhos passarem a
ocupar um lugar diferenciado na família, que, por conseguinte ofertaram
sustentabilidade para que novas dinâmicas familiares fossem instauradas.
Este movimento foi sendo paulatinamente reconhecido e legalmente
incorporado pela sociedade, como podemos observar com a Constituição Federal de
1988, a qual assegura os direitos das crianças e adolescentes, rompe com a chefia
conjugal masculina e coloca fim a diferenciação entre filhos legítimos e os até então
considerados ‘bastardos’. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA 1990,
dentre outras diretrizes, busca garantir a convivência familiar e comunitária de
crianças e adolescentes, mas também desidealiza a família, pois eles podem ser
protegidos de seus familiares.
O Código Civil de 1916 trazia em sua redação a expressão “pátrio poder”
apontando o poder do homem em relação aos filhos e esposa, com a promulgação
do Código Civil de 2002, esta expressão foi substituída por “poder familiar” indicando
a igualdade parental entre o pai e a mãe, bem como o dever de zelo dos genitores
em relação aos filhos.
Atualmente, em razão da discussão e proposição do Estatuto das Famílias 34
há um importante debate e indicação de que a palavra “poder” possa ser substituída
por “dever” e “familiar” por parental, sendo indicada esta expressão “autoridade
parental”.
Quando nos lançamos a fazer este passeio pela história sabemos que os
acontecimentos, os avanços, as conquistas não se dão de forma linear sem
embates, pois é inerente às relações humanas divergir, questionar, fazer escolhas.
São situações que se dão no processo de construção da autonomia dos sujeitos. O
conflito pode ser um elemento desencadeador do vir a ser, pode encerrar
possibilidades, como também, quando em interação com outros componentes e

34
Projeto de Lei (PLS 470/2013) que institui o Estatuto das Famílias. Constam do projeto não apenas
as regras de direito material, mas também processual, para proporcionar às famílias brasileiras maior
agilidade nas demandas jurídicas, indispensável quando se trata de direitos relacionados tão
diretamente à vida das pessoas. O projeto contempla a proteção de todas as estruturas familiares
presentes na sociedade moderna.

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contextos, caminhar para o confronto que traz a perspectiva de anular outra pessoa
ou situação.
Importante pontuar que as famílias e suas redes de apoio, inseridas e
também sujeitos atuantes da e na sociedade, não estão isentas de contextos
contraditórios, de ações imediatistas, de frágeis políticas públicas, de ausência do
Estado. Muitos conflitos vividos pelas famílias têm como pano de fundo estes
contextos adversos, que geram formas de vulnerabilidade, por que não dizer de
exclusão social. São aspectos e questões que podem desencadear processos de
rupturas de vínculos, situações de risco e também de conflito.
E quando falamos em afeto perpassando as relações conjugais, temos que
também pontuar que os vínculos se alteram, podem se desfazer diante do seu
enfraquecimento e com isso gerar crises, rompimentos e dentre muitas outras
possibilidades a separação dos casais, fato até há algum tempo não comum em
nossa sociedade.
O conhecimento das mudanças na estrutura e dinâmica familiares, nos
últimos séculos, as antigas e novas formas de organização familiar nos tempos
atuais, nos amplia o horizonte para compreendermos, de maneira contextualizada,
as diversas formas como os conflitos se apresentam.
Em nosso cotidiano profissional, os conflitos familiares, em geral decorrentes
do fim da vida conjugal dos genitores, são questões presentes nas mais diversas
ações que chegam ao Poder Judiciário, principalmente nas Varas de Família,
quando da disputa da guarda dos filhos, situações estas em que os profissionais de
Serviço Social e Psicologia são chamados a atuar.
Não raro nos deparamos com famílias vivenciando um padrão de conflito
extremo, onde não há cooperação, as brigas, as ofensas e ameaças são constantes,
de modo que o exercício da parentalidade se mostra prejudicado.
A separação conjugal representa um momento de crise e de intensas
mudanças. Novos momentos se dão marcados pela incerteza e pelo desconhecido
afetando significativamente todos os envolvidos. Novas dinâmicas e organização
familiar ocorrem e, muitas vezes os filhos advindos da relação conjugal, passam a
ser disputa entre os genitores e a decisão com quem os filhos devem permanecer,
ou melhor, quem deve assumir sua guarda é delegada a um terceiro – a justiça.

439
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É comum, em nome do melhor interesse da criança, os genitores se


desqualificarem um ao outro, e elementos fundamentais para o exercício da
parentalidade como a construção de acordos, garantia da convivência, a busca da
boa comunicação são desconsiderados.
Articular a conjugalidade com a parentalidade parece ser exercício difícil e
remoto, pois o que se observa, de maneira especial nas ações de separação, é uma
tentativa de desconsiderar o papel da outra parte e se possível fosse, apagar a
história vivida pelo casal. E se há crianças e adolescentes havidos dessa relação a
realidade se mostra ainda mais agravada, pois “[...] rompido o elo conjugal, deve-se,
sempre, ter em vista o melhor interesse da criança porque cessa a relação de
conjugalidade, mas a relação de parentalidade deverá sempre ser exercida e
compartilhada entre pais e filhos. (TJSP, 2014, p. 371)
Nessa linha de pensamento, em busca do melhor interesse da criança e do
adolescente, a legislação busca respaldar a convivência destes com ambos os
genitores, reorientando o direcionamento, de modo que os conflitos inerentes à
conjugalidade devem ser trabalhados em outras esferas, na efetiva tentativa de
fortalecer a parentalidade.
A guarda compartilhada, que passaremos a discorrer a seguir, ganhou força
de lei e veio como respaldo judicial para garantir a convivência entre pais e filhos.

2. GUARDA COMPARTILHADA

Em breve síntese, guarda é um instituto jurídico que traduz um conjunto de


obrigações e direitos onde se atribuiu a uma pessoa ou aos genitores em conjunto,
em face de crianças e adolescentes, cuidados e atenção especialmente de
assistência material, moral e educacional, além de vigilância, proteção e segurança.

[...] etimologicamente a palavra guarda provém do termo alemão antigo


Warda e dentre outras significações é a vigilância que tem por finalidade
defender, proteger ou conservar. Tem ainda o sentido de proteção, abrigo,
amparo e ação de guardar, ou seja, vigiar com o fim de proteger, abrigar,
tomar cuidado. (Levy, 2008, p. 42)

Estudos e reflexões sobre guarda a problematiza também sobre outro viés, o


da subjetividade:
440
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O conceito de Guarda é amplo e reserva certa subjetividade, se definindo


por um valor maior a ser protegido: o bem estar e a preservação da criança
e/ou adolescente enquanto seres em formação e desenvolvimento. (TJSP,
2014, p.427/428):

No decurso dos estudos e aproximações junto aos núcleos familiares que


questionam e/ou requerem para si a guarda de crianças e adolescentes, um
conjunto de elementos, em geral, deve ser observado, além da manifestação,
compreensão, expectativa e desejo da criança e do adolescente. São apreensões da
realidade das famílias, que devidamente contextualizadas, possam convergir para
atender o melhor interesse das crianças e adolescentes. Aspectos como os vínculos
afetivos, idade e sexo, existência de irmãos, disponibilidade das famílias em
acompanhar, orientar, atentar-se para as necessidades afetivas e materiais das
crianças e adolescentes, bem como com cuidados médicos, saúde física e
emocional, dentre outros.
Como já apontamos, os movimentos da sociedade vão ganhando contornos e
novos contextos são delineados. Neste sentido, atualmente no Brasil há diversos
instrumentos legais que normatizam os aspectos relacionados à vida conjugal e
parental das famílias como: a Constituição Federal, o Código Civil, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, a Lei nº 11.698/2008 denominada Lei da Guarda
Compartilhada, sendo que esta modalidade foi revista em sua aplicabilidade
recentemente, culminando com a promulgação da Lei nº 13.058/2014, que por sua
vez altera os artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.683 do Código Civil.
Já em 2008 a Guarda Compartilhada em sua normatização trouxe para o
centro de debates a busca de responsabilizar conjuntamente pai e mãe que não
convivem juntos, pelo exercício de direitos e deveres em relação ao poder familiar
dos filhos havidos em comum, de maneira que não há exclusividade na guarda para
um ou outro.
A flexibilização do horário de visitas e de convivência com o genitor não
contínuo, bem como a possibilidade que a participação regular dos genitores encerra
na vida dos filhos, fortalecendo os vínculos afetivos, talvez sejam os elementos
principais envoltos na Guarda Compartilhada.
Neste sentido, (TJSP, 2014, p.428) aponta outros aspectos considerados
positivos nesta modalidade de guarda:

441
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outra vantagem é a de que o poder parental sobre o filho independe de com


quem ele reside uma vez que a guarda compartilhada é caracterizada pela
manutenção responsável e solidária dos direitos e deveres inerentes ao
Poder Familiar, devendo os genitores participarem das atividades cotidianas
dos filhos tanto quanto possível, o que garantirá um envolvimento contínuo
e estável com a vida deles. Novamente o guardião não residente com a
criança/ adolescente é chamado a sair do papel de coadjuvante e de mero
provedor financeiro.

Contudo, este novo instituto gerou grandes debates e em algumas vezes foi
confundido com guarda alternada, a qual não consta em nosso ordenamento
jurídico, pois se falava em divisão igualitária de tempo na casa de cada um dos
genitores.
A Lei nº 13.058/2014, dentre outros aspectos, buscou dirimir as análises e
leituras equivocadas quanto a Guarda Compartilhada, e de maneira especial a
repercussão se deu também com alterações na redação do artigo 1.584 parágrafo 2º
do Código Civil Brasileiro que passou a estabelecer que: “mesmo quando não
houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos
os genitores aptos a exercer o poder familiar, será instituído a guarda
compartilhada”.

Nesta linha, é importante a sensibilização para a responsabilização conjunta


dos pais e para a consciência da importância de ambos na vida dos filhos e,
ainda, para o que se mostra fundamental: que as funções parentais devem
ser tratadas mais como complementares do que como paralelas.
(GROENINGA, 2014, p. 2)

Em síntese, no Brasil, as possibilidades de determinação de guarda se dão ou


de forma unilateral, quando um dos pais assume exclusivamente o poder de decisão
quanto aos aspectos da vida do filho, ou compartilhada, quando os pais juntos terão
oportunidade de decidirem questões pertinentes à vida dos filhos.
Contudo, ainda que pese todos os avanços e normativas, em nosso cotidiano
profissional, ainda se observa que a disputa de guarda perpassa sempre uma
questão de poder, por vezes diluído no contexto maior que a família esta inserida,
bem como em sua realidade objetiva.
Ao se refletir sobre a guarda compartilhada e conhecer melhor suas diretrizes,
não podemos deixar de considerar seu importante mérito de buscar, ou ao menos
rever, paradigmas culturais arraigados e buscar romper com estruturas de poder até
então considerados únicos.

442
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Desafio posto para uma sociedade em constante ebulição em que o


transformador e o conservador coexistem.

A lei tem importante função em acompanhar as mudanças nos paradigmas


sociais, abrigando contribuições trazidas por outras áreas do conhecimento.
E as leis da guarda compartilhada, Nº 11.698, [...], trouxeram inúmeros
avanços, sobretudo em um país em que a grande maioria das guardas é
unilateral, em que mais de um terço dos lares é mantido exclusivamente por
mulheres, em que um sem número de filhos não tem o nome do pai na
certidão de nascimento, e em que há tantos outros sintomas a demonstrar
fragilidades nas instituições… fragilidade que se atualiza também nas
famílias, e que demandam a proteção do Estado. (GROENINGA, 2014, p. 2)

No entanto, diante dos conflitos vividos entre os genitores por vezes a


convivência com o filho(s) e o exercício do Poder Familiar passa a ser uma equação
difícil de ser dirimida, pois o sentimento de posse com relação aos filhos ainda
perpassa e motiva diversos litígios. Neste sentido, Levy (2008 p.45) menciona:” [...] a
guarda possui tamanha dimensão jurídica que chega, na prática, a se confundir com
o próprio poder familiar.”
Atualmente a guarda compartilhada é obrigatória, e no texto da lei a
divisão temporal da permanência dos filhos com cada genitor deve ser aplicada de
maneira equilibrada.
Mas, é importante ressaltar que o fato de se estabelecer a Guarda
Compartilhada não é suficiente para garantir que o pai e a mãe se façam
efetivamente presentes na vida e na rotina dos filhos.
Contudo, ainda que envoltos neste contexto de intensos debates e diferentes
posicionamentos quanto à pertinência ou não das diferentes modalidades de guarda,
entendemos que se faz imprescindível, ao aproximarmos da realidade de vida dos
diferentes núcleos familiares que chegam até o Judiciário, compreender:
- relação de gênero;
- divisão dos papeis parentais;
- aspectos culturais das famílias;
- como as famílias viviam anteriormente à separação;
- como se relacionavam e como eram os vínculos estabelecidos, onde as
polaridades e divergências se acentuavam;
- qual a realidade objetiva delas em termos de rede apoio familiar e
comunitária, de acesso a bens e serviços;

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- qual o lugar das crianças e/ou dos adolescentes na família e como hoje
estão lidando com novas dinâmicas e arranjos familiares, dentre outros.
Talvez estes aspectos nos forneçam pistas para a construção conjunta com
as famílias de novos encaminhamentos quanto à convivência familiar, ou seja no
compartilhamento da guarda e ao mesmo tempo possa nos oportunizar a conhecer e
avaliar melhor as incidências do que hoje vem se denominando alienação parental.

3. ALIENAÇÃO PARENTAL

Como abordado ao longo do texto, pode-se observar que o ordenamento


jurídico brasileiro direciona no sentido de que toda criança e adolescente tem
prioridade de conviver com ambos os genitores, mesmo frente ao rompimento de
uma relação conjugal.
Contudo, o que se percebe, no momento da separação judicial, é que os pais,
numa grande maioria, não conseguem compreender e, por conseguinte, delimitar a
extensão do que seja conjugalidade e parentalidade, e, essa situação, reflete na
relação com os filhos.
A ausência de atitude colaborativa entre os genitores, em prol dos filhos,
acaba por ser a regra, de maneira que as diferenças, as queixas e os conflitos se
intensificam e os aspectos que no passado os uniram ganham patamar menor.
Pode-se dizer que, numa separação, a busca dos genitores, no tocante a
relação com os filhos, deveria ser de se efetivar o exercício da coparentalidade.
A coparentalidade pode ser compreendida como um “conceito pelo menos
triádico, pois envolve pai, mãe e, pelo menos, uma criança” (BARBOSA, 2013, p.36,
apud FRIZZO ET AL, 2005).
A dinâmica relacional estabelecida na conjugalidade mediará a maneira pela
qual o cônjuge organiza e desempenha a parentalidade e a sua interação com o
filho. Com componentes que envolvem a concordância ou discordância quanto a
aspectos relativos aos cuidados e educação dos filhos, a divisão com relação a
esses cuidados, como ocorre o apoio ao papel coparental e a forma como lidam
conjuntamente com as interações familiares.

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Nessa perspectiva a coparentalidade positiva envolve reconhecimento da


autoridade mútua e respeito às decisões entre os cônjuges. A coparentalidade
negativa traz o oposto, a competitividade pela autoridade e afeto do filho.
Segundo BARBOSA, 2013, p.36,

[...] confusões e conflitos entre conjugalidade, parentalidade e


coparentalidade podem ocorrer na vida familiar em qualquer tempo e
tendem a intensificar-se diante das crises atravessadas pela família.

A separação conjugal é um momento de crise e exige a desconstrução


das identidades até então estabelecidas, como a da própria familia, a individual e a
coparental. Essas redefinições são acompanhadas de instabilidade e oscilações e
podem incorrer em períodos em que aspectos da coparentalidade negativa se
evidenciem.
A separação conjugal visualizada através do ciclo de vida famíliar pode
ser encaminhada como crise possível e transformadora, ou constituir-se em uma
interação destrutiva e de manutenção da união conjugal através de disputas
contínuas. BARBOSA, 2013, refletem que nesse tipo de separação as relações
conjugais e parentais tornam-se indiferenciadas, a capacidade de negociação é
prejudicada ou inexistente, os conflitos remanescentes do casamento desfeito
interferem negativamente na qualidade do diálogo pai, mãe, e o filho fica triangulado
nos conflito dos pais.
Historicamente, quando da separação do casal, era de costume que a
guarda dos filhos fosse, juridicamente, concedida à figura feminina, no caso a mãe.
Contudo, uma parcela da comunidade masculina, enquanto pais, passou a ocupar
um novo status na educação dos filhos e reivindicar maior participação na vida
deles, não concordando em se afastar da convivência com os filhos, apesar dos
conflitos existentes entre as figuras parentais.
Visando garantir os direitos da convivência familiar, que até então era
majoritariamente da mãe, surgiu o movimento para criação de uma Associação de
Pais e Mães Separados (APASE). Pais que tinham dificuldades ou não vivenciavam
a rotina dos filhos em razão de imposições ou acusações do detentor da guarda do
filho contra a figura parental não guardiã.

445
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nessa linha de pensamento, o detentor da guarda do filho, muitas vezes


inconformado com o rompimento da relação conjugal, iniciava um ciclo de
transferência de suas decepções amorosas fazendo-se de vítima passando a
desqualificar a figura paterna ou materna que não possuía a guarda do filho. Essa
ação de desqualificação da figura parental foi objeto de análise de pesquisadores e
estudiosos que a qualificaram como alienação parental.
Em decorrência desta realidade e com a participação importante da
sociedade civil, em especial de pais separados, foi editada em agosto de 2010, no
Brasil a Lei 12.318, que trata do tema Alienação Parental, conceituando-o como:

Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação


psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a
sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause
prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. (Art.
2º, BRASIL, 2010).

No Brasil, o movimento para reconhecimento dessa realidade vivenciada por


pais separados é recente, mas é importante ressaltar que o termo alienação parental
surgiu após estudos feitos pelo pesquisador Richard Gardner35, o qual através de
seu trabalho passou a observar que crianças expostas a disputas judiciais entre os
pais, desenvolviam um distúrbio infantil.
Gardner, em suas pesquisas, relacionou os sintomas da Alienação Parental e
a denominou como Síndrome da Alienação Parental (SAP) e assim a classificou:

A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que


aparece quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de

35
“Richard Gardner, professor de psiquiatria infantil da Universidade de Columbia(EUA), falecido em
2003, tornou-se conhecido ao cunhar, em meados dos anos 80, uma síndrome que ocorreria
especialmente em crianças expostas a disputas judiciais entre seus pais. Como informa Rand (1997),
ao longo dos anos 70, Gardner trabalhou como psiquiatria forense, conduzindo avaliações de
crianças e famílias em situações de divórcio. No início dos anos 80, Gardner teria observado um
aumento do número de crianças que exibiam rejeição e hostilidade exacerbada por um dos pais,
antes querido. Originalmente, para Gardner (1991), isso seria uma manifestação de brainwashing
(lavagem cerebral), termo que, segundo ele, serviria para designar que um genitor, de forma
sistemática e consciente, influenciaria a criança para denegrir o outro responsável (s/p., tradução
nossa). Contudo, logo depois, ele teria concluído que não se trataria de uma lavagem cerebral,
fazendo uso então do termo síndrome da alienação parental (SAP) para designar o fenômeno que
observava”.

446
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

crianças. Sua manifestação preliminar é a campanha denegritória contra um


dos genitores, uma campanha feita pela própria criança e que não tenha
nenhuma justificação. Resulta da combinação das instruções de um genitor
(o que faz a “lavagem cerebral, programação, doutrinação”) e contribuições
da própria criança para caluniar o genitor-alvo. Quando o abuso e/ou a
negligência parentais verdadeiros estão presentes, a animosidade da
criança pode ser justificada, e assim a explicação de Síndrome de
Alienação Parental para a hostilidade da criança não é aplicável.
(GARDNER, 2002, p. 02)

Gardner distingue três níveis de desenvolvimento da SAP, o brando,


moderado e severo. No nível brando aparecem poucos sintomas, que são
passageiros, desaparecem com a definição da guarda. Moderado, os sintomas são
identificáveis, enquanto que no severo “apresentam grande parte ou todos os
sintomas de forma consistente, muito delineada e persistente” (WEIGEL 2006, p. 3).
O mesmo autor acima citado pontuou que Gardner identificou um conjunto de
oito sintomas apresentados pelas crianças em caso de SAP, que podem apresentar
muitos ou todos eles, ou seja:

- uma campanha para denegrir o pai alvo de alienação parental;


- racionalização fracas, absurdas ou frívolas para o comportamento
depreciativo exibido pela criança;
- dicotomização dos pais, sendo que um pai (o alienado) é visto como
infalível, enquanto que o outro (que sofre a alienação) é visto de forma
extremamente negativa;
- o fenômeno do “pensador independente”, no qual é dito que a rejeição ao
pai alvo da alienação parental veio direta e unicamente da criança e que,
portanto, isso deve ser respeitado;
- um suporte inabalável e reflexivo da criança em relação ao pai ou mãe que
pratica a alienação parental;
- falta de remorso ou culpa em relação à crueldade e/ou exploração sendo
exercida com o pai alvo da alienação;
- presença de frases e litanias (repetições) negativas sobre o pai que está
sofrendo a alienação no vocabulário da criança. Essas expressões foram
“ensinadas” ou “emprestadas” do pai ou mãe que exerce a alienação;
-aversão aos amigos e família do pai que é alvo das práticas alienadoras.
(WEIGEL, 2006, p. 2)

Efetivamente a Síndrome da Alienação Parental e seu reconhecimento


proposto por Gardner como tal não se efetivou, tanto que segundo Weigel (2006,
p.3) [...] “DSM – IV ainda não considerava a SAP como uma síndrome merecedora
de uma categoria única e específica. [...]”, pois esta se assemelha com os mesmos
sintomas de síndromes relacionadas.
Não podemos desconsiderar a relevante contribuição de Gardner ao
problematizar estas questões, mas estudos posteriores realizados resultaram em
reflexões e questionamentos acerca de suas afirmações.
447
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As críticas a Gardner dizem respeito ao fato dele apresentar uma visão


determinista e limitada, focada apenas no individuo sem considerar o contexto social
em que as famílias e as crianças estão inseridas, o caráter punitivo com
característica disciplinadora de seu método de tratamento e, ausência de
apresentação por ele, de pesquisas científicas embasando a conceituação da
alienação em seus argumentos.
A controvérsia envolvendo a nomenclatura levou os estudiosos a usarem o
termo Alienação Parental, ao invés de “Síndrome de Alienação Parental”, mas tem
sido entendimento comum a necessidade de se observar as significativas
implicações e consequências na vida das crianças e dos adolescentes a exposição a
um contexto de Alienação Parental.

As atitudes que visam um afastamento da criança do outro genitor pode se


dar de inúmeras formas, tais como a manipulação da psique da criança ou
do adolescente implantando falsas memórias, criando dificuldades à
convivência familiar, etc., com o único fim de efetuar uma programação
mental do menor para que ele repudie o outro genitor. Quando isso
acontece, caracterizada está a alienação parental”. ( TEIXEIRA &
RODRIGUES, 2013,p. 2)

Ainda neste sentido Maldonado (2009, p. 181), pontua:

[...] os aspectos positivos do ex-cônjuge são negados, ressaltam-se as


dificuldades ou até mesmo cria-se a imagem de um monstro a ser evitado a
todo custo. Os comportamentos mais comuns dessa síndrome são: evitar o
contato telefônico, inventar desculpas para dificultar ou impedir a visitação,
depreciar ou insultar o ex-cônjuge na presença dos filhos, sabotar
informações ou tomar decisões importantes sobre a vida das crianças sem
consultar o genitor. Em casos mais graves, o alienador chega até mesmo a
fazer denúncias de abuso físico ou sexual para afastar os filhos do convívio
“perigoso” e permanecer na relação simbiótica com os filhos.

Os estudos mostram ainda que a criança ou adolescente têm participação


ativa na alienação, uma vez que reproduz os discursos e ações do alienador, cujas
práticas alienadoras podem advir tanto do pai quanto da mãe. A alienação parental
pode ocorrer a qualquer tempo na interação dos genitores e não necessariamente
logo após a separação conjugal, com todos os filhos ou com algum especificamente,
independente da faixa etária.
No cotidiano do trabalho junto ao Poder Judiciário tanto dos profissionais de
Serviço Social quanto da Psicologia tem-se observado um crescente número de
ações judiciais de separação com indicação, por um dos núcleos familiares da
448
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

criança ou do adolescente, geralmente o visitador, da possível ocorrência da


alienação parental.
Essa constatação pode ser um rebatimento da Lei 12.318 – da Alienação
Parental, que estabelece em seu art. 6o que:

Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que


dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação
autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem
prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla
utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus
efeitos, segundo a gravidade do caso:

I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador;


II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado;
III - estipular multa ao alienador;
IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial;
V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua
inversão;
VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente;
VII - declarar a suspensão da autoridade parental.

A previsão legal retira a competência da família no processo decisório e de


reconstrução de sua história. BARBOSA, 2013, p. 179, apud AUSLOOS (2003)
afirma:

[...] que todas as famílias, portanto, dispõem de competências para


encontrar soluções para os próprios problemas e evoluir, ainda que, em
certas circunstâncias e situações de maior complexidade, possam se sentir
bloqueadas e paralisadas e mostrem dificuldade de ativar suas
competências ou mesmo de reconhecer que elas existem.

O conflito familiar é considerado através de uma visão individualista e


punitiva, onde:

[...] pouco se aborda os aspectos sociais, culturais e legais ligados à


vivência da separação, como as relações de gênero, a divisão dos papéis
parentais, o predomínio da modalidade unilateral de guarda, as mudanças
nas famílias e nos relacionamentos contemporâneos (OLIVEIRA, 2013,
p.83).

Observa-se ainda que os atos punitivos atingem diretamente a rotina da


criança ou adolescente, os quais, em sua grande maioria, já sofreram danos morais,
relacionais, emocionais e sociais, traduzindo-se a própria Lei de Alienação Parental
em perpetuação de contexto de violência.

449
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

No decorrer dos estudos realizados fica, inicialmente, a reflexão maior da


necessidade continua de nos debruçarmos teórica e metodologicamente em nossas
áreas de atuação, buscando nos aprimorar frente às demandas complexas que se
apresentam em nosso cotidiano profissional.
O Sistema de Justiça é, em muitas situações, o espaço onde as famílias
recorrem para a resolução de conflitos ocasionados pelo término das relações
conjugais, as temáticas expostas no presente artigo são demandas constantes na
rotina de trabalho da equipe técnica do Judiciário.
Neste sentido, quando abordamos a questão da guarda compartilhada, ainda
que se observem os importantes avanços em termos legais e de um movimento da
sociedade em abarcar esta nova modalidade de guarda, ainda se constata muitas
dúvidas da sua viabilidade, mesmo que sendo ela obrigatória. E não raro se
presencia aplicadores do direito que questionam tal legislação e mesmo a avaliação
psicossocial quando existe a indicação dessa modalidade de guarda.
As dificuldades são de diversas ordens e se dão neste contexto complexo e
contraditório em que se busca, sem perder de vista as peculiaridades e
especificidades de cada núcleo familiar, equacionar a nova realidade tendo em vista
o histórico de aplicação da medida de guarda ser, em sua maioria, unilateral e
materna.
Neste mesmo fio condutor a questão da alienação parental demanda
aproximações das realidades concretas das famílias que extrapolem a realidade
imediata dada.
Com o rompimento do vínculo conjugal, é estabelecida nova rotina e
organização no grupo familiar. Nestes novos arranjos ganham ainda mais
centralidade e importância o diálogo, que pode oportunizar entre os pais, filhos e
demais familiares uma aproximação e compreensão mais tolerante diante da
realidade vivida.

450
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os profissionais do Judiciário devem refletir sobre estas questões para que


suas abordagens contribuam para uma relação não adversarial entre os genitores
e/ou familiares.
Ainda que frente à complexidade dos contextos, não podemos perder de vista
e/ou desconsiderar a capacidade de mudança e ressignificação das famílias diante
dos ciclos de vida.
A reflexão através de um trabalho com os diferentes núcleos familiares
deveriam, a principio, perpassar, tanto na discussão da guarda quanto nas questões
envoltas a supostas ações de alienação parental, a busca de uma maior
compreensão do papel paterno/materno frente a essa nova dinâmica, aspectos que
envolvem o conflito, gênero, comunicação, ciclos de vida, fase de desenvolvimento
das crianças e adolescentes, responsabilidade parental, a convivência e
fortalecimento de vínculos entre pais, filhos e o papel da família com vistas a
ultrapassar os aspectos socialmente estabelecidos.
Assim, os profissionais das equipes técnicas do Judiciário ao acompanhar as
modificações sociais cumprem importante papel neste processo de aproximações
sucessivas de forma qualificada, como também ao debater e contribuir na
formatação de novas legislações, ao conhecer as realidades das famílias e ampliar o
debate com a rede de serviços sobre as temáticas que elas vivenciam.

451
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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454
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DA PARENTALIDADE À ALIENAÇÃO PARENTAL

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR –


JUNDIAÍ – BRAGANÇA PAULISTA
“VARA DA FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
455
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Cláudia Maria Nóbrega – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista


Regina Célia Antonialli Zancheta – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bragança Paulista

AUTORAS

Ana Cristina Marques Zechim Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Bragança Paulista
Ana Lucia Pardini Martins - Assistente Social Judiciário – Comarca de Atibaia
Debora Silva Barros de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Cabreuva
Edna Maria Brandão – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Eduarda Vieira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Fabiola Maria Mota da Costa de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Piracaia
Juliana Vieira Von Zuben – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira
Luz Marina Campello Correia Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Atibaia
Magnolia Mota Zamariolli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Piracaia
Maria Helena Pompeu – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pinhalzinho
Maria José Casaroto Vilela – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Sandra Maria de Souza Moraes Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Bragança Paulista
Tamara Cristina Barbosa Soares – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira
Vivian Bertelli Ferreira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bragança Paulista

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada


Falava em língua de ave e de criança.
Sentia mais prazer de brincar com as palavras
do que pensar com elas.
Dispensava pensar.
Quando ia em progresso para a árvore queria
florear.
Gostava mais de fazer floreios com as palavras
do que fazer ideias com elas.
Aprendera no Circo, há idos, que a palavra tem
que chegar ao grau de brinquedo para ser séria
de rir.
Contou para a turma da roda que certa rã saltara
sobre uma frase dele
E que a frase nem arriou.
De certo não arriou porque não tinha nenhuma
palavra podre nela.
Nisso que o menino contava a estória da rã na
frase
Entrou uma Dona de nome Logica da Razão.
A Dona usava bengala e salto alto.
De ouvir o conto da rã na frase a Dona falou:
Isso é língua de brincar e é idiotice de criança
Pois frases são letras sonhadas, não têm peso,
nem consistência de corda para aguentar uma rã
em cima dela
Isso é Língua de Raiz – continuou
É Língua de Faz-de-conta
É Lingua de brincar!
Mas o garoto que tinha no rosto um sonho de
ave extraviada
Também tinha por sestro jogar pedrinhas no bom
senso.
E jogava pedrinhas:
Disse que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada
sobre uma lata ao modo que um bentevi sentado
na telha.
Logo entrou a Dona Logica da Razão e bosteou:
Mas lata não aguenta uma Tarde em cima dela,
e ademais a lata não tem espaço para caber
uma Tarde nela!
Isso é Lingua de brincar
É coisa-nada.
O menino sentenciou:
Se o Nada desaparecer a poesia acaba.
E se internou na própria casa ao jeito que o
jabuti se interna.

MANOEL DE BARROS

457
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Há vários anos, o Grupo de Estudo de Jundiaí vem refletindo sobre as


questões que envolvem processos judiciais relacionados à Vara da Família. Tais
questões parecem instigar os profissionais dos setores técnicos do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo.
No decorrer de 2013, tomamos conhecimento da existência de práticas bem
sucedidas nesse sentido. Podemos citar o trabalho relacionado às oficinas de pais e
filhos desenvolvidas na Comarca de São Vicente, assim como em outras comarcas e
diante disso, o Grupo mudou o foco das discussões no ano de 2014, se voltando
para as questões de nosso cotidiano no que diz respeito aos processos de guarda
de filhos.
Com a apresentação da proposta de Grupos de Trabalho, específica da
Coordenadoria da Infância e Juventude no ano de 2015, os Grupos de Estudos
retornaram suas atividades em meados do mesmo ano, não alcançando número de
inscrições suficientes. Além disso, ainda se apresentou a questão da ausência de
espaço físico disponível na cidade de Jundiaí à realização das reuniões de estudo,
sendo o Fórum de Bragança Paulista o local disponível.
Em 2016 o Grupo de Estudos passa a ser realizado na Comarca de Bragança
Paulista, nomeado Jundiaí-Bragança Paulista, abrangendo a 5ª. Circunscrição
Judiciária – sede Jundiaí, 6ª. Circunscrição Judiciária – sede Bragança Paulista e
54ª. Circunscrição Judiciária – sede Amparo, com a presença de dezoito integrantes
e cujo tema de estudo permaneceu “Parentalidade”, onde nos debruçamos à
pesquisa, discussão e reflexão sobre o conceito de “Alienação Parental” trazido por
diversos pesquisadores e teóricos ao longo do tempo e nossa experiência
profissional.
Para tanto revisitamos abordagens e teóricos clássicos e contemporâneos, os
quais tratam de compreender as dinâmicas das relações afetivas/amorosas, as
estruturas de personalidade e as vinculações dos sujeitos no contexto familiar e
cultural, nos quais nosso trabalho se orientou, cuja reflexão e discussão propiciou o

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desenvolvimento de novas metodologias e a implementação de procedimentos em


nosso cotidiano.
Apresentamos aos leitores a síntese de nossas reflexões baseadas em
pesquisas, no nosso exercício profissional, na postura propositiva apoiada na
formação profissional, na capacitação constante e nos princípios da ética, da justiça,
da resolução de conflitos, considerando “o melhor interesse” dos envolvidos nas
lides, os quais têm apresentado questões de ordem social e psicológica que
extrapolam as competências atribuídas ao Poder Judiciário.

1. EXERCÍCIO DA PARENTALIDADE: REFLEXÕES SOBRE A


MATERNAGEM E A PATERNAGEM

Para iniciarmos nossa reflexão sobre maternagem e paternagem partimos do


conceito de família e da formação cultural dos papéis sociais feminino e masculino.
Para isto utilizamos o livro de Alícia Martins de Souza (2010), psicóloga, especialista
em Psicologia Jurídica e doutora em Psicologia Social, professora do curso de
especialização em Psicologia Jurídica da UERJ, que propôs um entendimento da
família, referindo-se a diversos autores tais como Philippe Ariés e Elizabeth Badinter,
conforme expomos abaixo.
Assim, compreende-se a família como organização da vida privada que se
modifica conforme o contexto social, econômico e cultural, assim como os papéis
sociais correspondentes ao homem, à mulher e à criança sofrem alterações.
Nas sociedades contemporâneas ocidentais ainda são comuns discursos
sobre a existência de um instinto materno, o qual tornaria a mulher naturalmente
predisposta para os cuidados infantis. Tais discursos encontram-se entrelaçados a
outros que dizem respeito à figura paterna e aos filhos; afetam-se mutuamente,
repercutindo sobre o exercício dos papéis e das relações parentais.
Expõe a autora citando Badinter que, até meados do século XVIII não há
registros sobre sentimento de amor como um valor familiar social. O que não quer
dizer que este sentimento não existisse; em alguns casos surgia após o casamento.
Contudo, o amor conjugal não possuía valor social como nos dias de hoje, pois o
casamento fundamentava-se em um contrato de mútuo interesse entre famílias.
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No que tange às crianças, muitas mudanças aconteceram entre a Idade


Média e o momento atual. De acordo com Àries, citado por Sousa (2010), até o final
da idade média, na Europa, elas se encontravam misturadas entre os adultos nas
diferentes atividades sociais. Por volta dos sete anos, logo após o desmame, as
crianças eram separadas de suas famílias e enviadas à casa de outras pessoas
para receberem instrução na condição de aprendizes.
Ainda segundo Àries, especialmente entre os séculos XVI e XVII, houve uma
nova atenção com relação à educação das crianças, quando a instrução informal
cede lugar, aos poucos, à educação fornecida pela escola.
Uma nova configuração da família, segundo Sousa (2010), citando Badinter,
irá se constituir, na França, paulatinamente, ao longo do século XVIII. No entanto, a
autora reconhece que a evolução dos costumes não se deu de modo uniforme por
todo o corpo social.
Algumas mudanças, porém, começaram a surgir nas mentalidades a partir do
último terço do século XVIII. Com a ascensão da burguesia, uma nova ordem
econômica entra em cena. Os seres humanos passam a ser vistos como força de
trabalho, fonte de lucros e riquezas para o Estado, daí a importância de garantir a
sobrevivência ou preservação das crianças. “Para tanto, moralistas, médicos,
filósofos e a polícia empreenderam verdadeiras companhas direcionadas,
especialmente, às mães, exaltando o amor materno como natural e ao mesmo
tempo como um valor social e moral, importante para a preservação da sociedade”
(op.cit. páginas 52 - 53).
Apesar de o tema da conservação de crianças ter se expandido por todo o
corpo social, a autora se utiliza da obra de Donzelot para explicar que a forma de
intervenção do Estado foi bastante diversa sobre os distintos segmentos sociais, ou
seja, as classes pobres e as classes abastadas. Sobre as primeiras incidiram críticas
quanto à administração dos hospícios para crianças, assim como o encaminhamento
destas às amas de leite. Devido ao alto índice de mortalidade em tais situações,
pouco ou nenhum benefício revertia para o Estado, representando, assim, o que o
autor denomina de “ausência de uma economia social”.
Já no caso de famílias abastadas, as críticas se dirigiram à organização e ao
uso dos corpos, que visavam exclusivamente ao prazer individual, o que aos olhos
do Estado representava a “ausência de uma economia do corpo”. Os pais deveriam

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

se ocupar da educação e cuidados dos filhos, retirando-os da influência dos


serviçais.
O novo ideal de maternidade será considerado uma função nobre, de cunho
religioso. Inteiramente dedicada a casa e à prole, essa nova mãe, ou “rainha do lar”,
é comparada à Virgem Maria, tendo em vista seus sacrifícios e dedicação, como
expõe Badinter.
Ampliando os encargos das mães, os ideólogos do século XIX defendem que
a educação moral dos filhos seria responsabilidade destas. As mulheres são
consideradas, na visão daqueles, como “guardiãs naturais da moral e da religião e
que da maneira como educavam os filhos dependia o destino da família e da
sociedade, e o povoamento do céu” (op.cit.,p.256).
Paralelamente à ascensão da figura materna, em todo o curso dos séculos
XVIII e XIX, o ofício de pai tem seu declínio gradativo. Diminuídas suas funções e
prestígio frente ao crescente poder da mulher na família, o pai perde também seu
lugar de autoridade diante das intervenções do Estado. Entretanto, essa nova
politica não se estenderá a todos os pais. Enquanto nas classes mais ricas, o pai se
mantém representante de valores sociais a serem transmitidos aos filhos, bem como
continua sendo o mediador entre a esfera pública e o ambiente doméstico, nas
classes populares ele será vigiado.
A ideia da primazia da figura materna em face dos cuidados infantis se
estenderá por todo o século XX, chegando aos dias atuais. De forma geral, nota-se
que perspectivas atuais sobre a relação entre mãe e filho têm se baseado,
especialmente, no legado de reconhecidos autores psicanalistas, chamando a
atenção para a prontidão e sensibilidade das mães em atender a apelos e
necessidades infantis. Para tanto, a autora cita a contribuição de Grosselin.
Discursos que são construídos historicamente preexistem ao indivíduo e
serão por ele assimilados, reproduzidos, reconfigurados ou resignificados como
parte de uma cultura.
A tradição patriarcal nas sociedades ocidentais, reforçada pela formação
católica, contribuiu ao longo do tempo para a estruturação e definição rígida dos
papéis sociais de homens e mulheres. Como salienta a autora, a partir de Muzio:
“ser mãe e pai implica apropriar-se de um papel social construído historicamente
[...]”. (SOUSA, 2010, p. 166)

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Neste contexto se delineou mais claramente a separação dos papéis


conjugais e parentais, com significativas mudanças nas relações entre homem e
mulher, com o casamento compreendido como uma relação de parceria e o ideal
romântico como motivador e mantenedor da união.
Nos últimos 40 anos ocorrem diversas revoluções que influenciaram as
mudanças nas famílias: movimento estudantil, sexual (métodos anticoncepcionais,
fecundação in vitro, promiscuidade, DST’s, despatologização da homossexualidade
e o movimento feminista).
Todas estas mudanças impactaram a família e os diferentes subsistemas -
papéis conjugais e parentais são repensados, alternativas e configurações, tais
como famílias monoparentais, casais sem filhos, famílias ampliadas criando netos,
famílias recasadas, uniões homoafetivas.
Como consequências os papéis de gênero que antes eram basicamente
atrelados aos estereótipos de cada sexo, misturam-se e modificam-se; valorização
da filiação nas relações de parentesco - não mais o casamento define o grau de
parentesco e sim a filiação, sendo socioafetiva e que seja para o melhor interesse da
criança. Segundo Barbosa e Castro (2013 p. 28) “A família ideal passou a ser aquela
que é capaz de zelar, da melhor maneira possível, pelo bem - estar e o
desenvolvimento da criança.”
Explica Sousa (2010) que atualmente, muito se tem discutido sobre o que
alguns nomeiam de “novo pai”, ou de “nova paternidade”, para se referir a homens
que se envolvem com o cuidado dos filhos e têm com estes relação de maior
proximidade e afetividade. Ela menciona ainda que, na análise de Hurstel, o que
mudou, na verdade, foi o contexto social e as condições em que a paternidade vem
sendo exercida. As mudanças apontadas, hoje, quanto ao exercício da paternidade
não estão desvinculadas de uma série de transformações ocorridas nos últimos
tempos, tanto nas relações de gênero, quanto no âmbito socioeconômico e legal.
Neste sentido, depreende-se que a parentalidade é uma construção cultural
composta de um discurso e um funcionamento social no qual estamos inseridos – e
que tem uma série de mecanismos que influem e formam quem cada um de nós é e
como agimos em nossos mais diversos papéis e de uma dimensão psíquica e
intrasubjetiva, que nos forma como sujeitos e que constrói como nos relacionamos
com o outro e com o mundo externo.

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Na conjugalidade, os conflitos e questões emocionais presentes numa


situação de divórcio judicial muitas vezes envolvem questões que foram mal
resolvidas pelo ex-casal ainda durante o convívio e que podem não acabar com a
separação, repercutindo para as relações parentais, podendo ocasionar mágoas e
desavenças no relacionamento entre pais e filhos.
Nesse sentido, Souza cita Fredda Herz Brown, a qual defende que o divórcio
legal pode “ajudar ou não a resolver o divórcio emocional”, pois os ex-cônjuges nem
sempre são capazes de ter um entendimento mútuo em questões referentes aos
filhos. Muitas vezes esta incapacidade dos ex-cônjuges “encontra-se na importância
da raiva dirigida ao ex- cônjuge ou à culpa por ter uma ‘família incompleta’ que ao
fim do conflito conjugal, às questões de guarda, pensão e visita” (SOUSA, 2010, p.
23). Em consonância, autores como Britto, Féres-Carneiro e Ribeiro argumentam
que num litígio conjugal há que se diferenciar aspectos do casal e aspectos da
relação entre pais e filhos.
Sousa (2010) menciona ainda a socióloga francesa Iréne Théry, a qual afirma
que em tais situações de divórcio o ponto a ser discutido é a maneira que pai e mãe,
mesmo após o término do casal, podem continuar exercendo a função parental.
Decorre deste ponto todo o trabalho a ser realizado com as famílias neste processo
de separação e a importância da mediação para se alcançar a complexidade das
relações familiares, enfocando as diferenças entre a separação do casal, a
continuidade do vínculo parental e a dimensão conjugal.
Diante das considerações dos autores citados, “as dimensões conjugais e
parentais podem se encontrar mescladas em situações de conflito, ou não, no
interior do grupo familiar. O envolvimento dos filhos talvez fique mais evidenciado
nas situações em que o conflito entre os genitores se exacerba”.(SOUSA, 2010, p.
28) Nas situações de divórcio, ressalta-se a importância da preservação e
manutenção do vínculo parental.
Com o rompimento conjugal a família encontra-se com uma nova realidade,
aspectos relacionados a trabalho, finanças, rotina escolar precisam ser
reorganizados. Esta nova realidade pós-divórcio envolve aspectos individuais,
aspectos do campo sócio jurídico, contexto social. Ressalta-se a importância da
implantação de estratégias na mediação familiar, grupos de apoio para oferecer
orientação e suporte às famílias que vivenciam o divórcio.

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O exercício dos papéis parentais sofre impacto e há uma mudança dos


padrões de relacionamento entre o genitor guardião e os filhos. Decorrem diversas
situações: alianças entre genitor guardião e os filhos, afastamento dos homens
genitores para evitarem maiores conflitos, dependência emocional entre genitoras e
filhos menores, papéis invertidos entre pais e filhos.
As alianças entre genitor guardião e o filho é uma situação preponderante
quando se trata de separação litigiosa. Estas situações podem durar longos
períodos e ações que duram longo período no judiciário, contribuem para a
manutenção das alianças e fragilização da relação da criança com o genitor que não
possui a guarda, este muitas vezes é afastado do convívio familiar.
Neste sentido, os processos judiciais litigiosos envolvem a guarda dos filhos
e/ou arranjo de visitas de filhos. Resumidamente, “cada uma das partes envolvidas
busca provar que está apta a desempenhar as funções parentais.” Muitas vezes as
disposições legislativas e a forma como os processos judiciais são encaminhados
nas Varas de Família acabam “contribuindo para acirrar o conflito entre ex-parceiros,
estendendo-o por vários anos, trazendo repercussões para as relações parentais”
(SOUSA, 2010, p. 41).
Nesta linha, destaca-se o entendimento de melhor interesse da criança, que
tem orientado magistrados quanto à definição sobre posse e guarda dos menores
quanto à sua visitação nas situações de separação matrimonial.
A noção de melhor interesse da criança não é uma noção jurídica, mas uma
instância de regulação social quando se impõe a necessidade de decisão sobre a
situação da criança, visando seu adequado desenvolvimento.
A definição da guarda unilateral pode concorrer para que o titular da guarda
detenha maior controle e poder de decisão sobre o cotidiano da prole, existem
muitas críticas e debate em torno da guarda exclusiva e vem sendo apontado o
modelo da guarda compartilhada, que seria o “mais adequado” para manutenção da
convivência entre pais e filhos, pois permite que ambos os genitores exerçam a
autoridade parental.
A Lei nº 11.698/2008 no Brasil reconhece o modelo de guarda compartilhada,
entretanto não há informações claras e precisas de sua funcionalidade e condução
no sistema judiciário.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

De qualquer maneira, a guarda compartilhada pode ser considerada um


avanço na luta pela igualdade de direitos e deveres entre pais e mães separados,
mas devemos nos atentar sobre o tempo transcorrido desde a decisão dos
consortes pela separação até o momento da decisão judicial quanto à guarda, pois
aquele que não detém a guarda provisória pode ter dificuldades no acesso aos
filhos.
Entretanto a guarda compartilhada deve estar associada a outros dispositivos
no judiciário que colaborem com a agilidade na regulamentação da guarda,
principalmente no sentido de impedir alianças parentais. “É fundamental, portanto,
que nos casos encaminhados aos juízos de família, os profissionais estejam atentos
à existência de possíveis alianças entre a mãe guardiã e os filhos” (SOUSA, 2010, p.
46)
A equipe técnica deve trabalhar no sentido de não acirrar o conflito e oferecer
à família uma oportunidade de reflexão, esclarecimento de dúvidas e análise das
dificuldades em relação à nova forma de organização familiar diante da separação
dos pais, sobretudo nos divórcios altamente litigiosos em que estão presentes atos
que visem provocar o afastamento parental dos filhos em relação ao genitor não
guardião, muitas vezes desencadeando o processo de Alienação Parental.

2. ALIENAÇÃO PARENTAL - DISTÚRBIO PATOLÓGICO OU


DISFUNCIONALIDADE NO EXERCÍCIO DA PARENTALIDADE?

O neomodismo jurídico denominado Alienação Parental (AP) e que alguns


denominam de Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um assunto recorrente em
nossos estudos e, que ano após ano, faz com que dediquemos um tempo a esse
tema, que debrucemos em textos teórico/críticos a fim de aplacar nossas angústias
frente aos conflitos familiares de alta litigância com os quais nos deparamos em
nosso trabalho e, há algum tempo, tem sido a natureza de processos judiciais nos
quais são determinadas as avaliações psicossociais.
Foi no ano de 1985, com a publicação do psiquiatra forense Richard Alan
Gardner, que o termo SAP –“Síndrome de Alienação Parental” teve destaque. Ele
entendeu que mudanças sociais e históricas nos Estados Unidos da América
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

estavam intimamente correlacionadas ao aumento abrupto da patologia que


observava e a definiu como a “programação ou à lavagem cerebral promovida por
um dos pais da criança a fim de denegrir e vilipendiar o outro genitor, acrescentando
elaborações construídas pelo próprio infante, e assim justificar sua resistência a
manter uma relação com tal genitor, que é definido como alienado”.36
Gardner constatou que algumas crianças durante o processo de divórcio de
seus pais começaram a recusar contato e hostilizar um dos genitores com os quais
tiveram um antecedente histórico de forte vínculo afetivo. As justificativas das
crianças não eram baseadas na percepção real dos fatos, além de serem muito
semelhantes às ideias exageradas, fantasiosas, projetivas ou delirantes que o
genitor alienador apresentava de seu ex-cônjuge.
O psiquiatra identificou a SAP nos sintomas e sinais reunidos em torno de um
agente etiológico específico, isto é, uma causa - o genitor programador. A
dificuldade de contato da criança com o genitor alienado e as distorções de
percepção desta em relação ao genitor repelido seriam geradas a partir de uma
lavagem cerebral realizada pelo genitor alienador.
O desenvolvimento da Síndrome na criança pressupõe a combinação de dois
elementos – a programação feita por um dos genitores para denegrir e afastar o
outro e as contribuições da própria criança para sustentar a campanha contra o
genitor alienado. No entanto, deve-se salientar que a SAP apenas se aplica como
diagnóstico de patologia da criança ou adolescente e não de parentes ou genitores,
sendo característica do contexto de disputa de guarda. Desta forma, o diagnóstico
deve exclusivamente ser realizado no caso de apresentação dos sintomas pela
criança e não quando existe unicamente a presença de um genitor programador.
Gardner sublinha o fato de a criança ser uma participante ativa, junto ao alienador,
para a definição e depreciação do genitor-alvo da SAP. Sem a contribuição da
criança, não é possível diagnosticar a Síndrome até quando existe a prática de uma
programação persistente por parte do alienador. Se a criança não responde à
campanha do genitor alienador, não apresentará os sintomas típicos da SAP nem
hostilizará seu ente querido.

36
ASOCIACIÓN ESPAÑOLA DE NEUROPSIQUIATRIA, La Junta Directiva, Rev. Vol. 30, nº 107, p. 535-49, España:
Setembro-2001.

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Para Gardner a Síndrome é composta por oito sintomas manifestados pela


criança, entre eles, uma campanha de difamação contra o genitor afastado dela;
racionalizações frívolas ou absurdas para criticá-lo; ausência de ambivalência, isto é,
há uma polarização por parte da criança em relação a um dos pais; a criança como
pensador independente, isto é, afirmações contundentes de que a decisão de
rejeitar o genitor-alvo é só dela; apoio automático seja qual for o tema ao genitor
guardião; ausência de culpa ao rejeitar um dos pais; presença de encenações,
frases e situações que denotam que a criança foi orientada para determinadas
respostas; espraiamento da animosidade da criança em direção à família estendida
do genitor-alvo.
Outras pessoas que apresentem forte vínculo com a criança, tais como avós,
tios, padrastos, madrastas, entre outros podem induzir a SAP, por vezes como
programadores principais, alienando os próprios genitores da criança ou mais
comumente como alienadores secundários, ou seja, apoiando a campanha do
genitor alienador.
Gardner elencou três estágios da SAP, a saber: leve, moderada e severa –
tanto para a criança como para o programador. Ele propõe essa diferenciação entre
os níveis com o intuito de indicar tratamento específico e adequado conforme a
gravidade dos sintomas. Nos casos leves pode não apresentar sintomas
psicopatológicos e se mostrar bem adaptada socialmente, as dificuldades costumam
surgir na presença do genitor-alvo. Nos casos moderados a depreciação da criança
em relação ao genitor não guardião aparece mais forte, ela passa a apresentar
todos ou quase todos os sintomas da Síndrome. Nos casos severos, a criança se
recusa e demonstra repulsa em manter qualquer tipo de contato com o genitor-alvo,
bem como com a família extensa deste e se mostra fanática, perturbada, com
fantasias paranoides em relação ao genitor-alvo. A reaproximação com o genitor não
guardião é praticamente impossível e o vínculo emocional entre genitor e filho
parece haver sido cortado e muitas vezes de modo irreversível.
Alguns autores apresentam divergências à teoria de Gardner, desnudando
suas deficiências. Entre eles, pode-se citar Douglas Darnall, psicólogo norte
americano que atua como perito em tribunais de estados norte americanos e em sua
clínica especializada em divórcios altamente litigiosos. No ano de 1997 Darnall
definiu Alienação Parental como qualquer constelação de comportamentos,

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

conscientes ou não, por parte do genitor guardião, que podem provocar uma
perturbação na relação entre a criança e o genitor-alvo. O autor se compara e se
diferencia de Gardner em alguns aspectos e deixa claro que sua ênfase inclina-se
sobre os pais. Entre estes aspectos está o de que a Síndrome de Alienação Parental
se refere ao comportamento da criança, por meio de sintomas que ela manifesta,
enquanto a Alienação Parental se concentra no comportamento dos pais, os quais
podem alienar, sem necessariamente, levar à síndrome descrita por Gardner.
Outra diferença apontada por Darnall é a de que, para Gardner, as críticas de
um ex-cônjuge em relação ao outro deveriam ser injustificadas e exageradas,
enquanto que, para ele, não necessariamente estas condições devem estar
presentes, uma vez que um pai ou mãe pode tentar alienar o filho insistindo em
apresentar defeitos ou falhas reais demonstradas pelo outro genitor. Compreender a
dinâmica da Alienação Parental e reconhecer comportamentos que podem provocá-
la se mostra importante para os pais, familiares, advogados, juízes e profissionais da
justiça e da saúde, visando, sobretudo o bem-estar das crianças e adolescentes.
Darnall (1997b) apresentou exemplos de comportamentos dos pais para o
reconhecimento e prevenção do processo de Alienação Parental, entre eles, dar
oportunidade de escolha ao filho quanto a querer visitar o pai ou mãe ou deixar para
que eles decidam por si mesmos; contar em detalhes para a criança sobre o conflito
conjugal e as razões da separação do casal, alegando clareza e sinceridade, mas de
forma a se tornar doloroso para o filho; o fato do pai ou da mãe recusar em
reconhecer que a criança tem propriedade e liberdade para transportar seus
pertences entre as residências dos pais; inflexibilidade quanto aos horários e o
agendamento de atividades para os filhos nas datas das visitas ou mesmo quando
são criadas situações prazerosas para que os filhos não desejem visitar o outro
genitor; quando as visitas ocorrem, o pai ou mãe demonstra mágoa ou tristeza pelo
fato do filho haver ficado contente na companhia do outro genitor, assim as crianças
tendem a entrar em conflito sem saber como agir no retorno das visitas, entre outros.
Segundo o autor (Darnall, 1997c) a Alienação Parental pode variar em grau
de severidade, considerando-se a atitude do guardião, podendo variar de leve, por
exemplo, quando o pai ou mãe, ocasionalmente, se refere ao outro por nomes
pejorativos até um nível grave nas situações em que um ex-cônjuge
conscientemente deseja destruir a relação do filho com o outro genitor. Contudo,

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adverte que há fatos reais para o afastamento entre a criança e um dos genitores, é
natural que o pai ou mãe queira proteger o filho do outro e isto não configura
Alienação Parental. Entre os aspectos reais podem estar falhas de relacionamento,
punições exageradas, insensibilidade para as necessidades das crianças, carência
de compreensão quanto ao desenvolvimento infantil, uso de drogas e abusos físicos
e emocionais.
Contudo, para Darnall (1997c) os alienadores podem ser classificados em três
tipos, a saber, os ingênuos, os ativos e os obcecados. Os alienadores ingênuos
seriam aqueles pais que na maior parte do tempo conseguem ser pacíficos no que
diz respeito à relação do filho com o outro genitor, porém ocasionalmente fazem ou
dizem algo para alienar ou reforçar a Alienação Parental. Os alienadores ativos
sabem lidar com a relação entre o ex-cônjuge e o filho do casal sem provocar a
Alienação Parental. Contudo, por vezes, impulsivamente perdem o controle sobre o
que dizem ou fazem em relação aos filhos, movidos pela mágoa e ressentimento ou
em resposta a provocação do ex-cônjuge e intencionalmente atacam o outro
envolvendo os filhos.
Quanto aos alienadores obcecados seriam aqueles que possuem fervorosa
intenção de destruir a imagem do ex-cônjuge para o filho e, se possível, não deixar
vestígios do relacionamento entre ambos. Este tipo de alienador geralmente não
possui autocontrole ou discernimento suficiente para reconhecer que seu
comportamento está prejudicando a criança. Frequentemente um genitor que tenta
alienar a criança pode se apresentar como uma combinação entre os tipos ingênuo
e ativo. O autor advertiu que os tipos não devem ser considerados como
diagnósticos clínicos, uma vez que não foram validados como tal. Também a
distinção entre os tipos de alienadores não devem servir para culpar ou atacar uma
das pessoas do ex-cônjuge de forma a reforçar o litígio. Eles devem ser vistos como
um padrão de comportamento a fim de melhor compreender a Alienação Parental.
Darnall (1998) enfatizou que a única maneira de proteger as crianças de pais
alienadores, sobretudo obcecados, é a prevenção, sendo este o passo mais
importante tanto para pais quanto para os profissionais. Daí a importância na
detecção precoce de sinais de Alienação Parental e a tomada de medidas
preventivas e educativas quanto a sua evolução, a fim de assegurar o bem-estar da
criança ou adolescente envolvido no litígio. Neste sentido, os tribunais possuem a

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missão de trabalhar no reconhecimento precoce dos indicadores de Alienação


Parental e auxiliar na educação e esclarecimento dos pais e advogados inseridos
profissionalmente nas ações judiciais a fim de impedir que os pais ou advogados se
utilizem de métodos que busquem retardar o andamento das ações, como pedidos
de renovação de prazos, adiamentos e outros recursos. O autor acrescenta a
necessidade dos operadores da justiça buscarem tentativas de acordo entre os ex-
cônjuges antes da determinação da guarda dos filhos.
Darnall (1998b) destacou como recursos indispensáveis ao perito avaliador a
objetividade e imparcialidade, uma vez que o autor relata que as principais violações
éticas encontradas ao longo do seu trabalho se deram na atuação dual, ou seja,
quando o avaliador possui qualquer tipo de vínculo com uma das partes do processo
ou ainda quando emite pareceres sobre pessoas com as quais não teve contato ou
avaliou. Ainda no que tange aos avaliadores, Darnall (1998b) elencou medidas a
serem tomadas tais como informar às pessoas que estão participando da avaliação
os limites da confidencialidade, pois, as informações constarão de relatórios periciais
que irão para os autos dos processos judiciais, além de diferentes técnicas utilizadas
a fim de formar uma imagem coesa da família e, ao final da avaliação, o avaliador
deve descrever as competências parentais das pessoas e o papel do pai e da mãe
no contexto familiar.
Em síntese, a Alienação Parental pode ser apresentada como um distúrbio
patológico, ou seja, uma síndrome, na esteira do pensamento de Gardner e outros
teóricos que concordam com ele ou como uma disfuncionalidade no exercício da
parentalidade conforme os pressupostos apresentados por Darnall e a corrente de
pesquisadores que o corroboram. Embora a Alienação Parental seja um construto a
ser estudado de modo mais aprofundado e a polêmica da validação da síndrome
esteja longe de terminar, é de fundamental importância que todos os profissionais
envolvidos em situação de litígio familiar, que envolvem crianças e adolescentes,
possam retornar sempre ao ponto primordial que consiste em observar a diretriz
proposta nas legislações nacionais e internacionais que visam o melhor interesse da
criança.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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CONCLUSÃO

Percebemos que durante as discussões buscávamos identificar o cerne da


intolerância nas relações humanas, aquele dispositivo invisível e inaudível aos
sentidos de muitos juristas, promotores e defensores de direitos, que em nossa
práxis é possível observar.
Dessa forma concluímos que a porção humanizadora, que integra direitos e
deveres, que se apoia na proteção integral, no estado democrático de direito, está
contida no trabalho do setor técnico dos Tribunais de Justiça.
E, por meio do acolhimento por uma escuta preparada efetiva-se um vínculo
breve, mas capaz de propiciar a resolução dos conflitos e naturalizar o que é próprio
das relações humanas que, até aquele momento, denotava aos integrantes da lide
ser estrangeiro, assustador e incompreensível.
Antonio (2013) discorre em sua tese de doutorado que a afetividade é
desenvolvida ao longo da vida, a partir das experiências do individuo na família e
inserida à cultura, as quais promovem estereótipos e determinismos próprios de
cada espaço e função socializadora, por esse prisma estendeu-se ao Judiciário o
espaço social coercitivo e a função de extirpar conflitos de forma a promover afetos
negativos, de tristeza como exemplo, diferentemente do que é esperado na
convivência familiar e comunitária, ou seja, um espaço de alegria e afetos positivos.
A autora em seu trabalho acrescenta que historicamente as ações dos
indivíduos estão envoltas por emoções e sentimentos, os quais permeiam as
mudanças sociais individuais e coletivas.
Portanto o reconhecimento desses afetos que são fenômenos históricos e
estão sempre em construção, promovendo subjetividades singulares e ao mesmo
tempo diversas, assim como postura profissional baseada na compreensão dos
estereótipos e da naturalização dos fatos se faz mister na prática dos atores que
buscam desenvolver metodologias para resolução de conflitos nas Varas de Família.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

ABADE, Flávia. Famílias patrifocais: paternagem e socialização dos filhos. Ribeirão


Preto: USP, 2014. Tese (Doutorado) – Programa de pós-graduação da Universidade
Federal de São Paulo, Ribeirão Preto, 2014.
ANTONIO, Maria de Lourdes Bohrer. Relações afetivas em litígio e a mediação
familiar. São Paulo: PUC, 2013.Tese (Doutorado) – Programa de pós-graduação DA
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
BARBOSA, Luciana de P. Gonçalves e CASTRO, Beatriz. Alienação parental: um
retrato dos processos e das famílias em situação de litígio. Brasilia: Liberlivro, 2013.
DARNALL, Douglas New definition of Parental alienation: what is the difference
between Parental Alienation (PA) and Parental Alienation Syndrome (PAS)? (1997).
Disponível em http://www.parentalalienation.org/articles. Acesso em: 8 abr. 2016.

_______(1997b) Symptoms of Parental Alienation. Disponível em:


<http://www.parentalalienation.org/articles.> Acesso em: 8 abr. 2016.

_______(1997c) Tree Types of Parental Alienators. Disponível em:


<http://www.parentalalienation.org/articles.> Acesso em: 8 abr. 2016.

_______(1998) What can the courts do about parental alienation? Disponível em:
<http://www.parentalalienation.org/articles. > Acesso em: 8 abr. 2016.

_______(1998b) Ethical psychological evaluations. Disponível em:


<http://www.parentalalienation.org/articles. > Acesso em: 8 abr. 2016.

ASSOCIACIÓN ESPAÑOLA DE NEUROPSIQUIATRIA, La Junta Directiva. La


Associación Española de Neuropsiquiatria haa la seguiente declaración em contra
del uso clinico y legal del lhamado Sindrome de Alienación Parental. Rev. esp. de
Neuropsiq. Espanha, vl.30 n.107 p.535-49 set.2010. Disponível
em: <http://www.revistaaen.es/index.php/aen/essue/view/1274> Acesso em: 13 out.
2016.
REDE NACIONAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA, Seminário Nacional: Paternidade e
Primeira Infância. Midia Visual – Rio de Janeiro - 2015. Disponível
em: http://primeirainfancia.org.br/videos-seminario-paternidade/ Acesso em: 16 dez.
2016.

SOUSA, Analícia Martins. Síndrome da Alienação Parental: um novo tema nos


juízos de família. São Paulo: Cortez, 2010.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A ESCUTA DE CRIANÇAS NAS SEPARAÇÕES LITIGIOSAS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - LIMEIRA

“A PRÁTICA PROFISSIONAL JUNTO ÀS VARAS DE


FAMÍLIA”

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2016
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Rosângela Aparecida Blumer – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira

Fabiana Aparecida de Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Limeira

AUTORES

Adriana Negretti Cruz Campana – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rio Claro

Alice Rodrigues Gonzales Florentin – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Sumaré

Beatriz Oliveira Batisita Simonetti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rio


Claro

Carolina de Lima Sampaio – Assistente Social Judiciário – Comarca de Piracicaba

Clarice Ana Krüger Gerber – Assistente Social Judiciário – Comarca de Limeira

Daniela Redigolo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Capivari

Flávia Bortoleto Orlani- Assistente Social Judiciário – Comarca de Piracicaba

Milla Cristiane Pavão Gonçalves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Leme

Rafael Paz Landim Barrenha – Psicólogo Judiciário – Comarca de Piracicaba

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“De tudo ficaram três coisas...

A certeza de que estamos sempre recomeçando...

A certeza de que precisamos continuar...

A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...

Portanto, devemos fazer da interrupção um caminho novo...

Da queda, um passo de dança...

Do medo, uma escada...

Do sonho, uma ponte...

Da procura, um encontro...”

“Vida”

(Fernando Pessoa)

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AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos profissionais do Setor de Informática da Comarca de


Limeira que sempre se dispuseram a nos auxiliar quanto ao bom funcionamento dos
equipamentos, garantindo assim a qualidade das nossas reuniões.

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INTRODUÇÃO

Inicialmente, ponderamos que o Grupo de Estudos de Limeira tem


possibilitado a inserção de profissionais da região, os quais tem, nas reuniões, um
espaço para reflexão sobre a prática profissional, levando-se em conta a realidade
de cada comarca, que no interior, muitas vezes, são bastante distintas entre si,
sendo que, em muitas, não existe uma equipe técnica, mas apenas um profissional
atuando, geralmente do Serviço Social.

Em anos anteriores o Grupo de Limeira enfocou o trabalho cotidiano


desenvolvido pelos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários na Vara de Infância
e Juventude, sobretudo, relacionado ao tema da adoção, sob diferentes
perspectivas. A partir de 2013 o grupo decidiu se aproximar de assuntos atinentes a
Vara de Família, já que a maioria atuava também nesta área.

A reflexão do papel dos Assistentes Sociais e Psicólogos enquanto peritos


nos processos de guarda e regulamentação de visitas - considerando os aspectos
éticos, técnicos e metodológicos - revelaram as dificuldades que perpassam os
processos de divórcios altamente litigiosos com disputas de guarda entre as partes.
Por conseguinte, o Grupo elencou alguns aspectos relevantes que poderiam auxiliar
na elaboração dos laudos sociais e psicológicos nestas situações.

Diante das especificidades de não haver nos casos de Varas de Família o


acompanhamento da rede socioassistencial, a intervenção do técnico fica mais
restrita à escuta e observação do próprio contexto familiar. A partir desta
constatação, os participantes refletiram sobre a importância do papel da
criança/adolescente na avaliação e elaboração do estudo psicológico e social, a fim
de aprofundar o conhecimento da dinâmica familiar instaurada. Com este objetivo,
foi traçado um percurso metodológico de aproximações ao tema proposto,
percebendo – nos limites das pesquisas realizadas - a escassez de referenciais
bibliográficos na área de Serviço Social no que tange à escuta de crianças.

477
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesta linha, houve indagações acerca da centralidade das singularidades da


escuta de crianças; preocupação com as metodologias e instrumentais utilizados
nas entrevistas com o público infanto-juvenil, bem como, com os objetivos desta
intervenção; análises quanto à importância de não revitimizar estas crianças durante
as avaliações e intervenções profissionais.

Com efeito, abordou-se limites e possibilidades da atuação conjunta


interprofissional, culminando com a discussão do papel dos assistentes técnicos em
vista do novo Código de Processos Civil, que traz complexidades ainda mais
profundas à atuação técnica dentro do Judiciário.

A fim de qualificar os estudos nestes “processos altamente litigiosos”,


problematizou-se a utilização do instrumental "visita domiciliar", evidenciando-se sua
condição de aprimorar as avaliações necessárias a estes casos. E, apesar de nossa
atuação não ter cunho interventivo nem de acompanhamento, refletiu-se sobre a
necessidade de aprofundamento e sistematização do conhecimento acerca das
intervenções conciliatórias, de mediação, das visitas assistidas, além das oficinas de
parentalidade – atentando-se para os limites das avaliações no contexto judiciário e
encaminhamentos à rede socioassistencial disponível em cada município.

Discutiu-se as principais ideias e conceitos acerca da família e da infância e


suas transformações ao longo da história, bem como da instituição do divórcio na
sociedade contemporânea. Barbosa e Castro (2013) problematizam as mudanças de
hábitos e comportamentos que dificilmente acompanham o ritmo das transformações
dos valores, observando-se que ainda hoje há o predomínio da concepção
tradicional de família nuclear como o espaço ideal para a conjugalidade e
parentalidade – retomando os ideais do século XX.

Visando contemplar esta temática, o grupo se valeu de apresentações de


seminários pelos próprios integrantes, contando também com a presença de
profissionais e pesquisadores que explanaram sobre suas teses de doutorado Chispi
(2012) e Carvalho(2015) e experiências profissionais referentes à escuta de crianças
e adolescentes.

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1. UM BREVE PERFIL DAS FAMÍLIAS EM SITUAÇÃO DE LITÍGIO

A compreensão sistêmica da família e os desafios da parentalidade e da co-


parentalidade, independentemente da união ou separação do casal pode revelar
uma dinâmica funcional ou disfuncional do sistema familiar como um todo, com
repercussões positivas ou negativas para o desenvolvimento integral dos filhos –
que deveriam ser em qualquer hipótese a prioridade de cada genitor ou daqueles
que desempenham a função parental, independentemente da separação conjugal.

Neste sentido, a confirmação da competência parental do outro cônjuge ou


ex-consorte, o respeito, o reconhecimento de sua contribuição, de sua autoridade e
de suas decisões em relação aos filhos seria de extrema relevância para o
desenvolvimento de relações adequadas diante das crianças e adolescentes da
família. Todavia, essa situação dificilmente é observada nos casos de intenso litígio
pelos técnicos judiciários.

De acordo com Barbosa e Castro (2013), verifica-se que há crises


previsíveis no ciclo de vida familiar, tais como o nascimento e adolescência dos
filhos, a preparação deles para a independência e suas saídas de casa. No entanto,
a separação conjugal constitui uma crise não previsível e é uma das experiências
mais complexas pelas quais um indivíduo pode passar, a qual exige um
redimensionamento de papéis, funções e identidades, aspectos difíceis de serem
elaborados.

Nesta etapa, há que se cuidar para que não haja conflito de lealdade por
parte dos filhos que tendem a construir alianças com o(a) genitor(a) que percebem
como mais frágil, afastando-se do outro. Ressalta-se que esse fenômeno poderia
acarretar prejuízos significativos para o equilíbrio emocional dos filhos e demais
membros envolvidos. Neste sentido, Miermont afirma que:

...quando os cônjuges não têm confiança nas suas próprias relações


conjugais – as quais se encontram ameaçadas e, mesmo, afetadas pelas
relações parentais e reativadas por conflitos transgeracionais não resolvidos
– eles voltam-se em direção à criança para compensar suas necessidades

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

insatisfeitas pela relação conjugal. A criança fica “aprisionada por um


conflito de lealdade e acabará por afastar-se de um dos pais, ou, então, por
acompanha-los na corda bamba, conseguindo dar segurança a ambos”.
(MIERMONT, 1994 APUD BARBOSA, CASTRO, 2013, p.137)

Barbosa e Castro (2013) também refletem sobre os conceitos de Síndrome


de Alienação Parental (SAP) de Gardner e de Alienação Parental (AP) de Darnall,
discorrendo sobre suas nuances e a grande difusão dos termos no meio jurídico,
considerando a aprovação da Lei de Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010) como
precoce e pouco refletida, parecendo revelar interesses outros que não
necessariamente o do princípio do melhor interesse da criança.

Observa-se que boa parte dos conflitos que chegam ao âmbito judiciário,
após a separação, ocorrem devido à indiferenciação de mágoas e ressentimentos
referentes à vida conjugal com o exercício da parentalidade, gerando confusão de
papeis de pais/cônjuges/êx-cônjuges. Tal confusão alimenta a necessidade de
desqualificação mútua comprometendo a imagem do outro genitor perante os filhos
e prolongando o litigio.

Durante o litígio, a criança acaba sendo envolvida no conflito dos pais e, em


muitos casos, colocada como protagonista e prêmio da disputa. Os genitores, em
sofrimento pelo rompimento da relação conjugal, não conseguem ou tem dificuldade
em protegê-la, ou até mesmo fortalecê-la frente esses conflitos.

Diversos autores enumeram alguns dos sintomas apresentados pelas


crianças que vivenciam o conflito dos pais, tais como: raiva, insegurança, medo,
desnorteamento, agressividade, depressão, dificuldades de aprendizagem,
relacionamento social, construção da autonomia e até somatizações (dor de cabeça,
febre, diarreia, vômitos, perda ou excesso de apetite). Contudo:

(...) a maneira como as crianças percebem e respondem a separação dos


pais pode variar de acordo com a idade, sexo, nível conflito parental,
manejo de cuidados alternativos, padrão de apego e competência individual,
redes de apoio disponíveis, e do nível de desenvolvimento cognitivo”.
(SOUZA E RAMIRES, 2006 APUD BARBOSA, CASTRO, 2013, p. 139)

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Frente às dificuldades das crianças e adolescentes, a realização de um


trabalho em conjunto com os genitores pode ser o caminho para dirimir essas
consequências negativas. O esclarecimento aos pais sobre a importância do diálogo
e respeito às condições cognitivas e emocionais dos filhos corrobora para que esses
últimos enfrentem melhor as mudanças e dificuldades oriundas da separação
conjugal.

Sabe-se que uma relação amistosa entre os ex-cônjuges e a convivência


dos filhos com ambos é necessária e salutar para o bom desenvolvimento
psicológico dessas crianças. Neste sentido, Souza e Ramires, concluem que:

(...) o percurso adaptativo dos filhos dependerá da quantidade e da


qualidade dos contatos destes com o genitor não guardião, do ajustamento
psicológico do genitor que detém a guarda, da capacidade de cuidado
deste, do nível de conflitos entre os pais após a separação, das dificuldades
socioeconômicas e dos eventos estressores adicionais que incidirem sobre
a vida familiar. (SOUZA e RAMIRES, 2006, APUD BARBOSA, CASTRO,
2013, p.141)

2. ALGUMAS CONSIDERAÇÔES SOBRE DESENVOLVIMENTO


INFANTIL

Sabe-se que a separação consensual ou litigiosa pode gerar muitos


problemas à saúde, ao desenvolvimento e ao equilíbrio psicológico e social da
criança e adolescente, uma vez que os pais envoltos nos desentendimentos, na
maioria das vezes, não serão capazes de oferecer-lhes uma atenção efetiva, sendo
que estarão vulneráveis ao sofrimento e às graves consequências psíquicas e
sociais frente a tal situação, com significativos prejuízos principalmente ao seu
desenvolvimento.

Para que haja uma boa avaliação o Psicólogo e o Assistente Social que
atuam no espaço sócio ocupacional judiciário deverão ter contato com muitas
pessoas significativas nesse processo, ou seja, com os pais, com os filhos, com
cuidadores ou familiares responsáveis, professores, etc. Além disso, a observação,
a atenção e a análise do desenvolvimento da criança no âmbito neuro-motor,
cognitivo, linguagem e afetivo- social fornecem pistas essenciais para se concluir
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

como a criança está respondendo a situação de conflito entre as figuras parentais,


sobre a qualidade da atenção e dos cuidados que vem recebendo dos pais e ainda
sobre a qualidade dos vínculos.
Portanto, conhecer a criança/adolescente não se restringindo a seus
sentimentos, os sentimentos por ela(e) verbalizados, mas sim identificando tanto
suas capacidades quanto dificuldades e observando se seu desenvolvimento está
compatível pode ser de grande auxílio no processo de avaliação do funcionamento
familiar e do lugar que esse(s) filho(s) ocupam na vida de cada uma das partes em
litígio.
Apesar dos enormes avanços de diferentes ciências como a Neurologia, a
Fonoaudiologia, a Psicologia e a Pedagogia, ainda existe uma enorme dificuldade
em conceituar o processo de desenvolvimento humano, tendo em vista o vasto
campo de estudo que envolve esse universo. Nesse aspecto, alguns teóricos vêm
fazendo algumas aproximações a fim de propor novas formas de estudar o
desenvolvimento, a partir de todo o ciclo vital do indivíduo.
Segundo Gerrig (2005) a Psicologia do Desenvolvimento propõem teorias
para explicar como e por que as pessoas mudam durante a vida, valendo-se para
isto de investigações normativas para descrever as características de determinadas
idades ou estágios do desenvolvimento. Assim, através de estudos longitudinais os
mesmos indivíduos são acompanhados com o passar do tempo, enquanto que os
modelos transversais estudam simultaneamente diferentes grupos etários.

Dentre inúmeras conceituações, temos que o desenvolvimento humano


pode ser definido como: “o processo de crescimento, amadurecimento e mudanças
a nível físico, comportamental, cognitivo e emocional de um indivíduo ao longo de
toda a vida”.

Desenvolvimento humano também implica “na capacidade de aprender e


apreender novos experimentos que são armazenados na memória, em forma de
marcas ou registros, os quais poderão ser acessados e utilizados posteriormente”.

De acordo com Motta (2005) a Psicologia do Desenvolvimento enfrenta


novos desafios no século XXI. As novas concepções de atuação profissional que
enfatizam a prevenção e a promoção de saúde fazem com que profissionais de

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várias áreas busquem na Psicologia do Desenvolvimento subsídios teóricos e


metodológicos para sua prática profissional.

No entanto, não se pode ignorar que cada criança é um indivíduo, com uma
história particular, que pode atingir as fases de desenvolvimento tanto mais cedo
quanto mais tarde do que outra criança da mesma idade. Por consequência, tais
linhas em sua maioria caem nas armadilhas do conceito de normalidade. Cabe aqui
ressaltar, que há problemáticas que podem surgir, a partir de fatores internos ou
externos, as quais se tornarão obstáculos ao desenvolvimento.

O processo evolutivo de cada ser e consequentemente da espécie humana


começa com informações codificadas no genoma, mas sua expressão é
continuamente modulada pelas sucessivas variáveis ambientais e/ou relacionais em
cada estágio pré ou pós-natal.

É imperioso ressaltar que o conceito de infância também é uma noção


mutável ao longo da história e nas diferentes sociedades. Além disso, tal conceito
sofre influência de outros fatores como classe social, cultura-educação, religiosidade
e nível de estimulação.

Na verdade, pode-se afirmar que o desenvolvimento humano tem seu início


na primeira etapa do milagre da vida, ou seja, a partir já da fecundação.

Ao longo do processo de avaliação, a obtenção de dados do período


gestacional, não só ouvindo a genitora, mas também questionando o genitor poderá
nos dar elementos preciosos para análise dos avanços/obstáculos que a criança ou
o adolescente apresentam, além de sinalizar o que aquele(a) filho(a) representa
para cada uma das partes.

Já é consenso que após o nascimento e principalmente após o 8º mês de


vida a criança necessita de uma rotina bem planejada, estruturada e organizada que
lhe propicie conforto e segurança para sua organização temporal e espacial.

Por essa razão, não podemos ignorar que a proposta de guarda


compartilhada, num sistema revezamento contínuo, com alternância de residência e
cuidador, ocorrendo principalmente nos primeiros anos de vida, poderia ser
altamente prejudicial e desestruturante para uma criança, mesmo que possibilitasse

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

convívio igualitário com os genitores, pois uma criança em tenra idade tem outras
necessidades primordiais.

Segundo Dolto (1989), desde bebê até por volta de quatro anos de idade,
uma criança necessita daquilo que ela denominou “um continuun” espacial, uma
espécie de envoltório ambiental, portanto devem ser evitadas as mudanças
repetidas e abruptas do local onde ela se sente segura, protegida e atendida por um
cuidador específico em suas necessidades básicas.

Ressalta-se aqui que, mesmo a situação de visitas pelo genitor(a), com o


qual a criança em tenra idade não convive, deve ocorrer preferencialmente no
ambiente que ela já está adaptada e pensando o melhor interesse da criança em
muitas situações é preferível que ela seja visitada e não visite o genitor(a) em
ambiente estranho. Isso exige abdicação por parte dos pais, bem como grande
empenho dos profissionais com extensa bagagem teórica para o convencimento do
magistrado e principalmente das partes em audiência, onde normalmente é
alimentado um clima beligerante, principalmente pelos advogados, e não raramente
é ignorado o princípio do interesse superior da criança/adolescente.

Por outro lado, destaca-se ainda que o tempo cronológico da criança é


diferente. A ausência de um dos pais por muito tempo pode ser interpretada por ela
como abandono. E o sofrimento da criança gera sintomas físicos, como atrasos no
desenvolvimento neuro-motor, de autonomia, atraso na aquisição da fala, gagueira,
mutismo, dificuldades cognitivas acompanhadas de declínio do rendimento escolar,
insônia, ansiedade, agressividade, enurese, encoprese e até depressão, sintomas
esses que devem ser tratados com urgência.

Além disso, a criança terá maior garantia de bom desenvolvimento,


inclusive de estabilidade psico-emocional se estiver livre do stress causado pela falta
de rotina e pelas constantes alterações espaciais, bem como do stress
desencadeado por ser expectadora de conflitos contínuos envolvendo as figuras que
lhe são afetivamente significativas, os pais.

A criança necessita ser estimulada e principalmente ter liberdade para


experimentar o universo ao seu redor, tendo acesso a objetos e espaços novos, com
segurança, para poder se desenvolver bem, adquirindo assim habilidades motoras,
484
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cognitivas, de linguagem e sociais, tais como engatinhar, sorrir, vocalizar, piscar,


andar, tocar, conhecer e reconhecer diferentes texturas, imagens, cores, sons, etc.
Neste sentido, as visitas domiciliares são relevantes e instrumento imprescindível,
apesar de opcional, principalmente por parte dos assistentes sociais para avaliação
do ambiente oferecido à criança/adolescente.

Todas as pesquisas têm mostrado a importância dos primeiros anos de vida


da criança para seu desenvolvimento ulterior. Cada etapa é marcada por
acontecimentos particulares, que no início resultam da bagagem genética e mais
tarde são acrescidos os elementos biofisiológicos, intelectuais, cognitivos,
emocionais e afetuosos. Todos esses elementos serão impressos na criança, tanto
corporal quanto mentalmente, como elementos conscientes ou inconscientes. Serão
armazenados todos os fatos vividos durante a existência, sobretudo aqueles
ocorridos na 1ª infância. Muitos deles registrados com um código específico que
poderão ser acessados enquanto outros ficarão como meras marcas (hieróglifos ou
anagramas), signos através dos quais é impossível resgatar sua real significação ou
serem traduzidos e incluídos na linguagem, relembrados e ressignificados. Por
exemplo, a nossa incapacidade de relembrarmos e relatarmos a experiência do
nosso próprio nascimento.

Enfatiza-se que a amamentação é essencial para o recém-nascido humano


nos primeiros meses de vida. Ele necessita deste alimento e das substâncias nele
contidas para seu bom desenvolvimento físico e imunológico, porém este leite
precisa ser acompanhado do carinho, do afago, do desejo da “mãe”. Assim, saber
como, quando e porque ocorreu o desmame também são pistas sobre a qualidade
dos vínculos. Todavia cumpre enfatizar que aleitamento (amamentação ou não)
transforma a pele na maior ponte de contato com bebê, seguido pelo olhar e o tom
de voz daquele(a) que o alimenta.

Ressalta-se, portanto, a importância do processo de desmame ser


gradativo e desejado pela mãe, sem maiores angústia ou culpa, uma vez que as
ofertas de carinho, de atenção, os toques, o tom de voz sereno/tranquilizador e as
carícias ao bebê devem continuar, independente da amamentação. Melanie Klein
(psicanalista inglesa) fundamenta sua teoria da personalidade colocando toda
ênfase nesta etapa inicial de vida do bebê.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Com o desenvolvimento sensorial todos os organismos sociais atuam para


formar vínculo entre o recém-nascido e sua espécie. Os efeitos do isolamento social
e o abandono são identificados posteriormente como incapacidade para a vida em
grupo e para o estabelecimento de vínculos saudáveis ao longo da vida.

De acordo com Bowlby (1995), o retardo no desenvolvimento são efeitos


em grande parte da rejeição e negligência materna ou de quem a substitua e se
prematuro, pode se tornar permanentes e irreversíveis, com prejuízos significativos
para a personalidade e inteligência da criança.

É importante salientar que a criança não é um adulto em miniatura,


tampouco uma tábula rasa, ela é um importante ator na dinâmica familiar, que, em
parte, determina seu próprio curso e desenvolvimento. Desde muito pequeno o
bebê, através de suas respostas e reações, também controla o comportamento dos
adultos, em especial da mãe ou do cuidador(a) a e este(a) modula o dele.

Entre 16 e 18 semanas de vida começam as vocalizações, os murmúrios já


aparecem onde a linguagem é rica. Daí ser comum observarmos prejuízos no
desenvolvimento da linguagem em crianças que foram precocemente para
instituições de acolhimento inadequadas ou cujos cuidados deixam a desejar, no
sentido de falta de estimulação da linguagem a partir de verbalizações restritas por
parte dos cuidadores, mesmo na família.

A evolução das vocalizações depende do estímulo propiciado por um


ambiente gratificante. Entre 9 e 12 meses o bebê atinge a fase do balbucio com a
emissão repetida de sons ainda sem significação para o seu grupo social. Entre 12
e 15 meses pronuncia as primeiras palavras. A fala atinge sua verdadeira
importância com o aumento extraordinário do número de vocábulos nos três
primeiros anos de vida1. Tal processo é de extrema complexidade, sendo o que
permite a criança se inserir no mundo adulto, o processo de socialização e inserção
no universo simbólico.

Ainda nos detendo a questões do desenvolvimento infanto-juvenil, quanto a


capacidade cognitiva, temos a teoria de Jean Piaget (psicólogo e pesquisador suíço)
que coloca a inteligência como um momento especial de adaptação biológica dentro
do contexto de vida que para ele é contínua, resultante da interação criativa do
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bebê/ambiente sucedendo-se como comportamento adaptativo/imitativo e reflexo


interno nos anos que se seguem.

Quando somos crianças, passamos pelo processo de aprendizagem, como


a percepção do mundo ao nosso redor, das cores, da fala, das nossas
características físicas e preceitos básicos. Já quando adolescentes, conseguimos
refletir e decidir algumas coisas por conta própria, e no momento em que somos
jovens e adultos e estamos totalmente desenvolvidos utilizamos todas aquelas
crenças, valores e comportamentos, acumulados ao longo de nossa vida para
nortear nossas atitudes.

Os adolescentes conseguem entender que sua realidade específica é


apenas uma entre várias imagináveis, e começam a questionar temas profundos
relacionados a verdade, justiça e existência (GERRIG, 2005). Não ao acaso o ECA
estabelece que a partir dos 12 anos de idade um adolescente tem direito a ser
ouvido, independente de sua opinião ser seguida, mas sim considerada no diz
respeito às decisões judiciais que envolvem a vida do adolescente.
Porém, se a Lei não considera o particular no que tange as diferenças na
etapa do desenvolvimento, independente da idade e ela friamente estabelece o
limite entre a infância e a adolescência aos 12 anos de idade, cabe aos profissionais
da equipe técnica judiciária o bom senso de identificar o nível de maturidade da
criança/adolescente entrevistado e inteirar o Juíz do feito, inclusive quando há
comprometimento intelectual.

Desta forma, podemos entender um pouco mais sobre o que é psicologia


do desenvolvimento humano e como esta funciona. Cada pessoa deve buscar uma
forma de estabelecer melhores comportamentos e aperfeiçoar essas competências,
para que consiga atender efetivamente suas necessidades, inclusive os técnicos
judiciários.

A noção do desenvolvimento infantil é importante para a atuação


interdisciplinar, tendo em vista que tanto psicólogos quanto assistentes sociais
atuam junto das famílias que chegam ao Tribunal de Justiça. Nesse sentido, tornan-

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se mais um dos elementos a serem apropriados para a maior assertividade nas


avaliações e estudos que serão realizados.

3. A ESCUTA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM PROCESSOS


ALTAMENTE LITIGIOSOS

A retórica é uma arte antiquíssima enquanto a “escutatória” parece


um neologismo extravagante. Entretanto, talvez se trate da
competência mais importante para enfrentar os novos tempos, aquela
a partir da qual as outras podem desabrochar. (GIANNELLA, 2008,
p.11)

Após toda a trajetória anteriormente descrita, acessamos a temática


propriamente dita. Para elucidar o processo realizado pelo grupo, torna-se
necessário enfatizarmos que houve um caminho construído de informações e
conceitos que foram balizados e que antecederam a temática em si. Sendo assim,
pretendemos apresentar a discussão realizada, sem propor qualquer esgotamento.

As discussões perseguiram o questionamento inicial: Como desenvolver a


escuta de crianças e adolescentes?

Vale lembrar que a temática da “ESCUTA” em si, tem sido levantada como
elemento constituinte do instrumental técnico de variadas profissões e em diferentes
áreas. Exemplos disso são as áreas da saúde e assistência social, que enfatizam a
“escuta qualificada” como elemento primordial para realização de atendimentos e
acompanhamentos assertivos com os usuários, englobando o sofrimento psíquico e
as subjetividades, que muitas vezes são ignoradas ou pouco consideradas pelos
profissionais.

Ponderou-se que a escuta é mais que um procedimento técnico e alcança


status de manifestação da postura profissional, na medida em que também revela a
sua concepção de ser humano/mundo que respalda a prática no campo do trabalho.

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A escuta pode ser construída como um processo transparente, através de uma rede
de conversação em que abrimos questões, compartilhamos aspirações,
questionamos e aprendemos, interagimos com o todo e buscamos a pluralidade de
ideias. (Durães-Pereira, Novo e Armond, 2007, p. 466).

Assim, o desafio se coloca desde o recebimento e leitura dos processos,


considerando-se o modo como às histórias são registradas e apresentadas, e,
posteriormente, com a escuta propriamente dita. Trata-se de diferentes versões, a
partir de diferentes vivências de uma mesma experiência, em um contexto bastante
complexo envolto, muitas vezes, de mágoas e ressentimentos.

É necessário dialogar com os requerentes, requeridos e com as crianças e


adolescentes, todos sujeitos, “no e do" universo a ser estudado. O autor Mariotti
(2007, p. 6) também afirma que: "dialogar é, antes de tudo, aprender a ouvir. O outro
precisa ser ouvido até o fim daquilo que ele tem a dizer sem que o interrompamos,
seja para concordar, seja para discordar do que ele fala". A arte de ouvir os outros
conduz a uma importante aprendizagem: ouvir a nós mesmos. É importante assim,
que o profissional também consiga refletir sobre como a natureza daquele processo
o atinge e como isso reverbera na condução do estudo, na escolha das técnicas a
serem utilizadas e mesmo no parecer que será apresentado.

Nesse ponto, destacamos a relevância de uma leitura cuidadosa do processo


e da elaboração de um roteiro semiestruturado para a/as entrevista/s. A ideia não é
que se crie um roteiro rígido, mas que haja a apropriação devida do profissional no
que diz respeito às informações anteriores que são pertinentes a serem acessadas.
Felizmente esse procedimento não impede as falas espontâneas e os conteúdos
inesperados na entrevista, assim o que se destaca é a importância de vislumbrar um
planejamento para o estudo a ser realizado.

Embora o planejamento varie para cada caso e situação específica,


necessitando-se de diferentes abordagens ou técnicas (jogo lúdico, desenho, visita
domiciliar, dentre outros) para compreensão da dinâmica familiar/socioeconômica
em tela, alguns procedimentos foram considerados úteis para o trabalho nas Varas
de Família, inclusive levando-se em conta as recomendações dos Conselhos de
Serviço Social e Psicologia (Resolução CFESS Nº 557/2009 e Resolução CFP
489
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

008/2010) e da experiência prática dos membros do Grupo de Estudos. Desta forma,


destaca-se a importância dos seguintes procedimentos:

 A relevância de atentar para os aspectos técnicos e éticos de cada profissão;

 A realização da quantidade de entrevistas que forem necessárias para o


melhor entendimento possível da situação (justificando o descumprimento de
eventuais prazos determinados);

 O uso de alguns critérios (gravidade das alegações, demanda familiar,


problemas com higiene, dentre outros) para a realização da visita domiciliar, uma
vez que o ambiente residencial é muito revelador, mas também poderia expor
desnecessariamente os envolvidos;

 O cuidado na elaboração dos laudos, descrevendo-se apenas aquilo que é


necessário para a compreensão do caso, respeitando-se as orientações dos
respectivos Conselhos e preservando-se as pessoas envolvidas;

 A realização de supervisão com profissionais experientes, bem como a


discussão de casos com outros colegas da equipe, quando possível;

 A convocação do Requerente antes do Requerido (como sugestão), uma vez


que foi o primeiro que sentiu a necessidade de buscar a intervenção do Poder
Judiciário;

Nos casos de separações conjugais, sem dúvida deve-se priorizar o “melhor


interesse da criança”, mas para isso é necessário deixá-las falar sobre o desejo, nos
laudos porem não se pode deixar de mostrar o que é latente, o que está nas
entrelinhas de sua fala. É ai que entra em cena o conhecimento psicológico, pois a
oitiva de crianças só se fará importante quando feita de forma indireta, por meio do
lúdico, por profissionais qualificados, pois poderão lançar mão de instrumentos
específicos e de sua escuta treinada para dar voz à criança, mesmo em tenra idade.

A oitiva de crianças de forma direta, pelo judiciário, muitas vezes sugerida


pelos advogados, poderá levar a equívocos, e consequentemente causar danos às
crianças, que terão que decidir questões de adultos e escolher ficar com um

490
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

progenitor em detrimento do outro. Esta vontade da criança poderá estar relacionada


com a vontade do progenitor mais coercitivo, poderá ainda acarretar em sentimentos
de culpa, ao ver-se como traidora do genitor(a) não escolhido, com repercussões
graves no futuro.

Importante ressaltar que a escuta deve ser de seus desejos mediante


avaliação psicológica, ou seja, não podemos nos guiar somente pelas palavras que
são ditas, mas, principalmente, pelo sentido que fundamenta sua lógica, assim tudo
que manifesta anterior e posterior ao seu discurso deve ser levado em consideração,
pois são a pura expressão de seu inconsciente. Desta forma, tudo o que antecede e
o que ocorre após a entrevista finalizada, devem ser considerados.

Por essa razão, nunca se deve perguntar à criança ou adolescente sua


opinião de forma direta, mas sim, procurar conhecer, por meio das entrevistas, sua
conduta cotidiana, sua condução nos diferentes espaços de relacionamento e o seu
comportamento em relação aos pais e destes em relação a ela, pois assim surge a
oportunidade de se respeitar o princípio do melhor interesse da criança/adolescente.

Os contatos e as entrevistas requerem espaço. A escuta também precisa


oferecer espaço – compreendido aqui não somente como local físico, mas sim a
adoção de uma postura por parte do profissional que permita aos envolvidos,
principalmente a criança e o adolescente, sentirem-se acolhidos para compartilhar
suas experiências e angústias. É importante que haja o devido cuidado para que não
ocorram interrupções durante as entrevistas tendo em vista o conteúdo delicado que
se acessa.

O ambiente também pode ser mais bem adequado às necessidades da


criança e do adolescente levando-se em conta a disposição dos móveis, bem como
a presença de materiais que facilitem a interação. É importante, portanto, a
disponibilidade de materiais lúdicos, gráficos, dentre outros – sempre em
consonância com a metodologia de trabalho adotada pelo (a) assistente social e
psicólogo e coerentes com a intencionalidade de seu estudo.

Os profissionais devem, ainda, levar em consideração questões relacionadas


ao desenvolvimento da criança, bem como à diversidade sociocultural vivida.

491
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No que se refere ao desenvolvimento infantil, salienta-se as contribuições de


diversos autores (BIAGGIO, 1988; BOLWBY, 1995; DOLTO, 1989; FERREIRA,
2009; PAPALIA & OLDS, 200), uma vez que é importante que o (a) profissional
tenha clareza do que esperar, em geral, daquela fase do desenvolvimento quanto à
capacidade de interação, compreensão e linguagem da criança e do adolescente.

Já a diversidade sociocultural aponta para as questões específicas atreladas


às condições concretas de vida dos envolvidos, sua inserção de classe, o território
habitado e suas possibilidades de acesso às políticas públicas, bem como seu
universo cultural e as suas relações construídas intra e extra familiar.

Nesse contexto enfatiza-se que a exiguidade do prazo de entrega do laudo


não pode se sobrepor à complexidade das situações identificadas durante o estudo.
Assim, pode-se afirmar que “a pressa é inimiga da escuta, especialmente de
crianças e adolescentes”, considerando sua fase especial de desenvolvimento.

Todavia, o cotidiano laborativo das equipes técnicas judiciárias tem como


aspectos relevantes a sobrecarga de processos, o número insuficiente de
profissionais para o atendimento necessário, a remuneração incompatível com as
responsabilidades da função, as dificuldades estruturais, dentre outras, que podem
comprometer não só o cumprimento dos prazos, mas também a qualidade da escuta
dos usuários e, consequentemente, o trabalho de avaliação realizado.

Para desenvolver a escuta, é importante abrir-se para quais significados a


criança e o adolescente imprimem à fala que apresentam, e que vai se elucidando
no decorrer do processo. É importante contribuir para que a criança e o adolescente
consigam expor suas dúvidas, medos, desejos e expectativas sobre a realidade
estudada. Claro, esclarecidos dos limites e potencialidades reais do estudo
desenvolvido.

492
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

O processo vivenciado pelo Grupo de Estudos de Limeira iniciou-se em 2016,


com a curiosidade focada na escuta de crianças e adolescentes em processos
altamente litigiosos. Para acessar a questão revisitamos as atribuições profissionais,
os instrumentais técnicos, o desenvolvimento infantil, e, a escuta, propriamente dita.

Compreendemos que a partir da atribuição técnica tanto de assistentes


sociais como de psicólogos que compõem o quadro técnico profissional do Tribunal
de Justiça de São Paulo - a de subsidiar a decisão do magistrado, evidente, de
acordo com as especificidades das profissões – abre-se um universo de tamanha
responsabilidade que reverberará, de modo frutífero ou não, na vida dos sujeitos de
dos estudos realizados.

Abarcamos as singularidades exigidas para a escuta da criança e do


adolescente – ainda inicialmente tocadas – porém, com alguns elementos que se
destacam, quer sejam: a clareza da natureza e objetivo dos contatos; as
apresentações entre os sujeitos do processo de entrevista – profissional e usuário; a
necessidade de pedir dilação do prazo para desenvolver e aprofundar a escuta (se
for o caso); a criação de um ambiente acolhedor e a criação de um vínculo – ainda
que seja de natureza breve; e a atenção ao processo de desenvolvimento,
linguagem e cultura da criança associado ao seu ambiente familiar e comunitário e
às possibilidades de instrumentais técnicos que variarão de acordo com a
metodologia escolhida pelos profissionais de referência.

Para esta tarefa tem sido exigido dos profissionais das equipes técnicas
judiciárias um repertório de conhecimentos cada vez mais amplo. Se a atuação dos
profissionais da Psicologia e Serviço Social nas separações altamente litigiosas
apresenta novos desafios, a escuta dos envolvidos tem sido uma delas.
Mas o que é escutar? Como saber se o que dizem corresponde ou não a
realidade dos fatos? Como saber se há a implantação de falsas memórias? Como
identificar se houve ou não vitimização sexual quando denunciado pela parte

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

contrária? É possível confiar no relato das crianças? Como conversar com crianças
em tenra idade? A partir de qual idade devem ser ouvidas e como fazê-lo? São
producentes e adequadas as entrevistas realizadas conjuntamente pelos
profissionais das duas áreas? Como cada uma das categorias pode contribuir de
forma mais eficaz no processo de avaliação?
Não se pretende esgotar aqui tais questões, mas apresentar pequenos
acenos em direção a um processo de avaliação interprofissional de melhor
qualidade dentro das limitadas condições oferecidas para a realização de um
trabalho tão delicado e relevante para a vida das pessoas envolvidas.

494
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

ARACAJU. Secretaria Municipal de Saúde. Projeto Saúde Todo Dia. Aracaju, SE,
2003. Aula da especialização em saúde coletiva com Dr. Emerson Merhy em
12/08/05. Aracaju, SE. Videoteca do Centro de Educação Permanente da Saúde,
agosto 2005.

BARBOSA e CASTRO. Alienação parental: um retrato dos processos e das famílias


em situação de litígio, Liber Livros, 2013.
BIAGGIO, A. Psicologia do Desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1988.

BOWLBY, J. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes,1995.


CARVALHO, F. A. HOMEM NÃO CHORA: o abuso sexual contra meninos. Tese
(Doutorado), PUC SP, 2015.
CHRISPI, L. L. S. Um lugar para chamar de meu... o direito à convivência familiar de
crianças e adolescentes em acolhimento institucional. Tese (Doutorado), PUC SP,
2012.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP nº 008/2010. Dispõe
sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário.
Brasília, 30 de junho de 2010.
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Resolução CEFESS Nº 557/2009.
Dispõe sobre a emissão de pareceres, laudos, opiniões técnicas conjuntos entre o
assistente social e outros profissionais. Brasília, 15 de setembro de 2009.
DOLTO, F. Quando os pais se separam. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

DURÃES-PEREIRA, M.B.B.B.; NOVO, N.F.; ARMOND, J.E. A escuta e o diálogo na


assistência ao pré-natal, na periferia da zona sul, no município de São Paulo.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 2, p. 465-76, 2007.
FERREIRA, L.C.Q. Psicologia do Desenvolvimento Psíquico em Jean Piaget.
Lins/SP, 2009.

GIANNELLA, V. Base teórica e papel das metodologias não convencionais para a


formação em gestão social. In: Os desafios da formação em gestão social. 1. ed.,
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MARIOTTI, H. Pensamento Complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem


e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas, 2007.

495
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

NEVES, C.A.B.; ROLLO, A. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde.


Núcleo Técnico da PNH. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. Brasil, 2.
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PAPALIA, D. & OLDS, S. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed (2000).

496
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

FAMÍLIA E QUESTÕES DE TRANSGÊNERO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - MARÍLIA


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
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CORDENADORAS

Maristela Colombo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília


Mara Cristina Lourenço Lara Leite Pavanello – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Marília

AUTORES

Ana Maria Lahoz Ribeiro Almada – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tupã


Berenice de Lara Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília
Carlos David de Freitas – Psicólogo Judiciário – Comarca de Marília
Carolina Castro Pavão – Psicóloga Judiciário – Comarca de Adamantina
Edna Maria Chaves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Eleni Bondartchuk Lira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tupã
Eliane Mendonça Martins – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ipauçu
Janaina Ramalho Ferraz Pereira de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Garça
Janice Maria do Prado – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Juliana Faria – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Keila Nogueira Gomes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Maria Abigail Farinazzi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Martha Soares Cirne de Toledo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tupã
Renata Maria da Silva Gaudenzi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília
Rosangela Baragão de Souza Leite – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Marília
Simone Cristina Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Walkíria Rodrigues Duarte – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pompéia

498
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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INTRODUÇÃO

O grupo de estudos realizado na Comarca de Marília conta com a


participação de profissionais Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça
de São Paulo, de Marília e Comarcas próximas, como Garça, Pompeia e Tupã.
A decisão dos profissionais foi discutir as mudanças observadas nas
dinâmicas familiares atentando-se ao desempenho dos papéis de gênero nesses
processos e à influência deles no estabelecimento das relações afetivas.
Fundamentados nos estudos deste Grupo nos anos anteriores,
especificamente quanto às transformações observadas na sociedade pós-moderna e
como elas afetam as relações sociais e a relação do homem com o mundo,
passamos a refletir sobre a concepção de gênero, indagando como tal
atravessamento afeta as novas relações familiares.
Assim, o presente artigo pretende realizar uma construção histórica da
revolução sexual e dos movimentos sociais que proporcionaram a mudança nas
relações familiares e nos papéis exercidos por seus membros.
Posteriormente o grupo buscou discutir como os modelos familiares lidam
com a mudança de papéis em seu seio e, por fim, contextualizar os desafios
vivenciados em nossa atuação profissional junto às Varas da Infância e Juventude e
Família e Sucessões no interior do Estado de São Paulo.

A FAMÍLIA

O modelo de família tradicional vigente até a década de 50, moldado sob forte
influência da Igreja Católica, é constituído através do matrimônio e é responsável
pela transmissão de valores morais e financeiros. Tal modelo ainda é forte referência
para os dias atuais e traz em seu bojo relações hierárquicas de poder, com papéis
bastante definidos para cada membro segundo o gênero e a geração. Sendo assim,
a Instituição familiar tem o importante papel de "organizar" socialmente as relações
afetivas e sexuais (STENGEL, 2011).
499
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A rigidez dos valores transmitidos pela Igreja às famílias e destas a seus


membros tinha como objetivo a manutenção do exercício do poder e autoridade
centrados no sexo masculino, buscando conter manifestações afetivas calorosas
entre seus membros e, principalmente, reprimindo o exercício da sexualidade
feminina em suas mais variadas formas. Assim, à mulher era delegada a função de
procriar e ser mãe.
Segundo Stengel (2011), este modelo pode ser resumido em relações
calcadas na hierarquia, desigualdade e privilégios.
A partir do século XIX, as práticas burguesas que enaltecem a intimidade do
mundo privado em detrimento à esfera do mundo público, transformam as relações
sociais e matrimoniais, incrementando a atividade sexual dos casais. Com a criação
dos bordéis e a chegada das prostitutas europeias, aumenta-se a preocupação com
a higiene e pode ser observada certa erotização do corpo, em que a atividade sexual
passa a ser realizada com prazer e não somente com finalidade reprodutiva, como
observado anteriormente.
Na transição do século XIX para o XX, impulsionada pelos conhecimentos
científicos, a sociedade passa a ter uma maior compreensão sobre o corpo humano.
São publicados tratados médicos, livros, fotos e filmes eróticos destinados, em sua
maioria, ao público masculino. Tais ferramentas buscam normatizar os
comportamentos adequados a homens e mulheres: os materiais destinados às
mulheres buscavam prepará-las para o casamento, incluindo orientações sobre a
noite de núpcias e os deveres domésticos da mulher. Seu objetivo era despertar nas
mulheres sentimentos de sujeira e culpabilização quanto ao sexo, já que a função
primordial da prática sexual era a reprodução (Mary del Priore, 13/10/2014).
No período pós-guerra ou Anos Dourados (década de 50), novos padrões
amorosos são permitidos na vida pública, sendo possíveis determinadas
manifestações afetivas, porém com regras ainda muito severas. Esse período foi
marcado pela espera das meninas pelo casamento, já que este era sinônimo de
felicidade.
Já na década de 1960, assistimos a grandes mudanças no comportamento
sexual das mulheres a partir das lutas engendradas pelos Movimentos Feministas e
da introdução da pílula anticoncepcional, que contribuíram significativamente para a
libertação sexual e emancipação social das mulheres. Contudo, tal recurso ainda era

500
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

controverso por diversas razões, tais como o repúdio da Igreja e os valores


arraigados no imaginário social, em que a maternidade era considerada como único
projeto de vida possível para as mulheres.
A partir da década de 1990, a revolução sexual vivida pelas mulheres é
consagrada, em contraposição ao aumento de casos de violência contra elas, das
doenças sexualmente transmissíveis, do turismo sexual, da prostituição infantil e da
pedofilia, decorrentes da hipersexualização das crianças, além do acirramento dos
discursos machistas permeando diversas instituições.
Assim, podemos observar que as mudanças proporcionadas pela ascensão
da burguesia, pela Revolução Industrial e pelas conquistas contraídas através do
Movimento Feminista, acarretaram mudanças na inserção da mulher no mercado de
trabalho e significativas alterações nas relações familiares, também atravessadas
pelas questões de gênero.
Nesse contexto, o modelo de família contemporâneo busca romper com o
padrão hierárquico observado até então, valorizando como princípio regulador de
suas relações a equivalência, promovendo relacionamentos com base no ideal de
igualdade e respeito. Suas relações são valorizadas se na medida em que
satisfazem as necessidades de cada um de seus membros. (STENGEL, 2011).
Sawaia se refere ao termo ditadura da intimidade, utilizado por Sennet (1989),
para esclarecer as transformações ocorridas:

[...] como a nova organização política e mundial se concentra na ordem


emocional, destacando que o valor afeto (produção e circulação de
emoções e sentimentos) é tão importante quanto o valor trabalho, uma vez
que esse último já não é mais manual, mas cerebral (SAWAIA, 2003, P. 42).

O matrimônio tem em seu bojo o amor como justificativa para a manutenção


do modelo familiar, e a eficiência da família enquanto instituição depende da
qualidade dos vínculos afetivos existentes entre seus membros (STENGEL, 2011;
SAWAIA, 2003). Assim, em consequência da primazia do amor e felicidade na
relação, somados ao discurso consumista de descarte, há aumento do número de
divórcios e casamentos.
A nova família busca, paulatinamente, romper com os papeis de gênero
cristalizados até então, já que as funções e papeis de seus membros são

501
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

redistribuídos e reorganizados de acordo com a necessidade produzida pelo modelo


neoliberal.

A MODERNIDADE LÍQUIDA E AS RELAÇÕES HUMANAS

Conforme afirma Bauman, vivemos atualmente em uma sociedade líquido


moderna, em que

[...] as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo
mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos,
rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam
e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido
moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito
tempo (BAUMAN, 2007, P.7).

Nossos referenciais, estilos de vida, crenças e costumes modificam-se antes


que se solidifiquem em hábitos e costumes. Assim, vivemos em condições de
constantes incertezas numa sucessão de reinícios, valorizando finais rápidos e
indolores.
Observa-se que as relações findam tão rápido quanto começam, e as
pessoas tendem a solucionar seus problemas rompendo os vínculos supostamente
responsáveis pelos inconvenientes, acumulando assim as dificuldades em
relacionar-se com o outro e consigo mesmo.
Nesse âmbito, o consumo desenfreado está relacionado à necessidade de
gratificação instantânea e a prioridade é livrar-se das coisas e não adquiri-las. A
economia desta sociedade é baseada no descartável. Aquilo/Aquele que não
acompanha as modernizações diárias é descartado com facilidade e, por isso, a
necessidade é acompanhar a corrida para afastar-se da lata de lixo que constitui o
destino dos retardatários.
Consequentemente, as pessoas são tratadas como bens de consumo.

Na vida líquida, a distinção entre consumidores e objetos de consumo é,


com muita frequência, momentânea e efêmera, e sempre condicional.
Podemos dizer que a regra aqui é a reversão de papeis, embora até mesmo
essa afirmação distorça a realidade da vida líquida, na qual os dois papeis
se interligam, se misturam e se fundem (BAUMAN, 2007, p.18).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A felicidade acima de todas as coisas: propósito declarado e motivo supremo


da vida individual (em detrimento à vida em comum). “Velocidade, e não duração, é
o que importa. Com a velocidade certa, pode-se consumir toda a eternidade do
presente contínuo da vida terrena” (BAUMAN, 2007, p. 15).
Assim, a efemeridade das relações é construída subjetivamente nos
indivíduos, que buscando incessantemente pela felicidade individual, buscam se
livrar daquele “objeto” que não tem mais utilidade ao invés de consertá-lo, pois isso
requer tempo, tempo este que os sujeitos não dispõem para o outro.
Ninguém quer ser descartado e, assim, a busca incessante pela reciclagem e
reconstituição alcançam a reformulação das identidades. “A possibilidade de
“renascer”, de deixar de ser o que é para se transformar em alguém que não é”
(BAUMAN, 2007, p. 16).
Essa consideração do autor pode ser relacionada às transformações
efetuadas pelo grupo transgênico quando opta pela REDESIGNAÇÃO sexual, ou
seja, deixar de ser do sexo masculino/feminino para ser o seu oposto, por meio de
intervenções cirurgicas.
Assim as provocações suscitadas por este sociólogo serviram como
contraponto as ideais dos outros autores estudados que concebem a relação de
gênero como algo consumado.
As leituras e discussões do grupo levaram a reflexões sobre potencialidades37
e entraves da era pós-moderna em comparação com a modernidade: por um lado, a
rigidez extrema nas maneiras de se relacionar e a inviabilidade de mudanças do
mundo moderno; por outro, a era pós-moderna que favorece a insuficiência de
fatores estruturantes na constituição da personalidade e carência de interditos
culturais, que podem acarretar prejuízos ao desenvolvimento humano, produzindo
sujeitos intolerantes às frustrações e que não são capazes de adiar as gratificações.

37
Potencialidades: maior possibilidade de expressão nos relacionamentos, reconhecimento (e
aceitação) das diversidades, problematização das questões de gênero, busca por novos espaços de
acolhimento a esta diversidade que começa a ter visibilidade.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES SEXUAIS E IDENTIDADES DE


GÊNERO

É no cenário de efervescência social e política, de contestação e


transformação desenvolvidas na década de 1970, que os movimentos sociais e
políticos, assim como o movimento feminista, buscam combater a discriminação,
segregação e silenciamento das minorias.
Com isso, a objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção exigidas
pela ciência passam a ser problematizadas e transgredidas. Da mesma maneira,
estes movimentos buscam questionar a concepção preponderante no séc. XIX de
que a origem da sexualidade residia na determinação biológica dos corpos, já que o
modelo reprodutivo científico facilitou a oposição radical entre os corpos masculino e
feminino a partir de uma diferença que passou a ser considerada como originária e
determinada pela natureza. (LOURO, 1997).
Tal conjuntura ideológica e cultural permite que os estudos sobre a
construção das identidades sexuais e de gênero façam críticas às correntes
científicas que justificavam as desigualdades sociais entre homens e mulheres
relacionando-as às características estritamente biológicas.
Assim, os estudos culturais, feministas e psicanalíticos buscam demonstrar
que a diferença entre homens e mulheres se encontra na forma como determinadas
características são valorizadas ou representadas nas expressões de feminino ou
masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. (LOURO,
1997; AYOUCH, 2014).
A diferença dos sexos é compreendida como uma das tantas distinções que
respalda categorias hierarquicamente produzidas que favorecem a manutenção do
poder do discurso hegemônico. Por exemplo: bom/mau, magro/gordo, forte/fraco,
categorias estas que são instituídas pelo outro.
Aceitando-se a dicotomia, cada um é pleno em si mesmo; desta forma, ela
traz implícita em seu discurso a superioridade do primeiro elemento em detrimento
do segundo e, muitas vezes, as diferenças explicitadas (sejam elas consideradas
culturais, sociais, subjetivas) têm como referência padrão o homem, como medida
de legitimação dos discursos normativos. (LOURO, 1997).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Segundo Moreno (1999), o bebê e a criança vão construindo a imagem de si


mesmos a partir do olhar do outro e através dos julgamentos que os demais fazem
da realidade e deles próprios. Essa influência vai condicionar nossa maneira de ser
e estar no mundo, bem como categorizar as coisas do universo em nossos
pensamentos. Tal divisão e critérios de categorização ocorrem de acordo com os
interesses de cada sociedade em um determinado período histórico e político.
Assim, através da linguagem e da comunicação, ensinamos às crianças
sistemas de interpretação do mundo. Muito precocemente aprendemos a categorizar
as coisas, as pessoas, e significá-las. Desde pequenas, as crianças sabem
naturalmente qual é (ou deveria ser) sua identidade sexual e qual papel corresponde
a esta.
Moreno (1999), p. 16, explica a naturalização dos discursos:

[...] as atitudes, o que está implícito, os gestos atuam da mesma


maneira que a propaganda subliminar [...] emitindo mensagens das
quais não somos conscientes, mas que são muito mais eficazes que as
explicitadas e têm a vantagem de não precisarem ser pensadas nem
justificadas.

Segundo a autora, a educação escolar tem função primordial na construção


das identidades, já que tem a dupla função de formar intelectual e socialmente os
indivíduos, moldando aos modelos culturais almejados. Assim, através da educação,
o conhecimento cientifico transmitido aos jovens acaba determinando os modelos de
pensamento e padrões de conduta adequados à realidade de cada sociedade.
Dessa forma, a instituição escolar acaba por reproduzir preconceitos e
modelos normativos ligados a crenças e valores sociais ideologicamente construídos
como, por exemplo, o sexismo, direcionando meninos a determinadas atividades e
meninas a outras consideradas mais passivas.

Os modelos de comportamento atuam como organizadores inconscientes


da ação, e é esta característica de inconsciência que os torna mais
dificilmente modificáveis. São transmitidos de geração em geração e século
após século por meio da imitação de condutas e de atitudes que não
chegam a ser explicitadas verbalmente ou por escrito, mas que são
conhecidas por todos e compartilhadas por quase todos. (MORENO, p. 30).

As afirmações acima mencionadas levaram o grupo a reflexões sobre as


tarefas e brincadeiras designadas a cada sexo: à menina são autorizadas e
almejadas atividades que traduzam sua passividade e serenidade na execução de
505
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

seu papel social de mãe, cozinheira, cuidadora, etc.; aos meninos é permitido, e até
estimulado, que se sujem, que desenvolvam maior atividade e até mesmo que sejam
mais agressivos. Assim, incentivamos ou reprimimos certos impulsos inatos de
acordo com o sexo e gênero, sem perceber como tais induções provocam
sofrimento e corroboram com os preconceitos.
Frequentemente observamos que identidade sexual, orientação sexual e
identidade de gênero são percebidas de maneira equivocada e até mesmo como
equivalentes. Portanto, consideramos de fundamental importância estabelecer
distinções entre gênero e sexualidade, já que grande parte dos discursos sobre
gênero engloba questões relativas ao exercício da sexualidade.
Foucault (apud Louro, 1997) compreende o exercício da sexualidade como
uma invenção social, já que se constrói a partir de discursos sobre o sexo, discursos
que normalizam, instauram saberes e produzem verdades. Assim, a identidade
sexual e consequente orientação sexual podem ser compreendidas pela maneira
como expressamos e vivenciamos nossa sexualidade: o desejo por parceiros de
sexo oposto (heterossexualidade), parceiros mesmo sexo (homossexualidade),
pelos dois sexos (bissexualidade), ou por nenhum deles (assexualidade).
Stoller (apud Ayouch, 2014), primeiro psicanalista a introduzir a categoria
gênero em seus estudos, acabou por reduzir tal categoria a uma mera construção
social que se sobreporia à camada biológica e ontológica do sexo. Segundo ele, a
identidade de gênero se constitui na “convicção de ser” masculino ou feminino e a
coerência entre esta e a anatomia do corpo estabeleceria a diferença entre o normal
e o patológico. Tal perspectiva resulta na patologização das identidades transviantes
que não se adequam à linearidade das normas.
Com frequência os discursos, comportamentos e desejos considerados
consoantes a cada sexo reproduzem as expectativas relativas às expressões de
gênero normativas, e tal ilusão é mantida pela repetição constante dos padrões.

A “[...] performatividade do gênero e a produção do sexo que ela determina


não é, porém, uma escolha deliberada: é uma interpretação social. Não é
um ato subjetivo isolado, mas uma reiteração coletiva, uma atribuição
normativa.” (AYOUCH, 2014, p.66).

Portanto, a identidade de gênero representa a identificação social e histórica


dos sujeitos, como masculinos ou femininos. Tal afirmação recoloca o debate no

506
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

campo social, em que as relações desiguais entre os sujeitos se constroem e se


reproduzem. As justificativas para as desigualdades entre gêneros são produzidas e
assentadas nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos
da sociedade e nas formas de representação.
Contudo, estudiosos alertam para a importância de não reduzir o conceito de
gênero ao mero exercício de papéis sociais, pois os papéis estariam restritos aos
padrões estabelecidos pela sociedade, que definiriam os comportamentos, as
roupas e os modos de se relacionar de seus membros. Esta redução impede a
análise e valorização da diversidade e multiplicidade das infinitas possibilidades de
expressões relativas à feminilidade e à masculinidade, bem como as complexas
redes de poder que, através das instituições, dos discursos, dos códigos, das
práticas, dos símbolos, constituem hierarquias entre os gêneros. (LOURO, 1997).
Todavia, as identidades sexuais e de gênero estão profundamente
relacionadas, porém nossas práticas e discursos tendem a confundi-las,
evidenciando a perspectiva que busca a linearidade e correspondência entre sexo
biológico, identidade de gênero, identidade sexual, orientação sexual e desejo.
Assim, a expectativa social é de que os indivíduos de sexo biologicamente
masculino atuem de acordo com as expectativas do imaginário social relativas ao
exercício da masculinidade e apresentem práticas heterossexuais.
No entanto, quando a finalidade da prática sexual não é a reprodução
biológica, a complementaridade dos sexos se revela totalmente relativa. Segundo
Freud (apud Ayouch, 2014, p. 60) “é provável que a pulsão seja primeiro
independente do seu objeto, e que não seja a atração dele que determina a aparição
da pulsão”.
Sendo assim, sujeitos do sexo masculino ou feminino podem ter práticas
heterossexuais, homossexuais, bissexuais e identificarem-se com expressões
relativas às identidades masculinas e/ou femininas de maneira não linear. O
importante é considerar que tanto na dinâmica do gênero como na dinâmica da
sexualidade as identidades são sempre CONSTRUÍDAS, elas não são dadas ou
acabadas num determinado momento.
Segundo Louro (1997), não é possível definir um momento, seja esse o
nascimento, a adolescência, ou a maturidade, em que a identidade sexual e/ou a
identidade de gênero seja estabelecida. As identidades estão sempre se (re)

507
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

construindo, são instáveis, voláteis, passíveis de transformação. São negociações


diante das relações sociais contraditórias e não finalizadas.
O propósito não é negar a materialidade do corpo e que o gênero se constitui
sobre corpos sexuados, mas devemos compreendê-lo como efeito das construções
históricas, regulações sociais e normativas produzidas sobre as características
biológicas.
Portanto, o objetivo é compreender o gênero como constituinte da identidade
dos sujeitos, que possuem identidades múltiplas que se transformam, identidades
que não são fixas ou permanentes, podendo até mesmo ser contraditórias. Podemos
afirmar que a construção das identidades (de gênero, sexuais, étnicas, sociais) são
atravessadas pelas práticas e discursos sociais. (LOURO, 1997).
Desse modo, uma identidade sexual ou uma identidade de gênero é cada vez
mais entendida como ato político, efeito da cultura e, por seu turno, o desejo, o
prazer e a orientação sexual são pensados mais pela via dos encontros, dos
acontecimentos e dos afetos.

AS QUESTÕES DE GÊNERO NA PERSPECTIVA DAS POLÍTICAS


PÚBLICAS E PRÁTICAS JURÍDICAS

Dentro deste cenário de mudanças as políticas públicas e as práticas jurídicas


buscaram, nos últimos anos, atender à crescente demanda das famílias e sujeitos
que ficaram marginalizados socialmente em decorrência de sua identidade de
gênero e orientação sexual.
Ressaltamos a cartilha para o atendimento, confeccionada pela Defensoria Pública
de São Paulo, que busca orientar que as práticas nos estabelecimentos devem ser
pautadas em um atendimento humano (Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Orientações para o atendimento. 1ª ed, 2011, p. 25).
No ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça divulga Resolução de nº
175, a qual possibilita a habilitação, celebração do casamento civil e conversão de
união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Em 2016 o Decreto nº 8.727 dispõe sobre o uso do nome social e o
reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais.
508
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os equipamentos sociais da rede pública, bem como os estabelecimentos de


saúde, embora busquem adequação para o atendimento destas populações,
carecem de recursos humanos qualificados bem como estruturas físicas e
investimento financeiro para promover a qualidade de vida desta população. Nas
Comarcas onde os participantes deste grupo atuam, observa-se que são parcos os
recursos para tal.
Não há notícia de grupos de apoio oficiais e tampouco estruturas de alta
complexidade que atendam, por exemplo, a demanda da cirurgia de adequação
genital. As pessoas são encaminhadas para grandes centros para que possam
iniciar o acompanhamento médico, psicológico, psiquiátrico e social que poderá
culminar na cirurgia, a longo prazo. Dentro do sistema público, apenas centros como
São Paulo (capital) e Rio de Janeiro realizam estes atendimentos.
Pela prática vivenciada pelos profissionais, observamos a deficiência na rede
de atendimento e a falta de visibilidade dos aparelhos que existem.

ATUAÇÃO DE PSICÓLOGOS E ASSISTENTES SOCIAIS JUNTO A


FAMÍLIAS

Em nossa prática profissional junto a famílias podemos observar mudanças


significativas nas relações afetivas e familiares decorrentes dos discursos e práticas
anunciadas pela pós-modernidade: diferentes discursos, símbolos, representações e
práticas permitem que os sujeitos possam ser construídos, arranjando e
rearranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de se
relacionar com o mundo.
Vale ressaltar que o número de atendimentos de famílias que remontam às
transformações supracitadas vem crescendo gradativamente. É cada vez mais
frequente a judicialização de questões tratadas no decorrer deste estudo, tais como
estudos relativos à mudança do nome social e gênero; violência de gênero; adoção
por casais homoafetivos, transexuais e travestis. Enfim, toda a complexidade que
envolve as novas configurações familiares decorrentes da redistribuição dos papéis
de gênero.

509
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Historicamente, o Conselho Federal de Psicologia busca a promoção e


garantia dos Direitos Humanos, dirigindo-se à despatologização das diversidades
sexuais. Em 1999, publicou a Resolução nº 1/99 que normatiza a atuação dos (as)
psicólogos (as), considerando que a homossexualidade não constitui doença, nem
distúrbio, nem perversão.
Entretanto, apesar da homossexualidade ter sido retirada da categoria de
doenças da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde (CID-10), foram incluídas manifestações de gênero que
fogem ao sistema binário homem/mulher, feminino/masculino, classificando travestis
e transexuais no amplo diagnóstico de “transtorno de identidade de gênero”.
A seguir, excerto do manifesto do Conselho Regional Psicologia-SP pela
despatologização das identidades trans (travestis, transexuais e transgêneros):

As sexualidades, os gêneros e os corpos que não se encaixam no


binarismo convencional (masculino/ feminino, macho/fêmea) não podem
servir de base para uma classificação psicopatológica. A normatividade do
binarismo de sexo e de gênero só permite aos deslocamentos, como a
transexualidade, a travestilidade, o crossdressing, as dragqueens, serem
vistos como maneiras de existir desviantes.(...) Portanto, numa concepção
que desnaturalize o gênero, a Pluralidade das Identidades de Gênero refere
possibilidades de existência, manifestações da diversidade humana, e não
Transtornos Mentais. (CADERNO TEMÁTICO 11- PSICOLOGIA E
DIVERSIDADE SEXUAL, p. 91).

Ainda, tanto em sua teorização quanto em sua prática, a psicologia pretende


descontruir a lógica identitária como subordinada à sexualidade:

Contra a identidade, a plasticidade psíquica, numa abordagem psicanalítica,


se inscreve em movimentos identificatórios. A identificação é sempre
temporária e mutável: é definida por uma situação no tempo, uma história,
uma finitude e uma atribuição vinda do outro. (AYOUCH, p.69)

DESAFIOS

Constatamos que tanto as famílias atendidas quanto os profissionais que as


atendem apresentam dificuldades em compreender a fluidez das identidades e as
múltiplas possibilidades de relacionar-se com o outro. Ainda é evidente a limitação
510
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que os valores morais e religiosos impõem à nossa disponibilidade de compreensão


e empatia às “novas identidades”.
Louro (2011, p. 32), sugere a superação e problematização das dicotomias e
do binarismo, em que compreenderíamos que cada polo pressupõe e abrange o
outro:

Desconstruir a polaridade rígida dos gêneros, então, significaria


problematizar tanto a oposição entre eles quanto a unidade interna de cada
um... Implicaria também perceber que cada um desses polos é
internamente fragmentado e dividido.

Diante de uma atmosfera crescente de violência, homofobia, transfobia, que


revelam discursos de ódio, é fundamental que os profissionais que atuam junto a
estas famílias se alicercem na busca da desconstrução, historicizando as condições
que polarizaram e hierarquizaram as relações. Tal processo permite que
observemos que o poder se exerce em várias direções e não há relações de via
única.
A sugestão do psicanalista Benilton Bezerra Junior, no Café Filosófico: gênero
e sexualidade – a vida além do rótulo, com Laerte, do dia 28 de agosto de 2015, é
de que a multiplicação de narrativas pode ser capaz de sensibilizar as pessoas para
compreender as diversas experiências humanas. Através da persuasão progressiva,
que almeja conquistar a empatia, poderemos buscar desconstruir os preconceitos
enraizados e reconhecer as diversas identidades possíveis.
Portanto, como profissionais do Sistema de Garantia de Direitos, devemos
acolher e dar voz à diversidade do expectro das identidades existentes - ressaltando
que a afirmação das identidades de grupos marginalizados busca legitimação social
e política, a ser reconhecida juridicamente.
Por isso, os profissionais devem ser estimulados a buscar capacitação
profissional para atuar nesse contexto. É neste âmbito que os Grupos de Estudos
tomam grande importância, pois despertam reflexões e permitem problematizações
que refletem em qualificação do atendimento e produção de novos conhecimentos.

511
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

AYOUCH, Thamy. A diferença entre os sexos na teorização psicanalítica: aporias e


desconstruções. Revista Brasileira de Psicanálise - Volume 48, n. 4, 58-70, 2014.

SAWAIA. Bader B.. Família e afetividade: a configuração de uma práxis ético-


política, perigos e oportunidades. In: ACOSTA, Ana Rojas e VITALE, Maria Amalia
Faller (Orgs). Familia: Redes, laços e políticas públicas. São Paulo: IEE/PUCSP,
2003.

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Ed.Jorge Zahar, 2007.

BEZERRA JUNIOR, BENILTON - CAFE-FILOSOFICO-CPFL- Disponível em:


<http://www.institutocpfl.org.br/cultura/evento/2808-genero-e-sexualidade-a-vida-
alem-do-rotulo-com-laerte/28/08/2015.>

CFP, Resolução nº 1/99. Disponível em: <site.cfp.org.br/wp-


content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pd>

CRP/SP-. Caderno Temático 11- Psicologia e Diversidade Sexual, 2011. Disponível


em:<www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/11/frames/fr_indic
e.aspx>

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n. 175 - CNJ. Disponível em:


<www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2504>

DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Orientações para o


atendimento, 2011. Disponível em:
<www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/documentos/cam/LGBT.pd>

BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016.

DEL PRIORE, Mary. Sexualidade e Erotismo na História do Brasil - História Privada


Quando se torna Publíca. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=QD9tJMuFNfE - 13/10/2014>

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. 6 ed. Ed. Vozes, 1997.

MORENO, Montserrat. Como se ensina a ser menina: o sexismo na escola. Ed.


Moderna, 1999.

STENGEL, Márcia. O exercício da autoridade em famílias com filhos adolescentes.


Psicologia em Revista, v. 17, n. 3, p. 502-521, 2011.

512
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

OFICINA DE LAUDO PSICOSSOCIAL: CONSTRUINDO A


ANÁLISE SOCIAL E A PSICOLÓGICA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR –


PRESIDENTE PRUDENTE
“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016

513
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Adriana Lario Ramalho Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Presidente Prudente
Elisangela Carvalho de Lima Paulino – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau

AUTORAS

Ana Cristina Turino Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente


Prudente
Andréia da Silva Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Anna Maria Britto de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rancharia
Célia Regina Grigoleto Rosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Daniela Franco Motta Nesso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Denise Ocolati Vitale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Esther Akemi Kavano Katayama – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Gabriele Molina Ferrari – Assistente Social Judiciário – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Presidente Prudente
Gisele Peruzzo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rosana
Katiúscia Cristina Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rancharia
Leticia Mara Batalini Menosse Galeti – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente
Linda Delaine da Silva Ibañez Tiago – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Luci Meire Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirapozinho
Luciana Von Ha de Oliveira Stringheta – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente
514
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Lucilene Almeida Bertone de Cápua – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Santo Anastácio
Mariana Hauser de Castilho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Pedrina Celismara Girotto Dornelas – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Bernardes
Selma Regina de Luces Fortes Andrade e Machado – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Presidente Prudente
Vera Lúcia Vieira Ferreira Screpanti – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau

515
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Ensinar não é transferir conhecimento, mas


criar as possibilidades para a sua própria
produção ou a sua construção.”

(Paulo Freire)

INTRODUÇÃO

No ano de 2016, os profissionais do Grupo de Estudos do Tribunal de Justiça


da Região de Presidente Prudente - O Cotidiano da Prática Profissional, definiram
como objeto de estudo “Oficina de Laudo Psicossocial”.
Segundo Paviane e Fontana (2009), oficina é uma metodologia de trabalho
que prevê uma construção coletiva, com momentos de interação, reflexão, troca de
experiências e busca de embasamento teórico, visando relacionar a teoria com a
prática.
A dinâmica metodológica adotada nos anos anteriores foi alterada de modo
que a discussão teórica não seria o eixo predominante dos encontros, mas sim o
exercício prático da execução de laudos, objetivando a construção coletiva de
análises específicas de cada área.
Ressalta-se, porém, que a nova dinâmica não alterou o objetivo do grupo,
qual seja, de refletir sobre as necessidades e desafios do cotidiano da prática.
Nessa nova perspectiva, mediante apresentação de casos concretos já avaliados
para serem discutidos em grupo, a teoria serviria para embasar e fundamentar a
construção das análises, evitando-se considerações pautadas meramente em dados
empíricos.
A escolha da oficina atenderia assim, tanto à queixa recorrente da falta de
tempo nos encontros do grupo de estudos para discutir a prática em casos
concretos, como atenderia à demanda dos novos profissionais contratados. Dessa
forma, a partir de angústias e dificuldades suscitadas na prática profissional, o grupo
elegeu três temáticas distintas para abordar durante o ano: Cadastro de
Pretendentes à Adoção, Guarda e Interdição.
516
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Para cada tema reservou-se dois meses de discussão, sendo que


inicialmente seriam elencados os itens essenciais que deveriam constar nas
análises social e psicológica, discussões essas realizadas separadamente por áreas
de atuação. Num segundo momento, os tópicos construídos em subgrupos, seriam
embasados por bibliografias como forma de argumentação teórica do parecer,
obedecendo às diretrizes éticas e técnicas pertinentes a cada profissão.
As análises elaboradas pelo grupo não serão anexadas no presente artigo
uma vez que o foco consistiu na reflexão suscitada pelos profissionais e que a
produção da escrita do relatório tem sempre um caráter individual e um formato
próprio do profissional.

1. A ANÁLISE SOCIAL E A ANÁLISE PSICOLÓGICA EM UM


PROCESSO DE CADASTRO DE PRETENDENTES À ADOÇÃO

A escolha do tema surgiu das dificuldades enfrentadas tanto pelo Serviço


Social quanto pela Psicologia na elaboração de análise dos laudos desta temática,
uma vez que avaliar a capacidade para a parentalidade é complexo e desafiador.
Para o Serviço Social, a necessidade de estabelecer o enfoque de estudo
nessa área e aprofundar os pontos de análise em tal demanda era proeminente.
Também havia inquietações por parte dos psicólogos em relação à complexidade da
análise da subjetividade, uma vez que esta pode ser determinante para efetivação
do projeto de tornar-se pais por adoção, além da dificuldade de conciliar a
idealização do filho biológico com a criança real que está apta para ser adotada.
Alguns enfoques sobre a Adoção sofreram alterações com a implementação
da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando a
criança e o adolescente passam a gozar de uma proteção especial, decorrente de
sua condição de pessoa em desenvolvimento.
Assim, a Adoção pode ser considerada como a ação de “inserir uma criança
numa família definitiva e com todos os vínculos próprios de filiação”, (RAMPAZZO e
MATIVE, 2010, p.1), cuja decisão, tem caráter definitivo e singular.
O Artigo 19 do “ECA” também estabeleceu os direitos fundamentais,
sintetizando que toda criança ou adolescente tem o direito de ser criado e educado
517
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

no seio de sua família, e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a


convivência familiar. Em decorrência de inúmeros fatores, muitas crianças e
adolescentes são afastados do convívio familiar e colocados em outras famílias, por
meio da Adoção.
Deste modo, a Lei instituiu o Cadastro de Pretendentes à Adoção, o qual,
para além de um processo de avaliação, tornou-se também um momento de
reflexão, que tem trazido importantes mudanças na vida de todos os envolvidos. O
Processo de Habilitação para Adoção prevê algumas exigências legais, bem como
etapas de preparação para a família adotiva; e, é nele, que está inserida uma das
atuações dos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários.
Segundo Rampazzo e Mative (2010, p.15-16), o assistente social judiciário,
por meio do Estudo Social, busca conhecer a realidade do(s) requerente(s), a partir
de seu histórico de vida, seu processo de desenvolvimento e socialização, os
valores que traz consigo, a dinâmica familiar, o contexto social em que está inserido,
e avalia se a família está apta a assumir os cuidados com um filho por meio da
Adoção. Ainda orienta o(s) requerente(s) sobre os trâmites processuais, sobre o
perfil das crianças adotáveis, indicam bibliografias sobre o tema, norteiam sobre o
trabalho dos grupos de apoio.
Em relação à construção da Análise Do Serviço Social a oficina tomou como
base um Relatório Psicossocial, e considerou que em todas as demandas cabe
avaliar: 1) Dinâmica relacional, envolvendo aspectos: pessoal, familiar, conjugal,
comunitário e social; 2) Condição socioeconômica, que abrange elementos
relacionados ao trabalho e renda, condições de habitabilidade, grau de escolaridade
e território, abordando-se os equipamentos e as políticas públicas; 3) Valores sociais
e culturais, tais como grupos de pertencimento social, questões morais,
preconceitos, rigidez e/ou inflexibilidade; e, 4) Condições de saúde física e mental.
Numa avaliação mais específica de Cadastro de Pretendentes à Adoção,
também cabe avaliar a motivação, a disponibilidade ou entendimento frente à
revelação e o envolvimento da família extensa no projeto de adoção, os quais são
comuns às duas áreas de conhecimento (Serviço Social e Psicologia).
Ao analisar-se o eixo sobre condição socioeconômica, o grupo de assistentes
sociais passou a questionar quais seriam os mínimos necessários para a garantia de
todos os direitos da criança e da família, e qual a relação desta última frente aos

518
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

serviços oferecidos pela rede socioassistencial, avaliando-se a sua utilização e/ou a


dependência de tais equipamentos e Políticas sociais. Nesse aspecto, se faz
necessário analisar de forma crítica a capacidade de administração e gerenciamento
destes recursos, tanto financeiros quanto pessoais da família.
Considerou-se importante buscar conhecer dados sobre a rotina dos
requerentes, tais como: o gerenciamento das despesas, a divisão de papéis, os
planos de vida enquanto casal, as razões que impulsionaram à busca por um filho e
quais os motivos que os levam a desejar ser pai ou mãe adotivos. Mais
especificamente em relação à criança, conhecer qual o lugar e a importância do filho
nessa dinâmica e o que imaginam e esperam dele.
Debateu-se ainda sobre a importância de se conhecer as inter-relações que
os requerentes fazem entre o projeto adotivo e os aspectos biológicos, tais como a
infertilidade ou esterilidade, o fato do casal vivenciar uma gravidez de risco para a
saúde e vida da mulher ou da criança e o receio em gerar um filho com deficiência
ou questão genética familiar. Em outros casos, quando não há impedimentos
biológicos ou o casal já tem filhos biológicos, qual a motivação para se tornarem pais
ou mães por meio da adoção.
Levantaram-se ainda outras questões que apresentam relação com o projeto
de adoção, as quais devem ser analisadas, tais como: o medo da solidão,
companhia e cuidado na velhice, deixar herança patrimonial, substituir o lugar de um
filho falecido ou até mesmo a solução para crises no casamento, somados a outros
fatores.
A partir dos eixos de análise acima elencados, destaca-se a necessidade de
avaliar o potencial adotivo dos pretendentes, pois

ao contrário do que muitos imaginam, adotar não é um direito dado a todos.


Como cabe ao Estado-Juiz promover a colocação em lar substituto (do qual
a adoção é uma das formas), os interessados têm que se submeter às suas
regras, entre estas, a submissão às avaliações técnicas (PACHI 1998,
p.25).

Considerando-se que, por meio da adoção a criança será inserida em um lar


e terá os adotantes como referências parentais, e por meio desses, em um novo
contexto familiar e social, é importante conhecer a dinâmica relacional dos
adotantes:

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[...] a forma como falam de outras pessoas, principalmente seus parentes; a


maneira como se tratam mutuamente; a forma como tratam a pessoa que
está realizando as entrevistas; a capacidade de enfrentar dificuldades com
coragem e de refletir com sensatez sobre a melhor maneira de lidar com elas.
Característica indispensável para os pais adotivos, pois é essencial que
tenham capacidade de assumir alguns riscos, assim como o é para os pais
naturais (MOTTA 2000, p.136).

No processo adotivo considera-se a importância do envolvimento da família


extensa, no qual Dolto (1989, p.22-23, apud PAIVA, 2004, p.102) aponta que:

Uma criança adotiva que não é introduzida na tradição da família do pai nem
da mãe, ainda não foi adotada. Uma criança não é verdadeiramente adotada,
senão por duas famílias adotantes (...) É a família como um todo que conta,
nessas descendências. Uma criança é adotada por uma família e não por
duas pessoas (...) A adoção é a família que cada um dos pais dá à criança,
um lugar nas duas linhagens, um lugar no simbólico (...) É preciso que uma
criança possa se situar como o terceiro de uma linhagem, que ela tenha um
pai assim como a referência àquele que o seu pai amava e tomava como
modelo (...) uma referência, a partir da qual o sujeito se constrói.

A garantia do acesso à história; ou seja, sobre o tema revelação, essa está


assegurada no Artigo 48 do ECA, onde consta que

o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter
acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais
incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.

E a Lei 12.010, de 2009 incluiu o parágrafo único: “O acesso ao processo de


adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 anos, a seu pedido,
assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica”.
Quanto à revelação é importante salientar que toda criança tem o direito de
conhecer a verdade acerca de sua origem, que ajudará seu crescimento e formação
de identidade. O segredo é prejudicial a todos.
Como diz Maldonado "é muito mais comum a revolta contra pais adotivos em
decorrência da manutenção do segredo ou de sua revelação tardia, do que pelo fato
da adoção em si" (1989 apud TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2005, p.
125 ).
Ainda segundo Schettini Filho (1998, online),

Quando deixamos de comunicar a uma criança adotada a historia que dela


conhecemos a colocamos em estado de privação. A privação da história é
lesão insidiosa que deforma a construção da individualidade.

520
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Durante as discussões, entendeu-se que diante da abrangência do tema


Adoção, que tem caráter definitivo, há a necessidade de uma intervenção
profissional crítica e reflexiva, pois há por um lado as características e o desejo dos
adotantes, e por outro, uma criança real, que também tem dificuldades e desejos, e
nem sempre há um encontro feliz entre as partes. Interessante ainda ressaltar que
todos os cuidados elencados visam garantir o sucesso da adoção, porém ainda há
demandas que não podem ser previstas, não existindo garantias quanto ao sucesso
da Medida.
A Avaliação Psicológica nos Cadastros de Pretendentes à Adoção coloca o
profissional frente a várias questões conflitivas. Uma delas a capacidade de
mensurar as habilidades que determinarão um bom exercício parental dos
pretendentes; outra entre ser rígido e detalhista demais ou de menos nas avaliações
o que levaria à negativa do projeto de adoção dos requerentes; e ainda o
enfrentamento da responsabilização posterior pelo eventual fracasso da adoção.
Embora estudos apontem que o psicólogo não tem capacidade de prever o futuro e
que deve acreditar no potencial de mudança do pretendente à adoção, há uma
cobrança social e pessoal do profissional no sentido contrário, ou seja, na
previsibilidade do estudo psicológico (SARAIVA, 2014).
A tentativa de unificação da avaliação, proposta pelo TJ (PAIVA, 2004) recai
em dificuldades relacionadas com as diferentes formações e abordagens teóricas
dos psicólogos judiciários, o que por sua vez, refletem no resultado da avaliação.
Alguns autores, como Weber (2014), enfatizam que a avaliação de CPA deveria ter
menor peso do que a preparação e o acompanhamento dos pretendentes, por parte
dos profissionais. A reflexão ou dilema do psicólogo judiciário estaria entre avaliar e
capacitar o pretendente.
Para Saraiva (2014, p.327)

[...] o trabalho psicológico na habilitação para adoção não pode ter como
meta definir aqueles que melhor reuniriam condições de se tornar bons pais,
muito menos determinar quem de fato poderá passar de forma positiva por
todos os impasses e angústias que a experiência da parentalidade
certamente suscitará. Em bom português, o trabalho de habilitação não
objetiva apontar quem pode ser bom pai ou boa mãe adotivos, mas quem
no momento se encontra disposto a e apresenta condições de sê-lo.

Trabalha-se com indivíduos complexos e com um reduzido prazo para avaliar


alguns fatores que contribuiriam para uma adoção bem sucedida. Levinzon (2013)
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circunscreve tais fatores entre: a habilidade para lidar com desafios; a existência da
tolerância à frustração, aos sentimentos de incapacidade, às desilusões e dúvidas
do processo de filiação, tolerância das diferenças; a sensibilidade para compreender
o outro; flexibilidade nas regras e compreensão do significado da adoção. Weber e
Pereira (2012) apontam ainda a análise de relevantes características dos
pretendentes, as quais seriam facilitadoras para adoção, como: autoestima,
otimismo, satisfação com a vida, satisfação conjugal, disposição para o investimento
afetivo e postura educativa maleável.
O psicólogo deve avaliar também: a disponibilidade do pretendente para ser
pai por adoção; se existe flexibilidade para procurar ajuda terapêutica seja para si ou
para o futuro filho caso necessitem; a real disponibilidade para aceitação de grupo
de irmãos, uma vez que tal indicação pode estar associada à percepção da
realidade (maior porcentagem de crianças com irmãos para serem adotadas) e não
ao desejo de ter mais de um filho. Outra questão seria pensar o quanto vale a pena
incentivar a adoção de irmãos, sabendo-se que um deles corre o risco de nunca ser
inserido e acolhido como filho na família adotiva.
Além de avaliar o pretendente, nas discussões da oficina entendeu-se que o
psicólogo também deveria trabalhar na desconstrução do discurso da igualdade
generalizada entre filho biológico e filho adotivo, no sentido de apontar e auxiliar o
pretendente a entender e ser fonte de ajuda ao filho adotivo, cujas particularidades
ultrapassam a filiação biológica.
Visando os objetivos iniciais das oficinas, os psicólogos deste grupo elegeram
como pontos essenciais da análise psicológica os itens abaixo, os quais estão
respaldados em algumas orientações teóricas estudadas, que seguem como
sugestão para futuras análises.
Considerar a motivação implícita lembrando que desejar um filho é diferente
de querer ter um filho. Um filho não deve servir para suprir a dor do casal ou para
suprir a perda de um filho não nascido. A observância do desejo genuíno faz-se
necessário.

A pesquisa das motivações (manifestas ou latentes) presentes nas


solicitações de adoção revela que a decisão de adotar não é clara e unívoca
em todas as circunstâncias e que as razões são bem distintas entre os
candidatos. A adoção pode representar uma tentativa de evitar entrar em
contato, ou pôr fim à dor psíquica intensa causada pela esterilidade, ou um
modo de compensar perdas sofridas como a morte de um filho, ou até

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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mesmo uma forma de suprir a inexistência de projetos de vida e de trabalho.


Há ainda os que objetivam “salvar o casamento”, ter companhia na velhice
ou ter alguém para receber a herança e cuidar do patrimônio familiar.
Também não são incomuns os pedidos pautados em questões religiosas,
designados “missões” ou “vocações”. A decisão, entretanto, pode estar
associada ao desejo dos postulantes de se tornarem pais e de constituírem
ou ampliarem a família. Lebovici e Soulè (1980) consideram que o pedido
de adoção pode estar relacionado com o mecanismo de sublimação ou
formação reativa, ponderando que quanto mais estiver carregado de
formações reativas, maior será o risco de conflitos, pois a criança
dificilmente conseguirá corresponder à função a ela imputada. É possível
que alguns pretendentes utilizem a própria adoção como uma formação
reativa do não-desejo de terem filhos, situação que é “condenada” pelo
meio social, pela família e, por vezes, pelo próprio cônjuge. Se algumas
vezes os pretendentes optam por crianças com deficiência física ou mental,
ou por raça ou cor de pele diferentes das suas, aparentando altruísmo ou
benevolência, não se pode desconsiderar a possibilidade de,
inconscientemente, estarem em conflito e com dificuldades para colocar a
criança no lugar destinado ao filho biológico que nunca chegou (PAIVA,
2004, p.107 e 108).

Oliveira (2014 p. 54) ao perceber a motivação vinculada ao desejo de atenuar


um sofrimento, ou o luto não elaborado, refere-se à necessidade de refletir
diretamente com os candidatos sobre o sofrimento subjacente e a necessidade de
elaborarem melhor sua dor com um psicólogo clínico.
“É importante colocar os postulantes diante da responsabilidade deles, não
dispensá-los dessa responsabilidade ao delimitar, seu lugar, a questão que os
torturam” (HAMAD, 2002, p. 67 apud OLIVEIRA, 2014, p.54-55).
A esse respeito, o grupo apontou que ao perceber inadequações na
motivação, uma estratégia seria apontar as incompatibilidades, sugerir a suspensão
ou cancelamento do processo em razão de se ter observado a necessidade do
tratamento psicoterápico, na perspectiva de uma reavaliação posterior mediante
provocação do casal.
Por outro lado, discutiu-se a importância da família adotante também receber
apoio psicológico clínico durante o estágio de convivência, enquanto um espaço
para acolher as demandas mais pessoais, as quais muitas vezes não podem
aparecer no acompanhamento psicológico jurídico. Ressalta-se que apesar de se
prestar esclarecimento sobre o papel do psicólogo durante o acompanhamento do
processo de adaptação, é frequente o receio dos adotantes em revelar suas
fantasias para o psicólogo judiciário visto geralmente como ‘julgador, ou
representante do juiz’.

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Em outra vertente, Weber (2014, p.36) ao apontar a necessidade da


flexibilidade dos técnicos na avaliação/seleção dos adotantes, e por outro lado a
percepção da capacidade do pretendente de “reconstrução de sua própria história”,
destaca que pesquisas com famílias adotivas revelaram que “não existe correlação
entre a motivação dos adotantes e o sucesso da adoção”, na medida em que a
“construção do vínculo afetivo pode ser tão poderosa e importante na dinâmica
familiar que deixa em segundo plano a ‘inadequação’ do motivo inicial e outra
história é capaz de ser construída posteriormente[...]”.
Outro aspecto a ser levado em consideração refere-se à maneira com a qual
os pretendentes lidam com a infertilidade / esterilidade; se houve ou não a
elaboração do luto.
Paiva (2004, p.123-124) comentando sobre os trabalhos de Dolto (1989) ao
falar da mulher estéril afirma que:

Ao tornarem-se adultas, se se defrontam com a impossibilidade e/ou


dificuldade de gerar, podem sentir-se em débito constante com o parceiro e
com a sociedade. Desse modo, algumas mulheres podem, inclusive, tomar
a adoção como sua responsabilidade, numa atitude pseudo-reparatória de
saldar a dívida com o companheiro.

Outro elemento de análise seria considerar a postura dos requerentes quanto


a disponibilidade para a revelação da condição de adotivo. O não dito é mais
desestruturante que a verdade; o silêncio, além de ineficaz torna-se patogênico. A
palavra possibilita a entrada no processo de simbolização. Revelar envolve falar
sobre infertilidade/esterilidade, ferida narcísica. (PAIVA, 2004)

Muitos estudos e pesquisas concentram-se nos efeitos da não-revelação ou


da manutenção do segredo com relação às crianças adotadas. Existe
unanimidade entre os autores sobre efeitos nefastos e patológicos dos
nãos-ditos (PAIVA, 2004, p.118).

Revelar está relacionado com a possibilidade ou não da elaboração da


infertilidade.
Segundo Rosa (1995, 118 apud PAIVA, 2004, p.119):

O não dizer dos pais é uma confissão de culpa, um julgamento e uma


condenação implícitos. Condenam-se da tentativa de encaixar uma criança
em seu sonho, fazendo dela um instrumento para resolver, a qualquer
custo, a questão deste casal, quanto a poder ou não ser mãe e pai.

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Além da necessidade de verificar a elaboração do luto seja pela esterilidade,


pela perda do filho abortado ou não gerado, ou por outro motivo que impeça a vinda
do filho biológico, é preciso que o profissional se atente para a possibilidade do “jogo
de culpas” gerado entre o casal. Tal jogo pode desequilibrar a relação conjugal a
partir da intensificação das rivalidades e agressividades entre o casal e dele com os
outros (PAIVA, 2004, p.125).
O relacionamento do casal pretendente, como lidam com entrada de um
terceiro na dupla (o filho), qual o Projeto de Adoção, se há consenso ou não, como
surgiu a ideia, em que momento e quais as representações em que se sustentam;
além das expectativas e fantasias em relação à história da criança, também são
pontos importantes de discussão e análise.
Gilberti (1994 apud PAIVA, 2004, p.102)

também assinala que a adoção envolve transformação de uma decisão


individual em decisão conjunta; porém, alerta que mesmo quando
aparentemente a decisão é conjunta, apenas um dos membros do casal
pode estar nela implicado – o outro, apesar da manifesta concordância
pode, de fato, não estar comprometido com essa escolha.

Qual o lugar reservado para esse filho no imaginário dos pretendentes, e


da família extensa, se há disponibilidade para o novo filho, devem ser foco de
análise; lembrando que a aceitação da família extensa é fundamental, conforme
citação de Dolto inserida acima.
As fantasias dos requerentes em relação aos genitores e à família
biológica e a forma como reagem a elas, se com negação, revolta, sentimentos de
ameaça ou confusão sobre a história de origem e insegurança, devem não somente
serem analisados mas também refletidos e desmistificados junto aos pretendentes.
O profissional deve estar atento ao analisar a mudança de perfil, muitas vezes
solicitada pelos pretendentes; e redobrar o cuidado na avaliação com grupo de
irmãos (seja quando a adoção é de irmãos, seja na adoção de outra criança quando
o casal já tem filhos), ressaltando a importância de se verificar qual o lugar de cada
criança no contexto familiar.
O psicólogo também deve avaliar a disponibilidade do pretendente de aceitar
um filho com uma história e um Nome. Segundo Dolto (1998, p. 233 apud PAIVA,
2004, p.105)

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Na prática, percebe-se que a modificação do nome, sem as devidas


precauções e cuidados, pode ameaçar a construção psíquica do sujeito. A
esse respeito, Dolto (1998) assinala:
[...] muitas vezes, o novo prenome é dado sem nenhuma referência a uma
tradição familiar. A criança não deve nunca ter o prenome mudado, porque
não se sabe a importância nociva que isso pode ter; mas sabe-se que,
tocando-se no prenome, toca-se no essencial de uma estrutura narcísica
primeira, isto é, na coesão simbólica corpo-linguagem, do ser falado na
verdade.

Apesar das dificuldades de se analisar tais sujeitos “plurideterminados e


complexos” (SARAIVA, 2014), percebeu-se que a ênfase na “capacitação adequada
e no acompanhamento cuidadoso” dos pretendentes, conforme apontado por Weber
(2014) é tema a ser melhor organizado e enfatizado no trabalho dos técnicos
judiciários.

2. A ANÁLISE SOCIAL E A ANÁLISE PSICOLÓGICA EM UM


PROCESSO DE GUARDA

A escolha do tema originou-se a partir das reflexões do grupo, tendo em vista


que a separação ou divórcio podem ser apontados como fatores de interrupção ou
deslocamento do tradicional ciclo de vida familiar, exigindo esforços emocionais para
uma nova estabilização familiar (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2007, p.
149).
Na prática profissional em Vara de Família, observa-se que durante o processo
de separação conjugal, cada ex-cônjuge procura reconstruir sua própria vida, na
tentativa de deixar para trás todas as vivencias que remetam ao ex-companheiro. No
entanto, quando desta união restam filhos comuns, isto se torna inviável, haja vista
que os laços de parentalidade devem se sobrepor aos de conjugalidade.
Observa-se ainda que grande parte dos divórcios se dá de forma conflituosa, isto
porque, “...os adultos têm grande dificuldade para lidar com as questões e
sentimentos contraditórios que permeiam o processo de ruptura conjugal. Desse
modo, tendem a reproduzir nos filhos seus medos, angústias e ressentimentos”
(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2007, p.91).
A busca pelo Poder Judiciário surge, então, como alternativa para a solução da
lide, sendo a guarda de crianças/adolescentes uma das demandas judiciais onde

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frequentemente é determinada a atuação dos assistentes sociais e psicólogos


judiciários, a fim de subsidiar a decisão judicial.
Desde 1988 a Constituição Federal trouxe mudanças de paradigma em
relação à família, independente da configuração familiar, priorizando a relação de
convivência e afeto entre pais e filhos, além do exercício da autoridade parental de
forma igualitária e conjunta. Outras mudanças ocorreram na legislação, até que a
Guarda Compartilhada fosse adotada como modelo, nos últimos anos.
Segundo Brito (2005) o modelo de guarda compartilhada vem sendo adotado
como forma de garantir uma relação de maior igualdade e participação de ambas as
figuras parentais, prevendo decisões conjuntas entre ambos, independentemente da
divisão de tempo igualitária. Desta forma se vislumbra uma alternativa para o
resgate da convivência, da responsabilização e da autoridade parental.

No modelo de guarda conjunta ou compartilhada, apesar de a criança residir


com um dos cônjuges, deve-se garantir uma convivência ampliada com
ambos os genitores, responsáveis pela educação das crianças, partindo-se
da compreensão de que após a separação o que se reconfigura é o estado
referente à conjugalidade e não à parentalidade. Busca-se, portanto, nesta
modalidade de guarda, uma divisão mais equilibrada do tempo que cada pai
passa com o filho, garantindo-se também a participação dos dois genitores
na educação da prole (BRITO, 2005, p. 53)

Para a construção da Análise Social, os profissionais deste grupo elencaram


eixos de análise como pontos essenciais do estudo social, tais como: contexto
familiar, sócio-econômico e territorial, assim como acesso às políticas públicas.
Especificamente nas ações de guarda, a análise social deverá contemplar
ainda os seguintes pontos em relação à Família: (in)existência de negligência, risco
e/ou vulnerabilidade, condições pessoais para o exercício da guarda (disponibilidade
de tempo / motivação / suporte); como assumem os cuidados quando tem a criança
em sua companhia; a capacidade protetiva das partes; como se posicionam frente a
possibilidade de acesso da outra linhagem à criança. E observar em relação à
criança: como ocorre seu processo de socialização, seu posicionamento sobre a
rotina e figuras de maior referência de segurança e proteção; como se dá o acesso à
escola, as atividades educacionais, esportivas, culturais, religiosas, lazer e
convivência social.
Entende-se importante ressaltar a necessidade da manutenção dos vínculos
de filiação e parentesco, como um direito, que não poderá ser negado a nenhuma
criança e/ou adolescente, em função dos conflitos dos genitores. Atentando-se para
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o melhor interesse da criança, deve ser resguardada sua segurança e o direito de


convivência familiar com ambas as linhagens, materna e paterna.
Em relação à Análise Psicológica, observa-se que a disputa judicial pela
guarda dos filhos perpassa por desavenças entre duas partes que em algum
momento compôs um casal. A partir disto torna-se inevitável ao pensar sobre a
disputa de guarda, indagar sobre as questões de conjugalidade X parentalidade,
inerentes ao tema.
Segundo Houzel (2004), a conjugalidade se inicia com a formação do casal,
mediante a renúncia de hábitos antigos, na tentativa de incluir o cônjuge em grande
parte de suas vivencias e planos futuros. Já a parentalidade está relacionada à
realidade psíquica de cada um dos pais, sendo construída por meio das
modificações que ocorrem durante a gestação, pós-parto e interação com o bebê.
Sendo assim, ainda que a conjugalidade não mais exista, para o casal com filhos a
parentalidade deverá ser mantida em razão dos laços parentais comuns entre estes,
forçando as partes a uma convivência muitas vezes indesejada.
Ressalta-se ainda que mediante a atual realidade em que os indivíduos
pensam e agem com ênfase em si mesmos, decisões referentes ao divórcio são
tomadas sem que sejam considerados os efeitos desta para os filhos, que na
maioria das vezes são os mais atingidos, haja vista que conforme Souza (2010), nas
situações de divórcio o maior desafio tem sido o da manutenção do exercício dos
papeis parentais perante o fim da conjugalidade.
Ainda segundo Souza (2010), em muitos casos a separação de corpus não é
o suficiente, pois a separação emocional ainda não fora efetuada. Com isso
percebe-se que os juízos de família tornam-se palco para a tentativa de elaboração
destes conteúdos através da vivencia de sentimentos de raiva, traição, desilusão e
vingança que muitas vezes envolvem os filhos.
O litígio instala-se quando a responsabilidade parental em preservar o vinculo
de filiação é sobreposta pela indefinição das fronteiras entre conjugalidade e
parentalidade, frente aos excessos dos conflitos conjugais.
Os processos judiciais eram encaminhados ao Setor Técnico, visando a
indicação do genitor que reunisse melhores condições para gerir a guarda da
criança, contribuindo para acirrar o conflito já existente entre as partes. Como
alternativa ao modelo adversarial surgiu a modalidade de Guarda Compartilhada

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como forma de garantir a igualdade de direitos entre os pais, concretizando assim, o


já posto na lei desde a Constituição de 1988.
Entende-se assim que é dever do judiciário estabelecer um ambiente propício
ao diálogo entre as partes, priorizando as potencialidades de cada um ao invés de
apontar apenas fragilidades, para que estes se responsabilizem pelo bem estar dos
filhos, tomando decisões conscientes e acertadas em direção ao exercício conjunto
da parentalidade.
Conforme Pereira (2013) as famílias possuem competência para
solucionarem suas questões, devendo ser um dos objetivos do trabalho minimizar os
conflitos e viabilizar o retorno da capacidade da família de se responsabilizar pela
resolução de seus problemas e impasses.

Diante disto, enfatiza-se a importância de um espaço no qual o psicólogo


possa intervir, refletindo com as partes sobre a responsabilidade pela
superação dos impasses e um possível acordo judicial. O que acredita-se,
contribui para a separação emocional do ex-casal e para uma maior
convivência e participação de ambos os genitores na vida dos filhos
(SOUZA, 2010).

Além do acima exposto, os psicólogos deste grupo consideraram importante


para a análise psicológica em processos de disputa de guarda ou regulamentação
de visitas, verificar junto aos adultos envolvidos no litígio, itens como:
Motivação das partes para o pedido de guarda; o exercício de fato da
guarda e/ou visita. Em alguns casos a decisão racional pelo divórcio não coincide
com a concretização do divórcio emocional, o que poderá prejudicar o exercício
adequado da parentalidade. Nesses casos “Os filhos, por vezes, são envolvidos no
conflito como uma forma de atingir o ex-companheiro, o que acaba contribuindo para
a manutenção do litígio” (SOUZA, 2010, p. 21).
Assim, a disputa pela guarda torna-se o modo mais eficaz de prolongar o
litígio na busca de suprir o desejo de vingar-se pelo sofrimento causado, podendo o
desejo de exercer as funções parentais ficar em segundo plano perante a
necessidade eminente de infligir sofrimento ao ex-cônjuge.
A capacidade de maternagem e paternagem, os cuidados parentais
anteriores à separação podem ser avaliados segundo Lago (2008) a partir da
compreensão de três grandes áreas de necessidades da criança: físico-biológico
(cuidados básicos), cognitivo (compreensão da realidade, normas e valores

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

transmitidos), emocionais e sociais (segurança emocional, autoestima, limites,


sexualidade).
Características de personalidade de cada membro, e o histórico familiar,
uma vez que a família é construída através da história individual de cada um de seus
membros, que se utilizam de vivências passadas para construir um presente
adequado as suas necessidades psíquicas; e porque no momento do divórcio cada
uma destas experiências emocionais mal elaboradas contribuem para a manutenção
do litígio.

Com frequência, questões emocionais não elaboradas, ligadas a história


pessoal de cada membro do ex-casal, são reatualizadas diante da
frustração e fracasso do casamento que se desfaz. (SOUZA, 2010, p. 23)

O autor refere ainda que é necessário identificar na história e personalidade


de cada um destes membros se o embate experienciado não é apenas uma forma
de evitar o contato com a perda, o que impediria a possibilidade de amadurecimento
emocional que o sofrimento e luto pelo fim da relação poderiam proporcionar.
Devem ser esclarecidas as dificuldades e necessidades psíquicas das partes a fim
de que estas não influenciem negativamente na motivação em meio ao pedido de
guarda.
No que se refere à criança/adolescente, o grupo ponderou como importante
para a análise psicológica em processos de guarda:
Forma como lhe foi apresentada a separação (reação e elaboração)
porque muitas vezes em meio ao litígio, as crianças são envolvidas na disputa de
forma inadequada.

[...] os dois pais devem humanizar sua separação, dizê-la em palavras, e


não guarda-la para si sob a forma de uma angústia indizível, exprimível
somente pelos humores, por estados depressivos ou de excitação que a
criança sente como um abalo na segurança dos pais. É importante que eles
assumam realmente a responsabilidade por sua separação e que se possa
fazer um trabalho de preparação (DOLTO, 2011, p.22)

Wagner (2002, p.23 apud SOUZA, 2010) ressalta que

a segurança do amor dos pais é provavelmente a maneira mais eficaz de


lidar com o turbilhão de sentimentos e o mundo de novidades que chegam
com a separação e o recasamento.

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Seu relacionamento com os genitores antes e depois da separação.


Dolto (2011) relata a necessidade de continuidade na rotina da criança após o
divórcio, porque já vivencia inúmeras perdas decorrentes da separação dos pais,
sendo importante que na medida do possível possa continuar sob os cuidados do
genitor que já exercia esta função anteriormente, frequentar a mesma escola, residir
na mesma casa, para que o processo de adaptação seja menos traumático e o
relacionamento com os genitores seja menos afetado.
Neste sentido a guarda compartilhada vem auxiliar na preservação dos
vínculos da criança com ambos os genitores e minimizar o sentimento de perda da
figura parental, favorecendo o convívio e o bom relacionamento entre todos.
O grupo ponderou ainda em relação às visitas, entendendo a importância de
que se observe a idade da criança, a distância do domicílio, as condições sociais e
emocionais das partes e da criança para que seja garantido o direito à convivência
com ambas as famílias. Ponderou ainda a importância de que sejam averiguadas
denuncias de violência contra a criança, tanto para preservar a integridade física e
mental quanto para averiguar a possibilidade de falsas denuncias, em casos de
Alienação Parental.

3. A ANÁLISE SOCIAL E A ANÁLISE PSICOLÓGICA EM UM


PROCESSO DE INTERDIÇÃO

A escolha pela temática foi decorrente dos desafios que estão sendo postos
nos processos judiciais referentes à Interdição/Curatela a partir do advento do novo
Código de Processo Civil (art.1767). O novo olhar para a pessoa com deficiência
exige atuação diferenciada dos peritos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários,
enquanto integrantes de uma equipe multidisciplinar, com vistas a subsidiar a
decisão do magistrado.
Na sociedade contemporânea o Direito se constitui referência e recurso para
a garantia dos direitos sociais e o Poder Judiciário é visto como o espaço para a
resolução de situações inscritas na violação de direitos.
Desta forma ocorre a Judicialização da questão social, a partir da
transferência de responsabilidades do Poder Executivo (responsável pela execução
531
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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das políticas públicas) para o Poder Judiciário no que se refere à garantia dos
direitos sociais, o que muitas vezes priva os interditados do gozo dos direitos civis e
políticos.
Segundo Barison e Gonçalves (2016), os processos de interdição estudados
na Comarca de Volta Redonda – R.J. evidenciam que a maioria dos interditandos
está inserida em famílias extensas e pobres, são dependentes da renda dos pais e
são cuidados por mulheres, evidenciando uma tendência cultural de que a mulher
cabe à tarefa de cuidados com os membros da família.
Os dados identificam ainda outras expressões da questão social, tais como
“[…] o isolamento social, a precariedade de vínculos familiares e sociais, a
permanência nas ruas, a violência doméstica, o precário acesso e permanência nos
serviços de saúde mental” (BARISON, GONÇALVES, 2016, p. 57).
Partindo dessa realidade, a expectativa dos familiares consiste geralmente
em requerer os benefícios sociais ou previdenciários e ainda garantir o projeto
terapêutico, com acesso e permanência no serviço de atenção psicossocial. Nessa
perspectiva, a doença é a propulsora do direito e se sobrepõe, anulando outras
características do sujeito, entendendo-se que as habilidades e competências deste
não seriam úteis ao processo produtivo e a lógica capitalista.
A Lei nº 10.216/2011 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais já traz um novo modelo assistencial em Saúde
Mental que tem como objetivo primordial a reinserção social do sujeito, prevendo a
sua inclusão, a valorização de suas capacidades e ampliação de suas possibilidades
dentro do contexto familiar e social.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº
13.146/2015 – Lei Brasileira de Inclusão ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, em
seu Art.2º traz um novo conceito de pessoa com deficiência:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimento de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação
com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Tal conceito diferencia impedimentos de natureza mental dos de natureza


intelectual e pressupõe a análise do ambiente, identificando-se a dificuldade na
interação com as barreiras sociais.

532
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Esta Lei, atendendo aos princípios da dignidade humana, visa garantir os


direitos da pessoa com deficiência, e não mais a restrição dos direitos.
Todo ser humano tem capacidade de direito reconhecida pelo ordenamento
jurídico, a qual surge com o nascimento, é genérica e não permite limitações.
O artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência esclarece que a deficiência
não afeta a capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I – casar-se e constituir união estável;


II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III- exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a
informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V- exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como
adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas.

Apenas a capacidade de fato, que consiste na aptidão para praticar


pessoalmente os atos da vida civil pode sofrer limitações em razão da idade ou do
estado de saúde. Pelos novos princípios, a curatela de pessoa com deficiência
constitui-se uma medida protetiva e as restrições devem ter como foco a proteção do
patrimônio e ter prazo determinado, resguardando os interesses existenciais do
interdito.
Nesse sentido, o Roteiro de Atuação do MP-RJ aponta para a necessidade de
uma mudança de paradigma, onde as particularidades, comprometimentos e
potencialidades do interditando devem ser elencadas; e a sentença judicial nos
casos de interdição ser fundamentada, priorizando-se a curatela parcial; sendo a
curatela total medida extraordinária.
Ainda segundo o Roteiro, para fins da aplicação desta Lei e para fundamentar
a sua decisão, o Juiz de Direito poderá requerer a avaliação biopsicossocial, visando
contextualizar o interditando em seu meio familiar e social, o que pressupõe
avaliação por equipe multidisciplinar (por ex. médicos, psicólogos, assistentes
sociais ou outros profissionais, dependendo da necessidade do caso).
Considerando-se o princípio da dignidade humana, sempre que possível,
deverá ser garantido ao interditando o direito de escolher o curador, e a nova Lei
prevê a modalidade de curatela compartilhada.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O artigo 1.783-A – Capítulo III da Lei nº 13.146/2015 pressupõe ainda a


tomada de decisão apoiada que

[…] é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2
(duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de
sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da
vida civil […].

Assim, existe recomendação legal de que sempre que possível seja realizada
oitiva do interditando pelo Juiz e pelos peritos, reconhecendo-o como sujeito e
protagonista da ação, que tem por finalidade a sua proteção.
Nas avaliações periciais poderão ser apresentados quesitos, com indagações
sobre questões diversas, devendo cada profissional entender os objetivos da perícia,
relacionando-os ao seu objeto de estudo. Grande parte dos quesitos traz questões
relacionadas à área médica, e segundo o Núcleo de Apoio Profissional de Serviço
Social e Psicologia, estes fazem referência à C.I.F (Classificação Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde), que é uma forma de classificação utilizada
no Sistema Único de Saúde e pelo INSS.
Considerando que, além da área médica, as equipes que assessoram o Juízo
são compostas por Assistentes Sociais e Psicólogos, em contato com o Núcleo de
Apoio Profissional esse reforçou que os profissionais deverão ter “…como foco a
atenção à qualidade dos cuidados oferecidos ao interdito e não a mensuração ou
quantificação das (in)capacidades dos sujeitos avaliados”
Durante a realização das oficinas os participantes do grupo de estudos
entenderam que em relação aos quesitos apresentados, cada profissional deverá
ater-se àqueles que se referem a sua área de atuação, buscando sempre justificar o
termo “prejudicado” quando esse for utilizado, especificando as razões por não ter
sido possível uma conclusão a respeito, ou por não tratar-se de sua área de
atuação, apontando algumas questões éticas e quando possível, qual a área de
conhecimento específico que poderia abordar determinada questão.
Em relação a Avaliação Social, o Núcleo de Apoio Profissional de Serviço
Social e Psicologia considera que esta:

“[...] tem por fim contextualizar a condição da pessoa com deficiência,


determinando o padrão de participação na sociedade em igualdade de
condições com os demais indivíduos; suas potencialidades, habilidades,
capacidade de expressar vontades e preferências. Analisar o grau de
autonomia/dependência na execução de uma tarefa ou ação (Atividade), o

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

potencial de envolvimento em situação da vida diária real (Participação), as


dificuldades na execução das atividades (Limitações da Atividade), os
problemas enfrentados quando está envolvido em situações da vida real
(Restrições na Participação) e eventuais interferências dos fatores
ambientais (NÚCLEO DE APOIO PROFISSIONAL DE SERVIÇO
SOCIAL E PSICOLOGIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO
PAULO, 2016).

A partir das referências bibliográficas e das discussões durante a oficina


realizada, o grupo de assistentes sociais entendeu que deve abordar os cinco eixos
de análise: 1) Família: os tipos de configurações, a qualidade das relações e
fragilidades dos familiares, as relações de afinidade e proximidade e os vínculos de
confiança; 2) Indivíduo: as condições socioeconômicas, como se dá a inserção do
indivíduo no meio social em que vive, como se estabelecem as relações familiares e
interpessoais 3) Moradia: suas condições, incluindo a distância geográfica caso as
partes não residam no mesmo imóvel e as condições de acessibilidade tanto no
ambiente doméstico quanto territorial; 4) Trabalho: inserção ou exclusão, jornada,
renda, e motivos do afastamento se houver; 5) Contexto Comunitário: como se dá
a participação comunitária; como se estrutura a rede de apoio e como se dá o
acesso às políticas públicas.
Os laudos sociais deverão especificar o grau de autonomia, potencialidades
ou vulnerabilidades e ações da rotina do interditando. Em relação ao curador
analisar a motivação e posicionamento do requerente frente à função, assim como a
qualidade dos cuidados e proteção prestados ao interditando.
Também é necessário conhecer como está estruturada a rede de proteção
social e as Políticas Públicas do território, quais os equipamentos são utilizados,
como se dá o acesso e quais as fragilidades nos serviços oferecidos, na tentativa de
garantir o acesso a tratamento.
Na tentativa de romper com uma cultura de estigmatização e isolamento
social, vistos como eixos de análise, o Serviço Social deve compreender as
possibilidades de socialização, o nível de funcionalidade e perspectivas sociais do
interditando, além dos facilitadores e barreiras ambientais para desempenho de
tarefas diárias.
Além dessa perspectiva de análise, o assistente social deverá dar
informações sobre o andamento do processo legal, desmistificar o papel do curador,
ouvir e estimar as escolhas do interditando e a tomada de decisões, incluindo a

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

escolha do curador e questionando os desdobramentos da medida para a vida de


todos os envolvidos.
A partir dessa compreensão e análise, o laudo social deverá contextualizar o
indivíduo em seu meio familiar e social, ressaltando as condições de acesso ou a
precariedade da rede de proteção, tanto familiar quanto social, visando desta forma,
subsidiar o Juiz na elaboração da sentença, com apontamentos sobre as restrições
da capacidade do interditando.
Em relação à Avaliação Psicológica, de acordo com o Roteiro de atuação na
ação de interdição (MP-RJ, 2014, p. 60)

são objetos de estudo da Psicologia: o comportamento ou o estudo da


mente humana e os processos psicológicos comuns a todo ser humano
(sensação, percepção, associação de ideias, memória, atenção, motivação,
afeto, emoção, cognição, pensamento lógico, inteligência, a formação de
necessidades complexas, vontade, psicomotricidade, etc.) nas suas mais
diversas formas de expressão, bem como as alterações resultantes da
idade, do sexo, da personalidade, das paixões, do temperamento, etc. Cabe
ao psicólogo buscar a compreensão da psicodinâmica funcional, analisando
e estudando o comportamento das pessoas, grupos, instituições e
comunidade, na sua estrutura e no seu funcionamento.

O estudo psicológico deve analisar os fenômenos resultantes das relações


entre o indivíduo, seu contexto social e histórico. Deve avaliar aspectos “específicos
de um conflito, fazendo uma previsão de seu curso” (MP-RJ, 2014, p 61).
Segundo MP-RJ (2014, p.66 e 67), nas ações de interdição, em específico, o
psicólogo deve observar os seguintes aspectos: como aquela ação irá repercutir na
subjetividade e na vida prática do interditando, e se esta realmente o beneficiará;
considerar o desejo do interditando em relação à escolha de seu curador; a relação
que ele estabelece com o seu curador; se este último tem condições adequadas
para exercer tal função (condição de saúde, uso de drogas, idade); e informar o
curador sobre o quadro do interditando, para que possa ter melhor condição de
assisti-lo.
No decorrer da oficina em que se discutiu o tema da interdição e os desafios
para elaboração de análises, os profissionais da psicologia, a partir de sua
experiência prática e a partir da leitura das orientações produzidas pelo MP-RJ
(2014), consideraram que o psicólogo deve analisar: a psicodinâmica familiar, a
história de vida do interditando e suas relações de afeto; a motivação de quem deu
início à ação de interdição; o impacto (positivo e/ou negativo) causado pela

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interdição à vida do interditando. Deverá ainda analisar as possibilidades


encontradas para que se possa atender as necessidades do interditando; a
existência de um curador que possa valorizar as capacidades preservadas
interditando; enfatizando as capacidades e não superestimando as deficiências do
interditando.
Ao longo das discussões do grupo, verificou-se que um dos grandes desafios
para a psicologia no contexto da interdição seria o de avaliar quais eram as
incapacidades e capacidades do interditando, as quais variam muito em função do
contexto em que vive (por exemplo, os serviços disponíveis na rede
socioassistencial, as suas condições socioeconômicas, sua inserção na família e na
comunidade). Ou seja, quais atividades o interditando poderia fazer sozinho e quais
demandariam a participação do curador.
O grupo considerou ainda que as novas orientações para interdição de uma
pessoa têm como ponto positivo não impossibilitar totalmente o exercício dos seus
direitos de cidadania, quando tem a opção de interditá-lo somente para algumas
atividades da vida, e assim, não comprometer de forma integral suas capacidades e
autonomia.
Apesar disso, os profissionais mostraram-se preocupados com a possibilidade
de que o Estado faça uso dos laudos dos peritos do judiciário para limitar direitos à
pessoa interditada, como por exemplo, indeferir benefícios, o que causaria uma
violência às suas famílias que geralmente são empobrecidas.
Em consulta à profissional técnica do INSS, tal preocupação ficou diluída na
medida em que essa afirmou não ter acesso à avaliação do perito judiciário e tão
somente à sentença do magistrado. Esclareceu que a intervenção da Justiça ocorre
quando se faz necessária a nomeação de um curador a fim de administrar o
benefício previdenciário. A concessão ou indeferimento do benefício previdenciário
está restrita à avaliação daquele Instituto e independe se a Curatela será total ou
parcial.
Considerando que a participação dos psicólogos nas ações de interdição é
recente, e que apenas no presente ano iniciou-se a reflexão sobre o tema, o grupo
considera que ainda há muito a se esclarecer para melhor compreender o papel da
psicologia nos processos de interdição.

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CONCLUSÃO

Para os assistentes sociais e psicólogos do Poder Judiciário, os laudos


refletem a ação profissional e enquanto instrumento de poder, podem embasar
decisões judiciais que garantem ou restringem direitos. Tendo em vista tais
implicações, o exercício das oficinas de relatórios consistiu-se num espaço para o
diálogo, exposição de dificuldades e para a busca de novos referenciais para
apresentação de laudos mais bem fundamentados.
A troca a partir do conhecimento prévio dos profissionais e as experiências
específicas em cada área de conhecimento (serviço social e psicologia)
proporcionaram a inter-relação dos conteúdos teóricos com os aspectos
significativos da situação vivenciada dentro de um contexto sócio histórico e político.
Os encontros favoreceram a reflexão e reavaliação, além de possibilitar o
exercício da construção da análise de cada área, propiciando crescimento
profissional, necessário ao desenvolvimento do trabalho a que se propunham os
participantes.
Entende-se assim que o presente grupo de estudos alcançou os objetivos
propostos enquanto oficina de laudos no sentido de que por vezes a execução das
demandas torna-se tão automática, que é difícil para o profissional um momento
para repensar sua prática de forma crítica e coesa.

538
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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540
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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541
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A AUSÊNCIA DO PROFISSIONAL DE PSICOLOGIA NAS


COMARCAS E OS SUPOSTOS REBATIMENTOS NA
PRODUÇÃO DO ESTUDO PSICOSSOCIAL NOS
PROCESSOS NAS VARAS DE FAMÍLIA E SUCESSÕES E
INFÂNCIA E JUVENTUDE

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR -


PRESIDENTE PRUDENTE II
“ESTUDO PSICOSSOCIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
542
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Silvia Helena Manfrin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente


Prudente
Danielle Yamashita – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Prudente

AUTORES

Evelyn Navarro Justino Soler – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente


Feijó
Igor Costa Palo Mello – Psicólogo Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Jacqueline Aparecida Vicente – Assistente social judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Maria Natália Aparecida Soares Rodrigues – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Rancharia
Márcia Giselda Juvencio Gervazoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Rancharia
Silvia Cristina Carvalho Santos Vanderlei – Assistente Social Judiciário – Comarca
Martinópolis
Nayara Coimbra Coutinho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Martinópolis
Priscila Sayuri Goto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Vanessa Milanezi Felipe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente

543
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente artigo é produto do registro das leituras e reflexões coletivas a


partir do Grupo de Estudos, (Grupo II) composto por Assistentes Sociais e
Psicólogos da 27º Circunscrição de Presidente Prudente. Os municípios agrupados
nessa região são: Presidente Prudente, Álvares Machado, Anhumas, Alfredo
Marcondes, Regente Feijó, Santo Expedito, Emilianópolis, Presidente Bernardes,
Presidente Venceslau, Presidente Epitácio, Santo Anastácio, Caiuá, Marabá
Paulista, Rosana, Primavera, Martinópolis, Rancharia, Caiabu, Indiana, Taciba, Iepê,
Pirapozinho.
A metodologia de trabalho contemplou reuniões mensais realizadas entre
Março e Dezembro de 2016. Em março, houve a definição do cronograma de
atividades sobre o tema do Estudo Psicossocial e a distribuição em subgrupos
formados por três técnicos que ficariam responsáveis pela condução da discussão
em cada encontro.
Em Abril, as reflexões se voltaram para a compreensão do trabalho dos
técnicos no contexto do Tribunal de Justiça em termos de multidisciplinaridade,
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. No mês de Maio, foi discutida a escrita
de relatórios psicológicos e sociais produzidos em conjunto e/ou separados pelos
técnicos.
Em Junho, se discutiu a definição dos documentos segundo sua forma e a
legislação das categorias profissionais envolvidas. No mês de Julho, apresentou-se
o tema do ambiente de trabalho sem psicólogos nas comarcas menores.
Em Agosto, se tratou do tema do poder institucional e, em Setembro, da
Avaliação Psicológica com a utilização de instrumentos específicos.
Em Outubro, iniciou-se o processo de escrita do artigo e discussão sobre a
relação entre teoria e prática no cotidiano de trabalho, dando-se continuidade ao
processo nos meses de Novembro e Dezembro do presente ano.
A partir dessas discussões, tomou-se como objeto do presente artigo a
produção de Estudo Psicossocial, considerando os supostos rebatimentos trazidos

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

aos Processos nas Varas de Família e Sucessões e Infância e Juventude em


Comarcas onde não há psicólogo.
Compreende-se que a garantia da qualidade desse trabalho depende da
alocação dos dois profissionais em cada comarca no sentido de considera-los como
saberes e práticas complementares. Tendo em vista a prestação de serviço
qualificado para a população que acessa o judiciário, ficou evidente nas leituras e
discussões do grupo que seria necessário compor a equipe interdisciplinar com
profissionais Assistentes Sociais e Psicólogos, de preferência, em número
igualitário.

1. A INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL E DA PSICOLOGIA NO


JUDICIÁRIO BRASILEIRO E PAULISTA

O Serviço Social tem uma trajetória no Poder Judiciário no Estado de São


Paulo de quase 70 anos e tem ocupado seus lugares com muita luta, resistência e
organização ao longo dos anos. Somaram-se a estes profissionais os psicólogos a
partir da década de 1980.
Antes de discorrermos os breves apontamentos acerca da inserção do
Serviço Social no judiciário brasileiro e paulista, não podemos deixar de pontuar,
ainda que resumidamente, sua origem em um cenário mais amplo. PAULA (2013),
nas notas introdutórias de sua tese de doutorado “Serviço Social, Estado e
Desenvolvimento Capitalista” nos ensina que o Estado brasileiro, assim como outros
países, é constituído e é constituinte do processo de acumulação capitalista, que por
sua vez não pode prescindir do desenvolvimento, que, apesar de se conformar
historicamente de maneiras diferentes, tem em comum a expropriação do trabalho e
a expansão dos níveis de acumulação. É nesse contexto que o Serviço Social se
insere na sociedade brasileira.

Não é por acaso que a origem do Serviço Social como profissão está
atrelada ao conjunto de medidas desenvolvimentistas empregadas pelo
Estado burguês quando leva a cabo seus intentos de modernização nos
idos de 1930. E também não é por acaso que tanto a requisição formal pelo
Estado de “trabalhadores sociais” quanto o debate em torno desse processo
se repõem na contemporaneidade. (PAULA, 2013, p. 23)

545
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Cabe mencionar que os profissionais de Serviço Social são pioneiros no


judiciário paulista, como foram também no judiciário brasileiro, visto que com o
surgimento da profissão no final da década de 1930, alguns assistentes sociais
passaram a realizar trabalhos no então Juizado de Menores, sem remuneração e
junto ao Comissariado de Menores.
Como destaca Fávero (2013), o Serviço Social inicia sua trajetória no Poder
Judiciário paulista no final da década de 1940, mais especificamente com a criação
do Serviço de Colocação Familiar no Estado de São Paulo através da Lei nº 560 de
27/12/1949, constituindo o primeiro programa de família de apoio ou família
acolhedora ou mesmo, o primeiro programa de transferência de renda do Estado de
São Paulo, já que incluía apoio financeiro às famílias de apoio ou às próprias
famílias das crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente.
A direção inicial do Serviço Social no Judiciário Paulista estava voltada para a
proposição e o desenvolvimento de ações que pudessem assegurar alguma
proteção social, direcionada pela doutrina social da Igreja Católica, que naquele
momento também norteava a formação ética e moral dos estudantes de Serviço
Social.
Conforme aponta Fávero (2013), em 1957 foram criadas e formalizadas as
Secções de Informações e de Serviço Social, que ficaram conhecidas como Serviço
Social de Gabinete, cujas ações eram voltadas ao controle social dos
comportamentos considerados “desviantes” do padrão econômico burguês. O saber
específico sobre as relações sociais e familiares passa a ser sistematizado em
informes, relatórios ou laudos, com o objetivo de dar suporte à decisão judicial.
O Serviço Social no Judiciário paulista praticamente coincide com o
estabelecimento do 1º Código de Ética Profissional do Assistente Social, de 1948,
fundamentado em pressupostos neotomistas e positivistas, pressupostos que
nortearam o exercício profissional até a década de 1980.
A partir da década de 1990, há uma significativa ampliação do quadro de
profissionais do Serviço Social no judiciário paulista em consequência à crescente
demanda de trabalho impulsionada pela ampliação das expressões da questão
social no cenário nacional e ainda pelas exigências postas pela consolidação de
importantes normativas do ordenamento jurídico materializadas pela Constituição
Federal de 1988 e pela Lei 8069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Esta década também foi marcada pela tentativa de rompimento do Serviço


Social no Brasil com o conservadorismo. Nesse sentido, Netto (2006) afirma que as
discussões versando sobre o projeto ético-político do Serviço Social se deu a partir
da transição da década de 1970 e 1980, seguida das discussões do processo de
reconceituação do Serviço Social pós ditadura em que os profissionais recusam o
conservadorismo e buscam a identificação com a classe trabalhadora e sua
reinserção na cena política.
Essas mudanças, como já mencionado, são fruto das discussões de quase
duas décadas e da apropriação gradativa das teorias marxistas no interior da
categoria, bem como, pela consolidação das bases de um novo projeto ético politico
da profissão estabelecido pelo Código de Ética Profissional do Serviço Social
promulgado pela Lei 8.662/1993 e pelo lançamento de novas diretrizes curriculares
na formação profissional, trazendo uma nova direção e dimensão social à profissão
até os dias atuais.
Essa ebulição ocorrida no interior da categoria, associada à conjuntura da
época e que culminou com o novo direcionamento na atuação profissional, é
retratada por Paula quando aponta:

Se nos idos dos anos de 1930, o projeto desenvolvimentista burguês


encontrava coerência e atos de reciprocidade com o projeto profissional dos
assistentes sociais, na contemporaneidade o novo-desenvolvimentismo
promove um discurso de renovação das políticas de tratamento das
refrações da “questão social”, o que o impele a requisitar assistentes sociais
para operá-las, como sempre tem sido, mas se depara com um projeto
profissional criticamente antagônico às suas bases estruturais de
legitimação. (Paula 2013, p. 24).

Fávero (2015) nos esclarece que o serviço social foi expandindo sua
atuação, absorvida especialmente no atendimento às demandas afetas às crianças,
jovens e família, atuando prioritariamente como perito, ofertando subsídios para a
tomada de decisões da autoridade judiciária. Essa expansão foi viabilizada pelos
concursos públicos para o ingresso dos assistentes sociais realizados nos anos de
1967, 1979, 1985, 1990, 2005 e o último em 2013.
É neste contexto que o Serviço Social vai ganhando espaço ao longo da
trajetória desenvolvida junto à organização judiciária, reconhecido pela atuação nas
varas de infância e juventude e família e vai ampliando sua atuação em várias outras
frentes, como no esclarece Fávero (2015):

547
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...] hoje o Serviço Social atua em várias frentes e suas atribuições não se
resumem apenas a situações relacionadas às medidas judiciais. Atuando
em conformidade com os princípios éticos norteadores da profissão, tem
contribuído para a implementação de projetos e programas na área de
saúde mental e vocacional, reavaliação funcional, capacitação e
treinamento etc., funções estas que envolvem o conhecimento de vivências
socioeconômicas e culturais dos sujeitos e de como reagem às diferentes
manifestações da questão social na sua vida cotidiana.” (FÁVERO, 2015,
p.66)

Com relação à Psicologia, a atuação deste profissional âmbito do Judiciário


brasileiro iniciou antes mesmo desta ser reconhecida como profissão, tendo sua
inserção lenta e as vezes de maneira informal, inicialmente preocupando-se em
traçar perfis criminológicos, fossem de adultos ou crianças/adolescentes.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sua inserção se deu na
década de 1980, quando alguns profissionais atuaram voluntariamente, de forma
clínica, voltado ao atendimento às famílias. “Relata Bernardi (1999), que o objetivo
desses profissionais, efetivados apenas em 1985, era o de oferecer apoio às
famílias, visando sua reestruturação e à manutenção da criança no lar como medida
preventiva da internação”. (Rovinski, 2009, p. 13).
Em 1964 a psicologia teve seu reconhecimento como ciência e profissão, mas
somente em 2002 é que se teve a discriminação da atividade do psicólogo judiciário
no rol da Classificação Brasileira de Ocupação (CBO). Nas palavras de Rovinski
(2009):

Nessa área profissional, o psicólogo exerce atividades de avaliar


comportamentos, tratar, orientar e acompanhar indivíduos, grupos e
instituições. Da mesma forma, são previstas atividades de educação (aula e
supervisão), pesquisa, coordenação de equipes e realização de tarefas
administrativas. Dentro do grupo de atividades de avaliação estão
especificadas as tarefas de: entrevistar pessoas, ler processos, investigar
pessoas e situações-problema, escolher, aplicar e mensurar instrumentos
de avaliação, elaborar diagnósticos, pareceres, laudos e perícias, responder
a quesitos técnicos judiciais. (ROVINSKI, 2009, p. 15).

Acrescenta ainda que com a promulgação da Lei Federal n. 7.210/84, de


execução penal e da Lei n. 7.209/84 (a nova parte geral do código Penal Brasileiro),
bem como o advento do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei Federal n. 8069/90)
o psicólogo passou a ter seu papel reconhecido e ampliado, envolvendo suas
atividades respectivamente em exames criminológicos e de personalidade, bem
como ao que diz respeito às situações ligadas à infância e adolescência.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No entanto, embora o Brasil tenha avançado muito em termos de


contratações e concursos públicos, o que se observa, principalmente no que diz
respeito à realidade do interior do Estado de São Paulo, no tocante a 27ª
Circunscrição, é a insuficiência do número de profissionais psicólogos nos Tribunais
de Justiça, em detrimento da demanda que vem se apresentando e a crescente
judicialização das relações intrafamiliares e interpessoais.

2. AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL E OS REBATIMENTOS


NO TRABALHO INTERDISCIPLINAR

Ao longo da década de 1990, com o avanço das políticas neoliberais houve


uma redução significativa nos sistemas de proteção social, sendo que o Estado
passa a priorizar investimentos em políticas repressivas para a manutenção do
controle social.
Compreende-se aqui o neoliberalismo como uma articulação macro e
micropolítica que supõe uma intensificação da competitividade econômica nas
relações humanas, concomitante a globalização financeira, tendo como
consequências necessárias “[...] uma hipertrofia do Mercado, a desregulamentação
das relações entre trabalho e capital e o gradativo esvaziamento do papel social do
Estado” (CARVALHO, 2009, p. 24).
Neste sentido,

Partindo do pressuposto de que sistemas de proteção social de caráter


universal/redistributista constituem uma ameaça à liberdade dos indivíduos
e à vitalidade do mercado, o neoliberalismo vem buscando desconstruir os
fundamentos teóricos e práticos de políticas que têm como referência o
Estado de Bem-Estar Social. Justificando essa estratégia encontra-se a
afirmação de que políticas sociais igualitárias (por exemplo, o projeto de
implementação do Sistema Único de Saúde no Brasil) caracterizam-se por
retirarem recursos de áreas produtivas para subsidiar bens e serviços que o
mercado poderia prover. [...] Dessa maneira, [...] o neoliberalismo busca
transformar direitos em carências. [...] Políticas públicas igualitárias passam
a receber, nesse cenário, a alcunha de “populismo irresponsável” e o
nacionalismo em países “em desenvolvimento” – diferentemente, é bom
notar, do que ocorre em países centrais – passa a ser considerado um
anacronismo (RESENDE, 2009, p. 24-25).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Esta opção política estatal trouxe rebatimentos no Poder Judiciário que teve
ampliadas suas demandas pela via da judicialização da questão social, resultante da
inépcia ou omissão do Poder Executivo na efetivação dos direitos da população pela
via das políticas sociais redistributivas e universalizantes.
Para o entendimento do significado da “questão social” nos valemos da
definição posta por Iamamoto (1998):

A Questão Social é apreendida como um conjunto das expressões das


desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum:
a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais
amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se
privada, monopolizada por uma parte da sociedade. (Iamamoto, 1998, p.27)

As expressões dessas desigualdades postas pela autora se materializam sob


diferentes demandas que se apresentam ao trabalho técnico judiciário, seja nas
Varas de Infância e Juventude ou Família e Sucessões.
Via de regra, as famílias que chegam ao judiciário por meio de denúncias
vivem em situações de precariedade nos mais diferentes níveis, expostas
reiteradamente a situações de segregação e exclusão dos bens produzidos
socialmente.
Segundo Sawaia (2013), a partir da dialética de processos socialmente
excludentes e inclusivos, emerge o chamado “sofrimento ético-político”. Este varia
conforme a mediação priorizada no processo de exclusão (raça, gênero, idade,
classe, etc.), qualifica-se pelo trato na intersubjetividade, face a face ou anônima,
retrata a dor que surge da situação social de ser considerado inferior, subalterno
e/ou apêndice inútil a sua coletividade, e revela a tonalidade ética da vivência
cotidiana das desigualdades, da negação das possibilidades de apropriação da
riqueza produzida pela sociedade e historicamente acumulada, de mobilidade no
espaço público e de expressão de desejo e afeto.
Essa é a demanda posta ao serviço técnico do Poder Judiciário que atua
fundamentalmente sobre a vida dos pobres. Essa atuação, via de regra, deve
implicar na possibilidade de promoção social e acesso à cidadania, ainda que as
respostas sejam individuais para problemas que sabemos serem coletivos.
No contexto da judicialização da questão social o Assistente Social e o
Psicólogo tem participação significativa, uma vez que fornecem subsídios às

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

decisões judiciais como partes constituintes dos conflitos judicializados através dos
documentos que produzem (relatórios, estudos, laudos, pareceres).
Nas Varas de Família, ao ingressar com uma ação, a pretensão do sujeito
normalmente é a garantia de um direito, enquanto na Vara da Infância e Juventude
busca-se a restauração do direito violado.
O Judiciário, através de seu corpo técnico, produz diagnósticos e proposições
que interferem diretamente na vida das pessoas, especialmente daquelas em
situação de maior vulnerabilidade e risco social, como já mencionado.
Como nos ensina Simone Weill (1996), para pensar sobre o poder exercido
pelo judiciário sobre a vida das pessoas, do cidadão, na questão de dirimir conflitos
e “dizer” o direito, é preciso pensar sobre quem é esta pessoa que busca ou se
sujeita ao judiciário.
E mais, é preciso sempre buscar a resposta a uma questão de suma
importância: o acesso ao poder judiciário representa a construção/ampliação da
justiça social? E o trabalho técnico, potencializa direitos ou culpabiliza ainda mais as
classes vulneráveis?

3. CONTEXTO ATUAL DAS COMARCAS QUE NÃO POSSUEM


PSICÓLOGOS

Verificou-se durante os debates, que na tentativa de amenizar o prejuízo


causado pela falta do psicólogo em várias Comarcas, tem-se recorrido ao envio de
Carta Precatória para comarcas vizinhas que contam com a presença deste
profissional. Entretanto, embora possa compensar provisoriamente sua ausência, a
Carta Precatória traz comprometimentos à Avaliação Psicossocial sob dois aspectos:
o primeiro deles seria a demora significativa para a devolução do Processo à
Comarca Deprecante em virtude da necessidade de seguir os tramites legais,
fazendo com que esse lapso temporal contribua para a produção de documentos
apartados e sobrepostos. O segundo deles pressupõe que o Estudo Psicossocial se
constrói e constitui-se na discussão interdisciplinar do caso, mesmo que isso resulte
em documentos escritos separadamente.

551
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outra possibilidade que o judiciário tem encontrado para tentar lidar com a
ausência de psicólogos é determinar que um profissional se desloque de sua Sede e
atenda outras comarcas da circunscrição vizinha, no entanto, o que se vê na prática
é que tais atividades cumulativas também trazem prejuízos, tanto na Comarca Sede,
uma vez que a ausência do profissional compromete a dinâmica de funcionamento
do setor, como na comarca onde está prestando serviço, por não conseguir atender
à crescente demanda, sem contar na sobrecarga de trabalho do profissional que
necessita se deslocar para outros locais e a falta de estrutura, contribuindo para o
adoecimento do profissional.
As demandas que se apresentam na atualidade (abuso sexual, alienação
parental, destituição do poder familiar, alteração de nome e gênero, curatela e
interdição, entre outras) trazem uma complexidade para seu desvelamento que
exigem a contribuição de múltiplos saberes e discussões interdisciplinares. Além
disso, deve-se considerar a natureza dinâmica dos casos estudados que determina
a urgência da realização do Estudo Psicossocial, sob pena deste encontrar-se
defasado ao chegar ao conhecimento do Juiz.
Acrescenta-se a esses fatores supracitados, o fato de que diante das
dificuldades como distância e morosidade, há a necessidade de seleção dos casos
prioritários por parte do Assistente Social, ao proceder à sugestão para a Avaliação
Psicológica fora de sua Comarca, podendo-se concluir pela existência de uma
demanda reprimida quanto a esta avaliação.
É necessário pontuar sobre as especificidades de uma Avaliação Psicológica,
a qual é entendida pelo CFP “como o processo técnico-científico de coleta de dados,
estudos e interpretação de informações a respeito dos fenômenos psicológicos, que
são resultantes da relação do individuo com a sociedade, utilizando-se, para tanto,
de estratégias psicológicas – métodos, técnicas e instrumentos”, reconhecidos pela
ciência psicológica, tais como observação, visitas domiciliares e institucionais,
entrevistas (não apenas com as partes envolvidas, mas também com pessoas que
se relacionam), em determinados casos a aplicação de testes psicológicos, técnicas
projetivas, utilização de recursos lúdicos (que exigem tempo para ser analisadas a
posteriori), e, muitas vezes, reuniões técnicas com psicólogos clínicos ou outros
profissionais, a fim de complementar e referendar os dados já colhidos, os quais
deverão ser analisados a luz de um referencial teórico.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A psicologia embora possua status de ciência, não se apresenta como


positivista, já que seu “objeto” de estudo é o individuo em sua singularidade que se
expressa em nível consciente tanto por meio de suas características biológicas
como de personalidade, adquiridas ou não nas interações com o meio intrafamiliar e
sociocultural. Além da aquisição, considera-se esse meio próximo determinante na
maneira como mesmo aspectos inatos são valorizados por ele, por exemplo, cor dos
olhos, cor da pele, sexo biológico, etc.
Soma-se a esses determinantes da individualidade, o próprio inconsciente,
algo do qual ela não tem conhecimento e que pode ser reconhecido apenas a
posteriori através das diversas formas de expressão verbal e não-verbal ou pela
reflexão acerca do resultado de escolhas e posicionamentos cotidianos, por
exemplo, na constatação ou no levantamento de hipóteses acerca da existência de
padrões de repetição intergeracional em relacionamentos com características muito
semelhantes (mãe-esposa, pai-esposo, genitor-filho, etc.).
Contribuindo para a constituição dessa singularidade subjetiva e objetiva
estão também os condicionantes históricos e conjunturais mais amplos, a exemplo
dos acontecimentos que envolvem o Estado e a Sociedade Civil, que afetam o
psiquismo direta ou indiretamente, interferindo na maneira do sujeito posicionar-se
na vida. O conjunto desses determinantes torna os indivíduos humanos “objetos de
estudo” particularmente complexos e multifacetados ao olhar do psicólogo-perito.
A atuação do psicólogo como perito junto à parcela do poder de Estado
discriminada como Tribunal de Justiça condiciona-o a um diálogo ininterrupto com a
ciência jurídica, que oferece sustentação à função julgadora assumida pelos juízes e
à função provocadora constituída pela ação dos demais operadores do direito
(promotores de justiça, defensores públicos, advogados, etc.). Isso também vale
para os assistentes sociais.
Neste contexto, é importante citar a existência de propostas como a de
Marchesini (2010) que emergem, por exemplo, da psicanálise e visam estabelecer
formas de articulação transdisciplinar na constituição de um discurso juspsicanalítico
que proponha:

[...] novas práticas forenses e políticas públicas que passem a dar mais
importância e garantias ao direito fundamental da personalidade, alusivo à
integridade psicofísica nas fases de desenvolvimento infantil e adolescente,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

visando a construção e desenvolvimento da subjetividade e cidadania”


(DUARTE, 2010, p. 15).

Uma das questões propostas pela autora seria a discussão da articulação


possível entre o registro da Lei simbólica do inconsciente e o das leis histórica e
socialmente particulares do direito de Estado como forma resolutiva de
compreensão da “crise entre direitos legais e não legais” (como “o direito político das
minorias”), uma vez que isso exigiria uma reconfiguração entre a necessária
validação universal da norma jurídica em sua jurisdição e sua eficácia simbólica em
nível singular subjetivo (DUARTE, 2010, p. 10-11).
Em prefácio à obra de Marchesini, Duarte (2010) afirma que:

A lei em seus níveis individual e social se constrói de perdas solidárias de


gozo de tudo poder, no ponto de interseção onde o sujeito singular e o
sujeito coletivo se reúnem assentindo às interdições incestuosas, ou seja,
às nuanças da ética edípica. (Duarte, 2010, p. 11 – grifo do autor).

No que diz respeito ao também imprescindível diálogo com a atuação do


assistente social, faz-se necessário dialogar com a perspectiva Materialista Histórica
Dialética. Em específico, consideramos importante compreender o que nessa
perspectiva teórico-metodológica se considera a concretude.
Consideramos importante examinar esse conceito à luz da referida
perspectiva teórico-metodológica porque é considerado chave para o estudo, entre
outros, das frações da questão social. O termo, esmiuçado por Karel Kosik (2010) na
famosa obra “Dialética do concreto”, tem suas origens na indicação elaborada por
Karl Marx (1983) no estudo sobre a economia política:

[...] O concreto é concreto por ser síntese de múltiplas determinações, logo


unidade na diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um
processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de
ser o verdadeiro ponto de partida e portanto o ponto de partida da
observação imediata e da representação [...].(KAREL KOSIK, 2010, p.
218-219)

A fim de compreender as possibilidades de articulação existentes entre o


objeto de estudo na perícia judiciária de assistentes sociais e psicólogos, faz-se
necessário aqui distinguir entre materialidade e concretude. É possível considerar
examinando as duas obras citadas no parágrafo anterior que o primeiro termo é
parte da questão social concreta que precisa, no entanto, ser integrada a ela como
554
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

uma de suas determinantes e não sobrepor-se à mesma, situação em que Kosik


(2010) não relutaria intitular “pseudoconcreticidade”.
Neste sentido, o fato de um indivíduo em sua constituição física material
relacionar-se materialmente com os outros de forma a constituir para si e para eles
uma fração da questão social não esgota as determinações dessa situação que
pode tornar-se objeto de estudo psicossocial no contexto do Tribunal de Justiça
mediante determinação judicial.
As relações sociais de produção que estão no fundamento da constituição
das frações da questão social também são permeadas pelo mesmo simbolismo que
constitui a consciência e o inconsciente singular subjetivo.
Numa perspectiva psicanalítica, compreende-se o símbolo ou o significante
como representação mental da presença de um objeto em sua ausência perceptiva
a um determinado sujeito que é integrada e recebe sentido de uma representação
mais ampla e estável da realidade como um sistema de relações estruturado como
uma linguagem, a dimensão simbólica (ROUDINESCO e PLON, 1998).
Nesta direção, por exemplo, é possível argumentar que a atribuição de
sentido pelos indivíduos acerca de suas condições materiais de existência e das
relações interpessoais por eles estabelecidas com base na dimensão simbólica é tão
determinante da concretude estudada por psicólogos e assistentes sociais quanto a
materialidade.
Dessa forma, postula-se aqui que elementos como significados, sentidos e
simbolismos conscientes e inconscientes sejam considerados determinantes não
imediatamente materiais da concretude, elementos que, no entanto, encontram suas
diversas formas de expressão na materialidade e compõem a síntese de múltiplas
determinações denominada concreto (MARX, 1983; KOSIK, 2010).
De outra forma, há concepções da psicologia fundamentadas na chamada
teoria histórico-cultural que afirmam ser a individualidade um ser social, uma
singularidade concreta que é síntese de múltiplas determinações, tanto como a
questão social deve ser considerada na perspectiva do Serviço Social (OLIVEIRA,
2005).
Caberia nesse sentido, aprofundar a compreensão de como seria possível
articular as duas perspectivas próximas do ponto de vista teórico-metodológico.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Estas especificidades resultam na necessidade de se dispensar maior tempo


na execução, análise, conclusão e escrita de uma Avaliação Psicológica, atendendo
aos princípios técnicos e éticos expressos no Código de Ética da profissão e nas
normativas expedidas pelo Conselho Federal de Psicologia em relação à escrita e
produção de documentos, como a Resolução CFP nº 007/2003.
Da mesma forma, essa necessidade também se faz presente na realização
do Estudo Social, considerando o que é demandado pelas normativas do Conselho
Federal de Serviço Social e alinhado com o projeto ético-político da profissão,
expressos nos princípios da profissão e no Código de Ética Profissional do Serviço
Social.

556
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONCLUSÃO

O Estudo Psicossocial, como o próprio nome sugere, pressupõe que se


efetive, na interação entre Assistente Social, Psicólogo e Sistema Sóciojurídico, a
construção de um trabalho interdisciplinar. Contudo, compreende-se que as
complexas demandas que vem se apresentando na atual conjuntura necessitam de
uma visão transdisciplinar que possa representar o entendimento dos sujeitos e suas
demandas em suas diferentes dimensões, em sua totalidade.
Entende-se como interdisciplinaridade a interação entre duas ou mais
disciplinas, podendo integrar mútuos conceitos diretivos. De acordo com Piaget, é o
intercambio mútuo e integração recíproca entre várias ciências, tendo como
resultado um enriquecimento.
A transdisciplinaridade seria uma etapa superior à interdisciplinaridade que
não só atingiria as interações ou reciprocidades, mas situaria essas relações no
interior de um sistema total, não se esgotando nos profissionais assistente social e
psicólogo.
No entanto, embora desejável, esta não é uma realidade que se apresenta
no judiciário.
Atendo-nos ao contexto do Judiciário, observa-se que em locais onde existe
equipe de psicólogos e assistentes sociais, há maior disponibilidade por parte dos
profissionais de realizarem um estudo mais voltado para a interdisciplinaridade, uma
vez que há possibilidade desses profissionais trocarem saberes e construírem um
conhecimento conjunto e mútuo acerca da demanda que envolve as duas áreas de
atuação.
Já em comarcas onde há a falta de uns dos profissionais, os estudos acabam
acontecendo numa dinâmica multidisciplinar38, uma vez que estes ocorrem de forma
apartada, e na maioria das vezes sem troca e discussão de caso entre os
profissionais.

38
Por multidisciplinaridade entende-se a justaposição de disciplinas diversas, às vezes sem aparente
relação entre elas.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

É fato que o Assistente Social e o Psicólogo têm dentre sua demanda


institucional no Poder Judiciário contribuir com a aplicação da lei que é pensada sob
a ótica da eficácia universal no interior de uma determinada jurisdição, do coletivo,
da igualdade. Porém, pela natureza da função exercida, a demanda pelo trabalho
técnico deve ser feita na direção da construção de respostas profissionais que
considerem a singularidade dos sujeitos.
Conclui-se que a elaboração do Estudo Psicossocial deve contribuir para
desvelar esse cenário, a partir de uma perspectiva crítica, compreendendo que as
desigualdades existentes são inerentes ao padrão capitalista eleito econômica e
politicamente no país e que rebatem de forma muito violenta na população mais
vulnerável, afetando a subjetividade dos indivíduos.
Partindo desse pressuposto, a atuação dos profissionais técnicos, Assistentes
Sociais e Psicólogos, deve estar comprometida com as demandas institucionais e
mais ainda com as demandas sociais e subjetivas com o objetivo de, a partir de sua
atuação, ser o veículo de viabilização de direitos.
Para essa proposta, é imprescindível a presença dos dois saberes
profissionais para a construção do Estudo Psicossocial, vislumbrando a
possibilidade de uma atuação de forma interdisciplinar, já que se entende que esta
conseguiria oferecer maiores elementos para contribuir com desvelamento da
complexidade das demandas que se nos apresenta, visto que em nosso espaço
ocupacional de trabalho ainda não podemos atingir a transdisciplinariedade.

558
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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WEIL, Simone. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Paz e Terra,
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560
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DESENVOLVIMENTO INFANTIL E MÉTODOS DE ESCUTA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - RIBEIRÃO PRETO

“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
561
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COORDENADORES

Camila Ferreira Messias Lelis – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Pitangueiras
Vitor Alex Salerno – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirangi

AUTORES

Ana Luisa Forti Vaz de Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sertãozinho


Andreia Cristina Medeiros Bossa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ribeirão Preto
Armando Viana de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araraquara
Bruno Cesar Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guariba
Carlos Renato Nakamura – Psicólogo Judiciário – Comarca de Américo Brasiliense
Cristiane Ferreira Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Eliana Binhardi Zanineli da Rocha – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sertãozinho
Estela Cabral Sargento – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fabiana Marchetti Castro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araraquara
Fernanda Aguiar Pizeta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fernanda Renata Paziani Pereira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão
Preto
Heloisa Chaves Nascimento de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ribeirão Preto
Ildebrando Moraes de Souza – Psicólogo Judiciário – Comarca de Cravinhos
Janaina Corrêa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Juliana Bezzon da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Lucivani Brondi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Maria Stela Setti Moreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tambaú
Marisley Vilas Boas Soares – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Nina Rosa do Amaral Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Suellen Cristina Bastos de Sousa Abadia – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Cajuru
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Tatiane Patrícia Cintra – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho


Thiago Simoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de Monte Alto

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INTRODUÇÃO

Ao se debruçar sobre o tema do depoimento especial, atualmente no Brasil,


fica evidente um movimento no sentido de conhecer e estabelecer métodos para
realizar o procedimento de escuta, em determinados espaços institucionais, de
crianças e adolescentes em situação de violência sexual, apropriando-se dos
contextos nos quais estão inseridos.
A adoção e a promoção desses novos métodos têm sido defendidas pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a fim de serem utilizados em Delegacia de
Polícia, Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário (equipamentos que
compõem o Sistema de Justiça), como forma de se voltarem ao atendimento
específico, considerando “a condição peculiar da criança e do adolescente como
pessoas em desenvolvimento” (ECA, 1990).
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, instituição foco do presente
artigo, as experiências nesse sentido ainda são incipientes, em se tratando da
produção teórica sobre o assunto, ainda assim, já suscita reflexões, pelos
profissionais nos espaços de trabalho, acerca das suas aplicações, metodologias e
funcionalidades.
Dentre os métodos utilizados nessa perspectiva, destacar-se-ão três
protocolos reconhecidos internacionalmente, sendo eles: Entrevista Cognitiva;
Rapport, Anatomy Identification, Touch Inquiry, Abuse Scenario, and Closure
(RATAC) e National Institute of Child Health and Human Development (NICHD);
que estabelecem estratégias para escuta, incluindo roteiros de entrevistas
específicos com crianças/adolescentes vítimas de abuso e/ou exploração sexual.
Conquanto semelhantes e visando aos mesmos objetivos – atender às
demandas judiciais nos procedimentos de depoimento especial –, os referidos
roteiros possuem características que os diferenciam. Estas serão apresentadas, em
capítulo próprio, no decorrer do presente artigo.
Com o intuito de contextualizar a esfera da utilização dos roteiros nos
procedimentos de escuta desses sujeitos, torna-se indispensável uma explanação
acerca das fases de desenvolvimento infantil, suas características e seus

564
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

desdobramentos face aos processos histórico-culturais pelos quais sofrem direta


influência. Para isso, as referências teóricas foram fundamentadas em Piaget,
Vygotsky e Freud, alguns dos autores que possuem bibliografia que se destaca
nesse assunto.
Por último, exploraram-se experiências de profissionais que atuaram nas
primeiras aplicações da metodologia do Depoimento Especial, no Estado de São
Paulo.

1. DESENVOLVIMENTO INFANTIL

Quando o trabalho profissional é ouvir a criança e o adolescente sob a


demanda da violência sexual no âmbito Judiciário, faz-se necessário conhecer sobre
o desenvolvimento infantil, as características da linguagem, os aspectos teóricos e
práticos que compõem seu discurso, bem como o desenvolvimento da sexualidade
nessas fases do ciclo vital, para que todos os profissionais envolvidos na proteção
dos direitos das crianças e adolescentes estejam qualificados para atuar nos casos
de violência.
Para melhor compreensão dos aspectos do desenvolvimento do pensamento
e da linguagem infanto-juvenil, destaca-se o referencial teórico socioconstrutivista de
Jean Piaget e sociointeracionista de Lev Vygotsky, que podem auxiliar os
profissionais na escuta de crianças e adolescentes.
Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo do indivíduo ocorre através de
processos de assimilação (novas experiências e informações absorvidas e
processadas nas estruturas neurológicas e funcionais existentes) e acomodação
(modificação das estruturas existentes – das ideias e das estratégias como
resultados de novas experiências), causando constantes (des)equilíbrios em seu
sistema cognitivo, até que ocorra uma nova aprendizagem. Dessa forma, apesar de
haver uma independência entre o processo de aprendizagem e desenvolvimento, a
primeira subordina-se à segunda, e o conhecimento é construído através da ação,
da interação com os objetos e com as experiências com o meio.
Segundo este autor, a linguagem da criança tem uma função simbólica e
serve para comunicar o que foi anteriormente compreendido por ela. Assim, as

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palavras têm significados próprios, compartilhados e compreendidos pela criança. A


sua fala vai se construindo de um discurso egocêntrico (repetição, monólogo e
monólogo coletivo) para um discurso socializado (informação adaptada, crítica,
ordens, pedidos, ameaças, perguntas e respostas).
Piaget descreve o desenvolvimento humano em quatro fases: sensório-
motor (0 aos 2 anos); pré-operatório (dos 2 aos 7 anos); estágio operatório
concreto (7 aos 12 anos) e operatório formal (a partir dos 12 anos),
apresentando características peculiares de cada uma delas para melhor
compreensão de como a criança e o adolescente constroem seu conhecimento e
consegue se expressar.
Já na perspectiva de Vygotsky, as pessoas são seres sociais e se
desenvolvem no relacionamento com o outro. Os processos de desenvolvimento e
aprendizagem não são totalmente independentes, pois se influenciam de modo que
quanto maior a aprendizagem, maior será o desenvolvimento. O autor entende que a
aprendizagem ocorre do exterior para o interior, e o conhecimento é construído
através da interação social. A linguagem é um sistema simbólico fundamental na
mediação entre sujeito e objeto de conhecimento, tendo a função de intercâmbio
social e de um pensamento generalizante. O discurso socializado da criança se
desenvolve para o discurso interior, ou seja, a fala da criança tem função social e
comunicativa, sendo posteriormente individual e autorreguladora, organizando seu
pensamento.
Para o autor, o significado é um componente essencial da palavra e se
constitui em um sistema de relações objetivas compartilhado pelo grupo cultural. É o
que nos faz entender e sermos entendidos nas interações e se constrói
historicamente. Por sua vez, o sentido (significante) é subjetivo, construído pelas
vivências afetivas e é muito singular ao sujeito.
Em situações de violência sexual, a diferença como cada um lida com esse
sentido se dará com base na experiência, na sua vivência particular, daí a
importância de os profissionais que escutam crianças e adolescentes vítimas de
abuso sexual terem cuidado especial e sensibilidade para absorver o sentido que
eles darão àquela experiência em sua vivência particular.
É importante compreender também aspectos ligados ao desenvolvimento
infantil no que diz respeito à sexualidade e à afetividade, a partir da teoria

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psicodinâmica. O ser humano é um ser sexual e a sexualidade infantil se desenvolve


desde os primeiros dias de vida, manifestando de forma diferente em cada momento
da vida.
Quase sempre, os adultos não se sentem preparados para os primeiros
movimentos exploratórios que a criança faz em seu próprio corpo, especificamente,
na região genital. Fantasias, masturbação, curiosidade por conteúdo sexual e
exploração do corpo simplesmente não são percebidos ou compreendidos, até que
sejam exibidas pela criança abertamente e de forma provocativa.
Freud afirma que “a sexualidade não é aprendida pelo indivíduo, mas ela se
manifesta de forma espontânea. A criança traz em si a sexualidade quando vem ao
mundo” (FREUD, 1907/1969). Ele explica que alguns comportamentos sexuais são
normais em crianças e enfatiza, especialmente, que esses comportamentos não
ocorrem apenas por motivos de curiosidade ou de consolo, mas porque são a
manifestação da identidade sexual inata e pessoal por meio de um processo gradual
de identificação. Acredita ainda que a sexualidade na infância sempre foi ignorada
porque as pessoas não têm memória direta do fato, devido à amnésia infantil sobre
os eventos que ocorreram antes dos seis anos de idade.
A hipótese de Freud é a de que o desenvolvimento psicossexual da criança
se dá com o início da vida e perpassa quatro diferentes fases: fase oral (0 a 2 anos);
anal/uretral (2 a 3); fase fálica (3 a 5); latência (5/6 aos 11) e fase genital, com o
advento da puberdade. Segundo Morgenstern (2010) “a separação por fases tem a
intenção de facilitar a compreensão sobre o amadurecimento da sexualidade e não
pode ser entendida como algo estanque, que ocorre linearmente”.
Para concluir, tomar conhecimento do desenvolvimento físico, intelectual,
emocional e sexual da criança, é fundamental para análise dos casos de abuso na
infância. Escutá-la com base nesse conhecimento permite ter mais elementos sobre
o fato, sentimentos, medos e omissões que apresenta. São aspectos norteadores
para as medidas necessárias ao cuidado e ao apoio de que a criança precisa.

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2. PROTOCOLOS

Frente à relevância nos processos judiciais na colheita de informações sobre


fatos associados às denúncias de violência sexual, reflete-se sobre a necessidade
de que tal procedimento de coleta de dados seja sensível ao período de
desenvolvimento da pessoa e adotado por profissional com competências
adequadas para utilizar técnicas com respaldo em estudos científicos e que se
configure como uma das estratégias de acesso a informações, incluindo, dentre
outras, a avaliação da situação/caso (RIBEIRO; ALVES JÚNIOR; MACIEL, 2014).
Pondera-se que, assim, poderia ser recolhida maior quantidade e em melhor
qualidade de informações.
De forma a adaptar o procedimento de colheita de informações,
desenvolveram-se diversos protocolos de entrevista, a serem utilizados no contexto
do Judiciário, enquanto instrumentos que podem compor a escuta especial para
evitar a revitimização no curso do processo. Segundo Ribeiro, Alves Júnior e Maciel
(2014) existem referenciais técnico-científicos comuns que orientam a conduta do
profissional que utilizam tais protocolos.
Dentre esses referenciais, destaca-se a relevância de preparar a
criança/adolescente com o tipo de entrevista a ser utilizado na escuta especial; a
coleta do testemunho (resumo do caso e preparação do espaço físico) e o
entrevistador, enfatizando a importância de que esse profissional tenha bons
recursos de comunicação, consiga oferecer suporte ao entrevistado, possua
capacidade emocional e empática, bem como conhecimento técnico-científico sobre
o desenvolvimento infantil e sobre a dinâmica de situações de violência.
Quanto a orientações técnicas gerais de manejo da escuta especial, os
autores apontam como relevantes: evitar perguntas sugestivas e fazer perguntas
abertas para permitir o relato livre; a cordialidade e confiança; sensibilidade ao nível
de desenvolvimento; investimento no tempo necessário; flexibilidade nos
procedimentos/técnicas e postura profissional qualificada.

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2.1 Entrevista Cognitiva

Conhecido como Entrevista Cognitiva, tal protocolo, desenvolvido por Fisher e


Geiselman na década de 1980, pautou-se em fundamentos da Psicologia Cognitiva
e Psicologia Social, objetivando maximizar a quantidade e a qualidade de
informações, sem comprometer a exatidão dos relatos da vítima, aprimorando a
colheita de depoimentos dos policiais norte-americanos. Paulo, Albuquerque e Bull
(2014) destacaram que o referido protocolo vem sendo utilizado por policiais em
diversos países (Inglaterra, Gales, Nova Zelândia etc.), com crianças, adolescentes,
adultos e idosos em diferentes contextos, episódios a recordar e espaços de tempo,
fundamentando-se em aspectos relativos à memória, cognição, dinâmica social e
comunicação.
Segundo os autores, a Entrevista Cognitiva apresenta as seguintes fases:
Fase 1 - Estabelecer uma boa relação com a testemunha: é um
procedimento fundamental não só no início, mas também ao longo de toda a
entrevista (rapport). Para isso, é importante que o entrevistador clarifique quem é e
qual a instituição que representa, evitando manter uma postura autoritária e
mostrando-se disponível para prestar o apoio necessário ao entrevistado,
esclarecendo-lhe qual o papel da testemunha/vítima na investigação.
Fase 2 - Explicar os objetivos da entrevista: o entrevistador deve
comunicar de forma clara e precisa o que irá acontecer ao longo de toda a entrevista
e transferir o controle do procedimento para a testemunha.
Fase 3 - Relato livre: o objetivo do entrevistador é o de obter o melhor relato
livre possível, pois é através dele que a testemunha providenciará grande parte da
informação acerca do crime. O entrevistador aplica a mnemônica Relatar Tudo que
consiste em pedir para que a testemunha conte tudo o que se lembra sobre o fato
com o máximo de detalhes possível. Para isso, o entrevistador deve utilizar também
a mnemônica Restabelecimento do Contexto em que incentiva a
testemunha/vítima a recriar o evento vivido.
Fase 4 - Questionamento: após obter um relato livre, extenso e completo, o
entrevistador poderá colocar algumas questões baseadas no discurso da
testemunha. Deve também recordar a entrevistada para relatar tudo o que se
lembra, mesmo os detalhes que pareçam irrelevantes, bem como comunicá-la que

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deverá responder “não me recordo”, sempre que seja esse o caso e que esta é uma
resposta tão valiosa como outra qualquer. A técnica de Visualização Mental, que
incentiva a testemunha a recriar a imagem de algo na cena ocorrida, poderá ser
utilizada. Importante ressaltar que o entrevistador deve utilizar majoritariamente
questões de respostas abertas ao longo de toda a entrevista, pois de respostas
fechadas, escolhas múltiplas ou sugestivas, podem conduzir a respostas pouco
informativas e aumentam o número de erros cometidos pela testemunha/vítima.
Fase 5 - Novas estratégias de recuperação: caso o entrevistador considere
que a testemunha/vítima poderá ainda ser capaz de relatar mais informações
através do uso de novas estratégias de recuperação, elas poderão ser utilizadas,
tais quais: Mudança de Ordem, em que orienta o entrevistado a contar tudo o que
se lembra novamente acerca do fato, mas, desta vez, pela ordem inversa; ou
Mudança de Perspectiva, que consiste no pedido para que relate novamente o
evento, mas sob a perspectiva de alguém que também estava na cena.
Fase 6 - Questões importantes para a investigação: até esta fase da
entrevista, a testemunha/vítima não deve ser questionada acerca de aspectos que
não mencionou. No entanto, em algumas investigações, poderá ser imprescindível
colocar questões sobre tópicos que a pessoa não mencionou durante a entrevista,
pois nesta fase, todas as outras técnicas de questionamento já foram utilizadas e
grande parte do relato já foi obtido. O entrevistador deve estar ciente, todavia, que a
informação coletada por meio deste tipo de questões tem uma maior probabilidade
de conter erros ou distorções.
Fase 7 - Resumo: neste momento, o entrevistador poderá sintetizar alguns
pontos centrais do relato obtido, dando ao entrevistado oportunidade de acrescentar
nova informação e/ou corrigi-la.
Fase 8 - Encerramento: nesta fase, o entrevistador deverá novamente
abordar tópicos neutros com a testemunha/vítima, tal como no início da entrevista,
certificando-se de que ela saia do local sentindo-se calma e segura, pois poderá ter
abordado tópicos sensíveis e perturbadores. É importante agradecê-la pelo seu
trabalho árduo ao longo de todo procedimento.
Fase 9 - Avaliação: após o término da entrevista, é importante avaliar o valor
da informação obtida e o seu impacto na investigação policial/avaliação forense. É
igualmente importante que o próprio entrevistador, ou seu supervisor, avalie seu

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desempenho, pois o treino e a avaliação são imprescindíveis para aperfeiçoar sua


atuação em entrevistas posteriores.

2.2 RATAC

RATAC (Rapport, Anatomy Identification, Touch Inquiry, Abuse Scenario, and


Closure), trata-se de um modelo de entrevista forense, investigativa,
semiestruturada, desenvolvido pelo CornerHouse, Minneapolis, Minnesota (EUA),
fundado em 1989 e que utiliza fases distintas para a sua realização.
O centro oferece serviços de treinamento em entrevista forense para
profissionais de saúde, policiais, promotores de justiça, entre outros.
Casos são encaminhados pelos órgãos de proteção à criança/adolescente. A
equipe multidisciplinar reúne brevemente para rever as informações e avaliar as
habilidades da suposta vítima em transmitir informações. Alguns serviços são
oferecidos aos seus acompanhantes, através de atividades e materiais específicos
para indivíduos de todas as idades.
O protocolo se divide em cinco etapas distintas: Rapport, Identificação
Anatômica, Avaliação de Toques, Avaliação do cenário de abuso e encerramento.
1. Rapport: técnica utilizada para criar ligação de sintonia e empatia com a
outra pessoa. Propõe atividades para estabelecer confiança, respeito mútuo e
engajamento na obtenção de informações. Comunicação com a criança por meio do
uso do desenho (desenho do rosto, círculo da família);
2. Identificação Anatômica: utilizando-se de figuras, propõe a apresentação
de desenhos com figuras anatômicas masculinas e femininas condizentes com a
idade e etnia da entrevistada. Objetiva chegar a uma linguagem comum sobre
nomes das partes do corpo, uma vez que crianças têm nomes diferentes para elas,
a partir de indagações como: “quero saber como você chama as partes do corpo.”,
“qual desenho mais se parece com ela (masculino ou feminino)?” e “como você
chama essa parte? (cabeça aos pés)”.
3. Avaliação dos toques: Retoma o uso dos desenhos com figuras
anatômicas. Faz avaliação de toques neutros (relacionados ao afeto) e toques
abusivos (violência sexual). O entrevistador começa fazendo perguntas neutras até
conseguir introduzir, gradativamente, informações chegando à experiência abusiva.

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São exemplos de perguntas e sugestões: "você recebe abraços/beijos/cócegas?”;


“quem dá em você (abraços/beijos/cócegas)?“; "onde em seu corpo, (por
exemplo pai) te (por exemplo abraça)?“
4. Avaliação do cenário do abuso: uso da estratégia de questionamento
(questões abertas e/ou específicas). É um guia para navegar com diferentes tipos de
perguntas e cada uma poderá gerar uma resposta esperada por parte da criança.
Os entrevistadores poderão formular perguntas de livre recordação, de
recordação focalizada, de múltipla escolha, sim e não, além das sugestivas, ainda
que os protocolos não recomendem esta última.
As respostas verbais esperadas da criança poderão ser: narrativa; narrativa
focalizada; selecionada; limitada/selecionada e sugerida pelo entrevistador.
Os fatores que podem ou não favorecer o uso de perguntas abertas são:
Idade, habilidade narrativa e trauma emocional.
5. Encerramento: tem como objetivo promover um fechamento respeitoso,
validando o sentimento da criança, a partir da demonstração de empatia com os
sentimentos expressos durante a entrevista. Promove, além, educação sobre a
segurança pessoal: “existem partes do nosso corpo que são privadas e que não é
certo tocar”; e também sobre a importância de relatar experiências futuras: “se
acontecer de novo, é importante pedir ajuda”.
Após a entrevista, os membros da equipe multidisciplinar participam de uma
reunião para compartilhar informações referentes à direção futura da(s)
investigação(ões); serviços a serem oferecidos à suposta vítima e à família, bem
como possíveis recomendações médicas e terapêuticas.
O entrevistador fornecerá um relatório escrito resumindo a capacidade da
criança e as recomendações da equipe multidisciplinar. Os investigadores podem se
reunir com os cuidadores após a entrevista para responder a perguntas e
compartilhar os próximos passos na investigação.

2.3 NICHD

O elevado número de casos de violência sexual envolvendo crianças e


adolescentes como vítimas ou testemunhas, na maioria das vezes sem a
materialização das provas, por nem sempre deixar marcas físicas, faz com que sua

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escuta assuma papel primordial tanto para responsabilização do agressor, quanto


para sua proteção, podendo contribuir para seu empoderamento frente à violência
sofrida.
Dentre as metodologias de escuta, o Protocolo NICHD (National Institute of
Child Health and Human Development), é um dos instrumentos forense mais
utilizado no mundo, composto por perguntas abertas e com vantagens devido a sua
operacionalização, por ser de fácil aplicação, ajudando o entrevistado a recordar e
relatar suas experiências da forma mais fidedigna possível, levando em conta
déficits de comunicação e memória.
Este protocolo é o único com pesquisas realizadas em vários países, inclusive
no Brasil, que comprovam a sua eficácia se comparadas às entrevistas realizadas
sem este instrumental com crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de
violência.
O protocolo NICHD é indicado para faixa etária de 4 a 13 anos de idade e em
sua estrutura de investigação abrange conhecimentos sobre o desenvolvimento
infantil e características individuais da vítima, observando em sua aplicação: a
linguagem (verificando-se em qual fase do desenvolvimento se encontra a vítima); a
memória; a pressão exercida por familiares e próprio agressor; o impacto emocional
e possíveis distúrbios de comportamento.
O NICHD tem como premissa explicar a proposta da entrevista à
criança/adolescente, deixando-a ciente de que ela pode responder “não sei”, quando
não souber a resposta, sem precisar criar uma resposta apenas para atender a
expectativa do entrevistador, bem como poder corrigi-lo se esse entender algo
equivocadamente, estabelecendo assim, a importância de dizer sempre a verdade.
Após o estabelecimento do Rapport, solicita-se o relato livre, através de
perguntas abertas, não sugestivas ou confirmatórias, sem interrompê-la quando
estiver falando para que ela possa trazer o máximo de informações sobre o que
realmente aconteceu.
Por prever pausas, permite que se possa retomar algum assunto vislumbrado
pela equipe como assunto a ser aprofundado, além de, no final da entrevista, prever
um fechamento para que a criança/adolescente possa sair do procedimento de
maneira mais confortável emocionalmente.

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Dessa maneira, o protocolo NICHD divide-se em 2 etapas: pré-substantiva e


substantiva, com total de 51 questões.
Na primeira fase, pré-substantiva, composta por uma etapa introdutória com
apresentação e esclarecimento da tarefa, explica-se à vítima a necessidade de falar
a verdade e descrever os eventos em detalhes, com exposição das regras para
compreensão do conceito de verdade. Neste momento estabelece-se com a vítima
regras como: poder dizer que não se lembra de algum evento; que não sabe a
resposta; que não entendeu a pergunta e corrigir o entrevistador, se for o caso.
Ainda nessa fase, em sua segunda etapa, há a construção do vínculo através
do Rapport buscando-se criar um ambiente descontraído, solicitando que a criança
descreva em detalhes experiências recentes e eventos neutros, para se familiarizar
com as questões abertas e técnicas que serão utilizadas durante a entrevista,
treinando-se a prática narrativa.
Na segunda fase do protocolo, substantiva, aos poucos se avança para
perguntas mais focadas com a perspectiva de realizar o treino para memória
episódica em que o entrevistador solicita à criança/adolescente: “conte-me tudo
sobre isso”, especificamente para revelações ou relatos feitos pelo próprio sujeito.
Sempre ao final da sessão, encerra-se voltando a um tópico neutro.

3. RELATO DE EXPERIÊNCIA

3.1 A implantação da escuta especial na realidade de São Caetano do Sul/SP

A implantação da Escuta Especial no município de São Caetano do Sul


iniciou-se por iniciativa do Juiz da Infância e Juventude dessa cidade, magistrado de
carreira na infância e articulado com as necessidades desta área. Este apresentou a
proposta de projeto e solicitou a todos os profissionais do Setor Técnico (composto
por quatro assistentes sociais e uma psicóloga), que passassem por capacitações
acerca da temática em Brasília e, posteriormente, em Porto Alegre, ambas
custeadas pelo Tribunal de Justiça. Por fim, disse que realizaram uma capacitação
em São Paulo, com uma profissional da Argentina, durante 15 dias, na qual
participaram profissionais do CREAS – Centro de Referência Especializado da

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Assistência Social, Setor Técnico, Juízes e Promotores das três comarcas nas quais
seria implantado o projeto piloto da escuta especial (São Caetano do Sul, Campinas
e Guarulhos).
O assistente social, nessa demanda, realizava o estudo social, cuja
abordagem de atuação era aberta, sem questionários pré-estipulados, objetivando
analisar as questões sociais e contextos relacionados à situação atual da
criança/adolescente e compreender “quem fez a denúncia?”; “para quem a criança
contou pela primeira vez?”; “a família tem postura protetiva?”; “quais as condições
da criança para participar da escuta especial?”, “a abertura e a vontade da criança
em participar da escuta especial?”, entre outros.
Também era realizado o estudo psicológico, anterior ao depoimento especial,
sendo ambos (estudo psicológico e escuta especial) realizados pela mesma
profissional. Nesse posto, ainda que não haja prejuízos em realizar a escuta por
profissionais diferentes, destaca-se a necessidade de se criar vínculo com a
criança/adolescente anteriormente.
Os estudos psicossociais eram realizados separados, antes da escuta e, caso
houvesse parecer contrário emitido pelos profissionais, à participação da criança na
escuta especial, o juiz acatava e não a realizava.

3.2 Estabelecimento do Fluxo com a Rede

Em São Caetano já existia uma rede de serviços mobilizada e atuante, mas


não articulada para a escuta especial. Após a realização de estudos em âmbito
estadual, envolvendo Secretaria de Saúde, Assistência Social e Supervisões e
Capacitações por profissionais da PUC, sendo compreendido, portanto, que a porta
de entrada para a primeira oitiva da criança/adolescente seria o CREAS, conquanto
este Centro de Referência, inicialmente, tenha apresentado resistência em assumir
esta função, pois acreditava não estarem preparados para isso e não possuírem
equipe suficiente para atender mais essa demanda não listada entre suas
atribuições.
O fluxo de atendimento estabelecido para casos de denúncia envolvendo
violência sexual contra crianças e adolescentes era encaminhado ao CREAS,
independente de onde era feita a primeira denúncia. Caso a situação acontecesse

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aos finais de semana, quando o serviço não estava funcionando, a denúncia era
feita na delegacia, sendo que o delegado ouvia apenas a pessoa denunciante e não
a criança/adolescente, sendo realizados os encaminhamentos necessários, e a
orientação da família para procurar o Centro de Referência no próximo dia útil.
Dessa maneira a escuta da criança acontecia apenas duas vezes: a primeira pelo
serviço da assistência social, com o devido registro (gravação) para posterior
utilização e, depois, no depoimento especial.
O processo criminal corria simultaneamente ao da infância, o que era possível
devido ao fato de o juiz cumular as duas varas e a audiência era realizada, em
média, num período de 6 a 8 meses após a denúncia.
Primeiramente, era feito o estudo social, momento em que não se abordavam
as questões relacionadas ao abuso. Caso a criança trouxesse espontaneamente,
escutavam e diziam que aquilo seria conversado em outro momento, pois estavam
ali para falar de outras coisas (exemplo: o que você faz na escola, quais são seus
amigos, dinâmica familiar, etc.), conduzindo o contato com a criança para outra
temática. Depois, o psicológico e, posteriormente, a escuta especial.
A família e a criança eram preparadas para este momento, ocorrendo vários
encontros na semana que antecedia a audiência. Nestes momentos, era explicado
aos pais, ou responsáveis, a dinâmica da audiência; apresentado, esclarecido e
assinado um termo de concordância em participar, já que a família poderia optar ou
não em participar da audiência nestes moldes. Com a criança, era o momento de se
explicar como ocorreria no dia, mostrar a sala de audiência, a técnica responsável
etc.
A escuta especial seguia o protocolo NICHD e os quesitos elaborados pelo
advogado eram formulados anteriormente nos autos. Dessa maneira, quando a
equipe recebia os quesitos, estes já haviam passado pelo crivo (deferimento ou
indeferimento) do juiz, sendo que não era permitida, no momento da audiência, a
formulação de novos quesitos.
Durante o depoimento, havia um intervalo em que a entrevistada ficava com
pais ou responsáveis, enquanto os membros da audiência (juiz, promotor,
advogados) discutiam sobre as declarações. No retorno, o juiz ligava para o
profissional de psicologia na sala de escuta especial e fazia perguntas com relação
ao que foi gravado, se necessário. Nesse momento, o (a) psicólogo (a) tinha

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liberdade de optar se e como faria novas abordagens, a fim de elucidar os pontos


questionados.
Após a audiência, o profissional de psicologia elaborava um relatório a
respeito de depoimento, inclusive argumentando caso não tenha realizado
questionamentos que lhe foram colocados no momento de audiência.
Como em todo projeto, existiam problemas no fluxo e um dos enfrentados se
pautou na alta rotatividade de profissionais no CREAS, uma vez que profissional
capacitado era requisito para a realização dos procedimentos.
Outro aspecto trazido era quando um novo delegado havia sido nomeado e
não compreendia por que não poderia escutar a criança. Diante desta situação,
cabia ao juiz explicar a proposta do fluxo de atendimento, o que também acontecia
em casos de mudança na promotoria. A figura de autoridade do magistrado era
pertinente no sentido de articular as ações junto aos atores envolvidos.
A equipe envolvida nesse projeto-piloto se preocupou também com a
proteção e sigilo do arquivo de mídia gerado pela escuta especial, justificando que
poderia ser copiado e mal utilizado por alguma das partes, pois, a mídia ficava
disponível nos autos. Para solucionar tal situação, foi definida pelo juiz a proibição
de retirada desses arquivos do cartório pelos advogados das partes.

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CONCLUSÃO

As diretrizes nas quais se apoiam a Escuta Especial referem-se ao


reconhecimento de que crianças/adolescentes, vítimas ou supostas vítimas de
violência sexual, são sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento,
por isso demandando medidas protetivas que considerem essa singularidade.
Esses procedimentos destinados à escuta de vítimas ou testemunhas de
violência, sobretudo sexual e intrafamiliar, encontram-se inseridos num processo
histórico de transformações institucionais e de evolução e aprimoramento das
políticas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.
No âmbito do Judiciário, a escuta de crianças e adolescentes ainda se mostra
um grande desafio para os profissionais. Todos os envolvidos, operadores do direito
e os serviços auxiliares, devem levar em consideração que esses sujeitos são seres
em desenvolvimento psíquico, cognitivo, emocional e social, e, como tal, requerem,
por parte dos profissionais, maior cuidado e preparo técnico, a fim de evitar que o
procedimento represente prejuízo para aqueles.
Esse ambiente tradicional tem se mostrado adverso e inadequado para a
escuta de crianças, na medida em que seus operadores, muitas vezes, assumem
uma postura adultocêntrica, desconsiderando as peculiaridades do desenvolvimento
infanto-juvenil ao se utilizar os seus próprios parâmetros para compreender tal
universo. Além do mais, está implícita na atuação desses profissionais, uma
dimensão avaliativa e busca pela verdade jurídica, as quais focam na coleta de
dados através de inquirições.
Tendo em vista que a investigação do abuso pode ser uma experiência
traumática e revitimizante, já que crianças e adolescentes são chamadas a depor
em vários equipamentos e serviços, o que a leva a reviver a violência sofrida,
buscam-se formas alternativas de realizar uma escuta protetiva.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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. NICHD-National Institute of Child Health and Human Development.


Tradução. 2010. (Instrumento não publicado).

WINNICOTT, D. Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo


(1982). In: ___________. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1963.

580
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

VULNERALIBIDADE OU RISCO? APROXIMAÇÕES


TEÓRICAS E A PRÁTICA DOS ASSISTENTES SOCIAIS E
PSICÓLOGOS JUDICIÁRIOS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR –


SÃO JOSÉ DO RIO PRETO
“CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM DIFERENTES
SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE”

TRINUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2016
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENADORAS

Mariana Sato dos Reis – Assistente Social Judiciário – Comarca de José Bonifácio
Priscila Silveira Duarte Pasqual – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do
Rio Preto

AUTORES

Ana Carolina Petrolini André – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Bras Miguel Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Claudinéia Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Claudio Luís Garcia da Silva – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Edna Bentina Garcia da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
do Rio Preto
Emeline Duo Riva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Catanduva
Luciana de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Catanduva
Marinês Martinez Guirado Dantas – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
José do Rio Preto
Marli Salvador Corrêa da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Novo
Horizonte
Mirian Cristina Scapa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Natalia Maria Tomasetto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibitinga
Paula André de Oliveira Matsucuma – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guaíra
Railda Ferreira das Neves Galbiati – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do
Rio Preto
Renata Fazani Sabbatini Pessoa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Urupês
Rosangela Cristina Alves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Sheila Barreiros Pereira Metz – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
do Rio Preto

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Simoni De Biagi Borges – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Sueli Aparecida Lopes – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Tatiana Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guaíra
Thais Del Giudice Maurutto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tanabi

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DEDICATÓRIA

Dedicamos este trabalho a todas as


crianças e adolescentes atendidos nas
Varas da Infância e Juventude. A elas,
direcionamos nosso respeito,
compromisso profissional e atuação ética
para construir, junto aos demais atores da
rede de proteção e operadores do Direito,
todas as possibilidades de se
desenvolverem de forma digna, justa e
saudável.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AGRADECIMENTOS

Ao juiz de Direito, sr. dr. Evandro Pelarin (Juiz de Direito da Vara da Infância
e Juventude) pela autorização e empenho na realização do primeiro grupo de
estudos de assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça de São Paulo, na
comarca de São José do Rio Preto.
Ao sr. dr. Zurich Oliva Costa Netto (Juiz Diretor do Fórum), pela autorização
e disponibilidade em oferecer toda a infraestrutura necessária para a implantação do
grupo de estudos desta comarca.
Ao sr. dr. André Luis de Souza (Promotor da Infância e Juventude da
comarca de São José do Rio Preto), pela luta em prol das crianças e adolescentes
atendidos no município e apoio na implantação deste grupo de estudos.
À profa. dra. Marina Rezende Bazon (Livre-Docente do Departamento de
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP)
pela gentileza em compartilhar com o grupo todo seu conhecimento sobre crianças e
adolescentes em situação de risco psicossocial.
Á sra. Nilde Regina da Silva, coordenadora da EJUS São Paulo, por creditar
à equipe técnica da Vara da Infância e Juventude de São José do Rio Preto a
possibilidade de inaugurar o primeiro grupo de estudos na comarca e à sra. Vivian
Terumi Takata, pelo apoio incondicional em todos os momentos do grupo.
Á sra. Maria Tereza Fernandes, coordenadora da EJUS em São José do Rio
Preto, pelo carinho e apoio na implantação e manutenção do grupo de estudos.
À sra. Sônia Lucchesi, (Chefe de Seção Judiciária, Diretoria de Serviços de
Administração Geral do Fórum) pela gentileza e disposição em ajudar sempre.
À sra. Fabíola Silva de Farias Cabral (Chefe de Seção Judiciária do Ofício
da Infância e Juventude) pela organização da frequência da participação dos
membros.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente trabalho consistiu em reunir conceituações teóricas sobre os


termos “Vulnerabilidade e Risco”, assim como, identificar na literatura os “Fatores de
Risco” e os “Fatores de Proteção” no desenvolvimento da infância e juventude, nos
âmbitos Social, da Saúde e da Justiça.
Na abrangência destes conceitos, discutiu-se os tipos de maus-tratos, como,
por exemplo, o abuso físico, a negligência, a violência psicológica, o abuso sexual,
além da condição do adolescente em conflito com a lei e o impacto da interação
destes fatores ou determinantes sobre a família, a comunidade e a sociedade como
um todo.
Esses termos são utilizados na prática de Assistentes Sociais e Psicólogos,
que atuam nos Tribunais de Justiça e são, cotidianamente, mencionados nos
documentos técnicos produzidos por estes profissionais.
Em se tratando de situações de risco e vulnerabilidade, pontuamos que a
história do Tribunal de Justiça de São Paulo mostra grande avanço no que diz
respeito ao “olhar social” e, tendo claro que mesmo os estudiosos têm dificuldades
para elaborar a diferença entre tais conceitos, estamos diante de uma oportunidade
clara e uma necessidade de produzirmos conhecimento sobre tais temas.
Desta forma, este trabalho resulta da reflexão sobre artigos científicos
selecionados a partir de banco de dados, como SciELO (Scientific Eletronic Library
Online), PubMed e outras plataformas eletrônicas, além de outros recursos
utilizados, como análises críticas de documentários sobre a temática apresentada e
material documentado em atas.
Inauguramos o Grupo de Estudos de São José do Rio Preto, intitulado
“Crianças e Adolescentes em Diferentes Situações de Vulnerabilidade”, que é
pioneiro na Comarca de São José do Rio Preto, contemplando as comarcas da
Circunscrição, com o objetivo de colaborar com o protagonismo e a capacidade
transformadora das Equipes Técnicas junto a crianças e adolescentes em situações
de desproteção, analisando de forma crítica e com o necessário rigor técnico-
científico os conceitos de risco e vulnerabilidade e suas manifestações.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE VULNERABILIDADE E


RISCO

Definir os conceitos de risco e vulnerabilidade significa considerar as


controvérsias existentes entre eles, surgidas a partir do seu uso pelas diversas áreas
do conhecimento que o definem.
Essa conceituação pode aparecer de forma distinta dependendo da situação
que se avalia, devendo ainda ser compreendida sob seu contexto sócio histórico,
econômico, político e cultural, composto pelas diversidades e desigualdades que
tem marcado a sociedade.
A partir dos estudos realizados, no que tange ao marco conceitual da área da
saúde, as vulnerabilidades não são tratadas como doença, mas como ausência de
doença, considerando a inexistência de serviços que possibilitem o acesso a direitos
básicos. Afora a matéria de saúde, pesquisas também podem trazer um debate
conceitual, diferenciando risco e vulnerabilidade, além da perspectiva do trabalho em
rede, especificamente aquilo que motiva o afastamento de crianças e adolescentes
do convívio familiar.
O conceito de risco (ou fator de risco) inicialmente esteve associado ao
modelo biomédico, sendo frequentemente relacionado ao termo mortalidade
(Grunspun, 2003 apud SAPIENZA e PEDROMÔNICO, 2005), mas foi somente na
década de 1980, a partir de uma série publicações científicas, que o termo foi
associado aos estudos sobre desenvolvimento humano (Horowitz, 1992 apud
SAPIENZA e PEDROMÔNICO, 2005). Neste período ainda, foram desenvolvidos
programas de prevenção e intervenção a partir de estudos que relacionavam risco e
resiliência.
Segundo Yunes e Szymanski (2001, pág. 28 apud JANCZURA, 2012, pág.
302) o conceito de vulnerabilidade é aplicado erroneamente no lugar de risco. Para
essas autoras, “A vulnerabilidade opera apenas quando o risco está presente; sem
risco, vulnerabilidade não tem efeito”. Vulnerabilidade e risco remetem a noções de
carência e exclusão. O indivíduo é vulnerável quando não dispõe de recursos
materiais e imateriais para enfrentar as situações de risco. A situação de
vulnerabilidade pode ser fator desencadeante para o risco, diante da falta de
587
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

condições para enfrentá-lo. Daí a atenção destes autores para a relação existente
entre estes conceitos.
Conceituar o risco pressupõe entendê-lo como um processo associado a
diferentes contextos históricos e sociais. Em famílias empobrecidas, por exemplo,
operam como fatores de risco o baixo nível socioeconômico, a baixa escolaridade, a
extensa composição familiar associada à ausência de acesso aos mínimos sociais
(econômicos, habitação, saúde, alimentação, etc.) de sobrevivência de todos os
membros da família; a ausência de um ou de ambos os pais, dentre outros aspectos.
Paralelo ao conceito de risco, o debate da vulnerabilidade é originário da área
da advocacia internacional e, designa, em sua procedência, grupos ou indivíduos
fragilizados, jurídica ou politicamente, na proteção ou na garantia de seus direitos de
cidadania (Alves, 1994; Ayres, 2003 apud RIZZINI et al., 2010). No campo da saúde,
foi destaque nos estudos e intervenções sobre epidemia de HIV/AIDS, tornando-se
um conceito-chave dos trabalhos científicos da última década.
Na sociedade capitalista contemporânea, ainda não se torna possível
conceituar a vulnerabilidade apartada da questão econômica. Neste aspecto,
Oliveira (1995 apud JANCZURA, 2012, pág. 303) refere que “a definição econômica
de vulnerabilidade social é insuficiente e incompleta”. Esse autor acredita ainda que,
“os grupos vulneráveis se tornam vulneráveis, pela ação de outros agentes sociais”.
Carneiro e Veiga (2004 apud JANCZURA, 2012, pág. 304), por sua vez,
conceituam a vulnerabilidade como a “exposição a riscos e baixa capacidade
material, simbólica e comportamental, de famílias e indivíduos para superação de
desafios”. Neste sentido, os riscos estão associados com situações próprias do ciclo
de vida e também com condições das famílias, da comunidade e ambiente em que
as pessoas se desenvolvem. Para estes autores, a pobreza representa a primeira
aproximação à maior exposição a riscos, remetendo-se às noções de carência e
exclusão.
Na sociedade moderna contemporânea, o risco não pode estar restrito as
noções de carência e exclusão, vez que ela mesma se configura em uma “sociedade
de riscos”.
Assim a noção de risco implica não somente à noção imediata de um perigo,
mas também à possibilidade de ocorrer uma perda de qualidade de vida pela
ausência de ação preventiva. Perigo este que pode se potencializar diante da atual

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

fragilização nos sistemas de seguridade social, que faz emergir uma nova geração
de risco. A reflexão contemporânea sobre a insegurança deve integrar esse
parâmetro.
Estar protegido pode significar a possibilidade de reunir condições para o
enfrentamento dos principais riscos da vida. Este estado, no entanto, sofre uma
dupla carência. Por um lado, temos o enfraquecimento das coberturas clássicas e,
por outro, consequentemente, o sentimento generalizado de impotência diante
dessas novas ameaças, compondo uma contradição entre a necessidade de ser
protegido e a falta de proteção.
Construir a relação entre risco, vulnerabilidade e infância remete à ideia de
fragilidade e dependência dos sujeitos, especialmente aqueles de menor nível
socioeconômico, que se encontram em situações particularmente difíceis da vida, as
quais ameacem ou causem efetivo dano a integridade física, psicológica ou moral.
Se até o inicio do século XX, as medidas de atendimento à infância
caracterizavam-se por ações de cunho higienista e disciplinador, estabelecendo a
concepção da infância perigosa e a necessidade de controle, atualmente,
independente da fragilidade no Sistema de Seguridade, a doutrina da proteção
integral é privilegiada e legitimada através do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Tratar sobre risco e vulnerabilidade sob a perspectiva desse Estatuto
pressupõe interpretá-lo, vez que não utiliza explicitamente o termo risco. Em seu
artigo 98, fica estabelecido que “as medidas de proteção à criança e ao adolescente
são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou
violados”.
Avaliar as condições que representam ameaça ou violação é tarefa dos
profissionais integrantes do sistema de garantia de direitos, assim, o ECA passa a
ser instrumento norteador dos operadores do direito. Especialmente nos Tribunais
de Justiça, as equipes técnicas devem ter domínio dos conceitos de risco e
vulnerabilidade a fim de utilizá-los adequadamente na prática profissional, evitando-
se equívocos, inclusive teóricos.
Conforme artigo 4º:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder


Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,


profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária (ECA,1990).

Há de se pensar também no contexto que envolve o não cumprimento do


dever de cuidado e proteção, para além da não garantia, violação ou desrespeito
dos direitos da criança e do adolescente. Este dever é questão de responsabilidade
dos mais diversos atores envolvidos no complexo sistema social formado pela
família, comunidade, sociedade em geral e Poder Público.
O não cumprimento do dever de cuidado e proteção à criança e ao
adolescente surge dentro desse complexo, desvelando contextos de vulnerabilidade
e risco. Para compreender estes contextos de violações que comprometem o
desenvolvimento infanto-juvenil é imprescindível, portanto, dominar e utilizar
adequadamente estes conceitos.

2. TIPOS DE RISCO E FATORES DE PROTEÇÃO NO


DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A palavra "risco" é derivada do latim resecum, cuja tradução significa "o que
corta", conceito ampliado que corresponde a uma ameaça ou perigo de determinada
ocorrência. Este termo, no que tange aos debates levantados durante os estudos
realizados, aparece como situações que ameaçam e/ou violam os direitos da criança
ou adolescente, prejudicando o seu desenvolvimento tanto físico, quanto emocional.
O “Risco” depende das circunstâncias sociais e é resultante de um processo
dinâmico e interativo de uma comunidade. Seu enfoque nos fenômenos relacionais
ou seja psicossociais, remete à necessidade de perceber os problemas como
processos, ou melhor, conflitos adaptativos (BAZON, 2016).
Uma vez que risco é um termo amplo e complexo, em casos de crianças e
adolescentes o termo apropriado a ser utilizado é risco psicossocial.
Uma criança é considerada em situação de risco, quando seu
desenvolvimento não ocorre segundo o modo esperado para sua faixa etária, de
acordo com os parâmetros de sua cultura (Hutz e Koller, 1996 apud RIZZINI, et al.,
2010).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“A virtude da expressão “em situação de risco” é a de impor uma visão mais


abarcadora das problemáticas que afetam crianças e adolescentes,
envolvendo seu contexto de vida” (BAZON, 2016).

Os fatores de risco compreendem todas as modalidades de violência


doméstica, a saber: violência física, violência psicológica, incluindo a exposição à
violência conjugal, violência sexual e a negligência. A violência estrutural, por sua
vez, também se revela pela ausência de proteção, garantia de direitos e
necessidades, pois poderá desencadear danos físicos, materiais e psicológicos.
Entre as definições mais aceitas internacionalmente o fator de risco é
considerado como:

“características, variáveis ou eventos que se presentes para um dado


indivíduo torna-o mais propenso, se comparado com outro selecionado da
população geral – relação probabilística –, a ter/desenvolver um
problema/desordem (....). Essa definição é ampla e compreende fatores que
podem ser biológicos (inclusive genéticos), psicológicos e sociais, situando-
se no próprio indivíduo, na família ou no ambiente” (GARMEZY, 1983;
WERNER e SMITH, 1992).

Os fatores de risco tornam as pessoas mais suscetíveis ao desenvolvimento


de determinada problemática, ou seja, o acúmulo de fatores de risco é que explicam
um problema, fatores estes que agem de forma interativa e não estática gerando
“processos de risco” que culminam no que se determina como vulnerabilidade. A
vulnerabilidade consiste, portanto, na exposição a muitos fatores de risco ou
histórico de exposição a fatores de risco (BAZON, 2016).
Os fatores de proteção estão relacionados à capacidade individual e coletiva
de enfrentar e reduzir os efeitos do risco e assim como os fatores de risco, operam
por mecanismos, sendo a resiliência o resultado do aproveitamento dos fatores de
proteção (BAZON, 2016).
A identificação dos fatores protetivos permite o estabelecimento de programas
de prevenção e de intervenção dos profissionais na promoção do bem-estar da
criança ou do adolescente, sendo recomendável o trabalho integrado com a Rede de
Proteção, visando a aplicação das medidas de proteção cabíveis a cada caso,
ampliando assim a responsabilização das diversas situações às quais tais sujeitos
estão expostos para o âmbito do Estado, principalmente no que se refere ao acesso
às políticas públicas, imprescindíveis à vida.
Conforme o disposto no ECA (artigo 5º), qualquer pessoa que maltrate ou que
se omita frente ao ato poderá ser penalizada:
591
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado por ação ou
omissão aos seus direitos fundamentais” (ECA, 1990, p. 40).

A autoridade competente poderá aplicar as medidas de proteção à criança ou


adolescente, quando os seus direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou
violados, conforme artigo 98:

As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre


que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados (ECA,
1990, p. 82):
I- por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II- por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III- em razão de sua conduta.

Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade


competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas, previstas no
artigo 101 (ECA, 1990, p.84-85):

I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de


responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III – matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento de ensino
fundamental;
IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à
criança e ao adolescente;
V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em regime
hospitalar ou ambulatorial;
VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII – acolhimento institucional;
VIII – inclusão em programa de acolhimento familiar;
IX – colocação em família substituta.

A violação de direitos de crianças e adolescentes também é observada na


atuação técnica, em Varas de Família, com prejuízos na manutenção de vínculos,
seja com um dos seus pais e/ou com o grupo familiar. A esse respeito, a violência
conjugal se manifesta no aumento do litígio entre as partes, como forma de denegrir
uma delas em benefício da ação pleiteada.
A Lei 12.318/2010 (BRASIL, 2010) cuja finalidade é de proteger os direitos
fundamentais da criança ou adolescente, dispõe em seu artigo 30 que o ato de
alienação parental fere o direito fundamental da criança ou adolescente da
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

convivência familiar saudável, nos casos que há o descumprimento dos deveres


inerentes à autoridade parental ou decorrentes da tutela ou guarda.
Ainda na esfera criminal, prioriza-se a proteção de crianças e adolescentes
com idade inferior a 14 anos ou qualquer pessoa que, por enfermidade ou doença
mental, não possua o discernimento para a prática do ato sexual. A Lei 12.015/2009
(BRASIL, 2009), que trata de crime contra a dignidade sexual, foi reformulada,
sendo que no artigo 217 contempla-se o estupro de vulnerável, considerando todo
ato libidinoso como abusivo e passível de punição.
Esses dispositivos legais são aplicados aos vários tipos de violência, que são
descritos a seguir. Consideramos ainda os fatores de proteção e as competências
psicossociais na análise, identificação e promoção das medidas protetivas voltadas
às crianças e adolescentes.

2.1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Segundo Dra. Maria Amélia Azevedo (1995), a violência doméstica define-se


por:
Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis, contra
crianças e adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual
e/ou psicológico à vítima – implica de um lado uma transgressão do
poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância,
isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem
tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento. (AZEVEDO,1995, p.36)

2.1.1 Violência física

A violência física é aquela caracterizada por maus-tratos corporais:


espancamento, queimaduras, contusões, fraturas, etc. Barnett (1997 apud MAIA e
WILLIANS, 2005) considera que as crianças mais jovens ou bebês são mais
vulneráveis a este tipo de violência, visto que não dispõem de recursos para se
defenderem dos pais ou responsáveis eminentemente abusivos, que educam e
disciplinam por meio da força.
No tocante às características que aumentam a vulnerabilidade da criança
para o abuso físico podemos citar: idade menor do que cinco anos, complicações no

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

nascimento, deficiências físicas e mentais e comportamentos considerados difíceis,


como por exemplo, a birra.
Alguns autores citam como características de adultos que abusam de
crianças: baixa tolerância à frustração, baixa autoestima, rigidez, ausência de
empatia, abuso ou dependência de substâncias, depressão e problemas físicos de
saúde, dentre outras.
De acordo com estudiosos, as genitoras acabam sendo as maiores violadoras
físicas de crianças e adolescentes, pois muitas vezes elas cuidam sozinhas dos
filhos e permanecem mais tempo junto a eles diante da ausência do exercício da
paternidade, por inúmeros motivos, situação que aumenta a carga de estresse.
Além dessas, outras variáveis aumentam a probabilidade do abuso físico, tais
como: viver em lar onde se vivencia a violência doméstica, presença de discórdia
marital, crianças de famílias com histórico intergeracional de abuso e baixo status
socioeconômico.

2.1.2 Violência psicológica e a exposição à violência conjugal

A violência psicológica é a mais difícil de ser identificada, assim como


permeia todas as outras modalidades de violência. Ela ocorre quando alguém é
submetido a ameaças, humilhações e privação emocional. De modo geral, mesmo
não sendo vítima direta da violência, a criança pode apresentar problemas em
decorrência da exposição à violência conjugal.
Alguns efeitos nocivos da exposição da criança à violência conjugal são:
ambivalência das emoções e reações entre amor e ódio, além de confusões,
conflitos e outras vivências negativas (Cardoso, 2001 apud MAIA e WILLIANS,
2005). Outros efeitos foram apontados por diferentes autores tais como: agressão,
uso de drogas, álcool e distúrbio de atenção, baixo rendimento escolar, ansiedade,
depressão, transtorno de estresse pós-traumático e outros problemas somáticos.
Já em relação aos pais, podem estar presentes os seguintes fatores de risco:
habilidades parentais pobres, abuso de substâncias, depressão, tentativas de
suicídio ou outros problemas psicológicos, baixa autoestima, pais autoritários, perda
de empatia, estresse social, violência doméstica e disfunção familiar.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2.1.3 Violência sexual

A violência sexual envolve duas expressões: o abuso sexual e exploração


sexual. Conforme definição da Organização Mundial da Saúde (OMS, 1999):

Abuso sexual infantil é todo envolvimento de uma criança em uma atividade


sexual na qual não compreende completamente, já que não está preparada
em termos de seu desenvolvimento. Não entendendo a situação, a criança,
por conseguinte, torna-se incapaz de informar seu consentimento. São
também aqueles atos que violam leis ou tabus sociais em uma determinada
sociedade. O abuso sexual infantil é evidenciado pela atividade entre uma
criança com um adulto ou entre uma criança com outra criança ou
adolescente que pela idade ou nível de desenvolvimento está em uma
relação de responsabilidade, confiança ou poder com a criança abusada. É
qualquer ato que pretende gratificar ou satisfazer as necessidades sexuais
de outra pessoa, incluindo indução ou coerção de uma criança para
engajar-se em qualquer atividade sexual ilegal. Pode incluir também
práticas com caráter de exploração, como uso de crianças em prostituição,
o uso de crianças em atividades e materiais pornográficos, assim como
quaisquer outras práticas sexuais.

Podemos abordar como fatores de risco para a ocorrência de abuso sexual: a


pobreza, história, personalidade dos pais e habilidades dos mesmos.
A curto prazo, poderão aparecer efeitos do abuso sexual na criança, tais
como: comportamento sexualizado, ansiedade, depressão, queixas somáticas,
agressão, comportamento regressivos, comportamentos auto-lesivos, problemas
escolares, dentre outros. A longo prazo, a depressão, ansiedade, prostituição,
problemas com relacionamento sexual, promiscuidade, abuso de substância,
ideação suicida, entre outros.
Padilha (2002 apud MAIA e WILLIANS, 2005) afirma que a peculiaridade do
abuso sexual reside no fato de não haver, muitas vezes, provas físicas de sua
ocorrência e pela ideia errônea do abusador argumentar que não forçou a criança a
fazer nada.
A violência sexual pode acontecer sem contato físico, com ou sem uso de
coação, compreendendo desde palavras insinuantes, carícias, beijos, toques e
exibição dos órgãos genitais até o ato sexual em si.
Na maioria dos casos, o abusador é uma pessoa que a criança conhece, ama
e confia, o que torna mais fácil encobrir o ato e estabelecer o pacto de silêncio.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Observa-se que ainda hoje muitos profissionais se deparam com dificuldades


para identificar e atuar nos casos de violência sexual, inclusive pela falta de
capacitação.

2.1.4 Negligência

A negligência infantil é a forma mais recorrente entre os maus tratos contra a


criança e o adolescente, passando a ser motivo de preocupação e atenção
internacional somente nos últimos quinze anos (PASIAN et al., 2013).
Essa modalidade de violência mais presente em crianças até um ano de
idade, podendo prejudicar sensivelmente seu desenvolvimento.
Conforme Reppold et al.(2002 apud MAIA e WILLIANS, 2005) a melhor
definição é o termo “padrão negligente”, quando os pais são fracos tanto em
controlar o comportamento dos filhos quanto em atender as suas necessidades e
demonstrar afeto. São pais pouco envolvidos com a criação dos filhos, não se
mostrando interessados em suas atividades e sentimentos. Pais negligentes
centram-se em seus próprios interesses, tornando-se indisponíveis enquanto
agentes socializadores.
[...] a negligência acontece quando os pais ou cuidadores são responsáveis
em omitir em prover as necessidades físicas e emocionais de uma
criança ou adolescente. Configura-se nos comportamentos dos pais ou
responsáveis quando falham em alimentar, vestir adequadamente seus
filhos, medicá-los, educá-los e evitar acidentes. Configura-se no
comportamento dos pais ou responsáveis quando falham em alimentar,
vestir adequadamente seus filhos, mediá-los, educá-los e evitar acidentes.
(BRASIL, 1993, p.14).

2.2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A PRÁTICA INFRACIONAL

A violência doméstica em suas diversas modalidades - física, sexual,


psicológica e/ou negligência - promove riscos à infância e adolescência, dentre eles
a prática de ato infracional, conforme apontam alguns autores.
Pontuando os fatores de risco que estão associados à persistência da
conduta infracional, observa-se que as atitudes, os valores, as crenças e
racionalizações servem de suporte para o comportamento infracional. Os
adolescentes autores de atos infracionais costumam apresentar determinadas

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

características que incluem: fraco controle dos impulsos, baixa autoestima,


agressividade, insensibilidade e comportamento movido pela busca do prazer.
Geralmente na situação familiar dos adolescentes em conflito com a lei há
falhas nas práticas disciplinares e/ou nos cuidados, na qualidade da relação pai/filho
e/ou mãe/filho e nos papéis que representam. Verificam-se também dificuldades no
relacionamento escolar, comportamento disruptivo e evasão escolar. Ocorre ainda,
pouco envolvimento em atividades de lazer estruturadas, com orientação de adultos
e de natureza pró-social, com possibilidades de uso do álcool e outras substâncias
psicoativas.
Maruschi et al. (2014) apontam que uma comparação de estudos de meta-
análises identificou a presença de quatro fatores de risco mais preponderantes para
a persistência da conduta infracional: atitudes e orientação antissociais, associação
a pares antissociais, história de comportamento antissocial e tipo de
personalidade/comportamento.
Todas as violências citadas, anteriormente, se inserem no contexto de
violência estrutural, no qual a sociedade capitalista está inserida. A violência,
enquanto categoria de análise sociológica pode ser produzida pelas desigualdades,
fruto dos sistemas social, cultural, econômico ou político e, geralmente, atinge os
sujeitos que vivem em situações de desigualdade social. Ela se expressa na
desigual distribuição do poder, em oportunidades desiguais, na discriminação e na
injustiça, na falta de acesso à educação e outros serviços.
Ainda que o debate sobre a violência estrutural não tenha sido o norte das
reflexões realizadas pelo grupo, foi possível analisar que ela é gerada pela própria
estrutura social, sendo suas formas mais relevantes a repressão, em termos
políticos, e a exploração, em termos econômicos.

2.3 OS FATORES DE PROTEÇÃO

Os estudos apontam a existência de fatores de proteção, que, quando


presentes, favorecem o desenvolvimento saudável da criança. Os fatores de
proteção, segundo Garmezy (1985 apud MAIA e WILLIANS, 2005), podem ser
compreendidos dentro de três tipos:

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2.3.1 Atributos Disposicionais da Própria Criança

Quanto aos atributos inerentes à criança, seriam fatores preditivos para um


bom desenvolvimento e, portanto, um fator protetivo: a inteligência acima da média,
a competência social e o seu temperamento positivo.

2.3.2 Características da Família

No que diz respeito às características da família, Reppold et al. (2002 apud


MAIA e WILLIANS, 2005) destacam que elas podem funcionar como fatores de
proteção quando incluem vínculos afetivos, monitoramento e apoio parental,
contudo, quando essas características não estão presentes, a família se tornaria um
fator de risco ao desenvolvimento da criança.
Os autores Kumpfer e Alvarado (2003 apud MAIA e WILLIANS, 2005)
apontam que o relacionamento positivo entre pais e filhos, a supervisão e a
disciplina consistente, assim como, a comunicação dos valores familiares são os
fatores responsáveis pelos jovens não se engajarem em comportamentos
delinquentes.

2.3.3 Fontes de Apoio Individual ou Institucional Disponíveis

Sobre os fatores protetivos relacionados à comunidade, os autores descritos


por Maia e Willians (2005) referem que se contemplam os relacionamentos que a
criança apresenta com seus pares (fora da família), com outros adultos significativos
(professores, por exemplo) e com instituições.
As autoras acima destacam que mesmo crianças expostas a situações que
ameaçam seu desenvolvimento podem crescer de forma saudável, dependendo de
sua capacidade de resiliência, conforme apontado pela Associação Americana de
Psicologia (APA).

598
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2.4 COMPETÊNCIAS PSICOSSOCIAIS COMO FATOR DE PROTEÇÃO

O desenvolvimento de competências psicossociais apresenta-se como um


fator de proteção ao desenvolvimento infantil. Dentre eles, a família, a instituição ou
a escola podem configurar-se como potenciais ambientes promotores de
competências, desde que exista qualidade das relações e presença de afetividade e
reciprocidade em tais ambientes (CUNHA e RODRIGUES, 2010).
Dentro do contexto apresentado, Maia e Willians (2005) concluem que os
profissionais que atuam junto à infância e juventude, sejam eles médicos,
psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, professores e
conselheiros tutelares, precisam ter consciência e conseguir identificar com clareza
tanto os fatores de risco quanto os fatores de proteção que estão em jogo no
contexto de determinada criança/adolescente, minimizando crenças e questões
pessoais dos referidos profissionais ao fazer a avaliação de cada situação.

3. ATUAÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA PSICOSSOCIAL DO TRIBUNAL


DE JUSTIÇA DIANTE DE SITUAÇÕES DE RISCO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES

O marco inicial do trabalho profissional do Assistente Social remonta de longa


data. Estudos bibliográficos apontam que a inserção destas práticas no contexto
jurídico, embora se diferenciem em decorrência dos momentos sócio-históricos em
que foram implantados, houve um entrelaçamento de objetivos ao ocuparem este
espaço no campo sócio jurídico.
Segundo Fávero (2013), o Serviço Social no Tribunal de Justiça de São
Paulo, conta com 65 anos de implantação. Os profissionais pioneiros defendiam
concepções de justiça e de direitos sociais com base no doutrinamento católico, com
viés, embrionário da social democracia e contribuíram para implantação do Serviço
Social no primeiro Juizado de Menores da capital, por meio do Serviço de Colocação
Familiar, instituída pela Lei Estadual 500 – Lei da Colocação Familiar, que tinha
como base programa de família de apoio, que recebia repasse financeiro pelo
acolhimento de crianças e adolescentes em situação de pobreza. Posteriormente, tal
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

repasse foi destinado às famílias de origem, para se evitar a internação dos


menores, ou seja, o acolhimento institucional. Ainda de acordo com a autora, o
trabalho prestado era voluntário, respondia as demandas colocadas pela ampliação
das expressões da questão social, porém não implicava em questionamentos da
ordem social burguesa.
Já a Psicologia, segundo Cesca (2004), teve sua consolidação definitiva
apenas em meados da década de 1980, quando um projeto de criação de cargos de
psicólogo judiciário fora apresentado pelo presidente. No início desta mesma
década, a participação dos psicólogos nas questões judiciais se deu de forma
voluntária, por meio de implantação de grupo na capital que orientava pessoas
encaminhadas pelo Serviço Social, basicamente através do apoio às questões
familiares, buscando a reestruturação e manutenção da criança no lar. Mais tarde, a
Lei nº 500 do Código de Processo Civil – CPC instituiu a contratação do psicólogo, a
título precário, por um ano, podendo ser recontratado após esse período.
A complexidade das questões ligadas à infância e a juventude exigiram a
formação de uma equipe técnica junto aos tribunais de menores. E desta forma as
duas profissões que atuam no Tribunal de Justiça tiveram seu espaço, cada vez
mais, ampliado ao longo dos anos.
Diante da complexidade que envolve a atuação destes profissionais é mister
refletir sobre questões ligadas aos conceitos de negligência e outras formas de
violência que envolve as famílias, as crianças e os adolescentes em muitos
processos do Tribunal de Justiça.
Neste sentido, a atuação técnica é permeada por situações limites do
cotidiano familiar, de famílias em situação de vulnerabilidade ou risco social e
pessoal, que podem culminar com o distanciamento da criança/adolescente de sua
família ou total rompimento dos vínculos afetivos.
Isto posto, os profissionais (psicólogos e assistentes sociais) que atuam em
processos que lidam diretamente com a violação de direito contra criança e
adolescentes precisam estar atentos em discernir os critérios diagnósticos das
situações psicológicas e sociais e ética profissional dos valores e crenças pessoais.
Sendo assim, algumas questões devem ser consideradas, como propõe
Beberian (2015):

600
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Quais são os critérios para definir que alguém é negligente? Eles são
objetivos ou decorrem apenas de uma avaliação moral? Sendo uma
atribuição negativa, contém um julgamento de valor; logo, não há como
dizer que a moral não esteja presente. Além da moral, existem outros
critérios objetivos? Quais são? A avaliação moral está pautada nos
princípios do Código de Ética Profissional?

Partindo destas problematizações a respeito da atuação profissional,


importante refletir até onde os valores morais e concepções de família interferem na
avaliação que se realiza no cotidiano profissional em casos envolvendo negligência.
Dessa forma, torna-se crucial redefinir o conceito e uso do termo negligência,
bem como necessário identificar como este tem sido empregado na prática
profissional dos técnicos do judiciário, que lidam com famílias encaminhadas para o
Setor Técnico. Vale lembrar aqui que as denúncias de violação de direitos contra
crianças e adolescentes são geralmente recebidas pelo Conselho Tutelar que então
encaminha ao Ministério Público que, por sua vez, solicita ao Juiz da Infância e
Juventude a determinação do estudo psicossocial.
Atenta-se inclusive que a negligência pode estar associada ou não com a
condição socioeconômicas das famílias. Lembrando que nas famílias de classe
sociais com maior poder aquisitivo também podem ocorrer negligências, mas que
dificilmente são notificadas às Varas da Infância e Juventude.
Ainda sobre isso, Pasian et al. (2013) citando Martins (2006), apontam que,
muitas vezes, a negligência é usada de forma equivocada para descrever quadros
extremos de pobreza, não havendo negligência por parte dos pais, mas da
sociedade e das condições adversas vividas.
Desta forma, observa-se que em alguns casos o termo desproteção ampliaria
a compreensão da situação familiar, visto que não implicaria somente na
responsabilização da família em estudo.
Assim, é vital que os profissionais que lidam com esta demanda, diariamente,
tenham consciência de seus próprios valores morais e os diferenciem dos
constructos pertinentes a sua ética profissional.
Segundo Dias (2015), a moral significa um costume ou procedimento habitual
relacionado a normas estabelecidas e aceitas, segundo consenso individual e
coletivo, dispondo-se de caráter mais pessoal, pois exige fidelidade aos próprios
pensamentos e convicções íntimas. Enquanto a ética representa o estudo dos

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padrões morais já estabelecidos, sendo reconhecida como a ciência da moral, ou


seja, o estudo dos deveres e obrigações do indivíduo e da sociedade.
Sendo assim, Dias (2015) pontua a necessidade da separação radical entre a
ética e a moral de forma privilegiar a ética, por ser uma forma de conhecimento, já
que a moral está no campo do relativismo e do subjetivismo.
A partir do momento em que o profissional necessita realizar a intervenção
em processos envolvendo supostas situações de negligência, é fundamental que se
observe a diferença entre moral e ética e que se utilize destes pilares em sua
atuação técnica.
Este equilíbrio é importante também na construção da relação profissional
com os atendidos, pois muitas vezes “psicólogos e assistentes sociais são vistos
como a personificação desse poder39 adentrando a casa das pessoas” (Pereira e
Rodrigues, 2013, p. 106).
Pereira e Rodrigues (2013) ressaltam que o diferencial da atuação dentro do
Judiciário é a escuta sensível que se deve manter diante dos casos atendidos,
visando à compreensão da dinâmica e do contexto familiar, ao invés da mera
culpabilização das famílias.
Reflete-se, ainda, que a atuação profissional esbarra também em entraves
macroestruturais, tais como a pobreza e a falta de políticas públicas eficazes na
garantia de direitos, os quais causam angústia nos profissionais da equipe técnica,
que se sentem impotentes para encontrar soluções eficientes para as situações de
vulnerabilidade. Vale ressaltar que geralmente os trabalhos preventivos são pouco
efetivos junto às famílias em situação de negligência, o que culmina com
culpabilização da família e a retirada das crianças da convivência familiar.
Reitera-se, então, o papel de todos os profissionais da Rede de atendimento
de crianças e adolescentes, inclusive os técnicos do Judiciário, no sentido de prestar
orientação às famílias, esclarecendo sobre seus direitos de cidadãos e também do
direito ao contraditório nos processos da Vara Infância e Juventude.
Dias (2015) pondera que após as descobertas de Freud o pensamento
contemporâneo ocidental tomou outro rumo descrevendo que as ciências
psicossociais aportaram no direito das famílias. A compreensão de um novo

39
Poder aqui se refere ao Poder Judiciário, que pode ser autoritário ou que atue na defesa de direitos,
como apontam os autores.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

discurso sobre o afeto trouxe a legalidade da subjetividade, visto que a Psicanálise


demonstrou que a objetividade dos fatos jurídicos estaria permeada de uma
subjetividade que o Direito não poderia mais desconsiderar. Sendo assim, a equipe
interdisciplinar traz nestas situações de vulnerabilidade e risco a ampliação da
compreensão do sujeito através de ferramentas valiosas na percepção das relações
interpessoais, sujeitos e operadores do Direito em relação à lei.
Apesar do caráter disciplinador do Tribunal de Justiça, os Assistentes Sociais
e Psicólogos que nele atuam corroboraram para trazer essa nova percepção acerca
das vivências das famílias. E sair de um lugar disciplinador, enquanto profissionais
do Tribunal de Justiça, significa ir ao encontro da realidade de cada família e seus
referenciais.
Dessa forma, chega-se a seguinte indagação: Como intervir nesses casos a
partir do conhecimento que se tem sobre negligência, outras formas de violência e
riscos sociais e pessoais?
Segundo Fávero (2013, p.516) faz-se necessário:

[...] os profissionais se indagarem e se posicionarem em relação às


atividades que realizam no tempo presente e em que condições: em relação
à ética profissional, às condições e relações de trabalho, à judicialização e à
criminalização de expressões da questão social, às tentativas de uso
desvirtuado do trabalho do assistente social para obtenção de provas
testemunhais com vistas à responsabilização penal, e tantas outras
questões e desafios com os quais os profissionais se deparam lá na ponta
do exercício cotidiano de trabalho.

Ainda considera-se que a atuação técnica deva estar pautada na ética


profissional. Pereira e Rodrigues (2013) deixam claro que o profissional deve estar
atento para discernir entre respeito às diferenças e convivência com situações de
desrespeito à dignidade humana e à violação de direitos.
Além do exposto anteriormente, é imperioso refletir que:

“No espaço de trabalho no Judiciário, o profissional encontra diversas


situações de violações de direitos, expressas por pessoas que vivem muitas
vezes em condições de apartação social, que passam por experiências de
violência social e interpessoal, que estão por vezes em situações‑limite de
degradação humana, com vínculos sociais e familiares rompidos ou
fragilizados, que vivenciam o sofrimento social decorrente dessas rupturas e
da ausência de acesso a direitos. Nesse contexto, se o profissional trabalha
em consonância com a defesa e a garantia de direitos, ele avançará nessa
direção ao possibilitar um espaço de informação, de diálogo e de escuta
desses sujeitos, ao estimular a reflexão crítica a respeito dos problemas e
dilemas que vivenciam, ao agir, em conjunto com eles, para conhecer e

603
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

estabelecer caminhos viáveis para o acesso a direitos” (FÁVERO, 2013, p.


521).

É imprescindível, segundo Fávero (2013), que os profissionais em seu


trabalho cotidiano pautem-se na dimensão investigativa crítica para analisar a
demanda que chega cotidianamente para atendimento, a partir da qual é
desencadeada a intervenção profissional, e que necessita dos recursos teóricos,
metodológicos, técnicos e éticos, que irão embasar e direcionar as decisões e
intervenções técnicas.
Diante disso, ressalta-se a importância da capacitação profissional continuada
e a relevância da participação em grupos de estudos como este que motivou a
realização do presente trabalho, e que permite aos profissionais distanciarem-se do
cotidiano alienante para refletirem com embasamento teórico e técnico sobre sua
própria prática.
Observa-se que o grupo de estudo caracteriza-se como um compromisso
para se aprofundar, um estimulo para construção de um olhar instrumentalizado.
Caracteriza-se ainda como uma oportunidade para refletir sobre um cotidiano que,
às vezes, se cristaliza, se automatiza, se sistematiza sem a reflexão sobre o próprio
sistema. Além disso, o grupo tem a oportunidade de realizar não só no levantamento
de problemas, mas também identificar alternativas para solucioná-los.
Por fim, salienta-se que as categorias profissionais de assistente sociais e
psicólogos encontram-se em uma área de contínuos desafios tornando-se
necessário, embasados nos pilares éticos e técnicos, que não se perca a
capacidade de se indignar, de se comprometer, estimulando as pessoas vítimas de
violências, situações de vulnerabilidade ou risco, a não perderem o compromisso
com elas mesmas, mesmo diante do esfacelamento dos direitos sociais.
Além disso, torna-se imperioso as políticas públicas de assistência à infância
e juventude e uma rede que trabalhe de forma integrada e garanta a efetividade nos
resultados que se pretende atingir.

4. PAPEL DA REDE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Neste capítulo, a discussão sobre o “papel da rede e as políticas públicas”


baseou-se em dois artigos, intitulados: Crianças e adolescentes em Contexto de
604
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Vulnerabilidade Social: Articulação de Redes em Situação de Abandono ou


Afastamento do Convívio Familiar (PEREIRA, 2010) e “Vulnerabilidades na Infância
e Adolescência e as Políticas Públicas Brasileiras de Intervenção” (COSTA et. al.,
2013).
A compreensão da situação de vulnerabilidade social de crianças e
adolescentes não se explica somente pelas desigualdades sociais, mas traz à baila
a ideia de que a sociedade passa por um enfraquecimento das redes sociais, que
provoca vulnerabilidade social, ruptura e crise identitária, jogando o sujeito num
sentimento de solidão e vazio existencial.
Para trabalharmos com crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade social, devemos compreender, antes de tudo, que esta
“vulnerabilidade” aborda diversas modalidades de desvantagem social, mas
principalmente a fragilização dos vínculos afetivos, relacionais, de pertencimento
social ou vinculados à violência.
Relações em contexto de vulnerabilidade social geram crianças, adolescentes
e famílias passivas e dependentes, com a autoestima comprometida. Estes jovens e
suas famílias introjetam como atributos negativos pessoais as falhas próprias de sua
condição histórico-social. De forma circular e quase inevitável este ciclo se instala
reforçando a condição de miséria, não só material, mas afetiva.
Todas essas questões devem ser consideradas no trabalho com pessoas que
vivem em contexto de vulnerabilidade.
Assim, se propõe que a infância e a adolescência devem ser compreendidas
como fases do Ciclo de Vida familiar, entendendo por isso que há características
peculiares de cada fase da vida desses sujeitos.
A adolescência, por exemplo, está vinculada a um momento de socialização e
construção da identidade, período rico em possibilidades e descobertas. Essa
trajetória envolve novas responsabilidades que levam à vida adulta. Este processo
implica em desequilíbrio familiar, que requer novas adaptações desta, para
estabelecer direitos e deveres de seus membros. É relevante pontuar que os pais
devem ter flexibilidade e diálogos com essas novas demandas dos filhos, porém
sem abdicar de seu papel de autoridade e propor limites que podem ser negociados.
O importante é que a autonomia seja construída na relação.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Daí ser de extrema importância conhecer as relações em que estão inseridos


estes jovens, seja familiares ou sociais, compondo um campo amplo de relações
interpessoais importantes para dar sustentação ao seu desenvolvimento saudável.
Hoje a família sofre grandes influências de elementos externos e isso a
fragiliza, tornando um desafio fazer com que os pais sejam democráticos e flexíveis
sem ter medo de perder o controle sobre a educação dos filhos.
Outra instituição de suma importância é a escola, que também exerce forte
influência no desenvolvimento de crianças e adolescentes. A escola, junto com a
família, permite a humanização e a educação; permite a construção de autonomia e
de um sentimento de pertencimento a uma comunidade, deixando de ter como única
referência os valores de seu grupo familiar. À medida que instrumentaliza
intelectualmente a criança e o adolescente possibilita que estes tenham maior
protagonismo social e se tornem cidadãos.
Sabemos dos inúmeros problemas que enfrentam as escolas e que muitas
vezes elas próprias podem tornar-se fonte de violência contra seus alunos ou ainda
não ser capaz de protegê-los de outras violências nas relações entre alunos.
Diante de relações fragilizadas tanto na família como na escola, surge o
grande desafio de outras instituições de resgate à proteção.
Os profissionais que atuam na rede de proteção socioassistencial devem ficar
atentos a essas fragilizações no ambiente familiar e escolar, pois aí podem surgir as
primeiras violações que comprometem o desenvolvimento.
Em situações extremas, como no caso do abandono ou do afastamento do
convívio familiar por violação de direitos, a possibilidade de reintegração familiar
passa também pelos laços que os jovens e as famílias desenvolvem com estes
profissionais.
Visando compreender o papel da rede e das políticas públicas no que tange a
promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente, utilizando como base
o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e a Constituição Federal de 1988,
temos: “A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á
através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais,
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (ECA, 1990, art. 86).

Art. 4º do ECA. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral


e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
606
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à


liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A
garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e
socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos
serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e
na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de
recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude.

Art. 88 do ECA. São diretrizes da política de atendimento: I -


municipalização do atendimento; II - criação de conselhos municipais,
estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos
deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a
participação popular paritária por meio de organizações representativas,
segundo leis federal, estaduais e municipais; III - criação e manutenção de
programas específicos, observada a descentralização político-
administrativa; IV - manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais
vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do
adolescente; V - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social,
preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do
atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato
infracional; VI - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria, Conselho Tutelar e encarregados da execução das
políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de agilização do
atendimento de crianças e de adolescentes inseridos em programas de
acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração à
família de origem ou, se tal solução se mostrar comprovadamente inviável,
sua colocação em família substituta.

Entretanto, apesar de serem previstos em lei, as politicas públicas e a rede de


serviços quase sempre se mostram ineficazes e precárias no atendimento das
necessidades da população, e por isso podem influenciar na manutenção dos
fatores de risco e vulnerabilidade. Um exemplo disso é a longa permanência de
crianças nos serviços de acolhimento nos dias de hoje e a falta de estrutura das
casas lares para trabalhar a emancipação do sujeito.
Outro aspecto levantado é que a família está colocada no centro das politicas
públicas, elevada à condição de protagonista e sob a proteção especial do Estado.
Assim a Política Nacional da Assistência (BRASIL, 2004, p. 41) destaca que o
enfoque na centralidade da família está no pressuposto de que para a família
prevenir, proteger e incluir seus membros é necessário, em primeiro lugar, garantir
condições de sustentabilidade para tal.
Lembramos que os recursos investidos na área social são levantados do
‘fundo perdido’, ou seja, da sobra dos recursos voltados para a construção das
demais políticas públicas, o que a torna deficitária.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No sistema de proteção social, os programas de transferência de renda são


considerados importantes aliados na redução da pobreza e de situações de
vulnerabilidade. Destes, destaca-se o Programa Federal “Bolsa Família” (PBF) que
repassa um valor mensal à família em situação de pobreza e que, por sua vez, se
compromete a manter suas crianças e adolescentes em idade escolar
frequentando a unidade de ensino e a cumprir os cuidados básicos em saúde
(consultas médicas periódicas e vacinação).
No Tribunal de Justiça o trabalho em rede avançou e seu ápice ocorre na
Vara da Infância e Juventude por meio das “audiências concentradas”, quando se
envolvem os próprios usuários e as várias secretarias/ órgãos (municipais e
estaduais) para resolver as situações de vulnerabilidade social. Todavia, como já foi
pontuado anteriormente, esbarramos na fragilidade dessa rede que não oferece
políticas públicas e serviços de qualidade, além dos próprios fatores
macroestruturais que geram a pobreza, violência e desigualdades de gênero.
Entendemos que a implantação de uma Rede de Proteção não implica
somente em grandes investimentos, mas tem como primordial a mudança na forma
de olhar dos técnicos, profissionais das diversas esferas, governos e cidadãos. Um
“olhar” descolado de valores morais, evitando-se assim posturas culpabilizadoras da
família. Destacou-se o quanto os profissionais da rede, muitas vezes, desqualificam
a família ao invés de trabalhar seu fortalecimento. Os estudos reforçam que um
olhar crítico e acolhedor só será possível quando houver um processo permanente
de capacitação, formação e qualificação conjunta entre os diversos atores da rede
de proteção.

5. ANÁLISE DE DOCUMENTÁRIOS

5.1 Análise do filme “Preciosa – uma história de esperança”

O filme “Preciosa – uma história de esperança” (DANIELS, 1987) conta a


história de Claireece “Preciosa” Jones, uma adolescente de 16 anos, residente no
bairro de Harlem, Nova York, 1987. A adolescente vive em um ambiente hostil,
violento, pobre, no qual ainda se depara com outras adversidades, como o

608
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

preconceito. Além de ser negra, era também obesa, mãe adolescente e se


descobre portadora do vírus HIV. Desde o início de sua infância a personagem foi
vítima de múltiplas formas de violência em seu próprio lar, tais como omissão de
seus pais em relação a sua saúde, aproveitamento escolar e proteção; violência
psicológica e física perpetrada pela sua mãe e violência sexual cometida pelo pai,
sendo que seus dois filhos foram frutos dessa relação incestuosa. Um dos filhos
portador de Síndrome de Down era criado pela bisavó materna.
Observa-se que, além das agressões sofridas em casa, Preciosa foi vítima de
bullying pelos colegas da escola, fazendo com que a mesma não se relacionasse
bem com eles e adotasse estratégias de sobrevivência, como manter-se na
“invisibilidade social”. Para tanto, sentava-se na última carteira da sala e mantinha-
se calada o tempo todo. Outro refugio encontrado pela adolescente era mergulhar
em sua própria imaginação e devaneios, que serão abordados mais adiante.
Em situação de abandono intelectual, Preciosa chegou aos 16 anos de idade
sem compreender o que os professores lhe ensinavam, transformando-se em uma
“analfabeta funcional”. Refletiu-se que esta situação é comum a muitos
adolescentes que são atendidos nas Varas de Infância e Juventude, autores de atos
infracionais.
Outro fator que contribuiu para as dificuldades de desenvolvimento da
personagem foram as responsabilidades impróprias para a sua idade que ela era
obrigada a assumir. Preciosa nunca tinha ido ao médico e acabou vivenciando os
partos de seus filhos em situações extremamente precárias. Confessou para a
assistente social que teve o primeiro bebê no chão da cozinha, com sua mãe
chutando a sua cabeça. Toda essa gama de abusos e violências de todos os tipos
leva o espectador a entender porque a garota brigava na escola, agredia os colegas
que lhe faltavam com respeito. Era a sua resposta ao mundo, o seu pedido de
socorro, reproduzindo com as pessoas que lhe maltratavam aquilo que não poderia
fazer com sua mãe ou com quem abusava dela.
Ao engravidar pela segunda vez, Preciosa foi expulsa do ensino fundamental
e convidada a frequentar uma “escola alternativa”, onde a professora lhe oferece a
oportunidade de uma atenção diferenciada, respeitosa e uma educação inclusiva.
Isso, juntamente com as amizades que foram estabelecidas no local, auxiliaram
Preciosa a recuperar sua autoestima e dar um novo rumo a sua vida.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Reconhece-se a grande importância de uma escola inclusiva, assim como


professores capacitados para lidarem com estes tipos de demanda, capazes de
suscitar efetivas mudanças na vida das pessoas que vivenciam situações de
vulnerabilidades. No filme observou-se que as primeiras revelações das violências
sofridas pela adolescente no lar se dão na “escola alternativa” e, assim, ela é
encaminhada ao serviço de assistência social. Sobre este último serviço, critica-se a
forma como ocorrera a intervenção do Serviço Social, cuja preocupação centralizou-
se somente em repassar recursos públicos e conferir sua aplicação, vistoriando a
casa, a aquisição de alimentos e utensílios domésticos, sem que fosse priorizada a
dinâmica familiar e a condição de proteção de seus membros.
Ainda sobre o papel da escola, compreende-se que além da proposta
pedagógica de ensinar, configura-se em local de proteção, onde o aluno encontra
possibilidades para exteriorizar seus sentimentos, receber atenção e ter suas
potencialidades valorizadas, como ocorreu com a Preciosa na “escola alternativa”,
tendo sido estimulada a escrever sua história e sonhos em um diário acompanhado
pela professora, com quem construiu um forte vínculo.
A professora da ficção apresentou grande sensibilidade e, sem que perdesse
sua autoridade, acolheu e contribuiu para a inclusão escolar e social de Preciosa. A
adolescente, então, sinalizou que a escola alternativa foi o seu primeiro local de
pertencimento.
O filme também revela as diferenças culturais existentes entre o modelo de
inclusão escolar americano e o brasileiro. A proposta de inclusão apresentada
ocorre a partir da “escola alternativa”, ou seja, um local específico para estes
adolescentes. Já no Brasil, a proposta é a permanência da criança e do adolescente
com dificuldade de integração e aprendizado na mesma unidade escolar que outros
alunos matriculados no ensino regular. Atualmente, observa-se a falta de estrutura
para o atendimento integral desta demanda no contexto brasileiro.
A dinâmica familiar de Preciosa apresenta um caso patológico em que o
Complexo de Édipo se concretiza, abrindo um abismo na estrutura familiar. Desde
os 03 anos de idade o pai de Preciosa a violentava sexualmente, com o
consentimento da mãe e a omissão da sociedade (escola, assistência social,
vizinhos). O pai prometia-lhe que se casaria com ela, impedindo-a
inconscientemente de namorar, concretizando o Édipo. A genitora, uma mulher

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bastante comprometida emocionalmente, com características boderline, traços


característicos de psicose, expressava seu ódio pela filha, além da inveja que a
consumia, expressando que a adolescente queria “roubar seu homem”. Nesta
disputa doentia, a mãe força a filha a comer compulsivamente, para que ela engorde
cada vez mais e não desenvolva sua autoestima.
Casos graves como este trazido pelo filme despertam nos profissionais que
trabalham com estas demandas, como é o caso dos Técnicos do Judiciário,
sentimentos de raiva e incompreensão, o que acaba ocasionando grande dificuldade
para lidar com estas realidades, assim como para executar a devida escuta dos
agressores e conseguir oferecer-lhes os encaminhamentos devidos, sobretudo para
tratamento psicoterapêutico. A partir da prática profissional dentro do Judiciário,
reconhece-se o quanto a rede de proteção falha em não oferecer serviços e
profissionais especializados que atendam esta população.
Na ficção, observou-se a ausência de atuação do profissional psicólogo. Em
nenhuma ocasião este profissional tal importante para cuidar dessas demandas é
suscitado. Infere-se, assim, que a rede de proteção americana igualmente
apresenta-se falha neste âmbito.
As cenas iniciais do filme apresentam uma adolescente apática, passiva, mas
possuidora de uma imaginação fértil, povoada de símbolos que refletem a ideologia
dominante, formada por valores de uma sociedade branca e de classe média.
Vimos que ela sonha que é uma artista famosa, que o professor (branco, bonito e
elegante) é seu namorado e que vive em meio ao glamour com uma legião de fãs.
Além de refletir a influência da ideologia que nos é repassada através da escola,
mídia, família, tais “sonhos” também representam a maneira como a personagem
encontrava para fugir de sua dura realidade, ou seja, por meio de um mecanismo de
defesa que nega aquele acontecimento tão traumático.
Para que se reconheça um mundo externo, além de relações internas
intensas de plenitude que o ser humano encontra em algo ou em alguém, existe um
estímulo dado pelas frequentes, variadas e inevitáveis sensações de dor e
desprazer, as quais o princípio do prazer ordena suprimir e evitar (Freud, 1930).
Preciosa inventa meios de sobreviver naquele caos. Olhava um álbum de fotografias
e fantasiava que sua mãe lhe dizia palavras carinhosas e que seu professor lhe
amava e dizia que morariam juntos.

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Era maltratada pela mãe, que a chamava de burra, dizia que desde o
momento em que a pegou nos braços sabia que ela não servia para nada, que não
conseguiria aprender nada. Dizia que ela não poderia confiar em ninguém. Ou seja,
tirava-lhe qualquer esperança de mudança, aniquilando a possibilidade de uma vida
mais digna, ao menos.
Observou-se que a única figura positiva de referência na família da
adolescente é sua avó materna, quem cuida de sua primeira filha, porém se revela
fragilizada para proteger e acolher Preciosa, bem como seu segundo filho. Reflete-
se que no exercício profissional nas Varas da Infância e Juventude existem diversos
casos semelhantes ao de Preciosa, em que se verificam violências perpetradas no
âmbito familiar, o analfabetismo funcional, desemprego, baixa autoestima, doença
sem perspectiva de cura, maternidade precoce e incestuosa. Nestes casos, é
comum que tais crianças e adolescentes sejam encaminhados aos serviços de
acolhimento, em detrimento do trabalho de “empoderamento” dos pais para
exercerem a parentalidade de maneira salutar. Compreende-se a grande
importância de tal estratégia, que requer reflexão desses profissionais.
O filme retrata que um problema social nunca é uma questão isolada e, por
isso, afeta a comunidade como um todo. Além disso, revela que a violência
doméstica é causada por múltiplos fatores e merece uma intervenção planejada,
multi-setorial e interdisciplinar. Reconhece-se ainda que tão grave quanto às
situações de violência é o silêncio, a omissão da comunidade.
É emocionante o que o filme releva sobre o desenvolvimento emocional
sempre possível para o ser humano. Apesar de todas as adversidades e o histórico
de vitimização que a personagem principal sofre, ela desenvolve uma resiliência,
potencializada com o exercício da parentalidade, juntamente com as intervenções
pontuais dos profissionais vinculados à escola alternativa e ao serviço de assistência
social. Esta narrativa apresenta a vivência de uma história de superação, em que os
vínculos que foram sendo construídos pela adolescente, somados ao seu
desenvolvimento emocional por meio da maternidade, ajuda-lhe a romper as tramas
de sua história de violências, reconstruindo-se.
O filme oportuniza a reflexão a respeito da realidade do grande número de
crianças e adolescentes vitimizados no Brasil, principalmente os que vivenciam
situação de acolhimento institucional. Será que conseguirão superar a condição

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precária de vida e reescrever uma história de superação? É possível um trabalho


integrado dos profissionais, que promovam verdadeiro acolhimento e
empoderamento a estes sujeitos, ajudando-os a se reconstruírem, como foi possível
à personagem principal desse drama? Reconhece-se que muitas marcas de
violência jamais serão apagadas, mas o trabalho com estes cidadãos é possível,
ainda que atualmente as politicas públicas têm se mostrado insuficientes para darem
conta destas demandas tão complexas e, infelizmente, crescentes na realidade
brasileira.

5.2 Análise do filme “Juízo”

O filme “Juízo” (RAMOS, 2007) se passa na metrópole carioca e aborda a


trajetória de adolescentes autores de atos infracionais, durante os procedimentos
judiciais adotados por uma juíza no ato da audiência e, após a aplicação da medida,
quando encaminhados para internação, demonstrando a rotina a que são
submetidos os adolescentes que recebem a aplicação de medida socioeducativa de
internação no “Instituto Padre Severino”, abordando ainda a forma como estes
adolescentes vivem anos depois do cumprimento da medida judicial estabelecida.
Durante as audiências é possível perceber a realidade das famílias que não
tem condições de corresponder com suas funções na proteção, apoio e cuidados
com os filhos e a dificuldade de compreensão daqueles que aplicam a lei, que vivem
uma condição tão distinta. Os depoimentos indicam que os adolescentes têm baixa
escolaridade, despreparo para a inserção no mercado de trabalho e parecem
desprovidos de qualquer expectativa de vida. O filme retrata como a Justiça atua na
punição dos adolescentes que cometem atos infracionais e revela que esta, peca na
garantia de seus direitos fundamentais, os quais estão previstos na Constituição
Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
O documentário mostra a execução da medida socioeducativa no “Instituto
Padre Severino”, a qual revela uma metodologia que prima pela despersonificação
dos adolescentes como sujeitos, com cunho repressivo, disciplina rígida e discurso
doutrinário, que visa, por esses meios, torná-los “cidadãos” sem considerá-los
pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos, contrariando a Doutrina da
Proteção Integral. No momento em que ingressam na instituição para cumprimento

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da medida socioeducativa de privação de liberdade, os adolescentes recebem um


número de matricula, e passam, a partir daquele momento a serem identificados
através do número, não mais pelo seu nome. Recebem uma roupa, tipo uniforme,
iguais para todos os internos. São obrigados a raparem o cabelo quando entram,
sendo que, são os próprios internos que realizam tal ato.
A infraestrutura do local também sinaliza como sendo insalubre, sem
ventilação, escuro, camas de alvenarias, em que geralmente mais de um
adolescente precisa se acomodar para dormir.
O cumprimento da medida sócio educativa retratada no filme abarca de modo
claro como os direitos do adolescente privado de liberdade são violados, conforme
previsto no ECA em seu artigo 124.

Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os


seguintes:
I- entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público;
II- peticionar diretamente a qualquer autoridade;
III- avistar-se reservadamente com seu defensor;
IV- ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada;
V- ser tratado com respeito e dignidade;
VI- permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima
ao domicilio de seus pais ou responsável;
VI- receber visitas, ao menos semanalmente;
VIII- corresponder-se com seus familiares e amigos;
IX- ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal;
X- receber escola e profissionalização;
XI- realizar atividades culturais, esportivas e de lazer(...)

O documentário também retrata os problemas durante o período de


internação, como as dificuldades para alcançar a ressocialização, a reincidência dos
atos infracionais, a improficuidade na aplicação de medidas, além das humilhantes
revistas a que as famílias eram submetidas durante as visitas, em grande parte
sofrida pelas genitoras, responsáveis pelos adolescentes.
Durante o período de internação, os adolescentes são tratados com
desrespeito, não recebem atendimento escolar e profissionalizantes. Não realizam
atividades culturais, esportivas ou de lazer. Improvisam entre uma cama e outra,
uma sala de musculação se apoiando entre as beliches.
Durante as refeições, passam por revistas, recebem um marmitex e, ao
acabar a comida, precisam abaixar a cabeça na mesa aguardando os outros
encerrar a refeição. Não podem conversar entre si, nem ao menos olhar para o lado.

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No debate em grupo sobre o documentário, destacou-se ainda, com crítica, a


atuação do setor técnico, particularmente dedicado à verificação das condições
físicas do local em que os adolescentes se encontravam, ou seja, em “celas”, com
escasso ou nenhum interesse em seu estado emocional ou em sua condição
particular, visto que não aparecem em atendimento individual com os técnicos. Além
disso, em nenhum momento há uma análise técnica do contexto familiar dos
adolescentes atendidos.
Abordou-se que a violência estrutural a que estão submetidas as famílias e
seus filhos não é levada em conta. A ênfase na aplicação da lei é dada na
preservação de bens e na forte repressão ao atentado à propriedade
privada. Houve um chamamento para a percepção dos profissionais da existência
um sistema injusto e da necessidade de realizar uma autocrítica, pois a visão do
técnico faz a diferença no atendimento, demonstrado através da leitura da realidade.
Durante a análise os integrantes do grupo expressaram a grande dificuldade
de assistir o filme até o final, pois lhes produziu as mais diversas sensações:
sofrimento, angústia, revolta, necessidade de mudança, entre outros.
Discutiu-se que o rito no atendimento ao adolescente em conflito com a lei,
conforme preconiza o ECA não é considerado no filme, de forma que a juíza não
contempla a fala dos adolescentes, seguindo-se o antigo preceito do “Juízo de
Menor”. Nota-se que ela utilizava-se do modo ríspido e agressivo no uso das
palavras ao dirigir-se ao adolescente.
Dentre os adolescentes que figuravam no documentário, a maioria era do
sexo masculino, pardos ou negros, moradores de favelas ou periferias, evadidos da
escola, sendo a genitora a figura familiar responsável mais presente nas audiências
judiciais. Esse quadro revela os mesmos dados que são encontrados na estatística
atual e na prática dos profissionais do setor técnico do Judiciário. As meninas
também aparecem no documentário como autoras de atos infracionais e revelam a
equação: pobreza associada à baixa escolaridade, igual à gravidez precoce.
A medida de internação executada pelo “Instituto Padre Severino”, é um
verdadeiro flagrante de desrespeito ao ECA, que na época em que se passa o filme
comemorava 17 anos de vigência. Na filmagem, os adolescentes que ali cumpriam a
medida chamada socioeducativa eram submetidos a internação em local totalmente
inapropriado, insalubre, sem as mínimas condições de habitabilidade, sendo

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transportados de maneira vexatória em gaiola de camburões, além de passarem boa


parte do tempo ociosos nos quartos às vistas da Justiça que se apresenta vendada,
não enxerga, e está permissiva a todas estas infrações legais e violações de direitos
de adolescentes.
Dentro deste contexto, vislumbre-se como mudança do quadro atual, a
ruptura das expressões das desigualdades e exclusão na qual está fundamentada a
nossa sociedade. No dizer de Foucault (apud Hillesheim e Cruz, 2008) a população
encarcerada tem um papel importante na sustentabilidade do sistema capitalista,
alimentando as ações e intervenções de campos profissionais como de juízes,
promotores, psicólogos, assistentes sociais, policiais, etc. Para reflexão recomenda-
se o documentário “A servidão moderna”, lançado em 2009.
O ECA estabeleceu mudanças substanciais na compreensão que o Estado
despedia a criança e ao adolescente. Abarca em sua concepção a proteção integral
e engloba a peculiaridade de sua condição de pessoa em desenvolvimento. Todavia,
porém, observa-se ainda, que a exclusão social, ou a falta de politicas publicas, traz
uma dicotomia entre o que se preconiza o ECA e o atendimento dispensado ao
adolescentes.
Em recente matéria publicada no site G1, data 25/11/2016 “Em 1 ano, dobra
nº de menores cumprindo medidas no país, diz CNJ”, aponta, conforme dados do
Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei, que no país, atualmente,
189 mil cumprem medidas socioeducativas, sendo a grande maioria em liberdade,
constituindo o dobro em relação ao ano anterior, 96 mil. Entretanto este aumento
significativo pode ser justificado, em parte, pelo aumento de programas de Liberdade
Assistida e de serviços à comunidade, além de discussões sobre a redução da
maioridade penal. Abaixo segue na íntegra a matéria:

Dados do Conselho Nacional de Justiça obtidos pelo G1 mostram que há


hoje 189 mil adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no país, a
grande maioria em liberdade – o dobro do registrado um ano atrás (96 mil).
Os números constam do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito
com a Lei.
O CNJ deve disponibilizar ainda neste ano uma ferramenta online – similar
à do Cadastro Nacional de Adoção – para o público acessar os dados de
todo o Brasil.
Os adolescentes hoje no cadastro respondem por 222 mil atos infracionais –
isso porque um mesmo jovem pode ser responsabilizado por mais de um
delito. São 49.717 por tráfico de drogas (22,4% do total). Logo atrás
aparecem os que respondem por roubo qualificado (21,1%).

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Os dados mostram ainda que há 225 mil medidas socioeducativas aplicadas


– neste caso, o número também é maior que o de adolescentes, pois um
juiz pode aplicar mais de uma medida ao mesmo tempo. De acordo com o
cadastro, 36,5% das medidas se referem à liberdade assistida e outras
35,7% à prestação de serviços à comunidade.
Do total de medidas aplicadas, 29.794 são de internação sem atividades
externas (o que representa 13,2%). Isso tem feito com que unidades fiquem
superlotadas, como no Rio.
Para o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da
Criança e do Adolescente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana-SP, os dados podem ser explicados, em parte, pelo
aumento de programas de liberdade assistida e de serviços à comunidade
em municípios que até então não contavam com essas medidas. Isso se
deu principalmente com a implantação de Creas (Centros de Referência
Especializados de Assistência Social), responsáveis por supervisionar os
programas.
Alves diz, no entanto, que a discussão da redução da maioridade, aprovada
na Câmara e em voga na campanha eleitoral, e um aumento de notícias de
crimes envolvendo menores também ajudaram a alavancar apreensões e
medidas aplicadas. "Existe uma pressão sobre o Poder Judiciário para
aplicar medidas, especialmente de privação de liberdade", afirma.
A juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Sandra Aparecida
Torres tem a mesma opinião. “Houve um aumento indiscutível da violência
como um todo. E isso tem feito com que a sociedade tenha um anseio por
mais rigor, por mais punição. Há todo um movimento que permeia o Senado
e a Câmara pela redução da maioridade penal. Isso parece ter mobilizado a
todos”, afirma.

O QUE SÃO MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS


Medidas socioeducativas são as aplicáveis a adolescentes autores de
atos infracionais e estão previstas no artigo 112 do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Apesar de configurarem uma
resposta à prática de um delito, apresentam um caráter
predominantemente educativo, e não punitivo, como avertência e
prestação de serviços à comunidade
Tanto Sandra quanto Alves ressaltam, no entanto, que não acreditam que a
redução da maioridade possa reverter a tendência de aumento da
criminalidade infanto-juvenil. Sandra diz que em países onde houve a
redução da maioridade não houve diminuição.
“A exclusão social, ou a falta de políticas públicas, é que reflete diretamente
no aumento da criminalidade”, afirma a juíza. “No Brasil, preconiza-se em
relação ao adolescente privado de liberdade uma medida com caráter de
socioeducação, porque se entende que ele ainda está em formação. Mas,
na prática, isso não acontece. Os estabelecimentos prisionais pouco se
diferem daqueles onde há o cumprimento de medidas para menores.”
Ariel de Castro Alves afirma ainda que, em momentos de crise econômica
como o vivido no momento, a expectativa é que haja, de fato, um aumento
na criminalidade, especialmente entre os mais jovens. "Ninguém nasce
bandido. Os adolescentes são fruto do meio em que vivem. E com a falta de
emprego e a concorrência desleal do tráfico, que oferece uma rápida
ascenção econômica, fica difícil", diz.
Segundo ele, é preciso repensar o sistema e criar mecanismos que criem
oportunidades aos adolescentes, como programas de aprendiz.

Perfil
Dos 189 mil adolescentes no cadastro, 174 mil (mais de 90%) são do sexo
masculino. A maioria tem 17 ou 18 anos. O Estatuto da Criança e do
Adolescente prevê uma internação máxima de três anos – aos 21 anos, a

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liberdade é compulsória. Há atualmente 4.843 jovens com essa idade (2,5%


do total).
Segundo o CNJ, o cadastro é alimentado pelas próprias Varas da Infância e
Juventude. Ele existe desde 2014. Em um caso ou outro, pode haver um
número desatualizado, mas temporário – quando o juiz, por exemplo,
demora a “dar baixa” na guia de um adolescente que já cumpriu uma
medida.
Das mais de 238 mil guias expedidas pelos tribunais de Justiça e ativas hoje
no país, 73 mil (ou seja, 30%) são de São Paulo. Minas Gerais aparece em
segundo lugar, com 10% do total, e o Rio, em terceiro, com 9,7%. (Fonte:
Site G1)

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CONCLUSÃO

O presente material produzido pelos profissionais técnicos do Tribunal de


Justiça de São Paulo – Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários – é resultado de
dez encontros realizados, no ano de 2016, com o objetivo de discutir e aprofundar a
temática do risco e vulnerabilidade envolvendo crianças e adolescentes. Mais do
que isso, o presente trabalho resulta da experiência profissional e do empenho de
renomados profissionais, que dedicam grande parte de sua vida em prol da infância
e juventude.
Foi possível concluir que o risco está relacionado com questões de ordem
física, social ou psicológica, que resulta de ações individuais, que podem
comprometer a própria vida como, por exemplo, o uso de substancias, ou também
ser consequência de problemas familiares ou sociais, como a ausência de políticas
públicas, que valorizam a vida e respeitam a dignidade humana.
Neste sentido, elencamos os principais fatores de risco para crianças e
adolescentes, entre eles os vários tipos de violência, enfatizando que existem ainda
os fatores de proteção, que oferecem a garantia de um desenvolvimento mais
satisfatório, principalmente se a criança ou adolescente convive em um ambiente
familiar positivo, de forma a garantir afeto, saúde e segurança, lembrando que estes
fatores devem ser identificados, o mais precocemente possível, a fim de se evitar
medidas excepcionais de proteção.
Merece destaque a importância e necessidade de se desenvolver a
resiliência nesta população infanto-juvenil, como competência psicossocial, para que
estratégias emocionais para lidar com adversidades sejam desenvolvidas,
independentemente do ambiente modesto em que vivem.
Refletimos também sobre a atuação dos profissionais técnicos do Judiciário
diante das situações de risco e vulnerabilidades, valorizando a postura ética, em
detrimento do julgamento moral.
Observou-se ainda que a vulnerabilidade social está além da
responsabilização e culpabilização individual ou familiar, mas atenta para as
condições estruturais que impõem riscos às pessoas, levando-nos a refletir e
considerar o contexto cultural, político e social em que vivem. Lembramos que o
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conceito de vulnerabilidade muitas vezes está ligado à condição socioeconômica


menos favorecida, termo que acaba sendo utilizado de forma discriminatória para
determinada parcela da população, impactando ainda mais sua qualidade de vida.
Por fim, abordamos a atuação da rede, que merece investimentos a fim de
garantir a efetividade necessária para as famílias atendidas no Judiciário. No
entanto, esta mesma rede apresenta um avanço quando participa ativamente das
audiências concentradas, voltadas para a discussão de crianças e adolescentes em
situação de acolhimento institucional, momento ímpar no Judiciário, uma vez que
possibilita integrar todos os atores da rede de proteção, operadores do Direito,
técnicos do Judiciário, usuários e demais familiares, dando voz a todos e
possibilitando definir conjuntamente e de forma integrada as medidas legais mais
adequadas a serem adotadas.
Um tema tão complexo como Risco e Vulnerabilidade, que perpassa as áreas
Social, da Saúde e da Justiça não se esgota com a confecção deste documento,
mas este torna-se o primeiro passo de uma discussão que deve ser aprofundada e
atualizada, por meio de estudos científicos na área do desenvolvimento humano.

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