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CADERNO DOS

GRUPOS DE
ESTUDO

SERVIÇO SOCIAL
E
PSICOLOGIA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em caso de reprodução total ou


parcial do conteúdo deste Caderno, a
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Os artigos representam o
posicionamento de seus autores, não
o do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo nem o da Escola Judicial
dos Servidores.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Presidente
Desembargador MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES – EJUS


Diretor
Desembargador FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO

CADERNO DOS GRUPOS DE ESTUDOS


Serviço Social e Psicologia Judiciários

Número 16

SÃO PAULO
2019
Sumário

RACISMO E PRECONCEITO NOS SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL:


DANDO VISIBILIDADE AO TEMA ................................................................................ 12

Introdução ...................................................................................................................... 14
1 - Antes de tudo, raça existe? ....................................................................................... 16
2 - Racismo e estrutura .................................................................................................. 19
3 - Racismo institucional ................................................................................................. 21
4 - Dar visibilidade ao tema para promover ações de enfrentamento ao racismo
institucional ..................................................................................................................... 22
5 - Metodologia ............................................................................................................... 23
6 - Dados obtidos na pesquisa com serviços de acolhimento – formulário 1 .................. 24
7 - Dados obtidos na pesquisa com serviços de acolhimento – formulário 2 .................. 34
8 - Considerações finais ................................................................................................. 39
Referências .................................................................................................................... 41

A ESCUTA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM SEU PROCESSO DE ADOÇÃO ..


................................................................................................................................. 45

Introdução ...................................................................................................................... 48
1 - Leis e procedimentos que envolvem a escuta de crianças e adolescentes no
Judiciário ........................................................................................................................ 50
2 - A complexidade do trabalho dos psicólogos na realização da escuta de crianças e
adolescentes no judiciário .............................................................................................. 51
3 - Especificidades da escuta no âmbito do serviço social: procedimentos necessários 56
4 - A escuta dos familiares no âmbito do judiciário ......................................................... 57
5 - Ouvir ou escutar - reflexões....................................................................................... 59
6 - Conclusão ................................................................................................................. 65
Referências .................................................................................................................... 67

UM RETRATO DA ATUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL E DA PSICOLOGIA NA


PROCESSUALIDADE DA ADOÇÃO ............................................................................. 70

Introdução ...................................................................................................................... 74
1 - Processo de avaliação de candidatos pretendentes à adoção: um ponto ou uma
linha? .............................................................................................................................. 75
2 - Preparação de pretendentes à adoção ...................................................................... 79
3 - Avaliação e reavaliação de candidatos pretendentes à adoção ................................ 84
4 - Aproximação e estágio de convivência...................................................................... 87
5 - Conclusão ................................................................................................................. 91
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Referências .................................................................................................................... 94

SOBRE O CONFLITO NOS CASOS ALTAMEMTE LITIGIOSOS E A IMPORTÂNCIA


DE DIRECIONAR O OLHAR ATRAVÉS DO TEMPO .................................................... 96

Dedicatória ..................................................................................................................... 98
Agradecimentos .............................................................................................................. 99
Introdução .................................................................................................................... 101
1 - Perspectivas teóricas sobre o conflito ..................................................................... 103
2 - A perícia e os métodos alternativos de resolução de conflitos ................................ 107
2.1 – A mediação .......................................................................................................... 108
2.2 - Constelação familiar ............................................................................................. 110
3 - Sobre o tempo processual e o tempo subjetivo ....................................................... 110
4 - Considerações finais ............................................................................................... 114
Referências .................................................................................................................. 115

COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL DAS ASSISTENTES SOCIAIS E


PSICÓLOGAS DO TJ-SP: DESAFIOS E QUESTÕES ................................................ 118

Introdução .................................................................................................................... 121


1 - Percurso histórico .................................................................................................... 123
2 - Desafios atuais da prática profissional .................................................................... 129
2.1 - Gestão de pessoas............................................................................................... 130
2.2 - Questões éticas .................................................................................................... 135
2.2.1 - Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ................................. 139
2.2.2 - Varas da Infância e Juventude .......................................................................... 139
2.2.3 - Varas de Família e Sucessões .......................................................................... 140
2.3 - Organização política ............................................................................................. 141
2.4 - Recursos materiais ............................................................................................... 141
3 - Considerações finais ............................................................................................... 144
Referências .................................................................................................................. 147

AVALIAÇÃO PRÉVIA PSICOSSOCIAL PARA FINS DE DEPOIMENTO ESPECIAL. 149

Introdução .................................................................................................................... 152


1 - Objetivos ................................................................................................................. 154
2 - Metodologia ............................................................................................................. 154
2.1 - Avaliações prévias ao depoimento especial ......................................................... 155
2.2 - Respostas aos quesitos ....................................................................................... 158
3 - Discussão do caso .................................................................................................. 160
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3.1 - Breve descrição, procedimentos e análise do caso ilustrativo ....................................


............................................................................................................................... 160
3.2 - Procedimentos utilizados na avaliação psicológica prévia ao depoimento especial ...
............................................................................................................................... 161
4 - Considerações finais ............................................................................................... 163
Referências .................................................................................................................. 164

A CATEGORIA SUBJETIVIDADE E AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL:


ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS NA ELABORAÇÃO DO ESTUDO SOCIAL
NO ÂMBITO DO JUDICIÁRIO ..................................................................................... 166

Introdução .................................................................................................................... 169


1 - A subjetividade na relação entre o marxismo e a psicanálise .................................. 171
2 - Trabalho e subjetividade: fatores contributórios ao adoecimeto da população
trabalhadora ................................................................................................................. 180
3 - Considerações finais ............................................................................................... 188
Referências .................................................................................................................. 189

DESACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DO ADOLESCENTE E SEU RETORNO À


FAMÍLIA ....................................................................................................................... 192

Introdução .................................................................................................................... 194


1 - Conceito de adolescência ....................................................................................... 195
2 - Adolescência e institucionalização .......................................................................... 202
2.1- Acolhimento institucional: contextualização desta medida de proteção ................. 202
2.2 - O retrato do institucionalizado: mapeamento estatístico....................................... 204
2.3 - O percurso da desinstitucionalização ................................................................. 2047
2.4 - Marcas da institucionalização ............................................................................... 212
2 - Desafios no retorno à família e considerações ........................................................ 218
Referências .................................................................................................................. 221

APROXIMAÇÕES ENTRE JUSTIÇA RESTAURATIVA E A PARTICIPAÇÃO DE


ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS JUDICIÁRIOS NAS PRÁTICAS
RESTAURATIVAS ....................................................................................................... 225

Introdução .................................................................................................................... 227


1 - A justiça Restaurativa como um conjunto de princípios e práticas .......................... 231
1.1 - Princípios da Justiça Restaurativa ........................................................................ 231
1.2 - Práticas e procedimentos restaurativos ................................................................ 234
2 - Os códigos de ética do Serviço Social e da Psicologia e a Justiça Restaurativa ..... 235
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2.1 - Tecendo reflexões sobre os princípios presentes no Código de Ética do Serviço


Social e na Justiça Restaurativa ................................................................................... 236
2.2 - Código de Ética da Psicologia e a base principiológica da Justiça Restaurativa:
aproximações e tensionamentos .................................................................................. 242
3 - Atuação das (os) facilitadoras (es) nas práticas restaurativas a partir das dimensões
da Justiça Restaurativa: relacional, institucional e social .............................................. 245
4 - Conclusão ............................................................................................................... 250
Referências .................................................................................................................. 253

“DISCUTIR O TEMA RAÇA AINDA É TABU E ASSUSTA”, MAS NÃO PODEMOS


ABRIR MÃO, JÁ QUE NOSSOS ESTUDOS SOCIAIS DEVEM TRAZER OS SUJEITOS
EM SUAS DIMENSÕES DE CLASSE, GÊNERO E RAÇA! ........................................ 256

Introdução .................................................................................................................... 258


1 - O predomínio não é da classe? ............................................................................... 260
2. Qual a contribuição do tema para o cotidiano do trabalho da(o) assistente social nas
demandas da justiça de família? .................................................................................. 263
3 - Entendendo nossa dificuldade em coletar o quesito raça/cor nos estudos sociais .. 266
4 - Conclusão ............................................................................................................... 273
Referências .................................................................................................................. 276

INSTRUMENTOS INTERDISCIPLINARES DE AVALIAÇÃO PARA PERÍCIAS


PSICOLÓGICA E SOCIAL ........................................................................................... 279

Introdução .................................................................................................................... 281


Instrumentos interdisciplinares de avaliação para perícias psicológica e social ........... 281
1 - Instrumento: I.F.V.D. (Inventário de Frases no Diagnóstico de Violência Doméstica
contra Crianças e Adolescentes) .................................................................................. 282
2 - Instrumento: desenho estória .................................................................................. 286
3 - Instrumento: jogos - o uso de jogos como estratégias para a avaliação psicossocial
de crianças e adolescentes em questões de vara de família ........................................ 290
4 - Instrumento: visita domiciliar ................................................................................... 293
4.1 - Noções sobre vulnerabilidade e risco social ......................................................... 293
4.2 - A visita domiciliar, a perspectiva interdisciplinar e a capacidade protetiva do estado .
............................................................................................................................... 296
5 - Conclusão ............................................................................................................... 299
Referências .................................................................................................................. 300

O MACHISMO INSTITUCIONAL NA REDE DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM


SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA......................................................................................... 303
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Introdução .................................................................................................................... 306


1 - Patriarcado, racismo e classe social........................................................................ 308
2 - A dominação masculina e a violência institucional .................................................. 313
3 - Trajetória histórica da violência contra a mulher: avanços e retrocessos ................ 316
4 - Retrato da violência institucional e relato de experiências ....................................... 322
4.1 - Procedimentos metodológicos .............................................................................. 322
4.2 - Levantamento de dados ....................................................................................... 322
4.3 - Relatos de experiências ....................................................................................... 335
5 - Considerações finais ............................................................................................... 338
Referências .................................................................................................................. 340

DA CONJUGALIDADE À PARENTALIDADE: ASPECTOS SOCIAIS E


PSICOLÓGICOS .......................................................................................................... 342

Introdução .................................................................................................................... 344


O princípio do melhor interesse da criança ................................................................... 345
Conjugalidade............................................................................................................... 347
Multiparentalidade ........................................................................................................ 359
Negatória de paternidade ............................................................................................. 362
Avaliação psicológica das relações parentais ............................................................... 365
Avaliação social das relações parentais ....................................................................... 370
Considerações finais .................................................................................................... 375
Referências .................................................................................................................. 376

A DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DURANTE O PROCESSO DE


ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA ...................................................................................... 382

Introdução .................................................................................................................... 384


1 - Definição de termos conceituais: desistência x devolução ...................................... 385
2 - Aspectos legais acerca da devolução de crianças e adolescentes no estágio de
convivência ................................................................................................................... 386
3 - Atuação da equipe técnica no processo de adoção. ............................................... 387
3.1 - O acompanhamento do estágio de convivência ................................................... 389
4 - Consequências da devolução de crianças e adolescentes no curso do processo de
adoção .......................................................................................................................... 392
5 - Considerações finais ............................................................................................... 396
Referências .................................................................................................................. 398

ATUAÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA DO JUDICIÁRIO NA METODOLOGIA DO


DEPOIMENTO ESPECIAL: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO DA REALIDADE .............. 400

Introdução .................................................................................................................... 403


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1 - Contextualização do depoimento especial: aproximação histórica da normativa


internacional e brasileira ............................................................................................... 405
2 - A prática das comarcas em relação ao depoimento especial .................................. 409
2.1 - Entrevistas prévias ............................................................................................... 410
2.2 - Tomada do depoimento especial .......................................................................... 412
2.3 - Documento final.................................................................................................... 413
2.4 - Dados levantados sobre as práticas ..................................................................... 416
3 - Conclusão ............................................................................................................... 423
4 - Referências ............................................................................................................. 425

O DESCOMPASSO DO TEMPO NO ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES ........................................................................................................ 428

Introdução .................................................................................................................... 431


1 - Por que a família? ................................................................................................... 431
2 - Institucionalização ................................................................................................... 434
3 - Atuação profissional junto às famílias...................................................................... 437
4 - Exceção (ou regra?) ................................................................................................ 442
5 - Conclusão ............................................................................................................... 444
Referências .................................................................................................................. 447

REFLEXÕES SOBRE O DEPOIMENTO ESPECIAL ................................................... 450

Introdução .................................................................................................................... 452


1 - Depoimento especial: narrativa sobre sua trajetória histórica ........................................
............................................................................................................................... 453
2 - O depoimento especial: desafios contemporâneos da prática profissional de
assistentes sociais e de psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ... 455
2.1 - A escuta especializada e a Rede de Proteção ..................................................... 460
2.2 - O protocolo CIJ nº 00066030/11........................................................................... 464
2.3 - A entrevista no depoimento especial .................................................................... 466
3 – Considerações finais ............................................................................................ 4669
Referências .................................................................................................................. 471

O DEPOIMENTO ESPECIAL DE CRIANÇA E/OU ADOLESCENTE: SOB A ÉGIDE DA


LEI?.............................................................................................................................. 473

Introdução .................................................................................................................... 475


Aspectos históricos, panorama internacional e marco normativo .......................................
............................................................................................................................... 475
Lei nº 13.431/2017: algumas considerações ................................................................ 478
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Posionamento dos conselhos profissionais de Serviço Social e Psicologia .................. 482


Entrevista forense: Protocolo Nichd (National Institute of Child Health and Human
Development) ............................................................................................................... 485
Considerações finais .................................................................................................... 487
Referências .................................................................................................................. 489

AVALIAÇÃO PSICOSSOCIAL: FATORES DE RISCO E DE PROTEÇÃO ................. 494

Introdução .................................................................................................................... 496


Fatores de risco e proteção nas avaliações psicológicas ............................................. 497
Considerações .............................................................................................................. 515
Referências .................................................................................................................. 516

MODIFICAÇÃO DE GUARDA NAS VARAS DE FAMÍLIA: DEMANDAS E DESAFIOS


DA AVALIAÇÃO INTERDISCIPLINAR ........................................................................ 519

Introdução .................................................................................................................... 521


1 - Guarda: papel dos pais e do Estado ....................................................................... 522
2 - Motivos ensejadores da modificação de guarda ...................................................... 526
3 - Desafios e demandas da avaliação psicossocial em casos de disputa de guarda .. 530
4 - Conclusão ............................................................................................................... 535
Referências .................................................................................................................. 536

COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS: DESAFIOS DO TRABALHO EM


ARTICULAÇÃO COM A REDE.................................................................................... 539

Dedicatória ................................................................................................................... 541


Agradecimentos ............................................................................................................ 542
Introdução .................................................................................................................... 543
Dos desafios profissionais cotidianos à proposta de trabalho articulado em Rede ....... 544
Contextualização histórica e reflexões iniciais .............................................................. 547
Contribuições de Murray Sidman.................................................................................. 551
Contribuições de Michel Foucault ................................................................................. 553
Considerações finais .................................................................................................... 560
Referências .................................................................................................................. 561

A VOZ DA CRIANÇA NO PROCESSO DE AVALIAÇÃO PSICOSSOCIAL ................ 562

Introdução .................................................................................................................... 565


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Aspectos do desenvolvimento infantil em interface com os determinantes sociais ....... 566


Desenvolvimento da linguagem: alguns apontamentos ................................................ 567
Aspectos do desenvolvimento do pensamento ............................................................. 568
Memória: dados sobre seu funcionamento, sua constituição e interferências .............. 570
Determinantes sociais e condições de desenvolvimento infantil ................................... 572
Considerações sobre a avaliação das expressões da criança...................................... 576
O registro da “voz” da criança nos laudos técnicos ...................................................... 586
Considerações da Psicologia ....................................................................................... 586
Considerações do Serviço Social ................................................................................. 589
A “voz” da criança no laudo psicossocial ...................................................................... 592
Considerações finais .................................................................................................... 594
Referências .................................................................................................................. 595

A ARTICULAÇÃO DOS SERVIÇOS DA REDE NA REINTEGRAÇÃO FAMILIAR DE


CRIANÇAS E ADOLESCENTES ACOLHIDOS ........................................................... 599

introdução ..................................................................................................................... 601


1 - Do orfanato à instituição de acolhimento: breve trajetória e legislação do acolhimento
no Brasil ....................................................................................................................... 601
1.1 - A família e os motivos que ensejam o acolhimento de crianças e adolescentes .. 606
2 - Levantamento das redes de proteção das comarcas .............................................. 609
2.1 - Comarca de Presidente Bernardes....................................................................... 610
2.2 - Comarca de Presidente Prudente......................................................................... 611
2.3 - Comarca de Regente Feijó ................................................................................... 612
2.4 - Comarca de Martinópolis ...................................................................................... 614
3 - Intersetorialidade e reintegração familiar: a importancia do trabalho em Rede no
processo de reintegração familiar ................................................................................. 614
4 – Desafios para a efetivação do processo de reintegração familiar ........................ 6148
5 – Considerações finais .............................................................................................. 614
Referências .................................................................................................................. 624

O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO


MEDIDA DE PROTEÇÃO: REFLEXÕES E DIRETRIZES SOBRE A REINTEGRAÇÃO
FAMILIAR E A COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA EXTENSA .............................................. 627

Agradecimentos ............................................................................................................ 630


Introdução .................................................................................................................... 631
1 - Desenvolvimento ..................................................................................................... 631
1.1. - Proteção integral e garantia de direitos de crianças e adolescentes: um novo
paradigma .................................................................................................................... 634
1.2 - A interlocução profissional entre a equipe das instituições de acolhimento e os
técnicos do Judiciário ................................................................................................... 637
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1.3 - O direito à convivência familiar das crianças e dos adolescentes em acolhimento


institucional: a reintegração familiar e a colocação em família extensa ........................ 640
2 - Conclusão ............................................................................................................... 645
Referências .................................................................................................................. 647

PAPEL DO PSICÓLOGO E ASSISTENTE SOCIAL JUDICIÁRIO NA ATUAÇÃO


JUNTO À REDE DE GARANTIA DE DIREITOS – EDUCAÇÃO, ASSISTÊNCIA
SOCIAL E SAÚDE ....................................................................................................... 650

Introdução .................................................................................................................... 653


1 - O sistema de Justiça e a garantia de direitos: a atuação da equipe técnica nos casos
de vulnerabilidade social .............................................................................................. 654
2 - Articulação em Rede: dificuldades e possibilidades ................................................ 664
3 - Análise do filme – “Sonhos Roubados”.................................................................... 666
4 - Considerações finais ............................................................................................... 668
Referências .................................................................................................................. 671

AS TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA, O LITÍGIO E A JUDICIALIZAÇÃO DOS


CONFLITOS: PERSPECTIVAS DA ATUAÇÃO DO SETOR TÉCNICO JUDICIÁRIO 675

Introdução .................................................................................................................... 678


1 - As transformações na família: expectativas de gênero, conjugalidades e
parentalidades .............................................................................................................. 679
2 - O litígio e a judicialização dos conflitos familiares ................................................... 684
3 - Considerações finais ............................................................................................... 691
Referências .................................................................................................................. 695
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RACISMO E PRECONCEITO NOS SERVIÇOS


DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL:
DANDO VISIBILIDADE AO TEMA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E FAMILIAR”

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2019

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COORDENAÇÃO
Cássia Maria Rosato – Psicóloga Judiciário – Comarca de Vinhedo

Elen Tavares de Sá – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

AUTORES
Anne de Fátima Araújo Aguiar – Assistente Social Judiciário – Foro Regional V - São
Miguel Paulista

Cássia Maria Rosato – Psicóloga Judiciário – Comarca de Vinhedo

Damaris Roma Matos – Psicóloga Judiciário – Foro Regional V - São Miguel Paulista

Denise Cristina Matheiski Alkmim – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tatuí

Diogo Pataro dos Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de Francisco Morato

Elen Tavares de Sá – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

Jamile Santos Souza Muller – Psicóloga Judiciário – Comarca de Porto Feliz

Jaqueline dos Santos Sousa Araújo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santana de


Parnaíba

Letícia de Souza Lucas – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes

Márcia Cristina Campos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica da


Serra

Marielle Anne Morais Soares – Assistente Social Judiciário – Foro Central João
Mendes

Marina Tomé Teixeira dos Santos – Assistente Social Judiciário – Foro Regional I
Santana

Mônica Cordeiro de Azevedo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapevi

Thiago Simoni – Assistente Social Judiciário – Foro Regional V - São Miguel Paulista

Valquíria Gomes de Moraes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tremembé

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INTRODUÇÃO

A renovação na composição do Grupo de Estudos Acolhimento


Institucional, no ano de 2019, fomentou novas discussões a respeito das vicissitudes
da medida de acolhimento institucional, entendida como medida de proteção prevista
no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA com vistas a resguardar estes
sujeitos sempre que seus direitos forem ameaçados ou violados.
Nos encontros foram recorrentes os relatos de situações em que as
crianças e os adolescentes acolhidos eram e/ou são submetidas a circunstancias
estranhas, senão aviltantes que os revitimizam. Situações que aos olhos do
cotidiano são ignoradas, mas que podem trazer novas angustias e sofrimentos aos
acolhidos.
Para tanto, buscamos embasamento teórico por meio da leitura de textos
e artigos sobre o assunto, além de vídeos do Instituto Fazendo História – IFH, que
apresentam definições de conceitos interessantes a temática. Desse modo,
pudemos problematizar as ideias de raça, preconceito, discriminação, assim como
racismo, racismo estrutural e racismo institucional.
Ainda, diante da escassez de materiais e produções científicas que
retratassem o fenômeno do racismo especificamente no contexto do acolhimento
institucional, convidamos a pesquisadora Márcia Campos Eurico para apresentar os
dados da sua pesquisa de doutorado intitulada “Preta, preta, pretinha: o racismo
institucional no cotidiano de crianças e adolescentes negros/as acolhidos/as” em
uma de nossas reuniões. Avaliamos que seria importante conhecer de modo mais
aprofundado um trabalho que articulasse racismo e acolhimento institucional,
afetando diretamente a realidade dessas crianças e adolescentes.
Um dos aspectos ressaltados pela pesquisadora foi caráter de
naturalização do racismo, especialmente por parte dos profissionais dos serviços de
acolhimento. Tal constatação derivou da compreensão de que, dentre os
profissionais que participaram do estudo, a maioria não percebia suas falas e/ou
atitudes como sendo racistas.
Também foi abordada a história do racismo na Europa, no Brasil, na
atualidade e como isso contribui para o processo de esgarçamento dos vínculos
familiares. Na escravidão, as famílias negras perdiam seus nomes, sobrenomes, sua
cultura e tradição, havendo o reflexo disso na história atual que tende a gerar maior
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risco de desproteção quando a proteção social se baseia em redes familiares. O


processo de miscigenação e o genocídio negro também foram discutidos para
compreender como esses pontos influenciam na dinâmica em relação à população
negra e as repercussões disso nas suas famílias.
No contexto específico do acolhimento institucional, a questão dos
cabelos de crianças e adolescentes negros/as emerge como indicio central, pois se
trata de algo que exige cuidados cotidianos e é possível perceber, tanto através dos
dados colhidos na tese como nos casos concretos discutidos no grupo, que a
maioria dos profissionais dos serviços de acolhimento tende a ofertar cuidados que
não atendem a diversidade cultural.
O objetivo, portanto, deste trabalho é de levantar questões a respeito da
violência institucional, em especial, do racismo institucional que pode incidir nas
instituições de acolhimento de crianças e adolescentes. Deste modo, elaborou-se
um questionário eletrônico sob dois enfoques, sendo o primeiro, o levantamento de
dados em relação ao público das instituições em sua diversidade étnico-racial,
cultural e social, e o segundo, apreciar se estes profissionais conhecem este
conceito e, principalmente, se reconhecem este tipo de violência no cotidiano da
instituição em que atuam.
Os questionários foram encaminhados a alguns serviços de acolhimento
de determinados municípios, de acordo com os locais de atuação dos profissionais
que participam do grupo de estudos. Alguns municípios tiverem de receber
autorização do/a magistrado/a da Comarca para a aplicação. A participação das
instituições de acolhimento e de seus profissionais na pesquisa foi facultativa e
orientada quanto a seus objetivos.

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1 - ANTES DE TUDO, RAÇA EXISTE?

Inicialmente, é importante destacar que o conceito de raça está situado


num campo semântico amplo, com diversas possibilidades de significação e uso a
depender do recorte teórico e epistemológico que se faça.
Para elaboração deste artigo, procuramos realizar um breve percurso
histórico, localizando o termo raça em momentos diferentes, analisando seu
desdobramento nos diferentes contextos sócio-políticos.
Munanga (2003) lembra que a variabilidade humana é algo facilmente
perceptível e que o conceito de raça teria servido ao interesse propriamente humano
em categorizar, classificar e segmentar. Contudo, segundo o autor, esse ímpeto de
classificação teria caído no que ele chama de “racialismo”, ensejado pela
hierarquização. O autor assevera que a origem etimológica do termo raça é “razza”,
do italiano, que por sua vez tem sua origem da palavra latina “ratio”, que significa
categoria, tipo, sorte.
A primeira notícia que se tem da construção do conceito de raça foi com
os trabalhos do sueco naturalista Cald Von Linné (1707-1778) que o utilizou para
realizar 24 classificações de raças ou classes. Inicialmente, raça era uma categoria
usada somente na Zoologia e Botânica.
No latim medieval o termo raça passou a designar a descendência e
linhagem de pessoas com características comuns. Em 1684 François Bernier
emprega o termo no sentido moderno para classificar grupos humanos que
contrastam entre si por suas características físicas, o que se tornou um processo
que ganharia corpo ao longo da história.
Munanga (2003) recorda que o conceito de “raças “puras” foi transportado
da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição
entre classes sociais (Nobreza e Plebe), sem que houvesse diferenças
morfobiológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes.
Ainda que o recorte histórico diga de um período remoto e de um contexto
sociogeográfico radicalmente diferente do Brasil, há no bojo da explicação acima
alguns pontos que permitem entender que o conceito de raça, desde o princípio,
serviu para dominação ideológica, o que persiste ainda hoje no imaginário social.

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Foi apenas no século XVIII que a cor da pele foi tomada como critério
principal para divisão das chamadas raças, sendo a humanidade dividia, a partir de
então, em três categorias conhecidas ainda hoje: brancos, negros e amarelos. Já no
século XIX foram adicionados outros dados fenotípicos que constituem uma raça,
tais como a forma do nariz, dos lábios, queixo e cabelo. O autor lembra que a
classificação da humanidade em raças culminou numa teoria que, àquela época,
tinha validade científica, a raciologia, que cresceu e ganhou notoriedade ao longo do
século XX.
A crítica feita por Munanga (2003) a esta pseudoteoria gira em torno do
fato de ela ter um conteúdo mais doutrinário que científico, servindo antes para a
dominação e exclusão, do que para a explicação dos presumidos tipos humanos.
Foram estas teorias que, inclusive, depois de circularem pelos meios acadêmicos e
se alastrar pelo discurso social, que fundamentaram o nazismo e seus extermínios
durante a Segunda Guerra Mundial.
O autor retoma que alguns biólogos procuraram excluir o conceito de raça
de todos os dicionários científicos sob o argumento de esta é uma categoria analítica
de pouca precisão. Porém, o conceito perdura até hoje pela compreensão das
ciências sociais de que, embora não haja razões para afirmar a existência de uma
raça pela via da Biologia Humana, é inegável que há uma realidade social e política
que toma raça como categoria social e que aí é que reside a operacionalidade deste
conceito.
ALMEIDA (2018) em seu livro “O que é Racismo Estrutural?” analisa que
a compreensão sobre “raça” passa pelo entendimento do processo ideológico que
forja a dominação de uma forma estrutural na sociedade.
Levando em conta essa dimensão estrutural que culmina no racismo, o
autor enfatiza que “raça” é, portanto, também um conceito relacional. Ou seja, “raça”
é uma noção que instrui e rege as relações dentro de uma estrutura social na qual
circulam diferentes forças e jogos de poder. Nas palavras do autor “raça” é um
conceito:

cujo significado só pode ser recolhido em perspectiva relacional. Ou


seja, raça não é uma fantasmagoria, um delírio ou uma criação da
cabeça de pessoas mal intencionadas. É uma relação social, o que
significa dizer que a raça se manifesta em atos concretos ocorridos
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no interior de uma estrutura social marcada por conflitos e


antagonismos. (ALMEIDA, 2018, p. 40).

Complementarmente, a essas visões, buscamos debater a definição de


“raça” aproximando-nos da discussão proposta por Guimarães (2002) que,
paradoxalmente, coloca a noção de raça como fundamento da luta antirracista, pois,
se por um lado o conceito de raça pode ser considerado um marcador do racismo
estrutural e um regulador da inferiorização dos negros, de outro, raça é considerada
por Guimarães (2002) como uma categoria de análise importante para superação
das desigualdades por oferecer condições de enfrentamento a partir da afirmação
social e da consolidação de um discurso identitário que dá lugar social aos negros e
à sua luta por erradicação das desigualdades.
O autor defende que:

“raça” é não apenas uma categoria política necessária para organizar


a resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica
indispensável: a única que revela que as discriminações e
desigualdades que a noção brasileira de “cor” enseja são
efetivamente raciais e não apenas de “classe”. (p. 23)

O argumento do autor repousa sobre a premissa de que, de fato, não há


raças biológicas e que não é possível encontrar critérios científicos para concluir o
que seja “raça” e que esta categoria de análise só tem possibilidade de existir no
mundo social, ou seja, nas relações e nas trocas simbólicas que se dão na vida em
sociedade.
Assim, apesar de não haver critérios ou preceitos biológicos que
garantam a conceituação de “raça”, existe uma afirmação social das identidades
raciais, sendo o conceito de raça um orientador que rege as relações e que se faz
presente nos discursos e nas práticas cotidianas da vida em sociedade.
Outros autores concordam que a definição de raça não se configura a
partir de conceitos biológicos. Rocha (2016) também avalia que a denominação de
raça se dá a partir de uma construção sócio histórica com bases conservadoras e
sem fundamentações científicas: "Raça, entendida nesta perspectiva, é uma

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categoria complexa, multifacetada e indispensável ao debate sobre discriminação


racial e racismo." (2016, p. 9).
Guimarães (2002) argumenta que não devemos abrir mão do conceito de
“raça”, pois isso só será possível quando não existirem mais as identidades raciais.
Dar importância à categoria “raça” compreende, no Brasil, o recrudescimento do
enfrentamento da discriminação de inferiorização dos grupos oprimidos. Nas
palavras do autor: “a retomada da categoria de raça pelos negros correspondeu, na
verdade, à retomada da luta antirracista em termos práticos e objetivos” (pg. 51).
Assim, o combate ao racismo e à discriminação pela cor de pele só é
possível com o fortalecimento do discurso identitário negro, com a demarcação da
noção de raça e com a possibilidade dos grupos oprimidos negros reclamarem para
si a premissa de que são uma raça, não biológica, mas social e que se reconhece
como tal em função de todos elementos históricos, políticos, sociais e simbólicos que
regem sua vida em sociedade.

2 - RACISMO E ESTRUTURA

Para entender o racismo no Brasil, é de suma importância considerar o


mito da democracia racial enquanto um fenômeno singular no contexto brasileiro.
Trata-se de uma concepção construída pelo sociólogo Gilberto Freyre
(1933) de que haveria, no cenário brasileiro, uma democracia racial, ou seja, uma
convivência harmônica entre os diferentes grupos ditos racializados. Tal visão
predominou no país, sendo amplamente difundida desde o fim do século XIX.
Essa ideia invisibiliza os conflitos existentes entre senhores e escravos,
assim como colaboram no dilaceramento da identidade cultural dos africanos e
descendentes, nos processos excludentes após a abolição da escravatura e na
negação dos movimentos de resistência da população negra (GOULART; TANNÚS,
2007).
Diversas críticas foram construídas em relação a essa ideia de
democracia racial, ao longo do século XX, evidenciando os conflitos e a problemática
vivenciada pela população negra e seus descendentes. Nesse sentido, cunhou-se a
perspectiva de que a democracia racial não passaria de um mito, na medida em que
tenta invisibilizar toda a realidade conflituosa e complexa advinda dos séculos de

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escravidão vivenciados no Brasil, assim como as consequências posteriores à Lei


Áurea em 1888, no país.
Guimarães lembra que, na história recente do Brasil, no período que vai
de 1930 a 1970, as raças foram perdendo lugar no discurso social, o que caducou
também na perda do senso identitário racial, que também enfraqueceu o combate à
discriminação. Isso dá espaço para um racismo velado, que não explicita suas
artimanhas e reúne forças porque se serve justamente da impossibilidade de
enfrentamento dos grupos oprimidos que estão alheios às linhas de poder que os
inferioriza e alije de vários setores da vida social.
Rocha (2016) aponta racismo como uma construção social na qual
consiste a crença da existência de hierarquização de acordo com as raças:

é a ideia de que há raças e de que elas são naturalmente inferiores


ou superiores a outras em uma relação fundada na ideologia de
dominação. As características fenotípicas são utilizadas como
justificativa para a atribuição de valores positivos ou negativos,
atribuindo a essas diferenças a justificativa para a interiorização de
uma raça em relação a outra (p.10-11).

Para Almeida (2018), o racismo deve ser concebido como uma forma de
estrutura da sociedade, se desdobrando em um processo político e histórico. O autor
define racismo como um elemento que faz parte das relações e das práticas sociais,
não se constituindo como uma patologia social, mas sim como uma forma de
funcionamento “normal” da sociedade. Afirma que “racismo é estrutura” e que as
próprias instituições (políticas, jurídicas, familiares, etc.) que compõem a vida social
tomam o racismo como regra e como balizador para suas ações e práticas.
É apresentada pelo autor uma perspectiva sobre o racismo que o concebe
como coordenada das relações e que “cria as condições sociais para que, direta ou
indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma
sistemática”. (pg. 39). Assim, o paradigma estrutural sinaliza que o racismo coloca
os sujeitos inferiorizados pela raça como parte integrante e necessária para que todo
sistema social funcione.

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Seguindo o pensamento de Anthony Giddens, Almeida (2018) lembra que


a estrutura não apenas exclui e restringe acesso, mas, paradoxalmente, viabiliza o
funcionamento das estruturas sociais.

3 - RACISMO INSTITUCIONAL

Almeida (2018) refere que, para se compreender a questão racial,


podemos debater o racismo considerando as concepções individualista, institucional
e estrutural. A concepção individualista, para o autor, considera o racismo um
fenômeno psicológico ou ético de caráter coletivo ou individual atribuído a grupos
isolados. O autor sublinha que, embora haja a necessidade de responsabilização
daqueles que praticam o racismo, essa concepção individualista é limitada.
O conceito de racismo institucional foi cunhado pela primeira vez por
ativistas do grupo Panteras Negras, em 1967, nos Estados Unidos para
problematizar como o racismo se manifesta nas diferentes organizações,
ultrapassando o nível de comportamentos individuais (GELEDÉS, 2013).
De forma sintética, podemos compreender o racismo institucional como a
incapacidade das organizações em garantir um serviço profissional apropriado a
todas as pessoas atendidas.
Goulart e Tannús (2007) são mais assertivos quando afirmam que o
racismo institucional significa o fracasso das instituições no atendimento adequado
das pessoas, em função de sua cor/etnia e/ou origem étnico-racial, podendo
manifestar-se por meio de normas, práticas e condutas adotadas no cotidiano de
trabalho das instituições que resultam em ignorância, desatenção, discriminação
racial e preconceito junto a esse público específico.
Tendo em vista essa compreensão de que há imposições de práticas e
condutas racistas por parte das instituições, que transcendem as atuações
individuais, ALMEIDA (2018) esclarece que esse racismo institucional é de algum
modo vinculado à ordem social que as instituições objetivam resguardar. Logo,
enaltece que as instituições são racistas porque a sociedade é racista, porque o
racismo está presente na vida cotidiana e é decorrente da própria estrutura social,
significando ser a regra e não a exceção.

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O racismo, para o autor, é tido como o padrão habitual com que se


constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares. Assim,
justamente pela compreensão de que o racismo é parte do processo e da ordem
social que devemos considerá-lo como sendo estrutural, como sendo processo
histórico e político que sistematicamente discrimina grupos racialmente identificados.
E, para seu enfrentamento é necessária a reflexão e a atuação com vistas à
alterações densas nas relações políticas, sociais e econômicas, para além das
medidas nos âmbitos individuais e institucionais.

4 - DAR VISIBILIDADE AO TEMA PARA PROMOVER AÇÕES DE


ENFRENTAMENTO AO RACISMO INSTITUCIONAL

No Brasil, o racismo foi criminalizado conforme consta no artigo 5º, inciso


XLII da Constituição Federal de 1988, sendo crime imprescritível e inafiançável
sujeito a pena de reclusão. Posteriormente foi promulgada a lei 7.719/1989 que
define crimes de preconceito de raça ou cor.
Em 2005 foi criado o Programa de Combate ao Racismo Institucional
enquanto um conjunto de ações articuladas em diversos níveis na esfera pública
para prevenir e enfrentar práticas institucionais racistas. Essa parceria contou com a
participação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR),
Ministério Público Federal, Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana de
Saúde e o Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional e Redução
da Pobreza, tendo como agente financiador o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). As principais ações desse programa focaram o campo da
saúde e contou com uma primeira etapa de diagnóstico junto aos trabalhadores do
setor público para posteriormente propor ações (LOPÉZ, 2012).
Os principais resultados desse diagnóstico foram analisados em duas
dimensões distintas: relações interpessoais e nível programático e institucional. Na
primeira dimensão, os dados apontaram a existência de um tratamento diferenciado
e desigual entre brancos e negros nas relações de trabalho, a dificuldade de
reconhecimento da competência de pessoas negras em cargos de gestão; a
discriminação dos usuários em função da sua origem étnicorracial e a falta de
conhecimento sobre a diversidade cultural e religiosa de matrizes africanas. Já em
relação à segunda dimensão, foi possível perceber a ausência de normas, práticas e
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comportamentos que estimulem a equidade; a invisibilidade da diversidade e das


desigualdades étnico-raciais nos diagnósticos e nos programas das Secretarias de
Saúde, assim como ausência de análises específicas sobre esse público no campo
da saúde (LOPÉZ, 2012).
Torna-se possível constatar como o tema do racismo permanece difuso e
invisibilizado.
No nível institucional, ações de sensibilização com os agentes públicos
são imprescindíveis para, primeiramente, trazer à tona o assunto e, em seguida, ser
viável a construção de ações que promovam equidade e diminuam práticas racistas
nas organizações.
De modo análogo, nosso interesse em pesquisar o racismo nos serviços
de acolhimento teve como diretriz conhecer a opinião das equipes que cuidam de
crianças e adolescentes acolhidos/as, dando visibilidade à questão. Nesse sentido, é
preciso inicialmente conhecer o contexto para então problematizar o tema e elaborar
ações que contribuam para a equidade junto ao público atendido, mas também em
relação aos trabalhadores/as da área.
As definições – raça, racismo, racismo estrutural e racismo institucional –
foram consideradas para nortear a pesquisa aplicada por este Grupo de Estudos,
realizada com o objetivo de ampliar a discussão com a participação de profissionais
que atuam cotidianamente com estas crianças e adolescentes.

5 - METODOLOGIA

O Grupo de Estudos sobre Acolhimento Institucional e Familiar, composto


por profissionais das áreas de Serviço Social e Psicologia do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, anualmente debate temas relativos a esta medida de
proteção, com a finalidade de aprimorar processos de trabalho nas Comarcas onde
atuamos.
Neste ano de 2019, tendo em vista o objetivo de ampliar a discussão
sobre as implicações do racismo na vida de crianças e adolescentes em instituições
de acolhimento, elaboramos dois formulários de pesquisa utilizando a ferramenta
“Google Forms” e encaminhamos aos Serviços de Acolhimento das localidades
representadas pelos profissionais presentes neste GE.

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Os questionários constituíram-se sob dois enfoques:


1) conhecer o público das instituições de acolhimento em sua diversidade
étnico-racial, cultural e social;
2) conhecer o que os profissionais que trabalham com as crianças e
adolescentes acolhidos pensam sobre racismo.
A participação foi facultativa, acompanhada de orientações sobre o
objetivo deste levantamento.

6 - DADOS OBTIDOS NA PESQUISA COM SERVIÇOS DE


ACOLHIMENTO – FORMULÁRIO 1

O primeiro formulário referente ao “Perfil do Serviço de Acolhimento e das


Crianças e Adolescentes Acolhidos” foi encaminhado para 42 serviços de
acolhimento, porém foi respondido por apenas 09, sendo:

Serviço de Acolhimento Município


01 Serviço de Acolhimento Tatuí Tatuí
02 Casa Transitória Nossa Senhora Aparecida Jundiaí
03 Associação e Comunidade Casa de Nazaré Jundiaí
04 Abrac Sede Mogi das Cruzes
05 Abrac´s Venner Mogi das Cruzes
06 SAICA Lar Santo Antonio Biritiba Mirim
07 ARCA Vinhedo
08 SAICA Luz do Milênio I Itaim Paulista - SP
09 SAICA Raízes da Vida São Miguel Paulista -
SP

Total de acolhidos informados no momento da pesquisa:


Serviço de Acolhimento Quant. Atual
01 Serviço de Acolhimento Tatuí 11
02 Casa Transitória Nossa Senhora Aparecida (02 unidades) 24
03 Associação e Comunidade Casa de Nazaré (04 casas-lar) 34
04 Abrac Sede 19
05 Abrac´s Venner 24
06 SAICA Lar Santo Antonio 12
07 ARCA 06
08 SAICA Luz do Milênio I 13
09 SAICA Raízes da Vida 16
TOTAL 159

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Desse total, o perfil por idade, sexo e cor/raça foi dividido conforme segue:

Crianças Adolescentes Meninos Meninas

36% 48%
64% 52%

Brancos Negros/Pardos Indígenas Asiáticos

0% 1%

48%
51%

Com o objetivo de ampliar a análise, recorremos aos dados que


caracterizam esse segmento populacional no país. Segundo o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), em novembro de 2019 havia 47.3691 crianças e adolescentes
acolhidos em 4.616 serviços distribuídos no território nacional. O estado de São
Paulo aparece como responsável por 12.871 acolhimentos, ou seja, mais de ¼ do
total, seguido por Minas Gerais (4.845), Rio Grande do Sul (4.783), Rio de Janeiro
(4.716) e Paraná (3.467). Os demais Estados registram menos de 2.000
acolhimentos cada.

1
Dados acessados no site do Conselho Nacional de Justiça (www.cnj.jus.br/cnca) em 25 de
novembro de 2019. Ressalta-se que, devido a registros não atualizados e subnotificações, os
números de acolhimentos podem conter imprecisões.

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No gráfico do CNJ (2019) acerca da população de acolhidos no Brasil,


dividido por idade, podemos observar a maior incidência de bebês, seguido dos
adolescentes, da faixa etária de 14 a 17 anos, conforme gráfico a seguir.

Ainda de acordo com os dados do CNJ, do total de crianças e


adolescentes acolhidos no Brasil, 49% (23.102) são do sexo feminino e 51%
(24.267) do sexo masculino. Essa divisão praticamente igualitária entre sexos,
também pôde ser observada em nossa pesquisa.
Importa registrar que, os relatórios estatísticos disponíveis no site do CNJ
(2019), não contemplam dados referentes à raça/cor das crianças e adolescentes
em situação de acolhimento institucional no país. Contudo, tais dados são
encontrados em relação àqueles que estão aptos à adoção, o que permite certa
aproximação ao perfil do grupo populacional estudado.
Sendo assim, em consulta realizada em novembro de 2019 ao Cadastro
Nacional de Adoção (CNA), identificou-se que entre as 4.886 crianças/adolescentes
disponíveis à adoção: 50,35 % são pardas, 29,7% brancas, 19,36% negras, 0,35%
indígenas e 0,25% amarelas. Observa-se, portanto, que a soma dos acolhidos

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identificados como negros e pardos2 atinge 69,71% do total, o que revela uma forte
prevalência dessa característica entre as pessoas institucionalizadas.
Podemos observar em nossa pesquisa que negros e pardos somaram
51%, brancos 48% e 1% asiático.
O Estatuto da Igualdade Racial define como “população negra o conjunto
de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça
usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que
adotam autodefinição análoga”. O professor e historiador Carlos Eduardo Dias
Machado observa que o Brasil é um país de grande miscigenação e isso aumenta a
complexidade da discussão sobre raças.
Assim, ao se tratar de mestiços ou pardos, a definição pode ficar confusa,
pois sabemos que essa população pode ser classificada como brancos ou negros,
dependendo do contexto e de quem analisa a situação.
O tempo médio de permanência nos serviços de acolhimento do Brasil,
conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2019) está abaixo
demonstrado:

2
Designações do Cadastro Nacional de Adoção.
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Já na pesquisa realizada por este Grupo de Estudos, os profissionais dos


SAICAS indicaram o tempo aproximado de acolhimento de cada agrupamento:
crianças brancas, crianças negras ou pardas, adolescentes brancos, adolescentes
negros/ pardos e grupos de irmãos, considerando os acolhidos naquele momento.
A numeração na tabela indica quantas vezes foi citada a combinação
entre as variáveis (grupo e tempo médio de acolhimento).

de 1 ano a 1 acima de 1
ano e 6 ano e 6
até 6 meses até 1 ano meses meses
crianças brancas 0 3 4 2
crianças negras e pardas 1 2 3 3
adolescentes brancos 1 1 1 6
adolescentes negros e pardos 0 1 1 7
grupo de irmãos 0 1 2 6

Podemos observar que, dentre 09 respostas, o grupo de crianças brancas


foi indicado por três vezes como o que fica até um ano e por quatro vezes como o
que fica de um ano a um ano e meio acolhido.
Quanto à criança negra ou parda, dentre 09 respostas, este grupo foi
indicado por três vezes como o que fica por mais de um ano e meio acolhido.
Os que mais se destacaram nas respostas como acolhimentos
prolongados (para além dos 180 dias estabelecidos pela lei) foram os adolescentes
e os grupos de irmãos. Contudo, o adolescente negro ou pardo foi citado nessa
condição por sete dentre as nove respostas.
Quanto aos motivos do acolhimento, os profissionais manifestaram a
ocorrência dessas situações nos casos que estavam acolhidos naquele momento,
sendo o resultado o que segue na tabela.

Motivos do acolhimento
Às Muitas Não
Nunca Raramente vezes vezes Sempre respondeu
Violência Física 0 2 5 2 0 0
Violência Sexual 0 2 5 2 0 0
Violência Moral/ Psicológica 2 1 2 2 1 1
Negligência 0 0 0 3 6 0
Abandono 0 1 3 4 1 0

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Uso de Drogas dos genitores 0 0 0 8 1 0


Deficiência e/ou doença mental
dos genitores 0 6 3 0 0 0
Problemas comportamentais da
criança/ado 0 5 2 2 0 0
Orfandade 4 5 0 0 0 0
Outros 1 5 0 0 0 3

Podemos observar na tabela que a negligência foi apontada pela maioria


dos entrevistados (06 dentre 09 - 67%) como um motivo que está “sempre” presente
nos casos de acolhimento e pelos demais (33%) como algo que ocorre “muitas
vezes”. O uso de drogas dos genitores foi referido na categoria “muitas vezes” por
08 entre 09 respostas (89%) e por 06 dentre 09 (11%) como “sempre” presente nos
casos.
Relatório do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) das
inspeções realizadas entre 2012 e 2013 em 2.370 entidades brasileiras de
acolhimento institucional e familiar, revela que a negligência por parte dos pais ou
responsáveis é o principal motivo apontado para a medida de acolhimento em
abrigos: 84% em 2012 (pg. 43), seguida da dependência química/alcoolismo dos
pais e/ou responsáveis: 81% em 2012 (p. 43), conforme gráfico a seguir.

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A negligência, segundo o entendimento da Organização Mundial de


Saúde (OMS), é a omissão pela qual se deixou de prover as necessidades e
cuidados básicos para o desenvolvimento físico, emocional e social da pessoa
atendida/vítima. A prática tem evidenciado que o abuso de substâncias psicoativas
pode concorrer com as responsabilidades e prejudicar os cuidados a serem
dispensados às crianças e adolescentes.
Quanto à diversidade cultural e religiosa, todos os serviços, exceto um,
avaliaram existir e comentaram ofertar as seguintes atividades para as crianças e
adolescentes:
Em relação às atividades culturais foram citadas: cinema, teatro, dança,
capoeira, dança de rua, circo, biblioteca, música, pintura, parques, entre outros;
sobre atividades religiosas: visitas de grupos de igreja e cultos nas instituições,
permissão para frequentarem locais de culto diversos, de igrejas católicas,

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protestantes, evangélicas e religiões de matriz africana e espíritas, além de


festividades ecumênicas.
Dos 09 SAICAS que responderam, 08 avaliam que as atividades
ofertadas estão de acordo com a diversidade cultural e religiosa dos acolhidos, e 01
avalia que “talvez” esteja de acordo, porém não comentou sua resposta.
Segundo as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes (2009):

Em atenção ao princípio da não-discriminação, os serviços de


acolhimento devem buscar o crescente aprimoramento de
estratégias voltadas à preservação da diversidade cultural,
oportunizando acesso e valorização das raízes e cultura de origem
das crianças e dos adolescentes atendidos, bem como de suas
famílias e comunidades de origem (p.21).

Em relação às famílias de origem, observou-se que o trabalho formal foi


apontado pela maioria como raro, assim como os benefícios previdenciários. Os
benefícios socioassistenciais são apontados pela maioria como sendo “muitas
vezes” a fonte de renda das famílias, denotando a condição de pobreza que se
encontram aqueles que necessitam da medida de acolhimento.
O trabalho informal foi apontado como “sempre” e “muitas vezes” presente
na maioria das respostas. Há ainda a variável “sem renda” apontada por 05 entre 09
respostas como “às vezes” presente, conforme tabela a seguir.

Fonte de Renda das Famílias


Nunca Raramente Às vezes Muitas vezes Sempre
Trabalho Formal 1 5 3 0 0
Trabalho Informal 0 1 1 4 3
Benefício Assistencial ou Eventual 0 2 2 5 0
Benefício Previdenciário 2 5 2 0 0
Sem renda (doações) 1 2 5 1 0
Outros 4 5 0 0 0

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Cabe ressaltar que a situação socioeconômica das famílias pode gerar


violação de direitos de seus membros. A alta taxa de desemprego e os baixos
rendimentos culminam em vulnerabilidade social para as famílias.
Em relação à raça/etnia das famílias dos acolhidos, foi considerado pelos
participantes que 41 famílias atendidas atualmente são brancas, 43 são negras ou
pardas e uma família é oriental, aparentando um equilíbrio entre brancos e negros.
Vale destacar o mesmo que foi pontuado acima a cerca da dificuldade em definir a
raça/cor devido à miscigenação do povo brasileiro, podendo uma pessoa parda ser
classificada como branca, havendo uma minimização das diferenças.
No que se refere à escolaridade das famílias, é possível observar que o
ensino fundamental incompleto é apontado pela maioria como “muitas vezes”
presente, o que significa baixa escolarização das famílias.

Muitas Não
Nunca Raramente Às vezes Sempre
vezes respondeu
Analfabetismo 0 2 3 2 0 2
Fundamental incompleto 0 0 2 6 1 0
Fundamental completo 0 6 1 1 0 1
Ensino Médio
incompleto 1 3 0 3 0 2
Ensino Médio completo 1 6 1 0 0 1
Superior incompleto 6 1 0 0 0 2
Superior completo 6 1 0 0 0 2
Outro 5 0 0 0 1 3

Compreendemos que a baixa escolaridade dos pais influencia


negativamente no interesse das crianças e adolescentes pela escola, prejudica no
exercício da cidadania, nos cuidados em saúde e contribui para a manutenção de
pobreza.
De acordo com a “Síntese de Indicadores Sociais” divulgada pelo IBGE
em 2017, menos de 5% dos filhos de pais sem instrução concluem o ensino
superior. O acesso a políticas públicas educacionais pode contribuir na quebra
desse paradigma.
Quanto à configuração familiar, a família monoparental se destaca entre
os acolhidos, em seguida a família estendida.

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Muitas Não
Nunca Raramente Às vezes Sempre
vezes respondeu
Família Nuclear 0 2 4 3 0 0
Família Monoparental 0 0 4 5 0 0
Família Homoafetiva 8 1 0 0 0 0
Família estendida 0 1 6 2 0 0
Outros 4 2 0 0 0 3

Em estudo realizado junto a famílias com filhos em medida de


acolhimento institucional, Azôr e Vectore (2008) também registraram a ausência da
figura paterna. Os autores salientaram que os filhos são assumidos majoritariamente
pela mulher, mesmo em condições difíceis.
Na situação habitacional destaca-se a falta de moradia própria (indicada
por 07 entre 09 respostas como raramente presente), substituída por casas alugadas
(08 entre 09 como “muitas vezes presente”) e em segundo plano por moradias
cedidas. Mais uma vez se verifica a condição de pobreza das famílias que
necessitam da medida de acolhimento de sua prole.

Às Muitas Não
Nunca Raramente Sempre
vezes vezes respondeu
Moradia Própria 1 7 1 0 0 0
Alugada 0 0 0 8 1 0
Cedida 1 3 1 4 0 0
Ocupação 3 3 2 1 0 0
Casa de Acolhimento 5 3 1 0 0 0
Situação de rua 4 3 1 1 0 0
Outro 5 0 0 0 0 4

Em relação ao acesso a políticas públicas, denota-se a escassez de


oferta de habitação, cultura, lazer e esporte. Chama a atenção ainda a falta de
saneamento básico, apontado por 06 dentre 09 como “às vezes” presente e por dois
serviços como uma política “raramente” acessada.

Às Muitas Não
Nunca Raramente Sempre
vezes vezes respondeu
Assistência Social 0 0 3 5 1 0
Defensoria Pública 0 0 2 3 4 0
Educação 0 3 0 5 1 0
Saúde 0 1 1 6 1 0

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Esporte 2 5 1 1 0 0
Lazer 2 5 2 0 0 0
Cultura 3 5 1 0 0 0
Habitação 2 6 1 0 0 0
Saneamento Básico 0 2 6 1 0 0

A falta de investimento em políticas sociais básicas que promovam


direitos fundamentais como saúde, educação, esporte, lazer, cultura, habitação,
saneamento básico, entre outros, torna inviável o caminho da desinstitucionalização
que queremos percorrer. Só a manutenção plena dos direitos básicos pode garantir
condições mínimas para que as pessoas protagonizem suas próprias histórias
progridam no cuidado consigo e com os filhos.

7 - DADOS OBTIDOS NA PESQUISA COM SERVIÇOS DE


ACOLHIMENTO – FORMULÁRIO 2

O segundo questionário enviado com a finalidade de conhecer o que os


profissionais que trabalham com as crianças e adolescentes acolhidos pensam
sobre racismo foi respondido por 13 profissionais, sendo: 5 Assistentes Sociais, 5
Psicólogos, 3 Educadores/Cuidadores.
Em relação à etnia e raça os profissionais se auto declararam: 4 Brancos,
4 Negros, 4 Pardos e 1 Preta.
No início deste questionário foi sugerido que os profissionais definissem o
que entendem por racismo, dentre os conceitos percebemos que 4 profissionais
apresentaram uma análise focada no racismo como fenômeno social, ultrapassando
o nível individual, como por exemplo: “Sistema de opressão estrutural” (profissional
7); e, “Entendo como uma discriminação pautada em conceitos e preconceitos sobre
um tema relacionado ao ser humano, inferindo a ideia de superioridade e
inferioridade” (profissional 12).
Em relação a ter vivenciado uma situação de racismo, 9 pessoas
responderam que sim, uma respondeu talvez e 3 disseram que não, contudo uma
delas relatou ter presenciado outras pessoas nessa situação.
Objetivando conhecer a percepção dos profissionais, frente a situações de
ações discriminatórias e possíveis abordagens para cada circunstância, optamos por

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trabalhar com três situações problemas inspiradas em relatos de crianças e


adolescentes acolhidos, que analisaremos abaixo.

Situação 01 – Assim como a maioria das crianças, Eduarda foi


infestada por piolhos e lêndeas. No serviço de acolhimento onde ela mora, a
questão é tratada com “pente fino”. Mas, como Eduarda tem cabelo crespo, as
reclamações dos cuidadores em tratar o problema resultaram em uma norma:
“cabelo crespo deve ser curto” e cortaram o cabelo de Eduarda.

Dos 13 (treze) profissionais, que responderam ao questionário 10 (dez)


identificaram a situação apresentada acima como sendo uma atitude racista a
solução que arrumaram para resolver a questão do piolho, que foi de cortar o cabelo
das crianças que tenham cabelos crespos; 02(dois) ficaram na dúvida e 01(um) não
viu preconceito “nesta atitude ou regra”.0
Algumas respostas que foram positivas quanto à visão “racista” do caso
apresentado, justificam como: “O cabelo crespo apresenta algumas dificuldades para
fazer este tipo de limpeza, e dependendo da situação de infestação, muitas vezes é
necessário cortar um pouco para não causar muito sofrimento, principalmente nas
crianças pequenas. Porém, isso tem que ser pontualmente, não significa que cabelo
crespo tem que ser curto”; “A ideia de associar cabelo crespo como de difícil cuidado
produz marcas em mulheres negras que rotineiramente possuem por conta do
racismo problemas com a aceitação da estética de seus cabelos”; “Não é porque a
criança tem cabelo afro, que é um cabelo difícil de lidar. Sempre falo para elas, que
o cabelo dela é único, é especial igual ao meu e que tratando vai ficar lindo.
Perfeito”.
Já um dos entrevistados que respondeu ter dúvidas se seria uma atitude
preconceituosa, comentou: “Para mim, vai depender a maneira que trataram o
assunto e a depender das condições de fato da acolhida. Algumas questões me faz
pensar: o cabelo estava em condições de ser tratado ou era apenas a questão do
piolho que implicava os cuidados? A criança entendia por necessário ser cortado seu
cabelo ou a ordem era posta sem argumentos?”.
O único profissional que não entendeu como racismo a situação
apresentada foi categórico em seu comentário: “Até uma questão de saúde e que na

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impossibilidade de se utilizar o pente fino e evitar sofrimento nos cuidados do cabelo


de Eduarda (cabelo crespo é difícil de ser cuidado), se sugere a utilização do cabelo
curto”.
Fazendo uma leitura nas respostas apresentadas podemos perceber que
quando se fala em cabelo crespo, alguns profissionais fazem um “pré-conceito” de
que a criança seja negra e esquecem que há muita criança de pele branca que
também tem cabelo crespo. Na situação apresentada, em nenhum momento foi
relatado de que se tratava de uma criança negra e alguns comentários associaram
“cabelo crespo” com “cabelo de uma criança negra”.
Apesar de ser um mito que cortar o cabelo acaba com o problema de
piolho ou lêndea, sabe-se que para cuidar de cabelo crespo precisa ter muita
paciência e dá muito trabalho. Na maioria das casas de acolhimento não há
funcionário suficiente para atender a demanda e buscam formas práticas para
resolverem os problemas, não respeitando a identidade das crianças.

Situação 02 - Em meio a uma discussão, Jefferson chamou Kleiton


de "macaco". Indignada, a educadora Maria resolveu intervir. Chamou
Jefferson e Kleiton, colocou ambos na frente do espelho e disse: "Você acha
que tem condições de chamar Kleiton de macaco, Jefferson? Você também é
negro!”.

Dos 13 (treze) profissionais que responderam, 11 (onze) identificaram a


situação apresentada como uma atitude racista. Desses, 4 não justificaram sua
resposta. Não é possível garantir o significado do “silêncio”, mas pode ser um
indicativo da dificuldade de se falar sobre a temática ou mesmo do receio dos
profissionais em explanar sobre o assunto.
Já os demais consideraram que existe preconceito dos próprios acolhidos
em relação a sua cor; que existem outras formas para trabalhar a perspectiva
educativa no espaço institucional, e também apontaram que estão associados a um
sistema que promove a desigualdade racial e estereotipa, inferioriza e oprime as
pessoas negras. Merecem destaques as seguintes respostas: “O racismo é um
sistema tão perverso e tão meticuloso que inclusive quem acredita estar mediando a
situação consegue ser tão violento quanto quem ofendeu inicialmente.”; e “A

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Educadora tentou de uma forma errada ensinar Jefferson que não poderia chamar
Kleiton de macaco. Levando eles ao espelho. Mais quando ela fala para Jefferson
que ele não tem condição de chamar Kleiton de macaco. Ela meio que sem
perceber, está mostrando para Jefferson que ele também é negro. E que diante do
espelho, os dois são negros. Então ela ali não ensinou nada. Mais ali ela meio que
afirmou aos dois que o negro meio que está ligado ao macaco. E isso é racismo.”
Somente 01 (um) dos profissionais ficou na dúvida quanto ao teor racista
da regra ou atitude em pauta, pelo fato de compreender ter sido uma ação pontual e
que promoveu a reflexão dos acolhidos envolvidos.
E apenas 01(um) não considerou que a atitude descrita se caracteriza
como racista, uma vez que a educadora “apenas estava cumprindo sua função,
estava educando”.
Essa associação do negro ao referido animal, historicamente, é muito
recorrente como forma de xingamento e ofensa, tendo ocorridos inúmeros episódios
recentemente no meio futebolístico, que constantemente estampam as matérias na
mídia, assim como toma grandes proporções nas redes sociais.
Demanda-se um olhar atento para a temática voltado para a
problematização e desconstrução da utilização de termos, atitudes, piadas,
associações e estereótipos relacionados à identificação da pessoa negra, tal como
no caso em questão onde se atrelou a criança negra ao animal macaco.

Situação 3 – Kauan estava sempre triste. A assistente social


descobriu que Kauan gostava de rap, então colocou uma música no
computador e, imediatamente ele começou a fazer passos de “break”,
demonstrando toda sua habilidade. Vendo isso, a coordenadora do serviço de
acolhimento chamou a atenção da assistente social, pois era proibido ouvir
esse gênero musical na instituição.

Dos 13 (treze) profissionais que responderam ao questionário, 09 (nove)


identificaram racismo; 03 (três) tem dúvidas e 01 (um) não identificou.
Como exemplo, destacamos a resposta do profissional 12: “Apesar do
gênero musical Break ser um gosto musical que cada vez mais tem sido
disseminado em outras culturas, é oriundo da cultura da raça negra, inclusive de

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cultura americana e que, portanto, os gostos das crianças/adolescentes têm de ser


respeitados, desde que não contenha conteúdo que prejudique o processo educativo
e a faixa etária”.
Insta pontuar que dos participantes que tem dúvidas se a situação
descrita se enquadra como racismo dois deles justificam com respostas
possivelmente relacionadas ao racismo estrutural.
Exemplificamos com a resposta do profissional 04: “De forma geral o rap
e o movimento hip hop foi taxado e considerado como música de “marginais” por
longos anos e até atualmente, mas não exclusivamente de negros. Por isso não vejo
essa situação como um comportamento racista, porém também é um
comportamento preconceituoso”.
O participante que não identificou como racismo refere ser o Rap apenas
um estilo musical. Dos participantes que identificaram como racismo relacionam com
questões ligadas à cultura, marginalidade e violência que são associados às
pessoas da raça negra.
O rap é um gênero musical tipicamente negro e a associação entre este
tipo de música e a comunidade negra está explícita em muitos lugares. Assim, ao
desqualificar o rap, a coordenadora também desqualifica conjuntamente as marcas
culturais do povo negro.

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8 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de inquietações e reflexões do grupo, sobre situações de racismo


nos serviços de acolhimento institucional, e a percepção do elevado número de
crianças e adolescentes de etnia negra em medida de proteção, detectamos a
importância de abordar a temática.
Contudo nos deparamos com a baixa participação dos serviços e dos
profissionais na pesquisa realizada. Dos 42 serviços convidados a participar, apenas
09 responderam ao questionário, equivalente a 21%, o que pode indicar certa
dificuldade em lidar com o racismo e suas expressões.
Os dados obtidos na presente pesquisa, em consonância com estudos de
órgãos oficiais, revelam que a população de crianças e adolescentes acolhidos
advém de famílias desprotegidas socialmente, que sofrem com falta ou insuficiência
de serviços de saúde, habitação, emprego, saneamento básico, educação, cultura,
lazer, bem como com a fragilização dos vínculos familiares e comunitários.
Essas múltiplas violações de direitos são evidenciadas no recorte de
classe e potencializadas pela questão étnico-racial, em razão do racismo estrutural,
abordado na presente discussão.
É pertinente observar que o racismo é uma construção social que se
irradia nas relações sociais cotidianas, sendo disseminada desde a mais tenra idade
nas crianças, de diversas maneiras e intensidades: de forma velada, sutil, explícita,
agressiva entre outras.
É comum que atitudes racistas sejam naturalizadas contribuindo para a
invisibilidade do racismo que está enraizado no padrão de acumulação capitalista,
pautado em um viés racista-sexista, gerando até mesmo dúvidas ou negação acerca
do seu cunho discriminatório sob o mito da “democracia racial brasileira”. Revelam
evidências de como o racismo se manifesta silenciosamente nas relações e
instituições, e cabe refletir como essas atitudes racistas reverberam nos múltiplos
espaços sociais e na construção da sociabilidade brasileira.
Este artigo teve por finalidade despertar o leitor para a problemática
apresentada e, a partir disso, repensar atitudes, processos e procedimentos, com
vistas a uma prática profissional mais sensível e condizente com os direitos
humanos e igualdade social.

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Por fim, destacamos a importância do desenvolvimento de estratégias e a


implantação de ações e programas para o enfrentamento do racismo nos espaços
institucionais, em especial nos serviços de acolhimento, contemplando técnicos,
educadores, funcionários em geral, adolescentes, crianças e suas famílias.

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sobre-raca-e-classificacoes-no-brasil-e-tao-complicado (acesso em 09/12/19 10h48).

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A ESCUTA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE


EM SEU PROCESSO DE ADOÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO I”

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2019
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COORDENAÇÃO

Fabiana Aparecida de Oliveira – Assistente Social Judiciário – 2ª Vara da Comarca


de Campos do Jordão
Simone Trevisan de Góes – Psicóloga Judiciário – F.R. I Santana

AUTORES
Aline Cristina Carta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul
Ana Cláudia Sarpi Chiodo – Psicóloga Judiciário – FR. IV Lapa
Ana Maria Neves de Mattos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Urânia
Ana Paula Duarte Xavier – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Caetano do Sul
Aparecida Regina Signori Dantas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa
Fé do Sul
Carmen Sylvia de Barros Pereira Camargo – Psicóloga Judiciário – F.R. Pinheiros
Cristina Rodrigues Rosa Bento Augusto – Psicóloga Judiciário – F.R. Ipiranga
Daize Pereira dos Santos Oliveira – Assistente Social Judiciário – Vara Central
Elizangela Sanches Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales
Erica Fragoso Pacca – Assistente Social Judiciário – Comarca de Peruíbe
Fabiana Aparecida de Oliveira – Assistente Social Judiciário – 2ª Vara da Comarca
de Campos do Jordão
Gessylea Matiole – Assistente Social Judiciário – Comarca de Aparecida
Giovani Diniz Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Gizelle Regina Gomes Furlan – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ipauçú
Marcia Viana Amaral – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ferraz de Vasconcelos
Maria Alice Siqueira Mendes e Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Fé
do Sul
Meire Obata Matsuo – Psicóloga Judiciário – Vara Central
Milene Podenciano Roque – Assistente Social Judiciário – Comarca de Palmeira
d’Oeste
Mônica Aparecida Mota Vale – Assistente Social Judiciário – Comarca de Arujá
Priscila Cristina da Silva – Assistente Social Judiciário – F.R. Itaquera
Roberta Bechelli Duarte Migliaresi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém
Sarita Erika Yamazaki – Psicóloga Judiciário – FR. VI Penha de França
Silvia Vilela da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul
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Simone Trevisan de Góes – Psicóloga Judiciário – F.R. I Santana


Vanessa Teixeira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
dos Campos

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INTRODUÇÃO

O grupo de estudos Adoção I escolheu para o ano 2019 o tema: “A escuta


da criança e do adolescente em seu processo de adoção”. A proposta levantada em
nossa primeira reunião visava discutir os seguintes aspectos: como ocorre a
participação da criança/adolescente acolhido no seu processo de destituição e
adoção? Qual o lugar de escuta do acolhido no seu processo de acolhimento,
destituição e adoção? Em que momento esta escuta ocorre? Quais as formas de
comunicação da criança acolhida?
A escuta da criança/adolescente é um direito e há uma legislação que
garante que esta ocorra nos processos em que estão envolvidas. Destaca-se a
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança que apresenta como um de
seus princípios o direito de se expressar e o respeito à opinião da criança. Já o
Estatuto da Criança e do Adolescente eleva esta população a sujeitos de direitos e
titulares de direitos fundamentais, assim capazes de participar ativamente das
decisões que os envolvem. Outra legislação importante é o Marco Legal da Primeira
Infância que objetiva melhorar o tratamento e a atenção a esta parcela da
população.
A escuta faz parte dos procedimentos que compõem o trabalho dos
técnicos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e apresenta certa
complexidade, pois é o espaço onde a criança e o adolescente deverá se expressar
de forma autônoma e criativa, podendo ser uma etapa do processo de
ressignificação de relações vivenciadas e preparação para as novas relações que se
estabelecerão a partir da adoção.
Este artigo aborda questões específicas da escuta de todos os acolhidos,
sejam eles bebês, crianças ou adolescentes; trata das especificidades do trabalho
dos psicólogos e assistentes sociais na escuta dos acolhidos e também reporta a
importância da escuta dos familiares dos acolhidos. O texto também traz uma
provocação no sentido de questionar sobre a diferença entre ouvir e escutar e qual
tratamento é concedido à população infanto-juvenil dentro das Varas da Infância e
Juventude: são escutados ou simplesmente ouvidos?
Ao longo do ano foram realizadas pesquisas bibliográficas que
embasaram este trabalho e também palestras do Dr. Pedro Afonso Hartung,

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advogado e coordenador do Programa Prioridade Absoluta da ONG Instituto Alana e


com Dra. Cynthia Peiter, psicóloga e psicanalista atuante em consultório e no
Instituto Sedes Sapientae, os quais trouxeram importantes contribuições sobre o
tema.
A discussão sobre a fala e escuta da criança e do adolescente é assunto
que cada dia mais ganha destaque no âmbito do judiciário. Através deste artigo,
pretende-se contribuir para a criação de estratégias e metodologias que auxiliem
para que, de fato, a criança e o adolescente se tornem protagonistas de sua história.

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1 - LEIS E PROCEDIMENTOS QUE ENVOLVEM A ESCUTA DE


CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO JUDICIÁRIO

Nos últimos 30 anos, a criança e o adolescente vêm sendo reconhecidos


como sujeitos de direito. O Brasil vem se destacando como um dos países que mais
estabelece leis e procedimentos que fortalecem este conceito. A Constituição
Federal de 1988 reconhece crianças e adolescentes como prioridades absolutas
frente a políticas públicas.
A Convenção Internacional de Direitos da Criança de 1989 postula que,
além dos direitos fundamentais, as crianças e adolescentes são titulares de direitos
civis e políticos. Ela aponta a importância deste público ser ouvido em processos
judiciais. Nesta mesma linha, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em
1990 também garante a expressão desses sujeitos além de enfatizar o direito à
liberdade, ao respeito e à dignidade.
Recentemente, o Marco Legal da Primeira Infância (lei nº 13.257/2016)
reconhece as necessidades especificas da faixa etária de zero a seis anos e visa à
promoção de atendimento adequado aos estágios de desenvolvimento infantil,
inclusive reforça a necessidade da escuta das crianças e adolescentes, conforme
Art. 4º:

Parágrafo único. A participação da criança na formulação das


políticas e das ações que lhe dizem respeito tem o objetivo de
promover sua inclusão social como cidadã e dar-se-á de acordo com
a especificidade de sua idade, devendo ser realizada por
profissionais qualificados em processos de escuta adequados às
diferentes formas de expressão infantil.

No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, os assistentes


sociais e psicólogos têm como dever considerar legislações supracitadas para
promover atendimento adequado ao desenvolvimento da criança e do adolescente
nas ações nas diversas Varas, visando assim a sua garantia de direitos.

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A atuação destes profissionais segue as orientações das Normas


Judiciais da Corregedoria Geral da Justiça (NJCJ). De acordo com o artigo 804, a
atuação da equipe interprofissional junto às Varas da Infância e da Juventude deve:

ouvir, previamente, nas colocações em família substituta a criança,


sempre que possível, ou o adolescente, respeitado seu estágio de
desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da
medida, e ter a sua opinião devidamente considerada”. (p.25)

O Manual de Procedimentos é outro documento que define a atuação dos


profissionais de serviço social e psicologia judiciários. Ele aponta a necessidade da
escuta qualificada, compreensiva e acolhedora para entender o que é dito nas ações
e nos silêncios das crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente. Esta
escuta pode ser realizada tanto pelos profissionais dos setores técnicos da VIJ como
pelos profissionais da entidade de acolhimento.
Nos processos de adoção, haverá a necessidade de escutar as crianças e
adolescentes bem como os adotantes, sobre as experiências, percepções,
sentimentos e expectativas que vivenciam durante a aproximação.
Durante o estágio de convivência, a equipe técnica judiciária precisa
oferecer escuta qualificada com vistas a favorecer que a criança ou adolescente
expresse e nomeie os sentimentos ligados a essa experiência.
Em casos em que o estágio de convivência não foi bem sucedido,
também se torna relevante escutar, de modo qualificado, como os envolvidos
compreendem as circunstâncias e as motivações presentes na situação.

2 - A COMPLEXIDADE DO TRABALHO DOS PSICÓLOGOS NA


REALIZAÇÃO DA ESCUTA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO
JUDICIÁRIO

Falar sobre “escuta psicológica” requer adentrar na especificidade do


campo de saber da Psicologia - seus princípios e objetivos gerais – para, depois,
refletirmos sobre a sua escuta em um dos lugares em que o seu conhecimento
opera – o espaço judiciário.

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A palavra psicologia, em seu sentido lato, significa estudo da alma – aqui


compreendida como mente. Assim, inicialmente, o objeto de estudo dessa teoria
tratava-se de algo abstrato. Interessava a esse campo do saber compreender o que
se passava na mente do sujeito, e isso perdurou até se chegar à concepção de que
tudo o que este último constrói objetivamente diz de sua mente.
Foi então compreendido que, apesar da existência de dois mundos – o
interno e o externo - há entre eles uma relação intrínseca que gera uma constante
comunicação e possibilita que seus conteúdos sejam intercambiáveis entre si,
tornando tais mundos ora discriminados, ora totalmente amalgamados.
Essa dinâmica de trocas e transitoriedade de seus substratos levou ao
entendimento de que nenhum desses mundos é puro, ou seja, de que todas as
vivências, criações e construções humanas são resultantes de engendramentos dos
mundos interno e externo. Tal concepção fez com que tudo aquilo que o ser humano
– seja criança, adolescente, adulto ou idoso – vive, pensa, sente, concebe,
compreende e constrói fossem considerados como de interesse da ciência
psicológica.
A partir dessa concepção, a Psicologia passou a ser entendida como
conhecimento que pode/deve estar nos espaços onde o ser humano estiver, operar
e intervir, aplicando seu arcabouço teórico e metodológico de acordo com as
particularidades de cada um. O espaço do judiciário emergiu como um deles.
Os psicólogos estão vinculados aos Conselhos Federal e Estaduais, os
quais têm como principais funções estabelecer princípios, diretrizes e parâmetros
teóricos, metodológicos e éticos da profissão assim como orientar e fiscalizar a
prática profissional. Dessa forma, tornou-se privativo a estes profissionais a
realização de avaliação psicológica de uma dada situação, de indivíduo(s) e ou de
grupo(s).
De modo geral, as técnicas mais utilizadas são as entrevistas, a
observação, a observação lúdica, a interação social, a linguagem não verbal, a
utilização de testes psicológicos aprovados e autorizados pelo Conselho Federal de
Psicologia, entre outras respaldadas em conhecimento científico e autorizadas pelo
referido Conselho. A escolha dessas técnicas deve estar fundamentada de acordo
com as especificidades dos casos atendidos, da complexidade dos mesmos, da

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urgência da circunstância demandada e, ainda, do ambiente onde o trabalho é


desenvolvido.
No que diz respeito ao trabalho do psicólogo junto a crianças e
adolescentes - seja em que espaço for - o artigo 151 do ECA - Estatuto da Criança e
do Adolescente – preconiza a autonomia e liberdade de atuação profissional.
No Judiciário, é comum que o psicólogo desenvolva ações junto de
processos da Vara da Infância e Juventude, cujas temáticas giram em torno de
negligências, abandono, violências, destituição do poder familiar, acolhimento
institucional e adoção – o que resulta em trabalho direto com crianças e
adolescentes. Concebe-se como primordial que, além de um respaldo teórico,
metodológico e ético, o trabalho deste profissional busque respeitar as
características próprias do desenvolvimento do entrevistado, de modo a estabelecer
o 3rapport com este último, e alcançar princípios de imparcialidade, de maneira a
evitar qualquer forma de preconceitos.
No que diz respeito à avaliação psicológica de crianças e adolescentes
disponibilizados para a adoção, o trabalho do psicólogo judiciário implica em
possibilitar um espaço de escuta contextualizado com as fases de desenvolvimento
do indivíduo e de seu histórico de vida, com as especificidades do ambiente
judiciário e, também, com as normas jurídicas que estão na base desta relação.
Considerar todos esses elementos torna esta escuta por demais
complexa e conflitante, haja vista as diferenças existentes entre o tempo subjetivo e
o tempo jurídico, uma vez que este último, correspondendo ao tempo objetivo,
determina um prazo cronológico para a realização de uma avaliação psicológica.
Acontece, entretanto, que nem sempre é possível tal avaliação num
determinado prazo porque o psicólogo lida com questões que envolvem aspectos
subjetivos e inconscientes do sujeito – aspectos estes que têm por principal
característica a atemporalidade e o não controle objetivo daquilo que pode vir a ser
evocado nas entrevistas.
A experiência prática tem demonstrado que esse processo de escuta
profissional e o de elaboração pela criança ou adolescente exigem um tempo maior
do que aquele prescrito na legislação, seja referente aos prazos para entrega dos
relatórios ou para o desacolhimento e colocação em família substituta, de estágio de
3
Rapport: Técnica utilizada na Psicologia para criar empatia com outra pessoa numa situação de
entrevista ou estabelecimento de aliança terapêutica, dentro de um processo de trabalho.
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convivência e de efetivação da adoção - de acordo com a nova lei de adoção (Lei nº


13.509 de 2017). Isso porque, pela ótica dos psicólogos e, principalmente, pela
característica de seu trabalho e de sua concepção ética, o processo de escuta da
criança ou adolescente deve – mais do que evidenciar fatos - possibilitar ao
indivíduo um espaço para falar de sua história, das rupturas e traumas vivenciados,
dos sofrimentos sentidos, das lutas emocionais realizadas, das conquistas
alcançadas e das frustrações ainda não elaboradas, de modo que esse encontro
entre ele e o psicólogo favoreça uma ressignificação e elaboração dos lutos e,
consequentemente, sua abertura para novas e positivas vinculações, considerando-
se que poderão vir a serem adotados.
Vê-se, então, que a concepção dos psicólogos é a de que a entrevista
não é somente um relatar de histórias e fatos, mas uma oportunidade para que
novas simbolizações sejam feitas pelo sujeito e que, a partir destas últimas, ele
possa escrever uma nova história. Cabe, então, a esses profissionais uma escuta
atenta para poder traduzir em palavras aquilo que nem sempre a criança ou
adolescente é capaz de verbalizar ou, até mesmo, de identificar o que sente, suas
dores e dificuldades, expressas de diferentes formas, muitas vezes de modo
agressivo. O psicólogo é o profissional responsável não somente pela facilitação da
entrevista, mas um decodificador de sentimentos e analista da conjuntura mais
ampla que envolve o sujeito e suas diferentes manifestações.
Assim, além dos prazos, interfere ainda em seu trabalho o número
limitado de profissionais no judiciário, a grande demanda de trabalho e as condições
precárias de estrutura física para a realização adequada deste último. Essas
deficiências tornam-se mais gritantes se considerado que houve, de acordo com
Santos (2013), um repensar por parte dos psicólogos judiciários sobre a função do
seu trabalho, o qual os levou à compreensão de que o objetivo primordial deste
último é a busca por uma “[...] intervenção preocupada com o resgate da cidadania,
com a promoção do bem-estar, a saúde mental dos indivíduos e com a construção
de uma estrutura social reflexiva e humanizadora.”
Desta perspectiva, há ainda a preocupação com a não revitimização da
criança por meio dos procedimentos realizados pela rede socioassistencial, inclusive
os efetuados pelo psicólogo no judiciário, como partícipe que é desta rede. Albornoz
(2009) destaca que a vitimização é um fenômeno de múltiplas causas, em que as

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famílias das crianças vítimas também estão em condição de vulnerabilidades e


fragilidades sociais, psicológicas, culturais e políticas, à medida em que a ausência
de políticas públicas efetivas denunciam o fracasso social em abandonar estas
famílias em suas necessidades. Albornoz (2009, p. 182) ressalta que:

[...] Eventos negativos como esses tem grave efeito no campo da


saúde mental individual, especialmente quando estes eventos
ocorrem em períodos de grande vulnerabilidade, como na infância e
na adolescência. O registro marcante destas vivências permanece
ativo por toda a vida e faz com que as crianças lembrem-se para
sempre das experiências traumatizantes de não terem sido acolhidos
e cuidados adequadamente.

Foi, justamente, por contemplarem as dores, as resistências, os medos e


as desconfianças que afetam a formação de novos vínculos – sintomas esses
decorrentes de vivências de rupturas apresentadas pelas crianças e pelos
adolescentes - que levou os psicólogos judiciários a perceberem a discrepância
entre o tempo de elaboração realizado pelo sujeito e o tempo dos prazos
processuais previstos em legislação específica.
Importante ressaltar que tal afirmação não quer dizer que os profissionais
do judiciário visam a um processo psicoterapêutico com o sujeito, mas sim, que ao
respeitar os princípios éticos de sua profissão, compreendem que não tem o direito
de evocar uma lembrança dolorosa, sem ao menos poder dar um tempo para auxiliar
a pessoa a cuidar dela. Sendo assim, qualquer confecção de um relatório que não
acompanhe esse processamento pelo sujeito, torna tal relatório incompleto e não
permite que o psicólogo corresponda às demandas éticas exigidas pela sua
profissão.
Decorrem disso a constante angústia e preocupação dos psicólogos
judiciários: se sentem oprimidos pelas exigências formatadas pelas leis que
contemplam parcialmente os princípios éticos de sua profissão, do mesmo modo que
consideram superficialmente a realidade de sofrimento das crianças e adolescentes
em condição de adoção, afinal, como destacou Cynthia Peiter (2019) em palestra: “a
adoção em si não é o maior problema, mas sim o que ela remete na criança ou
adolescente a ser adotado: o rompimento dos vínculos familiares”.

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3 - ESPECIFICIDADES DA ESCUTA NO ÂMBITO DO SERVIÇO


SOCIAL: PROCEDIMENTOS NECESSÁRIOS

As atribuições e competências dos profissionais de Serviço Social são


orientadas por direitos e deveres constantes no código de ética profissional e na Lei
de regulamentação da profissão, que devem ser observados tantos pelos
profissionais, quanto pelas instituições empregadoras.
Algumas competências e atribuições são: apreensão crítica dos
processos sociais de produção e reprodução das relações sociais numa perspectiva
de totalidade; identificação das demandas presentes na sociedade, visando a
formular respostas profissionais para o enfrentamento das questões sociais,
considerando as novas articulações entre o público e o privado; orientar indivíduos e
grupos de diferentes segmentos sociais no sentido de identificar recursos e de fazer
uso dos mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos; realizar vistorias,
perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres sobre a matéria de
Serviço Social.
Importante frisar que, compreender a questão social faz parte da atuação
cotidiana do assistente social, conforme cita Fávero, Melão e Jorge (2011, p.20): “O
assistente social atua a partir de necessidades sociais, traduzidas na dimensão
coletiva da “questão social” tais como se expressam na vida dos indivíduos
singulares e suas famílias.”
Dentre aquelas que se encontram na base do trabalho dos assistentes
sociais no TJSP, Fávero, Melão e Jorge (2009, p. 20) destacam:

[...] pobreza, desemprego, trabalho precário, baixo nível de


escolarização, precariedade da saúde física e mental, violência
familiar, vitimização de crianças e adolescentes; o abandono e
negligência de parte dos familiares; adolescentes em conflito com a
lei que requerem medidas socioeducativas, dependência química,
desagregação familiar, disputas relacionadas às relações familiares,
à Justiça da Família e das Sucessões.

É na intervenção com o usuário que o profissional precisa desempenhar a


escuta qualificada e empática, visando compreender as expressões das questões
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sociais manifestadas naquele contexto e, então, a partir disso, mediante relatórios,


laudos e pareceres, apontar dados sobre o histórico pessoal e familiar, as relações
comunitárias, os elementos que compõem a dinâmica familiar, as desproteções e
capacidades protetivas, entres outras especificidades que subsidiarão a autoridade
judicial a embasar seu posicionamento.
No que se refere especificamente à escuta das crianças e dos
adolescentes no sistema judiciário, o Serviço Social se utiliza de vários
instrumentais, tais como: visitas domiciliares, contatos, reuniões e articulações com
os profissionais e serviços que compõem o sistema de garantia de direitos,
entrevistas individuais e conjuntas com os referidos, seus familiares ou pessoas de
seu convívio, visitas institucionais, orientações e encaminhamentos, observações
técnicas, entre outros.
É importante frisar, que o Serviço Social é uma profissão intervencionista
que trabalha diretamente com as expressões decorrentes da questão social. Deste
modo, o exercício profissional do assistente social exige-lhe um posicionamento
ético-político que deve ser implícito num projeto profissional que foi e é determinado
historicamente.

4 - A ESCUTA DOS FAMILIARES NO ÂMBITO DO JUDICIÁRIO

A escuta dos familiares e demais envolvidos nos processos que tramitam


no judiciário é sempre complexa, o que reforça a necessidade de um atendimento
multiprofissional que dê conta de evidenciar sinais e sequelas não visíveis. Para
tanto, os envolvidos necessitam ser bem atendidos, amparados e protegidos, para
amenizar as marcas que tais processos provocam, e que, muitas vezes, irão
permanecer em suas vidas.
O trabalho desenvolvido com a escuta de crianças ou adolescentes, e de
suas respectivas famílias, é um mecanismo necessário para restaurar e para
preservar a integridade, as condições de autonomia e para prevenir a reincidência
da violação dos seus direitos. É uma das ações que propicia contribuir com o
fortalecimento dessa família e aprimorar sua capacidade protetiva.
Deve-se promover o favorecimento da expressão e do diálogo entre
Equipe Técnica e familiares (demais envolvidos), a liberdade para expressarem suas

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necessidades e interesses, a reparação ou a minimização dos danos causados,


preservação de sua identidade e integridade, ou seja, condições que garantam a
segurança de acolhida, de convívio ou de vivência familiar e o desenvolvimento da
autonomia.
É de fundamental importância na escuta realizada pela rede
socioassistencial com os envolvidos (familiares) – rede na qual o psicólogo judiciário
é um dos profissionais - a humanização, o acolhimento e a atenção qualificada.
Deste modo, o trabalho desenvolvido deve pautar-se no atendimento à
família como um todo, por meio de ações e de atividades que visem à promoção da
superação da situação vivenciada, à garantia de direitos, ao fortalecimento da
função protetiva da família e à promoção da autonomia dos indivíduos envolvidos.
No contexto da escuta é fundamental que não ocorra a revitimização da
criança ou adolescente pela repetição do relato da violência. A situação é delicada e
em geral as famílias estão fragilizadas. Destaca-se que o foco do profissional é a
escuta e não a veracidade dos fatos. A escuta deve ser protetiva, no sentido de não
revitimizar os envolvidos por julgamentos.
Sendo assim, é importante a criação de um ambiente de segurança, no
qual a garantia de ética, de privacidade e de sigilo esteja clara para a criança, para o
adolescente e para suas famílias.
Esse trabalho deverá ser desenvolvido de maneira articulada entre os
profissionais da rede de serviços, propiciando a integralidade da escuta. Essa
integralidade da escuta se efetivará de modo satisfatório no momento em que a rede
estiver funcionando adequadamente, ou seja, de modo articulado entre os diferentes
profissionais, visto que se trata de ações complementares. É essencial que os
diversos atores da rede se integrem não apenas para trocar experiências, mas que
visem também à resolutividade da situação que se apresenta. A comunicação com a
rede é de crucial importância, pois o enfrentamento da problemática não está ao
alcance de apenas um de seus atores, visto que os problemas vivenciados pelas
crianças, adolescentes e suas famílias são caracterizados pela multiplicidade de
variáveis.
Diante do exposto, a escuta de crianças e adolescentes e de suas
famílias representa uma das tarefas mais complexas e delicadas da rede de
atendimento, que precisa ter o máximo de cautela para colher os elementos

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necessários à responsabilização dos agentes e, de outro, evitar que as vítimas


tenham violados seus direitos fundamentais ou sejam expostas a situações
constrangedoras e/ou traumáticas.

5 - OUVIR OU ESCUTAR - REFLEXÕES

Será que a criança e o adolescente têm voz no sistema de justiça?


À medida que a escuta da criança/adolescente ganha importância no
Judiciário, faz-se necessária uma reflexão sobre a função dessa escuta e o quanto o
discurso da criança/adolescente é permeado por esta função, pela relação com a
pessoa com quem está conversando e pela representação que tem desse adulto.
Muitas vezes as crianças/adolescentes são chamados, seja por profissionais do
Judiciário ou dos serviços de acolhimento, a entrevistas. No entanto, será que eles
são realmente escutados? Será que ouvir o que dizem é sinônimo de escutá-los?
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989, art. 12)
afirma que:

[...]os Estados Partes assegurarão à criança/adolescente que estiver


capacitada a formular seus próprios juízos o direito de se expressar
suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela,
levando-se em consideração essas opiniões em função da idade e
de sua maturidade.

Prossegue apontando que será proporcionada a oportunidade de ser


ouvida em todo o processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer
diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em
conformidade com as regras da legislação nacional.
Da mesma maneira, o artigo 227 da Constituição da República Federativa
do Brasil confere à criança e ao adolescente prioridade na efetivação dos seus
direitos, ao respeito, à dignidade, à liberdade. São claros em afirmar que é dever de
todos – Família, Estado e Sociedade, colocar as crianças/adolescentes a salvo de
toda a forma de discriminação, negligência ou opressão.

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Na prática profissional observamos que a escuta da criança e adolescente


adquire diferentes pesos dependendo da demanda processual na qual está inserida.
Em processos que tramitam em Varas de Família parece ser dado à
criança e adolescente lugar principal, como se coubesse a esta apontar as relações
familiares, suas referências de cuidados parentais, inclusive sendo vistas como
denunciantes em situações de suposto abuso sexual ou alienação parental,
independente de sua idade ou maturidade. Não raro vemos os peritos sendo
demandados a realizar várias entrevistas com crianças de tenra idade, enquanto que
em situações de adoção pronta ou unilateral muitas vezes não é considerado
importante pelos operadores do Direito que a criança saiba sua origem biológica, por
exemplo.
Da mesma forma, as falas dos adolescentes que cumprem medida sócio-
educativa ou dos que estão acolhidos em medida protetiva parecem desnecessárias,
sendo comum que sejam faladas por adultos.
Disparates que nos mostram o valor e lugar que a criança e adolescente
ocupam, a depender de sua classe social e demanda judicial.
Com essa prática, entendemos que é mantida a dicotomia da infância que
aporta ao Judiciário, ou seja, a “infância em perigo” a qual deve ser ouvida com o
propósito de indicar quem são seus algozes, e a “infância perigosa” que, por se
constituir em uma ameaça social, não deve se expressar (Donzelot, 1986, p.92). No
primeiro caso, temos pais calados e crianças e adolescentes que falam, ou cujos
desejos devem decidir questões jurídicas em nome de seus direitos. No segundo
grupo, vozes caladas, sem eco, cujos pais, na maior parte das vezes, também já
foram calados pelo aparelho do Estado, no qual o som de suas vozes não possui
volume suficiente para se fazer valer, ou quem sabe, arguir sobre os direitos de seus
filhos, retirando-as das amarras do Estado.
Consideramos que a escuta vai para além do ouvir. Portanto, é preciso
estabelecer uma diferença fundamental entre ouvir e escutar. Ouvir nos remete mais
diretamente aos sentidos da audição, ao próprio ouvido, enquanto escutar significa
prestar atenção para ouvir, dar ouvido a algo. Ouvimos o que é possível ser
manifestado em palavras. O que é possível verbalizar. Já a escuta contempla os
silêncios, os olhares, a postura, a agitação, o sonho, enfim, todos os fenômenos que
compõem a comunicação da criança e do adolescente. A escuta não é uma função

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passiva; ela precisa orientar-se para a singularidade do sujeito, possibilitando que


ele se expresse, fale e implique seu desejo. Escutar demanda tempo. Tempo do
profissional e tempo para aguardar o momento da criança, pois nem sempre ela
consegue se manifestar no momento que destinamos á entrevista.
Nesse sentido, Paiva (2004) introduz a distinção entre tempo jurídico,
tempo psíquico e tempo cronológico. Na concepção de tempo jurídico, quando os
pais biológicos estiverem destituídos do poder familiar, por exemplo, a criança estará
pronta para ser adotada, mas do ponto de vista psicológico pode ser necessário um
processamento mais longo, mesmo que no tempo cronológico haja transcorrido
longo período de privação do convívio familiar. De fato, a autora conclui que o tempo
psíquico para uma adoção é uma questão complexa que ultrapassa a dimensão do
tempo cronológico.
“Do ponto de vista da constituição psíquica sabemos da importância do
sujeito poder se perguntar sobre sua origem. No entanto, consideramos importante
estarmos atentos às sinalizações da criança do que ela pode ou deseja fazer com
sua história, de que maneira se relaciona com ela. Deseja falar, se calar, esquecer,
fabular? Só podemos nos relacionar de forma respeitosa e não invasiva se formos
capazes de escutar a criança.”
A criança e o adolescente se comunicam o tempo todo, seja pela negativa
a aderir a propostas, seja nos comportamentos opositores, nas escolhas cotidianas
ou no silenciamento. Por isso a necessidade que a escuta seja continua e integrada
entre equipes do fórum e do serviço de acolhimento.
O processo judicial está a todo momento cobrando posicionamentos,
ações, direcionamentos e o papel primordial das equipes técnicas é conseguir
escutar através de tudo que é manifesto pela criança e adolescente o que se passa
com este para que os caminhos apontados possam vir realmente em benefício
deste.
Solon (2008), autora do livro “Conversando com crianças sobre adoção”,
percebeu a complexidade do tema e o baixo número de pesquisas que focam a
criança e seu processo de adoção, principalmente de pesquisas que ouvissem as
crianças, o que a motivou a estudar o tema. No livro, ela apresenta a criança como
participante de seu processo de adoção tardia – adoções ocorridas após os dois
anos de idade – pois entende que ela faz parte anteriormente de uma família, depois

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de uma instituição, para posteriormente ser adotada, aspectos estes que compõem
sua história de vida e identidade pessoal. Um dos principais pontos para reflexão
propostos pela autora está na possibilidade de conversar com a criança e de estudar
a adoção a partir da sua perspectiva, pois, quando falam, elas expressam
sentimentos e emoções sobre seu processo de adoção. O diálogo representa um ato
de significação, no qual a criança e o adolescente podem ter a oportunidade de
construir sua identidade. Muitas vezes, a entrevista com o profissional pode ser uma
das únicas oportunidades dadas à criança para que ela estabeleça significados à
sua própria história (TJSP, 2009).
Para Solon (2006, p. 127) “ouve-se muito pouco as crianças e fala-se
muito pouco sobre adoção com elas”. A autora coloca que elas circulam de um
contexto para outro (família biológica, abrigo, família adotante), submetidas de
maneira impotente às decisões dos adultos, muitas vezes, sem compreender o que
está acontecendo. Contudo, se quisermos elevar a criança para uma posição de
sujeito ativo e de direitos dentro do processo de adoção, teremos que aprender a
ouvi-la.
Compreendemos que há especificidades na escuta dependendo da idade
e estágio do desenvolvimento. O nível de desenvolvimento cognitivo e emocional
também deve ser considerado na condução da conversa com a criança. Por
exemplo: estudos sugerem que criança em idade pré-escolar pouco diferencia entre
“ser filho adotado” e “ser filho biológico”.
Nessa perspectiva, Brodzinsky, Singer e Braff (apud SOLON, 2006, p. 26)
explicam que existem dois períodos de maior sensibilidade para a criança. O
primeiro acontecendo em torno de 6-7 anos, quando a maioria descobre o vínculo
biológico entre pais e filhos e, dessa forma, as crianças adotadas compreendem
que, antes de serem adotadas, foram separadas de sua família de origem, com
quem têm vínculos biológicos. É a partir desse processo que os autores argumentam
que emerge o “sentimento de perda”. O segundo período de aumento de
sensibilidade ocorre na adolescência, quando emerge a busca pela identidade.
Souza, Seguim, Levisky, Rudge, Ungaretti (apud Guirardi, ferreira, 2018, p. 21)
colocam:

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[...]É fundamental, portanto, respeitar não apenas o que a criança


diz, mas também suas sinalizações do que é metabolizável para ela
em relação à sua história e o que é da ordem do intolerável e precisa
ser negado ou esquecido. Afinal, como construir condições de
pensabilidade para angústias impensáveis? Como possibilitar o
acesso a um passado esquecido? Como cada sujeito transforma a
história factual (aquela que pode estar escrita num prontuário, ou que
é transmitida oralmente) numa história da qual o sujeito se apropria,
porque a constrói?

É possível refletir: se os bebês não falam, o que e como escutá-los? E se


os bebês não entendem, para quê e por que enchê-los de palavras? Anna Freud,
Winnicott, Melanie Klein, Françoise Dolto e seus sucessores estudaram e adaptaram
a prática psicanalítica a crianças cada vez menores.
Eliacheff, apud Szejer (1994) na sua prática de psicanálise com crianças
de zero a três anos, afirma que fala diretamente com o bebê, traduzindo em palavras
seu sofrimento revelado pelas suas expressões. Conta a ele sua história de vida pré
e pós-natal de forma a permitir estabelecer conexões entre os "pontos de ruptura".
Este autor afirma, ainda, que o bebê entende o que lhe é dito, pois lhe é falado a
respeito das experiências que viveu. Ainda sobre este tópico, pesquisadoras
brasileiras descreveram o trabalho de maternagem realizado com bebês deixados
para adoção em uma maternidade, objetivando suprir a carência de cuidados
maternos e intervir através da palavra e do contato com o bebê (Boing & Crepaldi,
2004).
Já com crianças um pouco maiores os recursos lúdicos são importante
meio de comunicação. É brincando que vão projetando os conteúdos internos, as
vivências, conflitos e expressando ao interlocutor um pouco sobre seu mundo
interno, assim como pode elaborar o que foi vivido. Desta forma podem ser utilizados
diferentes materiais lúdicos no atendimento às crianças, como brinquedos,
brincadeiras e jogos que podem facilitar a comunicação e a construção do vínculo.
Como a criança se exprime de diferentes formas, o desenho infantil pode ser uma
poderosa ferramenta de expressão de si mesmo, proporcionando uma forma de
expressar sentimentos e conflitos internos, trazendo à tona o que é mantido oculto,
ou que a criança tem dificuldade para comunicar verbalmente.
Dos adolescentes já é esperado que tenham desenvolvido maior
capacidade de comunicação verbal do que a criança, porém nem sempre isso é
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observado na prática. As experiências difíceis pelas quais muitos já passaram


trazem um desafio ainda maior para a comunicação.
Além disso, o contato do adolescente com os profissionais do judiciário é
permeado por revivências, cobranças, desconfianças, pois já estão desde pequenos
esperando uma decisão que acabará recaindo sobre sua vida sem que possa
participar e escolher muito pelo caminho a seguir.
Nesse momento, acabam tendo uma maior crítica sobre sua história, sua
família e nem sempre concordam com os rumos que foram decididos pela Justiça. É
comum que venham com discursos montados de forma defensiva, sem que tenham
de fato podido elaborar as angústias subjacentes.
Acaba pairando no discurso com o adolescente um jogo de cobranças
entre o que se espera que tenha adquirido apesar de todo vivido – estudo, trabalho,
comportamento, desconsiderando-se tudo pelo que muitos foram privados pela vida
– afeto, pertencimento, segurança, interesse legítimo por eles, vínculos de
confiança.
Dessa forma, parece ficar claro que a escuta realizada por profissionais
do serviço social e psicologia muito diferem de uma oitiva ou da colheita de um
relato. É um trabalho minucioso, que requer condições internas de real escuta,
condições externas que possibilitem tempo e sigilo do que é expressado, assim
como confiança da criança/adolescente em relação ao profissional que o atende.
Isso evidencia um dos motivos pelo qual o atendimento à Vara da Infância
e Juventude precisa se manter prioritário e demanda investimentos de vários níveis.

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6 - CONCLUSÃO

Ao longo do presente texto, tratamos da escuta realizada pelos


profissionais da Psicologia e do Serviço Social no âmbito do judiciário, e de como
esta escuta deve ser qualificada como condição essencial do exercício profissional
junto às crianças, adolescentes, suas famílias e rede de proteção socioassistencial
no âmbito dos processos que tramitam no judiciário.
A escuta desses profissionais, através dos diversos instrumentais
apresentados, tais como entrevistas, visitas domiciliares, visitas institucionais,
reuniões de rede, entre outros, é condição primária para que os profissionais da
Psicologia e do Serviço Social efetivem seu trabalho nas Varas de Infância e
Juventude.
Contudo, para que esta escuta seja realizada de forma a contemplar as
normativas éticas de cada profissão, conforme discutimos nos itens anteriores, e ao
mesmo tempo, proporcionar ao profissional as condições de produzir laudos e
pareceres que subsidiem a decisão judicial, as condições de trabalho desses
profissionais devem ser consideradas.
Nesse sentido, a precariedade das condições de trabalho em alguns
Setores Técnicos de Serviço Social e Psicologia impactam negativamente a
possibilidade que a escuta profissional seja realizada tal como preconiza cada
profissão. Tal precariedade pode ser observada na inexistência de salas adequadas
para atendimento dos sujeitos, nas quais muitas vezes o espaço é insuficiente, sem
controle de temperatura, e sem garantir a privacidade que garanta o sigilo dos
atendimentos, tal como estabelecem os códigos de ética dos psicólogos e dos
assistentes sociais.
No caso da escuta de crianças, que muitas vezes necessitam de outros
recursos para poderem se expressar além do verbal, muitos profissionais não
contam com espaço físico adequado e munido de recursos audiovisuais e materiais
lúdicos que possam lançar mão durante os atendimentos.
Além disso, como amplamente discutido, a escuta de crianças e
adolescentes e suas famílias requer tempo para que aconteça, tempo esse
necessário para que o profissional e os sujeitos possam estabelecer uma relação de
confiança, além de tempo para que o profissional possa acolher as demandas que

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tais sujeitos podem apresentar a partir do atendimento realizado com o assistente


social e/ou psicólogo. Os prazos processuais e a necessidade de produção de
laudos em tempo exíguo prejudica o tempo necessário para que se efetive a escuta
qualificada.
Para que escutar uma criança ou um adolescente? Resumidamente, e
tomando outro caminho que não o majoritário, poderíamos dizer que os ouvimos
para torná-los sujeitos de direitos e coautores de sua própria história de vida, como
também para levantar outras possibilidades de análise, para respeitar os sujeitos ali
envolvidos, para apagar práticas que vêm produzindo vidas sem materialidade e
sem lembranças.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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GONELLI, Valéria M.M. (orgs). Serviço Social e Ética: convite a uma nova práxis.
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formação profissional. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 2001.

MANUAL DE PROCEDIMENTOS TÉCNICOS. ATUAÇÃO DOS PROFISSIONAIS


DE SERVIÇO SOCIAL E PSICOLOGIA. INFÂNCIA E JUVENTUDE. Volume I.
Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e Psicologia – Corregedoria Geral da
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Justiça do Estado de São Paulo, 2007.

NETTO, José Paulo. A construção do projeto-ético-político do Serviço Social.


Capacitação em Serviço Social. Módulo 1, Crise Contemporânea, Questão Social e
Serviço Social. Brasília, 1999.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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contribuições psicanalíticas na clínica e no abrigo. IN:
<http://www.sedes.org.br/Clinica_psicologica/Projetos/Grupo_acesso/anexos/direito_
de_contruir_a_propria_historia.pdf> Acesso em 16.out.2019.

SITES CONSULTADOS:
http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1361.
Acesso em 16 out. 2019
https://www.childhood.org.br/publicacao/guia-de-referencia-em-escuta-especial-de-
criancas-e-adolescentes-em-situacao-de-violencia-sexual-aspectos-teoricos-e-
metodologicos.pdf Acesso em 16 out. 2019

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para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código
de Processo Penal... Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder
Executivo, Brasília, DF, 9 mar. 2016. p. 1. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm>. Acesso
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Disponível em https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca.
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Corregedoria Geral da Justiça. Disponível em:
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual de Procedimentos -


atuação dos profissionais de serviço social e psicologia Disponível em:
https://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/pdf/manual_de_procedimentos.pdf.
Acesso em: 1 nov. 2019.

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UM RETRATO DA ATUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL


E DA PSICOLOGIA NA PROCESSUALIDADE
DA ADOÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO II”

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2019
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COORDENAÇÃO
Luiza Gabriella Dias de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ferraz
de Vasconcelos
Nina Rosa do Amaral Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Amparo

AUTORES
Alberta Emília Dolores de Góes – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itapecerica da Serra
Aline Pereira Lança Passos – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Santana
Ana Rita de Oliveira Leme Costa – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de
Jabaquara
Ana Roberta Prado Montanher – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Cristiane Calvo – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Débora Nunes de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das
Artes
Eliane Ferraz Coca – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Itaquera
Elisa Meireles Andrade Albuquerque – Psicóloga Judiciário – Comarca de Embu-
Guaçu
Elisângela Fraga Ferreira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jundiaí
Gracielle Feitosa de Loiola Cardoso – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Vargem Grande Paulista
Graziele Galindo do Vale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Indaiatuba
Jucilene Alves Neves Pokojski – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ferraz
de Vasconcelos
Juliana da Conceição Velloso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Luiza Gabriella Dias de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ferraz
de Vasconcelos
Maira Quilisi Malvoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Marcelo Soares Vilhanueva – Psicólogo Judiciário – Comarca de Campinas
Maria Rosa Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional VII -
Itaquera
Nina Rosa do Amaral – Psicóloga Judiciário – Comarca de Amparo

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Ramona Mary Setsuko Akune Barreto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapevi


Rodrigo Gonzales de Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itanhaém
Rute de Toledo Moraes – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Sabrina Renata de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Sheila Carneiro da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapevi
Thabata Dapena Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jacareí
Thais Peinado Berberian – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mairiporã

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In Memoriam

Dedicamos esta produção à querida ex-companheira de


grupo, psicóloga Mônica de Barros Resende, que, com
sua doçura e dedicação, sempre contribuiu
significativamente para nossas reflexões e produções.

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INTRODUÇÃO

Frente às mudanças ocorridas na legislação, às novas preocupações


técnicas e exigências apresentadas ao trabalho dos assistentes sociais e psicólogos
judiciários, o grupo de estudos Adoção II destacou a importância de debater ao
longo do ano de 2019 acerca dos processos de preparação e avaliação de
pretendentes à adoção, assim como sobre as metodologias usadas no momento de
aproximação e encontro dos habilitados com uma criança ou adolescente com fins
de adoção.
Considera-se que a escuta e identificação das demandas apresentadas
pelos pretendentes durante a fase de preparação e avaliação para habilitação
constituem aspectos importantes e necessários para o levantamento de suas reais
motivações, necessidades e percepções sobre a constituição e exercício da
parentalidade na adoção. Assim, acredita-se que este momento inicial é rico de
conteúdos e significados, expressos no discurso dos pretendentes, onde se revelam
mitos, preconceitos, inseguranças, angústias e outros diferentes aspectos que
podem ser indicativos para um parecer favorável ou desfavorável para a habilitação
à adoção.
De igual importância, outro momento significativo de avaliação de aptidão,
abertura e prontidão para adoção se revela, de fato, no momento do encontro e
aproximação dos habilitados com uma criança/adolescente específica(o) e suas
características.
Sendo assim, visto a complexidade desse processo avaliativo, como
também as diferenças regionais, observou-se que, para construir o processo de
preparação e avaliação de pretendentes, a equipe técnica das Comarcas se utiliza
de uma diversidade de metodologias. Daí a necessidade de discutirmos tais temas,
fazendo uma interface entre a prática profissional e a literatura específica da área,
de forma que possamos referendar nossas ações.
Definiu-se então como objeto de estudo e assunto foco do presente artigo
a processualidade da adoção, considerando suas etapas de: preparação e avaliação
dos pretendentes e de crianças/adolescentes, reavaliação, encontro e aproximação
com criança/adolescente para possível adoção.

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1 - PROCESSO DE AVALIAÇÃO DE CANDIDATOS PRETENDENTES


À ADOÇÃO: UM PONTO OU UMA LINHA?

A avaliação social e psicológica de pretendentes à adoção está prevista


no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no artigo 197-C que assim diz:
“Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a serviço da Justiça da
Infância e da Juventude, que deverá elaborar estudo psicossocial, que conterá
subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o
exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e
princípios desta Lei”.
Nossas discussões sobre o tema tiveram início a partir da leitura e
discussão do texto “Avaliação de candidatos pretendentes no processo de
habilitação para adoção: revisão de literatura”, que, em apertada síntese, revela a
escassez de bibliografia e pesquisas sobre o tema “avaliação de pretendentes”. Tal
conteúdo literário, somado às nossas experiências práticas, proporcionaram ricas
reflexões e questionamentos.
Observamos que a avaliação/ preparação dos pretendentes transcende
uma formalidade legal, pois visa prevenir situação conhecida como devolução de
crianças/adolescentes, que ocasiona a interrupção do processo adotivo. Ainda que
seja impossível antever o êxito da adoção, por vezes, alguns indícios de dificuldades
se revelam nessa etapa inicial.
Salientamos a contradição presente nos processos de habilitação de
pretendentes: por um lado priorizar o direito da criança em conviver em família e,
por outro, o de pessoas que apresentam uma demanda genuína, que é o desejo de
exercer a parentalidade. Entretanto, existem pretendentes que lidam de forma
mercantilista com o judiciário agindo como consumidores, cobrando agilidade e
demonstrando a falta de conhecimento da realidade e do significado da adoção,
principalmente quanto ao seu caráter excepcional.
Refletimos sobre a dificuldade dos Serviços de Acolhimento Institucionais
de Crianças e Adolescentes (SAICA’S) mais conservadores e de caráter religioso na
preparação de crianças para aproximação com pretendentes homoafetivos, por
exemplo; também pontuamos a complexidade da adoção de grupo de irmãos e/ou
desmembramento e as dificuldades para se garantir a convivência fraterna.

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Apontamos a necessidade de aprimoramento do sistema virtual de


adoção, anotando-se que no ano vigente o Cadastro Nacional de Adoção (CNA) foi
substituído pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), sendo proposta
de seu idealizador que a ferramenta torne-se mais ágil e efetiva na medida em que
une, em um só sistema, os dados dos pretendentes à adoção e das crianças e
adolescentes em medida de acolhimento. Dada sua aplicação recente, neste
momento, é impossível tecermos considerações sobre a substituição: fase atual
corresponde à adaptação e apropriação deste instrumento.
Visando aprofundar os debates referentes às etapas constitutivas da
adoção a partir dos conteúdos já produzidos pelos Grupos de Estudos do Tribunal
de Justiça de São Paulo, realizamos uma pesquisa que alcançou todos os cadernos.
Identificamos um total de vinte e dois artigos que tratam do assunto anunciado, ou
seja, que refletem sobre os cursos preparatórios, a avaliação psicossocial na
habilitação, a aproximação entre adotantes/ adotados e o acompanhamento do
estágio de convivência.
Em razão do volume significativo de artigos encontrados, selecionamos
para leitura os seis mais recentes que contemplassem, no conjunto, todas as fases
inerentes à medida de colocação em família substituta. Subsidiaram nossos debates
os seguintes textos:
1. Aproximações sobre adoção: aspectos teóricos, metodológicos e
práticos da atuação dos profissionais do TJ (Bauru) - cad. 13 de 2016; 2. O percurso
da concretização da adoção: da habilitação dos pretendentes à construção dos laços
de filiação adotiva (Presidente Prudente) – cad. 14 de 2017; 3. Processo avaliativo
psicológico e social dos pretendentes à adoção (Araçatuba), cad. 15 de 2018; 4.
Processo de avaliação para pretendentes à adoção: vivências e reflexões dos
profissionais de Psicologia e SS no TJSP (Assis), cad. 15 de 2018; 5. Sim ou Não?
O desafio da habilitação dos pretendentes à adoção pelas equipes técnicas
(Dracena) – cad. 15 de 2018; 6. Reflexões sobre adoção de crianças maiores
(Presidente Prudente) – cad. 15 de 2018.
Da apreciação e debate sobre esses materiais, destacamos a importância
do trabalho em rede, de encontros periódicos e o desafio dessa articulação entre os
atores do Sistema de Garantia de Direitos, tendo por foco o trabalho com famílias.
Foi problematizada a percepção, em relação aos SAICAs, de um eventual

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

direcionamento das avaliações promovidas das famílias se pautarem em juízos de


valor moral negativo, contribuindo para uma nova violação de direitos.
Abordamos também aspectos da conjuntura macropolítica atual, marcada
pela retração das políticas públicas, pela precarização dos serviços e pelo
sucateamento do aparelho estatal, fatores que interferem de modo direto e negativo
nas políticas que atendem famílias em situação de risco/vulnerabilidade social.
Quanto a isso, convém retomar que a efetiva garantia dos direitos de crianças e
adolescentes relaciona-se diretamente com o acesso de seus responsáveis aos
direitos sociais:

É essencial mostrar que a capacidade da família para desempenhar


plenamente suas responsabilidades e funções é fortemente
interligada ao seu acesso aos direitos universais de saúde, educação
e demais direitos sociais. Assim, uma família que conta com
orientação e assistência para o acompanhamento do
desenvolvimento de seus filhos, bem como acesso a serviços de
qualidade nas áreas da saúde, da educação e da assistência social,
também encontrará condições propícias para bem desempenhar as
suas funções afetivas e socializadoras, bem como para compreender
e superar suas possíveis vulnerabilidades. (BRASIL, 2006, p. 27)4.

Os textos consultados abordam também outras temáticas transversais


relevantes, tais como a repetição do ciclo de violência no contexto familiar e
questões referentes à destituição do poder familiar, compreendida aqui como medida
protetiva às crianças e adolescentes e não como medida punitiva aos seus
genitores. Alguns profissionais experienciaram a propositura, por parte do Ministério
Público, de ação de destituição do poder familiar à ocasião do ingresso da
criança/adolescente em medida protetiva de acolhimento institucional, sob o
argumento de celeridade, mesmo sem o conhecimento prévio e/ou suficiente da
dinâmica sociofamiliar e das potencialidades de regresso à família nuclear.
Alguns dos textos acessados trouxeram as especificidades da atuação
dos assistentes sociais e psicólogos judiciários na trajetória da adoção. No que se

4
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à fome. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa
do Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília,
2006.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

refere à habilitação dos pretendentes, questão apontada e bastante discutida pelo


grupo foi a atuação do Serviço Social nesse momento. Isso porque, percebe-se uma
tendência de compreender que tal intervenção tem o propósito de observar questões
objetivas, referentes à capacidade e condição socioeconômica do pretendente.
Endossando os artigos consultados, entendemos que a avaliação social ultrapassa
os aspectos meramente materiais. Compreendemos – alicerçados também no
Manual de Procedimentos – Atuação dos profissionais de Serviço Social e Psicologia
(Infância e Juventude)5, que cabe ao assistente social abordar, dentre outros, a
história - trajetória pessoal e conjugal dos pretendentes, sua relação interpessoal,
familiar e comunitária e os aspectos referentes à parentalidade biológica e adotiva.
Trata-se, portanto, de contemplar na avaliação social questões que
envolvem subjetividade, porém:

[...] uma subjetividade distinta daquela que perpassa o território de


conhecimento da Psicologia, tem a ver com o social, com as relações
humanas empreendidas na esfera familiar de sujeitos que trazem
particularidades pessoais.
Essa subjetividade está pautada na construção das relações sociais
e no processo de socialização dos indivíduos, somado as suas
particularidades, trajetórias, modelos, vínculos, arranjos, dinâmica,
relações, rede de apoio, que tornam a identidade dos indivíduos
singular. (CRUZ ET AL, 2018, p. 409)6 .

Merece destacar a escassa produção teórica acerca do estudo social nas


avaliações de habilitação para adoção, lacuna que se torna ainda mais evidente
quando necessária a fundamentação de parecer desfavorável à habilitação. Nesse
sentido, pontuamos a imprescindível clareza sobre os referenciais norteadores da
prática profissional, tendo em vista o compromisso ético-político da profissão com a
classe trabalhadora, e simultaneamente, o exercício profissional no campo
sociojurídico, sua característica de hierarquização e relação de poder. Por fim,
mesmo reconhecendo que o Serviço Social não deve se limitar às questões do
campo objetivo, o grupo compreendeu que ainda é latente a dificuldade em delimitar
e legitimar este espaço de conhecimento no cotidiano profissional.

5
Páginas 143-145.
6
Caderno do Grupos de estudos n 15, 2018 – artigo da comarca de Dracena.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Especificamente sobre a atuação do psicólogo judiciário nas ações de


habilitação para adoção, tem-se que, embora seja notória a existência de maior
suporte teórico sobre o tema, a emissão de parecer desfavorável também não se
revela facilmente aceita pelos operadores do Direito. Dialogando com os textos,
debatemos sobre as possibilidades de atuação profissional no âmbito da perícia,
compreendendo o caráter interventivo como inerente à prática profissional. Ademais,
ficou evidente nossa percepção acerca dos limites do processo avaliativo, levando-
nos à conclusão de que a referida avaliação não é um ponto final e sim uma linha
contínua.
Tal compreensão ganha ainda mais sentido pensando que a habilitação
será constantemente “revisitada” durante as demais fases da adoção, revelando
que, caso compreendido o caráter processual da intervenção profissional nesta
temática, a margem de equívocos diante de uma aproximação inadequada entre
pretendente e uma eventual criança, por exemplo, poderá ser sensivelmente
reduzida.

2 - PREPARAÇÃO DE PRETENDENTES À ADOÇÃO

Conforme enunciado anteriormente, a habilitação de pretendentes à


adoção está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente como procedimento
necessário para a inscrição de adotantes e antecede à colocação do adotando em
família substituta.
Conforme prevê o Art. 197 C - § 1 o é obrigatória a participação dos
postulantes em programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude,
preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política
municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos grupos de apoio à
adoção devidamente habilitados perante a Justiça da Infância e da Juventude, que
inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de
crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com
necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos”.
Importante destacar que antes do advento da Lei 12.010/2009, a
habilitação dos pretendentes à adoção não previa a realização de uma fase de
preparação psicossocial e jurídica, somente a partir de sua alteração, o ECA passou

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a incluir a participação em caráter obrigatório. A inclusão deste procedimento


possibilitou construir metodologias de abordagem e sensibilização para apresentar a
realidade de crianças e adolescentes que estão à espera de uma adoção,
suscitando reflexões quanto à disponibilidade material e afetiva que os postulantes
realmente apresentam para lidar com trajetórias de ruptura de vínculos e violações
de direitos.
No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apontamos a
existência de normativas que dispõem sobre a uniformização dos procedimentos
relativos à habilitação no cadastro de pretendentes à adoção – Provimentos CG nº
05/2005 e 36/2014, sendo que somente o último dispõe de orientação relacionada à
fase de preparação. Destaca-se em seu artigo 5º: “serão os cursos para
pretendentes à adoção realizados pelo Juízo da Infância e Juventude e por suas
Seções Técnicas de Serviço Social e Psicologia, com a possibilidade de parceria
com a rede de atendimento responsável pela implementação do Plano Nacional de
Convivência Familiar e Comunitária, grupos de apoio à adoção, profissionais
especializados e universidades, sendo vedado delegar esta atribuição a outros
órgãos e serviços. § 1º: serão realizados encontros de caráter de orientação e
primeira sensibilização (...) § 2º: poderão ser organizados cursos facultativos para
aprofundamento de temas específicos sobre a adoção com apoio ou parceria dos
serviços e instituições mencionadas no parágrafo primeiro desse artigo, observando
que essa preparação facultativa será voltada, em especial, para os casos de mais
difícil colocação em família substituta e como forma de incentivo e apoio aos
pretendentes já devidamente habilitados”.
Ainda em relação à fase de preparação, consta no art. 6º do Provimento
CG nº 36/2014 que os encontros devem ter carga horária de 4 a 8 horas, com o
mínimo de um (01) e máximo de três (03) encontros, e com participação de no
mínimo seis (06) e máximo de quarenta (40) pessoas, podendo ser realizado
conjuntamente com outras Varas da Infância e Juventude, de preferência da mesma
Circunscrição.
As discussões e leituras realizadas apontaram para a necessidade dos
integrantes deste grupo de estudos compartilharem como tem ocorrido nas
diferentes Comarcas a fase de preparação, mediante a observação das
competências aludidas na legislação e normativas vigentes, e de acordo com

80
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

aspectos considerados imprescindíveis ao seu desenvolvimento, vez que constitui


espaço oportuno para abordagem de temas e conteúdos relacionados à adoção.
Ponderou-se que a atuação do Setor Técnico Judiciário é de natureza
interventiva e na fase de preparação consiste no desenvolvimento de um trabalho
integrado para orientação, escuta e reflexão sobre a constituição dos vínculos
afetivos e familiares por meio da adoção. Dentre os aspectos considerados
relevantes, destaca-se a necessidade de oportunizar espaço para manifestação dos
sentimentos e aspirações genuínas dos pretendentes, com o objetivo de possibilitar
vivências e troca de experiências que visam à reflexão acerca da construção e
amadurecimento do projeto adotivo, inclusive algumas Comarcas utilizam a
participação e depoimento de famílias que já adotaram.
Dessa forma, a partir da construção de um roteiro estruturado, os
integrantes realizaram o levantamento de dados para conhecimento e troca de
experiências quanto às metodologias utilizadas. Os aspectos levantados no roteiro
se relacionaram a identificação de diretrizes gerais, tais como: nome dado ao
momento da preparação com os pretendentes, número de encontros, carga horária,
periodicidade, temas abordados, materiais e recursos utilizados, espaço/local de
realização, apoio institucional, identificação da existência de parcerias, metodologia,
atores envolvidos, participação de pais adotivos, contato com crianças e serviços de
acolhimento.
No tocante à caracterização da fase de preparação, identificamos que na
maioria das Comarcas utiliza-se a nomenclatura “curso de preparação psicossocial e
jurídica à adoção”, sendo encontrados outros termos para definição deste momento,
tais como: encontro, reunião e grupo. Ainda que a fase de preparação não seja
considerada eminentemente um curso com característica formativa e avaliativa,
pressupõe-se que tal designação alcançou maior legitimidade entre as equipes.
Em relação ao número de encontros e carga horária destinada para
realização e desenvolvimento das atividades, identificamos que na maior parte das
Comarcas é realizado apenas um (1) encontro de preparação à adoção com carga
horária de cinco (05) horas. Muito embora este formato atenda a normativa
delineada pelo Provimento CG 36/2014, ponderou-se que seria recomendável que o
tempo de preparação dos pretendentes fosse maior; contudo, reconhecemos a
existência de um limite tênue que separa as condições desejadas da realidade

81
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

concreta apresentada no trabalho cotidiano, vez que em muitos locais há


sobreposição de atividades e em algumas Comarcas não há equipe formada para
atender exclusivamente as Varas da infância e Juventude.
Observamos que as Comarcas que realizam maior número de encontros
contam com apoio e parceria de grupos de adoção, organizações do terceiro setor, e
estão localizadas em regiões que possuem universidades que desenvolvem projetos
de extensão e se interessam em colaborar no atendimento de pretendentes na fase
de preparação e habilitação à adoção. Tais iniciativas foram consideradas exitosas,
pois fornecem subsídios para o acompanhamento, orientação e preparação dos
pretendentes fora do ambiente institucional do Fórum, no qual muitas vezes, estes
não se sentem à vontade para externar de forma espontânea seus sentimentos e
anseios frente à adoção.
Quanto à periodicidade, levantamos que a demanda por sua realização se
relaciona ao número de interessados que procuram as Comarcas para requerer a
habilitação à adoção. De forma geral, é realizada em caráter semestral, podendo ser
menor nas comarcas em que há elevada demanda por inscrição. Destaca-se neste
aspecto que algumas Comarcas possuem anuência do Juiz para realizar o encontro
preparatório à adoção para interessados, sem exigência quanto à apresentação de
requerimento prévio para habilitação na qualidade de pretendentes. Foi destacado
que, em algumas localidades, a realização desta medida implicou na redução
significativa da abertura de processos para avaliação da inscrição de novos
postulantes.
Em relação aos temas abordados, materiais e recursos utilizados,
espaço/local de realização, identificamos que de forma geral são priorizadas as
temáticas relacionadas aos aspectos jurídicos, sociais e psicológicos da adoção,
com destaque de temas como política de atendimento à infância e juventude,
aspectos do desenvolvimento infantil, saúde física e mental. Dentre as questões de
maior relevância apresentadas, destacamos: aspectos territoriais e vulnerabilidade
de famílias que são destituídas do poder familiar, aplicação de medida protetiva,
organização e funcionamento do sistema de garantia de direitos, fases da adoção,
constituição do laço socioafetivo, tempo de espera, revelação e devolução, perfil de
crianças e adolescentes disponíveis à adoção, expectativas e mitos da adoção,
idealização da criança real x a criança desejada, dentre outros.

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Os materiais e recursos utilizados são variados e contemplam vídeos,


textos, documentos e dinâmicas relacionadas aos temas abordados e buscam
sensibilizar e reforçar os conteúdos problematizados, gerando momento de
descontração, reflexão, diálogo e troca de experiências entre os postulantes. Na
maioria das Comarcas, as atividades são realizadas em espaços cedidos pela rede
local e nos fóruns, sendo que em apenas uma Comarca os encontros são realizados
no espaço do serviço de acolhimento institucional (SAICA)
Quanto ao apoio institucional para realização dos encontros, observamos
que em todas as Comarcas não há destinação de recurso financeiro específico para
a oferta de lanches e materiais aos participantes. Devido às atividades se
desenvolverem por período superior a três horas, há consenso de que é
recomendável que aconteça pelo menos um momento de pausa para café, sendo
que na ausência de recursos, na maioria das Comarcas ocorre a cotização do
custeio entre os próprios profissionais responsáveis pela realização da atividade.
Em relação aos atores envolvidos e metodologia empregada na
realização dos encontros, levantamos que, além da equipe técnica, participa em
maior número juízes e membros da rede socioassitencial. Observamos ainda que
majoritariamente são adotadas metodologias que se pautam na comunicação em
formato de palestra e/ou roda de conversa.
Quanto à utilização de práticas que possibilitem o contato com pais
adotivos, crianças e adolescentes acolhidos e visitas em serviços de acolhimento
institucional, levantamos que não há consenso quanto à forma mais adequada para
a promoção de tais práticas, sendo destacado apenas o formato de depoimento de
pais adotivos como relevante para o momento de preparação de pretendentes.
O resultado alcançado pelo levantamento produziu um retrato singular da
forma como é desenvolvida a fase de preparação à adoção em diferentes
realidades, possibilitando conhecer os recursos físicos, materiais, humanos e
financeiros (in)disponíveis, bem como realizar uma reflexão acerca da atuação
profissional no contexto institucional do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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3 - AVALIAÇÃO E REAVALIAÇÃO DE CANDIDATOS


PRETENDENTES À ADOÇÃO

Sabe-se que o processo de avaliação pode representar para os


pretendentes um momento delicado, vez que é nessa etapa em que ficam expostas
as suas fragilidades e potencialidades, bem como, suas reflexões e o grau de
amadurecimento acerca do desejo da ampliação da família por meio da adoção.
Entende-se que a avaliação sempre se apresenta como uma situação
invasiva na vida das pessoas e o “olhar” dos profissionais para alguns pontos será
determinante neste processo. Assim, como encaramos estas questões para
aproximarmos a família ideal da família real?
A avaliação/preparação dos pretendentes é algo que vai muito além de
uma formalidade legal que visa prevenir “devoluções”. Nas discussões realizadas,
evidenciou-se que o processo avaliativo possui limites. Assim, é preciso refletir que o
encontro com a criança/adolescente extrapola o imaginário idealizado dos adultos
sobre o que esperavam de um “filho”, podendo haver modificações de
comportamentos, conflitos, divergências, dentre outros.
Em alguns casos são identificadas questões subjetivas que desfavorecem
a habilitação do pretendente; algumas se mostram passíveis de resolução ou
abrandamento mediante providência como indicação de psicoterapia, engajamento
em grupos de apoio à adoção, por exemplo, situação em que geralmente é sugerida
a reapreciação do caso em momento oportuno. Outras questões extrapolam o
âmbito pedagógico/educativo, resultando num parecer técnico contrário à inclusão
do pretendente.
Durante nossas discussões, foi exposto que existe um limite tênue entre a
habilitação e o indeferimento do cadastro de adoção que se mostra como um
processo complexo e delicado. Assim, o grupo se questionou: como, na avaliação da
subjetividade do(s) pretendente(s), recepcionamos a fragilidade do(s) mesmo(s) e
como percebemos a potencialidade que é passível de aprimoramento ou, por outro
lado, mostra-se como um aspecto rígido que não será suscetível de mudança?
Desse modo, avaliou-se que é possível que a mesma questão pode ser
compreendida de maneiras diferentes, dependendo da capacidade do(s)
pretendente(s) para abrir-se para uma nova realidade e da possibilidade de se

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adaptar à mesma. Compreendeu-se a habilitação aos pretendentes à adoção como


uma parte integrante de uma totalidade, em contraposição a um olhar recortado e
isolado de todo o processo.
Há o entendimento de que mesmo para àqueles avaliados de modo
favorável e considerados aptos ao processo de adoção, pode haver dificuldades na
construção da relação com o futuro filho, especialmente, para aquelas crianças que
contam com histórico de ruptura de vínculos e/ou vivências em situações de
violência. Com isso, há a compreensão de que os pretendentes a adoção precisam
demonstrar habilidades, dentre outras, para lidar com as adversidades e questões
que podem emergir deste contexto pregresso.
Sobre a avaliação de pretendentes pelo Serviço Social, por exemplo,
houve certo consenso sobre a expectativa institucional que difere dos objetivos
profissionais. Assim, foi observado um reducionismo que tende a enquadrar a
expectativa sobre o crivo de análise profissional em aspectos centrados a condições
objetivas e materiais (condições de renda, moradia, etc).
Evidenciou-se também a necessidade de ampliação de suporte, debates e
referencial teórico sobre o tema, inclusive para a fundamentação de pareceres -
especialmente do Serviço Social - em relação ao posicionamento desfavorável aos
candidatos à habilitação à adoção, sendo um desafio a ser superado.
Problematizou-se o trabalho desenvolvido pelo Setor Técnico em relação
à habilitação dos pretendentes à adoção, tendo em vista situações em que os
profissionais têm o seus pareceres confrontados pelos operadores de direito. Foram
mencionadas comarcas onde o parecer técnico desfavorável foi questionado (ou não
aceito) por parte do Ministério Público e de magistrados.
A leitura do Texto “Sim ou Não? O desafio da habilitação dos
pretendentes à adoção pelas equipes técnicas” (Dracena) apresentou a
compreensão do momento de habilitação para adoção como algo amplo, constituinte
de um processo gradual de aproximação aos pretendentes e, ao mesmo tempo,
privilegiado para melhor compreender as suas motivações.
Sobre a reavaliação dos pretendentes à adoção, revisamos a
necessidade de compreendê-la como estágio valioso para a reaproximação do
pretendente e identificação de eventuais alterações em seus projetos, configuração

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familiar, considerando a natural dinamicidade da vida; importante não tratar essa


atividade como algo meramente burocrático, mecânico e tarefeiro.
Sinalizou-se também preocupação quanto ao trabalho realizado pelos
grupos de apoio à adoção e de busca ativa que, muitas vezes, apresentam visão
romântica e orientações enviesadas, as quais podem divergir das orientações dos
profissionais do Setor Psicológico/Social da Vara da Infância e Juventude, além de
provocar prejuízos a todos os envolvidos no processo adotivo.
Houve a observância ainda de que não há um referencial único para a
avaliação diante da possibilidade de abordar as diversas formas de vida e formação
de família(s), no entanto, numa situação concreta de adoção de uma
criança/adolescente específico (a) é imprescindível o desenvolvimento de uma
relação, que deverá resultar na adaptação e na construção de um vínculo salutar.
Reiteramos que os aspectos sociais e psicológicos da avaliação se
convergem para pontos importantes que devem ser observados para a habilitação,
dentre eles: motivação do(s) pretendente(s); relacionamento e projetos de vida;
elaboração do luto do filho biológico, se porventura não possa(m) gerá-lo; existência
de rede de apoio familiar/social; rotina diária e abertura para a formação de uma
nova realidade/família.
Refletir sobre a nossa prática profissional enriquece o trabalho e favorece
o processo de modo criativo, pelas experiências compartilhadas no sentido de
identificar formas mais usuais e inovadoras. O Grupo entendeu que por meio de
levantamentos dessa natureza é possível perceber como os profissionais conciliam
as normativas, os provimentos e indicadores consensuais.
Assim, com o intuito de traçarmos um panorama sobre a processualidade
da avaliação e reavaliação de pretendentes entre as Comarcas participantes do
Grupo de Estudo, realizamos o “levantamento de informações sobre o processo de
avaliação do cadastro e de aproximação para colocação familiar” 7. Foi possível
perceber que a entrevista demonstrou ser um dos instrumentos mais disseminados,
em sua maioria são desenvolvidas avaliações individuais com os interessados e, em
datas distintas, pelas áreas de Serviço Social e Psicologia. Há locais em que podem
ocorrer atendimentos em comum, mas não é um procedimento de praxe.
Geralmente, apenas as reavaliações costumam ser realizadas, concomitantemente,

7
Desenvolvemos um formulário para captação da experiência de cada Comarca.
86
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por ambas as áreas. O que há em comum entre as diferentes Comarcas é a


presença de discussão dos casos entre os/as profissionais. Os laudos e pareceres
costumam ser construídos separadamente.

4 - APROXIMAÇÃO E ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

De acordo com as leituras e discussões realizadas, ressaltamos a


importância do processo de aproximação e estágio de convivência, defendendo-se a
prerrogativa de que, quando há um acompanhamento próximo e sistemático dessas
etapas processuais da adoção, a probabilidade de uma eventual “devolução” de
criança ou adolescente reduz significativamente.
Acredita-se que a transição entre o acolhimento e a família substituta
constitui-se como um momento rico de possibilidades e vivências. Pontuamos
acerca da imprescindibilidade de investimento nesta fase, etapa que deve ser
respeitosa, cautelosa e paciente8. Como contraponto a essa visão, problematizamos
as experiências de comarcas que têm realizado a aproximação entre adotantes e
crianças de forma virtual em razão da distância territorial entre as partes.
Concluímos de maneira uníssona sobre a conveniência de utilizar estas ferramentas
com cautela e bom senso, a fim de evitar constrangimentos e exposição aos
envolvidos.
Muitos aspectos se apresentam para o profissional lidar no momento da
concretização de uma adoção, tanto em relação à criança/adolescente a ser
adotada(o) quanto em relação aos pretendentes. Tratamos das expectativas, por
parte dos profissionais, ao habilitar os pretendentes para adoção já que alguns, a
priori, parecem reunir a habilidade necessária para gerenciar os conflitos inerentes à
adoção, porém, durante o estágio de convivência, aparecem dificuldades até então
inexistentes. O contrário também ocorre: há situações em que os pretendentes
surpreendem positivamente e demonstram a capacidade de manejar e enfrentar as
adversidades vividas.
Com relação ao momento de aproximação levantamos que de um modo
geral as equipes acessam inicialmente o cadastro local de pretendentes e, não

8
O artigo O percurso da concretização da adoção: da habilitação dos pretendentes à construção
dos laços de filiação adotiva (Presidente Prudente) – cad. 14 de 2017 esmiuça o tema e propõe
doze passos para adoção.
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encontrando candidatos que se adequem ao perfil da criança/adolescente, acessam


o Sistema Nacional de Adoção. Primeiro pela ordem de pretendentes que o próprio
sistema indica, entretanto, destacou-se o impasse entre a rigorosa observância da
ordem cronológica de inscrição dos habilitados e o favorecimento de compatibilidade
com a necessidade apresentada pela criança/adolescente a ser colocado.
Atendendo ao melhor interesse da criança, algumas comarcas apontaram
justificativas plausíveis para apresentá-la não exatamente aos próximos da fila,
como: inadequação dos pretendentes à criança, momento de crise na vida dos
mesmos, inadequação na entrevista e/ou na aproximação, ou ainda, como no caso
de uma criança, que demonstrou precisar de uma figura materna feminina e o
próximo casal da fila era composto por dois homens.
Os profissionais realizam essas consultas aos cadastros após
determinação judicial de busca por pretendentes, o que nem sempre ocorre após a
conclusão da destituição do poder familiar, podendo a aproximação se iniciar
enquanto ainda tramita a ação.
O primeiro contato com os pretendentes pode ser realizado pela dupla de
assistente social e psicólogo judiciário ou por apenas um desses profissionais, e se
dá por contato telefônico. Quando o(s) pretendente(s) é/são de outra comarca, pode-
se solicitar à comarca de origem atualizações prévias (se já adotaram, endereço,
tempo de habilitação etc.) e, dependendo das considerações técnicas, dá-se
prosseguimento a apresentação da criança. Havendo o interesse, há o agendamento
de entrevista inicial, que pode ser conjunta ou não do serviço social e psicologia,
para conhecimento de histórico dos pretendentes e apresentação do histórico da
criança.
O processo de aproximação é feito de acordo com as especificidades do
caso: idade da criança e abertura para a aproximação, distância da cidade dos
pretendentes, etc. A primeira visita, de modo geral, ocorre no serviço de acolhimento
(visto ser esse o local mais familiar para a criança) com acompanhamento de uma
profissional do judiciário da VIJ e/ou do serviço de acolhimento. Houve descrições
também de que a primeira visita pode ocorrer no Setor Técnico do Fórum local.
Uma prática interessante descrita por uma comarca refere que, em alguns
casos, antes de se conhecerem pessoalmente, os pretendentes escrevem uma carta
ou vídeo de apresentação à criança, material que a equipe técnica do SAICA

88
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apresenta a ela. Normalmente a criança retribui com um desenho, carta ou vídeo.


Posteriormente, iniciam-se os contatos por telefone ou vídeo chamadas. Discutiu-se
que tais ferramentas são pensadas considerando-se a distância territorial dos
adotantes, mas que há necessidade de seu uso com cautela e bom senso.
No texto “Grupo Cotidiano da Prática Profissional: o percurso da
concretização da adoção - da habilitação dos pretendentes à construção dos laços
de filiação adotiva (Presidente Prudente), destaca-se que, após o primeiro contato
presencial, é possível a apresentação do álbum da família à criança, sendo o melhor
lugar para o primeiro encontro aquele em que a criança está familiarizada, assim
como o acompanhamento das visitas deverá ser articulado entre a equipe do serviço
de acolhimento e setor técnico da VIJ.
Caso a aproximação transcorra de forma positiva e decorra o desejo das
partes em continuarem a mesma, após autorização judicial, iniciam-se as saídas e
pernoites da criança na residência dos pretendentes.
Após essa etapa, inicia-se o estágio de convivência, quando são
realizadas entrevistas com os pretendentes e com a criança em momentos distintos.
Geralmente, são realizadas visitas domiciliares e contatos telefônicos são bem
comuns por parte dos pretendentes e da equipe. Nessa fase, geralmente, quem
participa são os profissionais da equipe interprofissional do TJ, responsáveis pela
avaliação. Em algumas comarcas, a equipe do SAICA também acompanha o estágio
de convivência.
Iniciada a convivência com o termo de guarda para fins de adoção,
discutiu-se sobre a conotação do termo “adaptação”, bastante frequente no âmbito
da avaliação do estágio de convivência. Por um lado, a adaptação não pode ser
compreendida como uma opção do adulto, um “test drive”, o que pode incorrer na
responsabilização da criança pela interrupção do processo de adoção. Por outro
lado, os esforços de adaptação dos adotantes à criança (seus costumes,
comportamentos, crenças) precisam ser considerados em um processo de ajuste
mútuo, com maiores responsabilidades dos adultos que devem conduzir o processo.
Alguns adotantes manifestam discursos permeados por fraturas na
história da adoção e, por conseguinte, da própria criança, ao contrapor a “história
antiga” à “história nova”, revelando um desejo de substituição da vida pregressa da
criança, o que caracteriza aspectos emocionais que precisam ser trabalhados ao

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longo do estágio de convivência. Os impedimentos para que a criança revisite sua


própria história, escondendo-a, e/ou nutrindo sentimentos de dor e rancor, interferem
negativamente na adoção. Mais uma vez, foi consenso de que a experiência
concreta de contato com a criança traz à tona caraterísticas dos pretendentes que
poderiam estar presentes na avaliação, porém sem contornos bem definidos.
De modo geral, no que tange à aproximação e estágio de convivência,
concluiu-se que cada situação exige uma intervenção, considerando suas
particularidades e, neste sentido, salientou-se a importância da flexibilidade do
profissional para olhar/escutar o que a criança demanda (deseja e necessita) e o que
a família pretendente apresenta no atendimento - considerando o respeito à origem
e identidade da criança adotiva. Um exemplo disso foi um caso em que a criança
manifestou o interesse de continuar com o sobrenome da família biológica,
integrando-o ao sobrenome da família por adoção, como também podemos pensar
na pertinência ou não da mudança do prenome da criança, segundo a situação
apresentada.
Assim, refletimos que se torna imprescindível usarmos novas “lentes” para
avaliar as novas realidades e as demandas que se apresentam, bem como os
impactos na subjetividade dos pretendentes.
Considera-se ainda que a valorização da escuta refinada, respeito ao
tempo subjetivo e aos passos para a aproximação e vinculação segura entre pais e
filhos adotivos sofrem prejuízos frente às alterações legais, que tornaram os prazos
exíguos das diferentes etapas do processo adotivo.

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5 - CONCLUSÃO

Conforme exposto, as mudanças na legislação relativas à


processualidade da adoção trouxeram novas exigências ao trabalho dos assistentes
sociais e psicólogos judiciários, sendo as mesmas relativas aos processos de
preparação e avaliação de pretendentes à adoção, como também ao momento de
aproximação e estágio de convivência dos habilitados com uma criança ou
adolescente, visando a adoção.
Ao longo do grupo de estudos, a partir dos diferentes levantamentos
sobre os procedimentos realizados nas diversas comarcas dos participantes, foi
possível refletir sobre nossa própria prática e identificar problemas e soluções, assim
como metodologias mais usuais e outras inovadoras. Constatou-se a existência de
significativas diferenças regionais, fato este que não significa um aspecto negativo,
uma vez que cada região/município possui suas peculiaridades, como o número de
habitantes atendidos, quantidade de assistentes sociais e psicólogos judiciários
lotados no quadro local, a possibilidade ou não de parceria com a rede de serviços
municipal, entre outros fatores.
Ao expormos e refletirmos sobre cada etapa do que denominamos
processualidade da adoção, intencionou-se mostrar que adoção não é apenas o
momento da colocação em família substituta, mas que cada fase faz parte de um
todo, de um trabalho minucioso, processual e atento que se inicia ao receber
pessoas interessadas na adoção e envolve também a preparação de crianças e
adolescentes que, esgotadas suas possibilidades de retorno à família de origem,
serão colocadas(os) em adoção.
Temos por fundamental o acompanhamento técnico sistemático durante
todas as etapas da colocação da criança e/ou adolescente em família substituta, a
fim de minimizar questões que acarretem devoluções, observando o estágio de
convivência como um momento rico de possibilidades e vivências. De igual modo, é
imprescindível se atentar para a singularidade das criança(s)/adolescente(s), tendo
em vista as suas características socioculturais, étnicas e de gênero, fatores que
repercutirão no cotidiano com a família substituta. Cada combinação entre
pretendentes e criança(s)/adolescente(s) é exclusiva e precisa ter sua peculiaridade
observada. Pensar nas sutilezas e variadas circunstâncias envolvidas na colocação

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de uma criança /adolescente em família substituta e na consequente dedicação e


atenção que a mesma requer, fatores que não parecem terem sido sopesados
quando da última alteração no ECA, já que foi estabelecido prazo máximo para a
conclusão da adoção.
Aliás, a “agilização” é diretriz comum em propostas recentes de alteração
do ECA, que ignora a complexidade intrínseca à situação de crianças e
adolescentes afastados do convívio familiar. A pressa pela definição da situação
(seja no caso de acolhimento, seja no caso de adoção) pode ensejar
desconsideração de toda a gama de circunstâncias e situações do contexto
apresentado. Não incomum, nos casos de acolhimento, as famílias de origem são
responsabilizadas exclusivamente pela impossibilidade de promover o cuidado e
proteção de suas crianças e adolescentes: a legal contrapartida de outros atores
sociais (artigo 4º do ECA), bem como a precariedade e insuficiência de políticas
públicas não aparecem nesse cenário. No caso de adoção, a visão simplória surge
na medida em que se determina um prazo máximo para que um conjunto de
pessoas se constitua enquanto família, como se fosse possível pensar que todos os
encontros entre adotantes e adotados seguirão a mesma dinâmica, e no mesmo
tempo.
Sobre o contexto atual, refletimos acerca das iniciativas de programas
que fomentam a adoção a partir de uma perspectiva apelativa que sensibiliza a
sociedade por meio do senso comum, reduzindo a discussão a uma visão simplista e
imediatista, restando-nos evidente o quão desafiador é a alteração de padrões de
cultura. Isso porque, embora legalmente definido que a adoção é medida que deve
atender ao melhor interesse da criança, tal premissa ainda não parece ter sido
incorporada genuinamente pela sociedade. De nossa parte, mantém-se o esforço
para a superação dessa visão adultocêntrica e enviesada.
Visto a complexidade desse processo, o grupo tem uma visão crítica
acerca da “glamorização” da adoção, muitas vezes observadas em ações sociais
e/ou midiáticas de excesso de exposição das crianças e adolescentes, visando
incentivar a adoção, como desfiles em shopping, grupos de Whatsapp de busca
ativa, etc. Destaca-se que todo esse cuidado ao longo da processualidade da
adoção, pela atuação dos profissionais, busca superar a abordagem realizada no

92
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

passado, onde os interesses e desejos dos adotantes eram postos em primeiro


plano.
Assim, percebe-se a imprescindibilidade da defesa da proteção integral e
na garantia do melhor interesse da criança e do adolescente, vez que os esforços
empreendidos buscam atender ao que dispõe o Art. 43º do ECA: “a adoção será
deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em
motivos legítimos”.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BORGIANI. E e MACEDO. L.M (org). Possibilidade de contribuição da equipe


técnica no percurso que envolve desde o cadastro de pretendentes até a adoção:
reflexões sobre a habilitação e o acompanhamento desenvolvidos na comarca de
Presidente Prudente In: O Serviço Social e a Psicologia no Universo Judiciário.
Editora Papel Social. 2018.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.


Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome. Plano Nacional de
Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à
Convivência Familiar e Comunitária. Brasília, 2006

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069 de 13 de julho de1990.


Brasília, DF: 1990.

REVISTA PSICO-USF. Avaliação de candidatos pretendentes no processo de


habilitação para adoção: revisão de literatura. v. 23, n.3, p.497-511, Bragança
Paulista. 2018.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (TJSP) Cadernos dos Grupos de Estudos


- Serviço Social e Psicologia Judiciários. Grupo Família (Bauru): Aproximações sobre
adoção: aspectos teóricos, metodológicos e práticos da atuação dos profissionais do
TJ, n. 1, pg. 366-396, São Paulo, 2016.

____________. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia


Judiciários. Grupo Cotidiano da Prática Profissional (Presidente Prudente): O
percurso da concretização da adoção: da habilitação dos pretendentes à construção
dos laços de filiação adotiva, n.14, pg. 474-505, São Paulo, 2017.

____________. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia


Judiciários. Grupo Família (Araçatuba): Processo avaliativo psicológico e social dos
pretendentes à adoção, n. 15, pg. 314-333, São Paulo, 2018.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

____________. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia


Judiciários. Grupo Cotidiano da Prática Profissional (Assis): Processo de avaliação
para pretendentes à adoção: vivências e reflexões dos profissionais de Psicologia e
SS no TJSP, n. 15, pg. 334-353, São Paulo, 2018.

____________. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia


Judiciários. Grupo Cotidiano da Prática Profissional (Dracena): Sim ou Não? O
desafio da habilitação dos pretendentes à adoção pelas equipes técnicas, n. 15, pg.
398-421, São Paulo, 2018.

____________. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia


Judiciários. Grupo Adoção Tardia (Presidente Prudente): Reflexões sobre adoção de
crianças maiores, n. 15, pg. 536-561, São Paulo, 2018.

____________.Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Provimento


n. 36/2014. DJE de 12/12/2014, p. 33. São Paulo. 2014

____________.Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Provimento


n. 05/2005. DJE de 14/03/2005, p. 04. São Paulo. 2005.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

SOBRE O CONFLITO NOS CASOS ALTAMEMTE


LITIGIOSOS E A IMPORTÂNCIA DE DIRECIONAR
O OLHAR ATRAVÉS DO TEMPO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS EM VARAS DE FAMÍLIA
E SUCESSÕES”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Glausa de Oliveira Munduruca – Psicóloga Judiciário – Foro Regional II Santo Amaro


Rosângela Maria Lenharo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibitinga

AUTORES

Branca de Almeida e Silva – Psicóloga Judiciário – Foro Regional da Penha


Carolina Gonzaga Sanches Jorquera – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mauá
Egli Maria Micheski – Psicóloga Judiciário – Comarca de Registro
Glausa de Oliveira Munduruca – Psicóloga Judiciário – Foro Regional II Santo Amaro
Juniana de Almeida Mota Ramalho – Psicóloga Judiciário – Foro Regional de
Pinheiros
Laura Satoe Ueno – Psicóloga Judiciário – Foro Regional do Ipiranga
Lucilena Vagostello – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jundiaí
Lucy Vianna Alcebíades – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guarujá
Mara Regina Perez Fernandes – Psicóloga Judiciário – Foro Regional da Penha
Rodrigo Otávio Gomes Nicz – Psicólogo Judiciário – Comarca de Eldorado
Rosângela Maria Lenharo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibitinga
Rosimeire Mendes Rocha – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das
Artes
Talita Afonso Chaves – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guarujá

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DEDICATÓRIA

À memória da Dra. Maria Isabel Strong, nossa querida Mabel


que tão precocemente nos deixou.
Você continuará fazendo parte da vida e da história do grupo
através da nossa saudade.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AGRADECIMENTOS

Nossos especiais agradecimentos à advogada Camila Zakka e à


psicóloga Nádia Cristina Xavier Rodrigues de Oliveira pela generosidade em
compartilhar com este grupo seus conhecimentos e experiências profissionais no
uso de métodos pacificadores em demandas judiciais. Estas experiências permitiram
a reflexão de alternativas que podem contribuir na redução de conflitos em casos
altamente litigiosos.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O QUE A MEMÓRIA AMA, FICA ETERNO


Adélia Prado

Quando eu era pequena, não entendia o choro da


minha mãe ao assistir a um filme, ouvir uma música ou ler
um livro. O que eu não sabia é que minha mãe não chorava
pelas coisas visíveis. Ela chorava pela eternidade que vivia
dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de
compreender ... a memória é contrária ao tempo. Enquanto
o tempo leva a vida embora como o vento, a memória traz
de volta o que realmente importa, eternizando momentos.
Crianças têm o tempo a seu favor e a memória ainda
é muito recente. Para elas, um filme é só um filme; uma
melodia, só uma melodia. Ignoram o quanto a infância é
impregnada de eternidade ...
Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos
dentro da gente. Quando nos damos conta, nossos baús
secretos ⎯ porque a memória é dada a segredos ⎯, estão
recheados daquilo que amamos, do que deixou saudade, do
que doeu além da conta, do que permaneceu além do
tempo ...

100
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Ainda impregnados pelo nosso trabalho de 2018 ⎯ o qual abordou a


violência implícita nos casos altamente litigiosos que tramitam nas Varas de Famílias
e Sucessões ⎯, o nosso grupo de estudos, nesse ano, iniciou as atividades
refletindo sobre a importância de procurar alternativas para sensibilizar os sujeitos
dos efeitos nefastos do seu posicionamento beligerante.
Para desenvolver nossas reflexões, revisitamos a noção de conflito que
subjaz os diferentes litígios tendo em mente que, nos casos aqui em estudo, o
conflito central ocorre entre os ex-cônjuges que perderam a capacidade de
comunicação e buscam uma solução no judiciário. Em outras palavras, busca-se um
terceiro. Ressalta-se, no entanto, que esse terceiro é externo ao conflito e não se
deixa contaminar a fim de preservar a imparcialidade. Mas, como ajudar na solução
de algo que faz parte do outro sem se deixar envolver e sem ser tocado em sua
própria subjetividade?
Nenhuma decisão judicial tem o poder de acalentar o ânimo desses
litigantes e os seus filhos permanecem, mesmo após a separação dos pais,
submersos num caldo no qual o significante violência adquire dimensões
devastadoras, pois as crianças e adolescentes são seres em desenvolvimento e
ainda não possuem recursos internos para nomear e elaborar o impacto ou os
sentimentos oriundos da guerra travada pelos pais.
Nós, como profissionais do Setor Técnico do Judiciário, temos um
pequeno espaço para auxiliar o magistrado em sua decisão sobre o destino da
família. Ao realizar essa tarefa, entramos em contato com as forças invisíveis que
alimentam as discórdias. Deparamo-nos com a violência implícita nos discursos e
nos modos de agir dos ex-cônjuges e, indubitavelmente, somos afetados por
aspectos ainda não detectados pelos envolvidos no conflito.
Imersos nas pressões do sistema, corremos o risco de sucumbir e de
adoecer, sendo necessário lembrar que “a violência atuada ou transformada... se
revela no seio de cada família e se repete de geração em geração...” (HOUSSIER,
2017, p.11). Precisamos aprender a reconhecer esses aspectos em nós mesmos
para superá-los; do contrário, corremos o risco de nos alienar em nossas atividades
diárias.

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Ao mesmo tempo em que somos atravessados pela violência, o contato


com as demandas dos litigantes fornece uma oportunidade de nos aprimorar e de
aplicar nosso conhecimento para realizar intervenções que possam contribuir na
tentativa de restauração (ou, muitas vezes, de construção) do lugar da criança na
família que foi decomposta.
Não temos a ilusão ou a onipotência de acreditar que funcionamentos
patológicos crônicos e intensificados pelo campo jurídico serão dissolvidos por meio
de nossas intervenções, mas acreditamos que podemos contribuir no processo de
sensibilização dos ex-cônjuges e deixar alguma marca (uma experiência/uma
interpretação) que, mais adiante, poderá servir como ponto de ancoragem para que
os sujeitos consigam ressignificar os próprios atos e possam encontrar ou
reencontrar o lugar de pais.
Também não temos a presunção de eliminar os conflitos, pois a ausência
de conflito equivaleria ao estado de morte psíquica. Aprendemos com a psicanálise
que a vida mental pode ser compreendida como uma sequência de lutas entre forças
opostas, num movimento espiral contínuo de: conflitos, busca de soluções,
resoluções de conflitos, rearranjos, novos conflitos e novas buscas. Movimento
contínuo e em espiral ⎯ análogo à estrutura do nosso DNA ⎯, que agrega novos
elementos (incorporação), expele outros (expulsão), ordena, rearranja e, no
movimento de retorno, tangencia os aspectos essenciais do sujeito direcionando-se
para um novo ciclo evolucional. Ciclos que se desenrolam no transcorrer do tempo e
a sua evolução dependerá das experiências de vida de cada sujeito.
Tendo em vista a importância dessas experiências e do tempo para a
resolução do conflito, o nosso grupo de estudos optou por iniciar algumas reflexões
sobre esses temas, revisitando alguns conceitos fundamentais.

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1 - PERSPECTIVAS TEÓRICAS SOBRE O CONFLITO

Retomando a ideia do sociólogo Max Weber, que categoriza o conflito


como um tipo de relação social estabelecida por duas ou mais pessoas ou grupos
que possuem pretensões incompatíveis, Entelman (2005) destaca que o conflito é
um fenômeno humano extremamente complexo e dinâmico. Para estudá-lo e
compreendê-lo, o referido autor propõe uma decomposição do cenário no qual a
relação conflitiva se desenrola e destaca a análise dos elementos estáticos (atores,
poder de cada um deles, objetivos, grau de consciência dos atores, tipo de jogo,
terceiros envolvidos, tríades e coalizões) e dinâmicos (intensidade, interação
conflitiva, flutuações e ciclos).
Em relação ao objetivo, Entelman (2005) esclarece que pode ser único ou
pode haver vários na relação conflitiva e, muitas vezes, os atores não possuem
clareza ou consciência dos mesmos. A falta de consciência sobre as motivações que
despertam e alimentam os conflitos é um dos aspectos que dificultam sua resolução.
Em outras palavras, os sujeitos envolvidos na relação conflitiva desconhecem os
próprios desejos e atuam de forma beligerante colocando o outro no lugar de rival a
ser vencido.
Esse cenário também ocorre nos conflitos familiares e adquire dimensões
devastadoras quando se trata de separações conjugais que não foram processadas
psiquicamente e que podem estar relacionadas às transmissões psíquicas entre
gerações que são reproduzidas nas relações familiares (KAES et al., 2001;
HOUSSIER, 2017), ou seja, sobre os filhos recairia o peso do desconhecido.
De acordo com a Psicanálise há uma transmissão psíquica geracional, ou
seja, conteúdos psíquicos dos ascendentes são transmitidos aos descendentes.
Esse material psíquico está na ordem do inominado, estando dentre estes a falta, a
doença, a vergonha, o recalcamento, os objetos perdidos e enlutados.
A teoria sistêmica também aborda o tema da transmissão psíquica
geracional, apontando que uma das funções do sistema familiar é transmitir a seus
membros uma herança, um legado. Dessa forma, os padrões, os costumes, os
segredos e os mitos, e até mesmo, os problemas que determinam o funcionamento
e organização do sistema familiar em um período de tempo podem ser transmitidos
aos descendentes dos membros daquele sistema, que terá sua identidade

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específica, capaz de diferenciá-lo de outros sistemas. No entanto, a repetição de


alguns padrões inter-geracionais pode se tornar um fator impeditivo de mudança e
de crescimento do sistema familiar, mantendo a família em um nível disfuncional.
Antunes e outros (2010), no artigo “Litígios intermináveis: uma
perpetuação do vínculo conjugal” traz à tona o pensamento de Eiguer (1985),
afirmando que o encontro amoroso entre duas pessoas não estaria determinado pelo
acaso, mas aconteceria por meio de uma escolha baseada em critérios não
identificáveis no nível consciente. Sendo assim, o conhecimento acerca dos
mecanismos inconscientes subjacentes à escolha amorosa permitiria deslindar os
entraves dos longos litígios conjugais.
Tais escolhas estariam inscritas em relações objetais primitivas, que
despertariam uma nova entidade ou instância psíquica, que se processa na
interação entre os cônjuges, que por sua vez delimita os tipos de conjugalidades que
desempenharão no decorrer do tempo juntos.
Ocorre que, inevitavelmente, as diversas solicitações proporcionadas pelo
cotidiano desencadeiam desencontros entre expectativa e realidade, entre o que foi
idealizado e o que o outro pode atender. Quando o objeto amoroso com quem se
identificou apresenta sua alteridade, isso provoca um abalo na ilusão de completude
do par. Dependendo da qualidade do vínculo formado na conjugalidade e da
estrutura psíquica dos sujeitos envolvidos, reações distintas podem ser
desencadeadas por esta frustração.
Com a separação amorosa, um luto é vivenciado, independente de quem
promoveu a ruptura, promovendo um forte abalo no ego dos cônjuges, mesmo nas
situações em que a iniciativa de separação se deveu a ambas as partes.

Para que ocorra a dissolução do vínculo, o desejo de ruptura deve se


sobrepor ao desejo de complementaridade, caso contrário, os
sujeitos se manterão numa eterna tentativa de separação. Mesmo
que ocorra o afastamento físico, os sucessivos encontros do ex-
casal, muitas vezes promovidos pelo vínculo da parentalidade que
não se desfaz, em razão da educação e do cuidado dos com os
filhos, os conflitos voltam a se expressar com a mesma intensidade e
constância do período anterior à separação conjugal. Nestes casos,
seriam evidenciados o jogo compulsivo e a repetição, indicando que

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o corte vincular não teria se produzido (ANTUNES et al., 2007,


p.205).

Uma fase importante da separação é a passagem do âmbito privado ao


público. A comunicação da separação do casal pode ocorrer inicialmente nos
círculos íntimos, na família, no trabalho e com os amigos que são informados. Num
momento posterior, o Estado deve conhecer e reconhecer o fim do casamento: “O
privado e o íntimo são tornados públicos e levados à lei para serem regulados e
legitimados” (ANTUNES et al., 2007, p. 205).
Mas, como essas duas áreas instituídas, Direito e Psicanálise,
compreendem os conflitos?
Na concepção de Freud, a constituição e a dinâmica da subjetividade, que
pode ser compreendida como o conjunto de identificações estabelecidas pelo sujeito
com os outros ao longo de sua história, se assentam basicamente em processos
conflitivos: “o conflito psíquico é tido invariavelmente como a expressão desta
realidade compartilhada, dizendo respeito às posições e lugares singulares
assumidos pelo sujeito na trama de suas relações com os demais que lhe são
significativos” (CAFFÉ, 2010, p. 186).
Caffé (2010), psicanalista e perita no campo da Psicologia Jurídica,
ressaltou que, apesar dessas áreas distintas (Direito e Psicanálise) terem os
conflitos como objeto central de suas práticas, os pontos de partida e as finalidades
de cada uma são bem distintos.
Para a Psicanálise, o conflito se manifesta no interior da subjetividade,
entre representações e forças psíquicas opostas em busca de satisfação, se
referindo também a manifestações que o sujeito não reconhece no campo da
consciência. Ocorre entre o desejo e a defesa, entre as diferentes instâncias
psíquicas, entre as pulsões e no conflito edipiano, onde os desejos enfrentam
também interdições.
Já no caso da instância jurídica, existe a expectativa de solução dos
conflitos interpessoais, entre alternativas e interesses incompatíveis que foram
apresentados. Tais conflitos são problemáticas que chegam à instituição judicial e
são institucionalizados por procedimentos caracterizados pela racionalização e
objetivação do conflito (subjetivo) em pauta.

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Trata-se de uma prática que busca orientar a ação humana, produzindo


consequências no plano das relações sociais, onde por sua vez são instituídas
outras subjetividades e novos conflitos.
As pessoas que trazem essas problemáticas à apreciação do juiz
assumem posições discursivas denominadas de “partes”, ou seja, papéis partidários,
e são representados por advogados. Os discursos sofrem traduções e ajustes para a
linguagem e normas do Direito. O juiz é um terceiro, referência normativa e
sancionadora neste processo de regulação social.
A dicotomia entre “requerente” e “requerido” favorece a formação de
nichos de juízos de valor que sedimentam e engessa o papel de cada um durante o
transcurso processual, o que não costuma promover a resolução do conflito em si,
mas apenas a resolução do processo judicial.
Em muitos casos, a etapa jurídica da separação, que poderia ser uma
breve intervenção do Estado se transforma numa longa e sofrida batalha judicial.
Retornando ao processo de transmissão psíquica familiar que abordamos
há pouco, os filhos receberam a herança de tudo aquilo que não está inscrito, visto
ou falado, mas que foi vivido por um dos membros do sistema familiar. Assim,
mesmo resguardado pelo silêncio, tende a se repetir em gerações subsequentes.
Por exemplo, uma mãe ou um pai que após a separação induz o filho a hostilizar o
outro genitor/a provavelmente conviveu a vida toda com essa falta e não pôde
elaborar a dor de ter tido que escolher um dos pais. Por vezes, sem se dar conta,
repete, impossibilitado/a de sensibilizar-se com o sofrimento da criança mediante a
separação.
Desse modo, Antunes e colaboradores (2007) observam que cada genitor
está obcecado com a ideia de ganhar do outro a posse do filho perante a justiça.
Permanecem girando em torno de seus pretensos direitos, negligenciando o fato de
que o único a perder é o próprio filho. Citando Dolto (2003), pontuam que as
discordâncias provêm de dificuldades de ambas as partes relacionadas com a
evolução individual de cada membro do casal.
Assim, o fator a ser destacado na análise dos litígios familiares é a
psicodinâmica da conjugalidade, enquanto produto intersubjetivo. Na perícia
psicológica e social, o que deve ser visto não é apenas o conflito judicial, é crucial

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que se recapitule também o histórico de relacionamento e construção daquela


família.

2 - A PERÍCIA E OS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO


DE CONFLITOS

O conflito vivenciado pelas partes é intensificado dentro do sistema


adversarial presente no sistema judiciário e pensar em formas alternativas de
atuação e solução de conflitos tornam-se preponderante para, de fato, conseguirmos
auxiliar os membros familiares que estão envoltos em um conflito crônico e delegam
a resolução dessas disputas ao judiciário.
Nos casos altamente litigiosos de Vara de Família, muitas vezes, a
decisão judicial baseia-se na perícia psicológica e social da família. Nestes casos, a
perícia busca compreender, em alguma medida, a dinâmica familiar que propiciou a
produção, a intensificação e a cristalização dos conflitos.
Caffé (2010) reflete e discute sobre as dificuldades de se produzir uma
função de escuta analítica uma vez que na perícia judicial o psicólogo trabalha em
condições completamente distintas da clínica. No âmbito jurídico, essencialmente
normativo, o perito ocupa o lugar de representante do juiz e seu trabalho –
(de)limitado pelo tempo processual e não do sujeito –, assume valor de prova.
A despeito destas especificidades e limitações, Caffé (2010) compreende
que pode haver a construção de um espaço transferencial que permita a veiculação
dos discursos dos próprios membros da família – a “fala da angústia” –, até então
traduzida por um porta-voz (advogado), sob a forma de uma defesa jurídica.
Segundo a autora, a perícia não permite a elaboração do conflito familiar, no entanto
“pode eventualmente circunscrevê-lo numa ordem favorável a essa elaboração. Em
condições adequadas, o conflito normatizado, inscrito dentro de certos parâmetros,
torna-se conflito processável” (p. 106).
Neste contexto eminentemente litigante, o Poder Judiciário também
recorre aos denominados métodos alternativos de solução de conflitos cuja
finalidade é sensibilizar as partes para que possam restabelecer o respeito e a
comunicação não violenta, expandindo a compreensão que elas têm sobre a
situação de litigio. Busca-se, assim, promover o entendimento do cenário e ajudar os
litigantes a explorar soluções criativas para o conflito.
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2.1 - A MEDIAÇÃO

Os conflitos são inerentes às relações humanas e, no contexto das


transições familiares que geram processos e disputas judiciais, especialmente nos
casos que envolvem crianças, torna-se relevante a realização de intervenções
destinadas à superação e prevenção do litigio. Entre as possibilidades de
intervenção destaca-se a proposta de mediação de conflitos como uma alternativa
ao sistema judiciário tradicional.
A advogada e mediadora Camila Zakka (2019), em exposição oral no nosso
Grupo de Estudos, enfatizou que a Mediação é um processo voluntário, em que as
partes tomam decisões em conjunto, baseando-se na compreensão que elas têm de
seus próprios pontos de vista, do outro e da realidade que enfrentam.
As partes são convidadas a se engajarem em um método criativo e
colaborativo de solução de problemas, no qual é possível chegar a um acordo legal.
É um processo flexível, definido e redefinido pelos disputantes e pelo mediador;
expande o entendimento das partes sobre a situação conflituosa, sobre as
necessidades e interesses de cada um.
A referida mediadora considera que esse método ajuda as pessoas na
tomada de melhores decisões, avaliando opções disponíveis de acordo com
necessidades e interesses, e tem potencial para restaurar relações perdidas.
Entende ainda que o bom acordo satisfaz os interesses e utiliza o tempo de forma
eficiente, ajudando a construir o tipo de relação desejada, formando soluções
criativas.
De acordo com o Código de Processo Civil, o mediador auxilia os
interessados na compreensão das questões e dos interesses em conflito, de modo
que possam, por si próprios, mediante o restabelecimento da comunicação,
identificar soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.
Um dos questionamentos sobre o processo de mediação é referente ao
seu tempo de duração. De acordo com a mediadora Camila Zakka, pelas
peculiaridades do conflito familiar, limitar o tempo da mediação pode colocar em
risco a sua eficácia. Por outro lado, permitir que esse processo se prolongue
demasiadamente poderia fazer com que as partes o confundam com um processo
terapêutico.

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O próprio mediador pode ser considerado apto a decidir pelo fim ou não
da mediação na medida em que perceba que essa forma específica de condução do
conflito já não se mostra útil para o caso concreto em discussão.
O Ministério da Justiça do Canadá utiliza o Plano de Responsabilidades
Parentais nos casos altamente litigiosos no intuito de estabelecer regras a serem
cumpridas pelos pais, contribuindo para a redução dos conflitos entre o casal,
privilegiando as discussões e resoluções em relação à parentalidade, no melhor
interesse da criança. No referido plano, os pais envolvidos em uma ação de divórcio
estabelecem de forma descritiva seus deveres e obrigações para cuidar de seus
filhos.
Segundo o Ministério da Justiça do Canadá, faz-se necessário
estabelecer um plano de responsabilidades parentais criteriosamente estruturado,
com o intuito de reduzir os conflitos entre os pais, pois muitas vezes, a mediação
mostra-se insuficiente.
Outra perspectiva abordada pelo Ministério da Justiça do Canadá é
trabalhar os conflitos no âmbito das politicas públicas devido à complexidade das
questões familiares que extrapolam o campo judiciário.
Entende-se que é no âmbito das políticas públicas que a família busca
respaldo para cumprir seu papel, embora inicialmente a demanda institucional se
apresente como questão isolada, compreende-se ser ela decorrente de um sistema
capitalista que incita o individualismo e a meritocracia, camuflando as desigualdades
e injustiças sociais nela permeadas.
Diante da deficiência de recursos públicos e de rede de apoio (familiar,
comunitária e social) a família recorre ao Poder Judiciário buscando equacionar sua
demanda, submetendo-se à publicização de questões particulares.
Nesse contexto, é imprescindível que a intervenção dos profissionais do
Judiciário seja pautada em conhecimento teórico aprofundado e condizente com as
novas expressões da questão social, que assola diretamente as relações familiares
e culminam em demandas apresentadas na prática diária como questão meramente
pontual, simplista, particularizada, e, por vezes, patologizada.

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2.2 - CONSTELAÇÃO FAMILIAR

Nos últimos anos a Constelação Familiar ganhou crescente visibilidade e


conquistou novos espaços, inclusive no Poder Judiciário. Este método despertou a
atenção e recebeu apoio de magistrados interessados em empregá-lo como
alternativa de pacificação de conflitos judiciais, especialmente nas demandas de
Varas de Família e Sucessões.
A constelação sistêmica pressupõe que as histórias, os conflitos, os
dramas familiares experienciados por uma determinada pessoa também foram
vivenciados por outros membros da família em gerações anteriores. Isto significa
que uma mesma trama familiar tende a ser repetida por diferentes membros da
linhagem, em sucessivas gerações. Apoiado na teoria sistêmica, dentre outras
teorias e técnicas, o processo de constelação visa reconhecer, no campo sistêmico
familiar, as experiências transgeracionais que afetam o indivíduo e sua família.
Segundo a consteladora e psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo,
Nádia Oliveira, as experiências emocionais que emergem no processo de
constelação podem proporcionar ao indivíduo um novo olhar sobre os conflitos. Esta
nova perspectiva de compreensão tende a produzir modificações significativas na
dinâmica familiar como, por exemplo, os lugares ocupados pelos membros dentro da
família.
Destaca-se que os métodos alternativos de resolução de conflito exigem
dedicação e tempo de acompanhamento do caso e, no judiciário, a demanda da
celeridade processual contrapõe-se ao tempo e à disponibilidade afetiva dos
envolvidos.

3 - SOBRE O TEMPO PROCESSUAL E O TEMPO SUBJETIVO

O tempo processual é determinado pelo rito estabelecido no Código do


Direito Processual, o qual prevê algumas etapas: petição inicial, despacho,
contestação, réplica, especificação de provas (se o caso), despacho saneador no
qual, geralmente, se determina a perícia, laudos e/ou novos documentos,
manifestação das partes até a prolação da sentença de primeiro grau da qual, ainda,
caberá recurso. Trata-se, portanto, de uma sequência linear na qual cada etapa
possui prazos específicos. Frequentemente as partes se queixam da morosidade do

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judiciário, muitas vezes, alimentando a ilusão de que a decisão judicial poderá


resolver os conflitos familiares, emocionais.
O tempo subjetivo é variável, está relacionado à percepção de cada
indivíduo, de acordo com seu mundo interno, sentimentos e fantasias. Algumas
horas podem parecer uma eternidade para quem vivencia uma situação
desagradável e minutos para quem experimenta uma situação prazerosa.
O tempo processual/cronológico dificilmente coincide com o tempo
psicológico/subjetivo, ou seja, com o tempo necessário para a elaboração das
perdas e dos conflitos. Segundo Féres–Carneiro (1998), a separação é sempre
vivenciada como uma situação extremamente dolorosa e estressante, provocando
nos cônjuges sentimentos de fracasso, impotência e perda, havendo um luto a ser
elaborado. O tempo de elaboração do luto pela separação é quase sempre maior do
que o luto por morte.
Com relação ao trabalho psíquico do luto, Freud (1917) expõe que,
quando o teste de realidade revela que o objeto amado não existe mais, passa a
exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa
exigência provoca uma oposição compreensível, uma vez que as pessoas não
abandonam facilmente uma posição libidinal. O processo de luto consiste em um
desinvestimento e redistribuição da energia psíquica, antes concentrada em um
único objeto.
Kübler-Ross (1989) identificou cinco estágios do processo psicológico de
elaboração do luto: negação e isolamento; raiva; barganha; depressão e aceitação.
Segundo a autora a negação funciona como um parachoque diante das notícias
inesperadas, é uma defesa temporária, que permite que o paciente se recupere
gradualmente do choque. Quando não é mais possível manter firme a negação, ela
é substituida por sentimentos de raiva, revolta, inveja e ressentimento, que
carateriza o segundo estágio. No terceiro, ocorre a barganha, isto é, tentativa de
entrar em algum tipo de acordo que adie o desfecho inevitável. No quarto estágio
aparecem sinais de depressão, a raiva e revolta cederão lugar ao sentimento de
perda. No quinto, o paciente aceita seu destino, compreendendo a morte ou perda
como um acontecimento inevitável.
Rangel (2014) refere que, em alguns casos de separação conjugal, o
vinculo dos ex-parceiros pode ser mantido pelo ódio extremo. Para essa autora, a

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partir da definição da posição esquizo-paranóide, formulada por Melanie Klein (1946)


é possível compreender como os aspectos negativos do relacionamento amoroso
podem ser “depositados” no outro. Através da cisão e da projeção, o ex-parceiro
torna-se o único culpado pelo fracasso do relacionamento. A autora acrescente que

[...] a elaboração do luto requer, portanto, uma integração dos


aspectos internos bons e maus. Os aspectos negativos que foram
projetados no ex-conjuge precisam ser reintrojetados. Da mesma
forma, os ex-parceiros precisam reter os aspectos positivos do outro,
eliminando a lógica adversarial em que existe um culpado e um
inocente. Assumindo também a responsabilidade pelo término do
relacionamento, é possível diferenciar-se realmente do outro,
elaborar a perda e reconstruir a própria vida. (RANGEL, 2014, p.
51).

Caffé (2010) observou que os conflitos que se estabelecem no âmbito das


famílias envolvidas em disputas na Vara de Família, parecem impossibilitar o
processamento do luto pela separação conjugal, que assim não se realiza. As
relações de mútua dependência, firmadas na condição anterior do casamento,
estendem-se no contexto litigioso, expressadas por intensas raivas e ressentimentos
que alimentam entre si os membros da família, e que os mantém ainda ligados e
ocupados uns com os outros, no campo da guerra processual.
Durante o processo judicial, garante-se que o conflito seja suspenso e
mantido ao mesmo tempo “... o que dá tempo para que seja discutido... (FERRAZ
JR., 1973, p.68, apud Caffé, 2010, p. 145)”. O recurso dos prazos cria uma distância
temporal entre sua emissão e recepção. Assim:

[...] uma parte se manifesta (quase sempre formalmente e por escrito


nos autos do processo) e dias se passam até que a outra parte
formule a sua resposta, ou até que o juiz defira sobre o que foi
juntado; às vezes, requer-se uma prova que demora tempo a ser
realizada (um exemplo claro é a própria pericia judicial) (CAFFÉ,
2010, p. 145).

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Com isso, o processo judicial coloca os envolvidos para dialogarem, ou


seja, àqueles que não estão se comunicando são obrigados a fazê-lo no decorrer
processual. Embora as pessoas costumem queixar-se da lentidão da Justiça, esse
tempo possibilita uma elaboração dos sentimentos nos casos onde as partes
conseguem refletir. Nos processos em que são mais refratárias, tornam-se casos
altamente litigiosos, onde o tempo parece inclusive agravar as relações, alimentadas
por beligerâncias e depreciações mútuas. Nesse sentido, o tempo tem um aspecto
relacional na medida em que se trata de um processo de aproximações e
separações incluindo vivências simultâneas, que se encontram em “tempos”
subjetivos diferentes e envolvem também gerações diferentes.
Na Justiça, há três tipos de tempo que devem ser considerados. Há “o
tempo que o magistrado necessita para dar uma sentença, o tempo que o
profissional precisa equacionar sua própria reação emocional diante do estudo e o
tempo que a família leva para elaborar suas vivências” (SANTOS & COSTA, 2007, p.
122).
Nesse sentido, é um desafio para os assistentes sociais e psicólogos que
atuam no contexto judiciário criar condições e encontrar espaços para que os
tempos subjetivos possam ser respeitados e para que as suas intervenções
produzam efeitos terapêuticos para as famílias atendidas.

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4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir, evocamos novamente Adélia Prado: “o tempo e a memória


são opostos, enquanto um se esvai de nossas vidas, o outro persiste indelével”.
Apagar as memórias é impossível, os traços nela inscritos (os significantes)
persistem e são transmissíveis de geração a geração.
Observamos que, nos casos altamente litigiosos, as memórias que o outro
(ex-parceiro) despertam são dolorosas demais incitando ações que atingem
nocivamente os filhos. Ao invés de buscar recursos para elaborar o luto e os
sentimentos que perturbam o funcionamento mental − como, por exemplo: a raiva e
o desejo de vingança −, recorre-se ao judiciário e sentir-se vencedor, de alguma
forma, torna-se a meta. Nesse processo de solicitação de legitimação dos supostos
direitos imaginários, a subjetividade dos filhos é desconsiderada. Em outras
palavras, os pais produzem a morte simbólica do próprio filho.
No livro Assassinatos em Família, Houssier (2017) destaca os atos
extremos, como, por exemplo, o assassinato do Pai da Horda9 e o desejo de eliminar
o filho como conteúdos centrais da dinâmica de todas as famílias. O desejo
inconsciente de eliminar o rival está presente no psiquismo desde os primórdios e,
dependendo da estruturação de cada sujeito, isso poderá ser vivenciado no campo
imaginário, simbólico e/ou real.
Pontuamos aqui um exemplo de conteúdo inconsciente que pode, por
falta de elaboração psíquica, fomentar os conflitos familiares no âmbito jurídico.
Muitos poderiam argumentar que isso é apenas uma hipótese e, no estrito tempo de
nosso trabalho com as famílias, não é viável abordar essas questões. No entanto,
não se trata de abordar diretamente o tema, mas de tê-lo em mente para ampliar a
nossa compreensão sobre o assunto, pois, no contato entre os sujeitos, o conteúdo
verbal é apenas parte do discurso.
Pensar e criar alternativas, disponibilizar lugares e transmitir informações
aos litigantes, mesmo que não estejam dispostos, não possam ou não queiram,
deixa uma marca que pode contribuir para tornar o conflito processável pelos pais,
amenizando os efeitos nos filhos.

9
Na obra “Totem e Tabu”, Freud (1912) apresenta o Pai da Horda como um sujeito não castrado
e detentor de direitos exclusivos sobre todas as mulheres do clã. O seu assassinato pelos seus
filhos produz a instauração da Lei, a qual todos, sem exceção, devem se submeter.
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REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ana Lúcia Marinômio de Paula; MAGALHÃES, Andrea Seixas;


CARNEIRO, Terezinha Féres. Litígios intermináveis: uma perpetuação do vínculo
conjugal? Aletheia 31, p.199-211, jan./abr. 2010.

CAFFÉ, Mara. Psicanálise e Direito: a escuta analítica e a função normativa jurídica.


2º edição. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL DAS


ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGAS DO TJ-SP:
DESAFIOS E QUESTÕES

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Ana Paula Hachich de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Vicente


Gabriel Jacques Wahrhaftig – Psicólogo Judiciário – Fórum Regional de Itaquera

AUTORES

Adriana Ribeiro Delgado – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de Itaquera


Alba Tereza Sousa de Macedo – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
São Miguel Paulista
Aline Cristina Cardoso – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Itaquera
Ana Paula Hachich de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Vicente
André Werneck Barrouin – Psicólogo Judiciário – Fórum Regional de Vila Prudente
Bárbara Eduarda de Melo Nunes – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional do
Tatuapé
Daniella Baldon Caetano – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de São
Miguel Paulista
Debora Carmen Ferreira Recio – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Santana
Fernanda Cazelli Buckeridge – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional da Penha
Gabriel Jacques Wahrhaftig– Psicólogo Judiciário – Fórum Regional de Itaquera
Helene Yuri Anaguchi Tiba – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cabreúva
Josiane Biondo – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional do Brás
Ianara Kelly Guilherme de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional do Brás
Juliana Fernandes Iuan – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Santana
Leila Zanella – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de Santana
Lilian de Moura – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de Santana
Luisa Beatriz Pacheco Ferreira – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de São
Miguel Paulista
Milena da Silva Mano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itu
Paula Antonia Pansa Brumatti – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional do
Tatuapé
Rachel de Souza da Costa e Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São Roque
Raimundo Nonato Lopes Neto – Psicólogo Judiciário – Fórum Regional de Itaquera

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Rosilda de Fátima dos Santos Coelho – Assistente Social Judiciário – Comarca de


São Carlos
Thamara Gloria de Almeida Borges – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional
de Santo Amaro
Valdecio Carlos da Silva Junior – Assistente Social Judiciário – SANCTVS – Fórum
Criminal da Barra Funda

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos, nos últimos três anos, tem discutido o cotidiano


profissional e os atravessamentos identificados durante o processo de pensar
criticamente a prática em articulação com a teoria. Na impossibilidade de uma
atuação profissional desvinculada da realidade, a efetivação dos projetos ético-
político-profissionais se dá no marco da sociedade capitalista e, portanto, do trabalho
assalariado. Daí, torna-se fundamental analisar a correlação entre os projetos
profissionais e as condições reais de trabalho. Nesses processos de pensar o fazer
cotidiano, somos constantemente afetados pelo próprio fazer: os objetos sobre os
quais refletimos atravessavam-nos enquanto refletíamos sobre eles.
Nos encontros iniciais de 2019, estabelecemos como meta aprofundar a
análise dos dados obtidos a partir de levantamento realizado em 2018 acerca da
prática profissional, conforme proposta apresentada no artigo anterior. Os resultados
parciais do que havíamos nomeado como pesquisa representam, apesar das
limitações metodológicas, um recorte importante de análise para entender parte do
cotidiano profissional das equipes técnicas do Judiciário e enriqueceram o debate no
grupo de estudos deste ano.
As principais finalidades das reflexões do grupo foram: construir
alternativas para o enfrentamento dos limites institucionais; propor novas formas de
atuação para além das atribuições institucionais do Tribunal de Justiça ao Serviço
Social e Psicologia, de modo a garantir aos sujeitos demandatários do sistema de
justiça o seu fortalecimento na inclusão de políticas sociais e resistência às diversas
expressões da “questão social”10. Nas discussões, foram consideradas as mudanças

10
“A ‘questão social’ é constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. Não se suprime a
primeira conservando-se o segundo. A análise de conjunto que Marx oferece n ́O capital revela,
luminosamente, que a ‘questão social’ está elementarmente determinada pelo traço próprio e
peculiar na relação capital/trabalho – a exploração. A exploração, todavia, apenas remete à
determinação molecular da “questão social”; na sua integralidade, longe de qualquer
unicausalidade, ela implica a intercorrência mediada de componentes históricos, políticos,
culturais, etc” (NETTO, 2001, p.45-46). No mesmo sentido, apresenta Iamamoto: “A questão
social diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na
sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no
caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o
trabalho – das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. É
indissociável da emergência do ‘trabalhador livre’, que depende da venda de sua força de
trabalho com meio de satisfação de suas necessidades vitais” (2001, p. 16-17).
121
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

recentes e a percepção do avanço neoliberal e do conservadorismo no contexto


brasileiro e, deste modo, na realidade cotidiana da população atendida nas varas.
As reflexões realizadas ao longo do ano consistiram, entre outras coisas,
em um diálogo entre a descrição da realidade de trabalho transcrita nos
questionários e outros conceitos trabalhados no grupo de estudos. Foi possível
observar que algumas respostas do questionário aplicado denotaram a preocupação
das assistentes sociais e psicólogas paulistas para que a atuação no Judiciário
estivesse coerente com seus projetos ético-políticos, cujo objetivo maior é a garantia
de direitos da população atendida.
Durante os encontros, as participantes pontuaram que o atual contexto
sócio-político e econômico, propulsor de mudanças no tecido social, circunscreve as
demandas dirigidas ao Judiciário, que é requerido a apresentar respostas a estes
fenômenos. O desdobramento desta combinação de fatores se traduz no cotidiano
de psicólogas e assistentes sociais judiciárias, que encontram em cena a disputa de
modelos de trabalho, sendo primordial garantir a defesa de seus respectivos
Códigos de Ética.
Para além dos atravessamentos já apontados, a partir das narrativas
apresentadas pelas participantes do grupo, constatamos uma multiplicidade de
experiências nas distintas realidades nas quais estão imersas, atuando com família,
infância e juventude e também na violência doméstica, sendo, de tal forma,
importante discriminar as demandas específicas que emergem de cada modalidade
de atuação, assim como o campo comum que permeia a vivência destas
profissionais.
No primeiro capítulo será apresentada a contextualização do percurso
histórico do Serviço Social e da Psicologia enquanto profissões e suas inserções no
Tribunal de Justiça de São Paulo, construída a partir de leituras e debates instigados
pelo livro O Serviço Social e Psicologia no Judiciário e da participação das
convidadas Eunice Teresinha Fávero e Dayse César Franco Bernardi, ambas
profissionais aposentadas do Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual trabalharam
desde a segunda metade dos anos 1980.
No segundo capítulo serão discutidos os desafios da prática profissional
nesta instituição, fazendo a interlocução entre respostas do levantamento

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

consideradas emblemáticas quanto às diferentes concepções de atuação e os


debates realizados no grupo ao longo do ano.
Os desafios levantados foram divididos em três eixos: garantia da ética
profissional frente aos contextos institucional e macro-político, gestão de recursos
humanos e condições materiais.
No eixo gestão de recursos humanos, debatemos a estipulação de metas
numéricas quanto à produção dos setores técnicos, os critérios desconhecidos para
a distribuição das profissionais nas diversas comarcas e setores, o congelamento
das nomeações das profissionais aprovadas no último concurso público, os
convênios com a municipalidade para cessão de servidoras e a insuficiência de
profissionais que resulta em uma longa fila de espera nas agendas dos setores
técnicos.
No eixo de garantia da ética profissional, foi mencionado o
atravessamento da instituição sobre o trabalho do Serviço Social e da Psicologia a
partir de determinações equivocadas, como laudos de veracidade, despachos com
determinações sobre a metodologia a ser aplicada no exercício profissional, além
das questões mais específicas de cada realidade profissional.
No eixo de recursos materiais, foram problematizadas as condições para
a realização do trabalho, com apontamento para as estruturas físicas precárias,
dificuldades relativas a transporte e logística, entre outras.
Por último, serão elencadas possíveis estratégias de enfrentamento para
a superação dos diversos desafios apresentados ao longo do artigo, visando à
garantia dos projetos ético-políticos das categorias, buscando novas possibilidades
de atuação no Judiciário e uma nova lógica de trabalho.

1 - PERCURSO HISTÓRICO

Durante o percurso de trabalho do grupo no ano de 2019, demonstrou-se


relevante discutir a inserção da Psicologia e do Serviço Social no contexto judiciário
de São Paulo. Como subsídios ao grupo, para qualificar as discussões em curso
quanto às demandas e reinvindicações que as categorias enfrentam atualmente, foi
realizada a leitura de parte do livro: “O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário,
construindo saberes e conquistando direitos”, de Fávero, Melão e Jorge, além de
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

debates reflexivos e discussões de casos. Além disso, contamos com a participação,


em uma das reuniões, de duas convidadas, a assistente social Eunice Teresinha
Fávero e a psicóloga Dayse Cesar Franco Bernardi, que apresentaram o histórico da
Psicologia e Serviço Social no Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo elas atuado
ativamente na construção e inserção destas categorias no Judiciário Paulista. A
seguir, apresentamos um relato livre a partir das contribuições das convidadas.
A partir da Lei n.º 560, de 27 de dezembro de 1949, referente à criação do
Serviço de Colocação Familiar, as assistentes sociais identificaram a necessidade
da atuação também das psicólogas frente a esta demanda.
A Psicologia Jurídica, no início de seus trabalhos, operava nas chamadas
“Varas de menores” a partir das “audiências interdisciplinares”, que tinham como
foco as discussões de caso com os/as operadores/as do Direito e as equipes
técnicas, antes que fosse proferida uma decisão final.
A referida Vara não ficava no prédio dos Fóruns (tinha um caráter de
exceção) e sua lógica era operada a partir do Código de Menores, com princípios
higienistas, de controle social das famílias e das crianças.
Entre os anos 1979 e 1985 houve discussões intensas sobre a
interdisciplinaridade, advindas de encontros entre psicólogas e assistentes sociais
para debater a identidade profissional destas categorias no âmbito da Justiça e
promover lutas pela conquista de espaço, bem como propostas de como ambas as
profissões poderiam ter um trabalho interventivo.
Em 1985, foi realizado o primeiro concurso para psicólogas, concurso este
elaborado e fiscalizado pelo Conselho Regional de Psicologia – CRP-SP. Este
certame também se caracterizou como uma conquista da categoria, pois as
psicólogas até então atuavam como peritas, sendo chamadas através da indicação
de juízes.
O desenho das Varas de Infância e Juventude e das Varas de Família foi
baseado em estudos que demonstravam que havia possibilidade de reduzir litígios
nas ações judiciais, de forma a evitar que o processo fosse usado como instrumento
para manter vínculos pautados pelo ressentimento, o que ocasionava a manutenção
da demanda que o originou.
Essa lógica ia ao encontro das expectativas de juízes/as da Vara Central,
que, quando indagados/as em pesquisa, relataram que tinham como expectativa que

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a atuação da Psicologia diminuísse os conflitos, entendendo que a Justiça “não era


lugar para briga”. No entanto, estes/as magistrados/as ainda reduziam a atuação
profissional à de perícia.
Mais precisamente na área da infância e juventude, foi realizado um
inventário para identificar o perfil das profissionais que trabalhavam com a temática,
cujo resultado foi propulsor de discussões e reformulações posteriores.
Na década de 90, foi observada a necessidade de um interlocutor com o
TJ, pois havia demandas específicas referentes à natureza do trabalho de
psicólogas e assistentes sociais, situação que provocou a realização de uma
assembleia. A partir das discussões, foi criada a Associação dos Assistentes Sociais
e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP), que
realizou em 1996 seu primeiro encontro, contando com a participação dos
Conselhos profissionais de ambas as categorias.
Neste primeiro encontro, o tema norteador foi a reflexão sobre a prática
profissional face à construção da cidadania. O resultado deste encontro foi um rol de
noções e recomendações dirigidas à Corregedoria e outros órgãos pertinentes.
Segundo Dayse Bernardi, quando o CRP-SP fez a sua primeira menção à
atuação da Psicologia no Judiciário, esta se deu em tom de crítica, com uma
recomendação de que não se atuasse neste campo. Na época, houve uma resposta
das profissionais quanto a este texto, considerando fundamental uma revisão do
Conselho e reposicionamento quanto à consideração desta área de atuação, com a
criação, pelo órgão, de uma Comissão da Infância e Adolescência.
Ressaltava-se que, sendo crianças e adolescentes sujeitos de direitos,
isto deveria prevalecer em qualquer instância, inclusive nas Varas de Família, com o
cuidado de que, no processo, a criança não ocupasse o lugar de objeto dos pais,
sendo necessária a distinção entre conjugalidade e parentalidade.
Este paradigma estabelecido pelo ECA requer que as profissionais
escutem as crianças, adolescentes e suas famílias no TJ a partir de suas
singularidades, reconhecendo os territórios sociais dos quais fazem parte, pois a
subjetividade é construída a partir das relações vividas no contexto social.
Bernardi apresenta que a Psicologia Jurídica representa um avanço e ao
mesmo tempo um desafio, conforme segue:

125
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A Psicologia Judiciária, mais que um nome a definir lugar, tem sido


um espaço amplo e contraditório, no qual os profissionais da área
inscrevem suas ações e com elas todo um dispositivo de saber que,
ao ser construído por eles, os constrói a todos.
O reconhecimento da Psicologia Jurídica como uma especialidade,
pelo Conselho Federal de Psicologia, foi, ao mesmo tempo, um
avanço e um risco. Avanço porque pode indicar que os profissionais
dessa área construíram uma prática e acumularam um saber
específico sobre a realidade particularizada no contexto judicial das
Varas da Infância e Juventude e Varas de Família e das Sucessões.
E um grande desafio, que é reconhecer nessa especificidade aquilo
que os identifica como profissionais de uma Psicologia – talvez
aquela que se proponha a ver na subjetividade de cada pessoa os
atravessamentos de classe, gênero, raça e idade dessa sociedade
moderna (BERNARDI, 2015, p. 34).

Contextualizando o início da trajetória profissional do Serviço Social, no


ano de 1936, em São Paulo, fundou-se a primeira Escola de Serviço Social brasileira
destinada a mulheres dispostas a realizar atividades de caráter assistencialista, cuja
implementação contou com forte intervenção da Igreja Católica. Para além do viés
religioso, neste primeiro momento a categoria profissional referenciava e orientava
sua prática utilizando matrizes norte-americanas, de cunho positivista e
individualizante.
Portanto, partindo do ponto de vista da formação profissional da época,
com forte apelo religioso e moral, a profissional chamada a fazer este controle das
condutas e comportamentos da população foi a assistente social.
Especificamente quanto à inserção no Judiciário, as primeiras
profissionais da área eram, em sua maioria, de alguma forma vinculadas à igreja
católica. Refletindo a respeito do Projeto Ético-Político do Serviço Social e a
interlocução deste na construção da cidadania e na discussão acerca dos direitos
fundamentais, rememora-se que a inserção da categoria ocorreu em momento
anterior à inserção da Psicologia, se dando a partir do Juizado de Menores, cuja
forma de operacionalização era orientada de forma a regular, controlar e disciplinar
comportamentos diferentes ou desviantes da norma dominante, uma visão limitante
e centrada na figura do menor e da família pobre sem qualquer acesso a direitos
básicos.
Conforme ocorre a complexificação deste cenário, dado o contexto
macropolítico, a instituição passou a buscar profissionais para atuar frente a esta

126
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

demanda e responder aos problemas sociais, sinalizando uma percepção do Poder


Público de que tal população era um grupo a ser controlado, não sendo considerado
como sujeitos detentores de direitos e dignos. Assim, a atuação se inicia e consolida
formalmente a partir de 1948.
Fávero destaca o Serviço de Colocação Familiar, no ano de 1949. Este
Serviço objetivava evitar a internação de menores; assim, caso a família de origem
não estivesse dentro do que era esperado (do ponto de vista moral), crianças e
adolescentes eram colocados, de maneira provisória, em famílias substitutas
mediante um subsídio até que a família de origem se reajustasse (ou não), sendo
um programa que serviu para atender demandas colocadas pela ampliação das
expressões da “questão social”. Esta intervenção não era pericial, mas um trabalho
com as famílias pensando no “bem-estar” e reajustamento de condutas
consideradas desviantes.
Conforme o acúmulo profissional se avolumou, surgiu outro espaço
ocupacional conhecido como “Serviço Social de Gabinete”, trabalho que foi instituído
em razão do aumento da demanda de natureza social e pelas competências
inerentes às profissionais dessa área, que detinham um saber específico sobre as
relações sociais e familiares. Tal saber se traduz, então, em sistematização, laudos,
pareceres ou relatórios para subsídio da decisão judicial.
A assistente social foi, e ainda é chamada a fazer parte do Poder
Judiciário para contribuir com a aplicação da lei de maneira que o parecer social
apresentado ou legitime o status quo e o alijamento daqueles que buscam a justiça
ou enseje a efetivação de direitos.
A categoria profissional organizada passou a estabelecer maior
articulação com outros atores sociais na busca da efetivação dos direitos da criança
e do adolescente e reflexões sobre a justiça e os direitos no cotidiano profissional na
atualidade. No caso do Judiciário, internamente passa a construir importantes
articulações e compor parcerias com a Psicologia.
Importante indagar sobre como o Serviço Social no espaço do Judiciário
pode contribuir para o acesso à justiça e aos direitos em meio à barbárie que
permeia a realidade social e que chega nesse espaço de atuação de maneira
fragmentada, aparentemente como demandas individuais.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Tudo isso necessita ser pensado tendo em perspectiva que a ação


profissional deve ser extra-muros. Conforme expressa Iamamoto:

A “questão social” é indissociável da sociabilidade capitalista e


expressa desigualdades econômicas, políticas e culturais das
classes sociais mediatizadas por disparidades nas relações de
gênero, geração, características étnicos-raciais e formações
regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil
no acesso aos bens da civilização. Atinge visceralmente a vida dos
sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania (Ianni, 1992), no
embate pelo respeito aos direitos civis, sociais e políticos e aos
direitos humanos (...). É nesse terreno de conflitos e disputas que
trabalham os assistentes sociais, exercendo suas atribuições tendo
em vista oferecer subsídios para a decisão judicial por meio de
estudo social, aconselhamentos, orientações e acompanhamentos,
além de atuarem na viabilização de benefícios, no acesso aos
serviços judiciários e recursos oferecidos pelas políticas públicas e
pela sociedade, articulando-se às formas públicas de controle
democrático do Estado (IAMAMOTO, 2015, p. 28-29).

Na atual conjuntura de precarização, muitas vezes a profissional atua de


forma burocratizada, reduzindo a qualidade do trabalho, com a implementação de
um modelo gerencial e meramente produtivo, sem qualquer espaço para pensar o
fazer profissional.
O estudo social/perícia social com características descritivas do relato dos
sujeitos atendidos e da demanda que apresentam muitas vezes se torna comum em
detrimento de um maior investimento em avaliações sociais articuladas com as
amplas dimensões da realidade e ações também articuladas com outras
organizações sociais.
Consideramos importante revisitar o histórico de inserção das
profissionais do Serviço Social e Psicologia no Judiciário para que possamos
vislumbrar o avanço conseguido até este momento, sendo que, durante a trajetória,
houve momentos de avanços e outros em que aparentemente foi necessário
retroceder para garantir o que já foi obtido.
As convidadas destacaram ainda a importância da manutenção de um
trabalho ético e de qualidade, bem como que este trabalho seja devidamente
registrado e fundamentado com bibliografia pertinente.

128
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2 - DESAFIOS ATUAIS DA PRÁTICA PROFISSIONAL

Neste capítulo, trabalharemos quatro eixos principais que consideramos


os desafios atuais mais relevantes da prática profissional das psicólogas e
assistentes sociais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ressaltamos que
estes eixos se articulam entre si e que foram separados exclusivamente por
finalidades didáticas. São eles: gestão de pessoas, questões éticas, organização
política e recursos materiais. Apresentaremos os impactos dessas problemáticas
tanto para a população atendida quanto para a saúde das trabalhadoras, propondo
um diálogo com as falas recolhidas na pesquisa.
No eixo gestão de pessoas, identificamos como desafios: a estipulação de
metas quantitativas como um parâmetro unidimensional para medir a atuação e
produção dos setores técnicos; a metodologia desconhecida para lotação das
profissionais nos diferentes juizados e comarcas da instituição; o congelamento das
nomeações das profissionais aprovadas no último concurso público; a determinação
de prestação de serviços cumulativos; os convênios com a municipalidade para
cessão de servidoras; a situação da longa fila de espera nas agendas dos setores
técnicos.
No eixo sobre a ética, destacam-se os atravessamentos verticais da
instituição sobre o trabalho profissional, como: o dispositivo do depoimento especial;
as determinações solicitando “laudos de veracidade”; despachos com determinações
sobre a metodologia a ser aplicada no exercício profissional; a fragmentação da
atuação nos diferentes juizados que, por vezes, faz com que uma mesma família
seja atendida em diferentes Varas de forma desarticulada. Ainda neste eixo,
considerando as realidades locais, também se apresentam questões específicas no
campo da ética profissional, como o entendimento da adoção enquanto uma política
pública nas Varas da Infância e Juventude, a concepção reducionista sobre a
violência doméstica nas Varas da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a
longa fila de espera para atendimento nas Varas de família e a criminalização da
pobreza nas Varas Especiais.
No eixo sobre os recursos materiais, foram problematizadas as condições
ofertadas para a realização do trabalho, especialmente as estruturas físicas
precárias, que muitas vezes não garantem o sigilo dos atendimentos, as dificuldades
relativas a transporte e logística, somadas ao enfraquecimento da rede de serviços
129
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

do executivo necessária para a garantia da proteção e da assistência integral no


atendimento à população.

2.1 - GESTÃO DE PESSOAS

Em março de 2019, a Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do


Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP) publicou uma nota de
repúdio sobre metas de produtividade que vêm sendo impostas de forma arbitrária
às profissionais do setor técnico da Comarca de Sorocaba, sem que tivesse sido
estabelecido diálogo com as assistentes sociais e psicólogas. Deste documento,
destacamos o seguinte trecho:

Nosso trabalho nas Varas da Infância e Juventude, da Família, da


Violência Doméstica, além do Depoimento Especial, não pode ser
aferido como se fizéssemos partes de uma linha de produção como
nos demais setores e/ou departamentos, onde os procedimentos são
pré-definidos por manuais e/ou por modelos de aplicação ou
simplesmente como uma atividade burocrática das repartições
públicas em geral. Nosso trabalho é realizado por meio de diversos
instrumentais técnico-operativos, teórico-metodológicos e variam de
acordo com cada caso atendido e sua complexidade. (AASPTJ-SP,
publicado em 2019). 11

Em nosso entendimento, estabelecer critérios exclusivamente


quantitativos para mensurar o trabalho realizado pelas profissionais destas
categorias é algo incompatível com nossas práticas, pois desconsidera a dimensão
qualitativa das atuações, que compreendemos como primordial. Deste modo,
apostar em intervenções sobre o trabalho das equipes técnicas com foco no
estabelecimento de metas para a produtividade de documentos acaba por
desconsiderar que as situações atendidas são dinâmicas, complexas e que
demandam intervenções singulares para além de documentos escritos e de uma
métrica temporal restritiva.
Os casos que tramitam nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, por exemplo, muitas vezes enfrentam problemas práticos de

11
Disponível em https://pt-br.facebook.com/aasptjsp/. Acesso em: 28 nov. 2019.
130
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

logística até que ocorram as avaliações necessárias para o melhor entendimento da


situação. O lapso temporal entre o registro da ocorrência e o momento em que os
autos chegam para apreciação da equipe técnica faz com que, em muitos casos, o
procedimento para encontrar o local de moradia atual de todas as partes envolvidas
seja complexo. Em consequência disto, o tempo para efetuar as intimações é
prolongado e, por vezes, alguns processos se estendem por meses ou anos até que
todos sejam ouvidos pelas profissionais responsáveis. Além deste aspecto, os casos
exigem tempo de reflexão, estudo e elaboração para um entendimento aprofundado
e qualificado sobre as dinâmicas familiares, fazendo com que a produção do
relatório não seja meramente uma transcrição dos atendimentos realizados.
Esse debate pode ser ampliado pelas contribuições de Boaventura de
Sousa Santos (2007) que, ao refletir sobre o trabalho dos/as magistrados/as, permite
que nos apropriemos de seus argumentos para pensar na atuação das equipes
técnicas. O autor pontua que a imposição de celeridade sobre o trabalho dos juízes
e o volume de processos atendidos produzem uma rotina mecanizada e burocrática,
pouco afeita a um olhar para a singularidade e para a complexidade dos casos
concretos, o que, na sua concepção, seria fundamental para uma revolução
democrática da justiça. Como consequência direta, o sistema de avaliação do
trabalho dos magistrados acaba se empobrecendo, vez que é avaliado pela
quantidade de despachos que profere e não pela qualidade das sentenças.
Em certo sentido, essa mesma lógica acaba por se impor sobre o trabalho
de assistentes sociais e psicólogas judiciárias, pois o estabelecimento de metas de
produtividade reduz a atuação a uma lógica estritamente pericial, na qual a
profissional exerce um papel de vigilância e controle da realidade dos usuários na
busca por respostas rápidas para as situações apresentadas. Com isso, reduz-se
também a leitura sobre a complexidade das situações vivenciadas pela população
assistida, distanciando a prática de uma ótica da prevenção, fortalecimento e
autonomia cidadã.
Considerando que no dia 08 de novembro de 2019 foi publicada a Portaria
9.800/2019 no DJE, que institui a criação de um Grupo de Trabalho para Estudo da
Produtividade dos Setores Psicossociais do TJ-SP, podemos inferir que as iniciativas
pontuais sobre o estabelecimento de metas de produtividade serão expandidas

131
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

futuramente, o que traz preocupações sobre os possíveis rebatimentos desta


iniciativa na atuação profissional.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que são propostas discussões que
podem gerar intervenções sobre a produtividade e a qualidade da atuação dos
diversos setores psicossociais que atendem ao Tribunal, encontramos um cenário de
congelamento das nomeações das profissionais aprovadas no último concurso
público, realizado em 2017. No cenário atual, não há sequer a perspectiva de
reposição dos postos vacantes com os crescentes pedidos de aposentadorias em
uma conjuntura de alterações no regime previdenciário, o que faz com que as
equipes técnicas, já reduzidas, precisem enfrentar uma demanda ainda maior de
trabalho e que as filas de espera para os atendimentos se prolonguem em demasia.
O cenário se agrava se levarmos em conta que a instituição,
frequentemente, determina a prestação de serviços cumulativos das técnicas em
Varas diversas do local de lotação, prejudicando a atuação no próprio local de
trabalho.
Outro ponto correlato e que acaba por precarizar a rede de serviços de
proteção diz respeito aos convênios com as municipalidades para cessão de
servidoras do Executivo, que têm suas equipes e possibilidades de atuação
reduzidas no momento em que profissionais são designadas para prestar serviço
junto ao Judiciário. Além disso, importante ressaltar que a formação e capacitação
destas profissionais são diferenciadas, visto que direcionadas a outras formas de
atuação.
Em uma pesquisa sobre o tema realizada no Diário de Justiça Eletrônico
do Estado de São Paulo ao longo do primeiro semestre de 2019, levantamos que
foram publicadas diversas novas determinações sobre a prestação de serviços
cumulativos, impactando o trabalho de 87 psicólogas e 49 assistentes sociais12.

12
A pesquisa levantou que os impactos do serviço cumulativo, seja cedendo, seja recebendo
profissionais, se deram nas seguintes Varas: Vara da Infância e da Juventude da Comarca de
São José dos Campos; 2ª Vara Criminal da Comarca de Jacareí; Vara da Infância e da
Juventude do Foro Regional VIII – Tatuapé; Seção Técnica de Psicologia do Foro Regional I –
Santana; 2ª Vara da Comarca de Vargem Grande do Sul; Vara da Comarca de Tambaú; 3ª Vara
da Comarca de Pirassununga; Vara Criminal da Comarca de Leme; Vara do Júri e da Infância e
da Juventude da Comarca de Presidente Prudente; Vara da Comarca de Regente Feijó; 2ª Vara
da Comarca de Mococa; Vara da Comarca de Caconde; Vara da Infância e da Juventude da
Comarca de São José do Rio Preto; Vara da Comarca de Nova Granada; Vara das Execuções
Criminais e da Infância e da Juventude da Comarca de Itu; 1ª Vara Criminal da Comarca de
Indaiatuba; Vara da Comarca de Itajobi; Vara da Comarca de Urupês; Vara da Infância e da
132
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Se considerarmos as determinações sobre a prorrogação da prestação de


serviços cumulativos das psicólogas e assistentes sociais judiciárias, os números de
profissionais e setores psicossociais diretamente afetados são ainda maiores, o que
nos faz esbarrar em outra questão significativa, qual seja, a pouca transparência
sobre os dados referentes aos recursos humanos e sobre a distribuição de
profissionais nas diferentes Varas.
Em linhas gerais, a categoria desconhece a metodologia adotada para
lotação das profissionais nos diferentes juizados e comarcas da instituição, ficando
apartada das decisões que impactam diretamente seu trabalho e participando
apenas pontualmente no período em que são abertos os processos de remoção.
Voltando ao contexto global, ao levarmos em conta os pontos abordados,
buscando uma aproximação desta discussão com os achados da pesquisa realizada
pelo grupo em 2018, percebemos entendimentos e sentidos diversos sobre a prática
profissional na maneira como as técnicas concebem seu trabalho no cotidiano da
instituição. Em algumas das colocações, encontramos argumentos de profissionais
que sugerem uma perspectiva alinhada a uma atuação estritamente pericial,
limitando a prática profissional às perícias e à produção documental. Os trechos a
seguir, que tratam de respostas à questão “Ao seu ver, qual é o papel da(o)
assistente social/ psicóloga(o) no TJSP?”, são representativos desse entendimento:

“Elaborar perícias que auxiliem na resolução da questão em pauta”;


“Auxiliar tecnicamente a distribuição da justiça”;

Juventude, Protetiva e Cível da Comarca de Guarulhos; 2ª Vara da Comarca de Mairiporã; Vara


da Infância e da Juventude da Comarca de Osasco; 2ª Vara da Comarca de Jandira; 3ª Vara da
Comarca de Guaratinguentá; 2ª Vara Cível da Comarca de Lorena; Vara das Execuções
Criminais da Comarca de Itapetininga; 2ª Vara da Comarca de Capão Bonito; 2ª Vara da
Comarca de Américo Brasiliense; Vara da Infância e da Juventude e do Idoso da Comarca de
Araraquara; 3ª Vara Criminal da Comarca de Assis; 2ª Vara da Comarca de Palmital; Vara da
Infância e da Juventude e do Idoso da Comarca de Santos; 1ª Vara Criminal da Comarca de
Praia Grande; Vara da Comarca de Bastos; 3ª Vara Cível da Comarca de Tupã; Vara da
Comarca de Juquiá; Vara do Júri, Execuções Criminais e da Infância e da Juventude da
Comarca de Bragança Paulista; 1ª Vara Criminal da Comarca de Atibaia; 3ª Vara da Comarca de
Bebedouro; Vara da Comarca de Viradouro; Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional
VII – Itaquera; Vara da Região Leste 2 de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Vara
da Comarca de Cordeirópolis; Vara Criminal da Comarca de Araras; Vara da Comarca de Itaí;
Vara da Comarca de Taquarituba; Vara das Execuções Criminais da Comarca de Itapetininga;
Vara da Comarca de Angatuba; Vara da Infância e da Juventude e do Idoso da Comarca de
Santos; 3ª Vara Criminal da Comarca de São Vicente; 2ª Vara da Comarca de Bariri; 2ª Vara da
Comarca de Jaú.
133
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Peritos em nossa área de conhecimento”;


“Levantamento de dados para laudos e ‘produção’ de provas em
alguns casos”;
“Subsidiar decisões judiciais”;
“Assessorar o Juiz por meio dos laudos e pareceres”.

Em contrapartida, também foram registrados entendimentos sobre a


prática profissional que se afiliam a uma atuação ampliada e crítica, reconhecendo
os impasses entre as expectativas da instituição e os projetos ético-políticos das
profissões, bem como os efeitos práticos dos mesmos na vida da população
assistida e na saúde dos trabalhadores:

“Vejo a importância do assistente social ser capaz de olhar a família


que atende, de percebê-la em um contexto maior, mais amplo, de
dar-lhe voz e de apresentá-la à justiça com suas peculiaridades, sua
história, dores, vivências e possibilidades. Especialmente, vejo a
importância do assistente social ser capaz de olhar as crianças e os
adolescentes que atende. Verificar como estão sendo atendidos seus
direitos, especialmente o direito à proteção integral combinado com o
da convivência familiar não tóxica”;

“Considero que minha intervenção na Vara de Violência Doméstica é


com a defesa dos direitos de crianças e adolescentes, mulheres em
situação de violência doméstica, mas igualmente é necessário
compreender que não estamos no TJ para responsabilizar os sujeitos
que são denunciados em uma Vara criminal. Atuar de acordo com
nossos princípios éticos é um grande desafio”;

“Ampliar e potencializar discussões sobre infância, juventude e


famílias, bem como raça, gênero e classe, contextualizando as
práticas profissionais a partir tanto das mudanças ocorridas na
sociedade, mas também considerando os constantes
atravessamentos da instituição judiciária (e todas as outras) e as
relações de poder implicadas; o papel desses profissionais é refletir
sobre tal prática também em função das trajetórias de exclusão e
violação de direitos das famílias acompanhadas por eles e elas
diariamente. O papel do psicólogo e da assistente social está para
além de um lugar de ‘perito da subjetividade’, unicamente
respondendo a demandas apenas do Judiciário”;

134
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Elaborar parecer psicológico e laudos visando proteger o melhor


interesse da criança se nas Varas da Infância e mantendo a visão
sistêmica do núcleo familiar e considerando uma leitura das questões
politicas e sociais bem como da rede social de apoio desta família.
Nosso laudo pode ser um instrumento politico para apontar a
qualidade ou não dos serviços da rede, dos acolhimentos, podemos
sugerir serviços inexistentes e acionar o Ministério Publico. Ser
presente e atuante nas reuniões de rede bem como se atualizando
constantemente para atuar frente a demandas cada vez mais
complexas”;

“Ainda que, como assistentes sociais tenhamos a preocupação com


a questão da garantia de direitos para todos os envolvidos (inclusive
requeridos, averiguados e acusados), o que o TJSP espera do
profissional, no caso das Varas de Violência Doméstica, é a
realização de estudos sociais para subsidiar decisões judiciais”.

Em certa medida, os trechos selecionados demonstram a diversidade de


entendimentos sobre a atuação profissional e revelam a existência de sentidos em
disputa sobre a prática de assistentes sociais e psicólogas judiciárias, dialogando
diretamente com as questões abordadas dentro desta categoria que intitulamos
como “gestão de pessoas”.

2.2 - QUESTÕES ÉTICAS

Sabe-se que formas de organização conservadoras sempre ditaram a


instituição judiciária; consideramos, porém, que encorajadas pelo contexto político
atual, elas se encontram ainda mais enrijecidas. O cenário atual de precarização das
políticas públicas se reflete no Judiciário apresentando respostas mais duras e
alheias às demandas sociais, contribuindo para um processo de criminalização da
pobreza.

Nesse cenário, o Estado revela o seu papel punitivo em detrimento


da garantia da proteção integral. Desse modo, as poucas e tímidas
tentativas de oferecer resposta às expressões da questão social na
cena contemporânea pautam-se na adoção de medidas coercitivas
para se restabelecer a ordem pública, sustentando a falsa promessa
de uma cultura de paz em defesa de uma sociedade que também
clama por justiça, como se essa pudesse ser legitimada com a
adoção de um sistema opressor e eficaz, capaz de garantir o
135
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

encarceramento indiscriminado dessa população. (BONALUME;


JACINTO, 2019).

Dentre as respostas mais rígidas, ocorre uma série de atravessamentos


institucionais sobre o trabalho dos setores psicossociais que têm visto sua prática
ser direcionada pela instituição judiciária e sua autonomia profissional ser
fragmentada em atividades que, por vezes, adicionam mais violências ou causam
mais prejuízos ao usuário da justiça do que o próprio ato originário do processo
judicial.
A respeito dessas práticas destacamos a obrigatoriedade de atuação no
procedimento de Depoimento Especial dentro dos Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher, nas Varas Especiais da Infância e Juventude da capital e
nos Juizados do interior. Esta prática não é reconhecida pelos Conselhos
profissionais de Serviço Social e de Psicologia13, mas foi vinculada como atribuição
junto às normas regulamentares destas profissões dentro do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo. As capacitações para este procedimento foram se
modificando ao longo dos anos e se tornando cada vez mais curtas e
prioritariamente online. Ressaltamos que, não obstante as resoluções tenham sido
cassadas, trazem em seu bojo questões prioritárias dos projetos ético-políticos das
profissões, permanecendo válidas, portanto, não do ponto de vista jurídico, mas
epistemológico.
Na implantação do dispositivo do depoimento especial, estabeleceu-se
um protocolo para normatizar os atendimentos, que se dariam em etapas,
respeitando a liberdade e capacidade das crianças e adolescentes de passar ou não
pelo depoimento, ficando a cargo das equipes avaliar as condições psicossociais
para tal. Porém, conforme recolhemos diariamente em diversos relatos, a
implementação do procedimento está se dando das mais variadas formas e o
protocolo não está sendo respeitado em muitas Varas, ficando à mercê de uma
maior ou menor sensibilização por parte do magistrado responsável.
Outras etapas do protocolo, bem como algumas descrições da lei que
regula o depoimento especial (Lei 13.431/2017), também não têm sido cumpridas, o

13
Resolução n.º 554/2009 do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e Resolução n.º
010/2010 do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
136
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que implica a possibilidade de mais revitimização das crianças, adolescentes e suas


famílias. Isso ocorre quando todos os procedimentos são realizados de forma
acelerada no dia designado para a audiência, sem que haja tempo para uma
atuação cuidadosa da profissional, além das situações em que a indicação de não
participação no depoimento em juízo é desconsiderada.
Além dos pontos citados, recentemente em algumas Varas tem sido
determinado às profissionais que realizem laudos posteriores ao depoimento
especial, no qual deve constar a verificação da credibilidade da fala da vítima. Esse
tipo de pedido se distancia ainda mais da formação profissional tanto de assistentes
sociais quanto de psicólogas, bem como do compromisso ético-político de
valorização e autonomia dos usuários. Além disso, esse tipo de laudo não se
encontra descrito no protocolo nem foi mencionado no breve curso de capacitação
para a realização do depoimento especial.
Além desses aspectos, a Lei 13.431/2017 também versa sobre a Escuta
Especializada, que deveria ser realizada anteriormente ao procedimento judicial para
garantir que estas famílias e indivíduos sejam orientados, atendidos e referenciados
na rede de proteção desde o início. No entanto, na realidade paulista, isto ainda não
tem sido implantado em sua totalidade.
Outro exemplo de atravessamentos institucionais que interferem
diretamente no cotidiano da prática das profissionais são os despachos para os
setores de Serviço Social e Psicologia que tendem a direcionar o atendimento
realizado, seja através de quesitos inapropriados ao campo dessas profissões, da
imposição de quem deve ser entrevistado e também de quais instrumentais
metodológicos devem ser utilizados. Esse tipo de atravessamento prejudica não
apenas as profissionais, mas a própria população usuária do serviço, que deixa de
ter um atendimento ampliado e tem sua demanda reduzida estritamente ao processo
e não à sua totalidade. A respeito disso, citamos o Comunicado CG nº 1749/2017:

A Corregedoria Geral da Justiça RECOMENDA aos juízes com


competência na área da Infância e Juventude, Família e Sucessões
ou Violência Doméstica que, preferencialmente, facultem aos
assistentes sociais, no fluxo dos atendimentos dos Setores Técnicos,
a prerrogativa de escolha dos instrumentos de avaliação (análise de
documentação, observação, entrevista, visita domiciliar, entre

137
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

outros), bem como o estabelecimento da sequência pertinente a


cada caso.

Dessa forma, as assistentes sociais e psicólogas são livres para a escolha


do melhor instrumento de avaliação, bem como cabe a elas distinguir e elucidar o
que pertence a seu campo de trabalho e o que pertence a outros campos de
formação, não se prestando a exercer uma função que não tenha sido contemplada
em sua formação profissional. A esse respeito, o Código de Ética Profissional do
Psicólogo é bem enfático:

Art. 1.º É dever do psicólogo prestar serviços psicológicos de


qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à
natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e
técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica,
na ética e na legislação profissional. (CFP, 2005).

Outra problemática relativa ao eixo ética diz respeito à fragmentação do


atendimento em diferentes Varas. No âmbito judiciário, atualmente cada Vara atua
numa esfera específica e de forma isolada. Assim, uma mesma pessoa que esteja
sendo atendida por diferentes Varas pode ser submetida a procedimentos repetitivos
e desnecessários que poderiam ser evitados caso houvesse maior comunicação
entre elas. Por exemplo: não é incomum, em casos de violência sexual contra
meninas, que o caso esteja sendo acompanhado na Vara de Violência Doméstica e
na Vara de Família ou Infância, e que os laudos da equipe técnica realizados em
uma Vara não sejam aceitos pelo magistrado de outra, submetendo a criança à
realização de entrevistas pelas assistentes sociais e psicólogas das duas Varas,
colaborando para um processo de revitimização no qual a pessoa é solicitada a falar
diversas vezes sobre a violência sofrida. Essa fragmentação das Varas gera
frustração na população atendida, que não consegue ter um olhar integrado sobre
suas demandas, e efeitos negativos para as profissionais das equipes técnicas, que
muitas vezes também se frustram por não conseguirem acolher toda a complexidade
da demanda formulada pelo usuário da justiça.

138
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Finalizado o eixo sobre a Ética, trazemos algumas especificidades da


atuação nas diferentes Varas.

2.2.1 - VARAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, institui equipes


de atendimento multidisciplinar que devem atuar com foco prioritariamente
preventivo; no entanto, nossa prática revela que as Varas de Violência Doméstica
costumam adotar uma percepção reducionista do fenômeno da violência,
direcionando a quase totalidade dos atendimentos da equipe técnica para a
produção de provas nos casos de abuso sexual de meninas, em detrimento de
outras práticas como: atendimento individual e em grupo de mulheres adultas em
situação de violência doméstica para fortalecimento e orientação; trabalhos com os
homens autores de violência doméstica; fortalecimento da rede de proteção;
colaboração com escolas e atenção básica para prevenção da violência contra a
mulher. Essas, entre outras iniciativas que certamente poderiam contribuir para o
combate aos altos números de feminicídio no Estado, ficam sobrepujadas pela
enorme demanda de um trabalho voltado para a produção de provas processuais,
sobretudo em casos de violência sexual contra meninas. Cabe ressaltar que esse
olhar reducionista muitas vezes é incorporado pelas próprias psicólogas e
assistentes sociais.

2.2.2 - VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE

Nas Varas da Infância e Juventude, destacamos os seguintes desafios a


se considerar a respeito da temática da adoção:

1) Projeto de Lei do Estatuto da Adoção - o referido projeto cria um estatuto


próprio, retirando do ECA o ordenamento jurídico do tema, descaracterizando a
doutrina da proteção integral. Para combater esse tipo de proposta, um grupo de
profissionais militantes pelos direitos de crianças e adolescentes criou o “Movimento
pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes”, que visa ao enfrentamento do
desmonte do ECA;
2) Projeto “Adote um Boa Noite” – trata-se de uma campanha lançada pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio da Corregedoria-Geral da Justiça com

139
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

o apoio da Coordenadoria da Infância e da Juventude, que visa a estimular a


adoção tardia de crianças e adolescentes. Esse projeto expõe a imagem das
crianças e adolescentes que desejam participar, contrariando o que está disposto
no ECA: “Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade
física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e
objetos pessoais.”
Observamos que, em vez do investimento em políticas públicas visando
ao trabalho de fortalecimento das famílias, tem sido dada prioridade às pessoas
habilitadas no Cadastro de Adoção, desviando os holofotes da proteção integral para
a adoção como principal medida.
A precarização da rede de serviços públicos (assistência social, saúde,
educação, habitação, cultura) implica diretamente no trabalho com as famílias
atendidas, que muitas vezes não são atendidas devido a: instabilidade nos vínculos
trabalhistas das profissionais, ausência de concursos públicos, terceirizações e
financiamentos insuficientes, entre outras questões, interferindo no retorno da
criança/adolescente acolhido ao convívio familiar.
Nesse sentido, para nós, resta evidente o retrocesso representado pelas
propostas trazidas, uma vez que se distanciam da proposta de proteção integral do
ECA e demais políticas de proteção à criança e ao adolescente, que deveriam ser
vistos como sujeitos de direitos, e não como objetos de desejo dos adultos.
No contexto das Varas Especiais da Infância e Juventude, destacamos o
exemplo de casos de adolescentes que cometeram ato infracional, situações em que
observamos que, muitas vezes, as histórias de vulnerabilidades, bem como as
condições que levaram ao ato infracional, são desconsideradas e o caso é visto de
forma individualizada e estigmatizada.

2.2.3 - VARAS DE FAMÍLIA E SUCESSÕES

Os desafios nas Varas da Família podem ser interpretados a partir da


reflexão de como nós, enquanto profissionais, e em um contexto de infinitas
demandas, conseguimos desenvolver nosso trabalho. Percebe-se que a Vara de
Família tem recebido menos investimento dentro da instituição, evidenciado pela
extinção da Coordenadoria das Varas de Família e Sucessões, criando uma lacuna

140
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

do ponto de vista da gestão do trabalho para o desenvolvimento de políticas voltadas


à qualificação dos serviços prestados.
No que se refere à demanda da população atendida, observa-se que vem
crescendo a judicialização da vida social e dos conflitos pessoais e familiares e, com
isso, não há uma delimitação por parte do magistrado do que deve ser verificado no
estudo social e psicológico, havendo uma expectativa de que tal estudo solucione o
litígio.

2.3 - ORGANIZAÇÃO POLÍTICA

O cenário sociopolítico atual revela a necessidade de avaliar criticamente


a organização política das assistentes sociais e psicólogas do Tribunal de Justiça de
São Paulo, mais precisamente o relacionamento destas categorias profissionais com
a classe trabalhadora.
A respeito da questão sindical das assistentes sociais e psicólogas, o
grupo de estudos identifica duas teses distintas: a) a necessidade da criação de uma
entidade representativa de todas as profissionais do Tribunal de Justiça, para
unificar e fortalecer as lutas, bem como estimular o sentimento de pertencimento de
classe, ou como nas palavras de Ricardo Antunes, que seja capaz de “romper
radicalmente com todas as formas de neocorporativismo que privilegiam suas
respectivas categorias profissionais e com isso diminuem ou abandonam os
conteúdos mais acentuadamente classistas” (1999, p. 245); b) a importância da
existência das entidades que contemplam as especificidades de cada categoria
profissional, mas que possam se articular nas lutas gerais, como numa comissão de
representantes. Atualmente, as trabalhadoras do Tribunal de Justiça de São Paulo
estão organizadas da forma expressa na segunda tese.

2.4 - RECURSOS MATERIAIS

As condições materiais de trabalho também são um aspecto a ser


considerado quando da análise sobre o trabalho cotidiano de assistentes sociais e
psicólogas no Judiciário. Deparamo-nos, quando em discussão sobre as realidades
vivenciadas pelos Setores Técnicos, com uma gama de espaços disponibilizados,

141
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

indo desde a correta execução dos princípios elencados pelos Conselhos Federais
de Serviço Social e Psicologia, até o descumprimento total destas normas básicas.
Sobre isto, indicamos que o Conselho Federal de Serviço Social dispõe,
através da Resolução n.º 493/06, que:

Art. 2º – O local de atendimento destinado ao assistente social, deve


ser dotado de espaço suficiente, para abordagens individuais ou
coletivas, conforme as características dos serviços prestados, e deve
possuir e garantir as seguintes características físicas:
a) iluminação adequada ao trabalho diurno e noturno, conforme
organização institucional;
b) recursos que garantam a privacidade do usuário naquilo que for
revelado durante o processo de intervenção profissional;
c) ventilação adequada a atendimentos breves ou demorados e com
portas fechadas;
d) espaço adequado para colocação de arquivos para a adequada
guarda do material técnico de caráter reservado. (CFESS, 2006).

O Conselho Federal de Psicologia também apresenta parecer neste


sentido, disposto no Manual de Orientações, Legislação e Recomendações para o
Exercício Profissional do Psicólogo:

O atendimento deve ser realizado em local diferenciado e apropriado,


que garanta o sigilo profissional e em condições de segurança,
ventilação, higiene e acomodação adequadas aos que estão em
atendimento, respeitando-se critérios estabelecidos por órgãos
públicos, como, por exemplo, a Vigilância Sanitária. (CFP, 2008).

Ratificamos que tais prerrogativas vão de encontro ao observado no


cotidiano de muitos dos Setores Técnicos do Estado de São Paulo.
Além disso, o Grupo de Estudos levantou outras problemáticas
vivenciadas nas comarcas, como: disponibilidade de uma sala improvisada através
da utilização de divisórias, em espaço de final de corredor, ausência de salas de
atendimento e equipamentos em número suficiente para os profissionais lotados nas
Varas, etc.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Estas condições inadequadas de trabalho prejudicam o sigilo na


condução dos processos judiciais, os quais, por excelência, são dotados desse
princípio a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Processo
Civil, a fim de resguardar os usuários e profissionais envolvidos nos mesmos. Este
sigilo não se dá apenas na condução administrativa do processo, em termos
cartorários, mas deve seguir os princípios da ética profissional, garantindo-lhe
espaço adequado para atendimento e acolhimento das demandas.
Ainda na seara das condições materiais, deparamo-nos, em grande parte
das realidades pesquisadas, com a insuficiência de transporte, via viatura oficial. O
trabalho do Serviço Social e da Psicologia não se resume ao atendimento no espaço
forense, uma vez que demanda outros procedimentos metodológicos, como visita
domiciliar, visita institucional e discussão em rede, sendo necessário o deslocamento
das profissionais para a realização destas tarefas.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os desafios postos ao exercício profissional revelam a materialização dos


impactos da agenda neoliberal sobre o trabalho profissional. Se, por um lado, o
posicionamento ético-político assumido pelo Serviço Social e pela Psicologia está
direcionado para a garantia dos direitos universais mediados pelo Estado, a
conjuntura contemporânea impõe não apenas o desmonte das políticas sociais, mas
a própria desconstrução da coisa pública como institucionalidade e como concepção.
A tese que associa o público àquilo que é ineficiente toma fôlego na cena
contemporânea, atribuindo ao mercado o espaço, por excelência, de atendimento às
necessidades humanas.
O cenário sociopolítico atual revela a necessidade de avaliar criticamente
a organização política das assistentes sociais e psicólogas do Tribunal de Justiça de
São Paulo, mais precisamente o relacionamento destas categorias profissionais com
a classe trabalhadora.
A democracia representativa ainda é uma novidade nos espaços de
decisão do Tribunal de Justiça. Nesta perspectiva, o Conselho Nacional de Justiça
avança em iniciativas de aprofundamento da democracia quando, por exemplo, ao
estabelecer o Comitê Gestor da Política de Atenção Prioritária ao Primeiro Grau de
Jurisdição, determina que todos os Tribunais de Justiça brasileiros elejam
democraticamente representante das trabalhadoras para construir determinadas
análises e ações institucionais em conjunto com as respectivas administrações.
Somente trabalhadoras eleitas por trabalhadoras podem falar com propriedade sobre
suas realidades e reais interesses em espaços estratégicos de decisão. Por outro
lado, a eleição para o cargo da Presidência do TJ-SP é restrita aos/às
magistrados/as.
Os desafios objetivos problematizados ao longo do texto não seriam
sustentados sem sua base ideológica. O neoconservadorismo está pautado em
desvalores sociais, que descaracterizam valores éticos emancipatórios, como
autonomia e liberdade. Nesta perspectiva, assistentes sociais e psicólogas, na
qualidade de sujeitos inseridos na sociedade capitalista dirigida pelo Estado
neoliberal, recebem influências da ofensiva neoconservadora em curso. Assim,
ampliam-se requisições profissionais policialescas, punitivistas, moralizantes e
higienistas, em detrimento das análises totalizantes e da intervenção comprometida
144
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

com a perspectiva da garantia de Direitos Humanos e ações de promoção da


autonomia dos sujeitos.
A análise sobre o percurso histórico do Serviço Social e da Psicologia nos
ensina que a disputa em torno da identidade profissional constitui um processo
histórico inflexionado pelas determinações conjunturais. No Poder Judiciário, em
particular, visualizamos que a redução do trabalho às perícias que coletam dados
para os operadores do Direito cria armadilhas aos projetos profissionais, na medida
em que oculta a quem, de fato, o Serviço Social e a Psicologia estão servindo, além
da aposta na ilusão de que as complexas situações com as quais estas profissionais
se deparam no cotidiano de trabalho, tais como abuso sexual infantil ou internação
de dependentes químicos, podem ser superadas nos limites de um processo judicial
e seu tempo.
Fávero (2014) menciona que há diversas possibilidades de ação no que
se refere ao trabalho profissional na área sociojurídica e fala da necessidade de
refletir o trabalho profissional a partir da dimensão do trabalho coletivo – aquele que
supõe o trabalho interdisciplinar e de articulação com a rede social. Quando
orientada para uma atuação “caso a caso”, a profissional incorre no risco de retornar
para práticas conservadoras, de controle e disciplinamento dos sujeitos.
Soma-se ao trabalho coletivo a importância do investimento no
aprimoramento teórico, metodológico e técnico. O constante aprimoramento
intelectual das assistentes sociais e psicólogas do Tribunal de Justiça é exigência do
tempo presente. Mais importante que a competência burocrática é a competência
crítica, definida por Marilda Iamamoto como aquela:

[...] capaz de desvendar os fundamentos conservantistas e


tecnocráticos do discurso da competência burocrática. O discurso
competente é crítico quando vai à raiz e desvenda a trama submersa
dos conhecimentos que explica as estratégias de ação. Essa crítica
não é apenas mera recusa ou mera denúncia do instituído, do dado.
Supõe um diálogo íntimo com as fontes inspiradoras do
conhecimento e com os pontos de vista das classes por meio dos
quais são construídos os discursos: suas bases históricas, a maneira
de pensar e interpretar a vida social das classes (ou segmentos de
classe) que apresentam esse discurso como dotado de
universalidade, identificando novas lacunas e omissões (2009, p. 2).

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ao longo do ano, a questão da produção de laudos e pareceres no âmbito


do Judiciário apareceu nas discussões do grupo como uma angústia, uma vez que
os mesmos facilmente podem servir para fins punitivistas ou interesses contrários
àqueles defendidos pelos Códigos de Ética profissionais do Serviço Social e da
Psicologia. Nesse sentido, Fávero (2014) nos convida a refletir quando questiona:
como não ultrapassar, no cotidiano da intervenção profissional, o limite entre a
contribuição competente para a justa aplicação da justiça, a garantia de direitos, e
uma possível arbitrariedade que pode vir diluída no saber-poder que subsidia e
contribui para a decisão sobre o futuro da vida dos sujeitos?
É importante lembrar que o laudo social ou psicológico deve ser entendido
como um instrumento da intervenção profissional, onde se expressa um
conhecimento específico, devendo as técnicas atentar para não ultrapassar os
limites da profissão em si.
O clássico filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” assinala que
“são tempos difíceis para os sonhadores”. A história do Serviço Social e Psicologia
no Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, inspirada no pessimismo da razão
e no otimismo da vontade, faz um convite à competência crítica ao apresentar o
instituído não apenas como mazelas da conjuntura, mas como patrimônio de uma
construção profissional coletiva, edificada pela potência das trabalhadoras. É preciso
cuidar deste patrimônio como um compromisso entre gerações profissionais,
dirigidas por valores éticos inegociáveis, como liberdade, autonomia e democracia,
reafirmando no cotidiano a ruptura do Serviço Social e da Psicologia com suas
origens conservadoras. Esta é a identidade profissional a ser preservada no contexto
contemporâneo como resposta à reatualização do conservadorismo que se expressa
desde os fundamentalismos ao reformismo.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho - ensaio sobre a afirmação e a negação do


trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

BERNARDI, D.C.F. A construção de um saber psicológico na esfera do Judiciário


paulista: um lugar falante. In: O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário.
FAVERO, MELÃO e JORGE (orgs.). 5 ed. São Paulo: Cortez, 2015.

BONALUME, B.C.; JACINTO, A.G. Encarceramento juvenil: o legado histórico de


seletividade e criminalização da pobreza. Florianópolis: Revista Katálysis vol. 22,
n.1, p.160-170. Abr. 2019. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
49802019000100160&lang=pt. Acesso em: 13 nov. 2019.

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO, CFP, agosto de 2005.

FÁVERO, E.T. O Estudo social – fundamentos e particularidades de sua construção


na Área Judiciária. In: O estudo social em pericias, laudos e pareceres técnicos:
debates atuais no judiciário, no penitenciário e na previdência social/Conselho
Federal de Serviço Social – CFESS, org. 11. Ed. – São Paulo: Cortez, 2014.

IAMAMOTO, M.V. A questão social no capitalismo. In: Revista Temporális. Ano 2,


n.3 (jan/jul 2001) Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001.

______. Projeto profissional e trabalho do Assistente Social: o Serviço Social no


Tribunal de Justiça de São Paulo. In: O Serviço Social e a Psicologia no
Judiciário. FAVERO, MELÃO e JORGE (orgs.). 5 ed. São Paulo: Cortez, 2015.

______. O Serviço Social na cena contemporânea. CFESS/ABEPSS (orgs.) Serviço


Social, direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.

147
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

NETTO, J.P. Cinco notas a propósito da “questão social”. In: Revista Temporális.
Ano 2, n.3 (jan/jul 2001) Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001.

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AVALIAÇÃO PRÉVIA PSICOSSOCIAL PARA FINS


DE DEPOIMENTO ESPECIAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“DEPOIMENTO ESPECIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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COORDENAÇÃO
Irene Pires Antonio – Psicóloga Judiciário – Supervisora do Serviço de Depoimento
Especial – DAIJ 1.3 - Capital
Lucimara de Souza – Psicóloga Judiciário – Vara da Região Norte de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher – Capital

AUTORES
Ana Maria Basile Martins Rezende – Psicóloga Judiciário – Vara do Juizado Especial
Cível e Criminal da Comarca de Tatuí
Ana Paula Magri Moreira – Psicóloga Judiciário – 2ª Vara da Comarca de Mongaguá
Ana Valentina Turri de Souza Paraiso – Psicóloga Judiciário – 2ª Vara da Comarca
de Bertioga
Catia Cristina Xavier Mazon – Psicóloga Judiciário – 2ª Vara da Comarca de Agudos
Celia Regina de Souza Cauduro – Psicóloga Judiciário – 2ª Vara da Comarca de
São José do Rio Pardo
Cristina Palason Moreira Cotrim – Psicóloga Judiciário – 3ª Vara Criminal da
Comarca de São Vicente
Irene Pires Antonio – Psicóloga Judiciário – Supervisora do Serviço de Depoimento
Especial – DAIJ 1.3 - Capital
Izabel Cristina Paez – Psicóloga Judiciário – Vara da Comarca de Estrela D'Oeste
Lucimara de Souza – Psicóloga Judiciário – Vara da Região Norte de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher – Capital
Mara Cristina de Maria – Psicóloga Judiciário – Seção Técnica de Psicologia da Vara
da Infância e da Juventude de Santana
Marcele Gulao Pimentel – Assistente Social Judiciário – 2ª Vara da Comarca de
Bertioga
Maria Gorette Fernandes – Assistente Social Judiciário – Vara da Comarca de Itariri
Monica Potzik – Psicóloga Judiciário – Sanctvs - Fórum Ministro Mário Guimarães
Nemora Suely Melo Fernandes – Psicóloga Judiciário – Vara da Comarca de
Caconde
Regina Aparecida Rodrigues Carvalheiro Costa – Psicóloga Judiciário – Vara da
Comarca de Santa Cruz das Palmeiras

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Samuel Rotband Berenstein Grinspun – Psicólogo Judiciário – 2ª Vara da Comarca


de Campos do Jordão
Thais Del Giudice Maurutto – Psicóloga Judiciário – Vara do Foro Central de
Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher
Vanessa Cristine Murchinski – Assistente Social Judiciário – 2ª Vara da Comarca de
Mongaguá

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

A Revelação da violência sofrida pela criança/adolescente pode se dar em


vários espaços e, consequentemente, a vários interlocutores. Deste ponto de vista,
como garantir que a livre expressão daqueles que sofrem alguma violência seja
endereçada a quem possa intervir e suportar a sua revelação?
Os maus tratos de crianças impulsionaram estudos sobre os vários tipos
de violência praticados. Como a violência sofrida pelas crianças é majoritariamente
doméstica, muitas vezes o silêncio daqueles que deveriam lhes proteger não produz
uma queixa. No entanto, mesmo que não haja um relato verbal da vítima ou de uma
testemunha, as marcas na atividade psíquica podem fornecer indicadores da
violência sofrida. Há sinais que podem ser observados e, também, lesões psíquicas
(invisíveis). Grosso modo, sinal na prática médica é algo que pode ser observado e
que tem um significado clínico. Segundo Kaplan (1984: p. 869), a criança maltratada
é frequentemente levada ao sistema de saúde com história de falhas no
desenvolvimento, desnutrição e higiene deficiente. Estes sinais podem ser
correlacionados para um diagnóstico de criança maltratada, mesmo que não haja
uma queixa estabelecida. Por outro lado, de acordo com o autor, se o agressor for
um estranho, a possibilidade de que a criança revele o fato de abuso ou maus tratos
a um familiar e que este a apoie é maior.
A atuação de psicólogos e assistentes sociais está regulamentada:
Pela Lei 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da
criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera o ECA;
no Decreto 9603/2018, que regulamenta a lei acima e
no Comunicado Conjunto 1948/2018, da Corregedoria Geral da Justiça e
Coordenadoria da Infância e da Juventude do TJ- SP.
No que concerne ao depoimento especial, primeiramente, deve-se
garantir à criança/adolescente que a entrevista seja um convite para que ela fale
sobre o ocorrido. Assim, não há obrigatoriedade que ela deponha. Para que uma
entrevista possa ser bem sucedida, deve- se fazer um vínculo de confiança entre
entrevistado e entrevistador. O vínculo decorre de um bom rapport e de tempo para
ser construído. No que tange ao aspecto do tempo, reflete-se sobre a celeridade do

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

processo ou a lentidão do andar processual, que pode vir a interferir nessa etapa tão
importante.
Pensando sobre a avaliação num sentido mais amplo, o termo é utilizado
em vários campos do conhecimento com diversidades de significados e
especificidades diferentes. A definição para a área da educação, por exemplo, é
atribuir valor, nota, com a etimologia da palavra advinda do latim a-valere, que
significa “dar valor, emitir julgamento de valor” (Buriasco, Ferreira & Ciani, 2009,
p.71). Já para a ciência médica, a definição dada pela OMS (Organização Mundial
de Saúde) como “processo de determinação quali e quantitativa, através de métodos
específicos e apropriados, do valor de alguma coisa ou acontecimento” (Carvalho,
Rosenburg & Buralli, 2000, p.1).
Os psicólogos e assistentes sociais judiciários atuam em um contexto
institucional cujo objetivo é fornecer subsídios à autoridade judicial, buscando o
melhor interesse da criança.
A Avaliação Psicossocial condensa dois estudos:
1- O psicológico: Na vertente psicológica, as técnicas e instrumentos são
planejados a partir dos objetivos a serem alcançados. No caso específico da
Avaliação para fins de Depoimento Especial, deve-se analisar se o entrevistado terá
condições de Revelar o abuso sexual e/ou violência sofrida. Assim, a família é
entrevistada para que se obtenham dados concernentes a aspectos gerais da
criança, como por exemplo, emocionais e comportamentais, antes e após a suposta
violência. Buscam-se dados que possam indicar uma ruptura ou modificação brusca
de comportamento. A sintomatologia a ser referida pode variar, mas deve indicar
situações de stress ou egodistônicas. A avaliação do estado emocional da
criança/adolescente concerne ao custo afetivo de recordar o fato e também à
pressão sobre ela, quando decidiu acusar ou retratar-se; enfim, ter de lidar com a
ambivalência de o ofensor ser, por exemplo, um ente querido e/ou de tornar público
algo de vivência negativa.
2- O social: Engloba um olhar sobre os aspectos sociais, culturais e
econômicos considerando a história de vida, única e singular, do indivíduo avaliando
sua inserção no meio social em que vive, em determinado território. Diferentes
aspectos sociais devem ser considerados como o acesso às políticas públicas, a
inserção no mundo do trabalho, o atendimento às necessidades básicas de vida, o

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apoio familiar existente e as atitudes presentes nas relações sociais estabelecidas


que impactem no desempenho da pessoa na sociedade (Moreira, 2017).
A partir de vários aspectos levantados no grupo de estudo de Depoimento
Especial, discutimos neste artigo a importância e abrangência da avaliação prévia
psicossocial. Exemplificamos esta discussão com a apresentação de um caso.

1 - OBJETIVOS

Os principais objetivos do presente trabalho são:


- compreender como pode ser realizada a avaliação prévia ao depoimento
especial e os possíveis quesitos formulados pelos operadores do direito;
- esclarecer algumas dúvidas metodológicas da prática da avaliação
prévia ao depoimento especial;
- refletir sobre o papel da equipe técnica no procedimento de Depoimento
Especial;
- estudar um fragmento de caso a fim de analisar a experiência
profissional e aprofundar as reflexões que forem suscitadas.

2 - METODOLOGIA

A coleta de dados foi realizada pelo referido Grupo, em periodicidade


mensal, com a participação de integrantes de comarcas distintas da Capital e interior
do Estado de São Paulo, com a presença de ambas as áreas: psicologia e serviço
social.
A escolha do tema do presente artigo se deu a partir da troca de
experiências dos profissionais que compõem o grupo, pensando em discorrer
especificamente a respeito dos procedimentos da avaliação prévia ao depoimento
especial, analisando um caso que foi atendido por um dos participantes, envolvendo
uma criança vítima de abuso sexual intrafamiliar.
Foi realizada pesquisa bibliográfica individual por todos os membros, os
subtítulos que compõem o artigo foram desenvolvidos em subgrupos e,
posteriormente, finalizados em reunião com todos os participantes.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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2.1 - AVALIAÇÕES PRÉVIAS AO DEPOIMENTO ESPECIAL

No contexto da avaliação psicossocial no judiciário temos a interface entre


os conhecimentos jurídicos e os conhecimentos do serviço social e da psicologia. As
avaliações sociais e psicológicas auxiliam a compreensão da subjetividade e
enquadramento sócio familiar das vítimas e testemunhas de violência que chegam
aos Fóruns das diversas Comarcas do Poder Judiciário por intermédio dos autos
processuais, não como uma avaliação diagnóstica ou psicométrica, mas uma
compreensão mais ampliada do fenômeno apresentado (Rovinski, 2009).
Destaca-se que avaliação do ponto de vista psicossocial é:

um processo que envolve diversas técnicas, métodos e instrumentos


para a coleta de informações que contribuem para a compreensão da
demanda investigada e que precisa ser embasada de forma técnica,
científica e ética (Muniz, 2019, p. 8).

No âmbito do depoimento especial, enfatiza-se que a demanda discutida


pelos membros do Grupo são as avaliações psicológicas e sociais prévias de
crianças, adolescentes ou jovens (tendo em vista que a lei também prevê
atendimento até 21 anos), vítimas ou testemunhas de violência, sendo importante
clarificar o objeto de estudo. Tais avaliações possibilitam ter acesso ao fenômeno da
violência apresentada, ou que se busque entender quais fatores podem estar
dificultando a compreensão do que ocorreu.
O profissional não tem a atribuição de tradutor da verdade, sendo o
magistrado o julgador do feito quem o fará, após uma junção de vários fatores, entre
eles, os dados obtidos nas entrevistas prévias, o depoimento especial, e o relatório
final, além de ouvir outras testemunhas, exames médicos, relatórios de serviços de
outros atores da rede, etc.
O entrevistador verificará então, após a fase de rapport, se a criança
ainda está em situação de risco (ou se voltou a estar), se está bem protegida e
aceita por seus familiares, se tem noção da razão de ter sido chamada, entre outras
questões. Aqui é importante ressaltar que em nenhum momento será dito ou lido
para a criança a queixa apresentada, conforme preconiza a Lei 13.431/2017, mas

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

minimamente situá-la, inclusive para checar a questão da memória. Uma boa


pergunta para saber sobre isso é fazê-la de maneira simples e tranquila: “Você sabe
por que você está aqui?”, ou “quando vocês saíram de casa sua mãe (pai, avó,
educador da instituição, etc.), lhe disse o quê?”. A partir deste ponto é possível que a
criança se abra mais ou se feche, a depender da fragilidade ou não em que ela se
encontre. É também a partir desta pergunta que se tem a oportunidade de verificar
como está a memória sobre o que possa ter lhe ocorrido, a depender da resposta
que ela nos dê, tal como “eu vim aqui porque meu vizinho fez uma coisa que me dá
vergonha”. Isso nos remete a pensar que a criança se recorda que algo incomum
ocorreu, inclusive que o fato a envergonha, ou seja, traz sentimentos em sua fala;
sabe que foi o vizinho quem lhe teria feito tal coisa, ou seja, recorda-se do autor,
etc..
Também será durante a avaliação prévia que será verificado se o
entrevistado deseja conversar e contar mais sobre esse fato. A metodologia e como
funciona lhe serão apresentados: se quer depor, se deseja que isso ocorra através
do depoimento especial ou do modelo tradicional, quem são as pessoas que o
estarão assistindo e através de quais equipamentos isso ocorre, onde fica a sala de
depoimento e onde fica a do juiz, bem como se deseja conhecê-lo e se deseja que o
autor permaneça ou não na sala de audiência enquanto essa conversa acontece.
Durante o percurso acima citado, deve- se verificar, pois também é um dos objetivos
da entrevista prévia, frente a todas essas questões que foram levantadas com o
entrevistado, como ele se apresenta: se é expansivo; se possui bom vocabulário; se
apresenta relato claro; se utiliza palavras e termos que sejam condizentes com sua
faixa etária; se consegue demonstrar memória preservada sobre eventos cotidianos;
se demonstra receio, embora possa expressar a vontade de depor; enfim, há
inúmeras questões que serão observadas e que farão parte da avaliação e da
conclusão dessa avaliação prévia, ou seja, se o entrevistado deseja depor e se há
indicação nesse sentido do profissional que fará o depoimento, ou se existe recusa
do entrevistado e/ou contraindicação por parte do técnico.
Importante ressaltar que a avaliação prévia se dá em dia diferente do dia
do Depoimento, tendo em vista que este momento é para que o entrevistado nos
conheça e conheça o “processo” de como tudo ocorrerá, propiciando que se sinta
familiarizado e seguro no dia da audiência.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Durante a avaliação prévia também será possível que sejam colhidos


dados à vítima; sobre como ela se sente (com medo, envergonhada, etc.), bem
como fazer o mesmo com familiares, possibilitando verificar se ela teve mudança de
comportamento após o suposto evento, ou se há algum outro dado que possa ser
fornecido para o entendimento do fato. Esse momento também traz a oportunidade
de compreender a dinâmica familiar e a necessidade de encaminhamento para a
criança/adolescente e para a família.
O profissional que fará o depoimento tem liberdade de utilizar os
instrumentais que entender necessários: entrevistas com outros parentes, visita
domiciliar e contatos com a rede, por exemplo. Busca-se, ao final, que o profissional
tenha um papel de facilitador para que a vítima possa relatar livremente os eventos,
traumatizantes ou não, e suas variáveis intervenientes.
A contribuição do assistente social e psicólogo judiciário se dá
exatamente na possibilidade de servir de elemento intermediário entre o pensar,
sentir e agir da criança, adolescente ou jovem, o entorno de família ou responsáveis
e o momento para ser ouvida pelo juiz e demais operadores do direito para o
julgamento do feito.
No caso específico das avaliações psicológicas prévias ao depoimento
especial, de acordo com a Resolução N08 de 2010, que dispõe sobre a atuação do
psicólogo como perito e assistente técnico no poder judiciário, Art.3 0 “Conforme a
especificidade de cada situação, o trabalho pericial pode contemplar observações,
entrevistas, visitas domiciliares e institucionais, aplicação de testes psicológicos,
utilização de recursos lúdicos e outros instrumentos, métodos e técnicas”.
Um fator importante que dificulta as avaliações prévias no contexto do
judiciário continua sendo a falta da Escuta Especializada que deveria ser feita por
um serviço do Executivo, tanto para solicitação da tomada de medidas de proteção
imediatas necessárias, como para avaliação do que possa ter ocorrido. As inúmeras
“escutas” nos diversos órgãos, a demora citada e a falta de serviços de suporte
fazem com que muitas vezes a criança não queira mais contar o que lhe ocorreu, e,
não raro, os fatos perderam-se na memória, sendo meros fragmentos que dificultam
ainda mais o entendimento do que possa ter ocorrido. Pelas mesmas razões, por
vezes o relato vem permeado de frases e palavras que ouviram de parentes ou até
mesmo decorrentes das inúmeras “escutas” mal conduzidas, que podem produzir

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

falsas memórias dando chance a que a avaliação prévia não consiga chegar a
conclusões mínimas se a criança sofreu algum tipo de violência, se foi induzida
propositalmente ou por má condução do caso, ou até pela escassez dos detalhes
perdidos pelo tempo decorrido.
Dessa forma a avaliação prévia, além de buscar os elementos passados
(qual o caminho que esta criança percorreu até chegar ao Judiciário? Qual o lapso
temporal entre o início da revelação e esta fase? entre outras questões), tem como
objetivo verificar também como a criança se encontra no presente momento. Assim,
na avaliação prévia, todas essas variáveis intervenientes devem ser levadas em
consideração.

2.2 - RESPOSTAS AOS QUESITOS

Quesitos não são recomendações de como o profissional deve conduzir


seus estudos, mas sim perguntas formuladas para melhor compreensão do caso.
Desta forma, os quesitos só devem ser respondidos (se for o caso de respondê-los),
quando há o deferimento do juiz e a pertinência com relação à área de atuação
profissional.
A avaliação preliminar pode não ser uma avaliação aprofundada, mas as
entrevistas com a vítima e seu responsável legal trazem dados valiosos.
Os dados também podem aparecer durante o depoimento especial,
momento em que a vítima relata a violência sofrida. Assim, os indicadores de
abuso/violência podem e devem ser observados como uma somatória desses
passos: avaliação preliminar e depoimento especial.
Em muitos casos, há a apresentação de quesitos pelo magistrado,
promotor e advogado/defensor. Assim, os quesitos devem ser respondidos na
medida em que os dados apareceram durante os estudos efetuados, por exemplo: a
mãe relata que desde o abuso a criança passou a não dormir, ter dores de cabeça e
recusa em ir para a escola. Esses seriam indicadores obtidos segundo a mãe da
criança. Dessa forma, a resposta sobre indicadores pode ser: “segundo a genitora, a
criança apresenta X atitudes, condutas, sentimentos, etc. Tais
comportamentos/indicadores/sentimentos são encontrados em vítimas de violência
sexual segundo (cite-se um autor correspondente: por exemplo: Gilman Furniss,
Marceline Gabel, Christiane Sanderson, Irene Intebi, etc., conforme o caso).
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outra situação: a adolescente conta que desde então, teme encontrar o


agressor, tem pesadelos, etc. Esses são indicadores obtidos através do relato da
adolescente ou criança. Dessa forma, a resposta sobre esses indicadores pode ser:
“segundo a adolescente, esta apresenta (sente, percebe, etc) X condutas, atitudes,
etc. Tais comportamentos/indicadores/sentimentos são encontrados em vítimas de
violência” (cite-se um autor como acima).
Outro exemplo: observamos que durante o relato a criança/adolescente
mostrou-se insegura, ansiosa, temerosa que ouvissem nossa conversa; ou chorou
durante o relato, demonstrando que o fato ainda lhe causa
sofrimento/repugnância/medo, etc. Esses indicadores são obtidos através da nossa
observação e podem ser respondidos: "observamos X,
sentimentos/indicadores/comportamentos. Tais sentimentos /comportamentos
podem ser encontrados em crianças/adolescentes vítimas de violência (cite-se o
autor conforme acima )...".
Desta forma, há três tipos de respostas aos quesitos: 1) os que nos foram
passados segundo um familiar/profissional da rede, 2) pela própria criança, ou 3)
através de nossa própria percepção. Assim, cada um deles deve ser respondido de
forma clara, informando-se através de quem o dado foi obtido.
Importante ressaltar que os quesitos que não são pertinentes à área de
formação do profissional não devem ser respondidos, quando, por exemplo, se tratar
de: “a criança apresenta peso e altura compatíveis com a faixa etária? ( quesito que
provavelmente busca que o profissional indique que a criança está desnutrida,
maltratada ou negligenciada). No exemplo citado, deve-se responder buscando-se
alguma dessas alternativas, ou algo semelhante: “Prejudicado”, ou “Prejudicado.
Depende de avaliação médica”, ou ainda, “Prejudicado. Foge da área de formação
deste profissional”.
Determinados quesitos prendem-se a fatos, como por exemplo: “a
genitora utiliza bebida alcóolica na presença da criança?”, ou “o genitor fala
mal/denigre a figura da genitora na presença da criança?”. Claro que há que se
considerar, sob qualquer hipótese, a natureza e a gravidade de cada situação, bem
como a possibilidade de responder aos quesitos sempre que possível, porém uma
possível resposta para quesitos desse tipo poderia ser: “Prejudicado. Depende de
prova testemunhal”, ou seja, significa que não temos como responder, pois

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

dependeria de que o profissional tivesse presenciado a situação para responder de


forma a “comprovar” o fato.
Ainda, para determinados quesitos, de forma geral pode-se responder:
“vide corpo do laudo: página 3, 5º. Parágrafo, por exemplo).
Ressalta- se neste artigo que os quesitos auxiliam no esclarecimento e
compreensão do caso, e devem ser respondidos desde que sejam deferidos pelo
juiz; os dados estejam presentes no estudo; e que pertençam à área de formação de
conhecimento específico de cada profissional.

3 - DISCUSSÃO DO CASO

A maioria dos casos discutidos nos encontros do Grupo abordou temas


relacionados a avaliações psicológicas e sociais prévias aos depoimentos especiais
de crianças, adolescentes e jovens que relataram ter sido vítimas de abuso sexual
por parte de parentes tais como pais, padrastos, tios, etc..
Foi escolhido, para exemplificar a discussão neste artigo de finalização
dos trabalhos, um caso de uma criança de aproximadamente 9 anos de idade, cujo
abusador seria um tio. Neste caso ilustrativo, no âmbito judicial foi determinada a
realização de Depoimento Especial em caráter antecipatório de prova nos moldes do
que preconiza a Lei 13.431/2017. No plano psicológico e social, o estudo teve como
objetivo oferecer um espaço para compreender a situação de violência na qual a
criança se encontrava. Para tanto, procurou-se resguardar sua integridade física e
emocional. Teve- se o cuidado de que durante a avaliação a criança não fosse
revitimizada.

3.1 - BREVE DESCRIÇÃO, PROCEDIMENTOS E ANÁLISE DO CASO


ILUSTRATIVO

Os dados foram omitidos para preservar o sigilo e a privacidade dos


envolvidos. Trata-se de um caso de um suposto abuso sexual de uma menina de
oito anos a quem denominaremos M., pelo marido da sua tia-avó materna a qual
denominaremos R. R. e sua esposa tiveram uma filha, com a mesma idade de M.,
que eram amigas. Essa tia- avó era responsável pelos cuidados dessa sobrinha
160
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

enquanto seus pais trabalhavam no período noturno. Certo dia, na ausência da tia,
R. tirou fotos de M. de calcinha e a fez manipular seus órgãos genitais. Dias depois,
ao ser convidada a passar a noite na casa de R., a criança chorou negando-se a ir.
No dia posterior, a mãe questionou a reação, momento em que M. lhe revelou o
ocorrido. A mãe afastou-se da tia e de sua família sem maiores explicações. Tempos
depois surgiu uma denúncia anônima, o conselho tutelar foi avisado e, sob
orientação desse órgão, a família registrou Boletim de Ocorrência. Foi realizada a
Escuta Especializada pelo serviço de saúde mental do município, oferecida denúncia
pelo Ministério Público e, assim, o caso chegou ao Judiciário.
A técnica do judiciário responsável pelo caso foi uma psicóloga, que
chamou os pais e a criança para uma avaliação prévia, porém o pai não
compareceu. Posteriormente em função do arrolamento da prima e amiga como
testemunha, esta e sua mãe (tia-avó materna) foram entrevistadas. Durante o
estudo, perguntado à criança sobre o motivo de estar ali, revelou o abuso. Sua mãe
contou que as famílias romperam o convívio familiar em função do ocorrido, havendo
afastamento entre as crianças e demais familiares, causando sofrimento a todos. A
criança verbalizou que tinha medo de revelar o ocorrido por ter sofrido ameaças de
R. Durante o depoimento especial, demonstrou inquietação, agitação psicomotora e
vergonha.
Percebeu-se, no caso ilustrativo, a revelação ativa da criança e o
posicionamento dos pais afastando se da família na tentativa de preservar a criança.

3.2 - PROCEDIMENTOS UTILIZADOS NA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA PRÉVIA


AO DEPOIMENTO ESPECIAL

Utilizaram-se, como estratégia metodológica, os seguintes instrumentos


técnicos:
• Análise dos autos;
• Entrevista individual semiestruturada com a genitora e com a
criança;
• Observação lúdica com a criança;
• Apresentação da sala de audiência para a criança onde foi
realizado o Depoimento Especial, bem como o procedimento de filmagem e
de registro das imagens;
161
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

• Entrevista individual semiestruturada com a testemunha criança


e também com a genitora da testemunha.

No que se refere aos casos discutidos com base na experiência com as


avaliações prévias aos depoimentos especiais pelos profissionais nos encontros do
Grupo, houve uma diversidade bastante grande em relação às características
psicológicas das vítimas ou testemunhas de abuso sexual e de relações
estabelecidas entre as vítimas e as pessoas envolvidas, bem como as
corroborações e retratações das denúncias.
Segundo apontam Baía, Veloso, Magalhães e Dell’Aglio (2013) há casos
de retratação das denúncias devido a motivos como dependência financeira do
acusado, vínculo com o acusado, quando a pessoa que deveria ser o maior apoiador
da criança não dá crédito à denúncia e quando os procedimentos que compõem
todo o processo de abuso sexual causam sofrimento psíquico à vítima.

162
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o depoimento especial não seja técnica específica à psicologia e


ao serviço social, a avaliação prévia psicossocial, para este fim, assume grande
importância em todo o processo.
Entende-se sua importância pela possibilidade de se estabelecer
vinculação com a vítima e seus familiares, bem como a compreensão das relações
sócio afetivas desta família, verificando-se, inclusive, se a criança encontra-se
protegida. Enfatiza-se que cada caso requer, dada a sua particularidade, atenção
especializada e encaminhamentos pertinentes ao sistema de garantia de direitos.
Enfim, os interlocutores daqueles que revelaram a violência sofrida, devem lhes dar
o suporte necessário.

163
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

Baía, P.A.D., Veloso, M.M.X., Magalhães, C.M.C., Dell’Aglio, D. D. (2013).


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Negação, Retratação e Fatores Associados. Temas em Psicologia 21(1),193-202.
Bion, W.R. (1991). Uma teoria do pensar. Melanie Klein hoje. Desenvolvimento
da teoria e da técnica. Artigos predominantemente teóricos. (vol. 1, p. 185-193). Rio
de Janeiro: Imago.

Buriasco, R. L. C., Ferreira, P. E. A., & Ciani, A. B. (2009). Avaliação como Prática
de Investigação (alguns apontamentos). BOLEMA, v. 22 n. 33, 69-95, Rio
Claro/SP.

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serviços de saúde. Mundo da Saúde, 24( 1), 72-88, São Paulo.

Conselho Federal de Psicologia. (2019). Avaliação psicológica área em expansão.


In: Muniz, M. Sintonia fina: o importante papel desenvolvido pelas entidades
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Ano 15, nº 10, Maio de 2019, 6-12.

Kaplan, H. I. Compêndio de psiquiatria dinâmica. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.


Resolução CFP N0 008 (2010 junho). Conselho Federal de Psicologia. Disponível
em:https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/07/resolucao2010_008.pdf
Acesso em 11 de novembro de 2018.

Rovinski, S. L. R., & Cruz, R. M. (2009). Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e


processos de intervenção. In: Rovinski, S. L. R. Psicologia Jurídica no Brasil e na
América latina: dados históricos e suas repercussões quanto à avaliação
psicológica. São Paulo: Vetor.

164
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Shine, S. K., & Souza, A. S. L. (2010). Atendendo famílias incapazes de pensar: a


perspectiva do psicólogo judiciário. Boletim de Psicologia, VOL. LX, Nº 132: 001-
014.

Moreira, M. C. Nota Técnica – Considerações sobre a dimensão social presente no


processo de reconhecimento de direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC)
e a atuação do/a assistente social. Brasília, DF: CFESS, 2017. Disponível em:
<http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-NotaTecnica-MarineteMoreira-BPC.pdf>.
Acesso em: 5 nov. 2019.

165
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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A CATEGORIA SUBJETIVIDADE E AS EXPRESSÕES DA


QUESTÃO SOCIAL: ASPECTOS A SEREM
CONSIDERADOS NA ELABORAÇÃO DO ESTUDO SOCIAL
NO ÂMBITO DO JUDICIÁRIO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ESTUDO SOCIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019
166
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COORDENAÇÃO
Carlos Henrique de Francisco – Assistente Social Judiciário – Vara Central
Fabiane Cristina Vieira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Piracicaba

AUTORES
Alana Beatriz Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Angelita Luiza Covre – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Aline da Silva Fernandes – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de São
Miguel Paulista
Carlos Henrique de Francisco – Assistente Social Judiciário – Vara Central
Ana Rita Pavão – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirassununga
Cleber Candido de Deus – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santo Amaro
Daniela de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cubatão
Edilaine Faustino da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santana do
Parnaíba
Fabiane Cristina Vieira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Piracicaba
Fátima de Almeida Freitas – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de São
Miguel Paulista
Jacira Castro da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rio das
Pedras
João Carlos Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itanhaém
Kátia Aparecida Cordeiro dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São José do Rio Preto
Kátia Regina Dias da Silva Freitas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itu
Lucinete Rodrigues de Santana – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Santana
Maria Cristina de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jarinu
Mariana Suemi Hamagushi – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional da
Penha de França
Marilza Elorza Carneiro – Assistente Social Judiciário – Fórum de Andradina

167
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Patrícia Silva Santos Carvalho – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de


Itaquera
Priscila de Almeida Prado – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Jabaquara
Roberto Barros da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taboão da
Serra
Sandra Sueli Catarina David – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica
da Serra

168
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Só será plena a emancipação humana quando o homem real


e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como
homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas
suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e
quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias
forças (forces propes) como forças sociais, de maneira a
nunca mais separar de si esta força social como força
política”. (Karl Marx)

INTRODUÇÃO

Com o objetivo de propiciar discussões cada vez mais aprofundadas à


análise das condições que cercam os sujeitos que protagonizam as narrativas nos
autos judiciais, o Grupo de Estudos da Capital – Estudo Social lançou-se ao desafio
de buscar compreender com um pouco mais de profundidade a categoria
subjetividade14 e sua complexa relação com o trabalho desenvolvido pelo Serviço
Social.
O fazer profissional impõe o dever ético de buscar compreender os limites
impostos pelas construções sócio históricas que permeiam a vida dos sujeitos e
suas condições subjetivas que não estão desconectadas de uma totalidade15.
Tendo em vista a complexidade do tema, não se pretende esgotar as
aproximações à categoria subjetividade, mas trazer essa discussão ao campo das
intervenções, que se concretizam nos estudos sociais elaborados, no âmbito do

14
entendida como o “espaço íntimo” do sujeito, ou seja, como ele se reconhece (mundo interno)
e como ele se relaciona com o mundo social (mundo externo), resultando em marcas singulares
na formação do indivíduo.
15 A categoria totalidade está intrinsecamente ligada à ideia de ruptura com a “aparência

superficial” buscando aprofundar-se na essência da realidade, algo que não é estático, mas
dinâmico, sendo apenas um momento de um processo de totalização (nunca alcança uma etapa
definitiva e acabada). Com as aproximações sucessivas da categoria totalidade é possível a
compreensão do movimento sócio histórico da realidade que tem como escopo a produção e
reprodução da vida social. Para Húngaro (2001, p.189) “o ponto de vista da totalidade não se
restringe, apenas, à apreensão da realidade objetiva (como objeto do conhecimento), ele foca,
também, o sujeito. Em outras palavras, apreender a realidade objetal como totalidade implica,
também, encarar o sujeito como uma totalidade. Na sociedade moderna, as classes sociais são
representativas dessa totalidade subjetiva.” O profissional de Serviço Social, apesar de
desenvolver análises de “micrototalidades”, não deve perder de vista a concepção de totalidade
das determinações sociais, pois quanto mais se apropria dos elementos e da análise de
diferentes aspectos socioculturais, socioeconômicos e políticos, dentre outros, mais completa e
refinada fica a sua interpretação da realidade social dos usuários e, assim, ultrapassando sua
expressão fenomênica, percebe-se tal situação/conflito como expressão de uma dada
sociedade, num dado momento histórico.

169
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Judiciário, pois é a partir da análise do concreto que se desvelam as implicações


subjetivas da questão social emergente.
Durante a elaboração do presente artigo, o Grupo de Estudos se
apropriou da leitura de diversos autores acerca do tema, dentre os quais os artigos
da autora Raquel de Matos Lopes Gentilli “Sociabilidade e Subjetividade:
aproximações para o Serviço Social” e “Desigualdades sociais, Subjetividade e
Saúde Mental: Desafios para o Serviço Social”, o primeiro propondo um debate da
relação entre a realidade concreta e as categorias sociabilidade e subjetividade, na
perspectiva da teoria social crítica e o segundo, buscando articular a subjetividade e
os sofrimentos mentais em face à estrutura da desigualdade social no Brasil.
O Grupo de Estudos também recorreu à importante contribuição do autor
Marco José de Oliveira Duarte, que trata da polêmica relação entre o Marxismo e a
Psicanálise, dentro da visão do trabalho profissional do Serviço Social, no artigo
“Subjetividade, Marxismo e Serviço Social: um ensaio crítico”
Do mesmo modo, se apropriou do artigo “Pobreza, Subjetividade e
Cidadania”, de José Rogério Lopes, que trata da história real de um neto de
carroceiro que dá sentido à compreensão da construção da subjetividade através da
vivência do coletivo.
O artigo está organizado em três partes: a primeira parte trata da
discussão sobre a subjetividade na relação entre marxismo e psicanálise, a segunda
aborda o debate sobre trabalho e subjetividade e os fatores contributórios ao
adoecimento da população trabalhadora e terceira parte trata das considerações
finais acerca do tema.
Por fim, com a abordagem contida no presente artigo, o Grupo de Estudos
pretende ofertar, reflexões que facilitem a análise conjuntural durante a elaboração
dos estudos sociais e, refletidos nos laudos e pareceres, contribuindo para que se
efetive a garantia de direitos da população que recorre ao Sistema Judiciário.

170
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1 - A SUBJETIVIDADE NA RELAÇÃO ENTRE O MARXISMO E A


PSICANÁLISE

Para abordamos a questão da relação entre marxismo e psicanálise é


fundamental falarmos sobre quais os fundamentos teóricos que norteiam a profissão.
Ao longo dos últimos setenta anos, o Serviço Social passou por várias
mudanças na fundamentação teórica, técnica operativa e ética política. É no final da
década de 70, especificamente no ano de 197916 que grande parte da categoria e os
órgãos de representação iniciam debates sobre a posição da categoria em relação
às disputas advindas do sistema econômico capitalista e as classes sociais,
representadas pelos trabalhadores e pela classe burguesa.
No Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em 1979, os
profissionais que militavam junto aos partidos de esquerda, aos sindicatos e
pactuavam com uma compreensão mais aprofundada da questão social, da
desigualdade social que os trabalhadores vivenciavam acabaram por tomar o
CBAS/79, ou seja, o congresso e a partir daquele momento passou a ter uma
dimensão mais política de luta a favor da classe trabalhadora e o Serviço Social
assume o seu papel enquanto classe trabalhadora.
Em decorrência deste evento em plena Ditadura Militar (1964-1985)
ocorreram mudanças significativas em torno dos debates teóricos e dos debates
técnicos e a dimensão ética foi incluída. Conforme aponta Barroco (1999, p.129),

A ética profissional é uma dimensão da profissão vinculada


organicamente às dimensões teóricas, técnica, política e prática. [...]
Esfera teórica. Trata-se das orientações filosóficas e teórico-
metodológicas que servem de base às concepções éticas
profissionais, com seus valores, princípios, visão de homem e
sociedade. Esfera moral prática. Diz respeito: a) ao comportamento

16
III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em São Paulo no ano de 1979,
denominado “Congresso da Virada”. O ano de 1979 tornou-se emblemático por ser o tempo de
florescimento das possibilidades objetivas e subjetivas que permitiram às forças políticas do
trabalho expressar suas lutas pela implementação do Estado de Direito após o período da
ditadura militar no Brasil, que ceifou as mais corajosas formas de resistência e combate ao
autoritarismo. Alimentados por aquela conjuntura sócio-histórica, Assistentes Sociais começaram
a tecer o entendimento do Serviço Social nos marcos da relação capital/ trabalho e nas
complexas relações entre Estado e Sociedade. A “Virada” teve o sabor de descortinar novas
possibilidades de análise da vida social, da profissão e dos indivíduos com os quais o Serviço
Social trabalha (fonte: http://www.cfess.org.br/arquivos/congresso.pdf acesso em 28.11.2019).
171
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

prático individual dos profissionais relativos às ações orientadas pelo


que se considera bom/mau, aos juízos de valor, à responsabilidade e
compromisso social, à autonomia e consciência em face das
escolhas e das situações de conflito; b) ao conjunto das ações
profissionais em sua organização coletiva, direcionada
teleologicamente para a realização de determinados projetos com
seus valores e princípios éticos. Esfera normativa. Expressa no
Código de Ética Profissional, exigido, por determinação estatutária,
de todas as profissões liberais. Trata-se de um código moral que
prescreve normas, direitos, deveres e sanções determinadas pela
profissão, orientando o comportamento individual dos profissionais e
buscando consolidar um determinado projeto profissional com uma
direção social explícita”.

O Serviço Social irá se apropriar ao longo da década de 80/90 da teoria


marxiniana, e principalmente, a partir da contribuição da Profa. Dra. Marilda Vilela
Iamamoto que em 1982 junto com Raul de Carvalho publica o livro Relações Sociais
e Serviço Social que traz a dimensão histórica/teórico/metodológica/técnica e política
da profissão. Essa mudança irá contribuir de forma significativa para a
materialização do que se convencionou a chamar de Projeto Ético Político
Profissional.
Dessa forma, considerando o projeto ético-político da profissão,
importante destacar os posicionamentos de alguns pensadores da teoria marxista,
os quais trouxeram luz à análise da categoria da subjetividade. Nesse sentido,
Silveira aponta que:

A temática da subjetividade no campo do marxismo tende a ser


tratada com estranhamento, não só porque no âmbito do senso
comum difunde-se um antagonismo entre o campo da singularidade
e dos projetos coletivos, mas porque, igualmente, no interior da
própria esquerda, a questão da produção dos sujeitos vem sendo
considerada de forma preconceituosa e/ou reducionista” (2002,
p.103).

A questão levantada pela autora permite melhor compreensão acerca das


dificuldades e do estranhamento para abordar esta temática no âmbito do Serviço
Social, embora a subjetividade esteja tão presente no cotidiano profissional.

172
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Para uma compreensão mais aprofundada dessa relação indivíduo/sujeito


e individualidade/subjetividade, observa-se que, nos estudos da subjetividade numa
perspectiva crítica, pensadores marxistas procuraram dialogar com a teoria
freudiana, apontando questões que ora se complementam e ora se repelem nestas
formas de se olhar para a mesma realidade. Buscando simplificar esta questão,
verifica-se que elas se complementam quando a psicanálise aborda o sujeito de uma
forma singular e o marxismo o representa a partir do universal. Porém se mostram
antagônicas, pois na sociedade do capital essa ambiguidade é necessária para a
manutenção do próprio sistema capitalista. Duarte coloca a respeito da
complementariedade destes pensamentos:

O marxismo e a psicanálise freudiana expressam os dois lados de


um mesmo “fato”, digamos assim, duas perspectivas de uma mesma
realidade, a do indivíduo “cindido”, explorado, assujeitado,
hierarquizado e alienado. Neste sentido, eles se completam.
Enquanto o marxismo apresenta a base social deste processo, a
psicanálise apresenta a base psíquica correspondente, que é por ele
produzida, ao mesmo tempo em que o mantém e o reproduz. Assim,
a psicanálise é a “linguagem do singular” na qual o todo é passível
de ser reconhecido (2010 pgs. 08-09).

O autor também descreve sobre o distanciamento destas teorias quando


afirma:

A linha que separa a psicanálise do marxismo só poderia ser abolida


por meio de uma transformação social efetiva, que eliminasse o
antagonismo entre o universal e o particular, entre as exigências da
sociedade repressiva (de sua manutenção e perpetuação) e as
exigências e necessidades individuais – esta separação testemunha
um fato empírico, o da real separação entre indivíduos e a
sociedade”(Ibidem).

Todavia, Freud (2011 p.14) também considerava a pertinência da


dimensão social em sua teoria, afirmando que são raras as situações em que é
possível que a psicologia individual despreze a significância dos vínculos mantidos
entre as pessoas e a influência entre elas; e até mesmo que “a psicologia individual

173
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente
justificado”.
Com isto, entendemos que as subjetividades se constroem social e
historicamente como descreve Silveira (2002, p. 104) “a subjetividade é socialmente
produzida, operando numa formação social determinada, sob o crivo de um
determinado tempo histórico e no âmbito de um campo cultural”. No mesmo sentido,
Duarte pondera que:

Quando se fala “a minha subjetividade”, a “minha opinião”, o “meu


desejo”, não se trata de algo interno que se revela ao exterior”. As
formas subjetivas são compostas socialmente. Todo sujeito é sempre
coletivo. Assim, quando falo, muitas vozes falam em mim, muitas
histórias atravessam a minha história, e isso se torna mais complexo
quando se pensa no terreno da intervenção e nos postos de trabalho
profissional. Embora haja uma composição singular em mim, que me
difere dos demais, que difere cada um, somente a composição é
singular. Os pedaços de que é feita são partilhados por muita gente
(2010, p.8).

Na sociedade capitalista, as expressões da questão social17 é a


materialização das relações desiguais deste modelo societário, logo a subjetividade
é campo de análise do fazer profissional, considerando que é objeto de trabalho da
(o) Assistente Social.
As dificuldades profissionais em tratar do tema da subjetividade se dão,
especialmente, pelo receio de caminhar para intervenções que “psicologismo” o
fazer profissional, e este receio são historicamente construídos. Para Duarte:

Se a interlocução do Serviço Social com o marxismo, em suas


primeiras leituras, foi de forma enviesada e influenciada pelo
positivismo, o mesmo pode-se dizer da psicanálise de cunho
adaptador, ajustador, conservador e reformista que influenciou o
mesmo Serviço Social (2010, p.15).

17
Segundo Iamamoto (1998, p.27) “A Questão Social é apreendida como um conjunto das
expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a
produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto
a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”.
174
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O conservadorismo que o debate sobre a subjetividade carregou dentro


da profissão está vinculado à influência das Ciências Sociais Americanas sobre o
Serviço Social Brasileiro. Conforme aponta, Netto (1991, p.154-157) apud Oliveira e
Chaves, 2017, p.153-154).

O Serviço Social passa por um profundo processo de renovação,


repercutindo na sua produção teórica e prática, refletindo a própria
insatisfação social que caracterizou os movimentos sociais nos anos
1978-1980. Esse processo de renovação constituiu-se de três
direções principais. A primeira, denominada “perspectiva
modernizadora para as concepções profissionais”, empenhou-se em
adequar o instrumental técnico e operacional do Serviço Social às
estratégias do desenvolvimento capitalista no período pós-64, tendo
os textos dos seminários de Araxá e Teresópolis como marcos da
renovação para a categoria profissional. Essa perspectiva teve sua
hegemonia posta em questão a partir de meados dos anos 1970. A
segunda direção foi designada como “perspectiva de reatualização
do conservadorismo” na qual se condensava o segmento mais
avesso às mudanças, apresentando proposições de tendências
irracionalistas, fundamentadas na fenomenologia e na psicologia,
enfatizando as dimensões da subjetividade e respaldando o exercício
profissional no campo da “ajuda psicossocial”. Essa direção do
desenvolvimento profissional evidenciou-se em meados dos anos
1970 e teve uma expressão de menor envergadura no âmbito
profissional. A terceira direção foi à perspectiva proposta como
“intenção de ruptura com o” Serviço Social ‘tradicional’, que visava
romper com a tradição positivista e com o reformismo conservador,
tanto no que se refere à matriz teórica, como aos paradigmas
conservadores de intervenção social, fundamentado na crítica
sistemática aos seus arcabouços teóricos, metodológicos e
ideológicos. Essa direção fundamenta-se na tradição marxista,
formula o conhecido “Método BH” na primeira metade da década de
1970 e polemiza o debate profissional na primeira metade da década
de 1980, caracterizando-se por uma retórica politizada, tendo como
mérito mais evidente a qualificação da profissão no debate
acadêmico e político.

Esse processo de renovação do Serviço Social, ao longo dos anos vai se


distanciando do debate sobre a subjetividade. Contudo, negar a subjetividade numa
perspectiva crítica, compromete que o projeto profissional se efetive:

Nesse emaranhado de contradições e perspectivas, somos


inclinados a observar que o Serviço Social, como afirmamos
anteriormente, caminhou a passos largos e bem distantes, tanto nos
175
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

seus primórdios como na contemporaneidade, de uma interlocução


com a psicanálise em sua fonte original, mas vem tentando dialogar
com alguns representantes do conjunto de obras e autores que
constituem o que se convencionou chamar de teoria social crítica
sejam elas modernas, pós-modernas e /ou contemporâneas. (Duarte,
2010 p.14).

Marx e Engels (1998, p.54) consideram que a condição de existência da


sociedade do capital é a transformação das relações de produção, incluindo as
relações sociais, produzindo incerteza e agitação na vida social.
As formas sociais de produção não afetam somente a economia, mas
também a constituição da sociabilidade dos sujeitos, evidenciando as múltiplas
determinações de subsunção do trabalho à sociedade do capital. São, então, as
bases da sociabilidade capitalista, que se autotransformam, se auto revolucionam
pela produção numa dinâmica constante, como nos aponta a visão marxiana.
É preciso que se entenda que essas leis do capital afetam toda a vida
social dos sujeitos – valores, sentimentos, representações e desejos e, portanto,
essa organização produtiva traz consequências para as condições de vida física e
mental.

A subsunção real do trabalho e a subsunção formal da vida dos


trabalhadores ao capital transformam-se, na contemporaneidade, em
subsunção real da vida dos trabalhadores ao capital”. Mais do que
isso, tendo em vista o controle do capital sobre toda a vida social,
transformam-se em subsunção real da vida social ao capital.
Dessa forma, o controle do processo de trabalho realiza-se por
intermédio do controle da vida social, o primeiro subordinando-se ao
segundo, de tal maneira que o capital tende a prescindir de um
controle mais sistemático e hostil sobre os trabalhadores no âmbito
dos processos de trabalho, dispensando, inclusive, os empregados
que desempenham esse tipo de função, tendo em vista o
autocontrole exercido pelos próprios trabalhadores. Tudo isso
significa, portanto, o coroamento da articulação orgânica do "espaço
do trabalho" e do "espaço fora do trabalho" num único e mesmo
"espaço", o lócus do capital. (Tumolo, 2003, p.174).

As realidades sociais temporais e espaciais são, simultaneamente, locais


e globais, obedecendo à ordem do Capital, o qual leva a sociedade à fabricação de
novas riquezas e bens sociais, culturais e novas expressões das relações sociais,
176
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

mas sobretudo também leva às desigualdades, à desintegração social, à


segregação, às tensões sociais e aos processos de exclusão(Gentilli:2013 apud
Ianni, 2003).
Observa-se que a vida social se transforma em “vida que gira em torno do
valor do capital, da exploração do trabalho, da extração da mais-valia, da dominação
e da organização social da vida em sociedade” (Gentilli:2013 p.314).
A consequência disso é a limitação do homem em compreender a
totalidade social em que está inserido, já que a visão de mundo passa a ser
influenciada pela universalização das inovações tecnológicas e suas consequentes
padronizações valorativas.
O homem é fragmento alienado e torna-se apêndice do processo
produtivo. O debate em torno da questão social se coloca no modo de produção e
reprodução das forças produtivas e no mundo do trabalho, e na atualidade temos
que considerar a inserção de complexas tecnologias e competitividade,
fragmentárias e heterogêneas, o que é associado às novas especializações e
qualificações. Nessa lógica, o indivíduo é destituído de vínculos sólidos, tornando-se
um homem solitário.
O pensamento cotidiano funciona produzindo juízos provisórios e ultra
generalizado que podem levar o indivíduo a se submeter a uma vida conformista e
cada vez mais individualizada tornando os homens solitários e adaptando-se à
ordem estabelecida (Heller:1989, p.753), sendo prisioneiros de uma existência
desumanizada pela reificação que “coisifica” as relações sociais e pela fetichização
que atribui poderes e características humanas as coisas.
Os estudos de teóricos marxianos, sobretudo nas décadas de 1960 e
1970, dentre os quais podemos citar Agnes Heller, Adolfo Sánchez Vázquez e Karel
Kosik já apontavam a importância de uma concepção que considere o sujeito social
em suas relações sociais determinadas por suas condições históricas, políticas e
culturais. “ou seja, busca-se uma visão de ser individual concebido para além de si
mesmo, de seu psiquismo, ou mesmo de visões reducionistas de sujeito em suas
demais relações familiares, parentais ou de conjugalidade”. (Gentilli, 2013 p.316)
Portanto, sociedade e sujeito é parte da mesma realidade ontogenética
sendo, ao mesmo tempo, indivíduo humano e indivíduo sócio histórico (Kosik 1976
p. 19). O que significa dizer que “as formas subjetivas de cada ser são inferidas -

177
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

porque nelas constituídas – das relações sociais e mesmo as situações mais íntimas
do ser possuem inscrição na cultura, na ciência, na política e na economia” (Gentilli:
2013 p. 316).
O ser social visto como singular carregado de suas emoções, afetos,
paixões, comportamentos e escolhas só existem inseridos na vida social, na
interação com outros sujeitos, sendo cristalino observar que as contradições da vida
em sociedade produzem efeitos diversos em cada ser social, tanto na sua inserção
na vida social, quanto nas inter-relações, singulares e individuais.
Desse modo, a autora entende que as ideias, as representações, a fé, os
afetos, a consciência e o pensamento dos homens são parte da realidade material
porque também expressa a vida real, a linguagem da vida real, no entanto, está
profundamente vinculada às condições objetivas da realidade social de cada sujeito.
A vida cotidiana é pragmática, repleta de pensamentos fragmentados, de
manipulação, de juízos de valor, que são originados tanto na orientação social
quanto nas escolhas e preferências.
Contraditoriamente, na estrutura da subjetividade, são impostas aos
sujeitos condições de vida fundadas no desejo do consumo, que enseja status e
exclusividade – fetiches (coisas) que prometem felicidade para aqueles que "podem"
adquiri-los, mas também descarta os que não podem, delineando-se uma lógica de
mercado.
Assim, à medida que o capitalismo se transforma, emergem novas
contradições, impondo novos fetiches, novas formas de desagregação social como
atualmente a criminalização dos movimentos coletivos e estranhamento do ser que
vive do trabalho.
Todas as implicações da sociedade do capital encontram-se, portanto,
nas complexas inter-relações particulares que se organizam no binômio
produção/reprodução social, numa totalidade complexa, anteriormente estabelecida.
A desagregação social engendrada na nova forma de produção social
elimina mecanismos de organização, como os movimentos de moradia, criando uma
lógica consensual envolvente para melhor promover a manipulação.
Para superar essas práticas cotidianas imediatas, pode-se eleva-las ao
nível de atividade consciente, promovendo rupturas, alargando esses momentos de
possibilidade "da invenção da ousadia, do atrevimento, da transgressão

178
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

"(Martins:2008,p.58), ou seja, propiciando momentos em que se recria a vida,


retomando-se a atividade humano-genérica18 e permitindo-se o repensar das
relações entre os homens que, efetivamente, conformam novas visões de
organização societária.
A inovação, em princípio, pensada na perspectiva da “libertação do
sujeito" tem marcado, de forma impactante, a volatividade de laços e compromissos
entre as pessoas, trazendo sofrimento, desalento e desamparo para as experiências
subjetivas dos indivíduos.
Essa cultura fragmentada também favorece a rejeição ao diferente, ao
diverso na relação entre desiguais, aprofundando o sofrimento psíquico que, de
certa forma está diretamente ligado ao sofrimento social, à medida que a
subjetividade é construída coletivamente.
Vale ressaltar que as redes sociais transformaram a forma de
constituição, organização e hierarquização dos vínculos. As atuais relações sociais,
seja no plano das relações de parentalidade e conjugalidade ou nos
comportamentos de convivência social, tomaram formas de expressão que afetam a
individualidade e a sociabilidade que reclamam atenção e respostas políticas.
O princípio do individualismo, tão propagandeado pelo capital e que se
sobrepõe aos princípios da singularidade, pode destruir os interesses dos
segmentos que não tem acesso ao mercado.

As novas formas de manifestação e publicização da vida íntima


emergem com novas demandas por reconhecimento de

18
O conceito de humano-genérico se constitui como homem por inteiro, utilizando todas as suas
capacidades, possibilidades e habilidades humanas; o homem vivendo livremente e
inteiramente, sendo mudança, criação, criatividade, enfim, sendo vida. Seria o reconhecimento
do “nós”, de se identificar com o outro pela igualdade, ser reconhecido e reconhecendo o outro
enquanto ser humano. O ser genérico, enquanto ser social, oferece as condições para a
inteligibilidade desse processo, em contraponto à nossa sociedade atual que se constitui de
valores individualistas e egoístas, onde o sujeito está sendo impossibilitado de se construir
enquanto humano-genérico, de edificar uma identidade coletiva com o outro ser humano, e este
não se reconhece como tal. A ética permite a elevação do ser humano, possibilitando este
atingir o humano-genérico, de modo que se reconheça no outro, se coloque no lugar do outro em
uma perspectiva de identidade e não simplesmente de alteridade. “O homem enquanto ser
humano-genérico não pode conhecer e reconhecer adequadamente o mundo a não ser no
espelho dos demais.” (Heller, 1989, p. 84).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

subjetividades diversas que reclamam por uma nova sociabilidade


tolerante, respeitosa e legalmente constituída como efetividade de
direitos, por uma sociedade mais justa e pela realização das
promessas políticas de democracia (Gentilli:2013, p.319).

As situações sociais que se desenham, altamente explosivas decorrentes


das desigualdades sociais se traduzem nas mais variadas manifestações da
violência, cindindo a sociedade brasileira.

Como expressões da dor subjetiva de existir, podem também ser


entendidas as ações que se voltam contra si mesmo e contra o outro,
como as violências, o suicídio, a drogadição, as depressões, os
transtornos alimentares e tantos outros sintomas de saúde que
expressam as atuais grandes dificuldades dos sujeitos de lidarem
com a excessiva competitividade do trabalho, precariedade das
condições de trabalho, desemprego, falta de reconhecimento social e
demais situações que afetam as condições de segurança subjetiva
de cada um (GENTILLI – 2013/319).

O reflexo para o Serviço Social são as demandas postas na


imediaticidade do cotidiano profissional, que trazem questões relativas à
subjetividade articulada às expressões da questão social, “referentes à singularidade
de cada sujeito, de cada família, das relações de amizade, vizinhança e de
pertencimento a diferentes grupos sociais, classes ou frações de classe, gênero,
raça/etnia que povoam a sociabilidade humana e os demais condicionantes da vida
privada no contexto maior da vida em sociedade”(Gentilli, 2013 p.321).

2 - TRABALHO E SUBJETIVIDADE: FATORES CONTRIBUTÓRIOS


AO ADOECIMETO DA POPULAÇÃO TRABALHADORA

O ato de produção e reprodução da vida humana se realiza pelo trabalho.


É através dele que o ser humano interage e se integra à sociedade. Assim, as
mudanças advindas do processo de reestruturação produtiva, consequente do modo
de ser capitalista, reforça a relação simbiótica do trabalhador para com o capital ao
mesmo tempo em que precariza essa relação a partir do desmonte da estrutura de
proteção de garantia mínima de direitos, com efeitos devastadores na vida da classe
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

trabalhadora, tais como a superexploração da força de trabalho, baixos salários,


ritmos de produção intensificados, prolongamento das jornadas de trabalho e a
desorganização do movimento operário e sindical, fortemente caracterizado a partir
da Década de 90 no Brasil (Antunes; Praun, 2015 p. 409).
Nota-se que o processo de globalização, que ocorre em todo o planeta,
tem acelerado as mudanças na distribuição de poder, riquezas e cultura, levando ao
aprofundamento dos mecanismos de desigualdades existentes, levando a profundas
transformações nas relações e estruturas, que se tornaram mais complexas e
dinâmicas. As inovações tecnológicas que transitam em ritmo acelerado - em
decorrência da globalização - transformam com a mesma rapidez o comportamento
de consumo de determinados segmentos das camadas da população trabalhadoras
“mais especializadas e próximas dos setores de ponta da economia”. (Gentilli, 2011,
p.212)
Ainda, segundo a autora,

Outras camadas de trabalhadores, como os dos setores de serviços,


permanecem com suas condições de vida bem aviltadas. Ainda pior
são as condições de vida, sobretudo, daquelas que possuem tais
condições congeladas no tempo por certas condições sociais
relativas à persistente miséria social, precariamente atendida pelas
políticas públicas (Gentilli, 2011, p.212).

Entende-se assim que o surgimento desses novos padrões processados


no mundo do trabalho, através da incorporação de novas tecnologias e estratégias
gerenciais, desloca grande parte dessa mão de obra para “áreas localizadas na
periferia do sistema” (Antunes; Praun, 2015, p. 408).
Por outro lado, se historicamente o desenvolvimento do sistema de
cidadania brasileira reitera profundas desigualdades sociais, políticas e econômicas,
tais transformações rebateram diretamente nas relações de classe existentes.
Gentilli (2011, p.214), reflete que o país acabou se inserindo na dinâmica do mundo
globalizado sem conseguir excluir as velhas práticas patrimonialistas e clientelistas,
persistindo ainda uma tradição conservadora e autoritária, que aumentam o
“esgarçamento das condições mínimas de solidariedade entre categorias de
trabalhadores e entre classes sociais”.

181
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesse sentido, Antunes e Praun apontam que é necessário levantar que a


nova divisão internacional de trabalho estabelece outras formas de exposição do
trabalhador mediante uma demanda que requer o conhecimento constante acerca
de novas tecnologias, redesenhando sua relação com os processos de trabalho, à
medida que este se potencializam por meio da flexibilização, da robotização e das
práticas de multifuncionalidades, em contrapartida com novos métodos de gestão de
metas, os quais requerem novas formas de pressão, focados na produtividade e,
concomitantemente, cria grandes contingentes de trabalho precarizado, por
consequência da terceirização, do subemprego e do desemprego contribuindo de
forma significativa para o aumento das desigualdades sociais e da exclusão social e
trazendo como consequência a deteriorização das condições de saúde e segurança
no trabalho no Brasil. (Antunes; Praun, 2015, p.422).
As desigualdades, enquanto aspectos persistentes na sociedade
brasileira atingem de forma contundente a classe trabalhadora em suas mais
variadas dimensões reiterando a condição de assimetria onde a ausência de
oportunidades se estende além das classes sociais para questões de gênero,
escolaridade, raça/etnia, impedindo o pleno acesso aos direitos e à cidadania.
Gentilli (2011, p. 214), reforça que o Brasil é um dos países da América
Latina que possui os mais graves indicadores de desigualdades sociais e que estas
se deslocam para além das assimetrias econômicas e de poder integrando-se e
ampliando-se a outros marcadores sociais discriminatórios e excludentes,
diferentemente do que apregoa a Constituição de 1988 que traz como garantia a
todos os cidadãos a universalização do acesso a direitos.
Sob esse prisma Gentilli, reforça que o modelo de estratificação social no
Brasil determinou a discriminação do acesso aos direitos de cidadania,
primeiramente quando houve a separação daqueles que trabalham dos que não
trabalham frente ao que o Estado considerava ou desconsiderava como trabalho. De
acordo com a autora, o sistema de cidadania do Brasil surgiu “discriminando os
trabalhadores dos pobres; aqueles que precisavam ter garantida à sua reprodução
social, daqueles que não importavam para o sistema produtivo”, o que acabou
excluindo parte da população composta por desempregados, subempregados,
trabalhadores ocasionais aos serviços de proteção social e das políticas sociais, que

182
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

acabou sendo revertida somente em 1993, com a Lei Orgânica de Assistência Social
(Gentilli, 2011, p. 216).
Por outro lado, Antunes & Praun (2015, p. 410-411) sinalizam o
adoecimento da população trabalhadora, no contexto da acumulação flexível e da
nova divisão internacional do trabalho, conforme debatido no parágrafo anterior,
reiterando fenômenos antigos relativos ao adoecimento ou enfermidade com nexo
laboral, em razão da exposição do trabalhador a condições de trabalhos nocivos à
sua saúde. Os autores ressaltam a agudização desse processo através da
fragilização da legislação protetora do trabalho e da organização sindical observada
hoje em escala global. E citam:

Trata-se, nesse sentido, de um redesenho de um mapa mundial dos


acidentes e das doenças profissionais e do trabalho cuja base de
reconfiguração assenta-se em uma nova morfologia do trabalho
expressa por clivagens e transversalidades entre trabalhadores
estáveis e precários, homens e mulheres, jovens e idosos, brancos
negros e índios, qualificados e desqualificados, empregados e
desempregados, nativos e imigrantes, entre tantos outros exemplos.
(Antunes; Praun, 2015, p.411-412).

Ampliando a visão sobre esse debate, Gentilli (2011, p.216), assevera que
tal situação se torna ainda mais latente ao se considerar portadores de transtornos
mentais, que além das questões referentes às desigualdades sociais estruturais,
carregam os preconceitos e elementos restritivos de direitos. A autora refere que se
estabelecem novas correlações entre a estrutura de desigualdades sociais, que
compõem a sociabilidade e os sofrimentos mentais, tanto para os casos de
manifestações de agravos na forma tradicional, quanto para as manifestações
decorrentes do uso de substâncias psicoativas, ou ainda de situações
particularmente identificadas com expressões da sociedade atual como violências,
síndromes do pânico, depressões, transtornos alimentares, etc.
A autora reforça que cada indivíduo, segundo as possibilidades de sua
história de vida, de suas experiências anteriores e presentes e das perspectivas de
devir, é marcado em sua subjetividade pela imersão no mundo social. Que existe
uma simultaneidade entre a constituição econômica e social da sociedade e a

183
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

constituição das demais condições da existência humana, como a cultura, a


ideologia, a política, a linguagem, os costumes, os valores, as normas e as regras
sociais. Pontua, assim, que a subjetividade dos indivíduos é atravessada pelas
transformações da vida social, pois estas afetam de maneira profunda as relações
sociais (Gentilli, 2013, p. 318).
É durante a socialização que os indivíduos vão se deparando com os
artifícios que se apresentam no processo das relações sociais e confrontam a vida
individual com as perspectivas apresentadas por esse mundo globalizado que, ao
mesmo tempo em que apresenta ideários de possibilidades os restringem mediante
desafios e obstáculos às oportunidades sociais propagadas pelo sistema
representado pela sociedade do capital.
Nessa mesma linha de raciocínio, Lopes (2002, p.160) relata a trajetória
de um neto de carroceiro que, desde cedo, conviveu com a pobreza, que segundo o
autor pode ser entendida como “privações de capacidades para o desenvolvimento
pessoal e coletivo”. Segundo Lopes, esse sujeito teve acesso à educação e na
escola pública ampliou seu horizonte de realização pessoal e aprendizado político,
aliado ao constante estímulo de professores e o acesso/fruição de bens públicos,
vivência que estruturou seu lugar de visualização do mundo, o que o autor identificou
como multividência.
Para Lopes, “a formação da multividência interfere decisivamente na
formulação de estratégias pelas quais os sujeitos superam a condição do outro,
como determinante de si mesmo, e constrói um lugar próprio, também como
estratégia” (p.161). O sujeito do relato, que concluiu o ensino superior, na medida
em que atingiu maior escolaridade, melhor compreendeu a exclusão imposta aos
colegas, como uma constante produção de relações e dimensões complexas de
sobrevivências impostas pela condição de pobreza”.
Lopes (2002, p.165) buscou analisar a subjetividade produzida na
objetivação das relações de poder e percebe que “a concentração de fatores que
condicionam ou objetivam a pobreza não anula as subjetividades individuais, mas
impedem a produção de ‘ilusões’ coletivas, de idealizações comuns, deixando até
que se reproduzam alguns interesses comuns”.
Segundo esse mesmo autor:

184
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A preservação e a reprodução das subjetividades individuais, no


conjunto de alguns interesses comuns partilhados pelos sujeitos,
vêm reforçar a ideologia do êxito social, da prosperidade, da
distinção de poucos entre muitos (ou seja, dos eleitos) que por um
lado, reproduzem relações de desigualdade (status) entre indivíduos
que vivem em condições precárias. (Lopes, 2002, p.165).

Já Werlang e Mendes (2013) ao analisaram o cotidiano dos sujeitos que


vivem em condições precárias aduzem que o sofrimento social se instala/esconde
nas zonas de precariedade. Segundo as autoras, a vivência nessas condições
também “implica na perda ou possibilidade de perda dos objetos sociais: saúde,
trabalho, desejos, sonhos, vínculos sociais, ou seja, o todo da vida composto pelo
concreto e pelo subjetivo que permite viver” (p.743).
As autoras destacam que diversas situações podem provocar o
sofrimento, dentre elas o isolamento social, quando há privação material, quando os
sujeitos são injustiçados, e quando a liberdade é cerceada. Classificam o sofrimento
social como patologia das sociedades contemporâneas, que se expressa nos
trabalhadores que perderam ou que não conseguem se inserir no mercado de
trabalho, levando, muitas vezes a doença mental ou física. Que tem também a
situação daqueles que são expostos a trabalhos insalubres, que são impelidos à
competição com colegas ou atingir metas inatingíveis, e que faz emergir “a questão
do sofrimento no trabalho”, que provoca a internalização do processo de dominação
do sujeito pelo capital.
As estratégias para o enfretamento do sofrimento podem se der tanto no
campo individual como no coletivo, e pode se expressar na luta por melhores
condições de trabalho e de saúde. Que o ideal seria que o trabalho proporcionasse
satisfação e a “desalienação”.
Apoiadas em Bourdieu, trazem a noção de um “sistema social” formado
por “pequenas misérias”, que se originam das violências socioeconômicas, onde o
mal-estar social não está necessariamente em evidência, destacando como
questões a qualidade da habitação e do trabalho. Informam que nesse sistema se
cria o vínculo entre o social e as questões individuais, e que o sofrimento adquire a
forma das estruturas sociais violentas, expressos nos suicídios, delinquência,
crimes, drogas, entre outras.

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Segundo as autoras, “a interseção entre indivíduo e sociedade, assim


como a articulação entre o social e o psíquico são elementos que não são
apreendidos de imediato” (p. 748), e podem ser apreendidas como uma experiência
coletiva que se expressa individualmente, ou como resultado de interações sociais.
Analisando os escritos de Castel, Werlang e Mendes (2013), destacam
que os incapazes de prover a própria necessidade, e os indigentes com capacidade
para o trabalho, estão a mercê da liberdade para empreender, porém sem vínculos,
sem suporte, e privados da proteção social. Surge, então, a questão da inutilidade
social de onde decorre o sofrimento, e muitas vezes a autodestruição.
Ressaltam que “estaria em curso uma incerteza com relação ao desejo de
viver o fardo de cada dia” (p. 751). E em linhas gerais destacam que o sofrimento
social nasce da autonomia imposta ao indivíduo, sem que haja respaldo social. O
entendimento dessas representações entre a realidade social e a realidade
subjetiva, envolvendo o ser singular em sua coletividade é uma interface que se
apresenta em no cotidiano de trabalho do Serviço Social para ser desvelada.
Já para Gentilli (2011, p. 222) “existem abordagens emancipatórias e
conservadoras no Serviço Social, na Psicologia, na Psiquiatria, na Psicanálise e em
todos os campos profissionais e só é possível conhecê-las pela interação entre
esses profissionais e pela leitura crítica de suas formulações teóricas”.
É exigido do profissional, reavaliar suas abordagens, seus instrumentais e
metodologias de trabalho frente ao sujeito que para nós se apresenta com sua
história e seu sofrimento psíquico, fruto de confrontos do seu ser íntimo com o
mundo globalizado. Observamos que os assistentes sociais do judiciário, inseridos
nesse movimento coletivo, padecem de males psíquicos, seja decorrente da
demanda institucional - relação usuário, relação hierárquica, relação burocrática,
escassez de profissionais, condições de trabalho inadequadas, bem como das
demandas pessoais.
A categoria subjetividade assinala que o indivíduo é resultante de sua
história de vida na sociedade, essa história é transformada a partir de uma relação
dialética. A demanda trazida por um sujeito nada mais é do que a questão social
descortinada na elucidação de sua subjetividade, que se forma e se transforma, em
sua construção sócio-histórica.

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O profissional de Serviço Social atua no âmbito do Judiciário, atendendo


sujeitos que buscam a solução para demandas emergentes em seu contexto social.
O que se percebe na atualidade é que os espaços de aplacamento de
“dores” são cada vez mais reduzidos, desconsiderando-se as perturbações
psíquicas, os sofrimentos mentais, como a sublimação dos processos da vida
material e, com isso, aumenta a exclusão dos sujeitos, sem perspectivas para o
futuro.
Não havendo discernimento e julgamento sobre consequências
societárias das escolhas individuais, propiciam relações sociais baseadas na
hierarquização de vínculos afetivos e sociais, haja vista as relações possibilitadas
pelas redes sociais, nos dispositivos móveis (celulares) – rápidas, acessíveis e
voláteis.
O que se observa, por outro lado, é que os assistentes sociais do
Judiciário, inseridos nesse movimento coletivo, também padecem de males
psíquicos, seja decorrente da demanda institucional - relação usuário, relação
hierárquica, relação burocrática, escassez de profissionais, condições de trabalho
inadequadas, bem como das demandas pessoais. Nessa perspectiva, o
adoecimento da categoria passa a compor a singularidade do ser profissional,
apesar de ainda não ser uma temática em evidência.

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3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconhecer a subjetividade como forma de representação de um sujeito


na atuação do profissional do Serviço Social é o processo de avaliação da realidade
socialmente produzida, o indivíduo é fruto de sua história de vida em sociedade. Na
relação entre sujeito/sociedade o mundo se transforma. É no sujeito, com sua
singularidade e particularidades que a subjetividade se encontra.
No cotidiano profissional nos deparamos com várias situações e em
muitas delas é possível atender as necessidades sociais apresentadas em cada
demanda. Muitas vezes o que se apresenta na imediaticidade do processo não é o
real, precisamos aprofundar buscar ir à raiz da questão e aí sim podemos contribuir
para mudanças na realidade social do sujeito.
Importante ressaltar, que o próprio profissional é um ser social a se
transformar, assegurar direitos e ações para muito além de atender as demandas
presentes no Tribunal de Justiça, onde os autores deste artigo atuam; ainda há que
se considerar que a atuação mantem conservadorismos mesmo quando busca
cumprir novas formas do agir profissional.
Trata-se, portanto, da contribuição do profissional de Serviço Social, que
atua no âmbito do Judiciário, àqueles sujeitos que buscam, através desse meio, a
solução para as demandas emergentes em seu próprio contexto social:
compreender esse mergulho do ser singular às profundezas das relações
estabelecidas socialmente – portanto no coletivo – do qual emerge suas
subjetividades, apropriando-se desse conhecimento e da compreensão dessa
construção coletiva, a fim de desvendá-la, por meio do estudo social, com vistas à
garantia de direitos e acesso à justiça social.

188
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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191
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DESACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DO ADOLESCENTE


E SEU RETORNO À FAMÍLIA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019
192
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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COORDENAÇÃO
Axel Gregoris de Lima – Assistente Social Judiciário – Serviço de Acompanhamento
Psicossocial da Capital

AUTORES
Alessandra Pissoli Assaly Abilel – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapevi
Axel Gregoris de Lima – Assistente Social Judiciário – Serviço de Acompanhamento
Psicossocial da Capital
Carlos Francisco Lombardi – Psicólogo Judiciário – Comarca de Embú
Fábio Sergio do Amaral – Psicólogo Judiciário – Comarca de Tremembé
Fernanda Caldas de Azevedo – Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da
Capital
Júlia Paula Washington Dias – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e da
Juventude da Capital
Mariana Bacigalupo Martins – Psicóloga Judiciário – Comarca de Diadema
Marina Galacini Massari – Psicóloga Judiciário – Comarca da Capital
Silvia Videira Zaparoli – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos “Família” optou neste ano de 2019 focar seu estudo
no Processo de Desacolhimento do Adolescente e seu retorno à Família.
A adolescência é uma fase da vida que ocorrem múltiplas transformações
biopsicossociais. Estas mudanças afetam e por sua vez são afetadas pela dinâmica
familiar destes jovens. Diz-se que o adolescente coloca sua família de “cabeça para
baixo”, ou seja, as relações familiares sofrem uma mudança recíproca.
No caso do presente estudo, focamos em uma situação específica: como
a família do adolescente que está sendo desacolhido institucionalmente se prepara
ou se organiza internamente para receber esse filho de volta. A família no caso
independe de ser natural ou substituta o que importou investigar para o Grupo é
como se organiza ou reorganiza esta dinâmica interna e como também ela é
influenciada pela sociedade e pela sua inserção de classe.
A fim de compreender melhor como ocorrem estas novas interações
optamos por um Referencial Teórico pautado no esquema biopsicossocial e sua
relação maior com o contexto social. Não podemos isolar o estudo focando apenas
nos aspectos da dinâmica interna, mas também, como tal dinâmica recebe influência
e por sua vez influencia a vida comunitária e social.

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1 - CONCEITO DE ADOLESCÊNCIA

A adolescência é entendida como um período cronológico da vida, mas


também como um processo de transformações comportamentais e fisiológicas que
geralmente ocorrem nos meninos e meninas entre os 12 e 18 anos de acordo com o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O marco inicial do fenômeno
adolescência deve ser compreendido em suas múltiplas faces: surgimento da
puberdade, mudanças comportamentais, familiares e ambiente social onde se insere
o adolescente.
Nas sociedades antigas, no surgimento das primeiras civilizações, a
adolescência não era tida como um fenômeno psicossocial. O que determinava a
passagem da infância para a vida adulta era o surgimento da puberdade, ou seja, as
mudanças corporais típicas da adolescência. Este período também conhecido como
“Rito de Passagem” estudado por antropólogos como Margaret Mead era
caracterizado por um ritual em que o púbere era submetido aos mais variados ritos
que podiam variar conforme a sociedade.
Na Grécia antiga os jovens ao chegarem à puberdade precisavam dar
uma demonstração de coragem e ousadia que consistia em provocar a morte de um
“ilhota” (escravo). Na civilização Romana o rito de passagem se dava quando
surgiam os pelos nos meninos e a menarca nas meninas. O jovem recebia uma
túnica no qual era reconhecido como ingressante na vida adulta. Já as meninas o
rito consistia em identificar quando ocorria a primeira menstruação. (Muss: 1989).
A ideia de identificar a passagem da infância para a vida adulta perdurou
até o início do século XX. Em 1908 o médico norte-americano George Stanley Hall
publicou um estudo que tratava dos aspectos comportamentais típicos da juventude
- a chamada adolescência. (Colli: 1990).
Os autores estudados apontam que os fenômenos da puberdade e da
adolescência interagem e são igualmente importantes e interdependentes. Abordam
a adolescência como um fenômeno biopsicossocial que não está dissociado do
ambiente familiar, comunitário e até societário. Na Sociologia bem como na
Psicologia o fenômeno da adolescência só pode ser compreendido nas suas
múltiplas variáveis. As estruturas sociais e a vida social determinam e são
influenciadas pelo referido fenômeno.

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A fim de aprofundar os conceitos de adolescência, para o próximo item o


Grupo se propôs a abordar os aspectos desta fase de vida, a partir de Arminda
Aberastury e M. Knobel, Erik Erikson e
No livro intitulado Adolescência Normal, Arminda e M. Knobel discorrem
acerca de alguns aspectos psicológicos dessa fase do desenvolvimento
descrevendo sintomas típicos. O primeiro aspecto abordado é sobre a identidade.
Os autores entendem que a identidade é o momento onde se internaliza um self, isto
é, um símbolo das características orgânicas em um todo biopsicossocial. Dizem
ainda que o conceito vai se estabelecendo através de mecanismos psicológicos de
projeção e introjeção que possibilitam a formação do autoconceito. Citando Erickson,
mencionam o conceito de “moratória psicossexual” que são identidades transitórias
frente a novas situações onde o indivíduo experimenta papéis sociais até a posterior
definição da personalidade.
Em relação à identidade os autores dizem que na adolescência esta é
alcançada na medida em que haja uma separação das figuras parentais
internalizadas e aceitação de uma identidade independente. Esclarecem que neste
processo ocorre micro depressões que implicam em estruturações mais
permanentes e progressivas e sentimentos de despersonalização relativos à
elaboração da identidade e aponta que boas experiências infantis podem favorecer a
integração do ego.
Outra característica diz respeito à tendência grupal onde há uma busca
pela uniformidade que pode propiciar segurança e estima e que às vezes a
identificação ao grupo é tão intensa que se torna quase impossível a separação do
indivíduo mais até do que do grupo familiar. Dizem que as atuações do grupo podem
representar uma maneira ativa de se opor a identidade familiar e fala que o
fenômeno grupal facilitaria uma conduta psicopática normal e não cristalizada
caracterizada pelo desafeto, pela indiferença, crueldade e falta de responsabilidade
produtos do papel infantil que se está perdendo.
Aberastury e Knobel elencam a necessidade de intelectualizar e fantasiar
como um mecanismo defensivo frente às mudanças do corpo e do mundo externo
ligando fenômenos instintivos a conteúdos ideativos, fazendo-os acessíveis a
consciência e, portanto mais fáceis de controlar. Segundo os autores, a fuga para o
mundo interior seria como um autismo positivo que permitiria um reajuste emocional

196
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e é em decorrência deste fenômeno que surgem as atividades artísticas, as novelas,


as teorias filosóficas e o envolvimento com movimentos políticos.
Quanto à religiosidade esta oscila entre o misticismo fervoroso e o
materialismo extremo, que segundo ela são posições idealizadas visando uma
continuidade da existência de si mesmo, frente a angustia da perda das figuras
parentais internalizadas, ao ego corporal e a aceitação da morte.
Descrevem que na adolescência o tempo e o espaço são vividos de forma
particular onde passado, presente e futuro são equiparáveis e coexistem sem
dificuldades. Ocorre o que os autores chamam de deslocalização temporal onde o
adolescente não discrimina o tempo e tudo se converte em um tempo presente, um
objeto, na tentativa de manejá-lo. Eles lembram que nesse ciclo vital as urgências
são enormes e as postergações são irracionais e que deixar os objetos no passado
depende da aceitação de perdê-los e do luto que se faz deles para prospectar um
futuro.
Segundo Aberastury e Knobel, a sexualidade evolui do autoerotismo para
a heterossexualidade, do caráter exploratório e preparatório para a genitalidade
procriativa quando o adolescente assume a identidade sexual. Dizem eles que essa
identidade depende da cena primária e da imagem psicológica que o indivíduo
possui das figuras parentais.
As mudanças físicas produzem angústia e modificações no esquema
corporal e a possibilidade da concretização do ato sexual reativa as fantasias
edípicas que permaneceram latentes. Muitas vezes vínculos intensos acontecem,
como no caso do apaixonamento, mas esses vínculos tendem a ser temporários e
fala sobre o processo psicossocial da bissexualidade e da homossexualidade numa
flutuação de papéis até que a escolha de objeto se torne definitiva.
Os autores fazem uma crítica à simplificação de que todas as
características do adolescente seriam provenientes das mudanças psicobiológicas e
diz que grande parte delas é determinada pelo meio social e que as dinâmicas
psicológicas se expressam de acordo com o padrão cultural. Aduzem que em muitas
culturas a adolescência é vista com hostilidade em virtude da conflitiva edípica e
para se lidar com isso, criam-se estereótipos procurando isolar fobicamente os
adolescentes dos adultos. Fala que os ritos de iniciação são diversos nas culturas,
mas possui a mesma base, qual seja a rivalidade que os pais do mesmo sexo

197
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sentem ao ter que aceitar os filhos como iguais e admitir que possam ser
substituídos por eles.
Ainda apontam que o meio impõe restrições à atividade e à força
reestruturadora e diante disto a atitude social reivindicatória neste momento de vida
se torna quase imprescindível, pois é como se o mundo dissesse que o adolescente
precisa se adaptar aos ditames da mediocridade e se acomodar levando-os a
realizar façanhas heroicas no crime ou na delinquência.
O comportamento do adolescente pode se equiparar a atitudes
psicopáticas pelo caráter violento e reivindicatório por uma sociedade melhor e
entende que o ódio e a destrutividade podem estar associados à expectativa de que
a sociedade exerça o mesmo papel dos pais infantis negando a separação e o luto
destas figuras.
Falam que as defesas psicológicas são ainda muito frágeis e que eles não
conseguem ter uma conduta rígida e absoluta, comportamento que para os autores,
caso ocorresse seria indício de patologia neurótica e que na realidade é o mundo
adulto que não aceita as contradições e as mudanças de conduta do adolescente.
A presença internalizada de boas imagens parentais com papéis bem
definidos e uma cena primária amorosa são indicadas no texto como aspectos que
favorecem a separação progressiva dos pais. Contudo, figuras parentais não
estáveis e pouco definidas podem parecer desvalorizadas e obrigar a procurar
identificação em personalidades mais consistentes em um sentido compensatório ou
idealizado como, por exemplo, a identificação com ídolos e ocorre a projeção das
relações incestuosas em heróis reais ou imaginários, em professores ou em
companheiros mais velhos.
Concluindo, os autores abordam a questão das flutuações de humor e
mudanças do estado de ânimo que acompanharão permanentemente o adolescente
e que estão relacionadas à frustração da realização das necessidades instintivas
básicas que podem levar a um comportamento depressivo de refugio em si mesmo
ou ao comportamento psicopata com a necessidade de atuar os instintos por ser
penoso ao indivíduo uma elaboração depressiva das situações.
Explicam que aceitar uma normal anormalidade do adolescente não
implica em situar um quadro nosológico, mas tem por objetivo facilitar a
compreensão deste período da vida.

198
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Já Erik Erikson (1987), propõe que o processo de desenvolvimento


humano se dá ao longo de toda a vida e cada etapa suscitará uma crise a ser
superada positivamente ou negativamente a partir das relações afetivas
estabelecidas e influências institucionais, socioculturais, históricas e biológicas.
Nesse sentido na visão do referido autor o individuo é resultado do entrecruzamento
destes elementos. A adolescência é a fase em que o sujeito revive as fases
anteriores e se projeta para o futuro, o que possibilita mudanças significativas ainda
que tenha passado por privações nas primeiras etapas do desenvolvimento, sendo
esta a razão de ser destacada das demais fases da vida.
A seguir abordaremos sucintamente os estágios psicossociais propostos
pelo autor desde o nascimento até a adolescência:

- Confiança x Desconfiança (de 0 a 2 anos)


Na primeira etapa de vida, o bebê recém-nascido estabelecerá com suas
figuras de referência uma relação de dependência para a satisfação de suas
necessidades básicas. A partir desta experiência irá adquirir ou não a habilidade de
confiar no ambiente ao seu redor.

- Autonomia x Vergonha e Dúvida (1-3 anos)


Durante este estágio, a criança aprende a comunicar-se, mover-se de
forma independente, manipular objetos entre outras habilidades que serão
imprescindíveis para constituição de sua autonomia. Se o ambiente não reconhecer
estes esforços ou criticar severamente estas manifestações, o infante passará a
duvidar de si mesmo e dificilmente ousará tomar iniciativas. A vergonha é expressa
neste estágio como não querer ser visto. As birras e o choro, inerentes nesta etapa
testemunham a sobrecarga emocional.

- Iniciativa x Culpa (3-6 anos)


Esta fase é marcada pela inscrição cultural, onde as regras são
estabelecidas e a grande questão nesta etapa é alinhar o próprio desejo às pessoas
ao redor. O bem estar do outro passa a ser levado em consideração, bem como o
estabelecimento da moral.

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- Diligência x Inferioridade (6 anos até a adolescência)


Período de latência, nesta etapa as crianças são muito produtivas e
criativas uma vez que colocam em pauta suas potencialidades, recebendo ou não o
reconhecimento por seus esforços, o que será de suma importância na constituição
de sua identidade e autoestima. O risco inerente nesta etapa é que, na falta de
confirmação do ambiente, a criança poderá acreditar que está falhando e
desenvolver sentimentos de inferioridade.

- Adolescência
Esta fase foi amplamente estudada por Erikson por ser a fase mais crítica
do ciclo da vida. A crise existencial muito embora seja propícia nesta fase, poderá
ocorrer em outros momentos da vida humana considerando que o individuo é
mutante e está em constante busca de sua identidade.
A adolescência compreende um período de surto de crescimento,
mudanças biológicas e hormonais. Nesta época o individuo começa a duvidar de
todas as referências que obteve no decorrer de sua vida, favorecendo as mudanças
tendo em vista que resignificará as vivências anteriores visando uma melhor
compreensão de sua vida possibilitando a construção da própria identidade ao
integrar o passado e o futuro através de uma recapitulação de todas as etapas
anteriores de sua vida e antecipação do vir a ser.
A autoimagem construída durante a infância então passa a ser
questionada criando uma crise interna, como se fosse uma metamorfose. Neste
momento caso o individuo não tenha estabelecido com seu entorno relações
satisfatórias, poderá reviver estas experiências de outra maneira reconstruindo o
conceito de si desenvolvendo um caráter sólido e uma individualidade equilibrada,
sendo esta a razão desta etapa obter destaque na teoria de Erikson.
Nos anos 1960 Winnicott realizou estudos sobre a adolescência, num
contexto histórico em que esta faixa etária passa a ser percebida como uma fase
importante do desenvolvimento humano.
O autor fala desta fase do desenvolvimento, assim como em outras fases,
sob o viés da saúde e não da doença, não negando a importância da “proporção de
membros psiquiatricamente doentes” dentro da sociedade como um todo.

200
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Winnicott divide o desenvolvimento humano em fases de amadurecimento


emocional, num processo contínuo do desenvolvimento emocional e sua influência
nas diferentes etapas do desenvolvimento.
Entende a adolescência como uma fase em que os jovens têm que lidar
com questões como a transformação do corpo, a mudança na capacidade sexual e a
organização de defesas contra as ansiedades características desta fase.
Para Winnicott, embora o ambiente desempenhe um papel de importância
no desenvolvimento emocional do indivíduo, destaca como sendo de extrema
importância na fase da adolescência. Afirma que muitas dificuldades que os
adolescentes vivenciam derivam das condições ambientais inadequadas.
Outro aspecto característico da adolescência para o autor é a alternância
ou a coexistência entre a rebeldia em busca da independência e a regressão à
dependência.
Aponta o isolamento do jovem como outra característica desta fase do
desenvolvimento emocional. Para Winnicott os adolescentes são indivíduos isolados
“que procuram se agregar por meio da identidade de gostos”.
Destaca também que o isolamento característico destes jovens tem
importância relevante em suas experiências sexuais, além da indecisão da
identidade sexual de cada indivíduo. Em sua obra “A família e o desenvolvimento
individual”, pág. 118 destaca quanto às experiências sexuais que marcam esta fase:

A constante atividade masturbatória, nesse estágio, pode constituir


uma maneira de ver-se livre do sexo, e não uma experiência sexual;
e as atividades homossexuais ou heterossexuais compulsivas podem
servir ao mesmo propósito ou como forma de descarregar tensões,
antes de representarem formas de união entre pessoas humanas
integrais.

Winnicott em sua obra “A família e o desenvolvimento emocional” fala da


importância de percebermos as necessidades manifestadas pelos adolescentes:

A necessidade de evitar a falsa solução.


A necessidade de sentir-se real, ou de tolerar a absoluta falta de
sentimento.
A necessidade de ser rebelde num contexto que, confiadamente,
acolha também a dependência.
201
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A necessidade de aguilhoar (no sentido de incitar) repetidamente a


sociedade de modo que o antagonismo desta faça-se manifesto, e
possa ser rebatido por um contra-antagonismo.

Winnicott aponta a importância de a sociedade compreender e respeitar o


tempo de adolescer e não acelerar este processo, sob o risco de termos adultos
emocionalmente imaturos ou insuficientemente saudáveis.
Nos estudos de Winnicott sobre a adolescência verificamos a relação
apontada pelo autor “entre as dificuldades normais da adolescência e o estado
anormal a que se pode chamar tendência anti-social” – in “A família e o
desenvolvimento individual”. O autor afirma que a diferença entre os problemas da
adolescência e a tendência anti-social está na dinâmica e origem proveniente de
uma privação; enquanto que na tendência anti-social a privação acarreta na
persistência de uma série de dificuldades, ocasionando uma carga excessiva às
defesas, nas dificuldades normais da adolescência esta privação ou carência não é
rígida e difusa não exige muito das defesas.
Cláudia Rocco, in Contribuições da Teoria do Amadurecimento ao
Adolescente Privado de Liberdade – Cap. III – Adolescência afirma que para
Winnicott “No período da adolescência o entorno familiar, os limites bem definidos, o
ambiente acolhedor e facilitante são fundamentais para que o jovem experiencie sua
vida espontaneamente...” permitindo que o mesmo enfrente estas dificuldades sem
prejudicar seu desenvolvimento emocional.

2 - ADOLESCÊNCIA E INSTITUCIONALIZAÇÃO

2.1- ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL: CONTEXTUALIZAÇÃO DESTA


MEDIDA DE PROTEÇÃO

O ECA conta com nove medidas protetivas:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a


autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as
seguintes medidas:

202
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I- encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de


responsabilidade;
II- orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III- matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de
ensino fundamental;
IV- inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de
proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente;
V- requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em
regime hospitalar ou ambulatorial;
VI- inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação
e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII- acolhimento institucional;
VIII- inclusão em programa de acolhimento familiar;
IX- colocação em família substituta‖ (BRASIL, 1990, grifo nosso).

Deve-se recorrer ao encaminhamento da criança e do adolescente a


serviços de acolhimento apenas quando esgotados todos os recursos para sua
manutenção na família de origem, extensa ou na comunidade.

O acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas


provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para
reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em
família substituta, não implicando privação de liberdade (BRASIL,
1990, art.101).

De acordo com Moreira (2014), o acolhimento institucional, mesmo sendo


a sétima medida prevista, é muitas vezes a primeira a ser aplicada. Isso se dá,
segundo a autora, pela persistência da compreensão de que as famílias pobres são
“incapazes” de cuidar de seus filhos e que, por isso, as crianças estariam protegidas
e em melhores condições em acolhimento institucional.
Dentro da medida de proteção de acolhimento institucional há duas
possibilidades de encaminhamentos: acolhimento familiar ou acolhimento
institucional. O acolhimento institucional pode se dar em diferentes espaços. O
abrigo institucional é o espaço onde a maioria das crianças e adolescentes que
estão sob esta medida de proteção se instala. Quanto à estrutura, é proposto que o
serviço não acolha mais de 20 crianças e adolescentes de ambos os sexos. Os

203
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irmãos devem permanecer juntos e as visitas devem ser permitidas, ao menos que
uma medida de segurança se estabeleça.
Todos esses serviços, sendo públicos ou conveniados, devem ser
reconhecidos pela rede municipal, para que consigam, dentro de suas
especificidades, compor a rede de proteção integral à criança e ao adolescente
específica do município.
A instituição deve estar localizada no território de origem das crianças e
adolescentes e autorizar visitas de familiares, priorizando sempre o direito ao
convívio e à convivência.
Além disso, o ECA preconiza que esta medida seja excepcional e
provisória, ou seja, espera-se que o afastamento do convívio familiar de crianças e
adolescentes, quando necessário, não se prolongue. Para isso, a medida deve ser
revista pela equipe técnica de seis em seis meses, podendo se estender até no
máximo dois anos.

2.2 - O RETRATO DO INSTITUCIONALIZADO: MAPEAMENTO


ESTATÍSTICO

Dados estatísticos sobre o contexto do acolhimento institucional na cidade


de São Paulo (FÁVERO; VITALE; BAPTISTA, 2008) mostram que a medida tende a
se prolongar na vida das crianças e das famílias: 46% das crianças e adolescentes
entrevistados está há mais de um ano morando em serviços de acolhimento. Desse
índice, 32% deles estão mais de três anos em acolhimento institucional. Dados
apresentados em levantamento nacional (IPEA, 2003) confirmam a prevalência de
longos períodos de abrigamento (33% entre 2 e 5 anos). Em pesquisas anteriores
em São Paulo, essa tendência já havia sido apontada: 53% das crianças e
adolescentes estão abrigados há mais de 2 anos (AASPTJ-SP, 2003 apud FAVERO;
VITALE; BAPTISTA, 2008, p.32).
Esses dados chamam a atenção quando vemos pesquisas em âmbito
nacional e no município de São Paulo que constatam que a maioria das crianças e
adolescentes que vive em situação de acolhimento têm famílias: 67% de um total de
4.847 abrigados em São Paulo e 87,7% de um total de 20.000 crianças e
adolescentes em abrigos investigados em âmbito nacional. (FÁVERO; VITALE;

204
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BAPTISTA, 2008, p.19). O Levantamento Nacional de Abrigos para crianças e


adolescentes (IPEA, 2003) confirma esse dado em âmbito nacional apontando que

A grande maioria dos abrigados tem família (86,7%), sendo que


58,2% mantêm vínculos familiares e apenas 5,8% estão impedidos
judicialmente de contato com os familiares. Apesar disso, vivem em
instituições e estão privados da convivência familiar, preconizada na
Constituição Federal e no ECA (p.04).

Fávero, Vitale e Baptista (2008) discutem o fato de, ainda hoje, de forma
direta ou indireta, o maior motivo de acolhimento institucional de crianças e
adolescentes ser a situação econômica desfavorável das famílias e o modo como, a
partir dela, podem ter direitos sociais básicos comprometidos pela deficiência das
políticas públicas. O Levantamento Nacional dos Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes (ASSIS; FARIAS, 2013), feito pelo Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS) em parceria com a FIOCRUZ, em 2008, traz dados
estatísticos que ilustram a judicialização da questão social19: 3.150 crianças e
adolescentes (8,5% do total) estavam acolhidos no Brasil por conta da condição
socioeconômica da família e, ainda, dessas, 875 tinham este como o único motivo
do acolhimento. Um Levantamento realizado pela Corregedoria-Geral da Justiça nas
onze Varas da Infância e Juventude de São Paulo concluiu que um quarto dos
acolhimentos tem como motivo evidente a falta de condições econômicas dos pais, e
que em 26% das situações deveria ter sido aplicada a medida protetiva de apoio
sociofamiliar (CIDADE, 2003 apud FÁVERO; VITALE; BAPTISTA, 2008, p.19-20).
É importante que alternativas antes do acolhimento institucional sejam
trabalhadas, visto que, 82% das crianças entrevistadas por Fávero, Vitale e Baptista
(2008) apontam seus vínculos de referência na família de origem, sendo 62% a mãe.

19
Aqui entendida como “manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre capital e
trabalho” (IAMAMOTO, 2012, p. 77). As expressões da Questão Social vivenciadas são formas
de violência (pobreza, emprego precário, desemprego, ausência de políticas públicas, violência
intrafamiliar...) contra o sujeito. Situações que muitas vezes são permeadas por conflitos e
rompimentos de vínculos na esfera familiar. A mediação da Questão Social só é possível neste
modo de produção pelas políticas sociais na direção da concretização dos direitos. Estas
políticas sociais são assentadas na sociomatricialidade familiar com programas de atenção à
família.
205
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Além disso, 98% dos familiares entrevistados relataram intenção de que o fim dessa
medida de proteção aconteça.
Muito embora os entrevistados por Fávero, Vitale e Baptista (2008, p.40)
tenham apontado a intenção quase unânime de desabrigarem suas crianças e/ou
adolescentes, em contrapartida, revelam impedimentos, requisitos e desafios que
precisarão dar conta: 44% deles mencionam exigências de natureza objetiva e
material, como: ter moradia, escola e renda para mantê-los (18%); ter emprego e
salário para mantê-los (15%); ter onde deixá-los enquanto trabalha (8%) e ter
alguém da família que ajude a criar (3%).
Enquanto as famílias estão tomadas por desafios relacionados à renda e
ao emprego, nessa mesma pesquisa ficou evidente a relação entre a aplicação da
medida de proteção e a situação de violação de direitos das famílias: a grande
maioria destas famílias está inserida no trabalho informal (32% em trabalho informal
e 35% nos chamados “bicos”) e é de baixa escolaridade (50% com o ensino
fundamental incompleto e 16% analfabetos).
Esse fato compõe uma das análises feitas pelo Levantamento Nacional de
Abrigos para crianças e adolescentes (IPEA, 2003) que apontam que, nesses casos,
os motivos que levaram as crianças e adolescentes ao acolhimento institucional se
perpetuam como dificuldades para a sua reinserção familiar, ou seja,

isso indica que as políticas de atenção a crianças e adolescentes não


estão devidamente articuladas com ações de atenção à suas
famílias, o que poderia não apenas evitar a institucionalização, como
também abreviá-la, quando se mostrar excepcionalmente necessária
(p. 4).

Nesse sentido, fica evidente a necessidade de um incremento nas


políticas de reintegração familiar e de novos programas de promoção da autonomia
dessas famílias, para que a medida de acolhimento possa ser realmente garantida
como temporária e excepcional.
A pesquisa no município de São Paulo apontou indicativos para políticas
públicas destinadas aos familiares, entre eles a necessidade de privilegiar ações e
investimentos públicos e privados ― dirigidos ao apoio (econômico, material e
profissional) para a reintegração familiar e para a preservação da convivência
daqueles que vivem em condições de miserabilidade e exclusão social, restringindo-
206
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

se o abrigamento para as situações em que a necessidade de proteção extrapole o


âmbito socioeconômico (OLIVEIRA, 2004 apud FÁVERO; VITALE; BAPTISTA,
2008).
Uma parcela significativa dos entrevistados entendeu que, para chegar ao
desacolhimento, além das condições objetivas que enunciaram, será preciso “que o
Judiciário acredite que o entrevistado/família tem condições de cuidar dessas
crianças e adolescentes”. (FÁVERO; VITALE; BAPTISTA, 2008, p.40).
Como vimos, as famílias e as crianças passam a ser vistas por diversos
olhos, de acordo com os respectivos saberes que se inserem nas decisões a seu
respeito. Segundo Fávero (2007),

esse poder, dependendo da visão de mundo do profissional e de seu


(des)compromisso ético, pode ser direcionado tanto para a garantia
de direitos dos sujeitos envolvidos na ação – na medida em que
intervém no sentido do desvendamento e da denúncia dos
mecanismos objetivos e subjetivos que contribuem para que a
pessoa se veja sem condições de criar seus filhos – como pode
contribuir para o controle social e o disciplinamento, de cunho
moralizante, culpabilizando as pessoas, individualmente, pelas
condições socioeconômicas precárias em que vivem (p.161).

Como vimos, as práticas concretas de cuidado com as crianças e


adolescentes legitimam e reproduzem lógicas que não se modificam pela simples
força da lei. Ao mesmo tempo em que a legislação atual prioriza a convivência
familiar e comunitária de crianças e adolescentes, no cotidiano persistem práticas de
reprodução do abandono.

2.3 - O PERCURSO DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Pensar criticamente o processo de institucionalização no Brasil requer não


perder de vista dois aspectos primordiais.
O primeiro: são as formas históricas de lidar com a vulnerabilidade de
crianças e adolescentes no Brasil que colaboram na desqualificação dos sujeitos
que vivem este contexto.

207
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No Brasil Imperial crianças e adolescentes em situação de risco eram


tratados juridicamente como adultos através do Código Penal resolvendo os conflitos
pela privação. Eram as organizações filantrópicas e religiosas que cuidavam dos
interesses daqueles, como a educação.
O Primeiro Código de Menores no Brasil que data de 1927 permanece
reafirmando a Doutrina Penal. Em 1979 apesar de o novo Código revogar o antigo,
se mantiveram fundamentos comuns categorizando como menores tanto aqueles
que haviam cometido um crime qualificado quanto os que estavam em situação de
abandono e/ou dificuldades. Nesse contexto, o Estado agia somente em situações
irregulares e de forma repressiva.
Foi somente no século XX que no Brasil a importância da família para o
desenvolvimento da infância ficou mais clara. A Constituição Federal de 1988 (Brasil,
1988) em seu artigo 22720 e a criação do ECA (Brasil, 1990), muito impulsionados e
fortalecidos pelo movimento democrático da década de 1980 e pelo engajamento
dos movimentos sociais voltados para os direitos das crianças e dos adolescentes,
passam a salientar a importância de toda a sociedade ser responsável pelo
desenvolvimento saudável destes indivíduos (ECA, artigo 4º21).
Nessa direção e de forma a regulamentar o processo de
institucionalização de crianças e adolescente, partimos do ECA que em seu artigo
101 no parágrafo primeiro, prevê o acolhimento institucional como medida provisória
e excepcional. Características essas que apontam para ações que priorizem o
fortalecimento dos laços familiares e comunitários visando à reinserção da criança
ou do adolescente em famílias natural, extensa ou substituta, respectivamente por
ordem de relevância. A família, quando protetora, passou a ser considerada o
melhor lugar de acolhimento, espaço de atenção e desenvolvimento subjetivo dos
seus membros.

20 “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao


jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela Emenda nº 65)”.
21 “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com

absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à


educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
208
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As características excepcional e provisória da medida tomam espaços


de reflexão, principalmente técnica, ao pensarmos os motivos para a colocação de
uma criança ou um adolescente em instituição de acolhimento lançando luz ao fato
de que o contexto familiar deve ser considerado parte do problema ou fonte de
recursos para o melhor encaminhamento da situação.
Nesse ínterim o Estado é chamado a colaborar no auxílio às famílias para
que estas desenvolvam suas potencialidades se recuperando, ao invés de permitir o
agravamento do vivido, sendo inevitável o acolhimento institucional de crianças e
adolescentes.
Ao requisitarmos o Estado, entramos no segundo aspecto sinalizado no
início deste item: o contexto socioeconômico gerido em um país em
desenvolvimento como o Brasil que desnuda o cotidiano a partir das expressões da
Questão Social enfrentadas pelas famílias e que acumulam historicamente falhas
contínuas de políticas excludentes e de desigualdade social.
Assim, investir em programas de apoio poderia evitar os processos de
acolhimento institucional e o prolongamento do processo de reintegração familiar.
Conforme Cavalcante, Silva e Magalhães (2010), tem aumentado à
consciência de que a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes deve
ser redimensionada, tanto pela observação prática de que esta modalidade de
atendimento, paradoxalmente, oferece graves riscos à integridade física, psicológica
e moral das crianças e adolescentes (conforme exploraremos no próximo item),
quanto por ainda ser expressiva a quantidade de crianças e adolescentes que
permanecem longos períodos institucionalizados até que suas famílias possam
acessar melhores condições de sustentabilidade econômica e de moradia.
Outro elemento que apontamos é a necessidade de uma comunicação
mais efetiva entre as instituições que compõem a rede, o próprio Poder Judiciário e o
Ministério Público que por vezes ao se delongarem em suas sugestões e/ou
tomadas de decisões geram desvinculação afetiva entre as famílias e a criança e/ou
adolescente, dificultando a manutenção das referências primárias.
Em se institucionalizando, alguns elementos são relevantes para o
trabalho técnico junto a essas famílias visando atendimento individualizado a cada
criança e adolescente. Apontamos:

209
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- desenvolver ações que fortaleçam os vínculos e os apoios às famílias


colaborando na superação das fragilidades e obstáculos;
- desconstruir o caráter punitivo do acolhimento refletindo sobre os seus
motivos, concedendo inclusive voz à criança e ao adolescente para que se
expressem e compreendam esse percurso;
- pensar em estratégias de reintegração do que precisou ser separado,
incluindo aproximações sucessivas, através de estágios de convivência;
- acionar e fazer parte da rede de atendimento do território, em seus
diversos níveis de complexidade, que com os seus serviços materializam as políticas
públicas, pensando inclusive a nível preventivo. Uma boa rede articulada ganha
tempo e evita a multiplicidade de atendimentos e de exposição dos sujeitos;
- construir coletivamente o Plano Individual de Atendimento (PIA) a fim de
se habilitar as demandas da criança ou do adolescente acolhido a partir de um
percurso alinhado entre a equipe do serviço de acolhimento, a criança ou
adolescente e sua família, considerando as discussões com a equipe
interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, do CREAS e dos demais
serviços ou programas da rede mais diretamente envolvidos no acompanhamento do
caso;
- reavaliar a situação da criança e/ou adolescente a cada três meses (cf.
Art. 19. § 1o do ECA - alteração dada pela Lei nº 13.509, de 201722), o que ajuda a
desconstruir a falsa ideia de homogeneidade;
- ter/ser(em) profissionais presentes e capacitados – o que exige
investimento de tempo e dinheiro – interessados em dar corpo ao preconizado pelas
Leis, o que inclui

a adoção de uma perspectiva crítica diante de preconceitos sociais e


julgamentos morais, posto que costuma gerar uma visão superficial,
equivocada e discriminatória das suscetibilidades individuais e
familiares (Cavalcante, Silva e Magalhães, 2010, p.1160).

22
O Provimento n.º 32/2013 do Conselho Nacional de Justiça estabelece a obrigatoriedade de
reavaliação das medidas de acolhimento por meio das Audiências Concentradas a cada seis
meses, posteriormente a Lei nº 13.509, de 2017, altera o Art. 19. § 1o do ECA passando a
reavaliação para a cada três meses.
210
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- estreitar o relacionamento entre as famílias e as instituições, através da


realização de contatos frequentes e do compartilhamento das avaliações e relatórios
acerca do trabalho realizado e do desenvolvimento da criança ou adolescente;
- promover atividades socioeducativas envolvendo as famílias, como
grupos de pais e oficinas temáticas, oportunizando trocas de experiências e a
empatia entre os envolvidos, em uma atmosfera adequada, sem constrangimentos
ou discriminações;
- propiciar mais tempo para o convívio entre a criança ou o adolescente e
seus familiares, em visitas à instituição ou em outras situações a serem criadas
como atividades em brinquedotecas, que estimulem a criatividade, a imaginação e a
demonstração de afetos, com o objetivo de

exercitar a introdução de novos mecanismos de administração dos


conflitos de interesses no interior da família, vivenciando a aplicação
de técnicas de acordos de convívio (Cavalcante, Silva e Magalhães,
2010, p.1163).

- envolver a família na rotina de cuidados das crianças e/ou adolescentes,


apoiando iniciativas pessoais de atenção e educação, pois a instituição de
acolhimento como espaço de novas rotinas pode colaborar na construção de um
ambiente de crescimento pessoal que colabora na reconstrução do projeto de vida e
de aceitação do que é diferente (Dorian et al, 2005 apud Guará, 2006; Souza e
Carvalho, 2014);
- e junto, desenvolver um trabalho de recuperação das redes de proteção
pessoal e social; uma incansável procura pelos familiares identificando aqueles
dispostos a assumir os cuidados com as crianças e/ou adolescentes havendo um
plano de desligamento institucional;
- avaliar a pertinência, os benefícios e malefícios da manutenção da
medida protetiva de acolhimento institucional, na medida em que muitas vezes a
realidade sociofamiliar será alterada parcialmente, permanecendo dificuldades de
ordem financeira ou emocional e/ou conflitos interpessoais. Conforme refletem
Cavalcante, Silva e Magalhães (2010),

211
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reverter os prejuízos provocados por anos e anos de privação


material não é tarefa fácil, sobretudo quando se pensa em termos de
ações pontuais e resultados imediatos” (p. 1166).

- é importante acompanhar de forma efetiva e integrada o retorno à


convivência depois que ele se dá, pois o acompanhamento dessas famílias pode
evitar uma reinserção malsucedida, com uma nova quebra de vínculos, a qual pode
trazer ainda mais sofrimento tanto para os pais quanto para os filhos.
A preocupação com a fase da desinstitucionalização neste artigo se
coloca pelos efeitos, ou ainda, pelas marcas deixadas nessas crianças e
adolescentes, como abordaremos no próximo subitem.

2.4 - MARCAS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO

A institucionalização na infância e adolescência é uma realidade presente


na vida de muitas famílias brasileiras em condições socioeconômicas desfavoráveis.
Como já falado, Segundo o ECA, o acolhimento é uma medida protetiva
que deve ser usada preferencialmente quando esgotados todos os esforços de ajuda
à família e que tenha um caráter provisório a fim de que a criança não perca os
vínculos com a família.
Muitos estudos discutem os efeitos da institucionalização para o
desenvolvimento da criança. Enquanto uns indicam e a defendem como uma prática
que busca garantir a proteção, no caso em que o ambiente doméstico é
desorganizado e caótico, outros apontam os prejuízos que essa vivência pode trazer
para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Este item pretende discutir alguns aspectos que envolvem a
institucionalização e o que a torna protetiva ou prejudicial na vida das famílias por
ela atravessada, tomando-a como um elemento da rede de apoio.
De acordo com Carvalho (2002) o ambiente institucional não se constitui
no lugar mais adequado para o desenvolvimento por contar com um atendimento
padronizado, um grande número de crianças por cuidador, a falta de planejamento
nas atividades, além da ausência de uma rede de apoio social e afetivo. Entretanto,

212
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o mesmo autor aponta que para outros estudos, nos casos de situação adversa da
família, a instituição pode ser a melhor saída.
Pensando sobre o processo de desenvolvimento humano a Teoria
Ecológica de Bronfenbrenner (1979) tem se proposto a estudar o desenvolvimento a
partir de uma abordagem sistêmica, com o propósito de reconhecer os processos
evolutivos e os múltiplos fatores que influenciam o desenvolvimento humano
(Dell’Aglio; Siqueira, 2006). Nesta perspectiva a Teoria Ecológica possibilita que as
particularidades desenvolvimentais vivenciadas pelas crianças e adolescentes que
se desenvolvem neste contexto diferenciado, sejam enfatizadas e não os déficits
encontrados em função da comparação com indivíduos que se desenvolvem em
contextos culturalmente esperados (Santana, 2003).
Nesta abordagem o indivíduo é visto em interação bidirecional, dinâmica e
constante com o ambiente, ou seja, ele é um ser que não apenas sofre, mas
também provoca transformações no seu ambiente, de modo ativo enquanto se
relaciona e se desenvolve.
O ambiente ecológico, segundo Bronfrenbrenner (1996), é entendido
como um sistema de estruturas que se organiza a partir de diferentes níveis, sendo o
primeiro deles denominado microssistema e está relacionado ao efeito de influências
proximais, ambientais e organísmicas que vem do interior do indivíduo, de suas
características físicas e de objetos do ambiente imediato. De acordo com Dell’Aglio;
Siqueira (2006) a instituição de acolhimento pode ser considerada o microssistema
central de crianças e adolescentes que vivem acolhidas. A interação entre os
diversos microssistemas nos quais a criança se desenvolve, como, por exemplo, as
interações entre o próprio abrigo e a família de origem da criança e adolescente; a
escola e o abrigo; um programa social, um posto de saúde, são chamados de
mesossistemas. Nesses dois ambientes, microssistema e mesossistema, o nível das
relações são proximais e suas influências são mais evidentes e cruciais para os
processos desenvolvimentais.
Já o exossistema, é aquele ambiente onde a criança e o adolescente não
participa diretamente, mas recebe algum tipo de influência indireta, como por
exemplo, o Conselho Tutelar e o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente que a depender das decisões e políticas adotadas terão impactos na
vida daqueles que delas dependem.

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Por último, o sistema mais amplo que representa os valores, ideologias e


cultura da organização é chamado de macrossistema e influenciam o modo como os
monitores e professores atuam na prática, além da forma como o adolescente que
vive em instituições se relaciona com outras famílias.

Assim, somente a partir da compreensão destes sistemas e suas


interações que será possível entender o desenvolvimento humano e,
especialmente, o das crianças e adolescentes que vivem em
instituição de abrigos. (Dell’Aglio; Siqueira, 2006, p. 72).

Para alguns autores como Yunes et al ( 2004) a institucionalização pode


se constituir numa condição de risco para o desenvolvimento dependendo do modo
como este processo irá operar seus efeitos negativos sobre ele. O risco aqui é
entendido como variáveis associadas a uma alta possibilidade de ocorrência de
resultados negativos ou não desejáveis (Jessor, Boss, Vanderin, Costa & Turbin,
apud Dell’Aglio; Siqueira, 2006). Como exemplo disso podemos citar nas unidades
de acolhimento a mudança dos cuidadores primários da criança, transferência de
uma instituição para outra, carência de vínculos afetivos, ausência de uma figura de
referência, além de ficarem em segundo plano o atendimento das necessidades de
ordem do afeto, conforto e estimulação.

Esses tipos de situações acarretam a formação insegura dos


vínculos iniciais, descontinuidade dos laços afetivos e dificultam a
concepção de si mesma da criança, provocando insegurança
pessoal, medo e falta de confiança no outro. (Cuneo, 2007, apud
Dell’Aglio; Siqueira, 2006, p. 88).

Outros estudos mais antigos (Bowlby, 1973/1978; Goldfarb,1943, apud


Dell’Aglio; Siqueira, 2006) apontaram os efeitos negativos que a institucionalização
proporcionava para as crianças abrigadas, ligadas ao déficit intelectual no
desenvolvimento da linguagem. Para estes autores, essas crianças eram mais
agressivas e distraídas, além de apresentar dificuldades emocionais e de formação

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de laços afetivos duráveis com outros. A questão da aprendizagem e a adaptação


social, também foram descritos como outros problemas apresentados por crianças
que teriam passado o primeiro ano de vida em abrigos da década de 1940,
marcados pela ausência de estimulação e de oportunidades de brincadeiras, bem
como, a falta de uma atmosfera de um ambiente emocional familiar.
Contudo, no decorrer dos anos pode-se perceber uma significativa
mudança nas práticas de cuidados direcionados às crianças e adolescentes
institucionalizados, além dos estudos reconsiderarem os fatores que de fato tinham
influência sobre o desenvolvimento das crianças e adolescentes.
O estudo de Grusec e Lytton (1998) defende que os elementos que
modificam os efeitos dos cuidados em instituições de abrigo seriam de origem
multifatorial, não uniformes e nem fixos. Neste caso iriam depender principalmente
de:

(1) Motivo de separação da criança e sua família; (2) qualidade da


relação prévia com a mãe; (3) oportunidade para desenvolver
relações de apego depois da separação; (4) qualidade do cuidado na
instituição; (5) idade da criança e duração da separação; e (6)
também o sexo e o temperamento da criança. (apud Dell’Aglio;
Siqueira, 2006, p. 74).

Já Bowlby (1973) destaca duas condições que minimizam as reações


negativas da separação de crianças e suas mães, quer seja a presença de uma
pessoa conhecida e ou objetos familiares no novo ambiente de desenvolvimento da
criança e em segundo lugar, os cuidados maternais de uma mãe substituta.
No Brasil, de acordo com Yunes, Miranda, Cuello e Adorno (2002),
estudos indicam a predominância da função assistencialista nos abrigos, havendo
pouco compromisso com as questões desenvolvimentais da infância e
adolescência, além de problemas funcionais como o número inadequado de
funcionários que ocasionam dificuldades no cumprimento das atividades, sobrecarga
de tarefas e atendimento pouco eficaz; precariedade na comunicação no interior da
instituição e na sua relação com os demais parceiros da rede.
Já Dell’Aglio (2000) ao investigar o desenvolvimento de crianças que
viviam em instituição de acolhimento e outras que viviam com suas famílias, não
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encontrou diferenças consistentes entre os grupos. Embora nos aspectos estudados


os resultados tenham apontado diferença apenas no índice de depressão que teria
sido maior entre as meninas institucionalizadas, a própria autora, não recomenda
que daí se tire uma conclusão de relação direta entre a depressão e a
institucionalização, uma vez que na maioria dos casos a institucionalização se deu
em decorrência de eventos traumáticos na família (violência, abandono,
negligência), que por sua vez, poderiam explicar a motivação para o acolhimento. O
fato da maioria das crianças e adolescentes institucionalizados apresentarem a
experiência do acolhimento como algo positivo, também seria outro fator para a
autora chegar a essa conclusão.
Se por um lado existe uma representação mais positiva da
institucionalização, por outro, esses mesmos adolescentes são olhados pela
sociedade, como responsáveis e donos de algum tipo de “defeito” ou problema, o
que também indica uma representação social que estigmatiza todos os que vivem
neste contexto. (Arpini, 2003, apud Dell’Aglio; Siqueira, 2006).
Neste sentido, de acordo com Bronfrenbrenner (1996), a pessoa que é
criada em abrigos, do ponto de vista de valores e expectativas culturais, está
associada a um estigma que pode se tornar uma predição de fracasso. Desse modo,
dependendo de sua capacidade de fornecer apoio e proteção, a instituição de
acolhimento pode ou não produzir efeitos benéficos para a vida de crianças e
adolescentes.
Por assumirem um papel central na vida das crianças e adolescentes
mais vulneráveis, é necessário investir nesses espaços de socialização da
instituição, procurando questionar as concepções socialmente estabelecidas, de
forma a desestigmatizá-las. Conforme sugere Dell’Aglio; Siqueira (2006),
considerando sua necessidade em nossa sociedade, é fundamental transformá-la
num ambiente de desenvolvimento, capacitando-a e instrumentalizando-a para que
ela assegure a individualidade de seus integrantes e possua uma estrutura suficiente
e adequada de material e funcionários. Para isso, Yunes et al (2004, apud Dell’Aglio;
Siqueira, 2006, p. 78), sugerem os seguintes caminhos:

(1) Promover um programa lúdico de atividades para crianças e os


adolescentes abrigados junto com os funcionários o que incentivaria
216
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os cuidadores a desenvolver brincadeiras infantis; (2) oportunizar


encontros entre os profissionais de diferentes abrigos, a fim de criar
um espaço de troca de experiência e melhorar a comunicação
interinstitucional; (3) capacitar profissionalmente os cuidadores, para
que eles possam aprender sobre desenvolvimento infantil numa
visão contextualizada, sobre as práticas socioeducativas e também
para que eles possam compreender as teorias implícitas que
permeiam ao ambiente institucional.

Assim, à medida que foram sendo mais estudados, sobretudo, a partir da


construção e implementação do ECA (1990) a visão que se tinha da instituição de
acolhimento como um lugar exclusivamente prejudicial e precário, foi sendo
substituída por uma avaliação que passou a considerar os aspectos protetivos e de
risco presentes nele, a partir das teorias que focalizavam o desenvolvimento no seu
contexto.
A discussão sobre a qualidade do atendimento e os prejuízos que as
unidades de acolhimento proporcionam para o desenvolvimento estão longe de um
consenso, e por isso sinalizam a importância dos estudos que contribuam para o
aprofundamento da questão. Por ora parecem fundamentais as ações que
oportunizem condições que reduzam os fatores de risco já vivenciados pelos
indivíduos institucionalizados e sistematizar uma maior comunicação nas instituições
e integração entre os serviços da rede de proteção.
Do ponto de vista da Teoria Bioecológica a instituição de acolhimento
apesar de ser uma medida de caráter breve e provisório, pode se constituir como um
ambiente propício ao desenvolvimento, capaz de oferecer condições de
oportunidade de convívio saudável com cuidados significativos, bem como,
promover experiências em vários níveis ambientais, funcionando como um elemento
de fortalecimento da rede de apoio social de crianças, adolescentes e suas famílias.
Em suma, as considerações anteriores permitem concluir que não é
possível compreender os efeitos da institucionalização para crianças e adolescentes
sem considerar os diversos fatores e contextos envolvidos. O olhar apenas para a
instituição sem considerar as variáveis da criança, família, profissionais, rede de
apoio e suas relações de envolvimento e interdependência, simplifica e empobrece
muito qualquer análise sobre a complexidade da questão.

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2 - DESAFIOS NO RETORNO À FAMÍLIA E CONSIDERAÇÕES

Considerando os itens trabalhados neste artigo, caminhamos para esta


terceira parte que pretende refletir criticamente sobre os desafios do retorno à
família. Perguntamo-nos se retirar a criança ou adolescente de uma situação de
institucionalização e trazê-lo de volta ao ambiente familiar é, na verdade, um
indicador de uma efetiva restituição familiar; e respondendo de forma multifatorial
recorremos à pesquisa bibliográfica buscando referências que trabalhem a fase da
desinternação, nos propusemos a estabelecer relação com três recortes advindos
das experiências como assistentes sociais e psicólogos do Judiciário paulista, sendo
eles: família de origem ou extensa, adoção tardia e desinternação no caso de
medidas socioeducativas.
Das referências utilizadas, repassando os motivos que mobilizam para o
desabrigamento, identificamos a própria pressão do SAICA, de forma a encorajar as
famílias juntamente com os contatos com os técnicos do Judiciário, a própria
pressão dos advogados e o esforço familiar para o alcance das adequações
prioritariamente materiais. E aqui cabe a própria crítica que aparece na fala das
famílias - ausência de rede de apoio e suporte psicológico para além do material.
Relacionando com a experiência empírica e técnica de retorno da
criança/adolescente à família de origem e extensa, é possível identificar como
motivos que mobilizam o desabrigamento a superação da situação que ensejou o
acolhimento institucional considerado o quadro mais promissor, pois representa que
o trabalho de permitir que a família transpasse as dificuldades e a criança seja
reinserida em sua família, em geral ocorrendo após mobilização dos membros deste
núcleo e o acompanhamento da rede de serviços socioassistenciais.
No entanto, infelizmente, nem sempre esse panorama ocorre em todos os
desacolhimentos, sendo possível identificar um movimento de adolescentes que
estão prestes a completar a maioridade são reinseridos em suas famílias mesmo
que estas nem sempre tenham promovido as melhorias necessárias para receber
esse jovem, sendo utilizada devido a falta de outra oportunidade para o adolescente,
já que nem todas as cidades contam com equipamentos adequados para recebe-lo,
como a república, por exemplo. Nesses casos pode ocorrer que esses jovens não
denotem possibilidade de se gerirem com autonomia, seja por falta de adesão ao

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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trabalho proposto pela entidade ou por dificuldades pessoais, tais como condição de
saúde, psiquiátrica, ou até mesmo dependência química.
Os SAICAS muitas vezes enfrentam, em alguns desses casos,
ocorrências em que o adolescente expõe a si mesmo e aos demais a risco, havendo,
portanto um movimento para que ele seja desacolhido.
Já nos casos de adoções tardias tem se percebido algumas mobilizações
para que ela seja estimulada e já se constata alguns pretendentes interessados por
adolescentes, ainda que tal perfil seja considerado “raro”. Essa via pode ser outra
opção de desacolhimento para os jovens, todavia elas não são muito comuns e nem
sempre tranquilas, se constituindo de grande complexidade.
Outra realidade comumente encontrada no acompanhamento técnico dos
processos de institucionalização é a grande incidência de evasão dos adolescentes
do SAICA representando a forma de desacolhimento mais desfavorável ao jovem,
nem sempre havendo um trabalho desenvolvido para busca dele ou de restituição à
entidade, sendo por vezes desligado ou acompanhado pela rede.
E considerando ainda os adolescentes em conflito com a lei, em
cumprimento de medida socioeducativa de internação, aparecem como motivos para
o encerramento da medida o alcance da maioridade, o respaldo familiar no decorrer
do cumprimento da medida e no pós medida, questão comportamental e o próprio
cumprimento do PIA. Podemos observar que, apesar de não ser objeto deste
estudo, muitos destes são quesitos que não constam no ECA e/ou SINASE, valendo
aqui este apontamento.
Em continuidade e apontando os desafios no retorno à convivência
familiar, destacamos as questões de ordem material enfrentadas na família quando
em oposição, o SAICA representou possibilidade de acesso e oportunidades que se
traduzem em maior segurança para as crianças/adolescentes. Outro fator que
aparece é o regramento e o disciplinamento da rotina (estudo, lazer, participação da
vida comunitária) que acaba por organizar o cotidiano vivido por
crianças/adolescentes. Outro elemento desafiante aponta para o próprio
relacionamento dentre as crianças/adolescentes e suas famílias a partir de uma
percepção de ausência de espaço e de vínculos pelo próprio distanciamento
inerente ao acolhimento que podem levar à expulsão do ambiente familiar. Outro
aspecto de ordem mais subjetiva circunda o cuidado e a atenção dispensados no

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SAICA e por vezes não identificados nas relações familiares pelas


crianças/adolescentes recém desacolhidos.
Refletindo sobre os enfrentamentos cotidianos como técnicos do
Judiciário e com o olhar voltado às questões institucionais, identificamos como
aspectos relevantes para o desacolhimento aproximando das funções do Executivo:
- o acompanhamento efetivo e articulado entre os serviços antes, durante
e depois do acolhimento;
- a proximidade entre família e instituição que colabora na ressignificação
do caráter punitivo do acolhimento, servindo as equipes de referência para as
famílias;
- o desenvolvimento de outro olhar para as famílias, fugindo da percepção
de desqualificação pelo viés socioeconômico, o que exige um amplo e qualificado
debate sobre os motivos que levam ao acolhimento e a própria avaliação de
manutenção desta decisão pensando na indicação e garantia de acesso aos
suportes básicos (políticas públicas) à família;
- a dedicação à construção do PIA que oportuniza a superação das
propostas de atendimentos coletivizados e homogeneizados, visando atendimento
personalizado e individualizado que particulariza estratégias para cada caso;
- voltar-se para a manutenção das referências e vínculos familiares
especialmente para família extensa considerando o tempo do acolhimento e
colaborando para a desconstrução da insegurança que esta aproximação representa
para a família de origem, colocando-se como rede de apoio;
- DORIAN (2015, p. 115) aponta que a "rede de atendimento esteja de
acordo com as necessidades das famílias", voltando-se para a articulação, sem
competições e realizando atendimento multidisciplinar onde cada sujeito da rede
tenha ciência da importância do seu papel;
- portanto, que estes profissionais sejam presentes e constantemente
capacitados.
Para além destes aspectos, identifica-se a importância da aproximação
horizontal entre o Executivo e o Judiciário, trabalhando conjuntamente a fim de
identificar as necessidades da família e o do adolescente acolhido para propor ações
factíveis que promovam a mudança de realidade e consequentemente a reinserção
do jovem em sua família, objetivo primordial do acolhimento institucional.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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224
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

APROXIMAÇÕES ENTRE JUSTIÇA RESTAURATIVA E A


PARTICIPAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS E
PSICÓLOGOS JUDICIÁRIOS NAS PRÁTICAS
RESTAURATIVAS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“JUSTIÇA RESTAURATIVA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

225
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Mariane da Silva Fonseca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Serra Negra


Silvana Ilek Barbosa – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa
do DAIJ 1.4

AUTORES
Andrea Svicero – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa do
DAIJ - 1.4
Ana Paula Martinez – Psicóloga Judiciário – Comarca de Piracicaba.
Cibele Araujo Cabral – Psicóloga Judiciário – F VEIJ da Capital
Cristina de Carvalho Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca Monte Azul
Paulista
Gabriela Balaguer – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franco da Rocha
Gustavo Vieira da Silva – Psicólogo Judiciário – DAIJ 1.4
Iara Dourado Nogueira Giotto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Amparo
Izabel Rita Fregnani – Assistente Social Judiciário – Serviço de Serviço Social DAIJ
1.2
Josiane Moraes – Assistente Social Judiciário – F VEIJ da Capital
Maria Cristina Abi Rached – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Santana
Marcia Regina Trindade Prestes – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Registro
Mariane da Silva Fonseca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Serra Negra
Priscila De Paula Ferreira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Socorro
Silvana Ilek Barbosa – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa
do DAIJ 1.4
Telma Dantas da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Arujá
Zilda Rodrigues Nogueira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales

226
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O Mundinho e seus Desafios...

Por vezes pequeninos para nos darmos conta do tanto que não conhecemos ainda ou
gigantes para ampliarmos os nossos horizontes em busca de vivermos livres de amarras e
nós que nos impedem de elaboramos laços de ternura e contentamento que façam da gente
apenas humanos.
Quando ouvires os meus gritos, sou eu coletivo, que não aceita Ser, Ver e/ou estar
caminhante, sem sentir as presenças marcantes de todos e todas que têm o direito de ir e
vir calçados dignamente com sonhos que lhes façam caminhantes. Tempo de Resistir ao
que não for equidade, a tudo quanto pretendermos aniquilar, sobretudo coletivamente!
Hora de enlaçarmos...

(Autora: Iara Dourado, assistente social Judiciário da Comarca de Amparo e integrante do


grupo de estudos de Justiça Restaurativa)

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do


estado de São Paulo foi criado no ano de 2016; há quatro anos, nós, as assistentes
sociais e psicólogas judiciárias temos nos empenhado a pensar este novo
paradigma23 de justiça, denominado “Justiça Restaurativa” (JR). Trata-se de um
convite a cada um de nós para trocarmos as lentes e, conforme assegura Howard
Zehr24, “a lente usada afeta profundamente o resultado, minha escolha de lentes
determina as circunstâncias nas quais é possível trabalhar e também a forma como
vejo as coisas” (ZEHR, 2008, p. 167).
Considerando este ensinamento, indagamo-nos: a partir de qual lente
nós, técnicas judiciárias, estamos olhando para as demandas que nos chegam
diariamente em nosso cotidiano profissional? Estamos trabalhando para atender tão
somente as determinações e prazos judiciais ou olhando para as necessidades mais
profundas dos sujeitos/famílias que chegam ao Poder Judiciário? O grupo de

23Os
paradigmas moldam nossa abordagem não apenas do mundo físico, mas também do
mundo social, psicológico e filosófico. Eles são a lente através das quais compreendemos os
fenômenos. Eles determinam a forma como resolvemos problemas. Moldam nosso
“conhecimento” sobre o que é possível e o que é impossível. Os paradigmas moldam a forma
como definimos problemas e o nosso reconhecimento do que sejam soluções apropriadas
(ZEHR, 2008, p. 83).
24Howard Zehr, americano, professor de sociologia, é um dos pioneiros nos estudos sobre

Justiça Restaurativa, e possui uma obra de referência que ecoa entre os estudiosos desta
temática denominada “Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça”.
227
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

estudos do TJ/SP sobre “O cotidiano da prática profissional”, já em 2014, teceu


algumas reflexões nesse sentido com base em José Paulo Netto25, vejamos:

[...] a necessidade do profissional romper com a alienação do


cotidiano, que o faz ser “engolido” pelas estruturas determinantes da
prática profissional. Lembra que pensar o cotidiano exige uma
reflexão profunda acerca da necessidade de compreender não
apenas a aparência do real, mas sua essência e o significado do
fazer profissional. O cotidiano é algo insuprimível, é o espaço de
produção e reprodução da vida e por isso possui elementos
alienadores que nos “enganam”, pois não se constituem apenas da
superficialidade que nos é dada na imediaticidade do real. Ao
contrário, o cotidiano é expressão de um conjunto de determinações
que podem ou não nos impulsionar a reproduzir na ação profissional
a ideologia dominante preconceitos e senso comum ajustadores de
padrões de comportamentos e análises conservadoras. Desta forma,
é necessário estabelecer estratégias que possibilitem ao profissional
“suspender” o cotidiano para analisá-lo e refleti-lo criticamente, pois
sendo repleto de contradições, exige a mediação entre o singular e o
universal, de modo a privilegiar uma ação transformadora. (TORRES,
A.; ARAUJO, A. Et al, 2014, p. 302-303)) (grifo nosso).

Assim, projetamos a Justiça Restaurativa em nossos cotidianos de


trabalho não apenas como um conjunto de métodos e técnicas de resolução de
conflito, embora conte com um rol deles, mas como uma verdadeira mudança de
paradigma em todas as dimensões da convivência – relacional, institucional e social,
ou seja, trata-se da “construção de um poder com o outro, em que todos e cada qual
sejam alçados à posição de “sujeito transformador”, igualmente corresponsável pela
transformação, rumo a uma sociedade mais justa e humana” (SALMASO, 2016, p.
20)
No primeiro artigo do grupo de estudos, publicado em 2016, tivemos como
objetivo compreender o conceito de Justiça Restaurativa enquanto um novo
paradigma, daquele retributivo para o restaurativo. Em 2017, o grupo elegeu
aprofundar-se no conhecimento de uma das práticas restaurativas mais utilizadas no
Brasil para a resolução do conflito e reparação do dano denominado “Processo

25
NETTO, J. P. Para a crítica da vida cotidiana. In: Cotidiano: conhecimento e crítica (Orgs),
Netto, J. P e Carvalho, M. C. B. de São Paulo: Cortez, 1987.
228
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Circular26”; tal prática foi desenvolvida por Kay Pranis (2010), autora do livro
“Processos Circulares”, obra que norteou o debate ao longo dos encontros de 2017.
Em 2018, demos um zoom na lente da Justiça Restaurativa e estudamos os seus
princípios, com um olhar atento aos sentimentos e às necessidades de todos os
envolvidos no conflito e/ou violência.
Uma vez estudado e aprofundado o conceito e a prática da Justiça
Restaurativa, entendemos que era chegada a hora de nos embrenhar no diálogo e
reflexão sobre a questão de sermos assistentes sociais e/ou psicólogas judiciárias e
também atuarmos enquanto facilitadoras de práticas restaurativas nos nossos
espaços de trabalho.
Nesse sentido, trilhamos o seguinte percurso ao longo dos encontros
deste ano:
▪ Retomamos a Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do
Poder Judiciário e o Provimento da Corregedoria Geral de Justiça (CG) Nº 35/2014
que dispõe sobre a implementação da JR no âmbito das Varas da Infância e
Juventude do Estado de São Paulo;
▪ Lemos e refletimos sobre o Código de Ética de cada profissão (Serviço
Social e Psicologia), notadamente, a base principiológica de cada normativa;
▪ Aproximamos a reflexão a bibliografias da área de Justiça
Restaurativa, como por exemplo, a obra “Segurança e Cuidado: Justiça Restaurativa
e sociedades saudáveis” da assistente social Elizabeth M. Eliott;
▪ Lemos e debatemos o Relatório do Comitê Gestor de Justiça
Restaurativa no CNJ que tratou do Planejamento da Política Nacional de Justiça
Restaurativa, publicado em junho deste ano.
Decidimos, ainda, que toda a reflexão e partilha seria pautada na
metodologia do processo circular27, fazendo uso do objeto da palavra28 durante os

26Os processos circulares apresentados por Kay Pranis são alicerçados na forma de diálogo e
rituais de aborígenes e em culturas ancestrais, [...] além dessas primeiras fontes de inspiração,
princípios e práticas contemporâneos inseridos nos métodos para transformação dos conflitos,
nas práticas restaurativas, na comunicação não-violenta, na escuta qualificada e na construção
de consenso, para o alcance de soluções que expressam as necessidades individuais e, ao
mesmo tempo, as do grupo. (PASSOS, 2010, p. 9, Preâmbulo).
27Práticas Restaurativas compreendem a utilização de diferentes metodologias de estruturação e

promoção de encontros entre as partes envolvidas, objetivando a facilitação do diálogo, a


superação de conflitos e a resolução de problemas de forma consensual e colaborativa.
Diferentes metodologias podem ser escolhidas e utilizadas segundo as circunstâncias do caso,
229
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

encontros, concedendo a cada membro vez e voz, bem como a garantia de escuta
respeitosa e atenta. Para tanto, durante os primeiros encontros, construímos
valores29 e diretrizes30, essenciais para guiar o diálogo ao longo dos dez encontros31.

Foto 1 – Valores e Diretrizes construídas pelo grupo.

É importante destacarmos que as ponderações realizadas neste artigo


não são fechadas e/ou conclusivas, afinal tratamos de um processo coletivo e em
construção, que ainda carece que o debate seja ampliado para todas as assistentes

objetivando proporcionar um ambiente seguro e protegido para o enfrentamento das questões


propostas. (BRANCHER; FLORES, 2016, p. 110).
28O bastão ou “objeto da fala”, elemento-chave do círculo, é um objeto escolhido pelo grupo ou

pelo facilitador, que é passado de pessoa para pessoa na sequência da roda. O objetivo do
bastão é regular o diálogo dos participantes, permitindo que o seu detentor fale sem interrupções
e que os demais foquem na escuta. (SVICERO e PENHA, et al 2017, p. 217) Disponível em:
<http://www.tjsp.jus.br/ownload/EJUS/AVAS/CadernosDeEstudo/Caderno14GruposEstudosSSP
J.pdf> Acesso em: 29 out. 2018.
29 Os valores construídos pelo grupo foram: respeito, generosidade, verdade, não julgamento,

humildade, respeito às diferenças, liberdade, disponibilidade, empatia, amor.


30As diretrizes construídas pelo foram: cooperação, escuta, sigilo, não julgamento, compromisso,

falar respeitosamente, escuta empática, tolerância, aprendizagem, expressar-se, manter o lugar


do não-saber.
31A construção dos valores: é aquilo que cada participante oferece ao grupo para que o diálogo

possa acontecer de uma maneira que não cause mais danos. Neste momento os participantes
poderão apontar a escuta, o respeito, o acolhimento, o não-julgamento, entre outros, como
essencial para que se consiga dialogar. A construção das diretrizes: são tratados entabulados
pelo grupo para que se consiga ter uma boa conversa, onde todos se sintam minimamente
seguros e confortáveis para tratar sobre aquele assunto difícil. Para Kay Pranis algumas
diretrizes são essenciais; citemos: respeitar o objeto da palavra, ou seja, enquanto uma pessoa
está falando a outra deve respeitar e ouvir; falar sempre em primeira pessoa, pois isso estimula
que as pessoas falem a partir de si, a partir das próprias histórias em vez de falar do outro; e a
confidencialidade, que significa que os ensinamentos do processo circular podem ser
compartilhados, mas as histórias contatas no círculo ficam no círculo. (PRANIS, 2011).
230
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sociais e psicólogas do TJ/SP. Nessa toada, avaliamos a possibilidade de realizar


uma pesquisa com todas as técnicas do TJ/SP, a fim de aprofundarmos as reflexões
sobre a atuação profissional versus ser facilitador de práticas restaurativas, ideia que
será amadurecida pelos participantes e, quiçá, desenvolvida ao longo de 2020.
Por ora, convidamos você a um olhar mais atento ao seu cotidiano de
trabalho, a partir da lente restaurativa, aproximando a base principiológica de cada
profissão (Serviço Social e Psicologia) à da Justiça Restaurativa. Sem perder de
vista que, seja enquanto técnica ou facilitadora de práticas restaurativas, a finalidade
do nosso trabalho é garantir direitos humanos, proporcionar espaços seguros e
respeitosos para que crianças, adolescentes e famílias, por nós atendidos, sejam
escutados enquanto sujeitos de direitos em suas necessidades biopsicossociais.
Parece-nos válida a contribuição de Elizabeth Elliott (2018) que diz:

A criminalização dos problemas sociais tem efeito oposto ao da JR:


O Sistema Retributivo coloca a responsabilidade primária pelos
problemas como saúde mental, pobreza, educação, etc, no âmbito
da Justiça Criminal [poderíamos dizer apenas Poder Judiciário], que
não foi estruturada ou concebida para tratar tais problemas. Tudo é
reduzido a indivíduos “maus” que fazem escolhas “ruins”, sem uma
consideração significativa das forças mais amplas.

Desse modo, a autora contribui para aproximar a justiça restaurativa dos


nossos cotidianos e objetivos profissionais no sentido da garantia dos direitos
humanos.

1 - A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO UM CONJUNTO DE


PRINCÍPIOS E PRÁTICAS

1.1 - PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Embora a Justiça Restaurativa tenha uma divulgação cada vez mais


ampla, muitas pessoas ainda a relacionam com algum programa ou prática
específica (p.ex. processo circular). Contudo, Zehr (2017) – um dos precursores

231
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sobre o tema – destaca que a JR é, em seu cerne, um conjunto de princípios e


valores.
Podemos considerar que a Justiça Restaurativa consiste
fundamentalmente em outro modo de olhar e pensar sobre o conflito. Zehr
(2017) apresenta sua compreensão sobre os princípios restaurativos, por meio de
uma comparação entre as diferentes perspectivas da Justiça Retributiva e da Justiça
Restaurativa diante de uma ofensa. Conforme o autor, a Justiça Retributiva
comumente realiza três perguntas: Que leis foram infringidas? Quem fez isso? O que
o ofensor merece? A Justiça Restaurativa, por sua vez, traz fundamentalmente
outras questões: Quem sofreu os danos? Quais são suas necessidades? De quem é
a obrigação de suprir essas necessidades?
Além disso, a JR altera também a compreensão e o olhar para as
“vítimas” e para os “ofensores”. Conforme Zehr (2018), as vítimas para a justiça
retributiva são comumente reduzidas ao papel de “produtor de provas”, concepção
na qual o crime é visto como uma ofensa ao Estado. A Justiça Restaurativa, por sua
vez, visa devolver a voz para aqueles que sofreram dano, considerando assim as
necessidades das vítimas e de todas as pessoas afetadas, que se tornam
protagonistas do processo e podem expor suas dúvidas, temores e demandas por
reparação.
Além disso, a partir da questão acerca das obrigações em se responder
às necessidades levantadas, Zehr (2017) salienta que a Justiça Restaurativa abre
espaço para a responsabilização e para a transformação pessoal dos ofensores e
por parte da comunidade corresponsável pelo dano. Zehr (2018) indica que, muito
comumente, os ofensores também possuem necessidades e – especialmente em
contextos de vulnerabilidade e exclusão social – eles também podem ser
considerados como “vítimas” em muitos aspectos. Logo, o autor propõe a Justiça
Restaurativa como um campo fértil para a criação de novas alternativas que
possibilitem tanto a responsabilização como a humanização e transformação
dos ofensores.
Considerando o exposto, Zehr (2017) apresenta uma figura orgânica, na
qual cada pétala representa um dos princípios fundamentais da Justiça Restaurativa,
em torno do foco central (endireitar as coisas):

232
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Figura I (ZEHR, 2017, p. 46).

Compreendemos que os elementos apresentados acima dialogam com a


Resolução nº 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que traz em seu art.
2º como princípios da Justiça Restaurativa: “a corresponsabilidade, a reparação dos
danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a
voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a
consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade”.
A partir dos princípios elencados acima e, considerando os limites de uma
acepção rígida para a Justiça Restaurativa, Zehr (2017, p. 54) propõe a seguinte
“definição para fins operacionais”:

Justiça Restaurativa é uma abordagem que visa promover justiça e


que envolve, tanto quanto possível, todos aqueles que têm interesse
numa ofensa ou dano específico, num processo que coletivamente
identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da
ofensa, a fim de restabelecer as pessoas e endireitar as coisas na
medida do possível.

Cabe então compreendermos a partir de quais procedimentos e práticas


podemos alcançar estes objetivos.

233
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1.2 - PRÁTICAS E PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS32

Muitas comunidades e instituições ao redor do mundo têm propiciado


espaço para a emergência de diferentes práticas que possuem raízes nos princípios
da Justiça Restaurativa. Logo, é importante sublinharmos que as práticas e
procedimentos restaurativos33 não são somente aplicados no Sistema de Justiça
(Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública), mas também na Rede de
Garantia de Direitos (políticas públicas de educação, saúde, assistência social, entre
outras) e comunidades.
Conforme Zehr (2017), embora não seja possível enumerarmos todas as
práticas restaurativas em desenvolvimento, existem três metodologias de amplo
reconhecimento no âmbito internacional. A primeira são os encontros ou
conferências Vítima-Ofensor, na qual o enfoque é dado às necessidades da vítima e
a responsabilização do ofensor, embora cada vez mais se tenha incluído familiares e
comunidade. A segunda metodologia são as Conferências de grupos familiares,
metodologia baseada especialmente nas tradições aborígenes neozelandesas, que
valoriza a sabedoria da família estendida. A terceira metodologia são os Círculos,
baseados principalmente nas tradições dos povos originários norte-americanos, que
enfatiza a construção de relacionamento como sustentação para a construção
coletiva de um plano de reparação de danos e atendimento de necessidades. Além
das metodologias elencadas por Zehr, no Brasil encontram-se locais que realizam os
“círculos restaurativos”, fundamentados na Comunicação Não-Violenta (CNV).
Embora as diferentes práticas restaurativas possuam características
próprias, podemos considerar que todas as metodologias buscam resgatar a
participação de todas as pessoas envolvidas em uma situação de conflito e
violência, conduzindo-as a um processo de diálogo, no qual as pessoas afetadas
pelo conflito possam encontrar respostas conjuntas que contemplem as

32A Resolução nº 225/2016 (CNJ) difere prática de procedimento restaurativo: a prática


restaurativa seria um conceito mais abrangente, consistindo na “forma diferenciada de lidar” com
os conflitos; o procedimento restaurativo seria o “conjunto de atividades e etapas a serem
promovidas objetivando a composição de situações”, estando atrelado às metodologias
utilizadas.
33No caso específico da Justiça Restaurativa na ambiência do judiciário, a Resolução nº

225/2016 (CNJ) apresenta a seguinte diferenciação: a prática restaurativa teria uma acepção
mais abrangente, consistindo na “forma diferenciada de lidar” com os conflitos; o procedimento
restaurativo, por sua vez, seria o “conjunto de atividades e etapas a serem promovidas
objetivando a composição das situações”, estando relacionado às metodologias utilizadas.
234
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

necessidades apresentadas por todos. Além disso, outro elemento comum é o fato
de considerarem aspectos institucionais e culturais que contribuíram para gerar a
situação de conflito e violência, atuando no sentido de eliminá-los ou dirimi-los.

2 - OS CÓDIGOS DE ÉTICA DO SERVIÇO SOCIAL E DA


PSICOLOGIA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA

O Serviço Social e a Psicologia, interdisciplinarmente, trabalham


atendendo demandas individuais e coletivas, com vistas a defender a construção de
uma sociedade livre de todas as formas de violência e exploração de classe, gênero,
questões étnico-raciais e orientação sexual. De acordo com o art. 802, § 1º do
Provimento nº 50/89, que trata das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da
Justiça de São Paulo:

Compete à equipe interprofissional fornecer subsídios por escrito


mediante laudos, ou oralmente, na audiência, e bem assim
desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação,
encaminhamento, prevenção, depoimento especial e outras, tudo
sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a
livre manifestação do ponto de vista técnico. (grifo nosso).

Essa é a atribuição inerente ao cargo de Assistente Social e Psicóloga


Judiciária, contudo, salientamos que a atuação profissional de cada categoria está
balizada por seus respectivos Códigos de Ética e leis que regulamentam a profissão
(Lei 8.662/93, Serviço Social, e Lei 4.119/62, Psicologia), normativas que indicam
parâmetros teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos às
intervenções técnicas.
Assim, no trabalho cotidiano das Varas34 (Infância e Juventude, Violência
Doméstica e Familiar contra a mulher, Família e Sucessões, Adolescente em

34
De acordo com as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, que regulam o
exercício da função correcional e a execução dos serviços auxiliares da justiça, Provimento Nº
50/89, em seu art. 802. Diz que: “Os Assistentes Sociais e os Psicólogos Judiciários executarão
suas atividades profissionais junto às Varas de Infância e Juventude, da Família e das
Sucessões, de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de Crimes contra Crianças e
Adolescentes e do SANCTVS, nas ações que demandem medidas de proteção a idosos em
235
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Conflito com a Lei) os profissionais podem criar estratégias de enfrentamento das


expressões da Questão Social (pobreza, desigualdades, desemprego, exclusão),
intermediar o acesso a políticas públicas, a fim de garantir direitos sociais, bem
como impedir violações de direitos.
Em meio às inúmeras possibilidades de intervenções profissionais junto
aos indivíduos e famílias que passam pelo Sistema de Justiça estão as práticas
restaurativas, em expansão no Judiciário Paulista. Segundo relatório publicado este
ano pelo Comitê Gestor da Justiça Restaurativa no CNJ sobre o Planejamento da
Política Nacional de JR:

[...] a grande maioria dos programas, dos projetos e das ações de


justiça restaurativa contam com a participação de servidores dos
quadros do poder judiciário, especialmente assistentes sociais e
psicólogos, integrantes das equipes técnicas judiciárias, mormente
atuando como facilitadores de práticas restaurativas. (SALMASO, M.
Et tal, 2019, pág. 23).

Na análise a seguir, temos por objetivo refletir sobre a interface entre


Serviço Social e a Psicologia no âmbito da Justiça Restaurativa. Apresentaremos
pontos de aproximação e distanciamento entre este novo paradigma e as duas áreas
do conhecimento.

2.1 - TECENDO REFLEXÕES SOBRE OS PRINCÍPIOS PRESENTES NO CÓDIGO


DE ÉTICA DO SERVIÇO SOCIAL E NA JUSTIÇA RESTAURATIVA

O Serviço Social e a Justiça Restaurativa possuem pontos de


convergência e também de tensionamento.
O Serviço Social defende um Projeto Ético-Político que reconhece a
liberdade como valor central, possui o compromisso com a autonomia, a
emancipação e a plena expansão dos valores individuais; trata-se de um projeto
societário que vai à contramão da ordem estabelecida, em direção à construção de
uma nova ordem social. A Justiça Restaurativa é um novo paradigma que, em muito,
também caminha na contramão do sistema vigente e propõe outro modo de pensar a

situação de risco, mesmo que tramitem nas Varas Cíveis ou da Fazenda Pública e nas ações
que demandem o depoimento especial, nos termos da Lei nº 13.431/2017”.
236
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

convivência social, dando vez e voz aos sujeitos sociais envolvidos no conflito e/ou
violência e acolher as necessidades de cada um. Observamos que tanto o Serviço
Social quanto a Justiça Restaurativa não concordam com o Sistema Retributivo
vigente e propõem a construção de novos paradigmas teóricos e metodológicos que
possibilitem um pensar e agir transformador.
O Serviço Social assim como a Justiça Restaurativa preveem a
possibilidade de um trabalho intersetorial, que significa dizer que a intenção não é
responsabilizar apenas os indivíduos e famílias atendidos, mas proporcionar a
corresponsabilização de todos os envolvidos, inclusive da rede de garantias de
direitos e da comunidade (vide art. 8º do Código de Ética do Assistente Social e art.
6º, 5º, V, e 8º da Resolução 225/2016).
Os princípios que fundamentam a prática do Assistente Social ecoam nos
princípios da Justiça Restaurativa. Abaixo elaboramos um quadro comparativo para
melhor visualização da base principiológica de ambas as áreas. Embora os
princípios do Serviço Social sejam mais abrangentes que os da JR, é importante
percebermos que estes não se contrapõem àqueles.

237
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Tabela 1 - Princípios éticos da Assistente Social e Princípios da Justiça


Restaurativa

Princípio do Código de Ética do Princípios da Justiça Restaurativa


Assistente Social
-Defesa da Liberdade e dos Direitos Conforme art. 1º. Da Resolução 225/2016 que dispõe
humanos; da Justiça Restaurativa como Política Nacional no
-Ampliação e consolidação da âmbito do Poder Judiciário “A Justiça Restaurativa
constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico
cidadania com vistas à garantia dos
de princípios, métodos, técnicas e atividades
direitos civis sociais e políticos das próprias, que visa à conscientização sobre os fatores
classes trabalhadoras; relacionais, institucionais e sociais motivadores de
- Defesa do aprofundamento da conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos
democracia, enquanto socialização que geram dano, concreto ou abstrato, são
da participação política e da riqueza solucionados de modo estruturado (...)”.
socialmente produzida;
De acordo com a mesma Resolução em seu art. 2º
-Posicionamento em favor da
“São princípios que orientam a Justiça Restaurativa:
equidade e justiça social, que a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o
assegure universalidade de acesso atendimento às necessidades de todos os
aos bens e serviços relativos aos envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a
programas e políticas sociais, bem imparcialidade, a participação, o empoderamento, a
como sua gestão democrática; consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e
-Empenho na eliminação de todas as a urbanidade”.
formas de preconceito, incentivando
A partir da prática restaurativa é possível o: (...)
o respeito à diversidade, à reconhecimento da liberdade como valor central,
participação de grupos socialmente compromisso com a autonomia e emancipação e a
discriminados plena expansão dos indivíduos sociais, vinculado a
e à discussão das diferenças; uma nova ordem social sem exploração e dominação
-Construção de uma nova ordem a favor da equidade e da justiça social na perspectiva
da universalização do acesso a bens e serviços, a
societária, sem dominação,
ampliação e consolidação da cidadania (José Paulo
exploração de classe, etnia e gênero; Netto, 1999:15/16 apud Terra & Rodrigues, 2012:93)
-Compromisso com a qualidade dos
serviços prestados à população e “Uma reação restaurativa requer a compreensão de
com o aprimoramento intelectual, na quem foi prejudicado e o que exatamente significou o
perspectiva da competência dano para aquela pessoa ou pessoas. E requer um
profissional; plano para reparar os danos e males na medida do
possível. Parte ainda do pressuposto de que
-Exercício do Serviço Social sem ser
profissionais, sozinhos, não podem responder a
discriminado/a, nem discriminar, por essas questões. Os profissionais podem facilitar o
questões de inserção de classe processo ajudando aqueles que foram afetados para
social, gênero, etnia, religião, que, eles mesmos, respondam (autonomia) a estas
nacionalidade, questões sobre a natureza do dano e como pode ser
orientação sexual, identidade de reparado (liberdade)”. (PRANIS, 2010, p.4)
gênero, idade e condição física.
“É possível afirmar também que os assistentes
sociais, facilitadores de práticas restaurativas,
reconhecem que, apesar das limitações inerentes à
metodologia utilizada, atuam dentro das
possibilidades, em sintonia com os princípios
fundamentais que sustentam o novo Código de Ética,
especialmente no que se refere à sua relação com o
usuário, numa perspectiva emancipadora e inclusiva
a partir de uma análise crítica da realidade social e
institucional” (TERRA E RODRIGUES, 2012, p. 95-
96)
Fonte: Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa do TJ/SP (2019)
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Os deveres da Assistente Social na relação com o usuário também


encontram ressonância na Justiça Restaurativa, especificamente no modo como os
sujeitos (ofensores, receptores do ato, comunidade e sociedade) envolvidos no
conflito e/ou violência são tratados pelas facilitadoras, vejamos:

Tabela 2 - Aproximações entre os deveres da Assistente Social e a prática


restaurativa

Código de Ética do Assistente Social Resolução 225/2016 do CNJ


Art. 5º São deveres do/a Assistente Social nas Na prática restaurativa o facilitador
suas relações com os/as usuários/as: procura envolver todos os afetados
pelo dano, a fim de que todos sejam
a- contribuir para a viabilização da participação
partícipes da resolução do conflito e
efetiva da população usuária nas decisões
institucionais; não meros espectadores, deixando
que o juiz decida suas vidas.
b- garantir a plena informação e discussão
Art. 1º - I – é necessária a participação
sobre as possibilidades e consequências
das situações apresentadas, respeitando do ofensor, e, quando houver, da
democraticamente as decisões dos/as vítima, bem como, das suas famílias e
usuários/as; dos demais envolvidos no fato danoso,
com a presença dos representantes da
c- democratizar as informações e o acesso comunidade direta ou indiretamente
aos atingida pelo fato e de um ou mais
programas disponíveis no espaço
institucional, como um dos mecanismos facilitadores restaurativos;
indispensáveis à participação dos/as Art. 9º. As técnicas auto compositivas
usuários/as;
do método consensual utilizadas pelos
d- contribuir para a criação de mecanismos facilitadores restaurativos buscarão
que incluir, além das pessoas referidas no
venham desburocratizar a relação com art. 1º, § 1º, V, a, desta Resolução,
os/as usuários/as, no sentido de agilizar e aqueles que, em relação ao fato
melhorar os serviços prestados; danoso, direta ou indiretamente:

ART. 8º SÃO DEVERES DO/A ASSISTENTE I – sejam responsáveis por esse fato;
SOCIAL:
II- foram afetadas ou sofrerão as
a- programar, administrar, executar e repassar os consequências desse fato;
serviços sociais assegurados institucionalmente;
III – possam apoiar os envolvidos no
c- contribuir para a alteração da correlação de referido fato, contribuindo de modo que
forças não haja recidiva.
institucionais, apoiando as legítimas demandas
de interesse da população usuária; Art. 2º: § 3º Os participantes devem
ser informados sobre o procedimento e
sobre as possíveis consequências de
sua participação, bem como do seu
direito de solicitar orientação jurídica
em qualquer estágio do procedimento.

Art. 6º. Na implementação de projetos


ou espaços de serviço para
atendimento de Justiça Restaurativa,

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os tribunais observarão as seguintes


diretrizes:

V – primar pela qualidade dos


serviços, tendo em vista que as
respostas aos crimes, aos atos
infracionais e às situações de
vulnerabilidade deverão ser feitas
dentro de uma lógica interinstitucional
e sistêmica e em articulação com as
redes de atendimento e parceria com
as demais políticas públicas e redes
comunitárias;

VI – instituir, nos espaços de Justiça


Restaurativa, fluxos internos e
externos que permitam a
institucionalização dos procedimentos
restaurativos em articulação com as
redes de atendimento das demais
políticas públicas e as redes
comunitárias, buscando a interconexão
de ações e apoiando a expansão dos
princípios e das técnicas restaurativas
para outros segmentos institucionais e
sociais.

Na prática Restaurativa todos os


envolvidos são escutados por meio de
encontros individuais (pré-circulos),
momento em que lhe é oferecida a
possibilidade de resolução do conflito
e/ou reparação do dano através da
prática restaurativa. Portanto, os
envolvidos são informados quanto ao
procedimento e convidados a
participar.

Art. 8º. Os procedimentos restaurativos


consistem em sessões coordenadas,
realizadas com a participação dos
envolvidos de forma voluntária, das
famílias, juntamente com a Rede de
Garantia de Direito local e com a
participação da comunidade para que,
a partir da solução obtida, possa ser
evitada a recidiva do fato danoso,
vedada qualquer forma de coação ou a
emissão de intimação judicial para as
sessões.

Fonte: Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa do TJ/SP (2019)

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Outro ponto de aproximação entre o Código de Ética da Assistente Social


e a Justiça Restaurativa, que merece nosso destaque, trata do
sigilo/confidencialidade entre ambas as atividades.

Tabela 3 - Sigilo do Assistente Social e confidencialidade na prática


restaurativa

Código de Ética do Assistente Social Resolução 225/2016 CNJ

Art. 15 Constitui direito do/a assistente social manter o Art. 8º. Os procedimentos
sigilo profissional. restaurativos consistem em sessões
coordenadas, realizadas com a
Art. 16 O sigilo protegerá o/a usuário/a em tudo aquilo
participação dos envolvidos de
de que o/a assistente social tome conhecimento,
como forma voluntária, das famílias,
decorrência do exercício da atividade profissional. juntamente com a Rede de Garantia
de Direito local e com a participação
da comunidade para que, a partir da
solução obtida, possa ser evitada a
recidiva do fato danoso, vedada
qualquer forma de coação ou a
emissão de intimação judicial para
as sessões.
§ 1º. O facilitador restaurativo
coordenará os trabalhos de escuta e
diálogo entre os envolvidos, por
meio da utilização de métodos
consensuais na forma
autocompositiva de resolução de
conflitos, próprias da Justiça
Restaurativa, devendo ressaltar
durante os procedimentos
restaurativos:
I – o sigilo, a confidencialidade e a
voluntariedade da sessão;
§ 4º. Deverá ser juntada aos autos
do processo breve memória da
sessão, que consistirá na anotação
dos nomes das pessoas que
estiveram presentes e do plano de
ação com os acordos estabelecidos,
preservados os princípios do sigilo e
da confidencialidade, exceção feita
apenas a alguma ressalva
expressamente acordada entre as
partes, exigida por lei, ou a
situações que possam colocar em
risco a segurança dos participantes.

§6º. Independentemente do êxito na


autocomposição, poderá ser

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proposto plano de ação com


orientações, sugestões e
encaminhamentos que visem à não
recidiva do fato danoso, observados
o sigilo, a confidencialidade e a
voluntariedade da adesão dos
envolvidos no referido plano.

Art. 10. [...] a solução obtida poderá


ser repercutida no âmbito
institucional e social, por meio de
comunicação e interação com a
comunidade do local onde ocorreu o
fato danoso, bem como, respeitados
os deveres de sigilo e
confidencialidade, poderão ser feitos
encaminhamentos das pessoas
envolvidas a fim de atendimento das
suas necessidades.
Fonte: Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa do TJ/SP (2019)

Quanto ao tensionamento, parece-nos o fato da profissional de Serviço


Social ser uma profissional que intervêm na realidade (realiza encaminhamentos,
propõe projetos de intervenção, ou seja, é um profissional interventivo) e o facilitador
atua de outro lugar, de um lugar da corresponsabilização, portanto, a solução para a
situação não será imposta ou sugerida pelo profissional, mas construída a partir da
sabedoria e engajamento de todos.

2.2 - CÓDIGO DE ÉTICA DA PSICOLOGIA E A BASE PRINCIPIOLÓGICA DA


JUSTIÇA RESTAURATIVA: APROXIMAÇÕES E TENSIONAMENTOS

O Código de Ética da Psicologia é bastante dialogável com a Justiça


Restaurativa. Destacam-se os pontos abaixo:
Os Princípios Fundamentais do Código de Ética da Psicologia têm
bastante afinidade com o que dispõe a Resolução 225/2016:

I. promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da


integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
II. eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
III. responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a
realidade política, econômica, social e cultural.
(...)

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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VII. O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em


que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades
profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância
com os demais princípios deste Código.

a. O art. 2º do Código de Ética do Psicólogo menciona que é vedado à


psicóloga: “b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas,
religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito”. Tais induções
também devem ser evitadas em práticas de Justiça Restaurativa, com destaque para
os procedimentos restaurativos realizados em espaços laicos.
b. Destaca-se o sigilo profissional da Psicóloga, (Art. 9º do Código de
Ética: É dever da psicóloga respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio
da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que
tenha acesso no exercício profissional) sendo que a orientação para o sigilo também
está presente na Justiça Restaurativa enquanto princípio da confidencialidade.
Ainda sobre o sigilo profissional, levantamos questões no que se refere às
exceções a este, trazendo a seguinte situação hipotética “e se”, durante um círculo,
um participante informar que cometeu alguma violação de direito (ex, um abuso
sexual) a um terceiro, não participante daquele círculo, como o facilitador deverá
proceder quanto à confidencialidade trazida como diretriz no círculo? Surgiram
diversos posicionamentos a respeito. Destacamos o art. 8º, § 4º, da Resolução 225
do CNJ que pontua exceção à confidencialidade:

Art. 8º. Os procedimentos restaurativos consistem em sessões


coordenadas, realizadas com a participação dos envolvidos de forma
voluntária, das famílias, juntamente com a Rede de Garantia de
Direito local e com a participação da comunidade para que, a partir
da solução obtida, possa ser evitada a recidiva do fato danoso,
vedada qualquer forma de coação ou a emissão de intimação judicial
para as sessões.
§ 4º. Deverá ser juntada aos autos do processo breve memória da
sessão, que consistirá na anotação dos nomes das pessoas que
estiveram presentes e do plano de ação com os acordos
estabelecidos, preservados os princípios do sigilo e da
confidencialidade, exceção feita apenas a alguma ressalva
expressamente acordada entre as partes, exigida por lei, ou a
situações que possam colocar em risco a segurança dos
participantes. (grifo nosso).

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ressaltamos que o círculo proporciona um espaço seguro para as


pessoas se colocarem sem máscaras, trazendo o seu “eu verdadeiro”, não havendo
lógica a quebra da confidencialidade. Pontuamos que a hipótese levantada é um
caso isolado, afinal o procedimento restaurativo pressupõe que haverá pré-circulos
(um ou mais) com os envolvidos direta e indiretamente no conflito, abrindo espaços
de escuta qualificada para que situações como essas apareçam antes do processo
circular, gerando possibilidade para pensar e encaminhar conjuntamente as
questões novas que, porventura, apareçam e possam ensejar a quebra do sigilo.
Importante lembrarmos que cada caso é um caso e na Justiça
Restaurativa a lógica caminha em outra direção [outro paradigma], no sentido de
atender as necessidades dos envolvidos e não com um viés punitivista, cuja
estrutura já vivenciamos na justiça retributiva.
Destacamos, contudo, alguns distanciamentos/tensionamentos em
relação à Justiça Restaurativa e o Código de Ética da Psicologia. O primeiro que
observamos tem relação com o art. 1º, letra c, do Código de Ética, que diz que a
psicóloga deve se utilizar de “[...] princípios, conhecimentos e técnicas
reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na
legislação profissional”. O procedimento restaurativo tem outra origem e inscrição
social, mas esta situação pode ser analisada de uma forma ampla, já que psicólogos
que atuam em instituições do sistema de garantia de direitos também se valem de
diferentes saberes (da sociologia, do serviço social, de práticas integrativas, etc).
Outro tensionamento foi a questão de acumular papéis de facilitador e de
perito no judiciário, por exemplo, quando se tratar de uma Comarca menor. Há um
tensionamento entre essas duas funções? Houve relatos de técnicos que não atuam
como facilitadores em situações nas quais atuam como peritos. Neste sentido,
destaca-se ainda o seguinte artigo do Código de Ética:

Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:


k) Ser perito, avaliador ou parecerista em situações nas quais seus
vínculos pessoais ou profissionais, atuais ou anteriores, possam
afetar a qualidade do trabalho a ser realizado ou a fidelidade aos
resultados da avaliação.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Por fim, pontuamos elementos sobre como lidar com essa questão da
dupla filiação/inscrição profissional; o quanto deixamos de ser psicólogas quando
estamos sendo facilitadoras.

3 - ATUAÇÃO DAS (OS) FACILITADORAS (ES) NAS PRÁTICAS


RESTAURATIVAS A PARTIR DAS DIMENSÕES DA JUSTIÇA
RESTAURATIVA: RELACIONAL, INSTITUCIONAL E SOCIAL

Considerando que Justiça Restaurativa trata de “um conjunto ordenado e


sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à
conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de
conflitos e violência” (Resolução Nº 225/2016 do CNJ, art. 1º, item II), propomos
neste item abordar o papel do facilitador na prática restaurativa, seja a Conferência
Vítima-Ofensor, as Conferências Familiares ou os Círculos de Construção de Paz, e
relacioná-la com as dimensões da Justiça Restaurativa, quais sejam, a relacional,
institucional e social.
Para que qualquer pessoa possa ser um facilitador de práticas
restaurativas é necessário passar por formação teórico-prática, tal como prevê a
Resolução 225/2016 do CNJ em seu artigo 1º, a saber:

(...) as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores


restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e
consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa,
podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou
indicado por entidades parceiras.

O exercício da prática como facilitadoras (es) exige formação especifica


e deve ser um ato volitivo, como toda e qualquer participação nos procedimentos
restaurativos. Ainda que não conste dentro das atribuições específicas dos cargos
técnicos, avaliamos que precisam ser consideradas como atividades afins desses
serventuários. Nesse sentido, segundo a Resolução 225, art. 4º, I, cabe ao CNJ
“assegurar que a atuação dos servidores, inclusive indicados por instituições
parceiras na JR seja não compulsória e devidamente reconhecida para fins de
cômputo da carga horária (...)” (SVICERO, Andreia; MOURA, Ana. 2019, p. 2).
245
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ao longo dos debates, ressaltamos as situações em que ser facilitadora


(facilitador) e também atuar como perita judiciária, especialmente nas comarcas
menores ou em equipes técnicas reduzidas, pode gerar desconforto para as partes e
também para a profissional/facilitadora (facilitador). Trata-se de um ponto que
merece nosso aprofundamento junto às (aos) técnicas (os) judiciárias (os). Somado
a isso é válido recordarmos que o acúmulo de trabalho das equipes técnicas, as
cobranças por produtividade e os escassos investimentos em recursos humanos e
físicos têm levado muitas (os) técnicas (os) ao adoecimento.
As (os) assistentes sociais e as (os) psicólogas (os) propositivas (os) e
críticas (os) estão o tempo todo buscando romper com a alienação do cotidiano, a
fim de evitar que sejam engolidas (os) pelas estruturas determinantes da prática
profissional e, por isso, pensar e agir a partir da lente restaurativa pode ser uma
possibilidade para a (o) profissional. Contudo, se deixarmos a Justiça Restaurativa
ser mais um programa dentro do Judiciário em que as equipes técnicas se
sobrecarregam para atender as determinações de estudos psicossociais e também
atender os processos a partir da JR, podemos cair no adoecimento profissional e,
principalmente, atuarmos na mesma lógica da Justiça Retributiva. Conforme afirma
Elizabeth Elliott (2018, p. 117), “a JR como mero programa é geralmente limitada
pela necessidade de fechar o caso, um imperativo do Sistema formal”.

3.1 - A ATUAÇÃO DO FACILITADOR E O ENFOQUE RELACIONAL,


INSTITUCIONAL E SOCIAL DO CONFLITO

Conforme já destacamos neste artigo a prática restaurativa não se


resume a aspectos relacionais dos conflitos, sendo primoroso que haja a
compreensão alargada dos conflitos humanos e, por isso, convocamo-nos a olhar
para os eixos institucional e social. É válida a contribuição de John Paul Lederach
que, na mesma lógica de Howard Zehr, afirma que para transformar o conflito é
preciso olhar, mas também enxergar e, para isso, ele sugere um conjunto de lentes:

Em primeiro lugar, precisamos de uma lente para ver a situação


imediata. Em segundo, de uma que veja além dos problemas
prementes e que leve nosso olhar na direção dos padrões mais
profundos de relacionamento, inclusive o contexto do qual o conflito

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

se expressa. Em terceiro, é preciso uma estrutura conceitual que


reúna estas perspectivas, uma estrutura que nos permita ligar os
problemas imediatos com os padrões de relacionamento
subjacentes. (LEDERACH, 2012, p. 23).

A atuação do facilitador, tal como sugerem Egberto Penido e Mônica


Mumme (2014), deve abranger três dimensões, relacional, institucional e social,
associando-as respectivamente às questões da aprendizagem e formação
específicas, da mudança institucional e do fortalecimento e criação das redes de
apoio.
Em relação à dimensão relacional, os autores acima citados evidenciam
o imperativo de que os facilitadores sejam treinados em procedimentos
restaurativos, para a aplicabilidade da prática restaurativa em espaços diversos.
Esta dimensão contempla as necessidades dos indivíduos, quer seja na figura do
receptor do ato (vítima), quer seja na figura do autor do ato (ofensor), privilegiando
as pessoas envolvidas diretamente na situação de conflito e, também as
indiretamente envolvidas, para que tenham voz e vez nos encaminhamentos da
resolução da questão.
Nesse sentido, compreendemos ser necessário que os facilitadores
passem por formações teóricas e práticas para que possam se conhecer melhor,
conectar-se com seus sentimentos e necessidades e, assim, facilitar círculos,
favorecendo espaços de solução criativa e coletiva e que atendam as necessidades
de todos os envolvidos.
Por esse motivo, a dimensão relacional está ligada, a nosso ver, ao eixo
da formação e da aprendizagem, uma vez que a (o) facilitadora (facilitador)
aprenderia técnicas e métodos a fim de conduzir o procedimento restaurativo em
variados contextos com o intuito de alcançar tanto a restauração das relações
quanto à prevenção dos conflitos.
Como boa parte das relações se desenvolvem por meio de e em
instituições, é inevitável abordarmos a dimensão institucional, regida por
funcionamentos hierarquizados, burocratizados e normatizados localizados em um
espaço e tempo próprios, dotada de objeto e objetivos específicos, bem como
estratégias (CERTEAU, 2014).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de


forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito
de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma
instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar
suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser base de onde
se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos e
ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em
torno da cidade, o objetivo e os objetos de pesquisa etc.) (ibidem, p.
93)

Essas estratégias de poder e saber sobre os objetos e sujeitos


empregadas nas e pelas instituições reproduzem a lógica das exclusões e
desigualdades, mantendo assim o sistema social.
Nesse sentido, acreditamos que a adesão dos profissionais à Justiça
Restaurativa pode originar a criação de táticas e processos revitalizantes nas
instituições, capazes de inaugurar a novidade nos ambientes em que trabalham.
Desta forma, as situações de violência e conflitos institucionais, bem como as
estratégias da instituição de produção de desigualdades, podem ser impulsionadas a
um novo olhar e a outro modo de proceder e enxergar as questões do cotidiano.
Baseados nos fundamentos e princípios da JR, os facilitadores teriam o
desafio de serem agentes de transformação das instituições, uma vez que atuariam
no sentido de questionar as estratégias institucionais, a qual todos estamos
submetidos, chamando para a responsabilização e coparticipação de todos os atores
sociais, com vistas à promoção de mudanças.
Por outro lado, a dimensão institucional está articulada pelo terceiro eixo,
o social, no qual criar e fortalecer as redes de apoio é atitude fundamental a fim de
organizar fluxos para os atendimentos que ocorram nos procedimentos
restaurativos. Desta forma, uma rede de garantia de direitos bem articulada,
operante e eficaz viabilizaria os acordos e encaminhamentos realizados nos círculos.
Mais que isso, o eixo social é fundamental e se articula inteiramente tanto
com a perspectiva dos códigos de ética como dos princípios da JR, uma vez que
será campo que formará e informará a visão sobre os conflitos relacionais e as
estratégias de manutenção de poder institucionais, admitindo que ambos possam
ser produzidos e constituídos pela dimensão social, isto é, estarem imbricados uns
com os outros.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Portanto, a terceira dimensão – social – faz referência à criação e


fortalecimento de uma “rede de apoio”, propiciando que as necessidades apontadas
nos processos restaurativos tenham a possibilidade de atendimento e
acompanhamento.
Salientamos o artigo 14º, inciso V, da Resolução 225/16 do CNJ a qual o
facilitador é alguém imbuído a “considerar os fatores institucionais e os sociais que
contribuíram para o surgimento do fato que gerou danos, indicando a necessidade
de eliminá-los ou diminuí-los”.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4 - CONCLUSÃO

Assim, partimos nesse artigo da apresentação dos estudos desenvolvidos


nos últimos quatro anos pelo grupo de estudos de Justiça Restaurativa no sentido de
tornar mais nítido o percurso que nos levou a formação das perguntas e objetivos
que nortearam o trabalho deste ano, a saber: a aproximação entre a justiça
restaurativa e participação das equipes técnicas do judiciário nas práticas
restaurativas.
Foi desta forma que realizamos esforços no sentido de tornar
compreensível ao leitor as bases da Justiça Restaurativa, constituída por princípios e
práticas, trazendo à tona a relação entre os seus princípios éticos, filosóficos e
políticos norteadores, a relação e a aproximação com os códigos de ética das
profissões do serviço social e da psicologia.
Observamos assim que há proximidades entre os princípios éticos,
filosóficos e políticos tanto do serviço social como da psicologia em relação aos
princípios da Justiça Restaurativa ao levar em conta que todos estão apoiados no
respeito e na garantia dos direitos humanos. Podemos dizer assim que por vezes, os
profissionais daquelas áreas quando atuam diretamente em práticas restaurativas,
utilizam apenas de estratégias metodológicas e técnicas outras que as próprias da
sua área de formação.
Além disso, acreditamos que os princípios éticos de ambas as profissões
partem do pressuposto do olhar sobre os conflitos humanos a partir da implicação
mútua entre as três esferas - relacional, institucional e social -, complexificando
assim a análise e compreensão sobre os fenômenos individuais ou relacionais.
Notamos também o quanto o sigilo está presente nos códigos de ética
profissional e nos princípios norteadores da JR, muito embora tenhamos trazido a
preocupação com situações de violações de direito que pressupõe serem manejadas
ao longo dos pré-círculos.
Nesse sentido, não foram observadas impossibilidades ou conflitos éticos
ou técnicos entre a atuação como facilitador no âmbito da Justiça Restaurativa e o
trabalho como psicólogas ou assistentes sociais.
Vale lembrarmos que na facilitação de processos circulares, o profissional
deve estar presente como facilitador e não no exercício da atividade como psicólogo
ou assistente social, mesmo que consideremos que a formação profissional pode
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

auxiliar no exercício da função de facilitador nos procedimentos restaurativos. Assim,


entendemos que quando o profissional está na condição de facilitador o seu papel
será de “(...) permitir que a justiça aconteça, contemplando a dimensão do humano.”
(TERRA & RODRIGUES, 2012, p. 94)
Entendemos também que às equipes técnicas do sistema judiciário
podem colaborar com outras funções associadas às práticas restaurativas, como a
participação em reuniões e discussões conjuntas de conflitos atendidos nesses
moldes, porém, não necessariamente com a participação direta na facilitação dos
procedimentos restaurativos.

Do setor técnico judiciário nos espaços de justiça restaurativa para


garantir suporte e supervisão aos facilitadores. Todavia, como
decorrência lógica, tem-se que, para que os profissionais do setor
técnico judiciário desenvolvam tal apoio e supervisão de forma
correta, eles próprios deverão ostentar capacitação como
facilitadores e ter exercido efetivamente tal atividade, para que a
experiência acumulada os permita prestar auxílio e orientação de
forma adequada. (SALMASO, M. Et tal, 2019, pág. 30).

Além disso, podemos entender que a equipe técnica do judiciário pode ter
função de sugerir a partir de seu laudo, o encaminhamento do caso à Justiça
Restaurativa.
Portanto, entendemos assim que é a partir de uma visão interdisciplinar
entre os saberes destas áreas que poderemos mediar o acesso dos cidadãos aos
direitos sociais que lhes são assegurados na Carta Magna e nas leis
infraconstitucionais, uma vez que todo conhecimento deve ser dirigido em prol da
defesa dos direitos humanos e respeito às diferenças.

251
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.


Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa

252
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

Curso de Iniciação Funcional dos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários. Aula


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SÃO PAULO (Estado). Provimento nº 35, de 2014. Dispõe sobre a implementação da
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CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE


SÃO PAULO (Estado). Provimento nº 50/89. Dispõe sobre as Normas de Serviço da
Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. Disponível em: <
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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255
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“DISCUTIR O TEMA RAÇA AINDA É TABU E ASSUSTA”,


MAS NÃO PODEMOS ABRIR MÃO, JÁ QUE NOSSOS
ESTUDOS SOCIAIS DEVEM TRAZER OS SUJEITOS EM
SUAS DIMENSÕES DE CLASSE, GÊNERO E RAÇA!

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“SERVIÇO SOCIAL NAS VARAS DE FAMÍLIA E
SUCESSÕES: PARTICULARIDADES E IDENTIDADE
PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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COORDENAÇÃO
Glaucia Cristina de Melo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cordeirópolis
Rita de Cássia Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – Fórum Lapa - São
Paulo

AUTORES
Adeildo Vila Nova da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santos
Ana Beatriz Benetti Salesse dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Ana Carolina dos Santos Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Guararema
Angela Paes de Santana – Assistente Social Judiciário – Comarca de Valinhos
Bianca da Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jabaquara
Clenira Maria Marega Amado – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itu
Daiane da Silva Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Bernardo
do Campo
Diná da Silva Branchini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Poá
Dulce Alves Taveira Koller – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi Cruzes
Eloisa Maria Ribeiro de Araujo Zeitlin – Assistente Social Judiciário – Ve Violência
Doméstica Fórum Barra Funda
Glaucia Cristina de Melo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cordeirópolis
Greicieli Ramos Almeida Rufino – Assistente Social Judiciário – Fórum Santo Amaro
Josiane Dacome – Assistente Social Judiciário – Comarca de Hortolândia
Monica Giacometti Secco – Assistente Social Judiciário – Comarca de Hortolândia
Regina Celia Andreazzi – Assistente Social Judiciário – Fórum Penha
Rita de Cássia Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – Fórum Lapa - São
Paulo
Rogerio Varjao Teixeira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Caetano
Sul
Solange Rolo Silveira – Assistente Social Judiciário – Fórum Santo Amaro
Sylvia Coutinho da Gama Pereira Correia – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Jandira

257
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada.


(Elza Soares, Planeta Fome,
“Não tá mais de graça”, letra Rafael Mike)

INTRODUÇÃO

Numa sociedade racista, não


basta não ser racista.
É necessário ser antirracista
(Ângela Davis).

Como assistentes sociais sabemos dos dados que indicam que a


desigualdade social, o não acesso a direitos fundamentais e a violência atingem de
forma avassaladora as pessoas da raça negra35. Assumimos a pauta de luta contra
qualquer forma de preconceito36 e, especialmente, frente aos dados estatísticos, a
defesa antirracista. Enfim, são temas que a princípio sugerem já termos
conhecimento e clareza a respeito. Mas será mesmo?
O diálogo entre as(os) participantes do grupo de estudos – a seguir
transcrito - explicita o quanto foi desafiador assumir a escolha pelo estudo das
relações raciais. Reiteradas vezes nos questionamos: Em que esse estudo pode
contribuir para as perícias sociais nas demandas da Justiça de Família? Que
subsídios essa discussão pode trazer para as disputas de guarda entre pai e mãe,
maior demanda que recebemos para realizar o estudo/perícia social?

- Não consigo trazer [esse tema] para o meu cotidiano profissional.


Gosto do assunto numa perspectiva de ativismo social. Para dentro
do judiciário? Não consegui compreender. A questão gênero é fácil
adentrar no dia a dia, pois, muitas vezes, quando se separam, as
mulheres estão fora do mercado de trabalho há anos, não tem com
quem deixar os filhos pequenos e não contam com apoio
socioeconômico. Mas não vislumbro a mediação da questão racial.

35É possível acessar indicadores de acesso aos direitos da população negra em São Paulo no site
disponível em < http://www.saopaulodiverso.org.br/dados-sobre-sao-paulo/>

36O Conselho Federal de Serviço Social – CFESS lançou, em 2016, uma série de cadernos temáticos
sobre preconceito. São textos críticos, porém didáticos que dialogam com as expressões da questão
social presentes no cotidiano profissional. Entre vários: racismo, machismo, transfobia, discriminação
contra a pessoa com deficiência, etc.
258
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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- A indicação da cor nos dá dados para reflexões e críticas. Quando


a maioria das pessoas que eu atendo em algum serviço ou política
pública é negra, é necessário perguntar por quê. Isso nos diz sobre o
racismo institucional, entre outras formas de opressão.
- Racismo institucional numa disputa de guarda? Esse link eu não
consigo fazer. (...) é difícil compreender dados para reflexão e crítica
no processo judicial.
- Entendo a sua angústia, pois ainda tenho muitas dúvidas com
relação à questão da raça. No momento, eu consigo apontar nos
laudos se, na entrevista, a pessoa trás essa demanda ao relatar sua
história. Não consigo falar da questão estrutural sem um gatilho.
- Podemos pensar em outra temática, como o trabalho dos
assistentes técnicos em Varas de Família, se a questão raça e classe
estiver complicada para a maioria.
- O que me parece é que inserir o tema raça dentro de uma
perspectiva de transversalidade, ainda é um tabu e assusta.
Acho que, embora pareça uma questão de convivência naturalizada,
é pouco estudada e aprofundada como realidade social que, como
gênero e classe, devem fazer parte de nosso repertório de
conhecimento e prática profissional. Eu acho que se a questão racial
se mostra complicada e/ou difícil de ser pensada no cotidiano de
trabalho na Vara de Família, esse é um indicador importante de que
é justamente essa temática que deva ser trabalhada pelo grupo. E
não o contrário. (INTEGRANTES DO GE SS NAS VF EM DIÁLOGO
POR WHATSAPP, MAR 2019, grifo nosso).

Apesar do receio inicial, prosseguimos. O ponto de partida foi a discussão


do livro de Ângela Davis (Mulheres, Raça e Classe), realizando outras leituras
fundamentais para uma aproximação mais consistente do tema. Também assistimos
e discutimos vídeos. Tivemos, ainda, como importante contribuição, a vinda de Kajali
Lima Vitorio (assistente social do judiciário paulista, pesquisadora e professora) para
a discussão com o grupo sobre a utilização do quesito raça/cor. A composição do
grupo por pessoas negras que já acumulam militância e estudo sobre as relações
raciais (Adeildo, Diná e Rogério), certamente foi favorecedora para as ricas e
maduras discussões realizadas.
Nessa caminhada, a maior parte das(os) integrantes deste grupo se
descobriu desenvolvendo o olhar racializado que, até então, estava velado como
decorrência de nossa inserção em uma sociedade que fabricou o mito da
democracia racial37. Nos enxergamos a partir de nossa própria inserção racial e

37
IANNI, O. O Preconceito Racial no Brasil Entrevista Octavio Ianni In: Estudos Avançados.
vol.18 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2004. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100002>. Acesso
em 02 de Maio de 2019. Este texto relata uma entrevista com Ianni que explicita a construção
259
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

reconhecemos qual é o “lugar de fala”38, de cada um(a). Com isso, muitas(os) de


nós sentiram-se provocadas(os) para, de fato, abraçar a luta antirracista, em
alinhamento com nossos princípios éticos e com a campanha- Assistentes Sociais
no Combate ao Racismo, lançada em 2018 pelo Conselho Federal de Serviço Social
- CFESS39.
Para este texto40 escolhemos relatar nosso processo de apreensão de
aspectos centrais da discussão e as dificuldades em praticar a coleta do quesito
raça/cor nos estudos sociais. Não aprofundaremos a discussão teórica sobre
aspectos conceituais centrais dessa discussão. Nas referências indicamos textos,
leituras e vídeos que podem contribuir para que outras(os) profissionais façam esse
desafiante e rico mergulho.

1 - O PREDOMÍNIO NÃO É DA CLASSE?

Em 2013, em artigo decorrente da dissertação de mestrado 41, Márcia


Campos Eurico fala sobre a timidez histórica do Serviço Social no debate sobre
racismo.
Na sua origem, marcada pelo apostolado católico, a profissão tomava a
questão social – então chamada situação social problema- pela esfera moral e
religiosa. No seu processo histórico de amadurecimento intelectual, sem
desconsiderar os ganhos teóricos e analíticos construídos pela profissão com a
incorporação de uma análise crítica orientada pela herança marxista, a autora
demarca que “apesar das crescentes reivindicações do movimento negro, em defesa
de uma ressignificação da questão racial no Brasil, a contribuição da profissão na
produção do conhecimento acerca dessa temática permanece muito tímida.”
(EURICO, 2013, p. 293)

desse mito, do qual a publicação Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire é uma importante
expressão.
38 Djamila Ribeiro (2017).
39 Disponível www.servicosocialcontraracismo.com.br. Acessado em 11.12.2019.
40 O texto final foi elaborado por Rita, com contribuição da Diná, Gláucia e Greice. A participação
das(os) demais integrantes se deu pela leitura e discussão, assim como pela elaboração das atas dos
encontros.
41 Artigo- A percepção do assistente social acerca do racismo institucional. Editora Cortez, Serv. Soc.

Soc., São Paulo, n. 114, p. 290-310 abr./jun. 2013.


Dissertação de mestrado- Questão racial e Serviço Social: uma reflexão sobre o racismo institucional
e o trabalho do assistente social, Serviço Social da PUCSP, 2011.
260
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em 2018, no artigo decorrente de sua tese de doutorado42, Eurico critica a


escolha do material alusivo aos 82 anos de existência do Serviço Social no país (em
2019) -“Nossa escolha é a resistência: somos classe trabalhadora!”, lembrando a
necessidade de se considerar a centralidade da classe, sem descartar, porém, a
mediação com o pertencimento étnico racial e de gênero.

Quero reafirmar que nosso compromisso com a classe trabalhadora


precisa considerar necessariamente suas pautas universais, mas
também apreender suas particularidades. Entre o universal e o
particular se põe um campo de disputas onde certamente o
pertencimento étnico-racial, identidade de gênero, a orientação
sexual, o lugar ocupado na divisão social e técnica do trabalho
revelam a diversidade humana, mas também acirram a desigualdade
no interior da própria classe. (EURICO, 2018, p.517).

Eurico(2018) destaca a importância das assistentes sociais negras


militantes que provocaram a profissão a ampliar o debate étnico-racial no espaço
acadêmico, ponderando, porém, que tal debate ainda carece de um registro
rigoroso.

Ora, se o Serviço Social é parte e expressão da sociedade, a


intervenção protagonizada por várias mulheres negras, militantes,
que ingressaram na profissão tem grande impacto no sentido de
ampliar o debate e exigir respostas institucionais acerca do racismo.
A partir desta década o coletivo profissional será provocado a
repensar suas referências teóricas e ampliar o debate para
apreender os desdobramentos do racismo institucional no trabalho
profissional. Destaco a importância dessas mulheres na inserção do
debate étnico-racial nas deliberações da categoria profissional a
partir das(os) profissionais que integram a gestão do Conselho
Federal de Serviço Social no período de 1990 a 1993. Pela primeira
vez na história da profissão, a questão da não discriminação aparece
como um dos princípios fundamentais do Código de Ética
Profissional do(a) Assistente Social, aprovado em 1993. Deve-se
destacar que a trajetória das mulheres negras, assistentes sociais,
que travaram batalhas importantíssimas e abriram caminho para o
debate étnico-racial no espaço acadêmico, a partir da década de
1980, ainda carecem de um registro rigoroso, que nos permita

42Artigo- A luta contra as explorações/opressões, o debate étnico-racial e o trabalho do assistente


social. Editora Cortez, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 515-529, set./dez. 2018
Tese- Preta, preta, pretinha: o racismo institucional no cotidiano de crianças e adolescentes
negros(as) acolhidos(as). Tese de doutorado, Serviço Social da PUC-SP, 2018.

261
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

compreender melhor o debate no interior da profissão naquele


período. (Ibid, p.517-518).

De fato, ao longo dos anos, a ênfase dos debates e pesquisas no Serviço


Social veio se dando na contradição posta pela relação capital-trabalho no marco do
sistema capitalista. Nos últimos, porém, temos visto a discussão sobre raça43 ganhar
espaço como ocorreu nos eventos deste ano promovidos pelo coletivo
CFESS/CRESS: III Seminário do Assistente Social no Sócio Jurídico (Rio de Janeiro,
2019) e 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais- CBASS (Brasília, 2019).
A necessidade da articulação entre gênero, classe e raça há décadas já
vem sendo discutida por Ângela Davis44, filósofa marxista. No livro “Mulheres, Raça
e Classe” a autora registra detidamente as lutas feministas pelo voto do fim do
século 19 e início do 20, trazendo a história de personalidades antirracistas negras e
brancas. Ela articula questões de gênero, classe social e raça, explicitando como
cada uma dessas questões adquire dominância diferenciada em distintos momentos
da luta política.
Djamila Ribeiro45, no prefácio desse livro, aponta que mesmo sendo
marxista, Davis é uma grande crítica da esquerda ortodoxa que defende a primazia
da questão de classe sobre as outras opressões. Para ela é fundamental refletir de
que maneira as opressões se combinam e entrecruzam:

As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão


marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro
que classe é importante. É preciso compreender que classe

43
“O conceito de raça que é, muitas vezes, utilizado em uma conotação biologicista,
ultrapassada, conservadora e sem fundamentação científica, deve ser compreendido hoje como
uma construção sócio-histórica, despido de qualquer elaboração com bases biológicas. Raça,
entendida nesta perspectiva, é uma categoria complexa, multifacetada e indispensável ao debate
sobre discriminação racial e racismo. E a sua apropriação, sob a perspectiva da totalidade social,
se faz premente e necessária no âmbito dos estudos e reflexões acerca do racismo nas
sociedades contemporâneas”. (CFESS, 2016, p.7).
44 Além do livro Mulheres, Raça e Classe, Ângela Davis publicou outras obras como: Mulheres,

Cultura e Política; A liberdade é uma luta constante; Estarão As Prisões Obsoletas? Ângela
Davis: Uma autobiografia.
45 Utilizamos como referência para nossa discussão o vídeo de Djamila Ribeiro “Não dá para

falar de gênero sem discutir raça. (Casa TPM). Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=Ki2SC6iDa08.

262
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero


informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da
mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A
gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre
raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas
categorias existem relações que são mútuas e outras que são
cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre
as outras. DAVIS (apud RIBEIRO, 2016).

Em síntese, a defesa de direitos do Serviço Social se dá na perspectiva


anticapitalista, antirracista e não heteropatriarcal. Isso exige de nós, reiterados
movimentos de suspensão do cotidiano institucional cujo modo de funcionamento
reproduz práticas muitas vezes contrárias a essas defesas.
Uma forma de suspensão do cotidiano certamente se dá por meio do
estudo e do debate em grupo que possibilita sua retomada com novas apreensões.
Foi importante perceber que ao estudarmos as relações raciais 46, acabamos
também compreendendo mais sobre as relações de classe e de gênero. E ainda,
longe de ficar num estudo tão somente militante, problematizamos as contribuições
diretas para o cotidiano profissional.

2. QUAL A CONTRIBUIÇÃO DO TEMA PARA O COTIDIANO DO


TRABALHO DA(O) ASSISTENTE SOCIAL NAS DEMANDAS DA
JUSTIÇA DE FAMÍLIA?

Ao pensarmos na contribuição direta desse estudo para o trabalho da(o)


assistente social nas demandas da justiça de família, nossa tendência imediata foi a
de pensar sobre as expressões do racismo interpessoal entre as pessoas envolvidas
no processo judicial, o que se mostrou um viés limitante para esse debate.
A roda de conversa do grupo com Kajali Lima Vitorio foi determinante para
ampliarmos nossa perspectiva. Para além das relações raciais estabelecidas entre

46
O termo relações raciais ou étnico raciais tem sido utilizado por várias autoras e autores por
abranger a complexidade presente na desigualdade de acesso a bens e direitos entre
brancas(os) e negros(as).
263
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

as pessoas envolvidas na disputa judicial, há que se pensar no racismo


institucional47 que o (não) acesso à justiça revela.
Kajali observa que as demandas nas Varas de Família, diferentemente
das demandas das Varas da Infância e Juventude, em geral são voluntárias e com
representação por advogados. Ela questiona: Quais seriam as particularidades
raciais dos usuários da Justiça de Família? Será que temos atentado para isso?
Pondera que se analisarmos as medidas legais articuladas a
determinadas expressões da questão social podemos identificar uma ênfase maior
ou menor da população branca ou negra. Por exemplo, as demandas de divórcio
tendem a ser da população branca, que em geral é quem tem a oportunidade de
oficializar a união, seja por meio do casamento ou da união estável. Há os processos
de pedidos de guarda pleiteada por avós, devido à dependência química ou
aprisionamento dos pais das crianças, que pode ter maior incidência da população
negra.
Kajali reflete que até mesmo a construção do relacionamento conjugal
apresenta diferenças em suas trajetórias afetivas, por exemplo: “fui morar com ele
no terreno da minha sogra e construímos”- isso para a população preta/parda; já na
população branca é mais comum “comprei um apartamento, um veículo,
formalizamos a união”. Por isso podemos pensar sobre a questão do casamento e
separação incide na população branca, pois há bens a serem divididos.
Exemplifica, sobre a incidência maior de união devido à gravidez na
adolescência para mulheres pretas e pardas, maior número de filhos e maior índice
de separações e novos relacionamentos para a população parda. Já a população
branca apresentaria menor número de filhos, mantendo-se no casamento.

47
“Uma das expressões do racismo, também conhecido como discriminação indireta, é o
institucional. O racismo institucional está presente em diversos espaços públicos e privados.
Está nas relações de poder instituído, expresso através de atitudes discriminatórias e de violação
de direitos. Por estar, muitas vezes, naturalizado nas práticas cotidianas institucionais, naturaliza
comportamentos e ideias preconceituosas, contribuindo, fortemente, para a geração e/ou
manutenção das desigualdades étnico-raciais. Para Eurico (2013), o racismo institucional possui
duas dimensões interdependentes e correlacionadas: a da político-programática e a das relações
interpessoais. Em relação a primeira, ela compreende as ações que impedem a formulação,
implementação e avaliação de políticas públicas no combate ao racismo, bem como a
visibilidade do racismo nas práticas cotidianas e nas rotinas administrativas. E a segunda
compreende as relações estabelecidas entre gestores/as e trabalhadores/as, entre estes e
outros trabalhadores/as e usuários/as, sempre pautadas em atitudes discriminatórias”. (CFESS,
2016, p.11).
264
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As ações também apresentam mudanças, observando que é mais comum


na população parda a dissolução com o reconhecimento de união no mesmo
momento. Aponta que a alienação parental também tem um recorte de classe e de
raça definido, embora essa ideologia esteja penetrando nas classes populares.
A pesquisadora destaca que o lugar de origem e os processos migratórios
também representam importante impacto nas relações raciais, portanto a
combinação raça, cultura e território é fundamental para os nossos estudos.
Diante disso, compreendemos a importância de conhecer a
particularidade racial das demandas da justiça de família que certamente contribuirá
para o desvelamento de mecanismos institucionalizados que reproduzem o racismo,
para além dos que estão dados no imediato. Para conhecermos essa dimensão da
particularidade, se faz necessária a realização de levantamento do registro do
quesito raça/cor, a ser coletado durante a realização dos estudos e perícias sociais.
Essa discussão levou-nos ao questionamento sobre o contexto que levou
à exclusão do quesito raça/cor da certidão de nascimento. Pesquisando a esse
respeito apreendemos que a partir da Constituição Federal de 1988, que
estabeleceu a igualdade e a não discriminação de qualquer natureza, grande parte
dos cartórios de registros públicos, deixou de registrar tal informação no assento de
nascimento, embora continue a informar o dado (com base na declaração de
nascido vivo) para fins estatísticos.

Assim, desde 88, não mais se anota a cor dos recém-nascidos nos
assentos de nascimento. "Os registros eram feitos apenas com as
informações previstas no artigo 54 da Lei 6.015/73 e com as
alterações trazidas pela Lei nº 6.216/75. Desde a entrada em vigor
da Lei de Registros Públicos, não há previsão de anotação de cor e
com a Constituição ficou vetada a discriminação por cor", explicou
Velloso.
Disponível em
http://www.arpensp.org.br/principal/index.cfm?url=noticia_mostrar.cf
m&id=4295

O CFESS (2016), no Caderno 3 da Série Assistente Social no Combate


ao Preconceito- Racismo, de autoria de Roseli Rocha, explicita a importância de
constar no registro profissional dos serviços públicos, o quesito raça/cor que deve

265
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ser obtido a partir da autodeclaração da pessoa entrevistada, com as categorias


utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): branca, preta,
parda, amarela (oriental) e indígena.

(...) com vistas à superação desta realidade de violações, o quesito


“cor” deve ser apreendido e utilizado como importante categoria de
análise das relações étnico-raciais no país e como informação
relevante e indispensável no processo de garantia de direitos e de
geração de políticas para equidade. (ibid, 2016, p.10).

Inserir o quesito raça/cor em nosso estudo social parece algo simples, um


dado a mais a se registrar entre os tantos que coletamos, tais como, idade, estado
civil, naturalidade, grau de escolaridade, etc. Será?

3 - ENTENDENDO NOSSA DIFICULDADE EM COLETAR O QUESITO


RAÇA/COR NOS ESTUDOS SOCIAIS

Ainda hoje, há, por parte dos/as profissionais e também da


população usuária, certo constrangimento e/ou resistência em
perguntar ou responder sobre o quesito “cor”. Vale ressaltar que a
cor das pessoas sempre funcionou, em sociedades com traços
fortemente racistas, como um elemento de negação de acesso a
direitos, tais como inserção no mercado de trabalho, ascensão
profissional, melhor remuneração, bom atendimento nos serviços de
saúde e educação. (ibid, 2016, p.10)

Observamos que mesmo após a caminhada nos estudos e debates, a


maioria do grupo ainda não estava efetivando a coleta do quesito raça/cor nos
estudos sociais. Realizamos então um formulário – respondido por dezoito
assistentes sociais do grupo - que permitiu o registro das dificuldades e trouxe
alguns indicativos daqueles que o faziam.
Cinco integrantes que realizam a coleta do quesito indicaram como o
fazem e quais as possíveis dificuldades.

266
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Diná, desde 2015, já vem fazendo uso de um formulário que pede para a
própria pessoa preencher, momentos antes da entrevista. A partir desse instrumento
ela inicia a entrevista e realiza a conversa sobre a inserção racial.

Desde 2015, inclui no pré-atendimento um formulário a ser


preenchido pela pessoa a ser entrevistada, (uma das partes da
ação). No formulário está inserido o item raça/cor, entre outras
informações pessoais. Desta forma achei que ficaria mais natural
tratar do tema com a pessoa entrevistada. Assim, ela tem um tempo
sozinha para aproximação com seus dados pessoais, socioculturais,
como também é possível conhecer sua escrita – ou não; e levar a
reflexão sobre sua identidade étnico racial, enquanto um dado social.

Embora desde o relato dessa experiência, várias(os) integrantes tenham


buscado compreender sua operacionalização para também fazê-lo, foi possível
perceber que não se trata simplesmente da construção de um formulário. A
utilização desse instrumento depende de algo mais.

Comecei a usar em 2018 depois de algumas discussões no grupo de


estudo. Primeiramente, via como um dado a mais para talvez um dia
fazer um perfil dos atendidos, porém no meu estudo social esse dado
não aparece, por exemplo quando coloco uma espécie de
apresentação da pessoa no processo. Não faço uma análise sobre a
questão racial e o sujeito avaliado. Percebi que é uma análise
complexa e que ainda estou descobrindo, principalmente no espaço
do grupo de estudos.

Em primeiro lugar existe a necessidade de enfrentarmos o desconforto


que o tema traz e o receio de que tal registro seja compreendido como expressão de
preconceito. Doze pessoas do grupo, mesmo após sete meses de discussão e
estudos, afirmaram não incluir o quesito raça/cor no seu estudo social/perícia e no
relatório/laudo social. As justificativas giram em torno do receio em lidar com o tema
do racismo e a necessidade de se aprofundar mais nessa discussão.

Mesmo após as discussões do grupo percebo que tenho dificuldades


em incluir o quesito, desconforto em abordar o tema, caso não esteja
em pauta na lide.
267
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Temo que esse assunto cause constrangimento à pessoas negras


devido à cultura de preconceito racial existente em nossa sociedade.

Acredito que preciso aprofundar mais meus conhecimentos sobre a


questão, até para esclarecer as pessoas que atendo que, muitas
vezes, tem dificuldade de se identificar como pardo, preto ou negro.

Participando do GE e podendo estudar questões voltadas às


relações sociais estou agora me propondo, ainda que tardiamente, a
incluir tal quesito e entende que possui um valor para além do meu
registro/laudo.

É preciso também nos convencermos da importância desse dado para o


relatório social que vai ser inserido nos autos processuais. As falas indicam a
dificuldade de registrá-lo quando a questão racial não se torna um eixo de análise
profissional.

No momento, não utilizo porque acho que deveria trabalhar o dado


colhido na análise social e como estou tendo dificuldades para fazê-
lo não faço a pergunta sobre quesito raça/cor.

[não uso] Pela dificuldade de abordar e fazer a análise do assunto


dentro do relatório.

[não uso] Porque eu passei a considerar a relevância do tema


apenas recentemente e ainda tenho dificuldade em apontar as
implicações de raça/cor nos relatórios e laudos.

Nunca tinha utilizado o quesito nos meus estudos. Caracterizar a


pessoa (branca/parda/preta, amarela/indígena) nunca me pareceu
uma necessidade. O que sempre procurei fazer foi a discussão sobre
racismo e/ou preconceito quando tal aspecto emerge nos discursos e
se mostra um fator importante no estudo.

[não uso] Só abordo no relatório/laudo quando fica evidente que essa


questão afeta, diretamente, os conflitos existentes dentro do
processo.

Tive poucos casos na Vara de Família em que o quesito raça


interferia nas disputas de guarda (no meu entendimento). Mesmo
assim, na época, não percebi que o quesito raça poderia ser inserido
no estudo para contribuir na análise do caso.

268
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Depois do inicio de minha participação no G.E, introduzi uma ficha


cadastral onde consta este item, porém não o uso no corpo de
relatório.

Um(a) integrante do grupo, porém, foi clara(o) em sua posição de inserir a


informação independente de se realizar análise ou não, por se tratar de um item de
identificação da pessoa, como tantos outros que colhemos e não necessariamente
analisamos, como por exemplo: idade, estado civil, local de nascimento, grau de
instrução, que são perguntados com naturalidade.

Tenho colocado a partir da participação no Grupo de Estudos. Trata-


se de um item qualificador que, assim como os outros, nem sempre é
utilizado no parecer técnico.

Quem realizava ou passou a realizar o registro do quesito, pondera a


necessidade de maior diálogo quando os respondentes tem a cor da pele parda e
encontram dificuldade de se auto identificarem conforme os parâmetros do IBGE48.

A dificuldade às vezes aparece no caso de pessoas pardas, quanto a


sua auto identificação. Neste caso, sugiro a pesquisa de seus
antecedentes parentais, características físicas, etc.
Experimentei faze-lo em três estudos aleatórios e foi uma experiência
interessante, pois exige que falemos a respeito especialmente
quando a pessoa tem a cor da pele parda. No momento do relatório
me deu dúvidas se registraria ou não, mas fiz o primeiro relatório (a
mãe era parda e o pai branco) com a inserção do quesito e a
referência com base no Caderno do Cfess sobre racismo. Entretanto,
não fiz nenhuma análise por entender que não se aplicava ao caso.

48
“Em um país miscigenado como o que vivemos, formado por uma forte e rica diversidade
étnico-racial, pessoas com cores, culturas, sociabilidades e até línguas, muitas vezes diferentes,
podem gerar certa dificuldade ou resistência em relação ao registro do quesito cor nos
instrumentos de identificação e sistemas de informação. Entretanto, essa não é uma situação
nova na história do país. Desde o primeiro censo de população realizado no país em 1872, o
quesito cor estava presente, tendo quatro opções de resposta: “branco”, “preto”, “pardo” e
“caboclo”. Embora essas categorias de classificação de “cor” não sejam consenso e estejam
sempre em discussão pelos órgãos oficiais e censos demográficos, continuam sendo
necessárias para o registro de informação sobre a composição e perfil étnico-racial da
população, bem como para a formulação de politicas públicas, sobretudo das políticas voltadas
para enfrentamento das desigualdades étnico-raciais.” (CFESS, 2016, p.9).
269
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A identificação racial, segundo Kajali, passa pela dimensão do genótipo


(ancestralidade e parentesco) e do fenótipo (características físicas externas), mas no
Brasil ela é ainda muito pautada no fenótipo. Considerando a composição
multirracial brasileira essa é uma das primeiras dificuldades para se identificar
conforme as categorias do IBGE, especialmente para as pessoas não pretas e não
brancas. Para Kajali aqui está uma oportunidade sócio educativa do estudo social.
Vale lembrar que a saúde já utiliza o quesito desde a década de 1990 e
no Manual “Como e para que perguntar a cor raça etnia no Sistema Único de Saúde”
(2009) dá indicativos operativos:

Em geral, os usuários brancos e negros costumam ser irônicos ou


agressivos. Ao serem indagados, respondem: “você não está vendo
qual é a minha cor?”. Neste caso, é preciso explicar que somente a
própria pessoa pode saber exatamente qual é a sua cor, levando em
conta a sua origem e os seus ascendentes (pais, avós).
As pessoas de cor parda, muitas vezes, ficam em dúvida, não sabem
se autoclassificar e devolvem a pergunta ao profissional: “o que você
acha?”. Outras vezes, respondem o que está no registro de
nascimento. Nestas situações, a dúvida sobre qual das categorias
escolher, devido ao não reconhecimento da própria origem, poderá
ser solucionada com diálogo, onde o profissional explicará ao usuário
as diferentes possibilidades de miscigenação (CONSULTAR
CARTÃO DE CORES).
Afinal, perguntar a “cor ou raça/etnia” é Racismo? Não!

A problematização das particularidades da Justiça da Infância, mais


demarcada pela evidente presença da população negra, foi realizada em
contraponto com as da Justiça de Família.

Tenho observado a questão e na Vara de Família desta comarca a


raça/cor não varia e não demonstra ser uma questão que define as
relações estabelecidas no caso. Na Vara da Infância já se percebe
de forma diferente.
Os casos atendidos aqui, no meu ponto de vista e ate o momento,
não apontam demandas onde sejam discutidas ou evidenciado
conflito, diferenças, ou expressões das questões sociais que

270
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

permeiem a condição da raça ou cor do individuo, que possam ser a


causa ou uma das causas do litigio ou consequência do mesmo.
Trabalho em uma Comarca pequena, atendo as Varas da Infância e
Família, o que se percebe é uma pluralidade sutil na família, sendo
muito semelhantes nesta condição. A diferença é percebida no fato
de que a população negra está muito mais visível na Vara da
Infância, enquanto a branca e parda predominam a Vara de Família,
sendo também observada a diferença socioeconômica nestes
grupos. Fazendo um mea-culpa, até por já ter discutido sobre isso
com outros colegas, entendo que este levantamento se faz
necessário, pelo fato de com ele podermos identificar de forma mais
real o público atendido, o qual não sobrecarregaria nossa atuação,
mas sim ampliaria nosso entendimento sobre a realidade do grupo
familiar estudado, visto que apesar de aparentar ser simplista a
primeira vista, acaba por apontar desdobramentos e situações da
realidade familiar analisada que contribuem para melhor
compreensão do caso e assim apontamentos correlacionados.

Marcia Eurico (2018, p.526) ilumina a compreensão de que nossa


dificuldade em coletar o quesito raça/cor se dá justamente porque nessa atividade
nos colocamos frente à contradição entre a crença no mito da democracia racial
brasileira e a “turbulência do racismo real”:

A coleta do quesito raça/cor apresenta-se fetichizada no trabalho


profissional das(os) assistentes sociais, que, ao se depararem com a
pergunta, não sabem como encaminhar a questão. O
preenchimento desse dado requer uma análise acerca do véu
que separa a(o) profissional e a população atendida. Não fosse a
incidência do racismo entre nós, perguntar a cor seria
simplesmente classificar os sujeitos e a partir daí identificar a
maior ou menor capacidade de cobertura dos diversos grupos
étnico-raciais pelas políticas públicas. Em uma sociedade racista
ocorre exatamente o oposto, e a coleta do quesito raça/cor faz
emergir o mito da democracia racial e a turbulência provocada pelo
racismo real, persistente e arraigado, ofuscado pelo discurso da
igualdade. Chamo a atenção para isso porque têm sido recorrentes
estudos que analisam raça/cor somente quando as pesquisas se
referem à população negra, quando este deve ser um qualificador
universal, que permite, nas pesquisas com outros grupos
populacionais, apresentar a partir da raça/cor o lugar de maior ou
menor privilégio de cada grupo. (grifo nosso).

Considerar impertinente a coleta do quesito raça/cor não representaria


novamente uma estratégia, tal como utilizamos no início do grupo neste ano, de nos

271
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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protegermos do incômodo do ato do desvelamento do racismo presente em nossa


sociedade e em nós?

272
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CONCLUSÃO

A aproximação do tema “relações raciais” nos indicou que há muito que


aprofundarmos em estudos e vivências para nos despojarmos do ranço histórico
advindo da pretensa democracia racial brasileira que nos levou a naturalizar os
dados que revelam a barbárie e o genocídio do Estado contra a população negra.
Ao elegermos raça, não deixamos de lado o estudo das categorias classe
e gênero. As(os) autoras(es) lidas(os), reiteradamente, apontaram a dialética da
articulação entre essas categorias como eixo de opressão e exclusão social do
sistema capitalista.
Como imediatistas e utilitaristas que somos, partimos do receio que esse
estudo não traria contribuições diretas para o nosso fazer profissional. Passamos a
considerar que o primeiro indicativo dessa contribuição seria incorporar o quesito
raça/cor em nossos estudos sociais. Porém, essa não foi uma tarefa fácil.
Sabemos que a atribuição privilegiada da(o) assistente social na Justiça
de Família é a realização de estudos, perícias e seus registros por meio dos laudos,
relatórios e pareceres. Aliás, estamos no grupo de estudos para qualificar esse
produto de nossa ação profissional, demarcando as particularidades da profissão na
Justiça de Família que, de acordo com Gois e Oliveira (2019) se apresentam em sua
imediaticidade mascaradas pelos conflitos legais e emocionais dos pais que se
separaram e passam a disputar a guarda das(os) filhas(os).
Também sabemos que, segundo Fávero (2011), devemos compreender
os sujeitos desses estudos como indivíduos sociais que têm inserção de classe,
gênero e raça. E ainda, passamos a conhecer a recomendação do CFESS sobre a
importância da coleta do quesito raça/cor.
Entretanto, mesmo tendo avançado na compreensão das contradições
presentes no fenômeno do racismo, apresentamos ainda o receio de utilizar o
quesito raça/cor na elaboração dos estudos/perícias sociais. Fazer essa pergunta
ainda se mostra um desconforto para muitas(os) de nós. Em vários momentos do
grupo e também nas respostas do formulário, nos questionamos sobre a importância
de trazer esse dado sem que ele contribua para o deslinde da ação.
Mas o que queremos dizer com isso? O dado contribuiria somente quando
existisse expressão de racismo interpessoal entre os sujeitos do processo judicial ou
em relação à criança? Ou somente quando fossem da raça negra?
273
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ao inserirmos o indivíduo em suas relações com o mundo do trabalho,


com a educação formal, com a saúde e as demais políticas não haveria interferência
desse maior ou menor acesso, a partir da pertença racial e que seria importante
agregamos em nossa qualificação dos sujeitos envolvidos no processo judicial?
Partindo da constatação que nosso grupo de estudos (em 2019) se
constituiu por uma maioria de mulheres brancas, poderíamos nos questionar se não
estaríamos reproduzindo a naturalização da(o) branca(o) como a norma. E a ideia de
“que quem tem raça é a(o) outra(o)”, no caso a(o) negra(o). Portanto, mesmo que
hipoteticamente as ações da Justiça de Família possam ser constituídas em sua
maioria por pessoas brancas, ainda assim, há características raciais a serem
consideradas, como a da branquitude49 que expressa o lugar do privilégio e do maior
acesso aos direitos.
Ainda nos reportando ao estudo e relatório social, um aspecto importante
a ser considerado em nossa linguagem (falada e escrita) refere-se ao uso
naturalizado de palavras cuja origem expressa desqualificação das pessoas negras
e, portanto, revela racismo. Nas peças constantes dos autos processuais, incluindo
os relatórios sociais, é comum a utilização da palavra “denegrir”, a que devemos nos
atentar para não reproduzir.
Concluindo, certamente temos a contribuir para o desvelamento das
formas de o judiciário operar anonimamente a discriminação racial no acesso a
justiça e por isso precisamos continuar nossos estudos e discussões. Lembrarmos a
recomendação da Kajali - a quem agradecemos mais uma vez, por contribuir crítica
e afetivamente para a nossa construção do olhar racializado - nos conforta: “é
possível que somente no ano que vem vocês se sintam tranquila/os em aplicar a
autodeclaração do quesito raça-cor”.
Apesar de estarmos em plena campanha do CFESS “Serviço Social
contra o Racismo”, nos inquieta, porém, saber que esse é um desafio posto para
todo coletivo profissional que está distante de ser atingido. É necessário discutir
formas de esse debate chegar aos profissionais, tal como vivenciamos em nosso
grupo.

49
Lia Vainer Shucman, “Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: raça, hierarquia e poder
na construção da branquitude paulistana”, USP, 2012, propõe a compreensão da lógica da
desigualdade racial por meio dos privilégios da branquitude. Sua pesquisa aponta como a
desvalorização estética dos negros e negras pelos brancos e brancas foi introjetada, a ponto de
não as perceberem como expressões de racismo.
274
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considerando que ao pesquisarmos os textos dos grupos de estudos, só


apareceram algumas referências sobre o tema raça, ao se abordar a adoção de
crianças, como resultado imediato desse nosso percurso, encaminharemos proposta
para o Núcleo de Apoio Profissional ao Serviço Social e a Psicologia no TJ-SP sobre
a importância de tomar a discussão sobre relações raciais como uma pauta de
capacitação especialmente para as(os) assistentes sociais e também psicólogas(os).
Também relataremos nossa experiência num espaço destinado no site do CFESS.
Esperamos no próximo ano poder compreender as particularidades das
demandas da Justiça de Família, pois superaremos a dificuldade na coleta do
quesito raça-cor e, por meio dele, enriqueceremos, a partir dessa mediação, o
conhecimento das dimensões sociais postas para os sujeitos de nossos estudos.
Terminamos este texto com a compreensão de que a luta contra o
racismo também é das(os) profissionais brancas(os), mas não é fácil compreender
esse “lugar de fala” pois é o lugar do privilégio 50. Talvez por isso seja mais
confortável não falar a respeito. Mas como contribuir para a construção de outra
forma de sociabilidade sem fazê-lo?

50
Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas negras vão experienciar
racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por
conta desse sistema de opressão. Pessoas brancas vão experienciar do lugar de quem se
beneficia dessa mesma opressão. Logo, ambos os grupos podem e devem discutir essas
questões, mas falarão de lugares distintos. (Ribeiro, 2017, p.?).

275
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRASÍLIA. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. Como e para que perguntar a cor raça
etnia no Sistema Único de Saúde. 2009.

CFESS. Série Assistentes Sociais no Combate ao preconceito. Caderno 3 Racismo.


Racismo. São Paulo, 2016.

DAVIS, Ângela. Mulheres Raça e Classe. São Paulo, Boitempo, 2016.

EURICO, Márcia Campos. A percepção do Assistente Social acerca do Racismo


Institucional Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 114, p. 290-310 abr./jun. 2013.

________, Marcia Campos. Dissertação, 2011, PUCSP- Questão racial e Serviço


Social: uma reflexão sobre o racismo institucional e o trabalho do assistente social.
Disponível em:
<https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/17519/1/Marcia%20Campos%20Eurico.
pdf>. Acesso em: 13.12.2019.

________, Marcia Campos. Tese, 2018, PUCSP- Preta, preta, pretinha: o racismo
institucional no cotidiano de crianças e adolescentes negros (as) acolhidos(as).
Disponível em:<
https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/21267/2/Márcia%20Campos%20Eurico.pdf>
Acesso em: 13.12.2019.

________.A luta contra as explorações/opressões, o debate étnico-racial e o


trabalho do assistente social. Editora Cortez, Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p.
515-529, set./dez. 2018.

FÁVERO, Eunice Teresinha. O Estudo Social: Fundamentos e Particularidades de


sua construção na Área Judiciária. In: CONSELHO Federal de Serviço Social
(CFESS). O Estudo Social em Perícias, Laudos e Pareces Técnicos: contribuição ao
debate no Judiciário, Penitenciário e na Previdência Social. São Paulo: Cortez, 2011.

276
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

GOIS, Dalva; OLIVEIRA, C, Rita; Serviço Social na Justiça de Família: demandas


contemporâneas do exercício profissional. Coleção: Temas Sociojurídicos. São
Paulo, Editora Cortez, 2019.

IANNI, O. O Preconceito Racial no Brasil Entrevista Octavio Ianni In: Estudos


Avançados. vol.18 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2004. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142004000100002>. Acesso em 02 de Maio de 2019.

RIBEIRO, Djamila. Prefácio do livro de Ângela Davis. Mulheres, Raça e Classe. São
Paulo, Boitempo, 2016.

______, Djamila. O que é lugar de fala?. São Paulo. Letramento, 2017.


SÃO PAULO. Atas das Reuniões de 2019 do Grupo de Estudos Serviço Social nas
Varas de Família: particularidades e identidade profissional.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça,


hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado do
Instituto de Psicologia da USP, 2012.

Vídeos assistidos ou indicados


MENTIRA BRANCA (2014). Documentário exibido no GNT. Lacey Schwartz cresceu
num bairro de classe alta judeu em Nova York. As pessoas perguntavam como ela
poderia ser tão morena apesar de ser caucasiana e seus pais serem brancos. Aos
18 anos ela descobre que seu pai biológico não era o homem que a criou, mas sim
um homem negro.

CASA TPM. “Não dá para falar de gênero sem discutir raça. Djamila Ribeiro.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ki2SC6iDa08.

TED “PORQUE QUEREMOS OLHOS AZUIS?”. Lia Vainer Schucman.04.01.2017.

277
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

VISTA A MINHA PELE. 2003. Curta brasileiro com história invertida. Os negros são
a classe dominante e os brancos foram escravizados. Maria, menina branca, estuda
num colégio particular com bolsa de estudos pelo fato da mãe ser faxineira na
escola. Fonte: https://filmow.com/vista-minha-pele-t21065/ficha-tecnica/>
http://www.assistebrasil.com.br/2016/08/10-filmes-nacionais-discutem-racismo-no-
brasil/

O menino que descobriu o vento; Olhos que condenam; Duelo dos Titãs; Olhos
azuis; Besouro; Filmes do Spike Lee – destacando Infiltrado na Klan.

278
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INSTRUMENTOS INTERDISCIPLINARES DE AVALIAÇÃO


PARA PERÍCIAS PSICOLÓGICA E SOCIAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“VARA DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

279
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Christiane Sanches – Psicóloga Judiciário – Foro Regional XI - Pinheiros
Cristina Benedetti Sampaio – Assistente Social Judiciário – Varas de Família - Foro
Central

AUTORES
Alessandra Pereira Dias – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guarulhos
Ana Paula da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí
Andrea de Carvalho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guarulhos
Christiane Sanches – Psicóloga Judiciário – Foro Regional XI - Pinheiros
Claudia Gavião Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapetininga
Cristina Benedetti Sampaio – Assistente Social Judiciário – Varas de Família do Foro
Central
Dulce Ricciardi Coppede – Psicóloga Judiciário – Foro Regional VII - Itaquera
Edna Fernandes da Rocha Lima – Assistente Social Judiciário – Varas de Família do
Foro Central
Elenir Nascimento de Carvalho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ubatuba
Girleide Lucia da Silva – Assistente Social Judiciário – Foro Regional II – Santo
Amaro
Joana Maria Gouveia Franco – Assistente Social Judiciário – Foro Regional III -
Jabaquara
Juliana Costa de Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapevi
Lilian Flavia Tavares Duarte – Psicóloga Judiciário – Comarca de Botucatu
Luciana Rosa Machado – Psicóloga Judiciário – Foro Regional III - Jabaquara
Marisa Lourenço Ubeda – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cubatão
Nilce Margareth Franca Barros – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cubatão
Paula Silveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santos
Renata da Silva Vieira – Psicóloga Judiciário – Foro Regional III - Jabaquara
Roberta Goes Linaris – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Rodrigo Bronze dos Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de Guarulhos
Salvador Loureiro Rebelo Júnior – Psicólogo Judiciário – Foro Regional do Ipiranga
Veridiana Eloia Bandeira – Assistente Social Judiciário – Foro Regional II – Santo
Amaro
Wadson do Carmo Alonso – Psicólogo Judiciário – Comarca de Santo André
280
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

INSTRUMENTOS INTERDISCIPLINARES DE AVALIAÇÃO PARA


PERÍCIAS PSICOLÓGICA E SOCIAL

O grupo de estudo Vara de Família 2019 foi composto por psicólogos e


assistentes sociais que atuam nos setores técnicos da capital e interior. A maior
parte dos profissionais trabalha tanto na Vara de Família quanto na Vara da Infância
no Tribunal de Justiça.
No primeiro encontro o grupo escolheu aprofundar e desenvolver estudos
sobre as técnicas de avaliação interdisciplinar. Uma das fundamentações sobre a
escolha do tema foi ressaltar a importância das discussões técnicas
interdisciplinares e buscar instrumentos que pudessem articular a teoria e prática,
contribuindo para o aprofundamento das dinâmicas familiares.
Trindade, 2014, refere que avaliar e ser avaliado são atos universais e o
caráter informal, em absoluto garante a legitimidade, quesito imprescindível ao
campo científico. Ele cita Sisto, Sbardelini e Primi, 2001, ao descrever que a ciência
é a sua verificabilidade, a exigência que se faz é que ela esteja constantemente
debruçada sobre a tarefa de desenvolver métodos que confiram credibilidade à suas
investigações.
Como metodologia optou-se por estudos bibliográficos, discussão de
casos, apresentação de materiais técnicos e palestras com especialistas
(voluntários) com notória referência sobre os temas. Os palestrantes são professores
doutores da USP e foram convidados por integrantes do grupo.
Um dos temas selecionados foi a utilização do IFVD (Inventário de Frases
no Diagnóstico de Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes) como
ferramenta de verificação da violência contra crianças e adolescentes. O grupo
convidou a Professora Doutora Leila Salomão de Plata Cury Tardivo, que juntamente
com o Professor Doutor Antonio Augusto Pinto Junior trabalhou na validação do
Inventário de Frases no Brasil, escrito originalmente por AGOSTA; BARILARI;
COLOMBO 2001, para apresentar-nos o instrumental.

281
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O grupo também convidou a Professora Doutora Ana Maria Trinca, a qual


realiza pesquisa e tem produções acerca do Procedimento Desenho Estória e do
Desenho de Família com Estórias em parceria com seu marido, Professor, Dr.
Walter Trinca, precursor desta técnica no Brasil, a qual não é reconhecida como um
teste psicológico, mas sim como um processo de investigação. Desse modo pode
ser utilizada não somente por psicólogos, mas também por outros profissionais.
Estudamos os Jogos: “O túnel do tempo” de autoria de Maria Salete
Aeranales-Loli (2011) e “Será que conheço você?” de autoria de Cynthia Borges de
Moura (2002), por entendermos que essa utilização possa ser instrumento
favorecedor e facilitador do contato e da interação dos técnicos com as crianças e
adolescentes durante o processo de avaliação psicossocial. Podem propiciar uma
aproximação com as questões psicológicas, sociais e familiares relativas ao
momento de desenvolvimento emocional e cognitivo da criança ou adolescente,
assim como, favorecer a redução da ansiedade frente a avaliação.
Por fim, as participantes assistentes sociais prepararam uma
apresentação sobre vulnerabilidade e risco social e visita domiciliar, ressaltando a
importância dessa técnica para a efetivação e conquistas de direitos pela população
atendida, a partir de suas produções acadêmicas, literatura especializada e da
pesquisa da Profa. Doutora Adaíza Sposati, “Protege Vínculos”.
Esse importante instrumento de trabalho permite ao profissional observar
o local em que se desenvolve a dinâmica familiar, quem participa da organização,
como se dão as suas relações e os lugares que as pessoas ocupam nele.

1 - INSTRUMENTO: I.F.V.D. (INVENTÁRIO DE FRASES NO


DIAGNÓSTICO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES)

A violência é uma forma de relação social, e está inexoravelmente


atada ao modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas
condições sociais de existência. Sob esta ótica, a violência expressa
padrões de sociabilidade, modos de vida, modelos atualizados de
comportamentos vigentes em uma sociedade, em um momento
determinado de seu processo histórico. (ADORNO, 1988, p. 7 apud
Azevedo Guerra, 2001:3).

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Tendo em vista o significativo número de crianças vitimizadas atendidas


pelos Setores Técnicos, bem como a compreensão de que o fenômeno se dá no
seio das famílias, espaço privado, de esfera micropolítica, dentro de um espectro
cultural que envolve uma forma peculiar de se relacionar transgeracionalmente,
considerou-se a importância do tema. Deste modo, desvendar tal trama é olha-la em
uma perspectiva macropolítica que, só é possível por meio de pressupostos
epistemológicos que desnudem o fenômeno.
O IFVD (Inventário de Frases no Diagnóstico de Violência Doméstica
Contra Crianças e Adolescentes) é um instrumento não qualificado como teste
psicológico, mas aplicado por profissionais que trabalhem com o tema. Ele propõe
identificar a violência em suas expressões, sempre que houver indícios de que a
violência doméstica contra crianças e adolescentes esteja ocorrendo. Nesse sentido,
é importante destacar que o IFVD se constitui em um instrumento auxiliar na
identificação do fenômeno da violência doméstica contra a criança e o adolescente a
partir dos transtornos que essa experiência pode trazer.
De acordo com Tardivo, Pinto Junior e Santos (2005), para se proceder à
identificação precoce e/ou à avaliação psicológica de crianças vitimizadas ou que
presenciam a violência conjugal de seus pais é necessário apreender a experiência
de vitimização em sua totalidade, fundamentando-se em instrumentos que facilitem o
desvelamento da situação abusiva.
Composto por 57 frases de simples compreensão que exigem que a
criança responda sim ou não (se estas têm a ver com sua vida); as frases não tratam
da experiência da vitimização de forma direta, mas estão relacionadas aos
transtornos que esta traz, ou seja, os emocionais, cognitivos, sociais, físicos e
comportamentais. O instrumento foi desenvolvido visando sua aplicação: “(...) em
crianças e adolescentes, na faixa etária de 6 a 16 anos, que revelam indícios ou
indicadores de vitimização doméstica (física e/ou sexual), contudo em um contexto
mais amplo de estudo social e psicológico, como já apontado anteriormente, como
um instrumento útil para essa tarefa.”
A professora Leila Tardivo coordena há dezoito anos o Laboratório de
Saúde Mental e Psicologia Clínica Social – APOIAR, vinculado ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo e em sua explanação afirmou que, em
razão da própria natureza do trabalho clínico social do APOIAR, é inevitável que os

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psicólogos pesquisadores envolvidos se deparem com os mais diversos contextos


de violência e que, eventualmente, se vejam implicados em contextos jurídicos, nos
quais são convocados a se manifestar acerca dos casos que conduzem no âmbito
clínico, assim, a construção de parâmetros para avaliação ajuda a desvendar o
fenômeno da violência doméstica, que analisada em profundidade pode auxiliar na
produção de mecanismos de proteção e prevenção.
A conceituação adotada pelos professores considera violência doméstica
contra crianças / adolescentes todo ato ou omissão capaz de causar dano físico,
sexual e/ou psicológico a vitima. Trata-se de uma transgressão de poder ou do
dever do adulto de proteger as crianças / adolescentes, e ainda, de uma
“coisificação” da criança / adolescente, a quem é negado o direito de ser tratado
como sujeito. Tardivo e Pinto Junior reforçam que a violência doméstica contra
crianças e adolescentes “(...) em sua manifestação, envolve relações assimétricas
de poder, caracterizadas pela dominação, exploração e opressão e, dessa forma é
uma forma de violência interpessoal”.
A pesquisa apresentada partiu do pressuposto de que a violência
doméstica é um fenômeno universal e endêmico, “virtualmente democrático”, cuja
manifestação não se restringe aos contextos de pobreza. É, também, um fenômeno
estatisticamente significativo, de amplo alcance, podendo envolver de forma cíclica,
várias gerações em sua reprodução. A violência doméstica, portanto, é caracterizada
pela reiteração e pela transmissão transgeracional, classificada pelos autores em
seis formas:
Violência física: Guerra (1985) destaca como “toda a ação que causa dor
física numa criança ou adolescente, desde um simples tapa até o espancamento
fatal, representam um só continuum de violência”.
Violência sexual: Pode ser caracterizada, como todo ato ou jogo sexual,
relação heterossexual ou homossexual entre um ou mais adultos que tenham para
com ela uma relação de consanguinidade, afinidade e/ou mera responsabilidade,
tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma
estimulação sexual sobre sua pessoa ou a de outra pessoa. (AZEVEDO; GUERRA,
1998a, p. 177).
Violência psicológica: Também designada como tortura psicológica,
ocorre quando pais ou responsáveis constantemente depreciam a criança,

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bloqueiam seus esforços de auto-aceitação causando-lhe grande sofrimento mental.


(AZEVEDO; GUERRA, 1998, p. 1771).
Negligência: Configura-se quando os pais ou responsáveis falham em
termos de prover as necessidades físicas, de saúde, educacionais, higiênicas de
seus filhos e/ou de supervisionar suas atividades, de modo a prevenir riscos e
quando tal falha não é o resultado das condições de vida além do seu controle.
(AZEVEDO; GUERRA, 1998, p. 177).
Violência fatal: Atos e/ou omissões praticados por país, parentes ou
responsáveis em relação a crianças e/ou adolescentes que - sendo capazes de
causar-lhes dano físico, sexual e ou psicológico - podem ser considerados
condicionantes (únicos ou não) de sua morte. (AZEVEDO; GUERRA 1998, p. 177).
Violência testemunhal: Pouco estudada no Brasil, possui definições
imprecisas. Pode ser caracterizada como “toda violência que ocorre entre parceiros
adultos, no contexto de um relacionamento íntimo, presenciada ou ouvida pela
criança / adolescente sobre o qual ela incide e que viu seu resultado e viveu seus
efeitos na interação com seus pais ou responsáveis” (PINTO JUNIOR; TARDIVO,
2016).
O entendimento em linhas gerais é que violência doméstica contra a
criança e o adolescente pode representar um verdadeiro fator de risco ao processo
de desenvolvimento. “A experiência de vitimização pode trazer sérias consequências
para a vítima, implicando a perturbação da noção de identidade e outros distúrbios
de personalidade e de adaptação social.” A violência doméstica contra a criança /
adolescente pode ser direta ou indireta e afetar a realidade da criança com o mundo.
Echeburua e Guerricaechevarría (2002) elencam:
Transtornos emocionais: que se relacionam com as emoções e os
sentimentos diretamente relacionados com as experiências de vitimização, os
sentimentos de insegurança e de ansiedade que os pais lhes provocam, além da
baixa autoestima, desenvolvida a partir das mensagens contraditórias,
principalmente emitidas pelas figuras parentais, e a necessidade de "anestesia
emocional" como mecanismo de defesa contra a exposição crônica a um ambiente
violento.
Transtornos físicos: enurese e queixas somáticas.

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Transtornos de comportamento: introversão, agressão, acting out como


roubar, mentir, fugas crónicas, dificuldade no controle dos impulsos, hiperatividade,
baixa tolerância à frustração e impulsividade.
Transtornos cognitivos: incluem disfunções de percepção de si e da
realidade, falta de memória, atraso ou deficits de linguagem, além do atraso do
desenvolvimento da inteligência, com diminuição do rendimento escolar, falhas de
atenção e concentração.
Transtornos sociais: isolamento social, estigmatização, conflitos
familiares, pseudomaturidade.
Tardivo em sua exposição nos apresentou brevemente a EEVD – Escala
de Exposição à Violência Doméstica, que consiste na versão brasileira do americano
CEDV – Children’s Exposure to Domestic Violence Scale, da Prof.ª Jeffrey l.
Edleson, que consiste em um instrumento de auto relato usado para medir o grau de
exposição à violência doméstica e os múltiplos fatores relacionados. É composta de
42 questões, destinada a crianças e adolescentes na faixa etária de 10 a 16 anos de
idade, permitindo o reconhecimento de um continuum de experiências das vítimas e
da necessidade correspondente de intervenções práticas.
O conjunto dos resultados referentes aos indicadores de vitimização
encontrados nos referidos instrumentos pode funcionar como recurso técnico auxiliar
para profissionais que trabalham em órgãos de proteção de crianças e adolescentes,
além de embasar medidas preventivas e interventivas nessa área.
Por fim, concluiu-se que ambos os instrumentos são muito sensíveis ao
fenômeno da violência doméstica e podem ser utilizados pelos técnicos como forma
de medir os riscos e vulnerabilidades as quais o público atendido pode estar
submetido.

2 - INSTRUMENTO: DESENHO ESTÓRIA

O Procedimento Desenhos Estórias (DE) e o Procedimento de Desenho


de Família com Estórias (DF-E), segundo Walter Trinca 2013, se desenvolveram e
se expandiram com relação a suas formas tradicionais de aplicação dos desenhos
livres, utilização e interpretação.

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Ainda segundo Walter Trinca, tanto o Procedimento de Desenhos


Estórias, em mais de 40 anos de existência, como o DF-E e sua derivação posterior
deixaram de ser uma técnica exclusiva de investigação clínica de personalidade para
se transformar em recurso compreensivo de espectro aplicável a diversas situações,
como a área médica, hospitalar, jurídica, dentre outras.
Walter Trinca aponta que os citados procedimentos DE e DF-E não são
considerados testes psicológicos, e sim técnicas de investigação psicológica com
características determinadas. Equivale a afirmar que, ao contrário de se definir como
teste psicológico, prima por manter aberta a situação de observação e de contato
psíquico, na qual são facilitados os processos de associação livre do examinando e
de atenção flutuante do profissional.
Para o diagnóstico psicológico podem ser utilizadas diversas técnicas que
não se prendem, apenas, à fidedignidade e à padronização própria dos testes
psicológicos, pois incluem outras técnicas e procedimentos que possuem a
capacidade de conduzir uma exploração ampla da personalidade e de por em relevo
a dinâmica emocional dos processos inconscientes. Dentre essas técnicas pode-se
considerar o procedimento desenho-estória, família-estória, a Hora do Jogo
Diagnóstico (Aberastury, 1962) e o Jogo dos Rabiscos (Winnicott, 1971).
No procedimento desenho-estória considera-se que o desenho livre não é
estímulo de percepção temática no sentido de que serve somente para eliciar
estórias. Ele deve ser interpretado de modo integrado com as estórias e demais
componentes da produção gráfico-verbal.
Nesse aspecto, para a Professora Doutora Ana Maria Trinca, a qual
realiza pesquisa e tem produções acerca da referida temática em parceria com seu
marido e também professora, Dr. Walter Trinca, precursor desta técnica no Brasil, a
qual não é reconhecida como um teste psicológico, mas sim como um processo de
investigação. Desse modo pode ser utilizada não somente por psicólogos, mas
também por assistentes sociais e outras profissões, havendo uma série de
pesquisas sobre a aplicação das técnicas em diferentes áreas de atuação.
Quanto à caracterização histórica da técnica do desenho-estória, desde
sua criação, com repercussões no meio acadêmico e nos Conselhos de Psicologia,
houve muita dificuldade de aceitação pela categoria, que atualmente a reconhece

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como fonte de possibilidade criativa e favorecedora de comunicação entre entrevista


e entrevistador.
O procedimento de Desenho-Estórias tem sua fundamentação baseada
nas teorias e práticas da Psicanálise, das técnicas projetivas e da entrevista clínica.
Segundo Walter Trinca, o DE consiste em cinco unidades de produção,
onde cada uma é composta por um desenho livre, com estória, “inquérito” e título. O
examinado faz o primeiro desenho livre com o qual verbaliza uma estória e, logo
após responde questões do examinador por meio de esclarecimentos e novas
associações, atribuindo um título às demais unidades de produção, até produzir
cinco unidades.
Em determinadas situações o examinador pode conseguir aplicar um
número menor de desenhos, muitas vezes, por excesso de detalhes colocados pelo
examinando ou resistência para a realização da proposta, resultando apenas em um
único elemento, com desenho, título e estória. No entanto, a aplicação da sequencia
dos vários desenhos permite que a cada desenho haja um aprofundamento maior e
uma maior aproximação com as questões-chave dentro do contexto do examinado.
O DE destina-se a pessoas de ambos os sexos, de qualquer idade
cronológica que seja possível a aplicação, podendo pertencer a todos os níveis
mentais, socioeconômicos e culturais.
De acordo com o observado por Ana Trinca em sua experiência clínica,
assim como a dos colegas que se beneficiaram de tais instrumentos, as técnicas e
os testes mais tradicionais mantinham os profissionais que os aplicavam em um
perfil rígido de avaliação, o que de certa forma restringia a expressão dos sujeitos
avaliados, bem como a autonomia dos profissionais para observações mais livres.
O professor Di Loreto também foi mencionado como referência para o
tema, com publicações e pesquisas, em comum com os pesquisadores sobre a
técnica e aplicação do Desenho-Estória, em diversas características de trabalho que
demandam avaliação sobre a dinâmica psíquica dos avaliados.
Ana Maria Trinca reconhece a importância do judiciário, sendo este
considerado um espaço desafiador e tenso. Aponta visão crítica sobre o momento
sociocultural que vivenciamos, assim como suas consequências para a subjetividade
infantil, o que se converte em repercussões no cotidiano das crianças,
especialmente no âmbito familiar.

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Quanto ao Desenho de Família com Estória – DF-E, de acordo com


Walter Trinca 2013, o foi mesmo idealizado em 1978 e consiste em uma prática
clínica de investigação de personalidade com o objetivo de conhecer a natureza dos
objetos internos, particularmente as imagos parentais e fraternas dos indivíduos,
incluindo a qualidade de vínculos com elas e entre elas. Informa tanto sobre as
características do meio familiar do indivíduo, da maneira como é vivenciada por ele,
assim como sobre os focos centrais e nodais de sua personalidade.
Tendo sido elaborado com vistas à importância da família no
desenvolvimento da pessoa, o DF-E é empregado especialmente para a ampliação
do conhecimento sobre as relações intrapsíquicas e intrafamiliares do examinado.
Assim, espera-se que o DF-E facilite a comunicação de conflitos profundos vividos
no meio familiar, de fantasias inconscientes a respeito das figuras significativas e do
jogo de forças emocionais existentes no seio da família.
O DF-E consiste na aplicação de quatro desenhos com os seguintes
temas: uma família qualquer, uma família que gostaria de ter, uma família em que
alguém não está bem e a sua família. A aplicação envolve o desenho, seguida por
uma estória, “inquérito” e título.
Especificamente, o Desenho de Família com Estória apresenta-se como
destaque, uma vez que se adequa à necessidade de avaliação das equipes
técnicas, oferecendo acesso ao teor das relações familiares, a percepção e resposta
às situações vivenciadas, demonstrando como os avaliados se relacionam com suas
figuras parentais.
Questões como: devolutiva, dificuldade de condução do processo de
avaliação (principalmente com adolescentes), o caráter regressivo do estímulo/tema
família, a produção do Laudo Técnico direcionado aos magistrados, a avaliação em
casos de suspeita de violência sexual, e o lugar do processo de Desenho-Estória no
contexto da avaliação judicial, são temas presentes no cotidiano das equipes
técnicas.
As qualidades do Desenho-Estória, enquanto processo de investigação
clínica, são referenciadas para além da sua praticidade de aplicação, funcionando
como um facilitador do contato do profissional com as crianças/adolescentes/adultos,
auxiliando no processo de transferência e contratransferência e configurando um

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instrumento adequado à demanda de avaliação judiciária em seu caráter focal e


dinâmico.
No judiciário, por meio da descrição do estudo de casos foi possível
identificar que se trata de um importante instrumento para a expressão do conflito e
sofrimento das crianças e adolescentes em situações de disputa de guarda,
regulamentação de visitas e alienação parental, possibilitando para o Perito do
Serviço Social ou Psicologia um maior número de recursos para melhor
compreensão dessa dinâmica relacional. Dessa forma, resultando em um
instrumento que poderá contribuir para a construção de um laudo técnico com um
maior número de elementos e um recurso que possa auxiliar na sensibilização da
autonomia das famílias.

3 - INSTRUMENTO: JOGOS - O USO DE JOGOS COMO


ESTRATÉGIAS PARA A AVALIAÇÃO PSICOSSOCIAL DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM QUESTÕES DE VARA DE
FAMÍLIA

A finalidade da utilização de jogos em avaliações psicossociais é que


atuem como facilitadores da expressão dos sentimentos tanto do mundo interno
quanto daqueles provocados pela interação da criança com seu ambiente social e
familiar.
Cumpre salientar que tais jogos não são procedimentos de avaliação, mas
sim técnicas que facilitam o manejo e a compreensão das questões apresentadas
pelas pessoas que são atendidas no judiciário e por isso, não são instrumentos de
uso privativo dos profissionais de psicologia, podendo ser utilizados por assistentes
sociais.
Segundo Violet Oaklander (1978) citada por Rosas Villena (2010) uma
forma sutil de permitir um maior contato entre os membros das famílias é por meio
de jogos, pois neles há diversão, a descontração que, muitas vezes, permite as
pessoas interagir entre si de modo mais natural, principalmente as crianças que se
identificam facilmente com essa atividade e, assim expressam seus sentimentos,
permitindo ao profissional conhecer os seus traumas, problemas, etc.
Um dos jogos que podem ser utilizados pela equipe técnica psicossocial
intitula-se “Túnel do Tempo: Um jogo lúdico auxiliar no processo interativo entre

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profissionais e adolescentes/pré-adolescentes” de autoria de Maria Salete Arenales-


Loli (2011). O instrumento é fruto de sua tese de doutorado, realizado na UNESP -
Assis SP. A autora, ao sentir a necessidade de um instrumento que auxiliasse a
expressão e simbolização dos sentimentos, no atendimento a adolescentes,
desenvolveu tal jogo pautado em sua experiência clínica e também em atividades de
Orientação Vocacional.
Por conta do momento peculiar de desenvolvimento psicossocial, o
atendimento de adolescentes pode ser desafiador. Isto porque de modo geral tal
público apresenta dificuldades de falar sobre si, demandando a utilização de
métodos “facilitadores” da expressão verbal, mas consideram como “coisa de
criança” métodos lúdicos mais usuais como os desenhos. Neste sentido,
instrumentos facilitadores para a expressão dos sentimentos, desejos e referências
são interessantes para o profissional.
O Jogo “O Túnel do Tempo” é composto por um tabuleiro, dados, pinos e
cartas, estas com frases a serem completadas pelos adolescentes. O objetivo é
estimular a expressão de aspectos relativos a este momento específico de
desenvolvimento social e afetivo, assim como propiciar a reflexão, lembrança e
elaboração dos seguintes temas: “Dados da Rotina Familiar (passada e atual);
Relatos de Acontecimentos Significativos; Relatos de Pessoas Significativas para a
sua Formação; Dados sobre a Adaptação Escolar e Social; Detecção de Medos e
Angústias; Dados de Manifestação de Culpa, Descoberta e Reconhecimento de
Habilidades Próprias; Projetos de Vida Futura (ou a inexistência destes), Sonhos e
Ideias” (Manual do Jogo).
De acordo com a autora, deve-se esclarecer ao adolescente sobre o
objetivo, que é conhecê-lo melhor e ajuda-lo a encontrar formas de expor, e assim
poder reconhecer e lidar, com seus sentimentos. A configuração do jogo permite sua
utilização em grupo ou em atendimento individual, sendo necessário que o
profissional que vai utilizá-lo apresente experiência na sua condução e adapte o uso,
conforme as perguntas são apresentadas, observando o vínculo existente entre os
adolescentes, mediante exposição dos aspectos tratados (relacionamento familiar,
sexualidade, formas de lidar com os grupos sociais, etc).
O aspecto lúdico, que configura o envolvimento no processo de jogar,
estimula a curiosidade do adolescente pela própria oportunidade que ele tem de

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questionar a si mesmo e pensar em questões pouco direcionadas a si. Tal situação,


com frequência, instiga o autoconhecimento e um maior desejo de exploração dos
conteúdos de seu mundo psíquico e social, facilitando o contato destes jovens com
temas que, usualmente, causam angústia, ansiedade e consequente esquiva,
durante o processo de avaliação.
Percebe-se que neste jogo, os adolescentes podem se expressar de
forma mais tranquila, à medida que percebem que o profissional está interessado em
saber sobre sua vida e suas questões e não somente sobre sua escolha objetiva, ou
seja, qual genitor terá a sua guarda ou sobre a periodicidade de convivência,
valorizando-o enquanto sujeito de direitos, conforme preconiza o ECA.
Outro jogo que pode ser utilizado no processo de avaliação psicossocial
intitula-se “Será que conheço você?” cuja autora é Cynthia Borges de Moura (2002).
Trata-se de um jogo de tabuleiro que foi elaborado para ser utilizado em sessões
conjuntas entre pais e filhos, com dois participantes (criança/mãe ou criança/pai ou
adolescente / mãe adolescente/ pai). O jogo contém perguntas sobre o cotidiano,
preferências e comportamentos dos pais e da criança. Cada pergunta é seguida de
quatro alternativas de resposta, o jogador da vez deve escolher a resposta que mais
se parece com a escolha que seu parceiro faria naquela situação. A autora aponta
que neste jogo não há ganhadores, pois ambos (pai/filho ou mãe/filho) têm que
chegar até o final juntos, com um único peão.
Este jogo é um importante instrumento ao qual o profissional pode
recorrer nas avaliações psicossociais, principalmente, em processos que envolvem
disputa de guarda de uma criança ou adolescente, pois este recurso possibilita que o
profissional avalie o quanto o genitor e o filho se conhecem e também fornece dados
importantes sobre a interação entre eles em diversos ambientes e situações do dia-
a-dia. Trata-se de uma ferramenta que pode complementar os dados obtidos nas
entrevistas e que pode ser adaptada de acordo com os objetivos estabelecidos pelos
profissionais, bem como, com a realidade das famílias atendidas.
No que tange especificamente ao Serviço Social, sabe-se que o uso de
jogos não é uma prática recorrente, porém as discussões no Grupo de Estudo
vislumbraram uma nova possibilidade no fazer profissional do Serviço Social nas
Varas de Família do TJ/SP.

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A utilização dos jogos como estratégia no atendimento é um desafio para


o Serviço Social que ancorado ao projeto ético e político da profissão pode permitir
uma análise crítica da dinâmica familiar para além dos fenômenos aparentes e
apreender os aspectos intrínsecos das relações familiares.
Dessa forma, os jogos aqui descritos podem subsidiar o trabalho do
Assistente Social para além do imediato, construindo um espaço de troca entre os
profissionais, as crianças/adolescentes e os demais sujeitos envolvidos,
possibilitando através de vivências lúdicas, articulada ao conhecimento teórico
metodológico, na análise dos aspectos socioeconômicos e culturais que envolvem
os sujeitos, a interpretação e compreensão das relações no campo privado das
famílias atendidas.
Por fim, compreende-se que os jogos aqui citados podem ser utilizados
como instrumentos inovadores para além do atendimento pericial e de gabinete na
elaboração do raciocínio sobre as famílias, favorecendo uma apropriação e
empoderamento de pais, adolescentes e crianças sobre as dinâmicas das relações e
envolvimento com a história de suas próprias famílias, transformando o momento de
avaliação em uma oportunidade de autoconhecimento e envolvimento com as
escolhas objetivas e subjetivas resultantes do processo de avaliação psicossocial.

4 - INSTRUMENTO: VISITA DOMICILIAR

4.1 - NOÇÕES SOBRE VULNERABILIDADE E RISCO SOCIAL

Os conceitos de vulnerabilidade e risco têm sido largamente utilizados no


bojo das bases teóricos metodológicas no campo da proteção social. Conceitos
muitas vezes controversos que se forjam em vários campos do saber, são
transportados ao campo sócio jurídico para a apreensão das condições de vida das
famílias que são atendidas de forma a elucidar as expressões das desigualdades
sociais, econômicas, políticas, culturais que tem seu cerne na questão social.
As concepções não são neutras e determinam não só a forma de
mensuração, mas como as estratégias de intervenção. Contudo, muitas vezes esses
conceitos veem sendo utilizados nos estudos sociais como sinônimos: “a família está
em vulnerabilidade” ou “a família está em risco”, sem, contudo, se explorar a

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potência dos mesmos para trazer subsídios à totalidade dos autos e expor a
desproteção social que está intrinsicamente ligada a desproteção do Estado e a
necessidade de sua responsabilização.
A vulnerabilidade social pode ser entendida como somatório de situações
de precariedade, para além das condições socioeconômica, monetárias e materiais
em si e pode abarcar o sofrimento, insegurança, desamparo, nesse processo.
Na Política Nacional de Assistência Social a vulnerabilidade social
materializa-se nas situações que desencadeiam ou podem desencadear processos
de exclusão social de famílias e indivíduos que vivenciem contexto de pobreza,
privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso a serviços públicos) e/ou
fragilização de vínculos afetivos, relacionais e de pertencimento social,
discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiência, dentre outras (PNAS,
2004 apud BRASIL, 2011, p. 14).
A vulnerabilidade tem intrínseca relação com a precariedade e
insegurança do trabalho, com o enfraquecimento das instituições de proteção social,
retraimento do Estado, desvinculação entre política econômica e social e com o
orçamento para proteção social incerto e insuficiente, e de baixa cobertura, dentre
outros aspectos.
Dessa forma, o equacionamento de grande parte das vulnerabilidades
sociais não tem origem na dinâmica local, e muito menos em movimentos
individualizados das famílias, depende de políticas macroestruturais que extrapolam
a “capacidade protetiva das famílias”, outro termo largamente utilizado, que se não
bem caracterizada, podem reforçar um estereótipo negativo ligado as esforços
individuais, assim se findando na mera responsabilização das famílias e/ou na
eleição de um vencedor nos casos litigiosos.
A vulnerabilidade deve ser compreendida, também, sobre a perspectiva
de gênero. Por exemplo, é uma mulher desempregada, filhos pequenos, mãe idosa
e doente, vivendo em ocupação. É imprescindível analisar se as crianças vão à
escola, se vão à unidade básica de saúde, como a mulher prove o sustento e todos,
se recebe algum benefício ou conta com suporte familiar.
É preciso explicitar aonde residem às vulnerabilidades sociais das famílias
que atendemos, como aquelas que são consideradas prioritárias e de maior
vulnerabilidade.

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Da mesma forma, os riscos também precisam ser explicitados, já que


podem ser ligadas a fenômenos naturais, de saúde, econômicas, ambientais,
políticos, ligados aos ciclos de vida e sociais.
Tendo como foco o risco social, trazemos o conceito de Sposati que
afirma que o risco social relaciona-se com a probabilidade de um evento acontecer
no percurso de vida de um indivíduo e/ou grupo, podendo, portanto atingir qualquer
cidadão (ã). Contudo, as situações de vulnerabilidades sociais podem culminar em
riscos pessoais e sociais, devido às dificuldades de reunir condições para preveni-
los ou enfrentá-los, assim, “as sequelas podem ser mais ampliadas para uns do que
para outros” (SPOSATI, 2001, apud BRASIL, 2011, p. 14).
No campo sócio jurídico, o risco social se revela explicitamente na
exposição a violência, a negligência, a situação de rua, a exploração, dentre outras
violações ou na eminencia de seu acontecimento, especialmente no convívio
familiar, agravadas pelo convívio com o autor da agressão, faixa etária, pela
dependência de cuidados, inexistência de rede de apoio familiar ou da comunidade;
pelo medo da denúncia e por outros riscos.
Esses riscos nos apontam para a necessidade de buscar na família
extensa e na comunidade respostas, bem como de evitar a revitimização do
indivíduo; e especialmente nas políticas públicas alternativas para romper com
padrões violadores de direitos, como forma garantir, dentre os direitos mais
importantes que orientam as equipes técnicas das varas da família, o direito à
convivência familiar e comunitária.
Com isso, reside aí a magnitude e importância de serem explicitados,
especialmente, no que diz respeito as reais fragilidades, potencialidades, movimento
de mudanças.
A falta de prevenção e respostas estatais a estas situações podem
originar situações de risco. Importante salientar que quem vive em vulnerabilidade
está muito mais exposto ao risco, já que a pobreza é um elemento da
vulnerabilidade que pode agravar e potencializar o risco.
Esses conceitos veem hoje sendo trabalhados imbricados ao conceito de
território, onde que é o espaço vivido onde se dão as tramas do cotidiano, os modos
de vida.

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Dessa forma, o recurso da visita domiciliar dentro dos pressupostos éticos


políticos orientadores da profissão, pode contribuir e elucidar aspectos fundamentais
do que diz respeito, para além dos aspectos sociorelacionais, capturar a realidade
social efetivamente vividas nos territórios e as vulnerabilidades e riscos que
vivenciam as famílias nos remetendo aos direitos das famílias que atendemos.

4.2 - A VISITA DOMICILIAR, A PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR E A


CAPACIDADE PROTETIVA DO ESTADO

Embora seja um instrumental técnico operativo amplamente utilizado


pelos assistentes sociais, a visita domiciliária não é uma atribuição privativa destes
profissionais, podendo (e devendo) assim, ser realizada por profissionais de outras
áreas.
Na área da saúde, por exemplo, equipes multi e interdisciplinar, composta
por médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais, se valem da visita para
acompanhar pacientes crônicos como forma acompanhá-los, visando o bem-estar
global dos mesmos, assim como orientar familiares e cuidadores que se encarregam
dos cuidados.
E, não diferentemente, na área sócio jurídica, na qual a experiência tanto
nas varas da família como nas varas de infância e juventude revelam que atuação
conjunta de assistentes sociais e psicólogos judiciários in locu¸ tem possibilitados
encaminhamentos e sugestões que contribuem na perspectiva da garantia de
direitos das crianças, adolescentes, idosos e da família como um todo.
A questão, contudo, é que paira no imaginário de muitos profissionais, e,
sobretudo, entre os operadores do direito de que a visita deva ser unicamente
realizada pelos assistentes sociais. É comum que em processos judiciais,
promotores de justiça e magistrados requeiram e determinem, inclusive, que o
estudo social se inicie por meio de visitas domiciliares, o que repercute e traz muitos
questionamentos entre a categoria, seja pelo fato de colocar em questão a
autonomia profissional, seja pela lógica que considera a visita como fiscalizatória,
sobretudo nas situações que envolvem famílias das camadas populares.
Afinal, o que é então a visita domiciliar? Entende-se a visita domiciliária
como sendo um instrumental técnico que o perito se valerá em momento oportuno,
tendo em vista a sua autonomia profissional (CFESS, 2011). Este instrumental
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

possibilita que sejam conhecidas a realidade sócio habitacional das pessoas


atendidas, assim como fornece outras informações que darão base para sustentação
do parecer técnico, levando em conta o melhor interesse das crianças, adolescentes,
idosos e quem dele se beneficiar.
Nessa toada, a visita domiciliar não dá “como uma forma de retratar a
realidade e descrever os pormenores da casa do sujeito, quando se coloca de
praticamente “fotografar” a realidade do mesmo, para produzir provas, descolando
dessa realidade a leitura crítica” (QUADROS, p. 101, 2018).
É importante, por exemplo, contextualizar se a moradia está localizada em
bairro com infraestrutura como ruas pavimentadas, iluminação pública e comércio
local, transporte público e serviços de saúde e de saneamento básico, ou não.
Durante as leituras e discussões que o Grupo de Estudos Varas de
Família a respeito da visita domiciliar, uma das participantes ilustrou a sua atuação
na qual a visita foi determinante para medidas e intervenções que mudaram
significativamente a realidade de uma comunidade. Tratava-se de uma criança que
era negligenciada e na denúncia, a criança foi exposta a situação insalubre. A visita
revelou que a criança tomava banho num rio contaminado. Embora outras situações
demonstrasse negligência e falta de cuidado, quando o promotor tomou
conhecimento, foi acionado o Poder Executivo e o saneamento básico foi instalado.
Nos casos de varas da família, especialmente, nas situações de guarda e
regulamentação de convivência emergem, com frequência, questões relativas às
condições habitacionais, se a moradia dispõe ou não de telas de proteção nas
janelas ou corrimão das escadas.
Considera-se que tais medidas de proteção dizem respeito à parte
estrutural da moradia, e, portanto, nem a psicologia nem o serviço social têm
elementos para assegurar, por exemplo, o tempo de durabilidade e a resistência a
impactos e peso que uma grade, tela ou corrimão suportariam. Nesse sentido, é
importante que os profissionais manifestem de forma objetiva os limites e o alcance
de suas respectivas áreas de formação.
Por meio da visita domiciliar podemos, também, apreender como se
desenvolve a dinâmica familiar e ver nas entrelinhas de sua vivência, quem participa
da organização, como se dão as suas relações e os lugares que as pessoas ocupam
nela.

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É de grande valia quando é orientada pelo acompanhamento da rede


sócio-assistencial que de fato trabalhe na perspectiva dos direitos, investindo no
fortalecimento dos vínculos e pró-convivência, a visita domiciliar priorizar trocas,
observações, diálogos e encaminhamentos a serviços de atendimento as
necessidades das famílias.
Além disso, propicia uma escuta diferenciada, de acolhimento,
compreensão, evitando críticas, culpabilização e julgamentos que não acrescentarão
para investir nas potencias das famílias. Considerar que cada família tem sua
dinâmica e possibilidade de reconstruções promove a busca de alternativas para as
demandas suscitadas, favorecendo a percepção das famílias sobre a sua realidade.
Pela cobertura do sistema de proteção, conjuntamente com a rede de
atendimento, é possível inseri-las em serviços e benefícios por meio de respostas
estatais efetivas e ainda que possam auxiliá-las a encontrarem suas próprias
alternativas para superarem as dificuldades e sofrimentos, favorecendo a autonomia
e independência destas famílias. Para isso é importante que sejam atendidas em
seus direitos fundamentais, se sintam respeitadas, valorizadas, capazes e seguras
de um real investimento do Estado.

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CONCLUSÃO

Nos estudos das Varas de Família é possível identificar aspectos da


experiência de vulnerabilidade, a complexidade das relações litigiosas que envolvem
mágoas, problemas de saúde mental, sendo fundamental o olhar multifatorial do
técnico para os eixos relacionais destas dinâmicas familiares.
Neste aspecto, trata-se de um cenário com muitas facetas que convida os
técnicos a buscarem diversos instrumentos para que o recorte seja o mais próximo
possível dos diversos aspectos que envolvem tais questões. Há dores, sofrimentos,
resistência, desejos de vingança mascarados, busca para ganhar a palavra pela lei,
isto é, um cenário que se apresenta na esfera micropolítica, mas que precisa ser
olhado na perspectiva macropolítica.
Os profissionais tanto da psicologia quanto do Serviço Social seguem os
seus Códigos de Ética e utilizam-se de instrumentos específicos para cada área.
O presente trabalho buscou dialogar com a possibilidade do uso de
instrumentos multidisciplinares para aprofundar a compreensão de fenômenos tão
complexos nas Varas da Família. Esses recursos possibilitam a aplicação em
conjunto, quando possível, e a análise a partir do olhar singular de cada ciência,
enriquecendo o trabalho técnico, refletindo na riqueza da atuação interdisciplinar.
A diversidade de recursos contribui para o resultado do documento após a
perícia: “o laudo”, pois os dados estarão mais próximos do cenário da dinâmica
relacional, favorecendo a espontaneidade, o que contribuirá para dificultar a
manipulação dos dados e ensaios pré-perícia.
Outro ponto que se faz necessário é a constante formação dos peritos
com as novas técnicas e recursos que estão sendo usadas no cenário nacional e
internacional, bem como a compreensão da aplicação na realidade da nossa
população. Pode-se citar do fenômeno “violência testemunhal” que se trata da
exposição da criança e adolescente ao conflito conjugal e os seus efeitos. Um
fenômeno que está começando a ser discutido e nomeado no Brasil, embora, já
observado em nossas perícias.
Dessa forma, o grupo considerou que as discussões e os diversos
recursos apresentados foram ferramentas importantes para a prática e contribuíram
para a formação do pensamento crítico e o trabalho interdisciplinar.

299
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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302
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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O MACHISMO INSTITUCIONAL NA REDE DE


ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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COORDENAÇÃO

Fausto Santos Borges – Psicólogo Judiciário – Comarca de Hortolândia


Maria de Fátima de Jesus Agostinho Ferreira – Assistente Social Judiciário – Vara do
Foro Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher - Complexo
Judiciário Ministro Mário Guimarães

AUTORES

Bruna Rodrigues de Almeida Lima – Assistente Social Judiciário - Vara de Violência


Doméstica e Familiar contra a Mulher da Região Sul 2 – Foro Regional de Santo
Amaro
Carla Baldini Marcelino de Melo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Conchas
Elaine Cristina Major Pavanelo – Assistente Social Judiciário – Foro das Varas
Especiais da Infância e da Juventude
Fausto Santos Borges – Psicólogo Judiciário – Comarca de Hortolândia
Fernanda de Souza Monteiro – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e
Juventude e Vara de Família e Sucessões – Foro Regional V São Miguel Paulista
Ilka Custódio de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Vara de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher da Região Leste 2 – Foro Regional Penha de
França
Maisa de Melo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Espírito Santo do Pinhal
Maria Cristina Marques Ribeiro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Pires
Maria de Fátima de Jesus Agostinho Ferreira – Assistente Social Judiciário –Vara do
Foro Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher -Complexo Judiciário
Ministro Mário Guimarães
Maria Izabel Cancian Chagas – Assistente Social Judiciário – Vara de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher da Região Sul 2 – Foro Regional de Santo
Amaro
Patrícia Jimenez Pereira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santos
Rita de Cássia Nunes de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Vara de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher da Região Leste 2 – Foro Regional Penha de
França

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Rubia Carla Ribeiro –– Psicóloga Judiciário – Foro das Varas Especiais da Infância e
Juventude
Vanessa Ferreira Lopes – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e da
Juventude – Foro Regional VII – Itaquera
Vanina Dias Teixeira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santos

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto das reflexões realizadas pelos participantes do Grupo


de Estudos de Violência Doméstica e Familiar, durante os encontros realizados ao
longo de 2019, em que pudemos compartilhar nossa prática profissional, assim
como as inquietações a respeito das dificuldades que as mulheres ainda enfrentam
para fazer valer os seus direitos, para atuar criticamente sobre essa realidade e
pensar nas intervenções possíveis no contexto institucional.
Embora composto por Psicólogos e Assistentes Sociais do Tribunal de
Justiça, é um grupo heterogêneo, na medida em que os integrantes são
provenientes de Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Varas
Especiais da Infância e Juventude, Varas da Infância e Juventude, Varas da Família
e Sucessões e profissionais oriundos de Vara Única das cidades do interior de São
Paulo, caracterizando demandas e organização do trabalho diferenciadas em cada
local. Tais especificidades podem também acarretar formas diversas de enxergar a
violência doméstica e, por consequência, o seu enfrentamento, na medida em que
muitas vezes esse problema fica invisibilizado.
Nos encontros, à medida que os/as integrantes iam trazendo as
respectivas realidades, percebeu-se um elemento curioso que caracteriza as
dificuldades enfrentadas pelas mulheres, que poderia ser descrito como um
machismo existente em nossa sociedade patriarcal, que se manifesta na forma como
algumas delas são vistas no momento de buscar os seus direitos. Chamou a
atenção do grupo o fato de que mulheres pobres e negras sofrem de forma mais
intensa essa violência e encontram mais obstáculos para acessar garantias que
estão asseguradas a todos/as.
Como vislumbramos alguns aspectos comuns na vida de muitas mulheres
e na forma como foram recebidas nos serviços da rede de proteção, optamos por
considerar com mais profundidade alguns elementos integrantes da violência
doméstica como: direitos humanos, gênero, questão de classe e o racismo.
Visando a ter um respaldo teórico para estudar tais questões, o grupo
optou por basear-se em alguns textos que abordam a questão do machismo,
feminismo, o percurso dos movimentos de mulheres, até culminar com a Lei Maria
da Penha e a experiência dos serviços de atendimento às mulheres, tendo o

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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privilégio de poder dialogar com profissionais que atuaram na luta pela conquista de
direitos.
Tivemos palestras sobre os temas A Predominância do Machismo na
Sociedade e a Consequência no Cotidiano das Mulheres, com a Professora
Maria Elisa dos Santos Braga, Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), que atuou por 22 anos como Assistente Social na
Casa Eliane de Grammont e como coordenadora e docente do Curso de Serviço
Social por 32 anos e é membro da base do Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS) e da Comissão de Ética do Conselho Regional de Serviço Social/SP
(CRESS); A Predominância do Machismo nos Serviços de Atendimento a
Mulheres Vítimas de Violência, com a Sra. Lenira Politano da Silveira, que
trabalhou 20 anos como Psicóloga da Casa Eliane de Grammont e atuou como
Pesquisadora na Organização Não Governamental (ONG) Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde; e Violência Doméstica como uma das Expressões do
Racismo, com a Dra. Márcia Campos Eurico, Assistente Social do Instituto Nacional
de Seguro Social (INSS), doutora em Serviço Social pela PUC/SP e professora no
Curso de Serviço Social da Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS).
Tais encontros foram muito profícuos e apontaram a necessidade do
constante diálogo e da proximidade entre os profissionais que atuam na rede de
atendimento às mulheres, visando ao atendimento integrado e qualificado à
população que chega aos setores técnicos dos Fóruns.
Este coletivo decidiu efetuar um levantamento dos atendimentos
realizados e verificar com as próprias mulheres se elas tiveram alguma dificuldade
para acessar seus direitos e, em caso positivo, a que atribuíam tal problema. O
conjunto resolveu também ilustrar o texto com casos nos quais o machismo estava
muito evidenciado, prejudicando de alguma forma o acesso às garantias
constitucionais.
Este Grupo de Estudos permitiu, além da riqueza da troca de experiências
entre os profissionais, confirmar a necessidade e urgência de uma formação
e capacitação continuada a todos/as que atuam nos serviços que atendem às
mulheres e lidam com a complexidade das questões de gênero, classe social e raça.

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1 - PATRIARCADO, RACISMO E CLASSE SOCIAL

Para apreender a questão da violência contra a mulher é necessário


entender o caráter estruturante da sociedade brasileira a partir da relação entre
patriarcado, racismo e capitalismo. De acordo com Lovatto (2011, p.115):

Inicia-se pelo patriarcado como “o mais antigo sistema de


dominação-exploração”. Posteriormente, “aparece o racismo, quando
certos povos se lançam na conquista de outros, menos preparados
para a guerra”. E, finalmente, “em muitas destas conquistas, o
sistema de dominação-exploração do homem sobre a mulher foi
estendido aos povos vendidos” (grifos do autor).

O acirramento da divisão de classes ocorreu motivado pelo


desenvolvimento do sistema capitalista, que tem como base a desigualdade social
gerada a partir da exploração do trabalho e mais-valia. A divisão social do trabalho
trouxe uma individualização no sistema de produção de mercadorias, que se refletiu
também na divisão sexual do trabalho. Nesse sentido, segundo Saffioti (apud
TENÓRIO, 2018, p. 30), “a mulher contaria com uma desvantagem social de dupla
dimensão”, considerando a percepção tradicional da fragilidade feminina em relação
à supremacia masculina e marginalização da mulher na esfera do trabalho produtivo.
Com isso, desenvolveu-se uma suposta separação dos papéis relativos ao “trabalho
de homem” e “trabalho de mulher”, em que a atuação feminina se situa no âmbito
doméstico, e/ou uma hierarquização do trabalho masculino em relação ao fazer
feminino.
O patriarcado transcende a formação social brasileira, mas nela se
construiu um alicerce fecundo, que naturalizou em nosso cotidiano a ideia de
supremacia dos homens sobre as mulheres, na qual a ideia de inferioridade chega
ao entendimento da mulher como uma propriedade, e, portanto, do direito do homem
fazer o que quiser com ela. Essa objetificação da mulher torna a violência possível
aos homens e naturalizada por homens e mulheres. Por isso, as desigualdades de
gênero manifestam-se também em todos os estratos sociais, mas, se as
compreendermos como desvantagens para acesso ao mercado de trabalho e aos
direitos sociais, então, chegamos às mulheres negras pobres.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Conforme Saffioti (2004, p. 44), “o patriarcado é a dominação e a


exploração dos homens em relação às mulheres”, enquanto a “violência de gênero
engloba tanto a violência de homens contra mulheres quanto a de mulheres contra
homens”. No entanto, a demanda predominante nas Varas de Violência Doméstica e
Familiar é a violência de gênero contra as mulheres em todas as faixas etárias.
Elemento decorrente do patriarcado, o machismo ocorre no cotidiano das
relações sociais entre os seres humanos, ancorado basicamente na lógica de
dominação e exploração entre classes sociais e nações. O machismo é
caracterizado pelas desigualdades sociais, por relações de poder e de dominação
entre homens e mulheres, notadamente marcado pela dominação masculina em
detrimento da feminina, de maneira simbólica ou ideológica.
Segundo Saffioti (2004, p. 34):

Os homens gostam de ideologias machistas, sem sequer ter a noção


do que seja uma ideologia. Mas eles não estão sozinhos. Entre as
mulheres, socializadas todas na ordem patriarcal de gênero, que
atribui qualidades positivas aos homens e negativas, embora nem
sempre, às mulheres, é pequena a proporção destas que não portam
ideologias dominantes de gênero, ou seja, poucas mulheres
questionam sua inferioridade social. Desta sorte, também há um
número incalculável de mulheres machistas. E o sexismo não é
somente uma ideologia, reflete também uma estrutura de poder, cuja
distribuição é muito desigual, em detrimento das mulheres.

De acordo com a autora, as mulheres são socializadas para desenvolver


comportamentos “dóceis e apaziguadores”, enquanto os homens são “estimulados a
desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem força e coragem”. Ela
acredita que assim é que se constitui a raiz da questão, mas aponta inúmeros
fatores, que também afetam de forma negativa, como, por exemplo, o peso de ser
provedor, entre outros. Destaca ainda que o sentimento de impotência, enfrentado
pelos homens em situações adversas, pode ser gerador de violência. Quanto às
mulheres machistas ao se posicionarem diante da vida, acabam defendendo os
interesses dos homens e, por vezes, não percebem o desequilíbrio que essa postura
provoca. Segundo Saffioti (2004), o patriarcado é apoiado na desigualdade social e
na intolerância no tocante ao gênero, interação de raças/etnias, classes sociais,

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

índios, pessoas em situação de rua, homossexuais e diversidade sexual, em parte


decorrente da maneira como a educação é conduzida.
Considerando o panorama brasileiro atual, de acordo com dados colhidos
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), as mulheres
ganham menos que os homens em todas as ocupações elencadas na pesquisa.
“Mesmo com uma queda na desigualdade salarial entre 2012 e 2018, as
trabalhadoras recebem, em média, 20,5% menos que os homens no país”. Entre
outras situações que afloram a desigualdade entre homens e mulheres, há o fato de
elas possuírem dupla, ou tripla, jornada de trabalho, ocuparem menos cargos de
chefia, entre outros.
Ainda nesse cenário, destaca-se a naturalização social do lugar da mulher
no âmbito doméstico, pois é atribuído a ela o papel do cuidado, sensível e resignado,
aos filhos, ao marido, aos pais idosos, da casa etc. A mulher é então considerada
“algo” que não a enquadra na definição de “sujeito” e sim de “mercadoria” do prazer,
domínio, exercício do poder do homem sobre ela, o que contribui para a manutenção
do patriarcado.
Sabemos que a pobreza brasileira, por ter gênero e raça/etnia, é feminina
e negra. As diferenças raciais acirram as desigualdades sociais durante todas as
fases da vida.
Desde o século XIX, a inserção no mercado de trabalho foi distinta para
homens e mulheres negras, e diferentes, para os primeiros, porque os trabalhos
domésticos nas regiões urbanas mantiveram-se muito parecidos ao modo como
eram realizados na sociedade escravagista. Isso somado ao fato de que não houve
imediata concorrência com a mulher imigrante, que não se interessava por essas
ocupações, e a mulher negra permaneceu nos postos de trabalho, antes servil,
agora remunerado. Tal fato pode ser apontado como o nascedouro de uma das
características das famílias negras em relação às famílias brancas: nas primeiras, a
chefia familiar é da mulher.

Por causa de sua integração à rede de serviços urbanos, é a mulher


(e não o homem) que vai contar como agente de trabalho privilegiado
não no sentido de achar um aproveitamento ideal ou decididamente
compensador, mas por ser a única a contar com ocupações
persistentes e, enfim, com um meio de vida. [...] Essa condição

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acabou se transformando em rotineira na medida em que se


perpetuavam as dificuldades dos homens em “arrumar emprego
permanente”. (FERNANDES, 2008, p. 83/97, grifos do autor).

Esse fato aponta que as mulheres negras eram duplamente subjugadas,


pelo racismo e pela desigualdade de gênero, pois, como mulheres, já não podiam
concorrer aos mesmos cargos que os homens brancos, e, como negras, não lhes
restava outras ocupações que não fossem as relacionadas ao trabalho doméstico.
Ao longo do século XX, a exclusão do mercado formal de trabalho
resultou em trajetórias de miséria e degradação social das famílias negras, portanto,
trata-se de trajetórias de obstáculos maiores e mais perversos a serem enfrentados
do que as barreiras encaradas pela população branca, mesmo pobre.
Essa cruel trajetória indica que os negros sempre vivenciaram o racismo à
brasileira, que é constantemente negado, portanto, precisa ser exaustivamente
denunciado, mas que está a tal ponto engendrado no cotidiano, que é naturalizado,
o que novamente traz a necessidade de constante combate. O racismo obrigou a
população negra a aceitar trabalhos precários, que se reverteram em jornadas
extenuantes, em troca de salários baixos, moradia em regiões periféricas, baixos
índices de escolarização, dificuldade de acesso a serviços de infraestrutura urbanos,
entre outros aspectos, que lhes proporcionou apenas processos de mobilidade
horizontal, ou seja, a permanência na mesma condição econômica, para si e seus
descendentes.
Neste ponto, a década de 1950 merece especial destaque, porque foi o
palco do recrudescimento do “pacto nacional desenvolvimentista”, sob o qual os
negros brasileiros foram integrados à nação brasileira, em termos simbólicos, por
meio da adoção de uma cultura nacional mestiça ou sincrética. Parte componente
desse pacto foi a democracia racial, como consenso político da não existência do
racismo, decisão determinante para a continuidade da inexistência de ações
políticas de reparação das perdas que a população negra vivenciava desde o
período de escravização, fortalecendo então os alicerces para a atual
subalternização das pessoas negras.
É importante pontuar que, em nenhum momento dessa história de
negação de direitos e acessos aos bens socialmente produzidos, houve uma

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conduta passiva por parte da população negra. Desde o início do tráfico negreiro,
os/as negros/as foram desenvolvendo estratégias de resistência (sabotagem do
trabalho, suicídio, músicas, ritos religiosos, assassinatos de capatazes ou senhores
de escravos, fuga e constituição de quilombos, entre outras), quando legalmente
livres, foram criando organizações políticas, culturais e religiosas próprias com
objetivos diversos, mas tendo em comum a luta contra o racismo.
Mantendo-se combativo ao longo das décadas, o movimento negro
conseguiu que a Constituição de 1988 estabelecesse, no Art. 5º, XLII, que a prática
do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão e
reafirma a igualdade civil entre brancos e negros. Entendemos também como
conquista desse movimento a publicização das discussões sobre as relações raciais
brasileiras, portanto, a existência do racismo, processo que alcançou seu ápice em
1995, quando o governo brasileiro reconheceu oficialmente a existência da
discriminação racial no Brasil.
Em 2001, a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu a III
Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerâncias Correlatas, conhecida como Conferência de Durban, a partir da qual o
movimento negro passou a buscar políticas específicas para a população negra para
que a desigualdade social entre brancos e negros pudesse ser enfrentada.
Segundo a professora Dra. Márcia Campos Eurico, é comum ocorrer uma
redução do racismo a uma ação individual, especialmente devido à dificuldade de
discutir o tema. O racismo pode ser considerado um conceito amplo, dado que é um
processo de organização da vida criticamente considerado como uma arma
ideológica de dominação.
A referida profissional destaca que a escravidão representou um processo
de sequestro de pessoas negras, retiradas de partes do continente africano, e um
injusto roubo da sua identidade. Significou a perda do nome e da vinculação a seus
povos e ancestrais. Eram, então, batizados na Igreja Católica, como forma de dar
vida a esses considerados “não humanos”. Assim, ela destaca a questão da
descendência dos negros, para os quais a herança passou a ser a escravidão.
A partir dos apontamentos dessa docente sobre o racismo e a violência
doméstica e familiar contra a mulher e das reflexões promovidas nesse encontro,
conclui-se que o lugar de sujeito para a mulher negra e vítima de violência é ainda

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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mais difícil do que para a mulher branca. Quanto à violência simbólica como
expressão do racismo, verifica-se que uma atitude agressiva contra uma mulher
branca não altera a estrutura social à qual ela pertence; em contrapartida, uma
mulher negra, ainda que não sofra com uma atitude agressiva, vive a violência
devido ao lugar que ocupa na estrutura social por causa de sua cor

2 - A DOMINAÇÃO MASCULINA E A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

Nos encontros deste Grupo de Estudos, foi frequente o questionamento


sobre os elementos geradores da violência nas instituições onde as mulheres
costumam ser atendidas. Dessa forma, seus integrantes identificaram que as
instituições são constituídas por pessoas, que estão inseridas/mergulhadas no
contexto social brasileiro, com sua história marcada pelas questões de classe,
gênero e racismo. Por esse motivo, foi possível observar a reprodução das relações
de poder, nos diversos contextos institucionais.
No que concerne à violência institucional, que ocorre nas instituições e em
locais que têm o dever de representar e servir à população, de forma discreta (ou
nem tanto), reproduzem desigualdades e perpetuam injustiças. O sujeito, protegido
pela burocracia da instituição, tira proveito da sua função (delegada/o, profissional de
saúde ou do sistema judiciário) para dar vazão, ainda que inconscientemente, a
conteúdos racistas, misóginos e elitistas (EJUS, 2018).
Portanto, em estudos precedentes, mais precisamente em 2018, este
Grupo de Estudos depreendeu que a violência institucional é cometida por agentes
do Estado, ou no interior de espaços em que o Estado é responsável direto, ou seja,
é aquela violência praticada por ação e/ou omissão nas instituições prestadoras de
serviços públicos, que atuam ou deveriam atuar na prevenção, no combate, na
assistência e garantia de direitos (EJUS, 2018).
Pierre Bourdieu, em seu livro A dominação masculina (2012), desenvolveu
uma análise sociológica das relações entre os sexos, para explicar as causas da
persistência da dominação dos homens sobre as mulheres. O autor inicia suas
reflexões afirmando que sempre percebeu na dominação masculina, e no modo
como é imposta e vivenciada, um exemplo de uma submissão paradoxal, resultante
daquilo que chamou de violência simbólica:

313
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Violência suave, insensível, invisível à suas próprias vítimas, que se


exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da
comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do
sentimento. (BOURDIEU, 2012, p. 7-8).

Além disso, o sociólogo reconhece o fato de todos estarmos incluídos,


como homem ou mulher, no próprio objeto que nos esforçamos por apreender, e
incorporamos, “sob a forma de esquemas de percepção e de apreciação, as
estruturas históricas da ordem masculina” (BOURDIEU, 2012, p.15).
Nesse sentido, Sayão (2003) descreve que, para analisar a dominação
masculina, se faz necessário considerar a posição do pesquisador ou pesquisadora,
como influenciados por estruturas sociais e cognitivas que revelam uma tradição
masculina de pensar o poder e o conhecimento.
Grossi (1992, apud SAYÃO, 2003) afirma que o gênero de um autor ou
autora interfere na forma de ver e interpretar o objeto de estudo, por isso, diferentes
pesquisadores, diante de um mesmo objeto de estudo, chegam a conclusões
diferenciadas. Desta forma, cabe-nos um questionamento: Será que os profissionais
que atendem às mulheres em situação de violência (inclusive os que atuam no
Judiciário) podem, muitas vezes, reproduzir a dominação masculina, sob a forma do
machismo institucional, considerando esses esquemas de percepção e estruturas
sociais e cognitivas tão arraigados, como assinala Bourdieu (2012)?
Ainda, Sayão (2003) afirma que as mulheres, apesar de sofrerem os
efeitos da dominação masculina, podem contribuir para a sua reprodução, porque
incorporam as regras de um poder que se alastrou como algo masculino. A ordem
masculina impõe-se como evidência natural, dispensando qualquer justificação, ou
seja, a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se
enunciar em discursos que visem a legitimá-la (BOURDIEU, 2012).
Dessa forma é que a dominação masculina encontra respaldo nas
instituições como, por exemplo, a escola, o Estado, a Igreja, e a família, que são, de
fato, instituições construtoras de categorias restritivas à ação humana. E, ainda,
considerando as representações sociais comuns, segundo Sayão (2003), os homens
estariam na esfera da vida produtiva, enquanto as mulheres na vida reprodutiva,
perpetuando e reconfigurando a “velha” divisão sexual/social do trabalho. Além disso,

314
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

o capitalismo empreende nos sujeitos o desejo de obter bens e produtos,


independentemente da classe social. Nesse contexto, Bourdieu (1999 apud SAYÃO),
declara que as mulheres são tratadas como objetos cujo sentido lhes está alheio e
cuja função é manter o capital simbólico - especialmente a honra - dos homens.
Nessa perspectiva, a dominação de gênero, para Bourdieu (2012), mostra
que a violência simbólica se dá por meio de um ato de cognição e de mau
reconhecimento que fica além – ou aquém – do controle da consciência e da
vontade. Entretanto, há um espaço determinado à luta política que se dá mediante as
lutas cognitivas, que é a forma mais profunda de resistência acerca da divisão sexual
entre homens e mulheres.
Nos estudos de Sayão (2003), pesquisou-se como os ambientes
educacionais empreendem as construções de gênero e incorporam as políticas e
resistências, ressaltando que qualquer forma de desigualdade e exercício de poder
necessitam ser permanentemente colocados à prova. No atual contexto social, as
constantes mudanças na vida política e na economia mundial alteram as formas
como o poder e a dominação se desenvolvem pelo planeta, marcando o corpo e a
mente de homens e mulheres, confundindo as identidades e categorias
anteriormente estabelecidas.
Suas contribuições também apontam as diferenças do conceito da
dominação masculina entre Pierre Bourdieu e Michelle Perrot (historiadora francesa).
O primeiro preocupa-se com as estruturas invariantes, necessariamente
incorporadas por ambos os sexos; já Perrot dá visibilidade ao movimento de
contraposição ao poder (no singular) exercido pelas mulheres, muitas vezes, nas
instituições, mediante estratégias da vida cotidiana, as quais lhes conferem “poderes”
(no plural), modificando a correlação de forças em torno de tal poder, ou seja, ela
rejeita veementemente a tese de que as mulheres são universalmente dominadas.
Sayão (2003, p. 132) afirma que, de fato, a ordem masculina encontra
respaldo nas instituições, como a escola, e é perceptível pelos/as educadores/as
“que todo o sistema educacional exerce uma função indispensável na incorporação
das diferenças sexuais como produto de uma certa hierarquia masculina”. Entretanto,
a autora declara que tais estruturas, quando incorporadas, são também modificadas
pelas experiências vividas coletivamente pelos sujeitos, portanto, não são
meramente aceitas e reproduzidas. Soihet (1998 apud SAYÃO, 2003) também refere

315
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que existem formas de ação que resistem à importância do sistema e fissuram,


causam ruptura, no poder dominante. Assim, Michelle Perrot alerta para a
capacidade de resistência à dominação e ao poder patriarcal.
Acredita-se que a elaboração deste artigo, fruto do compartilhamento de
experiências dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Judiciário, seja uma forma de
expor a violência institucional que as mulheres vítimas de violência doméstica sofrem
por meio da reprodução da dominação masculina, explícita no machismo
institucional; e, a partir dessa contribuição, fortalecer nossa capacidade de
resistência à submissão ao poder patriarcal.

3 - TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER:


AVANÇOS E RETROCESSOS

Diante da desigualdade e assimetria contidas nas relações entre homens


e mulheres, com predomínio da exploração, opressão e dominação masculina na
sociedade patriarcal e capitalista, surgiram movimentos feministas de resistência e
enfrentamento dessa realidade e de luta pela igualdade de direitos no mundo.
Nessa trajetória histórica, com foco na sociedade brasileira, é possível
também constatar avanços e retrocessos e os desafios que surgem com as
conquistas.
Tomando como foco de análise o período da redemocratização brasileira,
quando foi criado o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM) em 29 de
agosto de 1985, com autonomia administrativa e financeira, e status de ministério,
tendo atuação imediata em três frentes: creches, violência e constituinte, sem
descuidar de projetos relativos às áreas da saúde, trabalho, educação e cultura, sua
intervenção também se voltou à inclusão de demandas e reivindicações do
movimento de mulheres na Constituição de 1988.
É importante salientar que, no final do governo Sarney, ocorreram perdas
em relação ao CNDM, em decorrência de cortes orçamentários e restrições à
autonomia desse órgão, além da rejeição das representantes dos movimentos de
mulheres para a renovação do conselho. Diante desse posicionamento, ocorreu a
renúncia da então presidenta, Jacqueline Pitanguy, e de todas as conselheiras
representantes da sociedade civil.

316
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outra conquista importante do ano de 1985 foi a criação das primeiras


Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), cuja qualidade e efetividade ainda
carecem de melhorias no âmbito da estrutura, do funcionamento, da qualificação
dos/das profissionais, do acolhimento e da orientação fornecida.
Nesse contexto, houve mobilização dos Conselhos Estaduais a partir da
criação de um Fórum Nacional de Presidentas de Conselhos da Condição Feminina
e Direitos da Mulher, em 1989. Mas, em 1990, o governo Collor de Mello extinguiu
as últimas prerrogativas do Conselho, enquanto, no governo de Fernando Henrique
Cardoso, apesar de pressões do movimento de mulheres, o órgão foi mantido sem
autonomias política e financeira e sem estrutura adequada ao seu funcionamento.
Esses entraves e outras violações de direitos foram questionados pelos
movimentos feministas, os quais tiveram papel fundamental nos anos de 1980 e
1990, quanto ao debate da questão de gênero e das desigualdades reforçadas pela
ideologia machista. Dessa forma, propuseram e articularam políticas públicas nas
diversas áreas (saúde, educação, assistência social, trabalho, etc.) que
consolidaram mecanismos de visibilidade, autonomia e fortalecimento das mulheres
nos espaços públicos e privados da sociedade brasileira.
No ano de 1986, é registrado um avanço no estado de São Paulo, com a
criação da primeira Casa Abrigo, o Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de
Violência Doméstica (Convida). No ano de 1990, foi inaugurado na cidade de Santo
André/SP e, em 1992, a Casa Helenira Rezende de Souza Nazareth, nesta capital.
Na sequência, no entanto, há um retrocesso com o fechamento dessas instituições,
só reabertas em 1997 e em 2001, respectivamente.
Em 9 de março de 1990, na gestão da Prefeita Luíza Erundina, foi
inaugurada a Casa Eliane de Grammont, como resultado de ampla mobilização do
movimento feminista. O nome foi dado em homenagem à cantora e compositora
assassinada por seu ex-companheiro, o cantor Lindomar Castilho, em 30 de março
de 1981. Ao longo dos anos, essa instituição vem proporcionando atendimentos
social, psicológico e jurídico às mulheres em situação de violência, com o intuito de
acolhê-las, orientá-las, auxiliá-las a administrar o cotidiano e superar a violência
sofrida.
Atualmente, existem 15 Centros de Defesa e Cidadania da Mulher
(CDCM) e quatro Centros de Referência da Mulher (CRM) na cidade de São Paulo,

317
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

lembrando que a Casa Eliane de Grammont sofreu várias ameaças de fechamento,


por parte de prefeitos conservadores. Já contou com um número significativo de
profissionais, oficinas, serviços e palestras importantes. Apesar da redução de mão
de obra, tem resistido e continuado a proporcionar atendimento qualificado às
mulheres que vivenciam situação de violência doméstica.
Na década de 1990, ocorreram movimentos de expansão e retração em
relação aos direitos das mulheres, uma vez que a criação da Lei 9.099/1995,
também conhecida como a Lei da “Cesta Básica”, acabou incentivando a cultura da
impunidade diante dessas sentenças para os casos de violência doméstica. Porém,
com a ratificação brasileira da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher/Convention on the Elimination of All Forms of
Discrimination Against Women (CEDAW), em 1995, houve o compromisso com a
promoção de direitos e medidas para a garantia de igualdade entre homens e
mulheres, além do fortalecimento da rede de enfrentamento da violência de gênero.
Na sequência temporal, durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva
(2003/2010) foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), por meio da
Lei 10.683, de 28 de maio de 2003 (BRASIL, 2003), com a missão de erradicar todas
as formas de desigualdade em relação às mulheres. No entanto, a competência
dessa secretaria foi definida somente em 2010, por meio da Lei 12.314, Art. 22, que
alterou a lei anterior e transformou a SPM em ministério. (BRASIL, 2010).
Outro fato relevante dos anos 2000 foi a criação do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres (PNPM), resultado das Conferências Nacionais de
Políticas para as Mulheres, realizadas desde 2003, nas quais foram discutidas e
deliberadas questões sobre a igualdade entre homens e mulheres no mercado de
trabalho; a autonomia das mulheres; a eliminação da divisão sexual do trabalho; a
erradicação da pobreza; e a garantia de participação das mulheres no
desenvolvimento do país, entre outros pontos.
Em 2003, as ações mudaram de foco e ganharam ênfase com a
formulação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres,
com diretrizes e atuação coordenadas nos âmbitos federal, estadual e municipal.
Outro triunfo obtido foi a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que garantiu
mecanismos para coibir e prevenir a violência contra as mulheres, tendo como
marco importante o estabelecimento e criação de serviços especializados nesse

318
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

combate, por meio de uma rede de atendimento caracterizada pelo conjunto de


ações e serviços da assistência social, justiça, segurança pública e saúde.
Nesse caso, a rede é composta por Centros Especializados de
Atendimento à Mulher; Núcleos de Atendimento à Mulher em Situação de Violência;
Centros Integrados da Mulher; Serviços de Abrigamento (Casa Abrigo, Casas de
Acolhimento Provisório/Casas de Passagem); Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher; Núcleos da Mulher nas Defensorias Públicas (NUDEM);
Ligue 180; Promotorias Especializadas/Grupo de Atuação Especial de
Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID); e os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Na cidade de São Paulo, os Centros de Referência da Mulher (CRMs)
oferecem atendimentos psicológico, social e jurídico às mulheres em situação de
violência; os Centros de Defesa e de Convivência da Mulher (CDCMs) prestam
atendimentos social, psicológico e orientação jurídica e encaminhamentos
necessários à superação de violência, contribuindo para o seu fortalecimento e o
resgate da cidadania; além dos Centros de Cidadania da Mulher (CCMs); Casa
Abrigo; e Casa de Acolhimento Provisório de Curta Duração (Casa de Passagem).
No ano de 2007, foi lançado o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência, que apontou a necessidade de uma rede articulada com atuação ampla e
capacitação contínua de agentes públicos que permitisse a prevenção e o
atendimento adequado; o aperfeiçoamento da legislação; o incentivo e apoio a
projetos educativos e culturais de prevenção à violência; e a ampliação do acesso às
mulheres à Justiça e aos serviços de Segurança Pública.
Assim, no que se refere ao Judiciário, na cidade de São Paulo, foram
criadas Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
com equipe técnica. Atualmente, existem nove delas, contando com o anexo da
Casa da Mulher Brasileira. A primeira, instalada no Complexo Judiciário Ministro
Mário Guimarães, da Barra Funda, em 2009, como um anexo voltado à 8a Vara
Criminal, tornando-se Vara, em 2011. Nas cidades do interior do estado de São
Paulo, de acordo com os dados disponibilizados no site do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, são 16 Anexos e/ou Varas Especializadas, porém, o anexo
existente na cidade de Ribeirão Preto conta com equipe técnica completa.

319
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em 2012, houve avanço com o debate sobre as especificidades das


políticas para as mulheres, visando incluir as demandas das negras, indígenas,
lésbicas, jovens, idosas e com deficiência, respeitando-se essa diversidade.
Mesmo com esses avanços e a criação dos serviços especializados e a
ampliação da infraestrutura social de atendimento às mulheres em situação de
violência, ainda há o que superar, pois observa-se que o número de locais é
insuficiente para a demanda apresentada. No estado de São Paulo, por exemplo, na
maioria das cidades, não existem tais recursos, nem mesmo Delegacias
Especializadas, o que demonstra ser, a situação das mulheres, ainda bastante
delicada.
Acrescido a esse problema, o quadro de funcionários dos serviços de
atendimento à mulher vítima de violência é insuficiente e a demanda é crescente. Tal
fato dificulta sua articulação e participação nas reuniões da rede, comprometendo
esse trabalho. Conhecer, portanto, esses profissionais, é salutar e necessário para
realizar trocas, compartilhar questões, conhecer as limitações institucionais e pensar
formas de enfrentamento dessa realidade, já que essa intervenção é
responsabilidade de todos.
Cabe ainda salientar que os serviços existentes devem ser mantidos,
aperfeiçoados e ampliados, pois, como já comprovado, dependendo do governo
vigente ou da sua alternância no poder, há maior ou menor prioridade quanto à sua
implementação, modificação ou retirada. Um exemplo disso, no âmbito municipal, foi
que os CDCMs procuraram o Ministério Público/GEVID, em 2019, solicitando
colaboração e orientação desse órgão para que as secretarias responsáveis e a
Prefeitura da Cidade de São Paulo realizassem o repasse de verbas e o pagamento
devido aos serviços, para que não ocorresse a sua interrupção.
Retomando a trajetória histórica, durante o governo Dilma Rousseff (2011-
2014 e 2015-2016), mais especificamente no ano de 2015, a pasta dos Direitos
Humanos foi unificada com as Secretarias de Política de Promoção da Igualdade
Racial e de Políticas para as Mulheres. Na reforma ministerial, a Presidenta formou o
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH),
que aguardava, no Senado Federal, sua aprovação. Porém, em fevereiro de 2016, a
Medida Provisória 696 o extinguiu, após a posse de Michel Temer (2016/2018), o
qual foi recriado como ministério em 2017, sob o nome de Ministério dos Direitos

320
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Humanos. Já na gestão de Jair Bolsonaro (2019), a pasta foi transformada em


Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, englobando também as
políticas indígenas, cuja titular é a educadora, pastora evangélica e advogada
Damares Alves.
No atual governo, foi inaugurada a Casa da Mulher Brasileira de São
Paulo em 11 de novembro de 2019, que faz parte do Programa Mulher sem
Violência, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. É um anexo da Vara
Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e, em parte, está sob a
responsabilidade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, situada
no bairro do Cambuci, área central da cidade.
Esse projeto foi viabilizado com recurso federal, previsto na gestão da
Presidenta Dilma Rousseff, quando inaugurou, em 2015, as unidades de Brasília/DF
e Campo Grande/MS, numa parceria com os governos estaduais e municipais. A
Casa foi construída em um terreno de 3.659 metros quadrados, com previsão de
funcionamento 24 horas por dia, nos sete dias da semana e com prestação de
serviço humanizado para mulheres em situação de violência.
Concentra serviços de acolhimento, escuta e atendimento psicossocial,
por intermédio de psicólogas e assistentes sociais da ONG Companhia dos Sonhos.
Conta ainda com o programa Guardiã Maria da Penha, da Guarda Civil
Metropolitana, alojamento para abrigamento temporário em casos de ameaça e
risco, atuação da 1a Delegacia de Defesa da Mulher; orientação da Defensoria
Pública; acompanhamento do Ministério Público; atuação do Tribunal de Justiça,
responsável pelos processos, julgamentos e a execução das causas relacionadas à
violência. O Instituto Avon realizou a capacitação dos funcionários desse serviço e
fez a doação dos equipamentos para a Brinquedoteca.
Salienta-se que a Casa da Mulher Brasileira de São Paulo é uma
conquista relevante, que deve ser ampliada a todas as regiões como um direito
universalizado. Para que esse fato se torne uma realidade, é fundamental a
articulação entre as mulheres; a sociedade civil organizada; as instituições e
serviços governamentais, não governamentais e executoras de políticas para as
mulheres; ONGs feministas; conselhos de direitos; universidades e serviços
especializados às mulheres que compõem a rede de atendimento, visando assim, o

321
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

controle externo e a efetivação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência


contra as Mulheres.

4 - RETRATO DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL E RELATO DE


EXPERIÊNCIAS

4.1 - PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A coleta de dados abrangeu depoimentos, estudos sociais e psicológicos,


e um roteiro com questões semiestruturadas que foi aplicado a 30 mulheres
atendidas nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Vara da
Infância e Juventude; Vara de Família e Sucessões; e Varas Únicas de Comarcas do
Interior de São Paulo. As respostas foram tabuladas e analisadas, a partir da
percepção ou não, da vivência da violência, pelas mulheres em situação de violência
doméstica ou por seus filhos quando recorrem à Rede de Atendimento. A
interpretação das suas opiniões levou a concluir que há machismo institucional
nesses serviços, desde o registro da queixa, até a assistência e/ou entrada no
sistema de justiça.

4.2 - LEVANTAMENTO DE DADOS

Descreva de que forma este fato (violência institucional) aconteceu? As que


responderam afirmativamente, relataram o seguinte:

- Os policiais a incentivaram a repensar a situação e não efetuar a


denúncia.
- Foi até a Delegacia registrar a ocorrência e a delegada se recusou
dizendo que importunação sexual se refere na relação com o patrão e não parte do
cunhado, como o que ocorreu com a vítima.
- Sofreu discriminação na Delegacia da Mulher, “disseram que estava
numa relação obsessiva porque queria e que todos os dias recebiam casos como o
dela”.

322
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- “Disseram que eu precisava ter marcas no corpo e mencionaram porque


não havia denunciado antes.” Enfrentou muita resistência para registrar o Boletim de
Ocorrência e na sequência insinuaram que logo “iria querer retirá-lo”
- Sofreu discriminação e violência institucional por parte do Conselho
Tutelar, após ter sido vítima de violência física e sequestro da filha. Precisou acionar
vizinhos, parentes e uma emissora de TV para reaver a sua filha.
- A adolescente contou para uma de suas professoras que sofria violência
física e sexual por parte de seu pai. A professora acionou o CREAS e o Conselho
Tutelar fez uma visita na residência dela informando a mãe sobre a denúncia, que
não acreditou e contou ao pai, em seguida apanhou dele, que lhe fez graves
ameaças, inclusive de morte. A genitora pediu para que a adolescente desmentisse
o ocorrido.

A pessoa sentiu-se respeitada e satisfeita com o atendimento recebido?


Explique.

- Não, achou um absurdo o atendimento dispensado. Ficou indignada.


- Não, foi atendida com rispidez na DDM e no hospital.
- As orientações recebidas não foram esclarecedoras.
- Não, mas registrou a ocorrência.
- Não, sentiu-se desorientada.
- Elogiou o atendimento da Defensoria Pública.
- O CREAS não esclareceu como seria o acolhimento.
- Não, acredita que não seja correto ter policiais homens na Delegacia da
Mulher. “A escrivã também me tratou com machismo.”
- “Não, me senti prejudicada e mal atendida pelo funcionário.”
- Não, a genitora mencionou que tinha a expectativa de que o hospital,
considerado como referência, prestasse um atendimento humanizado e adequado.
Após a realização do exame sexológico da filha, a criança não recebeu atendimento
satisfatório e orientação adequada. Diante do ocorrido, a genitora precisou pagar
uma consulta com ginecologista para ser devidamente medicada e orientada.
- Esperava acolhimento, em vez de desconfiança.
- A funcionária da DDM não queria registrar o Boletim de Ocorrência.

323
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- Ficou decepcionada com a abordagem policial na DDM. O funcionário


duvidava de seu relato e a interrompeu diversas vezes.
- Não, imaginou que o atendimento realizado seria com mais
consideração.
As respostas fornecidas comprovam o machismo institucional no
atendimento à mulher vítima de violência doméstica e o despreparo de alguns
profissionais, que as desrespeitaram, discriminaram, forneceram informações
equivocadas e dificultaram o exercício pleno dos seus direitos. Esse fato revela a
necessidade da avaliação desses serviços e correção dessas falhas, assim como o
investimento em capacitação dos atores da rede de proteção.
AMOSTRAGEM: 30

QUESITO TIPOS DE PROCESSO E VARA

Tipos de
Processo
Medida
19
Protetiva
Acolhimento 1

Guarda 3

Ação Penal 2
Inquérito
5
Policial
Total 30

35 30
30
25
19
20
15
10 5
5 3 2
1
0
Medida Acolhimento Guarda Ação Penal Inquérito total
Protetiva policial

324
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Quanto ao tipo de processo e à destinação da Vara encaminhada,


observa-se que 19 entrevistadas solicitaram Medidas Protetivas de Urgência às
Varas de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher; seguidas de Inquéritos
Policiais, que é uma fase anterior ao Processo; a Guarda solicitada às Varas de
Família e Sucessões, é demanda também da Vara da Infância e Juventude,
principalmente quando as famílias enfrentam situações de vulnerabilidade social,
como o momento em que o acolhimento se faz necessário, para evitar um risco
maior à criança e/ou adolescente.
Quanto à ação penal, é específica do âmbito criminal em situações
que envolvem violência. Percebe-se a importância da existência das Varas
Especializadas em violência doméstica, com equipes técnicas que possam
subsidiar as decisões judiciais e, dessa forma, as pessoas atendidas recebam o
acolhimento necessário. Vale ressaltar que a violência doméstica ocorre
independentemente da existência de locais especializados para atendimento e,
nesse sentido, consideramos a importância de que as/os profissionais da
Psicologia e do Serviço Social se interessem em estudar o fenômeno da violência.

Varas
Família e
1
Sucessões
Infância e
4
Juventude
Violência
Doméstica e
Familiar
contra a
25
Mulher
Total 30

325
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

40 30
25
20
1 4
0
Familia Infância Violência Doméstica total

DADOS PESSOAIS

QUESITO IDADE

Idade
entre 0 e 10
1
anos
entre 11 e 20
6
anos
entre 201 e 30
7
anos
entre 31 e 40
6
anos
entre 41 e 50
9
anos
entre 51 e 60
0
anos
entre 61 e 70
0
anos
acima de 70
1
anos
Total 30

35 30
30
25
20
15
9
10 6 7 6
5 1 0 0 1
0
entre 0 e entre 11 e entre 201 entre 31 e entre 41 e entre 51 e entre 61 e acima de total
10 anos 20 anos e 30 anos 40 anos 50 anos 60 anos 70 anos 70 anos

326
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

De acordo com os dados obtidos na amostra, verifica-se que a violência


doméstica acomete mulheres em todas as idades, com maior incidência na faixa
etária entre 41 e 50 anos, embora ocorra de modo também acentuado nas faixas
etárias que englobam a adolescência e jovens (11 a 20) e também mulheres
maduras (31 a 40).
Nessa amostra houve incidência de violência doméstica em mulher
idosa, que geralmente ocorre entre mãe e filhos, e uma entre meninas com idade
entre 0 e 10 anos.
A experiência dos profissionais nas Varas de Violência Doméstica
demonstra que a violência entre meninas se dá principalmente por crimes
sexuais; ocorrem dentro dos núcleos familiares; e com pessoas da confiança da
criança. Já a violência doméstica entre adolescentes tem aumentado e se iniciado
precocemente nos relacionamentos entre jovens namorados.
A incidência da violência doméstica em diversas faixas etárias parece refletir a
tentativa do homem de impor seu desejo na relação e diante da recusa ou
resistência da mulher, utiliza a força física para atingir seu objetivo.

QUESITO COR

Cor
branca 15
negra 3
parda 11
amarela 1
Total 30

40

20

0
branca negra parda amarela total

327
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Observa-se que 15 entrevistadas eram brancas, 14 negras/pardas e


uma amarela. Em um primeiro olhar, contudo, evidencia-se paridade,
considerando que identidade racial é uma construção social, cultural e política, o
que, portanto, abrange a história de vida de cada indivíduo. Existe a dificuldade
de assumir uma identidade negra, no Brasil, devido à pouca divulgação de
modelos positivos, assim, não é possível conceber se as mulheres que se
declararam brancas, de fato o são, ou se há uma negação da negritude, por
desconhecimento do contexto sócio histórico, como acontece com aquelas
mulheres que são vítimas de violência e sequer têm ciência disso.
Aliado ao fato de algumas mulheres não terem uma percepção de sua
própria cor, pelas questões culturais já mencionadas, a amostra aponta que
chegaram para a Justiça mais mulheres que se autodeclararam brancas, com
uma incidência um pouco menor das que se consideram pardas e negras.
Se considerarmos que, no país, a maioria da população é composta de
negros e pardos, de acordo com dados do IBGE51, poderíamos esperar a mesma
incidência na busca pela Justiça, porém se observa algo diferente. É possível
levantar a hipótese de que as mulheres brancas são atendidas com um pouco
mais de atenção, quando vão buscar seus direitos e realizar um Boletim de
Ocorrência, porém, o mesmo parece não ocorrer com as mulheres negras e
pardas, que frequentemente não são incentivadas, na própria delegacia, a
efetuar a denúncia, pois muitas vezes sua fala é desconsiderada, o seu discurso e
percepção da violência é desqualificada, e encontram muitas dificuldades e alta
resistência dos profissionais para efetivar o documento. Tais fatos podem ser
comprovados nos relatos das mulheres.
Essa diferença na forma como se enxerga a mulher pode estar sendo
influenciada pelo machismo e pela violência institucional, que reproduzem as
relações de violência manifestadas em nossa sociedade; com as questões de
classe, gênero e cor interferindo na forma como essa mulher negra ainda é vista,
ou seja, como uma cidadã com direitos iguais aos de qualquer mulher,
independentemente da cor de pele. As mulheres negras sofrem discriminação de
tal forma a afastá-las dos serviços que são responsáveis pelo registro da violência
e da Rede de Atendimento. Apesar de as informações constantes no Atlas da

51
IBGE. Censo Agropecuário, 2017.
328
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Violência de 2019 apontarem que as mulheres negras sofrem mais violência em


comparação com as mulheres não negras, em 2017, registrou-se que 66% das
vítimas de feminicídio eram negras. De 2007 a 2017, a taxa de homicídios de
mulheres negras cresceu 29,9% e em números absolutos é de 60,5%. Mas o
número de mulheres brancas atendidas nas Varas pesquisadas é maior, porque
as mulheres negras enfrentam dificuldades para o registro. No cotidiano, seus
filhos adolescentes e jovens são abordados pela polícia de maneira mais
ostensiva e elas também sofrem preconceito quando entram em um
estabelecimento comercial e os seguranças as acompanham, desconfiando de
suas intenções no local e do possível poder de compra delas. Todos esses
fatores citados explicam em parte porque elas não chegam até o Judiciário.

QUESITO ESCOLARIDADE

Escolaridade
sem instrução 1
fundamental 8
médio 10
superior 11
Total 30

40 30
30
20 10 11
8
10 1
0
sem instrução fundamental médio superior total

329
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Analisando o resultado obtido neste quesito, verificou-se que 29


entrevistadas que sofreram violência doméstica possuem algum tipo de instrução,
e somente uma não teve acesso ao ensino formal.
Por meio dos dados coletados, constatou-se que das 30 mulheres, 11
possuem nível superior, 10 cursaram ensino médio, 8 o ensino fundamental e
uma não possui instrução formal.
Observando as categorias, tanto na forma individualizada como na
totalidade, percebe-se que as vítimas representam uma parcela da população que
pode ter facilidade de acesso às informações sobre a temática da violência contra
a mulher, e sobre as formas de enfrentamento.
A inserção em espaço formal de educação pode contribuir para
aprofundar o conhecimento das diferentes expressões da violência contra a
mulher, dos modos de prevenção e enfrentamento tanto no ambiente doméstico
como nos espaços institucionais. Detectou-se que a violência ocorre com
mulheres independentemente da escolaridade e em todas as classes sociais.

QUESITO INSTITUIÇÕES CITADAS

Instituições citadas
Polícia Militar 2
DDM/DEAM 13
CREAS/NPJ 1
Defensoria Pública 1
TJ 1
Polícia Civil 1
Conselho Tutelar 2
Hospital ou Serviços de Saúde 2
Total 23

330
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

25 23
20
15 13
10
5 2 1 1 1 1 2 2
0

Nos casos em que foi identificado o machismo institucional, foi


questionado em quais instituições essa situação ocorreu. A maioria das mulheres,
exatamente 13 delas, elencou que sofreu machismo institucional na DEAM e em
DDM. Em segundo lugar nas queixas das entrevistadas, foram citados a Polícia
Militar, o Conselho Tutelar e os hospitais ou Serviços de Saúde. Outras
instituições que também foram apontadas na pesquisa, foi o CREAS, a Defensoria
Pública, o Tribunal de Justiça e a Polícia Civil.
Silveira (2006, p. 46), aponta que:

A maior parte dos serviços foi criada em condições precárias de


funcionamento, o problema é sério, especialmente no que se
refere à efetividade das intervenções no sentido da ruptura da
relação violenta e/ou promoção da segurança das vítimas, bem
como a avaliação de satisfação das usuárias com o serviço
prestado. [....] Sabemos que algumas delas passam por um
processo de revitimização institucional, na busca de saída da
relação violenta. O aumento da denúncia pode significar o
aumento da vulnerabilidade das mulheres, no qual muitas vezes
sua vida é colocada em risco.

Em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é


imprescindível que ocorra a denúncia no sentido de punir e prevenir a ocorrência
desse tipo de violência, assim como, para que outras providências de proteção
sejam ofertadas à vítima. Nesse momento, as delegacias são, muitas vezes, o

331
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

primeiro local que a vítima procura. A pesquisa demonstrou que a maior parte das
mulheres sofreu com o machismo institucional nas delegacias especializadas,
instituição que deveria estar capacitada para acolher as vítimas e suas
demandas.
Outra questão que Silveira (2006, p. 49 e 58) denota é a seguinte:

A falta de infraestrutura impede a adequada intervenção nos


casos onde a gravidade exige uma ação de caráter policial. [...]
Dentro da lógica da corporação policial, o fato de ser designada
para uma Delegacia da Mulher significa um desprestígio ter que
cuidar de crimes menores e deste modo as funcionárias
delegadas, policiais e escrivãs se tornam vítimas da lógica das
desigualdades de gênero e isto se reflete na estrutura precária da
delegacia, além de contaminar o atendimento dado às vítimas,
principalmente quando são lotadas/os a contragosto e não
possuem capacitação adequada e renegada a segundo plano.

Os fatos explicitados colocam em evidência parte das contradições


que interferem e causam dificuldades no atendimento prestado pelas DDM. Esse
ponto da hierarquia policial e social merece atenção para facilitar a compreensão
da totalidade do problema, visto que, em algumas situações, pode contaminar o
atendimento prestado.
Vale ressaltar a necessidade de qualificar os profissionais para que
realizem uma atuação adequada, de respeito aos direitos humanos e ao que
preconiza a Lei Maria da Penha. É fundamental esse entendimento por todas as
instituições que recebem as vítimas de violência, para que a mulher não seja
exposta, reiteradamente, a novas situações de violência, agora, por parte das
instituições que prestam atendimento.

QUESITO TRABALHO E RENDA

Renda
sem renda 10
até um salário mínimo 10

332
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dois salários mínimos 3


três salários mínimos 3
quatro salários
mínimos 2
cinco ou mais salários
mínimos 2
Total 30

40 30
30
20 10 10
10 3 3 2 2
0
sem renda até um dois salarios tres salarios quatro cinco ou total
salario mininos mininos salarios mais salarios
minimo mininos mininos

QUESITO TRABALHO E OCUPAÇÃO

Trabalho/ocupação
do lar 2

auxiliar de limpeza 1

desempregada 6

comerciante 2

diretora de secretaria 1

manicure 2

auxiliar de escritório 1

secretária 1

confeiteira 1

professora 1

vendas 1

estudante 3

costureira 1

advogada 1
analista de
1
treinamento
cabelereira 1

médica cirurgiã 1

333
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cozinheira 1

balconista 1

vendedora 1

7
6
6

4
3
3
2 2 2
2
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
1

Neste breve estudo, pudemos perceber que a violência doméstica


acomete tanto mulheres que estão inseridas no mercado de trabalho (2/3 da
amostra), quanto as que estão fora (1/3 da amostra).
Foi possível perceber que um número maior de mulheres sem renda, ou
com renda baixa, é mais afetado pela violência doméstica, o que pode ilustrar a
situação de dependência econômica como um fator que aumenta a vulnerabilidade,
na medida em que pode estar dependendo financeiramente do companheiro, fator
muitas vezes decisivo para não conseguir romper o ciclo da violência.
No entanto, outro ponto que chama atenção é o fato de que a violência
doméstica também acomete mulheres com renda maior, ou seja, mesmo sem
dependência financeira, a relação de poder parece tentar se impor, nesse caso, pela
força.

334
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4.3 - RELATOS DE EXPERIÊNCIAS

- Um exemplo claro de violência e machismo institucional ocorreu em uma


comarca do interior de São Paulo, durante o Depoimento Especial de uma
adolescente vítima de violência sexual sofrida na infância. Após o relato livre da
adolescente, surgiram diversas perguntas da sala de audiências, na qual estavam
presentes o juiz, promotor, advogado de defesa e réu - todos homens. Tais
perguntas diziam respeito a, por exemplo, detalhes físicos de como ocorreu a
violência, por que a vítima demorou tantos anos para fazer a denúncia, se a
adolescente havia entrado em contato com o averiguado após o ocorrido,
demonstrando interesse “amoroso”, dentre tantas outras, que, em síntese,
culpabilizavam a adolescente pela violência sofrida e, claramente, intencionavam
desacreditar o seu relato. Alegando o objetivo de suposta proteção da adolescente
com a realização do Depoimento Especial, verificou-se exatamente o contrário:
desproteção e violência institucional, com uma adolescente, mulher, inquirida por
diversos homens.
- Outra situação ocorreu numa comarca da região grande leste da cidade
de São Paulo, em que uma mulher de aproximadamente 50 anos sofreu violência por
parte do companheiro, com cerca de 25 anos de idade, e foi inclusive expulsa da
casa de sua propriedade. Ao procurar a DDM, foi ridicularizada por duas
funcionárias, que não disfarçaram comentários jocosos por causa da diferença de
idade entre o casal. Envergonhada, deixou a delegacia sem prestar queixa,
buscando o plantão técnico do Fórum, onde oferecemos escuta e, por causa do
impedimento de regresso imediato ao lar, articulamos sua permanência, de forma
excepcional, no Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, já que o
município não contava com qualquer equipamento para acolhimento de adultos.
Posteriormente, essa mulher passou a ser voluntária do abrigo, pois foram criados
fortes laços, em meio à situação vivenciada. Assim, percebe-se que nos serviços que
deveriam oferecer acolhimento e garantia de direitos, por vezes, as mulheres vítimas
de violência deparam-se com agentes despreparados e preconceituosos, que
perpetuam a visão do senso comum, que prediz como devem ser os
comportamentos e relacionamentos das mulheres, como o recente e lamentável
episódio em que autoridades brasileiras teceram críticas a Brigitte Macron, primeira-
dama da França, por motivo semelhante ao deste relato.
335
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- Este caso foi atendido em um estudo psicossocial em Inquérito Policial


sobre denúncia de abuso sexual. Trata-se de mulher negra (44 anos) e sua filha (9
anos), numa denúncia anônima de abuso sexual. No atendimento com a genitora, foi
necessário um intenso trabalho de esclarecimento sobre os objetivos da entrevista,
pois ocorreram diversas faltas.
A genitora informou que não viria pelo fato de que havia sofrido ameaças
do Conselho Tutelar de que poderia perder a guarda da filha. Diante desse temor,
não queria correr o risco. O caso se referia a uma denúncia anônima de abuso
sexual na qual o pai estaria violentando a filha. A genitora sabia que esse relato era
falso, porém foi coagida pelo Conselho Tutelar a ir à delegacia, contra sua vontade.
Diante da sua recusa, houve ameaça de a criança ser abrigada por negligência dela.
Na delegacia, a responsável prestou os esclarecimentos, mas ainda
assim, a filha foi interrogada como se fosse uma criança criminosa. Como não dizia
o que os investigadores queriam, foi questionada por horas. A criança também
estava muito assustada, e somente depois de ser tranquilizada pela mãe, conseguiu
participar da entrevista, negando novamente os fatos.
- Cotidianamente ao realizar estudos sociais na Vara Central de Violência
Doméstica com mulheres em situação de violência, ouvem-se relatos de violências
sofridas em que se descrevem diversas situações, percepções e sentimentos, que
apontam a dor em relação às mazelas a que as crianças, adolescentes, mulheres
adultas e idosas são submetidas; ao longo dos atendimentos realizados nos diversos
serviços, as suas falas são interpretadas e analisadas com desconfiança, e em
algumas situações, é dado pouco crédito ao relato da vítima que por vezes é tratada
de forma preocupante.
O sofrimento moral, físico, sexual e psicológico é significativo e a
violência de gênero contra as mulheres prepondera, apesar da divulgação das leis
existentes em defesa do direitos das mulheres, dentre elas, a Lei Maria da Penha,
que paulatinamente tem conquistado os avanços necessários; detecta-se que os
índices de homicídios e feminicídios aumentam, porque as mulheres estão tomando
conhecimento e se apropriando dos seus direitos, denunciando mais e, ao mesmo
tempo, evidencia-se um momento de forte intolerância, quando a mulher deseja
romper o relacionamento e ter vontade própria. Acrescido a esses fatos, é
considerável o número de mulheres que tenta desistir do registro da ocorrência e ao

336
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

perceber o funcionamento do sistema, declinam de encaminhar uma ação à Justiça,


justamente tentando evitar a revitimização.
O que nos estimula a lutar por dignidade é perceber que, apesar da
existência do machismo institucional e do racismo estrutural, o movimento de
mulheres, das promotoras legais populares e das/os diversas/os profissionais
comprometidas/os com a causa, inclusive no ambiente do Judiciário, não desistem
de realizar ações importantes e mobilizadoras para que as mulheres sejam
atendidas com dignidade, utilizando a criatividade de maneira aguerrida com ações
importantes e o propósito de reconhecer a mulher como sujeito de direitos e mudar a
realidade tão dura e desafiadora.

337
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Identifica-se que o machismo é um sistema de representações simbólicas


que determina relações de dominação entre homem e mulher, estabelecendo
modelos normalizantes de identidades masculina e feminina e sujeição da mulher ao
“poder” do homem no âmbito familiar, comunitário, do universo do trabalho e do
segmento institucional.
Ao pensar as instituições como centros históricos de centralização do
poder, constata-se a reprodução do machismo e do racismo na sua dinâmica.
Verifica-se, portanto, que ambos são cometidos e praticados nas relações sociais
cotidianas. Como sua ocorrência pode ser implícita e sutil, bem como inconsciente,
por vezes, não são percebidos e identificados tão facilmente e com a relevância
necessária por quem sofre, pratica ou realiza o atendimento à população. Chega a
ser preocupante a forma como esse fenômeno é naturalizado.
Essa questão foi foco do estudo deste grupo que, ao analisar os dados
extraídos dos questionários aplicados às mulheres atendidas nos locais de trabalho
dos seus integrantes, constatou a existência de violência institucional, do racismo e
da predominância do machismo nos serviços de atendimento da rede de proteção à
mulher vítima de violência. Embora tal fato não seja percebido pela maioria das
pesquisadas, houve a identificação por intermédio dos resultados obtidos, que
revelaram tal prática por instituições públicas, ou seus prestadores de serviços, que
atuam, majoritariamente, na assistência, quando o problema está agravado. Deveria
existir um trabalho de prevenção e combate à violência de gênero desde a infância,
por meio da educação formal e não formal, visando à conscientização, garantia de
direitos e transformação dessa realidade.
A modificação de paradigmas não ocorre imediatamente, portanto, é
necessária uma atuação educativa e interventiva contínua, além de políticas públicas
efetivas que garantam o que está preconizado na Lei Maria da Penha (Art. 35, IV),
quanto aos programas e campanhas de enfrentamento das violências doméstica e
familiar. Nesse sentido, espera-se que os trabalhadores que atuam na Rede de
Atendimento às Mulheres em situação de violência proporcionem atenção
humanizada e cuidadosa na prestação de serviços, com direito à capacitação
continuada. No entanto, essa é uma ação a ser conquistada, como tantas outras que,

338
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

no passado, foram pautas de reinvindicação, cobrança e luta dos movimentos


feministas que ainda denunciam violações dos direitos das mulheres.
A realidade vivenciada pelas mulheres ainda é preocupante, porque revela
espaços de opressão de natureza diversa, no sistema de dominação patriarcal.
Como na sociedade há movimentos de expansão e retração na conquista de direitos,
verifica-se que, atualmente, há uma onda de retrocessos em relação ao que já foi
assegurado em lei. Dessa forma, observa-se a ameaça aos direitos das mulheres
com a deterioração das suas condições de vida, especialmente das mulheres negras
e imigrantes, que residem nas periferias.
A violência acomete e perpassa a realidade das mulheres de todas as
classes sociais e para romper com o preconceito e a intolerância é necessário não
naturalizar as violações de direitos, evitar prejulgamentos de ordem moral; investir na
capacitação continuada dos profissionais da rede de atendimento; e debater
continuamente as representações sociais e culturais dominantes que foram
historicamente construídas e impuseram padrões de identidade para homens e
mulheres, com consequentes desigualdades nas relações de gênero e poder, nos
mais diversos espaços, inclusive o institucional. Portanto, o desafio é desconstruir
progressivamente tais modelos e estabelecer relações mais respeitosas, igualitárias,
éticas e justas que, talvez em algumas dezenas de anos, transformem o quadro atual
de violência contra a mulher.

339
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: o legado


da raça branca. Ensaios de Interpretação Sociológica. 5. ed. v.1, São Paulo:
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FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA E INSTITUTO DE PESQUISAS


ECONÔMICAS APLICADAS. Atlas da violência de 2019. Brasília; Rio de Janeiro;
São Paulo: FBSP e IPEA, 2019. Disponível em:
https://www.forumseguranca.org.br>atlas-da-violencia-2019. Acesso em: 2 dez.
2019.
340
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

LOVATTO, Angélica. Desvendando o poder do macho: um encontro com Heleieth


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OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de Oliveira. Dez anos de políticas para mulheres:


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Abramo. Coleção Brasil Urgente, 2004.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. Coleção


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TENÓRIO, Emilly Marques. Lei Maria da Penha e medidas de proteção: entre a


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341
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DA CONJUGALIDADE À PARENTALIDADE:
ASPECTOS SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ARAÇATUBA


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

342
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Cíntia Lupifierio Antônio Ramos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac


Claudia Lopes Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac

AUTORES
Cássia Regina de Souza Preto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Cíntia Lupifierio Antônio Ramos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac
Claudia Lopes Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac
Cleia Leila de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de Buritama
Fabiana Bacelar de Matos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Andradina
Fátima Lie Asao Mendes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Valparaíso
Graciela Aparecida Franco Ortiz – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Jaqueline Portunieri Gomes Messias – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pereira
Barreto
Rosi Maria dos Santos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pereira Barreto
Lianara Carmona Vallego – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guararapes
Lívia Marinho de Moura – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mirandópolis
Márcia Kioko Hiraga – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes
Marco Antônio de Oliveira Branco – Psicólogo Judiciário – Comarca de Buritama
Marise do Nascimento Pinhata – Psicóloga Judiciário – Comarca de Valparaíso
Neuza Maria da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Nair Yayoi Haikawa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pereira Barreto
Regiane Silvério da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes
Regiane Vieira Martins – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pereira Barreto

343
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O reconhecimento social das diversas e diferentes configurações


familiares decorreu na necessidade do campo jurídico oferecer respostas legais às
demandas sociais que legitimem as relações de parentesco estabelecidas na
contemporaneidade.
Considerando essas alterações normativas e seu impacto direto no
exercício profissional do Serviço Social e da Psicologia Judiciários, a identificação e
a compreensão dessas reconfigurações a partir da análise técnica de seus
profissionais se constituem desafios em meio às diversidades familiares e parentais.
Destarte, com a preocupação ética de romper paradigmas morais que
priorizem a viabilização de direitos com vistas ao atendimento do melhor interesse
de crianças e adolescentes, este Grupo iniciou os estudos por meio de discussões e
reflexões advindas das experiências profissionais entre seus participantes que, na
troca de vivências cotidianas, foram instigados a buscarem maiores conhecimentos
nos aspectos jurídicos, sociais e psicológicos que circundam as relações familiares e
parentais na atualidade, bem como os conflitos advindos destas relações que se
findam na Justiça.
O presente trabalho foi desenvolvido por Assistentes Sociais e
Psicólogos judiciários das circunscrições de Araçatuba e Andradina contando com
as Comarcas de Andradina, Araçatuba, Bilac, Buritama, Guararapes, Mirandópolis,
Pereira Barreto e Valparaíso, totalizando dezoito participantes.
No primeiro momento os esforços do grupo se concentraram em
compreender o “princípio do melhor interesse da criança”, tendo em vista suas
diversas interpretações e utilizações nos contextos das avaliações psicossociais,
bem como, dos operadores do direito, que por vezes apresentam disparidades e
superficialidade na sua aplicação.
Em seguida os estudos foram centralizados nas conceituações dos
termos conjugalidade, multiparentalidade e da filiação socioafetiva. Essa abordagem
foi imprescindível para a compreensão da evolução social das configurações
familiares que determinou as alterações jurídicas e, consequentemente,
profissionais.

344
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A partir dessa compreensão o grupo inquietou-se frente aos papéis


desempenhados (ou não) pelos genitores/pais, especialmente em situações em que
ações de negatória de paternidade passaram a fazer parte das demandas
profissionais.
E por fim, as reflexões caminharam para o estudo das avaliações
profissionais realizadas pelos Setores Técnicos diante destas demandas que
continuarão exigindo dos profissionais respostas na perspectiva da viabilização dos
direitos em consonância com as transformações sociais próprias do movimento
histórico da sociedade.
Para tanto, foram realizadas pesquisas bibliográficas e revisão de
literatura acerca da temática, com vistas a conceituar as categorias de análise do
estudo e relacioná-las à prática profissional nos processos das Varas de Família e
da Infância e Juventude.

O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

O Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) tem como um de


seus princípios, o melhor interesse da criança e do adolescente que resulta de toda
discussão e evolução do lugar da infância na sociedade ocidental, que desde a
Declaração Universal dos Direitos da Criança (UNICEF, 1959) é reconhecida como
momento peculiar de desenvolvimento e que necessita ser olhado e atendido em
suas especificidades e necessidades de proteção.

Desse modo, foram reconhecidos no âmbito internacional direitos


próprios da criança, que deixou de ocupar o papel de apenas parte
integrante do complexo familiar para ser mais um membro
individualizado da família humana que, em virtude de sua falta de
maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados
especiais, inclusive da devida proteção legal, tanto antes quanto
após seu nascimento (BARBOZA, 2000, p. 201).

Importante sinalizar que

Os princípios enunciam proposições de maior grau de abstração,


sem que se possa apreender de plano a situação da realidade que
345
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pretendem regrar. [...] Nesse contexto, segue-se que a consideração


dos princípios pelos operadores do direito não é facultativa, tratando-
se não de uma opção pela respectiva observância, mas sim de uma
reflexão sobre como se dará sua aplicação, a fim de evitar, por outro
lado, que a vagueza do princípio resvale no arbítrio judicial
(GONÇALVES, 2011, s/p.).

Desta forma sua aplicação não esta dada de pronto, o que implica
paramentá-lo em algumas questões práticas, que segundo literatura pesquisada, se
legítima na proteção integral garantida a partir da efetivação dos direitos
fundamentais inscritos na legislação.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13.07.1990)


concretizou e expressou os novos direitos da população infanto-
juvenil, que põem em relevo o valor intrínseco da criança como ser
humano e a necessidade de especial respeito a sua condição de
pessoa em desenvolvimento [...] afirmar-se que a doutrina da
proteção integral, de maior abrangência, não só ratificou o princípio
do melhor interesse da criança como critério hermenêutico, como
também lhe conferiu natureza constitucional, como cláusula genérica
que em parte se traduz através dos direitos fundamentais da criança
e do adolescente expressos no texto da Constituição Federal
(Barboza, 2000, p.204; 206).

Assim, ao pensar no melhor interesse da criança/adolescente deve-se ter


como base o acesso e efetivação de seus direitos, tanto de ordem social (acesso à
educação, saúde), como os individuais (à participação, a liberdade, ao afeto, ao
cuidado).
Dito isso, em processos de negatória de paternidade, o princípio do
melhor interesse deve ser invocado e analisado em cada situação, haja vista que as
relações humanas, sociais e familiares, apresentam aspectos singulares em cada
unidade familiar.

A extensão do princípio do melhor interesse a toda criança e


adolescente, outrossim, resulta de uma mudança da própria
concepção de família como ambiente voltado ao desenvolvimento de
seus membros, que privilegia a criança como sujeito, com
repercussões inclusive sobre o poder familiar. Tal poder, dentro da
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

nova família, orienta-se pelos interesses fundamentais dos filhos,


vislumbrando-se uma mudança quanto ao foco: dos interesses dos
agentes do poder, para os interesses de seus destinatários
(GONÇALVES, 2011, s/p.).

Desta forma, ao adentrar na seara da paternidade biológica ou


socioafetiva há necessidade de se pensar do ponto de vista da criança/adolescente
envolvido e não dos interesses, desejos ou posicionamentos de seus pais e/ou
responsáveis. Neste sentido, Barboza (2000) esclarece que:

O estabelecimento da paternidade, revolucionado pela possibilidade


de determinação do vínculo biológico mediante exame do DNA,
encontrou no princípio do melhor interesse da criança um dos
fundamentos da denominada paternidade socioafetiva, que
reconhece efeitos ao vínculo gerado pela afetividade, a desafiar
todas as regras jurídicas existentes (BARBOZA, 2000, p. 208).

Portanto, compreende-se que o melhor interesse da criança e do


adolescente deve pautar o olhar dos profissionais que intervêm na área da infância,
principalmente os assistentes sociais e psicólogos que atendem processos judiciais
nos quais se discute paternidade/maternidade socioafetiva e negatória de
paternidade, haja vista que como princípio, depende de interpretação de como se
garantir de forma mais protetiva e segura os direitos aos quais toda criança e
adolescente faz jus.

CONJUGALIDADE

Conjugalidade e parentalidade são termos que vem sendo utilizados nas


últimas décadas, particularmente no âmbito jurídico, para designar alguns dos
relacionamentos humanos estabelecidos no contexto familiar. Segundo Dantas et. al.
(2019, p. 2, grifo nosso):

O termo parentalidade passou a ser utilizado a partir da década de


1980, para designar o agrupamento das funções e dos papéis
parentais, sendo utilizado para se referir ao processo de tornar-se pai
e mãe, abarcando os aspectos conscientes e inconscientes inerentes
347
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a essa experiência. [...] A conjugalidade, por sua vez, refere-se à


identidade compartilhada a partir do entrelaçamento das
subjetividades dos membros do casal, tendo sua origem na história
familiar de cada um. Desse modo, a construção da conjugalidade é
marcada pela continuidade geracional, por meio da qual os modelos
parentais e conjugais da família de origem são transmitidos e
modificados.

Os exercícios da conjugalidade (relacionamento entre os membros do


casal) e da parentalidade (relacionamento entre mães/pais e filhos) são
constantemente objetos de estudo de profissionais das áreas de Psicologia, Serviço
Social e Direito. Não raro, conjugalidade e parentalidade são aspectos importantes a
serem considerados nas resoluções de demandas judiciais, particularmente no
âmbito do Direito de Família.
Assim, inicialmente discorre-se brevemente sobre as motivações para a
conjugalidade e, após, as consequências do rompimento da conjugalidade no
exercício da parentalidade, bem como os reflexos dessas consequências que devem
ser observados na prática profissional de psicólogos e assistentes sociais no
contexto jurídico.
A conjugalidade, seja exercida através de um casamento formal ou união
estável, apresenta diversas motivações para seu exercício, que são modificadas na
medida em que as expectativas das pessoas se alteram a partir de referências
culturais.
Na atualidade, o casamento (ou união similar) apresenta algumas
características, cujo destaque compreendeu ser importante, a partir dos
apontamentos de Neto, Strey e Magalhães (2011): O número de uniões consensuais
vem aumentando desde 2003, porém em contrapartida, também cresceram as taxas
de divórcios. O casamento não é uma instituição falida como se acreditou, mas sim
instituição que tem sofrido abalos nos modelos predominantemente praticados,
construídos a partir da ideologia do amor romântico e de outras ideias que levam em
consideração as demandas relacionais de um mundo em constante transformação.
Repetem-se padrões relacionais reconhecidos e valorizados socialmente,
muitas vezes perpetuados através da educação. Contudo, uma análise sobre a
educação para a conjugalidade aponta um paradoxo e, os fatores vistos como
desejáveis na relação conjugal podem ser os mesmos que a dificultam.
348
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na sociedade contemporânea, o convívio social permanece basicamente


calcado nas identidades de gênero e nas suas regulações. Desde a infância,
meninos e meninas são educados de maneira a fortalecer tais identidades, que
reforçam a hegemonia masculina e a heterossexualidade aparentemente inabalável.
Com isso, ocorre a permanência da valorização de modelos tradicionais e a
consequente inibição de outros possíveis modelos, os quais são refutados e
desqualificados. Esse processo centra-se na tendência das instituições familiares, de
ensino e sociais em repetir interações regulares e previsíveis.
Deste modo, como existem famílias muito distintas entre si, também as
razões pelas quais as pessoas decidem estabelecer relações conjugais podem ser
muito diversas. Na pesquisa referida (Neto, Strey e Magalhães, 2011), sobre o que
era importante na opção pela vida conjugal, foram ressaltados a busca da satisfação
de desejos individuais em termos de atração, a sexualidade, o amor, a maternidade
e a consolidação da identidade como fatores motivacionais para o estabelecimento
da conjugalidade. Além disso, também foi considerado importante que a qualidade
das relações conjugais seja satisfatória para ambos os parceiros e não apenas para
um deles, apontando a tendência igualitária nas relações amorosas.
As diferenças entre os posicionamentos de homens e mulheres conduzem
a alguns impasses frequentemente estabelecidos nas relações conjugais
contemporâneas. Há algumas evidências de que os homens definem casamento
como constituição de família, enquanto as mulheres concebem o casamento como
relação amorosa. Concepções distintas também podem conduzir a expectativas
díspares e esse desequilíbrio contribui para uma roda viva de insatisfação nos
relacionamentos, que ou se romperão quando o limiar de tolerância à frustação for
ultrapassado, provavelmente pelas mulheres, ou, então, conduzirão a
relacionamentos insatisfatórios e aprisionantes (Neto, Strey e Magalhães; 2011).
Quanto às motivações para a conjugalidade, os autores encontraram as
seguintes informações em sua pesquisa:
• Atração física: a atração foi referida como desejável e, ao mesmo
tempo, temida nos relacionamentos conjugais.
• O amor: o amor é citado como elemento fundamental para o
estabelecimento de uma relação conjugal, assim como para sua manutenção. A
fragilidade dos laços humanos tem sido discutida por muitos autores

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

contemporâneos, que denominam esse sentimento fugaz de amor líquido, que


inspira o conflitante desejo de tornar os laços intensos e frouxos, simultaneamente.
• A maternidade: para muitas mulheres, a conjugalidade está associada
à maternidade. A conjugalidade também é pressionada pelo desejo/mandado de
conceber filhos. Os filhos são vistos como produtos naturais da conjugalidade,
sendo, na maioria das vezes, colocados no centro do projeto conjugal.
• Consolidação da identidade: o estabelecimento da conjugalidade e a
satisfação conjugal se associam a fatores subjetivos que fortalecem identidades
valorizadas socialmente.
• A carga transmitida geracionalmente nas motivações para a
conjugalidade: a força da transgeracionalidade na escolha conjugal apareceu na
descrição das expectativas de homens e mulheres quanto a seus parceiros.
• As expectativas e a percepção da vivência da conjugalidade entre
os sexos: dois aspectos são relevantes quando se fala em papéis de gênero na
atualidade: dos homens, é esperado que adquiram maturidade na relação conjugal;
das mulheres, espera-se a concomitância do desenvolvimento profissional e da
manutenção dos cuidados domésticos.
• Como prever a qualidade da relação conjugal: no dia a dia da
relação, os estereótipos de gênero revelam-se em sua plenitude, causando
insatisfação tanto em quem deseja escapar deles quanto em quem pretende se
adequar a eles. A vida conjugal exige muitas adaptações nas relações entre os
cônjuges. Embora atualmente o namoro e o noivado tenham algumas similitudes
com o casamento, somente no cotidiano da vida conjugal aparecem situações que
estiveram ausentes nos estágios anteriores.
Assim como atualmente há diferenças entre as motivações para homens
e mulheres quanto ao exercício da conjugalidade, também é possível perceber que
ao longo da história os papéis de gênero têm sido determinantes para o exercício da
parentalidade. Esses diferentes papéis têm impacto na construção da legislação e
na resolução dos conflitos no âmbito judicial.
Embora o exercício da parentalidade não necessariamente esteja atrelado
ao exercício da conjugalidade, uma vez que o relacionamento e os cuidados com os
filhos devam existir ainda que os pais não tenham entre si um relacionamento
afetivo-conjugal, notamos ao longo da história que situações ocorridas no âmbito da

350
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conjugalidade foram fatores determinantes para a definição de guarda dos filhos


menores de idade na legislação brasileira (BRANDÃO, 2011).
No Código Civil de 1916 (Brasil, 1916), o casamento formal era
considerado indissolúvel, ou seja, os cônjuges que eventualmente viessem a romper
o relacionamento permaneciam unidos legalmente, não havendo possibilidade de
contraírem novos casamentos. Para aqueles que se separassem de fato havia o
denominado desquite, e a guarda dos filhos menores de idade era determinada
judicialmente nessa situação. Tinha o direito de exercer a guarda o cônjuge que era
considerado inocente, isto é, que não tivesse descumprido algum dos deveres
matrimoniais (fidelidade, mútua convivência, etc.). O cônjuge que tivesse
descumprido seus deveres matrimoniais cometia uma falta conjugal e era
considerado culpado. Nessa condição, não lhe era designada a guarda dos filhos.
Se ambos os cônjuges fossem considerados culpados, a guarda dos filhos homens
de até seis anos de idade e das filhas mulheres independente da faixa etária era
determinada à mulher. Não eram preferencialmente considerados nessa definição os
cuidados prestados pelo pai ou mãe aos filhos.
Em 1977 é promulgada no Brasil a chamada Lei do Divórcio Lei Nº
6.515/1977 (Brasil, 1977), que instituiu este regulamento no ordenamento jurídico
nacional, permitindo aos cônjuges que rompessem legalmente o vínculo conjugal,
tornando possível novos casamentos, se assim o desejassem. Porém, a definição
judicial da guarda dos filhos menores de idade continuava considerando a existência
da falta conjugal, determinando que fosse exercida pelo cônjuge considerado
inocente. Naquele momento, se ambos os cônjuges fossem considerados culpados,
a guarda era sempre fixada para a mãe, refletindo os estereótipos de papéis de
gênero que apontavam a mulher como naturalmente mais bem capacitada para os
cuidados aos filhos do que o homem. Em síntese, aspectos da conjugalidade
definiam o exercício da parentalidade.
Apenas com a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente de 1990 (Brasil, 1988; 1990a), as situações ocorridas no âmbito da
conjugalidade passam a não ser determinantes para a definição de guarda no
contexto judicial, prevalecendo o princípio do melhor interesse dos filhos. Os
cuidados necessários à criança ou adolescente devem ser exercidos por quem
apresentar melhores condições nas relações parentais.

351
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O trabalho dos peritos psicólogos e assistentes sociais ganha ainda maior


relevância, pois o conhecimento produzido por esses técnicos sobre cada dinâmica
familiar é utilizado como subsídio para a definição de guarda e, consequentemente,
dos períodos de convivência do pai/mãe não guardião. Essa relação entre
conjugalidade e parentalidade, particularmente acerca da qualidade com que os ex-
membros de um casal/pais/mães conseguem desempenhar esses papéis e funções,
são determinantes para a garantia de cuidados adequados aos filhos.
Quando um casal se constitui, seus membros passam inevitavelmente a
vivenciar uma relação dialética em suas identidades. Passam a realizar um projeto
de vida em comum em sua união, mas também mantém sua individualidade. As
relações cotidianas ocorrem nessa tensão entre “eu” e “nós”. As pessoas passam a
ser reconhecidas também pelo relacionamento que constituíram, pois assim se
apresentam publicamente. Em suas identidades, também passam a se reconhecer
como uma pessoa que tem um projeto de vida em comum com quem escolheram.
Porém, ocorre que alguns relacionamentos conjugais terminam, e esse
projeto de vida compartilhado não é mais realizado, havendo necessidade de
reconfiguração das identidades dos membros do agora ex-casal. Esse processo
psicológico e social de reconstrução de vida nem sempre é fácil, e costuma produzir
reflexos nos cuidados aos filhos. Segundo Moreira (2012), há três aspectos envoltos
nesse processo que precisam ser bem considerados quando um relacionamento
chega ao fim: o luto pelo rompimento da conjugalidade; a reconstrução da identidade
individual; e a preservação e o acolhimento dos filhos em sua dor, insegurança,
angústia e tristeza.
Nem sempre esses aspectos são bem elaborados pelas pessoas, e
podem produzir uma dinâmica relacional que transparece nos processos judiciais
envolvendo questões de família como definição de guarda e visitas (ou períodos de
convivência), reconhecimento de paternidade/maternidade socioafetiva, pedido de
nulidade de registro de paternidade, declaração de existência de alienação parental,
entre outras.
Segundo Brandão (2011), o divórcio (e também a dissolução de união
estável) costuma ser o ápice de um processo que se inicia com uma crescente
perturbação do casamento/união. Pelas expectativas produzidas pelos membros do
casal, permeadas pelos significados culturais acerca do casamento, é comum que

352
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

as pessoas se esforcem em manter-se unidas, mesmo que o relacionamento não


esteja satisfatório. No entanto, nem sempre a manutenção da união é possível e,
após o rompimento, pode levar bastante tempo até que os ex-cônjuges consigam
conquistar uma estabilidade emocional.
Nesse sentido, os conflitos existentes entre os membros do casal podem
continuar ou aumentar mesmo após o rompimento do relacionamento. Disso resulta
um contexto relacional que alimenta uma lógica adversarial entre os ex-cônjuges,
que se constituem partes de um processo de definição de guarda dos filhos menores
de idade, por exemplo. Na ação judicial, buscam atacar-se mutuamente e, por
vezes, acabam prejudicando o bem-estar dos filhos, pois os conflitos na esfera da
conjugalidade atrapalham o exercício do parentalidade.
Muitos pais/mães têm uma diminuição da capacidade parental nessa
situação. Isso ocorre, por exemplo, quando um deles passa a não conviver com os
filhos para evitar contato com o ex-companheiro, ou por solicitações da pessoa com
quem atualmente se relaciona em um novo exercício de conjugalidade. Em outros
casos, a convivência é restringida pelo ex-cônjuge como forma de atingir a pessoa
com quem mantinha um relacionamento e que, neste momento é considerado por
ele pessoa inadequada para relacionar-se com os próprios filhos.
Em suma, conjugalidade e parentalidade podem ser exercidas
concomitantemente, sobretudo quando os membros do casal são também pais/mães
dos filhos com quem convivem. Todavia, considerando o melhor interesse de
crianças e adolescentes e seu desenvolvimento saudável, mesmo quando há um
rompimento conjugal, ou quando novas relações conjugais são estabelecidas
(família reconstituída), é importante que o exercício da parentalidade seja
preservado.

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

Pai é quem cria! Basicamente sob esta premissa, os Tribunais de Justiça


têm reconhecido a existência da paternidade socioafetiva e, ao mesmo tempo,
indeferido requerimentos de negatória de paternidade quando identificada a

353
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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existência de vínculos socioafetivos, ainda que comprovada a inexistência de vínculo


biológico.
Os vínculos socioafetivos se consagraram importantes de tal modo que,
para obter êxito em ações de negatória de paternidade o Superior Tribunal de
Justiça estabeleceu a necessidade

[...] da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem


biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de
filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado
na convivência familiar (BRASIL, STJ, 2012).

A paternidade/maternidade socioafetiva se caracteriza quando alguém


assume a responsabilidade sobre criança ou adolescente tornando-se referência
para o exercício da função paterna ou materna. Em seu Manual de Direito das
Famílias, Dias (2017b), apresenta o questionamento de Pereira (2015)

Podemos definir o pai como o genitor, o marido ou companheiro da


mãe, ou aquele que cria os filhos e assegura-lhes o sustento, ou
aquele que dá seu sobrenome ou mesmo seu nome? A resposta só
pode ser uma: nada mais autêntico do que reconhecer como pai
quem age como pai, quem dá afeto, quem assegura proteção e
garante a sobrevivência. (PEREIRA, 2015 Apud DIAS, 2017b, p.
412).

Uma questão importante a ser pontuada é que afeto e genética, não


necessariamente, estão interligados. Na obra anteriormente citada, a autora enfatiza
a diferença entre pai e genitor:

Pai é o que cria, o que dá amor, e genitor é somente o que gera. Se,
durante muito tempo – por presunção legal ou por falta de
conhecimentos científicos, confundiam-se essas duas figuras, hoje é
possível identificá-las em pessoas distintas (DIAS, 2017b, p. 419,
grifo da autora).

354
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A filiação socioafetiva decorre do estado de pertencimento, é o sentir-se


filho. “Quem se apresenta como filho e assim é tratado no âmbito da família e da
sociedade, filho é! Dispõe do que se chama da posse do estado de filho”. (DIAS,
2017a, p. 49). Sabiamente, Pereira (2015a) afirma que:

[...] os laços de sangue não são suficientes para garantir um


parentesco, pois a verdadeira paternidade/maternidade é adotiva,
isto é, se eu não adotar meu filho, mesmo biológico, jamais serei
pai”. E a paternidade socioafetiva é uma categoria da paternidade
adotiva (PEREIRA, 2015a).

Madaleno (2000) apud Santos (2013) faz uma análise na mesma linha ao
referir que [...] “a paternidade real não é biológica, e sim cultural, fruto dos vínculos e
das relações de sentimentos que vão sendo cultivados durante a convivência com a
criança” (SANTOS, 2013).
Em consonância com as afirmações acima, Dias (2017a) aponta que,
historicamente, a posse do estado de filho se caracteriza por três elementos:
Tractatus – o reconhecimento como filho perante a família; Nomem – o uso do
sobrenome de família e Fama (ou Reputatio) – o reconhecimento público como filho.
Entretanto, ainda que não haja o uso do sobrenome de família, os outros dois
elementos são suficientes quando capazes de confirmar a verdadeira paternidade.
Segundo Fujita (2009) apud Cassetari (2017), a posse de estado de filho:

Se traduz pela demonstração diuturna e contínua da convivência


harmoniosa dentro da comunidade familiar, pela conduta afetiva dos
pais em relação ao filho e vice-versa, pelo exercício dos direitos e
deveres inerentes ao poder familiar, visando ao resguardo, sustento,
educação e assistência material e imaterial do filho (FUJITA, 2017
Apud CASSETARI, 2017, p. 38).

Conforme Dias (2017a, p. 48), “os laços de sangue não são suficientes
para garantir a verdadeira parentalidade”, pois esta “pode ser também uma
construção socioafetiva que nasce na ‘posse de estado de filho’ ou ‘posse de estado
de pai’”. Deste modo, o mero resultado negativo em exame de compatibilidade
355
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

genética já não é capaz de desconstruir o vínculo jurídico. Conforme se observa, a


verdade biológica cedeu espaço para a verdade socialmente construída pelo desejo
do exercício da parentalidade, sendo, posteriormente, legitimada pelo Direito (Grifo
da autora).

A verdade socioafetiva pode até nascer de indícios, mas toma


expressão na prova; nem sempre se apresenta desde o nascimento.
Revela o pai que ao filho empresta o nome, e que mais do que isso o
trata publicamente nessa qualidade, sendo reconhecido como tal no
ambiente social; o pai que ao dar de comer expõe o foro íntimo da
paternidade, proclamada visceralmente em todos os momentos,
inclusive naqueles em que toma conta do boletim e da lição de casa.
É o pai das emoções, dos sentimentos, e é o filho do olhar
embevecido que reflete aqueles sentimentos. Outro pai, nova família
(FACHIN, 1996 Apud CASSETTARI, 2017, p. 15).

Uma das formas em que se identifica a existência de paternidade


socioafetiva é na chamada “adoção à brasileira”52, onde o homem, de forma
consciente e voluntária, reconhece juridicamente como filho, uma criança ou
adolescente de quem, sabidamente, não é o genitor. Geralmente, filhos de sua
companheira/esposa, nascidos de relacionamentos anteriores e que não possuíam
reconhecimento paterno. Tal ato é ilegal e expresso no Art. 242 do Código Penal
Brasileiro - Decreto-Lei Nº 2.848/1940 (Brasil, 1940), que trata dos crimes contra o
estado de filiação. Consta no referido artigo que, dar parto alheio como próprio;
registrar como seu o filho de outrem [...] são crimes passíveis de reclusão de dois a
seis anos. Entretanto, se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza, a
pena é reduzida para um a dois anos de detenção, podendo o juiz deixar de aplicá-
la.
Em uma análise primária das principais páginas de material jurídico
disponíveis na internet, não foram identificados casos em que houve punição de pais
afetivos que incorreram na chamada ‘adoção à brasileira’, haja vista que a sociedade

52
Adoção à brasileira é um termo comumente utilizado para definir uma adoção ilegal,
normalmente ocorrida de duas formas: 1 - Através da entrega direta da criança à outra família
sem autorização da Justiça. 2 - Através do reconhecimento jurídico da paternidade de filho alheio
como próprio.
356
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ainda valoriza o reconhecimento da paternidade de filho alheio como um ato de


nobreza.
O reconhecimento da filiação socioafetiva é uma das vertentes pela qual é
possível analisar as modificações do conceito de família. Em 2016, o Dicionário
Houaiss redefiniu o principal conceito de família, passando a constar no primeiro
tópico que esta se configura pelo “núcleo social de pessoas unidas por laços
afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantém entre si uma
relação solidária”. Tal conceito é muito mais amplo que a definição que outrora
constava naquele espaço e referia apenas “o grupo de pessoas vivendo sob o
mesmo teto (especialmente o pai, a mãe e os filhos)”. Este segundo conceito,
bastante reducionista, passou a ocupar um papel secundário, mas ainda consta no
referido dicionário, assim como vários outros significados para o termo “família”.
O novo conceito abarca justamente o que Valadares (2010b) chama de
família mosaico, aquela onde o casal ou uma das partes traz filhos de
relacionamentos anteriores. Em muitos núcleos familiares observa-se a existência
“dos meus, dos seus e dos nossos filhos”, em que a autora citando Guimarães
(1998) aponta que, justamente em virtude dos vários arranjos possíveis, surgiu um
novo tipo de família extensa, com novos laços de parentesco, compondo uma rede
social cada vez mais complexa.
Um ponto relevante a ser analisado e que também foi objeto de estudo de
Valadares (2010b) é que a relação afetiva entre padrastos/madrastas e seus
enteados que, em muitos casos hoje é reconhecida como paternidade/maternidade
socioafetiva, vem encontrando respaldo legal desde a década de 1960 através do
Direito Trabalhista e Previdenciário. A Lei Nº 10.261/1968 - Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo equipara os enteados a filhos,
constando no parágrafo único do Art. 155, que trata do Salário Família, que são
considerados dependentes, desde que vivam total ou parcialmente a expensas do
funcionário, os filhos de qualquer condição, os enteados e os adotivos,
equiparando-se a estes os tutelados sem meios próprios de subsistência (Grifo
nosso). O mesmo Estatuto equipara, para algumas questões, padrastos e madrastas
a pais e mães, senão vejamos: ainda sobre o Salário Família, consta no Art. 158 -
Ao pai e à mãe equiparam-se o padrasto e a madrasta e, na falta destes, os
representantes legais dos incapazes.

357
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Valadares (2010b) cita outras legislações, dentre as quais destacamos:


Lei Nº 8.112/1990, que dispõe sobre o Regime Jurídico de Servidores Públicos Civis
da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais, em que padrastos e
madrastas são equiparados a pais e mães, bem como enteados a filhos e a Lei Nº.
8.213/1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social, onde
enteados são equiparados a filhos mediante declaração do segurado e desde que
comprovada a dependência econômica.
Também na Lei Complementar Nº 1.041/2008 do Estado de São Paulo, que
dispõe sobre o vencimento, a remuneração ou o salário do servidor que deixar de
comparecer ao expediente em virtude de consulta ou sessão de tratamento de
saúde, padrastos e madrastas são equiparados a pais e mães, entretanto, tal
legislação não menciona enteados (SÃO PAULO, 2008).
Contrariamente a toda essa legislação, que em muito equipara pais e mães a
padrastos e madrastas e filhos a enteados, Valadares (2010b) problematiza uma
questão importante. O Código Civil - Lei Nº 10.406/2002, em seu artigo 1.636, traz
que o poder familiar não se extingue com o novo casamento ou união estável do pai
ou da mãe, e que este exercerá seus direitos sem interferência do novo
cônjuge ou companheiro (Grifo nosso). Entretanto, a autora questiona se há forma
de impedir que “pais e mães afins” (como denomina padrastos e madrastas)
interfiram na vida dos filhos de seus pares, se são eles que acompanham as
crianças e adolescentes no dia a dia.
A depender do tipo de relação estabelecida pela criança ou adolescente
com esta nova família constituída e da presença e participação efetiva (ou não) do
pai/mãe biológico(a) na vida deste, maior ou menor deverá ser a participação e,
consequentemente, a interferência entre “pais/mães afins” e enteados (ou filhos
afetivos) advindos desta mais recente forma de filiação reconhecida no Brasil: a
filiação socioafetiva.
A paternidade socioafetiva não se sobrepõe à biológica e ambas podem
coexistir, quando este for considerado o melhor interesse da criança. Deste modo, o
Supremo Tribunal Federal, ao julgar Recurso Extraordinário, reconheceu a
multiparentalidade que vinha sendo discutida em diversos Tribunais, com decisões
favoráveis e contrárias, fixando, a partir de então, tese jurídica para aplicação em
casos semelhantes no sentido que ”a paternidade socioafetiva, declarada ou não em

358
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registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante


baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (BRASIL - STF,
2017).

MULTIPARENTALIDADE

No decorrer da história da humanidade há continuamente inúmeras


mudanças na sociedade e, consequentemente, na família enquanto processo de
constituição como motivações para a conjugalidade, a formalização, as funções, os
papéis dos pais, a dissolução conjugal, a dinâmica familiar e outras.
Estas mudanças provocam alterações no conjunto de normas legais
reguladoras das relações familiares, acompanhando assim, todo este processo
histórico mediante adaptações objetivando a garantia dos direitos relacionados à
família.
Contextualizando tais alterações na legislação brasileira, Oliveira e
Tomaszewski (2017), citam o exemplo Código Civil de 1916 que reconhecia como
família, o núcleo familiar formalizado pelo matrimônio indissolúvel, discriminava
legalmente as uniões consensuais e os filhos advindos destes relacionamentos.
Como também considerava “ilegítimos” os filhos provenientes das relações
extraconjugais, tratando-os desigualmente em relação aos filhos “legítimos”.
Posteriormente, segundo os referidos autores, esclarecem que o Código
Civil sofreu modificações com o Estatuto da Mulher Casada, Lei Nº 4.121/62 e a
instituição do Divórcio pela Emenda Constitucional 9/77, Lei Nº 6.515/77. Com a
Constituição Federal/1988 prevaleceram os princípios de equiparação na relação
familiar, superando quaisquer discriminações ou tratamentos desiguais, sucedendo
desde então, normas que buscam amparar as diversas configurações familiares e
suas respectivas demandas.
Dentro desta perspectiva, o art. 1593 do Código Civil de 2002 (BRASIL,
2002) reconhece as espécies de parentesco em natural ou civil que resulta da
consanguinidade e de outra origem como a adoção ou a paternidade e filiação
socioafetiva tendo como fundamento a posse de estado de filho, acarretando assim,
a mudança de paradigma, a “Desbiologização da Paternidade” conforme

359
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

vislumbrava João Baptista Villela em conferência realizada em 09/05/1979, ou seja,


o acolhimento do paradigma da paternidade e filiação socioafetiva.
Conforme Calderón (2019), o reconhecimento voluntário e a averbação da
paternidade e maternidade socioafetiva foram padronizados, inicialmente, em todo o
território nacional pelo Provimento nº 63, de 14 de Novembro de 2017 do CNJ, que
teve a redação alterada pelo Provimento nº 83, de 14 de Agosto de 2019,
objetivando a restrição e o controle dos casos que podem ser formalizados
extrajudicialmente (CNJ, 2017; 2019 Apud Calderón, 2019).
O expediente para o reconhecimento voluntário e a averbação da
paternidade e maternidade socioafetiva está previsto pelo Provimento nº 83 da
seguinte forma, resumidamente, segundo Calderón (2019):
- Perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, a pessoa maior
de 12 anos formaliza a sua anuência. Esta restrição etária tem como objetivo
prevenir as “adoções à brasileira” ou a burla do Cadastro Nacional de Adoção.
Quanto às averbações de filiações socioafetivas nos casos de crianças, só podem
ser formalizadas pela via judicial;
- Apresentação de documentos ou demais elementos que comprovam
objetivamente a existência da afetividade em termos de vivência pública, de
permanência contínua e duradoura do vínculo paterno ou materno filial;
- Esta comprovação visa à segurança jurídica do procedimento
considerando à irrevogabilidade da filiação socioafetiva, art. 10, §1º do Provimento
nº 83, e que em caso de suspeita de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade,
simulação ou dúvida em relação ao estado de posse de filho, o oficial de registro civil
deve fundamentar a recusa e encaminhar o pedido ao juiz competente (art. 12);
- Preenchidos os requisitos para o devido reconhecimento, o oficial de
registro civil encaminha o expediente ao Ministério Público, sendo o parecer
favorável é averbada a filiação socioafetiva no registro. Caso contrário, há
possibilidade da pessoa comprovar o vínculo pela via judicial.
Outra alteração prevista no provimento se refere à hipótese de
multiparentalidade unilateral, mas no sentido de esclarecer o art. 14 do Provimento
63. Ou seja, o Provimento nº 83 prevê a inclusão de um ascendente socioafetivo,
paterno ou materno, com a possibilidade da inclusão de mais um ascendente
socioafetivo pela via judicial.

360
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O reconhecimento da parentalidade socioafetiva pela legislação brasileira


teve como desdobramento o instituto da multiparentalidade que trata da
possibilidade jurídica de se ter mais de um pai ou mais de uma mãe no registro civil,
sendo caracterizada pela pluralidade de um dos genitores (Oliveira e Tomaszewski;
2015).

MULTIPARENTALIDADE – é o parentesco constituído por múltiplos


pais [...], ou seja, a dupla maternidade/paternidade tornou-se uma
realidade jurídica, impulsionada pela dinâmica da vida e pela
compreensão de que maternidade e paternidade são funções
exercidas. É a força dos fatos e dos costumes como uma das mais
importantes fontes do Direito, que autoriza esta nova categoria
jurídica (PEREIRA, 2015b. p. 470/471).

Para Cassetari (2017, p. 235) “[...] o fundamento da multiparentalidade é a


igualdade das parentalidades biológica e socioafetiva, pois entre elas não há vínculo
hierárquico e uma não se sobrepõe a outra, podendo elas coexistir,
harmoniosamente, sem problema algum”. Deste modo, para o referido autor, no
instituto da multiparentalidade há igualdade entre a parentalidade biológica e
socioafetiva.
O instituto da multiparentalidade produzirá diversos efeitos e
consequências jurídicas conforme as particularidades de cada caso, sendo
respeitado o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e o da
proteção integral, bem como observando os direitos e deveres inerentes aos pais e
às mães, biológicos ou socioafetivos. Tais como:
- Alteração do registro de nascimento do filho socioafetivo
(reconhecimento de paternidade ou maternidade afetiva), obrigação de alimentos,
guarda e responsabilidade, direitos de visita, supervisão da manutenção e educação
dos filhos, direito de visita extensivos aos familiares socioafetivos (avós), direitos
sucessórios (mesmos da família natural), extensão da parentalidade com os outros
parentes de forma a reconhecer, a igualdade entre os filhos biológicos e
socioafetivos.

361
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

De uma maneira geral, o reconhecimento da multiparentalidade é


considerado um avanço do Direito de Família no Brasil, uma vez que busca atender
o princípio da afetividade e da dignidade da pessoa humana.

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE

Após a Constituição de 1988, todos os filhos passam a ter direitos iguais,


vedadas quaisquer distinções de legitimidade, dissociando o casamento como
legitimidade patriarcal e começando a dominar as relações de afeto, solidariedade e
cooperação (BRASIL, 1988).
Sendo assim, entre avanços e retrocessos, a jurisprudência e a doutrina
brasileira textualizam o Direito na própria sociedade reconhecendo a importância dos
vínculos afetivos nos mais diversos relacionamentos. Neste contexto, a afetividade
assume grande importância nas questões familiares, digna da atenção e da
atividade efetiva do Poder Judiciário. A sociedade adota o aspecto afetivo como
suficiente e relevante nas escolhas pessoais.
O século XXI torna-se terreno fértil para a construção central dos vínculos
familiares, com critérios biológicos, matrimoniais e registrais, definindo as relações
socioafetivas e sustentando o envolvimento interpessoal.
Para Cassettari (2014) afetividade é uma relação de carinho e cuidado por
alguém que se gosta, por alguém a quem se demonstram sentimentos e afeições,
que se tem uma amizade mais profunda, frente a isto, a função da família está em
gerar vivências afetivas de forma segura e influenciar a forma dos filhos e de seus
membros verem o mundo, onde, a afetividade constitui o primeiro passo no
relacionamento familiar humano.

[...] a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de


parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo
biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência
do forte vínculo afetivo existente entre elas (CASSETTARI, 2014, p.
16).

362
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A partir desse aspecto, em caso de negatória de paternidade demonstrar


a existência de laços de afeto entre pais e filhos supera os chamados laços
biológicos. No Brasil, quem percebeu a questão da afetividade no novo paradigma
familiar foi João Baptista Villela em 1979, sustentando que o parentesco não estava
restrito a uma questão somente biológica (VILLELA, 1979 Apud CASSETTARI, 2014).
Em virtude dessa percepção, houve a necessidade de assimilação pelo
direito da distinção de genitor e de pai, bem como a aceitação da afetividade nas
questões da família. Desta forma, a afetividade que não era recorrente, entre os
juristas passa a ser observada como tema recorrente entre os juristas.
Após a utilização do exame de DNA no Brasil tornar-se comum, o
Judiciário foi acionado a se manifestar nas ações de Negatória de Paternidade, as
quais têm ocorrido cada vez mais nas Varas de Família e Sucessões do Judiciário
brasileiro.
Existe uma preocupação dos profissionais do setor psicossocial;
assistentes sociais e psicólogos, com a saúde e desenvolvimento socioafetivo das
crianças envolvidas nesses processos, considerando que mesmo que ação não seja
deferida pelo Juiz, existe uma negativa afetiva da paternidade que existiu em outro
momento e deixou de existir.
Segundo Tartuce (2009) mediante hipótese de questionamento do vínculo
paterno-filial, na maioria das vezes o que se pretende é esquivar-se da
responsabilidade pelos alimentos e de outros cuidados que o filho carece.

[...] compreende-se que o simples fato de se ajuizar ação de tal


amplitude pode acarretar sensível sofrimento à criança, que
participará de exames periciais nas quais será avaliado se é filha de
seu pai, neta de seu avô e prima de seus primos, ou ainda, quem
sabe, por meio de uma gota de sangue terá uma de suas linhagens
modificada. Além disso, no curso do processo atravessará longo
período de incerteza quanto à sua filiação e, em última instância,
sobre sua identidade. (BRITO, 2008, p. 96).

Quando da possibilidade de negação de paternidade, ou de sua


investigação, uma indagação sempre é feita: Como fica o afeto em relação ao filho?
Nesse sentido, Tarturce (2009, p.9) considera que:

363
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Não é incomum, na prática judiciária, a seguinte situação: quando o


pai que registrou e criou a criança pretende excluir sua paternidade
(assim como a obrigação alimentar), ele muitas vezes se esquece do
vínculo mantido com a criança. Perguntado se realmente nunca mais
quer vê-la ou se se importa minimamente com ela, muitas vezes ele
afirma não ter nada contra esta e até dela gostar; contudo, não pode
conviver com a dúvida pessoal aliada ao ônus econômico de
alimentá-la.

Segundo Pereira (2006), nestes momentos o afeto tem a tendência a


desaparecer, o que remete a ideia não de uma paternidade socioafetiva e sim uma
paternidade sociológica retornando à tradicional definição de posse de estado de
filho sem mencionar afeto, mas com dados objetivos da relação entre indivíduos.
De acordo com Brito (2008) este cuidado se justifica para evitar a
argumentação de que a paternidade socioafetiva só existirá a partir da vontade do
pai. A paternidade se configura um tema complexo em torno do qual transitam
diversos princípios de origem constitucional, não podendo ser resolvida apenas pelo
viés biotecnológico que ora se manifesta como mercadológico.
Na constatação da existência da convivência familiar e de laços afetivos
entre o pai e o filho reconhecido, acredita-se que a anulação do registro
desconstituindo a paternidade apresenta-se como resolução complexa, impactante
em que os procedimentos devem ser realizados com estratégias que considerem a
complexidade da questão.
De acordo com Ferreira e Sampaio (2017), o vínculo constituído entre o
pai e filho integra a identidade, para além da existência deste no registro de
nascimento, ainda que este tenha um forte poder de atribuir sentidos, significados
nas relações sociais e afetivas concretas. Trata-se da exteriorização de vínculos
socioafetivos.
Ainda de acordo com Ferreira e Sampaio (2107), considerando, sobretudo
o foco no interesse da criança disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art.
27 (Brasil, 1990a) e dos resultados do estudo realizado, recomenda-se:

• Uma análise mais detalhada acerca da vinculação existente


entre pai e filho, bem como a significação direcionada ao referido
senhor e a sua família por parte do adolescente;

364
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

• Ao se constatar a existência de vínculo afetivo, é necessário


avaliar e dar maior importância a este fator, em predominância a
questão apenas biológica, a fim de se resguardar o princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente;
• Durante a realização de estudos psicossociais no âmbito do
judiciário, realizar de forma cuidadosa a explanação dos
procedimentos a serem realizados, de forma a minimizar os
sentimentos de ansiedade e insegurança e proporcionar o
acolhimento adequado com fins de que o sujeito se sinta participante
e importante naquela etapa do processo judicial; (Ferreira e
Sampaio, 2017- p. 137).

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DAS RELAÇÕES PARENTAIS

Para nortear a avaliação psicológica nos estudos processuais que


envolvem a parentalidade constituída pela afetividade, buscou-se compreendê-la
sobre alguns eixos de análise, os quais envolvem os aspectos sociais onde a
relação parental foi constituída, os aspectos legais, visto que a avaliação psicológica
em questão ocorre dentro de uma instituição judiciária e o objeto de estudo
propriamente dito, a parentalidade, estabelecida por meio de relações interpessoais
com base no afeto.
Quanto aos aspectos sociais, Amorim (2017) expõe que a família deixou
de estar alicerçada na matrimonialidade/conjugalidade, cuja vocação deixa de ser a
de simples instrumento para perpetuação transgeracional da linhagem e do
patrimônio, assumindo a função de comunidade, na qual se vivifica o afeto e são
desenvolvidas as capacidades e habilidades de seus membros.
Ainda segundo a autora, tais modificações sociais e familiares produziram
novas demandas legais no Brasil, sendo a Constituição de 1988 instauradora de
uma nova ordem de ideias e valores, que rompeu com o paradigma de
pertencimento familiar biológico e reconheceu a comunidade familiar com base na
pluralidade e respeito às diferenças, nos seus artigos 226 a 230 explora a mudança
dos conceitos familiares. Apenas no ano de 2002, o Código Civil em seu artigo 1598
reconhece a parentalidade afetiva como equivalente à biológica e no ano de 2006, a
Lei Maria da Penha incorpora o afeto como padrão da família contemporânea: (art.
5, II): “comunidade formada por indivíduos que são ou que se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou vontade expressa”. A Lei
Clodovil, Lei nº 11924, 17 de abril de 2009 altera o artigo 54 da Lei n. 6.015/73 de
365
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Registros Públicos e possibilita que enteados e enteadas adotem os sobrenomes


dos seus padrastos e madrastas, o que repercute no reconhecimento da primazia
dos vínculos afetivos e reconhecimento das famílias reconstituídas.
Diante das novas configurações sociais, a avaliação psicológica
fundamenta-se na possibilidade de verificar qual a dinâmica familiar e as interações
entre os membros daquela família (FIORELLI e MANGINI, 2009). A análise
psicológica realizada pelo processo diagnóstico (que inclui entrevistas, leitura dos
autos, observação, testes psicológicos, entre outros procedimentos) tem por objetivo
trazer aos autos elementos que auxiliem o magistrado na decisão.
No âmbito da avaliação psicológica da parentalidade pelo viés da
socioafetividade, entende-se necessária a compreensão do termo. A língua
portuguesa carece de um termo específico que defina o par no que concerne às
funções e papéis desempenhados no amparo material afetivo e educacional
dispensado aos filhos, apresentando-se insuficiente de significado.
Barroso e Machado (2010) escreveram um artigo sobre as definições,
dimensões e determinantes da parentalidade, baseados em um modelo integrativo
de elementos teóricos da parentalidade proposto por Hoghughi (2004). No artigo
referem que o termo parentalidade foi utilizado inicialmente por um psicanalista
francês em estudo de psicose puerperal e que teve como objetivo vivificar papéis e
funções parentais e o substantivo correspondem à posição indistinta de gênero na
função de cuidados aos filhos.
Os autores expõem que os critérios que poderão definir uma
parentalidade suficiente são socialmente construídos, uma vez que o conceito tende
a depender de impressões subjetivas, crenças culturais ou preocupações
relacionadas com determinados contextos. As concepções e práticas da
parentalidade são significativamente diferentes de cultura para cultura, todavia, as
pesquisas sobre os processos de parentalidade têm apontado que as dimensões e
tarefas estruturais surgidas na relação pais-filhos tendem a permanecer
semelhantes.
O referido texto descreve que a parentalidade envolve a execução de
atividades relacionadas aos cuidados físicos, garantia de alimentos, proteção,
vestuário, higiene, hábitos de sono, precaução de acidentes e doenças; emocionais
e sociais de crianças e adolescentes; cuidados emocionais (comportamentos e

366
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

atitudes que asseguram o respeito pela criança como indivíduo, a sua percepção de
ser estimado e apreciado, e também oportunidade para que ela possa gerir seus
riscos e fazer suas escolhas); cuidados sociais, cujo objetivo é garantir que a criança
não seja isolada socialmente dos seus pares ou adultos significativos no curso do
seu desenvolvimento, destaca-se o auxílio ao filho para que se torne socialmente
competente e bem integrado em casa, na escola e aceite progressivas
responsabilidades nos relacionamentos com os outros e, há ainda, as atividades de
controle e disciplina e de desenvolvimento de potenciais.
Ainda no mesmo estudo, os autores integram precondições ao exercício
da parentalidade, sendo estas o conhecimento e compreensão do filho, motivação
para o exercício da parentalidade, os recursos internos e externos às demandas do
relacionamento e as oportunidades de convívio.
De acordo com este modelo, é possível identificar alguns eixos de análise
no estudo psicológico com objetivo de investigação da construção relacional da
parentalidade socioafetiva: o desempenho dos papéis de cuidados, o relacionamento
interpessoal estabelecido, o desejo de exercer a parentalidade, as condições
emocionais e materiais para fazê-la.
Contudo, ainda há que se considerar a importância do afeto e constituição
do vínculo nesta relação. Zimerman (2010) apresenta o termo Vínculo, palavra com
origem no latim vínculun, que significa uma união, uma ligadura, atadura de
características duradouras. O vínculo é de fundamental importância no
desenvolvimento da personalidade da criança, que constitui sua existência a partir
de um outro.
Segundo a psicanálise a primeira relação vincular da criança é com a mãe
(ou figura substituta) e esta relação será basilar ao seu desenvolvimento e ao
estabelecimento de novos vínculos ao longo da sua vida. Quanto mais primitivo o
estabelecimento dos vínculos, mais importantes serão as fixações na mente da
criança. Desta forma, é possível compreender que a formação da relação de
parentalidade será mais efetivamente internalizada pela criança, quanto menor for
sua idade em relação ao início da convivência parental (ZIMERMAN, 2010).
O autor defende ainda que a criança (bebê) não pode ser considerada
como um ser passivo aos cuidados da mãe e do pai, ela sofre influências também de
outros membros familiares. A criança é ativa na estrutura familiar e na construção de

367
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

novos vínculos com todos, o que indica a importância da participação ativa da


criança na investigação da parentalidade socioafetiva.
Segundo Zimerman (2010) os vínculos se constituem nas esferas
emocional e relacional e esta definição pressupõe ao menos três aspectos
conceituais: 1. O vínculo é relacional: sempre existem recíprocas relações de
influência entre as pessoas. 2. Os elos entre duas ou mais pessoas são emocionais
e caso não sejam deixam de ter sentido vincular exposto na afirmativa. 3. O termo
vínculo também designa as relações humanas exteriores (casais, famílias e
instituições).
Entende-se, por conseguinte que a vinculação ocorre por meio de uma
relação contínua, com trocas emocionais e se estende às relações extensas. Desta
forma, a avaliação psicológica da formação socioafetiva da parentalidade poderá
utilizar-se deste conceito e observar se a relação parental socioafetiva além de
ocorrer de forma duradoura, estendeu-se entre a família extensa da mãe/pai e o
filho, bem como se esta relação foi reconhecida na comunidade em que a família
pertence, a vizinhança, escola, instituição religiosa dentre outros.
De acordo com Amarilla (2014) a modificação de um paradigma familiar
fundado no biológico para um fundado no afeto carece ainda de esclarecimentos
quanto ao estudo jurídico das relações afetivas, portanto, subjetivos. Para a autora,
o termo afetivo é mistificado e polarizado em conteúdos maus versus bons,
defendendo que o conceito de afeto não é unívoco e não é sinônimo de amor.
A palavra afeto tem raízes no latim affectus e provém de afficere, que
pode ser traduzido como afetar, tocar, atingir, exercer sobre algo ou alguém uma
ação de repercussão.
Sobre a temática, Amarilla cita algumas ponderações:

1ª o afeto guarda estreita sintonia com seu continente passivo,


demandando para sua própria elaboração e vivência elementos
próprios da comunicação e interação, ou seja, a presença do outro.
2ª para a formação dos laços afetivos revela-se crucial o elemento
espaço tempo, não havendo como conceber tais vínculos como
produto de um fenômeno informado pela ausência e instantaneidade.
3ª o afeto importa em uma relação ambivalente, não se resumindo a
amor, ou nele estando restrito seu significado (AMARILLA, 2014, p.
122).

368
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Conforme as ponderações expostas pela autora são possíveis também


alcançar suposições na avaliação psicológica da parentalidade socioafetiva.
Primeiramente, há um lugar assumido e internalizado em ambas as partes, ser
mãe/pai e ser filho, e se reconhecer neste signo. O desenvolvimento da relação
parental ocorre em um dado espaço e tempo, de modo que é preciso ponderar o
tempo e a convivência das partes nesta relação, que não será constituída de forma
superficial e súbita. Por fim, supõe-se que esta relação parental esteja
fundamentada o suficiente para não sucumbir às ambivalências afetivas naturais às
relações vinculares.
Ao abordar a vinculação socioafetiva como novo padrão familiar Amarilla
(2014) expõe que o modelo alicerçado no afeto, escapa ao âmbito do Direito, não
sendo possível afirmar se aquele núcleo familiar socioafetivo perdurará. A autora
explica que não cabe à ciência legislativa, regulamentar sobre sentimentos ou impô-
los coercitivamente.
Por meio da realização de pesquisa bibliográfica a respeito à
fundamentação da avaliação psicológica da parentalidade, observou-se a dificuldade
de acesso a referenciais bibliográficos específicos na área da psicologia, de modo
que se fez necessário buscar em outros saberes, as concepções discutidas neste
novo campo de estudo. Contudo, entende-se que a pluralidade e multiplicidade das
origens e desenvolvimento da parentalidade não poderiam ser captadas por uma
única ciência.
Percebe-se que a avaliação psicológica na aferição das vinculações
socioafetivas, deverá reconhecer os novos arranjos familiares como base de uma
nova estrutura social, protegida pela legislação vigente. O exercício da parentalidade
exige a ocupação de um lócus familiar e social, e cumprimento de responsabilidades
afetivas, físicas, financeiras, educacionais, inerentes ao desenvolvimento do filho.
O aprofundamento das relações subjetivas na dinâmica familiar será
constituído de acordo com a abordagem metodológica do profissional de psicologia.
Neste trabalho, buscou-se o estudo das formações vinculares nas teorias
psicanalíticas de modo a se compreender, em síntese, que os vínculos exigem
tempo e convivência para sua formação, demandam afeto recíproco, estende-se à
família e comunidade, e serão mais profundamente constituídos quanto menor a
idade da criança.

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AVALIAÇÃO SOCIAL DAS RELAÇÕES PARENTAIS

As principais matrizes do conhecimento e da ação do Serviço Social


brasileiro estão diretamente relacionadas aos contextos observados na sociedade.
Até então os modelos considerados “normais” estão diretamente associados à
configuração de família nuclear, composta por pai, mãe e filhos, cujos papéis sociais
são determinados pelos modelos sociais paternalistas.

A análise dos principais fundamentos que configuram o processo


através do qual a profissão busca explicar e intervir sobre a
realidade; são diversas e em múltiplas relações que constituem a
sociabilidade humana, implicam âmbitos diferenciados e uma trama
que envolve o social, o político, o econômico, o cultural, o religioso,
as questões de gênero, a idade, a etnia etc. (YASBEK, 2009, p.02).

Diante do atual contexto entendemos que a produção e reprodução das


relações sociais, especificamente quando nos atentamos às atuais configurações
familiares, precisamos considerar uma geração que se organiza para além das
relações de produção, o que até então, a pesquisa social, entendia como principal
norteador e formatador social.
Alterações em componentes sociais e estatísticos, como maior
expectativa de vida, diminuição do número de filhos nas famílias, convívio
intergeracional, muitas vezes condicionado à falta de emprego e renda, mas que
também ocorre por aumento da sociabilidade e união familiar, superação de
preconceitos em relação às famílias monoparentais e homoafetivas, são também
fundamentais para a alteração dos modelos familiares convencionais.

Nessa perspectiva, a reprodução das relações sociais é entendida


como a reprodução da totalidade da vida social, o que engloba não
apenas a reprodução da vida material e do modo de produção, mas
também a reprodução espiritual da sociedade e das formas de
consciência social através das quais o homem se posiciona na vida
social (YASBEK, 2017, p. 03).

370
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A ação profissional vai além do entendimento, vontades, aspirações ou


subjetividades, tanto do usuário, como das instituições, nessas perspectivas
representadas nas ações do Serviço Social, essa postura garante não somente a
impessoalidade e imparcialidades, preceitos fundamentais das políticas públicas,
assim como a não influência de conceitos e pré-conceitos, inerentes ao ser social.

Como realidade vivida e representada na e pela consciência de seus


agentes profissionais expressas pelo discurso teórico-ideológico
sobre o exercício profissional; como atividade socialmente
determinada pelas circunstancias sociais objetivas que conferem
uma direção social à prática profissional (o que condiciona e mesmo
ultrapassa a vontade e/ou consciência de seus agentes individuais
(IAMAMOTO e CARVALHO, 2011, p.79-80).

Diante do contexto, entende-se que a atribuição do Assistente Social


nesse espaço sócio ocupacional se expressa na função de perito social, podemos
afirmar também pautados no que preconiza o Art. 151 do ECA, que ao profissional
de Serviço Social primordialmente cabe, em linhas gerais, subsidiar as decisões
judiciais em função da perspectiva de defesa intransigente do direito.
A mediação familiar tem como finalidade preservar relacionamentos e
laços de parentalidade, privilegiando decisões tomadas diretamente por quem
vivencia o conflito (os mediandos).

Ainda que o meio sociojurídico, em especial o judiciário, tenha sido


um dos primeiros espaços de trabalho do assistente social, só muito
recentemente é que particularidades do fazer profissional nesse
campo passaram a vir a público como objeto de preocupação
investigativa. Tal fato se dá por um conjunto de razões, das quais se
destacam: a ampliação significativa de demanda de atendimentos e
de profissionais para a área, sobretudo após a promulgação do ECA
– Estatuto da Criança e do Adolescente; a valorização da pesquisa
dos componentes dessa realidade de trabalho, inclusive pelos
próprios profissionais que estão na intervenção direta; e, em
consequência, um maior conhecimento crítico e valorização, no meio
da profissão, de um campo de intervenção historicamente visto como
espaço tão-somente para ações disciplinadoras e de controle social,
no âmbito da regulação caso a caso (FÁVERO, MELÃO e JORGE,
2005, p. 10-11).

371
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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A difusão de uma terminologia própria para designar um modelo de


família, sem estigmatizá-lo, faz surgir expressões que designam as famílias co-
parentais, recompostas, biparentais, multiparentais, pluriparentais, homoparentais ou
monoparentais, traduzindo um novo modo de conceituar a família. Todas estas
expressões, segundo Roudinesco (2003), são derivadas do termo “parentalidade”,
de origem anglófila, generalizado a partir dos anos setenta para definir o pai
segundo sua ‘qualidade’ de pai ou sua faculdade de alcançar uma função dita
parental.

A invenção da parentalidade poderia resultar diretamente das


mutações da esfera e das estruturas familiares ocorridas nas últimas
três ou quase quatro décadas. Estas novas configurações familiares
teriam de algum modo, imposto uma renovação do léxico da
parentagem (VALENTE, 2008, p. 104).

Como os pais definem, eles mesmos, seu papel e constroem


progressivamente um sentimento de competência ou de responsabilidade parental,
tanto em relação aos filhos, como no âmbito doméstico, interpretado a partir das
rotinas que permeiam as relações afetivas e familiares.
De uma forma ampla, a parentalidade, que pode derivar de componentes
biológicos ou não, engloba obrigações e atividades que os pais passam a assumir
perante os seus filhos, o que possibilita garantir-lhes, por meio de laços afetivos,
direitos relacionados ao cuidado, à educação, ao amor e à imposição de fronteiras
como forma de socialização.
A Parentalidade, entre outras definições, tem como objetivo a satisfação e
a garantia de necessidades básicas, econômicas, materiais e emocionais; engloba,
entre outras ações a oferta de orientação, conceitos de hierarquia e autoridade,
sociabilidade, exercitada diariamente pela troca de experiência relacionais, afetivas e
familiares.
Parentalidade socioafetiva, normalmente presente em circunstância de
rompimento dos laços familiares, assume nessa perspectiva, responsabilidades para
além das cotidianas, pois tem, além das incumbências pré-estabelecidas, há

372
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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também a necessidade de superação de conflitos, das mais diversas


especificidades, necessitando, invariavelmente, de apoio profissional.

É sabido que a parentalidade deixou de ter como parâmetro


simplesmente a lei ou a biologia, mas muito mais do que isso seu
fundamento hoje está na demonstração do ser pai, do ser filho. A
filiação, assim como a nova família, está pautada na afetividade,
utilizada de forma essencial para o deslinde das questões familiares
(VALADARES, 2010, p. 118).

Parentalidade socioafetiva deve levar em conta outros elementos, dentre


os quais, a diferença entre “cuidado”, “guarda” e “parentalidade”.
A avaliação social de cada caso concreto, preferencialmente articulada à
avaliação psicológica, podem subsidiar a definição jurídica de parentalidade
(paternidade) socioafetiva.

Cada vez mais a ideia de família se afasta da estrutura do


casamento. A possibilidade do divórcio e do estabelecimento de
novas formas de convívio, o reconhecimento da existência de outras
entidades familiares e a faculdade de reconhecer filhos havidos fora
do casamento operaram verdadeira transformação no conceito de
família. Assim, é necessário ter uma visão pluralista, que albergue os
mais diversos arranjos familiares, devendo ser buscado o elemento
que permita enlaçar no conceito de entidade familiar o
relacionamento de duas pessoas. O desafio dos dias de hoje é
identificar o toque diferenciador das estruturas interpessoais a
permitir inseri-las no Direito de Família (DIAS, 2009, p. 4).

Nesse horizonte o trabalho profissional é indispensável e, para além das


relações inevitavelmente permeadas pelos mais diversos sentimentos, necessitam
de entendimento da matéria, direcionada pelo “melhor interesse da criança”, que tem
o direito à proteção, ao afeto, da maior e melhor maneira possível, a perspectiva de
ampliação dessa proteção deve ser de ampla aceitação, direcionada para além de
interesses e vaidades dos envolvidos.

373
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A convivência harmônica entre os envolvidos é imprescindível, devendo


ser entendida como responsabilidade dos pais a manutenção do direito da criança
perante o direito, vontade ou aspirações paternas.
Fica evidente que as transformações nos contextos familiares, ademais
de modelo, são na contemporaneidade a realidade de muitos sujeitos, deixando de
ser algo distante, que se observava e estudava, passando assim a ser contextos de
investigação intervenções dos profissionais.

374
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pondera-se que a dinâmica legal não acompanha a totalidade das atuais


demandas familiares, oriundas das recorrentes transformações sócio históricas nas
quais estão presentes os desafios profissionais.
O presente estudo de parentalidade, como exemplo dessa perspectiva,
mostrou-se necessário, considerando que a construção legal do tema se encontra
em andamento, para a qual essa análise certamente traz contribuições para melhor
compreensão da subjetividade que envolve as demandas e/ou conflitos familiares
presentes no poder judiciário, e em última instância, às equipes técnicas judiciárias.
O estudo interdisciplinar é imprescindível como estratégia para a
realização do trabalho em uma perspectiva de atendimento a essas demandas, até
que a legislação esteja efetivada.
Todavia, compreende-se que essa situação é cíclica, tendo em vista que
a sociedade está em permanente evolução e essas mudanças ocorrerão
frequentemente. A análise dessas transformações demandam constantes estudos
que são mais bem elaborados de maneira coletiva, desta forma, destaca-se ainda a
importância dos Grupos de Estudos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
como significativo lócus de debates.
Entende-se que os esforços para a construção de conhecimentos
pretendida com a dinâmica empregada nesse estudo são continuamente
necessários. Portanto, o trabalho multiprofissional realizado nos ambientes
judiciários traz luz às decisões, haja vista ser essencial para os julgamentos e
decisões pertinentes.

375
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES


DURANTE O PROCESSO DE ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - ASSIS


“O COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Roseclair Keller de Oliveira Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis
Vanessa Aparecida Tusco Bregagnoli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Assis

AUTORAS
Amanda Carollo Ramos da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Paraguaçu
Paulista
Ana Luiza Yassuda Viel – Psicóloga Judiciário – Comarca de Martinópolis
Carmem Silvia Righetti Nobile – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cândido
Mota
Laura Moreira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Palmital
Maria Aparecida Pareschi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cândido Mota
Maria Cristina Dias – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cândido Mota
Marta Fresneda Tome – Psicóloga Judiciário – Comarca de Chavantes
Rita Helena dos Santos Godoi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Palmital
Roberta Schiavinato Felipe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Maracaí
Rosana Cesar de Oliveira Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Paraguaçu Paulista
Roseclair Keller de Oliveira Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis
Silvia Maria Rossi Barreto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cândido Mota
Tatyane Ribeiro Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de Assis
Thais de Cassia Ribeiro Rupel – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Chavantes
Vanessa Aparecida Tusco Bregagnoli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Assis

383
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam


os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e
profundamente sentidos da ambivalência.”
Zygmunt Bauman

INTRODUÇÃO

O processo de adoção contempla em síntese, como prevê a legislação


brasileira, a habilitação dos candidatos com exigência documental, a avaliação
psicossocial e o curso preparatório; a prática de aproximação dos candidatos
habilitados com a criança ou adolescente apto (à adoção), seguido de estágio de
convivência com guarda para fins de adoção.
A adoção trata-se de procedimento complexo, que exige significativa
responsabilidade de todos os envolvidos. Falhas na condução podem culminar em
um processo frustrado, ou seja, após a realização de todas as etapas previstas, a
devolução do adotando.
Assim, visando ampliar a compreensão acerca deste fenômeno
indesejado, isto é, a devolução de crianças e adolescentes em processo de adoção,
bem como aprimorar as intervenções de modo a reduzir as possibilidades de
ocorrência, o Grupo de Estudos da Circunscrição de Assis dedicou-se ao estudo do
estágio de convivência, destacando, especificamente, as situações em que a adoção
não se efetiva.
De acordo com o artigo 46 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “a
adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente,
pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou
adolescente e as peculiaridades do caso”. O parágrafo 2º A, do mesmo artigo,
observa que o prazo máximo estabelecido poderá ser prorrogado por igual período,
mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária.
Atingir o estágio de convivência significa que o adotante já experimentou
todo o processo de habilitação para o Cadastro de Pretendentes e teve acesso a
uma criança/adolescente, bem como ao seu histórico, tendo vivenciado o estágio de
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

aproximação com a mesma. Nestes termos, o pretendente acenou, tanto para a


criança como para o Judiciário, intenção de concretizar adoção, recebendo a guarda
para este fim. Mesmo assim, no curso do estágio de convivência, existem casos em
que ocorre a devolução do adotando.

1 - DEFINIÇÃO DE TERMOS CONCEITUAIS: DESISTÊNCIA X


DEVOLUÇÃO

A primeira reflexão necessária diante do fenômeno de ruptura do estágio


de convivência diz respeito à sua própria denominação: Desistência? Devolução?
Verifica-se na literatura específica a ocorrência de vocábulos diferentes para
descrever a mesma situação, a partir do olhar de cada autor.
O dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, descreve o significado do
referido termo como “não prosseguir num intento; renunciar” (1986, p.566). E a
autora Hália Pauliv de Souza tem o mesmo entendimento dessa terminologia,
justifica que o termo desistir se mostra mais adequado para denominar tal situação.
Conforme as considerações da autora, “é uma renúncia a um projeto, é falta de
persistência, de fé, determinação e investimento. É o resultado de uma motivação
inadequada” (2012, p.22).
Ainda na abordagem da referida autora, a desistência caracteriza a
situação em que os adotantes escolhem não prosseguir na relação com a
criança/adolescente e não vislumbram qualquer possibilidade de êxito.
Por outro lado, Góes prioriza o termo devolução em seus estudos,
apontando que, “Embora (...) a palavra devolução possa causar certo desconforto,
principalmente por tratarmos de situações relacionadas a crianças/ adolescentes,
optamos por utilizá-la, principalmente pelo impacto que esta situação causa às
crianças que a vivenciam”. (2014, p. 88).
Sobre essa terminologia, esclarece que devolução é um termo mais
adequado, pois contempla um conceito amplo e generalizado, que engloba bem o
fenômeno que estamos estudando, pois abrange a interrupção e a dissolução do
estágio de convivência. Além disso, o uso dessa palavra remete às relações
interpessoais na pós-modernidade, pautadas na lógica semelhante a dos bens de
consumo, ou seja, quando algo já não nos interessa, ficou ultrapassado ou
apresenta algum defeito, é rapidamente descartado ou trocado. Sob essa ótica, a
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

criança é coisificada, podendo então ser tratada como um objeto ou mercadoria


(GOES, 2014).
Diante das terminologias apresentadas, o Grupo passa a refletir sobre as
principais inquietações presentes nas situações de devolução dos adotandos
durante o estágio de convivência, utilizando esta conceituação proposta por Goes:
Quais as principais motivações para a devolução? Como a atuação dos Assistentes
Sociais e Psicólogos do Judiciário pode contribuir para evitar a devolução de
crianças/adolescentes? Quais consequências sofridas pelas crianças e adolescentes
que passam por essa situação?

2 - ASPECTOS LEGAIS ACERCA DA DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES NO ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

De acordo com a legislação, o estágio de convivência é o período de


adaptação da criança/adolescente à família substituta e não a adaptação dos
pretendentes ao adotando, como tem sido interpretado usualmente por esses
candidatos, parte dos operadores do direito, membros de equipes interprofissionais
no judiciário e profissionais do serviço de acolhimento (GOES, 2014). Portanto, os
adotantes não podem requerer a revogação da guarda alegando o exercício legal do
direito de devolução da criança ou adolescente, no curso do estágio de convivência,
pois isto não é constituído em seu favor.
A Lei 12.010/2009, “Lei da Convivência Familiar e Comunitária”, referente
ao estágio de convivência, alterou o artigo 46 e seus respectivos parágrafos do ECA
e incluiu a Seção VIII, composta dos artigos 197-A ao 197-E e seus respectivos
parágrafos. A partir da referida lei, o artigo 46 e seus parágrafos do ECA, passaram
a vigorar nos seguintes termos:

Artigo 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a


criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar,
observadas as peculiaridades do caso.
§1º O estágio de convivência poderá ser dispensado se o adotando
já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo
suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da
constituição do vínculo.
386
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

§ 2º A simples guarda de fato não autoriza, por si só, a dispensa da


realização do estágio de convivência.
§ 3º Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou
domiciliado fora do país, o estágio de convivência, cumprido no
território nacional, será de, no mínimo, 30 dias.
§ 4º O estágio de convivência será acompanhado pela equipe
interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude,
preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela
execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que
apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do
deferimento da medida. (BRASIL, 2009).

Na prática, o estágio de convivência é o passo posterior ao processo de


aproximação da criança e ou adolescente com os pretendentes, período que permite
um encontro “real” com o possível filho, sendo ainda, nesta etapa que ocorrem as
situações de devolução da criança/adolescente ao Judiciário.
A respeito disto, foi incluído em 2017 pela Lei 13.509, que dispõe sobre a
adoção, no artigo 197 – E do ECA, o paragrafo 5º, o qual refere que “a desistência
do pretendente em relação à guarda para fins de adoção ou a devolução da criança
ou do adolescente depois do transito em julgado da sentença de adoção, importará
na sua exclusão dos cadastros de adoção e na vedação de renovação da
habilitação, salvo decisão judicial fundamentada, sem prejuízo das demais sanções
previstas na legislação vigente.”.

3 - ATUAÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA NO PROCESSO DE ADOÇÃO.

Conforme o ECA, para pessoas interessadas em adotar crianças e


adolescentes, faz-se obrigatório como trâmite a avaliação psicossocial, realizada
pela equipe técnica (Assistente Social e Psicólogo) no judiciário paulista. Além
disso, a literatura bem como a prática cotidiana tem demonstrado ser de
fundamental importância a atuação desses profissionais a fim de humanizar e
singularizar cada processo jurídico referente à adoção de crianças e adolescentes.
A partir das discussões teóricas e práticas deste grupo de estudo
compreendemos muitas das angústias pertinentes ao processo de adoção como um
todo, especialmente quando ocorre a devolução dos adotandos durante o estágio de
convivência.

387
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em se tratando da avaliação psicossocial, observamos não haver no


estado uma normatização teórico-técnica que discipline o modo com que o
procedimento deva ocorrer, variando de acordo com comarcas e profissionais.
Verificamos por meio dos textos estudados, a necessidade de um olhar
multiprofissional cauteloso, livre de conceitos pré-estabelecidos e de celeridades que
possam interferir na qualidade da avaliação de tamanha complexidade da ordem do
subjetivo, devendo estar pautados em atendimentos elaborados individualmente.
Salientamos que na perspectiva atual, crianças e adolescentes são vistos
como cidadãos de direito. Assim, a partir de sua destituição do poder familiar,
quando se encontram aptos à adoção, é iniciada a busca por uma família que atenda
suas necessidades e os acolha como integrantes. Nesta etapa, destaca-se a
importância de um trabalho contínuo e colaborativo entre equipe judiciária e de
integrantes da rede de proteção a crianças e adolescentes, especificamente as
Instituições de Acolhimento, visando ao preparo não só dos pretendentes a pai,
mães e familiares, mas também das crianças e adolescentes prestes a vivenciarem
tal experiência.
Recentemente no País, a partir de agosto de 2019, a busca por
pretendentes deve se realizar por meio do Sistema Nacional de Adoção e
Acolhimento – SNA, antes realizado separadamente via Cadastro de Pretendentes à
Adoção – CPA por Comarca, Cadastro Nacional de Adoção – CNA e Comissão
Estadual Judiciária de Adoção - CEJAI. De acordo com os dados, a mudança
buscou tornar o sistema mais amplo e completo, visando registrar e controlar todos
os fatos relevantes desde a entrada das crianças/adolescentes nos serviços de
acolhimento até sua efetiva saída do sistema, além de proporcionar maior
visibilidade e agilidade na resolução dos casos.
A busca por famílias aptas a acolherem crianças e adolescentes a serem
adotados, ocorrerá a partir de determinação judicial a ser realizada pela equipe
técnica, em que se priorize inicialmente o aspecto territorial, ou seja, a busca de
pretendentes que residam na mesma comarca, de acordo com a ordem cronológica
de sua habilitação. No caso de não serem encontrados pretendentes aptos à adoção
na Comarca, a busca deverá ser ampliada em nível estadual e posteriormente
nacional.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A partir do momento em que se encontra uma família para inserção


destas crianças e adolescentes, deverá ser dado início ao processo de aproximação
das partes. Para tanto, é realizado uma consulta ao pretendente pela equipe técnica
a fim de verificar o interesse e explanar o histórico de vida da pessoa a ser adotada.
Diante da aceitação e interesse dos pretendentes e após concordância da
autoridade judicial, dá-se início à aproximação entre adotante e adotando. Esta fase
é caracterizada por certa autonomia dos profissionais, que podem elaborá-la de
acordo com o perfil e peculiaridade dos envolvidos e que antecede ao estágio de
convivência.

3.1 - O ACOMPANHAMENTO DO ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

O estágio de convivência tem início quando os pretendentes obtêm o


Termo de Guarda e Responsabilidade com vistas à adoção e a criança ou
adolescente passa a residir com os postulantes, os quais assumem sua
responsabilidade e proteção integral. Esse período, obrigatoriamente no Estado de
São Paulo, é acompanhado pelo Setor de Serviço Social e Psicologia da comarca de
residência dos pretendentes à adoção.
Sobre isto, um fator observado nos casos em que a criança ou
adolescente permanece em acolhimento institucional em comarca diversa da
moradia dos pretendentes, um distanciamento da nova família em relação aos
profissionais da Vara da Infância e Juventude, pois tal vínculo normalmente ocorre
com os técnicos da cidade onde tramita o processo de adoção.
Desse modo, nas discussões do grupo de estudos destacou-se a
importância dos setores técnicos das comarcas em que os adotandos estavam
acolhidos e onde os pretendentes foram habilitados ocorresse de maneira constante,
visando assegurar o acompanhamento da nova família em suas necessidades
sociais e emocionais de modo continuado.
O objetivo do trabalho do setor técnico no estágio de convivência
configura-se por fornecer orientações e encaminhamentos às partes envolvidas no
processo de adoção, para atender as demandas características do início de
convivência cotidiana numa mesma residência. Além disso, caracteriza-se como
função desse setor, elaborar relatórios ao juízo quanto à construção de laços
afetivos de filiação e de paternidade/maternidade e proteção social, necessários à
389
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

constituição do novo núcleo familiar, apresentando pareceres quanto à possível


efetivação da adoção na referida família.
Os instrumentais técnicos utilizados para a avaliação do estágio de
convivência consideram a singularidade de cada caso. As equipes interprofissionais
utilizam com maior frequência entrevistas, visitas, intervenção lúdica e observação
da interação entre os membros da nova família.
De acordo com o manual produzido pela Coordenadoria da Infância e
Juventude de São Paulo (2019, p. 22) alguns tópicos passíveis de reflexão
apontados pelas equipes técnicas junto aos adotantes foram:

• Percepção dos adotantes acerca da adoção ao vivenciá-la na


realidade concreta;
• Modificações na dinâmica do casal e ocorrência de crises
conjugais, ou com outros membros da família;
• Percepção da família em relação às alterações com o ingresso
do(s) novo(s) membro(s);
• Dificuldades surgidas e como foram enfrentadas;
• Percepção dos adotantes acerca da sua condição e preparo
para desempenhar o papel de pai e mãe;
• Como os adotantes lidam com a história da criança;
• Dificuldade ou facilidade de inserir a(s) criança(s) e/ou
adolescente no núcleo familiar e/ou família extensa;
• Como lidam com a saúde, hábitos e costumes da(s) criança(s)
e/ou adolescente(s);
• Como lidam com a colocação de limites;
• Como é concebida e está baseada a educação que pretendem
dar à(s) criança(s) e/ou adolescente(s) e fatores que consideram
essenciais para o convívio familiar no dia a dia;
• Existência de preconceitos e como a família supera tais
questões;
• Inclusão da criança(s) e/ou adolescente(s) no ambiente escolar
e outros cursos complementares;
• Como os adotantes lidam com a percepção das diferenças
trazidas pelo adotado no núcleo familiar, na família extensa e na
comunidade.
No atendimento das crianças e adolescentes:
• Como define e descreve o(s) adotante(s) – tonalidade afetiva
com que descreve e que lugar representa para si na família e para o
casal;
• Sua autoestima na relação com o núcleo familiar e família
extensa;
• Qualidade do relacionamento com outras crianças e/ou
adolescente(s) na família e comunidade;
• Como refere e relata o seu passado e o modo como o(s)
adotante(s) lidam com ele. (COORDENADORIA DA INFÂNCIA E
JUVENTUDE DE SÃO PAULO, 2019, p. 22).

390
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na avaliação do estágio de convivência, do ponto de vista psicológico, o


psicanalista Winnicott (1983/1958) definiu um ambiente suficientemente bom como
aquele caracterizado pela capacidade dos cuidadores de proporcionarem segurança
e continência às possíveis crises e testes enfrentados, possibilitando que estes
aconteçam e, mesmo assim, a família permaneça estável. A sustentação e o
reconhecimento são aspectos imprescindíveis na vida afetiva do ser humano, por
isso, são tão importantes no período de convivência dos adotandos na nova família.
Na perspectiva sobre a criança ou adolescente o estudo de Alvarenga e
Bittencourt (2013) defendeu que o sentimento de pertencimento a uma nova família,
exige o luto das imagos parentais originárias e uma reconstrução de sua história de
vida apoiada nos novos pais. Com isso, espera-se que, ao final de um processo de
luto pela família biológica, a representação dos genitores, mantida
inconscientemente, possa conviver com a dos pais adotivos. Assim, também,
adotantes precisam realizar o trabalho de luto do filho ideal para aprender a amar o
filho real. Nesse cenário psicológico, Winnicott (2000/1945) observou que a
elaboração do processo de ilusão e desilusão sobre uma criança idealizada pelo
desejo parental é determinante para que ocorra a consolidação dos vínculos afetivos
com ela de maneira a propiciar seu amadurecimento psicoafetivo saudável.
Já no que tange ao serviço social, o acompanhamento do estágio de
convivência, até a sentença final de adoção, aborda as demandas percebidas no
convívio familiar e a conjuntura em que o adotando está inserido. Tal ação exige o
uso de diferentes instrumentais técnicos, já destacados anteriormente, e o produto
desta intervenção normalmente se concretiza em relatórios, laudos e pareceres que
compõem o processo judicial.
A avaliação social no curso do estágio de convivência é bastante singular
e pode variar de acordo com a demanda apresentada. Sendo assim, percebe-se que
existem inúmeras maneiras de proceder tal andamento, dependendo do profissional,
da situação e até mesmo da organização da equipe técnica de cada local. Nestes
termos, assim como apontado na literatura da área, não se encontrou nas comarcas
que compõem este grupo, uma uniformidade sobre a processualidade desta etapa
da adoção.
Outro ponto a ser destacado, é que o trabalho do Serviço Social no
judiciário tem uma valorização da “pericia”, em detrimento da ação executiva. Sendo

391
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

assim, faz-se necessário um acompanhamento do estágio de convivência


sistematizado e articulado entre o judiciário e a rede de apoio socioassistencial,
sendo a última a esfera que pode oferecer um apoio concreto a essa nova família
em formação. Para Góes (2014), é preciso uma reflexão urgente acerca de uma
perspectiva de criação de programas e serviços especializados no acompanhamento
de famílias adotivas, ligados à saúde e assistência social, como já ocorre em alguns
países.
Durante o estágio de convivência há situações que poderão demandar
maior atenção dos técnicos no judiciário, bem como do atendimento em serviços da
rede de proteção social da comarca. Nesse contexto, a Coordenadoria da Infância e
Juventude (2019) indicou acompanhamento mais frequente para casos de: 1)
adoção tardia, 2)adoção de grupo de irmãos, 3) mudanças no perfil indicado no
processo de habilitação dos pretendentes, 4) colocação em família substituta sem
definição da destituição do poder familiar e 5) crianças/adolescentes com
deficiências ou doenças.

4 - CONSEQUÊNCIAS DA DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES NO CURSO DO PROCESSO DE ADOÇÃO

É sabido que a adoção tem caráter irrevogável, no entanto essa premissa


legal não impede o insucesso da inserção de crianças e adolescentes em famílias
substitutas por essa via, mesmo após o estabelecimento de vínculos entre as partes
do processo, durante o período nomeado de estágio de convivência. Para Góes
(2014), a devolução de crianças e de adolescentes durante esse período evidencia
ser a ponta de um iceberg de um sistema de desproteção social na qual há muitas
questões relacionadas a violações de direitos.
Quando uma adoção fracassa, podem existir inúmeras consequências e
muito sofrimento para todos os personagens envolvidos, desde os aspirante à
adoção, passando pelas crianças /adolescentes envolvidos, até os profissionais que
atuam diretamente na ação. No entanto, é importante considerar que para o
adotando, esses efeitos podem ser ainda mais sérios, pois:

392
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A devolução não é uma ação/opção consciente dos adotados e


nesse jogo de forças eles são a parte mais vulnerável e, muitas
vezes, passiva no processo. O desgaste emocional causado pela
ruptura da vivência com a família adotante somadas com a/as
rupturas/s anteriores fragilizam a criança/adolescente que passou
pelo trauma da devolução, necessitando de elaboração dos
sentimentos despertados por este momento. (TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2016, p. 50).

Assim, os adotandos ao vivenciarem a experiência da devolução são


obrigados a retornarem à instituição de acolhimento, após uma experiência mal
sucedida de convivência familiar. Esse regresso pode acarretar em diversas reações
nos novos acolhidos. Em algumas situações, tais crianças/adolescentes sentem-se
aliviados por retornarem a uma situação de conforto e referência, normalmente isso
acontece quando a convivência na família é demasiada pesada e massacrante. No
entanto, de forma geral, a experiência mal sucedida de adoção pode ser algo muito
frustrante e doloroso.
Em se tratando especificamente dessas consequências da devolução de
crianças e adolescentes, Ghirardi (2009), discorre que o retorno ao abrigo após a
devolução normalmente é visto como um segundo abandono, materializando-se
como uma nova ruptura de laços afetivos, onde a criança/ adolescente sente-se
culpado pela ruptura de mais um convívio, ao mesmo tempo em que envergonha-se
por ter que retornar ao acolhimento institucional, assumindo perante todos o seu
fracasso. Nesse caso, há uma tripla perda, da esperança, da família e pelo estigma
da devolução que poderá acarretar em dificuldades de uma próxima adoção.
De forma sucinta,

(...) o dano moral, o psicológico e o afetivo são os mais sérios, pois


são os mais difíceis de reverter pela vida afora. A devolução também
prejudica o aspecto social da criança, que, caso não consiga uma
nova possibilidade de inserção em outra família, passa a ter um
futuro comprometido, com um destino afetivo, pessoal, humano e
familiar imprevisível, sem perspectivas ou com perspectivas
sombrias. Considera-se ainda que o prejuízo patrimonial também
pode ser significativo, já que o retorno para a instituição de
acolhimento implica em perda de conforto material (TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2016, p. 41-42).

393
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No caso dos adultos, ou seja, os adotantes, também pode haver


consequências quando ocorre o desenlace da relação adotiva, no entanto esses
sujeitos devem ser responsáveis e comprometidos pelo processo de adoção. Nesta
direção, Góes (2014, p. 90), reflete que: “(...) no caso dos pretendentes, esse
compromisso vai além daquele que se assemelha ao de um ‘consumidor’ que busca
na loja um ‘brinquedo’ e que, se não gostar, poderá devolvê-lo”.
Ainda de acordo com as ponderações da predita autora, a concepção de
um filho biológico até pode ocorrer de forma acidental, todavia na adoção esse
processo deve ser uma escolha consciente, planejada e refletida, na qual os adultos
envolvidos são preparados para tal e, portanto, responsáveis pela decisão tomada.
Do ponto de vista jurídico o adotante que desistir do processo após iniciar
a convivência com a criança poderá ser responsabilizado pelos danos causados:

A conduta de devolver, acaso considerada legítima, certamente


malfere os limites impostos pelo fim social, pela boa-fé e pelos bons
costumes, ex vi legis do artigo 187, do CC, inserindo-se no conceito
de abuso de direito, devendo, pois, ser reparado. Ainda que assim
não fosse, a interpretação da situação à luz dos princípios esculpidos
no artigo 6º, do ECA, enseja a reparação dos danos experimentados
pelo adotando, até porque evidente a lesão aos direitos da
personalidade, diante da inconsteste frustração das expectativas
legítimas de que a adoção seria ultimada. Nesta medida, cabível a
reparação dos danos. A uma, para reparar o prejuízo experimentado
pelo adotando. A duas, para desestimular condutas desta natureza,
alertando os adotantes para a seriedade do ato de inscrição para
adoção. (REZENDE, 2014, p. 81).

Além disso, de acordo com as alterações no Estatuto da Criança e do


Adolescente, promovidas pela Lei 13.509/2017, há uma medida punitiva também no
sentido de impedimento do pretendente em se habilitar para nova adoção, conforme
o próprio texto legal:

§ 5° A desistência do pretendente em relação à guarda para fins de


adoção ou a devolução de criança ou adolescente depois do trânsito
em julgado da sentença de adoção importará na sua exclusão dos
cadastros de adoção e na vedação de renovação da habilitação,

394
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

salvo decisão judicial fundamentada, sem prejuízo das demais


sanções previstas na legislação vigente (BRASIL, 2017).

395
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grupo de estudos da Circunscrição de Assis, durante o ano de 2019,


debruçou-se sobre o tema da devolução de crianças e adolescentes durante o
estágio de convivência.
Mais do que suscitar inquietações nos (nas) profissionais assistentes
sociais e psicólogos (as) que atuam no Poder Judiciário, tem-se observado que tal
situação impacta de forma significativa a vida dos adotandos, que a vivenciam.
O estágio de convivência é um período singular, em que adotantes e
adotandos iniciam a construção do exercício da parentalidade e da filiação envoltos
em mecanismos psíquicos e sociais específicos, que levam (ou não) ao
estabelecimento dos vínculos familiares.
Embora a lei abra a possibilidade aos pretendentes de desistirem da
adoção neste período, a experiência vem apontando que crianças/adolescentes se
tornam a parte mais prejudicada quando tal devolução ocorre.
Neste sentido, os integrantes do Ministério Público e do Judiciário nas
Varas da Infância e Juventude têm se manifestado na perspectiva de que essa etapa
não pode ser análogo a um teste, no qual há a possibilidade de devolução da
criança ou do adolescente, caso os pretendentes não se adaptem à nova
configuração familiar. Ao contrário, deve ser visto, sim, como um tempo de
adaptação do adotando à família.
A Lei da adoção, promulgada no final de 2017, traz importante alteração
sobre o estágio de convivência. A partir de sua publicação, impõe aos pretendentes
que a devolução de crianças ou adolescentes durante este período tem como
consequência direta sua exclusão no SNA (Sistema Nacional de Adoção) e também
a vedação de nova habilitação.
Constatamos a importância de que o estágio de convivência seja
acompanhado por profissionais de Serviço Social e de Psicologia, oferecendo
orientação aos adotantes e adotandos, bem como acolhendo as angústias que, por
ventura, surjam no decorrer deste período de adaptação. Tal acompanhamento
deverá ser realizado pelos profissionais do Setor Técnico da comarca em que a
família adotiva está residindo ou pelos Grupos de Apoio à Adoção.

396
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Além da cautelosa preparação dos pretendentes para vivenciarem a


adoção, no percurso dos estudos deste grupo, levantou-se também a relevância de
voltar-se igualmente ao preparo emocional dos adotandos, no que tange à
disponibilidade destes frente às vicissitudes de integrarem um novo contexto familiar
e a elaboração do luto referente à família de origem. Entretanto, esse preparo,
embora relevante, carece ainda de uma construção sistemática e articulada entre o
Judiciário e a rede de apoio socioassistencial, para que tal demanda possa ser
trabalhada.
Contudo, notamos diversas razões prejudiciais ao trabalho de avaliação
da equipe judiciária, sendo observado, em muitos dos materiais estudados e no
próprio cotidiano profissional, a escassez de técnicos em virtude de equipes
defasadas, por diversas variáveis. Neste sentido, investir em melhores condições de
trabalho ofertadas às equipes interprofissionais é, consequentemente, garantir
maiores chances de sucesso no processo de adoção.

397
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Lidia Levy de; BITTENCOURT, Maria Inês Garcia de Freitas. A


delicada construção de um vínculo de filiação: o papel do psicólogo em processos de
adoção. Pensando fam., Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 41-53, jul. 2013.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e


do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 16 jul. 1990. Retificado no DOU de 27.9.1990b. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. BRASIL. Estatuto da
Criança e do Adolescente. Lei Federal no. 8069 de 13 de junho de 1990.

______. Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as


Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente,
8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de
janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT,
aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras
providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 ago. 2009.
Retificado no DOU de 2.9.2009. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm>.

______. LEI Nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a


Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º
de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

COORDENADORIA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DE SÃO PAULO. Curso de


iniciação funcional dos assistentes sociais e psicólogos judiciários: adoção. São
Paulo: Diretoria de capacitação e desenvolvimento de talentos, 2019.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua


Portuguesa. Rio de Janeiro, 1986,p.566.

398
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

GHIRARDI, M. L. A. M. A devolução de crianças adotadas: ruptura do laço familiar.


Revista Brasileira de Medicina, São Paulo, 2009. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=2443380&pid=S1677-
2970201700010001000012&lng=pt.

GÓES, Alberta Emília Dolores de. (Des) Caminhos da adoção: a devolução de


crianças e de adolescentes em família adotivas. 2014.234f. Dissertação (Mestrado
em Serviço Social) – Pontífice Universidade Católica de São Paulo, 2014.

______. Criança não é brinquedo! A devolução de crianças e adolescentes em


processos adotivos. Rio de Janeiro: [Syn]thesis,vol.7, n.12014,p.85-93. Cadernos do
Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

REZENDE, Guilherme Carneiro de. A responsabilidade civil em caso de desistência


de adoção. Revista Jurídica do Ministério Público do Paraná, ano 1, n°. 1, dez. 2014,
p. 81. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1797.html.

SOUZA, Hália Pauliv de. Adoção tardia: devolução ou desistência de um filho?.


Curitiba, Editora Juruá, 2012, p. 11-27.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Devolução de Crianças e


Adolescentes em Processo de Adoção. In: Cadernos dos Grupos de estudos:
Serviço Social e Psicologia Judiciários. São Paulo: Secretaria de Recursos
Humanos, 2016, p.034-53.

WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturação. Porto


Alegre: Artes Médicas, 1983. (Trabalho original publicado em 1958[1957]).

______. Da pediatria à psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Trabalho


original publicado em 1945).

399
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ATUAÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA DO JUDICIÁRIO NA


METODOLOGIA DO DEPOIMENTO ESPECIAL: UMA
CONTEXTUALIZAÇÃO DA REALIDADE

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - BAURU


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

400
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Joyce Borges Romeiro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Lucia Pereira dos Santos Martarelli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bauru

AUTORES
Ana Paula Alves dos Santos Gonçalves – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Pederneiras
Ana Paula Gonçalves Calazans – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Duartina
Denise Vitório – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Ecléa Correa de Lacerda Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Edelmaris Campanhã de Moraes e Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Lençóis Paulista
Eliane Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Fabiana de Oliveira Rosolin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pederneiras
Geisa Rodrigues de Freitas – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pirajuí
Helen Milene Cursino dos Santos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Isabel Cristina Bergamini de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Iacanga
Ivandra Carla Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Joyce Borges Romeiro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Juliana de Moraes Mayer – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Cruz do Rio
Pardo
Laís Elaine Catini Sattin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Lourdes Zambom – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirajuí
Lucia Pereira dos Santos Martarelli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bauru
Luciana Cristina Mastreli Bonora Alves – Psicóloga Judiciário – Comarca de Agudos

401
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Maria Camila Lopes Lenharo Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Bauru
Natalia Kerche Alvares – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bariri
Rebeca Ferreira Pedroso de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Macatuba
Regiane Lucas de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirajuí
Silvia Regina Gonçalves Serrano – Assistente Social Judiciário – Comarca de Gália
Solange Aparecida Serrano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Vania Aparecida Borim Moretto Delpino – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jaú.

402
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O tema Depoimento Especial surgiu como interesse de estudo para este


Grupo, uma vez que tal metodologia, via de regra, é aplicada no âmbito da justiça
criminal e recentemente foi legitimada como prática pela Lei nº 13.431 no ano de
2017, trazendo para o psicólogo e o assistente social judiciário mais uma função
diversa de suas especificidades e para qual não se tinha o devido preparo.
Vale lembrar que nos primeiros movimentos do Tribunal de Justiça no
sentido de implantação desse método, o Conselho Federal de Psicologia e o
Conselho Federal de Serviço Social, órgãos reguladores e fiscalizadores dessas
profissões colocaram-se contrários, apontando as especificidades dessas categorias
as quais não se inclui a de inquiridores.
Mesmo assim, o Tribunal de Justiça manteve seu objetivo em implantar
no Estado de São Paulo a prática do Depoimento Especial de crianças e
adolescentes como já instituído em outros Estados da Federação, com veiculação
de experiências exitosas, ainda que tal resultado positivo não seja percebido da
mesma forma pelos psicólogos e assistentes sociais deste Grupo de Estudos.
Isto posto, o Grupo optou por fazer a leitura da Lei nº 13.431, de abril de
2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente
vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de julho de 1990, mais
especificamente nos artigos que dizem respeito à prática do Depoimento Especial,
fazendo uma análise desta na ótica dos participantes do Grupo de Estudos em suas
Comarcas, visando conhecer essa realidade e buscando através da reflexão,
minimizar a angústia gerada nos profissionais da Equipe Técnica do Judiciário
Paulista.
No início dos trabalhos, das 12 (doze) Comarcas participantes 07 (sete) já
haviam feito o Depoimento Especial. Decidiu-se por abordar preliminarmente, uma
breve contextualização do Depoimento Especial e sua normativa internacional e
brasileira, a aplicação do referido método e procedimentos utilizados, com referência
ao conteúdo legal e como se dá na prática, no tocante a realização do atendimento à
criança e ao adolescente, vítima ou testemunha, que precede o Depoimento
Especial, em seguida os aspectos que envolvem a tomada do depoimento e a
apresentação ou não do documento final.

403
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considerando que o Grupo abrange várias Comarcas, no decorrer das


atividades mensais, verificou-se que a uniformização preconizada pelo Tribunal de
Justiça, com base em suas recomendações aos Juízes, bem como no teor da
Legislação vigente, não se aplica no mesmo formato na prática, pois são diversos os
entendimentos acerca da atuação, variando os procedimentos em cada Comarca.
Importante salientar que o estudo do tema neste ano teve uma
característica diferente de quando nos foi colocada a Lei e a determinação de atuar
nessa seara, pois no diálogo do Grupo, a prática estava sendo realizada conforme o
entendimento do profissional e as exigências do Juiz de sua Comarca. A interação
dos participantes com a exposição de suas demandas, possibilitou uma aproximação
da realidade das Equipes Técnicas do Judiciário, fomentando alternativas para o
desempenho de nossa função na metodologia do Depoimento Especial, cujo objetivo
principal de nossa atuação visa evitar ainda mais sofrimento para a vítima e
testemunha, sendo esta criança ou adolescente.

404
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO DEPOIMENTO ESPECIAL:


APROXIMAÇÃO HISTÓRICA DA NORMATIVA INTERNACIONAL E
BRASILEIRA

Antes que pudesse me assustar e, depois do


susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não
querer – eu já estava lá dentro [...]
Caio F. Abreu

Conforme a Lei n° 13.431/2017 o Depoimento Especial é uma técnica de


inquirição judicial especializada, utilizada para colher o depoimento de crianças e
adolescentes vítimas e/ou testemunhas de violência, cuja vulnerabilidade justificaria
uma oitiva diferenciada visando reduzir o sofrimento e os danos psicológicos desses
depoentes, assim como gerar prova mais segura para a responsabilização dos
agressores.
De acordo com a Cartografia53 das experiências das tomadas de
Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes, em um conjunto significativo de
países é chamada de “testemunho” ou “declaração testemunhal”, termos que ainda
podem encontrar-se adjetivados de variadas formas: “testemunho infantil gravado”
(Colômbia, Estados Unidos, Índia e Chile), “testemunho remoto para evidência na
corte” (Canadá), “declaração testemunhal em Câmara Gesell” (Argentina).
No Brasil, inicialmente esta prática foi denominada como “depoimento
sem medo”, “depoimento sem dano”, “depoimento especial” ou “inquirição especial”
de crianças e adolescentes em processos judiciais.
A temporalidade das práticas de tomada de Depoimento Especial indicam
experiências anteriores à aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos
da Criança54. Neste aspecto, temos os países mapeados por ano das práticas de

53 DEPOIMENTO SEM MEDO (?) CULTURAS E PRÁTICAS NÃO-REVITIMIZANTES: Uma


Cartografia das experiências das tomadas de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes.
Childhood Brasil – Instituto WCF. 2ª edição. 2009 – São Paulo/SP.
https://www.childhood.org.br/publicacao/depoimento-sem-medo-()-%E2%80%93-culturas-e-
praticas-nao-revitimizantes-uma-cartografia-de-experiencias-de-tomada-de-depoimento-especial-
de-criancas-e-adolescentes-(versao-em-portugues).pdf.
54 A Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20

de novembro de 1989. Entrou em vigor em 2 de setembro de 1990. É o instrumento de direitos


humanos mais aceito na história universal. Foi ratificado por 196 países. Somente os Estados
Unidos não ratificaram a Convenção. O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança
405
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Depoimento Especial: 1985 (Estados Unidos e Israel), 1988 (Canadá), 1991 (África
do Sul e Austrália), 1992 (Inglaterra), 1998 (França), 2000 (Espanha), 2002
(Malásia), 2003 (Brasil, Chile e Jordânia), 2004 (Argentina, Escócia, Lituânia e
Noruega), 2005 (Cuba e Índia), 2006 (Nova Zelândia), 2007 (Costa Rica) e 2008
(Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Suécia).
O sistema de depoimento CCTV55 (Closed Circuito of Television –
depoimento por meio de circuito fechado de TV e gravação de videoimagem) é o
mais amplamente utilizado e seu alcance chega a 64% dos países que empregam a
metodologia de Depoimento Especial (inclusive no Brasil), em comparação ao
sistema com Câmara Gesell (dispositivo para estudo das etapas do desenvolvimento
infantil, criado pelo psicólogo norte-americano Arnold Gesell – 1880-1961),
constituída por duas salas divididas por espelho unidirecional, que permite visualizar
a partir de um lado o que acontece no outro, mas não vice-versa. Este método é
utilizado por 36% dos países.
Referente à localização institucional das salas especiais para tomada de
depoimentos de crianças e adolescentes vítimas/testemunhas de violência, temos:
Polícia, Ministério Público, Poder Executivo, Tribunal/Corte de Justiça, Organização
Não Governamental (ONG), dentre outros.
Em relação ao profissional responsável pela tomada do depoimento na
Cartografia foram apresentados Juiz, Promotor, Defensor, Policial, Médico,
Psicólogo, Assistente Social, Psiquiatra e Psicopedagogo.
Resgatando os marcos legais para oitiva especializada de crianças e
adolescentes no Brasil, inicialmente reportamos a Convenção dos Direitos da
Criança do ano de 1990 – art. 12, § 2º - que garante o direito da criança ser ouvida e
que sua opinião seja levada em consideração em

[...] “todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer


diretamente, quer por intermédio de um representante ou órgão
apropriado em conformidade com as regras processuais da
legislação nacional.”

em 24 de setembro de 1990. https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-


crianca.
55 Idem referência 1.

406
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Durante o ano de 2003 a Vara da Infância e Juventude de Porto


Alegre/RS passou a utilizar o Depoimento Especial, à época denominado
“Depoimento sem dano”, para a oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas de crimes, baseando-se na implantação do método nas informações e
dados fornecidos pela Childhood56 Brasil.
Em 2005 foi aprovada a Resolução nº 20/2005 pelo Conselho Econômico
e Social das Nações Unidas – ECOSOC, que reconhece a criança vítima como
capaz de falar e de testemunho, valoriza seu protagonismo e garante seu direito à
privacidade, à reparação e à assistência, devendo ser tratada com dignidade, ser
protegida de discriminação, ser informada, ser ouvida e ser protegida de sofrimentos
no processo e recomenda, inclusive, a redução do número de declarações (por
exemplo, utilizando-se gravação em vídeo).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), com nova
redação dada pela Lei nº 12.010/2009 – art. 12, §1º estabelece: que sempre que
possível, a criança ou adolescente será previamente ouvido por equipe
interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão
sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada.
Ainda:

Art. 100 - inciso XII - oitiva obrigatória e participação: a criança e o


adolescente, em separado ou na companhia dos pais, de
responsável ou de pessoa por si indicada, bem como os seus pais ou
responsável, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na
definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, sendo
sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária
competente, observado o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 28 desta Lei.

Posteriormente o Conselho Nacional de Justiça publicou a


Recomendação nº 33/2010 sobre o Depoimento Especial, a qual prevê dentre outros
aspectos: a implantação de sistema de depoimento vídeo gravado, realizado em

56
A Childhood Brasil (Instituto WCF-Brasil) é o braço brasileiro da World Childhood Foundation,
organização sem fins lucrativos, criada em 1999 pela S. M. Rainha Silvia da Suécia com o
objetivo de promover e defender os direitos de crianças e adolescentes em situação de risco em
todo o mundo. Além do Brasil, a World Childhood Foundation está presente na Suécia, Estados
Unidos e Alemanha e apoia mais de 100 projetos em 14 países. A Childhood Brasil possui sua
sede em São Paulo/SP.
407
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ambiente (com segurança e privacidade) separado da sala de audiências, com


profissional capacitado.
Em relação ao emprego de Cartilhas para o esclarecimento de crianças e
adolescentes, têm-se duas publicações57 referentes ao Estado do Rio Grande do
Sul: “Ouvindo a criança e o adolescente” e “Depoimento Sem Dano”, utilizadas na
avaliação prévia.
A Coordenadoria da Infância e Juventude – TJSP publicou em 2011 o
Protocolo nº 00066030/2011 – Atendimento não revitimizante de crianças e
adolescentes vítimas de violência, com a implantação de fluxograma de atendimento
em quatro varas do Estado (Atibaia, Campinas, Guarulhos e São Caetano do Sul) e
já previa a produção antecipada de prova e acompanhamento por videoconferência
do relato da criança/adolescente feito aos técnicos do judiciário.58
Posteriormente, ocorreu a publicação da Lei nº 13.431/2017 – que
estabelece o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou
Testemunha de Violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente) conforme os artigos 4º §1º, 5º e 12.
No ano seguinte, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo publicou o
Provimento CG nº 17/2018 alterando as Normas da Corregedoria para regularizar a
atuação do Setor Técnico do Juízo nos feitos de Depoimento Especial conforme os
artigos 802, 804, 806 e 808.
Ainda em 2018 foi publicado o Comunicado Conjunto (CNJ/CIJ) nº
1948/2018, do qual destacam-se os incisos abaixo:
II – Entrevista Prévia – protocolo de Depoimento Especial (CIJ nº
00066030/2011).
VI – Produção antecipada de prova: alínea b – O depoimento da criança
ou de adolescente deve ser tomado, tanto quanto possível, apenas uma vez na
produção antecipada.

57
http://jij.tjrs.jus.br/doc/cartilha-dep-especial.pdf
http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/crianca-e-
adolescentes/Cartilha Depoimento Sem Dano.pdf
58 Para maior aproximação com a realidade brasileira na implantação do Depoimento Especial,

sugerimos a leitura: Cartografia Nacional das Experiências Alternativas de Tomada de


Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes em Processos Judiciais no Brasil: O Estado da
Arte. Childlhood Brasil – CNJ. 1ª edição. São Paulo. 2013.
https://www.childhood.org.br/publicacao/cartografia_nacional.pdf
408
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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VII – Depoimento especial - Dinâmica: alínea c – O depoimento especial


deve seguir os protocolos científicos (art. 12 da Lei nº 13.341/2017).
Igualmente temos o Decreto Nº 9.603/2018 que regulamenta a Lei nº
13.431, de 4 de abril de 2017, estabelece o sistema de garantia de direitos da
criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e prevê o relato livre da
criança/adolescente bem como seu direito em permanecer em silêncio, a primazia
pela não revitimização, autonomia profissional na condução do Depoimento
Especial, dentre outros aspectos fundamentais abordados nos artigos 2º, inciso VI,
22 § 1º ao 3º, 23 ao 26.
Em fase de finalização das considerações pertinentes a este artigo e sem
possibilidade de apreciação e discussão pelos participantes deste Grupo de
Estudos, ocorreram duas publicações:
• Em 04/12/19 pelo Conselho Nacional de Justiça, noticiando que o
plenário julgou improcedente por unanimidade o Procedimento de Controle
Administrativo – apresentado pela Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos
do TJSP, que buscava nulidade do Provimento CGTJSP nº 17/2018. De acordo com
o relator, conselheiro Valtércio de Oliveira, psicólogos e assistentes sociais são
profissionais capacitados para auxiliar os magistrados a viabilizar a escuta protegida.
• Em 06/12/19 no Diário da Justiça Eletrônico o Comunicado Nº
396/2019 - TJSP, que trata da Resolução nº 299/2019 do Conselho Nacional de
Justiça – dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente
vítima ou testemunha de violência, de que trata a Lei nº 13.431, de 4 de abril de
2017. Este prevê em seus capítulos: a prevenção da violência institucional e
articulação; implantação das salas de Depoimento Especial em todas as comarcas;
das equipes para a realização do Depoimento Especial; capacitação de magistrados
e profissionais; controle sobre a realização do Depoimento Especial pelos
magistrados e da estrita observância dos parâmetros legais para a sua realização;
aprimoramento institucional do judiciário – especialização e integração operacional.

2 - A PRÁTICA DAS COMARCAS EM RELAÇÃO AO DEPOIMENTO


ESPECIAL

No Grupo de Estudos de Bauru participaram profissionais de 12 (doze)


Comarcas circunvizinhas, sendo 9 (nove) psicólogas e 15 (quinze) assistentes
409
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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sociais. Foi solicitado que cada Comarca retratasse como o Depoimento Especial
está sendo realizado. Nesse sentido, verificaram-se diferenças no tocante aos
procedimentos, as quais serão apresentadas a seguir.

2.1 - ENTREVISTAS PRÉVIAS

As entrevistas prévias ou entrevistas preliminares fazem parte da


recomendação constante no Comunicado Conjunto nº 1948/2018 e são atos
integrantes do protocolo de Depoimento Especial (CIJ nº 00066030/2011) adotado
pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ficando a cargo dos profissionais
da Equipe Técnica.
A prática dos profissionais envolvidos com os processos das varas
criminais denota a necessidade da intimação da criança/adolescente e de seu
responsável legal para participarem das entrevistas prévias ou preliminares com
antecedência suficiente para aproximação da Equipe Técnica, a fim de que sejam
realizados esclarecimentos sobre seus direitos, procedimentos a serem adotados e
planejamento de sua participação (Lei nº 13.431/2017).
Cabe aos profissionais do Setor Técnico informar a criança ou
adolescente sobre o direito de optar ou não por depor e de que forma, via
Depoimento Especial ou diretamente à autoridade judicial, bem como indagá-la se
faz objeção a ser vista ou ouvida pelo suposto agressor no momento de sua oitiva.

Art. 12. O depoimento especial será colhido conforme o seguinte


procedimento:
I - os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o
adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe
os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando
sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras
peças processuais.
§ 1º À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de
prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.
§ 3º O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que
a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode
prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação
de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o
afastamento do imputado. (BRASIL, 2017.)

410
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As entrevistas prévias também contemplam observações sobre a


comunicação da criança/adolescente, o contexto familiar, possível situação de risco
e necessidade de atendimentos pela Rede de Garantia de Direitos, no intuito de
garantir sua proteção integral.
Caso a criança/adolescente aceite depor na modalidade de Depoimento
Especial e apresente condições emocionais e cognitivas para tal, procede-se a sua
preparação para o dia da oitiva, com orientações sobre a chegada com antecedência
ao Fórum, oportunidade para que conheça a sala de audiências e equipamentos
audiovisuais que serão utilizados no momento do depoimento.
Em algumas Comarcas participantes, tais apresentações são realizadas
no dia da entrevista prévia, uma vez que este momento tem sido identificado como o
mais adequados a fim de evitar possível exposição da vítima/testemunha a situações
constrangedoras.
A partir desses esclarecimentos realizados pela Equipe Técnica, é
elaborado um documento e juntado aos autos, informando as escolhas que a
criança/adolescente e a família fizeram durante o atendimento.
O documento produzido após as entrevistas prévias, nas Comarcas que
fazem parte deste grupo de estudos, tem sido denominado Informação. Conforme
os exemplos trazidos pelas respectivas Equipes Técnicas, os conteúdos deste
documento normalmente são redigidos de forma resumida, atendo-se a não
identificação da vítima ou testemunha sob qualquer aspecto; à explanação sobre a
legislação; ao esclarecimento acerca do contato realizado com a vítima ou
testemunha e com a família; à aceitação ou não do Depoimento Especial por ambas
as partes e, em caso positivo, opinião das mesmas sobre a presença do acusado na
sala de audiência durante o Depoimento Especial. Estas Informações ainda
apresentam uma conclusão indicando ou não a ocorrência do Depoimento Especial,
ressaltando que esta é uma situação que pode ser alterada no dia agendado para a
audiência; e a sugestão de que o agendamento do Depoimento Especial ocorra com
antecedência suficiente para a reserva da sala e demais providências pertinentes,
inclusive planejamento, de acordo com a legislação em voga. Houve, igualmente,
justificativa fundamentada no caso de contraindicação do Depoimento Especial.

411
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ainda, em tais documentos, percebeu-se que não houve menção a


respeito da ocorrência de fala espontânea da vítima/testemunha referente à situação
de violência e/ou abuso.
Durante as discussões do Grupo de Estudos, observou-se que a
produção dos documentos técnicos também estava relacionada aos despachos ou
determinações judiciais anteriores. Nesse sentido, embora apresentem fatores em
comum, os documentos são particularizados e demonstraram diversidade de
conteúdo.

2.2 - TOMADA DO DEPOIMENTO ESPECIAL

A tomada do Depoimento Especial é atribuição inédita e recente aos


Setores Técnicos do Tribunal de Justiça de São Paulo e sua prática tem sido
construída em concordância com a legislação competente e os comunicados do
TJSP, as especificidades de cada Comarca do Estado e a metodologia usada pelos
profissionais, a partir da autonomia técnica prevista em lei.
O protocolo científico (art. 12 da Lei nº 13.341/2017), preconiza que no dia
marcado para o depoimento, deverá ser aberta a oportunidade para que a
criança/adolescente conheça a sala de audiência e as pessoas que assistirão o
depoimento, o qual deverá ser feito segundo a técnica de relato livre, seguido de
perguntas de esclarecimento feitas pelo técnico. A eventual recusa da vítima e ou
testemunha em depor, tanto no atendimento prévio, quanto no dia da tomada do
depoimento, deverá ser indicada pela Equipe Técnica e apreciada pelo Magistrado.
As recentes orientações do Tribunal de Justiça de São Paulo prestadas
por meio das últimas capacitações, por videoconferência, sugerem a utilização do
roteiro oferecido pela “National Children’s Advocacy Center” (NCAC) - Estrutura de
Entrevista Forense. Neste ponto, verificou-se no grupo que os profissionais utilizam
várias metodologias/protocolos e que não há consenso entre os participantes quanto
a melhor prática a ser utilizada.
Um fator relevante a ser considerado para o dia da audiência, é solicitar à
criança/adolescente e responsável que compareçam com antecedência, objetivando
um momento para realização de orientações pertinentes e oportunizar que
conheçam a sala de audiência, caso isso não tenha sido realizado na ocasião da
entrevista prévia, minimizando possível contato com o acusado. Além disso, é
412
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

importante esclarecer dúvidas com relação aos seus direitos, relembrando os


procedimentos que incluem a filmagem/gravação.
Durante o intervalo da audiência, o Magistrado colhe perguntas do
Defensor e do Ministério Público, as avalia sob o aspecto jurídico e as repassa em
bloco para o técnico que avaliará a pertinência das perguntas, sob a ótica da
proteção, e as adaptará à linguagem do depoente.
As indagações devem ser realizadas de maneira criteriosa à vítima ou
testemunha, atentando-se ao caráter invasivo, intimidador, pertinência ou
inadequação ao seu estágio de desenvolvimento e/ou possibilidade de ocasionar
traumas futuros e revitimizações. Finaliza-se o momento com agradecimentos à
vítima ou testemunha, retomando-se assuntos abordados na fase do “rapport”.

2.3 - DOCUMENTO FINAL

O Protocolo CIJ nº 00066030/2011, anterior à realização do Depoimento


Especial no Tribunal de Justiça de São Paulo, aponta que:

“e) Profissionais do serviço social e da psicologia apresentam, ao


final da escuta, relatório com parecer fundamentado, com as suas
considerações e conclusões (grifo nosso) [...]”.

As Leis nº 13.431/2017 e 9.603/2018 que instituíram o Depoimento


Especial não contemplam explicitamente a necessidade de apresentação de
documento final após a realização do procedimento. O Comunicado Conjunto nº
1948/2018 indica: “VII – Depoimento Especial – dinâmica: “abertura de prazo para
apresentação do laudo final pela equipe técnica”.
Para os participantes do Grupo de Estudos de Bauru, a não explicitação
deste documento nas leis que regem o Depoimento Especial deixa margem para
interpretações difusas quanto à obrigatoriedade, ou não, de sua apresentação.
Isto posto, com vistas a verificar como procedem as 12 (doze) Comarcas
participantes do Grupo de Estudos de Bauru, foi solicitado para que aquelas que
haviam efetivado o Depoimento Especial, num total de 07 (sete) - que
encaminhassem o documento final produzido, para conhecimento das suas

413
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

realidades, havendo diferenciação na nomenclatura utilizada para o referido


documento: Laudo Psicológico (haja vista que somente o profissional de psicologia
participou do procedimento), Relatório Final, Relatório Multiprofissional e Relatório
Psicológico e Social.
Em relação à estrutura dos documentos produzidos pelas Comarcas,
verificou-se que:
• Todas identificaram as partes e/ou profissional;
• 05 (cinco) descreveram os procedimentos e a demanda;
• 02 (duas) apresentaram os objetivos dos procedimentos;
• 03 (três) responderam a quesitos, sendo: 01 (um) do Ministério Público,
02 (dois) da Defesa e 01 (um) do Juízo.
Sobre o conteúdo do documento final:
• 01 (uma) Comarca apresentou a identificação familiar; descrição do
relato da criança para a psicóloga clínica e contexto familiar pós-revelação do abuso.
• 01 (uma) constou os dados da entrevista com o genitor e adolescente;
relato do abuso pela adolescente; orientações sobre o Depoimento Especial (DE);
condições de desenvolvimento da adolescente; descrição da realização do DE;
entrevista com a adolescente nos moldes do Protocolo Brasileiro de Entrevista
Forense para Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência Sexual
- National Children’s Advocacy Center (NCAC) e contato com a escola (devido a
queixas de problemas comportamentais).
• 01 (uma) realizou a análise das entrevistas preliminares; apontamentos
de ações protetivas e encaminhamentos; orientações sobre o procedimento do DE e
descrição das intercorrências durante a tomada do depoimento.
• 01 (uma) abordou as orientações sobre o procedimento do DE, sua
operacionalidade, descreveu o relato e as condições emocionais da vítima ou
testemunha.
Em Relação às considerações dos profissionais do Serviço Social e da
Psicologia foi verificado:

Serviço Social:
• 03 (três) Comarcas não atuaram, ficando a cargo dos profissionais da
Psicologia.

414
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

• 01 (uma) apreciou as condições de desenvolvimento da vítima;


observou seu comportamento ansioso; a fala da criança sobre sua rotina e a
violência sofrida, e a avaliação das condições familiares.
• 01 (uma) apresentou o item conclusão, produzido em conjunto com a
psicologia.

Psicologia
• 01 (uma) Comarca realizou a análise do desenvolvimento da criança e
de sua sexualidade; indicou ausência de doenças mentais que comprometessem o
DE; fez a análise do discurso da vítima; validação da condição psicológica da
criança para participar do DE; descrição do “rapport” e do uso do recurso
terapêutico; citação; considerações técnicas; apontamentos de sintomas após
situação de violência; afirmação da existência de indícios da ocorrência da violência
e a retomada de questões relacionadas ao DE.
• 01 (uma) reafirmou a condição favorável da criança para DE (idade e
verbalização), “rapport”, indicação de preservação da memória; avaliação se a
família é funcional e protetiva; ressaltou a importância do acompanhamento
psicológico para a vítima; citação bibliográfica sobre violência.
• 01 (uma) teceu considerações sobre o desenvolvimento psico-cognitivo
da adolescente; referência bibliográfica; identificação de indícios da ocorrência do
abuso sexual; ressaltou a importância do acompanhamento psicológico para a
vítima.
• 01 (uma) trouxe informações sobre a avaliação prévia ao DE;
condições psicológicas do adolescente; informação de que a participação do
adolescente no DE deu-se nos moldes da Lei nº 13.431/2017 e do Comunicado
Conjunto nº 1948/2018.
• 01 (uma) utilizou o item denominado conclusão, produzido em conjunto
com o serviço social: apresentou as condições de desenvolvimento da criança;
orientações sobre o DE à família; apresentou a opção para a criança de participar do
DE ou falar diretamente para o juiz; apontou que a criança não relatou sobre o abuso
durante a entrevista prévia com as profissionais; apontou comportamento protetivo
da genitora em relação ao filho.

415
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• 01 (uma) apresentou o item denominado conclusão: apontou a forma


como se deu a narrativa da adolescente indicando coesão e coerência sobre os
fatos narrados; e as considerações sobre as reflexões feitas na entrevista prévia
com a adolescente e seu genitor.
• Ainda, 01 (uma) acrescentou o item outras considerações (além das
individuais do Serviço Social e da Psicologia), apontando os fatores que tensionaram
o DE (atraso para início e presença do réu na sala de audiência, contrariando o
solicitado pela vítima e responsáveis) e teceu considerações de que tais situações
poderiam ter inviabilizado a realização do procedimento.
Assim, o Grupo de Estudo refletiu que a forma como ocorre a atuação dos
profissionais de Serviço Social e Psicologia no procedimento do DE visa unicamente
a proteção da criança/adolescente vítima ou testemunha, evitando sua exposição a
presença do acusado e as perguntas desapropriadas acerca do ocorrido pelas
partes envolvidas.

2.4 - DADOS LEVANTADOS SOBRE AS PRÁTICAS

O presente levantamento contempla a realidade de 12 (doze) Comarcas


no período de janeiro a julho de 2019, sendo realizados 67 (sessenta e sete)
Depoimentos Especiais, dentre os quais: 55% contaram com a participação conjunta
de Psicólogo e Assistente Social, 36% somente o Psicólogo e 9% alternaram entre
os profissionais da Equipe Técnica. Com relação a qual etapa processual foi
demandado o DE, 36% das Comarcas atuaram em fase de inquérito policial, 73%
realizaram o DE enquanto antecipação de provas e 100% em processos criminais.
Em relação à Avaliação Prévia, todas as Comarcas atenderam a
vítima/testemunha e seu responsável individualmente; 27% atenderam a
vítima/testemunha e seu responsável ao mesmo tempo e 09% das comarcas
atendeu o réu.
Ainda sobre a Avaliação Prévia, os técnicos presentes indicaram que
foram contemplados os seguintes temas durante estas intervenções:

416
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Aspectos contemplados durante as entrevistas preliminares:

Capacidade de comunicação da vítima 100%


Dinâmica Familiar 100%
Informe dos direitos 100%
Opção pela oitiva na modalidade DE ou direto com Juiz 100%
Quem serão os presentes na sala de audiência 100%
Transmissão em tempo real para sala de audiência 100%
Deseja ou não contato com o réu 91%
Necessidade encaminhamento rede socioassistencial 91%
Rapport 91%
Apresentação sala de audiência 82%
Presença psicopatologias que prejudiquem relato 73%
Existência de sintomatologia associada ao Abuso 64%
Avaliação capacidade mnêmica 27%
Estudo Social 27%
Avaliação cognitiva 18%
Avaliação estágio de desenvolvimento 18%
Avaliação de Personalidade 9%
Uso testes Psicológicos 0%

Uso testes Psicológicos


Avaliação de Personalidade
Avaliação estágio de desenvolvimento
Avaliação cognitiva
Estudo Social
Avaliação capacidade mnêmica
Existência de sintomatologia associada ao…
Presença psicopatologias que prejudiquem…
Apresentação sala de audiência
Rapport
Necessidade encaminhamento rede…
Deseja ou não contato com o réu
Transmissão em tempo real para sala de…
Quem serão os presentes na sala de audiência
Opção pela oitiva na modalidade DE ou…
Informe dos direitos
Dinâmica Familiar
Capacidade de comunicação da vítima
0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%

Nota-se que estes aspectos elencados abrangem questões relativas a


avaliação psicológica e social, além da primazia daquelas elencadas no item 2.1. Tal
discrepância será discutida no item 3-Conclusão.

417
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Relatório Informativo: 82% das comarcas entregaram relatório informativo


previamente a realização do D.E.

Aspectos contemplados no texto do relatório informativo:


Se deseja realizar o D.E. ou direto com juiz 100%
Indicação ou contraindicação DE 100%
Informe dos direitos da vítima/testemunha 91%
Se deseja ou não contato com o réu 91%
Identificação das Partes 55%
Objetivo do documento 27%
Histórico da violência 18%
Resposta Quesitos 9%
Referência à legislação 9%

Referência à legislação

Resposta Quesitos

Histórico da violência

Objetivo do documento

Identificação das Partes

Se deseja ou não contato com o réu

Informe dos direitos da vítima/testemunha

Indicação ou contraindicação D.E.

Se deseja realizar o D.E. ou direto com juiz

0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%

Dentre os processos encaminhados para a realização do DE, em 64% dos


casos foi contraindicada sua realização, levando em consideração a idade da
vítima/testemunha, lapso temporal entre o fato e a indicação do DE, vítimas maiores
de 21 anos, crianças que já não se encontravam em situação de risco, pois foram
inseridas em família substituta, além da dificuldade de comunicação devido a
deficiências diversas.

Depoimento Especial - Protocolo de Entrevista: 55% utilizam o National Institute


of Child Health and Human Development (NICHD), reconhecido pela literatura
internacional especializada como um dos instrumentos mais adequados para a

418
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entrevista estruturada com crianças vítimas de violência; 36% utilizam o National


Children’s Advocacy Center (NCAC) e 9% utilizam Relato Livre.

Relato
livre
9%
NCAC NICHD
36% 55%

Relatório Final: em 36% dos casos foi nomeado como Laudo, 18% como Relatório,
9% como Relatório Psicológico, 9% como Relatório Multiprofissional e 9% como
Relatório de Depoimento Especial. Não obstante, há entendimentos diferentes entre
os profissionais sobre a produção ou não do Relatório Final, considerando que as
intervenções derivadas da Entrevista Prévia não correspondem a realização de
Estudo Social ou Psicológico e não há previsão legal para a produção do
documento.

Aspectos contemplados no texto do documento final


Descrição procedimentos 100%
Descrição da demanda 100%
Referências bibliográficas 100%
Identificação partes 91%
Identificação Profissional 82%
Análise 82%
Considerações finais / separado PSI e AS 73%
Objetivos 55%
Resposta aos quesitos 45%
Considerações finais / junto PSI e AS 27%

419
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Considerações finais / junto Psi AS


Resposta aos quesitos
Objetivos
Considerações finais / separado…
Análise
Identificação Profissional
Identificação partes
Referencias bibliográficas
Descrição da demanda
Descrição procedimentos

0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%

Aspectos contemplados na análise:


Dinâmica familiar 91%
Atuação rede socioassistencial 91%
Encaminhamentos rede socioassistencial 91%
Relação vítima/réu 91%
Psicopatologias 64%
Análise relato 55%
Existência de indicadores do abuso sexual 45%
Descrição abuso 0

Descrição abuso

Existência de indicadores do abuso…

Análise relato

Psicopatologias

Relação vítima/réu

Encaminhamentos rede…

Atuação rede socioassistencial

Dinâmica familiar

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Quesitos: 55% das Comarcas já responderam quesitos, dentre os temas


de maior incidência tais como:
• Questionamento sobre procedimento / sugestão de testes;

420
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

• Capacidade de memória da vítima/testemunha, possibilidade de


memória plantada, possibilidade de falsa memória / autoria de quem “plantou” as
falsas memórias;
• Método usado para aferir capacidade mnêmica;
• Análise de outras provas/etapas processuais;
• Comparação do D.E. com outras etapas/provas;
• Avaliação dos genitores;
• Fenômenos sociológicos (contágio grupal e desejabilidade social);
• Personalidade da vítima/testemunha;
• Saúde mental e humor da vítima/testemunha;
• Sintoma de somatização;
• Análise de relações familiares / sociais;
• Avaliação sobre desenvolvimento da vítima (global, psicomotor, afetivo,
cognitivo, sociabilidade e linguagem);
• Capacidade de comunicação;
• Sobre o comportamento do réu;
• Sobre a ocorrência ou não da violência; e
• Desenvolvimento de trauma ou temor em decorrência da violência.

Concernente à entrevista prévia, considerando os exemplos de


Informação produzido nas Comarcas participantes deste Grupo de Estudos,
entendeu-se como relevantes os dados constantes nestes documentos, pois o
conteúdo tende a contribuir para o melhor planejamento e execução do Depoimento
Especial, deixando registradas e mais explícitas as escolhas inerentes ao direito da
vítima/testemunha, numa tentativa de evitar possíveis violações e constrangimentos.
Destaca-se o fato de as Informações serem, normalmente redigidas de forma
resumida, atendo-se a não identificação da vítima ou testemunha sob qualquer
aspecto. Isto demonstra que a intervenção da Equipe Técnica se mantém voltada
para a proteção integral da criança/adolescente.
Nas discussões do Grupo de Estudos, pode-se observar que, apesar das
informações apresentarem pontos comuns, elas são particularizadas porquanto, a
produção dos documentos técnicos se relaciona aos despachos ou a determinações
judiciais anteriores.

421
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Verificou-se ser consenso entre os técnicos, que os procedimentos


relativos ao Depoimento Especial não comportam qualquer menção ou descrição do
conteúdo relatado pela vítima/testemunha sobre os fatos possivelmente vivenciados
na ocasião da violência nos documentos produzidos pela Equipe Técnica.

422
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

3 - CONCLUSÃO

Este texto não tem a pretensão de esgotar a discussão em relação às


práticas e metodologias que envolvem o Depoimento Especial, mas apenas
contribuir para um direcionamento mais uniforme das ações e acolhimento
emocional dos profissionais que atuam nesta seara, oportunizando um espaço de
reflexão, relato livre sobre as angústias e enfrentamentos no cotidiano, além de
buscar dirimir dúvidas e compartilhar experiências.
Inicialmente, os profissionais participantes deste Grupo de Estudos
enfatizaram a importância do documento denominado como Informação juntado aos
Autos após a Avaliação Prévia, por considerarem que as informações apresentadas
auxiliam no planejamento e execução do Depoimento Especial, além de previamente
traduzir de forma mais explícita a vontade da criança/adolescente vítima/testemunha
de modo a evitar possíveis violações e constrangimentos, como por exemplo os
questionamentos inadequados ou a presença do agressor na sala de audiência.
Reforça-se que as intervenções e informações elaboradas pela Equipe Técnica
priorizam a proteção integral da criança/adolescente, motivo pelo qual o documento
apresenta dados sucintos, atendo-se ao estritamente necessário.
Ainda que o documento Informação apresente uma estrutura comum
compartilhada pelos profissionais, também observou-se as particularidades de cada
Setor Técnico que responde as diversas modalidades de despachos de acordo com
o entendimento do Juiz do feito.
É consenso entre os profissionais que os procedimentos relativos ao
Depoimento Especial e documento produzido pelo Setor Técnico não incluem
qualquer menção ou descrição do conteúdo relatado pela vítima/testemunha sobre
os fatos vivenciados na ocasião da violência.
Constatou-se que tendo como referência as 12 (doze) Comarcas que
compõem o Grupo de Estudos Bauru, são diversas as configurações apresentadas,
e neste momento, não há uniformidade quanto aos procedimentos que perpassam a
operacionalização do Depoimento Especial. Assim, buscou-se apresentar uma
aproximação com a realidade experimentada pelas Equipes Técnicas da 3ª RAJ.
Para finalizar as considerações do Grupo de Estudos Bauru, faz-se
necessário reiterar questões apresentadas no escopo do trabalho com vistas a

423
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ressaltar a falta de concordância entre as equipes sobre o fato de que o Depoimento


Especial se trata de uma metodologia que realmente garanta a não revitimização.
No início dos trabalhos deste Grupo de Estudos observou-se a ocorrência
de avaliações sociais e psicológicas envolvendo aspectos cognitivos, psíquicos ou
ainda indícios de abuso. A partir das experiências compartilhadas, o exaustivo
estudo e discussão do tema, considerou-se que não compete a Equipe Técnica do
Judiciário tais ações, ainda que solicitadas através dos quesitos, uma vez que a
legislação indica o profissional como inquiridor no depoimento e não como perito.
Outro ponto emblemático se refere a necessidade de formação
continuada acerca do Depoimento Especial e de elaboração de estudos que
demonstrem se os resultados de sua implementação têm sido satisfatórios.

424
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4 - REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal 8.069, DE 13 DE JULHO


DE 1990. Dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, Ministério da
Justiça, Brasília – DF. 1995.

BRASIL, LEI Nº 12.010, DE 03 DE AGOSTO DE 2009. Dispõe sobre adoção; altera


as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente,
8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de
janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT,
aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras
providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Lei/L12010.htm. Acesso em 20 de setembro de 2019.

BRASIL, LEI Nº 13.431, DE 4 DE ABRIL DE 2017. Estabelece o sistema de garantia


de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 154, n. 66, 05 abr. 2017.

CHILDHOOD BRASIL. DEPOIMENTO SEM MEDO (?) CULTURAS E PRÁTICAS


NÃO-REVITIMIZANTES: Uma Cartografia das experiências das tomadas de
Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes. 2. ed. São Paulo: INSTITUTO
WCF, 2009. https://www.childhood.org.br/publicacao/depoimento-sem-medo-()-
%E2%80%93-culturas-e-praticas-nao-revitimizantes-uma-cartografia-de-
experiencias-de-tomada-de-depoimento-especial-de-criancas-e-adolescentes-
(versao-em-portugues).pdf. Acesso em 10 de junho de 2019.

CHILDHOOD/BR NATIONAL CHILDREN´S ADVOCACY CENTER – NCAC/USA.


Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense para Crianças e Adolescentes Vítimas ou
Testemunhas de Violência Sexual. Universidade Católica de Brasília – UCB. Brasília,
2014.

425
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DECRETO N° 99.710, DE 21 DE NOVEMBRO DE1990. Promulga a Convenção


sobre os Direitos da Criança. https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-
direitos-da-crianca.pdf. Acesso em 18 de agosto de 2019.

DECRETO Nº 9.603, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2018. Regulamenta a Lei nº


13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da
criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9603.htm.
Acesso em 02 de maio de 2019.

ECOSOC. Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Resolução 20/2005.


Disponível em: http://www.un.org/en/ecosoc/docs/2005/resolution%202005-20.pdf
Acesso em 30 de junho de 2019.

AGÊNCIA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Brasília/DF. Psicólogos e


assistentes sociais do judiciário podem colher depoimento especial. 04 dez 2019.
Disponível em: https://cnj.jus.br/category/noticias/cnj. Acesso em 10 dez 2019.

PROVIMENTO CG Nº 17, DE 22 DE MAIO DE 2018. Dispõe sobre a averbação da


alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de
pessoas trans no Registro Civil de Pessoas Naturais.
https://www.anoreg.org.br/site/wp-content/uploads/2018/06/Provimento-n%C2%BA-
17-2018_esse.pdf. Acesso em 24 de junho de 2019.

RECOMENDAÇÃO CNJ nº 33, DE 23 DE NOVEMBRO DE 2010. Recomendação


relativa à criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes
vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais - Depoimento Especial.
http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1528.html. Acesso em 20 de março de 2019.

SÃO PAULO, COORDENADORIA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. Protocolo CIJ


nº 00066030/11 – Atendimento não-revitimizante de crianças e adolescentes vítimas
de violência, especialmente sexual-construção de plano interinstitucional em âmbito
estadual e implementação em caráter piloto do projeto em cinco varas no Estado –

426
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

embasamento legal autorização pela Coordenadoria da Infância e da Juventude.


Diário da Justiça Eletrônico: ano IV, ed. 963, pp. 9-18, 30 mai 2011.
SÃO PAULO, CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA E COORDENADORIA DA
INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO. Comunicado Conjunto nº 1948/2018. Republicado para retificar incorreção.
Diário da Justiça Eletrônico: ano XII, ed. 2840, pp. 8-9, 02 jul 2019.

SÃO PAULO, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Comunicado


nº 396/2019. Diário da Justiça Eletrônico: ano XIII, ed. 2948, pp. 2-11, 06 dez 2019.

427
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O DESCOMPASSO DO TEMPO NO ACOLHIMENTO


DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – CAMPINAS


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019
428
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Marcia Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas
Maria Amália do Val Simoni – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

AUTORAS
Aline Alberti Veronez da Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Amparo
Aline Antunes Barbosa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rio das Pedras
Aline de Paula Bonasio Fonseca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Amparo
Andreza Cristina Oliveira da Silva Calixto – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Campinas
Claudia Maria Zoppe Coregio – Assistente Social Judiciário – Comarca de Serra
Negra
Juliana Coelho Correia Rodrigues – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campo
Limpo Paulista
Karen Bodstein Burigo Godoy – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pedreira
Mara Gisela Dariolli do Prado – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pedreira
Marcia Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas
Maria Amália do Val Simoni – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas
Maria Aparecida Thomazini Bassi – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
José do Rio Preto
Maria das Graças De Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de Aguaí
Renata Souza Felgueiras Loureiro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cosmópolis
Rosemeire Donega – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapira

429
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O DESCOMPASSO DO TEMPO NO ACOLHIMENTO DE


CRIANÇAS E ADOLESCENTES

O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.


Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das
horas...

Mario Quintana

430
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Em 2019 o Grupo de Estudos – Família – Campinas completou 15 anos,


comemorando uma história de muito estudo, reflexões e trocas constantes. O Grupo
sempre buscou oferecer acolhida as novas integrantes e reconhecimento a
importante participação de todas que o compuseram. As reflexões, as trocas, as
inquietações e o desejo de fazer diferença na vida daqueles que atendemos, e o
compromisso com a infância sempre foi a principal marca deste grupo.
A instalação de grupos de estudos no interior foi autorizada pela
presidência do TJ, atendendo pedidos de assistentes sociais e psicólogos.
Campinas foi uma das cidades contempladas e assim nasceu nosso Grupo de
Estudos. Escolhemos o tema FAMÍLIA e, de fato, ao longo do tempo reconhecemos
que “cada processo respira e transpira” ou seja pulsa vida daqueles de que trata e
também “pela Família passa o mundo” numa alusão de que tudo ocorre para dentro
de uma família.
Neste ano o grupo se propôs a estudar e refletir situações de
acolhimento, desacolhimento e trabalho com as famílias. Dada sua complexidade, o
acolhimento institucional de crianças e adolescentes configura-se um importante
desafio aos profissionais do Poder Judiciário, assim como para toda a rede protetiva.

1 - POR QUE A FAMÍLIA?

Conforme dispõe o artigo 19 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA,


lei 8069/90), “é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de
sua família”. A prioridade legal da família como o ambiente adequado para o cuidado
e proteção de suas crianças e adolescentes surge como consequência de pesquisas
de diversos estudiosos.
Bronfenbrenner, teórico russo, elaborou sua teoria a partir da valorização
do ambiente social e de sua influência para o desenvolvimento humano ao longo de
toda a vida. Ele coloca a família como o eixo central, o principal contexto para o
desenvolvimento da criança. Posteriormente, este ambiente é gradativamente
ampliado da família para outros espaços de convivência, como escola e trabalho.
Entretanto, a família se mantém como a base de todo o desenvolvimento humano.

431
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Já Winnicott destaca que um ambiente familiar afetivo e continente às


necessidades da criança e, mais tarde do adolescente, constitui a base para o
desenvolvimento saudável ao longo de todo o ciclo vital. Tanto a imposição do limite,
da autoridade e da realidade, quanto o cuidado e a afetividade são fundamentais
para a constituição da subjetividade e desenvolvimento das habilidades necessárias
à vida em comunidade. Deste modo, as experiências vividas na família tornarão
gradativamente a criança e o adolescente capazes de se sentirem amados, de
cuidar, se preocupar e amar o outro, de se responsabilizar por suas próprias ações e
sentimentos. Estas vivências são importantes para que se sintam aceitos também
nos círculos cada vez mais amplos que passarão a integrar ao longo do
desenvolvimento da socialização e da autonomia.
O autor afirma que, quando a convivência familiar é saudável, a família é
o melhor lugar para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Entretanto, é
preciso lembrar que a família, lugar de proteção e cuidado, é também lugar de
conflito e pode até mesmo ser o espaço da violação de direitos. Nessas
circunstâncias, medidas deverão ser tomadas, seja de apoio à família de origem ou
outras que se mostrarem necessárias, de modo a assegurar-se o direito da criança e
do adolescente de se desenvolver no seio de uma família, pois a convivência
saudável com a família possibilita que:

o indivíduo encontre e estabeleça sua identidade de maneira tão


sólida que, com o tempo, e a seu próprio modo, ele ou ela adquira a
capacidade de tornar-se membro da sociedade – um membro ativo e
criativo, sem perder sua espontaneidade pessoal nem desfazer-se
daquele sentido de liberdade que, na boa saúde, vem de dentro do
próprio indivíduo. (Winnicott, 2005, p. 40).

Segundo o psicanalista John Bowlby, em sua obra “Cuidados maternos e


saúde mental” a qualidade dos cuidados parentais que uma criança recebe em seus
primeiros anos de vida é de importância fundamental para sua saúde mental futura.
Constitui base do desenvolvimento da personalidade e da saúde mental a vivência,
pelo bebê e pela criança pequena, de uma relação calorosa, íntima e contínua com a

432
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

mãe, na qual ambos encontrem satisfação e prazer, aliada a relações satisfatórias


com o pai.
Importante evidenciar que o laço biológico não garante que os genitores
se tornem de fato pai e mãe. As famílias não biológicas podem exercer a função
necessária à constituição do sujeito. Como coloca Paiva:

Para além das funções de sustento, guarda e educação, alguém


dessa família substituta poderá exercer a função paterna,
estabelecendo os necessários limites a uma criança para que ela
possa existir e se constituir como sujeito. A construção da
subjetividade da criança está muito mais subordinada à organização
psíquica daqueles que cuidam dela, de como eles se colocam em
relação à sua própria sexualidade, à fantasia que tem de ser pai e/ou
mãe e, talvez sobretudo, ao lugar que a criança, adotiva ou não,
ocupa no universo psíquico dos pais (2004, p.13).

Contudo, neste exato momento, apesar de terem parentes, milhares de


crianças e adolescentes romperam os vínculos com os mesmos e estão circulando
pelas ruas e por diversas instituições de assistência e proteção. Tal situação de
sofrimento e abandono de muitas crianças e adolescentes vem desencadeando
novas reflexões sobre o lugar social ocupado pela família e a importância da
consolidação ou reconstrução destes vínculos afetivos tão fragilizados.
A partir deste contexto, surgiram programas de apoio sociofamiliar que
investem na manutenção das crianças e adolescentes em suas famílias nucleares
ou extensas, trabalhando as situações de vulnerabilidade e riscos. As atuações são
focadas em: Famílias e Indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de
afetividade, pertencimento e sociabilidade; Ciclos de vida; Identidades
estigmatizadas; Exclusão pela pobreza, ou, no acesso às políticas públicas; Uso de
substâncias psicoativas; Diferentes formas de violência advindas do núcleo familiar,
grupos e indivíduos; Inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho
formal e informal; Estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que
podem apresentar risco pessoal e social. (MDS/CNAS, 2004:27).
Qualquer situação que impeça o estabelecimento dos vínculos junto às
figuras parentais provoca distúrbios no curso normal do desenvolvimento. Bowlby
descreve de maneira pormenorizada, em cada faixa etária, os efeitos perniciosos
433
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

para uma criança que não encontra este tipo de relação. O autor destaca que
deveria ser dada maior atenção às condições que favorecem o sucesso da vida
familiar e considerar a retirada de crianças de seus próprios lares como um último
recurso, a ser utilizado somente quando for absolutamente impossível tornar o lar
adequado à criança.
Retomando o ECA, em seu artigo 19 temos que “é direito da criança e do
adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em
família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que
garanta seu desenvolvimento integral”. Ou seja, a legislação determina como
prioridade o desenvolvimento integral e saudável dos infantes, preferencialmente na
família de origem. Caso não seja possível, na família extensa e, por último, em
família substituta.
Quando esta família falha em seu papel de cuidar e proteger, ocorre a
institucionalização de crianças e adolescentes, a qual retira as raízes do indivíduo e
não proporciona seu pertencimento. Como vimos,

o enraizamento é talvez a necessidade mais importante e


desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O
ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na
existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros
do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural,
isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da
profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter múltiplas
raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral,
intelectual, espiritual, por intermédio dos medos de que faz parte
naturalmente. (Simone Weil, 2014).

2 - INSTITUCIONALIZAÇÃO

O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), prevê que o acolhimento


institucional é uma medida provisória e excepcional, utilizável como forma de
transição para a colocação em família. De acordo com Santos,

na maioria dos casos, a transferência da criança do ambiente familiar


(considerado inadequado, não protetivo) para um ambiente
institucional é uma ação, teoricamente, temporária, esperando-se

434
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que a família de origem se recomponha em termos de funcionamento


estrutural e relacional para que possa receber novamente a criança.
(2014, p. 185).

A despeito dos conceitos de provisoriedade e transitoriedade que definem


o acolhimento, é possível considerar o abrigo como um lugar de cuidado e não de
abandono, conforme afirma Winnicott, capaz de promover experiências fundantes e
reparatórias no psiquismo de uma criança, quando permitem que ela possa entrar
em contato com sua história, elaborar suas experiências, construir novas narrativas
e abrir-se para perspectivas futuras.
Tal afirmação corrobora o artigo do Grupo de Estudos de 2018 de
Presidente Prudente 1, intitulado “A atuação do assistente social e psicólogo
judiciários no acompanhamento do acolhimento institucional de longa permanência e
difícil colocação em família”, publicado no caderno 15 deste Tribunal de Justiça, o
qual afirma que,

se por um lado a institucionalização muitas vezes pode reproduzir


situações de privação, por outro lado, quando comparada a situações
muito prejudicadas vividas anteriormente junto à família de origem,
pode apresentar aspectos positivos em termos de oportunidade de
desenvolvimento, como cuidados médicos, odontológicos, de
higiene, inserção e acompanhamento escolar, estímulo educacional,
etc. (2018, p. 521)

No entanto, apesar dos cuidados recebidos nas instituições, não devemos


romantizar a situação de acolhimento, pois tal contexto provoca a real e brusca
separação da criança e/ou adolescente de sua família, comunidade e figuras
parentais. Consequentemente tal separação é vivenciada como perda e abandono.
Neste mesmo entendimento, Cuneo afirma:

[...] Por melhor que seja a instituição, por mais que haja uma
atmosfera de ambiência familiar artificialmente criada, somente uma
relação familiar propicia um sentimento de intimidade, cumplicidade e
um convívio mais afetuoso, personalizado e individualizado. (2016,
p.422).
435
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesse sentido, para uma criança ou adolescente em sua condição


peculiar de pessoa em desenvolvimento, o impacto do acolhimento institucional
acarreta muitos prejuízos cognitivos, sociais e psicoafetivos. Diante disto, as
consequências emocionais do acolhimento e a intensidade de suas sequelas em
razão do afastamento das figuras parentais ou de cuidados, afetam a construção do
seu psiquismo, identidade e personalidade.
De acordo com o psiquiatra e psicanalista francês Boris Cyrulnik, a
separação da criança de sua família a protege, mas não cuida de seu traumatismo.
Um reconhecido teórico que se debruçou detidamente sobre tal contexto
foi Spitz. Ele aponta para as consequências do abandono nos primeiros meses de
vida e dos prejuízos que podem ser causados por longo tempo de
institucionalização. Ele analisou o comportamento de bebês que viviam em abrigos,
recebendo apenas cuidados básicos de alimentação e higiene, mas privados da
relação afetiva com seus cuidadores. Com a experiência, analisou o tempo e o grau
da privação afetiva e estabeleceu o marco de cinco meses. Antes deste período
surgem os sintomas de choro, insônia, perda de peso e recusa por contato,
semelhantes a uma depressão e que podem retroceder, caso o vínculo afetivo com o
cuidador seja retomado. Nas situações mais graves, nas quais a privação ultrapassa
os cinco meses, ocorre a privação afetiva total e o agravamento dos sintomas
anteriores. A criança apresenta atraso motor, passividade extrema, apatia, grande
atraso no desenvolvimento, culminando em morte nos casos mais extremos.
Para além dos prejuízos expostos, no decorrer do ano, o estudo deste
grupo resgatou o contexto socio-histórico do acolhimento de crianças e adolescentes
no Brasil, cujas origens remetem a organizações da sociedade civil e religiosas,
como Roda dos Expostos das Santas Casas de Misericórdia. O Estado passou a
intervir mais diretamente na questão a partir dos anos 1930 com a criação do
primeiro Código de Menores (ou Código Mello Mattos), em 1927. Posteriormente, na
Ditadura Militar, instituições federais como FUNABEM são criadas.
Os movimentos sociais que emergiram no período da abertura política,
1974 a 1984, contribuíram para que ocorressem mudanças significativas na
concepção e desenvolvimento dos direitos da criança e do adolescente. A primeira
delas foi o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, a
serem protegidos pelo Estado, pela sociedade e pela família com prioridade

436
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

absoluta, como expresso no art. 227, da Constituição Federal. O referido artigo


inspirou a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990.

3 - ATUAÇÃO PROFISSIONAL JUNTO ÀS FAMÍLIAS

Nos últimos anos, avançam as legislações que dão atenção especial ao


direito desta população. Destacamos o Plano Nacional de Promoção, Proteção e
Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, a Lei da Adoção e as
Orientações Técnicas aos Serviços de Acolhimento para crianças e adolescentes,
que confere tecnicidade e instrumentalidade ao trabalho social realizado com
crianças, adolescentes e suas famílias por meio do Plano Individual de Acolhimento
(PIA).
Segundo Lima at al,

a elaboração e implementação do PIA é essencial no sentido em que


propõe estratégias e ações orientadoras do trabalho com a criança
adolescente e a família durante um período de acolhimento. Envolve
a escuta qualificada dos atores envolvidos, com vistas a reintegração
familiar, a meta prioritária de toda intervenção. Nesta perspectiva,
esse planejamento é um instrumento de trabalho que não é estático
e necessita ser atualizado todo tempo, acompanhando o
desenvolvimento de crianças e adolescentes. (2013, p.3)

A nova Lei de Adoção de Nº 13.509, de 22 de novembro de 2017, altera o


Estatuto da Criança e do Adolescente e garante o Direito à Convivência Familiar e
Comunitária, determinando o tempo máximo de permanência da criança e
adolescente em programa de acolhimento, visando que sejam inseridas em famílias
substitutas ou retornem às famílias de origem. Para tanto, é fundamental um efetivo
trabalho com tais famílias.
Na prática profissional, em diversos momentos, vivenciamos um grande
descompasso entre o tempo de espera da criança e adolescente, o tempo da família
de origem para se reorganizar e ter condições de recebê-los novamente em seu
núcleo familiar e o tempo institucional dos serviços e do Poder Judiciário. Muitas
vezes, o desencontro entre o tempo da criança e o tempo da família está associado
437
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à desarticulação entre as várias práticas profissionais e institucionais que constituem


a rede de proteção.

“Há uma diversidade de concepções de parcerias o que reflete


claramente nas práticas. Vimos que há tensões que revelam falta de
clareza, de responsabilidade e atribuições sobre as diversas
instituições atuantes e entre as esferas públicas e privadas” (Rizzini,
p 129).

Dessa forma, pergunta-se: quantas vezes se deve insistir na tentativa de


reintegração à família de origem, seja a nuclear ou a extensa? Por quanto tempo?
Como realizar um prognóstico da família em conjunto com a rede protetiva?
Ressaltando o prazo legal de 18 meses para que seja definida a situação
da criança/adolescente, é premente a necessidade do trabalho da rede com suas
famílias. Os casos devem ser encaminhados com prioridade para que as crianças
não fiquem ad eternum aguardando o restabelecimento dos adultos.
Outro contexto que influencia nesta espera é o fato de que a família de
origem necessita de políticas públicas adequadas que proporcionem seu
acompanhamento sistemático e oportunidades reais de desenvolverem a habilidade
de serem resilientes e se reorganizarem diante das dificuldades vividas e com o
apoio de sua rede de suporte social. Segundo Jadir Cerqueira de Souza,

“torna-se importante relembrar que restou evidenciada a necessidade


de políticas públicas mais eficientes no sentido de proteger a
convivência familiar e comunitária, ou seja, da restrita opção pelo
acolhimento institucional deve-se investir nas políticas globais
setoriais e nas demais medidas de proteção, porém a medida de
acolhimento institucional se traduz na única solução possível”. (2014.
P 229).

Os profissionais, por sua vez, precisam de instrumentais técnicos que


auxiliem na identificação das limitações destas famílias, mas também de suas
potencialidades assim como de recursos para uma atuação articulada entre
profissionais da rede intersetorial e socioassistencial do município. Entretanto, com

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frequência, constatamos intervenções isoladas e propostas de trabalho sem


estabelecimento de metas e objetivos claros a serem alcançados, ou que se perdem
ao longo dos meses ou anos. Enquanto isto, a criança permanece acolhida
aguardando sua inserção em família.
Portanto, o trabalho com as famílias necessita de articulação entre os
serviços da rede com metas e objetivos para que se evite a culpabilização do grupo
familiar sem que tenha havido real investimento da rede sócio assistencial.
Necessário considerar não apenas as limitações da família, mas também suas
potencialidades. O olhar técnico deve ser ampliado para além dos déficits, para a
sinalização de possibilidades e outros recursos, despido de pré-conceitos e
idealizações, de maneira a acolher as diferenças.
Afirmação corroborada pela Política Nacional de Assistência Social:

“O grupo familiar pode ou não se mostrar capaz de desempenhar


suas funções básicas. O importante é notar que esta capacidade
resulta não de uma forma ideal e sim de sua relação com a
sociedade, sua organização interna, seu universo de valores, entre
outros fatores, enfim, do estatuto mesmo da família como grupo
cidadão. Em conseqüência, qualquer forma de atenção e, ou, de
intervenção no grupo familiar precisa levar em conta sua
singularidade, sua vulnerabilidade no contexto social, além de seus
recursos simbólicos e afetivos, bem como sua disponibilidade para
se transformar e dar conta de suas atribuições”. (PNAS,2004, p.29).

Em muitas famílias, é possível identificar a repetição geracional limitadora,


ou seja, a dificuldade para romper padrões que se reproduzem ciclicamente, como
um grupo familiar em que os membros possuem baixa escolaridade ou em que as
mulheres engravidam na adolescência, entre outros. Muitas vezes, há necessidade
de um tutor de resiliência, uma pessoa de fora do núcleo familiar que seja referência
para mudanças de padrões de comportamento.
É fundamental estabelecer metas, mensurar tempo, para avaliar se
houve progresso na dinâmica da família de origem da criança ou adolescente
acolhido antes de ser levantada a possibilidade de família substituta, considerando-
se como prioridade o melhor interesse da criança e adolescente, que necessita de
um ambiente familiar com condições de lhe proporcionar um desenvolvimento

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saudável, contemplando suas necessidades básicas, aspectos protetivos,


educativos e emocionais. Considerando o Plano Nacional de Convivência Familiar e
Comunitária,

“uma família que conta com apoio para o acompanhamento do


desenvolvimento de seus filhos, bem como acesso a serviços de
qualidade nas áreas da saúde, da educação e da assistência social,
também encontrará condições propícias para bem desempenhar as
suas funções afetivas e socializadoras, bem como para
compreender e superar suas possíveis vulnerabilidades.” (2006,
p.27).

Nos casos em que se vislumbre guarda à família extensa de crianças e


adolescente, é necessária uma avaliação pormenorizada com relação ao desejo e
motivação para o acolhimento. Quando procurados, os membros até podem aceitar
por sentimentos de vergonha, culpa ou posse. Além da avaliação do interesse e
motivação, quando houver desejo legítimo é necessária uma preparação, o trabalho
com a história da criança/ adolescente, assim como ocorre com os pretendentes à
adoção.
Como ferramenta para este trabalho, inicialmente o Plano Individual de
Atendimento – PIA – assume papel de fundamental importância. O PIA, em seus
mais variados modelos, muitas vezes é realizado pelos Serviços de Acolhimento e
anexado aos autos como uma exigência legal, mas não compreendido em sua
finalidade.
O Plano Individual de Atendimento (PIA) constitui uma das novidades da
Lei 12010/09. O PIA é o documento que descreve todas as etapas, fases e
providências das instituições de acolhimento em relação a cada criança e
adolescente que ingressa no sistema. Além do registro individualizado, permite o
estudo científico de vários aspectos relativos ao acolhimento institucional, sendo
certo que, quanto mais democraticamente confeccionado melhores serão os
resultados obtidos em busca da reintegração familiar ou colocação em família
substituta. (Souza, p. 282).
Um dos pontos importantes do PIA são os motivos do acolhimento, sendo
prevista a participação da criança ou adolescente e de sua respectiva família na

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construção do plano. Quando todos se envolvem na discussão e solução dos


problemas, maior é a probabilidade de adesão às sugestões propostas, assim como
a identificação das necessidades do grupo familiar. Desta maneira, todos os atores
envolvidos devem assumir compromissos e se empenhar para o efetivo
cumprimento da lei de que o acolhimento institucional é medida excepcional e pelo
menor tempo possível.
Muitas vezes, no PIA e em outros documentos e relatórios, consta que a
família não adere aos atendimentos e ou encaminhamentos. Contudo importante
aspecto debatido nas discussões do nosso grupo de estudos foi o entendimento de
como foi ofertado o serviço, se a família foi devidamente acolhida e se participou da
construção das metas. O PIA é fundamentalmente uma construção coletiva e
periodicamente deverá ser reavaliado, conforme preconizado na Lei nº 12.010/2009.

“Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de


acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no
máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária
competente, com base em relatório elaborado por equipe
interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada
pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família
substituta.” (BRASIL, 1990, p. 7).

Não obstante às orientações técnicas e determinações legais, com


frequência, identificamos, em nossa prática profissional, situações que dificultam a
execução destas atribuições de forma eficaz. A falta de recursos técnicos,
operacionais e sociais pelas casas de acolhimento e rede socioassistencial e a
ausência de uma coordenação que articule a rede de serviços e acompanhe
sistematicamente a família de origem, verificando quais propostas são mais
adequadas a cada caso e se os membros estão sendo incluídos nos serviços
ofertados, são apenas alguns exemplos.
Diante da precariedade dos serviços oferecidos à família de origem, o
tempo de acolhimento da criança e adolescente, por vezes se prolonga e seu direito
à convivência familiar, muitas vezes, acaba sendo violado.
Entretanto, todo o investimento do trabalho intersetorial deve oportunizar
que a família tenha condições de receber novamente a criança e adolescente em

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seu núcleo. E quando a rede de serviços oferece os recursos necessários, a família


de origem, por vezes, consegue se fortalecer e reorganizar suas relações e o
contexto que gerou a institucionalização.
No retorno da criança e adolescente para a família de origem ou extensa
é importante a preparação deste núcleo familiar, explorando seu desejo em
efetivamente recebê-lo, refletindo acerca do compromisso de cada membro da
família, que espaços internos e físicos existem para a chegada desta criança ou
adolescente. É fundamental que aquele que chega tenha um lugar real de
pertencimento e que possa ser acolhido com sua singularidade e sua história de
vida. Entendemos que tanto a criança/adolescente, quanto o grupo familiar que a
recebe deve ser ouvido e preparado para este momento considerando as possíveis
dificuldades como, por exemplo, acontecem na adoção.

4 - EXCEÇÃO (OU REGRA?)

Se após o período estabelecido, a família de origem fica estagnada às


suas fragilidades e não corresponde ao trabalho realizado, a criança ou o
adolescente ficam impossibilitados a retornar para seu núcleo. Surgem, então,
indicativos concretos que viabilizam a Destituição do Poder Familiar e a inserção da
criança e adolescente em família substituta.
Assim, encaminham-se ao Ministério Público elementos concretos para
eventual destituição do Poder Familiar e consequente inserção da criança em família
substituta.

“A importância da convivência familiar e comunitária, como garantia


de direito dos seus membros e das famílias, em especial das
crianças e adolescentes, é colocada como uma das necessidades a
ser concretizada pela Política de Assistência Social, haja vista o
combate ao abandono, a reclusão e a perda dos vínculos e relações
familiares. A relevância da permanência do convívio familiar e
comunitário, se deve ao fato de ser o lócus familiar onde o indivíduo
constrói a identidade e o sentimento de pertencimento, afetividade e
cuidados, embora possa ser também o lugar de violação de direitos e
relações hierárquicas entre gêneros e gerações”. (Teixeira, Ana
Valeria Matias e Cardodo, Solange Maria. Política de Assistência
Social: os desafios da reintegração familiar de crianças e
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adolescentes institucionalizados, VII Jornada Internacional de


Políticas Públicas, 2015, p.03).

Quando a inserção em família substituta surge como melhor interesse da


criança e adolescente, é fundamental trabalhar questões de pertencimento, vínculos
e ruptura com a família de origem, preparando-a para o estabelecimento de novos
vínculos afetivos.
O trabalho com a família que vai receber a criança/adolescente sob
guarda pode favorecer o estabelecimento de relacionamento para minimizar
eventuais idealizações tanto do grupo familiar quanto da própria
criança/adolescente. A criança pode imaginar uma situação diferente da real e
idealizar uma família perfeita. O grupo familiar pode também idealizar a
criança/adolescente, esperando que sempre se comporte muito bem e que seja
grato sem considerar as dificuldades trazidas pela história de vida e suas
manifestações, tais como traumas relacionadas ao afastamento da família de
origem, medo de abandono, situações de violência.
Na impossibilidade de colocação de adolescente em família substituta é
importante trabalhar sua autonomia, protagonismo e estabelecimento de relações
saudáveis, pois provavelmente ao ser desacolhido, voltará a conviver com sua
família de origem, porém terão melhores condições de ressignificar suas relações,
ao invés de repeti-las.
Para os Assistentes Sociais e Psicólogos do TJ desenvolverem o
trabalho é fundamental seu compromisso com o estudo e reflexões, de modo a estar
instrumentalizado para desempenhar o trabalho com competência, de modo a
favorecer as relações familiares dos usuários, especialmente das crianças e
adolescentes pelos quais é responsável ao indicar a condução do caso, sempre no
seu melhor interesse. As discussões de caso, troca de experiências, participação em
Grupos de Estudos, em cursos e palestras são oportunidades de enriquecimento
profissional que favorecem todo seu desempenho.

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5 - CONCLUSÃO

Um dos objetivos traçados durante as discussões era apresentar, neste


artigo, o percurso de trabalho e de reflexão realizado durante todo o ano de 2019. As
reflexões realizadas pelo grupo ao longo do ano foram empreendidas na perspectiva
de avaliarmos em nosso cotidiano de trabalho o descompasso do tempo da criança
e/ou adolescentes institucionalizados frente à espera da reorganização de sua
família de origem.
Paralelo aos estudos de textos e reflexões sobre a temática foram
realizadas discussões de vários casos com o propósito de auxiliar as profissionais
nas ações que as situações demandavam. O presente trabalho tratou de algumas
dessas reflexões e o desejo de traçar estratégias para lidar com elas, ampliando a
possibilidade dos atendimentos e intervenções profissionais.
O grupo ressalta como fundamental o trabalho interdisciplinar em rede,
especificadamente entre o Poder Judiciário e os outros membros do Sistema de
Garantia, considerando que nossas ações e intervenções são norteadas pelo
princípio do melhor interesse da criança, respeitando as prerrogativas estabelecidas
na legislação vigente.

“A infância, tida como um dos segmentos sociais que ocupa a


centralidade no debate contemporâneo, em vista da luta pela
garantia de direitos legalmente assegurados, é compreendida nesta
reflexão como uma forma de ser socialmente construída, a partir das
transformações societárias e das novas demandas surgidas do
movimento da história” (BERBERIAN, 2015, p.15).

No decorrer do ano, apontamos que durante o período de


institucionalização da criança e/ou adolescente faz-se necessário trabalhar com a
família destes acolhidos a sensibilização, reflexão e introjeção dos conteúdos
apresentados, no período de acolhimento de sua criança ou adolescente. Desta
forma, possibilitá-las compreender e superar suas possíveis vulnerabilidades.
Por muitas vezes as famílias dos acolhidos estão há muito tempo
expostas a dificuldades de várias ordens: habitação, saúde, educação, trabalho, uso
de entorpecentes e/ou álcool, que as deixou em situação vulnerável, e
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consequentemente culminou na ruptura temporária ou permanente dos vínculos


entre eles.
A importância do trabalho em rede é na tentativa de que minimamente
esses sujeitos possam reconhecer possíveis vulnerabilidades e empecilhos, que
dificultam o retorno de sua criança e/ou adolescente para o seu lar. Percebe-se que
com a desproteção do Estado e com as oportunidades desiguais para os indivíduos,
no descortinar deste acolhimento institucional existe uma família que foi
primeiramente negligenciada, abandonada e excluída socialmente.
Entretanto nosso questionamento durante a elaboração deste artigo foi?
Por quantas vezes e por quanto tempo a criança passará pela situação de
acolhimento até a reorganização e potencialização de sua família de origem?
Tal questionamento assume relevância considerando, que em diversas
situações, são oferecidos à família deste acolhido, diferentes serviços da rede de
atendimento e mesmo assim, a institucionalização culmina na destituição do poder
familiar daquela criança ou adolescente. Situação preocupante, pois até que a rede
de garantias de direito, incluindo o poder Judiciário, chegue a tal conclusão, os anos
passaram para essa criança e/ou adolescente e a perspectiva de colocação em
família substituta diminui.

“Indiscutivelmente, a destituição do poder familiar é uma medida


drástica, pois promove o rompimento irrevogável dos vínculos
parentais. Pode representar garantia de direitos, quando protege a
criança e o adolescente de situações que a colocam em risco,
decorrente do abuso ou omissão do poder familiar. Mas também
pode contribuir exatamente para o inverso, legitimando a violação
dos mesmos, especialmente quando não há outras possibilidades
para esta criança e/ou adolescente ou quando há evidências de que
a situação de risco contempla toda a família, vítima de uma violência
estrutural, caracterizada pelo não acesso às políticas públicas”.
(Grupo de Estudos da Capital – Adoção II, 2016, p. 37).

Ressaltamos que em diversas situações, observadas no cotidiano do


trabalho neste Tribunal de Justiça, podemos verificar que mesmo após a destituição
do poder familiar há impossibilidades de inserção dessa criança ou adolescente em
família substituta, devido ao tempo transcorrido entre acolhimento e desacolhimento.

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Chegando à maioridade, muitos jovens retornam àquela família de origem, a qual foi
definida pelo Estado como não protetiva.
Tal situação em sua grande maioria acaba na repetição geracional
limitadora e se reinicia o ciclo familiar e social de negligências e violações de
direitos. Daí a importância de políticas públicas eficientes para a mudança da
realidade socioeconômica e de vulnerabilidade desta população.
Considerando os 15 anos de histórias, reflexões e trocas deste grupo,
agradecemos a todas que passaram por aqui: Adrianas, Alessandras, Anas,
Aparecidas, Beatrizes, Brunas, Carlas, Cecílias, Célias, Clarices, Claudias, Cristinas,
Danielas, Déboras, Dinauras, Elianas, Elídias, Ermelindas, Flávias, Fernandas,
Giseles, Gislaines, Gislaines, Glorias, Graças, Haydées, Heloisas, Idalinas, Isabeis,
Ivanetes, Izildas, Lauras, Leylas, Lineis, Lourdes, Lygias, Madalenas, Maras, Mairas,
Marianas, Marias, Mirians, Mônicas, Nilzas, Ninias, Olgas, Ondinas, Paulas,
Renatas, Reginas, Rosanes, Sandras, Silvias, Sônias, Stelas, Talitas, Tatianes,
Thabatas, Valérias, Vanessas, Veras, Veridianas.

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449
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFLEXÕES SOBRE O DEPOIMENTO ESPECIAL

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - DRACENA


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

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2019

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COORDENAÇÃO
Cristiana Kuniko Urahama Iwama – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Dracena
Priscila Alves Martos Casoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de Flórida
Paulista

AUTORAS
Alessandra Pereira da Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Teodoro
Sampaio
Angela Maria de Carvalho Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Junqueirópolis
Cristiana Kuniko Urahama Iwama – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Dracena
Elisandra Murer Fruchi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Dracena
Jeise Cristina Alves Sereghetti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tupi
Paulista
Josy Ferreira Primo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pacaembu
Marta Ritshuko Mori Kano – Assistente Social Judiciário – Comarca de Panorama
Priscila Alves Martos Casoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de Flórida
Paulista
Regina Furtado Costa Campos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pacaembu
Rosângela Vieira de Aguiar do Vale – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Adamantina

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente artigo é produto do trabalho de um grupo de estudos de


profissionais do Serviço Social e da Psicologia que atuam como técnicos judiciários
em comarcas pertencentes à 5ª região administrativa do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, representados pelas comarcas de: Adamantina, Dracena,
Junqueirópolis, Flórida Paulista, Panorama, Teodoro Sampaio e Tupi Paulista.
A metodologia de trabalho contemplou reuniões mensais realizadas entre
março e dezembro de 2019.
Em março, os esforços foram enveredados para definição do tema a ser
estudado no ano, cuja escolha se fundamentou na necessidade de aprofundamento
de discussão, tratando-se de questão intimamente relacionada ao cotidiano
profissional contemporâneo e que tem requerido mobilização das categorias
profissionais de Assistentes Sociais e de Psicólogos, dada a sua complexidade de
execução.
Desse modo, por maioria absoluta, o tema escolhido foi o “Depoimento
Especial”, com recorte de estudo para as questões normativas, a Lei que o institui e
os provimentos/protocolos do Tribunal de Justiça que norteiam a prática no contexto
institucional, além das trocas de experiências possibilitando a observação de como
as comarcas do Estado (especialmente a de nossa região e entorno) estão
realizando-o.
Para contribuir com as discussões foram convidadas profissionais do
Núcleo de Apoio de Serviço Social e Psicologia do TJSP, as quais, desde já, este
Grupo agradece pela valorosa contribuição e atenção recebida, cuja participação se
deu por meio de videoconferência.
Paralelamente às videoconferências, o Grupo se organizou em subgrupos
e em atividades coletivas, utilizando-se, para tanto, dos diversos recursos
disponíveis, como: textos, vídeos, legislações e outros documentos atinentes ao
assunto, estudo de caso, realização de oficina como exercício e análise da prática
do Depoimento Especial e, por fim, a elaboração conjunta deste artigo.
O presente artigo, intitulado ‘Reflexões sobre o Depoimento Especial’ traz,
inicialmente, um percurso histórico acerca de algumas narrativas que podem ter
provocado as discussões para a implantação de práticas de oitiva de crianças e

452
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

adolescentes no contexto da violência. Discorre, em um segundo momento, sobre o


Depoimento Especial no contexto institucional do Judiciário Paulista, realidade na
qual estas participantes se encontram inseridas profissionalmente, com enfoque
para a Lei 13.431/2017, para a Escuta Especializada, para a Rede de Proteção, bem
como para o Protocolo CIJ nº: 00066030/11. Apresenta uma análise da Entrevista
no Depoimento Especial, percorrendo as dificuldades de realizá-la sem revitimizar
crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, e finaliza com
indicadores/apontamentos críticos que emergem da reflexão acerca da experiência
profissional.

1 - DEPOIMENTO ESPECIAL: NARRATIVA SOBRE SUA


TRAJETÓRIA HISTÓRICA

Para compreender as questões que envolvem o depoimento especial, o


grupo intencionou observar narrativas que apoiam a aplicação da referida
metodologia e referências que indicam elementos favoráveis à oitiva de crianças e
adolescentes pelo Poder Judiciário.
Importa esclarecer que as participantes deste grupo já haviam se
debruçado nas discussões das categorias dos Assistentes Sociais e Psicólogos em
relação ao referido tema, anterior a implantação da Lei 13.431, bem como acesso as
normativas e publicações dos conjuntos CFESS/CRESS e CRP/CFP. Desta
maneira, os prejuízos e elementos desfavoráveis em relação à oitiva de crianças e
adolescentes são recorrentes e fulgentes a estes profissionais, porém busca-se
compreender/analisar criticamente outras opções teóricas, metodológicas e
ideológicas que atravessam o cotidiano de trabalho.
Para acessar tais reflexões, utilizou-se da leitura de um capítulo59 de
autoria Eduardo Rezende Melo, que destaca no contexto brasileiro, a compreensão
acerca da história e as transformações em torno de representações do que seja
criança, adolescente e jovem.

59
Capítulo 5: Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual: a emergência de sua
subjetividade jurídica no embate entre modelos jurídicos de intervenção e seus direitos. Uma
análise crítica sob o crivo histórico-comparativo à luz do debate em torno do depoimento
especial.
453
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Inicialmente, o autor pontua o surgimento do conceito de ‘menor’,


compreendendo que este orienta o processo de categorização, através da criação
de um novo conjunto social: aquelas crianças oriundas das situações de
vulnerabilidade, vivências de violência e exclusão. E do ponto de vista operacional,
compreende que este conceito permitiu a construção de um direito e um aparato
judicial, citando o Código Mello Mattos de 1927, como a primeira legislação brasileira
que tratou sobre o assunto.
Observou-se o destaque dado para as intervenções judiciais, em especial
nas situações de violência contra crianças, bem como os caminhos percorridos
nesta atuação ao longo da história.
No tocante as discussões sobre os direitos de crianças e adolescentes, o
autor evidenciou a visibilidade de dois grandes movimentos: o de proteção a
crianças e o movimento feminista. Em sua percepção, ambos discutiam abuso e
negligência neste contexto, ampliando o reconhecimento social das situações de
abuso sexual, com visões distintas acerca das estratégias de intervenções. Como
desdobramento dessas demandas, ganhou espaço discussões referentes à
sexualidade de crianças e adolescentes; o entendimento sobre a garantia de direitos
para além da proteção; a condição da criança como vítima; e a responsabilização do
‘ofensor’ através de uma resposta penal.
Na sequência da concepção, de que o abuso sexual implica o
cometimento de um crime, o arcabouço legal60 sugere a proteção integral para a
criança e o adolescente como protagonistas de direitos humanos, e com esta
justificativa inicia-se algumas práticas com participação de ‘crianças-vítimas’ no
âmbito da justiça. Contudo, o exercício de algumas práticas consideradas
insatisfatórias, provocava nas vítimas outros impactos e violências, por vezes de
maneira reiterada.
Neste aspecto, Nordenstahl (2008) apud Mello (2014, p.105), para
descrever as possibilidades de (re) vitimização, sendo:

A vitimização primária, resultante do delito e que reflete a experiência


individual da vítima, com impacto físico, econômico, psicológico e

60
Cita a Convenção sobre os Direitos da Criança; a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e
do Adolescente-ECA.
454
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

social. A vitimização secundária caracteriza-se pelo impacto


produzido na vítima pelas próprias instituições responsáveis pela
preservação e pela persecução do delito e da administração da
justiça. A falta de uma resposta rápida e eficaz aos problemas, a
distância, os horários, a falta de pessoal especializado parecem
querer expulsar as vítimas do sistema, e estas sentem que
molestam, que não há abertura para atendê-las. Tudo isto faz com
que vítimas se sintam desprotegidas, sem respeito, frustradas, peças
de uma engrenagem à qual não pertencem.

Segundo o autor, para evitar tais conseqüências, avançam novas


possibilidades de intervenção e propostas de aprimoramento institucional. É neste
contexto que o depoimento especial surge considerado por alguns como uma
medida protetiva especial, com narrativas ligadas ao direito à participação; a
necessidade de padronizar procedimentos e ritos, resguardando o cunho protetivo
em relação à vítima.
O capítulo supracitado, aparentemente indica parâmetros, procedimentos
e mecanismos para a tomada de depoimento, referindo ‘reformas legislativas e
inovações institucionais’ como contexto para a elaboração de uma lei específica
voltada para o tema da violência contra criança e adolescente, na condição de
vítima.
Esta discussão se amplia, e em 04 de abril de 2017 é sancionada a Lei
13.431, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do
adolescente vítima ou testemunha de violência e altera o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Na sequência, os tribunais de justiça do país iniciaram mudanças
significativas visando o cumprimento da lei, e nesta toada seguem-se reflexões
acerca do judiciário paulista.

2 - O DEPOIMENTO ESPECIAL: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DA


PRÁTICA PROFISSIONAL DE ASSISTENTES SOCIAIS E DE
PSICÓLOGOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO

Há alguns anos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo


apresentava uma inclinação para o Depoimento Especial de crianças e adolescentes
vítimas de violência sexual, nos moldes como já acontecia no Rio Grande do Sul,
455
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pioneira nesta prática denominada, naquele Estado, Depoimento Sem Dano,


oferecendo seminários sobre o assunto, direcionado, inclusive, para as equipes dos
Setores Técnicos.
Conforme os anos foram se passando, as discussões sobre a
metodologia foram sendo intensificadas, chegando ao Judiciário Paulista, em
novembro de 2010, por meio do Projeto-Piloto “Atendimento não-revitimizante de
crianças e adolescentes vítimas de violência, especialmente sexual”, implantado em
quatro Comarcas do Estado de São Paulo, tendo como referência São Caetano do
Sul e o seu respectivo magistrado, Doutor Eduardo de Melo Rezende, Juiz de Direito
da Vara de Infância e Juventude.
Houve, nesse entremeio, a organização política da categoria profissional
de Assistentes Sociais e de Psicólogos, para que essa prática não fosse instituída
como parte das atribuições socioinstitucionais junto aos Tribunais de Justiça, com a
prerrogativa da autonomia profissional.

Autonomia do exercício profissional é condição que emerge da


necessidade de independência técnica no fazer profissional. É
condição que permite que o profissional possa fazer escolhas em
conformidade com os princípios e normas do Código de Ética
Profissional, realizando um trabalho com qualidade, competência
ética e teórica. A autonomia técnica é aspecto, por outro lado, que
possibilita ao profissional manter sua capacidade crítica e absoluta
independência na sua atividade profissional, sem se submeter a
imposições ou determinações autoritárias, infundadas, incompatíveis
em relação ao seu fazer profissional ou mesmo com suas atribuições
e competências inerentes ao seu conhecimento e que não sejam
coerentes com os princípios firmados no Código de Ética Profissional
(TERRA, 2012, p. 153).

O processo de mobilização dos Assistentes Sociais, por meio do conjunto


CFESS/CRESS, resultou na Resolução nº. 554/2009 que vedou aos referidos
profissionais a participação no então Depoimento Sem Dano, que, dois anos
depois61, foi julgada ilegal pela Justiça Federal da 4ª Região.

61
Em 15 de abril de 2011, pela juíza Maria Isabel Pezzi Klein.
456
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Corroborou para essa decisão a Recomendação nº. 3362, do Conselho


Nacional de Justiça (CNJ), que versa sobre a criação de serviços especializados
para a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, pelos
Tribunais de Justiça de todo o território nacional.
Em São Paulo, o cumprimento dessa Recomendação se materializou a
partir do Protocolo CIJ nº: 00066030/11, que institui o Programa de Aprimoramento
do Atendimento Interinstitucional de Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência,
especialmente Sexual, e a Implementação de Métodos Especiais de sua Escuta,
publicado em 30 de maio de 2011, no Diário de Justiça Eletrônico, o qual se mantem
em vigor, desde então, que traz a necessidade de definição da responsabilidade
interinstitucional do atendimento de crianças e adolescentes, com necessidade de
definição de fluxo de atendimento e que, diferentemente do Rio Grande do Sul, o
depoimento não se basearia unicamente na escuta da criança e do adolescente,
mas, também, na avaliação das equipes técnicas, tratando-se, portanto, de uma
prova hibrida.
Com o advento da Lei nº: 13.431, de 04 de abril de 2017, que estabelece
o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha
de violência e altera a Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990, as equipes técnicas são
convocadas a realizarem o processo de capacitação, inicialmente presencial
(Comarca-Sede) e, depois, à distância, por teleconferências.
Importante destacar que, estar capacitado para o Depoimento Especial, é
requisito fundamental para realizá-lo. Assim, os profissionais que ainda não tivessem
recebido capacitação, não poderiam fazê-lo.
A Lei não define o profissional que desenvolve essa prática, sendo
genérica, nesse sentido. Isso gerou impasses entre Assistentes Sociais e Psicólogos
que compõem as Equipes Técnicas, de modo que em cada lugar, o Depoimento
Especial vem sendo realizado de uma forma – em algumas Comarcas do Estado são
feitos por Psicólogos, em outras por Assistentes Sociais, em outros pelos
profissionais das duas áreas conjuntamente ou na modalidade de revezamento,
enfim, não se tendo, portanto, uma prática alinhada.
Observa-se situação semelhante, também, quanto aos procedimentos do
Depoimento Especial e no que tange a sua efetivação – apesar da Lei ter entrado

62 De 23 de novembro de 2010.
457
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

em vigor em abril de 2018, ainda se vê Comarcas nas quais o Depoimento Especial


não tem ocorrido e outras em que é feito sem a Escuta Especializada, considerando
que alguns municípios ainda não se organizaram para definição de qual
equipamento e, ou serviço ficaria incumbido de proceder a Escuta de crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Para os profissionais que já realizam o Depoimento Especial, as
sensações, percepções, os significados e as implicações dessa prática são
diferentes entre si, decorrentes das variáveis de cada contexto socioinstitucional, das
particularidades que a perpassam, todavia, é possível ver semelhanças em
determinados aspectos.
Um ponto que aproxima as integrantes desse Grupo de Estudos, apesar
da diversidade, inclusive na escolha da temática do Depoimento Especial para
estudo no decorrer deste ano, é a angústia que as envolvem no desempenho dessa
metodologia que, embora vise a não revitimização de crianças e adolescentes
vítimas ou testemunhas de violência e traz em seu bojo proposituras interessantes –
reorganização do sistema de garantia de direitos, por meio de fluxos
interinstitucionais, provocando implicitamente o diálogo da Rede e a
responsabilização no atendimento dessa demanda e do público ao qual a Lei se
destina, com prioridade absoluta de atendimento – tem ainda um longo caminho a
percorrer na direção da efetivação real e objetiva da proteção integral de crianças e
adolescentes.
A Lei é recente, mas a postura de boa parte daqueles que a operam
aparentemente se apresenta conservadora, fundamentada nos aportes jurídicos que
buscam elementos de prova para absolvição e, ou condenação do réu,
secundarizando a proteção integral da criança/adolescente vítima ou testemunha de
violência e de seus respectivos grupos familiares.
Concomitante a esta questão, tem-se, também, a discussão de qual seria
o papel dos técnicos na realização do Depoimento Especial. Essa inquietação
perpassou boa parte dos encontros que, ao final deles, despertou para
sensibilização de que no Depoimento Especial não se cumpre o papel profissional
de Assistentes Sociais e, ou de Psicólogos e sim de Entrevistadores Forenses. Daí,
a indagação surge: como separar isso na prática?

458
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As dificuldades técnicas e éticas de se empreender o Depoimento


Especial perpassam as duas categorias profissionais, no entanto, com mais aflição
teórico-metodológica para os Assistentes Sociais que não têm, em face da própria
natureza de sua profissão, propriedade teórica nem prática com a linha cognitivo-
comportamental, que norteia basicamente a entrevista forense.
Ademais, os conhecimentos que o Serviço Social acumulou sobre
violência e o papel do Assistente Social nesse contexto, em suas práticas
profissionais, vão em outra direção, qual seja, na perspectiva de garantia de direitos
e de proteção das vítimas e de suas famílias, encaminhando-as aos serviços
socioassistenciais, protetivos e de saúde, orientando-as e fortalecendo-as.
A Lei, o Protocolo que norteia o Depoimento Especial e a realização em si
do Depoimento Especial, para os Assistentes Sociais e Psicólogos, desafiou as duas
categorias, que têm procurado cumprir com o que se determina legalmente e
institucionalmente, mas sem perder de vista a essência profissional, as suas bases
fundantes e os preceitos ético-políticos.
Na perspectiva de garantia de direitos e de preservação da integridade
socioemocional de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência que
chegam aos Setores Técnicos para o cumprimento do Depoimento Especial, as
profissionais que compõem esse Grupo sentiram a necessidade de se aprofundar na
temática, procurando compreender a Lei, o Protocolo que rege o Depoimento
Especial em nosso Estado e a metodologia da Entrevista Forense. Para tanto,
recorreram ao Núcleo de Apoio Profissional do Tribunal de Justiça de São Paulo
para trocas de ideias, conhecimentos e informações, como também para construção
coletiva de estratégias de ação na direção da efetivação de direitos.
Teve-se a oportunidade de duas videoconferências com a Psicóloga e
Supervisora do Serviço de Depoimento Especial da Coordenadoria da Infância e
Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, Irene Pires Antonio e com a
Assistente Social Nilcemary Olímpio de Souza, o que contribuiu imensuravelmente
para retomada de questões pertinentes, que dizem respeito à atuação técnica no
contexto do Depoimento Especial e que garantem direitos da criança/adolescente
vítima ou testemunha de violência e de sua família.
Especialmente no que concerne aos direitos da criança/adolescente
vítima ou testemunha de violência foi confortante ouvir sobre a importância de se

459
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

respeitar o posicionamento da vítima ou testemunha de violência quando esta não


quiser falar sobre o ocorrido, embora se reforce a ideia do seu comparecimento junto
ao Tribunal de Justiça, mesmo que seja para se manter em silêncio.
O direito da criança/adolescente vítima ou testemunha de violência de
contar com advogado que lhe represente juridicamente no processo criminal, ao qual
o Depoimento Especial foi demandado, constitui-se em algo fundamental e que,
pelas experiências a que se teve conhecimento, não vem sendo respeitado,
sobretudo, nas regiões em que, pelo porte da Comarca, não se dispõe de Defensoria
Pública.
Outro ponto relevante foi à discussão sobre o rito processual, no contexto
das determinações para o Depoimento Especial pelas Equipes Técnicas, que deve
ser garantido para não promover a nulidade do processo.
Na oportunidade, esclareceu-se a respeito da antecipação de prova,
sendo esta uma questão que gerava grande dúvida entre as participantes deste
Grupo, clarificando-a mediante as explanações realizadas pelas profissionais.
Importante destacar, ainda, que o diálogo com as profissionais do Núcleo
de Apoio possibilitou a reflexão de que o Depoimento Especial, ainda novo na
conjuntura socioinstitucional do Tribunal de Justiça de São Paulo, está se
reorganizando, haja vista o aprimoramento das resoluções concernentes a essa
prática, as supervisões por teleconferências que se sucederam no decorrer deste
ano, além da plataforma de pesquisas, via e-mail, instrumental relevante de
avaliação individual e coletiva.
Além do Depoimento Especial em si, o Grupo direcionou sua atenção,
também, para questões intrínsecas ao Depoimento, tais como a Escuta
Especializada e a Rede de Proteção, previstas na Lei e no Protocolo CIJ/TJSP, as
quais se apresentam mais bem detalhadas no subitem subsequente.

2.1 - A ESCUTA ESPECIALIZADA E A REDE DE PROTEÇÃO

A partir de discussões geradas sobre a Escuta Especializada e o


Depoimento Especial de crianças e adolescentes, em virtude da Lei Federal
13.431/2017, a Comissão Intergestores Bipartite do Estado de São Paulo – CIB/SP
considerou a necessidade de se firmar posicionamento a respeito do assunto, assim
sendo, instituiu-se a Portaria CIB/SP nº 19, de 11/12/2018, que “dispõe sobre as
460
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

atribuições, fluxos e procedimentos a serem adotados pelos municípios paulistas no


âmbito da Política de Assistência Social na execução do procedimento de Escuta
Especializada prevista na referida Lei Federal”.
De acordo com o artigo 7º da Lei 13.431/2017, “Escuta Especializada é o
procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente
perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para
o cumprimento de sua finalidade”.
Seguindo-se ao artigo 8º da referida Lei, “Depoimento Especial é o
procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência
perante autoridade policial ou judiciária”.
Dada à especificidade da Escuta Especializada e do Depoimento
Especial, prima-se por evitar a revitimização da criança ou do adolescente e a
repetição desnecessária dos fatos, sendo que cada procedimento será realizado
uma única vez, buscando oferecer uma estrutura física adequada e acolhedora
visando à garantia da privacidade.
A referida portaria traz orientações e considerações sobre a construção
dos fluxos e procedimentos para o atendimento da Escuta Especializada nos
Serviços da Política de Assistência Social, cabendo à municipalidade definir esses
fluxos juntamente com todos os setores envolvidos, uma vez que esse procedimento
deve ser trabalhado no âmbito da rede de proteção.
Tais orientações são claras no sentido de que a Equipe Técnica, que
compõe o quadro de profissionais de referência dos serviços socioassistenciais é
responsável pela execução do Serviço de Escuta e do acompanhamento
especializado.
Neste sentido, a portaria aborda ainda sobre as leis e normas das
profissões regulamentadas, tanto de Assistentes Sociais quanto de Psicólogos,
pontuando as atribuições e competências desses profissionais, visando esclarecer
as recomendações e os limites de cada profissão.
É de extrema importância citar ainda que após a criação da Lei
13.431/2017, o Ministério dos Direitos Humanos elaborou um documento definindo
os parâmetros para a escuta de crianças e adolescentes que sofreram ou
vivenciaram as situações de violência, como descrito a seguir:

461
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Os Parâmetros foram elaborados no âmbito da Comissão


Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e
Adolescentes, colegiado vinculado à Secretaria Nacional de Direitos
da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos
(SNDCA/MDH). As discussões acerca da padronização de
procedimentos para o atendimento de crianças e adolescentes nessa
situação, porém, tiveram início em agosto de 2012, quando um
Grupo de Trabalho, no âmbito da hoje extinta Secretaria da Reforma
do Judiciário (SRJ/MJ), se debruçou sobre a elaboração de um
instrumento voltado para a qualificação do serviço prestado por
profissionais dos sistemas de segurança pública e de justiça,
contextualizando a escuta como instrumento de coleta de evidências
em situações de violência sexual, no marco do princípio da proteção
integral (MDH, 2017, p.13)”.

Tendo em vista os direitos específicos trazidos em previsão legal a partir


do Estatuto da Criança e do Adolescente, é essencial a existência de uma rede de
proteção, que tenha um sistema com a capacidade de efetivar a garantia ao amparo
às crianças e adolescentes.
Assim sendo, a rede de proteção à pessoa em condição peculiar de
desenvolvimento deve contemplar uma concepção de trabalho que enfatiza a
integralidade e intersetorialidade, isto é, envolvendo as instituições que desenvolvem
atividades com esses indivíduos e suas famílias.
Segundo a análise dos autores Motti e Santos (2008), as redes de
proteção devem se estruturar a partir de múltiplos níveis de operacionalização,
contando com equipes multiprofissionais e interinstitucionais, atuando nas seguintes
áreas:

Notificação: procedimento básico para a identificação do tipo de


violência. Possibilita o planejamento das políticas de ação e
intervenção; Diagnóstico: caracteriza a natureza da violência,
verificando a gravidade e o risco de quem está submetido a esta
situação. Norteia as medidas mais adequadas de intervenção nos
planos social, jurídico, psicológico e/ou médico; Intervenção: deve
ser planejada, tomando as medidas cabíveis mediante a gravidade
de cada caso. Áreas de intervenção: saúde (física e mental), social e
jurídica; Formação: é de grande importância para a melhoria da
qualidade do atendimento. A formação, contínua, pode ser feita por
meio de cursos, seminários, supervisões, etc.; Pesquisa: é
importante para construir estatísticas e teorias confiáveis, que vão
subsidiar o planejamento das ações de intervenção (políticas
públicas); Prevenção: é a estratégia privilegiada para combater a

462
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

(re)produção da violência contra crianças, adolescentes e mulheres


(MOTTI; SANTOS, 2008, p. 107).

A rede de proteção deve estar articulada e integrada com os demais


serviços, programas e projetos, com vistas a conhecer cada qual, possibilitando a
realização de encaminhamentos, garantindo a qualidade devida no acolhimento,
atendimento e acompanhamento de crianças, adolescentes e suas famílias em
contexto de violação de direitos, de maneira a seguir fluxos e procedimentos
estabelecidos.
Com especial destaque para o referenciamento de serviços
socioassistenciais e/ou do Sistema de Garantia de Direitos, e a providência de
contra referenciamento aos mesmos, de maneira a permitir o compartilhamento das
informações relevantes para o próximo serviço que realizará o atendimento à criança
ou ao adolescente.
A prática cotidiana mostra que as políticas públicas têm muito a avançar,
a respeito dos serviços ofertados pela rede socioassistencial e intersetorial se
mostram fragilizados em razão do pouco investimento, falta de capacitação dos
profissionais e seu número reduzido, etc., o que implica enfrentar uma série de
violações de direitos, das vítimas, de suas famílias e dos (supostos) agressores.
As integrantes deste grupo compartilharam as experiências cotidianas em
relação à Escuta Especializada. Em uma das Comarcas ocorreu a sensibilização da
rede pública por meio da Equipe Técnica, sendo a Escuta realizada por profissional
de Psicologia da rede socioassistencial; em outra Comarca acontece no Centro de
Referência Especializado de Assistência Social - CREAS por um técnico (de
Psicologia) contratado pelo referido órgão; e em outra há determinação judicial para
o Depoimento Especial sem a realização da Escuta Especial.
Ainda na discussão do grupo surgiram considerações sobre a construção
do fluxo de atendimento, da definição do papel do Assistente Social e Psicólogo no
âmbito do Sistema Único de Assistência Social - SUAS, tendo em vista que a
portaria citada anteriormente aponta que esses profissionais são incumbidos da
execução da Escuta Especializada, e, ainda, da importância da contra referência e
monitoramento das ações e encaminhamentos pelo Conselho Tutelar. Além disso,

463
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

apontou-se em relação à carência de cursos de capacitação em Escuta Especial


para os profissionais do Poder Executivo.
Cabe mencionar que, na oportunidade da participação das profissionais
do Núcleo de Apoio Profissional de Assistentes Sociais e Psicólogos, pontuou-se
sobre a importância da iniciativa do Poder Judiciário incitar a reunião de rede com a
finalidade de tratar sobre a implantação do Protocolo n. 00066030/11 e deliberação
em relação ao local que em que será realizada a Escuta Especial.
As referidas profissionais do Núcleo contribuíram, ainda, no sentido de
orientar que o relatório elaborado por profissional responsável pela Escuta será
devolvido à Delegacia e Promotoria, tendo em vista que consta no ECA a respeito da
obrigação de todos os órgãos da rede realizarem a notificação obrigatória, visando a
tomada de providências.

2.2 - O PROTOCOLO CIJ Nº 00066030/11

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ, em 2010, recomendou aos


tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais,
reconhecendo o Depoimento Especial e considerando que, além da proteção da
vítima, há a necessidade de se viabilizar a produção de provas testemunhais de
maior confiabilidade e qualidade nas ações penais.
Baseando-se nessa recomendação do CNJ, o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo (TJSP) instituiu o Protocolo CIJ Nº 00066030/11 (D. O. de 30
de maio de 2011), que versa sobre o “Atendimento não-revitimizante de crianças e
adolescentes vítimas de violência, especialmente sexual” e a implementação em
caráter piloto do projeto em cinco varas do Estado de São Paulo, sob a justificativa
de que a implantação do projeto piloto objetiva aprimorar a garantia de direitos
sexuais, ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, e a dignidades dessas
pessoas em desenvolvimento pelo Sistema de Justiça de forma articulada com
outros atores institucionais, buscando a superação de práticas e modos de
intervenção revitimizantes do modelo anterior.
O Projeto procura reordenar o modo de articulação conjunto, a partir de
normativas internacionais e de discussões teóricas e institucionais que ocorrem há
décadas em outros países, envolvendo o Sistema de Garantia de Direitos,
464
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

especialmente Segurança, Saúde e Assistência Social, para o atendimento


investigativo inicial e os dois últimos para o suporte e atendimento terapêutico
subsequente. Processualmente envolve o juiz criminal e da infância e juventude,
promotores de justiça, defensores públicos ou advogados e as equipes
interprofissionais das respectivas instituições.
A partir da criação de um grupo formado por todos esses atores
institucionais, foram definidas providências a serem tomadas e um fluxo de
atendimento e de procedimentos que estruturassem desde o atendimento inicial e
cuidados antes da audiência ou da escuta especial, perpassando pela articulação
entre o atendimento inicial (Segurança, Assistência Social e Saúde) e o Sistema de
Justiça, até o procedimento judicial, com eventual produção de provas para escuta
interdisciplinar da criança/adolescente e sua validade para todos os processos
judiciais.
Após a apresentação do referido protocolo, o grupo elencou algumas
questões, considerando o contraste existente entre a teoria e prática laboral, como,
por exemplo, as divergências nos fluxos de atendimento e a dificuldade em seguir o
protocolo, tendo em vista que em cada Comarca existem peculiaridades a serem
enfrentadas, no que se refere à articulação dos serviços responsáveis pela execução
dos procedimentos, ou seja, desde a rede socioassistencial até o próprio sistema de
justiça.
Outro aspecto apontado pelas profissionais se refere ao sistema de
garantia de direitos, quando, apesar de estarem salvaguardados tanto pela Lei
quanto pelo Protocolo, crianças e adolescentes não têm defensor público nomeado,
realidade comum em muitas comarcas do interior paulista.
Fora mencionada também a questão da carência de cursos de
capacitação em Escuta Especial para profissionais do Poder Executivo, também
garantidos pela Lei.
Por fim, há uma percepção entre os profissionais de que o Protocolo
encontra-se desatualizado em relação à Lei, à realidade das Comarcas e todo o
contexto que envolve o Depoimento Especial. Contudo, as pesquisas literárias são
unânimes no sentido de que, a partir da obrigatoriedade da execução da prática do
Depoimento Especial, sobrevém a obrigatoriedade da interdisciplinaridade, onde

465
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

haja diálogo entre os saberes, que possibilitem a construção de estratégias para se


garantir o direito e a proteção das crianças e adolescentes.

2.3 - A ENTREVISTA NO DEPOIMENTO ESPECIAL

Em meio à pluralidade de questões levantadas pelo grupo a cerca do


tema escolhido, a entrevista técnica no momento do depoimento especial em si, foi o
aspecto eleito pelas participantes como o mais dificultoso, gerador de grande
expectativa de discussão e compartilhamento de experiências.
Conforme já mencionado, na capacitação recebida pelo Núcleo de Apoio,
a orientação dada é que os psicólogos e assistentes sociais devem se desprender
da natureza de suas profissões e travestir-se do papel de entrevistador.
Mas na prática, as participantes expuseram que isso tem sido um grande
desafio, não só pelo despreparo diante da nova função que exige técnica específica
para tal entrevista, mas ainda, por ser difícil se desprender das profissões, as quais
são altamente imbuídas de deveres éticos, sobretudo o da proteção integral de
crianças e adolescentes. Torna-se conflitante na medida em que o que se vê é que o
objetivo primordial do mecanismo aplicado através de seus ritos e procedimentos é a
produção de provas, podendo muitas vezes deixar as especificidades da criança ou
adolescente em segundo plano.

Apesar de todos os sistemas normativos, os possíveis danos sofridos


por crianças vítimas de violências nem sempre são reconhecidos
pelo sistema jurídico e de proteção de forma adequada, o que
representa uma barreira para garantir que o abuso pare e que essas
crianças sejam de fato protegidas (FALEIROS, 2001, apud ALVES
JUNIOR, p. 16, 2013).

O debate sobre as questões éticas na atuação dos Psicólogos e


Assistentes Sociais no Depoimento Especial é amplo e ainda constantemente
discutido no âmbito dos conselhos profissionais, mas o fato é que a legislação é
vigente e tem que ser cumprida. Sendo assim, cabe aos próprios profissionais, a
dura tarefa de reconhecer a especificidade da entrevista no contexto das audiências
especiais das Varas Criminais, associando os cuidados éticos aos técnicos.
466
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os estudiosos sugerem que uma melhor intervenção neste sentido


requer a adesão às diretrizes e aos protocolos para realização de entrevista forense.
Existem protocolos distintos nos mais variados países, sendo os que mais se
destacam: o RATAC; o NICHD (National Institute of Child Health and Human
Development); as diretrizes semiestruturadas da Sociedade Profissional Americana
sobre o Abuso de Crianças (APSAC); o Fisrt Wtness, da Childhood Trust; e o NCAC
(National Chindren’s Advocacy Center).
Todos eles têm pontos comuns entre si, mas se adequam a cada local.
No caso do Brasil, a Childhood Brasil acabou avaliando que o NCAC seria o mais
compatível com a realidade vivenciada no país, e em parceria com o próprio NCAC
foram feitas adaptações, desenvolvendo o Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense
com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência Sexual.
De acordo com o referido Protocolo a estrutura da entrevista divide-se
basicamente em dois estágios: a entrevista prévia “para o estabelecimento de
empatia entre entrevistado e entrevistador, o compartilhamento dos princípios gerais
da entrevista e o conhecimento do contexto em que vive a criança e/ou
adolescente”; e a entrevista para o depoimento especial, “em que se busca
conversar sobre potenciais fatos ocorridos”. E apresenta como deve ser a postura do
entrevistador, o que observar, sugerindo formas de abordagens e questionamentos
para o alcance do objetivo da entrevista.
Após estudo detalhado do documento citado, o grupo refletiu como vêm
se dando o Depoimento Especial em cada Comarca, levando em conta as diferentes
realidades. Notou-se que nas Comarcas em que o Setor Técnico conta com os
profissionais das duas áreas (Psicologia e Serviço Social), basicamente a dupla atua
conjuntamente na entrevista prévia, porém no momento do depoimento especial, a
entrevista na maioria das vezes fica a cargo do Psicólogo, e o Assistente Social no
respaldo de outras questões do procedimento (acolhimento, mediação entre a sala
de audiência e a sala do depoimento, etc.).
E por fim, uma das Comarcas ainda apresenta equipe incompleta,
contando apenas com um Assistente Social, o qual vem trabalhando
interdisciplinarmente com profissionais da psicologia (da sede da Circunscrição) na
entrevista prévia, porém sozinho no momento do Depoimento Especial.

467
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Tanto as Psicólogas quanto as Assistentes Sociais do grupo


expressaram as dificuldades encontradas na prática da entrevista no momento do
Depoimento Especial, porém houve um consenso de que para o profissional do
Serviço Social sua realização é ainda mais penosa. Isto porque, fatores importantes
precisam ser observados e interpretados que não são comuns à área de
conhecimento do Assistente Social, como por exemplo: fases do desenvolvimento da
criança, padrões linguísticos, estimulação da memória, habilidade em ressignificar os
sentimentos externalizados pelas crianças e adolescentes, autocontrole emocional
diante dos relatos, entre outros. Além do que a metodologia da entrevista é baseada
na psicologia cognitiva.
O grupo organizou uma oficina prática, onde foi pensado um caso fictício
sobre o qual se encenou uma entrevista de Depoimento Especial. Uma das
participantes fez o papel da criança enquanto vítima, e outra da entrevistadora,
sendo ela uma assistente social, com pouca experiência na execução dessa
metodologia.
O resultado da oficina foi muito interessante, na medida em que as
outras integrantes, com base no protocolo de entrevista e em suas próprias
experiências, foram orientando a entrevistadora fictícia sobre a melhor forma de
conduzir o procedimento, destacando falhas, acertos, pontos a serem observados,
melhores formas de se colocar, de se fazer entender, sugestões de objetos que
podem ser utilizados para facilitar o diálogo, etc..
O grupo considerou que a utilização do protocolo de entrevista é um
norteador importante, porém não deve ser considerado como algo único e absoluto.
A realidade de cada caso é quem vai conduzir a dinâmica do agir profissional, por
isso a autonomia dos técnicos também precisa ser preservada.
O que se pôde perceber é que, ainda que com as normativas e
protocolos que pré-definem a ação técnica em todo o processo do Depoimento
Especial, os esforços de todas têm sido de fazer prevalecer a identidade profissional,
tentando garantir, ainda que minimamente a proteção e os direitos das crianças e
adolescentes, seja na verificação se a vítima ainda está em risco e a capacidade
protetiva da família, se está em atendimento especializado necessário, ou fazendo
encaminhamentos e orientações junto ao núcleo familiar, formal ou informalmente.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intervenção técnica junto à violência infanto-juvenil, compreendida como


fenômeno multicausal, suscita inquietações nos profissionais de Psicologia e Serviço
Social na prática cotidiana, em face de sua complexidade.
As experiências particularizadas das referidas profissionais deste grupo
evidenciaram expectativas e, principalmente, dúvidas e incertezas semelhantes em
virtude do desafio que se apresenta na prática cotidiana, haja vista que o
Depoimento Especial é um trabalho que está em momento de construção, em
conformidade com a realidade de cada Comarca.
Em comum, compreende-se que o profissional é obrigado a se despir, não
de seu conhecimento técnico, mas de toda a metodologia de trabalho utilizada em
seu cotidiano e transfigurar – se em um entrevistador forense.
As experiências revelam que a imposição de novas atribuições aos
profissionais, sem a possibilidade de opinar ou fazer parte ativa na construção de
novos métodos de trabalho ocasionam, invariavelmente, sentimentos de frustração e
resistência na aceitação.
É flagrante que as dificuldades e dúvidas que sobressaem são
concernentes à abordagem de como elaborar perguntas visando obter as
informações necessárias de forma indireta e definir as informações relevantes para
materializá-las no documento final.
Os técnicos/entrevistadores se deparam com outros desafios que
permeiam a execução do procedimento. São pressionados pelos prazos
determinados que permitem atendimentos pontuais, necessitando adequar o
Depoimento Especial em uma agenda sobrecarregada e com ínfima fonte
bibliográfica, principalmente a área social. Lidam com as tentativas de
desqualificação por parte da defesa do suposto réu ou assistente técnico e pela
exposição sofrida durante e posterior ao Depoimento Especial, riscos de ter violado
o direito a autonomia e ao sigilo profissional resguardados no código de ética.
Esse contexto se agrava devido os profissionais operarem nessa
demanda divergindo do posicionamento contrário dos respectivos conselhos de
classe sobre essa temática. Ou seja, atuam no limiar de possíveis penalizações seja
no âmbito institucional ou nos referidos conselhos.

469
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Deparam-se ainda, com as expectativas frustradas das vítimas e seus


familiares, seja por questões voltadas a penalização do suposto agressor, onde a
vítima pode se sentir responsável por esse ato, ou pela ausência de serviços
especializados que atendam os envolvidos.
Percebe-se que, quase sempre, essa demanda é encaminhada para o
CREAS, sendo comum haver um lapso temporal entre a oitiva e o atendimento de
fato junto a esse serviço.
Desse modo, é consenso entre os profissionais sentir, neste momento, a
necessidade da permanente capacitação e treinamento específicos para executar o
procedimento, não só para equipe técnica forense, mas também para os operadores
do direito (magistrados, promotores, advogados), profissionais dos órgãos de
proteção e demais envolvidos na execução dessa técnica.
Entende-se que passar pelas etapas de criação de uma nova metodologia
de trabalho ativamente é uma forma de capacitar, agregar conhecimento. O fazer
parte, ter voz, ser protagonista em debates, produzir conhecimento, nos traz o
sentimento de pertencimento aliado à primazia do princípio ético profissional,
promovendo às vítimas o acesso a direitos e proteção, sendo esse o cerne de nossa
atuação cotidiana.
Por fim, é importante destacar que o presente artigo não pretendeu
esgotar as discussões concernentes ao assunto, ao contrário, objetivou incitar
reflexões primárias de uma temática que requer, ainda, muito estudo, análise,
discussões e quiçá, alguns encaminhamentos que possam adequar e alinhar a
prática do Depoimento Especial na direção, de fato, da não revitimização de
crianças, adolescentes e respectivas famílias vítimas e, ou testemunhas de
violência. É o que se almeja com todas as forças.
Já dizia Ariano Suassuna:
‘O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um
realista esperançoso”.

470
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

ALVES JUNIOR, Reginaldo Torres. Um sistema de análise de entrevistas


forenses com crianças em casos de suspeita de abuso sexual. 2013.151 f.
Dissertação (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura) – Instituto de Psicologia,
Universidade de Brasília, DF, 2013.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069 de 13 de julho de


1990. Brasília, DF: 1990.

__________. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF, Senado, 1998. Disponivel em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso
em 12 de abril de 2019.

__________Lei 13.431 de 04 de abril de 2017 – Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm> Acesso
em: 12 de abril de 2019.

_________. Ministério dos Direitos Humanos - MDH. Parâmetros de Escuta de


Crianças e Adolescentes em situação de violência. 2017. Disponível em:
http://primeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2017/08/Parametros-de-Escuta.pdf.
Acesso em: 06 Nov. 2019.

Melo, Eduardo Rezende. Capítulo 5: Crianças e adolescentes vítimas de aduso


sexual: a emergência de sua subjetividade jurídica no embate entre modelos
jurídicos de intervenção e seus direitos. Uma análise crítica sob o crivo
histórico-comparativo à luz do debate em torno do depoimento especial. Livro:
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual : aspectos
teóricos e metodológicos : guia para capacitação em depoimento especial de
crianças e adolescentes / organizadores, Benedito Rodrigues dos Santos, Itamar
Batista Gonçalves, Gorete Vasconcelos ; (coords.), Paola Barbieri, Vanessa
Nascimento – Brasília, DF : EdUCB, 2014. p. 396.

471
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

MOTTI, Antônio José Angelo; SANTOS, Joseleno Vieira dos. Redes de proteção
social à criança e ao adolescente: limites e possibilidades. Caderno de
Conteúdo - Fortalecimento da rede de enfrentamento à violência sexual contra
crianças e adolescentes. Guarulhos-SP, 2008. Disponível em:
<http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/sem_pedagogica/fev_2014
/NRE/redes_protecao_social.pdf>. Acesso em: 06 Nov. 2019.

TERRA, Sylvia Helena. Código de ética do (a) Assistente Social: comentários a


partir de uma perspectiva jurídico-normativa critica. BARROCO, M.L.S. e
TERRA, S.H. Código de Ética do/a Assistente Social Comentado. São Paulo, Cortez,
2012 in: CRESS. Nota Técnica. Participação de Assistente Social no Depoimento
sem Dano. Diponivel em: http://cress-sp.org.br/wp-content/uploads/2016/03/Nota-
Tecnica-.pdf.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO - Protocolo CIJ


00066030/11. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico de 30/05/2011. São Paulo,
TJSP, 2011.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Comunicado Conjunto n


1948/2018. Corregedoria Geral da Justiça e Coordenadoria da Infância e da
Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo. São Paulo, TJSP, 2019.

472
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O DEPOIMENTO ESPECIAL DE CRIANÇA E/OU


ADOLESCENTE: SOB A ÉGIDE DA LEI?

GRUPO DE ESTUDO DO INTERIOR – FRANCA


“FAMÍLIA, INFÂNCIA E JUVENTUDE”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019
473
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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COORDENAÇÃO
Mariscler Regivane da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Morro Agudo
Mateus Beordo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará

AUTORES
Ana Maria Alves da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Ana Maria Damando Pavan – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ipuã
Cibele Alves Chapadeiro – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Joaquim da Barra
Cristiane Barbosa Rezende – Assistente Social Judiciário – Comarca de Batatais
Denise Jesuina Faria Tostes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Edilaine Aparecida dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pedregulho
Juliana Borges Marson – Psicóloga Judiciário – Comarca de Patrocínio Paulista
Juliana Massad de Oliveira Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guará
Juliane Stamato Taube – Assistente Social Judiciário – Comarca de Patrocínio
Paulista
Luciana Leonetti Correia – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ipuã
Maria Helena de Oliveira Borges – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Marina Pereira Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Mariscler Regivane da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Morro Agudo
Mateus Beordo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará
Michelle Barbosa de Oliveira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Franca
Priscila Suemi Miya – Psicóloga Judiciário – Comarca de Miguelópolis
Raquel Renzo da Silva Pequia – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Regina Ester Vieira Reis de Camargo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca
Vilma Aparecida Tavares – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Joaquim
da Barra
Viviane Milan Pupin Andrade – Psicóloga Judiciário – Comarca de Morro Agudo

474
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O grupo de estudos de Franca pesquisou os aspectos que permeiam o


Depoimento Especial e a Escuta Especializada, abordando questões históricas,
legislativas, teórico-metodológicas, técnico-operativas, além de ético-políticas.
Conhecemos o posicionamento dos Conselhos Profissionais do Serviço
Social e Psicologia, os quais se manifestam criticamente à prática do Depoimento
Especial e colocam ressalvas no sentido da efetiva proteção a crianças e
adolescentes e em relação à atuação profissional.
Também discutimos o fluxo de atendimento e o trabalho na rede
socioassistencial que envolve os sujeitos que vivenciam as situações de violência.
Diante do exposto e das experiências compartilhadas no grupo,
objetivamos por meio do presente artigo sintetizar as referências estudadas e os
debates realizados, pautados na perspectiva de crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos e a imprescindibilidade da proteção integral a estes, ponderando-
se, concomitantemente, as questões éticas atreladas às intervenções realizadas no
cotidiano de trabalho.

ASPECTOS HISTÓRICOS, PANORAMA INTERNACIONAL E MARCO


NORMATIVO

Conforme Santos e Gonçalves (2009, p. 40 apud SANTOS; COIMBRA,


2014, p. 596) as práticas mais remotas de oitiva, que se assemelham ao que,
atualmente, denominamos de depoimento especial, foram registradas na década de
1980, em países como Israel, Canadá e Estados Unidos.
Na América Latina, a primeira experiência ocorreu na Argentina, que
utilizava desde o fim da década de 1990 a Câmara Gesell63, com finalidades
terapêuticas para crianças e adolescentes vítimas de violência. Em 2003, foi
instituída legislação específica das práticas de tomada de depoimento especial
naquele país (SANTOS; GONÇALVES, 2009, p. 41 apud CALDAS; PERROTA,

63
Método em que há duas salas separadas por uma visão de vidro unidirecional de forma que os
depoentes não percebem que estão sendo observados por outras pessoas que não o
entrevistador (CALDAS; PERROTA, 2014, p. 237).
475
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2014, p. 237).
Em pesquisa feita pela Childhood64, que mapeou países que realizam
práticas de inquirição de crianças e adolescentes, verificou-se que as metodologias
mais utilizadas são o Closed Circuit Television (CCTV)65, constatado em 61% dos
países, e a Câmara Gesell, utilizado por 39% deles, sendo que este último sistema é
predominantemente usado nos países da América do Sul (SANTOS; GONÇALVES,
2009, p. 42-45 apud CALDAS; PERROTA, 2014, p. 237).
Os estudos indicam que na maioria dos países – 46% deles – as salas
especiais para tomada de depoimentos dessas vítimas ou testemunhas de violência
sexual se localizam na estrutura da polícia. As salas fixadas na estrutura do
Ministério Público ou do Poder Executivo, correspondem a 18%, e em sua maioria
encontradas na América do Sul (SANTOS; GONÇALVES, 2009 p. 42-45, apud
CALDAS; PERROTA, 2014, p. 237). É importante consignar que as práticas
realizadas no Brasil foram inspiradas em modelos internacionais.
Acerca dos aspectos normativos, nosso país é signatário de convenções
e acordos que resguardam direitos de crianças e adolescentes, dentre eles
destacamos: a Convenção sobre os Direitos da Criança (UNICEF, 1989); o Protocolo
Facultativo da Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 2000 (UNICEF, 1989); a
Resolução nº 20, de 2005, do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
(ECOSOC, 2005). Este último traz parâmetros internacionais para a aplicação de
metodologias alternativas de oitivas com crianças e adolescentes vítimas e/ou
testemunhas de crimes.
Em âmbito nacional temos a Constituição da República Federativa do
Brasil, de 1988 (BRASIL, 1988), e a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe
sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências (BRASIL,
1990), que visam à proteção integral.
No Brasil, em 2003, iniciam as primeiras oitivas denominadas naquele
momento “Depoimento sem Dano”, no Rio Grande do Sul (BRASIL, 2004), que
vislumbra prever regras especiais quanto à realização de laudo pericial e

64
Criada em 1999 pela Rainha Silvia Renate Sommerlath, da Suécia, a Childhood Brasil faz
parte da World Childhood Foundation (Childhood), instituição que conta ainda com escritórios na
Suécia, na Alemanha e nos Estados Unidos. A organização é certificada como Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) (CHILDHOOD).
65 Circuito fechado de televisão, método de gravação de videoimagem com comunicação à sala

da assistência.
476
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

psicossocial nos crimes contra a liberdade sexual de criança ou adolescente. Em


2009, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) instituiu um Grupo de
Trabalho Interinstitucional que se debruça sobre o estudo do tema.
A Recomendação nº 33, de 23 de novembro de 2010, do Conselho
Nacional de Justiça (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2010), trata da criação
de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas de violência nos processos judiciais, designado Depoimento Especial
(D.E.), e deu início para a difusão dessa metodologia no país (SANTOS; et al, 2013,
p. 33-34).
A implantação no Estado de São Paulo ocorreu em 2011, quando a
Coordenadoria da Infância e da Juventude instituiu o Protocolo CIJ Nº 00066030/11
(COORDENADORIA..., 2011). Este protocolo dispõe sobre o atendimento não
revitimizante de crianças e adolescentes vítimas de violência, especialmente sexual,
e propõe a construção de plano interinstitucional em âmbito estadual, além da
implementação em caráter piloto do projeto de D.E. em cinco varas no Estado de
São Paulo.
Neste ano, também ocorreu uma capacitação ministrada pela psicóloga e
psiquiatra, Dra. Irene Intebi, para magistrados, promotores de justiça, defensores
públicos e respectivas equipes que atuam na área da infância e juventude das
comarcas do projeto piloto (Atibaia, Campinas, Guarulhos, São Caetano do Sul e
São Paulo).
De acordo com Luiz (2017), o Termo de Cooperação entre a Childhood
Brasil e o CNJ foi assinado em 2012, a fim de promover o depoimento especial.
Nesse mesmo ano foi publicada a Cartografia Nacional das Experiências
Alternativas de realização do D.E. em processos judiciais no Brasil.
No ano de 2016, foi criado o Setor de Atendimento de Crimes da Violência
contra Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Vítima de Tráfico Interno de
Pessoas (SANCTVS), anexo à 16ª Vara Criminal, que realiza o Depoimento Especial
no município de São Paulo que não se enquadram na Lei nº 11.340, de 7 de agosto
de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006).
A Lei nº 13.431, 04 de abril de 2017, estabelece o sistema de garantia de
direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência (BRASIL,
2017). O olhar da legislação tem por objetivo evitar a “revitimização”, assim, define

477
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

procedimentos para que não ocorra a repetição da oitiva das vítimas em relação aos
abusos/violências vivenciados. Ainda, vislumbra que tal procedimento ocorra por
profissionais especializados, respeitando as fases do desenvolvimento da criança
e/ou adolescente, em espaço físico adequado, possibilitando o relato livre.
O título III da Lei trata “Da Escuta Especializada e do Depoimento
Especial”, que determina que a Escuta seja efetivada perante órgão da rede de
proteção e que o Depoimento deve ocorrer diante de autoridade policial ou judiciária.
Com a publicação da referida lei, ocorreu a expansão do Depoimento
Especial pelo Estado de São Paulo. A Presidência do TJSP definiu a capacitação de
psicólogos e assistentes sociais judiciários para aplicação dessa metodologia.
Considerando a legislação, o Provimento CG nº 17/2018 (TRIBUNAL...,
2018) e a Portaria nº 9.796/2019 (TRIBUNAL..., 2019) inseriram alterações na
redação das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, na Subseção I
“Do Serviço Social e Psicologia”, incluindo o D.E. no âmbito de atuação de
assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

LEI Nº 13.431/2017: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Antes da promulgação desta lei, exceto algumas experiências iniciais, não


havia em nível nacional procedimento especial de escuta e coleta de depoimentos
de crianças ou adolescentes vítimas ou testemunha de violência. Estas passavam
pelo rito do inquérito policial e processual, o que demandava que tivessem que
relatar os fatos em diferentes ocasiões e espaços, tanto do sistema de segurança
pública e judiciário, quanto pelas políticas das quais necessitassem de atendimento,
levando à “revitimização”.
A legislação inova ao propor um número reduzido de entrevistas que,
inicialmente, pode ser realizada perante órgão da rede de proteção, no momento da
revelação da agressão sofrida, procedimento denominado de “Escuta
Especializada”. Contudo, depreendemos que para que esta ocorra de forma
protetiva e efetiva deve haver uma mobilização da rede envolvendo os atores que
compõem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente.
Ressaltando a importância do trabalho em rede, consideramos que:

478
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...] ações isoladas são insuficientes para prevenir o abuso, para


responsabilizar o autor de violência sexual, para atender às vítimas
ou para apoiar as famílias a fim de evitar reincidências. São
essenciais, portanto, as articulações em rede dos serviços já
existentes, a criação de redes territoriais de proteção que possam
acompanhar a qualidade do atendimento de crianças e de
adolescentes vítimas de abuso ou de exploração sexual e também
manter um controle social sobre a responsabilidade do Sistema de
Garantia dos Direitos (SANTOS; IPPOLITO; MAGALHÃES, 2014, p.
125).

Ponderamos que a articulação da rede ocorre conforme a realidade de


cada Município, sendo referidas no grupo, experiências em que o Centro de
Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), serviços de saúde ou
profissionais autônomos contratados pelo Município, especificamente para esta
demanda, assumiram a realização da escuta especializada, definindo-se um fluxo de
atendimento.
Embora a Lei tenha estabelecido o prazo até abril de 2018 para que os
Estados, Distrito Federal e Municípios efetivassem os procedimentos, a maioria dos
profissionais que participam deste grupo, ponderaram que os municípios onde
trabalham ainda buscavam a implementação e que diferentes atores assumiram o
protagonismo em articular a rede socioassistencial para definição do fluxo. Em nossa
realidade, as discussões nos munícipios foram fomentadas pelo Ministério Público
ou pelas equipes dos setores de Serviço Social e Psicologia do Judiciário.
Percebemos, assim, que o fluxo de atendimento às vítimas ou
testemunhas de violência está em construção. Nesse processo é fundamental o
diálogo entre os órgãos de defesa dos direitos das crianças e adolescentes, a fim de
que os fluxos e protocolos sejam concebidos com perspectivas à proteção integral.
Importante considerar também as competências e os papéis dos
profissionais nesse contexto, inclusive respeitando a ética de cada categoria.
Ponderamos que há divergências em nossas discussões quanto ao responsável em
realizar a escuta especializada, se o profissional que efetivará o acompanhamento
da criança/adolescente e seu núcleo familiar deve ser o mesmo que realizará a
escuta, considerando o fortalecimento ou quebra de vínculo entre estes e o
profissional.
Tendo em vista a relevância do trabalho integrado, também destacamos

479
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que é essencial a qualificação dos profissionais envolvidos, de modo que as


intervenções não acarretem mais prejuízos e situações revitimizantes.
Refletimos acerca da Lei se o enfoque desta é a produção de provas e
respostas a quesitos ou se, de fato, promove a proteção à vítima. Vimos que há
posicionamentos contraditórios quanto a essa questão:

A ideia que fundamenta a implementação do método do Depoimento


Especial está relacionada à perspectiva de que a criança deve ser
vista como sujeito de direito no âmbito do processo, por mais que o
escopo da oitiva seja a produção de provas. Neste sentido, é comum
que, no processo judicial, crianças e adolescentes vítimas de
violência não sejam tratados como pessoas em fase peculiar de
desenvolvimento, sendo submetidos à inquirição sem o devido
cuidado e respeito por parte dos profissionais. O cerne da Lei n.
13.431/2017 é exatamente evitar a instrumentalização da criança
com intuito de elucidação do fato delituoso, porque a postura por
parte dos agentes estatais pode implicar a revitimização
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 29).

O Conselho Federal de Psicologia entende que:

[...] o depoimento especial, em nome da proteção, viola o direito de


crianças e adolescentes que passam a ser objeto de provas
preponderantes no processo penal, desrespeitando sua situação
peculiar de pessoa em desenvolvimento e sua dignidade
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018).

A estrutura dos locais em que são realizados os procedimentos da escuta


e depoimento especial também são pontos a ser avaliados, a legislação coloca no
artigo 10º “A escuta especializada e o depoimento especial serão realizados em
local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a
privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência”
(BRASIL, 2017).
Foi relatado no grupo, que em alguns locais as salas de atendimento dos
Setores de Psicologia e Serviço Social têm sido utilizadas durante a realização do
depoimento. Importante considerar que, em algumas destas, não há isolamento

480
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

acústico, ocasionando insegurança quanto à privacidade das falas. Ademais, há a


necessidade de promover os equipamentos adequados na totalidade dos espaços
em que se realizam os depoimentos.
Destarte, considerando as diferentes perspectivas da metodologia em
tela, o consenso é que o papel dos profissionais é realizar uma leitura crítica acerca
da questão da violência e suas repercussões nas vivências dos sujeitos, buscando,
primordialmente, realizar uma prática que seja fundamentada na perspectiva da
proteção integral.
É fundamental um olhar voltado às consequências da violência na
vivência das vítimas e do seu núcleo familiar após o depoimento, por meio do
acompanhamento pela rede protetiva. Nesse sentido, refletimos se a
intencionalidade está focada na resolutividade dos processos que tramitam no Setor
Judiciário com a condenação e/ou absolvição do acusado, ou se nas garantias da
segurança e “superação” das violências vivenciadas pelas crianças e adolescentes.
Pois, se, ao acaso, a intencionalidade seja a “extração da verdade” dentro
do contexto processual, é importante destacar:

Que a criança, de acordo com a convenção internacional dos direitos


da criança e adolescente, tem o direito de ser ouvida e não a
obrigação de depor, devendo falar quando estiver preparada para
tanto, não podendo ser inquirida com o fito de se alcançar uma
verdade processual (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2018).
Uma escuta respeita o tempo e as necessidades de pontuação, de
luto, de significação. Enfim, respeita o sujeito. A inquirição parte da
ficção de que o sujeito seria capaz de responder linearmente todas
as indagações, pois acreditam numa concepção de verdade
metafísica e, cabe dizer, esquizofrênica, própria do Direito. Inquirir,
no caso, é uma fraude à subjetividade (ARANTES, 2012, p. 222 apud
LUIZ, 2018, p. 5).

Assim, pontuamos que em nossas atuações, o foco é a proteção aos


sujeitos que vivenciam vulnerabilidades, sendo que a “apuração da verdade” não
condiz com nossas intervenções, independentemente da metodologia utilizada.
A legislação apresenta a possibilidade de crianças/adolescentes optarem
por ser ouvidos pelos próprios magistrados, situação que demanda que esses

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

profissionais também estejam capacitados para realizarem uma oitiva que respeite a
especificidade da fase do desenvolvimento infanto-juvenil.

[...] a importância de “Formar juízes, promotores de justiça e


defensores públicos para participar, quando necessário, da coleta do
Depoimento Especial [...]” e ainda “Formar juízes para proceder à
entrevista de crianças e adolescentes vitimizados que manifestem
interesse em ser ouvidas pelo próprio magistrado [...]” (COIMBRA,
2014, p. 368 apud SANTOS; COIMBRA, 2017).

Desta forma, a oitiva pode ocorrer tanto por uma equipe especializada,
quanto pelos magistrados, respeitando a manifestação da criança ou adolescente
em questão.

POSIONAMENTO DOS CONSELHOS PROFISSIONAIS DE SERVIÇO


SOCIAL E PSICOLOGIA

Como anteriormente exposto, os Conselhos profissionais se posicionam


contrariamente à participação de assistentes sociais e psicólogos na prática do
depoimento especial, assim como associações: como a Associação dos Assistentes
Sociais e Psicólogos da Área SocioJurídica do Brasil (AASPSI – Brasil) e a
Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo (ASSPTJ-SP).
Nessa perspectiva, foram elaboradas a Resolução nº 554, de 15 de
setembro de 2009 (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2009), que
afirmou que não é competência do assistente social realizar D.E. ou escuta
especializada (E.E.); e a Resolução nº 10, de 25 de junho de 2010 (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2010), voltada à vedação da participação de
psicólogos e profissionais da psicologia em oitivas, no entanto estas foram
revogadas:

Destaca-se que o Provimento do CSM n. 2.236/2015, que


482
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

expressava a autonomia no seu artigo 5°: “os psicólogos e


assistentes sociais [...] gozarão de autonomia para indicar, de forma
fundamentada, a conveniência ou não de proceder a escuta
especial”, foi revogado pela publicação em Diário Oficial, na data
21/06/2017 a Resolução n° 780/2017, que retifica o funcionamento
do SANCTVS.
Importa dizer que com a revogação desse provimento, o assistente
social que recusar-se a participar do DE, corre o risco de ser alvo de
um processo administrativo por desacato a ordem judicial, pois agora
esses profissionais não contam com um arcabouço jurídico que lhes
permite declinar de tal participação (LUIZ, 2018, p.13)

Os Conselhos destacam que a Lei se sobrepõe aos posicionamentos dos


órgãos de classe e evidenciam a “Ausência de debates públicos durante a
tramitação do projeto (PL Nº 3.792/2015) que deu origem à Lei Nº 13.431/2017”
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018).
Conforme Nota Técnica do Conselho Federal de Serviço Social “[...] os/as
assistentes sociais não integram a área da responsabilização penal, mas a da
proteção social” (CFESS, 2018). Sendo assim, apesar destes profissionais
ocuparem o campo sociojurídico, sua atuação tem enfoque na defesa de direitos e
articulação com as políticas públicas, realizando estudos voltados a apreensão dos
aspectos sociais, econômicos e culturais que permeiam a realidade dos sujeitos
atendidos, desvinculado de cunho investigativo e de apuração da verdade
processual.
Acerca da participação de assistentes sociais, o CFESS coloca que esses
profissionais não possuem formação acadêmica para o uso dos protocolos
recomendados:

Quanto aos instrumentos e protocolos identificados para


operacionalizar o depoimento especial, é necessário considerar que
são totalmente estranhos ao Serviço Social, seja pelos conteúdos a
que se referem (já foram tratados nesse texto), seja pela técnica
descrita em cada um deles. Protocolo NICHD, Protocolo RATAC,
Entrevista Forense, Entrevista Cognitiva, Protocolo de Entrevista
Estendida NCAC, entrevista investigativa; nenhum desses pode ser
identificado como parte integrante do trabalho do/a assistente social.
Assistentes sociais não possuem qualquer competência para
técnicas de extração da verdade com base no manejo de perguntas
adequadas ao resgate da memória (CONSELHO FEDERAL DE
SERVIÇO SOCIAL, 2018).

483
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O Conselho de Psicologia realiza apontamentos quanto ao sigilo


profissional e colheita de provas:

[...] ao passo em que, além de violar o dever de sigilo ético-


profissional imposto às/aos profissionais de psicologia – dado que
devam ser transmitidos em tempo real e gravados – se orientam por
uma lógica de extração de informações da criança e do adolescente,
lógica caracterizada antes como uma colheita de prova, que um
procedimento inserido nos parâmetros éticos e técnico-científicos da
psicologia, sendo, portanto, procedimento absolutamente estranho
ao campo de atuação das/os profissionais de psicologia
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018).

Acerca da autonomia profissional, há entendimentos contraditórios sobre


esta no contexto do depoimento especial:

Ao contra-argumentar, psicólogos favoráveis ao depoimento especial


explicitam que nas entrevistas realizadas o ritmo e o estado
emocional da criança e do adolescente são respeitados, que o
psicólogo, por suas competências técnicas, ao perceber limitações
ou impossibilidades do entrevistado para falar sobre o ocorrido
poderá, verbalmente ou por escrito, contraindicar o depoimento
naquele momento. Em relação ao sigilo profissional é entendido que
não há quebra de dever de sigilo, pois no depoimento especial o
psicólogo estaria ouvindo a criança em uma situação que lhe diz
respeito, em um contexto de segredo de justiça. Sobre a autonomia
profissional, é entendido que este é um espaço em que os
psicólogos, com suas competências técnicas e metodológicas,
podem intervir de forma interdisciplinar cada um com sua expertise,
direito e psicologia (TABAJASKI; VICTOLLA; VISNIEVSKI, 2019, p.
73 apud CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 32).

Em contrapartida, os conselhos profissionais defendem que a autonomia


profissional é prejudicada, uma vez que entendem que os profissionais se tornam
“intérpretes” de perguntas formuladas pelos magistrados, realizando uma prática de
cunho investigativo.
Outra questão refere-se a responsabilização das crianças/adolescentes
como fornecedores de provas para que haja a punibilidade do suposto agressor.

484
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considera-se que a violência sexual na maioria das vezes ocorre


dentro do âmbito familiar, assim, a criança é obrigada a produzir
provas contra uma pessoa que tem vínculos afetivos. Nesse sentido,
o DE expressa um conflito de prioridades no Sistema de Justiça entre
o Princípio da Proteção Integral da criança e obrigatoriedade de
produzir provas para condenação do réu, muitas das vezes alguém
de suas relações afetivas (LUIZ, 2018, p. 9-10).

Segundo a autora, as medidas de proteção não devem ser reduzidas à


mera responsabilização do/a suposto/a agressor/a, persistindo a discussão se há
proteção da criança e do adolescente na rotina e dinâmica dos processos criminais,
com vistas à produção de provas.
Esses são alguns dos pontos contrários à prática do D.E. apresentados
pelos Conselhos profissionais e que fomentam discussões no sentido da ética,
autonomia e sigilo profissional e, sobretudo, se a finalidade do depoimento especial
é a real proteção às crianças e adolescentes.
Apesar dos posicionamentos dos Conselhos e das Associações, a
Recomendação do CNJ nº 33/2010 e a Resolução nº 299/2019 (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019), mantém como atribuição dos assistentes sociais e
psicólogos a realização do D.E.

ENTREVISTA FORENSE: PROTOCOLO NICHD (NATIONAL


INSTITUTE OF CHILD HEALTH AND HUMAN DEVELOPMENT)

A violência contra a criança e/ou adolescente, geralmente, é um crime


silencioso, no qual o relato da vítima, na maioria dos casos, constitui-se na única
prova.
O abuso sexual é descrito como grave problema de saúde pública, que
pode acarretar sérias consequências para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e
social da vítima e de sua família e que a complexidade e quantidade de variáveis
envolvidas no impacto do abuso sexual à criança ou adolescente é considerada fator
de risco para o desenvolvimento de psicopatologias (HABIGZANG et. al, 2005).
No Brasil, há discussão sobre os aspectos referentes ao risco da
exposição de crianças e adolescentes a repetidas entrevistas de revelação e às

485
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

consequências desta, mas, pouco se discute a respeito dos métodos de entrevistas


baseados em características do desenvolvimento e capacitação para essas práticas
(SANTOS; GONÇALVES, 2008 apud AZNAR-BLEFARI; PADILHA, 2015).
Goodman e Quas enfatizam que a proteção às crianças não envolve
apenas a quantidade de entrevistas realizadas, mas os métodos usados na escuta
(2008 apud AZNAR-BLEFARI; PADILHA, 2015). O uso de questões abertas tem o
intuito de evocar relatos mais espontâneos. Para isso, um dos instrumentos
utilizados é o protocolo NICHD, que segundo os autores, diminui a possibilidade de
induções (perguntas sugestivas) e obtém mais detalhes sobre a situação abusiva
(LAMB et. al. 2008 apud AZNAR-BLEFARI; PADILHA, 2015).
O Protocolo NICHD é uma entrevista estruturada investigativa e se
assemelha em alguns aspectos a entrevista cognitiva (EC)66, que integra
conhecimentos da Psicologia Cognitiva e da Psicologia Social.
O referido protocolo é composto por duas fases: não-substantiva, que traz
aspectos gerais da entrevista, abordando assuntos não relacionados aos incidentes
investigados; e a substantiva, que inicia com solicitações de relato sobre a situação
de violência, questiona o número de vezes ocorrido e investiga todos os eventos
relatados da mesma forma, finalizando com um tópico imparcial. No Brasil, o
protocolo utilizado foi adaptado por universidades para a realidade local.

66
Foi desenvolvida em meados dos anos 1980, quando os psicólogos Ronald P. Fisher e
Edward Geiselman, buscavam aprimorar as técnicas através das quais os policiais americanos
colhiam depoimentos de vítimas, testemunhas e suspeitos. É uma abordagem eminentemente
prática, cujas técnicas se baseiam em parâmetros de pesquisa e estudos experimentais
(fundamentos científicos).
486
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer dos estudos e discussões em grupo, verificamos que o


depoimento especial suscita posicionamentos diversos entre os profissionais e
consideramos que a sua aplicabilidade, nos moldes da Lei nº 13.431/2017, é
relativamente recente.
Assim sendo, nota-se a carência de debates acerca da implementação e
aplicação da legislação, no tocante a garantia da proteção integral à criança e ao
adolescente e de protocolos de atendimento. Além disso, estão em construção os
fluxos de atendimento e sua operacionalização por parte dos profissionais do
Serviço Social e da Psicologia.
A organização da rede protetiva e o diálogo com os magistrados foram
elementos destacados como importantes nesse processo. Desse modo,
evidenciamos que a Lei trouxe avanços ao propor um rito de atendimento especial
às vítimas/testemunhas de violência e a perspectiva de envolvimento da rede nesse
trabalho.
Expusemos no decorrer deste artigo algumas vulnerabilidades
encontradas na legislação e em sua efetivação, e entendemos que esse debate
necessita ser aprofundado.
É relevante pontuar que os Conselhos de Psicologia e de Serviço Social
têm um posicionamento contrário a pratica do Depoimento Especial, e que a
inclusão deste como atribuição de assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de
Justiça traz preocupações a esses profissionais, que temem cometer infrações
éticas e/ou administrativas, intensificando suas angústias. É importante destacar que
a atuação dos técnicos, no contexto do poder judiciário, relaciona-se a proteção às
crianças e adolescentes e a realização do procedimento do D.E. pode cercear a
autonomia profissional.
No âmbito do Poder Judiciário, diante de situações que envolvam violação
de direitos de crianças e adolescentes, a realização de estudo psicossocial é
primordial, analisando criticamente os aspectos que permeiam a realidade dos
sujeitos, os contextos de violência e os encaminhamentos possíveis para a garantia
de direitos. Nas situações de D.E. é imprescindível a realização do estudo prévio.
Também é importante salientar que o Sistema de Garantia de Direitos

487
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

envolve além de assistentes sociais, psicólogos do Judiciário e profissionais da


política de assistência social, os trabalhadores da educação, saúde, juízes,
promotores de justiça, defensores públicos e profissionais da segurança pública.
Sendo assim, destacamos que esses atores precisam se engajar nos debates
realizados e ter capacitações para atuar com crianças e adolescentes
vítimas/testemunhas de violências.
Diante das exposições realizadas, depreendemos que as políticas
públicas de prevenção e proteção àqueles que vivenciam violências ainda
demonstram ser incipientes. O trabalho em rede é imprescindível neste sentido e
deve envolver diversos atores, sendo que a proteção não deve se restringir à
punibilidade do suposto agressor.
Em relação a vitima, deve-se respeitar sua condição de pessoa em
desenvolvimento, com suas limitações e potencialidades e também o seu direito de
permanecer em silêncio, assim como a indicação técnica para a realização ou não
do D.E., visando sua proteção integral.
Acreditamos que há um caminho ainda a ser percorrido para que a Lei nº
13.431/2017 e o direito da criança e adolescente de ser ouvido, não seja, de fato,
revitimizante.

488
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
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493
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AVALIAÇÃO PSICOSSOCIAL: FATORES DE RISCO


E DE PROTEÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR


JUNDIAÍ-BRAGANÇA PAULISTA
“INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019
494
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Edna Maria Brandão – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Fabíola Maria Mota Costa de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Nazaré Paulista

AUTORAS
Ana Carolina da Silva Payolla – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sumaré
Claudia Maria Nóbrega – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santo André
Débora Silva Barros de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Cabreúva
Edna Maria Brandão – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Eduarda Vieira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Fabíola Maria Mota Costa de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Nazaré Paulista
Gisele Perez da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas
Magnólia Mota Zamariolli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Piracaia
Maria Helena Pompeu – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pinhalzinho
Rose Meire Mendes de Almeida – Psicóloga Judiciário – Comarca de Nazaré
Paulista
Silvia Dominiquini Medeiros Marino – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itatiba
Tamara Cristina Barbosa Soares – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira
Valéria Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Limeira
Vivian Bertelli Ferreira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bragança Paulista

495
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O grupo optou pensar em termos amplos de avaliação com relação à


infância, tomando como possibilidade de olhar a questão dos fatores de risco e
fatores de proteção, fez-se necessário aprofundar nossos conhecimentos a respeito
do tema e buscarmos recortes que contemplassem nossa atuação, nosso escopo de
trabalho. Desta maneira, encontramos importantes aportes teóricos a respeito dos
fatores de risco e fatores de proteção no desenvolvimento infantil, com vistas não
apenas ao reconhecimento de tais fatores, mas da possibilidade de atuar
preventivamente. Ainda assim, encontramos áreas onde há muita produção e outras
ainda carecem de estudos.
Entendemos como importante tomar conhecimento das definições da
temática estudada, e desta forma, segundo Maia e Williams (2005), em uma revisão
bibliográfica, apresentam as seguintes definições para fatores de risco: “Fatores de
risco são condições ou variáveis associadas à alta probabilidade de ocorrência de
resultados negativos ou indesejáveis. Dentre tais fatores encontram-se os
comportamentos que podem comprometer a saúde, o bem estar ou o desempenho
social do indivíduo” (Reppold et al, 2002). Nesse sentido, o fator de risco é algo que
facilita a ocorrência do risco. Outra definição encontrada traz os fatores de risco
como aqueles que, se presentes, aumentam a probabilidade de a criança
desenvolver uma desordem emocional ou comportamental. Tais fatores podem
incluir atributos biológicos e genéticos da criança ou da família, bem como fatores da
comunidade que influenciam, tanto o ambiente da criança quanto de sua respectiva
família” (Garmezy, 1985).
Fatores de proteção, por sua vez, podem ser definidos como aqueles
fatores que modificam ou alteram a resposta pessoal para algum risco ambiental que
predispõe a resultado mal adaptativo, como por exemplo, o estágio do
desenvolvimento da criança, seu temperamento e a habilidade de resolução de
problemas do indivíduo (Rutter, 1985), ou seja, diante da possibilidade de estar em
vulnerabilidade, os fatores de proteção atuam no sentido de alterar esta resposta e
constituem mecanismos, fatores ou processos protetores, que agem como
influências e melhoram ou alteram a resposta dos indivíduos a ambientes hostis, que
predispõem a consequências mal adaptativas. Tais fatores são compreendidos como

496
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

condições ou variáveis que diminuem a probabilidade de o indivíduo desenvolver


problemas de externalização, tais como, agressão, uso de álcool ou drogas, raiva,
desordem de conduta, crueldade para com animais, entre outros (Holden et al.,
1998). Dadas as definições, passaremos a abordar os fatores de risco e de proteção
nas avaliações psicossociais.

FATORES DE RISCO E PROTEÇÃO NAS AVALIAÇÕES


PSICOLÓGICAS

Maia e Williams (2005) apresentaram os fatores de risco e de proteção


aplicados ao desenvolvimento infantil e a importância do estudo e da atuação neste
tempo da vida se justifica, uma vez que nenhum outro fator de risco tem uma
associação mais forte com a psicopatologia do desenvolvimento do que uma criança
maltratada. O abuso e a negligência causam efeitos profundamente negativos no
curso de vida da criança. As sequelas do abuso e da negligência abrangem grande
variedade de domínios do desenvolvimento, quais sejam, cognição, linguagem,
desempenho acadêmico, desenvolvimento socioemocional, déficit em suas
habilidades de regular afeto e no comportamento geral (Barnett, 1997). Estudos em
neuropsicologia buscam explicar mais profundamente os danos que estas vivências
causam.
E o que são, mais precisamente, estes fatores de risco ao
desenvolvimento infantil? São todas as modalidades de violência doméstica, tais
como violência física, negligência e violência psicológica, sendo que a última inclui a
exposição à violência conjugal (Brancalhone, Fogo & Williams, 2004; Brancalhone &
Williams, 2003; Cardoso, 2001; Maldonado & Williams, 2005) e a violência sexual
(Azevedo & Guerra, 1989; Brino & Williams, 2006, Brino & Williams, 2003a; Brino &
Williams, 2003b). A literatura aborda não apenas a violência diretamente sofrida
como fator de risco ao desenvolvimento, mas mesmo a exposição a ela.
Explanam as autoras que os fatores de risco mais estudados são os
relacionados à ocorrência de violência física. Assim, Hughes, Graham-Bermann e
Gruber (2001) apontam quatro variáveis para este fator: características dos pais, da
criança, variáveis de relacionamento ou da comunidade. Assim, quando há presença
destes fatores de risco, maior a possibilidade de ocorrência de violência física.

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As características dos pais apontadas pelos três autores estão


relacionadas com maior sensação de raiva e problemas no manejo desta, baixa
tolerância à frustração, baixa autoestima, rigidez, ausência de empatia, abuso ou
dependência de substâncias, depressão e problemas físicos de saúde. Fatores
cognitivos pioram o quadro e podem estar associados aos primeiros, tais como:
menor compreensão da complexidade dos relacionamentos sociais, menor
compreensão sobre o papel parental e sobre o atendimento às necessidades da
outra pessoa. Excesso de expectativa não realista e percepção negativa de seus
filhos também podem aumentar a ocorrência de violência. Williams (2003) cita ainda
que pais portadores de deficiência mental tem maior probabilidade de agredir seus
filhos.
Com relação às características da criança que aumentam sua
vulnerabilidade para o abuso físico estão: ser menor do que cinco anos, ter tido
complicações no nascimento, ser portador de deficiências físicas e mentais ou
apresentar comportamentos considerados difíceis. Com relação às variáveis de
relacionamento, é mais provável que uma criança sofra violência física se viver em
um lar no qual há violência doméstica (intraconjugal) ou discórdia marital, se houver
na história destas crianças famílias com ocorrências intergeracionais de abuso e se
houver baixo status sócio-econômico.
Os autores trazem ainda aspectos da comunidade que favorecem a
ocorrência de violência contra crianças e adolescentes, tais como o senso de
aprovação da violência pela sociedade, aprovação social de punição corporal como
forma de limitar e a distribuição desigual de poder dentro da família e da sociedade.
Tal como a violência física, as autoras encontraram na literatura fatores
que facilitam a ocorrência de violência psicológica contra adolescentes e crianças,
tais como serem filhas e/ou estarem sob os cuidados de pessoas com habilidades
parentais pobres ou que fazem abuso de substâncias, que apresentam depressão,
tentativas de suicídio ou outros problemas psicológicos, baixa autoestima, com
habilidades sociais pobres, autoritários ou pouco empáticos. Estar em ambiente de
estresse social, violência doméstica e disfunção familiar também são fatores de risco
para a violência psicológica (American Academy of Pediatrics, 2002).
A violência doméstica tem determinação complexa, sendo consequência
de interação entre fatores culturais, sociais e características individuais dos

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cuidadores e da criança. No âmbito cultural, além da aceitação da ideia de


propriedade da criança pelos pais, vem prevalecendo, ao longo da história, a
compreensão do castigo físico como recurso pedagógico. Culturalmente, ainda
parece ser aceita a concepção de que o filho é uma espécie de propriedade dos
pais, e tudo o que estes fizerem será em legítimo benefício da prole (Deslandes,
1994). Este padrão cultural contrapõe-se à ideia de reconhecimento da criança como
um indivíduo, com suas vontades próprias e seu direito ao exercício da cidadania.
Historicamente, a ideia de cidadania foi construída concomitantemente à
ideia de exclusão social. Fazendo-se uma leitura do que tem sido considerado como
crime, se observa que as definições e as punições não são as mesmas, quando se
trata de indivíduos de diferentes raças, classes sociais, escolaridade, gênero,
etc.(Pitanguy, 2002).
O sentimento de pleno poder dos pais sobre a criança é formado na
sociedade em que estes se inserem, pois o modelo de relação intrafamiliar é
socialmente construído a partir de exigências, padrões e permissões de determinada
época em determinado local. Podem-se tomar como exemplo as meninas chinesas,
no início do século XX. As mesmas tinham seus pés amarrados, para que se
mantivessem pequenos. Na Roma antiga, a criança era considerada propriedade do
pai, e tal como defendia Aristóteles na Grécia antiga, como não era possível ser
injusto com a sua própria propriedade, nenhum comportamento do pai para com os
filhos poderia ser interpretado como injusto. O pai detinha sobre eles o direito de
vida e de morte. Sendo assim, o infanticídio era uma prática bastante recorrente,
quer por motivos religiosos através do sacrifício das crianças, quer para eliminação
de filhos ilegítimos ou não desejados ou simplesmente para controle da natalidade
(Lopes e Tavares Jr, 2000).
Estas concepções e hábitos permaneceram durante séculos na
civilização ocidental, sendo tolerada mesmo pela Igreja Católica na Europa, no auge
do cristianismo. Até o século XVII, a Igreja negava a existência da alma às crianças
pequenas, que desta forma poderiam ser assassinadas sem que isto constituísse
pecado (Áries, 1981) O abandono de bebês na França urbana era uma realidade no
século XVII (Badinter, 1985).
Entre 2011 e 2017, o Brasil teve um aumento de 83% nas notificações
gerais de violências sexuais contra crianças e adolescentes, segundo boletim

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epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde. No período foram notificados


184.524 casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068
(45,0%) contra adolescentes. A maioria das ocorrências, tanto com crianças quanto
com adolescentes, ocorreu dentro de casa e os agressores são pessoas do convívio
das vítimas, geralmente familiares. O estudo também mostra que a maioria das
violências é praticada mais de uma vez.
Para Itamar Gonçalves da ONG Childhood Brasil, que trabalha para
promover o empenho de governos e sociedade civil em combater a violência sexual
contra crianças e adolescentes, faltam no Brasil ações de prevenção que trabalhem
com temas como o conhecimento do corpo, questões culturais de gênero e em
especial as que dizem respeito aos padrões adotados de feminilidade e
masculinidade (Coelho, 2018).
Sinclair (1985) e Cardoso (2001) apontam que a observação da violência
doméstica afeta e interfere no desenvolvimento físico e mental das crianças, uma
vez que vivenciará a ambivalência das emoções e reações entre amor e ódio, além
de confusões, conflitos e outras vivências negativas. Segundo Bandura (1976), os
efeitos da observação da violência podem ser entendidos com base na teoria da
Aprendizagem Social. Tal teoria sustenta que padrões aprendidos por crianças em
um lar violento agem como modelos de como se comportar em interações sociais.
Além disso, crianças expostas a ambientes estressantes podem apresentar quadros
de dissociação a ponto de gerar rupturas bruscas e patológicas com a realidade
(Caminha, 1999).
Os efeitos nocivos de estar exposto a uma situação de violência
psicológica são conhecidos de nossa prática e giram em torno de agressão, uso de
drogas e/ou álcool, distúrbio de atenção, baixo rendimento escolar (Brancalhone &
Williams, 2003), ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático e os
problemas somáticos, entre outros (Barnett, 1997; Santos, 2001).
Com relação à negligência e ao abuso sexual, Maia e Williams (2005)
apontam quatro fatores de risco que contribuem para o abuso infantil crônico, o que
inclui todas as formas de maus tratos. Seriam eles:
• Pobreza: refere-se a um ambiente de estresse que pode gerar
problemas situacionais que comprovadamente comprometam o desenvolvimento.
Guralnick (1998) explica que tal estado é um estressor frequentemente associado a

500
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consequências sérias e globais para o desenvolvimento da criança. Aiello e Williams


(2000) reforçam que a grande desigualdade social brasileira faz com que: "a
população de crianças consideradas em situação de risco torna-se gigantesca,
apenas levando-se em conta fator de condições econômicas.
• Personalidade dos pais: Barnett (1997) aponta que a maioria dos pais
possui características que podem prejudicar seus filhos, mas conseguem conte-las.
É a impossibilidade da contenção, associada à imaturidade, particularmente no que
diz respeito ao entendimento de seus papéis de cuidadores, que gera o risco.
Segundo ele, pais que maltratam são menos positivos e dão menos suporte na
educação, sendo mais negativos, hostis e punitivos. Tais pais tendem a reagir mais
negativamente do que outros pais a desafios comuns, como o choro de uma criança.
• História dos pais: Barnett (1997) refere que 30% das crianças
maltratadas produzirão abuso ou negligência em suas crianças no futuro e que 70%
de pais que maltratam seus filhos foram maltratados quando crianças. Ele aponta
ainda fatores de risco de maus tratos associados à gravidez, como: gravidez de pais
adolescentes sem suporte social, gravidez não planejada e/ou não desejada,
gravidez de risco, depressão na gravidez, e falta de acompanhamento pré-natal;
bem como pai/mãe com múltiplos parceiros, expectativas demasiadamente altas ou
irrealistas em relação à criança e envolvimento com prostituição.
• Habilidades dos pais relacionadas a: a) características interpessoais
dos pais, como grau de depressão, nível instrucional, experiências intergeracionais
aprendidas sobre habilidades parentais, incluindo expectativas culturais; e b)
qualidade do relacionamento conjugal, temperamento da criança, fontes de apoio
disponíveis, incluindo recursos e rede de apoio social (Aiello & Buonadio, 2003;
Santos, 2001; Turnbull & Turnbull, 1990; Williams, 2003) e baixa escolaridade dos
pais, famílias numerosas, ausência de um dos pais, depressão materna, abuso de
drogas (Barnett, 1997; Fox & Benson, 2003; Guralnick, 1998)
A professora Gomide (2003) apresenta como fatores de risco vinculados
ao desenvolvimento do comportamento antissocial de crianças e adolescentes aquilo
que ela chama de práticas educativas negativas:
• negligência - ausência de atenção e afeto;
• abuso físico e psicológico - disciplina por meio de práticas corporais
negativas, ameaça ou chantagem de abandono ou humilhação do filho;

501
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• disciplina relaxada - relaxamento das regras estabelecidas;


• punição inconsistente - pais que se orientam pelo seu humor para punir
ou reforçar e não pelo ato praticado;
• monitoria negativa - excesso de instruções independente de seu
cumprimento, o que gera um ambiente de convivência hostil.
E com relação à realidade brasileira, o Ministério da Saúde (2002) aponta
como fatores de risco à ocorrência de violências contra crianças e adolescentes
relacionados às famílias:
• famílias baseadas em uma distribuição desigual de autoridade e poder;
• famílias nas quais não há uma diferenciação de papéis, levando ao
apagamento de limites entre os membros;
• famílias com nível de tensão permanente, manifestado por dificuldades
de diálogo e descontrole da agressividade;
• famílias nas quais não há abertura para contatos externos;
• famílias nas quais há ausência ou pouca manifestação positiva de
afeto entre pai/mãe/filho;
• famílias que se encontram em situação de crise, perdas (separação do
casal, desemprego, morte, etc).
O mesmo texto apresenta ainda fatores de risco relacionados às crianças,
tais como: falta de vínculo parental nos primeiros anos de vida, distúrbios evolutivos,
crianças separadas da mãe ao nascer por doença ou prematuridade, crianças
nascidas com malformações congênitas ou doenças crônicas (retardo mental,
anormalidades físicas, hiperatividade), baixo desempenho escolar e evasão.
A literatura aponta mais fatores de risco do que fatores de proteção.
Contudo, podemos citar Maia e Willians que encontraram em Garmezy (1985) três
categorias de fatores que protegem o desenvolvimento infantil e são as seguintes:
• características da família - coesão, afetividade e ausência de discórdia
e negligência;
• atributos disposicionais da criança - atividades, autonomia, orientação
social positiva, autoestima, preferências;
• fontes de apoio individual ou institucional disponíveis para a criança e a
família - relacionamento da criança com pares e pessoas de fora da família, suporte

502
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cultural, atendimento individual como atendimento médico ou psicológico,


instituições religiosas, etc.
Com relação aos fatores de proteção familiares, apontam as práticas
Parentais Positivas, que compreenderiam bom funcionamento familiar, existência de
vínculo afetivo, apoio e monitoramento parental (Reppold et al., 2002). Gomide
(2003) discorre mais sobre as práticas parentais positivas e as descreve:
• uso adequado da atenção e distribuição de privilégios, o adequado
estabelecimento de regras, a distribuição contínua e segura de afeto, o
acompanhamento e supervisão das atividades escolares e de lazer;
• comportamento moral que implica no desenvolvimento da empatia, do
senso de justiça, da responsabilidade, do trabalho, generosidade e no conhecimento
do certo e do errado quanto ao uso de drogas, álcool e sexo seguro.
Kumpfer e Alvarado (2003) acrescentam ainda ambiente familiar positivo
como fator de proteção, o qual seria o relacionamento positivo entre pais e filhos,
com supervisão e disciplina consistente e comunicação dos valores familiares.
Maia e Williams (2005) apresentam também os fatores de proteção
apresentados pela criança em autores como Rae-Grant, Thomas, Offord e Boyle
(1989) que apontam o temperamento positivo, a inteligência acima da média e a
competência social (que pode ser observada em realização acadêmica, participação
e competência em atividades, habilidade de se relacionar facilmente, elevada
autoestima e senso de eficácia) como fatores de proteção, ou seja, diminuem o risco
de haver problemas de desenvolvimento. Werner (1998) cita que crianças que
possuem senso de eficácia e autocompetência socialmente mais perceptivos do que
seus pares, são capazes de despertar atenção positiva das outras pessoas, o que
lhes confere vantagens, bem como quando as mesmas possuem habilidades de
resolução de problemas, habilidade de solicitar ajuda de outras pessoas quando
necessário e possuem a crença de que podem influenciar positivamente o seu
ambiente.
Por fim, os fatores de proteção da comunidade, que segundo Rae-Grant,
Thomas, Offord e Boyle (1989), dizem respeito aos relacionamentos que a criança
apresenta com seus pares (fora da família), com outros adultos significativos e com
instituições com as quais ela mantenha contato. Werner (1998) descreve um pouco
mais estes adultos significativos e instituições da seguinte forma:

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• Vínculo afetivo com um cuidador alternativo (avós ou irmãos): pessoas


de suporte importante nos momentos de estresse promovendo a competência, a
autonomia e a confiança da criança;
• Crenças religiosas: oferecem a convicção de que suas vidas possuem
um sentido e um senso de enraizamento e de coerência;
• Amigos e escola: além do suporte emocional das amizades, os
professores podem vir a ser um modelo positivo de identificação pessoal para uma
criança em risco.

FATORES DE RISCO E PROTEÇÃO NA AVALIAÇÃO SOCIAL

No que diz respeito aos riscos e à proteção a serem considerados nos


estudos sociais sobre infância e adolescência entende-se uma situação complexa
que vai além do contexto restrito das práticas internas das famílias, englobando o
impacto de aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais e jurídicos.
Em nossa discussão no grupo entendemos que devido a complexidade do
tema foi importante levantar algumas abordagens que permitiram uma reflexão mais
ampla sobre os conceitos de risco e proteção.
Especificamente no âmbito do Serviço Social existem diversas
abordagens sobre o tema, por vezes complementares, por vezes divergentes, mas
que trazem a necessidade em pensar os conceitos de risco e proteção através de
uma análise da realidade socioeconômica e sua articulação no contexto familiar e
comunitário.
Sendo assim, a reflexão nesse texto pontuou discussões que acreditamos
necessárias a serem consideradas nas avaliações sociais referindo-se aos fatores
de risco e proteção: a compreensão das expressões da questão social, os direitos
fundamentais da criança e do adolescente, a efetividade ou não desses direitos
através da proteção social, os aspectos sobre vulnerabilidade, cultura e
territorialidade.

• Uma abordagem sobre as expressões da “questão social” no


âmbito do Serviço Social: Corroborando com Neto (2007), entendemos que o
Serviço Social é uma profissão que tem uma prática institucionalizada, é socialmente

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legitimada, legalmente sancionada e possui vinculação intrínseca com a “questão


social”. A profissão está intrinsicamente relacionada com as mazelas próprias e
constitutivas do modo de produção capitalista, principalmente em sua fase de
industrialização e urbanização e, portanto, à “questão social”.
A questão social não é senão a expressão do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e seu ingresso no cenário político da sociedade,
exigindo o seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado.
É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a
burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade
e da repressão. O Estado passa a intervir diretamente nas relações entre o
empresariado e a classe trabalhadora, estabelecendo não só uma regulamentação
jurídica do mercado de trabalho, através da legislação social e trabalhista
específicas, mas gerindo a organização da prestação de serviços sociais, como um
novo tipo de enfrentamento da questão social. (Iamamoto, 2008).
Nesse sentido, Behring (2009) traz a “questão social” como expressão
das contradições inerentes ao capitalismo, que promove a expansão do exército
industrial de reserva, e o desafio do assistente social é o de fortalecer o componente
de ruptura com as expressões dramáticas da “questão social” na realidade brasileira,
com o que o Serviço Social se depara no cotidiano de trabalho.
A prática profissional é sempre colocada como dependente do
fundamento científico do Serviço Social e decorrente da autoimagem construída do
Serviço Social, o qual Netto (2007) nos elucida que o estatuto científico do Serviço
Social é esta profissão estar inserida na divisão social e técnica do trabalho. Afinal, a
demanda da intervenção profissional é determinada pelas necessidades sociais –
conjuntura – e independe do saber profissional, apesar de ser este saber que
determina a intervenção profissional.
Tendo isso em consideração, entendemos que o conceito fatores de risco
e risco social são utilizados e colocados em pauta a partir de pressupostos
individuais e que desconsideram a dimensão de totalidade da vida social e que esta
perpassa por múltiplas determinações, para além apenas das decisões e “fracassos”
individuais, inclusive por considerar a liberdade como valor central e que esta é
pautada nas escolhas dentro das condições objetivas possíveis.

505
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A teoria do Risco Social articula-se a esta discussão, à medida que


oferece sustentação a uma intervenção pública voltada para as situações de
exceção e para uma focalização das ações nos segmentos pauperizados da
sociedade. [...] Reafirma-se, então, a proteção do Estado como focal, pontual e
mínima e negam-se as concepções de proteção e universalização firmadas no
âmbito jurídico. (Martins, 2012).
Ao considerarmos o risco social como elementos potenciais passíveis de
efetivação ou não efetivações, a partir de uma ação humana deliberada, retiraram a
dimensão social da vida, e afirmamos que os indivíduos possuem controle sobre
suas vidas e decisões, e que não há determinações que extrapolam as vontades, e
“Além da responsabilização do sujeito há uma clara desqualificação das instituições
de proteção social, que são vistas como ineficientes nesse novo momento [...].”
(Martins, 2012).
Ainda mais no contexto do avanço neoliberal, com sua natureza
regressiva, contrarreformista e contrarevolucionária que promove
desregulamentação dos direitos e o corte de gastos públicos na área social,
causando desigualdade econômica, política, social e cultural, observa-se milhares de
pessoas sem acesso aos mínimos sociais, sendo avaliados cotidianamente como
uma população em risco, ocorrendo, paradoxalmente, a regressão das
possibilidades de superação deste contexto, quando o poder público e as políticas
não propõem formas de superação, antes disso, ensejam a agudização deste
panorama.
Behring, 2011 aponta que a trajetória recente das políticas sociais
brasileiras enveredou pelos caminhos da privatização para os que podem pagar, da
focalização/seletividade e políticas pobres para os pobres, e da descentralização,
vista como desconcentração e desresponzabilização do Estado.
Neste panorama, observa-se o aumento da responsabilidade feminina,
com ingresso no mercado de trabalho em atividades mal remuneradas e jornadas
estafantes, sendo identificado que os aspectos de classe, raça e gênero acentuam
as diferenças sociais e acesso a serviços e direitos.
Além disso, as altas taxas de analfabetismo, reprovação escolar, evasão,
aprovação automática, fazem com que importante parcela da população não tenha
condições de re/inserção em atividades laborais que exigem cada vez mais

506
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profissionalização e especialização em contraponto às baixas remunerações,


empurrando parte da população pobre para as atividades informais ou autônomas,
aumentando a precariedade do trabalho.
Behring (2011) aponta, ao analisar o Radar Social, um documento
produzido pelo IPEA em 2005, que quanto ao aspecto saúde, há dificuldades de
acesso relacionadas à condição de pobreza e o aumento de óbitos por causas
externas, sobretudo nos homens jovens, em conflito entre pares ou com as forças de
segurança.
Quanto à moradia, em virtude da concentração da população nas grandes
cidades, com poucas ofertas de habitações populares, ocorrendo ocupações
informais e irregulares e residências superlotadas, o estudo identificava que 28,5%
não tinham acesso simultâneo a serviços de água, esgoto e coleta de lixo. Essa
violência “de cima” é composta de três elementos explosivamente combinados: o
desemprego, o exílio em bairros decadentes e a estigmatização na vida cotidiana,
em geral associada às dimensões étnico-raciais e de gênero. Behring, 2011).
Esta violência expressa pelas condições objetivas da realidade social é
tratada por Faleiros (1998) como a defesa e manutenção da ordem estabelecida e
que seu fundamento está em obediência e submissão, bem como não está em
garantir direitos humanos, mas em fortalecer as relações de poder da classe
dominante. Nesse sentido, a ordem não é a justiça (aliás apresentada como cega),
mas a injustiça da força na manutenção da desordem da desigualdade, reforçada
pelo descaso e pela exploração dos mais frágeis.
Em nossas avaliações sociais essas reflexões devem ser contempladas
para evitar o risco de reproduzirmos as falhas da proteção do Estado em
intervenções culpabilizadoras e punitivas às famílias, restritas a uma avaliação
moralista.
• Direitos Fundamentais da Criança e Adolescente: as crianças e
adolescentes no ordenamento jurídico brasileiro obtiveram atenção especial e
consequentemente garantia de direitos por intermédio da Constituição da República
de 1988 que introduziu a Doutrina da Proteção Integral. Neste período histórico, os
legisladores consideraram a importância da proteção à população infantojuvenil, até
então, às margens das garantias legislativas, para o futuro de nossa sociedade.

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Na perspectiva de proporcionar a estes sujeitos os direitos inerentes à


peculiar fase de pessoas em desenvolvimento, formulou-se o Estatuto da Criança e
do Adolescente, Lei nº 8069/1990. Tal diploma, em consonância com a Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, a Constituição Federal, e o Código Civil,
representam um sistema de atenção, proteção e garantia de direitos às crianças e
aos adolescentes.
Através da participação da família, da comunidade, da sociedade em
geral, e do poder público cria-se um microssistema de prioridade de atendimento
com finalidade absoluta de alcance do melhor interesse das crianças e
adolescentes, proporcionando-lhes um desenvolvimento sadio e integral, em
condições de liberdade e dignidade.
Preconiza-se que “o melhor interesse” das crianças e adolescentes que
fundamentam as ações dos atores envolvidos prevalecerá sobre quaisquer outros
direitos, inclusive dos pais, quando tratar-se de questões parentais, e, igualmente,
prevalecem sobre os interesses do Estado e da sociedade quando presentes
omissões ou violações que prejudiquem o desenvolvimento integral do indivíduo. Na
efetivação desta premissa, o Estado apresenta-se como articulador e fiscalizador
das políticas públicas que envolvem as crianças e adolescentes atuando na
prevenção dos fatores de riscos aos seres em desenvolvimento e na promoção dos
fatores de proteção a este público.
As diretrizes apresentadas pela Convenção Internacional dos Direitos da
Criança foram ratificadas pelo Brasil através do Decreto 99.710/90, sendo seus
preceitos já considerados pela Constituição de 1988 para conferir às crianças e aos
adolescentes atenção especial. Diante de tal posicionamento legislativo, a doutrina
da situação irregular adotada no extinto Código de Menores que considerava o
binômio abandono-delinquência para identificar o indivíduo menor de idade incapaz
de se adequar à vida em comunidade, seja por ter sido abandonado por seus
familiares seja por ser autor de práticas de delinquência, deixa de ser válida (Pereira,
2000). As vulnerabilidades sociais a que eram expostas crianças e adolescentes
passam a ser vistas num contexto ampliado, não mais individualizado, ocultado ou
meramente punitivo.
O artigo 227 da Constituição da República concentra os direitos
fundamentais das crianças e adolescentes. Sob o comando da absoluta prioridade,

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tal dispositivo apresenta a determinação de priorização destes seres, em toda e


qualquer ocasião. O referido diploma identificou como direitos fundamentais da
criança e do adolescente: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(Constituição Federal, 1988).
Um dos direitos fundamentais atribuídos aos seres humanos e em
condições especiais às crianças e adolescentes: a garantia à vida e à saúde busca
oportunizar ao ser, do nascimento ao desenvolvimento, condições satisfatórias de
existência bem como dignidade, incluindo nesta garantia a atuação de políticas
sociais públicas na obtenção da proposta de proteção (Nucci, 2017.)
Ao analisar a dignidade da pessoa humana e o núcleo familiar Lôbo
(2011) preleciona: “A dignidade da pessoa humana é o núcleo existencial que é
essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do
gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade”.
O direito à convivência familiar é um direito fundamental
constitucionalmente garantido às crianças e adolescentes (Constituição Federal,
1988). A família enquanto união de indivíduos interligados por vínculos afetivos,
inseridos em um ambiente de parentalidade e conjugalidade proporciona aos seres
em desenvolvimento condições de sobrevivência, bem como oportuniza as primeiras
referências de sociabilidade (Ramos, 2016).
A família apresenta-se como fundamental à sociedade, motivo pelo qual o
Estado se mobiliza para que os seres em desenvolvimento permaneçam
intrinsecamente associados ao seu contexto familiar e comunitário, excepcionando,
a colocação em família substituta como possibilidade de garantia ao direito
fundamental, na esteira do Estatuto da Criança e do adolescente. Neste contexto
que se identificam ocorrências de fatores de riscos e fatores de proteção que
incidem diretamente no pleno exercício dos direitos fundamentais dos seres em
desenvolvimento.
Nesse sentido torna-se necessária uma avaliação sobre as políticas de
atenção voltadas às famílias e às crianças, principalmente daquelas oferecidas pela
Política Nacional de Assistência social, pois esta refere-se à ação pública, dirigida a

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todos, responsável direta por criar soluções e respostas para prover as


necessidades de proteção social da população e garantia dos direitos anteriormente
citados.
Os conceitos de risco e proteção abrangem a garantia de direitos das
famílias pela proteção oferecida pelo Estado que é concretizada em políticas e
serviços públicos, consequentemente, a falha ou precarização desses afetam
diretamente as famílias.
• Proteção Social: A abordagem sobre a Proteção Social nesse estudo
retomará brevemente o conceito trazido pela Política Nacional de Assistência Social
de 2004, pautada nos preceitos da Constituição de 1988, que garante proteção
social não contributiva, ou independente de contribuição, a famílias e indivíduos em
situação de vulnerabilidade e risco social.
As vulnerabilidades sociais referenciadas pela Política de Assistência
social não se restringem às condições de pobreza, mas englobam, igualmente,
vitimizações, fragilidades e contingências que o(a) cidadão (a) e sua família
enfrentam na trajetória de seu ciclo de vida, em decorrência de condicionantes
sociais, econômicos e políticos. Nesse sentido, as vulnerabilidades sociais estão
relacionadas a situações de precarização da vida da classe trabalhadora, ao
empobrecimento material para a manutenção da sobrevivência, assim como a
dificuldades relacionais e culturais.
As vulnerabilidades, em síntese, se referem à densidade e intensidade de
condições que as pessoas e famílias apresentam para reagirem e enfrentarem
riscos, ou ainda, para conseguir ter algum controle e sofrer menos danos face ao
risco. Considerando essa compreensão das vulnerabilidades, compreende-se que a
proteção social garantida pela assistência social não deve se restringir apenas à
redução das condições de pobreza, mas também afiançar seguranças sociais. A
proteção social está relacionada aos acessos e garantias, correspondendo a ações e
serviços a serem executados no aspecto preventivo e ao enfrentamento de
situações de vulnerabilidade e risco.
A Política Nacional de Assistência Social – PNAS-2004 afirma que a
proteção social deve afiançar: segurança de sobrevivência (de rendimento e de
autonomia), segurança de acolhida, segurança de convívio (convivência familiar).

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Traz a organização das ações em dois níveis de proteção: Proteção Social Básica e
Proteção Social Especial.
Em termos da Básica, refere-se a serviços que potencializam a família
como unidade de referência, fortalecendo seus vínculos internos e externos de
solidariedade, através do protagonismo de seus membros e da oferta de um
conjunto de serviços locais que visam à convivência, à socialização e ao
acolhimento, em famílias cujos vínculos familiar e comunitário não foram rompidos,
bem como através da promoção da integração ao mercado de trabalho. A Proteção
Social Especial, por sua vez, opera com um conjunto de ações voltadas para o
atendimento de indivíduos e famílias com direitos violados, em situação de risco
pessoal e social por ocorrência de maus tratos, abuso e exploração sexual, trabalho
infantil, entre outros.
Sposati (2009) explica que o sentido de proteção supõe defesa e tem um
“caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida – supõe apoio, guarda,
socorro e amparo. Este sentido preservacionista é que exige tanto as noções de
segurança social como de direitos sociais”. A autora complementa que a política de
proteção social corresponde à vigilância social e defesa de direitos.
A política privilegia a família como unidade fundante a ser fortalecida,
porém seu modelo de operacionalização na Proteção Básica privilegia serviços de
fortalecimento de vínculos em que a família é segmentada artificialmente por faixas
etárias. Como coloca Sposati (2009) “a dimensão socioeducativa dos serviços de
proteção social está articulada por ciclo de vida e não pelo pertencimento à
vulnerabilidade familiar. No caso estão conectados à ideia de vulnerabilidade
pessoal”. Quando se trata da Proteção Especial, a estratégia nos serviços de alta
complexidade supõe a ausência da família, o que não corresponde à verdade.
Embora a conceituação da proteção social trazida pela Política Nacional
de Assistência social seja abrangente e se relacione diretamente com os direitos
sociais, observam-se na realidade sérias dificuldades e até mesmo entraves para
sua efetiva concretização e ampla cobertura dos riscos, bem como para sua
contribuição ao enfrentamento da desigualdade social.
Outro aspecto que se relaciona sobre a oferta e efetivação das políticas
públicas e seus programas, serviços e projetos é a territorialidade, correspondendo
as diferentes realidades dos vários espaços de vivência das famílias.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na perspectiva de um atendimento voltado para a garantia de direitos e


proteção social da população, a territorialização é uma vertente que, além de estar
prevista na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), é importante e
necessária para a organização dos trabalhos executados pelas três esferas de
governo, considerando especialmente a heterogeneidade e a desigualdade
socioterritorial. Embora a priorização dos serviços, programas e projetos sirva como
referência para garantir homogeneidade de atendimento, sua oferta ainda não se
mostra suficiente.
• Territorialidade: Quando falamos de política pública, ou seja, do
objeto das ações que visam à garantia de qualidade de vida e acesso aos diretos
básicos, utiliza-se delineamentos territoriais para identificar os problemas concretos
e as potencialidades para a superação deles a partir de um atendimento
descentralizado, porém, intersetorial. “O que Aldaíza Sposati tem chamado de
atender a necessidade e não o necessitado”.
Neste sentido, Koga (2003) afirma que os direcionamentos das políticas
públicas estão intrinsecamente vinculados à própria qualidade de vida dos cidadãos.
É no embate relacional da política pública entre governo e sociedade que se dará a
ratificação ou o combate ao processo de exclusão social em curso. Pensar na
política pública a partir do território exige também um exercício de revista à história,
ao cotidiano, ao universo cultural da população que vive neste território (...). A
perspectiva de totalidade, de integração entre os setores para uma efetiva ação
pública... vontade política de fazer valer a diversidade e a interrelação das políticas
locais.
Para garantir a realização de todo esse trabalho, importante destacar a
imprescindível elaboração de diagnósticos sociais, considerando diretrizes,
metodologias, formulação, implementação, execução, monitoramento e avaliação.
Apesar disso, “o esforço coletivo para a incorporação da dimensão territorial (...)
ainda não alcançou uma suficiente problematização que dê conta da magnitude de
seus significados para a apropriação, não apenas no âmbito conceitual, mas que
faça sentido para a prática da formulação, implementação e avaliação de políticas
que visem ao enfrentamento e prevenção de situações de vulnerabilidades e riscos
sociais (Lindo, 2010; Nascimento e Melazzo, 2013)

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Segundo Sposati (2013) é bastante enganoso nominar um equipamento


como serviço sem avaliar se ele possui, de fato, equipes habilitadas para seu
funcionamento. Como é enganoso, também, nominar serviços como equipamentos,
pois estes são edificações ocas de presenças. De fato, há muitas ocorrências de
desertificação de profissionais em muitos serviços. Por sua vez, pode-se verificar,
facilmente, que há inúmeros equipamentos que, dificilmente, se tornarão serviços,
uma vez que foram somente edificados, mas nunca entraram em funcionamento.
A universalização da proteção social deve ser contrária à automatização
de tarefas e a fragmentação do atendimento da população, o que indica mudanças
nas instituições e suas práticas, reforçando sempre a participação popular inclusive
em instâncias de decisão. Assim, a operacionalização da política de assistência
social em rede, com base no território, constitui um dos caminhos para superar a
fragmentação na prática dessa política (PNAS, 2004).
O trabalho deve se pautar nos desafios cotidianos em sua totalidade,
superando as formas fragmentadas e focalizadas não só de atendimento, mas
também da própria organização da política neste viés. “O território como base de
organização do sistema, cujos serviços devem obedecer à lógica de proximidade do
cidadão e localizar-se em territórios de incidência de vulnerabilidade e riscos para a
população” (BRASIL, 2005).
As ações da política de assistência social impactam em outras políticas
públicas, por isso a importância da interface de seu trabalho com outros segmentos,
que deve se pautar em ações territorialmente definidas, pois o território representa
muito mais do que espaço geográfico. Assim, o município pode ser considerado um
território, mas com múltiplos espaços intraurbanos que expressam diferentes
arranjos e configurações socioterritoriais. Os territórios são espaços de vida, de
relações, de trocas, de construção e desconstrução de vínculos cotidianos, de
disputas, contradições e conflitos, de expectativas e de sonhos, que revelam os
significados atribuídos pelos diferentes sujeitos (Brasil, 2008)
• Direitos, efetividade e articulação das políticas públicas. Quando
analisamos sob o ponto de vista técnico, a proteção integral de Crianças e
Adolescentes não nos parece que a ausência de acesso a direitos se dá por falta da
construção de leis que reconheçam a prioridade no atendimento destes sujeitos em

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

fase peculiar de desenvolvimento humano e social, mas sim pela efetivação destas
leis criadas, mediante Políticas Públicas eficazes e acessíveis a toda a população.
As leis existentes atenderiam as demandas, garantiriam direitos, porém
entre a criação e implementação, há um longo caminho a ser percorrido e muitas
vezes, a maneira como a lei entra em vigor para que se torne direito na vida do
sujeito, não atinge o fim especifico, pois se depara com vários fatores que seriam o
diferencial entre sua efetivação e ineficiência.
São vários os órgãos que atuam até que um direito seja garantido na vida
de uma criança, os quais muitas vezes nem sequer conversam entre si. O executivo
formula a lei, o legislativo cria a lei e o judiciário garanta que ela seja cumprida. A
existência de cada um é complementar à existência dos outros. Tudo estaria bem,
não fossem os interesses e a vontade política de cada um destes órgãos que muitas
vezes diverge dos demais e até mesmo de sua competência e atribuição.
Um exemplo: temos lei que prevê que toda criança em idade escolar
tenha garantida sua vaga numa unidade educacional, porém, muitas vezes esse
direito não é garantido e as famílias buscam judicialmente seu acesso. Até que o
sujeito receba a sentença, sobre a legitimidade ou não de seu pedido, leva-se
tempo, as instâncias tentam conversar, buscar alternativas (para o que já está
garantido na lei, que deveria somente ser aplicada) e muitas vezes, a resposta que a
família recebe é de que embora seja direito, não há recurso suficiente no momento,
para a construção de escolas, falta verba, então ainda que não atenda o melhor
interesse de uma criança, ela é matriculada numa unidade distante de sua
residência, num período em que seus pais não podem leva-la ou busca-la e
portanto, seu direito é violado, ele existe, mas não é eficaz na vida deste sujeito e
não promove a igualdade conforme estabelece as leis vigentes.
Se além desta falta de vaga escolar, a família vivencia outros dramas e
conflitos, como uma separação conjugal litigiosa, onde os pais esperam do judiciário
uma solução para seus problemas familiares. Nesse sentido, quando os adultos não
são capazes de encontrar alternativas viáveis a criança ou adolescente poderá
sofrer outras violações que prejudiquem seu desenvolvimento biopsicossocial.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONSIDERAÇÕES

A articulação entre os diversos atores dos diferentes serviços pode


permitir que as famílias tenham a resolutividade e direcionamento de suas
demandas. A escuta qualificada, os atendimentos eficientes e as intervenções
necessárias, conjuntamente com a eficácia dos serviços e das Políticas Públicas
possibilitam a efetivação dos direitos.
Em síntese, se as Políticas Públicas cumprissem com seu papel de
acesso e construção de uma sociedade mais justa, teríamos melhores possiblidades
de avaliar se ainda há ausência de direitos, se novas leis seriam necessárias para
que uma criança ou adolescente tenha as mesmas oportunidades que outros, ou se
o que está previsto é suficiente para que nenhuma criança ou adolescente seja
vítima, quer da Família, Estado ou Sociedade.
A compreensão do contexto geral do qual a criança e o adolescente
pertence evidencia os elementos importantes para análise dos fatores de risco e de
proteção a que está exposta. Desta forma, as avaliações psicossociais no âmbito do
Sistema de Justiça devem contemplar, de forma ampla, aspectos dinâmicos
presentes nos contextos em que os indivíduos estão inseridos, quais sejam, familiar,
social, histórico-cultural, econômico, territorial, entre outros. Nesse sentido, os
estudos psicossociais nas ações judiciais ao mesmo tempo em que demandam
pareceres em situações pontuais e por vezes extremas, propiciam novas
intervenções no que se refere às ações públicas e cumprem uma importante
contribuição social.

515
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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518
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

MODIFICAÇÃO DE GUARDA NAS VARAS DE FAMÍLIA:


DEMANDAS E DESAFIOS DA AVALIAÇÃO
INTERDISCIPLINAR

GRUPOS DE ESTUDOS DO INTERIOR – LIMEIRA


“O (DES)CUIDADO PARENTAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

519
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Juliana Vieira Von Zuben – Psicóloga Judiciário – 3ª Vara Criminal da Infância e
Juventude da Comarca de Limeira
Beatriz Oliveira Batista Simonetti – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e
Juventude Comarca de Rio Claro

AUTORAS
Adriana Negretti Cruz Campana – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rio Claro
Alice Rodrigues Gonzales Florentin – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Americana
Andressa Pin Scaglia Granata – Psicóloga Judiciário – Comarca de Brotas
Beatriz Oliveira Batista Simonetti – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e
Juventude Comarca de Rio Claro
Claudia Pereira de Lacerda – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rio Claro
Giselle Alice Martins Canton – Assistente Social Judiciário – Comarca de Limeira
Jessica Maiara Soares de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de Monte Mor
Juliana Vieira Von Zuben – Psicóloga Judiciário – 3ª Vara Criminal da Infância e
Juventude da Comarca de Limeira
Karina Kiill – Psicóloga judiciário – Comarca de Ribeirão Bonito
Miriam Bratfisch Villa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa trazer à luz questões relacionadas à modificação


de guarda que ocorre no contexto das Varas de Família. A escolha do tema a ser
trabalhado pelo “Grupo de Estudos da Comarca de Limeira”, em 2019, originou-se
do desejo das técnicas forenses que o integram em aprofundar seus estudos sobre a
área da Família e dar sequência ao percurso trilhado dos estudos nos anos
anteriores.
A experiência profissional e as discussões técnicas ao longo dos estudos
e das avaliações psicossociais nas Varas de Família despertaram-nos o interesse
pelo levantamento da bibliografia científica que versa sobre tais situações, uma vez
que, quando são identificados motivos relevantes para a sugestão de uma
modificação de guarda, a efetivação da mesma também implicará em
desdobramentos significativos na vida da criança/adolescente, que terá sua rotina
modificada expressivamente.
Os encontros desenvolveram-se na perspectiva teórico-metodológica
referenciada nas diferentes experiências e práticas profissionais cotidianas das
integrantes do grupo e em material levantado através de pesquisa bibliográfica.
O grupo construiu questões norteadoras que direcionaram o que foi
estudado ao longo do ano: Quais seriam os motivos identificados numa avaliação
que ensejariam a sugestão técnica para a modificação da guarda? Quais benefícios
e quais prejuízos ela pode trazer para a criança? O que a literatura aponta sobre tal
medida?
Foi observada escassez de produções científicas que discorram sobre o
tema, principalmente com referenciais da Psicologia e do Serviço Social. Diante
disso, as reflexões realizadas pelo grupo de estudos foram amparadas pela prática
profissional e tecidas com temas transversais.
Este estudo encontra-se organizado em seis partes: Introdução; Guarda:
Papel dos Pais e do Estado, a qual discorre sobre a evolução histórica da
compreensão e da atribuição da guarda no Brasil, a definição dos tipos de guarda,
os limites da intervenção do Estado; “Motivos Ensejadores da Modificação de
Guarda”, na qual são apresentados e discutidas algumas categorias que lançam luz
sobre as causas ensejadoras da modificação de guarda; “Desafios e Demandas da
Avaliação Psicossocial em Casos de Disputa de Guarda”, que discute as
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

especificidades da atuação profissional nos casos que envolvem modificação de


guarda, e; Considerações finais e Bibliografia.

1 - GUARDA: PAPEL DOS PAIS E DO ESTADO

Historicamente a regulamentação jurídica sobre a guarda dos filhos


remonta ao direito romano, no qual se denominava de “pater famílias” ou “pátrio
poder” a autoridade parental concedida ao ancião do sexo masculino sobre toda sua
linhagem. Conforme Venosa (apud Gomes, 2015):

[...] o pater famílias é o condutor da religião doméstica, o que explica


seu aparente excesso de rigor. O pai romano não apenas conduzia a
religião, como todo o grupo familiar, que podia ser numeroso, com
muitos agregados e escravos. Sua autoridade era fundamental,
portanto, para manter unido e sólido o grupo como célula importante
do Estado. De fato, sua autoridade não tinha limites e, com
frequência, os textos referem-se ao direito de vida e morte com
relação aos membros de seu clã, aí incluídos os filhos. O pater, sui
juris, tinha o direito de punir, vender e matar os filhos, embora a
história não noticie que chegasse a este extremo. Estes, por sua vez,
não tinham capacidade de direito, eram alieni juris. O patrimônio era
integralmente do pai. Os filhos não tinham bens próprios. Essa
primeira concepção romana vai se abrandando com o tempo.
Permite-se por exemplo, que o filho adquira o pecúlio castrense,
propriedade de bens adquirida e decorrente de atividade militar.
Outros pecúlios vão sendo paulatinamente permitido ao filius
familiae. (2010, p. 303)

Nos moldes desse ordenamento jurídico, o Código Civil de 1916 seguiu


assegurando o pátrio poder exclusivamente ao marido, tido como chefe da
sociedade conjugal, e somente em sua falta, impedimento ou indisponibilidade o
atribuía à esposa. Contudo, a mulher só dispunha do pátrio poder se estivesse na
condição de viúva, pois ao contrair um novo casamento o poder familiar lhe era
novamente retirado.
Apenas com a Constituição Federal de 1988 houve o princípio da
igualdade jurídica entre homens e mulheres, em seu art. 5º, inciso I, ratificando a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

equidade de direitos e obrigações entre os cônjuges no tocante ao poder familiar


sobre os filhos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição. (BRASIL, 1988)

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA,1990), consoante à Carta


Magna, alterou a nomeação “pátrio poder” para poder familiar, bem como sua
interpretação, fazendo com que este deixasse de ser atribuído com a finalidade de
dominação e posse, adquirindo o sentido de proteção, diante do qual passaram a
caber aos pais mais deveres e obrigações para com a proteção integral de seus
filhos do que direitos:

Art. 21.O poder familiar será exercido, em igualdade de condições,


pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil,
assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância,
recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da
divergência.
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação
dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a
obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos
iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na
educação da criança, devendo ser resguardado o direito de
transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os
direitos da criança estabelecidos nesta Lei. (BRASIL, 1990)

Nestes termos, conforme lições de Maria Berenice Dias, podemos


compreender o poder familiar para além de um conjunto de direitos e obrigações dos
pais em relação aos filhos menores, mas também como noção de poder-função ou
dever-direito que embasa normas da teoria funcionalista do direito de família, visto
ser o poder exercido pelos genitores para atender aos interesses dos filhos
(ANTUNES, MAGALHAES, FERES-CARNEIRO, 2010).
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em sendo um conjunto de direitos e deveres impostos aos pais em


relação aos filhos menores, o exercício do poder familiar encontra-se sujeito à
interferência incisiva do Estado no sentido de delimitar e disciplinar diante do Código
Civil o rol de poderes conferidos aos pais e seu campo de atuação.
O Código Civil, em seu artigo 1513, retrata que: “É defeso a qualquer
pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão da vida instituída pela
família”. Isto posto, temos que é direito dos pais o controle sobre a família, contudo,
cabe também ao Estado o papel de formular e executar a política de atendimento
aos direitos da criança e do adolescente, juntamente com a sociedade, controlando
excessos na atuação dos pais ou omissões quanto ao disposto em lei.
O referido Código defende que, apesar de ser dever do Estado intervir no
âmbito das relações familiares para garantir a proteção dos indivíduos, em especial
de crianças e adolescentes, tal intervenção deve ocorrer de forma moderada,
apenas para garantir a vontade dos membros da família e o atendimento das
necessidades dos filhos menores de idade ou dependentes, sob a ótica da proteção
do interesse existencial destes, sem interferir no âmbito da autonomia privada, ou
seja, o Estado deve funcionar como garantidor da realização pessoal de seus
membros.
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a perda ou suspensão do
poder familiar em situações específicas, se comprovadas irregularidades,
negligências, abandono e abusos no exercício da autoridade parental.
A suspensão do poder familiar pode ocorrer e configura-se pela retirada
temporária deste poder dos responsáveis, de forma judicial, provocada pelo
Ministério Público ou por quem tenha legítimo interesse. Já a destituição do poder
familiar corresponde à perda em definitivo desta autoridade, geralmente decorrente
de comportamentos graves culposos e dolosos dos genitores (BERBERIAN, 2015),
como castigos imoderados, abandono, negligências e reiteradas faltas autorizadoras
da suspensão do poder familiar.
O Código Civil (2002) prevê a extinção do poder familiar por morte dos
pais ou do filho, pela emancipação, pela maioridade ou, ainda, pela adoção deste.
Depreende-se que a legislação vigente salvaguarda a integridade física e
psíquica da criança e do adolescente, primando pelo bem estar dos mesmos,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

podendo lançar mão da revisão do poder familiar, se necessário for, em prol da


garantia do melhor interesse daqueles.
Nas Varas de Família, tendo em vista a primazia da proteção integral da
criança e do adolescente assegurada pela legislação, deixou-se de atribuir a guarda
dos filhos baseando-se na identificação do suposto culpado pelo divórcio,
preconizando-se a atribuição da guarda ao genitor que apresentasse melhores
condições de exercê-la, levando-se, ainda, em conta o favorecimento da convivência
do filho com o não guardião e sua família.
Atualmente, tem-se como norma legal vigente que, sempre que possível,
a guarda será deferida na modalidade compartilhada como forma de garantir maior
equilíbrio e equidade na convivência familiar, no exercício da autoridade e das
responsabilidades parentais, possibilitando a participação efetiva de ambos os pais
não só na criação, mas na formação da personalidade do filho com duplo referencial,
através de ampla convivência deste com as duas linhagens.
A guarda não se confunde com o poder familiar, visto que são institutos
independentes, embora ambos estejam entrelaçados. A guarda é um atributo do
poder familiar, mas que dele se separa e diz respeito à permanência da criança ou
adolescente junto a um determinado responsável, isto é, sua posse de fato,
enquanto que o poder familiar é o conjunto de direitos e deveres dos pais em relação
aos filhos.
O ordenamento jurídico vigente aponta para a existência de quatro tipos
de guarda: a deferida à família substituta prevista no ECA; a guarda natural exercida
por ambos os pais na constância do casamento ou união estável, proveniente do
poder familiar; a guarda unilateral; e a guarda compartilhada; tratadas no Código
Civil, sendo as duas últimas detalhadas abaixo.
A guarda unilateral consiste na responsabilidade atribuída a um dos
genitores ou a alguém que o substitua. A guarda compartilhada compreende a
responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres por ambos os
genitores, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns, ainda que se fixe a
residência da criança junto a um deles.
A condição para a manutenção da guarda está intrinsecamente
relacionada à observação e exercício das atribuições e deveres preconizados
legalmente na Carta Magna Constitucional (1988) e no ECA (BRASIL, 1990), a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

saber: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos
menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer
cumprir as determinações judiciais” (art.22).
Além disso, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, prescreveu
amplos deveres à família, à sociedade e ao Estado, objetivando assegurar à criança
e/ou adolescente com absoluta prioridade os direitos à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, à liberdade, à convivência familiar e
comunitária e o direito de colocar a criança a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Vários são os princípios norteadores presentes na Constituição Federal
de 19/88, dentre eles, destaca-se o princípio da dignidade da pessoa humana,
entendendo-se que o atendimento ao referido dispositivo legal é atribuição inerente à
guarda e, por conseguinte, ao poder familiar, diante do que, impõe-se como princípio
do melhor interesse da criança e do adolescente.
Desta forma, observa-se que o guardião possui atribuições, deveres a
cumprir inerentes à guarda e ao próprio exercício do poder familiar. Assim, o
descumprimento de quaisquer dessas responsabilidades pode causar ou acirrar o
litígio entre as partes, bem como ensejar o pleito de modificação da guarda,
recorrendo-se ao Estado, através do Judiciário.

2 - MOTIVOS ENSEJADORES DA MODIFICAÇÃO DE GUARDA

A modificação de guarda, como já observado, está prevista legalmente e


inúmeras ações movidas no âmbito judiciário versam sobre tal medida, sendo o seu
reexame realizado em ação própria, cabendo ao juiz decidir com base no seu
convencimento e nas provas juntadas aos autos.
A literatura dispõe de pouca produção sobre os motivos ensejadores para
modificação de guarda, assim, por meio de pesquisa bibliográfica e da experiência
cotidiana de trabalho, emergiram temáticas que foram avaliadas como estratégicas
para serem observadas nos estudos e avaliações realizadas por profissionais do
setor técnico do judiciário, tais como: legislação, violência, violação de direitos,
alienação parental, garantia de convivência familiar, judicialização de conflitos
familiares, litígios intermináveis, parentalidade versus conjugalidade.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os estudos psicológicos e sociais que discorrem sobre a modificação de


guarda são de natureza complexa, pois, apesar da vigência das leis que tratam
sobre o tema, as causas ensejadoras da modificação são de cunho subjetivo e,
portanto, passíveis de receberem diferentes interpretações, assim como, suscetíveis
ao senso moral e ao juízo de valor dos operadores de direito e dos demais
profissionais envolvidos.
Algumas situações apresentam elementos concretos de
violência/violações de direitos que ensejam a alteração da guarda. Entretanto,
muitas vezes a violência é silenciosa, as relações intersubjetivas complexas e a
criança envolvida em um pacto de silêncio.
Todos os tipos de violência à criança e/ou adolescente constituem
violação aos direitos inerentes a esta população, tal como citados nas legislações
vigentes que abarcam o tema: Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Civil e
Constituição Federativa.
Em relação aos tipos de violência, tem-se como mais difícil de ser
visualizada e, portanto, que ocorre de forma mais velada, a violência psicológica,
que deixa marcas tão ou mais fortes na vida dos sujeitos quando comparadas às
outras modalidades de agressões.
Como já descrito no capítulo anterior, a legislação brasileira define
atribuições e deveres ao guardião e o descumprimento de tais responsabilidades
pode acarretar alterações na guarda da criança e do adolescente.
Neste sentido, à guisa de ilustração, o filme Pais e Filhas (2015), dirigido
pelo italiano Gabriele Muccino, foi assistido e discutido pelo grupo, que identificou no
enredo algumas alegações utilizadas em tais pleitos, como questões relativas à
saúde mental do guardião e suas condições socioeconômicas. O roteiro se divide
entre duas temporalidades: o passado, em que um ilustre novelista sofre um
acidente de carro, do qual sai viúvo e com sequelas de saúde, precisando disputar a
guarda de sua filha com os tios maternos da criança; e o presente, em que sua filha
é adulta e sofre as consequências em sua vida pessoal das marcas emocionais que
tais vivências lhe trouxeram. Diante das discussões e reflexões sobre tais questões
apresentadas, ponderou-se que os aspectos mencionados a respeito das condições
de um guardião devem ser avaliados com cautela, pois, na maioria das vezes, por si
só, não promovem necessariamente risco ao bem-estar e/ou afetam o

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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desenvolvimento da criança/adolescente. Não obstante, a disputa de guarda parece


impactar inevitavelmente sobre a vida e os relacionamentos da criança na fase
adulta.
Portanto, mesmo sendo alegadas justificativas objetivas para alteração de
guarda, outras questões podem estar subjacentes em tais pedidos, e para resolução
mais adequada da lide, é necessário verificar qual o contexto abrange aos
envolvidos, e a possível ocorrência de violações do direito.
Por tal motivo, ressalta-se a complexidade que envolve os estudos
psicológicos e sociais nas ações que tratam de modificação de guarda, visto que,
por apresentarem em sua maioria, aspectos subjetivos/intersubjetivos que remetem
às motivações, psicodinâmica das partes, dinâmicas relacionais e questões de
ordem emocional, os motivos ensejadores de modificação não são passíveis de
clara descrição ou especificação em leis.
Uma das poucas situações específicas em que a modificação de guarda é
medida prevista legalmente se refere à alienação parental, cuja lei 12.318/10
discrimina alguns atos que caracterizam tal prática, como o genitor guardião dificultar
a convivência do outro genitor com o filho, ou mesmo desqualificá-lo.
No entanto, autoras como Sousa e Bolognini (2017) e Barbosa e Castro
(2013) alertam sobre o risco de que dificuldades e impasses decorrentes do divórcio
possam servir como forma de patologizar ou vitimizar sujeitos envolvidos nas lides
processuais, sem levar em conta a complexidade das relações humanas, sendo
comum relatos de atos discriminados como indicativos de alienação parental.
Nesse sentido, a referida lei mostra-se controversa e trata de questões
subjetivas que necessitam de um olhar técnico especializado. Segundo Sousa
(2010), o profissional em sua prática não deve estar a serviço de uma lógica
punitiva, mas sempre considerar a dinâmica familiar, o contexto sócio histórico e,
principalmente, estar atento para que os direitos das crianças e adolescentes não
fiquem em último plano.
Contudo, de acordo com a legislação, se comprovada por perícia a prática
de tais atos, o juiz poderá determinar a alteração da guarda para a modalidade
compartilhada ou sua inversão, sendo que, caso a primeira se mostre inviável a
atribuição ou alteração da guarda dar-se-á por preferência ao genitor que viabiliza a
efetiva convivência da criança ou adolescente com o outro núcleo familiar.

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Dessa forma, a garantia de convivência familiar aparece entres os


argumentos utilizados para modificação de guarda. Como ilustram Brito e Gonçalves
(2013) em pesquisa realizada junto aos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e
Rio de Janeiro, ao analisarem decisões em que pedidos de guarda compartilhada
foram deferidos, observaram que as decisões se fundamentaram na importância e
benefícios para a criança da convivência com ambos os genitores.
É importante salientar que a maioria dos pedidos referentes à modificação
de guarda unilateral para a modalidade compartilhada foi negada, com a justificativa
de que não havia conduta desabonadora do guardião ou novo fato que justificasse a
medida, estando atreladas ainda à concepção de que mudanças na rotina da criança
seriam prejudiciais ao seu desenvolvimento.
Outras questões que parecem motivar pleitos de modificação de guarda
referem-se às relações intersubjetivas complexas, nas quais se confundem
conjugalidade e parentalidade, sendo os conflitos judicializados. Ocorrem situações
em que os genitores disputam a guarda dos filhos afetados pelos resquícios do
rompimento conjugal, cujas relações parentais, litígios intermináveis, reverberam na
criança que se vê imersa em um conflito de lealdade.
Antunes, Magalhães e Feres-Carneiro (2010) ilustram tal questão por
meio da análise de um caso, no qual os genitores mantiveram por anos disputas
judiciais e diversas modificações de guarda ocorreram neste período, motivadas por
questões da dinâmica relacional do casal.
A etapa jurídica da separação pode ser compreendida como um ritual de
passagem que firma concretamente a dissolução do relacionamento. Contudo, por
vezes, a sua marca simbólica não representa um corte vincular, mas contribui para a
perpetuação do vínculo aprisionador que sustenta litígios de longa duração entre as
partes.
Os sujeitos que protagonizam tal situação apresentam aspectos comuns,
tais como: alto grau de agressividade, postura refratária às intervenções e discurso
baseado na lógica adversarial. Não há respostas no referencial normativo para
conjugalidade conflituosa e a judicialização das relações se repete ao longo dos
anos (ANTUNES, MAGALHÃES e FERES-CARNEIRO, 2010).
O desafio profissional é o de atender ao princípio do melhor interesse da
criança/adolescente e também o da família. Para tanto, é preciso que todos

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possuam um lugar de escuta e de protagonismo no processo avaliativo. Ressalta-se


que, considerando a importância das figuras parentais para o desenvolvimento
infantil (WINNICOTT, 2005) a percepção de qual dos genitores poderá atuar como
facilitador para que a criança experiencie um duplo referencial familiar é um
elemento bastante relevante. Tendo como base a troca de experiências sobre o
trabalho técnico em varas de família, observa-se que isto geralmente ocorre com
aquele que consegue manter melhor comunicação com o outro genitor, sem permitir
que seus conflitos pessoais interfiram no contato entre a criança e o não guardião ou
genitor não residente.
Fávaro (2009) aponta que a intervenção do poder judiciário junto aos
indivíduos, famílias e grupos sociais, requer uma análise crítica sobre sua
caracterização enquanto intervenção do Estado na família. Tal intervenção
apresenta riscos e dificuldades, especialmente no que se refere ao estabelecimento
de limites entre o direito à proteção e o direito à privacidade, constituindo-se um
desafio ponderar sobre qual ação realizar e como empreendê-la, de maneira a
contribuir com a garantia da proteção à criança e ao adolescente e não como
ingerência na vida privada do sujeito ou da família, distorcendo o papel do Estado
enquanto detentor de um saber-poder direcionado pelo autoritarismo, pelo
moralismo pelo controle de comportamentos e atitudes.
Refletir sobre os limites da intervenção judiciária junto à família deve ser
uma prática constante no cotidiano dos setores técnicos a fim de se respeitar a
diversidade das configurações familiares e permitir que possam se organizar,
conforme as condições que possuem, tendo como objetivo principal o bem estar e a
proteção de seus membros, principalmente daqueles em situação de maior
vulnerabilidade.

3 - DESAFIOS E DEMANDAS DA AVALIAÇÃO PSICOSSOCIAL EM


CASOS DE DISPUTA DE GUARDA

Inúmeros desafios se colocam aos profissionais dos Setores Técnicos que


diariamente avaliam casos e situações envolvendo a possível modificação da guarda
de uma criança/adolescente, no contexto das Varas de Família.
As ações judiciais que envolvem esta temática apresentam conflitos de
interesses e podem se basear em três tipos de provas, a saber: documental,
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testemunhal e pericial. Aos setores técnicos do Judiciário cabe esta última, a qual
está pautada no código de processo civil, que prevê a nomeação de profissional
perito diante da necessidade de conhecimento técnico científico, objetivando
subsidiar a decisão judicial.
Neste sentido, a perícia social e/ou psicológica tem o intuito de oferecer
elementos para que os atores do campo jurídico compreendam os aspectos sociais
e dinâmicas psicológicas das famílias que estão envolvidas. (Suannes e Sousa,
2019).
Conforme descrito anteriormente, alguns casos apresentam motivos
previstos em lei ou indícios concretos de violência ou violações de direitos,
ensejando a modificação da guarda. No entanto, de acordo com a prática
profissional, observa-se que, em muitos casos, os elementos identificados que
justificariam a sugestão de modificação da guarda são de cunho subjetivo e há
pouca literatura científica sobre o tema.
Além disso, outro desafio que os profissionais enfrentam diante desse tipo
de demanda é que na maioria das vezes, apesar da importante mudança que
ocorrerá na vida da criança que terá sua guarda modificada, a continuidade do
acompanhamento do caso pouco ocorre, tanto em virtude de ele se configurar dentro
do Direito de Família, que prevê a intervenção mínima do Estado, quanto em virtude
dos próprios limites da rede executiva de serviços, em relação ao fortalecimento dos
vínculos familiares e redução dos conflitos no mesmo contexto.
No âmbito dos processos de modificação de guarda, conforme
mencionado, motivações objetivas e subjetivas estão em jogo, o que exige dos
peritos judiciais, assistentes sociais e psicólogos, um olhar interdisciplinar para o
objeto em questão. No Serviço Social, de acordo com Goes & Oliveira (p.110, 2019):

[...]aos profissionais cabe avaliar, considerando nossa particularidade


profissional, a contribuição vinculada ao projeto ético-político e a
apreensão e análise da dimensão social dos litígios de famílias, em
suas várias expressões[...]: transformações das famílias;
desigualdade de gênero presentes nas relações familiares; relação
entre guarda compartilhada e igualdade ou equidade parental; direito
das crianças e adolescentes à convivência familiar; alienação
parental ou óbices para a convivência com ambos os ramos
familiares enquanto expressão da questão social.

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A avaliação de aspectos subjetivos que poderiam ser apontados como


motivadores para modificação de guarda é uma árdua tarefa para o perito que tem a
responsabilidade de avaliar a família em questão. Tal desafio faz parte das
atribuições do psicólogo, segundo a definição do próprio Conselho Federal de
Psicologia:

A avaliação psicológica é um processo técnico e científico realizado


com pessoas ou grupos de pessoas. Se constitui em fonte de
informações de caráter explicativo sobre os fenômenos psicológicos
e, com finalidade de subsidiar os trabalhos nos diferentes campos de
atuação do psicólogo, dentre eles saúde, educação, trabalho e outros
setores em que ela se fizer necessária (CFP, 2007).

Assim, cabe aos profissionais psicólogos e assistentes sociais, valendo-se


de seus conhecimentos científicos e técnicas reconhecidas por seus respectivos
conselhos, buscar compreender a natureza e a dialética dos fenômenos envolvidos
nas disputas judiciais, analisando as narrativas de vida dos envolvidos como uma
versão possível do objeto em estudo, “nunca uma verdade absoluta e determinista”
(MARRA, 2016).
Os aspectos subjetivos, na maioria dos casos, não são claros para os
próprios envolvidos e seus representantes legais, os quais necessitam de elementos
concretos a serem apontados na petição inicial e/ou contestação, valendo-se muitas
vezes de acusações, queixas ou denúncias ao juízo que requerem uma análise
cuidadosa realizada pelo perito. Assim, em sua avaliação, além de identificar
possíveis situações de risco para as crianças e adolescentes envolvidos, o perito
tem o papel de analisar as sutilezas da dinâmica psicológica e/ou social familiar que
poderiam vir a ser ensejadoras de modificação de guarda.
Neste sentido, Shine (2016) aponta que o perito procura diagnosticar a
pessoa como um todo, sua vivência e forma de apreender o mundo e não apenas
verificar a veracidade dos relatos que ela traz para serem narrados no momento da
perícia. Diferentemente da expectativa dos profissionais do direito, o papel do perito
não é identificar se determinada narrativa é verdadeira ou falsa, senão entender a
dinâmica, o funcionamento daquele indivíduo e a forma como ele interpreta as

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

situações vivenciadas, assim como suas reações, compreendendo o efeito disso


para as criança e adolescentes envolvidos.
A partir de alguns pressupostos da lógica, Shine (2016) também sugere
que o perito, em sua avaliação, trabalhe na desconstrução do raciocínio que o
avaliando traz como algo que ele acredita ser lógico, mas que nem sempre o é, a fim
de verificar como este indivíduo se comporta frente aos questionamentos,
oportunizando a este profissional identificar padrões, capacidades e dificuldades dos
avaliados em questão.
Marra (2016) propõe um método de investigação dialógica, através do
qual os profissionais centram seu interesse na narrativa como experiência vivida,
compreendida aqui enquanto “histórias que servem de recursos comunitários e que
as pessoas utilizam em seus relacionamentos” (p.59). Nessa perspectiva, seu
conteúdo revela julgamentos e concepções que moldam a vida dos sujeitos,
conectando significados aos sentidos das ações ou experiências vividas.
O filme “Pais e filhas”, conforme mencionado anteriormente, exemplifica a
complexidade da avaliação de casos envolvendo pedidos de modificação de guarda.
Dentre os motivos sugeridos no filme pelos tios da criança que perdera a mãe
recentemente, destacam-se a priori e de forma impactante transtornos mentais do
genitor, graves dificuldades financeiras (queda no padrão de vida), instabilidades em
várias áreas, e, em contraposição uma suposta estabilidade e organização
(emocional, mental e financeira) da família dos tios. No entanto, uma avaliação mais
profunda de ambos os contextos familiares evidenciou o quanto permanecer
convivendo com o pai era importante do ponto de vista constitucional para aquela
criança e que, por outro lado, a família dos tios também apresentava
vulnerabilidades. Essa leitura, portanto, somente se torna possível quando é dada a
real importância à dimensão temporal, que contribui para situar os eventos de vida,
ao revelar percepções e sentidos, de modo que o importante não é gerar uma
definição consensual para o problema, assim como uma solução imediata, mas
ampliar as significações e permitir que os fatos em questão se manifestem tais como
são.
Assim, a avaliação pericial nos contextos de família requer dos
profissionais da Equipe Técnica uma compreensão mais ampla da realidade
vivenciada pela criança/adolescente, em seus aspectos e vivências subjetivas.

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Compreendemos, em síntese que a interdisciplinaridade nos estudos


psicossociais possibilita o enriquecimento e a aprendizagem mútuos, que se efetiva
pela combinação de elementos e saberes. Desta forma, técnicas que realizaram o
presente estudo procuraram romper com a setorização de demandas que estão
colocadas em seus cotidianos profissionais, as quais merecem ser apreciadas a
partir de uma proposta teórico-metodológica de intervenção e apreensão
interdisciplinar (MORREY E ZAMBONI, 2007).

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4 - CONCLUSÃO

A partir do presente estudo, depreende-se que a compreensão e


atribuição da guarda no Brasil modificaram-se ao longo da história, partindo de uma
visão centrada na figura paterna, ligada à noção de propriedade, adquirindo o
sentido de proteção. Redefiniram-se assim as responsabilidades do guardião e as
causas ensejadoras da modificação de guarda refletem essa alteração conceitual,
implicando na necessidade de um olhar apurado da equipe técnica sobre o
comportamento e as representações dos envolvidos, ao realizarem as perícias
sociais e psicológicas.
À equipe técnica cabe o desafio do olhar sensível e aprofundado, tanto à
compreensão quanto à identificação das modalidades de guarda que melhor
atendam aos interesses da criança e do adolescente. A interdisciplinaridade emerge
como estratégia importante ao alcance deste objetivo, ao promover uma superação
de análises superficiais e contribuir para a desmistificação de supostos impactos das
condições materiais e subjetivas apresentadas a priori por aqueles que disputam a
guarda.
Ademais, evidenciou-se a necessidade de promover a reflexão junto aos
familiares em litígio sobre as consequências prejudiciais inerentes a este contexto,
diante do qual, os técnicos do Judiciário devem trabalhar para sensibilizar e fomentar
a conscientização dos envolvidos no conflito, buscando manter em foco a proteção
integral da criança e adolescente. Para tanto, avalia-se como importante o trabalho
intersetorial e estratégias tais como oficinas de parentalidade, justiça restaurativa,
atividades em rede, dentre outras.
Finalmente, cabe ressaltar o desafio presente no papel do Judiciário,
enquanto interferência mínima e não como perpetuador do litígio entre as partes ou
ex-casal. Deste modo, ressalta-se a necessidade de haver mais produções
científicas sobre o tema, para que o parecer técnico possa auxiliar os magistrados
no distanciamento do senso moral e juízos de valor, cujas raízes históricas
permeiam e se presentificam em algumas decisões.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Cipolla, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1960),
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538
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS:


DESAFIOS DO TRABALHO EM ARTICULAÇÃO
COM A REDE

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - MARÍLIA


“COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS:
DESAFIOS DO TRABALHO EM ARTICULAÇÃO
COM A REDE”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Rodrigo Alves Peres – Psicólogo Judiciário – Comarca de Pompeia
Walkíria Rodrigues Duarte – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pompeia

AUTORES
Bárbara Maira da Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Gália
Carlos David de Freitas – Psicólogo Judiciário – Comarca de Marília
Rodrigo Alves Peres – Psicólogo Judiciário – Comarca de Pompeia
Walkíria Rodrigues Duarte – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pompeia

540
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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DEDICATÓRIA

Às preciosas vivências diárias do trabalho, que enriquecem nossa experiência e


motivam o aprendizado contínuo.

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AGRADECIMENTOS

À amizade nascida do objetivo comum de aprender.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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INTRODUÇÃO

Na primeira reunião do grupo, com a perspectiva de alinhar os subtemas


e bibliografias a serem adotadas durante o estudo do tema escolhido pelo grupo
para 2019 - “COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS: desafios do trabalho
em articulação com a rede” – foi proposta uma discussão ampla, permitindo a
manifestação dos entendimentos existentes sobre o assunto, suas interações e
relações com o cotidiano de atuação profissional dos assistentes sociais e
psicólogos no TJ-SP.
Observou-se, naturalmente, nas manifestações dos profissionais a
prevalência de questões ligadas às relações de poder em geral e, especificamente, a
presença dessas relações no cotidiano do trabalho e mesmo nas intervenções
profissionais.
Com esse entendimento, para ampliar a compreensão do tema
“articulação com a rede”, o grupo acordou estender os estudos para além do tema
específico, com o intuito de lançar luzes sobre a questão envolvendo “o poder e suas
relações”, entendido como o grande disparador para o alcance dos objetivos do
grupo de estudos. Dessa forma, direcionou-se o trabalho.
Após as compreensões iniciais sobre “rede”, seguiu-se um apanhado
teórico sobre o tema “poder”, de forma a expandir sua concepção. A partir desse
ponto, e considerando a importância de aprofundamento, foram escolhidos pelo
grupo dois autores, que serviram como base ao longo das discussões: Murray
Sidman e Paul-Michel Foucault.
O primeiro, americano, um dos maiores nomes da Análise do
Comportamento, pesquisador vinculado a grandes universidades, nascido em 1923,
e falecido em maio do presente ano.
Quanto ao segundo, Foucault (1926-1984), eminente teórico político-
social, psicólogo e filósofo francês do século XX, notabiliza-se, pela desconstrução
empírico-dedutiva do conhecimento67, da subjetividade, e da participação do poder
político na determinação e constituição destes dois processos próprios da existência
humana.

67
Referindo-se, evidentemente, como em toda tradição filosófica, a categorias como
“mentalidade”, “cultura” e “comportamento”.
543
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Ao final, as reflexões, questionamentos e considerações do grupo, na


perspectiva de contribuir com o tema no âmbito da atuação profissional dos
assistentes sociais e psicólogos (as) do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo.

DOS DESAFIOS PROFISSIONAIS COTIDIANOS À PROPOSTA DE


TRABALHO ARTICULADO EM REDE

“(...) a formação ilusória da autossuficiência está sempre lá, à espreita do


melhor momento para colocar-se em cena, ameaçando apagar o incômodo da
precariedade humana e a dependência do sujeito ao outro (...).”
Joel Birman

O cotidiano profissional dos assistentes sociais e psicólogos (as) que


integram as equipes técnicas no judiciário paulista é permeado por demandas que
se apresentam num crescente de desafios e complexidade. A população que recorre
ao sistema de justiça, invariavelmente, busca uma solução para os reveses
enfrentados, uma resposta para o sofrimento físico, social e/ou psíquico que a
acomete, para os quais ela não se entende com suficiente competência para
resolver; não é raro depositar na justiça suas derradeiras esperanças.
As equipes técnicas – assistentes sociais e psicólogos (as) – recebem
essa carga de expectativas e, para corresponder, precisam contar para além da
competência ética, técnica e metodológica, também com competência política para
compreender o sistema judiciário como uma parte, apenas, de uma engrenagem
social multifacetada. Essa estrutura, composta por múltiplos atores e diversos
organismos, resulta num arcabouço multi-institucional, multisetorial e multidisciplinar,
todos com interfaces em menor ou maior grau com as demandas estudadas,
resultando num formato complexo e único, a cada situação (caso).
As discussões do grupo de estudos, eivadas pela literatura, confirmaram a
percepção de que as necessidades humanas e sociais dos cidadãos mudaram; há
uma nova interdependência que fragiliza o conhecido modelo de gestão do social.
Passam a ganhar visibilidade na ação pública os diversos atores do fazer social:
Estado, sociedade civil, iniciativa empresarial, comunidade e o próprio público alvo.
Estes sujeitos demandam por uma relação democrática, horizontal e participativa.
Faz-se necessário um novo tipo de atuação do Estado e da sociedade, no qual as

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políticas públicas estejam articuladas entre si, superando a histórica fragmentação


presente nas ações estatais no Brasil.
Nessa perspectiva, constatou-se que metodologia reticular encontra
respaldo também na legislação brasileira, especialmente no campo das políticas
públicas. Para citar apenas duas áreas, vemos na Constituição Federal de 1988 a
seguridade social apresentada como um “[...] conjunto integrado de ações de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, para assegurar os direitos quanto à
saúde, à previdência e à assistência social”. (BRASIL, C.F. /1988, ART. 194); e, no
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei Federal nº 8.069/1990) é atribuído
à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público, o dever de
efetivar os direitos previstos no artigo 4°, ressaltando, no artigo 86, o dever de se
efetivar a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, através
de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais da
União, dos estados, do Distrito e dos municípios (ECA, ART. 86, GRIFO NOSSO).
Conforme Gonçalves et all (2015), trata-se de um fenômeno relativamente
recente e cada vez mais presente em várias áreas da vida social e, particularmente
no trato com ações públicas, composto por estruturas policêntricas e envolvendo
diferentes atores ou organizações vinculados entre si a partir do estabelecimento e
manutenção de objetivos comuns e de uma dinâmica gerencial compatível e
adequada a uma estrutura reticular, assentada em um poder compartilhado e em
relações horizontalizadas.
As autoras alertam que a criação e manutenção dessas estruturas
propõem desafios basilares na área administrativa, pois que estão vinculados a
processos de negociação e geração de consensos, estabelecimento de regras de
atuação, distribuição de recursos e interação, construção de mecanismos e
processos coletivos de decisão, estabelecimento de prioridades e acompanhamento.
Em síntese, os processos de decisão, planejamento e avaliação se dão por novos
paradigmas, exigem outra abordagem. Trata-se do trabalho em rede.
A palavra rede se refere à trama ou conjunto de fios entrelaçados de
modo a formar um tecido. Esse conceito de “entrelaçamento” foi dando um contorno
à noção de redes, passando à atribuição de novos significados e possibilidades de
redes. Segundo o dicionário, a palavra “rede”, etimologicamente, origina-se do latim
rete, retis, com o sentido de teia (da aranha); rede, laço; sedução (HOUAISS, 2001).

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Assim,

As redes estão em todos os lugares: redes de computadores, redes


sociais, redes organizacionais, as cadeias de lojas, redes de
celulares e, até mesmo, as redes neurais artificiais. Os estudos
acerca da temática têm sido aplicados em diversos campos como a
Psicologia, Política, Gestão Social, dentre outros. (GONÇALVES ET
ALL, 2015).

Como contribuição ao entendimento do novo paradigma, o de rede, com o


qual se busca trabalhar o sistema de proteção à criança, ao adolescente e à família,
temos o conceito de Turck (2001). Não é um conceito novo, mas,

[...] O trabalho só consegue ter êxito quando o processo competitivo,


a inveja e a disputa de poder são canalizados construtivamente. Isto
é, quando se pode estabelecer um processo de equilíbrio entre o
sentimento destrutivo que está incluso na inveja e na competição e o
sentimento solidário para compartilhar o compromisso, a
responsabilidade e o conhecimento [...] (TÜRCK, 2001).

Este novo paradigma – rede -, se coloca como alternativa contemporânea


e eficaz também na seara das políticas públicas. O uso de metodologias
participativas contribui para o fortalecimento e articulação das estruturas, a
valorização e participação de todos os atores de forma horizontalizada e, dentre
outros ganhos, permite a construção de saber coletivo. O desafio se coloca, porém,
ao exigir a dispensa do individualismo e da competitividade, das vaidades e das
autorias absolutas e verticais.
O trabalho em rede tem se transformado em uma possibilidade de
organização que permite responder de forma flexível às demandas, entrelaçando
conectividade e descentralização nos contextos e esferas de articulação e atuações
sociais diversas. Gonçalves e Guará (2010) afirmam que:

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O novo modelo de rede, que supõe relações mais horizontalizadas,


exige disposição para uma articulação socioeducativa que abre-se
para acolher a participação de várias políticas públicas setoriais;
derruba limites de serviços que agem isoladamente; inclui a
participação da sociedade, comunidade, famílias; acolhe o território
onde se localizam as crianças e os adolescentes.

Nesse sentido, Castells apud Gonçalves et all (2015), aponta


contribuições sobre o conceito de rede que vem sendo amplamente discutidas nas
ciências sociais e se aportam em um referencial teórico que enfatiza sua natureza
democrática, emancipatória e aberta. As redes são, para ele, formadas por pontos
(pessoas/organizações) ligados por fios que os conectam (comunicação), e quanto
maior for o número de conexões maior é sua capacidade de obter resultados.
A seguir, partindo dessa compreensão, seguem as discussões teóricas
com ênfase na questão do poder e das relações institucionais.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E REFLEXÕES INICIAIS

Conforme Silveira (2000), o desenvolvimento das sociedades ocidentais


está relacionado ao processo em que os instrumentos e fontes do poder foram
utilizados por diferentes agentes econômicos e políticos. Foi assim na consolidação
dos estados nacionais e no surgimento do capitalismo mercantil, quando cresceu a
importância do poder compensatório e da organização. Novas organizações
surgiram, como companhias de comércio e navegação. A revolução industrial trouxe
a mutação no caráter da propriedade, que passa a ser referente a máquinas e
tecnologia, e não apenas à terra, e a mutação do capital mercantil para o capital
industrial. Em ambos os momentos, as mudanças contaram com o apoio do estado
para abrir mercados (e proteger o próprio mercado) e garantir fontes de matéria-
prima.
O referido autor explica que no final do século XIX, a associação das
classes dominantes com o Estado levou ao acirramento da corrida imperialista,
processo no qual a busca de colônias e mercados levou a duas guerras mundiais,
nas mais brutais demonstrações do poder.

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Assevera que durante todo o período colonial, o poder não aconteceu


apenas pela difusão do pensamento liberal. Talvez, mais perversa que a imposição
de práticas comerciais lesivas foi a disseminação da “ideologia do colonialismo" que
serviu de base para as justificativas de conquistas e domínio. Quando da conquista
de colônias e mercados por parte das grandes potências europeias, passando a
ideia de que nos trópicos, em especial, não haveria possibilidade do estabelecimento
de uma civilização avançada, pela absoluta incapacidade dos povos que ali
habitavam. Considerados de raça inferior, os amarelos, negros e mestiços seriam
incapazes de se autogerir, necessitando de serem conduzidos; assim, os europeus
exerceram o poder sobre eles no decorrer do processo histórico.
Explica o autor que, posteriormente, as relações entre as nações e,
principalmente, as formas de domínio, passaram de um colonialismo antiquado para
a era de globalização. Entretanto, permaneceram as disfunções de um liberalismo
que, sem regulamentação e controle adequados, geraram monopólios, cartéis e
oligopólio (situação de mercado em que a oferta é controlada por um pequeno
número de grandes empresas). O poder das corporações, quando em associação
com o Estado, não resiste à tentação de maximizar o retorno econômico, mesmo
que às causas de subordinação e da imposição de condições precárias de vida a
sociedades inteiras.
Para Silveira (2000) a ideia mais difundida de poder está relacionada ao
conceito weberiano, ou seja, “a possibilidade de alguém impor a sua vontade sobre o
comportamento de outras pessoas”. Essa ideia de poder correlaciona a dimensão do
poder com a capacidade de certos grupos ou indivíduos imporem suas vontades a
outros para o atingimento de determinados objetivos. Tais objetivos costumam ser
ligados à aquisição de riqueza, ocorrendo também as motivações de ordem religiosa
e doutrinária.
O autor também faz referência a GALBRAITH (1986), que indica que há
três instrumentos para exercício do poder: a coação – que gera o poder, no qual a
submissão se dá pela imposição de alternativa suficientemente desagradável ou
dolorosa, a recompensa – gerando o poder compensatório, em que a oferta de
compensação (pecuniária ou social) leva à aceitação da submissão; a persuasão –
que gera um poder condicionado, no qual a submissão é conseguida pelo
convencimento do que é apropriado.

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Explica que para BOBBIO (1996) há três tipos de poder: o poder


econômico, cujo meio é a riqueza; o poder ideológico, cuja moeda é o saber; e o
poder político, que se vale da força como último recurso para sua manifestação. Ter
poder significa ter a capacidade de premiar ou de punir, a fim de obter o
comportamento desejado. Referido comportamento também pode ser conseguido à
custa de promessas de recompensas ou punições, desde que seja reconhecida a
capacidade de levá-las a efeito.
O autor argumenta que a investigação sobre quais os verdadeiros
objetivos que orientam o exercício do poder representa um desafio, dadas as
possibilidades de dissimulação e engodo (isca) que permeiam as relações de poder.
Na sociedade moderna, em que há um condicionamento social para a crença nos
valores democráticos e da livre iniciativa, sobram casos de manipulação do mercado
e de influências políticas por parte de grandes empresas.
Entretanto, diz o autor, que apesar dessas restrições, admite-se que a
prática do poder proporciona uma certa organicidade à vida social, sendo
encontrada em todos os tipos de sociedade. A simbiose entre o Estado e o poder,
então, não é apenas inevitável, como também socialmente necessária, mesmo com
a prevalência das desigualdades no exercício do poder.
Assevera que a distinção entre os que detêm o poder e os que a ele se
submetem se dá por meio das três fontes de poder:
1º a personalidade – que se pode entender como características pessoais
que dá acesso a um ou mais instrumentos de poder (coação, compensação ou
persuasão);
2º a propriedade – entendida aqui como riqueza e renda e normalmente
associada à compensação, embora a posição na estrutura social também possa
induzir à submissão por coação ou persuasão;
3º a organização – que se manifesta comumente na forma de poder
“condicionado”, pela capacidade de estruturar modelos sociais e obter daí a
submissão necessária, embora também ofereça acesso ao poder “condigno”
(normalmente por meio do Estado), bem como ao poder “compensatório”, em grau
compatível com sua riqueza.
Argumenta que as chances de sucesso de uma organização é a
diversidade de objetivos que persegue: quanto mais diversos os objetivos, menor a

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probabilidade de se alcançar alto grau de coesão (nesse caso, submissão) interna;


quanto mais bem definido e identificado o objetivo, maior a união possível em torno
dele (daí o sucesso das organizações não-governamentais com propósitos
específicos). Assim, o poder externo deriva do poder interno.
Em uma sociedade, espera-se que existam movimentos de oposição ao
exercício do poder. Essa resistência pode se dar pela via da argumentação de que o
poder contestado é “impróprio, ilegítimo ou inconstitucional”, ou por meio da criação
de um polo contrário de poder, que se utilizará dos mesmos instrumentos e fontes,
talvez em proporções diferentes, devido ao acesso a recursos e, principalmente, da
sua ligação com o Estado, o qual pode decidir muitas das disputas sociais, pelo
exercício dos seus poderes de regulação, diz o autor.
Passos (2010) utiliza do exemplo do Panóptico (modelo arquitetural para
prisões), para mostrar as implicações do poder. Ele explica que o Panóptico foi
criado por Bentham: uma estrutura circular, criado por abrigando as celas dois
prisioneiros com uma torre colocada no centro do edifício, a partir da qual o vigia tem
a visão de todas as celas, acessíveis por vidros a esse olho central, pois, iluminadas,
em contraluz, por janelas que se abrem a um pátio externo, permitem que tenham
visibilidade total. O vigia pode fiscalizar continuamente o que se passa em todo
espaço prisional. Os prisioneiros, entretanto, não o veem, não sabem quando ele
está na torre, que é protegida pela obscuridade, pois tem suas janelas abertas
apenas na direção das celas. Quem é olhado não vê que olha, portanto, sente-se
olhado permanentemente, sente-se censurado continuamente. A tentativa de estar a
par do controle é infrutífera para esse prisioneiro. Eis aí o “ovo de Colombo” de
Bentham, como ele mesmo se regozija (com sua invenção: produzir um sistema de
autocensura que visa a minar não só os atos de rebeldia e tentativas de fuga, mas o
próprio desejo de cometê-los. Nas celas individuais ou para pequenos grupos é onde
os prisioneiros realizariam todas as suas atividades, inclusive o trabalho. Assim,
trata-se de sistema aplicável a qualquer espaço de adestramento ou fiscalização:
escolas, fábricas, hospitais, em que os prisioneiros podem ser substituído por
escolares, trabalhadores ou doentes.
Após esse momento inicial, cuja introdução ao tema favoreceu à reflexão
crítica e ao debate pelos participantes, seguem as principais contribuições de
Sidman e Foucault.

550
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CONTRIBUIÇÕES DE MURRAY SIDMAN

Sidman, já apresentado anteriormente, publicou em 2009 uma obra de


grande reconhecimento na Psicologia Comportamental, nomeada como “Coerção e
suas implicações”. Desse livro, foi selecionado o capítulo 15 – “Por que fazemos
isso?”- como referencial de estudos sobre o tema. No capítulo citado, assim como
em todo o livro, o autor escolhe usar o termo coerção, que pode ser entendido como
uma forma de uso de poder para alterar o comportamento de outrem.
O foco desse capítulo é refletir sobre as razões pelas quais o uso da
coerção, também chamado pelo autor, de controle aversivo, é um padrão
comportamental tão profundamente arraigado na civilização apesar das
consequências desastrosas em médio e longo prazo para os relacionamentos e para
a vida emocional das pessoas envolvidas.
O primeiro ponto levantado é sobre a facilidade de se conseguir algo por
meio de punição ou ameaça de punição ao outro, além do repertório já estar
fortemente construído, os efeitos são imediatos. Tais efeitos, no geral, tem mais
força que efeitos tardios. Reconhecer esse aspecto imediatista do ser humano, bem
como a falta de repertório de usar outros formatos de relacionamento é um ponto
relevante, existe uma tendência a repetir padrões antigos.
Naturalmente, o autor se posiciona de forma contrária ao uso
generalizado da coerção nas relações humanas, mas também apresenta uma
reflexão importante ao trazer a ideia de que alguma coerção é inevitável. Ele aponta
a natureza como inerentemente coercitiva quando força a manutenção de
salvaguardas contra incêndio, tempestade, fome, enchente, doenças, e ainda
tornados, terremotos, erupções vulcânicas. E para lidar com essas ameaças da
natureza, a única opção é tentar a melhor adaptação. Não existe, por obvio, a
possibilidade de alterar a natureza. O autor, de forma ilustrativa, cita a morte, como
coercedor último, a qual se pode, no máximo adiar, e para isso usa-se todas as
armas conhecidas, como por exemplo: investimento em segurança, tratamentos
preventivos de saúde, cirurgias, medicamentos. A ameaça da morte dita como
gastar o tempo, a energia e os recursos.
Ainda nessa linha de refletir a coerção dentro da natureza, ele levanta a
questão das predisposições hereditárias de competitividade, principalmente ligadas

551
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à posse territorial e sexual. Se não há riqueza, poder, recursos, e sucesso suficiente


para ser divido, o ganho de um implica perda do outro. E nesse sentido, a coerção
estaria presente também como um aspecto ligado à sobrevivência da espécie.
Analisando agora do ponto de vista cultural, Sidman mostra também o
papel da cultura como mantenedora da coerção por meio da competitividade. Isso
ocorre quando se idolatra heróis do esporte, quando se concede bolsa de estudos
por mérito aos melhores estudantes, quando são oferecidos prêmios nas artes,
ciências e profissões. O autor critica o fato de a mídia conceder o status de “chefão”
àquele que se tornou importante por meio de assassinatos, corrupção, e exploração
por meio de drogas ou prostituição.
Em outras palavras, a cultura exerce grande influência quando venera
vencedores e despreza aqueles que se recusam a competir. E tudo ocorre de forma
tão natural que não se percebe a coercitividade essencial da competição, tampouco
suas consequências, que em última instancia produzem uma reação de coerção
contrária, vingança. Segundo o autor, os vencedores de hoje serão os perdedores
de amanhã.
Um possível caminho poderia ser substituir a competição por cooperação,
entretanto, esse é um tema que merece ser mais bem estudado, na prática. Sidman
adianta que implantar um sistema baseado em cooperação seria demorado e
também mais difícil, pelo menos no começo. Ele aponta a importância de contabilizar
os custos tardios das interações coercitivas, como esforço, dinheiro e sofrimento
emocional. Essa consciência é tão necessária quanto a de que alterações
comportamentais terão resultados e dificuldades piores no começo. Em outras
palavras, é importante suportar, inicialmente, o processo de mudança.
Ainda dentro desse tema sobre alternativas à coerção ele reflete sobre a
proposta de uma sociedade sem classes (governo toma bens e redistribui, ou
aumenta impostos das classes abastadas). Segundo Sidman, tal proposta que se
supõe ser uma sociedade sem classes está a meio caminho de tornar-se uma nova
estrutura de dois níveis, hospedeiro e parasita, em que parasitas se beneficiam da
produção dos outros incondicionalmente, tornando-se seres vegetativos e
hospedeiros se desmotivam com a situação, ou seja, é um sistema insustentável.
Ele afirma que a tentativa de igualar, independente da técnica usada, continuará

552
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sendo mais um processo coercitivo, com todas as consequências que já se conhece


(raiva, sensação de injustiça, violência...).
No que tange ao contexto da justiça, Sidman afirma que o que se intitula
justiça é, muitas vezes, retaliação e vingança. O sistema opera também
coercitivamente ao ser contra a coerção, e colabora para manutenção de um círculo
vicioso de controle, vingança, violência e punição que se auto sustenta
indefinidamente. E a frequência das práticas coercitivas fazem com que a
sensibilidade para as perceber fique embotada. Nesse ponto, ele traz um alerta
sobre a importância de se estar consciente sobre o funcionamento desse sistema,
inclusive para se tentar construir um sistema prisional realmente reabilitador.
De maneira geral, pode-se dizer que Sidman lançou luz sobre a
compreensão dos fatores que mantem o sistema coercitivo tão presente, abarcando
fatores culturais, genéticos e individuais. Além disso, o autor também trouxe
contribuições importantes no sentido de alertar sobre a responsabilidade individual
no sentido de amenizar posturas coercitivas, principalmente aquelas que pela
recorrência parecem estar naturalizadas na cultura.

CONTRIBUIÇÕES DE MICHEL FOUCAULT

Na medida em que se afigurou, para os autores deste artigo, enquanto


mote discursivo bastante articulado com a análise de Sidman, o colóquio “Poder e
Saber” de Foucault, extraído do livro coletâneo foucaultiano “A Microfísica do Poder”,
lança um olhar revelador e significativo sobre fato recorrente da vida cotidiana,
porém discreto, velado ao indivíduo, que é a determinação do seu pensamento, da
sua cultura, e do seu comportamento, tal qual engendrada pelo governo68 ou o poder
político, em larga e controlada escala (e em grande medida na proporção mesma da
ignorância deste fato pelo indivíduo).

68
Segundo Gutting e Oksala (2019), Foucault adotou o termo “governo” (gouvernement) para se
referir, de modo conceitual e abstrato, à classe de indivíduos ativos na “governança”, ou seja, em
todo gerenciamento, para além das atribuições do Estado enquanto instrumento direto de
governo político, da sociedade e dos seus indivíduos, sendo que esta “governança” pode se
assimilar ao conceito foucaultiano de “governamentalidade” (gouvernementalité) que é sua
atividade enquanto arte, em que a ocultação, dissimulação, ou revelação parcial, da verdadeira
identidade do próprio governo, por exemplo, é uma de suas prerrogativas, e pode ser utilizada
enquanto expediente intrínseco à eficácia de sua atividade.
553
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Primeiramente, é importante assinalar que o notável valor e interesse da


obra de Foucault, no seu todo, fundamenta-se no fato de que não se trata de
reflexões, impressões ou hipóteses de um livre pensador com respeito à sua
contemporaneidade e à história de seu tempo (o que em si, já seria, todavia, uma
considerável contribuição), mas sim, resultado de uma minuciosa e crítica análise
empírica (desconstrutiva) e metodologicamente justificada e eficiente da gênese da
subjetividade humana e do pensamento individual e coletivo, na medida em que o
indivíduo se situa na condição consciente ou inconsciente de sujeição ao poder
político, ou ao governo.
Com efeito, “Poder e Saber”, título dado a uma animada entrevista de
Foucault (ao pesquisador Alexandre Fontana), onde suas próprias conclusões são
despreocupadamente desconstruídas, traz importantes referências e explanações
acerca de toda sua obra de pesquisa e de suas conclusões, as quais expõem a nu a
dominação de uma classe governante (o governo) sobre toda a sociedade mundial
ou “globalizada”, não mais por meio das armas, da intimidação ou da mera coerção,
mas numa sofisticação mais profunda, por meio da produção dos saberes (em toda
sua multiplicidade e aparente pluralidade) que regem a relação do indivíduo com sua
própria existência, em suma, o que alguns autores foucaultianos justificadamente
denominam uma verdadeira “produção de subjetividade”.
Esta hábil, e proveitosamente descontraída, análise crítica de Foucault
com respeito a sua própria obra, aí delineada em contraste e contraponto com as
correntes epistemológicas contemporâneas e tradicionais, expõe ao leitor, grosso
modo, o teor de suas pesquisas, explicadas quanto a sua constituição metodológica
e empírica, à luz de uma perspicaz criticidade epistemológica.
Mediante a leitura de apoio do artigo “Michel Foucault”, publicado no
periódico The Stanford Encyclopedia of Philosophy (GUTTING et OKSALA, 2019),
útil à devida compreensão dos temas abordados na citada entrevista, verifica-se,
aliás, que a crítica metodológica e epistemológica dos tradicionais modelos de base
para a psicologia e as ciências humanas, perfaz toda a obra de Foucault. Esta,
sucintamente falando, apresenta-se, em frontal debate e contraponto com as
tradições clássica e moderna da teoria do conhecimento e da concepção de sujeito,
fundamentando-se e erigindo-se a partir da desconstrução das mesmas. Convém
lembrar, aliás, que, segundo Foucault e outros autores, a “Era Clássica”, na Filosofia

554
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Ocidental, refere-se ao pensamento filosófico (especialmente epistemológico)


majoritário no período compreendido entre o Renascimento (que retoma os autores
da chamada “Antiguidade”), passando por Descartes, e a “revolução epistemológica”
inaugurada com o pensamento de Kant; já a “Modernidade” estende-se desde Kant
até a fenomenologia de Husserl e Heidegger, bem como seus desdobramentos,
como em Sartre e Merleau-Ponty.
Toda esta discussão epistemológica, bem como as conclusões dele
próprio, com respeito a, de um lado, (a) as mais variadas formas de concepções do
pensamento humano (tomado individualmente ou coletivamente), do conhecimento 69
e da relação entre o indivíduo e o pensamento e a verdade em termos de sistemas
de pensamento (termo cunhado por Foucault), envolvendo formas cujas relações
implicativas não estão necessariamente acessíveis à consciência do indivíduo, e, de
outro lado, (b) as relações genéticas e funcionais entre o conhecimento e a verdade
com os diversos aspectos “empíricos” (i.e. dos limites impostos à existência) da vida
humana e, em especial, com o Poder politicamente constituído, por meio da sua
produção de saberes70, Foucault apresenta nos seus dois livros de maior destaque
(e bastante referidos na entrevista a Fontana), “Arqueologia do Saber” (1969) e “As
Palavras e as Coisas”, como bem sugere seu o subtítulo: “Uma arqueologia das
Ciências Humanas” (1973).
Ao longo de seu trabalho, tal qual explicado mais analiticamente, em
termos epistemológicos e metódicos, nestas duas obras publicadas, e, de forma
menos teórica e epistemologicamente crítica, porém mais empiricamente
investigativa e descritiva, com respeito à coleta de dados e à exposição de
resultados, em seus dois livros anteriores, “A História de Loucura” (1961) e “O
Nascimento da Clínica” (1963), Foucault se debruça atentamente, com olhar ao
mesmo tempo historiográfico, genealógico71 e crítico, sobre as mudanças e radicais

69
Referindo-se, evidentemente, como em toda tradição filosófica, a categorias como
“mentalidade”, “cultura” e “comportamento”.
70 O que teria equivalência com o conceito de ideologia no Marxismo e na Teoria crítica, não

fossem essas teorias demasiadamente limitadas a uma forma de determinismo “exterior”, por
assim dizer, ao qual Foucault se contrapõe (na mesma medida em que se contrapõe a seu
oposto dialético que constitui, para ele, um indevido subjetivismo na prevalência da
transcendência, como é o caso da proposta fenomenológica).
71 Num sentido que, segundo ele mesmo, Foucault desenvolve a partir de Nietzsche em

“Genealogia da Moral” em que este demonstra que os sistemas de valores morais e éticos
próprios dos povos em sucessivos momentos históricos, na maior parte das vezes, e de forma
muito significativa e consistente, são gerados sem a presença de um fator de continuidade entre
555
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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diferenças nas formas dos saberes próprios da vida quotidiana da sociedade atual,
desde o final da chamada Era Medieval até o presente, bem como as mudanças de
concepções reflexivas sobre os saberes, ou seja, as concepções de ser humano,
sujeito e conhecimento, que a nível da intelligentsia, têm acompanhado, seja em
compasso, seja em descompasso, essas mudanças.
A partir dos achados de suas investigações iniciais, à moda
“arqueológica”, na análise de registros documentais, artísticos, culturais, intelectuais,
etc., legados ao longo da história, caracterizando o que Foucault, dentro da
perspectiva metodológica que desenvolve, vem a denominar Arqueologia do saber e
do discurso, este destacado pesquisador conclui haver notável coerência estrutural
entre os saberes enunciados como verdades basilares das organizações sócio-
políticas das sociedades observadas (enquanto corpos doutrinários epistêmicos,
historiográficos, filosóficos, religiosos e linguísticos), por um lado, e, por outro lado,
as demais evidências discursivas que implicam os sistemas de pensamento que
carreiam tais verdades. Assim mesmo, a despeito de certo desenvolvimento histórico
intrínseco e evolutivo dos saberes e práticas aí observados, o que Foucault
encontra, entre as sucessivas “fases” que demarcam diferentes períodos sócio-
políticos e/ou sociais, ao longo do curso cronológico (ou “histórico”) em que se
sucedem, é muito mais amiúde e notoriamente o fenômeno da ruptura e
descontinuidade, do que o da derivação e continuidade. Desse modo, os saberes
predominantes que despontam nestas diversas fases se revelam mais como
resultantes de uma produção histórica extrínseca aos mesmos do que deles
mesmos uma reprodução ou evolução intrínseca. Com efeito, tais saberes,
especialmente os oriundos das epistemes proclamadas científicas no campo das
Ciências Humanas, ou, de qualquer forma, verdades universais a reger as vidas dos
indivíduos, quando diante do crivo socrático da “filosofia crítica” de Foucault,
revelam-se não somente desprovidos de real base científica, mas, principalmente,
resultantes de contingências políticas historicamente estabelecidas.

si, isto é, não apresentam traços de evolução entre si, embora seus sistemas culturais possam
trazer nas suas próprias tradições históricas a falsa ideia de derivação entre um sistema anterior
e o sistema presente. A genealogia, enquanto método, segundo Foucault, é um método de
investigação histórica isento do dogmatismo segundo o qual um “sistema de pensamento”
necessariamente deriva de seu predecessor. Neste sentido, rupturas, como, por exemplo,
eventos trágicos de forte impacto na organização social, em certa medida, fatais, são
atentamente considerados nesta forma de investigação.
556
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É por conta destes dois caracteres inerentes a estes saberes tomados


como objeto da investigação de Foucault, a saber, a descontinuidade sua origem
política, que esta investigação, justamente, se reveste de sua qualidade
genealógica.
E é em razão dos resultados de tais investigações, que Foucault acaba
por encontrar no campo do discurso, especificamente inerente aos saberes
estudados, a força normativa de que o Poder político se utiliza para se exercer na
forma de tática específica a serviço de sua principal finalidade estratégica, que é a
conquista e o domínio. Pode-se entender esta tática como um arranjo específico de
“conteúdos” formadores ou modeladores discursivos de sistemas de pensamento e
de práticas no indivíduo (sua “subjetividade”), constituindo-se, assim, no que
Foucault denomina formações discursivas particularmente funcionais, em sua
propriedade invariavelmente e essencialmente normativa, no estabelecimento de
uma dominação política.
Ora, é no discurso que Foucault encontra um crucial fator dinâmico
dotado de especificidades quando, enquanto determinado e determinante, em
relação à vida prática e à vida mental do indivíduo (tanto na sua relação consigo
mesmo, quanto no seu papel de membro de uma coletividade): a normatividade
gerada por, e necessariamente carreada por todo discurso oriundo de, qualquer
verdade crida. E quanto às formas regulares e observáveis do discurso assim
formalizado podem ser denominadas formações discursivas.
Tal achado empírico e epistemológico, não apenas reforça ainda mais em
Foucault sua crítica tanto ao determinismo materialista quanto ao subjetivismo
transcendentalista da fenomenologia, enquanto epistemes intrinsecamente falhas
em suas irremediáveis pretensões totalizantes dos processos mentais e existenciais
humanos, mas também, nelas aponta um importante elemento formador dos
sistemas de pensamento, e, no nosso entender, esta é, provavelmente, sua maior
contribuição às ciências humanas:
1. Quaisquer verdades são necessariamente normativas em relação a
sistemas de pensamento (como já é de conhecimento da epistemologia), os quais se
encadeiam por meio do discurso.
2. Formações discursivas, portanto, têm um papel modelador dos
sistemas de pensamento.

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3. O poder político pode se utilizar das formações discursivas de modo a


produzir toda uma pauta discursiva que lhe convém em termos de sua própria pauta
estratégica de dominação. Se levado às últimas consequências, pode levar à
dominação total dos indivíduos, ainda que “pluralizados” e ipso facto, também
possivelmente “pulverizados” e isolados (alienados) entre si.
4. Na Modernidade (sendo que para Foucault a “pós-modernidade” será
um simulacro, se conservar ou ainda, otimizar as características mais essenciais da
Modernidade), as pautas discursivas definidas pela finitude das delimitações
empírico-materiais presentes no naturalismo e no materialismo histórico, por um
lado, e o transcendentalismo subjetivista, por outro, concorrem e cooperam para o
estabelecimento de formações discursivas tais que, ora identificando si mesmo à sua
construção histórica, ora identificando sua construção histórica a si mesmo, de
nenhuma das duas formas se faz autos de sua própria existência.
É, portanto, no manejo do Saber, e, portanto, das verdades, que o Poder
político efetua o manejo da criatura humana. E é em complementação ou
substituição gradual ao Poder político exercido pela violência, denominado poder de
soberania, que Foucault define esta nova forma de Poder, denominando-a
“Biopoder”.
Com efeito, ao aplicar, como faz Foucault, tal método genealógico e
arqueológico tanto ao estudo, agora não só do saber, mas do próprio discurso, no
seu papel potencial e real de formalmente direcionar o pensamento a partir de seus
processos específicos (formações discursivas) e de suas derivações evolutivas que
dele possamos apreender (como crenças e costumes, por exemplo), não é difícil
encontrar aí um forte fator de gestão, ou seja, de determinação da organização
social e, portanto, do exercício instrumental de um possível gerenciamento da
sociedade (e de fato evidenciado nos achados de Foucault), que, em sua
semelhança com a zootecnia, Foucault denomina pastoreio.
Nesse sentido, o rico aprofundamento de Foucault em obras
subsequentes neste pormenor, que muito lhe interessa, em interface com a Ciência
Política, permite-lhe ampla análise de aspectos da organização social e da história
da mentalidade, mesmo em seu caráter evolutivo, embora, nesta perspectiva, não
tão determinada pelo indivíduo enquanto sujeito, como seria de se supor, por
exemplo, dentro da Fenomenologia de Husserl.

558
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

De fato, a análise de Foucault da vida psicossocial e política aponta uma


verdadeira produção de subjetividade enquanto saberes e formações discursivas
produzidas pelo governo, enquanto verdades (convenientes ao pastoreio) que
passam a ser aceitas pelos indivíduos, num verdadeiro consumo (assimilação) de
formações discursivas determinantes de formas de “subjetividades”, mesmo na
ilusão de originalidade em suas pluralidades, tais que, à guisa de uma ração (de teor
e função discursiva), geram no indivíduo a dupla “verdade” (por esta análise, ilusão)
de que são os reais autores de suas “subjetividades” e que elas realizam e atestam,
ilusoriamente e, confortavelmente, aos indivíduos, o suposto fato de serem sujeitos
(o que implicaria serem dotados e estarem no pleno exercício de seu livre-arbítrio).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conteúdo estudado pelo grupo durante o ano ensejou importantes


debates e reflexões sobre o funcionamento da sociedade atual, bem como do
contexto de trabalho dentro do Judiciário. A experiência vivida alcançou
aprofundamento teórico-científico, favorecido pela socialização do saber empírico
dos profissionais, pelo diálogo e pela troca.
A bibliografia adotada como base para os estudos propiciou relevantes
entendimentos e trouxeram a possibilidade de expandir o olhar crítico do grupo para
o cotidiano das práticas profissionais, com uma percepção mais atenta e aguçada
sobre as relações de poder dentro do contexto de trabalho e, sem dúvidas, sobre as
implicações dessa conjuntura. Além disso, e talvez o mais importante, o trabalho
despertou o senso de responsabilidade no que tange ao trabalho dos técnicos em
contato com as pessoas atendidas, no sentido de não oprimir, ainda que de forma
sutil, por meio de posturas coercitivas, moralistas ou vingativas.
Sobre o trabalho em rede, entendeu-se que ela (a rede), é tecida no
encontro de diferenças e na produção de novos nós que se ampliam a cada vez que
essa rede é tramada cotidianamente. E que não existem instâncias mais ou menos
importantes, nem hierarquia ou mando, mas ações que se complementam em busca
de um único objetivo.
Assim, o Grupo de Estudos de Marília de 2019, que ora se finda, teve
como resultados, para além do avanço na formação, a potencialização de ações, a
valorização e aceitação das diferenças e o reconhecimento das forças em presença
no trabalho diário. Os entraves são muitos e cotidianos, entretanto, a disposição e
abertura para o processo de novas aprendizagens se coloca como desafio.

560
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. Brasília: Editora Universitária de


Brasília, 2000.

______. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996.

GALBRAITH, J.K. – Anatomia do Poder. São Paulo: Pioneira, 1986.

Gonçalves, B. D.; Saadallah, M. M.; Queiroz, I. S.. Articulando redes, fortalecendo


comunidades: intervenção psicossocial e articulação entre universidade,
comunidades e políticas públicas. In: Pesquisas e Práticas Psicossociais, 10(1), São
João del-Rei, janeiro/junho 2015.

Guará, I. M. F. R. (Org.). Redes de proteção social. São Paulo: Associação Fazendo


História; NECA – Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Estudos e
Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, 2010.

GUTTING, Gary and OKSALA, Johanna, "Michel Foucault", The Stanford Encyclopedia
of Philosophy (Spring 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL =
<https://plato.stanford.edu/archives/spr2019/entries/foucault/>.

Houaiss, A. (2001). Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Rio de Janeiro:


Instituto Antônio Houaiss; Ed. Objetiva Ltda.

PASSOS, I.F. Violência e relações de poder - In. Ver Med Minas Gerais 2010; 20 (2):
234-241.

SIDMAN, M. Coerção e suas implicações. Campinas: Editora Livro Pleno, 2003,


Cap. 15.

SILVEIRA, H.F.R. – Um estudo do poder na sociedade da informação - In. Ci.Inf.,


Brasília, v.29, n.3, p. 79-90, set /dez 2000.
561
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A VOZ DA CRIANÇA NO PROCESSO DE AVALIAÇÃO


PSICOSSOCIAL

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR


PRESIDENTE PRUDENTE I
“O COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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COORDENAÇÃO
Célia Regina Grigoleto Rosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Katiúscia Cristina Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Quatá

AUTORES
Andreia da Silva Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Carlos Siqueira da Mata – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mirante do
Paranapanema
Célia Regina Grigoleto Rosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Daniela Franco Motta Nesso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Denise Ocolati Vitale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Elisangela Carvalho de Lima Paulino – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau
Gisele Peruzzo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rosana
Irene Cristina Correa de Brito Farah – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Epitácio
Katiúscia Cristina Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Quatá
Letícia Mara Batalini Menosse Galeti – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Pirapozinho
Linda Delaine da Silva Ibañez Tiago – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Luci Meire Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirapozinho
Luciana Von Há de Oliveira Stringheta – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente
Lucilene Almeida Bertone de Capua – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Santo Anastácio
Maria Lúcia Trevisanelli Dela Viuda – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rancharia
Maria Renata Bizarro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rosana

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Pedrina Celismara Girotto Dornelas – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Presidente Bernardes
Salma El Hage – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Venceslau
Suzana Yuriko Ywata – Assistente Social Judiciário – Comarca de Iepê
Vanuza da Fonseca Matos Tedesco – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Epitácio
Vera Lúcia Vieira Ferreira Screpanti – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau

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INTRODUÇÃO

[Nós, crianças] somos criaturas extremamente complexas, fechadas,


desconfiadas e camufladas, e nem a bola de cristal nem o olho do
sábio lhes dirão qualquer coisa a nosso respeito, se vocês não
tiverem confiança em nós e identificação conosco.
(Janusz Korczak)72

O interesse pela temática estudada neste ano no Grupo de Estudos


derivou do desejo de aprimorar as formas de escuta da criança, levando-se em
conta as peculiaridades de seu desenvolvimento e a multiplicidade de maneiras
pelas quais se expressa (verbais e não-verbais), assim como buscar maior
fidedignidade ao descrever sua “voz” na produção do relatório. Identificaram-se
dúvidas sobre como interpretar e descrever suas manifestações no laudo de forma a
não acirrar ainda mais o conflito em questão e não responsabilizá-la por eventuais
decisões.
Sobre isso, ainda se fizeram presentes inúmeros questionamentos ligados
ao enigmático percurso da memória de crianças, das influências do meio as quais
está sujeita, interferindo na forma como constrói entendimentos e se expressa.
Outro fator de motivação para a escolha do tema foi a recente atribuição
aos Serviços Técnicos ligada à execução do Depoimento Especial, o que tem
gerado inquietações acerca da utilização e das repercussões da fala da criança em
processos criminais.
Assim, a partir do tema, buscou-se refletir sobre aspectos do
desenvolvimento infantil em interface com os determinantes sociais, os fatores que
envolvem a escuta da criança, dentre os quais a importância da comunicação verbal
e não-verbal.
O objetivo, portanto, foi entender como a criança se apropria da
informação, como ela relata e como os profissionais reproduzem sua fala ou “voz”
nos laudos, tentando dar visibilidade a ela, numa perspectiva de garantia de direitos.
Metodologicamente, optou-se por discussões em separado e em conjunto
das duas áreas – Serviço Social e Psicologia – mantendo-se uma linha condutora
comum às discussões, respeitadas as especificidades teóricas, com referências

72
Korczak, K. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Summus, 1981.
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bibliográficas distintas, sendo adotada nos encontros finais o recurso comum de


oficinas para a prática do registro em laudo, bem como troca de informações e
debates numa perspectiva interdisciplinar.
Os encontros foram organizados de acordo com os seguintes tópicos, os
quais serão abordados a seguir: Aspectos do desenvolvimento infantil em interface
com os determinantes sociais; Considerações sobre a avaliação das expressões da
criança; O registro da “voz” da criança nos laudos.

ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL EM INTERFACE


COM OS DETERMINANTES SOCIAIS

O conceito de infância, segundo Aguiar (2010), surge em meio à


construção do capitalismo e a necessidade de preparar as crianças para o futuro, ou
seja, preparar os futuros trabalhadores. Nesta perspectiva, as crianças passam a ser
tratadas como seres em desenvolvimento, inacabados ou o esboço do ser humano
que será.
Atualmente, entende-se a infância como um período de desenvolvimento
e transformações e não mais a criança como ser inacabado a espera da conclusão
que a vida adulta trará. Aguiar (2010, p. 67) refere “o desenvolvimento como um
processo singular e infinito, a partir do biológico e do social em permanente
interação, num constante diálogo entre todos os elementos do campo”. Apesar de
contínuo, é na infância que as maiores alterações físicas e psíquicas acontecem, o
que gera a necessidade de um olhar diferenciado, para a compreensão das
singularidades inerentes ao desenvolvimento infantil.
O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2007) traz a
concepção de sujeito, considerando a criança e o adolescente como indivíduos
autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que, na sua
relação com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou
meros “objetos”, devendo participar das decisões que lhe digam respeito, sendo
ouvidos e considerados em conformidade com suas capacidades e grau de
desenvolvimento.
No âmbito jurídico, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) traz a
concepção dessa parcela da população como sujeito de direitos e aponta para a

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importância de ser ouvida: “sempre que possível, a criança ou adolescente deverá


ser previamente ouvido, e a sua opinião devidamente considerada” (Art. 28, § 1º).
Assim, constata-se que a legislação passa a valorizar o conceito de
criança e adolescente. Deste modo, torna-se interessante pensar nas condições de
constituição dessa fala ao longo do desenvolvimento.
Sendo assim, pretende-se discorrer, a seguir, sobre aspectos do
desenvolvimento infantil, revisando alguns conhecimentos sobre o desenvolvimento
da linguagem, pensamento e memória, para posteriormente estabelecer uma
conexão entre as fases do desenvolvimento e as formas de expressão da criança,
no momento em que precisa ser ouvida pela equipe técnica.

DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM: ALGUNS APONTAMENTOS

A aquisição da linguagem foi estudada neste Grupo de Estudos a partir de


contribuições de Papalia e Feldman (2013), descritas abaixo.
Nessa perspectiva, a linguagem é um instrumento social, pois não basta à
criança adquirir os mecanismos biológicos e cognitivos necessários para o
desenvolvimento desta função, precisando também das interações sociais para
desenvolvê-la, sendo este um recurso utilizado pela criança desde tenra idade.
De modo progressivo, a criança vai reconhecendo os sons e se
expressando através do choro e a partir dos três meses já é capaz de brincar com
sons da fala, mas os balbucios (ensaios da fala) só aparecem, em geral, entre o
sexto e décimo mês.
A primeira palavra, geralmente, ocorre entre o décimo e décimo quarto
mês e, progressivamente, outras palavras simples começam a ser expressas. Entre
um ano e meio e dois anos de idade, em geral, o vocabulário se expande e passa a
ser acompanhado por gesticulações simbólicas e por volta dos três anos a fala é
fluente.
Na segunda infância, de três a seis anos, há um avanço considerável no
vocabulário e na gramática. A inserção escolar se coloca como elemento importante
neste processo de aprimoramento da capacidade linguística. Há maior aptidão para
desenvolver diálogos, contar histórias e fazer comentários. Nesta fase, faz-se
presente o fenômeno do discurso particular, em que a criança verbaliza em voz alta,

567
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comunicando-se consigo mesma. A principal atividade da segunda infância é o


brincar, que contribui com a ampliação das capacidades de fantasiar.
Na terceira infância, de sete a onze anos, ampliam-se as capacidades de
compreensão e interpretação de comunicações verbais, não-verbais e escritas.
Nessa fase a estruturação de sentenças torna-se mais elaborada e o uso prático da
linguagem para se comunicar é intensificado (conversação e narração).

ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO

Papalia e Feldman (2013) entendem que algumas habilidades


relacionadas ao desenvolvimento do pensamento começam a surgir desde o
nascimento do bebê, sendo, inicialmente, rudimentares e mais ligadas a aspectos
sensoriais. Somente por volta dos dois anos, em geral, a criança desenvolve a
capacidade de usar o simbolismo para representar as coisas no seu entorno.
Segundo os citados autores, durante a segunda infância há avanços
cognitivos com o desenvolvimento da função simbólica, ou seja, a capacidade de
usar representações mentais, sem a necessidade de estímulos sensoriais ou
motores para tanto, podendo assim pensar e se lembrar de coisas que não estão
fisicamente presentes, ampliando sua capacidade de fantasiar e imaginar.
Nesta fase, a criança desenvolve compreensão dos números e começa a
adquirir a capacidade de categorizar objetos, pessoas e eventos. Diferentemente do
que Piaget propunha, Papalia e Feldman (2013) entendem que o animismo não está
mais presente nesta faixa etária, isto é, a criança possui capacidade para distinguir o
que é vivo e o que não é, deixando para trás o hábito de dar vida a objetos
inanimados.
Os autores referem ainda, que na segunda infância as crianças possuem
capacidade para compreender causa e efeito, no entanto, parecem perceber as
relações causais como algo absolutamente previsível e imutável; por exemplo, uma
pessoa que não lave as mãos antes de comer ficará doente. Com isso, tornam-se
menos propensas ao pensamento transdutivo, explicitado por Piaget, no qual a
criança vincula dois eventos, sobretudo os que são próximos temporalmente,
havendo ou não uma relação causal; por exemplo, Luiz brigou com a irmã; a irmã
ficou doente; Luiz conclui que ele a fez adoecer.

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Na mesma perspectiva, considera-se que o pensamento infantil é ainda


egocêntrico e as crianças costumam projetar no outro aquilo que sentem e pensam,
como se tudo e todos fossem uma extensão de si, haja vista a dificuldade de
diferenciação do eu. As crianças tendem a se centrar de tal modo em seus pontos
de vista, que não são capazes de assumir outros e a negligência de aspectos que
não estão inclusos em suas perspectivas podem levá-las a conclusões ilógicas.
Já na terceira infância, o pensamento da criança é capaz de fazer
operações mentais mais complexas, isto é, podem pensar logicamente, mas ainda
limitadas ao concreto, à resolução de problemas reais. Amplia-se o entendimento de
conceitos espaciais, causalidade, categorização, raciocínio, compreensão da
conversação, dos números, etc. Essas mudanças vão sendo alcançadas a partir da
inter-relação do desenvolvimento biológico e cognitivo da criança, aliado aos fatores
sociais, culturais, escolares, etc. Os autores afirmam que neste período, em geral,
está ocorrendo a transição de um pensamento moral ligado a obediência à
autoridade para uma compreensão moral que abarca pontos de vistas mais amplos;
como exemplo, antes a criança obedecia a norma por receio de ser punida; agora já
consegue entender as dimensões de certo e errado e optar por um julgamento ou
escolha.
Apesar de muitas teorias do desenvolvimento categorizarem as etapas
por idade, a perspectiva biopsicossocial entende o processo de desenvolvimento
como algo fluido e extremamente flexível. Wallon (1971 apud SALLA, 2011) destaca
que o modo como as crianças pensam é influenciado tanto pela sua capacidade
cognitiva quanto pelas referências que recebe do meio (família, escola, cultura),
desenvolvendo-se cada uma a seu tempo e dentro de suas possibilidades.
A teoria de Wallon explicita que o desenvolvimento do pensamento infantil
vai do sincretismo à categorização. Crianças pequenas costumam observar a
realidade através de uma perspectiva diferente do adulto. No pensamento sincrético,
a criança não consegue explicar um objeto sem relacioná-lo a outro e não é capaz
de colocá-los em um sistema de categorias preestabelecido. Quando é questionada,
combina diferentes referências e apresenta uma resposta. Nesse processo,
aspectos da realidade são misturados à fantasia e interposição entre realidade e
imaginação faz parte do pensamento infantil, podendo ser facilmente confundido
com mentiras.

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Quando questionadas, muito comumente, crianças se utilizam de


estratégias para elaborar uma resposta. Dentre estas, Salla (2011) cita: a tautologia,
que é a repetição da ideia da pergunta; a elisão, que se refere a passagem de um
assunto a outro aparentemente diferente; e a fabulação, que é a tentativa de
preencher as lacunas do relato imaginando e ampliando.
A percepção da criança vai se refinando, progressivamente, até o
pensamento categorial, por meio do qual a criança passa a ser capaz de definir e
explicar elementos com maior facilidade.

MEMÓRIA: DADOS SOBRE SEU FUNCIONAMENTO, SUA


CONSTITUIÇÃO E INTERFERÊNCIAS

A memória pode ser descrita como um sistema de arquivamento através


de três passos: a codificação é o processo de rotulação da memória, para que ela
seja mais facilmente encontrada quando necessário; o armazenamento, quando a
memória é arquivada; e a recuperação, que ocorre quando a informação é
necessária.
Dentre as possibilidades de armazenamento Papalia e Feldman (2011)
citam três formas consideradas universais: a memória sensorial, que contém
temporariamente informações sensoriais recebidas, mas caso a codificação não
aconteça, esta memória desaparece rapidamente. A memória de trabalho (ou
memória de curto prazo) deposita informações a serem codificadas, ou já
recuperadas da memória de longo prazo, nas quais a pessoa esteja trabalhando
ativamente, tentando entender, lembrar ou pensar. Por fim, a memória de longo
prazo, que armazena informações por longos intervalos de tempo.
Os autores apontam que vários fatores podem influenciar na retenção ou
armazenamento da memória, selecionando não somente quais eventos serão
armazenados, como de que forma eles serão lembrados. Neste sentido, Stein (2010,
p.159) chama atenção para o fato de que “no campo forense importa não apenas
saber sobre o que a criança é capaz de recordar, mas é imprescindível avaliar o
quão precisas e confiáveis podem ser as recordações dela”, considerando que
dificuldades inerentes ao processo de recordação podem resultar em falsas
memórias.

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Com isso, entende-se necessário, neste momento, uma explanação sobre


as competências e vulnerabilidades inerentes ao processo de armazenamento e
recordação de memórias nas crianças.
Na mesma obra, Stein (2010) afirma que as crianças desenvolvem sua
capacidade de recordação episódica desde muito cedo, no entanto, estas não
permanecem acessíveis em períodos posteriores da infância e da vida adulta, pois
não se tornam parte da memória autobiográfica do indivíduo, que geralmente surge
entre dois e três anos de idade. Outro aspecto a ser considerado é que:

Crianças pequenas tendem a se concentrar em detalhes exatos de


um evento, os quais são facilmente esquecidos, ao passo que as
mais velhas e os adultos geralmente se concentram na essência do
que aconteceu. Além disso, as crianças pequenas, em razão do seu
menor conhecimento do mundo, podem deixar de notar aspectos
importantes de uma situação, por exemplo, quando e onde
aconteceu, os quais poderiam ajudar a reavivar a memória
(PAPALIA; FELDMAN, 2011, p. 267).

Stein (2010) refere que tanto em crianças como em adultos, a emoção


afeta a memória, sendo observada uma tendência a recordarmos melhor eventos
com alguma carga emocional, seja esta positiva ou negativa, do que eventos
neutros. Sendo assim, a autora entende que eventos estressantes e
emocionalmente negativos resultam em melhora da memória para o evento, mas
aponta que estudos referem que nestes casos os detalhes periféricos (data, tempo,
duração do evento, etc.) estão mais suscetíveis ao esquecimento e distorções. Ou
seja, em eventos emocionalmente negativos, as crianças concentram suas
memórias no fato em si e costumeiramente apresentam falhas de memória no que
se refere aos detalhes e informações periféricas.
As vivências de abuso sexual e violência configuram-se em eventos de
grande carga emocional e geralmente resultam em memórias bastante vívidas dos
episódios, porém, de acordo com esta concepção, a qualidade da memória para o
evento é prejudicada pelo tempo transcorrido entre o acontecimento e a entrevista.
Além disto, nos casos de abuso sexual, existem vários fatores, de ordem emocional

571
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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e social, que não se relacionam diretamente com a memória, que podem influenciar
no relato da criança.
Apesar de possuírem boas condições para o armazenamento e
recordação das memórias autobiográficas, segundo Stein (2010), crianças também
podem apresentar memórias que não condizem com a realidade fática do evento, o
que a autora nomeia como falsas memórias. Neste sentido, as falsas memórias
podem ser geradas espontaneamente, decorrentes do funcionamento endógeno
normal da memória ou a partir de sugestionabilidade.

DETERMINANTES SOCIAIS E CONDIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO


INFANTIL

No cotidiano de trabalho do Assistente Social e do Psicólogo Judiciário,


tem sido recorrente, em especial nos atendimentos afetos à área da Infância e
Juventude, o atendimento a famílias que vivenciam situação de vulnerabilidade
social e que demandam, naquele momento, alguma intervenção judicial.
Infelizmente, tem se tornado cada vez mais comuns casos altamente litigiosos, cuja
maioria das famílias depende do apoio das políticas públicas para conseguir dar
conta das responsabilidades inerentes ao exercício do poder familiar. Trata-se de
famílias excluídas do mercado de trabalho, ou precariamente inseridas, cuja renda
auferida é insuficiente para a manutenção da prole.
Fávero, Melão e Jorge (2005), ao abordar as expressões da realidade
social das solicitações que chegam ao Poder Judiciário, afirmam que elas são
reveladoras da “face perversa da histórica ausência de políticas sociais públicas de
caráter redistributivo e universalizante” (p. 78). A condição de pobreza, por sua vez,
escancara a “questão social como o cerne do recurso ao Judiciário, na maioria das
situações” (IBIDEM).
As respostas obtidas junto à pesquisa realizada com os profissionais de
Serviço Social e Psicologia, pelos autores acima mencionados, apontaram para esta
situação de pobreza, entre outras situações a ela referentes, mas “todos eles
expressões de impedimento de acesso a direitos sociais possibilitadores de garantia
de dignidade de vida” (IBIDEM). Entre as respostas que mais apareceram estão:
“carência socioeconômica e cultural/instabilidade socioeconômica/precariedade
econômica, cultural, habitacional e de saúde/baixa renda familiar/miserabilidade e
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pobreza (inclusive na zona rural) população abaixo da “linha de pobreza” (bóias-


frias)/miséria absoluta/dificuldades financeiras crônicas” (FÁVERO; MELÃO;
JORGE, 2005, p.81). A violência, de maneira geral, bem como a violência
intrafamiliar, em especial dirigida à criança, também foram citadas em índices
elevados, além da indicação da dependência química e da ausência e/ou
insuficiência de políticas públicas.
Em outra pesquisa, realizada anteriormente, com pais e mães que
perderam o poder familiar, Fávero (2001) destaca que os sujeitos abordados no
referido estudo se encontravam em precárias condições socioeconômicas, cujas
vidas se tornaram ainda mais vulneráveis em face dos cortes sociais determinados
pelo ajuste neoliberal, iniciado nos anos de 1990. Com o corte dos gastos públicos,
uma das matrizes desse ajuste, reduzindo os benefícios sociais e, paradoxalmente,
gerando maior demanda por esses serviços, boa parte da população passou a ser
excluída, ampliando, pois, a condição vulnerabilidade social.
Prati, Couto e Koller (2009 apud RAPOPORT; SILVA, 2013), assim
definem vulnerabilidade social:

A vulnerabilidade social pode ser expressa no adoecimento de um ou


vários membros, em situações recorrentes de uso de drogas,
violência doméstica e outras condições que impeçam ou detenham o
desenvolvimento saudável desse grupo. Vulnerabilidade social é uma
denominação usada para caracterizar famílias expostas a fatores de
risco, sejam de natureza pessoal, social ou ambiental, que
coadjuvam ou incrementam a probabilidade de seus membros virem
a padecer de perturbações psicológicas (p. 2-3).

Ressalta-se que o referido texto enfoca o desempenho escolar e foi


utilizado pelo Grupo de Estudos tendo em vista a interface com a realidade das
famílias atendidas pelo Serviço Técnico Judiciário. Ou seja, boa parte das famílias
atendidas pelas respectivas equipes também vivenciam condição de vulnerabilidade
e demandam a atuação de políticas públicas nem sempre existentes e/ou capazes
de corresponder à demanda apresentada.

573
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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A Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social –


NOB/SUAS73, ao construir o conceito de vulnerabilidade social, fundamenta-se na
Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004, que, ao definir o público alvo
da respectiva política, considera como população vulnerável o conjunto de pessoas
residentes que apresentam pelo menos uma das características abaixo:

• Famílias que residem em domicílio com serviços de infraestrutura


inadequados. Conforme definição do IBGE, trata-se dos domicílios
particulares permanentes com abastecimento de água proveniente
de poço ou nascente ou outra forma, sem banheiro e sanitário ou
com escoadouro ligado à fossa rudimentar, vala, rio, lago, mar ou
outra forma e lixo queimado, enterrado ou jogado em terreno baldio
ou logradouro, em rio, lago ou mar ou outro destino e mais de 2
moradores por dormitório.
• Família com renda familiar per capita inferior a um quarto de salário
mínimo.
• Família com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo,
com pessoas de 0 a 14 anos e responsável com menos de quatro
anos de estudo.
• Família na qual há uma chefe mulher, sem cônjuge, com filhos
menores de 15 anos e analfabeta.
• Família na qual há uma pessoa com 16 anos ou mais, desocupada
(procurando trabalho) com quatro ou menos anos de estudo.
• Família na qual há uma pessoa com 10 a 15 anos que trabalhe.
• Família no qual há uma pessoa com 4 a 14 anos que não estude.
• Família com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo,
com pessoas de 60 anos ou mais.
• Família com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo,
com uma pessoa com deficiência (BRASIL, 2004, p. 135).

Ainda de acordo com o citado documento, a taxa de vulnerabilidade social


de um determinado território vai depender da combinação dessas características.

73
A NOB/SUAS regulamenta a operacionalização da gestão da Política de Assistência Social,
conforme a Constituição Federal de 1988, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e
legislação complementar aplicável nos termos da Política Nacional de Assistência Social de
2004, sob a égide de construção do SUAS, abordando, dentre outras coisas: a divisão de
competências e responsabilidades entre as três esferas de governo; os níveis de gestão de cada
uma dessas esferas; as instâncias que compõem o processo de gestão e controle dessa política
e como elas se relacionam; a nova relação com as entidades e organizações governamentais e
não-governamentais; os principais instrumentos de gestão a serem utilizados; e a forma da
gestão financeira, que considera os mecanismos de transferência, os critérios de partilha e de
transferência de recursos.

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Entre as principais vulnerabilidades citadas pelo Grupo, identificadas no


cotidiano de trabalho foram destacadas: o desemprego ou inserção precarizada no
mundo do trabalho, sem acesso aos direitos trabalhistas; trabalho informal; baixa
escolaridade; uso de álcool e/ou droga por parte de algum membro da família; falta
de uma estrutura familiar estável e/ou famílias que se modificam constantemente,
entre outras.
Diante deste cenário, questiona-se acerca dos possíveis rebatimentos no
desenvolvimento infantil, ou seja, crianças oriundas desses segmentos terão,
necessariamente, o mesmo desenvolvimento que as crianças oriundas de
segmentos menos vulneráveis?
Na perspectiva vygotskiana, abordada por Rapoport e Silva (2013), não
se pode negar a relação entre desenvolvimento humano e contexto social. Sendo
assim,

crianças que se desenvolvem em ambientes desfavoráveis, que


presenciam e sofrem práticas violentas em família, com pouco
estímulo por parte dos pais, tendem a ter seu desenvolvimento
prejudicado [...] (p. 4).

A aprendizagem, sob este enfoque, inicia-se antes de a criança ingressar


na escola. Daí a importância de que se esteja num ambiente em que a
aprendizagem seja favorecida, devendo os responsáveis ser capazes de estimular
tal potencial.
Em famílias em condição de vulnerabilidade, os esforços são canalizados
na luta pela sobrevivência. Com isso, a escolaridade, e até mesmo outros recursos
que poderiam auxiliar no desenvolvimento infantil, são postos em segundo plano, de
modo que adolescentes e até mesmo crianças se evadem da escola e buscam um
meio para auxiliar no sustento da família. Há que se ressaltar, ainda, que muitos
destes pais também apresentam baixa escolaridade e passaram, no pretérito, por
situação análoga, tendo que abandonar a escola para ajudar no sustento de suas
famílias. Nesse entender, a criança é considerada alguém que é desde sempre
sujeito social, cuja identidade social e desenvolvimento estão intrinsicamente
relacionados ao contexto cultural e econômico em que está inserida.
575
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Atenta-se, ainda, para as formas que os adultos vêm e se relacionam com


a criança, as quais podem definir o lugar e papel dela em determinadas sociedades
(famílias), podendo potencializar ações de caráter mais protetivo, ou ao contrário,
expor a criança a situações de maior vulnerabilidade. Nos dois casos, a rede de
valores e regras predominantes no ambiente, possivelmente irão se constituir como
determinantes.
Por outro lado, também há de se destacar no universo do atendimento
forense, casos altamente litigiosos, cujas famílias não vivenciam condição de
vulnerabilidade, especialmente nas Varas de Família. Com o consequente aumento
do número de separações e de divórcios e a (in)capacidade de flexibilização de uma
das partes, entre outras situações, entram em cena discussões acerca da
conjugalidade e parentalidade, cuja forma de lidar com a situação pode gerar
consequências diversas e acusações infindáveis, gerando disputas quanto à guarda,
regulamentação de visitas, ação de alimentos, etc. Em nome da proteção, direitos
são violados, em especial o direito à convivência familiar, ficando os filhos à mercê
dos adultos, quando não inseridos no conflito.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS EXPRESSÕES DA


CRIANÇA

Quando se pensa em ouvir uma criança, deve-se antes vislumbrar quais


são os meios que ela tem para se expressar e o quanto esses meios de
manifestação dizem sobre ela ou o contexto no qual está inserida. Considera-se que
vários fatores desenvolvimentais e ambientais podem influenciar a visão de mundo
da criança e a capacidade de expressar suas vivências.
Entendendo-se que a criança é formada e educada nas relações com as
outras pessoas e que se desenvolve em uma coletividade, pressupõe-se que será
influenciada pelas experiências vivenciadas e pelos valores e normas de seu grupo
de referência social, cultural e político.
Segundo consta em artigo do Grupo de Estudos de Limeira-SP, publicado
por este Tribunal de Justiça (2016), torna-se importante entender que as
características pessoais de cada criança têm uma relação direta com a estimulação

576
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e a capacidade de proteção do seu grupo familiar e de sua rede de significações74.


Desta forma, tais características devem ser avaliadas, em relação aos ciclos de vida,
potencialidades, recursos da família, além de fatores de risco e proteção, incluindo-
se a qualidade dos serviços a que tem acesso.
Segundo a mesma fonte, a observação, a atenção e a análise do
desenvolvimento da criança no âmbito neuromotor, cognitivo, linguagem e afetivo-
social fornecem pistas essenciais para se concluir sobre a qualidade dos cuidados
que lhe são dispensados, dos vínculos e como ela responde a situações de
vulnerabilidade e conflitos.
O profissional deve procurar conhecer a rotina da criança, sua condução
nos diferentes espaços de relacionamento e o comportamento em relação aos pais e
destes em relação a ela, sem perguntar sua opinião de forma direta.
Bordieu (1999) aponta que a criança se expressa de diversas formas,
adotando comportamentos de contentamento, alegria, agressividade, rebeldia,
fugas, omissão, mentira, queda no rendimento escolar, entre outros. Estes traços,
associados ao que é manifesto verbalmente e por meio das ações, são
exteriorizações daquilo que foi interiorizado e, ao mesmo tempo, alimentam os
processos sociais.
É importante reconhecer que cada criança tem sua própria
individualidade, formas de pensar, de sentir e de se expressar, fazendo-se
necessário que o profissional tente observar e compreender seus canais
expressivos: a expressão corporal, o gesto, as reações, manhas, teimosia, dores,
choros, sorrisos, olhares, o movimento, expressão musical, palavra oral ou escrita,
brincadeiras, desenhos, entre outros.
Para além do que é verbalizado, o profissional deverá observar ainda o
modo de agir da criança, seu tom de voz, sua postura corporal, as pausas e o
silêncio. Toda criança tem direito e quer ser escutada, mas acolher e ouvir o seu
silêncio é tão importante quanto acolher e ouvir a palavra.

74
Esta rede estrutura um “meio” que, a cada momento e situação, captura e recorta o fluxo de
comportamento das pessoas, tornando-os significativos naquele contexto (...). Pessoas e redes
de significações sofrem mútuas e contínuas transformações, canalizadas por características
físicas e sociais do contexto, numa dinâmica segmentação e combinação de fragmentos de
formações discursivas e ideológicas, experiências passadas, percepções presentes e
expectativas futuras (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2000).

577
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Embora o silêncio possa assustar e inquietar o profissional, segundo Silva


(2010) é importante se atentar para significados que diferentes tipos de silêncio
podem apontar, como, por exemplo, sentimentos de tensão, medo, ou podendo
indicar reflexão e/ou desinteresse.
Korczadk (s/d apud ROSSETTI-FERREIRA et al., 2011) esclarece que na
trama de relações, o silêncio pode significar um momento de privacidade ou reação
de temor ou subordinação, insegurança ou uma dor mais profunda.
Lewgoy e Silveira (2007 apud LAVORATTI, 2016) explicam que o silêncio
é uma expressão não-verbal que, muitas vezes, comunica bem mais que as palavras
ou a tentativa de encobrir algo que a criança não consegue enfrentar. Diante do
silêncio é preciso distinguir se realmente indica resistência como resultado de
repressões pessoais ou limitações culturais de sua rede interpessoal.
Portanto, conhecer uma criança não se restringe a ouvir os relatos e
sentimentos por ela verbalizados, mas identificar tanto suas capacidades quanto
dificuldades, sua fase de desenvolvimento e seu nível de maturidade. De acordo
com o referido artigo do Grupo de Estudos de Limeira-SP (2016), o sofrimento da
criança pode gerar sintomas físicos, como atrasos no desenvolvimento neuromotor,
de autonomia, na aquisição da fala, gagueira, mutismo, dificuldades cognitivas
acompanhadas de declínio do rendimento escolar, insônia, ansiedade,
agressividade, enurese, depressão, etc.
Desta forma, dar voz à criança implica na capacidade do profissional ouvir
e considerar suas opiniões, entendendo que ela se expressa de várias formas; e
para poder interpretar tais expressões é preciso fazer uma relação destas com o
meio ambiente e as relações que a criança vive em seu cotidiano. É importante
identificar o contexto familiar, sua realidade socioeconômica, sintomas de violações
e a forma como lida com os conflitos e necessidades da criança, entendendo-se que
a voz da criança perpassa pelo olhar de mundo da família e da coletividade e
desvelará como ela própria reproduz o seu processo de socialização.
De acordo com Rossetti-Ferreira et al. (2011), enquanto sujeito de
direitos, à criança será concedido o direito de ser ouvida e expressar sua opinião,
porém é o adulto (responsáveis ou profissionais) quem decide se ela está apta a
expressar sua opinião, de acordo com sua idade, fase de desenvolvimento e o seu

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grau de maturidade. Embora supostamente seja garantido o direito da criança ser


ouvida, é importante enfatizar que ela não tem o dever de falar.
Por outro lado, considera-se, em concordância com Costa e Miragem
(2012), que reconhecer a capacidade da criança expressar suas opiniões não
significa simplesmente “fazer suas vontades”, mas sim atentar-se ao princípio do
melhor interesse desta. A escuta requer por parte do profissional, o reconhecimento
da criança como sujeito, numa perspectiva de descentralização do poder, baseadas
na participação e no diálogo.
Conforme afirma Mariotti (2007 apud TJSP, 2016, p. 489), “dialogar é,
antes de tudo, aprender a ouvir”. A arte de ouvir os outros conduz a uma importante
aprendizagem: ouvir a nós mesmos. É importante que o profissional consiga refletir
sobre como a natureza do processo o atinge e como isso interfere na condução do
estudo, na escolha das técnicas e no parecer que será apresentado.
Para Delfos (2001) e Mayal (2000) citados por Rossetti-Ferreira et al.
(2010), a melhor forma de ouvir as crianças é por meio de “conversas”,
independente do contexto em que elas aconteçam e a observação participativa
pressupõe assistir, ouvir, refletir e envolver-se com a criança em atividades variadas,
muitas vezes propostas pela própria criança. Escutar é diferente de ouvir; a escuta
demanda tempo e disponibilidade, o que pressupõe o estabelecimento de um
“vínculo breve” entre o profissional e a criança, evitando-se questionamentos de
forma direta, assim como expressões de julgamento, que muitas vezes poderão
estar impregnadas de seus próprios valores.
Segundo o artigo do Grupo de Estudos de Limeira-SP (2016, p. 491):

A escuta também precisa oferecer espaço – compreendido aqui não


somente como local físico, mas sim a adoção de uma postura
empática por parte do profissional que permita a criança e ao
adolescente, sentirem-se acolhidos para compartilhar suas
experiências e angústias.

O ambiente para a escuta deve ser adequado às necessidades da


criança, levando-se em conta a disposição dos móveis, bem como a presença de

579
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materiais e atividades lúdicas que facilitem a interação, em consonância com a


metodologia de trabalho adotada e a intencionalidade de seu estudo.
Para a escuta de crianças, considera-se importante colocar-se a seu lado,
na sua altura visual, utilizar-se de uma linguagem clara, promovendo as
apresentações e esclarecimentos sobre o objetivo dos contatos, escutar e olhar para
ela enquanto se fala. Faz-se necessário a criação de um ambiente acolhedor,
colocando-se disponível para a criação de um vínculo, ainda que seja de natureza
breve.
Na interação verbal, é interessante que o adulto capte o tópico oferecido
pela criança, ajudando-a a prosseguir por meio de questões abertas, tais como:
quem, o quê, quando, onde e por que.
Na avaliação psicossocial em contexto judiciário, os profissionais
responsáveis dispõem de liberdade de escolha das metodologias a serem adotadas,
sendo que frequentemente se utilizam de entrevistas (realizadas tanto no espaço
forense quanto na escola ou na instituição de acolhimento, no domicílio ou em
qualquer outro espaço de interação), visitas domiciliares, recursos lúdicos,
desenhos, contatos com pessoas significativas, testes psicológicos (exclusivo dos
psicólogos), entre outras.
As visitas domiciliares são relevantes para avaliação do ambiente
oferecido à criança, verificando-se se esse espaço poderá estimular as capacidades
e habilidades motoras, cognitivas, de linguagem e sociais a serem desenvolvidas na
criança.
O desenho pode ser um facilitador da interação, exigindo participação do
profissional e, especificamente para os psicólogos, pode ser utilizado como técnica
projetiva.
Dependendo do estágio de desenvolvimento da criança e a dificuldade
que muitas delas apresentam para realizar relatos, há possibilidade de utilização de
recursos lúdicos. Stein (2010), entretanto, cita que alguns autores (os quais,
provavelmente, buscam compreender acontecimentos da realidade factual da
criança) consideram que o uso de técnicas que estimulam a imaginação, entre eles o
uso de bonecos anatômicos, geram experiências artificialmente fabricadas e podem
propiciar relatos menos fidedignos.

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Já as entrevistas são instrumentos imprescindíveis ao trabalho das


equipes técnicas do judiciário. No entanto, Stein (2010), aponta para a necessidade
de que esta seja realizada de forma extremamente cuidadosa, haja vista que
também pode propiciar sugestionabilidade na criança, dependendo de como será
conduzida.
Ceci, Bruck e Battin (2000 apud STEIN, 2010) referem algumas formas
inapropriadas de entrevista, nas quais o entrevistador pode sugerir um padrão de
resposta à criança, ainda que não intencionalmente. Por exemplo, ao verbalizar:
“não tenha medo de dizer o que aconteceu...”, deixando latente a ideia de que algo
aconteceu e necessita ser dito, o que pode induzir a criança a criar ou distorcer fatos
para alcançar a resposta que ela imagina que o adulto queira ouvir. Outra
possibilidade é quando o entrevistador presume estar construindo uma relação de
suporte, porém expõe suas crenças, utilizando-se implicitamente de ameaças,
subornos ou recompensas.
A mesma autora orienta como forma de minimizar os efeitos da deferência
da criança ao adulto, que o entrevistador faça o possível para estabelecer uma
relação de igualdade, utilizando linguajar, posturas e disposição do ambiente
adequados à criança, que propiciem uma vivência menos hierárquica possível.
Quanto à questão de sugestionabilidade, a autora ainda aponta fatores
que facilitam sua ocorrência no caso de crianças pequenas:

Crianças em idade pré-escolar são mais suscetíveis aos efeitos da


interferência externa, aceitando sugestões de uma falsa informação
e, portanto, apresentando maior probabilidade de distorcer o seu
relato em comparação a crianças mais velhas, adolescentes e
adultos (STEIN, 2010, p. 168).

No entanto, a mesma autora ressalva que elas tendem a não aceitar as


falsas informações se estas diferem muito do contexto vivenciado ou testemunhado.
Rosseti-Ferreira et al. (2011) também reforçam tal concepção:

A partir dos 5 anos a criança já acumulou conhecimentos suficientes


para saber o que o adulto prefere ou não ouvir, isto é, quais opiniões,
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atitudes e desejos são considerados “bons” ou não, e assim, passa a


ter a possibilidade de “algum controle” sobre o que quer ou não
contar. É preciso que se estabeleça uma relação de confiança, que o
adulto coloque-se no ponto de vista da criança e veja o mundo com
os olhos da criança, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez
(p. 254).

Dentre fatores que aumentam a sugestionabilidade, segundo Stein (2010),


estaria o fato de que crianças pequenas têm dificuldades em tarefas de recordação
livre, quando são solicitadas a se lembrarem de um evento sem qualquer estímulo
ou pista. Além disso, possuem dificuldades em identificar a fonte da informação
recordada, se foi algo que elas viram ou ouviram alguém dizer, por exemplo.
A autora elenca ainda aspectos individuais da personalidade infantil, que
podem torná-las mais ou menos propensas a sugestionabilidade. Cita alguns
estudos recentes que aferem que crianças com um elevado autoconceito, melhor
capacidade de inteligência verbal e habilidade linguística, são geralmente menos
suscetíveis a indução. Por outro lado, crianças com deficiência intelectual, mais
tímidas, mais criativas e com vínculos inseguros com os pais, apresentam maior
probabilidade de serem sugestionadas. Estes estudos ainda são muito recentes e
necessitam ser objeto de pesquisas científicas, no entanto, representam um norte
para futuras descobertas.
Na tentativa de minimizar os efeitos da sugestionabilidade na entrevista,
Stein (2010) refere que uma das técnicas de coleta de testemunho mais
pesquisadas mundialmente é a Entrevista Cognitiva, desenvolvida por Ronald Fisher
e Edward Geiselman, no ano de 1984. Após anos de estudo e aperfeiçoamentos, os
autores chegaram a uma divisão da Entrevista Cognitiva em cinco etapas, cada uma
com seus objetivos e fundamentos, descritos a seguir.
A primeira etapa é dedicada à construção do rapport, cujo objetivo é
desenvolver uma atmosfera psicológica favorável, com explicações das regras
básicas e tendo a finalidade de se conhecer um pouco sobre o nível cognitivo do
entrevistado haja vista que este deve possuir certo nível intelectual, a ser avaliado
antes do início da entrevista.
A segunda etapa se refere à recriação do contexto original, na qual o
entrevistador solicita ao indivíduo, de forma lenta e pausada, que se coloque de volta

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na situação original, a fim de auxiliar no fornecimento de pistas à sua memória, sem


que direcione ou sugestione o entrevistado.
Segue-se a terceira etapa, que consiste em narrativa livre dos fatos, na
qual são respeitadas as pausas e o ritmo do entrevistado, enquanto o entrevistador
mantém a postura de interesse, atenção e escuta.
A quarta etapa envolve os questionamentos, que devem ser realizados a
partir do relato trazido pela testemunha, levando-se em conta o nível de
compreensão e a forma de expressão do mesmo, evitando ser sugestivo nas
indagações e perguntas fechadas que possam induzir as respostas que o
entrevistador deseja ouvir.
A quinta e última etapa é o fechamento, descrito como a retomada do
rapport anteriormente estabelecido, com o intuito de que se crie uma última
impressão positiva da entrevista.
Stein (2010) refere que a Entrevista Cognitiva é uma poderosa ferramenta
contra a revitimização daqueles que prestam depoimentos, respeitando-se as
condições cognitivas e psicológicas do indivíduo entrevistado. Além disso, acredita-
se que este formato de entrevista reduza as chances da sugestionabilidade por parte
dos entrevistadores, minimizando assim a criação de falsas memórias.
No entanto, a autora cita algumas limitações práticas para a utilização
efetiva desta técnica, entre o que, a necessidade de treinamento extensivo do
entrevistador, o que inclui conhecimento básico sobre funcionamento da memória e
dinâmica de comunicação interpessoal. Outros pré-requisitos são o tempo
disponibilizado para a sua realização e o ambiente físico, que deve ser composto de
uma sala confortável e silenciosa, livre de interferências externas. Cabe ressaltar
ainda que o entrevistado deve possuir certo nível intelectual, o que torna a entrevista
cognitiva contraindicada para crianças pré-escolares e indivíduos com recursos
cognitivos limitados.
Hudson e Shapiro (1991) observam que quando a criança é capaz de
fazer sozinha uma narrativa de experiência pessoal, ela fica livre para enfocar os
aspectos realmente importantes das experiências, segundo sua própria perspectiva,
e não amarrada a perguntas que seguem a perspectiva do adulto sobre os eventos.
Ferreira (2012), em capítulo que compõe o livro organizado pela AASPTJ-
SP e CRESS-SP, aponta que nas iniciativas de coleta de testemunhos de crianças,

583
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a discussão tende a se centralizar em conceitos como “memórias verdadeiras” ou


“falsas”, privilegiando-se a memória explícita e declarativa, onde supostamente
estaria situado o registro do episódio; mas, de outro lado, segundo ela, existe a
“memória implícita”, que muitas vezes só se expressa por meios indiretos, como nas
sequelas para a vítima ou através de aspectos da experiência que não foram
conscientemente processados e se manifestam de forma sintomática na conduta.
As observações acima tocam em um ponto crucial relativo aos objetivos
dos procedimentos técnicos que compõem as atribuições dos profissionais dos
Serviços Técnicos Judiciários e que determinam as opções metodológicas
correspondentes.
Há procedimentos que buscam esclarecer aspectos da realidade factual e
outros que buscam esclarecer aspectos da realidade psíquica/subjetiva. Uma
perspectiva não pode ser equiparada a outra porque têm objetos distintos.
A prática do depoimento especial, baseada na Entrevista Cognitiva e
consubstanciada no Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e
Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência Sexual, sem dúvida, destina-se
a investigar acontecimentos da realidade concreta, verídica; sua finalidade é
conhecer a verdade objetiva dos fatos. Neste sentido, é fundamental tentar afastar
efeitos de distorções e sugestionabilidade.
Diferentemente, os recursos metodológicos de grande parte das
avaliações técnicas realizadas atualmente no âmbito judiciário buscam apreender
outra gama de fenômenos, ou seja, a realidade psíquica/subjetiva. Neste sentido,
considera-se que a opção pelo Método Psicanalítico é incompatível com a adoção
de instrumental da Psicologia Cognitiva, em razão de que cada uma dessas
vertentes aborda e produz conhecimentos em diferentes esferas, que não se
confundem e não são passíveis de redução uma à outra.
A título de esclarecimento, apresenta-se a seguir um trecho da obra de
Freud, no qual, assinalando-se a importância do conceito de fantasia inconsciente
para a Psicanálise, discute-se a dicotomia realidade e fantasia na produção de
sintomas psicológicos, demarcando o posicionamento do psicanalista diante dela,
bem como o lugar da “verdade” neste âmbito, delimitando assim a abrangência da
escuta psicanalítica.

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Por meio da [psic]análise, conforme sabem, partindo dos sintomas


chegamos ao conhecimento das experiências infantis, às quais a
libido está fixada e das quais se formam os sintomas. Pois bem, a
surpresa reside em que essas cenas da infância nem sempre são
verdadeiras. Com efeito, não são verdadeiras na maioria dos casos
e, em algumas, são o oposto direto da verdade histórica. [...]. Existe,
contudo, mais alguma coisa singularmente desconcertante em tudo
isso. Se as experiências infantis trazidas à luz pela [psic]análise
fossem invariavelmente reais, deveríamos sentir estar pisando em
chão firme; se fossem regularmente falsificadas e mostrassem não
passar de invenções, de fantasias do paciente, seríamos obrigados a
abandonar esse terreno movediço e procurar salvação em outra
parte. Mas aqui, não se trata nem de uma nem de outra coisa; pode-
se mostrar que se está diante de uma situação em que as
experiências da infância construídas ou recordadas na [psic]análise
são, às vezes, indiscutivelmente falsas e, às vezes, por igual,
certamente corretas, e na maior parte dos casos compostas de
verdade e falsificação. Às vezes, portanto, os sintomas representam
eventos que realmente ocorreram, e aos quais, podemos atribuir uma
influência na fixação da libido, e, por vezes, representam fantasias do
paciente, não talhadas para desempenhar um papel etiológico. É
difícil achar uma saída para esses casos. Talvez possamos iniciar
por uma descoberta semelhante – ou seja, a de que lembranças
infantis isoladas, que as pessoas têm possuído conscientemente
desde os tempos imemoriais e antes que houvesse qualquer coisa
semelhante à [psic]análise, podem igualmente ser falsificadas, ou,
pelo menos, podem combinar verdade e adulteração, em abundância
[...].
Após alguma reflexão facilmente podemos entender o que é que
existe nessa situação que nos confunde. É o reduzido valor
concedido à realidade, é a desatenção à diferença entre
realidade e fantasia. Somos tentados a nos sentir ofendidos com o
fato de o paciente haver tomado nosso tempo com histórias
inventadas. A realidade parece-nos ser algo como um mundo
separado da invenção e lhe atribuímos um valor muito diferente.
Além disso, também o paciente enxerga as coisas por esse prisma,
em seu pensar normal. Quando apresenta o material que conduz
desde os sintomas às situações de desejo modeladas em suas
experiências infantis, ficamos em dúvida, no início, se estamos
lidando com a realidade ou com fantasias [...].
Levará um bom tempo até poder assimilar a nossa proposição de
que podemos igualar fantasia e realidade e não nos importaremos,
em princípio, com qual seja esta ou aquela das experiências da
infância que estão sendo examinadas. Além do mais essa é
evidentemente, a única atitude correta a adotar para com esses
produtos mentais. Também eles possuem determinada realidade.
Subsiste o fato de que o paciente criou essas fantasias por si
mesmo, e essa circunstância dificilmente terá, para sua neurose,
importância menor do que teria se tivesse realmente experimentado
o que contém suas fantasias. As fantasias possuem realidade
psíquica, em contraste com a realidade material, e,
gradualmente aprendemos a entender que no mundo das
neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva (FREUD,
1969, p.428-430, grifos nossos).

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Assim, a escuta de um depoimento judicial, baseado em Entrevista


Cognitiva difere da escuta da avaliação técnica de vertente psicanalítica, não
havendo possibilidade de reduzir um campo a outro por terem objetos diferentes.
Percebe-se, por conseguinte, que quando o objetivo é dar “voz” à criança,
há possibilidade de adoção de diferentes concepções, objetivos e metodologias para
sua concretização dentro da gama de atribuições do Serviço Técnico Judiciário.

O REGISTRO DA “VOZ” DA CRIANÇA NOS LAUDOS TÉCNICOS

CONSIDERAÇÕES DA PSICOLOGIA

Após algumas aproximações sobre as formas pelas quais a criança se


apropria da informação e a memoriza, tendo em vista seu processo de
desenvolvimento, bem como as maneiras pelas quais produz seu discurso/relato,
optou-se por tomar também como foco de reflexões e estudos, a apreensão que o
profissional faz daquele discurso e o apresenta no formato de laudo.
Identificam-se, de início, algumas premissas que circunscrevem a escuta
psicológica no contexto judiciário. É certo que o psicólogo detém um esquema
conceitual a respeito da infância e ainda, da criança criada em circunstâncias
específicas do ponto de vista psicossocial. Incluem-se também, neste escopo,
aspectos subjetivos do psicólogo que se dispõe a essa escuta.
Os efeitos deste encontro singular, bem como o impacto que o discurso
de dada criança ocasiona no profissional de Psicologia, precisarão ser traduzidos em
linguagem técnica, ao mesmo tempo em que, acessível aos destinatários do laudo e
ainda compatível com a finalidade da avaliação. A escrita do profissional
(informação/relatório/parecer) portará os traços do lugar a partir do qual é produzida.
Particularmente, a avaliação em contexto judiciário é perpassada por noções de
adequação, adaptação, equilíbrio e capacidade.
Ainda, é preciso reconhecer que a escrita do profissional representará, em
grande medida, a criança no processo judicial em questão.
A primeira questão que emerge ao psicólogo diante da tarefa é como ele
vai ouvir a criança. A resposta não é óbvia, nem o modo de intervenção que se
seguirá (AMENDÔLA, 2009). O que se pode dizer é que a escuta parte de uma
metodologia e incluirá interpretação do discurso verbal, lúdico e/ou gráfico,
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chegando-se a conclusões a partir do campo específico de conhecimento


(ALVAREZ, 2012).
Conforme assinalado em tópico anterior, vários autores apontam que a
escuta psicológica abrange o dito e o não-dito (silêncio, gestos, atitudes, por
exemplo), além de assinalarem a necessidade de contextualização do que a criança
expressa (ALVAREZ, 2012; AMENDOLA, 2009; VIAUX, 1997). Neste sentido,
apreendem-se informações por via direta (manifestações verbais, corporais, lúdicas,
gráficas por parte da criança) e por via indireta (entrevistas com familiares,
colaterais, profissionais que a acompanham, etc.).
A partir dessa descrição, constata-se que a escuta psicológica de crianças
tem caráter interpretativo. “O profissional deve saber que, em geral, ele faz uma
interpretação quando ouve a palavra da criança e a comunica, mesmo se se esforça
em transmiti-la tal qual foi proferida” (CRIVILLÉ, 1997, p. 134).
Reconhecer esta característica impõe ao profissional a adoção de certos
cuidados. Primeiro, atenção para discriminar tanto quanto possível a expressão da
criança de suas projeções pessoais, mantendo as hipóteses prévias em aberto.
Segundo Amendola (2009), nas interações comuns entre crianças e adultos, “a
palavra da criança, transformada e modulada pela interpretação do adulto que lhe
dará assistência, não raro, tende a expressar as impressões pessoais desse adulto
[...]” (p. 95), circunstância que o psicólogo em seu fazer profissional tem a obrigação
de tentar evitar.
A mesma autora ainda salienta a relativa facilidade com que a criança
pode ser manipulada pelo seu interlocutor, seja ele pessoa de seu círculo afetivo ou
mesmo um profissional até então desconhecido que passa a entrevistá-la,
ressalvando-se a possibilidade de que tal manipulação seja exercida de forma
inconsciente pelo adulto. Sobre isso, a autora esclarece: “uma vez que as pessoas
formam uma crença, elas seletivamente procuram, coletam e interpretam novos
dados de maneira que comprovem sua opinião. Essa confirmação cognitiva
distorcida torna tais convicções resistentes a mudanças, mesmo quando há prova
contrária” (AMENDOLA, 2009, p.109). Nesta perspectiva, considera-se também
importante o alerta de Viaux (1997) sobre o fato de que não existem perguntas não
indutoras.

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Ainda na seara de distorções de que o discurso infantil pode ser objeto,


sobretudo no contexto judiciário, Groeninga (2011) salienta a importância do
reconhecimento da “oscilação afetiva” em direção a um ou outro genitor como
fenômeno que faz parte do desenvolvimento emocional infantil. Ou seja, a criança
necessariamente experimenta sentimentos ambivalentes em relação aos genitores
ao longo de seu desenvolvimento, por exemplo, amor e ódio, podendo se aproximar
de um e se distanciar de outro dependendo do momento. É na convivência familiar
que ela vai tendo referências de como interpretar e se conduzir a partir de tais
sentimentos e vai tendo oportunidades de rever seus posicionamentos a partir de
acontecimentos concretos e de sua própria evolução na condição de pensar sobre
eles.
No entanto, muitas vezes em situações de litígio familiar, um fenômeno
que a criança deveria ter a chance de viver de maneira livre, tendo a oportunidade
de transitar entre diferentes posições e refletir sobre aquilo que sente, é aprisionado,
fixado, estabelecendo-se equivocadamente que o que ela expressa naquele
momento é a verdade atemporal ligada à qualidade de seus vínculos familiares.
Neste sentido se nega a ela o direito de vivenciar o necessário processo de
oscilação afetiva, prejudicando-se assim seu desenvolvimento subjetivo.
Ao interpretar o discurso da criança e registrá-lo, há também que se ter
como referências os marcos de desenvolvimento em vários âmbitos: cognitivo, de
pensamento, de memória, de linguagem, psicossexual, entre outros. Maluf (2004
apud AMENDOLA, 2009, p. 94), afirma que:

[...] a criança até os seis anos de idade, do ponto de vista cognitivo,


não possui desenvolvimento capaz de diferenciar um engano
intencional (mentira) de seus jogos de faz-de-conta (fantasia), ou se
o que lhe transmitirem é verdade ou mentira do ponto de vista
factual. [...] a criança até essa idade não tem compromisso com a
realidade.

Viaux (1997, p. 130) sintetiza de maneira clara tais ideias:

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na apresentação da perícia, o exame da criança é acompanhado,


portanto, por uma análise do contexto, que permite ordenar os dados
colhidos e inscrever as reações da criança, sua palavra e o balanço
de seu estado psicológico num quadro que leva em conta a
complexidade de sua situação.

Por fim, as palavras de Gardner (1991 apud AMENDOLA, 2009, p. 94)


salientam a inadequação de se atribuir exclusivamente à fala da criança a
responsabilidade pela elucidação da verdade factual:

Os profissionais que buscam na palavra da criança a verdade factual


para a comprovação de um abuso sexual, negligenciam o fato de que
os filhos são influenciados pelos genitores, especialmente pelo genitor-
guardião (mãe) que geralmente é o responsável pela acusação e
intenção de afastamento de pais e filhos. O autor explica que, no caso
de haver litígio, o genitor-guardião seria capaz de programar os filhos
para acreditar numa história de maus tratos e violência.

CONSIDERAÇÕES DO SERVIÇO SOCIAL

A análise do tema apresentado deve contemplar a natureza do Serviço


Social, que enquanto profissão de caráter interventivo se apropria do conhecimento
de outras ciências para a sua análise, com esparsas literaturas específicas.
A partir desta perspectiva e considerando os fundamentos da profissão, a
leitura dos fatos acontece pela ótica do sujeito, que se manifesta nos diferentes
espaços sociais, cabendo ao profissional se apropriar desta subjetividade a partir
das relações sociais, onde estão contidos inúmeros desafios para o seu
enfrentamento.
A atuação profissional no espaço sócio-jurídico apresenta particularidades
típicas do âmbito institucional forense e demanda uma ação visando elucidação dos
fatos, legitimação de seus relatos e instrumentalização na aplicação da justiça, numa
perspectiva de direitos, atentando-se para o melhor interesse da criança.
A partir deste pressuposto, o profissional é requisitado a dar visibilidade à
fala da criança, com vistas a instruir o processo, por meio de conhecimentos

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

específicos das áreas e contribuir com um parecer que forneça elementos para a
convicção do juiz e sua tomada de decisão.
Neste sentido é importante ter claro que o laudo é utilizado no meio
judiciário como um elemento de prova, com a finalidade de dar suporte à
fundamentação, à subsidiar a decisão judicial, mas que pode ser, ao mesmo tempo,
um instrumento de viabilização dos direitos dos usuários.
Segundo Fávero (2017) o laudo ou parecer social, com a sistematização
do estudo realizado, transforma-se em instrumento de poder, que contribui nos autos
à definição do futuro destas crianças e famílias.
Nesta seara o debate sobre a postura ética do profissional na escuta e
registro dos relatos da criança foi no sentido de se evitar, sempre que possível, a
transcrição das falas entre aspas, protegendo as suas declarações, de forma a não
colocar na criança a responsabilidade pela decisão da resolução do conflito, que
devem ser analisados no contexto.
Neste cenário, ao selecionar os elementos constitutivos para a elaboração
do laudo social, deve se considerar as representações, os valores e os significados
destes no contexto sociocultural, a partir das relações sociais e de convivência da
criança.
A percepção das manifestações apresentadas visa identificar sintomas de
cada tipo de violação, não apenas com recortes de fala, de forma fragmentada, mas
dentro de um contexto socioeconômico da criança, de seu território, da família e a
circulação onde está inserida, a forma utilizada em lidar com os conflitos, assim
como as suas necessidades estão sendo supridas.
Considerou-se que dar visibilidade a fala da criança, implica reconhecer a
importância do seu papel na dinâmica familiar, entendendo-se que as suas
manifestações nos vários espaços de vivência podem trazer indicadores não
contemplados. Não se desconsidera que a criança poderá apresentar um discurso
de lealdade ou medo do atual guardião, tendo sido apontado como proposta que nos
litígios, deverá ser ouvida em momentos distintos, acompanhada pelas figuras de
referência.
Requer-se dos profissionais, que estes sejam capazes de legitimar este
novo espaço ocupado pela criança, como sujeito de sua própria história, com direito

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a voz, através de práticas que considerem seus anseios e possibilitem conhecer


suas demandas, na qual a criança se sinta acolhida e não inquirida.
Ao aprofundar o conhecimento da dinâmica familiar instaurada, o
profissional amplia as possibilidades de conhecer a realidade da criança, que estará
proporcionando uma compreensão da sua complexidade e, assim, poder revelá-la
de forma técnica mais fidedigna. Para o Serviço Social, seu objeto de estudo visa, a
partir da aproximação da realidade dos fatos, a busca de sua proteção e garantia
dos seus direitos.
A avaliação profissional requer, também, a clareza sobre o seu papel na
articulação com a rede intersetorial e de proteção e a partir daí possibilitar um olhar
de maior aproximação com a realidade desta criança e família.
No registro do laudo a criança será retratada a partir do ponto de vista do
profissional que a atende e para isto é preciso ultrapassar a visão imediatista que se
apresenta e desvelar os diversos fatores que compõe esta realidade, a fim de
interpretá-la no seu contexto sócio-histórico, o que requer o diálogo entre as áreas e
reconhecer a complementariedade entre os setores.
Destaca-se que a perspectiva interdisciplinar não fere a especificidade
das disciplinas, mas permite a pluralidade das contribuições para a compreensão
acerca do objeto estudado, numa articulação do trabalho do assistente social com o
do psicólogo.

O laudo psicossocial é uma produção científica que reúne informações


e constatação, além de interferências dos profissionais acerca dos
sujeitos envolvidos e das demandas expressas pelos mesmos. É uma
forma pela qual o trabalho técnico, a atuação da rede de serviços e as
demandas dos sujeitos envolvidos ganham visibilidade, gerando
intervenções concretas (TJSP, 2015, p. 242).

Assim, requer-se do profissional a capacidade de transpor para além do


que é verbalizado, exigindo deste a análise dos fatores socioculturais relacionais.
Há que se atentar que ao desvelar a fala da criança e sua transcrição em
laudos, devem ser considerados os indicadores que se mostram essenciais nesta
análise, que estão sujeitos a condicionamentos da realidade social e conjuntural e a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

fala da criança pode, inclusive, sofrer interferências externas, como, por exemplo,
das pessoas que a acompanham no momento das entrevistas.
Entende-se que o olhar do profissional deve abranger a análise de como
fazemos a escuta, como selecionamos e trazemos estes dados para os laudos com
vistas a maior aproximação da realidade.
Diante o exposto, o que se busca é um profissional criativo, ainda que
eventualmente se depare com o fator tempo no seu trabalho, que desenvolva sua
capacidade de desvelar a realidade e as relações deste vivido, com suas influências
socioculturais e penetrar na complexidade deste cotidiano.
Lança-se, pois, o desafio aos profissionais no desvelamento da voz da
criança nos laudos, que pressupõe um olhar ampliado, que abranja todo o processo
da escuta, com análise de suas vertentes e rede de significações, visando-se uma
aproximação mais fidedigna possível desta realidade, a qual é dinâmica e singular.

A “VOZ” DA CRIANÇA NO LAUDO PSICOSSOCIAL

Os apontamentos acima fornecem um vislumbre sobre alguns dos


inúmeros fatores que intervêm na complexa tarefa de se registrar o discurso infantil
ou “a voz” da criança. Como se pode compreender, a tarefa da avaliação técnica vai
muito além da mera consideração das palavras expressas concretamente,
requerendo que sua comunicação seja contextualizada em amplo quadro de
referência, tanto em termos de etapas de desenvolvimento quanto de configurações
de laços familiares e conflitos em que ela se insere.
O compromisso ético requer do profissional a avaliação das possíveis
implicações que o seu parecer poderá ter para o futuro dos sujeitos envolvidos e de
suas relações, de forma a não acirrar os conflitos ou aumentar a tensão entre os
envolvidos, atentando-se que o percurso ético do laudo se inicia muito antes do
estudo e do seu registro.
Entende-se, ainda, que não se pode cristalizar a voz da criança, uma vez
que ela expõe pensamentos e sentimentos momentâneos, numa realidade que é
dinâmica, que envolve a compreensão de que cada situação tem sua singularidade e
determinados aspectos da história ou da especificidade da situação vivenciada vai

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

requerer menor ou maior ênfase, destacando-se o processo de socialização, no


âmbito de suas relações sociais.
Deve-se destacar que na instituição forense a história de vida do usuário
integra um processo judicial, que poderá ser encerrado com a decisão do magistrado
e pressupõe o compromisso do profissional em selecionar e transcrever somente o
que é relevante para o deslinde da ação, a fim de não expor fatos da vida da criança
que a constranja (TJSP, 2015).
Algumas orientações práticas para fins de clareza da redação,
apresentadas no curso de laudos realizado no ano de 2018 por iniciativa do Núcleo
de Apoio Psicossocial, foram retomadas no Grupo de Estudos. A partir destas
indicações pode-se refletir sobre a pertinência da utilização de discurso direto e
indireto, a importância da distinção clara entre o que é reprodução de fala do
entrevistado e de conclusões de análise técnica, da conveniência de se evitar utilizar
termos infantis, assim como de dados constrangedores para os envolvidos.
Outra reflexão realizada pelo Grupo de Estudos se deu a partir da
discussão de laudos, de como o profissional deverá interpretar e descrever as
manifestações da criança, de forma a não acirrar os conflitos em questão, nem
responsabilizá-la por eventuais decisões, evitando-se, sempre que possível, a
reprodução textual de sua fala, tomando, ainda, o cuidado em não lhe causar um
constrangimento ou sua revitimização.
Por fim, ao longo do Grupo de Estudos foram realizadas oficinas nas
quais se apresentavam demandas e dados de estudos psicossociais (omitidas as
identificações dos envolvidos), a partir dos quais os participantes deveriam exercitar
e discutir formas de registro. O objetivo de tais oficinas era estimular a reflexão e
abertura para novas possibilidades de se registrar, não havendo pretensão de se
chegar a consensos, uma vez que as escolhas de palavras e enfoques têm ampla
variação, ligadas aos estilos pessoais e, muitas vezes, ao que se considera como
prioridade a ser ressaltada num conflito judicial específico.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões durante o ano de 2019 permitiram ao Grupo de Estudos o


aprofundamento do tema proposto, visando dar voz e visibilidade à criança, o que
perpassa pelo estudo dos aspectos do desenvolvimento infantil e personalidade em
interface com os determinantes sociais, além da importância do instrumental teórico-
metodológico por parte do profissional na sua intervenção e transcrição nos laudos.
Considerando-se as atribuições técnicas dos assistentes sociais e
psicólogos judiciários, destacou-se a importância do compromisso ético frente às
singularidades que envolvem a escuta de criança, que exige a criação de um vínculo
(ainda que de natureza breve), e a transcrição de suas expressões verbais e não-
verbais.
Partindo-se da reflexão de que a criança é vista de forma peculiar em
contextos sociais e culturais diferentes e da concepção desta enquanto sujeito de
direitos, lança-se o desafio, apontando-se para as dificuldades, a partir das diversas
formas de manifestação desta, em pontuar seu desejo em correspondência ao seu
melhor interesse, considerando-se aspectos psicossociais com os aspectos da
legalidade, evitando-se acirramento de conflitos.
Embora não se pretenda esgotar aqui tais questões, as quais têm exigido
das equipes técnicas judiciárias um repertório de conhecimentos cada vez mais
amplo, as reflexões do grupo renovaram a convicção sobre a necessidade de
intervenção cuidadosa junto à criança, além de ampliar o entendimento sobre suas
formas de expressão e de possibilidades de registrá-la nos laudos no processo de
avaliação interprofissional.
Considera-se, por fim, fundamental que o profissional tenha clareza sobre
a ética de sua inserção no sentido da proteção dos interesses da criança, possua
formação continuada e autonomia técnica para a constante problematização do seu
campo e objetivos de trabalho, bem como para a adoção de recursos metodológicos
pertinentes, em especial em face de novas atribuições que o inserem de maneira
compulsória em esferas que lhe são tradicionalmente alheias e cujos resultados e
repercussões de suas ações ainda não se mostram suficientemente esclarecidos.

594
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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598
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A ARTICULAÇÃO DOS SERVIÇOS DA REDE NA


REINTEGRAÇÃO FAMILIAR DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES ACOLHIDOS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR


PRESIDENTE PRUDENTE II
“ACOLHIMENTO – ASPECTOS DO ACOMPANHAMENTO
PELA REDE SOCIOASSISTENCIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Eduardo Campos de Almeida Neves – Psicólogo Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Ivana Diercken Simoni de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Bernardes

AUTORES
Daniele Luiza Armeron Moreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Eduardo Campos de Almeida Neves – Psicólogo Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Evelyn Navarro Justino Soler – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Ivana Diercken Simoni de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Bernardes
Marcia Giselda Juvêncio Gervazoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Regente Feijó
Nayara Coimbra Coutinho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Rosana Vera de Oliveira Schicotti – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Sandra Elisa Dias Sossoloti – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Bernardes
Silvia Cristina Carvalho Santos Vanderlei – Assistente Social Judiciário – Comarca
Martinópolis
Silvia Helena Manfrin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente Prudente

600
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente artigo é produto do trabalho de um grupo de estudos de


profissionais do Serviço Social e de Psicologia que atuam como técnicos judiciários
em comarcas pertencentes à 5ª região administrativa do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo das comarcas de Presidente Prudente, Martinópolis, Regente
Feijó e Presidente Bernardes.
A metodologia de trabalho contemplou reuniões mensais realizadas entre
março e dezembro de 2019. Em março, houve a definição do cronograma de
atividades, bem como a definição do tema, intitulado: “A articulação dos serviços
da rede na reintegração familiar de crianças e adolescentes acolhidos”. Nos
meses subsequentes ocorreram discussões coletivas e em subgrupos através de
textos, explanações, levantamento de dados atinentes ao assunto.
A escolha deste tema surgiu a partir dos questionamentos do grupo
quanto aos desafios encontrados no processo de reintegração familiar de crianças e
adolescentes acolhidos. Onde estão as maiores dificuldades?
Dessa forma o tema escolhido foi abordado iniciando-se com um breve
histórico da legislação e desenvolvimento do acolhimento no Brasil, até chegar a
última modificação do ECA, pela Lei 13.509/2017. A seguir, foi tratada a temática
das famílias, o papel na vida de seus entes, a inserção na esfera das políticas
públicas e os motivos que ensejam o acolhimento de crianças e adolescentes.
A seguir foram apresentadas as realidades das redes de serviços das
comarcas que compõem este grupo, os diferentes contextos dos municípios e os
desafios para a reintegração familiar dos acolhidos. Por fim, o artigo discorre sobre
intersetorialidade e reintegração familiar, abordando a importância do trabalho em
rede.

1 - DO ORFANATO A INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO: BREVE


TRAJETÓRIA E LEGISLAÇÃO DO ACOLHIMENTO NO BRASIL

Os serviços de acolhimento no Brasil assim como na maior parte dos


países do ocidente tiveram sua origem ligados ao trabalho filantrópico das
instituições religiosas, especialmente da Igreja Católica.

601
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Com a expansão da colonização europeia, os portugueses trouxeram este


modelo para o Brasil, sendo que anterior ao século XIX não há muitas informações
sobre as crianças e adolescentes que viveram em instituições.

A revisão da literatura sobre o tema, incluindo documentação dos


séculos XIX e XX, revela que não houve até o momento uma
contagem sistemática do número de crianças internadas no país. Os
números apontados em relatórios do governo referem-se apenas a
algumas instituições e mostram-se pouco confiáveis. (Rizzini, 2004, p
14).

Acompanhando a um sistema implantado durante a Idade Média na


Europa, no período colonial surgiu no Brasil a Roda dos Expostos onde as crianças
nascidas em condições inadequadas (adultério, estupros, pobreza, etc.) eram
deixadas anonimamente aos cuidados das freiras e irmãs de caridade das Santas
Casas de Misericórdia. Este modelo de institucionalização das crianças perdurou até
meados no Século XX.
Ainda segundo Rizzini (2004), estas instituições possuíam regras próprias
baseadas nas normas conventuais e de seminários, limitando o contato com o
exterior e realizando a separação dos internos por sexo e cor. Não havia fiscalização
e os relatos sobre maus tratos e sofrimento das crianças e adolescentes eram
frequentes.
Além dos bebês deixados na roda dos expostos, estas instituições
religiosas também abrigavam órfãos abandonados de várias idades, advindos das
mais diversas situações (morte dos pais, abandono, crianças negras e pardas),
destacando-se que, no caso de meninas órfãos de pais com posses, as instituições
assumiam o lugar de proteção até que estas encontrassem um bom casamento.
Com relação às meninas também se promovia a separação por cor e tipo de
orfandade, preparando-se um grupo para a vida de dona-de-casa e as outras para a
formação de empregadas domésticas.
As meninas eram educadas nas prendas domésticas e educação
rudimentar e os meninos eram encaminhados ao ensino profissionalizante nas
escolas de ofícios. Assim cuidava-se para que as crianças e adolescentes se
tornassem úteis a si e a pátria, mantendo a hierarquia social da época, distinguindo-
602
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

se os espaços de cada um de acordo com a cor, sexo e posição social


(Rizzini,2004).
Ainda no período da roda dos expostos tem início as primeiras
intervenções do poder público da época, promovidas através de fiscalizações e
dispensação de recursos financeiros, como se vê na legislação:

LEI DE 12 DE OUTUBRO DE 1828 Dá nova forma às Câmaras


Municipais, marca suas atribuições, e o processo para a sua eleição,
e dos Juízes de Paz
Artº 56 - Em cada reunião, nomearão uma comissão de cidadãos
probos, de cinco pelo menos, a quem encarregarão a visita das
provisões civis, militares, eclesiásticas, dos cárceres dos conventos
dos regulares e de todos os estabelecimentos públicos de caridade
para informarem de seu estado e dos melhoramentos que precisam.
Art. 69 - Cuidarão no estabelecimento e conservação das casas de
caridade para que se criem expostos, se curem os doentes
necessitados e se vacinem todos os meninos do Distrito, e adultos
que o não tiverem sido, tendo médico ou cirurgião de partido.
Art. 70 - Terão inspeção sobre as Escolas de primeiras letras, e
educação, e destino dos órfãos pobres, em cujo número entram os
Expostos; e quando estes Estabelecimentos e os de Caridade, de
que trata o art. 69, se achem por Lei , ou de fato encarregados em
alguma Cidade ou Vila a outras autoridades individuais, ou coletivas,
as Câmaras auxiliarão sempre quando estiver de sua parte para a
prosperidade, e aumento dos sobreditos estabelecimentos.
Art 76 - Não podendo prover a todos os objetos de suas atribuições,
preferirão aqueles que forem mais urgentes; e nas Cidades, ou Vilas,
onde não houver Casas de Misericórdia, atentarão principalmente na
criação dos Expostos, sua educação, e dos mais órfãos pobres e
desamparados.

Após a Proclamação da República, o Estado concentra sua atuação no


estudo e reformas visando um melhor aparelhamento institucional capaz de salvar a
infância brasileira no século XX.
O advento do código de menores de 1927 surge da cobrança dos setores
especializados com a finalidade de unificar as ações dentro dos moldes dos avanços
das ciências da época.
Este modelo de atuação centralizado, baseado pelo Juizado de Menores
na pessoa de Mello Mattos, vigorou ao longo da história da assistência pública no
país até meados da década de 1980.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A partir da promulgação do código de menores, a institucionalização de


crianças e adolescentes passa pela promulgação de leis e a criação de vários
serviços e órgãos na trajetória a seguir descrita.
Na Ditadura de Getúlio Vargas em 1941 foi criado o SAM (Serviço de
Assistência a Menores), o qual se revelou um fiasco, pois devido ao apadrinhamento
político, ao invés de atender aos autênticos desvalidos sua finalidade foi desvirtuada
para atendimentos clientelistas, cujos jovens de famílias mais abastadas eram
internados nos melhores educandários.
Durante a ditadura militar foi criada sob o slogan da Segurança Nacional,
a Política Nacional de Bem-Estar do Menor, visando a permanência do menor junto
de sua família e integração na comunidade. Suas diretrizes foram lançadas pela Lei
4.513 de 01/12/1964 no governo do General Castelo Branco.
Sob o princípio da situação irregular aplicada às crianças e adolescentes,
no ano de 1979 foi promulgado um novo código de menores. Neste contexto,
crianças abandonadas, órfãs e em situação de rua e/ou envolvidas com a
criminalidade eram encaminhadas indistintamente para instituições estaduais, as
extintas FEBEMs (Fundação Estadual de Bem Estar do Menor), ligadas a FUNABEM
(Fundação Nacional de Bem Estar do Menor) que mantinham grande número de
crianças e adolescentes em locais sem infraestrutura e atendimento adequado às
necessidades dos mesmos.
A partir de meados da década de 1980 a cultura de institucionalização de
crianças e adolescentes passa a ser questionada toma novos rumos. Com a
promulgação da Constituição de 1988, a criança e o adolescente passam a ter
garantida a ampla proteção pela sociedade, família e poder público, como cidadão
de direito em peculiar processo de desenvolvimento.
Em 1989 é promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei
8.069/1990, o qual regulamenta o princípio constitucional da proteção integral da
criança e do adolescente. Desde sua promulgação, esta lei passou por várias
alterações, em especial quanto ao acolhimento institucional, que passa a ser tratado
como medida de proteção excepcional e de caráter provisório.
Com a criação do PNCFC - Plano Nacional de Promoção, Defesa e
Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e
Comunitária em 2006, se estabelece as formas de atuação dos diversos órgãos e

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setores da sociedade para este segmento. Baseado na matricialidade sociofamiliar,


o PNCFC visa, prioritariamente a permanência e desenvolvimento de crianças e
adolescentes em ambiente familiar (de origem ou substituto) e comunitário.
O plano passa a questionar a atuação das instituições de acolhimento (até
o momento denominadas abrigos) quanto ao isolamento das crianças e
adolescentes acolhidos, uma vez que a maioria dos serviços era oferecido dentro
das próprias instituições, com regras próprias.
A partir do PNCFC, surgem novas diretrizes que estabelecem parâmetros
para a oferta regionalizada dos serviços do SUAS (Sistema Único de Assistência
Social) e do PAEFI (Serviço de proteção e Atendimento Especializado de Famílias e
Indivíduos) e dos serviços de acolhimento.
No ano de 2014 tem início o processo de reordenamento das instituições
de acolhimento e expansão dos serviços através do programa de acolhimento
familiar. Com o reordenamento buscou-se estabelecer um direcionamento
interligando as instituições de acolhimento à rede de proteção social dos territórios.
A mais recente atualização do Estatuto da Criança e do Adolescente
ocorreu com a promulgação da Lei 13.509/2017 em que os prazos para
permanência e reavaliação do acolhimento de crianças e adolescentes foram
reduzidos. Em tese tal medida visa a permanência destes pelo menor tempo
possível no acolhimento, promovendo sua reintegração ou encaminhamento para a
adoção.
Ao observar a trajetória do acolhimento de crianças e adolescentes no
Brasil, percebe-se que a atenção a esta demanda se iniciou pela prática “caritativa” e
que somente após mais de um século veio a tornar-se uma política de assistência
social prevista em lei.
Como política pública, voltada à proteção da criança e do adolescente, é
visível a evolução do acolhimento ao longo da história. Porém, mais adiante será
discutido que, apesar dos avanços, ainda há questões que dificultam a efetivação da
reintegração familiar.

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1.1 - A FAMÍLIA E OS MOTIVOS QUE ENSEJAM O ACOLHIMENTO DE


CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Considera-se de suma importância discorrer brevemente sobre o papel da


família na vida de seus entes e sua inserção na esfera das políticas públicas, para
posteriormente apontar os motivos que ensejam a necessidade da medida de
Acolhimento, institucional ou familiar, levando em conta seu caráter excepcional e
temporário, conforme o art. 34, §1º do ECA.
Vale ressaltar que as transformações que ocorrem na sociedade
interferem diretamente nos padrões familiares. De acordo com Oliveira (2016) apud
BOCK, FURTADO e TEIXEIRA (2002) a família está introduzida na base material da
sociedade. Assim, as condições históricas e as mudanças sociais determinam a
maneira que irá se organizar para cumprir seu papel social.
Tais mudanças modificam a cada dia a configuração e o conceito de
família; aqui se adota o termo consoante ao Plano Nacional de Promoção, Proteção
e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e
Comunitária, que pensa a família como:

Um grupo de pessoas que são unidas por laços de consanguinidade,


de aliança e de afinidade. Esses laços são constituídos de
representações, práticas e relações de obrigações mútuas. Por sua
vez, estas obrigações são organizadas de acordo com a faixa etária,
as relações de geração e de gênero, que definem o status da pessoa
dentro do sistema de relações familiares. (BRASIL, 2006, p.130).

A família, independente de sua estrutura, ocupa um papel de suma


importância na construção do indivíduo. Bock, Furtado e Teixeira (2002) destacam a
importância da família na vida das crianças, comparando a primeira educação com o
alicerce da construção de uma casa. Ao longo da vida surgirão novas experiências
que continuarão a construir esse indivíduo, mas a família é o alicerce que o sustenta
e ampara.

No decorrer de nossa vida desempenhamos vários papéis, muitos


deles com alicerces na dinâmica familiar: papel de pai, mãe, filho,
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irmão, irmã, entre outros, e que o sucesso ou insucesso dos outros


vários papéis que vamos exercer ao longo de nossa vida fora do
âmbito familiar como de aluno, profissional, amigo, dependerão, em
grande parte, do sucesso ou insucesso de nossas relações dentro do
sistema familiar.... apud Bordignon (2008).

Assim, observando a trajetória das políticas públicas, destaca-se que, no


período entre 1930 e 1980, o grupo familiar ocupava um espaço secundário no
Sistema de Proteção Social, com foco em situações fragmentadas:

Os serviços estavam dispostos a partir de “indivíduos-problemas” e


“situações especificas”, como trabalho infantil, abandono, exploração
sexual, delinquência, idade ou sexo, bem como para crianças e
adolescentes, mulheres e idosos, dentre outros. Isso não
contemplava a família como uma totalidade. (Cunha, 2017 apud
Teixeira, 2012).

Conforme Yassue (2010), podemos considerar que o marco de grande


expressão sobre a inserção da família na agenda das políticas públicas foi a
Constituição Federal de 1988, a qual amplia o conceito de família e protege, de
modo igualitário, todos os membros que a compõe, reconhecendo juridicamente o
pluralismo familiar de fato existente, em virtude dos novos arranjos familiares, que no
decorrer dos anos se constituíram.
A Constituição Federal de 1988 prevê o direito à convivência familiar e
comunitária como sendo dever da família, da sociedade e do Estado, o qual, no
entendimento legal, também é responsável pela proteção da família, o que
consequentemente fomentou a edição e reformulação das políticas de atendimento e
assistência à criança e ao adolescente.
No entanto, apesar das provisões legais acima relacionadas, nos
deparamos cotidianamente com contextos, cujas famílias, por vezes não são
suficientemente inseridas neste ordenamento de proteção e, assim, se mostram
prejudicadas quanto às suas funções de proteção e cuidado.
Ao buscar informações acerca das motivações que geram o afastamento
ou retirada de crianças e adolescentes do convívio familiar culminando em medida
de proteção de acolhimento, o Relatório de Inspeções do Conselho Nacional do
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Ministério Público Federal, realizado em 86,1 % das instituições de acolhimento no


período de 2012 a 2013 aponta a negligência por parte de pais ou responsáveis
como a principal causa para o acolhimento institucional e familiar de crianças e
adolescentes no Brasil. Em seguida, cumulado ou não com a dependência de
drogas ou álcool por parte dos pais ou responsáveis, abandono, violência doméstica,
violência sexual, vivência de rua, transtorno mental, ausência por prisão e carência
de recursos materiais.
Segundo Cronemberger (2018):

As negligências ocupam o topo dos motivos da retirada das crianças


do seio familiar. Entretanto, trata-se de conceito complexo que só
deve ser aplicado em situação ou contexto de vida. Isto porque,
quando subjetivo e fora da conjuntura vivenciada, termina por gerar a
culpabilização da família (p.283).

Embora a motivação para o acolhimento seja muitas vezes denominada


como negligência, a prática profissional mostra que as razões do acolher, além de
estarem quase sempre associadas, referem-se a representações negativas acerca
da deficiência da família em sua capacidade protetiva, podendo apenas ser mais
uma faceta ou reflexo de outras demandas, a exemplo da dependência química por
parte de pais ou responsáveis que aparece como a segunda causa referida acima.
Esta demanda não pode ser enxergada apenas como uma fragilidade a ser
superada pela família, mas constitui-se um problema de saúde pública, e neste
sentido, o acesso das famílias a serviços especializados no tratamento de
dependentes, mostra-se determinante.
Segundo os escritos de Furtado (2016):

As famílias são responsabilizadas pelo sucesso e fracasso de seus


membros, fato que pode ser visto com maior frequência em relação
às crianças e adolescentes, que devido à fase de formação,
necessitam de cuidado e proteção, sem levar em consideração, no
entanto, que a capacidade protetiva dessa família passa pelas
mudanças e contextos sociais em que está inserida, bem como, que
há estruturas societárias que fogem ao controle individual ou familiar
(p.137).

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Em sua interpretação, ele ainda aponta que é preciso ampliar a


compreensão das dificuldades que as famílias em situação de vulnerabilidade social
passam para oferecer tal ambiente às suas crianças e adolescentes, visto suas
necessidades de sobrevivência, as condições precárias de habitação, saúde e
escolarização, a exposição constante aos ambientes de alta violência urbana, dentre
outros fatores (FURTADO ET AL, 2016).
Para Pacheco et al (2018), o núcleo familiar é o primeiro grupo social que
a criança conhece e participa. Neste sentido, seus membros são os principais
destinatários de ações que permitam a reconstrução familiar, o fortalecimento dos
vínculos e o restabelecimento dos cuidados.
A família que vivenciou o afastamento de suas crianças e adolescentes
por suas fragilidades estruturais e pelas vulnerabilidades a que está exposta, sem
minimizar sua responsabilidade na proteção de seus membros, poderá reassumi-los
sem a efetiva atenção das políticas públicas?
Apesar das provisões legais que abarcam a instituição família, não raro,
há aquelas que não são suficientemente inseridas neste ordenamento de proteção.
Assim, se mostram impossibilitadas de cumprir suas funções de proteção e cuidado
e superarem suas fragilidades para promover a reinserção de suas crianças e
adolescentes.
Nesse sentido, a rede socioassistencial tem papel central no combate às
lacunas que permeiam o processo de reinserção de crianças e adolescentes as suas
famílias de origem, pois é responsável pela oferta dos serviços que abarcarão a
multiplicidade das demandas presentes no cotidiano familiar.

2 - LEVANTAMENTO DAS REDES DE PROTEÇÃO DAS COMARCAS

A partir das discussões já realizadas, entende-se que a rede de proteção


social dos municípios deve realizar um trabalho integrado com a finalidade de apoiar
as famílias em suas dificuldades e vulnerabilidades, prevenindo a ocorrência de
acolhimento institucional de crianças e adolescentes ou ainda a ocorrência de novos
acolhimentos no período de reintegração familiar.

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Nessa perspectiva, foi realizado um levantamento da Rede de


Atendimento dos serviços públicos das Comarcas a qual pertencem os profissionais
que compõem este Grupo de Estudos, situados nos municípios de Presidente
Bernardes, Presidente Prudente, Regente Feijó e Martinópolis, a fim de possibilitar
uma visão ampliada dos serviços que compõe a rede de proteção social da
mencionada região.

2.1 - COMARCA DE PRESIDENTE BERNARDES

A Comarca de Presidente Bernardes tem uma população estimada em


2019 (IBGE) 13.106 pessoas. O município conta com um Conselho Tutelar. Na
Política de Assistência Social, proteção especial, conta com um CREAS, serviço de
acolhimento em família acolhedora. Na proteção básica, possui um CRAS e uma
Equipe Volante que atende a zona rural. Por sua vez, a Política de Saúde tem seis
equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), um Posto de Saúde Central, com
atendimentos na área médica e odontológica e um Hospital/ Pronto Socorro. Na
Política de Educação, Cultura, Lazer e Esporte, conta com Educação de Jovens e
Adultos - EJA, creche, APAE, escolas de ensino infantil e fundamental, médio e
Projeto Guri.
Ao observarmos a realidade do atendimento à saúde em Presidente
Bernardes, apesar de contar com os equipamentos básicos, é possível identificar
dificuldades nas situações de acolhimento, em que as demandas são mais
específicas.
Algumas dificuldades surgem quando as equipes de ESF são chamadas
para as reuniões de rede para discussão de casos e encaminhamentos, havendo
pouca participação dos territórios, gerando a necessidade de novos contatos
relativos às solicitações já apresentadas.
Considerando os últimos acolhimentos realizados no município, observou-
se na maioria dos casos a necessidade de avaliação psicológica e psiquiátrica.
O município hoje dispõe somente de uma psicopedagoga e quanto ao
atendimento psicológico, no momento o serviço encontra-se descoberto, uma vez
que os dois profissionais responsáveis pediram exoneração neste ano. Quanto ao
atendimento psiquiátrico, há também fila de espera, pois somente um médico
psiquiatra atende toda a demanda.
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Frente a isto, os casos são encaminhados para agendamento no AME de


Presidente Prudente, em que a demora, para iniciar os acompanhamentos prejudica
a evolução dos casos de acolhimento.

2.2 - COMARCA DE PRESIDENTE PRUDENTE

O Município de Presidente Prudente tem uma população estimada em


2019 (IBGE) de 228.743 pessoas. Dispõe de dois Conselhos Tutelares. Na Política
de Assistência Social, na Proteção Social Especial, conta com dois CREAS, dois
serviços de acolhimento institucional que comportam programas de famílias
acolhedoras Na Proteção Social Básica, seis CRAS e dois Núcleos de Atendimento
à família.
Os serviços que compõem a Política de Saúde são: NASF, ESF, UPA,
UBS, CAPS III, CAPSi, CAPS ad, residência inclusiva, Ambulatório Médico de
Especialidades (AME-HR), Polo de Atendimento Intensivo (PAI-HR), Hospital
Estadual e Hospital Psiquiátrico Bezerra de Menezes.
A Política de Educação, Cultura, Lazer e Esporte conta com: creches,
APAE, Lumen Et Fides; Núcleo Ttere, escolas de ensino infantil, fundamental,
médio e EJA; Fundação Mirim e Casa do Aprendiz Cidadão – CAC.
A rede conta ainda com serviços diversificados como: Delegacia da
Mulher; Delegacia do Idoso; Instituição Paulista Adventista de Educação e
Assistência Social – ADRA; Associação Bethel Mão Amiga – BETHEL; Legião da
Boa Vontade – LBV; Fundação Gabriel de Campos, Associação de Cegos;
Associação de Surdos, Centro Integrado Empresa-Escola -CIEE;; Projeto Bolsa
Adolescer.
Como uma das principais dificuldades para realizar o trabalho em
articulação com a rede de atendimento, encontramos problemas nos
acompanhamentos de medidas protetivas (monitoria) pelo Conselho Tutelar. Com
relação a este órgão, há casos que requerem acolhimento de urgência devido a
situações de risco iminente às crianças e adolescentes que, por vezes, não são
tomadas providências imediatas para o acolhimento, sendo solicitada a avaliação da
equipe técnica do Fórum para a decisão sobre o acolhimento, o que pode implicar na
permanência de exposição de crianças e adolescente a risco iminente, considerando

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que há uma demora no atendimento pelo judiciário, levando em conta os ritos


existentes até a avalição técnica.
Como forma alternativa, poderia ser utilizado pelo próprio Conselho
Tutelar o acolhimento emergencial caracterizado como PEU - Procedimento
Excepcional e de Urgência, previsto no ordenamento legal (artigo 101, inciso IX do
ECA).
Com relação a Assistência Social, no CREAS verifica-se falta de adesão
das famílias, número reduzido de técnicos e atendimentos insuficientes para o
efetivo fortalecimento dos vínculos familiares. Havia até recentemente a
fragmentação dos serviços dos CREAS (CREAS Criad, CREAS Mulher, dentre
outros), dificuldade que agora espera-se que seja superada a partir da fusão destes
serviços em dois CREAS que levam em conta a divisão do trabalho por territórios,
priorizando-se atender as famílias de forma integral. Nos CRAS observa-se a
precarização dos serviços e aumento dos territórios gerando dificuldades para o
atendimento e acompanhamento das famílias.
Na política de saúde verifica-se a insuficiência de serviços disponíveis à
população, gerando desassistências. Em alguns equipamentos de saúde – ESFs,
CAPS, UBS, dentre outros, há dificuldades referentes à busca ativa de pacientes,
em especial de usuários de drogas, bem como a falta de adesão destes aos serviços
propostos.
Por fim, com relação aos serviços de acolhimento, observa-se que, com
frequência, levam as crianças e os adolescentes aos atendimentos nos referidos
equipamentos permitindo que recebam cuidados protetivos que necessitam.
Contudo, devido a insuficiência de serviços para a prestação desses atendimentos
na rede de proteção às crianças e aos adolescentes, há dificuldades em trabalhar
com as crianças e com os familiares destas, na perspectiva da reintegração familiar,
para a qual deveria haver consistente trabalho de fortalecimento de vínculos.

2.3 - COMARCA DE REGENTE FEIJÓ

O município de Regente Feijó, segundo dados do IBGE, possui população


estimada em 20.261 habitantes.
Sua rede socioassistencial abarca serviços públicos e entidades não
governamentais sem fins lucrativos, a exemplo da APAE e Fundação Mirim.
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Referente à Politica Pública de Assistência Social, conta com os Serviços


de Proteção Básica e Especial, cada qual com uma unidade.
Concernente à politica de Saúde, a municipalidade conta com NASF
(Núcleo Ampliado de Saúde da família e Atenção Básica), ESF (Estratégia de Saúde
da Família), UBS (com equipe matricial de saúde mental ambulatorial) e Hospital
Particular conveniado.
Em relação à política de Educação, Cultura, Lazer e Esporte, oferece o
equipamento social creche, escolas de ensino infantil, fundamental e médio
(municipal e Estadual) e o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA),
Fundação Mirim e APAE.
No que se refere ao Serviço de Acolhimento, embora o município desde
2010 tenha o ensejado na modalidade de Família Acolhedora, só recentemente ele
foi normatizado legalmente. Contudo, o maior entrave é quando há a necessidade de
Acolhimento Institucional, situação em que o executivo municipal realiza parcerias
por meio de convênio com outras municipalidades que o oferta, sendo Dracena a
referencia para o acolhimento de adolescentes e Quatá, de crianças de 0 a 10 anos
de idade, havendo uma lacuna de atendimento para a faixa etária de 10 a 12 anos.
Acrescenta-se também que os municípios de Taciba e Caiabu, os quais
fazem parte desta Comarca, não contam com nenhuma modalidade do referido
serviço.
Frente à ausência do serviço de acolhimento em Regente Feijo, na
modalidade institucional, como já discorrido, pontua-se, que quando há crianças e
adolescentes acolhidos, a discussão do PIA se mostra dificultosa, visto que eles
passam a frequentar os serviços da localidade onde estão acolhidos (Escolas,
projetos sociais e outros), não sendo acompanhados, no período em que se
encontram na instituição, pela rede de serviços disponível no município onde
residem, o que desfavorece a identificação de suas dificuldades, avanços e a própria
interação familiar, pois o trabalho da rede socioassistencial local acaba ficando
fragmentado, o que pode causar obstáculos para uma reintegração familiar exitosa.
Destaca-se ainda, que o município não dispõe de um equipamento de
saúde especializado para o tratamento da dependência de substâncias psicoativas
(álcool e demais entorpecentes) e outras patologias mentais, sendo que em casos

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desta natureza, o acesso da população também ocorre por meio de convenio com a
cidade de Martinópolis, que possui em sua rede de serviços o CAPS AD.

2.4 - COMARCA DE MARTINÓPOLIS

O Município de Martinópolis tem uma população estimada (IBGE) 26.461


pessoas. Conta com um Conselho Tutelar. A Política de Assistência Social, na
Proteção Social Especial, conta um CREAS e Serviço de Acolhimento Institucional.
Na Proteção Social Básica, possui um CRAS e uma equipe volante e um serviço de
convivência e fortalecimento de vínculos (ligado ao CRAS).
A Política de Saúde, CAPS I, CAPS AD, UBS, UBS-II, sete USF (Unidade
de Saúde da Família, conforme informações da UBS deve ser utilizada a expressão
USF em substituição a ESF), NASF, hospital. A Política de Educação, Cultura, Lazer
e Esporte, creche, APAE, escolas de educação infantil, ensino fundamental e médio,
EJA e Projeto Guri.
As maiores dificuldades enfrentadas na Comarca de Martinópolis no que
se refere à promoção de reintegração familiar estão relacionadas: ao
comprometimento dos genitores/responsáveis com o uso de substâncias psicoativas
e a resistência ao tratamento especializado; à precariedade das condições
socioenômicas das famílias de origem; à fragilidade, rompimento ou ausência do
vínculo familiar, seja dos genitores ou da família extensa, com o agravante
relacionado ao elevado tempo de acolhimento/institucionalização; baixa adesão das
famílias extensas aos serviços para os quais são encaminhadas; bem como
dificuldades dos serviços no que se refere às constantes alterações nos quadros de
funcionários, o que reflete de forma negativa na ausência de continuidade do
trabalho desenvolvido.

3 - INTERSETORIALIDADE E REINTEGRAÇÃO FAMILIAR: A


IMPORTANCIA DO TRABALHO EM REDE NO PROCESSO DE
REINTEGRAÇÃO FAMILIAR

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O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2006)


determina que é preciso priorizar sempre a manutenção de crianças e adolescentes
no arranjo familiar de origem ou, na impossibilidade, em família extensa.
O Acolhimento Institucional, como já amplamente discutido, é medida de
proteção excepcional disposta nos parágrafos 1º e 2º do artigo 101 do ECA, com a
finalidade de proporcionar a necessária proteção da criança ou adolescente em
situação de risco, esgotadas as possibilidades de equacionamento dessas
situações na família, implicando no afastamento do convívio familiar, medida de
competência exclusiva da autoridade judiciária.
O acolhimento institucional deverá ter caráter provisório, devendo o
processo de reintegração social ser iniciado em ato subsequente ao abrigamento.
O termo reintegrar indica como sinônimos os vocábulos: restituir,
restabelecer, regressar, dentre outros. O significado, quando se fala Reintegração
Familiar nos moldes do ECA implica na realização de ações que visem um trabalho
de integrar de novo, ou seja, juntar o que foi separado. Em se tratando das crianças
e adolescentes acolhidos, significa retornar à família de origem, família extensa ou
ainda para outras pessoas próximas com comprovado vínculo de afinidade, desde
que preenchidas as condições para tanto, após a passagem por acolhimento nas
suas diferentes modalidades.
Embora o ato do acolhimento envolva necessariamente o judiciário, que o
determina e a instituição ou serviço, que o efetiva, ao falarmos sobre reintegração
familiar é indissociável tratar da articulação intersetorial de redes de serviços, posto
que se trata de direito da criança e do adolescente, garantido nos eixos da política
de atendimento desse segmento da população.
Nesta perspectiva, a articulação entre os serviços de acolhimento
institucional e a rede socioassistencial de serviços também está prevista pelas
diretrizes do extinto Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), que preconiza
orientações para elaboração do plano de acolhimento da rede de serviços destinado
a crianças e adolescentes e jovens.
Dentre as metodologias de atendimento estabelecidas, destaca-se, dentre
outros, o Plano Individual de Atendimento de cada criança e adolescente e o
acompanhamento de suas famílias de origem nos CRAS, por meio do Serviço de
Proteção e Atendimento Integral à Família- PAIF, e nos CREAS, por meio do Serviço

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de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos - PAEFI, conforme


situações identificadas. O desenvolvimento destas ações deve ser realizado em
articulação com a equipe técnica do judiciário.
Via de regra as famílias que têm um ou mais de seus membros acolhidos,
fruto da intervenção do poder judiciário na suspensão do poder familiar, estão em
situação de vulnerabilidade momentânea ou geracional e necessitam da efetividade
do trabalho das políticas públicas para que possam ter reduzidas ou superadas essa
condição com vistas a reaver o poder familiar sobre seus entes.
Como nos ensina Yasbek (2014), é preciso considerar que o sujeito alvo
dessas políticas públicas não se fragmenta por suas demandas e necessidades que
são muitas e de diversas naturezas, em especial no que se refere a situações de
pobreza e vulnerabilidades que afetam as múltiplas dimensões da vida dos sujeitos,
inclusive no que se refere a própria subsistência.
Múltiplas são as necessidades e múltiplos tem que ser os serviços que
devem funcionar de forma integrada e articulada, ainda que seu objeto de atuação
seja específico, tendo em vista a família em sua complexidade de arranjos e
necessidades. Pois bem, mas que serviços são esses? Estamos falando de uma
rede de serviços públicos que envolva segurança alimentar, habitação, saúde,
educação, dentre outros, cujo acesso é condição para possibilitar a reintegração
familiar e prevenir novos acolhimentos.
O conceito de rede, de modo amplo, pode ser definido com um conjunto
de pontos interligados ou nós interconectados. Ampliando o conceito para a rede de
serviços públicos é possível inferir que se trata mais que uma somatória das
diferentes instituições que prestam serviço à população, cada uma com sua
finalidade, mas que atuem de forma a possibilitar a interlocução em torno de um
objetivo comum: o atendimento qualificado dessas famílias.
A rede intersetorial de serviços públicos é materializada pelos
profissionais que atuam em cada um desses serviços, o que pressupõe relações
horizontais, sem hierarquia ou relações de poder entre si, com o fim de aumentar,
potencializar a efetividade das ações, objetivando promover um suporte maior ao
grupo familiar atendido.
A articulação entre os serviços de acolhimento institucional e a rede
socioassistencial de serviços públicos está prevista pelas diretrizes do Conselho

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Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA, 2009) o qual


estabelece que os planos de atendimento individual (PIAs) devem ser elaborados
pelos profissionais da entidade de acolhimento, em parceria com o Conselho Tutelar
e com a equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, os quais
deverão partir das situações identificadas no estudo diagnóstico inicial que embasou
o afastamento do convívio familiar.
Entende ainda que os Planos de Atendimento Individual e Familiar
deverão ser encaminhados para conhecimento do Sistema de Justiça e do Conselho
Tutelar, em prazo previamente estabelecido, sendo de responsabilidade destes
órgãos o acompanhamento das intervenções realizadas com a família, acionados
sempre que se fizer necessária a aplicação de outras medidas protetivas para
assegurar o acesso da criança, do adolescente ou da família aos serviços
disponíveis na rede (ECA, Art. 101, Inciso I a VI).
O CONANDA define ainda que o desenvolvimento do Plano de
Atendimento Individual (PIA) deve ser realizado de modo articulado com os demais
serviços que estejam acompanhando a família, a criança ou o adolescente. Neste
âmbito, o Conselho inscreve como atores os órgãos: escola, Unidade Básica de
Saúde, Estratégia de Saúde da Família, CAPS, CREAS, CRAS, programas de
geração de trabalho e renda, entre outros, "a fim de que o trabalho conduza, no
menor tempo necessário, a uma resposta definitiva para a criança e o adolescente,
que não seja re-vitimizadora ou precipitada" (CONANDA, 2009).
Com relação a responsabilidade por coordenar todo o processo de
reordenamento/implantação de serviços de acolhimento para crianças, adolescentes
e jovens recai sobre o órgão gestor da Assistência Social local, o qual deve atuar em
parceria com os demais atores da rede de proteção local, relacionados com o tema.
Esta atuação compreende ainda a discussão e a elaboração de um desenho da rede
de serviços de acolhimento ao qual se pretende chegar. Caso haja lacunas na rede
de serviços, o órgão gestor deverá criar estratégias para responder a atendimentos
realizados de forma insuficiente ou inapropriada às famílias dos acolhidos ou mesmo
às crianças e adolescentes.
A intersetorialidade das políticas públicas se constitui em espaço de
efetivação de direitos sociais. Segundo Yazbek (2010, p.25) a intersetorialidade
prevê a “articulação entre as políticas públicas por meio do desenvolvimento de

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ações conjuntas destinadas à Proteção Social [...]”. As ações são integradas,


havendo articulação entre os diversos setores envolvidos desde o planejamento,
execução e avaliação destas políticas, fortalecendo o trabalho em rede e garantindo
o atendimento às necessidades dos usuários na sua integralidade e acesso a
serviços de qualidade.

4 - DESAFIOS PARA A EFETIVAÇÃO DO PROCESSO DE


REINTEGRAÇÃO FAMILIAR

O processo de reintegração familiar tem aspectos delicados a serem


observados. As famílias passaram por longo período sob os cuidados da rede de
serviços, CRAS, CREAS, Saúde, Escola, enfim, todas as políticas públicas
necessárias durante o processo de acolhimento institucional que tinham o mister de
encontrar caminhos viáveis para e com essa família que possibilitassem a
reintegração familiar com a saída do(s) filho(s) da instituição de acolhimento.
A saída da instituição de acolhimento só deve acontecer após o
planejamento das ações previstas no PIA, que considera a avaliação dos envolvidos,
as necessidades de apoio a este núcleo familiar e a pactuação dos diferentes atores
sociais, para que a reintegração seja bem-sucedida.
No entanto, percebe-se que nem todos os processos de reintegração
acontecem a contento, podendo, inclusive, acarretar em novo acolhimento
institucional.
Pensando nessa direção, elencaremos, do ponto de vista dos autores
deste artigo, a partir de suas práticas cotidianas e tendo como referência o
entendimento de Brandão, Pereira e Santos (2015,p.103) que apontam que no
processo de acolhimento institucional os Serviços de Acolhimento e a Justiça são os
mais presentes e “há uma escassez de registros sobre as ações dos demais
serviços da rede, apontando dificuldades de articulação entre estes serviços no
sentido de um atendimento e suporte que possibilitem a eficácia no processo de
reintegração familiar [...].
Esse entendimento das autoras aponta a necessidade de envolvimento
dos serviços da rede, de forma articulada, em todo o processo de reintegração
familiar que se inicia após o acolhimento e se conclui com a retorno à família de
origem ou extensa ou colocação em família substituta.
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Para tentar dar materialidade a essas afirmações, passamos a elencar


alguns serviços e as possíveis dificuldades nesse processo de reintegração, como
Conselho Tutelar, CRAS, CREAS, Serviços de Saúde, Instituição de Acolhimento e
Tribunal de Justiça.
O cotidiano nos mostra que as instituições de acolhimento são as
“locomotivas” desse processo, considerando que se trata do lugar em que as
situações acontecem, onde as crianças e adolescentes estão e demandam
respostas imediatas, assim como tem a interface com as famílias. Essas instituições,
por sua vez, apresentam suas dificuldades, especialmente no que se refere, em
algumas delas, com o número de servidores, a alta rotatividade dos profissionais,
dentre outros, que podem comprometer sobremaneira a execução das ações como
um todo e, em especial da reintegração familiar.
Os serviços do CRAS, por sua vez, são de suma importância,
considerando que se trata do serviço que estará mais próximo das famílias em
função do território. Por mais lento e cauteloso que tenha sido o processo de
reintegração familiar, as demandas mais significativas acontecerão na concretude do
processo, ou seja, quando as crianças e adolescentes voltam ao núcleo familiar,
sendo fundamental o papel do CRAS nesse processo.
Seria recomendável que o referido equipamento da assistência
apresentasse maior agilidade e flexibilidade na atenção a essas famílias que
vivenciam a reintegração. É preciso que o serviço atue de forma pontual, buscando a
família que não comparece, estando presente no cotidiano desta, tendo a clareza
que o afastamento da família das proposições iniciais, podem implicar em situações
de retorno das vulnerabilidades que ensejaram o acolhimento institucional.
No entanto, é preciso compreender ainda outros limites dos serviços do
CRAS e que podem impactar sobremaneira no resultado do atendimento às
famílias: aumento dos territórios gerando dificuldades para o atendimento e
acompanhamento das famílias; o número reduzido de profissionais para atender às
demandas e ainda a precarização dos serviços em função da drástica redução de
investimento governamental em políticas públicas, reduzindo potencialmente as
ações ofertadas à população.
Essa proximidade com as famílias deve ser extensiva ao CREAS, em
especial pela demanda que este serviço atende: as expressões da violência que, via

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de regra, conduziram ao acolhimento institucional. Bem sabemos da necessidade da


permanência dos membros da família neste serviço considerando que a violência,
nas suas diferentes modalidades implicam em questões geracionais e que tem ciclos
que podem voltar a se repetir, caso não haja um trabalho presente e contínuo. O
trabalho do CREAS, associado ao trabalho do CRAS tem potência para auxiliar
nesse delicado momento de reintegração familiar.
Outro elemento que precisa ser considerado refere-se à adesão da
própria família ao trabalho proposto. Não aderir ou desligar-se é uma realidade que
se apresenta e é preciso considerar essa variável e buscar, através dos serviços,
ações que visem compreender esse fenômeno e criar ações no sentido de reduzí-lo.
É preciso, no entanto, que os serviços funcionem de forma complementar.
Nem sempre isso acontece no cotidiano; inúmeras vezes a família, ainda que
referenciada em ambos serviços, por entendimento técnico, por excesso de
demanda ou ainda pela escassez de técnicos para o trabalho, acaba sendo atendida
apenas em um deles, podendo incorrer em prejuízos para o processo de
reintegração.

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5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao trazer o tema “A articulação dos serviços da rede na reintegração


familiar de crianças e adolescentes acolhidos” para debate, foi encontrada uma
realidade muita diversa entre os municípios que compõem as comarcas no que se
refere aos equipamentos públicos destinados ao atendimento da população em
geral, em especial àqueles que estão envolvidos nos processos de reintegração
familiar após o acolhimento institucional de crianças e adolescentes.
Pelo percurso histórico que trilhamos no presente artigo, foi possível
compreender que vivenciamos avanços no que se refere à proteção de crianças e
adolescentes.
No passado, as instituições eram pensadas com fins de atender crianças
e adolescentes abandonadas apresentando uma visão apequenada acerca da
complexidade do desenvolvimento infanto-juvenil, delimitando o atendendo às
necessidades daqueles de acordo com seus papeis sociais, sendo os meninos
preparados para a provisão do lar, e as meninas, para o casamento e prendas
domesticas.
As leis foram sofrendo alterações, adaptando-se às necessárias
mudanças sociais. Nessa esteira, os direitos sociais foram ampliados, a família
ganhou especial proteção do Estado, assim as crianças e adolescentes passaram a
ter prioridade absoluta no ordenamento jurídico. No entanto, o conjunto de leis que
os contempla precisa se materializar na vida dos cidadãos para que ocorra o efetivo
atendimento de suas necessidades.
Assim como na Constituição Federal, a Política de Assistência também
trouxe destaque para a família através da Matricialidade Sociofamiliar que destaca a
centralidade da família, como núcleo fundamental para as ações das políticas de
assistência, ao mesmo tempo que a encarrega da proteção e cuidado de seus
membros.
Sem ingenuidades, ao lado dos avanços das políticas de proteção â
família, temos também sua culpabilização direta pelos erros e fracassos de seus
membros, ainda que desprotegidas e sem condições de gerir adequadamente suas
funções.

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Dentre essas dificuldades da família na proteção de seus membros


destacamos no presente artigo o acolhimento institucional e o processo de
reintegração familiar.
Como amplamente explanado, o acolhimento institucional de crianças e
adolescentes representa a ultima alternativa, cujo acionamento se dá na
impossibilidade da família para cuidar e proteger suas crianças e adolescentes,
situação esta que envolve todo o núcleo familiar em situações de negligências e
vulnerabilidades, seja no nível micro, as próprias e variadas dificuldades da família
ou em nível macro, a desproteção das famílias pelo Estado que comprometa o
exercício das funções parentais.
Essa análise ganha vida nas comarcas em função das situações de
acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Como discutido no presente
artigo, as famílias que têm seus filhos acolhidos são vistas, via de regra, como
abusivas e negligentes. E de fato, há elementos que indiquem a presença da
negligência, do abuso, da violência.
No entanto, temos a clareza que grande parte dessas famílias são
desamparadas pelas diferentes políticas: habitação, saúde, educação, emprego,
assistência social, culminando na judicialização de suas demandas. É preciso dar a
cada um, a responsabilidade na sua medida.
Com o acolhimento institucional, busca-se imediatamente construir, a
partir do PIA, ações que possam promover mudanças no contexto vivenciado pela
família que ensejou o acolhimento de seu(s) membro(s). Para tanto, são acionados
os serviços existentes em cada um dos municípios das comarcas aqui envolvidas e,
ainda que não sejam os ideais, nos deparamos com a existência, em nossa
circunscrição¸ de maneira geral, de equipamentos públicos que buscam realizar um
trabalho que articule a rede de proteção social.
A existência de serviços não garante, por si só, o atendimento satisfatório
da população. Muitas são as variáveis existentes. A articulação entre os serviços,
como mencionamos, precisa ser otimizada para que o atendimento às famílias seja
prestado de forma global, concreta e que que resulte na ampliação da potência
protetiva da família.
Não obstante, em nosso cotidiano profissional, observamos que os
referidos serviços apresentam muitas dificuldades para realizar este trabalho de

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forma articulada e com frequência não obtém o sucesso desejado quanto à


participação para planejar e iniciar a reintegração de crianças e adolescentes
acolhidos. Percebemos que algumas destas dificuldades se expressam na ausência
de setores no cumprimento de seus papéis e também falta de adesão da própria
família durante o processo de reintegração de suas crianças e adolescentes.
Notadamente há ainda a questão da desassistência e omissão por parte
do Estado, no sentido de prover serviços públicos de qualidade que visem à
prevenção e proteção das famílias quando em situação de risco e vulnerabilidade
social, de modo que garanta o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitário
corroborando com a reintegração familiar de modo que não ocorra um rompimento
de vínculos/afastamento.
Concluímos assim que há vários entraves na articulação do trabalho em
rede de forma que os quais impedem que este englobe todos os atores (saúde,
educação, assistência social, MP, Poder Judiciário, Programas de Acolhimento) e
em que famílias, crianças e adolescentes sejam os protagonistas.
Finalmente, acreditamos que apesar das barreiras aqui referidas, os
avanços e sucessos na reintegração de crianças e adolescentes, demonstram que o
trabalho articulado entre os vários serviços das redes de proteção social ainda
constitui a melhor forma de fortalecer a convivência familiar e comunitária em nossa
sociedade.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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626
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES COMO MEDIDA DE PROTEÇÃO:
REFLEXÕES E DIRETRIZES SOBRE A REINTEGRAÇÃO
FAMILIAR E A COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA EXTENSA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - RIBEIRÃO PRETO


“FAMÍLIA”

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2019
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COORDENAÇÃO
Camila Ferreira Messias Lélis – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pitangueiras
Vítor Alex Salermo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirangi

AUTORES
Aline Beatriz Silva Feltrin – Psicóloga Judiciário – Comarca de Brodowski
Ana Luisa Forti Vaz de Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Angelica Cristina de Oliveira Micheletti de Andrade – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Itápolis
Camila Buda Zendron Abritta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Matão
Camila Ferreira Messias Lélis – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pitangueiras
Carla Andreza Kelade Mezzina – Assistente Social Judiciário – Comarca de Porto
Ferreira
Claudia Mazzer Rodrigues Palucci – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pontal
Cristiane Ferreira Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Eliana Binhardi Zanineli da Rocha – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sertãozinho
Fabiana de Barros Bueno – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão
Bonito
Gabriel Aparecido Gonçalves dos Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de
Ibitinga
Gilza Lepri Inácio Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de Américo
Brasiliense
Heloisa Chaves Nascimento de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ribeirão Preto
Leniane Facci – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cajuru
Mara Soares Frateschi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pitangueiras
Maria Luisa da Costa Fogari – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Rita
do Passa Quatro
Natalia Hebling Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pontal
Poliana Maria Albrechet – Assistente Social Judiciário – Comarca de Monte Alto

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Priscila Mara de Araujo Gualberto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Porto


Ferreira
Priscila Paula Vieira de Medeiros – Psicóloga Judiciário – Comarca de Altinópolis
Richele Ramos da Fonseca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guariba
Sueli Aparecida Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Brodowski
Tatiane Patricia Cintra – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Vítor Alex Salermo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirangi

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AGRADECIMENTOS

À Vanessa de Oliveira (Assistente Social Judiciária da Comarca de


Altinópolis).

À Ana Maria de Sousa (Coordenadora do programa "Criança Feliz" de


Barrinha) e Ariane Gonsalves (Visitadora do Programa “Criança Feliz” de Barrinha).

Agradecemos à todas pela participação como palestrantes em nossos


encontros, trazendo reflexões profissionais valiosas, enriquecendo nossa prática e
ampliando horizontes.

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INTRODUÇÃO

O cotidiano de trabalho dos assistentes sociais e psicólogos do Tribunal


de Justiça do Estado de São Paulo prevê a atuação destes profissionais nos
processos que envolvem Medidas de Proteção voltadas às crianças e adolescentes.
Muitos são os desafios que permeiam esta atuação: identificação das situações de
risco, articulação das ações com os demais equipamentos que compõem a rede de
proteção e avaliação das respostas institucionais às situações de violência.
O objetivo do presente artigo é apresentar as apreensões e reflexões
realizadas nos encontros do Grupo de Estudos de Ribeirão Preto ao longo do ano de
2019 sobre a temática do acolhimento institucional de crianças e adolescentes como
uma resposta institucional às múltiplas formas de violência. A construção deste
artigo se deu de forma coletiva, contemplando as discussões realizadas sobre as
referências bibliográficas estudadas e experiência profissional dos participantes, com
enfoque sobre as medidas de reintegração familiar e colocação em família extensa.

1 - DESENVOLVIMENTO

A institucionalização de crianças e adolescentes é uma prática que está


historicamente arraigada na cultura brasileira. Estudos importantes sobre as políticas
sociais de atenção às crianças e adolescentes elucidam práticas segregadoras
sobre a população dessa faixa etária desde o período colonial, quando recém
nascidos eram depositados nas “Rodas dos Expostos” dos hospitais e conventos;
passando pela tradição dos internatos estudantis (para os filhos de famílias mais
abastadas) e orfanatos no início do Brasil república e, por fim, na criação e difusão
das instituições de acolhimento atuais (SIQUEIRA, 2006; RIZZINI, 1997).
No Brasil, a criação da primeira legislação específica para o atendimento
de crianças e adolescentes em situação de abandono ou com prática de
delinquência se deu em 1926 e seguiu um movimento internacional que iniciou nos
Estados Unidos, expandiu-se para a Europa no final do século XIX e para a América
Latina nas primeiras décadas do século XX (ZANELLA; LARA, 2015). O Decreto nº
5.083, de 01 de dezembro de 1926, instituiu o Código de Menores e estabeleceu no
artigo 1º que:

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O Governo consolidará as leis de assistência e protecção aos


menores, adicionando-lhes os dispositivos constantes desta lei,
adoptando as demais medidas necessárias à guarda, tutela,
vigilância, educação, preservação e reforma dos abandonados ou
delinquentes, dando redacção harmônica e adequada a essa
consolidação, que será decretada como o Código dos Menores
(BRASIL, 1926).

No Brasil, até 1927, os “menores em conflito com a lei” eram


responsabilidade do juiz da Vara Criminal. A partir desse ano, entrou em vigor o
Decreto nº 17.943-A, que consolidava e dava base legal a toda e qualquer ação
referente aos menores ditos abandonados, delinquentes ou em situação de o ser.
Importante notar que, seguindo as orientações internacionais, a partir de então,
crianças e adolescentes passaram a ser recolhidos em instituições sem
necessariamente terem cometido atos ilícitos (BRASIL, 1987).
Observa-se que o Código de Menores, que perdurou por décadas,
considerava irregular qualquer criança e adolescente que estivesse em oposição à
uma situação caracterizada como “normalidade”, ou seja, as crianças e adolescentes
deveriam sempre estar sob a autoridade de seus pais ou tutores e, quando não
estivessem, eram considerados abandonados e delinquentes, sujeitos à autoridade
jurídica taxativa e normalizante (XAVIER, 2008). Em outras palavras, tinha-se um
fundamento jurídico que realçava a condição de marginalidade de crianças e
adolescentes e propunha intervenções mais jurídicas do que sociais.
Neste contexto, começam a surgir movimentos que lutavam contra as
gritantes violações aos direitos humanos da época, sendo uma das lutas o
reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes que, até então, eram
considerados “desajustados”, “infratores” e “menores que necessitavam de
correção”, sendo essa visão reforçada pela Doutrina da Situação Irregular amparada
no Código de Menores.
A Doutrina da Situação Irregular reflete o caráter de tutela da legislação
vigente à época e a ideia de criminalização da pobreza. Sob esse prisma, crianças e
adolescentes considerados em situação irregular passam a ser vistos como objetos
potenciais de intervenção do sistema de justiça, que não distinguia menor
abandonado ou delinquente (Silva, 2011). Assim, a legislação acabava por sustentar
que os “menores infratores” fossem afastados da sociedade, segregados em

632
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

instituições em que tinham sua dignidade violada como forma de punição por seus
comportamentos.
Esse cenário punitivo, penalizador e autoritário, que considerava crianças,
adolescentes e suas famílias enquanto culpados pela situação de fragilidade e
vulnerabilidade, perdurou juridicamente até o ano de 1988, quando da promulgação
da Constituição Federal do Brasil. A Constituição Federal de 1988 foi fruto de
diversas mobilizações de movimentos sociais, sindicais e entidades civis que
reivindicavam pela redemocratização do país, pela garantia de direitos sociais,
políticos e civis.
Com a promulgação da Constituição Federal e a garantia de diversos
direitos sociais, nota-se grande avanço na área da infância e adolescência, com a
aprovação do Art. n.227 onde consta que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão (BRASIL, 1988).

Dessa forma, observa-se uma mudança de paradigma, uma vez que o


foco institucional e jurídico deixa de ser as crianças “desajustadas” e que necessitam
ser “controladas”, e recai sobre a garantia de direitos a todas as crianças e
adolescentes do país, sendo dever da família, do Estado e da sociedade zelar pela
efetivação dos direitos previstos na Carta Magna.
A partir desse artigo, originou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), regulamentado pela Lei nª 8069/90 (BRASIL, 1990). Nesta perspectiva,
entende-se que tanto as crianças quanto os adolescentes são sujeitos de direitos,
tais como saúde, educação, moradia, liberdade, lazer, cultura, profissionalização e
convivência familiar e comunitária, que devem ser garantidos pelo Estado, pela
sociedade e pela família. Assim, o ECA promove uma transformação do paradigma
histórico de assistência à infância e adolescência, trazendo a noção de proteção

633
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

integral e a garantia da convivência familiar e comunitária em detrimento dos antigos


abrigamentos/internações.

1.1. - PROTEÇÃO INTEGRAL E GARANTIA DE DIREITOS DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES: UM NOVO PARADIGMA

Para Siqueira e Dell’Aglio (2006), a partir da implantação do ECA, as


crianças e adolescentes passaram a ser compreendidos não mais como objetos de
tutela mas, sim, como sujeitos ativos de direitos e deveres. Nesta nova perspectiva,
a família se torna passível de ação judicial quando, eventualmente, deixa de cumprir
seu dever de proteção dos direitos ou é a própria agente de violação ou de violência
contra crianças e adolescentes. Nessas situações de desproteção, violação ou
violência, os Conselhos Tutelares atuam como portas de entrada da família para o
sistema jurídico-assistencial, tomando as providências cabíveis para a realização de
medidas protetivas, dentre as quais figura o acolhimento institucional (MOREIRA,
2014).
Com o entendimento de que a medida de acolhimento institucional de
crianças e adolescentes deve ser breve e excepcional e priorizando o papel da
família no cuidado dos filhos, o ECA traz mudanças no panorama do funcionamento
das instituições de acolhimento. Esta nova perspectiva contribuiu para mudanças
efetivas no que tange a estas instituições, partindo de uma visão puramente
assistencialista para a compreensão destes espaços como locais de socialização e
desenvolvimento. Deste modo, os abrigos devem estar configurados em unidades
pequenas, com poucos integrantes, com condições de manter um atendimento
personalizado e estimular a participação das crianças e adolescentes nas atividades
comunitárias.
A partir do ECA, outros documentos importantes na garantia dos direitos
das crianças e dos adolescentes foram sendo implementados. Um marco importante
foi a aprovação da Política Nacional de Assistência Social - PNAS no ano de 2004
que estabeleceu dois níveis de proteção social: a básica e a especial, sendo a
medida de acolhimento inserida na proteção social especial de alta complexidade.
Nesta perspectiva, entende-se que as situações de afastamento do convívio familiar
exigem dos profissionais atenção individualizada e especializada, dada a

634
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

complexidade das expressões das questões psicossociais nelas latentes (BRASIL,


2004).
De acordo com a Política Nacional de Assistência Social, os serviços que
compõem a proteção social especial:

requerem acompanhamento individual e maior flexibilidade nas


soluções protetivas. Da mesma forma, comportam encaminhamentos
monitorados, apoios e processos que assegurem qualidade na
atenção protetiva e efetividade na reinserção almejada.
Os serviços de proteção especial têm estreita interface com o
sistema de garantia de direito exigindo, muitas vezes, uma gestão
mais complexa e compartilhada com o Poder Judiciário, Ministério
Público e outros órgãos e ações do Executivo (BRASIL, 2004).

O trabalho articulado e intersetorial entre as políticas públicas é de


fundamental importância para a efetivação de uma prática que garanta os direitos
das crianças e adolescentes que se encontram em situação de acolhimento, bem
como os de suas famílias.
Nesse sentido, o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária,
aprovado no ano de 2006, é um documento importante para os profissionais que
atuam com o trabalho de efetivação desses direitos, uma vez que traz como
novidade a concepção de políticas integradas às famílias e não apenas focadas na
criança e no adolescente de forma isolada (BRASIL, 2006). O objetivo é fortalecer a
rede de proteção social à família, de forma a prover-lhe todo o suporte necessário à
criação e à educação das crianças e a minimizar os prejuízos decorrentes das
situações em que a separação é inevitável.
Partilhando dos princípios do ECA, o Plano respalda o reordenamento
dos abrigos e a promoção de políticas públicas voltadas para o desabrigamento e
para a construção de alternativas ao acolhimento de crianças e adolescentes. Em
síntese, o Plano aponta para a importância do reconhecimento das competências da
família na sua organização interna e para superação de suas
dificuldades/vulnerabilidades, priorizando a manutenção de crianças e adolescentes
no contexto familiar de origem, assim como incentiva à manutenção da convivência
familiar e comunitária quando o afastamento por institucionalização é inevitável.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Segundo o referido Plano Nacional de Convivência Familiar e


Comunitária, os serviços de acolhimento institucional, articulados com os outros
serviços da rede socioassistencial, devem perseguir os seguintes objetivos:

1) prevenção à ruptura de vínculos, por meio do trabalho com


famílias em situação de vulnerabilidade social e/ou com vínculos
fragilizados; 2) fortalecimento dos vínculos, apoio e
acompanhamento necessário às famílias das crianças e dos
adolescentes abrigados para a mudança de práticas de violação e
para a reconstrução das relações familiares; 3) acompanhamento
das famílias das crianças e adolescentes, durante a fase de
adaptação, no processo de reintegração familiar; 4) articulação
permanente entre os serviços de Acolhimento Institucional e a
Justiça da Infância e da Juventude, para o acompanhamento
adequado de cada caso, evitando-se o prolongamento desnecessário
da permanência da criança e do adolescente na instituição; e 5)
excepcionalmente, nos casos de encaminhamento para adoção pela
autoridade judiciária, intervenção qualificada para a aproximação
gradativa e a preparação prévia da criança, do adolescente e dos
pretendentes, bem como acompanhamento no período de adaptação
(BRASIL, 2006).

Assim, nota-se a importância da articulação entre o trabalho realizado nas


instituições de acolhimento e toda a rede socioassistencial do município,
contemplando todo o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
(Conselho Tutelar, Justiça da Infância e Juventude, Ministério Público e outros), bem
como a sociedade civil organizada.
O trabalho intersetorial deve ser iniciado logo que a criança/adolescente
chega às instituições de acolhimento e deve perdurar por todo o período em que
permanece no local. É somente a partir dessa interlocução que se pode garantir a
proteção integral aos acolhidos e às suas famílias.
Importante se faz pontuar que, durante todo o processo de articulação, as
equipes técnicas das casas de acolhimento e as equipes técnicas das Varas da
Infância e Juventude estão em constante comunicação, a fim de garantir a
efetivação do melhor andamento processual e abreviar o tempo da medida de
acolhimento.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1.2 - A INTERLOCUÇÃO PROFISSIONAL ENTRE A EQUIPE DAS INSTITUIÇÕES


DE ACOLHIMENTO E OS TÉCNICOS DO JUDICIÁRIO

A atuação articulada dos técnicos da instituição de acolhimento e do


judiciário, conduzida de forma alinhada às atribuições profissionais específicas
destas equipes, torna-se imprescindível para que o trabalho se dê de forma efetiva,
em prol da garantia dos direitos das crianças e adolescentes ao convívio familiar
e/ou comunitário.
De acordo com o documento “Orientações Técnicas: Serviço de
Acolhimento para Crianças e Adolescentes” (2009), dentre as principais atividades
das equipes técnicas das instituições de acolhimento, estão as seguintes:
elaboração em conjunto do Projeto Político Pedagógico; acompanhamento
psicossocial dos usuários e suas famílias, com vistas à reintegração familiar;
capacitação e acompanhamento do trabalho dos demais funcionários;
encaminhamento, discussão e planejamento em conjunto com outros atores da rede
acerca das intervenções necessárias nos casos atendidos; organização de
prontuários e encaminhamento de relatórios periódicos ao judiciário; preparação da
criança/adolescente para reintegração familiar (biológica ou afetiva) ou para os
casos de desligamento por maioridade.
As tarefas de articulação da rede de atendimento também constam nas
atribuições profissionais dos técnicos do judiciário, que podem ser verificadas nos
Comunicados nº 308/2004 e nº 345/2004 do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2004).
Quanto ao Assistente Social, no Comunicado 308/2004, existe a previsão
nas atribuições de que este profissional deve “contribuir e/ou participar de trabalhos
que visem a integração do Poder Judiciário com as instituições que desenvolvam
ações na área social, buscando a articulação com a rede de atendimento à infância,
juventude e família, para o melhor encaminhamento.”
Da mesma forma, com relação à Psicologia, o comunicado 345/2004
direciona a atuação dos Psicólogos do TJSP no que se refere às instituições de
acolhimento: “Realizar estudo de campo, através de visitas domiciliares, em abrigos,
internatos, escolas e outras instituições, buscando uma discussão multiprofissional,
intra e extra equipe, para realizar o diagnóstico situacional e a compreensão da
psicodinâmica das pessoas implicadas na problemática judicial em estudo” e

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Realizar o acompanhamento de casos objetivando a clareza para definição da


medida, avaliando a adaptação criança/família; reavaliando e constatando a
efetivação de mudanças; verificando se os encaminhamentos a recursos sociais e
psicológicos oferecidos na comunidade e a aplicação das medidas de proteção e
socioeducativas foram efetivados.”
Tendo como prioridade a manutenção da criança/adolescente na família
de origem, o acompanhamento da família deve ser iniciado imediatamente após o
acolhimento visando à reintegração/reinserção familiar, pois o afastamento
prolongado da criança ou adolescente pode provocar o enfraquecimento dos
vínculos com a família e a perda de referências do contexto e de valores familiares e
comunitários.
O Estatuto da Criança e do Adolescente determina em seu artigo 101,
parágrafo 4º, que:

Imediatamente após o acolhimento da criança ou do adolescente, a


entidade responsável pelo programa de acolhimento institucional ou
familiar elaborará um Plano Individual de Atendimento, visando à
reintegração familiar, ressalvada a existência de ordem escrita e
fundamentada em contrário de autoridade judiciária competente,
caso em que também deverá contemplar sua colocação em família
substituta, observadas as regras e princípios desta Lei (BRASIL,
1990).

Nesse ínterim, o Plano Individual de Atendimento (PIA) é o instrumento


que irá orientar todo o trabalho a ser desenvolvido com a criança ou adolescente
acolhido e com a sua família e o compartilhamento das ações é de responsabilidade
da equipe técnica da Casa de Acolhimento, da equipe técnica do Judiciário e de toda
a rede atuante no caso.
Segundo o documento “Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento
para Crianças e Adolescentes” (2009), o PIA tem como objetivo:

orientar o trabalho de intervenção durante o período de acolhimento,


visando à superação das situações que ensejaram a aplicação da
medida. Deve basear-se em um levantamento das particularidades,
potencialidades e necessidades específicas de cada caso e delinear
estratégias para o seu atendimento.
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O PIA é um documento importante que norteará o trabalho que será


direcionado à criança e ao adolescente durante todo o período do acolhimento. Nele,
devem conter estratégias de atuação que, primeiramente, possibilitem a superação
das causas ensejadoras do acolhimento e o fortalecimento das potencialidades da
família, da comunidade e da rede local.
A elaboração do PIA permite, portanto, conduzir o trabalho com as
crianças, adolescentes acolhidos e suas famílias de maneira mais assertiva e
definitiva, permitindo aos profissionais o delineamento de estratégias de trabalho que
conduzirão as medidas de reintegração familiar, colocação em família extensa,
encaminhamento para adoção e/ou preparação do adolescente acolhido para a vida
autônoma.
O PIA deve, ainda, ser realizado para cada criança/adolescente acolhido,
com estratégias e delineamentos direcionados de forma específica para cada
realidade sociofamiliar. Também deve ser constantemente (re)avaliado, por meio de
discussões de caso, reuniões com a rede intersetorial e nas audiências
concentradas, que ocorrem a cada três meses.
As audiências concentradas, apesar de não serem legalmente previstas,
são uma recomendação da Normativa nº 2, de 2010, e do Provimento nº 32, de
2013, ambos emitidos pela Corregedoria Geral da Justiça, órgão do Conselho
Nacional de Justiça. Estas audiências visam a discussão e aprovação do PIA e as
ações cabidas a cada representante do Sistema de Garantia de Direitos, além do
controle dos serviços de execução da medida de proteção e situação das crianças e
adolescentes sob essa medida (BRASIL, 2010; 2013).
Segundo Melo (2010) as audiências seriam a oportunidade processual
para aprovação ou revisão coletiva do PIA, estabelecendo-se os compromissos
institucionais para efetivação de direitos sociais, econômicos e culturais da criança,
do adolescente e de sua família.
Para tanto, deve contar com a escuta ou participação da criança/
adolescente, dos familiares, dos representantes do Ministério Público, Defensoria
Pública, Juiz da Infância e Juventude, e dos serviços de assistência social, saúde,
educação, habitação, entre outros. Assim, percebe-se que o PIA é um instrumento
importante para o andamento processual da medida de acolhimento e em vários

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momentos os profissionais atuantes estão em constante articulação para a garantia


dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes acolhidos.
Durante todo esse processo de elaboração, avaliação e acompanhamento
das demandas inseridas no PIA, as famílias das crianças e adolescentes acolhidos
são constantemente assistidos pelas equipes técnicas da Casa de Acolhimento e da
equipe técnica do Poder Judiciário.
Cabe aos profissionais envolvidos a criação de estratégias de
acompanhamento que permitam considerar as questões objetivas (condições de
moradia, alimentação, renda) e subjetivas (qualidade dos vínculos e das relações),
visando apoiar a família no processo de reintegração e prevenir novos afastamentos,
através de uma metodologia que possibilite participação ativa de todos os seus
membros. As equipes de acompanhamento devem apresentar qualificação técnica
crítica para não individualizar de forma reducionista a situação observada como
simples casos de família, mas, sim, como expressões de uma questão social mais
ampla.

1.3 - O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR DAS CRIANÇAS E DOS


ADOLESCENTES EM ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL: A REINTEGRAÇÃO
FAMILIAR E A COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA EXTENSA

De acordo com o artigo 19 do ECA, “é direito da criança e do adolescente


ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família
substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que
garanta seu desenvolvimento integral” (BRASIL, 1990). Em função deste princípio,
busca-se assegurar a preservação dos vínculos familiares, sendo cogitada a
reintegração em família substituta (extensa ou adotiva) apenas após esgotados os
recursos para manutenção na família de origem (BRASIL, 1990; MOREIRA, 2014).
De acordo com Cronemberger e Teixeira (2018, p. 289), entre os grandes
desafios enfrentados pelo trabalho social com famílias de origem está a necessidade
de uma releitura dos problemas que a família traz para além do prisma da
individualização, o que pressupõe debates sobre o cotidiano familiar, sua
problematização e desnaturalização, visando à busca de solução para tais
problemas no âmbito das políticas públicas, rompendo com a lógica de soluções
restritas aos intramuros da família.

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O acompanhamento familiar deve ser sistemático e em rede e como


estratégia de superação das vulnerabilidades, Cronemberger e Teixeira (2018)
enfatizam que as gestões devem adotar protocolo de ações integradas, fluxo de
rotinas e a definição de encargos entre serviços e instituições para garantir a
contrarreferência, ou seja, o retorno consubstanciado das conduções. Sem essa via
de mão dupla (referência e contrarreferência), o trabalho fica sem efetividade e sem
alicerce para emissão de pareceres ou para avaliação do trabalho desenvolvido.
Ainda conforme o documento “Orientações Técnicas: Serviço de
Acolhimento para Crianças e Adolescentes” (2009), a questão do tempo de
permanência no serviço de acolhimento deve ser um dos eixos principais da
avaliação acerca da medida que melhor atende ao interesse da criança e do
adolescente, considerando a idade da criança e do adolescente e o significado da
privação do convívio familiar na etapa do ciclo de vida na qual se encontram.
Também, há que se considerar os prejuízos ao desenvolvimento da criança e do
adolescente que possam advir tanto da permanência prolongada quanto de um
rompimento definitivo dos vínculos com a família de origem.
O Manual de Procedimentos Técnicos dos Assistentes Sociais e
Psicólogos do TJSP (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2017), menciona a
equipe técnica do judiciário como partícipe nos estudos e ações relativos ao
acompanhamento da criança/adolescente com vistas ao retorno dos mesmos ao
convívio familiar e comunitário. Sugere que as ações de acompanhamento devam
contemplar aspectos que evidenciem a possibilidade de retorno à família de origem
ou sua colocação em família substituta. Dentre elas, aponta-se: Observar como está
ocorrendo à adaptação da criança/adolescente na entidade de acolhimento; avaliar a
visitação da família (regularidade, periodicidade, integração entre os membros);
observar como a criança/adolescente se coloca com relação à família na vida
cotidiana; buscar pessoas de círculo social da criança que evidenciem vínculo
importante; analisar se a família é receptiva às orientações e encaminhamentos que
são propostos; verificar se a rede de atenção acionada tem oferecido resposta às
demandas específicas apresentadas em cada caso; observar como a
criança/adolescente está vivenciando a situação de acolhimento e se as razões que
levaram ao acolhimento estão sendo equacionadas; observar se as condições

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

socioeconômicas e habitacionais da família remetem a possibilidade de retorno das


crianças ao lar.
De acordo com Moreira (2014), durante o período de acolhimento, a rede
de proteção dos direitos das crianças/adolescentes deve buscar construir com as
famílias as condições necessárias para que seus filhos retornem ao convívio com
seus pais. E, esgotadas todas as possibilidades deste retorno, deve-se procurar que
essas crianças/adolescentes sejam recebidos por membros da família extensa, ou
seja, tios, avós, primos, ou outros a depender da configuração familiar.
Embora a legislação estabeleça que família extensa é aquela formada por
parentes próximos, com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém
vínculos de afinidade e afetividade, percebe-se que não é incomum que a colocação
sob a guarda de parentes esteja relacionada meramente ao vínculo consanguíneo. A
concepção de que os laços consanguíneos sejam garantia suficiente de adaptação,
parece ser o argumento que sustenta a consideração que as crianças e os
adolescentes nesse tipo de medida tenham todas as suas necessidades satisfeitas.
No entanto, esta nem sempre é a realidade, pois muitas vezes os casos dessas
crianças e adolescentes voltam a ser judicializados. Trata-se, assim, de medida
complexa, em que cada caso deve ser tratado individualmente, analisando-se a
situação familiar particular para a tomada de decisão, acompanhamento e apoio.
Apesar de sua importância enquanto medida do sistema de proteção à criança e ao
adolescente, a colocação em família extensa recebe menor atenção, tendo
acompanhamento limitado e menor acesso a recursos e serviços.
Estudos sobre o assunto são muito escassos no Brasil. Em países
europeus, os estudos sobre a colocação em família extensa são iniciais e, em geral,
descritivos. A título de ilustração, o estudo espanhol de Mañes et al. (2007)
identificou que as famílias extensas são geralmente de avós, com cerca de 60 anos
de idade, pensionistas com baixa renda, que recebem crianças menores de 11 anos,
com problemas de adaptação e baixo rendimento escolar.
Uma maior produção científica pode ser encontrada nos Estados Unidos,
com estudos que descrevem perfis, dificuldades e programas de intervenção
(CUDDEBACK, 2004). Em alguns estudos americanos, evidenciou-se que o
acolhimento em família extensa pode gerar estresse e sobrecarga familiar e pessoal
nos novos guardiões. Em relação aos familiares que acolheram uma ou mais

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criança(s) ou adolescente(s), há uma associação entre a tensão e o estresse


derivado do procedimento de acolhimento ocorrido e manifestações emocionais
como depressão, ansiedade, hostilidade, somatizações, entre outras (MINKLER;
FULLER-THOMPSON; MILLER; DRIVER, 2000; WHITLEY; KELLEY; SIPE, 2001).
Tais famílias identificaram como principais causas de sobrecarga e estresse, os
conflitos familiares e as dificuldades com o comportamento das
crianças/adolescentes. As principais fontes de apoio informadas pelas famílias, por
outro lado, foram as crenças religiosas, o apoio de parte dos familiares e, inclusive,
das próprias crianças.
Especial atenção deve ser dada quando se trata de grupos de irmãos
colocados sob guarda de diferentes interessados (parentes ou indivíduos que
mantenham vinculação afetiva). De modo que, todos os esforços devem ser
realizados no sentido de preservar os vínculos entre os mesmos, garantindo-lhes
estreito convívio.
O acompanhamento familiar deve ser mantido após a reintegração à
família de origem ou colocação em família extensa e as estratégias devem ser
desenvolvidas junto à família para conciliar os cuidados com a criança/adolescente
com as demais responsabilidades familiares. A preparação para o desacolhimento
deverá incluir uma crescente participação da família na vida da criança e do
adolescente, inclusive no cumprimento das responsabilidades parentais (reuniões
escolares, consultas médicas, comemorações, entre outras). A responsabilidade
quanto ao órgão responsável pelo acompanhamento no período após o
desacolhimento deverá ser objeto de acordo formal entre os serviços de
acolhimento, o órgão gestor da Assistência Social e a Justiça da Infância e da
Juventude.
Equacionar o tempo de duração de um acolhimento institucional é um dos
grandes desafios enfrentados pelas equipes das Casas de acolhimento, dos
equipamentos da rede de proteção e do judiciário. Pondera-se que quanto maior o
tempo de afastamento da criança/adolescente de sua família, maior o risco de
ruptura dos vínculos e quanto menor for a criança, mais curto deve ser o tempo de
acolhimento institucional, dado que as primeiras experiências vinculares são
decisivas no seu processo de desenvolvimento (MOREIRA, 2014).

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Nesse sentido, a literatura psicológica e psiquiátrica é unânime em


reconhecer a influência e a importância da família no desenvolvimento
psicoemocional infantil. De acordo com Dessen e Polonia (2007), é no ambiente
familiar que as crianças e os adolescentes vão aprender a lidar com seus conflitos, a
expressar seus sentimentos e a controlar suas emoções, sendo que essas
aprendizagens iniciais junto ao seio familiar poderão ser utilizadas também em
outros contextos, mesmo quando o indivíduo tornar-se adulto. Winnicott (1959-
1964/1983) ressalta que se observa na espécie humana uma tendência inata ao um
desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e relacional. Contudo, esse instinto
potencial em direção a um amadurecimento biopsicossocial necessita de um
ambiente facilitador para se realizar e o ambiente familiar é, historicamente, um local
privilegiado para essa construção de vínculos e de um espaço de troca de
experiências construtivas.
Dessa forma, em síntese, a constituição da personalidade das crianças e
adolescentes é um processo gradual e complexo que, de início, ganha contornos por
meio da experiência vivida com adultos familiares ou outros responsáveis que vão
ao encontro das demandas práticas e psicoafetivas apresentadas por esses sujeitos
em desenvolvimento. Por outro lado, diante de frequentes lacunas, falhas, faltas ou
interrupções no oferecimento dos cuidados parentais adequados, pode-se abrir
margens para a instauração de processos mentais defensivos, patológicos ou, até
mesmo, traumáticos nessas crianças e adolescentes. Diante disso, em uma possível
situação de afastamento dos membros familiares em decorrência de um acolhimento
institucional, faz-se necessário por parte dos profissionais técnicos um olhar sensível
às particularidades anteriormente já estabelecidas dentro daquele referido ambiente
familiar, cuja intervenção judiciária também trouxe uma ruptura da dinâmica inter
relacional até então rotineira. Recomenda-se aos referidos profissionais uma
reflexão crítica que busque equacionar, de forma embasada e responsável durante a
realização de suas avaliações psicossociais, sugestões efetivas para que o período
de acolhimento dure tempo bastante para que os cuidadores desenvolvam práticas
parentais mais assertivas/protetivas, sem perder de vista a brevidade desejada para
a garantia do bem estar psicoemocional dos membros familiares, especialmente dos
filhos acolhidos que, nessa fase da vida, ainda nutrem vínculos afetivos essenciais
para a constituição de sua personalidade.

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2 - CONCLUSÃO

O objetivo do Grupo de Estudos de Ribeirão Preto - Tema “Família”,


promovido pela Escola Judicial dos Servidores, é o de proporcionar um espaço
coletivo de reflexões teóricas, metodológicas e vivenciais entre os profissionais do
Setor Técnico de diversas Comarcas, fomentando, dessa forma, o aperfeiçoamento
das habilidades e da identidade profissional dos mesmos em sua atuação diária
dentro do Poder Judiciário.
Nesse ínterim, o objetivo do presente artigo foi apresentar, de forma
crítica, reflexões construídas coletivamente pelo grupo de Psicólogos e Assistentes
Sociais Judiciários, ao longo do ano de 2019, sobre a interface entre os saberes
específicos dessas duas grandes áreas de atuação profissionais e uma das práticas
jurídicas tradicionalmente enraizadas na cultura brasileira no que tange à uma das
formas de interferência do Estado no âmbito intrafamiliar: o acolhimento institucional
de crianças e adolescentes.
Os marcos regulatórios que orientam as práticas voltadas às
crianças/adolescentes em acolhimento institucional partem de um entendimento da
família enquanto entidade primordial de promoção e defesa dos direitos de seus
membros, configurando eixo central dos esforços da rede de proteção. Nesse
sentido, pode-se observar que a atuação dos profissionais do Setor Técnico diante
desse cenário ocorre de forma multinível e interligada com outros atores sociais da
rede de proteção, propondo ativamente reflexões, (re)avaliações e intervenções em
diversos âmbitos, do micro ao macro, da dinâmica relacional dos membros familiares
até a ampla articulação da rede por meio de discussões multiprofissionais focadas
na resolução possível do caso.
Observamos que os profissionais judiciários do Serviço Social e da
Psicologia buscam sempre pautar suas atuações cotidianas de forma comprometida
com as determinações de seus respectivos conselhos de classe e das normativas
legais vigentes, ao mesmo tempo que orientam suas práticas no sentido de
promover a garantia e a proteção de direitos de acordo com as particularidades
observadas caso a caso. Pensando-se nesse posicionamento ético e técnico, notou-
se, durante as discussões coletivas realizadas, que os referidos profissionais levam
em consideração em suas análises críticas, de forma especial, a efetividade das
intervenções do Poder Público junto à família nesse momento de busca de
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

superação de vulnerabilidades, bem como a necessidade de não se perder de vista


o caráter de excepcionalidade do acolhimento institucional como medida de
proteção. Diante de todo o exposto, ressaltamos a importância ímpar dos Grupos de
Estudos dos profissionais do Setor Técnico como espaços coletivos de construção
de saberes e práticas extensamente aplicáveis no dia a dia da atividade pericial
demandada nas avaliações psicossociais judiciárias nas Varas da Infância e
Juventude.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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649
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

PAPEL DO PSICÓLOGO E ASSISTENTE SOCIAL


JUDICIÁRIO NA ATUAÇÃO JUNTO À REDE DE
GARANTIA DE DIREITOS – EDUCAÇÃO,
ASSISTÊNCIA SOCIAL E SAÚDE

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR


SÃO JOSÉ DO RIO PRETO
“CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM DIFERENTES
SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE”

TRINUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

650
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Emeline Duo Riva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Catanduva
Sheila Barreiros Pereira Metz – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
do Rio Preto

AUTORES
Ana Carolina Petrolini André – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Ana Lúcia da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Américo Brasiliense
André Luís dos Santos Borin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Neves
Paulista
Carolina Flauzino de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tanabi
Claudinéia Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Potirendaba
Elaine Cristina dos Santos de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Tanabi
Emeline Duo Riva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Catanduva
Emília Almeida Junqueira Franco – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Auriflama
Evelisi Tavoloni – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Fernanda Azevedo Cintra e Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do
Rio Preto
Hellen Leandra Bataus – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Adélia
Karen Menezes Hirs – Psicóloga Judiciário – Comarca de Novo Horizonte
Lívia Tonon de Castro Pastrelo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Votuporanga
Luciana de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tabapuã
Maria Teresa Braz da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itajobi
Mariana Sato dos Reis – Assistente Social Judiciário – Comarca de José Bonifácio
Marli Salvador Corrêa da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Novo
Horizonte
Marta Maria de Campos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Potirendaba
Mirian Cristina Scapa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Adélia
Polyana Cristina Bacani – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cardoso
Renata Cristina Domingos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cardoso
Rosangela Cristina Alves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tabapuã
651
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Sheila Barreiros Pereira Metz – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
do Rio Preto
Tatiana Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guaíra

652
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O tema proposto no ano de 2019 para embasar os debates deste Grupo


de Estudo foi a atuação do psicólogo e do assistente social no âmbito do judiciário,
tendo como eixos as dificuldades enfrentadas neste contexto de relações de poder e
os desafios na articulação junto à rede de garantia de direitos, sendo os próprios
técnicos do judiciário integrantes dessa rede.
Diversas inquietações emergiram ao longo do ano, indagando-se em que
medida a equipe técnica, nas intervenções em casos envolvendo situações de
vulnerabilidade social, está, de fato, atuando de forma ética e política, sem assumir
posturas culpabilizadoras em relação à família.
Assim, os textos escolhidos percorreram temas que tiveram o intuito de
problematizar o quanto os discursos dos assistentes sociais e psicólogos, tanto do
judiciário quanto da rede, podem estar contribuindo para a culpabilização da família
em situação de vulnerabilidade social, descontextualizando, nos relatórios
produzidos, as condições às quais a família se insere nas dimensões social, afetiva,
relacional, laboral, convivendo com as desigualdades e as exclusões cotidianas, às
margens da sociedade, sem amparo do poder público. Famílias cujos seus membros
podem passar da condição de vítimas para a condição de réus no sistema de justiça.
Outra questão levantada foram os limites estruturais e as relações de
poder a que os psicólogos e assistentes sociais do judiciário estão inseridos e
precisam enfrentar, destacando-se a existência de relações assimétricas no
judiciário entre equipe técnica, promotores e juízes, em que os olhares são
divergentes, por vezes gerando conflito ético.
Nessa linha, foram também debatidas as implicações que o racismo
institucional tem na subjetividade das pessoas e como o sistema de justiça é um
violador de direitos quando se trata da família pobre e negra, destacando a
necessidade de ampliar o conhecimento crítico e o posicionamento profissional,
visando denunciar as violações pautadas no racismo.
Desse modo, resgatou-se, em diversos momentos, a imprescindibilidade
da atuação dos profissionais ser amparada pelos respectivos Códigos de Ética, pelo
olhar atento, crítico e contextualizado acerca das famílias atendidas, garantindo-lhes
seus direitos.

653
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - O SISTEMA DE JUSTIÇA E A GARANTIA DE DIREITOS: A


ATUAÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA NOS CASOS DE
VULNERABILIDADE SOCIAL

Do ponto de vista histórico e social, o Sistema de Justiça brasileiro


apresenta configurações muito distintas antes e após a Constituição Democrática de
1988.
No Brasil colonial, o judiciário funcionava como um sistema burocratizado
que deveria atuar diante de conflitos jurídicos surgidos de interesses individuais, em
uma sociedade que era considerada estável e não ambígua, ou seja, muito distante
da realidade brasileira, marcada desde o princípio pela desigualdade e miséria de
sua população (FARIA, 2004).
Apesar de críticas feitas ao sistema de justiça ao longo dos anos, foi
somente com a ampliação dos movimentos sociais (décadas de 1970 e 1980), que a
população marginalizada pode ter acesso ao judiciário, e logo a Constituição de
1988 trouxe o reconhecimento de uma gama de direitos individuais e a criação de
instituições para salvaguardar tais direitos. O judiciário também passou por
mudanças positivas, tendo garantia de autonomia e o fortalecimento do Ministério
Público (SADEK, 2008).
Dessa forma, as mudanças trazidas após Constituição de 1988 não se
refletiram na garantia de direitos para a população, que ainda percebe o judiciário
como uma instituição estagnada, morosa e injusta. Segundo Sadek (2008),
operadores do direito e população não possuem a mesma visão sobre o sistema de
justiça e, como destaca a autora “A singularidade nacional não está no desacordo
entre as duas compreensões, mas na extraordinária distância entre os dois grupos e,
mais ainda, na dificuldade de trocas de posição e de interlocução” (pág. 271).
Tem-se que o sistema de justiça encontra-se ainda muito distante das
camadas sociais socialmente vulneráveis. Grande parte da população não tem
conhecimento sobre seus direitos e assiste recorrentemente à violação dos mesmos,
muitas vezes pelo próprio Estado e suas instituições.
É neste contexto de contradições que houve a inserção de profissionais
psicólogos e assistentes sociais no judiciário. A atuação do Serviço Social e da
Psicologia junto ao Poder Judiciário - embora chamados a contribuir em tempos
diferentes (1948 e 1980, respectivamente) e com projetos profissionais distintos -,
654
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

tem ampliado sua compreensão sobre a população atendida para além da


judicialização da demanda, com vistas à garantia de direitos.
Várias são as práticas atribuídas às equipes técnicas do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. Entre elas, é atribuído à (ao) assistente social
judiciário “proceder à avaliação dos casos, elaborando estudo ou perícia social, com
a finalidade de subsidiar ou assessorar a autoridade judiciária no conhecimento dos
aspectos socioeconômicos, culturais, interpessoais, familiares, institucionais e
comunitários” (SÃO PAULO, 2004).
No que tange ao Serviço Social no âmbito do judiciário, vários desafios se
fazem presentes para a intervenção profissional na perspectiva da promoção e
efetivação de direitos, perpassando pela afirmação da autonomia da categoria e o
compromisso ético-político com os sujeitos que demandam sua ação no exercício da
profissão.
Ao analisar as possíveis consequências do não acesso desses sujeitos
aos direitos constitucionais, coloca-se como condição determinante para a garantia
da qualidade dos serviços prestados pelo assistente social no sociojurídico75,
conhecer as condições e histórias de vida, trabalho, moradia; os anseios, a
subjetividade e as relações socioculturais das famílias, aos quais demandam a ação
profissional.
Borgianni (2013) ao tratar da atuação dos assistentes sociais na área
sociojurídica, aborda que o que está dado como desafio e possibilidade aos
assistentes sociais que atuam nesse lócus, local em que os conflitos se resolvem
pela impositividade do Estado:

[...] trazer aos autos de um processo ou a uma decisão judicial os


resultados de uma rica aproximação à totalidade dos fatos que
formam a tessitura contraditória das relações sociais nessa
sociedade, em que predominam os interesses privados e de
acumulação, buscando, a cada momento revelar o real, que é

75
[...] o trabalho do assistente social na área sociojurídica é aquele que se desenvolve não só no
interior das instituições estatais que formam o sistema de justiça (Tribunais de Justiça, Ministério
Público e Defensorias), o aparato estatal militar e de segurança pública, bem como o Ministério
de Justiça e as Secretarias de Justiça dos estados, mas também aquele que se desenvolve nas
interfaces com os entes que formam o Sistema de Garantia de Direitos (cf. CONANDA, 2006)
que, por força das demandas às quais têm que dar respostas, confrontam-se em algum
momento de suas ações com a necessidade de resolver um conflito de interesses (individuais ou
coletivos) lançando mão da impositividade do Estado, ou seja, recorrendo ao universo jurídico
(BORGIANNI, 2013, pág. 424).
655
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

expressão do movimento instaurado pelas negatividades intrínsecas


e por processos contraditórios, mas que aparece como “coleção de
fenômenos” nos quais estão presentes as formas mistificadoras e
fetichizantes que operam também no universo jurídico no sentido de
obscurecer o que tensiona, de fato, a sociedade de classes
(BORGIANNI, 2013, pág. 423).

Conforme a autora, uma primeira armadilha ou desafio que se põe ao


assistente social em seu cotidiano é superar a aparência dos fenômenos com os
quais vai trabalhar. Explica que os “problemas jurídicos”, na realidade também
carregam conteúdos de cunho eminentemente político e social (Idem, pág. 435).
Borgianni (2013) destaca que a atuação de um assistente social na área
sociojurídica:

[...] não pode estar a serviço da culpabilização, da vigilância dos


comportamentos ou dos julgamentos morais. Tampouco pode servir
ao engodo de grande parte das instituições jurídicas que, em virtude
da precarização e do desmonte que em seu interior foi promovido,
ficam apenas fazendo “os processos judiciais andarem” com atos
meramente burocráticos e burocratizantes (Idem, 2013, pág. 439).

A autora adverte que “nosso papel não é o de ‘decidir’, mas o de criar


conhecimentos desalienantes a respeito da realidade sobre a qual vai se deliberar
naquilo que se refere à vida de pessoas” (Idem, 2013 p. 439).
Ainda, Borgianni alerta que “por ser-nos demandado um estudo de
situações complexas, nosso trabalho, também ele, torna-se de alta complexidade, o
que, a bem da verdade, nos impediria de fazer um laudo ou um parecer a partir de
um contato de vinte minutos com alguém” (Idem, 2013, pág. 437).
Iamamoto (2010) lembra que a/o assistente social “embora subordinado
legal e institucionalmente ao juiz [...], dispõe de autonomia técnica e ética no
exercício de suas atribuições, privativas ou não, regulamentadas legalmente 76” (pág.
288).
A partir das bibliografias consultadas, observa-se que há consenso
(BORGIANNI, 2013; FÁVERO; FUZIWAEA, 2012; IAMAMOTO, 2010) que a
condução do trabalho com compromisso ético e respeito às prescrições da lei de
76
A autora destaca a Lei nº 8.662, de 7/6/1993, que dispõe sobre a profissão de Assistente
Social e dá outras providências.
656
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

regulamentação da profissão requer da/o assistente social “competência teórico-


metodológica que forneça um ângulo de leitura dos processos sociais, competência
técnica no uso dos instrumentais operativos adequados à situação, afirmação da
autonomia profissional e compromisso ético” (MIOTO, 2000, apud IAMAMOTO,
2010, p. 292). Adverte Fuziwara que, “[...] meios, instrumentos e técnicas são
conduzidos por um sujeito dotado de conhecimento, que desenvolve capacidade e
habilidades” (FUZIWARA, 2012, pág. 121).
Para Fuziwara (2012), “[...] é o conjunto da formação que possibilita ao
profissional intervir nas demandas que lhe são apresentadas. (..) A capacitação
instrumental é importante, mas são os valores e os fundamentos da profissão que
lhe possibilitam ter legitimidade e efetividade em torno das demandas sociais”77
(FUZIWARA, 2012, pág.118).
Toda essa conjuntura complexa e permeada por contradições também
está presente na atuação do psicólogo judiciário. A inserção do psicólogo na Justiça
também embalada pelos direitos humanos proclamados na Constituição Federal e
no Estatuto da Criança e do Adolescente no final das décadas de 1980 e 1990, se
dá pelas Varas de Infância e Juventude e de Família.
À/ao psicóloga (o) judiciário é atribuído:

Proceder à avaliação de crianças, adolescentes e adultos,


elaborando o estudo psicológico, com a finalidade de subsidiar ou
assessorar a autoridade judiciária no conhecimento dos aspectos
psicológicos de sua vida familiar, institucional e comunitária, para que
o magistrado possa decidir e ordenar as medidas cabíveis (SÃO
PAULO, 2004).

Brandão (2016) delineia a euforia inicial passando pelo sutil desânimo até
o profundo mal estar ao longo dos 15 anos do psicólogo na Justiça, crise essa
decorrente de uma crise mais ampla no campo dos direitos humanos, em relação ao
quais Santos e Chauí (2013, p. 42) perguntam se “servem eficazmente à luta dos
excluídos, dos explorados e dos discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais
difícil”.

77
Grifo da autora.
657
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A produção do conhecimento na psicologia jurídica encontra muitas vezes


contradição entre as demandas dirigidas pelos operadores do direito aos psicólogos
e a resposta que esses idealizam frente às mesmas:

[...]as demandas são focadas na confecção de laudos que subsidiam


suas decisões, de um lado e de outro lado, os psicólogos idealizam,
de modo geral, suas práticas de acordo com uma produção extensa
de bibliografia que aponta para formas de inserção que não se
encerram nos limites da perícia (BRANDÃO, 2016, pág. 36).

Mesmo diante das demandas de avaliação, o psicólogo muitas vezes se


vê chamado a procurar “as verdades” nos casos, sendo que sua função deve ser
mais ampla. O profissional deve ser capaz de olhar os indivíduos em atendimento de
forma a compreender suas singularidades, sem perder de vista o contexto social e
político no qual estão inseridos (MIRANDA, 2005).
É necessário que, na sua atuação no sistema de justiça, o psicólogo
questione se sua investigação está a serviço do sistema de dominação vigente.
Como ainda ressalta o autor (2005): “Sabemos que qualquer teoria e qualquer
técnica podem servir aos mais diversos discursos políticos quando são por eles
absorvidas e reelaboradas” (pág. 162).
Brandão (2016) aponta a subjetividade e a pouca materialidade presente
nos processos afetos às Varas da Infância e Juventude e da Família e a presença do
psicólogo como profissional-perito para que o juiz possa se apoiar no laudo pericial,
ressalvando que este pode manobrar suas decisões e assim, manter incólume o
poder simbólico.
Assim, o psicólogo precisa dispender um esforço teórico para elucidar o
impasse atual no campo da psicologia jurídica, dada a dicotomia entre a demanda
por perícia e as práticas para além da confecção de laudos.
As “novas” práticas demandadas pelos psicólogos sugerem atuações em
busca de promoção e orientação às famílias, de forma que estas tenham
participação ativa nas resoluções dos próprios impasses.
Aspecto também relevante é a crescente judicialização em especial das
famílias pobres. Silva (2017) aponta:

658
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outro impacto da crescente judicialização das famílias e do papel


atribuído ao Estado-juiz consiste na intervenção ‘normalizadora’ na
resolução dos conflitos conjugais e parentais, que abre espaço para
a estigmatização, em especial das famílias pobres. Defende-se a
realização de análises contextualizadas dos condicionantes sócio-
históricos que perpassam as relações estabelecidas entre os
sujeitos, a psicologia e o sistema de Justiça, a fim de ir além do
higienismo e do controle heterônomo das relações. (SILVA, pág. 06,
2017).

Mostra-se fundamental que o psicólogo esteja comprometido com os


limites éticos da profissão regulamentados em seu Código de Ética78 e

[...]estar atento aos desdobramentos da produção do discurso


psicológico, tendo em vista o compromisso ético político com a
promoção da autonomia e do desenvolvimento humano. Portanto, os
usos e apropriações do saber-fazer psi devem estar comprometidos
com a ampliação do protagonismo dos sujeitos em relação às suas
vidas (SILVA, pág. 06, 2017).

O trabalho interdisciplinar é uma importante ferramenta na atuação das/os


Psicólogas/os e Assistentes Sociais. Ressalta-se que, para efetivação da
interdisciplinaridade, vários fatores se fazem necessários: a construção de equipes
com abordagem interdisciplinar; a capacitação profissional; o diálogo entre as
equipes técnicas; a sistematização e registro dos trabalhos, postura ética, entre
outros.
Entretanto, salienta-se que a formação de equipes interdisciplinares
constitui-se um desafio, dada a historicidade da especialização do trabalho e suas
consequências na formação profissional e ideológica do trabalhador. De acordo com
Gomes (2016):

A dinâmica social, contudo, atravessada pela questão social e sendo


um espaço de antagonismos e conflitos inerentes ao modo de
produção capitalista, apresenta situações altamente complexas, que
por sua vez, exigem respostas adequadas ao seu grau de
complexidade. A necessidade da interdisciplinaridade surge neste

78
RESOLUÇÃO CFP Nº 010/05 – Código de ética profissional do psicólogo.
659
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

contexto, onde o individualismo, a alienação, a superespecialização,


geradas no seio do modo de produção capitalista, revelam sua
ineficiência diante da complexidade social e suas reivindicações.
(GOMES, 2016, pág. 11).

Observa-se que se torna fundamental para qualquer profissão atentar-se


ao fato de que não se encontra isolada de outras profissões, além disso, ter a plena
consciência de que para bem interagir com as mesmas, é sempre necessário saber
definir e ser competente em seu campo, sendo um elemento fundamental para que
haja, de fato, troca entre os saberes – o que define a equipe interdisciplinar.
(CARVALHO, 2012)
A realidade contemporânea com o acirramento da questão social vem
ampliando as demandas não somente para a/o assistente social, mas para outros
profissionais, cuja intervenção exige uma proposta de trabalho em equipe, a fim de
subsidiar e oferecer respostas qualificadas frente às faces e manifestações das
desigualdades sociais, possibilitando a promoção do acesso à justiça nos modos de
vida de cada indivíduo.
Entende-se, assim, que a interdisciplinaridade além de permitir a troca de
saberes, deve buscar ampliar a parceria e a mediação dos conhecimentos,
possibilitando que na prática profissional exista a construção de um diálogo entre as
ciências, favorecendo espaços que aproximem os saberes de forma dialética,
buscando alterar paradigmas estabelecidos culturalmente.
Na prática profissional dos técnicos do Judiciário, infere-se que a
interdisciplinaridade vem se constituindo como um desafio. Observa-se que as áreas
de Psicologia e Serviço Social possuem entre si uma relação de interação e
complementaridade. Todavia, avalia-se que seria importante que isso também
acontecesse com os profissionais do Direito.
Para a efetivação da prática interdisciplinar é necessário uma mudança de
atitude de cada profissional, buscando enaltecer o diálogo, a troca de saberes e
valorização da diversidade. Como aponta Almeida et al. (2013, pág. 8):

[...] a realização de um trabalho capaz de envolver a todos na


conquista por um novo modelo de sociedade que vise à luta pela
justiça social, que reconheça a importância do respeito e
compromisso ético quanto a questão social. Assim, é necessário
660
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

vivenciar a interdisciplinaridade, o que implica uma inter-relação


entre justiça social e a relação ético-profissional, visando à
viabilização do acesso a Justiça.

Assim, dentre as práticas previstas para as equipes técnicas do Judiciário,


reitera-se que uma das principais tarefas é desenvolver estudos com vistas a
subsidiar decisões judiciais. De acordo com Adami e Reis (2018) os laudos sociais e
psicológicos resultantes dos estudos realizados têm um reflexo direto na vida
daqueles que buscam na justiça seu último recurso, em meio a diversas violências e
situações de desproteção social e psicológica.
As autoras apontam, ainda, que:

[...] laudos desvelam as diversas expressões da questão social e


suas diferentes manifestações, a saber: a estrutura da desigualdade
social, geradas pelo sistema econômico vigente, acarreta situações
de pobreza, desemprego, terceirização de mão de obra assalariada,
trabalho flexível, desigualdade de renda fruto da desigualdade de
gênero, raça/etnia e orientação sexual; violência em suas diversas
formas (física, psicológica, sexual, material, moral); sistema
habitacional precarizado, dentre outras. (ADAMI E REIS, 2018, p.
218)

Em meio às diferentes possibilidades de atuação da equipe técnica no


judiciário, estas estão sempre atravessadas pelas questões econômicas, raciais e de
gênero, sendo necessária, então, a reflexão acerca de como estes aspectos podem
influenciar na atuação, e as formas de superação de uma prática excludente e
perpetuadora das desigualdades sociais, uma vez que a atuação baseada em
posicionamentos moralistas e guiada por juízos de valor acarretam consequências
profundas na vida das famílias usuárias do serviço de justiça. (ADAMI E REIS,
2018).
Segundo Duarte (2018), o sistema de justiça adotou, ao longo do tempo,
um posicionamento seletivo, criminalizando a parcela mais pobre da sociedade que,
devido às limitadas condições no trabalho formal, é obrigada a entrar na
informalidade laboral, submetendo-se à precariedade no trabalho, à invisibilidade e à

661
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

culpabilização por sua condição material. A autora aponta, ainda, que esta mesma
condição torna famílias vulneráveis ao trabalho informal no tráfico.
Além dos aspectos referentes à criminalização da pobreza, os
rompimentos dos vínculos familiares também têm sido uma consequência advinda
de um olhar culpabilizador da pobreza. Fávero (2007 apud PANTUFFI E GARCIA,
2018) discute que, apesar do que é estabelecido em lei, a carência socioeconômica
tem sido historicamente o principal determinante para o rompimento dos vínculos
entre pais e filhos, seguidos por situações de abandono, negligência, violência
doméstica e dependência de substâncias psicoativas.
O racismo também surge como outro aspecto que influencia nas relações
estabelecidas entre as instituições judiciárias e os indivíduos em situação de
vulnerabilidade social.
De acordo com Eurico (2013) o trabalho da/o assistente social e da/o
psicóloga/o sofre interferências do racismo institucional, que fortalece a
naturalização e a culpabilização da população negra por sua permanência
majoritária nas camadas mais vulneráveis da sociedade. Tratadas como problema
moral e religioso, as relações raciais não são problematizadas adequadamente
(EURICO, 2013).
O código de Ética Profissional da/o Assistente Social, aprovado em 1993,
é o primeiro código profissional do Serviço Social que introduz a questão da não
discriminação como um de seus princípios fundamentais, fortalecendo as bases para
o desenvolvimento de um debate sobre a questão étnico/racial no cotidiano da/o
assistente social. (EURICO, 2013)
Nesse mesmo aspecto, o Código de Ética do Psicólogo, aprovado em
2005, traz como um dos princípios fundamentais da atuação do psicólogo a
promoção à saúde e à qualidade de vida das pessoas e das coletividades,
contribuindo para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (CFP, 2005).
Diante dessas análises é importante o olhar atento ao cotidiano, conforme
apontam Adami e Reis (2018) citando Barroco (2010), pois as relações
estabelecidas entre o indivíduo e sociedade se fazem de modo espontâneo,
pragmático e acrítico, de forma que o indivíduo responde às necessidades de sua

662
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

reprodução através do vínculo imediato entre pensamento e ação, repetindo


automaticamente seus comportamentos.
Tais aspectos associados às condições de trabalho das equipes técnicas,
que atuam com grande demanda de trabalho e baixas condições em termos de
estrutura podem resultar numa prática sem reflexão, inclusive, com a possibilidade
de reprodução das relações institucionais excludentes com os usuários.
Não obstante às limitações que permeiam o cotidiano profissional, pensar
a atuação da equipe técnica em casos de vulnerabilidade social exige pensar um
fazer ético que permita a reflexão dos efeitos da pobreza no cotidiano e na
subjetividade da população atendida de modo a não perpetuar uma prática
excludente e mantenedora das desigualdades sociais.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2 - ARTICULAÇÃO EM REDE: DIFICULDADES E POSSIBILIDADES

Tratar do trabalho das Equipes Técnicas no Tribunal de Justiça


pressupõe, necessariamente, a articulação com a rede de serviços. A decisão
judicial sobre os casos não se esgota em si, ao contrário, envolve situações que, a
qualquer momento, foi e/ou será objeto de intervenção da rede de serviços.
O trabalho em rede ganhou ênfase a partir da Constituição Federal de
1988, que ampliou o campo de participação popular nas políticas públicas,
especialmente através da instituição dos Conselhos de Direito.
Pensar em rede pressupõe entendê-la, por sua natureza, como um
espaço de participação democrático e dialógico entre atores diversos que vão atuar
a partir de referências, num campo aberto em que não há uma coordenação, ao
contrário, é um campo propício às divergências e diversidades, porque se dá no
plano da horizontalidade.
Para Castells (1998), uma rede de serviços vem a ser um conjunto de nós
conectados, em que cada nó é um ponto onde a curva se intercepta. Para o autor,
ainda que alguns nós possam ser mais importantes que outros, em uma rede, todos
os nós dependem dos demais.
As redes são constituídas e ativadas na perspectiva da construção de
algo novo, que não seria possível ser realizado de forma isolada. Diante de um caso
judicial, a Equipe Técnica do Poder Judiciário pode se deparar com o seguinte
conflito ético: Como oferecer escolhas às famílias para a superação de seu status
quo? A resposta para essa questão exige a articulação com a rede de serviços, já
que os técnicos judiciários são limitados em sua atuação, especialmente quanto à
operacionalização de ações e serviços em âmbito territorial.
Seguindo essa perspectiva, os técnicos judiciários se veem provocados a
ativar a relação em rede, dialogando e construindo novas propostas de atuação
sobre o caso. Os entraves, no entanto, são diversos a ambos os lados, havendo
resistências de várias ordens.
Se reconhecer como pertencente à rede de serviços públicos é um dos
desafios das Equipes Técnicas do Poder Judiciário. O não reconhecer significa não
pertencer e, desta forma, tanto as Equipes Técnicas do Poder Judiciário quanto da
rede de serviços públicos, ficam vulneráveis à ideia de hierarquização e

664
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

diferenciação entre as equipes. Na maioria das vezes, as Equipes Técnicas do


Poder Judiciário são colocadas numa condição de pseudo superioridade em relação
às demais, o que compromete as possibilidades de construção de parcerias.
Neste sentido, estar aberto à partilha de experiência, a abdicação da
reprodução do discurso institucional e a assumir a corresponsabilidade pelo destino
das famílias, se faz imprescindível.
Especialmente no que tange à reprodução do discurso institucional, vale
ressaltar que esta compreensão acerca da articulação com a rede de serviços está
pautada no pensar profissional das áreas de Psicologia e Serviço Social, o que não
garante a sua efetiva aplicação conceitual.
Discute-se a forma como a rede de serviços é concebida dentro dos
processos, como fonte de informações e provas que subsidiem a decisão judicial. Ao
limitá-la à condição de fonte, fica postergado o processo de articulação para o
cuidado das pessoas e famílias, correndo-se o risco de enveredar-se por relações
assimétricas do Poder Judiciário para com a rede de serviços públicos.
Quando há o interesse de ambos em dialogar sobre os casos, pessoas e
famílias, as limitações podem ser superadas, podendo-se construir espaços para a
discussão de caso e o acesso à rede pelos sujeitos, ainda que a rede de serviços
seja deficitária.
A dificuldade na articulação com a rede vai além de questões técnicas,
trata-se de problemática conjuntural, da burocratização na administração das
políticas e do sucateamento dos serviços públicos que, por vezes, dá causa à
judicialização das manifestações das questões sociais, aproximando pessoas e
famílias da justiça, mas, por vezes, afastando-as da garantia de direitos.
Assim como Goes (2018) considera-se que,

O dia a dia imerso em uma atividade profissional que tem como foco
situações de exploração, de violência, falta de oportunidades,
violações de direitos, entre outros – que demandam respostas e
avaliações que marcam, por vezes, destinos - é um espaço que
impõe o constante investimento profissional em estudos, pesquisas e
aprimoramento para evitar a homogeneização e o automatismo de
intervenções e ações. Requisita ainda, a reflexão, a crítica e o
posicionamento ético e político permanente. Nesse cotidiano há
ainda, armadilhas e percalços que, podem nos conduzir a pontos
cegos (GOES, pág.15, 2018).

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na atual conjuntura, a propositura de novas ações e ideias tem sido o


caminho encontrado por técnicos do Poder Judiciário para pensar o trabalho em
rede, ou seja, colocar-se numa condição proativa tem possibilitado experiências,
senão totalmente positivas ao menos enriquecedoras.
A todo o momento, a atuação dos técnicos do judiciário, na busca pela
articulação com a rede, deve estar pautada num compromisso ético político com as
questões apresentadas em nosso cotidiano profissional.

3 - ANÁLISE DO FILME – “SONHOS ROUBADOS”

O filme nacional “Sonhos roubados” (WERNECK, 2010) retrata a vida nas


favelas brasileiras sob o ponto de vista feminino. No longa metragem, três
adolescentes em situação de vulnerabilidade social se veem obrigadas a buscar a
sobrevivência na exploração sexual, sem amparo da família ou apoio da rede de
garantia de direitos. As personagens passam por situações de violência e
humilhação, tendo seus sonhos esmorecidos. Em discussão sobre a temática do
filme, foram feitas considerações acerca dos temas que surgem cotidianamente no
setor técnico.
Foi questionada, desse modo, a efetividade da rede de proteção, a qual
as adolescentes do filme deveriam ter acesso, como o posicionamento excludente
do Conselho Tutelar quando uma personagem necessitava de apoio para adquirir o
direito de visita ao seu filho, porém devido aos trajes “inapropriados”, o Conselho se
recusou a atendê-la, atuando assim de forma discriminatória. Foi citado que este tipo
de situação excludente, com base no vestuário, trata-se de exagero, porém na vida
real é comumente observada persecutoriedade das classes estigmatizadas, como
negros, pobres, prostitutas e dependentes químicos, ou seja, quem mais precisa do
apoio e acolhimento da rede.
Diante da falta de apoio da rede, além da frágil estrutura familiar em que
se encontram, as personagens centrais recebem apoio e acolhimento de pessoas da
mesma condição, sem, contudo, conseguirem a resolução efetiva para seus
problemas, permanecendo à margem da sociedade.
Outra fragilidade observada foi a rede de educação de baixa qualidade,
devido às faltas dos profissionais da educação. As personagens passavam o tempo

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ocioso nas ruas, sem o engajamento escolar e consequente baixa perspectiva de


qualificação para um futuro profissional.
Aliada às vulnerabilidades expostas, a situação das personagens agrava-
se com a restrição de acesso à cultura, limitando-se a frequentarem espaços
destinados à comunidade local, (no caso do filme, favelas), sem terem a
oportunidade de vislumbrarem novas possibilidades e novas perspectivas,
incorrendo em um ciclo de repetições que perpetuam a situação de vulnerabilidade
social. Foi exposto que, mesmo se esta população tiver acesso a espaços culturais
gratuitos, muitas vezes não se sentirão pertencentes, sendo vítimas de olhares
excludentes, permanecendo assim restritas aos espaços socialmente destinados a
ela.
Diante do exposto, da falta de apoio e estrutura familiar, de uma atuação
ineficaz da rede de garantias e do restrito acesso às oportunidades de cultura e
qualificação, dá-se o sentimento de impotência das personagens, que apesar de
serem fictícias, muito se aproximam da realidade vivida nas Varas da Infância e
Juventude e Família.

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4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Temos uma realidade diversa no país: são mais de duas centenas de


milhões de brasileiros distribuídos por mais de 8,5 milhões de quilômetros
quadrados; desses, 26,5% eram pobres e 7,4% extremamente pobres em 2017,
segundo o IBGE. As contrarreformas neoliberais impostas ao conjunto da população
brasileira nos últimos anos adensaram a miséria e aprofundaram o hiato entre ricos
e pobres.
Dentro dos limites nacionais, temos vários regionalismos e expressões
culturais; espaços urbanos extremamente populosos e grandes extensões de baixa
densidade populacional; há diversas raças e etnias, vivendo em suas próprias
comunidades ou miscigenadas; regiões de fronteira, de turismo, grandes metrópoles
– modernas e arrojadas – e cidadelas que são a maioria esmagadora dos municípios
do país; temos ribeirinhos, quilombolas, índios, caiçaras, comunidades tradicionais,
assentados de reforma agrária etc.
Toda essa diversidade se soma às inúmeras particularidades dentro das
próprias cidades, bairros, comunidades. São famílias de múltiplos arranjos, vivendo
em territórios diversos e dotados de contradição.
A arquitetura política tradicional vem se desgastando frente às investidas
do capital financeiro; a democracia torna-se um espectro de uma sociedade política
antiquada, ultrapassada; e os direitos humanos são suprimidos pelas patentes e a
legitimação da exploração financeira de novas divisas de capitais. Capitais sem
fronteiras, tão voláteis quanto a falsa sensação de pós-modernidade e, ao engodo
das teorias econômicas neoliberais e austríacas, as quais pregam um estado falido e
incapaz de dar conta das demandas da sociedade. Eis que (res)surge o poder do
mercado. Mercado agora transnacional, em detrimento do Estado-Nação.
É sabido que a cada dia, os processos de trabalho da/o assistente social,
e do psicólogo, são permeados pelas inúmeras transformações societárias, em
escala global e local. O fato de se estar inserido na divisão social e técnica do
trabalho, enquanto trabalho assalariado, já indica, por si só, o quanto as duas
profissões vêm sofrendo com as constantes mudanças no mundo do trabalho.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A inserção no funcionalismo público, embora uma dimensão não


produtiva, não elimina o caráter de assalariamento que define ambas as profissões
na sociedade de classes.
A posição histórica e socialmente determinada dessas duas categorias
profissionais, no âmbito do Estado, confere-lhe um legado de atuação na reprodução
social, pois se trata de uma inserção, a priori, a serviço do capital e da burocracia
estatal que lhe dá legitimidade.
Não obstante, as mudanças no cenário político no pós-constituição cidadã
engendraram alterações substanciais no cerne das duas categorias: a criação de
espaços privilegiados de debate e deliberação, a densidade teórica, a conquista de
direitos e a proliferação dos concursos públicos, tornaram-nas profissões com
autonomia e presença política no cenário nacional.
Portanto, os desafios que se colocam cotidianamente ao Serviço Social e
à Psicologia na esfera sociojurídicas não são apenas institucionais; exigem um
aprofundamento do conhecimento teórico e empírico, bem como uma atuação
coletiva onde não haja justaposição de saberes, mas sim complementariedade.
A discussão em torno do tema, abordado pelo Grupo de Estudos em
2019, proporcionou reflexões do quanto os limites institucionais podem interferir na
qualidade do trabalho, impactando na possibilidade de uma avaliação técnica mais
aprofundada de casos tão complexos que nos chegam pela Vara da Infância e
Juventude, com vistas a resgatar o histórico da família atendida, contextualizar as
fragilidades e discriminar potencialidades. Não obstante aos limites detectados,
ressaltou-se ser fundamental não perder o olhar crítico sobre o fazer profissional,
mesmo quando a prática não coincide com o ideal.
O grupo compartilhou o sentimento de impotência despertado em tais
situações, quando, muitas vezes, outros atores envolvidos no caso, mais influentes e
com poder de decisão sobre o destino destas crianças, compactuam com o olhar
estigmatizado, violando o direito das crianças e de suas famílias.
Nesse sentido, foram feitas considerações sobre a importância de que a
equipe técnica do judiciário não deixe de pontuar as violações que a família sofre no
acesso aos seus direitos, colocando essas famílias como sujeitos da própria história
para que também possam ser incluídas na elaboração de propostas em favor delas,
com o objetivo de fortalecê-las na busca e garantia de seus direitos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Por fim, ressaltou-se a importância de repensar as práticas profissionais,


vislumbrando-se novos paradigmas, com vistas à realização de um trabalho
articulado, em rede, na perspectiva de proteção à infância, à adolescência e às suas
famílias.
Seja nos aparatos do estado que agem no âmbito da Justiça, seja nas
instituições da sociedade civil que os auxiliam, temos a figura do psicólogo e da/o
assistente social atuando na dimensão sociojurídicas.
O fazer profissional dessas duas categorias distintas, porém imbricadas
na esfera sociocupacional, faz a mediação entre Justiça e Sociedade e dá
materialidade ao sistema de garantia de direitos.
Mais do que nunca, a aproximação com outras categorias profissionais e
o trabalho inter e transdisciplinar são necessários.

670
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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674
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AS TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA, O LITÍGIO E A


JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS: PERSPECTIVAS DA
ATUAÇÃO DO SETOR TÉCNICO JUDICIÁRIO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – TAUBATÉ


“DEMANDAS E ATUAÇÃO NA VARA DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2019

675
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Paula Ione da Costa Quinterno – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Bento do
Sapucaí
Viviane Souza da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taubaté

AUTORAS
Ana Carmen de Andrade – Psicóloga Judiciário – Comarca de Piquete
Ana Cristina Xavier dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Guaratinguetá
Ana Rosa de Toledo Andrade Moradei – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Taubaté
Eleandra Cristina Ferreira Teixeira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ilhabela
Evelise Cristiane Rosa Faria – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Caraguatatuba
Helena Cristina de Souza Figuti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taubaté
Ivete Campêlo Andraus – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taubaté
Jaqueline Fernanda Verônica de Jesus – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Taubaté
Karina Marinho dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Luiz do
Paraitinga
Katia Maria de Magalhaes Castro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ilhabela
Mariana de Oliveira Farias – Psicóloga Judiciário – Comarca de Caçapava
Mirian Beccheri Cortez – Psicóloga Judiciário – Comarca de Caraguatatuba
Pamela Anelise Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Bento do
Sapucaí
Patrícia Nogueira da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cruzeiro
Paula Ione da Costa Quinterno Fiochi – Psicóloga Judiciário – Comarca de São
Bento do Sapucaí
Paula Melissa Cunha Tosta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jacareí
Sara Isabel Rodrigues de Almeida – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bananal
Scheila Santos de Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
dos Campos

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Sonia Maria Barbosa dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Cruzeiro
Tania Mara Vasconcelos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Queluz
Thelma Heleno Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campos do
Jordão
Viviane Souza da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taubaté

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente texto constitui a primeira produção do Grupo de Estudos (GE)


“Demandas e Atuação na Vara de Família”, cuja implantação foi fruto da
mobilização de assistentes sociais e psicólogas/os da 9ª Região Administrativa
Judiciária (RAJ) do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
A necessidade da criação do grupo nesta RAJ foi apontada durante o
processo de supervisão técnica para assistentes sociais em 2018, promovida em
São José dos Campos pelo Núcleo de Apoio de Serviço Social e Psicologia e
ministrada pela professora e assistente social Abigail Torres.
Para a implantação do GE, foi lançada uma enquete para levantamento
de interesses sobre a participação das/os profissionais na 9ª RAJ, que contou com
29 respostas. Destas, 48,3% das/os profissionais indicaram que não participam e
nunca participaram de GE e 100% afirmaram que, se implantado na 9ª RAJ, teriam
interesse em participar.
Na enquete, também foi solicitada a sugestão de tema para o GE e a
temática mais votada foi “Demandas e atuação na Vara de Família” (36% dos votos),
a qual foi encaminhada para o percurso de trâmite formal de solicitação à Escola
Judicial dos Servidores (EJUS), com a mediação do juiz diretor do Fórum da
Comarca de Taubaté, o Dr. João Carlos Germano, comarca esta escolhida para
sediar os encontros, por facilitar o acesso das profissionais oriundas das cidades
mais longínquas da região. Os encontros foram realizados mensalmente em uma
sala gentilmente cedida pela Universidade de Taubaté (UNITAU), contando com a
participação de 22 profissionais, psicólogas e assistentes sociais.
O objetivo do grupo foi discutir os temas selecionados, promovendo
reflexões quanto ao posicionamento ético e técnico, em uma perspectiva crítica. O
caminho percorrido pelo GE foi o de revisitar os textos produzidos em outros grupos
de estudos que discutiam assuntos semelhantes e o estudo de bibliografia específica
sobre cada temática, indicadas pelas próprias participantes.
No início dos encontros do GE, as participantes realizaram levantamento
de assuntos relevantes, abordando as transformações na família, gênero,
conjugalidades e parentalidades, a judicialização dos conflitos familiares, os casos

678
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

altamente litigiosos, os limites e as possibilidades da atuação das profissionais de


Psicologia e Serviço Social na Vara de Família.

1 - AS TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA: EXPECTATIVAS DE


GÊNERO, CONJUGALIDADES E PARENTALIDADES

As reflexões e debates realizados partiram da concepção da construção


social do gênero, da família e da parentalidade, portanto, considerando os elementos
históricos e sociais, dialogando e problematizando aspectos como:
a) os impactos da naturalização da maternidade, tanto no senso comum
como em atuações profissionais, associando a “dom, chamado e dever”, e da
paternidade como “suporte possível” ou obrigação financeira, concepções estas
construídas a partir de expectativas de gênero tradicionais do feminino e do
masculino na sociedade. Constata-se a concepção equivocada do espaço familiar
como um ambiente, necessariamente, de segurança e da idealização do cuidado
materno, dificultando diferenciar negligência e/ou descuido do exercício possível e
suficiente de cuidado, muitas vezes desconsiderando o papel do Estado/ políticas
públicas;
b) implicações da cultura machista na produção e reprodução das
concepções sobre mães e pais, destacando-se a relevância da atenção à utilização
dos conceitos de maternidade e feminilidade para que não perpetuem concepções
idealizadas e, em alguns casos, opressoras da mulher;
c) relevância da inserção de especificidades culturais, historicidade e
subjetividade individual, bem como, consideração a respeito do contexto social,
político e econômico das famílias e dos pais e mães ao pensar e avaliar exercícios
de parentalidade (maternagem e paternagem) visando atuação contextualizada e de
qualidade, tendo como princípio o bem-estar da criança;
d) relevância das visitas realizadas pelas profissionais do Serviço Social e
da Psicologia como meio de acesso à realidade como se apresenta à criança e sua
família e não como julgamento das condições idealizadas de família.
Com base nesses pressupostos, discutiu-se o tema das mulheres no
contexto sociojurídico a partir do vídeo da palestra “A Condição das Mulheres e o

679
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Sociojurídico”, apresentado em plenário pela Professora Fabiane Simioni79 no


Seminário Nacional “O Trabalho do/a Assistente Social no Sociojurídico”, que foi
realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 04 e 05 de abril de 2019.
Em relação à demanda no judiciário, percebe-se que a mulher, em sua
maioria pertencente à classe social com menor assistência em todos os âmbitos,
vem se mostrando a principal demandatária nos processos que tramitam nas Varas
de Família, na tentativa da legitimação de seus direitos e do direito de seus filhos.
Sobre ela recaem os julgamentos morais por abandono do lar, adultério, filhos de
diferentes parceiros, diferentemente do homem, que costuma ser
advertido/penalizado em virtude de questões econômicas, refletindo na demanda
judiciária a construção social tradicional das relações de gênero, já apresentadas,
impactando também nas expectativas sobre a conjugalidade e a parentalidade.
No contexto judiciário é possível observar como as mulheres são
submetidas a opressões nos processos, considerando como se dão as relações
neste universo jurídico e os objetivos deste. Por exemplo, nos casos da Vara de
Família e Violência Doméstica, as mulheres podem se ver vulneráveis diante da
desigualdade de poder, tratamento diferenciado em função das condições de gênero
e condições socioeconômicas inferiores. Nos processos de família, há um olhar
diferenciado para o homem e a mulher, esta pode sofrer discriminação por sua
condição, levada a julgamentos por questões culturais e senso comum.
Outro aspecto são as relações de poder na reprodução da violência
contra a mulher, em algumas situações podendo beneficiar o homem diante de
questionamentos sobre a posição social da mulher, por exemplo. Em relação à
Justiça e aos agentes do Direito faz-se importante compreender homens e mulheres
como sujeitos nas mesmas condições e iguais em seus direitos, não reproduzindo
assim preconceitos de gênero.
A construção social patriarcal sobre o feminino e o masculino também
parecem influenciar a teoria da alienação parental. Observa-se no cotidiano de
trabalho que, quanto às penalidades com a modificação da guarda da criança
supostamente alienada, o receio de não se obter provas de situações abusivas por
parte do genitor vem calando as mulheres, amedrontando-as com a possibilidade da
separação de seus filhos. Além disso, constata-se um silenciamento das crianças
79
Professora e pesquisadora no curso de graduação em Ciências Jurídicas e Sociais e de
mestrado na FURG (Universidade Federal de Rio Grande).
680
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

nos processos cujo assunto é a alienação parental, tendo em vista a dificuldade


imposta a elas quanto ao peso de seu discurso no consequente distanciamento de
um dos genitores.
Nota-se que a complexidade do tema gênero e parentalidade, ainda
suscita debates e contradições, inclusive em nosso meio. Como podemos constatar
em um trecho de um dos artigos do Caderno dos Grupos de Estudo do Serviço
Social e Psicologia de 2018,

as funções exercidas pelo cuidador principal podem ser exercidas


por qualquer adulto capaz e responsável. Se a genitora não tiver
algum impedimento ela é naturalmente a pessoa indicada para fazê-
lo, inclusive porque, do ponto de vista biológico, está preparada para
esse exercício, situação que pode se modificar paulatinamente, de
modo a permitir que outro adulto presente – o pai – protetor desta
dupla, compartilhe os cuidados (CADERNO, 2018, p. 388).

Esse trecho gerou discussão, por seu teor ambíguo, provocando dúvidas
se seria um posicionamento dos autores ou uma constatação de certa concepção
frequente na sociedade. O trecho não menciona um autor específico. Nesse sentido,
questionamos: existe naturalidade em ser mãe e pai? A mulher está preparada
biologicamente? O pai é o protetor da dupla? Concepções que atravessam por
vezes a Justiça, como observamos em relatórios técnicos, petições e despachos
judiciais.
No mesmo sentido, questionamos quando se afirma que: “Ponderamos
que são a prática e a disponibilidade que criam habilidades parentais, e por mais que
sejam funções determinadas, são passíveis de reconstrução, os modelos podem ser
ressignificados” (CADERNO, 2018, p. 392). Observamos que a afirmação pode
refletir uma concepção naturalizante: as habilidades parentais são determinadas?
Não seriam construídas cultural e socialmente?
De acordo com Zornig (2010), a construção do tornar-se pai ou mãe
inicia-se na infância de cada um dos pais, com suas experiências como filhos/as. Do
ponto de vista psicanalítico, o termo parentalidade é recente, datada da década de
60 e marca o processo de construção do exercício da relação dos pais com os filhos.

681
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Historicamente, Zornig (2010) aponta que as relações de aliança nas


sociedades tradicionais eram estabelecidas em função do patrimônio familiar e, a
partir do século XVIII, sob a influência do iluminismo e do romantismo, o amor entre
casais passa a ser valorizado, assim como a relação pais e filhos. O foco passa a
ser a educação das crianças e a família.
Uma outra influência histórica importante imposta pela modernidade foi a
distinção entre o público e o privado e entre conjugalidade e parentalidade. A
vivência conjugal passa a ser vivida no espaço privado. Com a chegada dos filhos, o
espaço público invade o espaço privado da conjugalidade, organizando as relações
de parentesco e definindo as responsabilidades dos pais e do Estado com relação
às crianças.
Roudinesco (apud ZORNIG, 2010, p. 455) identifica três períodos na
evolução da família:
- família tradicional: submetida à autoridade patriarcal e a transmissão do
patrimônio;
- família moderna: amor romântico, filhos como responsabilidade do
Estado e dos pais;
- família pós-moderna: a partir de 1960, relação entre dois indivíduos que
buscam relação íntima ou relação sexual.
Julien e Roudinesco (apud ZORNIG, 2010, p. 455) apontam que tanto a
consanguinidade como a aliança não foram suficientes para assegurar o exercício
da parentalidade. A modernidade produz uma ruptura entre conjugalidade e
parentalidade. As identificações estabelecidas na infância influenciam e determinam
a forma como cada um de nós poderá exercitar a parentalidade. Portanto, para a
autora, tornar-se pai e tornar-se mãe passa a depender muito mais da história
individual de cada um dos pais e de uma lógica do desejo do que de um modelo de
família nuclear tradicional, como no passado.
Em sua tese de doutorado, intitulada “Família, Parentalidade e Época: um
‘nós’ que não existe”, Teperman (2012) aponta a existência de uma “trans-
historicidade do laço familiar” (p. 75), nas palavras da autora:

Atribuir uma trans-historicidade ao laço familiar é outro modo de


afirmar que há algo de irredutível na família, algo que independe do
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momento histórico em que vive o sujeito, que transcende o que é


relativo a uma época, o que, neste trabalho, venho formulando em
termos da família como resíduo (TEPERMAN, 2012, p. 75).

Argumenta que a parentalidade, em determinado momento, passa a se


inscrever no âmbito público, ocorrendo uma disjunção entre conjugalidade e
parentalidade, devido à crescente intervenção do Estado na educação das crianças
e aos avanços do discurso da ciência no âmbito familiar. O Estado passa a intervir
na questão da família e da educação das crianças. Julien (apud TEPERMAN, 2012,
p. 84) aponta ainda três fatores de influência nos laços sociais e na
conjugalidade/parentalidade: a democracia, a laicidade e a ciência.
O estatuto jurídico entre pais e mães passa a ser idêntico, os papeis
familiares tornam-se intercambiáveis. Há uma superioridade dos deveres dos pais
com relação aos seus poderes, diminuindo-os diante dos direitos subjetivos da
criança, daí a introdução do critério o melhor interesse da criança.
Com relação à trans-historicidade, a autora problematiza a oposição que
Lacan - autor que ela utiliza como referência teórica para sua argumentação - faz
entre história e História, onde a primeira faria referência ao sujeito e à singularidade,
sendo a segunda pertinente ao indivíduo, ao universal e homogêneo. Há a História,
com seus universais e há a história que se particulariza em cada um. Nesse sentido,
ela aponta a importância de se escutar o sujeito em sua época.
Askofaré (apud Terpeman, 2012, p. 96) aponta com maior relevância as
coordenadas históricas e culturais na constituição do sujeito, definindo que o
inconsciente deste sujeito é o discurso do Outro, não reduzindo esse Outro aos pais,
mas pontuando a função materna e paterna na transmissão do discurso dominante à
época. Ou seja, a constituição do sujeito está atrelada à linguagem, a qual traz as
marcas do contexto histórico e incide sobre este sujeito através do discurso do
Outro, responsável pelos aspectos inconscientes e sob as influências diretas da
História. Daí a afirmação “a história do sujeito não é sem o discurso do outro.”
(TEPERMAN, 2012, p.98).
O termo parentalidade dá conta das transformações na família ao nomear
e regular o lugar daqueles que assumem as funções parentais, para além das
figuras biológicas de pai e de mãe. Entretanto, a autora adverte, que devemos ter

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cuidado ao estender o termo a outros campos, porque ele não é dissociável dos
discursos que lhe são subjacentes. “Se, por um lado, a parentalidade é convocada
para legitimar novos laços familiares, por outro, ao oferecer-se PARA TODOS os
pais, produz um efeito de homogeneização, normalização e diluição das diferenças
no campo da família” (TERPEMAN, 2012, p. 120). Assim, conclui “A parentalidade
“para todos” não sem a família de cada um” (p. 180).
Como podemos perceber, a noção de família passa por intensas
transformações ao longo do tempo. Transformações essas que implicam em efeitos
diretos na conjugalidade e na parentalidade. Entendemos que compreender tais
efeitos é fundamental para o trabalho que realizamos enquanto setor técnico. Trata-
se de considerar a especificidade e subjetividade de cada sujeito, de cada caso, sem
prescindir das noções históricas e culturais que também o constitui.

2 - O LITÍGIO E A JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES

Considerando as especificidades nas Varas de Família, onde geralmente


não há acompanhamento efetivo da rede socioassistencial, de acordo com Caderno
de Estudos 13 - Limeira (2016, p.447-494), a intervenção do Setor Técnico se dá
com foco na escuta e observação do contexto familiar. Partindo desse pressuposto,
o grupo refletiu sobre a importância do papel da criança/adolescente na avaliação e
elaboração dos estudos psicológico e social para o aprofundamento e conhecimento
da dinâmica familiar, em especial nos casos de litígio.
Os casos altamente litigiosos chegam, cada vez mais frequentemente, ao
Setor Técnico e, para fundamentar nossa atuação, buscamos respaldo na literatura
especializada que discute as características e as perspectivas de tais ações
judiciais. Uma das referências a respeito desses casos é o autor Glenn Gilmour
(apud CADERNO 13, 2016), que destaca os elementos essenciais presentes no
litígio, tais como: a persistência do conflito após a separação, a longevidade das
disputas, a cronicidade das questões bélicas, os impasses na comunicação entre os
ex-cônjuges, os prejuízos à subjetividade dos filhos e a ineficácia das intervenções
mediativas. Outra característica apontada é a dificuldade dos pais em distinguir suas
próprias necessidades das dos seus filhos, o que faz com que não consigam
protegê-los dos seus próprios problemas emocionais e da raiva ou das suas disputas

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contínuas, aumentando o risco de que essas crianças repitam o ciclo das relações
conflituosas.
Desse modo, os autores do texto “Perfil das famílias em litígio”, no
Caderno 14 - Ribeirão Preto (2017), entendem que seriam imprescindíveis na
dinâmica dos casais para a saúde psicológica dos filhos: confirmação da
competência parental do outro cônjuge e reconhecimento de sua autoridade e de
sua contribuição nas decisões em relação aos filhos. Sabemos que a separação é
uma crise no ciclo de vida familiar, não previsível, portanto, uma das experiências
mais complexas pelas quais um indivíduo pode passar, exigindo do casal um
redimensionamento de papeis, funções e identidades, aspectos difíceis de serem
elaborados.
Durante o litígio, a criança acaba sendo envolvida no conflito dos pais e
em alguns casos, colocada como prêmio da disputa. Os genitores, não conseguem
ou têm dificuldade em protegê-la e fortalecê-la frente aos conflitos e um trabalho
conjunto com o casal parental pode ser o caminho para dirimir essas consequências
negativas, elucidando aos pais sobre a importância do diálogo e respeito às
condições cognitivas e emocionais dos filhos.
Ademais, ressaltamos a importância de uma escuta eficiente das crianças
e adolescentes durante os processos de divórcio, guarda e regulamentação de
visitas. Fundamentados no texto “A escuta de crianças nas separações litigiosas”
(CADERNO 13, 2016), a escuta profissional é objeto de estudo e instrumento em
diferentes áreas. Ela pode ser construída por um processo transparente por meio de
uma rede de conversação em que abrimos questões e aspirações, interagimos com
o todo e buscamos compreender a pluralidade de ideias. Consideramos importante
que nossa atuação se dê a partir da escuta da criança, colocando-a na condição de
sujeito e intervindo de modo a problematizar com os genitores sua atitude de
desproteção toda vez que priorizam as questões conjugais às parentais.
Essa escuta do Setor Técnico – apesar de se verificar a escassez de
referenciais bibliográficos na área de Serviço Social no que tange à escuta de
crianças, segundo Caderno de Estudos 13 (2016), precisa ser qualificada e incluir a
compreensão das relações tecidas entre os membros do antigo núcleo familiar,
desde a leitura dos autos, passando pelas pessoas significativas para a criança e

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pelo ‘não dito’, ponto crucial para o entendimento dos papeis exercidos por todos os
membros.
Ainda sobre os casos altamente litigiosos, cabe ressaltar, conforme o
Caderno do Grupo de Estudos da Capital (2016) que, além dos fatores externos, é
necessário compreender os fatores internos, as características dos vínculos, bem
como a natureza dos conflitos que alimentam as discórdias e dificultam os acordos
entre os genitores.
No judiciário, busca-se fazer prevalecer a lei e sedimentar os direitos e os
deveres dos pais em relação aos filhos. Diante da ruptura do vínculo conjugal,
alguns genitores debatem-se contra o direito do outro e envolvem a prole em
situações conflituosas, com potencial de danos ao desenvolvimento dos filhos. Os
autores mencionam que, geralmente, um dos primeiros motivos de discórdia se
refere à pensão alimentícia que traz a problemática do sucesso ou do fracasso da
vida profissional/financeira de cada genitor, as questões relativas à diferença de
gênero, as dificuldades no mercado de trabalho e a dificuldade de reconhecer seus
próprios limites. A isso se somam os problemas com figuras de autoridade e o
pedido de guarda unilateral como forma de se esquivar da obrigação de dar algo ao
outro.
Segundo a psicanalista Groeninga (apud CADERNO 13, 2016), a
discórdia financeira desdobra-se facilmente em problemas relacionados à guarda e
às visitas, na mudança do papel social da mulher. Explica que em uma sociedade
machista, a mulher, ao sair de casa para trabalhar, depara-se com o pedido paterno
de guarda calcado na alegação de falta de tempo materno. Ademais, aponta a
dificuldade de as mulheres aceitarem que os pais estão em mesmo patamar de
direitos, que possuem o desejo de conviver com os filhos e que possuem
importância na subjetividade da criança/adolescente.
Com relação à guarda compartilhada, o texto trouxe a problematização
quanto à sua viabilidade nos casos altamente litigiosos, destacando que a guarda
compartilhada não soluciona nem ameniza os conflitos, mas fixa a responsabilidade
de ambos os genitores pelo bem-estar e educação dos filhos. Diante disso, as
discussões no grupo de estudos corroboraram a tese da importância da análise
concreta dos casos pelas equipes multidisciplinares do judiciário.

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Sobre os pedidos de guarda unilateral, pautados nos prejuízos


comportamentais observados nos filhos, os autores apontam para a necessidade de
entender que tais reações configuram, muitas vezes, expressões fisiológicas e
psicossomáticas da necessidade de contato e ampliação da convivência. Nesse
sentido, sugerem que se reflita sobre os impactos para a criança do espaçamento
entre as visitas, o que geraria insegurança e a fantasia de que o outro genitor é
alguém desvalorizado e falho.
Considerando o exposto, destaca-se que qualquer interferência judicial na
dinâmica familiar possui desdobramentos significativos e, portanto, nós técnicos
judiciários devemos aprofundar nossos conhecimentos e refletir constantemente
sobre nossa atuação profissional, no que diz respeito às dificuldades relativas à
guarda e às visitas, para as denúncias de abuso sexual e maus-tratos e para a
necessidade de visitas assistidas.
Os autores apontaram os prejuízos para os filhos diante do grande litígio
entre os pais, primeiramente separando-os afetivamente destes que se sentem
relegados e registram vivências de abandono e de rejeição. Nesse sentido,
entendem que o divórcio é um momento extremamente difícil para as crianças
porque ocasiona mudanças na rotina de vida, diminui a renda familiar e os contatos
com os genitores, cujo impacto varia de acordo com a faixa de desenvolvimento
psicossocial. Contudo, ressaltam que o divórcio, por si só, não traz consequências
ruins, pois os prejuízos seriam decorrentes de um conjunto de fatores que incluem
as discórdias, a gravidade dos conflitos, as vulnerabilidades pessoais e o nível de
violência vivenciado no âmbito familiar.
Os casos altamente litigiosos também ocasionam conflitos de lealdade
nos filhos que, disputados abertamente por ambos os pais, sentem tristeza,
infelicidade, medo de perder os pais e da solidão, sendo expostos ao maior risco de
alienação parental. O texto se apoia em diferentes autores que discorrem sobre os
prejuízos da alienação parental, a qual ocasiona o afastamento e a suspensão da
convivência entre a criança e um dos genitores, e ressalta a importância da
competência técnica dos peritos judiciais para identificarem os quadros patológicos e
as situações conflitivas, bem como revelarem nos laudos apenas o necessário para
a compreensão do caso a fim de evitar o acirramento da disputa. As alternativas
propostas pelos autores para o enfrentamento dos conflitos ressaltam medidas de

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prevenção, a mediação familiar, as oficinas de pais e filhos, os CEJUSC e as


experiências de outros países.
Dentre as demandas que surgem por conta dos litígios intermináveis entre
o casal parental, discutiu-se amplamente acerca da alienação parental, utilizada
pelos advogados de forma belicosa, muitas vezes, respaldados em Lei própria, nº
12.318/10.
Exemplificando as possíveis consequências para as crianças e
adolescentes envolvidos, assistiu-se o documentário: “A morte inventada”, que
aborda o rompimento de vínculos entre pais e filhos, vítimas de alienação parental.
O documentário apresenta a alienação parental como a busca de um genitor em
alterar a percepção da criança sobre o outro genitor; é “matar o outro em vida”.
Nesses casos, a criança sente necessidade de ser cúmplice do genitor alienador,
além de não se sentir no direito ter bons momentos com o genitor alienado. Tal
situação pode levar o filho a se recusar em estar junto do genitor alienado, que, em
decorrência da rejeição, acaba desistindo da convivência e rompendo o vínculo.
Com isso, percebe-se que o genitor alienador, na busca de romper o
vínculo com o outro enquanto casal, faz com que os filhos também rompam. Na
atuação nas Varas de Família, os profissionais encontram famílias que buscam
apoio da Justiça para preservar ou resgatar esse vínculo sendo importante refletir
com o genitor alienado a não desistir.
O documentário apresenta ainda que as ações de regulamentação de
visitas nos casos de alienação parental, viram um gerenciamento da convivência do
filho com o outro genitor. Caso o genitor alienado inicie um novo relacionamento, é
sinal de que o divórcio veio para ficar e isso é difícil para aquele que ainda tinha
expectativa de volta e também para as crianças. Com insegurança do outro genitor
vir a pleitear a guarda, o alienador pode fazer acusações caluniosas e, nos
momentos em que ele procura fazer visitas ao filho, sempre tem óbices, como, por
exemplo, dizendo que o filho está doente, ocupado. Aponta para o fato de ter
aumentado as falsas acusações de abuso sexual para afastar o genitor alienado,
pois sabe-se que, a mera acusação, leva ao afastamento imediato.
Na prática profissional no Setor Técnico judiciário, casos de denúncia de
violência contra um dos genitores e o pedido de afastamento do outro, exige que o
profissional avalie todos os riscos, considerando a possibilidade de se identificar

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uma alienação parental. Assim, a sugestão de visitas assistidas pode se mostrar


como uma alternativa que preserva o vínculo até que se finde o processo. Porém,
caso o genitor acusado de violência seja condenado, o filho/ filha pode ver a
destituição do poder familiar como uma “libertação”.
Ainda sobre o tema, verificamos que a dificuldade do par parental pensar
sobre o divórcio – separando as questões parentais das conjugais – agrega maior
desgaste emocional aos envolvidos, especialmente aos filhos, com poder de decisão
diminuído durante o processo judicial.
No cotidiano forense, Shine e Souza (2010) apontam que os casais em
litígio se mostram incapazes de enfrentar conflitos e de suportar as tensões
inerentes às relações familiares, utilizando-se, muitas vezes, de uma conduta
pautada em estruturas esquizo-paranóides – frente a uma angústia, emerge o medo
de perseguição ou de ataque e o indivíduo se defende de modo a separar-se do
objeto. Como o pensamento não é a maneira predominante de aproximação e de
enfrentamento dos desafios nessas circunstâncias, os casais parentais optam por
demandar à Justiça a colocação de limites legais à sua dinâmica de funcionamento
adoecida.
A Justiça pode atuar por meio de intervenções de caráter coercitivo e/ou
punitivo na tentativa de solucionar de modo legal um conflito que é do âmbito
interpessoal. Nesse cenário, a discussão do grupo apontou que ao Setor Técnico
vêm sendo determinado ocupar o lugar de uma espécie de “detector de mentiras”,
nos termos dos autores do texto, fornecendo as “provas”, as “verdades” sobre as
quais se fundamentarão a sentença judicial.
Sendo assim, no momento das entrevistas, as partes estabelecem uma
relação persecutória com o perito, preocupando-se com o controle das informações
que passarão para evitar qualquer prejuízo pessoal. Nesse modo esquizo-paranóide
de viver a experiência do litígio, os pais costumam, até, admitir os conflitos, mas
cada um deles tem a certeza de que tal situação se deve exclusivamente ao outro
genitor, que a culpa é somente do outro, sem se dar conta das incongruências de
seu discurso com suas atitudes.
Considerando a situação pericial, Shine e Souza (2010) abordam como
estratégia fundamental de atuação partir da dinâmica conflitiva do casal para pensar
as consequências psíquicas e sociais para a criança, como é feito durante o

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atendimento clínico. Como o processo litigioso funciona dentro de uma lógica


adversarial que estimula uma posição defensiva fundamentada no ataque e no
receio de uma retaliação, faz-se necessário cuidar dos aspectos inconscientes de
toda a família, metabolizando a comunicação de todos e devolvendo tal conteúdo de
maneira que retomem sua imprescindível capacidade de continência.
Desse modo, o trabalho do Setor Técnico no sistema judiciário poderá
permitir comunicar aos membros da família o efeito que exercem uns sobre os
outros, aumentando-lhes a capacidade de pensar sobre si mesmos. Como elemento
intermediário entre a família e o juiz, o profissional da psicologia poderá exercer sua
capacidade de traduzir em palavras aquilo que vaza de forma abrupta pelas
múltiplas projeções identificativas em jogo nos casos de litígio.
Apoiado no texto supracitado, o grupo problematizou a proposta da
guarda compartilhada que, preservando a convivência ampliada da criança com
suas famílias materna e paterna, poderá favorecer que a dinâmica familiar seja
pensada fora da lógica adversarial, tão utilizada no discurso do Direito, e que cada
um dos genitores possa reconhecer questões particulares que interfiram na
condução da formação integral de seus filhos.
As profissionais refletiram, ainda, sobre o funcionamento da sociedade
nos dias atuais, quando o limite entre questões privadas e públicas é tão tênue a
ponto de permitir que um terceiro possa interferir/decidir sobre as vidas de um
núcleo familiar, judicializando todos os tipos de relações e de afetos.
Em articulação com as propostas de Shine e Souza (2010), o grupo
levantou a hipótese de que a rede de atendimento pudesse oferecer projetos
preventivos nas diversas políticas públicas, discutindo questões referentes à
sexualidade/afetividade/sociabilidade, na tentativa de fortalecimento das famílias
para o enfrentamento das diferenças. Consideramos que tal intervenção poderia
minimizar a judicialização das relações familiares, cujos processos provocam
profundo desgaste dos sujeitos e dificultam o pensar sobre os conflitos para além
das decisões judiciais.

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3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de diversos aspectos das famílias envolvidas e do próprio sistema


judiciário, discutimos o contexto geral de atuação da/o profissional técnica/o do
Judiciário, buscando identificar obstáculos e caminhos a serem seguidos pelas/os
profissionais para aprimoramento e maior efetividade de suas intervenções. Quanto
às famílias, elencamos questões referentes à complexidade dos casos litigiosos, que
incluem dificuldades de identificação, delimitação, descrição e análise das queixas
que chegam via Vara da Família e a presença de denúncias de alienação parental
e/ou abuso sexual por uma das partes. No que diz respeito ao sistema judiciário,
foram identificados e problematizados aspectos como o impacto da atuação da
Psicologia e do Serviço Social na judicialização e manutenção das famílias nesse
sistema, as demandas sobre a/o técnica/o que beiram ou mesmo violam orientações
dos conselhos reguladores das profissões e mesmo recomendações da própria
Corregedoria, a utilização equivocada de conceitos da área psicológica e social que
tornam alguns casos mais litigiosos do que seriam, a princípio.
A prática do/a profissional judiciário foi compreendida, então,
considerando que as demandas das famílias chegam muitas vezes permeadas por
afetos e historicidades únicos, atravessados por discursos legalistas que se
apropriam tanto de aspectos legais como de conceitos superficialmente apreendidos
da Psicologia e do Serviço Social, gerando, muitas vezes, maior litígio entre as
partes. Exemplo disso seriam as alegações de alienação parental, já presentes no
discurso de uma das partes ou inseridas por profissionais do Direito, sem respaldo
científico ou análise realista e imparcial dos contextos de conflito. Tal contexto
tenderia a incitar o litígio entre as partes, aumentando frustrações e inseguranças,
bem como atitudes ofensivas ou defensivas, tornando a atuação do Setor Técnico
ainda mais complexa.
Diante dessas incitações, tem-se percebido que alegações contra as
partes envolvidas, em geral entre os genitores, acabam se tornando foco principal
das falas ao longo dos atendimentos, ao passo que os interesses do filho e as
potencialidades de cada genitor visando o bem estar, passam quase, quando não
completamente, desapercebidos se não averiguados pelo profissional técnico.
Ressaltamos, então, a importância de o/a profissional técnica/o se manter com olhar
crítico sobre o contexto litigioso, atentando-se aos preconceitos relativos a gênero,
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classe, raça e valores sociais tradicionalistas e rígidos sobre família e infância, tendo
como foco o bem-estar da criança como pessoa de direitos dentro das
potencialidades de cada genitor ou cuidador.
Assim, é imprescindível avaliar o contexto histórico e a dinâmica de cada
família, bem como os vínculos antes do rompimento do relacionamento conjugal e
após, visando identificar possíveis impactos no desenvolvimento da criança e do
adolescente que vivencia os conflitos emergentes de uma separação litigiosa. Com
base nessa avaliação, parece ser possível delinear intervenções que possibilitem
ressignificar questões que envolvem o fim da conjugalidade, buscando o exercício
responsável da parentalidade e o melhor interesse dos filhos.
Quanto ao Sistema Judiciário enquanto instituição de poder, ponderamos
seu impacto junto às partes do litígio e também junto aos Setores Técnicos.
Circundado de um imaginário ora punitivo, ora resolutivo (quando não ambos, ao
mesmo tempo), o Sistema Judiciário é inserido no cotidiano de relações conjugais
quando estas alcançam a fase de conflituosa dissolução, muitas vezes, devido a
questões afetivas de uma ou ambas as partes. Nesse contexto, a inserção da
criança enquanto “objeto de litígio”, foi problematizada dado o impacto negativo de
tal posicionamento familiar e mesmo jurídico, apesar da máxima “o melhor interesse
da criança”.
O Sistema Judiciário também impacta os próprios Setores Técnicos por
meio de gestões que desconhecem tanto as atribuições funcionais do Setor, como
também o alcance e o modo de produção dos saberes psicológico e do serviço
social e os compromissos éticos de cada profissão. Destaca-se o fato de que em
algumas comarcas os Setores não possuem voz e, às vezes literalmente, espaço
para se apresentarem e contribuírem com a construção de saberes e práticas que os
envolvem profissionalmente. Somado a isso, o fato de decisões e resoluções dos
conselhos de cada profissão muitas vezes serem ignoradas, como recentemente
vem ocorrendo pela demanda do procedimento de Depoimento Especial, foram
identificados também como contextos propícios para o fortalecimento de relações de
poder desiguais.
Junto a esse contexto, consideramos o impacto da cultura de produção
institucional do Judiciário que, em muitos casos, tende a gerar conjunturas
problemáticas para o exercício qualificado e ético da profissão dentro do sistema

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

vigente, assim como, em muitos casos, para o atendimento da população. Ainda se


discutiu a condição da mulher na sociedade brasileira, especialmente em relação a
cultura de julgamento moral que envolve os processos e que repercutem nas
avaliações e decisões judiciais.
Sobre atuação profissional e Judicialização das famílias, alguns autores
reforçam a necessidade de superar a imediaticidade, refletir e interpretar as
demandas trazidas pelas famílias, especialmente as com alto litígio, a fim de intervir
em direção à defesa do direito de crianças e adolescentes, à convivência familiar e
comunitária.
A abordagem de famílias é, ou, pelo menos deveria ser, bastante
cuidadosa e delicada por parte do profissional que é requisitado para tal.
Assinalamos, primeiramente, a relevância da leitura cuidadosa do processo e da
elaboração de um roteiro estruturado para a entrevista. Este instrumento requer uma
conduta profissional tal que permita aos envolvidos se sentirem ao mesmo tempo,
acolhidos e livres para falarem de suas inseguranças e angústias. Também é
fundamental a escolha criteriosa dos procedimentos utilizados para a análise de
cada situação. Evitar a armadilha da uniformização das histórias marcadas pela
idiossincrasia de cada sujeito e pela dinâmica de cada família faz parte de uma
escuta limpa e sem ruídos repetitivos pelo técnico.
Além disso, alguns procedimentos para o trabalho das/os profissionais
nas varas foram destacados pelo grupo, como por exemplo, atenção para os
aspectos técnicos da Psicologia e do Serviço Social, defesa da autonomia na
escolha dos procedimentos técnicos, cuidado na elaboração dos laudos,
descrevendo apenas o necessário para a compreensão do caso e, finalmente,
realização de supervisão com profissionais experientes, sempre que necessário.
Tais ferramentas elencadas e problematizadas pelo grupo vêm acenar em direção a
um processo de avaliação interprofissional de melhor qualidade.
Quanto aos laudos, foi enfatizado o cuidado com a terminologia técnica e
com o uso adequado e preciso dos conceitos que fundamentam o parecer,
considerando que o leitor não comunga das mesmas teorias e dos mesmos
discursos. Apontou-se, ainda, a utilização da escrita como ferramenta de intervenção
junto às famílias, provocando a mobilização do poder público no que se refere à rede
de atendimento, em especial aos núcleos familiares desprovidos da maioria dos

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recursos básicos. Quando assistentes sociais e psicólogos atuam como peritos nas
Varas de Família é preciso resistir às pressões pela entrega de laudos em prazos
exíguos e cobranças das partes, advogados e juízes, de forma geral, sob o risco de
ter utilizado seu parecer como ferramenta de “ataque” ao outro.
Considerando os processos nas Varas de Família, o grupo destacou
também, a dificuldade de encaminhamento para os serviços da rede, tendo em vista
a precariedade das políticas destinadas a atender a população em suas demandas.
Desse modo, aventou-se a possibilidade de, para além das recomendações que
constam dos laudos, coletivizar, sistematizar e documentar a demanda no sentido de
empreender esforços em conjunto com a sociedade80.
Ao pensarmos sobre como superar a problemática que envolve os litígios,
considerou-se a relevância das ações preventivas, antes da instauração dos
processos judiciais, bem como a possibilidade de acompanhamento das famílias já
durante a disputa judicial, como por exemplo, nos serviços socioassistenciais e nas
universidades.

80
Uma iniciativa, fruto das reflexões desse Grupo de Estudos, realizou-se na Comarca de
Piquete, fruto do trabalho da psicóloga judiciária, integrante desse grupo, que, juntamente com o
apoio do magistrado, instaurou no município, a ideia de estabelecer parcerias com a
Universidade Salesiana, em Lorena, no tocante à otimização dos serviços da rede protetiva em
Piquete. O projeto se concretizou ao final desse ano por meio de uma parceria entre o município
e a universidade, para que o mesmo receba projetos e estagiários de Psicologia e Direito para
dar suporte à rede de proteção. O inicio da parceria será em 2020 e o judiciário estará presente
nesse processo, acompanhando e participando junto a rede, no que diz respeito à atuação e
prevenção dos casos de conflito envolvendo famílias, crianças e adolescentes.
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REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ana Lúcia Marinônio de Paula; MAGALHAES, Andrea Seixas; FERES-


CARNEIRO, Terezinha. Litígios intermináveis: uma perpetuação do vínculo
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03942010000100016&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 18 jun. 2019.

CADERNO DOS GRUPOS DE ESTUDO SERVIÇO SOCIAL E PSICOLOGIA


JUDICIÁRIA 13. A escuta de crianças nas separações litigiosas. São Paulo: EJUS,
2016, p. 473- 496.

______. Casos altamente litigiosos em Vara de Família: conceituação,


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CADERNO DOS GRUPOS DE ESTUDO SERVIÇO SOCIAL E PSICOLOGIA


JUDICIÁRIA 15. A paternidade na modernidade e suas diferentes vertentes: o olhar
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