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CADERNO DOS

GRUPOS DE
ESTUDOS

SERVIÇO SOCIAL
E
PSICOLOGIA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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o do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo nem o da Escola Judicial
dos Servidores.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Presidente
Desembargador MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES – EJUS


Diretor
Desembargador FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO

CADERNO DOS GRUPOS DE ESTUDOS


Serviço Social e Psicologia Judiciários

Número 15

SÃO PAULO
2018
Sumário
‘NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA’: REFLEXÕES SOBRE O
ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E/OU TRANSTORNOS MENTAIS ................................ 12

Introdução ...................................................................................................................... 14
1 - Uma pedra?............................................................................................................... 15
2 - Conceituações de deficiência Intelectual e transtornos mentais ................................ 15
3 - Dados iniciais obtidos na pesquisa com serviços de acolhimento ............................. 16
4 - Dados discutidos no grupo de estudos ...................................................................... 25
Caso 1 ............................................................................................................................ 25
Caso 2 ............................................................................................................................ 28
Caso 3 ............................................................................................................................ 28
5 - Um olhar sobre as pessoas com deficiência intelectual: diretrizes do Programa
Estadual de Atendimento à Pessoa com Deficiência Intelectual (PEAPDI) .................... 29
6 - Rede de Atenção Psicossocial (RAPS): processo de transição das políticas públicas
para pessoas com transtornos mentais .......................................................................... 32
7 - A centralidade da família no cuidado das crianças e adolescentes com deficiência
intelectual e/ou transtornos mentais e a situação de acolhimento .................................. 35
8 - Conclusão ................................................................................................................. 39
Referências .................................................................................................................... 41

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E


FUTURAS ...................................................................................................................... 44

Introdução ...................................................................................................................... 46
1 - ECA e perspectivas históricas ................................................................................... 46
2 - Principais pontos das leis que alteraram as políticas de proteção à infância............. 49
2.1 – Estatuto da Criança e do Adolescente - 1990 ........................................................ 49
2.2 - Plano Nacional de Assistência Social – 2004 ......................................................... 50
2.3 - Plano Nacional da Convivência Familiar e Comunitária – 2006.............................. 50
2.4 - Lei Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (Lei 12.010/2009) ................. 50
2.5 - Lei Nacional da Primeira Infância (0 a 6 anos) - Lei 13.257/2016........................... 51
2.6 - Depoimento especial - lei 13.431 /2017 .................................................................. 51
2.7 - Modificação do ECA ............................................................................................... 51
2.8 - Modificações na consolidação das leis trabalhistas ................................................ 52
2.9 - Projeto de lei Estatuto da Adoção .......................................................................... 52
3 - PL 394/2017 “Estatuto da Adoção”- reflexões críticas ............................................... 52
4 - Conclusão ................................................................................................................. 59
Referências .................................................................................................................... 61
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ADOÇÃO: A ATUAL CONJUNTURA DO PAÍS VERSUS A PROTEÇÃO INTEGRAL


DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ............................................................................. 62

Introdução ...................................................................................................................... 64
1 - Considerações sobre as alterações do ECA advindas da Lei 13.509/2017 ............... 64
2 - Reflexões sobre políticas públicas de proteção para crianças e adolescentes .......... 67
3 - (Des) Proteção Social: apontamentos sobre negligência .......................................... 69
4 - Mediação de conflitos ................................................................................................ 71
5 - Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção ............................................. 72
6 - Reflexões sobre a adoção na legislação brasileira .................................................... 74
7 - Conclusão ................................................................................................................. 76
Referências .................................................................................................................... 77

A VIOLÊNCIA IMPLÍCITA NOS CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS E NOSSAS


POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO ................................................................................. 78

Introdução ...................................................................................................................... 82
1 - A violência e suas múltiplas manifestações ............................................................... 83
2 - A violência nas relações familiares ............................................................................ 86
3 - A violência implícita nos casos que tramitam nas varas de família e sucessões ....... 91
3.1 - Denúncia de abuso sexual em varas de família ..................................................... 94
4 – Reflexões sobre os limites e as possíveis contribuições da perícia psicossocial para
a redução da violência nos litígios de Vara de Família ................................................... 95
4.1 - Métodos de resolução de disputas ......................................................................... 97
4.1.1 - A conciliação ....................................................................................................... 97
4.1.2 - A mediação de conflitos....................................................................................... 98
4.2 - A oficina de pais e filhos ....................................................................................... 100
4.3 - A constelação familiar .......................................................................................... 102
4.4 - A Justiça Restaurativa .......................................................................................... 103
5 - Conclusão ............................................................................................................... 106
Referências .................................................................................................................. 108

PARA ALÉM DA PERITAGEM? .................................................................................. 112

O trabalho de assistentes sociais e psicólogas/os no TJSP ......................................... 112


introdução ..................................................................................................................... 115
1 - Os percursos das discussões .................................................................................. 118
2 - Peritos ..................................................................................................................... 122
2.1 - Especialistas em quê? .......................................................................................... 122
2.2 - Inquirição e inquietações ...................................................................................... 125
3 - Análise dos dados coletados ................................................................................... 127
3.1 - Uma análise possível - o que dizem as equipes técnicas ..................................... 127
3.2 - A verdade e a forma das demandas: .................................................................... 130
4 - Conclusão ............................................................................................................... 136
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Referências .................................................................................................................. 139

DEPOIMENTO ESPECIAL: A EXPERIÊNCIA DO GRUPO DE ESTUDOS NO


TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO ........................................... 141

Introdução .................................................................................................................... 143


1 -O grupo de estudos “Depoimento Especial” – características e peculiaridades ....... 144
- Avaliação prévia ......................................................................................................... 145
- Antecipação da prova ................................................................................................. 147
2 - Considerações finais ............................................................................................... 152
Referências .................................................................................................................. 153

APROXIMAÇÕES DA CATEGORIA TOTALIDADE NA ELABORAÇÃO DO ESTUDO


SOCIAL ........................................................................................................................ 155
Introdução .................................................................................................................... 158
1 - Categoria totalidade em Marx: uma apreensão necessária ..................................... 158
2 - A elaboração do estudo social e a categoria totalidade ........................................... 166
3 - Totalidade e desafios no cotidiano do Serviço Social .............................................. 172
4 - Estudo de caso ........................................................................................................ 177
5 - Conclusão ............................................................................................................... 181
6 - Anexos .................................................................................................................... 185
Referências .................................................................................................................. 190

DINÂMICA FAMILIAR EM PROCESSOS DE GUARDA EM FAVOR DOS AVÓS ...... 194

Introdução .................................................................................................................... 196


1 – Transmissão da vida psíquica entre gerações ........................................................ 196
2 – Sobre os avós que assumem a criação dos netos .................................................. 198
2.1 - Motivos para as avós assumirem os netos ........................................................... 200
2.2 - Representação do papel da avó que cuida dos netos .......................................... 200
2.3 - Consequências da criação dos netos pelos avós ................................................. 200
3 – Avós e netos na família contemporânea ................................................................. 201
4 - Conclusão ............................................................................................................... 203
Referências .................................................................................................................. 205

SOBRE OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: NOVAS PERGUNTAS


PARA NOVAS RESPOSTAS ....................................................................................... 206

Introdução .................................................................................................................... 208


1 - Princípios fundamentais da Justiça Restaurativa .................................................... 212
1.1 - Focar nos danos e nas necessidades: envolvendo a vítima, o ofensor e membros
da comunidade e da sociedade .................................................................................... 213
A - A participação da ‘vítima’ na Justiça Restaurativa .................................................. 214
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B - O papel do ‘ofensor’ na Justiça Restaurativa .......................................................... 215


C - A participação da ‘comunidade’ e da ‘sociedade’ a partir da Justiça Restaurativa .. 216
1.2 - Das obrigações que resultam do dano ................................................................. 219
1.3 - utilizar processos inclusivos e cooperativos ......................................................... 220
1.4 - Reparar os danos e endireitar as coisas na medida do possível .......................... 222
2 - Conclusão ............................................................................................................... 224
Referências .................................................................................................................. 226

O OLHAR DO SERVIÇO SOCIAL SOBRE A DESIGUALDADE DE GÊNERO NAS


RELAÇÕES FAMILIARES JUDICIALIZADAS: GUARDA COMPARTILHADA E
ALIENAÇÃO PARENTAL ............................................................................................ 228

Introdução .................................................................................................................... 230


1 - Relações de gênero: desigualdade e violência na família ....................................... 231
2 - O apelo do conanda à revogação da lei de alienação parental: o embate entre pais e
mães e a (des)proteção de filhos(as) ........................................................................... 240
3 - Guarda compartilhada e alienação parental: contribuições do Serviço Social ......... 244
4 - Conclusão ............................................................................................................... 252
Referências .................................................................................................................. 254

REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS ALTERNATIVAS PARA OS CONFLITOS DE


VARAS DE FAMÍLIA.................................................................................................... 257

Introdução .................................................................................................................... 259


Práticas emergentes e alternativas em Varas de Família ............................................. 259
1 - Grupo informativo “Questões de Guarda” ................................................................ 260
2 - “Oficina de Pais” ...................................................................................................... 263
3 - “Constelação Familiar Sistêmica” de Bert Hellinger ................................................. 266
3.1 - A prática no Direito brasileiro ................................................................................ 266
3.2 - Constelação Familiar Sistêmica como estratégia frente aos litígios de Vara de
Família.......................................................................................................................... 267
3.3 - Considerações sobre alcances e limites da Constelação Familiar Sistêmica em
Vara de Família ............................................................................................................ 270
4 - Mediação de conflitos .............................................................................................. 271
5 – Conclusão............................................................................................................... 275
Referências .................................................................................................................. 277

VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER NO JUDICIÁRIO ...................... 279

Introdução .................................................................................................................... 281


1 - Violência de gênero ................................................................................................. 282
1.1 - Breves considerações psicanalíticas sobre a violência institucional ..................... 285
1.2 - Tipos de violência ................................................................................................. 287
1.3 - Violência institucional contra as mulheres ............................................................ 289
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1.4 - Serviços e movimento feminista na luta por esta demanda .................................. 290
2 - Violência institucional no Judiciário ......................................................................... 292
2.1 – O Judiciário a partir de uma visão crítica ............................................................. 292
2.2 – Reprodução da violência estrutural...................................................................... 296
3 - Atuação dos(as) Assistentes Sociais e Psicólogos(as) diante das violências
institucionais ................................................................................................................. 300
Considerações finais .................................................................................................... 309
Referências .................................................................................................................. 311

PROCESSO AVALIATIVO PSICOLÓGICO E SOCIAL DOS PRETENDENTES À


ADOÇÃO ..................................................................................................................... 314

Introdução .................................................................................................................... 316


1 - Evolução histórica e Legislativa ............................................................................... 316
2 - Atribuições dos Assistentes Sociais e Psicólogos nos processos de Habilitação à
adoção .......................................................................................................................... 322
3 - Avaliação social e psicológica ................................................................................. 323
4 - Pesquisa com os pretendentes ............................................................................... 325
5 - Considerações finais ............................................................................................... 332
Referências .................................................................................................................. 333

PROCESSO DE AVALIAÇÃO PARA PRETENDENTES À ADOÇÃO: VIVÊNCIAS E


REFLEXÕES DOS PROFISSIONAIS DE PSICOLOGIA E SERVIÇO SOCIAL NO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO ................................................................. 334

Introdução .................................................................................................................... 338


1 - As diretrizes orientadoras do processo de adoção .................................................. 339
2 - A avaliação social dos pretendentes à adoção ........................................................ 341
3 - A avaliação psicológica dos pretendentes à adoção ............................................... 344
4 - As vivências do Assistente Social e do Psicólogo Judiciários no processo de
avaliação dos pretendentes à adoção: cogitações ....................................................... 346
5 - Considerações finais ............................................................................................... 351
Referências .................................................................................................................. 353

ANÁLISE DAS ALTERAÇOES TRAZIDAS PELA LEI 13.509/17 PELA PERSPECTIVA


DOS ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DE SÃO PAULO .......................................................................................... 355

Introdução .................................................................................................................... 359


1 - Entrega voluntária ................................................................................................... 360
2 - Acolhimento............................................................................................................. 364
3 - Programa de Apadrinhamento Afetivo ..................................................................... 367
4 - Novas configurações da destituição do poder familiar ............................................. 370
5 – Adoção ................................................................................................................... 373
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6 - Conclusão ............................................................................................................... 377


Referências .................................................................................................................. 379

A PATERNIDADE NA MODERNIDADE E SUAS DIFERENTES VERTENTES: O


OLHAR DA EQUIPE INTERPROFISSIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO
PAULO ......................................................................................................................... 382

Introdução .................................................................................................................... 384


1 - A parentalidade na contemporaneidade .................................................................. 386
2 - O pai no sistema de Justiça, sob o olhar da equipe interprofissional ....................... 389
3 - O pai no sistema de Justiça: reflexões a partir de exemplos encontrados no cotidiano
das equipes interprofissionais....................................................................................... 391
4 - Considerações finais ............................................................................................... 395
Referências .................................................................................................................. 397

SIM OU NÃO? O DESAFIO DA HABILITAÇÃO DOS PRETENDENTES À ADOÇÃO


PELAS EQUIPES TÉCNICAS...................................................................................... 398

1 - Sim ou não? o desafio da habilitação dos pretendentes à adoção pelas equipes


técnicas ........................................................................................................................ 400
Referências .................................................................................................................. 413
Apêndice 1 – orientações, procedimentos e legislações pertinentes à adoção ............ 415
Orientações iniciais aos interessados em adotar .......................................................... 416
Requerimento de inscrição ........................................................................................... 416
Planilhas e habilitação .................................................................................................. 416
As pesquisas no cadastro local (VIJ) ............................................................................ 417
As pesquisas e as atualizações do Cadastro Centralizado Estadual (CEJAI-SP) ........ 418
As pesquisas e as atualizações do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) .................... 419
As pesquisas no Cadastro de Pretendentes à Adoção Internacional:........................... 420
Os relatórios sobre as pesquisas para a colocação em família substituta e o
acompanhamento da criança/adolescente durante este trabalho ................................. 421

A (RE)SIGNIFICAÇÃO DA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:


TEMPOS SOMBRIOS .................................................................................................. 422

Introdução .................................................................................................................... 424


1 - Aspectos históricos da proteção dos direitos da criança e do adolescente ............. 425
2 - O que é? risco, vulnerabilidade e negligência ......................................................... 429
3 - Violências: a ausência de proteção e a violação aos direitos .................................. 433
4 - Acolhimento............................................................................................................. 436
5 - Destituição do poder familiar ................................................................................... 437
6 - Considerações finais ............................................................................................... 440
Referências .................................................................................................................. 442
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DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR: CONSTANTES DESAFIOS .......................... 449

Introdução .................................................................................................................... 451


1 - Diagnóstico.............................................................................................................. 452
2 - Tipificação SUAS..................................................................................................... 457
3 - Tipificação SUS ....................................................................................................... 462
4 - Conhecendo uma experiência em andamento: (ausência de) políticas públicas para
mães em vulnerabilidade - é possível intervir por meio do Poder Judiciário? ............... 464
5 - Conclusão ............................................................................................................... 469
Referências .................................................................................................................. 471

O (DES) CUIDADO PARENTAL NAS FAMÍLIAS EM LITÍGIO .................................... 476

Introdução .................................................................................................................... 478


1 - O cuidado: do que falamos? .................................................................................... 479
1.1 - O que chamamos de cuidado parental? ............................................................... 481
2 - Relação conjugal e parental: antes e após o litígio .................................................. 482
2.1 - Sobre a conjugalidade .......................................................................................... 482
2.2 - Sobre a parentalidade .......................................................................................... 484
2.3 - Conjugalidade e parentalidade após a separação ................................................ 485
3 - Sobre o descuidado e os cuidados possíveis da parentalidade em situações de litígio .
............................................................................................................................... 487
4 - Intervenção da equipe técnica do Tribunal de Justiça junto às famílias em litígio -
atuação profissional ...................................................................................................... 489
5 - Considerações finais ............................................................................................... 492
Referências .................................................................................................................. 494

COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS: DESAFIOS DA


CONTEMPORANEIDADE ............................................................................................ 497

Introdução .................................................................................................................... 499


1 - Mal-estar na civilização (cultura) ............................................................................. 499
2 - O mal-estar na pós-modernidade ............................................................................ 501
3 - Sociedade do cansaço ............................................................................................ 503
4 - As redes sociais digitais e sua influência na sociedade e educação contemporâneas ..
............................................................................................................................... 505
5 - Mal estar, sofrimento e sintoma............................................................................... 506
6 - Possíveis formas de amenizar sofrimento na vida em sociedade............................ 509
7 - Considerações finais ............................................................................................... 511
Referências .................................................................................................................. 512
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A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL E PSICÓLOGO JUDICIÁRIOS NO


ACOMPANHAMENTO DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE LONGA
PERMANÊNCIA E DIFÍCIL COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA ............................................ 514

Introdução .................................................................................................................... 516


Desenvolvimento .......................................................................................................... 517
1 - Sobre ‘longa permanência e difícil colocação’ ......................................................... 517
2 - Sobre as consequências psicossociais ................................................................... 518
3 - A atuação do Assistente Social e Psicólogo Judiciários .......................................... 521
- Junto à criança e adolescente em situação de acolhimento de longa permanência e
difícil colocação ............................................................................................................ 521
- Junto à família da criança e adolescente em situação de acolhimento de longa
permanência e difícil colocação .................................................................................... 523
- Junto à equipe do abrigo e rede no trabalho com crianças e adolescentes em situação
de acolhimento de longa permanência e difícil colocação ............................................ 525
4 - Desdobramentos e possibilidades / desafios ........................................................... 528
5 - Conclusão ............................................................................................................... 532
Referências .................................................................................................................. 534

REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO DE CRIANÇAS MAIORES ................................... 536

Introdução .................................................................................................................... 538


1 - A trajetória historica da adoção no Brasil. ............................................................... 538
2 - “Adoção tardia” ou adoção de crianças maiores...................................................... 543
3 - O estágio de convivência sob o prisma legal, teórico e experiencial ....................... 546
4 - Indicadores críticos e considerações psicossociais acerca do melhor interesse da
criança e do adolescente durante o estágio de convivência ......................................... 551
4.1 - Características sócio-culturais, étnicas e de gênero ............................................. 552
4.2 - A preservação e (re) construção da historia e memórias das crianças e
adolescentes ................................................................................................................ 555
4.3 - Capacidade de revelação/diálogo entre adotantes e adotandos .......................... 556
4.4 - Características e o vínculo com a família de origem e a relação com o grupo de
irmãos........................................................................................................................... 557
4.5 - O tempo demandado pelas decisões judiciais ...................................................... 558
5 - Considerações finais ............................................................................................... 559
Referências .................................................................................................................. 561

DIFERENTES OLHARES SOBRE A (DES)PROTEÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE:


APROXIMAÇÕES TEÓRICAS E VIVÊNCIAS PRÁTICAS NO TJSP .......................... 565

Introdução .................................................................................................................... 569


1- Desenvolvimento ................................................................................................... 569
1.1 - A proteção à criança e ao adolescente no Brasil .................................................. 570
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1.2 - Conceitualização de proteção e a dificuldade no estabelecimento de critérios para


identificação dos fatores de risco e proteção ................................................................ 574
1.3 - Discursos e práticas de (des)proteção ................................................................. 578
1.4 - Análise dos casos a partir das discussões teóricas .............................................. 581
2 - Conclusão ............................................................................................................... 586
Referências .................................................................................................................. 588

A ADOÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA? ................................................................. 589

Introdução .................................................................................................................... 591


1 - As mudanças na Lei da Adoção e suas implicações ............................................... 593
2 - Avaliações na destituição do poder familiar e na adoção ........................................ 596
2.1 - Marco legal da inserção do assistente social e do psicólogo no Tribunal de Justiça
de São Paulo ................................................................................................................ 596
2.2 - Atuação profissional ético-político e a escuta qualificada ..................................... 596
3 - A história da criança no vínculo adotivo – história de origem, traumas, violências,
pertencimento ............................................................................................................... 602
4 - Considerações finais ............................................................................................... 606
Referências .................................................................................................................. 608
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‘NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA’.


REFLEXÕES SOBRE O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA
INTELECTUAL E/OU TRANSTORNOS MENTAIS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E FAMILIAR”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
12
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COORDENAÇÃO

Ana Carolina Garcia Gayotto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba

Elen Tavares de Sá – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

AUTORES

Alessandra Medeiros – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Caetano do


Sul

Cássia Maria Rosato – Psicóloga Judiciário – Comarca de Vinhedo

Deise Oliveira da Silva – Assistente Social Judiciário – Foro Regional II Santo Amaro

João Batista Alves Cabral – Assistente Social Judiciário – Comarca de Porto Ferreira

Karina Marinho dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Luiz do
Paraitinga

Márcia Cristina Campos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica da


Serra

Marina Tomé Teixeira dos Santos – Assistente Social Judiciário – Foro Regional I
Santana

Mônica Cordeiro de Azevedo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapevi

Paula Antônia Pansa Brumatti – Assistente Social Judiciário – Foro Regional VIII
Tatuapé

Sandra Aparecida Bossetto – Psicóloga Judiciário – Fórum das Varas Especiais da


Infância e Juventude

Valquíria Gomes de Moraes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tremembé

Viviane Souza da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taubaté

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INTRODUÇÃO

Apresenta-se o texto intitulado “No Meio do Caminho Tinha uma Pedra:


Reflexões sobre o acolhimento institucional de crianças e adolescentes com
deficiência intelectual e/ou transtornos mentais”.
A temática escolhida para discussão do Grupo de Estudos Acolhimento
Institucional e Familiar neste ano vem ao encontro de questões vivenciadas pelos
serviços de acolhimento, tanto da capital quanto do interior, em relação às
dificuldades enfrentadas e a percepção de que o número de acolhimentos de
crianças e adolescentes com deficiência intelectual e/ou transtornos mentais tem
aumentado.
Ainda não se localizou estudos que confirmem esta percepção, assim,
entendendo a relevância do assunto, o grupo decidiu tecer estas reflexões
preliminares que certamente merecerão aprofundamento por meio da correlação
com outros dados e pesquisas que vierem a ser produzidas.
A ideia, portanto, é suscitar a discussão com dados das cidades onde os
profissionais que compõem este Grupo de Estudos atuam e que se dispuseram a
contribuir, além da apresentação de casos para exemplificar a questão..

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.


Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do
caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

(Carlos Drummond de Andrade)

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1 - UMA PEDRA?

Quando se fala da medida de proteção “acolhimento” entende-se haver


“muitas pedras no caminho”, pois só deve ser aplicada em situação extrema, que
requeira o afastamento da criança/adolescente de sua família.
Por que então este poema nesta discussão?
“Uma” pedra! Quando “uma” pedra se torna mais importante do que
“muitas” pedras?
Quando ocorre o acolhimento institucional de crianças ou adolescentes
com deficiência e/ou transtorno mental, verifica-se que esta passa a ser a questão
central, como se fosse “a pedra” e, os problemas enfrentados ficam desfocados e
parecem sem saída.
Entende-se que a questão da deficiência e/ou transtorno mental necessita
ser avaliada e discutida, até para que seja possível se olhar além.

2 - CONCEITUAÇÕES DE DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E


TRANSTORNOS MENTAIS

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU


define pessoas com deficiência como aquelas que têm impedimentos de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas
barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as
demais pessoas (art. 1).
O Manual Diagnóstico e Estatístico para Transtornos Mentais - 5° edição
(DSM-5) define deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) da
seguinte forma:

caracteriza-se por déficits em capacidades mentais genéricas, como


raciocínio, solução de problemas, planejamento, pensamento
abstrato, juízo, aprendizagem acadêmica e aprendizagem pela
experiência. Os déficits resultam em prejuízos no funcionamento
adaptativo, de modo que o indivíduo não consegue atingir padrões
de independência pessoal e responsabilidade social em um ou mais

15
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aspectos da vida diária, incluindo comunicação, participação social,


funcionamento acadêmico ou profissional e independência pessoal
em casa ou na comunidade. (Manual DSM-5, p. 04, ABP 2014
Artmed).

E define transtorno mental:

Um transtorno mental é uma síndrome caracterizada por perturbação


clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no
comportamento de um indivíduo que reflete uma disfunção nos
processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento
subjacentes ao funcionamento mental (Manual DSM-5, p. 62, ABP
2014 Artmed).

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)


estabeleceu em 13/12/06, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
(ONU), que o transtorno mental também pode ser classificado como “deficiência
psiquiátrica” ou “deficiência psicossocial”, incluindo-o assim no rol de deficiências.
Esta foi uma conquista importante, pois visa garantir às pessoas com transtornos
mentais os mesmos direitos já adquiridos pelas pessoas com deficiência.
Tais definições foram consideradas para nortear a pesquisa aplicada por
este Grupo de Estudos, realizada com o objetivo de se ampliar a discussão com a
participação de profissionais que atuam cotidianamente com estas crianças e
adolescentes.

3 - DADOS INICIAIS OBTIDOS NA PESQUISA COM SERVIÇOS DE


ACOLHIMENTO

O formulário da pesquisa foi construído no decorrer das discussões do


Grupo de Estudos e encaminhado aos Serviços de Acolhimento das cidades
representadas pelos técnicos presentes no GE.
Utilizou-se a ferramenta Google Forms.
Responderam a pesquisa os seguintes serviços de acolhimento: O
Estatuto da Criança e do Adolescente prioriza o acolhimento familiar ao institucional

16
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quando se faz necessário o afastamento da família de origem. Entretanto,


constatamos que são raros os municípios que o implantaram.

Serviço de Acolhimento Município


São Luiz de
01 Caminho
Paraitinga
02 Associação Educacional e Beneficente Refúgio Sorocaba
03 Família Acolhedora Jundiaí
04 Casa Transitória Nossa Senhora Aparecida Jundiaí
Serviço de Acolhimento de Crianças e
05 Vinhedo
Adolescentes Arca
06 Casa Porto Seguro Itapevi
07 Associação e Comunidade Casa de Nazaré Jundiaí
08 Associação Beneficente Lar do Caminho Juquitiba
09 Associação Casa do Abrigo Porto Ferreira
10 Casa do Menor Francisco de Assis de Leme Leme
11 Sagrada Família Santo Amaro
12 Limiar Santo Amaro

Total de acolhidos dos 12 serviços de acolhimento: 307. Desses: 168


crianças e 139 adolescentes:

Quantidade de Crianças e Adolescentes Acolhidos

adolescentes; 139; 45%

crianças; 168;

17
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Quanto à deficiência:

Número de acolhidos/as considerados/as com algum transtorno mental 45


Número de acolhidos/as considerados/as com deficiência intelectual 32
Número de acolhidos/as que fazem uso abusivo de substâncias
17
psicoativas
Número de acolhidos/as que possuem diagnóstico ou hipótese
68
diagnóstica

Chama a atenção o número de acolhidos com diagnóstico ou hipótese


diagnóstica (68 casos) ser menor do que a soma dos acolhidos considerados com
transtorno mental e deficiência intelectual (77), sem ainda acrescentar os que fazem
uso de substâncias psicoativas, o que totalizaria 94 crianças e adolescentes.
Para essa diferença, há as sugestões de que: ou os serviços de
acolhimento têm denominado a “deficiência” por conta própria tendo como base
comportamentos e sintomas, ou os serviços de saúde têm verbalizado hipóteses
diagnósticas sem documentá-las. Em razão da experiência e de relatos colhidos,
entende-se ser possível a realidade desta segunda suposição.
Das 68 crianças e adolescentes acolhidos com diagnóstico ou hipótese
diagnóstica, 47 já o possuíam antes da determinação do acolhimento institucional, ou
seja, 69%.
Quanto à possibilidade de que o transtorno/deficiência tenha sido o motivo
para a determinação do acolhimento institucional, os serviços de acolhimento
consideram que não, contudo, ocorreram dois comentários que entendemos serem
importantes para avaliação deste dado:
- “não, normalmente a negligência, mas em alguns casos o
comportamento da criança gerado pelo transtorno CID foi levado em conta”.

- “Em alguns casos, o CID corroborou para o acolhimento”.


Em relação às doenças/transtornos/deficiências diagnosticados/as ou
hipoteticamente indicados/as foram informadas as seguintes:

 Deficiência intelectual leve


 Deficiência intelectual moderada
 Deficiência intelectual grave
 Autismo
 Esquizofrenia
18
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 Transtorno Opositor Desafiador (TOD)


 Paralisia Cerebral
 Trombose encefálica
 TDAH e TDA
 Depressão, Transtorno Depressivo Recorrente
 Transtorno de Conduta
 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas - uso
nocivo para a saúde
 Transtorno não especificado do desenvolvimento da fala ou da
linguagem
 Fibrose cística
 Transtorno de Humor
 Transtorno de Personalidade (psicose, ansiedade associada à
depressão)
 Transtorno não específico da personalidade
 Transtornos globais do desenvolvimento (F84)
 Epilepsia (G40)
 Transtorno hipercinético
 Transtornos de adaptação
 Transtorno de conduta
 Transtorno específico do desenvolvimento da fala e linguagem
 Psicose
 Transtorno de Ansiedade não especificado.

Dentre os/as acolhidos/as considerados/as com transtorno e/ou


deficiência (total de 68 com diagnóstico ou hipótese diagnóstica):
49 acessam serviços de Saúde Mental.
30 acessam serviços específicos da Educação (escola especial, sala de
recursos, sala multifuncional, outros).
48 recebem visita de familiares, sendo a mãe mais citada enquanto
visitante, em seguida os avós maternos, irmãos e tios maternos, depois o pai,
seguido dos avós paternos, tios paternos e madrinha.

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42 recebem Benefício de Prestação Continuada (BPC).


6 fazem jus ao benefício do passe livre no transporte coletivo.
56 fazem uso de medicação.
Quanto a estes dados, destaca-se que os serviços de saúde mental
geralmente são destinados a problemas mais graves, não havendo disponibilidade
na rede da maioria das cidades de locais para atendimento psicológico, por exemplo.
Na educação, a Escola Especial não tem sido mais opção, porém é
sabido que ainda há limitações na disponibilização de salas de recursos.
Destaca-se a prevalência da família materna nas visitas.
Percebe-se que quase a totalidade daqueles que acessam serviços de
saúde mental (49) recebem BPC (42), o que sugere que este direito tem sido
observado pelo menos para aqueles que frequentam tratamento de saúde mental.
Entretanto, preocupa a quantidade de crianças e adolescentes que fazem
uso de medicação ser maior do que a quantidade daqueles que frequentam serviços
de saúde mental, levando a pensar quem tem acompanhado estes casos?
Quanto ao passe livre, entende-se que os Serviços de Acolhimento tem
negligenciado este recurso por utilizarem transporte próprio.
Em caso de surto, a maioria dos serviços de acolhimento informou
contatar o SAMU (8 respostas), contudo, foram citadas também a Guarda Municipal
(3 respostas) , a Polícia Militar (2 respostas), o Corpo de Bombeiros (2 respostas), o
CAPS IJ (1 resposta) e PreMed (1 resposta).
Diante desses dados, supõe-se inadequação no tratamento da situação
de surto, confundindo-se com caso de polícia, ou ainda, que haja indisponibilidade
do serviço de emergência nas cidades, fazendo com que outros serviços sejam
acionados, mesmo que de maneira equivocada.
Comportamentos mais comuns apresentados:
 Agitação
 Agressividade
 Ideação suicida
 Comportamento antissocial
 Baixa tolerância à frustração
 Enurese
 Encoprese

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 Comportamento autodestrutivo
 Apatia
 Dificuldade de concentração
 Dificuldade de seguir regras
 Ataque de fúria
 Descontrole emocional
 Alterações do sono

 Atitude desafiadora

 Humor anormalmente elevado ou irritável


 Inflexibilidade
 Comportamento desadaptado sob outros aspectos
 Comportamento disfuncional em situações das relações pessoais e
sociais
 Atitude beligerante
 Atitude conflitiva
 Oscilação de Humor
 Automutilação
 Dificuldade escolar
 Dificuldade de socialização
 Comportamentos repetitivos
 Excesso de organização
 Dificuldade de compreensão
 Dificuldade na fala
 Exposição a situações de risco
 Surtos psicóticos
 Uso de drogas
 Ansiedade
 Nervosismo
 Taquilalia
 Delírios

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Principais entraves que o Serviço de Acolhimento Institucional encontra


em relação ao acesso aos serviços especializados na rede para o atendimento
dos/as acolhidos/as considerados/as com transtorno e/ou deficiência:
 Falta de vagas
 Ausência de atendimento individual, que atenda demandas específicas
 Dificuldade na comunicação com o serviço
 Morosidade no atendimento do SAMU
 Dificuldade ou lentidão no encaminhamento (protocolos,
procedimentos)
 Resistência de alguns acolhidos para frequentarem os
serviços especializados
 Poucos profissionais para atender as demandas
 Atendimento não integrado
 Ausência de equipamentos especializados
 Falta de profissionais nos serviços
 Má qualidade nos atendimentos
 Periodicidade dos atendimentos (espaçados)
 Minimização dos problemas apresentados
 Falta de atendimento psicológico individual semanal
 Dificuldade de acesso
 Dificuldade na elaboração da hipótese diagnóstica e diagnóstico
 Possibilidades/sugestões para o enfrentamento das dificuldades
encontradas pelo Serviço de Acolhimento Institucional no tangente ao atendimento
aos/as acolhidos/as considerados/as com transtorno e/ou deficiência:
 Discussão de casos com a rede intersetorial
 Estreitamento na relação entre os serviços de saúde, educação e
acolhimento
 Busca ativa do CAPS nos casos de recusa e/ou não adesão ao serviço
ofertado
 Flexibilização acerca dos métodos de trabalho e abordagem para
absorção da demanda
 Serviço 24h

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

 Disponibilização de terapia individual, uma vez que nem todas as


crianças se adaptam ao atendimento em grupo
 Agilidade no fluxo de encaminhamento para serviços especializados
 Disponibilidade do equipamento de saúde no município ou convênio
com outras cidades
 Ampliação do quadro de profissionais nos CAPS´s em diversas áreas,
tais como: neuropediatras, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos
 Melhoria na qualidade e na quantidade dos atendimentos prestados em
saúde mental
 Atendimento da Saúde Mental para criança e adolescente no município
 Diálogo entre os profissionais dos serviços de acolhimento e dos
serviços de saúde/educação, para manejo das situações pertinentes aos casos e
feedback
 Mais opções de oficinas no atendimento de saúde mental, que tenham
sentido para o usuário
 Brevidade no acesso aos serviços
Correlacionando os entraves encontrados e as sugestões para o
enfrentamento das dificuldades observa-se que as queixas indicam:
 sucateamento dos serviços prestados, como por exemplo quando se
comenta sobre falta de profissionais, falta de vagas, morosidade no atendimento,
periodicidade espaçada, má qualidade nos atendimentos, dificuldade de
comunicação com o serviço, ausência de atendimento individual, além de dificuldade
de acesso;
 ou mais grave, como a falta de oferta de serviços, quando há a
sugestão de implantação de equipamento de saúde no município ou convênio com
outras cidades, de implantação de atendimento de saúde mental para
criança/adolescente no município e de serviço 24h.
A falta de diálogo e intersetorialidade também são pontos a serem
trabalhados.
O trabalho em rede é indicado como sugestão em diversos formatos:
“discussão de casos com a rede intersetorial”, “estreitamento na relação entre os
serviços de saúde, educação e acolhimento”, “diálogo entre profissionais dos

23
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serviços de acolhimento e dos serviços de saúde/educação, para manejo das


situações pertinentes aos casos e feedback”.
Observa-se dificuldade em promover a interação e a parceria na busca
por maior efetividade nas ações implantadas.
Entretanto, é o conceito de rede que norteia a atuação de todo o sistema
de garantia de direitos enquanto uma necessária construção coletiva e contínua.
Como ensina Oliveira (2007), a organização em rede excede a somatória das
instituições prestadoras de serviço, pois envolve a interlocução entre elas em torno
de um objetivo comum.
Trazer as famílias ao centro da rede para a garantia da proteção social é
o desafio e a tarefa que são postas em pauta, na consideração de que o trabalho
com famílias não pode ser relegado nem dissociado das intervenções que visam ao
desligamento das crianças e adolescentes dos serviços de acolhimento foram os
comentários tecidos pelos profissionais dos Serviços de Acolhimento.
É importante salientar a necessidade de distribuição dos casos entre os
SAICA´s, para que não haja centralização dos casos e desgaste
institucional/profissional; prioridade de agendamento em casos de perícia (INSS)
para requisição de benefício, recursos e acompanhamento especializado pela
educação e, concessão de vaga em transporte especial.
Notamos dificuldade das escolas em lidar com comportamentos dos
alunos que apresentam transtornos como o TDAH.
 A Casa Transitória tem feito desde o final do ano passado reuniões
bimestrais com o CAPS. A partir da próxima reunião, vamos tentar encaixar datas e
horários nos quais a APAE também consiga participar, já que muitos dos acolhidos
que frequentam um serviço frequentam também o outro.
 Pesquisa muito pertinente e que traz a expectativa de que soluções
sejam efetivadas.
 Nossas crianças e adolescentes utilizam o transporte da instituição por
esse motivo não fazem uso do passe.
 Uma saúde mental com propósito de promover a saúde e não de
intervenção na doença, deveria ser o norte das praticas de cuidados dos usuários
deste município. No entanto, a criança e o adolescente só chegam para o
atendimento, quando os sintomas estão instalados e com efeitos graves na vida do

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sujeito e de sua família. A assistência à criança e adolescentes com transtorno


mental tem que ser pensada para além das questões clínicas, médicas e
psicológicas, na confluência com a realidade exterior e social e também individual. O
que se tem praticado neste município e principalmente dentro dos serviços de
acolhimento, é uma psicologização e medicalização das questões escolares e
sociais da infância e da adolescência. As questões sociais, escolares e conflitos
familiares bem como os sofrimentos advindos dos crescer e adolescer, precisam de
um espaço próprio para tratamento destas questões, sem medicar ou ter que
recorrer a serviços especializados em saúde mental.

4 - DADOS DISCUTIDOS NO GRUPO DE ESTUDOS

Segue síntese de um dos casos discutidos no GE:

CASO 1:

R.S. esteve acolhido dos 9 aos 18 anos de idade.


Trata-se de adolescente com quadro psicopatológico compatível com
Transtorno do Déficit de Atenção e hiperatividade (CID F90.1) associado a quadro
de instabilidade do humor e rebaixamento cognitivo (CID F70.0), existindo ainda
histórico de quadro de Transtorno de Estresse Pós-traumático na primeira infância.
R.S. iniciou acompanhamento de Saúde mental aos 6 anos de idade, de
forma ambulatorial, no CAPSIJ. Durante boa parte de sua vida escolar, esteve
matriculado em Escola Especial, de período integral, onde recebia acompanhamento
especializado. Na escola R.S. mostrava-se tranquilo e adaptado, o que não era a
realidade dentro do SAICA, onde era frequente que entrasse em surto e apresentasse
comportamento inadequado e agressivo.
O longo período de institucionalização, a alta rotatividade de cuidadores e
a instabilidade da rotina contribuíram para um agravamento do quadro de saúde
mental de R.S., chegando a um ponto onde não se vislumbrava outra alternativa a
não ser sua internação em instituição de saúde mental, o que foi requerido pelo
SAICA, que alegava não mais conseguir lidar com o adolescente. Todavia, tal
perspectiva ia de encontro com a Lei 12060-05, de forma que não havia instituição
nos moldes necessários para receber R.S.

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A partir de reuniões de rede para a discussão do quadro, pensou-se na


possibilidade de um Acompanhamento Terapêutico (AT) para R.S.

O AT constitui um importante instrumento de integração de projetos


assistenciais, centrados na atenção psicossocial. Suas ações se
inserem como práticas opostas aos modelos asilares de tratamento,
alinhando-se a propostas da reforma psiquiátrica e sanitária (...) O
AT pode ser definido como uma prática cujo espaço clínico está nas
ruas (...), como um dispositivo clínico que almeja, entre outros,
aproximar o sujeito das ofertas de laço social (...), resgatando
vínculos, sua cidadania e sua circulação em espaços que façam
sentido para o portador (...)1.
Os atendimentos em AT podem ocorrer uma, duas ou mais vezes por
semana e duram entre uma a três horas. Nesse espaço de tempo, o
acompanhante terapêutico (AT) e a pessoa acompanhada realizam
atividades que promovam o alcance dos objetivos terapêuticos, para
restabelecimento da conexão da pessoa com o mundo circundante,
demandada pelas suas necessidades de inclusão no espaço social.
Assim, ir ao supermercado, ir ao banco, ir à padaria, à lanchonete,
procurar um emprego, e assim por diante, são exemplos de ações
cotidianas realizáveis neste projeto que mobiliza o resgate de ações
que foram bloqueadas pela dificuldade instalada na pessoa, para as
quais ela necessita de ajuda. O significado dessas ações é
trabalhado pelo profissional at, durante os atendimentos, o que exige
um nível de maturidade profissional para apreender a complexidade
da realização de atividades, aparentemente simples, em meio à
proteção do setting terapêutico, que se constitui na própria relação
entre o at e o acompanhado2.

A Defensoria Pública, representando o adolescente, entrou com Ação de


Obrigação de Fazer em face do Estado de São Paulo e do Município, baseando-se
em relatório apresentado pelo SAICA informando a necessidade de Acompanhante
Terapêutico contínuo a fim de promover modelo de identificação, reforçando e
desenvolvendo as capacidades, auxiliando na conduta social, sendo desta forma

1
ACIOLI NETO, Manoel de Lima; AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. O acompanhamento
terapêutico como estratégia de cuidado na atenção psicossocial.Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 33,
n. 4, p. 964-975, 2013 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932013000400014&lng=en&nrm=iso>. access on 10 Dec. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-
98932013000400014.
2
PITIA, Ana Celeste de Araújo; FUREGATO, Antonia Regina Ferreira. O Acompanhamento
Terapêutico (AT): dispositivo de atenção psicossocial em saúde mental. Interface (Botucatu),
Botucatu , v. 13, n. 30, p. 67-77, Sept. 2009 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832009000300007&lng=en&nrm=iso>. access on 10 Dec. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-
32832009000300007.
26
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benéfico para o adolescente que tem buscado suas necessidades afetivas e


interações sociais de maneira inadequada, dificultando suas relações.
A equipe técnica do SAICa relatou comportamentos agressivos do
adolescente em relação às cuidadoras da casa e aos outros acolhidos. Explicitou os
diagnósticos recebidos por R.S. e fez um histórico das vivências difíceis dele,
apontando que, diante deste quadro, tal acompanhamento se faz imprescindível.
Explicam ainda que a equipe do SAICA é para os cuidados gerais das
crianças acolhidas e que as demandas do adolescente extrapolam as funções dos
cuidadores e demais funcionários do SAICA. Referem o entendimento de que R.S.
deve ser atendido conforme suas necessidades, sendo a figura do cuidador
terapêutico a melhor capacitada para atender as demandas específicas do
adolescente na área da saúde mental.
O pedido foi atendido e R.S. passou a contar com Acompanhante
Terapêutico com carga inicial de trabalho de 30 horas semanais, a qual foi
diminuindo à medida que R.S. conseguia executar por conta própria algumas ações.
Além de atuar com vistas à socialização do adolescente, o AT também se
dispôs a orientar a equipe técnica e as cuidadoras do SAICA a respeito das
demandas e necessidades do adolescente e da melhor forma de atuar junto a ele.
A avaliação é de que houveram diversos avanços no sentido da promoção
da autonomia de R.S., relacionados à sua higiene e cuidado pessoal, à sua
capacidade para se deslocar pela cidade, a seus hábitos alimentares e à sua
compreensão de como lidar com o dinheiro, visto que o adolescente é beneficiário
do BPC e podia ter acesso a esse dinheiro para seu uso pessoal. Também foram
identificados progressos em relação à capacidade de R.S. se relacionar com as
pessoas à sua volta.
R.S. demonstrou melhores condições para desenvolver vinculações
positivas e acabou sendo adotado por uma ex cuidadora do SAICA, com quem
desenvolveu relação afetiva importante. Ao que se sabe, tudo vem correndo bem.
Considera-se que este caso ilustra uma exceção dentre tantos outros
discutidos no decorrer do ano.

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CASO 2:

Outro caso discutido foi o de uma mãe com cinco filhos das seguintes
idades: 13, 12, 10, 08 e 05 anos. O genitor das crianças abandonou a prole e não foi
encontrado pela justiça. A família morava em sítio afastado do centro urbano, sem
condições de higiene e proteção, faltando cuidados básicos para as crianças e
tratamento médico.
Das cinco crianças, três delas tem diagnóstico de deficiência intelectual.
Não frequentavam escola.
O acompanhamento da rede se deu por mais de quatro anos até o
acolhimento institucional. A mãe também tem deficiência intelectual e foi inserida na
APAE.
Foram realizadas ações quanto à situação socioeconômica, moradia e
orientações. Porém, foi negligenciado o tratamento médico de uma das crianças.
Família extensa não se dispôs a ajudar.
Depois do acolhimento institucional, novas intervenções foram feitas, mas
mãe verbaliza que as crianças estão mais bem cuidadas no serviço de acolhimento
do que com ela e começou a apresentar distanciamento da prole.

CASO 3:

Outra situação apresentada foi a do adolescente J.H.C.S., de 15 anos.


Genitora apresentava comprometimento de saúde mental, já falecida,
genitor tinha problemas com álcool e agredia o filho.
Desde tenra idade J.H.C.S ficou sob os cuidados da avó materna, que
declinou da responsabilidade diante de problemas de saúde, repassando para a tia
materna, que também padecia de problemas psiquiátricos.
J.H.C.S. sofre de distúrbio mental.
Acolhido em 23/12/2015, continua em acolhimento institucional, mãe
falecida e avó também. Família paterna se absteve de cuidar, pai visitou apenas
uma vez.

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No abrigo apresenta diversas situações comportamentais que são motivos


de queixa dos educadores, equipe técnica e demais acolhidos. Apresenta
agressividade exacerbada, chora, grita, bate nos demais, quebra e atira objetos.
CAPS IJ apresentou possibilidade de hospitalidade noturna quando em
surto, porém, aos 18 anos J.H.C.S. terá que ser desligado da instituição de
acolhimento.

5 - UM OLHAR SOBRE AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


INTELECTUAL: DIRETRIZES DO PROGRAMA ESTADUAL DE
ATENDIMENTO À PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL
(PEAPDI)

Em dezembro de 2012, por meio do Decreto nº 58.658 da Assembleia


Legislativa do Estado de São Paulo, instituiu-se o Programa Estadual de
Atendimento à Pessoa com Deficiência Intelectual: SÃO PAULO PELA IGUALDADE
DE DIREITOS (PEAPDI), considerando o disposto na Constituição Federal (em
principal os artigos 5º e 6º), o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, entre
outras leis e normativas.
Esse programa estabelece diretrizes para o trabalho das secretarias
estaduais no que tange a prevenção e atendimento a pessoas com deficiência
intelectual.
É resultado do diálogo e trabalho conjunto entre organizações da
sociedade civil e o governo, estabelecendo diretrizes para a atuação das secretarias
estaduais, conforme segue:
Secretaria Estadual de Saúde:
a) Implantar programas e ações voltadas à prevenção da Deficiência
Intelectual, especialmente ao acompanhamento de crianças de risco para o
desenvolvimento da Deficiência Intelectual;
b) Estabelecer protocolos para o Diagnóstico da Deficiência Intelectual,
bem como consolidar uma Rede de Referência para a realização do Diagnóstico
com indicação dos apoios necessários às pessoas com Deficiência Intelectual;

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Definir Política de atendimento para pessoas com Deficiência Intelectual


com maior necessidade de apoio e/ou vulnerabilidade, especialmente àquelas em
processo de envelhecimento.
Secretaria Estadual de Educação:
Incidir para que os CEI´s – Centros de Educação Infantil e EMEI´s –
Escolas de Educação Infantil, possam contar com profissionais capacitados para
detectar sinais de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor das crianças
matriculadas, visando uma intervenção precoce;
Garantir estímulo adequado ao desenvolvimento de crianças com
deficiência intelectual matriculadas na rede de atendimento;
Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social:
Garantir a inclusão da pessoa com DI na rede socioassistencial;
Mapear e organizar a rede de atenção à pessoa com DI no Estado de São
Paulo;

a) Definir política de atendimento para as pessoas com Deficiência


Intelectual adulta/idosa com maior necessidade de apoio e/ou vulnerabilidade social;

b) Formar os atores do Sistema de Proteção Básica e Especial sobre os


direitos e atendimento à pessoa com deficiência intelectual;
2) Fortalecer a rede de proteção à criança e adolescente com deficiência
intelectual no Estado, prevenindo e enfrentando as ações de violência sofridas por
esta população;
3) Integrar a atuação e planos de trabalho dos Conselhos de Assistência
Social e da Pessoa com Deficiência, visando maior integralidade das ações e
resultados.
4) Secretaria Estadual do Emprego e Relações do Trabalho:

a) Incentivar a contratação de pessoas com Deficiência Intelectual no


mercado de trabalho;

b) Consolidar um sistema de busca ativa de candidatos para a


Qualificação Profissional;
c) Incentivar o “emprego apoiado” como uma oportunidade de inclusão da
pessoa com Deficiência Intelectual no mercado de trabalho;
d) Criar estratégias para o financiamento de Programas de Capacitação e

30
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Inclusão Profissional voltadas à pessoa com Deficiência Intelectual;


Realizar estudo longitudinal da inclusão da pessoa com deficiência
intelectual no mercado de trabalho.
Secretaria Estadual de Esporte, Lazer e Juventude:
Incentivar à inclusão da pessoa com deficiência intelectual nos jogos e
atividades esportivas do calendário da Secretaria;
Fomentar e incentivar a participação de todos os alunos, incluindo os
alunos com Deficiência Intelectual, nas Olimpíadas Escolares;
Formar os profissionais que atuam na Secretaria, prioritariamente os
técnicos esportivos, com vistas a incentivar a inclusão pelo Esporte e ofertar os
apoios específicos à pessoa com deficiência intelectual;
Financiar projetos que fomentem a inclusão pelo Esporte.
Secretaria Estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania:
Formar os atores do Sistema de Justiça sobre a Deficiência Intelectual,
direitos e paradigmas;
Articular e mobilizar a rede de Defesa de Direitos, de competência da
Secretaria, para que tenham informações qualificadas sobre a deficiência intelectual.
Secretaria Estadual do Desenvolvimento Econômico, Ciência e
Tecnologia:
Disseminar boas práticas de inclusão, especialmente profissional da
pessoa com deficiência intelectual;
Realizar estudos e pesquisas em favor da prevenção, inclusão e melhora
da qualidade de vida da pessoa com Deficiência Intelectual.Secretaria de Estado dos
Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo:
Gerar e disseminar conhecimento sobre a Deficiência Intelectual por meio
de publicação de pesquisas, protocolos específicos, artigos de interesse, entre
outros;
Incentivar e promover a realização de Seminários, Encontros, entre
outros, que fomente a troca de informações e amplie o conhecimento acerca da
Deficiência Intelectual;
Assessorar a formação dos atores envolvidos com a temática da
Deficiência Intelectual, direitos e paradigmas;

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Monitorar a execução do Programa Estadual de Atendimento à Pessoa


com Deficiência Intelectual a ser implantado no Estado de São Paulo.
Entre os princípios do PAPEDI estão o reconhecimento, a garantia e a
promoção dos direitos da pessoa com deficiência intelectual, o respeito à
diversidade, a igualdade, equidade e a justiça social, além da participação da
sociedade civil como instrumento de controle social e de implantação das ações e
transparência do poder público.
Diante dos casos relatados no presente estudo, percebe-se haver um
caminho extenso a se percorrer para garantia dos direitos elencados.
Ainda se verifica uma rede fragmentada, encaminhamentos infindáveis,
pouca oferta de serviços especializados e de estimulação precoce, falta de incentivo
ao emprego, dificuldades na inclusão escolar, entre outras situações.
Porém, com o intuito de reintegrar as crianças e adolescentes em medida
de proteção de acolhimento às suas famílias, os órgãos e as instituições,
materializadas pelas ações desenvolvidas pelos/as seus/suas diversos/as
técnicos/as e representantes, devem unir esforços para promover a efetivação de
suas responsabilidades e atribuições, sob a ótica do melhor interesse da
criança/adolescente.

6 - REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (RAPS): PROCESSO DE


TRANSIÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PESSOAS COM
TRANSTORNOS MENTAIS

A luta pelo fim das instituições manicomiais no Brasil iniciou no final da


década de 70, quando movimentos dos trabalhadores da saúde mental, unidos a
familiares e pacientes, evidenciaram abusos ocorridos nas instituições e a
necessidade de mudanças na política de tratamento da pessoa com transtorno
mental.
Em 18 de Maio em 1987, foi realizado o primeiro encontro de movimentos
favoráveis à reforma psiquiátrica no Brasil, tornando o dia 18 de maio o Dia de Luta
Antimanicoial.
A reforma psiquiátrica visa o fim dos manicômios que seriam substituídos
por serviços comunitários, objetivando proporcionar tratamento ambulatorial,
atendimento psicológico, oficinas diversas, lazer e cultura, no intuito de garantir o

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desenvolvimento e o exercício da cidadania, fortalecer os vínculos familiares dos


pacientes e evitar o isolamento.
A partir disso, diversas leis foram instituídas. Ficou estabelecido que não
se construísse mais hospitais psiquiátricos, fosse ampliado o atendimento no modelo
ambulatorial e a família retomou um papel fundamental e de maior responsabilidade
nos cuidados da pessoa com transtornos mentais.
O primeiro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) foi criado em São
Paulo em 1987, sendo modelo para a implantação em outros lugares do país,
buscando ofertar um tratamento mais humanizado.
Para substituir as instituições e as longas internações é necessário um
trabalho amplo, com oferta de serviços em espaços diferentes e que se articulem
para garantir o atendimento especializado.
Assim, em 23 de dezembro de 2011, o Ministério da Saúde instituiu a
Rede de Atenção Psicossocial, por meio da Portaria nº 3.088:

Art. 1º Fica instituída a Rede de Atenção Psicossocial, cuja finalidade


é a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde
para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas,
no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Conforme o Art. 5º da Portaria nº 3.088, a Rede de Atenção Psicossocial


(RAPS) é constituída pelos seguintes componentes:
I - atenção básica em saúde, formada pelos seguintes pontos de atenção:
Unidade Básica de Saúde;
equipe de atenção básica para populações específicas:
Equipe de Consultório na Rua;
Equipe de apoio aos serviços do componente Atenção Residencial de
Caráter Transitório;
Centros de Convivência;
- atenção psicossocial especializada, formada pelos seguintes pontos de
atenção:
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), nas suas
diferentes modalidades;

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- atenção de urgência e emergência, formada pelos seguintes pontos de


atenção:
SAMU 192;
Sala de Estabilização;
UPA 24 horas;
portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro;
Unidades Básicas de Saúde, entre outros;
- atenção residencial de caráter transitório, formada pelos seguintes
pontos de atenção:
Unidade de Recolhimento;
Serviços de Atenção em Regime Residencial;
- atenção hospitalar, formada pelos seguintes pontos de atenção:
enfermaria especializada em Hospital Geral;
serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com
sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack,
álcool e outras drogas;
- estratégias de desinstitucionalização, formada pelo seguinte ponto de
atenção:
Serviços Residenciais Terapêuticos; e
- reabilitação psicossocial.
Na RAPS, o CAPS é considerado o principal serviço em alternativa ao
modelo asilar e também como um “articulador central”. Apresenta-se nas
modalidades I, II e III, AD (álcool e outras drogas) e IJ (infanto-juvenil).
Como apontado, há serviços previstos além dos CAPS´s, como os
Serviços Residenciais Terapêuticos, os Centros de Convivência e Cultura, as
Unidades de Acolhimento, leitos psiquiátricos, entre outros, porém, a oferta ainda é
insuficiente para garantir a atenção integral.
Entretanto, cabe ressaltar a falta de investimento estatal no SUS como um
todo, o que interfere diretamente no atendimento das demandas da saúde mental e
consequentemente, nas ações judiciais, em que o poder judiciário é convocado a
agir diante da violação de direitos.
Há que se salientar ainda a aprovação em dezembro de 2016 da
chamada “PEC do Congelamento dos Gastos”, que limitou o crescimento dos gastos

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públicos pelos próximos 20 anos ao percentual da inflação dos 12 meses anteriores,


possibilitando manter anualmente apenas o mesmo poder de compra do Orçamento
público, impedindo novos investimentos em todas as áreas, inclusive na saúde.
Conforme Fleury e Ouverney (2008):

A construção da política de saúde como política social envolve


diversos aspectos políticos, sociais, econômicos, institucionais,
estratégicos, ideológicos, teóricos, técnicos, culturais, dentre outros,
tornando-se muito difícil isolar a participação de cada um deles em
um momento definido. Como atividade de proteção social, a política
de saúde se coloca na fronteira de diversas formas de relação social,
como a relação entre gestores e atores políticos de unidades
governamentais e empresas, entre indivíduos e grupos sociais
(famílias, grupos ocupacionais, religiosos, entre outros), entre
cidadãos e os poderes públicos, entre consumidores e provedores de
bens e serviços etc. A ação da política de saúde sobre essas formas
de relação é diferente em cada caso e envolve estratégias, planos,
instrumentos e processos mediados por instituições e significados
culturais (p.17).

Pontuam também que:

A relação entre políticas de saúde, como as demais políticas


sociais, e economia é, na maioria das vezes, uma relação tensa,
pois os governos costumam ver as políticas sociais como áreas de
gasto, e não de produção. Nos momentos de crise econômica e
contenção de gastos governamentais, a área econômica do
governo impõe limites aos gastos sociais para a preservação do
equilíbrio financeiro (p.25).

Compreende-se assim que a Reforma Psiquiátrica é fruto de luta,


contudo, não se pode abrandar e perder de vista a dinâmica política que influencia
diretamente a implantação das mudanças propostas para a saúde mental.
A luta pela aplicação da lei e pela conclusão da Reforma Psiquiátrica deve
persistir mesmo neste contexto de retirada de direitos.

7 - A CENTRALIDADE DA FAMÍLIA NO CUIDADO DAS CRIANÇAS E


ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E/OU
TRANSTORNOS MENTAIS E A SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO

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A partir da Constituição Federal de 1988, a família passou a ser foco


principal das ações das políticas públicas, sendo entendida como espaço
privilegiado de proteção. Todavia, permanece a responsabilidade do Estado de
amparo às famílias, garantindo-lhes serviços, programas e benefícios para proteção
de seus membros.
Segundo Mioto (2008), quando a família é tida como o pilar central da
proteção social, a modalidade de proteção social praticada é o “familismo”.
A família ganhou relevância no âmbito das políticas sociais, apesar disso
é possível se perceber, conforme Pereira-Pereira (2014), a existência de
contradições e desconexões que não permitem uma visão realista sobre esse papel
de proteção social.
Pereira-Pereira (2008, p.201) afirma que o modelo de bem-estar pluralista
ou misto, o qual se vivencia hoje no Brasil, devolve à família e consequentemente à
mulher, “encargos de cuidado antes assumidos pelo Estado, dificultando sua
autonomia e restaurando, por esse meio, a desigualdade de gênero”.
Neste ponto é possível uma relação imediata com a pesquisa realizada
por este grupo de estudos, tendo em vista ser a mãe a principal visitadora das
crianças e adolescentes acolhidos, conforme pontuado anteriormente. Além disso,
nos casos apresentados notamos a presença preponderante da mulher, seja a mãe
ou avó materna, na tentativa de prover cuidado e corresponder às expectativas
sociais.
Neste mesmo aspecto, conforme Rizzini (2010), pesquisa realizada no
Rio de Janeiro no período de 2008-2010, intitulada “A família nos Dispositivos de
Cuidado”, que visava analisar as possibilidades de promoção do direito à
convivência familiar de crianças e adolescentes com transtorno mental e/ou
deficiência intelectual, observou que estas crianças/adolescentes demandam, em
sua maioria, “tratamentos intensivos e dispendiosos, implicando em grande
sobrecarga de cuidado e recursos financeiros de suas famílias” e também constatou
que fundamentalmente as mães estão à frente desse cuidado.
O estudo designou como “via sacra” os caminhos árduos e infindáveis
percorridos pela família “em busca de diagnóstico, tratamento e outras formas de
apoio no cuidado para seus filhos”.

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Importante destacar o direito das crianças e adolescentes com transtorno


mental e/ou deficiência intelectual, como de qualquer outra criança/adolescente, de
permanecer, prioritariamente, junto de suas famílias de origem, todavia, por vezes
asobrecarga e o desamparo não suportados geram situações de negligência,
abandono ou violência, que podem culminar na medida de acolhimento.
Observa-se ainda que quando há um adulto com deficiência intelectual
e/ou transtornos mentais como principal responsável, sua funcionalidade é avaliada
isoladamente, sem disponibilizar um suporte cotidiano para suprir os cuidados
necessários com a prole, dificultando a permanência das crianças/adolescentes na
família e, quando aplicada a medida de acolhimento, sua reintegração familiar.
A gravidade da questão das crianças institucionalizadas, conforme Rizzini
(2010):

(...) está na perspectiva de pessoas terem que passar toda a sua


vida em uma instituição total, sobretudo em função da precariedade
ou ausência de referências familiares e comunitárias. Neste caso, há
uma ausência completa da centralidade familiar. A ideia da
centralidade familiar, portanto, apresenta-se de forma dicotômica, já
que, se por um lado a família é totalmente responsável pelo cuidado
da criança ou adolescente e, por outro, a família está ausente no que
se refere ao desempenho deste cuidado. Esta lógica de tudo ou nada
parece apontar para as fragilidades dos desenhos das políticas
públicas no que diz respeito ao suporte às famílias envolvidas no
cuidado de seus filhos com deficiência e/ou transtorno mental. (p.7).

Percebe-se que o acolhimento institucional ainda é medida aplicada,


principalmente, nos casos de famílias que não dispõem de recursos financeiros
suficientes para prover seus membros, portanto, antes de se praticar o afastamento
familiar deve-se avaliar o quanto essa medida não desviará o foco de atenção na
proteção e terá cunho reajustador e culpabilizador, tanto da família quanto da
criança/adolescente, tomando em conta o seu comportamento exclusivamente.
No plano do acolhimento institucional, deve-se refletir sobre a
possibilidade de “(re)violação” dos direitos da criança quando acolhidas, pois como
alerta Rossetti- Ferreira et al. (2012, p.395), há a tendência de negligenciar a escuta
de crianças e adolescentes acolhidos.
Pode-se supor que essa escuta é ainda mais precária ao se tratar de
crianças e adolescentes com deficiência intelectual e/ou transtornos mentais.

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Assim, o destino “vai sendo traçado, frequentemente, sem o seu


conhecimento e participação. Desta forma, a criança desconhece as razões de estar
onde está, por quanto tempo permanecerá naquela situação e o que irá acontecer
com ela” (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2012, p.396), o que certamente a angustia e
prejudica seu cotidiano.
Além disto, as crianças têm seus vínculos afetivos fragilizados de
diferentes formas, como a ausência de ações que estimulem a manutenção e
reconstrução de vínculos afetivos com as famílias, uma vez que em razão do
acolhimento muitas das crianças e adolescentes desvinculam-se de suas famílias de
origem e, em virtude da idade ou longo tempo de acolhimento, as quais, geralmente,
não são inseridos em famílias substitutas. Nesta conjuntura, consequentemente, vão
permanecendo sem referências socioemocionais, imprescindíveis para apoio e
conquista de autonomia.
Outro fator, discutido pelo grupo, que piora este quadro é o reduzido
número de educadores qualificados, a sobrecarga de funções, que acarreta prejuízo
na qualidade da relação entre trabalhadores e crianças. Ressalta-se também, a
dificuldade em incluir as crianças e adolescentes na comunidade, em especial na
escola, em virtude do preconceito e isolamento a que estão sujeitos.

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8 - CONCLUSÃO

Crianças e adolescentes com deficiência intelectual e/ou transtornos


mentais são sujeitos de direitos, com suas personalidades, desejos, singularidades e
protagonismos. Necessitam ser ouvidas e incluídas.
É importante conhecer sua história de vida e suas aspirações, dando voz
e ofertando um trabalho individualizado, buscando formar o vínculo de confiança e
respeito.
Refletindo sobre a atuação profissional no judiciário perante estas
demandas, denotou-se a tendência de se vislumbrar com maior ênfase as
fragilidades dessas crianças/adolescentes bem como de suas famílias, culminando
na manutenção da institucionalização como a única saída.
O posicionamento dos técnicos do judiciário é sempre delicado, já que, é
construído a partir do histórico das demandas sociais e psicológicas que ressaltam a
impotência e a dificuldade do núcleo familiar, porém, este está arraigado na questão
social. Olhando para ele é preciso visualizar não apenas o que está aparente, mas
desvelar as possibilidades de superação, o que só é possível com o trabalho em
rede, incluindo o Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Sistema de
Saúde, Educação, representantes das Comunidades, entre outros atores.
Ainda é possível perceber a incidência de ações desvinculadas da
proposta legal, as quais, por vezes, espelham padrões históricos, como a
continuidade de práticas institucionais que levam ao desempoderamento e
dependência das crianças e dos adolescentes às instituições.
Por outro lado, depara-se com outro extremo: ignorar ou minimizar as
situações vivenciadas em decorrência da deficiência ou doença mental.
O mais preocupante é que, por vezes, a responsabilidade do Estado é
esquecida e a família, sem o devido aporte, vira alvo de intervenções de cunho
ajustador.
É necessário reconhecer as particularidades de atenção à saúde das
pessoas com deficiência e/ou transtornos mentais, não se atentando apenas às
crianças e adolescentes, mas também aos adultos que são seus cuidadores.
Sugere-se o desenvolvimento de pesquisas sobre contribuições efetivas,
trabalhos diferenciados, executados por equipes multiprofissionais, sejam de

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serviços públicos ou organizações da sociedade civil e que proponham a


interlocução entre setores primordiais como saúde, educação e assistência social.
É preciso criação de alternativas a educação formal, ampliação de
espaços culturais, de esportes, lazer, programas de acesso à cidade, transporte
acessível e gratuito, atendimento terapêutico individual e familiar, incentivo ao
trabalho assistido, dentre outros, além de benefícios específicos que visem melhorar
a qualidade de vida dessa população e de suas famílias, treinamento dos
profissionais para lidarem com as pessoas com deficiência e/ou transtornos mentais
etc.
Embora a atual conjuntura social e política do país têm caminhado
contrária a esse tipo de oferta, com uma rede cada vez mais enxuta, não é aceitável
o esmorecimento profissional, tendo em vista o compromisso ético-político assumido
profissionalmente.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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43
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:


PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E FUTURAS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO I”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

44
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COORDENAÇÃO:

Fabiana Aparecida de Oliveira – Assistente Social Judiciário – 2ª Vara da Comarca


de Campos do Jordão
Simone Trevisan de Góes – Psicóloga Judiciário – F.R. I Santana

AUTORES

Aline Cristina Carta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul


Ana Cláudia Sarpi Chiodo – Psicóloga Judiciário – FR. IV Lapa
Ana Paula Duarte Xavier Tutia – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santo André
Aparecida Regina Signori Dantas – Assistente Social Judiciário - Comarca de Santa
Fé do Sul
Daize Pereira dos Santos Oliveira – Assistente Social Judiciário – Vara Central
Elizangela Sanches Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales
Erica Fragoso Pacca – Assistente Social Judiciário – Comarca de Juquiá
Gessylea Matiole – Assistente Social Judiciário – Comarca de Aparecida
Giovani Diniz Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Leila Zanella – Assistente Social Judiciário – FR Ipiranga
Meire Obata Matsuo – Psicóloga Judiciário – Vara Central
Milene Podenciano Roque – Assistente Social Judiciário – Comarca de Palmeira
D´Oeste
Mônica Aparecida Mota Vale – Assistente Social Judiciário – FD Arujá
Monica Scarmanhani Garrote – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ilha
Solteira
Roberta Bechelli Duarte Migliaresi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém
Sarita Erika Yamazaki – Psicóloga Judiciário – FR. VI Penha de França
Silvia Vilela da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul
Vanessa Teixeira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
dos Campos
Veridiana Eloia Bandeira – Assistente Social Judiciário – FR. Itaquera
Viviane Cristina de Souza Caroli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba

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INTRODUÇÃO

Durante o ano de 2018 o Grupo de Estudos Adoção I propôs-se a estudar


o Estatuto da Criança e do Adolescente e mais especificamente o Projeto de Lei
394/2017, intitulado “Estatuto da Adoção”. Como metodologia realizamos leitura e
discussão do PL e de textos correlacionados e participação de profissionais
engajados na discussão, o psicólogo judiciário Carlos Nakamura e a defensora
pública, Dra. Ana Carolina Schwarn.
A escolha por esse tema adveio dos questionamentos quanto às
mudanças definidas pela Lei 13.509/2017 no que se refere aos impactos que a
redução dos prazos pode causar na efetivação do trabalho técnico, no processo de
vinculação dos adotados com os adotantes e na preparação dos pretendentes à
adoção.
Iniciamos apresentando uma perspectiva histórica da legislação referente
à criança e adolescente, culminando com a implantação do ECA – Estatuto da
Criança e do Adolescente em 1990. Continuamos com as alterações significativas
realizadas desde então no próprio estatuto, assim como demais leis e medidas
tomadas posteriormente. Por fim, apresentamos reflexões acerca do PLS 394/2017.

1 - ECA E PERSPECTIVAS HISTÓRICAS

O tema “proteção à criança” é corriqueiro. Comumente aparece nas rodas


de conversas, nos discursos políticos, nos grupos religiosos, entre outros locais.
Todavia, nem sempre o assunto é tratado com o respeito devido ou contempla a
complexidade existente na matéria. Segue breve histórico para melhor entendimento
do tema.
Segundo estudiosos, em 1890, o Brasil teve sua primeira legislação
específica para crianças e adolescentes. Na ocasião, quem tivesse entre 9 e 14
anos e se envolvesse em situações conflitivas com a lei, deveria passar por uma
avaliação, onde seria verificada a sua capacidade de discernimento do ato cometido
para, aí sim, receber a punição.
Posteriormente, em 1923, houve deliberação de que crianças até 14 anos
não poderiam ser punidas e, em 1927, foi instituído o primeiro Código de Menores,

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

onde se determinava a maioridade penal aos 18 anos e as demais crianças e


adolescentes, caso cometessem infrações legais, seriam encaminhadas para
instituições de “reforma” e “preservação”.
Na década de 40, são criados os reformatórios, que tinham por finalidade
receber os “menores abandonados” encaminhados pela justiça. Mais tarde, durante
a ditadura militar, esses locais deram espaço a FUNABEM (Fundação Nacional do
Bem Estar do Menor) e FEBEM (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor).
Em 1979, surge o segundo Código, onde se estabelece que os menores
de 18 anos que se encontrassem em “situação irregular” deveriam ficar sob a
proteção do Estado. Entendia-se por situação irregular, crianças e adolescentes
vítimas de violência que viviam em ambientes tidos como ofensivos à “moral e aos
bons costumes” ou com “desvio de conduta”, ou qualquer outra situação de “perigo”
que o poderia levar para uma “marginalização” maior. Pode-se dizer que o Código
era instrumento de controle social da infância e não uma medida de proteção a esse
público.
Nos anos 80, o Brasil estava imerso em um cenário de democratização
favorável à articulação dos movimentos sociais que lutavam em prol de melhorias
das condições de vida do povo e por alterações significativas na Constituição
Federal do país.
Criado em 1985, o “Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua” e
a “Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança” lutaram ardorosamente contra
as desumanas, bárbaras e violentas situações a que estavam subjugadas as
crianças e adolescentes pobres do país. Estava em debate nacional a omissão e
ineficácia das políticas sociais da criança e do adolescente e o papel do Direito e da
Lei na mudança social. Destacou-se a importância da participação da sociedade civil
no processo de mudança do panorama legal, imprescindível para o avanço e
alterações sociais e políticas e necessário para a democratização da sociedade e
melhoria das condições de vida da população, mais especificamente da criança e do
adolescente. Esta compreensão foi necessária para esse movimento se engajar e
fluir na elaboração da Constituição Federal com as campanhas “Criança e
Constituinte” e “Criança-Prioridade Nacional”.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A elaboração da proposta foi marcada por tensões, conflitos políticos e


divergências até a sua entrega ao Presidente da Assembleia, Ulisses Guimarães,
gerando propostas diferentes de outros segmentos da sociedade civil.
Entidades representativas elaboraram em junho/1987, a Emenda Popular
“Criança- Prioridade Nacional”, desencadeando uma mobilização social. Através
desta articulação surge o “Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-
Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente”, que passou a
ser o principal articulador da sociedade civil em defesa dos direitos da Infância e
Juventude junto ao Congresso Nacional e também da grande mobilização para a
inclusão da Emenda na Constituição. Vários parlamentares, devido às campanhas,
sentiram-se comprometidos e sensibilizados com o tema e representaram um
conjunto de esforços para incluir os artigos 227 e 228 na Constituição Federal.
Desenvolveu-se em nível social um processo de elaboração de um
anteprojeto para regulamentar os citados artigos, que resultou no Projeto de Lei
“Normas Gerais de Proteção à Infância e à Juventude”, apresentado à Câmara dos
Deputados com o apoio da deputada Benedita da Silva, com a finalidade de garantir
a precedência nos trâmites no Congresso.
Por meio da articulação dos movimentos sociais, das entidades não
governamentais, da opinião pública e imprensa internacionais que denunciavam o
extermínio de crianças e adolescentes carentes do Brasil foi criada a “Frente
Parlamentar pela Infância”, fazendo com que o Projeto tramitasse mais rapidamente
no Congresso. Em 25 de abril de 1990 foi votado pela casa e enviado à Câmara,
aprovado em 26 de junho de 1990. Foi sancionado pelo Presidente Fernando Collor
de Melo em 13 de julho de 1990, passando a vigorar no dia 14 de outubro de 1990.
É importante salientar que a substituição do termo “Código” por “Estatuto”
já indicou avanços e inovações extraordinárias. O “Código Penal do Menor”,
segundo Liberati (1991, p.13) vinha:

[...] disfarçado em sistema tutelar. Suas medidas não passavam de


verdadeiras sanções, ou seja, penas disfarçadas em medidas de
proteção. Não relacionavam nenhum direito, a não ser aqueles sobre
assistência religiosa; não trazia nenhuma medida de apoio à família;
tratava da situação irregular da criança e do jovem, que na verdade
eram seres privados de seus direitos.

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Na doutrina da situação irregular, as crianças e adolescentes eram vistos


como infratores, como objetos; por sua vez, o Estatuto da Criança e Adolescente
(ECA) introduz a doutrina da proteção integral e as crianças e adolescentes são
vistos como sujeito de direitos. Além disso, são vistos como pessoa em condição
peculiar de desenvolvimento e devem ser tratados com prioridade absoluta.
O ECA propõe em termos jurídicos uma ruptura com o passado secular
do Brasil e políticas públicas voltadas à infância e juventude. É um importante
instrumento de exercício de cidadania e politização dos cidadãos, estimulando-os a
participar das políticas direcionadas a eles. De acordo com AMORIM e OLIVEIRA
(1992), dentre as inovações, podemos enumerar:
- Abolição das categorias ideológicas e estigmatizantes dos termos
“menor” e “situação irregular”;
- Municipalização do atendimento dos direitos à assistência social e
proteção especial às crianças e adolescentes;
- Criação dos Conselhos da Criança e do Adolescente nas esferas
municipal, estadual e federal;
- Atuação dos Conselhos Tutelares em todos os municípios e bairros das
grandes cidades;
- Revogação do Código de Menores

2 - PRINCIPAIS PONTOS DAS LEIS QUE ALTERARAM AS


POLÍTICAS DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA

2.1 – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - 1990

 A criança e o adolescente têm direito a proteção integral e são


prioridade absoluta;
 Direito de ser criado e educado de preferência no seio de sua família;
 Princípio do melhor interesse;
 Preservação dos vínculos familiares;
 Medidas de proteção frente a ameaças e garantia de direitos;
 Acolhimento como medida de proteção excepcional e provisória.

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2.2 - PLANO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – 2004

 Assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, sendo


política pública organizada no Sistema Único de Assistência Social (SUAS);
 Trabalha de forma integrada com as demais políticas sociais:
educação, saúde, cultura, habitação;

 Atuação com foco familiar e realizada nos territórios, serviços próximos


aos usuários.

2.3 - PLANO NACIONAL DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA – 2006

 Rompe com a cultura da institucionalização, prioriza a preservação dos


vínculos familiares e comunitários;
 Programas de proteção e auxílio à família;
 Qualificação dos serviços de acolhimento institucional condizentes com
as necessidades da criança e do adolescente;

 Adoção centrada no interesse da criança.

2.4 - LEI NACIONAL DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA (LEI


12.010/2009)

 Tempo máximo de acolhimento em dois anos;


 Revisão da situação da criança a cada seis meses pelo Tribunal de
Justiça;
 Plano individual de atendimento (PIA);
 Trabalho com as famílias;
 Direito de defesa dos pais;
 Enfatiza o respeito à escuta e opinião das crianças e adolescentes.

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2.5 - LEI NACIONAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA (0 A 6 ANOS) - LEI 13.257/2016

 É dever do Estado estabelecer políticas públicas, programas e serviços


para a primeira infância que atendam às especificidades dessa faixa etária, visando
garantir o desenvolvimento integral.

2.6 - DEPOIMENTO ESPECIAL - LEI 13.431 /2017

 Estabelece um sistema de garantias de direitos da criança e do


adolescente vítima ou testemunha de violência.

2.7 - MODIFICAÇÃO DO ECA

 Lei 13.509 de 22 de novembro de 2017 cria novas regras para agilizar


a adoção, reduzindo prazos e iniciativas garantidas pela Lei 12.010/09 em relação
ao direito à convivência familiar e comunitária;
 A reavaliação da situação da criança acolhida deve ocorrer a cada três
meses (audiência concentrada) – sua permanência máxima no acolhimento deve ser
de um ano e oito meses;
 Prazo para os adotantes ingressarem com ação de adoção passa a ser
15 dias;
 Estabelece o direito de sigilo da mãe que desejar entregar o filho na
maternidade;
 Implantação do programa de apadrinhamento afetivo nas Comarcas;
 Prazo do estágio de convivência de 90 dias, podendo ser prorrogado
por igual período;
 Altera a nomenclatura de família substituta para família adotiva;
 Altera prazo para o Ministério Público (MP) entrar com a ação de
Destituição do Poder Familiar (DPF) em 15 dias;
 Autoriza nomeação de peritos, que não sejam do Poder Judiciário para
avalições técnicas;
 Reduz as diligências dos oficiais de justiça e outros meios na busca
pela família da criança, priorizando a celeridade processual em detrimento do direito
intransponível dos genitores;

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 Dispensa a nomeação de curador público nas ações de DPF, quando


propostas pelo MP;
 Prevê a preparação da criança para colocação em família substituta
dentro do prazo de conclusão da ação de DPF;
 Reduz o prazo para a retratação do consentimento dos titulares do
poder familiar;
 Prevê a inclusão dos grupos de apoio no programa de preparação dos
pretendentes à adoção, no contato desses com as crianças e adolescentes
acolhidos;
 Muda o prazo para reavaliação dos pretendentes à adoção
cadastrados para três anos e reavaliação após três recusas injustificadas;
 Em caso de devolução, prevê exclusão dos pretendentes do cadastro
de adoção;
Estabelece prazo para o procedimento de habilitação ao cadastro de
pretendentes.

2.8 - MODIFICAÇÕES NA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS

 Estende a estabilidade provisória ao adotante com guarda provisória


para fins de adoção, antes garantida somente às gestantes;
 Equiparação legal da adoção com a maternidade biológica, inclusive no
direito ao descanso para amamentação.

2.9 - PROJETO DE LEI ESTATUTO DA ADOÇÃO

 Retira do ECA as medidas de proteção reduzidas à adoção;


 A adoção passa ser considerada como política pública.

3 - PL 394/2017 “ESTATUTO DA ADOÇÃO”- REFLEXÕES CRÍTICAS

Segundo o senador Randolfe Rodrigues, sobre a temática da adoção, o


Instituto Brasileiro de Direito de Família- IBDFAM ofertou/apresentou “uma proposta
de um texto normativo que atendesse às expectativas da sociedade e da
comunidade jurídica em relação ao regramento das adoções no Brasil”, a qual teria
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sido elaborada após “amplo debate de grandes especialistas do tema”, citando o


nome de alguns juristas e participação de representante da Associação Nacional dos
Grupos de Apoio a Adoção. – ANGAAD.
Nesse contexto, o senador redigiu um discurso falando de sua
compreensão sobre a morosidade dos processos de adoção, os equívocos de
interpretação da lei e os entraves que a busca a “qualquer custo” da reinserção da
criança a sua família de origem ou extensa, geram às crianças que esperam ser
adotadas e, entre outras justificativas, apresenta o texto do IBDFAM como projeto de
lei nº394/2017 que dispõe sobre a criação do chamado “Estatuto da Adoção”.
O referido projeto propõe uma nova sistematização para a adoção,
criando um estatuto próprio, retirando do ECA o ordenamento jurídico do tema.
Nesse cenário, a doutrina da proteção integral é descaracterizada e o Estatuto limita-
se à dimensão infracional dos adolescentes em conflitos com a lei.
Tendo como um dos objetos de estudo neste ano de 2018 a análise crítica
do referido Projeto de Lei, o grupo observou que o Estatuto da Adoção propõe
medidas que ferem a garantia do direito à convivência familiar e comunitária.
Importa esclarecer que fortalecer os vínculos familiares e comunitários
das crianças e adolescentes para assim romper com a cultura da institucionalização
é uma proposta debatida e construída por representantes governamentais, pela
sociedade civil organizada e por comissões internacionais, tendo como resultado a
elaboração do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de
Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.
Sendo assim, verifica-se que garantir a permanência de crianças e
adolescentes em sua família de origem ou extensa é uma temática presente nas
políticas públicas do Brasil. Logo, o acolhimento institucional ou familiar e eventual
inserção em família substituta devem ser entendidos como últimos recursos a serem
utilizados, pois implicam em restrições de direito da criança ou adolescente.
Observa-se que a proposta do PL é oposta à legislação vigente quando,
no Capítulo IV – Preferência da Reinserção Familiar, o artigo 21 propõe que em
qualquer situação de negligência, maus tratos ou abuso contra criança ou
adolescente seja procedido seu imediato afastamento do convívio familiar e
encaminhamento para acolhimento institucional.

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Dessa forma, culpabiliza-se a família pela situação de vulnerabilidade e o


Estado se desresponsabiliza de proteger os vínculos de pertencimento das crianças
e dos adolescentes, provocando-lhes afastamentos e rupturas.
As legislações vigentes buscam superar as antigas práticas
assistencialistas e institucionalizantes por meio de operacionalização de ações e
estratégias de apoio socioeconômico que priorizem a preservação dos vínculos
familiares e a proteção de crianças e adolescentes no seio de suas famílias.
Sendo assim, a inclusão em programas de orientação e auxílio como
alternativa que possibilita o fortalecimento das capacidades protetivas das famílias
está prevista e deve ser priorizada em detrimento à institucionalização.
Logo, pode-se observar que o PL é oposto aos princípios legitimados no
ECA quando propõe em seu artigo 23, parágrafos 1º e 2º que, se após o prazo de 15
dias a família de origem ou extensa não reivindicar a criança ou adolescente
“recolhido”, haverá sua entrega sob guarda à pessoa habilitada para adoção.
Avaliamos que o prazo fornecido é exíguo para a elaboração de
diagnóstico e construção do Plano Individual de Atendimento previsto no ECA em
seu artigo 101, §4º, e insuficiente para a operacionalização do trabalho técnico na
busca por familiares da criança ou adolescente acolhidos, sendo desconsiderada,
ainda, a fragilidade emocional da criança e do adolescente recém afastado de seu
convívio familiar e comunitário.
É nítido, então, que a redução de prazos processuais proposta no
decorrer do PLS ajudaria a romper vínculos e não preservá-los, privilegiando assim
os interesses de pretendentes à adoção em detrimento ao direito da criança e do
adolescente em permanecer em sua família natural.
Cabe pontuar que, no citado artigo, chama atenção também a utilização
do termo “recolhidos” para designar a situação de crianças e adolescentes
colocados em instituição. Tal nomenclatura foi substituída durante o processo de
reordenamento dos parâmetros legais que buscam garantir a proteção integral
desses sujeitos, materializado no ECA,.no qual as crianças e adolescentes devem
ser protegidas pelo Estado e “acolhidas” institucionalmente, repita-se, apenas em
caráter excepcional e provisório.
Outro termo empregado no documento é “autoridade parental” (art. 15 do
PL), que remete a uma posição hierárquica superada após a adoção da doutrina da

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proteção integral, sendo denominado no ECA o termo Poder Familiar como o


conjunto de direitos e deveres a ser exercido em igualdade de condições pelos pais
em relação a seus filhos, abrangendo a família extensa.
Ainda no que se refere aos prazos reduzidos trazidos pelo PLS, percebe-
se que uma das finalidades é proporcionar maior celeridade do respectivo processo,
levando em consideração que o número de pretendentes é maior que o número de
crianças/adolescentes disponíveis para adoção. Um dos temas tratados é
relacionado com o estágio de convivência e reintegração familiar que, pela nova lei,
ficaria fixado prazo limitado.
Entende-se que o estágio de convivência é o período de integração entre
as pessoas envolvidas no processo de adoção, visando estabelecer bases sólidas
para um relacionamento harmônico de caráter afetivo.
O estágio de convivência é de vital importância não só para o
entrelaçamento entre as pessoas, mas também para a exploração e entendimento
de dificuldades e questionamentos, sendo um período propício para fazer brotar o
afeto.
O encurtamento dos prazos visando agilização no término dos processos
de adoção nos parece um equívoco. A realidade é que o andamento de uma ação
judicial deste mérito envolve questões tanto processuais, como psicossociais e, por
isso, exigem tempo para desenvolvimento. Compreende-se que o trabalho
desenvolvido com as famílias, no sentido de vinculação afetiva, muitas vezes é
maior que o tempo estabelecido e esperado no âmbito jurídico. Em meio ao
processo a família tem a oportunidade de empoderamento, de crescer/evoluir, de ser
trabalhada e moldada para o melhor interesse da criança/adolescente.
Prazos encurtados podem ser aparentemente positivos ao servir como
referência, todavia, acarretará prejuízo ao trabalho, no processo de vinculação dos
adotados com os adotantes, na preparação dos pretendentes a adoção, na
procura/atendimento da família, não atendendo ao melhor interesse da
criança/adolescente.
Observamos também a redução de prazos para trabalho e avaliação das
condições da família de origem em reestabelecer cuidados das crianças e
adolescentes em situações de acolhimento. Ressaltamos, do ponto de vista técnico,
impossibilidade de padronizações nesse sentido e que a localização e identificação

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da família com a política de atendimento, assim como o trabalho desenvolvido para


reintegração familiar leva o tempo necessário exigido por cada caso em suas
particularidades. Enfatizamos a importância de mais e melhores políticas públicas,
visando promover e fortalecer as possibilidades de crianças/adolescentes
permanecerem em sua família.
Importante pontuar nessa análise que a proposta de Estatuto aqui
estudada, traz em seus artigos a previsão expressa de uma modalidade de adoção
direta, na qual os genitores (o PL fala apenas na genitora) poderiam, não só entregar
o filho à adoção, como já previsto na legislação vigente, mas também indicar quem
seriam os adotantes.
Hoje, esse tipo de adoção direta é ilegal e vai de encontro ao
procedimento de adoção pelo Cadastro Nacional de Adoção, o qual ocorre dentro
dos parâmetros da lei, com acesso do Judiciário e atuação das equipes técnicas. O
sistema tem como um dos seus objetivos evitar a burla da lista de espera de
candidatos devidamente avaliados e coibir adoções popularmente conhecidas como
“adoção à brasileira”, que por vezes representa ações criminosas, como tráfico de
crianças.
A implantação do CNA em abril de 2008 pelo CNJ teve como escopo o
cruzamento de informações entre pretendentes judicialmente habilitados e crianças
disponíveis à adoção; agilizar os procedimentos relativos ao encaminhamento de
crianças e adolescentes à adoção; racionalizar o sistema e evitar a multiplicidade de
pedidos junto aos envolvidos. De um modo geral, percebemos que o Estatuto, ao
prever outros meios de se concretizar adoção, enfraquece o sistema criado pelo
CNJ.
Apesar de o PL trazer a previsão legal da entrega direta, não esmiúça
como isso se daria ou se regulamentaria, ou mesmo como se faria a atuação técnica
nessa conjuntura e as estratégias para controlar, identificar e evitar situações de má-
fé ou criminosas. Assim, entendemos que essa modalidade deve ser mais bem
debatida do que a maneira em que se encontra no PLS, uma vez que representa a
possibilidade de crianças serem expostas a adotantes sem preparo psicossocial ou
jurídico e facilitar meios paralelos de adoção.
Percebemos ainda que, dentre as alterações propostas no PLS, encontra-
se a retirada da titularidade do Ministério Público em promover ações de destituição

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do poder familiar (ou autoridade parental, no caso da terminologia utilizada na


proposta), ampliando tal competência a outros atores que tem papéis distintos no
atendimento ou na relação com a criança e o adolescente, como dirigentes das
instituições de acolhimento, padrinho afetivo e guardião.
Considerando os parâmetros legais vigentes, sob a perspectiva da
proteção integral e do direito à convivência familiar e comunitária enquanto direito
fundamental assegurado constitucionalmente, a atribuição do Ministério Público é
muito mais ampla e visa assegurar os direitos das crianças e adolescentes. No caso
da aplicação da medida de proteção de acolhimento, cabem ao MP a requisição e
acompanhamento do trabalho da rede de serviços, através dos relatórios
apresentados, verificando as providências tomadas e os resultados, tendo em vista o
melhor interesse da criança e do adolescente. Tais intervenções, pautadas no PIA
da criança ou adolescente, no qual são traçadas metas e plano de trabalho junto à
família de origem, demandam tempo para se chegar a resultados e tem como
primazia a manutenção dos vínculos familiares. Quando há necessidade de
encaminhamento à adoção cabe ao MP a propositura da ação de destituição do
poder familiar, um processo em que ocorrerá avaliação pela equipe técnica do juízo
e no qual os genitores terão o direito ao contraditório.
Como já mencionado, o PL estipula prazos reduzidos para diversas
proposições, incluindo a ação de destituição da “autoridade parental”. Tais medidas,
ainda que sob a justificativa de reduzir o tempo de acolhimento e oportunizar a
convivência familiar, parecem atender aos anseios dos adotantes, possibilitando um
número maior de crianças com o perfil almejado disponível para a adoção em
detrimento do investimento e trabalho com as famílias de origem, considerando a
história da criança/adolescente e os vínculos já estabelecidos.
No que se refere aos Setores Técnicos do Poder Judiciário, em diversas
Comarcas do Brasil nos deparamos com equipes reduzidas ou com a inexistência de
equipes técnicas, sobretudo em cidades pequenas, onde muitas vezes quem realiza
as avalições são profissionais de serviços públicos da municipalidade. A composição
dessas equipes com profissionais efetivos, contratados através de concurso público,
é motivação de constante mobilização de associações e órgãos de defesa de
direitos no sentido de evitar a precarização do trabalho.

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Na contramão desse movimento, o PL propõe que, na ausência de


equipes técnicas, o Juiz poderá recorrer à nomeação de peritos, contribuindo para
um movimento recorrente na área jurídica, que é a terceirização dos setores
técnicos, reduzindo a atuação “a uma ação diagnóstica pericial” (conforme
documento do Movimento Pró Convivência Familiar e Comunitária).
Nessa perspectiva, ainda observamos uma série de artigos no PLS em
que atribuições técnicas são direcionadas aos grupos de apoio à adoção.
Observamos que 08 artigos preveem a possibilidade da participação de Grupos de
Apoio à Adoção em diversas áreas afetas à Infância e Juventude, como:
- no acompanhamento da família de origem ou extensa, quando a criança
e/ou adolescente é reinserida no núcleo familiar – artigo 24, parágrafo 1º e 25,
paragrafo 2º.
- na realização de estudo psicológico e estudo social de pessoa ou de
família acolhedora (artigo 36. paragrafo 3º) e de padrinho afetivo (artigo 45,
parágrafo 8º)
- no acompanhamento ao genitor, quando esse manifesta o interesse em
assumir a guarda do filho, conforme artigo 52, paragrafo 2º.
- no acompanhamento da pessoa a quem a mãe indicar que deseja
entregar o filho, conforme parágrafo 4º, do artigo 52.
- nas orientações a quem acolhe criança ou adolescente na forma de
guarda, artigo 61.
- no acesso aos registros dos cadastros de adoção, conforme artigo 93.
- na etapa preparatória dos postulantes à adoção, conforme 98 parágrafo
1º e 2º.
Observamos que os referidos Grupos representam interesses divergentes
e contraditórios, reforçando a possibilidade de julgamento moral sobre as famílias
biológicas, pautadas na ideia de que a ausência de condições materiais pode
legitimar a retirada de crianças de sua família de origem e que a inserção em família
substituta seria a única medida cabível.

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4 - CONCLUSÃO

Em nosso trabalho procuramos retomar a história e o caminho percorrido


até a homologação do ECA em 1990, que até hoje é considerado um referencial
internacional no tocante aos direitos da criança e adolescente. Observamos que,
apesar de na prática não ter sido completamente implantado, desde então sofreu
diversas alterações, estando em constante mudança, que nem sempre
consideramos positivas. O PL 394/2017 mostrou-se como um exemplo de alteração
que consideramos prejudicial, uma vez que enfraquece o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Faz-se necessário mencionar a preocupação discutida durante o ano em
relação à lógica “menorista” que parece ser retomada pelo PL, até então, combatida
pelo ECA, quando retira deste o papel da proteção integral e o restringe à
abordagem do envolvimento com ato infracional. A escassez de artigos que
contemplem a participação e a voz da criança e do adolescente no processo que lhe
diz respeito é inquietante, uma vez que lhe nega o papel de protagonista de sua
própria história.
Assim, pelo que se expôs até o momento, resta evidente o retrocesso
representado pelas propostas trazidas pelo Projeto de Lei aqui estudado, uma vez
que se distancia do ECA e demais políticas de proteção à criança e ao adolescente,
desviando os holofotes da proteção integral para à adoção como sua principal, se
não exclusiva, medida.
Entendemos que as propostas trazidas pelo Estatuto da Adoção expõem
diretamente populações vulneráveis às suas consequências, remetendo à
culpabilização e criminalização da pobreza, assim como à objetificação da infância e
juventude em uma distorção da primazia de seus direitos e proteção integral,
depositando nas famílias responsabilidades que deveriam ser compartilhadas com a
sociedade e o Estado, o qual parece se eximir de seu papel.
Anterior à finalização do presente trabalho, em 17/10/2018 o IBDFAM
divulgou nota pública onde reconsiderou o PL 394/2017. Na referida nota o IBDFAM
fala sobre “a grande resistência sociopolítica” sofrida pelo “Estatuto da Adoção”,
reconhece que na atual conjuntura o ECA deve ser fortalecido e ainda chama

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atenção para os casos das “crianças e adolescentes invisíveis”, casos que devem
receber atenção especial.
Durante este ano o grupo acompanhou apreensivo a possibilidade de
aprovação do referido projeto de lei, que significaria um retrocesso no que tange à
Proteção à Infância e Juventude. Houve a mobilização e organização da sociedade
civil, representada, principalmente, pelo “Movimento Pela Proteção Integral de
Crianças e Adolescentes”. Esta discussão nos mostrou que o ECA, apesar de ser
uma Lei considerada “avançada” ainda é frágil diante de outros interesses da
sociedade. Percebemos que a luta pela defesa e real efetivação do ECA é uma
constante no cotidiano dos profissionais comprometidos com o bem estar das
crianças e adolescentes do nosso país.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

AMORIM, Ester Maria, OLIVEIRA, Vanessa. TCC: O Processo de Institucionalização


da Criança e do Adolescente: Via de Mão Dupla. Julho de 1992 - Universidade
Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Serviço Social.

BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm Acesso em 13/06/2018.

BRASIL. Lei nº 12.010 de 3 ago. 2009. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm Acesso em
20/07/2018.

BRASIL, PLS nº 394, de 2017 Disponível em:


https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131275 Acesso
em15/05/2018.

https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Nota-Movimento-Pela-Protecao-
Integral.pdf Acesso em 23/07/2018
https://renansousa92.jusbrasil.com.br/artigos/254217814/as-medidas-de-protecao-
para-a-crianca-e-o-adolescente Acesso em 21/08/2018
Documento do Movimento Pró Convivência Familiar e Comunitária “Considerações
sobre o Estatuto da Adoção PLS n.º 394/2017 e a necessidade da Adoção ser
medida de proteção integral a ser mantida no ECA” -
https://www.neca.org.br/?p=7293 Acesso em 10/10/2018.

IBDFAM: Nota pública: o IBDFAM divulga nota pública sobre a manutenção, a


aplicação e o fortalecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.
www.ibdfam.org.br , acesso em: 14/11/2018.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ADOÇÃO: A ATUAL CONJUNTURA DO PAÍS VERSUS A


PROTEÇÃO INTEGRAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO II”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
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COORDENAÇÃO
Paula Puertas Beltrame – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Thabata Dapena Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jacareí

AUTORES
Alberta Emília Dolores de Góes – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itapecerica da Serra
Ana Roberta Prado Montanher – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Cristiane Calvo – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Cristina Rodrigues Rosa Bento Augusto – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional do
Ipiranga
Débora Nunes de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das
Artes
Elisângela Fraga Ferreira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jundiaí
Gracielle Feitosa de Loiola Cardoso – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Vargem Grande Paulista
Graziele Galindo do Vale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Indaiatuba
Jéssica de Moura Peixoto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão
Preto
Joelma Nascimento Carvalho – Assistente Social Judiciário – comarca de
Itaquaquecetuba
Juliana da Conceição Velloso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Luiza Gabriella Dias de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ferraz
de Vasconcelos
Maria Rosa Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional VII -
Itaquera
Nina Rosa do Amaral – Psicóloga Judiciário – Comarca de Amparo
Renata Dias Galan Sommerman – Psicóloga Judiciário – Foro Regional Penha de
França
Rodrigo Gonzales de Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itanhaém
Rute de Toledo Moraes – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Sabrina Renata de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Sheila Carneiro da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapevi
Silvia Videira Zaparoli – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba
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INTRODUÇÃO

Em 2018, o Grupo de Estudos Adoção II se voltou a analisar as recentes


alterações do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA -, advindas da Lei nº
13.507, aprovada em novembro de 2017, assim como dos demais projetos de lei que
ainda estão tramitando na esfera legislativa.
Além disso, discutimos o estímulo e criação de projetos de incentivo à
adoção, como os que visam à busca ativa, à adoção tardia, ao apadrinhamento
afetivo, à redução dos prazos processuais referentes à adoção e às alterações de lei
que apontam situações específicas para a destituição do poder familiar, como a Lei
13.715/2018, que vem ganhando força e espaço na atualidade, nas mídias. Em
contrapartida, neste cenário de mudanças, pouco se fala sobre a garantia dos
direitos de acesso às políticas públicas efetivas de acompanhamento e proteção das
famílias.
Assim, buscamos analisar como essas alterações estão diretamente
ligadas à atual conjuntura social e política do país, ponderando sobre as reais
motivações para as mudanças que vêm acontecendo, seus significados e impactos
na atuação de assistentes sociais e psicólogos/as, assim como para as famílias
inseridas no Sistema de Garantia de Direitos – SGD.

1 - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ALTERAÇÕES DO ECA


ADVINDAS DA LEI 13.509/2017

Para compreender as alterações realizadas pela Lei 13.509/2017, é


necessário situá-la em uma conjuntura social mais ampla, em um momento histórico
de ascensão do conservadorismo e de criminalização da pobreza, que sob o
discurso do melhor interesse e da garantia da convivência familiar tem violado o
direito de crianças e adolescentes de conviverem com suas famílias de origem,
considerando a família adotiva como espaço de cuidado e proteção privilegiado e
mais adequado às suas demandas e necessidades. Portanto, é partindo do
reconhecimento da contradição que está posta nessa legislação que se desvendam
as reflexões a seguir.

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Acerca da reavaliação dos processos de acolhimento, a referida Lei


determina que aconteça trimestralmente, mas não define parâmetros para sua
realização. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, determina no artigo 859
das Normas da Corregedoria que essas reavaliações se deem através de audiências
concentradas trimestrais.
Questionamos acerca de a quem serve as alterações aqui postas: às
crianças e adolescentes, às famílias de origem, às famílias adotivas ou ao Estado?
Sobretudo, partindo do pressuposto que a realidade das crianças e adolescentes
acolhidas envolve situações familiares complexas e que demandam ações efetivas
por parte da rede de proteção social pública. É válido considerar que se vive um
momento de intensa fragilidade e sucateamento das políticas públicas, assim, o
cenário que se vislumbra é de um agravamento da responsabilização individual das
famílias por não poderem cuidar de seus filhos, sem considerar o conjunto de
determinações mais amplas no qual estão inseridas, que sob a escusa do melhor
interesse e proteção de crianças e adolescentes tem priorizado a colocação em
família substituta, com a adoção assumindo cada vez mais o “status” de política
pública.
Refletimos que esta alteração promove implicações diretas no cotidiano
dos trabalhadores do Tribunal de Justiça e da rede de atendimento com escassos
profissionais que, ao se voltarem trimestralmente às audiências, poderão ter ainda
mais dificuldade de dar o atendimento às demandas que as famílias de fato
necessitam.
Outro aspecto se refere à judicialização e a efetivação da garantia de
proteção às mulheres em processos de entrega protegida: boa parte das alterações
na legislação é destinada à temática da entrega voluntária incluindo parâmetros e
prazos para estes processos.
Percebemos que em diversos artigos há divergências de procedimentos e
encaminhamentos com o provimento 43/2015 publicado pelo Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo e pela Cartilha de Orientação3 quanto à entrega voluntária de

3
Política de Atenção à Gestante: apoio profissional para uma decisão amadurecida sobre
permanecer ou não com a criança. Publicada em 2015 pela parceria entre o TJ/SP, e as Secretarias
de Estado do Desenvolvimento Social e da Saúde. Disponível em:
http://www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/873.pdf
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crianças e questionamos qual a possibilidade de que o sigilo da mulher que faz a


entrega protegida seja de fato assegurado.
A observação da experiência de algumas comarcas torna possível perceber
diversidades de procedimentos e encaminhamentos. Em alguns locais, foram
realizadas tentativas de alinhamento de entendimentos entre Ministério Público,
Defensoria Pública e Poder Judiciário com vistas a assegurar não só a efetivação,
mas também o cuidado e a proteção para a mulher no momento da entrega
voluntária.
Contudo, em todas as situações, observou-se a importância do contato
sistemático com a rede de serviços, com o objetivo de estabelecer formas de
cuidado e atenção à gestante que deseja entregar o filho de forma protegida. Mas,
há uma contradição que está posta: o direito da mulher de fazer a entrega, e o direito
da criança em permanecer na família de origem. Tal situação dependerá do
entendimento dos profissionais que atuam no caso, sendo que em algumas
situações a decisão da mulher acaba por não ser soberana. Outro aspecto em
aberto é a busca pela família extensa, o que nos faz novamente questionar como
fica a relação com o sigilo no processo de entrega protegida.
Quanto ao apadrinhamento afetivo, um dos pontos positivos foi a indicação
na Lei de que inscritos no Cadastro Nacional de Adoção não podem se habilitar ao
programa. Além disso, colocam-se parâmetros legais para o projeto de
apadrinhamento.
Muitas vezes, existe uma visão distorcida do que é o apadrinhamento: se há a
perspectiva da criança voltar para a família, é necessário ser apadrinhado? É preciso
problematizar a presença do padrinho somente na função de “levar para casa” face à
ausência de atividades ou metodologias da instituição de acolhimento.
No que se refere ao processo de habilitação de pretendentes à adoção,
observamos uma busca de celeridade para conclusão dos processos de habilitação,
materializada na indicação de prazos para sua efetivação. Embora não esteja
previsto legalmente, percebemos um movimento para que os cursos preparatórios
dos pretendentes à adoção sejam realizados virtualmente.
A partir das discussões foi perceptível que um grande desafio está posto -
como superar uma postura dual: ou família ou criança/adolescente? Como
intercambiar estes olhares? Como promover o que nos coloca Fonseca (2002,

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p.140), “o que consideramos o bem estar da criança sem atropelar os direitos de


seus pais?”, e acrescentaríamos, sem também deixar de oferecer cuidados aos
pais?
Como promover a justiça social sem perpetuar a violência simbólica
embutida na história da nossa legislação que, tradicionalmente, tem
estigmatizado pais pobres? [...] Constatamos uma situação paradoxal
em que o princípio igualitário, aplicado a uma sociedade de extrema
desigualdade, tende a servir como mecanismo ideológico que reforça
a desigualdade (FONSECA, 2002, p.140).

2 - REFLEXÕES SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO


PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Revisitar a temática de políticas de proteção à criança e ao adolescente


possibilitou-nos analisar e refletir criticamente sobre os avanços e retrocessos
apresentados nessas políticas direcionadas à infância e juventude, especificamente
no que concerne a sua colocação em família substituta na modalidade de adoção.
No texto de Becker4, observamos que a autora afirmou a relevância da
família para o desenvolvimento humano à luz dos dispositivos contidos nas normas
legais, documentos e tratados nacionais e internacionais acerca do tema.

É importante considerar que as normas legais mencionadas


centralizam a questão do direito que a criança tem de ser criada e
educada pela sua família, e ao mesmo tempo referem-se a
necessidade de proteger e assistir essa mesma família no adequado
exercício de suas funções. (p. 61)

Assim, passados quase 30 anos do advento do ECA e da LOAS,


observamos que houve um enfraquecimento do papel do Estado como órgão
responsável pela efetivação de políticas públicas protetivas à família, sobretudo
àquelas que vivem em vulnerabilidade social. Historicamente, a pobreza e a falta de
acesso a serviços essenciais como saúde e educação são consideradas fatores de
desproteção social das famílias pobres, as quais passaram a constituir público alvo
de políticas públicas, cumprindo centralidade em programas de auxílio.
4
“A Ruptura dos Vínculos: quando a tragédia acontece”, escrito na década de 1990, período histórico
de formulação de legislações que afirmaram a importância da efetivação de políticas públicas como
direito da população e dever do Estado, a exemplo do ECA (1990) e da Lei Orgânica da Assistência
Social – LOAS (1993).
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Recentemente, assistimos a ajustes econômicos promovidos pelo Estado


que reduzirão o investimento em políticas públicas pelos próximos vinte anos. Tais
medidas afetarão a capacidade das famílias mais vulneráveis em oferecer proteção
social para seus membros, sobretudo crianças, adolescentes, idosos e deficientes.
Neste cenário, observamos surgir forças sociais que buscam desconstruir
a defesa da proteção integral, pressuposto contido nas legislações vigentes para
garantia de direitos às famílias, inserindo a adoção como alternativa à superação de
uma possível incapacidade das famílias em prover a proteção de seus filhos.
O que tais movimentos desconsideram é que a desproteção e o risco
social são alimentados pela ausência de políticas públicas efetivas. Importante
destacar que não desconsideramos a existência de famílias abusivas e violadoras de
direitos, contudo, questionamos a efetividade dos programas de auxílio neste
contexto de precarização.
Ponderamos que a adoção não deve ser uma política pública em si
mesma, com risco de cometermos grave equívoco, desconsiderando o direito das
crianças e adolescentes de serem cuidados pela família de origem, com as quais
possuem vínculos afetivos e de pertencimento significativos.
O ECA trata a criança e o adolescente como pessoas em condição
peculiar de desenvolvimento, e, portanto, sujeito de direitos, e não como um objeto
do desejo do adulto. Assim, torna-se imprescindível compreender que possuem
desejos, sentimentos, vínculos, afetos, pessoas de referência e um local de
enraizamento.
Nos processos de adoção deveria prevalecer o interesse superior da
criança e do adolescente, sendo inversa a lógica do acionamento dos cadastros de
pretendentes à adoção, levando-se em conta prioritariamente os desejos do
adotando acerca do perfil de sua família.
As reflexões trazidas por Becker nos remetem à urgência de proteção da
infância em contraposição à desproteção de suas famílias de origem. Em muitas
situações, a defesa do direito da criança é deslocada do direito da família, e isso
dialoga com os debates atuais acerca de proposições e mudanças na legislação
vigente para a aprovação de um Estatuto da Adoção.

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3 - (DES) PROTEÇÃO SOCIAL: APONTAMENTOS SOBRE


NEGLIGÊNCIA

Para a reflexão desse tema, contamos com a participação da autora Thais


Berberian que discorreu sobre seus estudos no campo da avaliação de negligência e
questões éticas, oriundos de questionamentos da sua prática profissional, na área
da saúde, especificamente, na maternidade do Hospital Universitário da USP/SP.
O seu problema de pesquisa teve como gênese o uso banalizado do
conceito ‘negligência’ por diferentes serviços (CREAS, CRAS, UBS, VIJ,
Maternidade, etc.) e profissionais. O resultado de seu trabalho aponta para a falta de
consenso e do uso indiscriminado do termo para o trabalho com famílias,
principalmente, como forma de desqualificação nas mais variadas situações
cotidianas.
A autora abordou diferentes aspectos sobre a questão, possibilitando
refletir sobre a ‘desconstrução’ do uso da palavra em situações indevidas, como:
para expressar a ocorrência de eventos isolados, como sinônimo de pobreza, para
associar à cronicidade e a omissão, entre outros.
De acordo com Berberian, é preciso refletir que a palavra ‘negligência’
deve ser vista pelo prisma da complexidade, já que o fato de uma família produzir ou
não cuidados aos seus, está relacionado a fenômenos que não pertencem,
exclusivamente, à organização interna daquele grupo. Deste modo, é preciso
considerar o contexto mais amplo onde a família está inserida.
Assim, trouxe questionamentos variados: a família se organiza desse
modo por estar em uma classe social que não permite ter acesso adequado às suas
necessidades? A família pobre é omissa? É intencional? Como se pensa a
capacidade protetora das famílias em contextos adversos? E quanto às famílias
violadas de seus direitos?
Mencionou ainda as situações das crianças e dos adolescentes que se
encontram nos serviços de acolhimento institucional. Nestas, apontou que um dos
principais motivadores para essa medida protetiva se relaciona à palavra
‘negligência’, dentre outras violações.
Nessa perspectiva, oportunizou uma série de questionamentos: qual é a
nossa real expectativa e do Estado sobre a capacidade protetiva das famílias? Qual
é a “régua” que estamos usando para essa avaliação? Qual é o grau de proteção
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que temos como meta? E, ainda, como podemos no cotidiano de nossas práticas
provocar o Estado para proteger essas famílias?
De acordo com Berberian, há riscos ao avaliarmos a intencionalidade
sobre o que chamamos de negligência, já que esse crivo passa por aspectos
subjetivos, a exemplo do que vêm a ser cuidado, vínculo, rotina, condições de
higiene, maternagem/paternagem, aspectos culturais, entre outros – em que
podemos incorrer em implicações no campo da ética e da valoração moral. Desse
modo, podem ocorrer equívocos pela falta de clareza do papel profissional,
reforçando um lugar de coerção e controle, com avaliações moralistas, com
prescrição de condutas de novos comportamentos, entre outros.
A autora aborda aspectos relacionados ao cotidiano (rotina, volume de
trabalho) em que há o risco de entrarmos no ‘automatismo’ com a repetição de
situações com demandas semelhantes que podem ser vistas como iguais e,
portanto, também serem declaradas como negligência. Mencionou o risco de
espontaneismo e a necessária ‘suspensão do cotidiano’5 para o retorno com
reflexão.
Berberian alertou para a necessidade da reflexão, inclusive, sobre o que
estamos, cotidianamente, chamando de ‘rede’. Qual é a “rede” que temos hoje?
Quem são os atores que, assim como nós, também se encontram fragilizados?
Como lidar com a fragmentação de ações? Qual é o acompanhamento que as
crianças recebem no acolhimento? É a rede ou a família que não dá conta? Como
garantir direitos nesse cenário?
Discorreu sobre o contexto desfavorável no campo das políticas e práticas
sociais e de retração de direitos, principalmente, na atenção às famílias que vem
ocorrendo de modo fragmentado e paliativo.
Ponderou que as famílias, quando conseguem auxilio, isso
frequentemente ocorre através de suas redes primárias, que não são institucionais.
Quando o acolhimento institucional acontece, geralmente, evidencia-se a ausência
ou a fragilidade de vínculos/redes sociais.
Comentou ainda sobre o uso da ‘judicialização’ como forma ‘educativa’,
ou mesmo como castigo, do tipo: “agora, vai acordar para a vida”. Nessa

5
Conceito de Agnes Heller, autora que estuda a categoria ‘cotidiano’.

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perspectiva, reforçou que são raros os serviços de acolhimento institucional que


tratam a família e a criança com autonomia e que a tutela demonstra estar sempre
presente nestas relações institucionais.
Dentre diferentes reflexões e apontamentos, por fim, propôs a substituição
do uso da palavra negligência por um viés mais ampliado. Marcou ainda que, muitas
vezes, o nosso trabalho precisa ser direcionado inclusive para a ‘desconstrução’ do
que está dado como ‘negligência’. Sugeriu o uso de termo que proponha a reflexão
do leitor/interlocutor que saia do individual para a totalidade, ou seja, mais
abrangente e que aborde sempre a desproteção social a que estão submetidas as
famílias.

4 - MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A leitura da publicação “Primeira Infância e Maternidade nas ruas da


cidade de São Paulo”6 (2017), problematiza a evidente invisibilidade social da mulher
em situação de rua, que, ao engravidar e tornar-se mãe, passa a ser vista,
“principalmente aos julgamentos de uma sociedade que está mais propensa a
condenar moralmente do que oferecer acolhimento e cuidado” (RIOS, 2017, p.55).
Esta situação envolve tanto uma questão social como uma questão psíquica, sendo
necessário o desenvolvimento de um trabalho que consiga fazer frente a esta
demanda, atuando com a mulher desde o início da gestação.
Percebemos a existência de um fosso entre o que a lei preconiza em
relação à proteção integral e o que ocorre no cotidiano destas mulheres. Com a
leitura do texto, ficou premente a reflexão sobre a importância do que apontamos em
nossos laudos, em especial no atual momento de desmonte das políticas públicas e
dos serviços, além das recentes alterações no ECA. Os laudos elaborados pelo
setor técnico possuem uma função ética e política de apontar a existência ou não de
serviços, normalmente neles constam os encaminhamentos realizados, sem um
apontamento incisivo da ausência de políticas públicas e a consequente prática de
punir as mães.

6
Pesquisa da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, da Faculdade de Direito da USP.

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Discutimos sobre ser uma prática comum no judiciário o foco na criança,


como se seu universo não pertencesse, também, à mãe e sua família. Nosso
compromisso ético é só com a criança ou com todos os envolvidos?
Constatamos que uma situação em que tais reflexões se fazem presentes
é a questão das adolescentes acolhidas que tiveram filhos. A realidade profissional
nos revela que na maioria dos casos, quando estão prestes a completar a
maioridade, normalmente se trabalha a destituição do poder familiar destas
mulheres, sendo que geralmente o serviço de acolhimento não potencializa o
exercício da maternagem, negando inclusive que esta mãe/adolescente se
responsabilize pelo filho durante o período de acolhimento institucional. Lembrando
que a maternagem se constitui na relação mãe-bebê, como cobrar desta
adolescente um compromisso com esta função?

5 - MÃES ABANDONADAS: A ENTREGA DE UM FILHO EM


ADOÇÃO7

As conquistas legais advindas da implantação do Sistema Único de


Saúde determinam a priorização do atendimento da mulher gestante, no entanto,
observa-se a falta de capacitação e preparo dos profissionais para acolher a mulher
que deseja entregar o filho em adoção.
Segundo Motta (2014), ainda hoje são frequentes condutas
desrespeitosas e preconceituosas com estas parturientes. A começar pela utilização,
entre muitos profissionais, do termo abandono ao invés de entrega. Comumente
mulheres que manifestam o desejo de entrega da criança em adoção são julgadas
pela decisão, acarretando situações de desrespeito, por exemplo, quando são
obrigadas a permanecer com a criança em alojamento conjunto ou, o contrário,
quando não lhes é permitido ver a criança, mesmo que este seja seu único desejo
antes da entrega.
A autora ressalta a importância do processo de luto desta mãe, que
precisa receber o atendimento necessário e ser respeitada caso deseje amamentar
7
Trata-se de um estudo de caso feito em 1988, em uma instituição de São Paulo que oferece apoio e
acolhida à gestante. A pesquisa foi realizada com uma mulher de 27 anos, negra, com instrução
secundária, profissional do sexo. Depois de perder a guarda da primeira filha (com três anos de
idade) para a irmã, ela havia entregado uma criança em adoção e, na ocasião do estudo, estava
fazendo a entrega do terceiro filho. Esta mulher havia ficada órfã de mãe aos dois anos e com doze o
pai faleceu.
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ou ter a foto do filho para guardar de lembrança. Quando este luto não é elaborado,
são frequentes as gestações de repetições a fim de ocupar o vazio deste filho
entregue em adoção, mesmo que inconsciente.
O desrespeito é comum, não apenas em instituições de acolhida, mas em
muitos hospitais. Observa-se que na rede privada de saúde o preconceito e a falta
de informação entre os profissionais é ainda mais evidente que nos hospitais
públicos, dado o menor número de ocorrências de entrega.
Há ainda a realidade de muitas mulheres que chegam sozinhas ao
judiciário para fazer a entrega, evidenciando o abandono do pai da criança, que se
eximiu do compromisso com o bebê. Nesta ótica é como se o pai “tivesse o direito
de abandonar” sem ser julgado. Assim, a mulher se vê abandonada pelo pai da
criança e, muitas vezes, pelo Estado e pela família. Neste contexto, a entrega nem
sempre é uma escolha, mas a única alternativa.
Nesse sentido, enfatizamos o fato de que a mulher é eternamente julgada,
seja pela entrega, ao ser rotulada como alguém que “abandonou”, seja por decidir
ficar com a criança, caso não consiga cuidar adequadamente.
Esse julgamento se relaciona com o mito do amor materno onde a
maternidade é compreendida como algo da essência feminina. Maternidade é
construção, mas por uma questão cultural e de interesses econômicos, nossa
sociedade estabeleceu que a mulher “nasceu para ser mãe”. Assim, observa-se
grande pressão social para que ela permaneça com a criança.
Quando esta construção social é reproduzida na atuação de quem atende
as mulheres que manifestam o desejo de entrega, a questão é ainda mais
preocupante. Constrangidas, estas mulheres podem levar a criança consigo e
construir vínculos frágeis ou até mesmo optar por formas ilegais de entrega. Visando
a superação desta problemática, é importante a capacitação profissional e a criação
de espaços permanentes de discussão sobre o assunto, contribuindo para que
tenhamos profissionais mais qualificados nesta atuação.
Discutiu-se também o direito da mulher necessitar de um tempo maior
para a tomada de decisão, caso esta não esteja amadurecida, assim como seu
direito de mudar o pensamento após o parto.

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6 - REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Oliveira (2015)8 refaz a trajetória da adoção no sistema jurídico brasileiro,


apontando a recorrência do poder público e sociedade civil em privilegiá-la enquanto
uma maneira de “resolver” a situação de crianças e adolescentes acolhidos
institucionalmente. Ela também faz um resgate sobre o projeto que resultou na Lei
12010/09 demonstrando que, na origem, o projeto tinha propósito bem similar ao
atual PLS 394/17, ou seja, "desburocratizar" a adoção e que tal iniciativa/lógica não
prosperou face à importante luta e militância de grupos pró-convivência familiar.
Traçando um paralelo com nosso cenário atual (a adoção em detrimento a
proteção integral - a criança em disputa), passamos a fazer um comparativo de
ambos os cenários (2007/2008 e 2017/2018).
Antes da promulgação da Lei 12010/09, observamos a importância dos
movimentos liderados pela Pontifícia Universidade Católica e Associação dos
Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça de São Paulo (AASPTJ-SP),
somando-se ainda a participação de magistrados e deputados, atores estes de maior
força dentro do cenário jurídico/político, além de uma conjuntura com enfoque maior
na construção e efetivação de políticas de proteção às famílias mais vulneráveis.
Avaliando o contexto atual, o PLS 394 pretende criar o Estatuto da
Adoção de Criança ou Adolescente, cuja ideia é “simplificar” o sistema. A proposta
foi idealizada e elaborada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
que defende regras próprias para adoção, que não estejam inseridas no Estatuto da
Criança e do Adolescente e que encontram legitimidade nos Grupos de Apoio à
Adoção.
Nota-se o interesse em propor uma série de reduções das garantias
atuais em nome de uma maior possibilidade da criança e o adolescente serem
adotados, apressando a colocação em família adotiva, sobretudo quando se tratar
de bebês e crianças de tenra idade, centralizando o ordenamento protetivo em
adoções, no sentido do rompimento dos vínculos e não em políticas públicas que
auxiliem na preservação ou resgate dos laços familiares. Ponderamos ainda que
vivemos um momento histórico desfavorável, com a retomada do conservadorismo
moral e político, através de um pretenso desejo por democracia, ao bem comum e
8
OLIVEIRA, R.C. No melhor interesse da criança? A ênfase na adoção como garantia do direito à
convivência familiar e comunitária, PUC/SP 2015.
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aos valores tradicionais, que corroboram ainda mais com os já recorrentes projetos
que atentam contra o ECA em sua gênese.
A tese estudada aponta o quanto historicamente constrói-se a lei na
defesa do “melhor interesse da sociedade e do poder público”, tendo que avançar
muito para o “melhor interesse da criança”. E ainda, o pouco investimento no sentido
de reverter as condições que levam à chamada fragilidade familiar, sendo este o
ponto principal para se pensar em convivência familiar.

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7 - CONCLUSÃO

As atuais mudanças na legislação referentes à infância e juventude


devem ser compreendidas no cenário de ascensão do conservadorismo e retração
de direitos sociais que estamos vivenciando em nossa sociedade. A retomada
histórica nos revela que as políticas públicas sofrem avanços e retrocessos
sistemáticos, e constituem um campo de conflito de interesses e luta frequente para
a garantia e consolidação de direitos historicamente conquistados.
Imersa num cenário de sucateamento dos serviços oferecidos à
população que necessita de suporte do Estado, a adoção corre o risco de ser
compreendida como política pública, substituindo o trabalho com famílias vulneráveis
pelo incentivo à adoção. As novas mudanças já efetuadas no ECA e as tendências
que vêm se anunciando caminham neste sentido, o que revela uma falta de
interesse no investimento social e uma desconsideração de todo o trabalho que
precisa ser feito com as famílias, mesmo quando a adoção passa a ser uma medida
possível.
Neste contexto, temos o desafio de construir um trabalho no qual o
cuidado à infância englobe também as famílias em situação de vulnerabilidade, sem
perder de vista os casos em que, de fato, a adoção se coloca como única alternativa.
No entanto, como determinar que é chegado o momento da adoção se ainda não
conseguimos efetivamente garantir às famílias o suporte necessário para que
cuidem de suas crianças?

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REFERÊNCIAS

BECKER, M. J. A Ruptura dos Vínculos: Quando a tragédia acontece. In: Silvio


M. Kaloustian. (org.). Família Brasileira: A base de tudo. São Paulo, SP: Cortez-
UNICEF, 1994.

BERBERIAN, T. P. Serviço social e avaliações de negligência: Debates no


campo da ética Profissional in. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.º 121,
pg. 48-65 Jan/Mar. 2015.

BRASIL. Lei n.º 13.507 de 17 de novembro de 2017. Disponível em:


www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Lei/L13507.htm

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Primeira infância e


maternidade nas ruas da cidade de São Paulo. (Relatório de Pesquisa) Coord.:
Janaína Dantas Germano Gomes. Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, São
Paulo, 2017.

FONSECA, C. Caminhos da Adoção. 2ª Ed. São Paulo: Cortez, 2002.

MOTTA. M. A. P. Mães Abandonadas: A entrega de um filho em adoção. 2ª Ed.


São Paulo: Cortez, 2005.

OLIVEIRA. R. C. No melhor interesse da criança? A ênfase na adoção como


garantia de direito à convivência familiar e comunitária. Doutorado (Serviço
Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

SÃO PAULO. Política de Atenção à Gestante: Apoio profissional para uma


decisão amadurecida sobre permanecer ou não com a criança. Disponível em:
http://www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/873.pdf

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A VIOLÊNCIA IMPLÍCITA NOS CASOS ALTAMENTE


LITIGIOSOS E NOSSAS POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS EM VARAS DE FAMÍLIA
E SUCESSÕES”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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COORDENAÇÃO
Glausa de Oliveira Munduruca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Barra Bonita
Rosângela Maria Lenharo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibitinga

AUTORES
Ana Maria Iria Leite de Ávila Camargo – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Miracatu
Cássia Carolina Matarazzo Guimarães Marteniuk – Psicóloga Judiciário – Comarca
de Itapetininga
Célia Regina de Souza Cauduro – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do
Rio Pardo
Denise Cristina Matheiski Alkmim – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tatuí
Edna Correa Barbosa Ferreira – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Itaquera
Egli Maria Micheski – Psicóloga Judiciário – Comarca de Registro
Lucilena Vagostello – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jundiaí
Lucy Vianna Alcebíades – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guarujá
Lygia Ferreira Gomes Perchon – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas
Mara Regina Perez Fernandes – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional da Penha
Márcia Aparecida Thomé Garcia – Psicóloga Judiciário – Comarca de Botucatu
Talita Afonso Chaves – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guarujá

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DEDICATÓRIA

Às fundadoras do Grupo de Estudos dos Casos Altamente Litigiosos em


Varas de Família, doutoras Maria Isabel Strong e Lídia Rosalina Folgueira Castro,
por suas incontáveis contribuições verbais e escritas durante os longos anos de
experiência no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pelas marcas deixadas
e os passos ensinados, pela disponibilidade interna em continuar contribuindo à
existência deste Grupo mesmo nos momentos mais difíceis de vida pessoal. Na
convicção de que nada é por acaso, continuamos lutando cotidianamente para que
as alteridades e o tempo de cada um sejam respeitados tanto no âmbito familiar
como no institucional.

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AGRADECIMENTOS

Ao nosso querido e admirado colega de trabalho Dr. Sidney Shine que,


com sua clareza ímpar e generosidade, propiciou ao nosso grupo reflexões
importantes sobre a difícil arte de produção de laudos e manejos transferenciais nos
casos de denúncia de abuso sexual alertando-nos sobre o nosso caminhar no fio da
navalha.
Aos novos colegas filósofos clínicos doutores Luís Paulo Neves, Paulo
Roberto Grandisolli e Claudio Fernandes pelas palestras presenciais e discussões
pontuais que muito enriqueceram os estudos do Grupo.
Às colegas do Setor Psicossocial de todas as Comarcas que, de forma
direta ou indireta, auxiliam no nosso trabalho cotidiano, ajudando-nos nos momentos
difíceis e compartilhando a própria experiência profissional; em especial, ao Setor
Técnico de Itapetininga que contribuiu, inclusive, na escrita deste texto.
À Camila Zakka, advogada especialista em gestão de conflitos que
gentilmente aceitou nosso convite para participar deste trabalho e nos trouxe novas
perspectivas sobre os métodos de resolução de disputas.
Nossa profunda gratidão.

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INTRODUÇÃO

“(...) as pessoas não estão sempre iguais,


ainda não foram terminadas –
(...) vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam.”
Guimarães Rosa

Em 2016, nosso grupo de estudos forneceu um panorama sobre as


principais características dos casos altamente litigiosos evidenciando tratar-se de
conflitos relacionados à dificuldade dos genitores de elaborar o luto decorrente da
separação, sendo o litígio transformado na única possibilidade de manter o vínculo
anterior, conforme explicitado por Vainer (1999).
Ampliando a discussão sobre o tema, Castro (2013) discorre sobre os
tipos de personalidade que estabelecem disputas acirradas no judiciário e, em seu
trabalho de doutoramento pela Universidade de São Paulo, tornou evidente que a
conflitiva é decorrente do predomínio de aspectos primários do funcionamento
mental que se sobrepõem à possibilidade de compreensão e de acordo entre as
partes.
Além de compreender como se constituem os casos em questão,
verificamos que é fundamental aos técnicos pensar em estratégias para trabalhar
com esses casos uma vez que a decisão judicial, seja ela qual for, não colocará fim
ao litígio e às dificuldades vivenciadas pelas crianças.
Neste ano de 2018, optamos por aprofundar nossas reflexões teóricas a
partir do significante violência, considerando-se que, nos casos em questão, os
genitores encontram-se imersos em um campo de forças que busca eliminar a
alteridade e realizam projeções maciças tornando o processo de individualização e a
responsabilização um árduo trabalho.
O tema, apesar de já ter sido amplamente discutido em muitas de suas
significâncias permanece atual e novas contendas são necessárias uma vez que a
violência conjugal não termina com o divórcio ou o fim do relacionamento.

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1 - A VIOLÊNCIA E SUAS MÚLTIPLAS MANIFESTAÇÕES

A violência é um fenômeno, produzido e reproduzido nas relações sociais e


multideterminado por fatores históricos, sociais, econômicos, culturais e
psicológicos. Trata-se de um fenômeno engendrado em relações assimétricas e
abusivas de poder, no qual opera um campo de tensão de forças antagônicas
(dominação-submissão; autonomia-sujeição) e que se manifesta nas mais variadas
organizações da vida social. Assim, segundo Araújo (2002, p.5) a violência se
produz:

[...] no interior das relações de poder, objetivando o controle de quem


detém a menor parcela de poder, e revela a impotência de quem a
perpetra para exercer a exploração-dominação, pelo não-
consentimento de quem sofre a violência.

Nessa mesma perspectiva Chauí (1985, citada por ARAÚJO, 2002),


concebe a violência, a priori, como uma destituição do direito à liberdade e
destituição do outro de sua condição de sujeito. Nas relações violentas, portanto, o
sujeito é reduzido à condição de objeto (ARAÚJO, 2002; HIRIGOYEN, 2006).
Ainda nessa linha, Muszkat e Muszkat (2016) definem a violência como
um ato de constrangimento físico ou moral pelo uso de força ou coação contra
alguém; um exercício desproporcional de poder que ameaça a integridade física,
emocional, religiosa, familiar ou profissional de alguém.
As autoras acima citadas, entendem a violência como consequência do
desejo de poder, de dominar o outro causando-lhe algum tipo de constrangimento, a
fim de sentir-se superior e poderoso, nem que seja por um momento. Ainda no
mesmo livro sobre violência familiar, elas entendem a violência como expressão, por
parte do individuo, de que algo é sentido como insuportável e necessita ser expelido.
É também a expressão de recursos pouco desenvolvidos para lidar com o que não
se gosta, denotando imaturidade emocional.
Segundo Araújo (2002), a família é considerada uma importante
instituição social produtora e reprodutora de relações abusivas de poder. Neste
contexto, circunscrevem-se variadas formas de violência caracterizadas como:
intrafamiliar (entre pessoas que possuem relações de parentesco), doméstica (entre

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pessoas do universo doméstico, com ou sem vínculos de parentesco), contra a


mulher (praticadas dentro e fora do espaço doméstico), conjugal (produzida no
relacionamento entre parceiros íntimos) e de gênero (contra a mulher).
A violência dentro e fora da família tornou-se naturalizada de tal forma
que, muitas vezes, não é reconhecida como tal por quem a exerce, por quem a sofre
ou simplesmente por quem a presencia. Araújo (2002, p.4) considera que “a face
mais assustadora desse fenômeno é a banalização da violência, que passa a ser
vista como natural, restando aos que são afetados aprender a conviver com ela [...]”.
As diferentes modalidades de violência são tipificadas de acordo com sua
natureza (física, psicológica, sexual, moral) e podem adquirir maior ou menor
visibilidade social. A violência psicológica é uma modalidade de violência pouco
percebida, uma vez que ela “se articula em torno de vários eixos de comportamentos
ou atitudes que constituem microviolências difíceis de detectar” (HIRIGOYEN, 2006,
p. 30).
Para Hirigoyen (2006, p. 29) a violência psicológica e verbal são
inseparáveis. Segundo a autora, “há palavras (ameaças, gritos, insultos) que servem
para despertar tensão e insegurança e há a maneira de dizê-las (o tom e o ritmo da
enunciação) que é um procedimento destinado a submeter o outro”. Especialmente
nas relações conjugais, a violência psicológica e verbal são instrumentalizadas para
controlar, intimidar, ameaçar, aviltar e dominar o parceiro.
Segundo a autora, a violência no casal tende percorrer uma sequência de
quatro fases de comportamentos agressivos, que podem se repetir ciclicamente. A
primeira, denominada de fase de tensão, é marcada pela irritabilidade do agressor
(justificada por acontecimentos externos) e por manifestações agressivas menos
explícitas (silêncios, olhares e tom de voz irritado, por exemplo). A segunda, a fase
de agressão, é marcada por ataques verbais (gritos, insultos e ameaças), pela
quebra de objetos e pelo aparecimento progressivo da violência física  que se
inicia no empurrão e evolui para pressão ou torção nos braços , tapas e até socos.
A terceira é a fase de desculpas, na qual a violência física é seguida por
verbalizações de arrependimento, de pedido de desculpas e de promessas de
mudança. Na última fase, a da reconciliação, o agressor muda o comportamento,
tornando-se gentil e atencioso, no entanto, o ciclo pode recomeçar (HIRIGOYEN,
2006).

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A violência física abrange matizes de comportamentos que variam de


agressões isoladas (empurrões) a tapas, podendo chegar ao espancamento ou
ainda ao homicídio.
Quanto à definição de violência sexual, Azevedo e Guerra (2007, p. 42)
ponderam que o conceito está longe de ser preciso. Contudo, as autoras, citando
Myre, M. Jean-Guy (1986), consideram como abuso-vitimização sexual:

[...] todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual,


entre um ou mais adultos e uma criança, tendo por finalidade
estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma
estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa.

Segundo Hirigoyen (2006), a violência sexual no casal abrange um


espectro bastante amplo, que vai do assédio sexual à exploração sexual, passando
pelo estupro conjugal. Trata-se de obrigar alguém a atividades sexuais perigosas ou
degradantes, a encenação desagradáveis e, na maior parte das vezes, consiste na
imposição de uma relação sexual não desejada, seja por sugestão ou por ameaças.
Não se pode deixar de mencionar que a negligência é uma modalidade de
violência muito comum e, ao contrário das demais, é exercida pela omissão (de
proteção, cuidados, afetos) e não pela ação.
Muszkat e Muszkat (2016) pontuam que na atualidade existem definições
muito precisas e discursos bem articulados sobre direitos humanos e cidadania,
contudo, temos dificuldades em implantá-los em nossas vidas. Fala-se em
diversidade, protagonismo, liberdade e equidade como se fossem princípios claros e
estabelecidos. Porém, a par dessa verdadeira exaltação em torno de temas
referentes à igualdade de direitos e ao uso das garantias jurídicas desses direitos,
convivemos cotidianamente com práticas individuais e coletivas, inclusive das
políticas públicas e administrativas, que demonstram enorme dificuldade de incluir
na vida cotidiana esses valores. As autoras ressaltam também que leis e direitos
garantidos não são suficientes para assegurar mudanças culturais.
Para Santos e Teixeira (2006), a manifestação epidêmica da violência é
um dos efeitos do declínio da função paterna na contemporaneidade. Na ausência
do significante organizador da estrutura psíquica, o sujeito fica à mercê de forças
inomináveis. Segundo os referidos autores (2006, p.170), o trabalho clínico do

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psicanalista revela que a dimensão mais invisível da violência incide na


subjetividade, deixando marcas profundas no psiquismo:

[...] identificamos e apresentaremos alguns deles: o aparecimento de


certos medos relativos ao funcionamento do cotidiano (...) uma
espécie de fobia social; a instalação de um estado de apatia durante
um longo período; o desencadeamento de doenças graves como a
melancolia; a manifestação de raiva intensa, chegando à fúria, às
vezes seguidas de passagem ao ato como a mudança abrupta de
profissão, e a colocação em ato de fantasias sexuais. Os efeitos da
violência manifestam-se como uma ausência de bússolas radical.

Ressalta-se que um ato de violência pode ser fator desencadeador para o


adoecimento sem possibilidade de reversão dado o caráter traumático vivenciado.
Observamos que o cenário familiar nem sempre cumpre sua função de espaço
acolhedor que possibilite o desenvolvimento das potencialidades humanas.

2 - A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES FAMILIARES

Tradicionalmente, a família é composta por três elementos naturais: pai,


mãe e filho. Em termos psicanalíticos de orientação lacaniana, o significante família
evoca a relação triangular que nos remete às distintas posições e funções psíquicas.
Em última instância, pensar sobre a violência nas relações familiares corresponderia
ao estudo do campo de tensões existente entre as diferentes subjetividades.
O convívio com o diferente, com aquilo que é estranho, possivelmente
trará conflitos de diferentes níveis de intensidade (seja interno e/ou externo). Apesar
da sociedade tentar amenizar/solucionar os conflitos por meio da promulgação de
leis que preveem a manutenção da criança no seio familiar com a participação ativa
dos genitores, isso nem sempre é possível, sobretudo quando entram em jogo
diferentes funcionamentos patológicos dos genitores (CASTRO, 2013; IUCKSCH,

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2016). Nem mesmo as controvertidas Lei da Palmada9 e a Lei da Alienação


Parental10 possuem o condão de evitar atos de violência no âmbito familiar.
Nos casos de vulnerabilidade familiar, nos quais os genitores são capazes
de reconhecer seus próprios limites, existe a possibilidade da entrega voluntária de
bebês à Vara da Infância e Juventude. Observamos, no entanto, que há muitos
preconceitos em relação a este tema, sendo necessário empenho na tentativa de
mudar a cultura na qual estamos inseridos.
Temos ainda os casos de concepções não planejadas e tampouco
desejadas que deverão requerer dos genitores recursos internos mais amadurecidos
para administrarem a nova situação. Na insuficiência destes recursos ou na
existência de quadros relacionados ao uso abusivo de álcool/drogas podem entrar
em cena a repetição de conflitos transgeracionais (MUNDURUCA, 2008;
TONDOWSKI et al., 2013), sendo necessário pensarmos em diferentes alternativas
de atuação do Setor Técnico Psicossocial do Judiciário.
O aumento da violência em suas diversas formas de manifestações
coloca-se como uma questão crucial para a sociedade brasileira. Diversas são as
causas que contribuem para o aumento dos índices de violência, como por exemplo:
as imensas desigualdades econômicas, sociais e culturais; a disseminação das
drogas; o desemprego e os efeitos perversos da chamada cultura de massa.
A violência afeta profundamente as relações familiares, levando à
produção e reprodução de modelos de comportamentos agressivos no cotidiano
social e familiar. Adultos e, especialmente, crianças que vivem em situação de
violência familiar aprendem a usá-la como estratégia de vida e, de modo geral,
tendem a reproduzi-la nos seus relacionamentos.
No Brasil, a violência intrafamiliar contra mulheres, crianças e
adolescentes é um fenômeno social grave, como apontam os inúmeros estudos
existentes (AZEVEDO & GUERRA, 1989 e 1993; ALMEIDA, 1998). Para melhor
compreensão desse fenômeno, reportamo-nos a Hirigoyen (2006), a qual

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Lei n. 13.010, de 26 de junho de 2014, altera a Lei 8.069/90 para estabelecer o direito da criança e
do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel
ou degradante, e altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13010.htm
10 Lei 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei

8069/90. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm

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compreende que a violência no casal é um modo de relação fundado no controle e


na violência psicológica. É sobre esta base que aparecem diferentes formas de
agressão, variáveis em função do contexto ou do perfil psicológico do agressor. As
violências física e psicológica estão interligadas. Não há violência física sem que
antes tenha ocorrido a psicológica.

É frequente observarmos o acirramento de posições e a


inflexibilidade dos parceiros ou membros de uma família quando só
há espaço para uma maneira de pensar, ou seja, quando não é
possível a convivência entre as pessoas, a menos que todas pensem
de um único modo. O desejo de ser um é o de eliminar diferenças,
alcançar a ideia de que há uma verdade superior. Como encontrar,
então, espaço para dois ou mais pensamentos em uma família ou em
um casal, sem que se imponha a necessidade de serem todos iguais.
Esse é um desejo que somente é alcançado com o amadurecimento
dos membros da família e com o aumento da tolerância à frustração.
(MUSZKAT & MUSZKAT, 2016, p. 42).

As pessoas que aprendem a tolerar a frustração vivem com menos


estresse porque são capazes de ver qualquer problema como uma oportunidade,
tendo clareza para procurar soluções adequadas, pois não respondem com
intensidade desproporcional diante de qualquer inconveniência.
Devemos entender que a frustração representa uma vivência do tipo
emocional que se manifesta quando um projeto, uma ilusão ou um desejo não se
cumprem. Isso gera um conjunto de emoções como raiva, tristeza, aborrecimento,
ansiedade ou angústia, e cada pessoa pode reagir e enfrentar essas situações de
diferentes formas. É necessário que se aprenda desde criança a tolerar a frustração,
para que se possa enfrentar de maneira menos destrutiva as diferentes
circunstâncias do cotidiano, sendo este o dever de seus responsáveis. Ensinar os
filhos a tolerar frustração, os ajudará a serem adultos mais pacientes e resolutivos e,
consequentemente, menos violentos.
A violência pode atingir qualquer tipo de família e, geralmente, é praticada
por homens. Uma possível explicação para este fato seria pensarmos que este
fenômeno ocorre, em parte, devido a nossa sociedade sempre ter estimulado a
coragem e o heroísmo masculinos, exigindo comportamentos muitas vezes violentos
como demonstração de masculinidade.

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A percepção idealizada do ambiente familiar como um espaço que, pelas


ligações afetivas, protege seus membros mais vulneráveis não corresponde ao
crescente número de relatos sobre a violência intrafamiliar, expresso nos crimes de
agressão física, de abuso sexual, emocional e psicológico, de incesto, dentre outros.
Segundo Day e colaboradores (2003, p. 10) a violência intrafamiliar é compreendida
como:

Toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade


física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno
desenvolvimento de um membro da família. Pode ser cometida
dentro e fora de casa, por qualquer integrante da família que esteja
em relação de poder com a pessoa agredida. Inclui também as
pessoas que estão exercendo a função de pai ou mãe, mesmo sem
laços de sangue.

Embora a violência contra a figura masculina exista no contexto da


violência intrafamiliar, a violência contra a mulher praticada por parceiro íntimo tem
sido considerada um importante problema social e de saúde pública. De acordo com
a Organização Pan-Americana da Saúde e Organização Mundial da Saúde
(OPAS/OMS, 2017), a violência por parceiro íntimo (VPI) é definida como
“comportamento de um parceiro íntimo ou ex-parceiro que cause danos físicos,
sexuais ou psicológicos, incluindo agressão física, coerção sexual, abuso psicológico
ou controle de comportamentos”.
A violência praticada por parceiros íntimos ou familiares pode ocorrer em
relação às crianças e aos adolescentes, independente do gênero ou de práticas
sexuais. Apesar da constatação de que a VPI ocorre independente do gênero, as
mulheres ainda são predominantemente as vítimas em todo o mundo.
Nas últimas décadas um número crescente de pesquisas tem se
concentrado neste fenômeno, considerando seu aumento exponencial ao longo do
tempo. Muitos destes estudos concentram-se nos fatores de risco da violência no
relacionamento conjugal.
Estudos qualitativos e quantitativos indicam que a VPI associa-se à
aceitação da violência e às normas hierárquicas de gênero como o “direito”
masculino ao controle sobre bens e comportamentos femininos. Quando a mulher
desafia esse controle ou o homem não pode mantê-lo, a violência se manifesta.

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Sabe-se que a vulnerabilidade socioeconômica constitui risco para a VPI,


ainda que de forma moderada ou não linear. Estima-se ainda que o estresse
relacionado às precárias condições de vida e a não garantia de acesso a bens são
aspectos preponderantes dessa vulnerabilidade.
Outros estudos apontam associações entre conflitos familiares e
desregulação do sistema de resposta ao estresse (SLOPEN et al., 2018). A dor
crônica, um problema de saúde incapacitante, que afeta negativamente o bem-estar
e a qualidade de vida das mulheres, tem sido associada às experiências de abuso
infantil e à vivência de situações de violência praticadas pelo parceiro íntimo (VPI).
Estas conclusões ressaltam a importância de se considerar as consequências
destas experiências, em longo prazo, para a saúde mental das mulheres, como
sintomas depressivos e estresse pós-traumático.
A VPI também é causa significativa de mortalidade e de morbidade entre
as mulheres. Pesquisas relacionam experiências de VPI com doenças que
comprometem a saúde reprodutiva, os sistemas imunológicos e endócrinos, e a
saúde mental tanto dos adultos como das crianças. Nas mulheres que vivem
diretamente a violência praticada por um parceiro íntimo (VPI), outros impactos
negativos na saúde podem ocorrer como asma, acidente vascular, doenças
cardíacas, distúrbios do sono e da alimentação, comportamento suicida e
drogadição (SLOPEN et al., 2018).
Além das mulheres, a VPI também afeta as crianças que a testemunham,
prejudicando o estabelecimento de vínculos seguros com as figuras parentais e
causando intensa angústia em respostas aos conflitos verbais dos pais. Na idade
adulta, essas crianças podem apresentar problemas comportamentais, aumento do
risco de alcoolismo, uso de drogas ilícitas e depressão (SLOPEN et al., 2018).
A exposição à violência doméstica pode, também, aumentar a
probabilidade de perpetração da violência como resultado da aprendizagem social,
podendo promover baixa autoestima, dificuldades de atenção, distúrbios nas
relações interpessoais e no funcionamento adaptativo em geral (ANDERSON & VAN
Ee, 2018).
A violência familiar tem se perpetuado, apesar de algumas conquistas nos
campos institucionais, político e jurídico. Mantém-se pela impunidade, pela
ineficiência de políticas públicas, pela ineficácia das práticas de intervenção e

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prevenção e, também, pela cumplicidade silenciosa dos envolvidos. Merece


destaque o silêncio dos profissionais que, em nome da ética e do sigilo profissional,
se refugiam muitas vezes numa atitude defensiva, negando ou minimizando os
efeitos da violência.
A violência infringida na família coloca inúmeros desafios aos diversos
sistemas sociais, em particular, ao sistema jurídico-legal e judicial. A amplitude do
impacto das consequências prejudiciais da violência intrafamiliar à constituição
biopsicossocial do ser humano nos impõe reflexões importantes sobre a nossa
atuação profissional nos espaços onde atuamos seja nas Varas de Família e
Sucessões, Infância e Juventude, Violência Doméstica e do Idoso.

3 - A VIOLÊNCIA IMPLÍCITA NOS CASOS QUE TRAMITAM NAS


VARAS DE FAMÍLIA E SUCESSÕES

Conforme já citado na Introdução desse trabalho, casos


altamente litigiosos referem-se a conflitos relacionados às dificuldades de muitos
casais se separarem e se libertarem, apesar de já o terem feito oficialmente, sendo o
litígio transformado na única possibilidade de perpetuação do vínculo anterior devido
à negação afetiva do desenlace.
Os casais ou partes do processo judicial passam a utilizar o sistema
jurídico, cuja função é a normatização, proteção e manutenção dos nossos rituais
performáticos de organização social, manipulando e ferindo sua função original.
Vainer (1999) cita que a base da Teoria Geral dos Sistemas (Bertalanffy,
1973) permite considerar o Poder Judiciário como um subsistema do sistema vivido
pelo casal, participando como o terceiro elemento, triangulando com as partes, no
sentido de estimular e/ou cronificar, embora involuntariamente, os conflitos não
resolvidos, gerados pelo casal não separado emocionalmente.
Para esse autor, a manutenção do litígio ao longo dos anos é devido ao
jogo neurótico inconsciente entre os casais, chamado de Colusão (narcísica, oral,
anal-sádica e fálica). Este conceito foi cunhado pelo psiquiatra Jurg Willi, o qual
refere que a escolha do parceiro é resultado de escolhas inconscientes e relaciona-
se a traumas e fixações na infância de cada um. Um parceiro escolhe o outro como
“um salvador” para ajudá-lo a superar os conflitos infantis. O referido autor conclui
que não há um culpado ou uma vítima nessa disputa. No interjogo de projeções,
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com o tempo, ocorrem as desilusões e com elas as frustrações que culminam em


litígios, deslocando-se a agressividade e o luto patológico para o Judiciário que é
visto como um terceiro responsável por romper o vínculo legal e também reatá-lo
através das lides (VAINER, 1999).
Observa-se a importância da presença e do posicionamento deste
terceiro. O Judiciário deveria funcionar como lugar de interdição e estruturante,
contudo, geralmente as partes, nos casos altamente litigiosos, não cumprem as
determinações judiciais, burlando a Lei como forma de perpetuar o litígio. Nestes
casos, o Judiciário não funciona como lugar de interdição (IUCKSCH, 2016).
Pensando no texto “Luto e Melancolia” (FREUD, 1917/1915) poderíamos
levantar a hipótese de que nos casos altamente litigiosos existem núcleos psicóticos
ativos, ou seja, alguns aspectos psíquicos encontram-se fundidos/colados no
outro/ex-parceiro e quando tentam a separação (luto/morte) ou quando tenta colocar
algum limite (corte), isso afeta o sujeito que, ao ser mobilizado afetivamente, pode
reagir de modo violento ou impulsivo.
Seguindo essa linha de pensamento, encontramos Hirigoyen (2006) ao
afirmar que o homicídio corresponde a uma tomada de consciência da insuportável
alteridade do outro, revelando que não se trata de amor e sim de fusão.
Esta fusão também é exemplificada no livro “A menina-espelho”. Neste
livro, Iucksch (2016) relata um caso altamente litigioso no qual a ambivalência
materna, diante das repercussões da doença psiquiátrica do genitor da filha,
contribuía para a manutenção do conflito e exposição da criança a uma dinâmica
familiar adoecida.
Nos casos altamente litigiosos, as agressões (verbais e/ou físicas)
anteriormente vivenciadas pelo casal transformam-se em diversas disputas judiciais
que são fomentadas pela lógica adversarial presente no Judiciário perpetuando-se,
assim, a violência (ausência de simbolização), a não compreensão e a não
elaboração dos conflitos subjetivos e objetivos que incitam o litígio.
Nestes casos, a forma preponderante de violência psicológica surge
juridicamente sob alegações de “alienação parental” por meio da qual, muitas vezes,
a criança permanece privada do convívio com um dos genitores por interferências
nefastas do guardião. Apesar da lei propor até mesmo reversão da guarda quando
detectado esse quadro, consideramos ser necessária uma reflexão crítica sobre

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essa possibilidade uma vez que a mudança abrupta de guardião pode representar
uma punição para o genitor alienante que perderá a guarda, mas sobretudo pode se
converter em violência para a criança caso a mesma não esteja preparada para
conviver com o genitor alienado.
Diante dos casos em que vislumbramos o “uso” da criança como
manipulação do ex-cônjuge de forma a prejudicar o vínculo pré-estabelecido na
família, ponderamos que as sanções previstas na lei da alienação parental devem
ser vistas com cautela.
Notamos que, apesar dos estudos extensos sobre essa temática na área
no Direito, é ainda modesta a produção científica na área da Psicologia e de Serviço
Social, não havendo estudos conclusivos, por enquanto, que demonstrem as
consequências das ações propostas pela Lei da Alienação Parental para os filhos,
por exemplo.
Entretanto, em um estudo psicossocial no qual existam indícios de
violência intrafamiliar, consideramos importante atender a criança e sua família “com
o objetivo de proporcionar um contexto de ajuda, de reflexão, para que possíveis
mudanças aconteçam na dinâmica relacional da família” (GRANJEIRO & COSTA,
2008, p.165).
Diante dessas reflexões, compreende-se que as acusações de violência
intrafamiliar, independente de sua veracidade, indicam que algo não vai bem
naquela família, sendo necessário o acompanhamento da mesma por profissionais
da área de saúde mental e da rede de apoio. Nestes casos consideramos que o
encaminhamento para tratamento psicológico é imprescindível a todos os envolvidos
na lide, evitando maior cisão familiar, bem como o fortalecimento da dicotomia
vítimas/algozes.
Como ponto crucial, entende-se que a conscientização da problemática
em tela pelos genitores é fundamental, no sentido de sensibilizá-los sobre suas
posturas exercidas na relação parental, as quais se encontram imersas em
dificuldades de diferenciar o exercício da parentalidade dos conflitos da
conjugalidade, oferecendo-lhes um caminho: o tratamento psicológico familiar (e não
apenas o da criança). Os afetos, quando bem discriminados e devidamente
nomeados, podem favorecer a comunicação entre as partes e o diminuir o nível de
violência (litígio).

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Neste sentido, o psicólogo alemão Mitscherlich citado por Minayo (1997,


p. 516) destaca que “qualquer modificação nas relações sociais só será possível se
houver mudanças na constituição psíquica do ser humano, tendo como ponto central
a reconstrução de sentimentos e emoções”. É mudando o homem, que se muda o
meio.

3.1 - DENÚNCIA DE ABUSO SEXUAL EM VARAS DE FAMÍLIA

Shine (2018), em exposição oral no nosso Grupo de Estudos, enfatizou a


dificuldade da atuação do perito em situações de denúncia de abuso, uma vez que
as pessoas envolvidas no litígio ocupam, alternadamente, diferentes lugares
(denunciante, vítima e agressor), dificultando a discriminação de “quem é quem”.
Atendo-se aos casos de suspeita de abuso sexual, Shine considerou ser
um tema de grande relevância para o cotidiano dos técnicos uma vez que as
denúncias de abuso sexual, em especial nos litígios de Vara de Família,
representam um grande desafio para assistentes sociais e psicólogos.
O palestrante ponderou sobre a atuação dos técnicos nos casos de
denúncia abuso sexual na área criminal, uma vez que não existe um protocolo
unificado para o atendimento desses casos. Destacou, ainda, que os técnicos do
judiciário se encontram na linha de frente na produção de provas, embora grande
parte dos psicólogos e dos assistentes sociais repudiem este lugar de produtor de
provas na área criminal.
Segundo Shine, a escuta especializada de todos os membros do grupo
familiar é fundamental para que o trabalho pericial seja imparcial e, neste sentido,
alinha-se às criticas de formuladas por Oliveira e Russo (2017) no artigo intitulado
Abuso sexual infantil em laudos psicológicos: as “duas psicologias”, o qual detecta
duas posturas da Psicologia Forense praticadas nos processos de Varas de Família
e de Varas Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Nas Varas
de Família haveria tendência a priorizar o diagnóstico de alienação parental;
enquanto que nas Varas Criminais, os laudos psicológicos eram marcados pela
exclusão da avaliação do agressor e ênfase no testemunho da vítima e acusadores.
Nos processos que tramitam nas Varas de Família, observa-se que a lei
da alienação parental tem sido utilizada frequentemente para rebater denúncias de

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

abuso sexual, acabando por contribuir, muitas vezes, para o desmerecimento do


relato do/a guardião e da criança. Nestas situações, corre-se o risco perpetuar a
violência instaurada na dinâmica daquele núcleo familiar, sendo, portanto,
fundamental ao perito buscar a diferenciação entre comportamentos alienantes
daqueles que são, na verdade, protetivos.
Além disso, temos observado, em casos de alienação parental onde há
denúncia de abuso sexual, situações apontadas como “falsas memórias”, nas quais
a ideia do abuso teria sido implantada pelo genitor alienador. Cabe destacar que a
questão das falsas memórias ainda é um território a ser melhor explorado por
pesquisas científicas na área de Psicologia.
Shine, pontuou, ainda, que a imparcialidade do perito pode ser alcançada
quando o profissional se mantém aberto para a reflexão de todas as hipóteses
possíveis, sobretudo nos casos de denúncia de abuso sexual intrafamiliar.
O palestrante ponderou, também, que o abuso é uma ação/um fato e a
perícia psicológica permite apenas o acesso aos fenômenos psicológicos (mas não
ao ato em si) e, portanto, a possibilidade de afirmação da ocorrência do abuso
sexual por parte do perito torna-se prejudicada.

4 – REFLEXÕES SOBRE OS LIMITES E AS POSSÍVEIS


CONTRIBUIÇÕES DA PERÍCIA PSICOSSOCIAL PARA A REDUÇÃO
DA VIOLÊNCIA NOS LITÍGIOS DE VARA DE FAMÍLIA

Através da perícia, o assistente social e o psicólogo judiciário observam e


levantam dados não somente acerca da relação existente entre as crianças e/ou os
adolescentes com seus respectivos pais ou responsáveis, mas de aspectos do
entorno familiar, da violência propriamente dita, da vulnerabilidade e da adesão ou
não da família à intervenção técnica realizada.
Por meio da perícia, identificam-se os elementos subjacentes que se
constituem como ação ou omissão e que possam estar causando prejuízo à
autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da criança ou adolescente
envolvido. Para além da identificação de possíveis ambientes nocivos ao
desenvolvimento infantil (que, geralmente, incluem: ameaças, humilhações,
chantagem, discriminação, isolamento e rejeição), busca-se sensibilizar as partes a
fim de que possam adotar comportamentos mais assertivos.
95
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O resultado da perícia apresenta-se sob a forma de laudo técnico, como


suporte aos magistrados na decisão jurisdicional necessária. Todavia, a natureza do
trabalho do perito também encontra algumas dificuldades e limites, tal como: receber
impressões das partes envolvidas preliminarmente através dos relatos de seus
advogados, os quais, por vezes, divergem do conteúdo discursivo das partes
coletados nas entrevistas psicossociais.
O trabalho técnico da equipe interdisciplinar é fundamental, todavia,
representa um desafio e deve ser alvo de construção permanente, buscando
acessar a singularidade das partes envolvidas em ações judiciais, onde por vezes
estão em jogo questões financeiras, pessoais, falsas denúncias, dentre outras.
Na perspectiva de Luís Paulo Neves, filósofo clínico e Mestre em
Educação, palestrante no nosso Grupo de Estudos neste ano, a prática profissional
dos peritos pode ser encarada como um desafio, uma vez que a avaliação da equipe
técnica deve ocorrer atendendo a um prazo determinado, que geralmente não
respeita o tempo de elaboração dos sujeitos envolvidos na disputa judicial. Deste
modo, percebe-se que o papel de humanização dos técnicos esbarra na rigidez da
estrutura institucional, fato que corresponde a uma das limitações do trabalho
pericial.
Outra limitação foi detectada por Shine ao referir-se ao risco de
contaminação da perícia quando existe a determinação judicial para que o perito
supervisione a visitação das pessoas por ele anteriormente avaliadas. A colocação
do mesmo profissional em dois lugares distintos tende a comprometer a
imparcialidade técnica. Desta forma, a fim de evitar o risco dessa contaminação e
tratando-se de tarefas distintas, Shine considera que a perícia e a supervisão das
visitas deveriam ser executadas por diferentes profissionais.
Processo similar ocorre quando os magistrados determinam ao psicólogo
ou ao assistente social que acompanhem o oficial de justiça no cumprimento de
mandados de busca e apreensão de crianças. Destaca-se que, nestes casos, a
equipe técnica deve esclarecer aos magistrados o seu posicionamento, revelando os
prejuízos de condutas profissionais que visam apenas ao cumprimento de uma
decisão pautada em noções genéricas sobre o que seria menos traumático à
criança.

96
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em face da grande demanda dos casos altamente litigiosos nas Varas de


Família e das dificuldades de se trabalhar frente às acirradas disputas, vemos surgir
algumas alternativas de intervenção com o objetivo de buscar soluções para os
conflitos instalados e, ao mesmo tempo, preservar a convivência familiar e a
proteção da criança e do adolescente envolvidos nessas lides.
As alternativas de intervenção aplicadas no judiciário têm como objetivo,
despertar nos litigantes o senso crítico e conscientizá-los da importância da
preservação da saúde psicoemocional da prole em face do desmoronamento da
união. Nesse contexto, a justiça brasileira vem propondo iniciativas a diminuir a
litigiosidade através de alternativas de intervenção.

4.1 - MÉTODOS DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS

Diversos são os meios disponíveis para resolução de conflitos, entre eles:


a negociação, a mediação, a arbitragem e o judicial. De acordo com diversos
teóricos, a escolha do método não só impacta diretamente no resultado, como
também no índice de cumprimento espontâneo do resultado. Pesquisas e estudos
demonstram que melhores resultados são obtidos por métodos de resolução
baseados em interesses e que os índices de cumprimento espontâneo do acordo
obtido em negociação ou mediação são superiores aos de uma decisão judicial.

4.1.1 - A CONCILIAÇÃO

De acordo com o portal do Conselho Nacional de Justiça11:

a Conciliação é um método utilizado em conflitos simples, ou


restritos, no qual o terceiro facilitador pode adotar uma posição mais
ativa, porém, neutra e imparcial com relação ao conflito. É um
processo consensual breve, que busca uma efetiva harmonização
social e a restauração, dentro dos limites possíveis, da relação social
das partes.

Na conciliação, não existem vencedores nem perdedores, sendo as


partes que constroem a solução para os próprios problemas, tornando-se

11 http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao-portal-da-conciliação.
97
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

responsáveis pelos compromissos que assumem, resgatando, tanto quanto possível,


a capacidade de relacionamento. Nesse mecanismo, o papel do juiz não é menos
importante, pois é aqui que ele cumpre sua missão de pacificar verdadeiramente o
conflito.
A prática da conciliação visa resgatar uma percepção positiva dos
conflitos, contribuindo para que os litígios voltem a ser enxergados como chances de
construção de diálogos construtivos, gerando o conhecimento de formas mais
harmoniosas e cooperativas de convivência humana do que a judicialização. Ao se
perceber a conciliação como uma possibilidade de solução do conflito, tanto antes
do processo quanto durante o seu curso, elimina-se o excesso de demanda ao
Poder Judiciário.
A legislação brasileira trata a conciliação como um instituto do processo
que tem por escopo a solução do conflito antes de ser ele instaurado ou mesmo a
qualquer momento durante o seu curso.
Na conciliação, diferentemente do que ocorre no processo tradicional, não
fica tão clara esta diferenciação entre vencedores e perdedores. São as partes que
constroem a solução para o conflito que as atormenta e, portanto, tornam-se
responsáveis pelos compromissos que assumem ao conciliar. Há, certamente, um
resgate da capacidade de se relacionar com o outro. Nesse contexto, o papel do juiz
efetivamente é o de pacificar o conflito.

4.1.2 - A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A Mediação de Conflitos surge junto aos operadores do direito como uma


prática alternativa. Segundo a definição apresentada por Nazaré (1999, p.1),
mediação é:

um método de condução dos conflitos, voluntário e sigiloso, aplicado


por um terceiro neutro e especialmente treinado, cujo objetivo é
restabelecer a comunicação entre as pessoas que se encontram em
um impasse, ajudando-as a chegar a um acordo.

A Mediação não é simplesmente uma proposta de solução de conflito, mas


de reorganização e de reformulação da comunicação entre as pessoas. A resolução
98
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de um ou mais conflitos pontuais pode ocorrer como consequência do trabalho de


mediação. Contudo, o objetivo básico é que os envolvidos desenvolvam um novo
modelo de inter-relação que os capacite a resolver ou discutir qualquer situação em
que haja a possibilidade de conflito.
Podemos compreender a mediação como o processo no qual um terceiro
neutro, o mediador, ajuda as partes em disputa a alcançar uma resolução
mutuamente aceitável. Os mediadores convidam as partes a se engajarem em um
método criativo e colaborativo de resolução, sem a imposição de uma decisão sobre
qualquer uma das partes, facilitam a troca de informações, promovem o
entendimento entre elas e incentivam a exploração de soluções criativas. Por ser um
processo flexível, é definido e redefinido pelas partes e pelo mediador de acordo
com a necessidade do caso e dos envolvidos.
Pode-se dizer que existem três estilos principais de mediação: facilitativa,
avaliativa e transformativa.
Os mediadores que usam um estilo facilitativo não objetivam direcionar o
resultado, mas apenas permitir que as partes cheguem a um resultado que atenda
às suas necessidades e objetivos. Esses mediadores resistem a responder aos
seguintes tipos de perguntas das partes: “o que você acha que devemos fazer?”, “o
que a maioria das pessoas faz?”, “o que faria um juiz?”, “o que você acha justo?”.
Os mediadores facilitativos acreditam que são responsáveis pela eficácia e
integridade do processo e as partes são responsáveis pelo resultado substantivo.
Um estilo facilitativo de mediação é comumente visto em programas de mediação
comunitária, pois os mediadores têm diferentes experiências profissionais e há
poucos advogados servindo como mediadores.
Já o estilo avaliativo de mediação é comumente encontrado entre
mediadores que são ex-juízes e, em alguns casos, advogados. Um estilo avaliativo
de mediação pode variar desde seu extremo mais radical, no qual o mediador faz
uma previsão do que um tribunal fará com o caso ou com um problema em
particular, até o fim mais sutil do espectro, no qual um mediador pode perguntar
questões projetadas para fornecer "testes de realidade", caso as partes estejam
indevidamente otimistas sobre suas chances de sucesso em um eventual processo
judicial. Os mediadores avaliativos também são mais propensos do que os
facilitadores para ajudar as partes a gerar opções e formular propostas.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em 2004, os mediadores e estudiosos Robert A. Baruch Bush e Joseph


Folberg publicaram a segunda edição do livro “A Promessa da Mediação: A
Abordagem Transformadora do Conflito”, no qual defendem que o objetivo da
mediação não deve ser a solução, mas o empoderamento, fortalecimento e
reconhecimento das partes. Os autores descreveram sua abordagem como
transformadora, porque o foco do processo de resolução de conflitos estava em
mudar as perspectivas das partes, sentimentos sobre si mesmos e sentimentos
sobre as outras partes. No estilo transformativo, os mediadores permitem que as
partes determinem não apenas o resultado da disputa, mas também o processo.
Como em todos os campos de atuação, existem puristas que defendem um
estilo particular de mediação e não utilizem nenhum outro, porém muitos mediadores
descrevem seus estilos de mediação como ecléticos, transitando entre os estilos de
acordo com a necessidade do caso e das partes.
De modo geral, trabalho do mediador de conflitos familiares constitui-se na
compreensão positiva dos problemas, visto que nesses casos é necessária a
manutenção dos vínculos. Os conflitos são compreendidos como temporários e
naturais, já que o ser humano necessita do contraditório e da contraposição para
crescer e se desenvolver.

4.2 - A OFICINA DE PAIS E FILHOS

A Oficina de Parentalidade ou Oficina de Pais e Filhos foi idealizada pela


Juíza Vanessa Aufiero da Rocha, titular da 2ª Vara da Família e Sucessões da
Comarca de São Vicente/SP, com base em iniciativas que já existiam em outros
países como Canadá e Estados Unidos.
Foi instituída como política pública pelo CNJ por meio da Recomendação
nº 50/1412, voltada para resolução e prevenção de conflitos familiares. Foi
recepcionada como método adequado de solução de conflitos pelo Tribunal de

12Recomenda aos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais Regionais


Federais realização de estudos e de ações tendentes a dar continuidade ao Movimento Permanente
pela Conciliação. http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=124.
100
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Justiça do Estado de São Paulo e inserida nas práticas dos CEJUSCS por meio do
Provimento CSM 2327/1613.
A Oficina da Parentalidade ou Oficina de Pais e Filhos é um programa
educacional, preventivo e multidisciplinar, direcionado às famílias que enfrentam a
fase de reestruturação familiar, motivada pela ruptura do laço conjugal dos pais, com
o intiuto de auxiliar todos os seus integrantes a superarem as eventuais dificuldades
inerentes a esta fase, sem maiores traumas, sobretudo para os filhos.
A Oficina atualmente implantada em algumas Comarcas foi projetada para
ser executada em um único encontro, com duração de cerca de quatro horas, com
explanações feitas por expositores, apresentação de slide e vídeos, espaço para
questionamentos, discussões e atividades lúdicas.
O público alvo é composto por pais e mães que apresentam algum
conflito relacionado ao exercício da parentalidade (divórcio, dissolução de união
estável, regulamentação ou alteração de guarda, regulamentação ou alteração de
sistema de convivência etc.) e os respectivos filhos menores, de seis a dezessete
anos de idade.
Sabemos que as habilidades parentais, devem ser apreciadas e
desenvolvidas principalmente porque, a relação entre as crianças e seus pais tem
uma grande influência na maioria das esferas do desenvolvimento da criança.
Otimizadas, as habilidades e comportamentos parentais influenciam positivamente
na autoestima, no sucesso escolar, no desenvolvimento cognitivo e no
comportamento da criança.
Seria importante que a Oficina de Pais, pudesse ter sequência na rede de
atendimento municipal como suporte ao trabalho iniciado no TJ. Existe um forte
consenso quanto à importância do papel dos pais para o modo como seus filhos se
desenvolvem e funcionam. Muitas das habilidades da criança dependem
fundamentalmente de suas interações com seus cuidadores e com seu ambiente
social mais amplo. Na verdade, entre os fatores de risco envolvidos no
desenvolvimento de problemas comportamentais e afetivos da criança, a qualidade
das práticas parentais é o mais importante entre os que podem ser modificados.

13
Dispõe sobre a implantação da Oficina da Parentalidade nos CENTROS JUDICIÁRIOS DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS E CIDADANIA do Estado de São Paulo visando à estabilização,
harmonização e pacificação das relações familiares. Diário da Justiça Eletrônico, 04/03/2016. P.7.
101
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Os fatores sociocontextuais que modelam as práticas parentais englobam


as características da criança, a história do desenvolvimento dos pais e suas próprias
características psicológicas, sofrimento pessoal e conjugal, isolamento social e o
contexto social mais amplo no qual estão inseridos os pais e seus relacionamentos.
As características de personalidade dos pais também desempenham um papel,
influenciando suas emoções e/ou suas percepções, inclusive sua compreensão dos
fatores subjacentes ao comportamento de seus filhos.
A estratégia das oficinas de pais é preservar as crianças por meio de
mudanças de atitudes, conhecimentos e comportamentos dos pais.

4.3 - A CONSTELAÇÃO FAMILIAR

Técnica concebida por Bert Hellinger (2007), psicoterapeuta alemão, por


meio da qual se cria “Esculturas Vivas” reconstruindo a árvore genealógica, o que
permite localizar e remover bloqueios do fluxo amoroso de qualquer geração ou
membro da família.
Hellinger observou que quando fatos traumáticos ocorrem dentro de uma
família, tais como: suicídio, morte prematura, morte violenta, abandono, falência,
etc., na investigação do histórico familiar, encontraremos a repetição dos mesmos
fatos.
A Constelação Familiar não considera a pessoa como um indivíduo único,
solto no mundo, ela considera o indivíduo como pertencente a um sistema do qual
ele veio, o sistema familiar. Ainda que a pessoa não conheça sua família de origem,
ela traz consigo não só os traços físicos, traços de temperamento, dons, como
também a bagagem energética pertencente à família, ou seja, não adianta fugir ou
negar o sistema familiar do qual pertencemos, ele está em nós, faz parte de nós.
Outro fato importante observado por Hellinger e objeto de trabalho da
Constelação, são as famílias trianguladas, ou seja, famílias onde o filho assume
lugar de pai, a mãe de filha, o pai de filho, ou o filho do genitor faltante etc., qualquer
hierarquia familiar que esteja trocada causa extremo peso psicológico sobre os
envolvidos, pois é como se a pessoa tivesse que "dar conta" do seu próprio papel e
do papel do outro e isso pesa, aumentando a infelicidade do indivíduo e o
desequilíbrio familiar. Isso é corrigido pela Constelação de forma simbólica e com
uma grande tomada de consciência que, geralmente, reflete na vida real.
102
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A Constelação pode ser feita individualmente ou em grupo, obtendo-se o


mesmo resultado nas duas formas, porém a de grupo é mais profunda, como se
imaginássemos uma cebola, por exemplo, a individual trabalhará nas camadas mais
superficiais da mesma cebola, enquanto a de grupo iria nas camadas mais
profundas.
Segundo dados do CNJ, o Poder Judiciário vem usando esta técnica
psicoterapêutica em dezesseis estados e a medida está alinhada à Resolução CNJ
n. 125/201014, destinada a estimular práticas que proporcionam tratamento
adequado aos conflitos, assim como ao novo Código de Processo Civil, que estimula
medidas que promovam o apaziguamento entre opostos.
De acordo com os especialistas, a Constelação mostra-se bastante eficaz
em situações de disputa de guarda de filhos, violência doméstica, adoção,
abandono, divórcios litigiosos, alienação parental, inventários e pensão alimentícia.
Esse método permite que a Justiça ofereça outras soluções ao litígio que não
somente a sentença, favorecendo que o conflito seja devolvido aos seus donos para
que eles próprios possam entendê-lo e buscar a pacificação.

4.4 - A JUSTIÇA RESTAURATIVA

A Justiça Restaurativa surge na década de 70, inicialmente no Canadá e


Nova Zelândia e chega ao nosso país em 2004 com três importantes experiências
piloto, no Rio Grande do Sul, com jovens em cumprimento das medidas sócio
educativas, em Brasília com adultos e em São Paulo com jovens no processo de
conhecimento nas Varas Especiais da Infância e da Juventude e em parceria com a
Educação.
Uma das definições mais citadas de Justiça Restaurativa foi aquela
proposta pelo criminologista britânico Tony Marshal (1996), a qual compreende a
Justiça Restaurativa como um processo pelo qual todas as partes ligadas a uma
ofensa em particular, se reúnem para resolver coletivamente como lidar com as
consequências da ofensa e suas implicações para o futuro.

14 Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesse no
âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.
http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_125_29112010_1103201616283
9.pdf.
103
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A Justiça Restaurativa busca, no resgate das potencialidades e


fragilidades da condição humana, respostas para o desenvolvimento de alternativas
diante de atos conflituosos e violentos praticados nas dimensões relacionais,
institucionais e sociais. Dialoga com “a cultura de paz”, expressão cunhada pelo
educador peruano Padre Felipe MacGregor15.
Em 31 de maio de 2016, foi lançada a Resolução 225/201616 do CNJ
sobre Justiça Restaurativa. Foi elaborada por representantes do judiciário de
diferentes estados brasileiros e, de forma inovadora, apresenta os princípios e fluxos
para o desenvolvimento da Justiça Restaurativa em âmbito Nacional.
A aplicação de procedimento restaurativo pode ocorrer de forma
alternativa ou concorrente com o processo convencional, devendo suas implicações
ser consideradas, caso a caso, à luz do correspondente sistema processual e
objetivando sempre as melhores soluções para as partes envolvidas e a
comunidade.
A Justiça Restaurativa tem elaborado um projeto experimental no
atendimento à Violência Doméstica que corresponde a uma das maiores violências
nas relações cotidianas. Diante do significativo adoecimento da relação familiar, a
Justiça Restaurativa enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e
membros da comunidade ao mesmo tempo em que os ofensores são efetivamente
responsabilizados perante as pessoas que foram vítimizadas, restaurando as perdas
materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de oportunidades para
diálogo, negociação e resolução de questões. Isto quando possível, proporciona
uma maior percepção de segurança na comunidade, efetiva resolução de conflitos e
saciedade moral por parte dos envolvidos.
Tatuí foi uma das cinco localidades participantes desse projeto de
expansão da Justiça Restaurativa, tornando-se, em seguida, um dos primeiros Pólos
Irradiadores do Estado, com o apoio, do ponto de vista técnico psicossocial, do
Núcleo de Apoio Profissional do Serviço Social e de Psicologia da CIJ/TJSP, por
meio da Seção Técnica da Justiça Restaurativa.
15 A expressão “cultura de paz” foi cunhada pelo educador peruano Padre Felipe MacGregor ao
presidir a Comissão Nacional Permanente de Educação para a Paz, criada pelo governo do Peru, em
1986. Três anos depois, Padre Mac Gregor publicou o livro “Educacion, futuro, cultura de paz”, que
inspirou o movimento promovido pela Unesco e adotado pelas Nações Unidas.
16
Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências. Diário da Justiça Eletrônico, 31/05/2016.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Hoje em dia, são remetidos ao Núcleo de Justiça Restaurativa de Tatuí


uma gama de conflitos, desde aqueles em trâmite perante o Juízo da Infância e da
Juventude e o Juizado Especial Criminal, como outros de natureza cível. Pode-se
dizer que os resultados dos processos circulares foram mais do que satisfatórios,
pois há o reconhecimento do erro por parte dos envolvidos, a assunção das
responsabilidades individuais e coletivas para que o problema não volte a ocorrer, a
participação da comunidade e das entidades da Rede para dar suporte aos acordos
estabelecidos para fins de reparação dos danos causados à vítima e à comunidade,
bem como para a tomada de um novo rumo afastado da violência e da transgressão.
Desde então, a partir do esforço de muitas pessoas, muito se construiu,
derivando-se conflitos judicializados para o trabalho restaurativo, com a realização
de inúmeros processos circulares com resultados positivos; atendendo-se a
demandas espontâneas das pessoas que pediam a intervenção restaurativa;
estabelecendo parcerias com escolas para se repensar a lógica da convivência
dentro da instituição de ensino, rumo à construção de uma escola democrática, que
gera pertencimento, e de uma Cultura de Paz; e com ações construídas a partir do
diálogo com comunidades vulneráveis, para trabalhar não somente as melhorias do
bairro, mas o empoderamento comunitário.

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5 - CONCLUSÃO

Nos casos altamente litigiosos em processos que tramitam nas Varas de


Família dos Tribunais de Justiça de São Paulo, considera-se a pericia tradicional e a
produção do laudo como instrumentos importantes na identificação de indícios e
sinais de violência, porém, na prática, parece-nos insuficientes na tentativa de
minimizar ou transformar a conflitiva vivenciada pelos genitores e que atinge
nocivamente os filhos.
Entre os sujeitos que protagonizam litígios familiares de longa duração,
podemos observar alguns aspectos que, aparentemente, são considerados comuns
pela maior parte da sociedade atual, tais como: agressividade verbal corriqueira,
postura refratária às intervenções e discurso baseado em lógica adversarial. No
decorrer do processo, fica evidente a conjugalidade conflituosa sobrepondo os
cuidados com a prole.
Observamos que, nos casos em questão, os casais legalizam o término
do casamento quando o luto pela separação ainda está sendo superado, a
comunicação entre eles torna-se truncada e, assim, o processo legal do divórcio
parece uma etapa necessária para materializar o ato da separação, representando o
corte simbólico necessário não alcançado sem a intervenção de um terceiro. Nesse
sentido o ato jurídico seria comparado a um ritual de passagem, com função de pôr
fim a uma demanda e instalar uma nova fase na vida das pessoas. No entanto, nem
todos os casais vivenciam essa etapa jurídica de forma positiva. Com isso, o que
poderia ser uma breve intervenção do Estado transforma-se em uma longa batalha
judicial, onde os filhos são as maiores vítimas.
O cotidiano do trabalho técnico evidencia que, mesmo após a abordagem
técnica e as decisões judiciais, o litígio entre as partes continua, seja por meio de
recursos ou da instauração de nova ação judicial, evidenciando que o ex-casal,
ainda necessita da intervenção de outros profissionais especialistas e de outras
formas alternativas de abordagem técnica.
Em termos psicanalíticos, podemos pensar que o sofrimento advém
quando cessa a possibilidade de compreensão simbólica do sujeito, que a violência
decorre da força da pulsão e escapa da palavra, ou seja, da possibilidade de
representação mental e instala-se no terreno do gozo, sendo necessário barrá-lo

106
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

(SANTOS & TEIXEIRA, 2006).


Dai a importância de se falar sobre o que incomoda, visando-se ao
reconhecimento e nomeação das sensações internas e sentimentos, até alcançar à
elaboração do conflito, ou seja, o alcance de outro patamar de compreensão.
Nesse sentido, pensamos que um manejo técnico possível seria utilizar o
tempo processual para auxiliar as partes a digerir/elaborar a própria violência por
meio de intervenções sucessivas com concomitante produção de informativos. Ou
seja, trilhar um caminho processual desde o princípio com a indicação de oficinas
on-line e, pouco a pouco, sugerir alternativas para a superação das dificuldades
apresentadas pelos genitores e acompanhar o caso pelo tempo necessário e
possível.
Destaca-se a importância dos métodos alternativos de resolução de
disputas. Observamos, no entanto, que a jurisdição brasileira ainda está calcada no
processo judicial, o qual obstaculiza o diálogo, criando a dicotomia autor-réu.
A proposta de mediação de conflitos, bem como a justiça restaurativa e
constelação são abordagens inovadoras e alternativas ao sistema judiciário
tradicional. Através de suas técnicas e métodos convidam os litigantes a assumir o
protagonismo na solução de seus próprios conflitos.

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REFERÊNCIAS

ANDERSON, Kimberley; VAN Ee, Elisa. Mothers and Children Exposed to Intimate
Partner Violence: A Review of Treatment Interventions. Int. J. Environ. Res. Public
Health, 15-22; 2018.

ARAÚJO, Maria de Fátima. Violência e abuso sexual na família. Psicologia em


Estudo, Maringá, v. 7, n. 2, p. 3-11, jul./dez. 2002. Disponível em: <www.scielo.br>.
Acesso em 01/10/2018.

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira Azevedo (org). Crianças


Vitimizadas: A síndrome do pequeno poder. 2ª edição. São Paulo: Iglu. Editora,
2007.

CASTRO, Lídia Rosalina Folgueira. Disputa de Guarda e Visita: no interesse dos


pais ou dos filhos? Edição Revisada. Porto Alegre: Artmed, 2013.

CONSELHO NACIONAL DE JSUTIÇA, Recomendação nº 50/14. Recomenda aos


Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais Regionais
Federais realização de estudos e de ações tendentes a dar continuidade ao
Movimento Permanente pela Conciliação. http://www.cnj.jus.br/busca-atos-
adm?documento=1241.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Resolução 125, 2010. Dispõe sobre a


Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no
âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.
http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_125_29112010_
11032016162839.pdf.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Resolução 225, 2016. Dispõe sobre a


Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências. Diário da Justiça Eletrônico, 31/05/2016.

CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA. Provimento CSM 2327/16. Dispõe sobre a


implantação da Oficina da Parentalidade nos CENTROS JUDICIÁRIOS DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS E CIDADANIA do Estado de São Paulo visando à
estabilização, harmonização e pacificação das relações familiares. Diário da Justiça
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108
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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111
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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PARA ALÉM DA PERITAGEM?


O TRABALHO DE ASSISTENTES SOCIAIS E
PSICÓLOGAS/OS NO TJSP

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

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2018

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COORDENAÇÃO

Rachel de Souza da Costa e Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


São Roque
Raimundo Nonato Lopes Neto – Psicólogo Judiciário – Fórum Regional de Itaquera

AUTORES

Adriana Ribeiro Delgado – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de Itaquera


Aline C. Cardoso – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Itaquera
Ana Paula Hachich de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Vicente
Bruna Rafaela Ortiz de Camargo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapetininga
Bruno Motta – Psicólogo Judiciário – Fórum Regional de Itaquera
Camila Manduca Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão Pires
Fernanda Cazelli Buckeridge – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional da Penha
Ianara Kelly Guilherme de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional do Brás
Juliana Fernandes Iuan – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Santana
Julieta Camargo Silva de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itapetininga
Mary Gelman – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Santana
Milena da Silva Mano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itu
Patrícia Maura Silva de Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de Votorantim
Regiane Ortolam – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Rosilda de Fátima dos Santos Coelho – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São Carlos
Thamara Gloria de Almeida Borges – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional
de Itaquera
Thiago Simoni – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de São Miguel
Paulista
Vivian Bertelli Ferreira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bragança Paulista

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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“A luz que me abriu os olhos


para a dor dos deserdados
e os feridos de injustiça,
não me permite fechá-los
nunca mais, enquanto viva.
Mesmo que de asco ou fadiga
me disponha a não ver mais,
ainda que o medo costure
os meus olhos, já não posso
deixar de ver: a verdade
me tocou, com sua lâmina
de amor, o centro do ser.
Não se trata de escolher
entre cegueira e traição.
Mas entre ver e fazer
de conta que nada vi
ou dizer da dor que vejo
para ajudá-la a ter fim,
já faz tempo que escolhi”.

Thiago de Mello.

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INTRODUÇÃO

No cotidiano de suas práticas profissionais, as equipes técnicas do


Tribunal de Justiça de São Paulo – atuantes nas varas de infância e juventude,
família, violência doméstica e varas especiais – diariamente se deparam com
desafios de diversas naturezas.
Estes se apresentam no encontro com os sujeitos e seus contextos macro
e microeconômicos, psicológicos, sociais e culturais, e também na interface com as
demandas da própria instituição, as quais colocam em pauta o entendimento
destas/es trabalhadoras/es acerca de seu papel neste espaço, enquanto indivíduos
e também enquanto representantes de categorias profissionais.
Durante os encontros deste grupo de estudos, xs assistentes sociais e
psicólogxs participantes debateram sobre diversas experiências vividas no cotidiano
de trabalho, em que identificavam conflitos entre as demandas institucionais –
fundamentadas em determinadas concepções acerca do papel e das possibilidades
de atuação das duas categorias no âmbito judiciário e em geral – e a formação e os
preceitos éticos que fundamentam o Serviço Social e a Psicologia enquanto
profissões e ciências.
Atuando na interface com a lei e o Direito, estas/es profissionais
percebem-se cotidianamente convocadas/os a atuarem como o que, a princípio, foi
denominado “peritas/os”, das/os quais se costuma requerer que, valendo-se de seus
conhecimentos cientificamente constituídos e, na condição de profissionais de
confiança do juiz, respondam às demandas postas pelo judiciário: de identificação e
diagnóstico objetivos de uma dada situação, ou de um indivíduo, ou de um grupo
familiar.
Tais discussões evoluíram para tentativas de outro modo de compreensão
acerca do lugar institucional demandado aos setores técnicos. Buscando
compreender melhor o que seria de fato este papel de peritagem, foram
problematizados pontos em que este parece muitas vezes ir de encontro aos
pressupostos éticos norteadores da atuação destas/es profissionais: quando dirigido
pela demanda do judiciário, e não dos sujeitos atendidos, o lugar que as/os
psicólogas/os e assistentes sociais são convocadas/os a ocupar na instituição
parece investi-las/os de um “lugar de saber” acerca do outro enquanto objeto de
avaliação, desfocando-se, então, das pessoas envolvidas/os (avaliadas/os,
115
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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avaliadoras/es, operadoras/es do Direito, e outras/os) e dos discursos e perspectivas


que não somente embasam a demanda propriamente dita, como também constituem
e são constituídos pelas/os próprias/os profissionais dos setores técnicos e pelas/os
operadoras/es do Direito.
Ainda a respeito dos conflitos entre as demandas institucionais e o
compromisso ético-político que baliza o trabalho de psicólogas/os e assistentes
sociais, ao longo do ano foram apontadas e debatidas pelas/os participantes outras
questões: o limitado acesso com que contam para o estabelecimento de diálogo e
construção coletiva das propostas de trabalho junto à instituição, bem como
vivências de temor de punições e retaliações; percepções de isolamento e
desamparo pela existência de poucos espaços institucionais que realmente
ofereçam respaldo às práticas profissionais; e o entendimento da articulação
coletiva, enquanto categorias profissionais, como fragilizada ou pouco efetiva diante
das situações concretas que vivem.
Por vezes, estas vivências de objetificação das pessoas atendidas foram
também compartilhadas pelas/os próprias/os profissionais, posto que, em nome de
concepções rígidas de ideais tais como os de “família”, “justiça” e “garantia de
direitos”, e do cumprimento de ritos judiciais normativos se veem
desconsideradas/os em sua complexidade e potencial criativo. Tais ritos judiciais
parecem frequentemente se nortearem mais pela criminalização da pobreza e pelo
controle e a vigilância sociais, que pelo cuidado e pelo questionamento destas
mesmas relações socioeconômicas envolvidas.
De forma geral, as/os profissionais são convocadas/os a elaborar
“pareceres” e laudos “embasados cientificamente” que façam “emergir uma verdade
oculta” ou “verificar a ocorrência de fatos”, como respostas a perguntas previamente
formuladas dentro do modelo judiciário, cujo recorte tende a simplificar problemas
complexos e oferecer conclusões a situações que careceriam de soluções
elaboradas para a real efetivação da justiça.
A partir destas inquietações, durante os encontros, foram discutidas
possibilidades de criação de estratégias diante dos desafios encontrados, tanto em
situações cotidianas e particularizadas, como também quanto à possibilidade de
articulação coletiva das categorias profissionais para garantir que as/os
trabalhadoras/es possam de fato exercer as atividades condizentes com suas éticas

116
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e projetos políticos, respeitando-se limites e criando espaço para suas


potencialidades.
Assim, com base nas reflexões críticas tecidas, o grupo passou a se
debruçar sobre qual é de fato o conceito de “peritagem” que costuma embasar as
demandas judiciais, bem como a se dedicar à leitura de textos e livros em cujas/os
autoras/es discutam outras formas de atuação para psicólogas/os e assistentes
sociais judiciárias/os.
Estas formas encontradas propunham uma prática cotidiana interventiva
por parte dos setores técnicos judiciários: alinhada à concepção de sujeito e aos
projetos ético-políticos profissionais destas/es trabalhadoras/es, comprometida com
a contextualização e problematização das circunstâncias em que os sujeitos se viam
envolvidos, bem como com a garantia de direitos e a eliminação de todas as formas
de desigualdade, opressão, discriminação em que possam estar enredados.
Por fim, no segundo semestre de 2018, o grupo passou a elaborar formas
de aproximação para compreender melhor o entendimento que as/os técnicas/os
das varas do Tribunal de Justiça de São Paulo têm acerca de seu papel institucional,
e de como este entendimento permeia e orienta suas práticas profissionais
cotidianas. Deste modo, optou-se pela realização de uma pesquisa junto a estas/es
profissionais, através de perguntas dissertativas, cujas respostas eram
encaminhadas de maneira anônima. As informações foram coletadas a partir de
arquivo do Googledrive, por um link enviado por e-mail às/aos profissionais de todo o
Estado com atuação nas diversas varas mencionadas anteriormente e também no
núcleo de apoio e no setor de atendimento psicossocial. No formulário proposto,
as/os participantes recebiam a mensagem a seguir:

Prezadas(os) colegas,
Em 2018 o Grupo de Estudos “Cotidiano da Prática Profissional –
Família – Capital” busca conhecer a identidade profissional de
Assistentes Sociais e Psicólogas(os) do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo.
Para atingir esse objetivo, elaboramos coletivamente um breve
questionário sobre as práticas cotidianas destas(es) profissionais e
de que forma são construídas.
Os resultados estarão disponíveis nos artigos produzidos por este
Grupo, respeitando os princípios éticos da pesquisa científica e
seguindo procedimentos de sigilo e discrição, mediante tratamento
de dados, estudos bibliográficos e reflexões coletivas, tendo em vista
compreender como se dá o exercício profissional no cotidiano.
117
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ressaltamos que a participação é anônima e que não haverá acesso


nominal às respostas de cada profissional, bem como o tratamento
dos dados será feito somente pelas(os) assistentes sociais e
psicólogas(os) que compõem o Grupo de Estudos.
O formulário estará disponível até o dia 31 de agosto de 2018 no link.
Contamos com a sua colaboração!
Atenciosamente,
Grupo de Estudos ‘Cotidiano da Prática Profissional - Família –
Capital.

Em seguida, foram propostas as seguintes questões sobre o perfil das/os


técnicas/os participantes:

Graduação: ( ) Serviço Social ( ) Psicologia


Ano de formação: __________
Pós-graduação: __________________________________
Ano de ingresso no TJSP: __________________
Atuação: ( ) Interior ( ) Capital
( ) Infância e Juventude ( ) Família ( ) Violência Doméstica ( ) outros

Por fim, solicitou-se que as/os participantes respondessem por escrito,


livremente, as seguintes questões:
“1. A seu ver, qual é o papel da(o) psicóloga(o) / assistente social no
TJSP?” e
“2. Baseada(o) na sua experiência, quais condições possibilitam /
impossibilitam essa prática?”.
Obtivemos 122 respostas, sendo 56 de psicólogas/os e 66 de assistentes
sociais. A partir da coleta de dados realizada conforme acima descrito, a qual foi
encerrada no final do segundo semestre de 2018, o grupo passou a se dedicar ao
tratamento dos dados e à elaboração teórico-metodológica dos mesmos, objetivando
a apresentação, em 2019, da pesquisa em sua totalidade, através da produção de
novo artigo.

1 - OS PERCURSOS DAS DISCUSSÕES

Durante alguns encontros, foram apresentadas reflexões sobre o Grupo


de Estudos como um espaço de resistência criativa e também sobre possibilidades
de refletir sobre a prática cotidiana da/os assistentes sociais e psicólogos/as no
118
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Tribunal de Justiça de São Paulo. Algumas/ns participantes explanaram sobre o


lugar que o Setor Técnico ocupa no Tribunal de Justiça, pois são profissionais que
são cotidianamente convocada/os a atuar numa prerrogativa da Instituição, em geral
sem espaço para questionamentos. Os questionamentos levantados pelas/os
participantes dizem respeito a estratégias de construção de propostas de mudança
coletiva, novos caminhos, considerando que o posicionamento técnico dessas/es
profissionais potencializa ou criminaliza as dinâmicas das famílias atendidas.
Durante tais discussões, buscaram-se articulações com outros espaços,
como os Conselhos Regionais de Serviço Social e de Psicologia, tendo em vista as
inquietações suscitadas por muitas/os assistentes sociais e psicólogas/os frente a
desafios surgidos na prática profissional, como a implantação da Lei 13.431/2017,
que preconiza o Depoimento Especial, sancionada em 04 de abril de 2017,
passando a vigorar em 4 de abril deste ano.
Foram realizadas, assim, discussões a respeito dos Códigos de Ética das
categorias e as atividades das/os profissionais inseridas/os no Tribunal de Justiça,
com a finalidade de refletir sobre as atribuições. A partir de discussões levantadas
sobre o Depoimento Especial/Sem Dano, foram levantadas reflexões sobre a ética
profissional das/os profissionais atuantes nos Setores Técnicos de suas respectivas
comarcas, assunto que levou a pensar no lugar que tais categorias ocupam dentro
do judiciário, levantando-se questionamentos sobre as várias possibilidades de
atuação. Diante destas discussões, foram levantados materiais que poderiam ser
utilizados para o seu aprofundamento, bem como a possibilidade de realizar uma
pesquisa informal sobre o posicionamento dos setores técnicos com relação ao seu
papel no Judiciário.
Os disparadores que fundamentaram algumas discussões foram os textos
“Construindo uma Psicologia no Judiciário” e “Demanda social e crise dos ideais:
17
que lugar para o Judiciário” . Estes textos foram elaborados a partir de uma
pesquisa-intervenção viabilizada pelo Programa de Intervenção Voltado às
Engrenagens e Territórios de Exclusão Social (PIVETES), desenvolvido pelo
Laboratório de Subjetividade e Política (LASP), do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense. A pesquisa-intervenção contou com a
participação de psicólogas/os que atuam no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
17COIMBRA et al. PIVETES: Encontros entre a Psicologia e o Judiciário. 1. ed (2008). 2ª reimpr.
Curitiba: Juruá, 2013.
119
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Inicialmente foi destacado por alguns membros do grupo o cuidado com


que as autoras da pesquisa atuaram, tanto em relação ao acesso, como ao
tratamento das informações obtidas junto às/aos participantes da pesquisa, a partir
de metodologia intitulada “restituição”: “dispositivo que permite à população
pesquisada escapar do lugar instituído de objeto, e, ao pesquisador, sair da posição
de neutralidade instituída como científica” (COIMBRA, AYRES e NASCIMENTO,
2013, p. 25). Na pesquisa- intervenção, os psicólogos entrevistados “foram
convidados a participar de uma discussão junto com os pesquisadores e outros
profissionais para analisar o conhecimento produzido pela pesquisa, compartilhando,
assim, do saber que ajudaram a construir e intervindo nos resultados” (COIMBRA,
AYRES e NASCIMENTO, 2013, p. 25).
O contato com este material suscitou no grupo de estudos a observação
de possíveis diferenças entre as produções acadêmicas sobre a atuação de
psicólogas/os e assistentes sociais que atuam no âmbito judiciário do Rio de Janeiro
e de São Paulo, entendendo assim que as publicações fluminenses, no geral,
mostram-se aparentemente mais críticas, uma vez que priorizam problematizações
sobre a prática profissional, incluindo seus aspectos históricos e institucionais e seus
impactos políticos e sociais, com fundamentos teóricos calcados em diferentes áreas
do conhecimento, como a Filosofia e Sociologia.
Tal reflexão abriu precedentes para que o grupo retomasse a discussão
sobre o “Depoimento Especial”, problematizando como esta prática, que em tese
visa à “proteção” de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência,
insere-se em uma lógica institucional e política de controle e punitivismo.
Foi abordado pelo grupo que recentemente o Depoimento Especial foi
incluído como atribuição de psicólogas/os e assistentes sociais do TJSP, em que
pese os posicionamentos dos Conselhos Profissionais contrários à participação das
categorias nesta prática. Uma das participantes citou o documentário “(H)OUVE?”,
produzido a partir de histórias de pessoas que foram submetidas ao Depoimento
Especial, e que apresenta a análise de profissionais do Rio de Janeiro e da região
Sul do Brasil que têm se debruçado sobre o tema, incluindo tanto posicionamentos
contrários, quanto favoráveis.
Enfatizou-se, no grupo, o fato de não terem ocorrido discussões prévias e
ampliação do diálogo com as categorias profissionais antes da implementação do

120
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Depoimento Especial e das capacitações obrigatórias organizadas pelo TJSP. Por


fim, foi destacada a existência de assistentes sociais e psicólogas/os do TJSP
favoráveis ao Depoimento Especial, em contraposição aos posicionamentos dos
Conselhos Profissionais, o que evidencia que não existe uma construção coletiva
consensual do entendimento do papel profissional destas duas profissões no
Judiciário.
Neste cenário de representações diversas acerca da prática profissional
de psicólogas/os e assistentes sociais no TJSP, algumas/ns participantes do grupo
apresentaram situações vivenciadas nas quais sentem que lhes são direcionadas
demandas contrárias às prerrogativas de suas profissões, constantemente
atropeladas pela hierarquia e rigidez institucional que requer um viés tecnicista, que
visa a uniformizar o que é produzido, sem espaço para crítica, e que, portanto, foge
ao compromisso social e ético destas áreas, que não estão a serviço de práticas
punitivistas ou do enquadramento de sujeitos na norma, mas da garantia de direitos.
Esse aspecto é abordado em um dos textos estudados como um reflexo do
neoliberalismo:

Contra o risco do pensamento livre, assistimos em todas as áreas, a


aplicação de técnicas, formulários, testes que dão respostas
precisas, rápidas, diagnósticos individualizados, aconselhamentos
morais que engarrafam os casos em moldes que fazem parte de uma
só fornalha. Os critérios de eficiência tão aclamados pelo
neoliberalismo, quando aplicados à área social, demonstram uma
preocupação econômica e moral distante e, mesmo, oposta a
construções coletivas e transformadoras. (SCHEINVAR, 2013,
p.180).

A angústia que permeou as colocações das/os participantes relacionou-se


tanto ao modo como lidar cotidianamente com as pressões que acompanham estas
demandas, como ao fato de que perceberam que algumas/ns colegas respondem a
esta lógica em suas práticas, retornando à discussão anterior de que não há
consenso acerca do papel a ser desempenhado pela/o psicóloga/o e assistente
social no TJSP.
Com o intuito de problematizar esta questão, o grupo se estruturou para
pôr em prática a produção de um questionário, que seria enviado para outros grupos
de estudos e comarcas do estado de São Paulo, com a perspectiva de compreender

121
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a representação de psicólogas/os e assistentes sociais judiciárias/os acerca de seu


papel profissional no Tribunal de Justiça de São Paulo. O questionário seria
inicialmente produzido para ser respondido via e-mail, e as respostas com envio
previsto até início de agosto. Convencionou-se que o questionário deveria ser
anônimo, mas que viabilizasse o fornecimento de algumas informações que
pudessem ajudar a traçar um perfil do público, a saber: a) se o fórum de atuação é
da capital ou interior; b) se a/o profissional atua na vara de infância, família, violência
doméstica ou outro setor; c) se é psicóloga/o ou assistente social; d) em que ano se
formou; e) há quantos anos atua no TJSP; f) se tem pós-graduação. Ainda buscou-
se compreender como se os sujeitos se reconheciam na atuação profissional,
através de questões sobre o papel do profissional e de que maneira este
entendimento se traduz em sua prática.
Após o recebimento das respostas anônimas aos questionários, por e-
mail, durante alguns encontros que se seguiram o grupo buscou traçar alguns eixos
norteadores a partir das 122 respostas das/os profissionais das mais diversas varas
do judiciário paulista.

2 - PERITOS

2.1 - ESPECIALISTAS EM QUÊ?

Antes de iniciarmos a discussão sobre a análise dos dados, faz-se


necessário esclarecermos o termo “Perito”. De acordo com a bibliografia consultada,
o termo perito refere-se a aquele que se especializou em determinada ciência, ramo
de atividade ou assunto.

Pe.ri.to: “{Lat.peritu.} adj. 1. Diz-se de perito (3 e 4). 2.


Sábio, erudito. Sm. 3.O que é sabedor ou especialista em
determinado assunto; experto. 4. O que é nomeado
judicialmente para exame ou vistoria. (Dicionário Aurélio
de Língua Portuguesa).

Em relação à produção textual, a Professora Eunice Teresinha Fávero


destacou que:

122
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O perito, enquanto detentor de um saber, foi o personagem chamado


a dar esse respaldo, ou seja, chamou-se um profissional
especialista18 em determinada área do conhecimento, para o estudo,
a investigação, o exame ou a vistoria de uma situação processual,
com o objetivo de oferecer subsídios técnico-científicos que
possibilitassem ao magistrado a aplicação da lei com maior
segurança, reduzindo-se a possibilidade da prática de erros ou
injustiças. (FÁVERO, 2007).

Considerando que os tribunais de justiça utilizam o trabalho pericial


das/os assistentes sociais e psicólogas/os judiciárias/os como prova processual,
pelo Código de Processo Civil (CPC), entende-se que o trabalho técnico das
categorias profissionais aqui destacadas deve estar em consonância também com a
legislação que regulamenta as respectivas profissões, pelos respectivos Códigos de
Ética Profissional e demais regulamentações.
De acordo com o artigo 465 do CPC, cabe ao juiz nomear perito
especializado no objeto da perícia, a qual poderá auxiliá-lo na decisão. Observa-se
na prática cotidiana que as/os julgadoras/es em suas determinações buscam uma
resposta objetiva para questões complexas e de cunhos subjetivos que envolvem as
famílias, haja vista que a perícia social ou a psicológica tem como objeto de estudo a
pessoa, suas relações sociais, afetivas, culturais, suas vivências e que, sobretudo,
sente na pele cotidianamente as expressões da questão social.
No decorrer da construção deste artigo, houve momentos de inquietação
relacionados ao lugar ocupado pelas/os profissionais do Serviço Social e da
Psicologia no campo sócio jurídico, o que, a nosso ver, vai além de responder
questões pontuais e quesitos, a partir de uma visão profissional interventiva,
articuladora, que compreenda e que contemple o ser humano em sua totalidade, o
que levou o grupo a promover reflexões também sobre a história da Psicologia e do
Serviço Social no Judiciário paulista.
Sobre isso, Bernardi (1999) explica que o modelo inicial da Psicologia
Jurídica no Tribunal de Justiça corroborou com o enfoque pericial estrito, como
aquele que “visa oferecer ao juiz subsídios para uma decisão considerada justa,
dentro do que impõe a lei.” (p. 103).

18
Especialista enquanto detentor de conhecimentos em determinada área de formação/graduação
profissional.
123
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A autora contextualiza a inserção da/o psicóloga/o como um profissional


do Tribunal de Justiça, posteriormente à entrada do Serviço Social (à época do
Código de Menores), que previa no art.4º, III: “que o estudo de cada caso fosse
realizado por equipe técnica, sempre que possível” (p. 105). Tal determinação
possibilitou a criação de Audiências Interprofissionais que incluíam, segundo
Bernardi (1999), a atuação do psicólogo e da psicóloga como auxiliar direto do juiz e
como membro da equipe multidisciplinar.

Assumir esse locus exigiu do psicólogo muitas adaptações, em


função dos conflitos inerentes às suas premissas de ação
eminentemente clínicas e contradições básicas entre sua
formação voltada para a promoção da autonomia e a ação
restritiva da instituição. Os problemas foram muitos, desde a
indefininação do papel nos fóruns até o estabelecimento de
uma identidade profissional no âmbito dessa instituição
judiciária. (BERNARDI, 999, p.107).

A autora acrescenta ainda que somente em 1985 ocorreu o primeiro


concurso público para a capital de São Paulo, refletindo, para Bernardi (1999) “a
busca por implantação definitiva da profissão na área judiciária” (BERNARDI, 1999,
p.106). Posteriormente, essas equipes, segundo as explanações de Bernardi, foram
absorvidas como obrigatórias com a implantação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei Federal nº 8.096/90).
Bernardi (1999), ao discutir o percurso histórico, apresenta cronologia na
qual é possível identificar que em maio de 1987 foi constituída uma comissão
formada de assistentes sociais judiciários e psicólogas/os judiciárias/os com a
finalidade de:

promover discussões sobre o papel desses profissionais na


instituição e reconhecimento do trabalho desenvolvido. Pretendia-se,
segundo ela, a organização de encontros, seminários e debates
sobre temas relacionados ao campo de ação, para proporcionar
maior troca de experiências e o aprimoramento profissional.
(BERNARDI, 1999, pág 106).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Desse modo, Bernardi (1999) demonstra o longo caminho percorrido para


firmar a categoria profissional não apenas da Psicologia, mas também do Serviço
Social, no Tribunal de Justiça de São Paulo.

2.2 - INQUIRIÇÃO E INQUIETAÇÕES

A busca pela produção e constatação da verdade é antiga no Judiciário.


Chegou ao Direito através do testemunho, como uma prática que produzia verdade
sobre algo dando privilégio a quem o manifestasse. Depois veio uma reedição dessa
prática, o inquérito. Mas estamos falando ainda sobre a Idade Média.
Alves (2013), ao tratar dos discursos das/os especialistas no Judiciário
(baseada na sua experiência no Rio de Janeiro), apresenta uma ampla
contextualização sobre os sistemas arcaicos, como o Direito Germânico e Romano,
de como a busca pela Justiça estava atrelada à busca por um poder soberano
político. Para falar de testemunho, inquérito e produção de verdade, ela
contextualiza Foucault, para quem, em sua leitura, o inquérito, por exemplo, está
ligado à “forma de saber-poder que se encontra em estreita relação com os conflitos
de conhecimento e as determinações econômicos-políticas” (ALVES, 2013, p. 99).
Alves (2013) estuda também os “mecanismos da hierarquia penais de
vigilância, controle e punição” e a produção dos documentos feitos especialmente
por psicólogos e psicólogas, entendendo-os como uma forma de controle que
transforma as pessoas em “objeto descritível e analisável”. Segundo a autora (2013)
é essa prática que ao encontrar o discurso psi produz o “perito em subjetividades”. A
autora cita Baptista (2002), referindo-se ao “perito de interiores”, que tem “a tarefa
de, para a autoridade judiciária, explicar os comportamentos dos indivíduos, os
comportamentos, as emoções, as motivações, as relações” (ALVES, 2013, p. 101).

Numa reatualização do ‘jogo de verdade’, especialista em interiores,


o psicólogo é convocado a falar de si a verdade sobre a verdade
daqueles indivíduos. Como um ‘jogo de verdade’, os documentos
judiciais, tal como discurso instituído, definem e classificam condutas,
atitudes, radiografam subjetividades, realizam pesquisa sobre a
verdade (ALVES, 2013, p.101).

125
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na perspectiva de atualizar o panorama das atuações no Judiciário, mais


especificamente da Psicologia, ao problematizar a relação entre Psicologia e Direito,
Oliveira (2011) aponta que a psicologia jurídica tida como cientificista e pericial
compromete-se com “valores e escalas mercadológicas contribuiu e ainda contribui
para a reprodução de determinada ideologia de poder, na qual a sujeição da
psicologia provoca a conjugação nefasta de teorias essencialistas e práticas
pseudocientíficas” (página), e complementa:

Nesse sentido, essa psicologia jurídica produz ‘verdades’ sobre o dito


criminoso, os adolescentes infratores, o par parental etc., reificando
sujeitos, condutas, conflitos e disputas, servindo, de forma alienada e
alienante, às exigências meramente avaliativas, normativas e
adaptativas da demanda do mundo jurídico (OLIVEIRA, 2011, p. 69).

Ao abordar o que chama de uma psicologia jurídica clássica (psicologia


do testemunho, psicopatologia forense, aspectos psíquicos embasadores das
decisões judiciais, personalidade e crime, comportamento delitivo), Oliveira (2011)
avalia que essa prática reforça as produções de verdades e respostas acríticas que
desconsideram um contexto histórico e político dos fenômenos analisados, as
relações entre os sujeitos e a sociedade e o lugar da própria psicologia na interface
com o Direito. Em suas palavras (2011), “tende-se a uma prática da psicologia da
interface como prática jurídica comprometida com o poder e com a ideologia pericial”
(OLIVEIRA, 2011, p. 71).
Segundo as reflexões de Oliveira (2011), a Psicologia “deve ser um meio
e não um fim para a produção de supostas verdades sobre seus ‘objetos’” e
complementa:

A exigência ética colocada para a psicologia e para os psicólogos


deve ser orientada por instrumentos, recursos e práticas que
viabilizem o acesso dos sujeitos à palavra, às redes, à própria
história. (...) Um meio de produção crítica e de mediação eficazes na
responsabilização dos sujeitos, dos grupos, das instituições, das
políticas e da sociedade. Por que não garantir à psicologia as
condições necessárias para o bom exercício profissional?
(OLIVEIRA, 2011, p. 72).

126
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Considerando tais referências, o que se buscou levantar muitas vezes


durante as discussões nos encontros do grupo de estudos foram questionamentos
sobre as individualidades e singularidades das pessoas atendidas, considerando
suas histórias e vivências únicas, para além das normas disciplinares que circulam
dentro das muitas instituições, como o Judiciário.

3 - ANÁLISE DOS DADOS COLETADOS

3.1 - UMA ANÁLISE POSSÍVEL - O QUE DIZEM AS EQUIPES TÉCNICAS

Considerando a análise possível de alguns dados do questionário


aplicado, algumas das respostas denotaram a preocupação das/os assistentes
sociais e psicólogas/os paulistas para que a atuação no judiciário seja coerente com
o projeto ético-político de nossas profissões, cujo objetivo maior é a garantia de
direitos da população atendida. Cabe ressaltar a preocupação da maioria dos
profissionais em atuar de forma crítica, desnaturalizando discursos preconceituosos
e buscando intervenções que fomentem reflexões a fim de que haja a desconstrução
de rótulos e modelos pré-estabelecidos. A seguir, algumas respostas que denotam
este olhar:

É preciso considerar que pela defesa das nossas atribuições


podemos defender os direitos sociais. Atribuições respaldadas pela
Lei que regulamenta nossa profissão e pelo nosso Código de Ética
que de forma alguma podem ser violadas.
Temos muito a contribuir com os sujeitos sociais que atendemos,
nossa graduação foi com esse objetivo, nosso compromisso é com a
classe trabalhadora, em seus estratos mais vulneráveis.

Para isso ocorrer, a maioria das/os técnicos apontou a importância de um


atendimento que possa ofertar escuta e acolhimento adequados, no qual se trabalhe
as potencialidades do usuário a fim de que este seja partícipe das decisões que o
envolvam. Há necessidade, portanto, de um olhar cuidadoso, além da troca
interdisciplinar e articulação com a rede.
Todavia, tal preocupação contrapõe-se, por vezes, às condições de
trabalho que nos são oferecidas, principalmente referentes ao espaço institucional

127
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em que estamos inseridas/os e a ausência de profissionais suficientes ao volume de


tarefas que se impõem. A precarização tem repercussão direta nas condições
objetivas e subjetivas de nosso exercício profissional, como exemplificado a seguir:

O papel do profissional se traduz na prática] Criando estratégias


junto à rede socioassistencial; promovendo entendimentos para além
do imediato, mas as potencialidades de cada sujeito; participando de
discussões em rede a fim de que a judicialização seja o último
recurso a ser utilizado; apresentando as lacunas das políticas
públicas e não a culpabilização do indivíduo. No entanto, nos
deparamos com um cotidiano atravessado por múltiplas dificuldades:
materiais, conservadorismo, recursos humanos, formação,
imediatismo, prazos processuais, falta de compreensão do papel da
profissão.

Dentre as maiores dificuldades citadas, destacam-se as condições físicas dos


locais de trabalho, as quais, no geral, são inadequadas; falta de estrutura para que
haja aprimoramento no atendimento à população e a demanda excessiva de casos
encaminhados para avaliação diante de equipes reduzidas:

Infelizmente, a demanda excessiva de trabalho, a escassez de


recursos básicos à população, interesses políticos, vaidade pessoal,
formação deficiente e limitações técnicas em diversas áreas limitam
em muito a efetividade do trabalho dos Setores Técnicos no TJSP.
Com o grande acúmulo de processos, estou sempre com a agenda
lotada e sobra pouco tempo pra atuar de forma mais preventiva (o
que eu realmente gostaria de fazer), estudar e fazer trabalhos com a
rede que fortaleçam as relações e que poderiam, inclusive, evitar a
judicialização de algumas questões.

Outra questão sublinhada foi concernente aos limites de nossa atuação


profissional em razão das expectativas da instituição, a qual, em virtude de sua
hierarquização, burocratização e funcionamento processual, limita as vozes dos
sujeitos atendidos. Ou seja, o que se observa, no momento, é o enrijecimento de
estruturas de poder, que leva ao enfraquecimento tanto das/os técnicas/os do
judiciário quanto da população que procura o sistema de justiça. Assim é apontado:

Considero de suma importância que nossas


estratégias/planejamentos de intervenção seja pautada pela
128
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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centralidade dos sujeitos, são eles que nos dizem as suas reais
demandas (às vezes é aparente e cabe a nós chegar a essência da
solicitação) que por vezes as reconhecemos por meio do estudo
social e seus registros (Laudo, parecer, relatórios), mas não
somente. Por vezes a necessidade maior é de articulação com a
rede de serviços socioassistenciais e seus profissionais e
reconhecermos que a rede (executivo) tem seus limites em virtude do
sucateamento das políticas públicas, não nos cabe responsabilizá-
los, mas enfrentar a questão coletivamente.

As/Os profissionais consultadas/os apresentaram ainda como demanda a


ausência de espaço de interlocução entre as equipes para discussões de caso e
reflexão sobre o cotidiano de trabalho, o que tende a enfraquecer a construção de
posicionamentos coletivos frente a imposições e atravessamentos institucionais que,
por vezes, são contrários aos princípios éticos e políticos das profissões.
A escassez ou mesmo ausência em algumas comarcas de propostas de
formação continuada e supervisões, que venham a qualificar o trabalho,
instrumentalizar os profissionais, facilitar a interlocução entre as equipes e auxiliar a
identificar estratégias de resistência frente a uma estrutura rígida e hierarquizada do
trabalho, também foi verificada em algumas respostas:

Procuro responder às diversas demandas refletindo o tempo todo


sobre este fundamento, procurando me capacitar e atuar
criticamente. Sinto-me as vezes enfraquecida com a complexidade
dos casos, o enrijecimento das estruturas de poder da instituição. A
troca e a sintonia das equipes técnicas nos alivia e sustenta em
muitos momentos. Apesar das iniciativas de capacitação do TJ ainda
sinto muita falta de espaços para discussões de casos e supervisões.
A formação continuada deve ser constante, o planejamento das
ações, o conhecimento da legislação, enfim, é preciso desenvolver
as três dimensões do serviço social teórico-metodológica/técnico-
operativa e ético político.
As falhas na formação profissional, as precárias condições de
trabalho às quais estão submetidos os técnicos e a ausência de
educação permanente (capacitações/aprimoramento), entre outros...
Somos produtores de laudos, sem estrutura de se aprimorar em um
tipo de atendimento, prestando serviços em todas as áreas.

Outro aspecto elencado foi a percepção de assistentes sociais e


psicólogas/os de que a especificidade técnica de seu trabalho é pouco
compreendida pelas/os operadoras/es do Direito com os quais lidam cotidianamente,
desde juízas/es, promotoras/es, defensoras/es a funcionárias/os do cartório. Espera-
se que o trabalho técnico se insira na lógica dos prazos processuais:
129
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Porém, infelizmente não percebo um conhecimento por parte do MP,


Magistrados, Defensoria, e Psicologia sobre: o que é o Serviço Social
e seu papel dentro do Judiciário.
Dificuldades para negociação de condições físicas de trabalho;
Busca por cursos e orientações sobre praticas;
Não compreensão de cartórios sobre trabalho realizado
Necessidade de investigação e trocas de experiências constantes,
dada a unicidade de cada caso.

3.2 - A VERDADE E A FORMA DAS DEMANDAS:

O posicionamento de nosso grupo de estudos se coloca em contraponto


ao posicionamento de profissionais que consideram que a atuação no Poder
Judiciário está diretamente relacionada à realização de perícias. Tal posicionamento
encontra-se presente em algumas das respostas apresentadas pelas psicólogas e
psicólogos participantes da pesquisa, à pergunta “A seu ver, qual é o papel da(o)
assistente social/ psicóloga(o) no TJSP?”.
Uma das psicólogas respondeu que se trata de “Atender as demandas da
população que busca o judiciário para garantia de direitos”, enquanto outra resposta
indica que o papel é “dar visibilidade à criança e ao adolescente, e a família em
condição de vulnerabilidade social como sujeitos de direitos”, compreensões estas
muito diversas do conceito de perícia propriamente dita.
Consideramos que devem, psicóloga/o e assistente social, atuar com a
finalidade de garantir os direitos da população atendida, de acordo com as
demandas trazidas e as identificadas. No início de sua relação com o Direito,
prestava-se a Psicologia e o Serviço Social ao papel de responder e atender às
demandas e expectativas desta outra ciência, com uma perspectiva normatizadora,
patologizante e assistencialista. As pessoas pertencentes a classes sociais não
privilegiadas eram atendidas sob esta ótica.
Com a entrada no Tribunal de Justiça, a Psicologia busca marcar seu
lugar, a partir de projetos diferentes de profissão e de ciência. Acreditamos em uma
ciência e profissão que se propõe a ser garantidora de direitos e promotora de
autonomia, de modo a fazer o enfrentamento às diversas violências às quais a
população se encontra exposta, inclusive a violência institucional. O próprio Código
de Ética Profissional do Psicólogo dispõe, em seu princípio fundamental II, que “O
130
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e


das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Uma das
respostas aponta para a importância de se considerar as questões de raça, gênero e
classe e de se refletir sobre “os atravessamentos da instituição judiciária [e...] as
trajetórias de exclusão e violação de direitos das famílias [...]”.
Consideramos, portanto, que a atuação deve se basear na premissa de
que, além das questões sociais, políticas e econômicas, também as normas jurídicas
atravessam e constroem as subjetividades. Porque, antes de tudo, o psicólogo
jurídico é psicólogo, ainda que sem a adjetivação. Uma das respostas ressalta a
importância de

construir reflexões em conjunto com os sujeitos envolvidos nos


processos, de modo a criar possibilidades de produção de
autonomia e auxiliar os operadores do direito a intervir nas
situações a partir de compreensões mais amplas das
problemáticas [...]. (grifo nosso)

Neste contexto, pensamos que a atuação não apenas da Psicologia, mas


também do Serviço Social, no âmbito judicial não deve ter o condão de buscar a
verdade objetiva dos fatos, visto que tratam de singularidades e individualidades de
sujeitos inseridos em contextos sócio-político-social subjetivos.
Desta forma, cabe à psicóloga e à assistente social fazerem uma releitura
da demanda que lhes é apresentada, de modo a colocar em foco a pessoa atendida,
esta sim como centro do serviço, que trata, sobretudo, do humano.
Em relação ao Código de Ética Profissional da Psicologia, o princípio
fundamental VII aponta que “O psicólogo considerará as relações de poder nos
contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades
profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais
princípios deste Código.” Ou seja, embora no contexto jurídico exista
indubitavelmente uma relação hierárquica entre as duas ciências, um saber não
deve se sobrepor ao outro, pois tal relação, no âmbito do conhecimento, deve ser
complementar, e não de subordinação.

131
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Embora alguns autores apontem a realização de perícia stricto sensu


como a base norteadora do exercício da profissão no Poder Judiciário, amparados
pela Lei de criação dos Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, Lei n.º
4.119/62, em seu art. 13.º, § 2.º. “É da competência do Psicólogo a colaboração em
assuntos psicológicos ligados a outras ciências”, fazemos a leitura de que, estando a
lei a serviço dos indivíduos, a Psicologia está, sim, quando atua de forma
interventiva, a serviço do Direito, este compreendido, então, como instrumento da
garantia de “Direitos” da cidadã e do cidadão. Ainda com base no Código de Ética,
no princípio fundamental VI, observamos que, estando atento às relações de poder,
a psicóloga e o psicólogo devem zelar “para que o exercício profissional seja
efetuado com dignidade, rejeitando situações em que a Psicologia esteja sendo
aviltada”.
Conforme explanado e apontado em diversas respostas à pesquisa, são
muitas as contribuições que a Psicologia e o Serviço Social podem ofertar ao Direito,
desde trazer a dimensão humana, psicossocial e a subjetividade das pessoas para
as folhas frias dos processos, numa perspectiva garantidora de direitos humanos,
até contribuir com indicações de políticas públicas e fortalecer a rede de garantia de
direitos da população atendida.
Os projetos profissionais sintetizam referências teóricas, técnicas, éticas e
políticas para o exercício profissional. O Serviço Social brasileiro construiu ao longo
das últimas décadas um projeto profissional historicamente tornado hegemônico com
orientações de bases normativas e valorativas pelas quais a profissão se relaciona
internamente e com a sociedade, sendo um conjunto de referências metodológicas
para a intervenção, posturas e modos de operar construídos e legitimados pela
categoria profissional, cujos conteúdos objetivem a crítica da sociedade capitalista
(NETTO, 2009).
Nesse sentido, algumas das respostas de assistentes sociais, ainda que
brevemente analisadas, ressaltam a referência expressa neste projeto: “Atuar de
acordo com nossos princípios éticos é um grande desafio”; “afinidade com projeto
ético-político do Serviço Social”; “Atuar nos casos e em projetos relacionados às
questões atendidas no Judiciário de acordo com o projeto ético-politico da profissão”;
“a apresentação dos laudos alinhados ao projeto ético-político”.

132
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Ainda está por vir a necessária reflexão sobre a interiorização apenas


formal deste vocabulário pós reconceituação do Serviço Social, tornando-o apenas
um jargão profissional. Mas o que aqui queremos destacar é que quando preenchido
com o exercício profissional real e seus desafios palavras como projeto ético político,
questão social, compromisso, são mais do que jargões e clichês e se tornam cheios
de sentido.
Assim sendo, qual a diferença na intervenção de uma/um profissional que
tem nitidez do seu projeto profissional daquela/e que não a tem? Quando nos
referenciamos por um projeto profissional crítico, podemos estabelecer o limite entre
uma prática imediatista, espontânea, intuitiva, manipulatória e aquela que tem uma
clara direção sociopolítica.
As referências ao projeto ético político também se fazem presentes nas
respostas de assistentes sociais quando retomam valores éticos centrais na
profissão, assim estabelecidas pelo Código de ética profissional de 1993, pela Lei de
Regulamentação da Profissão (8662/1993) e pelas Diretrizes Curriculares para os
cursos de Serviço Social da ABEPSS (1996).
Resumidamente, assistentes sociais, em seus Princípios Fundamentais,
têm a liberdade como valor ético central; além do compromisso com a autonomia, a
emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais; se vincula a um projeto
societário que propõe a construção de uma nova ordem social, sem
exploração/dominação de classe, etnia e gênero; afirma a defesa intransigente dos
direitos humanos e o repúdio do arbítrio e dos preconceitos; se posiciona a favor da
equidade e da justiça social, na perspectiva da universalização do acesso a bens e a
serviços relativos às políticas e programas sociais; a ampliação e a consolidação da
cidadania são explicitamente postas como garantia dos direitos civis, políticos e
sociais das classes trabalhadoras; o projeto se declara radicalmente democrático;
assume um compromisso com a competência, que só pode ter como base o
aperfeiçoamento intelectual da/o assistente social; e tem como componente
elementar o compromisso com a defesa dos interesses da classe trabalhadora
(NETTO, 2009).
Boa parte das respostas de assistentes sociais menciona o exercício
profissional na direção da “garantia de direitos”:

133
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O principal é a garantia de acesso à justiça e de trabalhar para que


as decisões judiciais também garantam direitos e não promovam
violações.
Conhecer/desvelar a realidade social dos sujeitos sociais envolvidos
nas ações judiciais com o objetivo de contribuir para o acesso aos
seus direitos.

Outras respostas de assistentes sociais enfatizam um trabalho no Estado,


mas que extrapole o caráter controlador e punitivista deste, sendo as/os profissionais
do TJ também responsáveis por denunciar / mobilizar / potencializar forças
democráticas e democratizantes:

[...] as intervenções extrapolam o limite de uma avaliação burocrática


e controladora (como prevê essa face do Estado) e serve como
instrumento de acesso à justiça social, aos direitos humanos e como
um material de denúncia das barbáries dessa forma de sociabilidade
que vivemos atualmente.
A partir das demandas dos usuários, deve-se apontar as lacunas na
execução das políticas públicas de proteção social e, na medida do
possível, propor estratégias para a superação das questões.
[...] pois no judiciário talvez os setores psicossociais sejam os únicos
a olhar de forma humana para os sujeitos.

Na medida em que se colocam como profissionais inseridos em um


projeto, e não em uma prática automática, rotineira e burocrática, muitas respostas
ressaltam a necessidade, em um exercício profissional de direção crítica, de ir para
além do imediato, buscando uma perspectiva de totalidade:

[...] utilizar seu saber para apresentar além das dinâmicas familiares
concretas ou imediatas, mas o contexto histórico-social que os
sujeitos/as famílias estão inseridos/as. Isto se traduz enquanto
resistência dentro de uma sociedade e, especialmente, uma
instituição tão conservadora e mantenedora do status quo.
Vejo a importância do assistente social ser capaz de olhar a família
que atende, de percebê-la em um contexto maior, mais amplo, de
dar-lhe voz e de apresentá-la à justiça com suas peculiaridades, sua
história, dores, vivências e possibilidades.
Trazer elementos, através do estudo social, que possam contribuir na
compreensão da realidade social em uma perspectiva de totalidade e
garantia de direitos.
Orientar e refletir com indivíduos e famílias sobre os determinantes
socioeconômicos, culturais, de gênero e étnico-raciais que

134
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

perpassam suas vivências, esclarecendo e encaminhando para


acesso aos direitos sociais.
Contribuir no processo de decisões judiciais, desvelando aspectos da
realidade social da família que a princípio se manifestam
superficialmente, e precisam ser observadas além do aparente para
que direitos possam ser garantidos.

Essas falas reforçam a possibilidade histórica de competência crítica para


que o projeto profissional ofereça respostas concretas, mas não quaisquer respostas
e sim as de cunho democrático, que visem à democratização da vida social, do
poder político e econômico, indicando os meios de realizá-los:

Ao clarificar seus objetivos sociais, realizar escolhas moralmente


motivadas, compreender o significado social da profissão no contexto
da sociedade capitalista, escolher crítica e adequadamente os meios
éticos para o alcance de fins éticos, orientados por um projeto
profissional crítico, os assistentes sociais estão aptos, em termos de
possibilidade, a realizar uma intervenção profissional de qualidade,
competência e compromisso indiscutíveis (GUERRA, 2007, p. 15).

De certo, a menção aos projetos profissionais ou aos valores éticos das


profissões não garantem sua efetivação. No entanto, sua presença constante nas
respostas, sobretudo quando aliada a estratégias de resistência ao instituído,
indicam uma possibilidade concreta de um exercício profissional crítico, propositivo,
criativo, interventivo e consciente, para além da peritagem.

135
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4 - CONCLUSÃO

Um dos objetivos traçados durante as discussões era apresentar, neste


artigo, o percurso de trabalho e de reflexão realizado durante todo o ano de 2018, o
qual fundamentou e deu origem à pesquisa. No entanto, ao longo dos encontros,
muitos atravessamentos aconteceram, o que comprometeu a análise integral dos
dados dos questionários e, consequentemente, nossa pretensão final, mas não as
potências e reflexões do grupo.
Embora não tenha sido possível neste ano a análise na profundidade
desejada, o estudo de algumas das respostas recebidas possibilitou observar que a
maioria das/os profissionais, a nosso ver, demonstrou cunho crítico e reflexivo. Ao
ler as argumentações, observamos a preocupação das/os profissionais em trabalhar
para a garantia de direitos por meio de uma escuta qualificada, além de fomentar a
participação da/o usuária/o em decisões que impactam sua vida. Foi apontada a
importância de um trabalho em rede através da articulação dos diversos atores
envolvidos no processo judicial e também por meio da elaboração de laudos, com a
problematização e contextualização de questões percebidas durante a atuação no
caso, subsidiando as decisões judiciais. Salientou-se, ainda, a necessidade da
contínua capacitação e de espaços de reflexão para as/os técnicas/os do judiciário.
A construção da fundamentação teórica da pesquisa e o percurso
metodológico de coleta de dados, estabelecimento das categorias de análise e
análise inicial do material nos permitiu problematizar a função de perita/o no âmbito
judiciário, destacando a importância da desconstrução deste papel, considerando
uma atuação pautada nos códigos de ética de nossas categorias profissionais.
Refletimos sobre as diferenças de uma identidade atribuída, ou seja, aquilo que é
esperado pela instituição, daquilo que pode ir além do demandado, através da
construção de identidades. Observamos que o trabalho no judiciário pode ser
concebido como: algo estritamente pericial; como interventivo; ou em uma atuação
que transita nessas duas linhas.
O Grupo de Estudos, nos últimos três anos, tem discutido o cotidiano da
prática profissional e também os atravessamentos do próprio cotidiano de trabalho
nesse processo de pensar criticamente essa prática. Ao longo dos anos, muitas/os
assistentes sociais e psicólogas/os que integram o grupo não puderam comparecer

136
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

às discussões, outras/os desistiram do grupo ou têm as atividades de reflexão em


grupo comprometidas diante das demandas de trabalho em suas respectivas
Comarcas.
Ao longo das atividades e encontros no grupo, temos pensado o Fazer
cotidiano Fazendo, refletindo sobre a ação em curso e em movimento. “Fazer” no
sentido resumido de atuar eticamente implicando em pensar de modo crítico sobre
todos os atravessamentos que permeiam a atuação profissional e a vida das
pessoas atendidas. “Fazer” no sentido de cumprir prazos, manifestar-se nos autos,
cumprir determinações judiciais, organizar escalas e cronogramas de atendimentos,
elaborar documentos a partir de tais atendimentos, articular com outros serviços das
redes de proteção, buscar qualificações profissionais e teóricas etc. “Fazer” no
sentido de atender à demanda cada vez maior de processos nos quais as/os
assistentes sociais e psicólogas/os são convocadas/os a atuar na Instituição.
Ou seja, na impossibilidade de atuar numa prática desvinculada da
realidade, efetivar os projetos ético-político-profissionais se dá no marco da
sociedade capitalista e, portanto, do trabalho assalariado. Daí a importância de
articular estrutura e ação do sujeito; liberdade e necessidade: discutindo o projeto
nas condições reais de trabalho. Pois, são nas condições reais históricas em que se
exercem as profissões, sem cair no fatalismo nem no messianismo, que podemos
recriar a prática profissional.
Nesses processos de Pensar o Fazer Cotidiano fomos constantemente
atravessados pelo próprio fazer: os objetos sobre os quais refletimos atravessavam-
nos quando refletimos sobre eles. Quando propusemos a pesquisa, o desejo inicial
era motivador e possível. A cada encontro, começamos a refletir sobre os dados, e
apenas na reta final começamos a sentir os desgastes, cobranças e exigências de
cada profissional com suas respectivas demandas, agendas de atendimento, quando
compreendemos que a entrega profissional para a análise de todos os dados estaria
comprometida.
Por outro lado, o resultado final apenas parcial não significa uma
incompletude displicente. Pode apontar para como o Pensar o Fazer é, no Tribunal
de Justiça, no Cotidiano da prática profissional das/os assistentes sociais e
psicólogas/os, constantemente atravessado pelas próprias exigências desse Fazer.

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É possível, no entanto, apontar como as respostas do questionário


aplicado denotaram a preocupação das/os assistentes sociais e psicólogas/os
paulistas para que a atuação no Judiciário esteja coerente com o projeto ético-
político, cujo objetivo maior é a garantia de direitos da população atendida.
E a incompletude do trabalho pode apontar para a reflexão de que não
bastam as preocupações das/os psicólogas e assistentes sociais do TJ com o
compromisso ético-político de suas categorias, mas é preciso mais, e que a resposta
para isso ainda está em construção.

138
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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140
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DEPOIMENTO ESPECIAL: A EXPERIÊNCIA DO GRUPO DE


ESTUDOS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DE SÃO PAULO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“DEPOIMENTO ESPECIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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COORDENAÇÃO

Camille Soares de Aguiar – Assistente Social Judiciário – Serviço Técnico de Serviço


Social da Coordenadoria da Infância e da Juventude
Irene Pires Antonio – Psicóloga Judiciário – Serviço de Depoimento Especial

AUTORES

Adalmir Sandro da Luz Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Suzano


Anna Christina da Motta Pacheco Cardoso de Melo – Psicóloga Judiciário – Fórum
Ministro Mário Guimarães
Florival Scheroky – Psicólogo Judiciário – Comarca de Taboão da Serra
Isabel da Silva Amaral – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Caetano do Sul
Lucimara de Souza – Psicóloga Judiciário – Foro Regional I - Santana
Maisa de Melo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Espírito Santo do Pinhal
Mara Cristina de Maria – Psicóloga Judiciário – Fórum Ministro Mário Guimarães
Maria Inês de Souza Gandra – Psicóloga Judiciário – Foro Regional II - Santo Amaro
Monica Potzik – Psicóloga Judiciário – Fórum Ministro Mário Guimarães
Nêmora Sueli Melo Fernandes – Psicóloga Judiciário – Comarca de Casa Branca
Patrícia Lopes Salzedas – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jardinópolis
Patrícia Vendramim – Psicóloga Judiciário – Coordenadoria do Núcleo de Apoio
Profissional de Serviço Social e Psicologia da Coordenadoria da Infância e da
Juventude
Regiane Vieira Martins Mussi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pereira
Barreto
Rita de Cássia Nunes de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Foro Regional VI - Penha
de França

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

A implantação do Depoimento Especial (DE) no Tribunal de Justiça de


São Paulo iniciou-se no ano de 2011, a partir de iniciativa da Coordenadoria da
Infância e da Juventude com um Projeto Piloto em quatro comarcas: Atibaia,
Campinas, Guarulhos e São Caetano do Sul. Naquele ano, ocorreu a primeira
capacitação, ministrada pela Psicóloga e Psiquiatra Dra. Irene Intebi para
Assistentes Sociais, Psicólogos, Juízes, Promotores de Justiça, Delegados e demais
profissionais da rede de proteção à criança e ao adolescente.
O principal objetivo do projeto piloto para as comarcas era evitar a
revitimização da criança/ adolescente ao contar sobre uma situação de violência
supostamente sofrida, por meio de:
- Inclusão do conceito de Proteção Integral à criança e ao adolescente
envolvidos em situação de violência sexual;
- Capacitação dos profissionais que compõem o Sistema de Garantia de
Direitos de Crianças e Adolescentes;
- Articulação da rede de Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e
Adolescentes;
- Compreensão abrangente dos fenômenos de violência;
- Entrevista realizada por profissional especializado;
- Redução do número de relatos;
- Diminuição do lapso temporal entre a denúncia e o depoimento no
Judiciário;
- Criação de ambiente mais adequado e acolhedor para a criança/
adolescente ser ouvida.
Aponta-se que o objetivo principal, além da proteção de crianças/
adolescentes envolvidos em situações de violência, mantém-se no momento atual.
Em 2014, houve a expansão da implantação do Depoimento Especial,
alcançando 28 Comarcas no Estado.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em 2016 foi criado o SANCTVS - Setor de Atendimento de Crimes da


Violência contra Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Vítima de Tráfico Interno
de Pessoas(1), anexo à 16ª Vara Criminal, que realiza o Depoimento Especial de
crianças e adolescentes do município de São Paulo que não se enquadram na Lei
Maria da Penha. A principal prerrogativa deste setor é ser híbrido, contemplando
tanto ações de cunho protetivo quanto criminal.
Com a vigência da Lei nº 13.431/2017(2), que normatiza e organiza o
Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente vítimas ou testemunhas
de violência, o Depoimento Especial se expandiu por todo Estado de São Paulo. A
partir de então, a Presidência do TJSP definiu a capacitação dos psicólogos e
assistentes sociais judiciários, entendendo esses profissionais como os especialistas
para realização do Depoimento Especial (Provimento CG nº 17/2018 / Processo nº
2018/59790, Parecer 369/2018-J)(3).
Em decorrência da necessidade dos profissionais dos setores técnicos em
aprofundar as reflexões e discussões a respeito do Depoimento Especial, criou-se o
presente Grupo de Estudos.

1 - O GRUPO DE ESTUDOS “DEPOIMENTO ESPECIAL” –


CARACTERÍSTICAS E PECULIARIDADES

Inicialmente, o grupo de estudos contava com sete profissionais que, por


terem feito parte do projeto piloto (2011) ou da expansão das salas (2014), já tinham
vivenciado a prática do Depoimento Especial. Tais profissionais estavam lotados na
Coordenadoria da Infância e da Juventude e nos seguintes Fóruns: São Caetano do
Sul, Taboão da Serra, Penha, Santana, Barra Funda (SANCTVS) e Guarulhos. Ao
longo do ano, outros colegas lotados nas Comarcas de Suzano e Pereira Barreto
deram início a este trabalho.
Cabe lembrar que outros profissionais também vieram agregar nas
discussões, tendo se aproximado motivados por um interesse prévio e/ou
despertado pela vigência da Lei nº 13.431/2017. Ressalta-se que em algumas
regiões a metodologia está em fase de implantação: discussão de fluxo com a Rede
e/ou instalação do equipamento de filmagem.
Em função da heterogeneidade do grupo, havia diferentes expectativas
com relação ao que seria abordado no grupo de estudo. Alguns integrantes
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desejavam conhecer sobre o assunto e os procedimentos adotados, enquanto outros


esperavam discussões sobre os problemas encontrados na prática.
Diversos temas foram levantados para serem discutidos, entre eles:
histórico do Depoimento Especial, conhecimento das normas e Leis relacionadas,
dinâmica das situações de violência, estudo dos diferentes protocolos, entre outros,
o que se mostrou inviável. Desta forma, decidiu-se pela contextualização histórica e
estudo do Protocolo de São Paulo, bem como pela exposição da experiência dos
integrantes.
As discussões entre os componentes do grupo revelaram que embora
estivessem todas e todos vinculados ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
diversos fatores contribuem para uma grande diversidade na organização do
trabalho de cada Comarca, dentre os quais: o tamanho e entrosamento da equipe
técnica, a metodologia utilizada pelos profissionais, a demanda, o volume de
trabalho e a complexidade de cada situação atendida. Além disso, foi observado que
a forma como cada magistrado conduz e considera o trabalho junto à equipe técnica
– e vice versa – também é um fator determinante desta organização.
Foi apontado por integrantes do Grupo de Estudos que, em decorrência
da aprovação da Lei nº 13.341/2017 e pela necessidade de sua implementação, os
Depoimentos Especiais foram realizados em diversas Comarcas. Isto ocorreu de
forma peculiar em cada uma delas em razão da novidade da atividade para todos os
envolvidos, por questões de adequações aos equipamentos, pela necessidade de
garantir o respeito pelo momento e possibilidade da vítima. Enfim, na medida em
que se iniciou a prática, foi possível perceber a sua complexidade e necessidade de
uma série de ajustes por parte dos profissionais, especialmente com o intuito de
proteger a criança ou adolescente e garantir seus direitos fundamentais.
Discutiram-se, também, as orientações, notas e resoluções dos
Conselhos de Classe que não recomendam a realização do DE e o posicionamento
dos profissionais diante de tais demandas.
Este cenário possibilitou reflexões e debates que enriqueceram o
trabalho, bem como, por vezes, deixaram pontos não esclarecidos e/ou divergentes,
que se pretendem retomar nos próximos anos.

- AVALIAÇÃO PRÉVIA

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em meio à pluralidade de questões levantadas pelo grupo, houve


consenso de que as avaliações (psicológica e social) prévias à realização do
depoimento especial são fundamentais para a execução do procedimento pelos
profissionais.
O Comunicado Conjunto CGJ/CIJ nº 1.948/2018(6) reafirmou a avaliação
prévia como ato integrante do protocolo de depoimento especial adotado pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Historicamente, a realização da avaliação prévia já faz parte do Protocolo
CIJ - Coordenadoria da Infância e da Juventude, nº 066030/11, publicado no Diário
(7)
da Justiça Eletrônico em 30/05/2011, e foi instituída por construção interdisciplinar
a partir da demanda dos psicólogos e assistentes sociais participantes daquele
momento, com vistas a inserir, de forma mais clara, a natureza técnica de suas
profissões nos procedimentos de depoimento especial.
A avaliação prévia no processo criminal tem a finalidade de:
a) Conhecer o caso: a situação da criança/adolescente e de sua família, o
contexto em que as supostas violências aconteceram;
b) Explicar, com transparência, os procedimentos pelos quais a criança
passará;
c) Avaliar a criança/adolescente envolvida como vítima e/ou testemunha:
sua condição psicoemocional e social; seus recursos cognitivos; sua capacidade,
vontade e aceitação para participar do Depoimento Especial;
d) Estabelecer um vínculo de confiança com a criança/adolescente que
lhe propicie maior sentimento de segurança ao relatar;
e) Conhecer, de forma ampla, o fenômeno da violência na situação;
f) Avaliar a dinâmica familiar e a condição da família e/ou responsáveis
de proteger a criança/adolescente;
g) Avaliar se estão garantidos os Direitos da criança/adolescente;
h) Verificar se está em atendimento especializado e, caso necessário,
realizar os encaminhamentos para a área da saúde, assistência social ou qualquer
outro visando à proteção e garantia de direitos.
Para a coleta de dados, o profissional possui autonomia técnica na
escolha dos instrumentais e procedimentos a serem utilizados, entre eles:
- Estudo dos autos;

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- Entrevistas individuais e/ou conjuntas;


- Observação lúdica;
- Observação das interações;
- Técnicas gráficas;
- Testes psicológicos, escalas, inventários, questionários;
- Visitas domiciliares;
- Discussões de casos, contatos e reuniões com a rede;
- Orientações.
Quanto a(o) averiguada(o), alguns integrantes do grupo consideram que
entrevistá-lo pode auxiliar na compreensão da situação de violência apresentada,
bem como permitir que, como envolvido no processo, possa ser ouvido pelo técnico.
No entanto, sua participação na entrevista é facultativa e não há cunho diagnóstico,
no sentido de avaliá-la(o) como abusadora(o) e/ou pedófila(o) ou não.
Sobre a situação de violência em si, no momento da avaliação prévia a
orientação é não abordar a criança/adolescente diretamente a fim de prevenir a
revitimização com inúmeros relatos. Esclarece-se a ela(e) desde o início, que haverá
situação oportuna para tal, ou seja, o momento do depoimento especial. Contudo,
caso a criança/adolescente relate espontaneamente a situação de violência, o
profissional escuta e acolhe, tentando compreender e pactuar a possibilidade do
assunto ser abordado novamente por ocasião do depoimento especial.

- ANTECIPAÇÃO DA PROVA

Um ponto que trouxe dúvidas acerca da competência e atuação dos


psicólogos e assistentes sociais judiciários refere-se à antecipação da prova prevista
na Lei nº 13.431/17.
Aponta-se que, de acordo com o Comunicado Conjunto CGJ/CIJ nº
1948/2018 não é competência das equipes técnicas participar de avaliação no bojo
do inquérito policial:

III. A escuta especializada NÃO é atribuição das equipes técnicas


do Poder Judiciário, formada por psicólogos e assistentes sociais, e,
por isso, deve ficar a cargo exclusivo dos órgãos de assistência
social, assistência à saúde ou polícia e seus respectivos técnicos.
Também não compete às equipes técnicas do Poder Judiciário
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

(psicólogos e assistentes sociais) participar de avaliação


interdisciplinar no bojo de inquérito policial (p. 01).

No entanto, nos casos em que a Lei prevê a produção antecipada da


prova, a atuação da equipe se dará de maneira semelhante ao procedimento no
curso do processo, realizando, de igual forma: a avaliação prévia, o depoimento
especial e o fechamento.
Ressalta-se que a produção antecipada de provas faz parte de um
processo, portanto, passível de atuação dos setores técnicos, sendo este uma
medida legal, que tem por finalidade a produção da prova testemunhal de forma
antecipada. Espera-se que seja esta a única escuta da criança/adolescente
envolvida(o) na situação de violência.
Os casos em que a antecipação de provas será realizada são:
- Os de violência sexual, independentemente da idade da criança ou do
adolescente;
- Todos em que a criança envolvida tiver idade inferior a 7 (sete) anos,
independentemente da natureza do delito;
- Outras violências (excetuando a sexual), nas quais vítima ou testemunha
tenham idade superior a 7 (sete) anos, sempre que o tempo de espera possa causar
prejuízo ao desenvolvimento da criança ou do adolescente.
Reflexões Éticas
Segundo Roque e cols. (2014)(8), a inquirição judicial, em casos de
violência sexual, não protege crianças e adolescentes da violência secundária, o que
está em desacordo com a prioridade imediata e absoluta assegurada às crianças e
adolescentes pela Constituição Federal Brasileira. Frente a esta constatação,
entende-se que o manejo do depoimento especial por assistentes sociais e
psicólogos judiciários pode garantir direitos de crianças e adolescentes na realização
do DE, sobretudo quando feito de forma interdisciplinar, levando-se em conta que a
formação desses profissionais abarca o estudo de questões relacionadas ao
desenvolvimento infanto-juvenil, o uso de técnicas de entrevista, a compreensão do
ser humano do ponto de vista psicossocial e a atenção para as necessidades da
pessoa sob a ótica psicossocial.
Por outro lado, toda atividade desenvolvida por psicólogos e assistentes
sociais deve contemplar os aspectos éticos das referidas profissões, e deve ser
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

considerado que a escuta oferecida por estes profissionais a crianças e


adolescentes (na rotina de trabalho) apresenta diferenças com relação à realização
de um depoimento judicial.
No que se refere à atuação do psicólogo, no art. 1º do Código de Ética do
Psicólogo(9), item b, entre os deveres fundamentais desse profissional, destaca-se:
“assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais
esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente”, e, neste aspecto, a avaliação
prévia à realização do DE atende essa normativa. Importante salientar que a Nota
Técnica do nº 1/2018 do Conselho Federal de Psicologia pontua que há diferenças
conceituais e metodológicas entre inquirição judicial e escuta psicológica.
A partir dos debates do grupo de estudos e questões éticas levantadas
acerca da participação de assistentes sociais e psicólogos no depoimento especial,
faz-se relevante citar que os fundamentos norteadores do trabalho de tais
profissionais, advindos de seus respectivos Códigos de Ética, evidenciam a
necessidade do estabelecimento de diálogos tanto com as entidades de classe
quanto com o Tribunal de Justiça de São Paulo. Tal diálogo objetiva a proteção de
crianças e adolescentes durante o depoimento especial, iniciando pela consideração
das características e limites técnicos e éticos do trabalho realizado pelos
profissionais psicólogos e assistentes sociais.
No que tange à Psicologia, em seus princípios éticos fundamentais: “o
psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e
das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, o que
mostra que uma entrevista/trabalho psicológica(o) abrange o aspecto interventivo, de
acolhimento de demandas emocionais da pessoa, e não pode ser reduzida a
perguntas e respostas sem se considerar todo aspecto emocional envolvido nessa
escuta. Assim, considera-se que a escuta (pelo psicólogo) de crianças e
adolescentes vítimas de violência sexual poderá trazer benefícios na promoção da
saúde e qualidade de vida de tais vítimas desde que sejam também considerados
estes princípios norteadores.
As orientações éticas dos Conselhos de Classe salientam que a atuação
dos profissionais de Psicologia e de Serviço Social tem como prioridade a pessoa
humana, e no caso de crianças e adolescentes, respeitando sua condição de ser em

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

desenvolvimento. Porém, dentro de um Sistema de Justiça que prioriza os ritos, as


provas e os procedimentos, muitas vezes, a criança ou adolescente, pode ficar em
segundo plano, ocupando o lugar de um objeto para produção de provas, sem levar
em conta justamente o aspecto humano sobre as possibilidades de realizar, ou não,
o relato da violência. Imprescindível não deturpar o direito de falar com a
obrigatoriedade de falar, o que por si só, já se caracterizaria como mais uma
violência contra a criança ou o adolescente.
Um segundo ponto refere-se à possibilidade da realização de
encaminhamentos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual a partir
dos relatos durante a escuta, como parte do trabalho profissional, tendo em vista o
significado destrutivo, de morte, que pode ser atribuído à violência sexual por suas
vítimas(10). Os encaminhamentos nesse contexto visam à diminuição e interrupção
do ciclo de violência e o tratamento da criança/adolescente. Portanto, a participação
das equipes interprofissionais do juízo na dinâmica do depoimento especial vai muito
além do momento da efetiva escuta, levando-se em conta o necessário respeito à
autonomia técnica dos profissionais na condução de seu trabalho.
A experiência em relatar suas vivências pode também trazer um profundo
alívio para a criança e/ou adolescente, pois finalmente esta pode dar vazão aos
sentimentos de tristeza, culpa, medo, além de se sentir “ouvida” de forma adequada,
sendo dado crédito à sua narrativa, bem como respeitando seus limites e
necessidades, entre outros aspectos. Tal alívio pode ser reparador, podendo a
criança resignificar suas vivências ao falar sobre elas, passando de vítima à
protagonista de sua própria história, podendo, enfim, seguir em frente apesar da
violência sofrida(11).
Llanos & Siclair (2001)(12), trazem que há três etapas importantes a serem
cumpridas pelas vítimas de abuso sexual: 1) reconhecer-se como vítima; 2)
reconhecer-se como sobrevivente do abuso, e, 3) celebrar a vida (ser superador
desta vivência, apesar disso ter ocorrido). Tal fato se dá a partir do momento em que
a criança pode verbalizar o ocorrido, sendo que o profissional é o responsável por
auxiliá-la nesse percurso.
Cabe destacar que cada criança/adolescente deve ser tratada de maneira
individualizada, verificando-se através da avaliação prévia, se é possível a

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

recordação e narrativa da violência sofrida sem acarretar à vítima um incremento do


sofrimento já vivenciado.
Por fim, importante lembrar que a condução do depoimento especial pode
mobilizar sentimentos no entrevistador, sendo recorrentes relatos de profissionais
dos setores técnicos do judiciário, de consequências físicas e emocionais, após
terem conduzido um depoimento especial. Neste momento estão colocadas duas
necessidades essenciais: supervisão sistemática e qualificada da prática do DE, em
especial por se tratar de uma atividade nova e com pouco referencial teórico para
auxiliar nas reflexões, e acolhimento /cuidado com os profissionais que conduzem o
depoimento especial.
Ressalta-se, ainda, que há profissionais que expressam não desejarem
realizar tal atividade, todavia, este é um ponto de difícil resolução, sobretudo se
considerarem-se tanto as normativas institucionais quanto a falta de consenso no
que diz respeito à possibilidade de criação de equipes de profissionais
especializadas (exclusivas) para a execução do depoimento especial.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das discussões realizadas pelo Grupo de Estudos ao longo do


ano, pôde-se pensar em uma série de questões teóricas, metodológicas, políticas e
éticas que necessitam de estudo e aprofundamento. Refletir sobre a natureza e os
objetivos de cada uma das disciplinas envolvidas e ponderar sobre possíveis
implicações na realização do Depoimento Especial foi imprescindível.
Eticamente o Serviço Social e a Psicologia estão atrelados ao contexto de
proteção integral de crianças e adolescentes e Garantias de Direitos. Desta forma, a
atuação desses profissionais deve pautar-se nesses princípios, mesmo quando a
demanda institucional é o Depoimento Especial.
No que se refere à interdisciplinaridade, este é um campo fértil, porém
complexo, que necessita de atenção e cuidado dado às características da instituição.
Dentro deste contexto de interdisciplinaridade, vale pontuar a importância
do constante diálogo entre os diversos saberes e profissionais que atuam na Justiça,
tendo em vista, que a diversidade das formações, muitas vezes pode propiciar
visões de mundo e do ser humano distintas, porém, é possível buscar na
superação de tais desafios e na realização desta atividade, uma nova oportunidade
de aprendizado e crescimento efetuando um trabalho que priorize o ser humano.

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REFERÊNCIAS

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Lei 13.431/2017 – Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança


e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069/1990
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Provimento CG Nº 17/2018 – publicado no DJE de 08 de junho de 2018.


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da Lei nº 13.431/2017 na atuação das psicólogas e dos psicólogos.

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inquirição das vítimas crianças e adolescentes no processo judicial, sob a
Metodologia do Depoimento Sem Dano/DSD, como sendo atribuição ou
competência do profissional assistente social.

Comunicado Conjunto nº 1948/2018 - Corregedoria Geral da Justiça e


Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

APROXIMAÇÕES DA CATEGORIA TOTALIDADE NA


ELABORAÇÃO DO ESTUDO SOCIAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ESTUDO SOCIAL”

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2018

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COORDENAÇÃO:

Carlos Henrique de Francisco – Assistente Social Judiciário – Vara Central


Fabiane Cristina Vieira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Piracicaba

AUTORES

Alana Beatriz Ferreira- Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva


Angelita Luiza Covre- Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Aline da Silva Fernandes – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de São
Miguel Paulista
Ana Rita Pavão – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirassununga
Daniela de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cubatão
Douglas Oliveira Batista – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapetininga
Edlaine Faustino da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santana do
Parnaíba
Elaine Aparecida Bon Gerevini – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Carapicuíba
Jacira Castro da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rio das
Pedras
João Carlos Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itanhaém
Kátia Aparecida Cordeiro dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São José do Rio Preto
Kátia Regina Dias da Silva Freitas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itu
Keila Nogueira Gomes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Lucinete Rodrigues de Santana – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Santana
Marilza Elorza Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Andradina
Patrícia Silva Santos Carvalho – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Itaquera
Priscila de Almeida Prado – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Jabaquara

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Roberto Barros da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taboão da


Serra
Sandra Sueli Catarina David – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica
da Serra
Ticiana Oliveira Schultz – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de Santo
Amaro

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“O gosto do pão não revela quem plantou o trigo, e o processo examinado nada nos
diz sobre as condições em que ele se realiza, se sob o látego do feitor de escravos
ou sob o olhar ansioso do capitalista”. (O Leitor de Marx, p. 243).

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos da Capital – Estudo Social – no amplo exercício de


seus objetivos pedagógicos pretendeu abordar, em 2018, as questões que
fundamentam a prática cotidiana no Serviço Social no Judiciário, as quais emergem
no exercício de suas atribuições profissionais.
O enfrentamento ao complexo paradigma de desvendar uma determinada
realidade, ancorado ao viés da dimensão teórico metodológica do Serviço Social
insurge no cotidiano profissional, quando se busca o aprimoramento para a análise
crítica da realidade onde se inserem os sujeitos envolvidos nas demandas judiciais.
A leitura profissional analítica das questões que permeiam as
organizações humanas (como se constituíram, de que forma se identificam, como se
utilizam de seu espaço de pertencimento social, como ocupam seu território, como
produzem e reproduzem culturalmente as relações sociais aprendidas e apreendidas
ao longo de sua construção nos espaços de coletividade) remete à implícita
necessidade de recorrer aos elementos da categoria totalidade - no decorrer da
elaboração do Estudo Social - a fim de se desvelar e apontar as forças que
impactam o exercício dos direitos sociais e terminam por criminalizar principalmente
aqueles que se encontram mais pauperizados.
Nesse sentido, a categoria totalidade, em sua amplitude metodológica,
permite ao profissional de Serviço Social, através da aplicabilidade de sua dimensão
técnico instrumental, aproximações que favorecem a construção de um estudo mais
amplo e voltado à realidade empírica da questão social que envolve os sujeitos; a
observação da dinâmica relacional entre esses mesmos sujeitos e o questionamento
acerca da construção coletiva de seus espaços de pertencimento, relacionam-se,
todavia, com a dimensão sócio- histórica, uma vez que a produção e reprodução das
forças que os movem se baseiam no próprio movimento culturalmente imposto ao
ser social e por ele reproduzido em seu território vivido.
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O presente artigo, portanto, trouxe a reflexão frente à emblemática obra


de Karl Marx, acerca da categoria totalidade, a qual aborda a produção e reprodução
das forças que regem o próprio capitalismo, destacando o trabalho enquanto a
primeira atividade humana, pois dentre as categorias marxianas, o trabalho pode ser
evidenciado como paradigma voltado à compreensão das demais categorias que
conformarão a totalidade.
A importância dessa compreensão traz os rebatimentos emergentes na
prática cotidiana do Assistente Social Judiciário, quando a produção de um
determinado conhecimento busca exaustivamente desvelar uma realidade
contraditória, a qual apartada das forças que interagem no âmbito da totalidade não
traduzem a questão social que permeia a vida dos sujeitos, por vezes contribuindo
para impactar as decisões judiciais que poderiam favorecê-los, uma vez que
apontam apenas um recorte dessa mesma realidade.
Para ofertar uma análise crítica à realidade que emerge durante a
realização dos estudos sociais no âmbito do Judiciário, o Grupo de Estudos da
Capital – Estudo Social – optou pela discussão de três casos reais, elegendo um
como parâmetro ao presente artigo, o qual se encontra descrito junto ao anexo do
presente trabalho, resguardado o devido sigilo acerca dos dados que poderiam
identificá-lo, como nomes, localidades e outros detalhes que pudessem indicar sua
origem.
Com as aproximações sucessivas da categoria totalidade marxiana é
possível a compreensão do movimento sócio histórico da realidade que tem como
escopo a produção e reprodução da vida social. Neste sentido, o Grupo de Estudos
contou com a importante explanação da assistente social Viviane e Paula19 que
apresentou sua dissertação de mestrado intitulada “Análise da categoria mediação
na prática profissional do assistente social das Varas da Família e Sucessões do
Tribunal de Justiça de São Paulo”, cuja tese de Mestrado - utilizada pelo Grupo e
descrita na bibliografia – contribuiu para essas reflexões e possibilitou a conclusão
do presente artigo.

19
Viviane de Paula é doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo - PUC-SP. Consultora do Projeto Social - Ação Social da Congregação das Irmãs da Assunção;
Docente do Centro Universitário Assunção - Unifai; e Assistente Social no Tribunal de Justiça de São
Paulo. Atuando principalmente nos seguintes temas: família, abuso sexual intrafamiliar e direitos da
criança e do adolescente. (Fonte: http://buscatextual.cnpq.br).
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1 - CATEGORIA TOTALIDADE EM MARX: UMA APREENSÃO


NECESSÁRIA

Dando seguimento ao objetivo do Grupo de Estudos do corrente ano, a


partir das dinâmicas de análise de alguns casos de atendimento que ocorreram em
três Seções Técnicas de Serviço Social de distintas Varas e Comarcas e na tentativa
de adensar os estudos sobre a categoria totalidade em Marx, PAULA (2015, p. 18)
contempla a importância da concepção dessa categoria para o cotidiano do nosso
trabalho profissional:

A Perícia social, por se tratar de uma análise detalhada de uma


determinada situação, cuja finalidade é emitir um parecer técnico
sobre a situação e/ou questão estudada pelo assistente social, no
intuito de corroborar para determinada decisão judicial, necessita
estar fundamentada num estudo social que contemple a totalidade
das determinações sociais que confluem para determinada
situação/conflito que, ultrapassada sua expressão fenomênica,
percebe-se tal situação/conflito como expressão de uma dada
sociedade, num dado momento histórico.

Considerar a totalidade das determinações sociais nos estudos sociais a


partir das diversas singularidades dos sujeitos atendidos facilitará a produção de
conhecimentos cada vez mais desalienantes, bem como permitirá o distanciamento
e - quiçá – o rompimento com posturas conservadoras que atravessam o fazer
profissional, as quais responsabilizam apenas os sujeitos pelos seus diversos modos
de vida objetiva.
Pois bem, assumindo a necessidade de se “enfrentar” o árduo trabalho
intelectivo de apreensão dessa categoria, visando trazer benefícios ao trabalho
executado pelos profissionais de Serviço Social e às estratificações da classe
trabalhadora mais precarizada, as quais participam dos estudos sociais, estes se
colocam no intuito de avançar com o conhecimento que já se possui e caminhar para
descobrir o novo que em Marx é sempre atual. Cabe ressaltar que isso é apenas o
início de uma travessia que aqui se apresenta de uma maneira abreviada, pois
demasiado longa para se discutir com profundidade em um único artigo.
A perspectiva do materialismo histórico-dialético apreendido por Marx é
resultado das circunstâncias histórias, através dos fatos e acontecimentos, dos

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sujeitos sociais e das transformações que ele vivenciou, estudou e pesquisou, as


quais culminaram em sua magistral teoria.
A história para Marx está em constante movimento, visto que é uma
processualidade, isto é, está em constante processo. Dessa forma de compreender
a realidade enquanto processo histórico, ele apreendeu que o motor do movimento
do real é a dialética, não aquela defendida por Hegel que se baseava na idealização,
no mundo das ideias, que não considerava a realidade da vida, que o pensamento
era que criava a realidade e que sua superação era dada pela consciência. Para
Marx, citado por Paula (2015):

A dialética pressupõe que todas as coisas deixam de ser o que são –


“morrem”, revelando seu movimento de três etapas: negação,
síntese, superação da contradição entre negação e síntese. Neste
sentido a história é compreendida como resultado de longo processo
e não apenas acumulação de fatos decorridos no tempo, mas de
uma interação cujo motor interno é a contradição dialética. (PAULA,
2015, p. 44)

Dessa forma de apreender a realidade, o homem, enquanto ser genérico,


é quem constrói a própria vida social e a espiritual (que não se confunde com
religião, trata-se do conhecimento, do processo cognitivo, cultural e educacional). É
sujeito histórico, percebe a realidade em seu movimento contraditório e a reproduz
na razão intelectivamente. Essa apreensão da reprodução intelectiva do movimento
do real (Paula, 2015) fez com que Marx descortinasse as contradições da sociedade
que ele vivia, contradição como elemento da dialética marxiana. Nas palavras de
Veras (2014, p. 92):

Foi uma aguda percepção das contradições fundamentais da


sociedade em que viveram, o conflito de classes: de um lado, os
proprietários, que se afirmavam ao mesmo tempo como não
trabalhadores; de outro, os trabalhadores, que também eram não
proprietários. Em outros termos, de um lado, o capital; de outro, o
trabalho, ambos representados na classe burguesa dos empresários
capitalistas, por um ângulo e, por outra face, no proletariado. Essa
percepção de luta de classes foi um estopim do pensamento
revolucionário que a sociedade se apresentava naquele momento,
com essa clivagem profunda, mas que era uma situação instável,

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temporária, e que podia transformar-se, pois a história contém em si


as potencialidades de mudança [...].

Cabe ressaltar que o objeto de estudo de Karl Marx já estava dado no


movimento do real da sociedade do século XIX, “o objeto de Marx é a sociedade
burguesa – um sistema de relações construído pelos homens, ’o produto da ação
recíproca dos homens’”, (MARX, 2009, p. 244). Apreender esse real com suas
contradições a partir da aparência imediata para se chegar à essência do fenômeno
foi o caminho do método de análise de sua pesquisa, de sua investigação.
E aqui se caracteriza o movimento dialético da concreticidade do real pela
sua negatividade, que não se confunde com o ato mental de dizer não como
manifestação de capricho gratuita e arbitrária (BOTTOMORE, 2012), mas como
elemento vital do conhecimento em uma perspectiva de superação do imediato.
Neste sentido, a categoria mediação, que é central da dialética marxiana, permite
construção intelectiva desse processo de negar para superar, “a negatividade
enquanto geradora do movimento possibilitador de conhecimento da realidade”
(PAULA, 2015, p. 54).
Na rica e brilhante apresentação da colega e doutoranda em Serviço
Social, a Assistente Social Viviane de Paula, no grupo de estudos, elucidou a
categoria negatividade representando-a através da pedra de mármore, a qual à
medida que recebe o golpe do formão do escultor, negando-a, transforma-se em
uma linda escultura, sem, no entanto, deixar de ser o mármore.
Com este exemplo é possível avançar na compreensão da perspectiva de
totalidade, contudo, conforme aponta PAULA (2015, p. 78), a totalidade deve ser
entendida como dinâmica e concreta, portanto é necessário que se articule com
duas outras categorias: a da mediação e da negatividade:

A negação é uma categoria fundamental em Marx, sendo que a


contradição é tomada não como algo que se supera no sentido de se
eliminar, mas como algo constitutivo da história. Totalidade e
negatividade são categorias fundamentais para apreensão da
realidade e para tanto, é necessário ultrapassar a expressão
fenomênica do mundo, ou do objeto a ser investigado em seu
movimento na história real. Conforme o exposto até aqui, o processo
de conhecimento, a partir do método dialético materialista,
compreende a procura pelas determinações de tal objeto, o método
dialético não considera o conhecimento a partir da lógica das
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definições e, sim, com a saturação das determinações. É necessária


uma reprodução ideal do objeto saturada de determinações, por isso
conhecer algo é conhecer suas múltiplas determinações, de modo
que se passa de uma determinação a outra, não num processo de
soma, mas em seus imbricamentos, ou seja, por meio de mediações.

A mesma autora (Paula, 2015) compreende que na teoria social de Marx


a mediação tanto se apresenta como uma categoria que compõe o ser social, por
isso ontológica, quanto se caracteriza numa construção que a razão elabora
logicamente, para possibilitar a captação do movimento do objeto.
Ainda, o cotidiano é o espaço privilegiado de expressão das mediações,
vez que é na vida cotidiana que somos provocados e convocados a buscar meios de
responder às nossas necessidades na tríade produzir, reproduzir e manter a vida de
cada dia. Com isso, compreende-se que a vida cotidiana se apresenta na
imediaticidade dos fenômenos. Então emerge o questionamento: como superar o
imediato da vida social, como elevar um cotidiano que reitera diversos modos de ser,
pensar e viver, qual é o processo a ser realizado? O desafio posto:

Ir [...] além da aparência fenomênica, imediata e empírica – por onde


necessariamente se inicia o conhecimento, sendo essa aparência um
nível da realidade e, portanto, algo importante e não descartável –, é
apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto.
[...] (NETTO, 2009, p. 9).

Até aqui foi percorrido um caminho sinalizando que a ultrapassagem do


imediato para o mediato é realizada por meio de conexões entre o mundo
fenomênico e o concreto, que revela e oculta ao mesmo tempo as suas
contradições, porque é a síntese de múltiplas determinações. Nesse caminho do
conhecimento marxiano três categorias estão intrinsecamente articuladas, “trata-se
das categorias de totalidade, de contradição e de mediação” (NETTO, 2009, p. 28),
que são categorias constitutivas do movimento do capital apreendidas por Marx.
Contudo, é a categoria totalidade que funda a teoria marxiana, por isso sua máxima
importância acerca da compreensão da vida social, tendo como centro o ser social.
O conhecimento do concreto opera-se envolvendo a universalidade,
singularidade e particularidade, enfatizando que esta última “assume o centro da
dialética, porque ela constitui-se num campo de mediações” (PAULA, 2015).

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A singularidade apresenta-se no nível do cotidiano, no nível da existência


imediata da vida, de acordo com a clara explicitação de PAULA (2015, p. 83):

O plano da singularidade é o retrato dos objetos “em si”, é o nível de


sua existência imediata que expõe os traços não repetitivos das
situações singulares da vida em sociedade, que se mostram como
coisas rotineiras, casuais. Na singularidade, as mediações, as
determinações e a legalidade estão invisíveis. Objetivamente, esse é
o plano da imediaticidade. Neste sentido, o fato de a singularidade
corresponder à dimensão do imediato, coopera para que o sujeito
cognoscente entenda as categorias sociais como formas autônomas
de ser. Assim sendo, essas categorias aparecem despojadas de
determinações históricas.

A universalidade está no campo das múltiplas e facetadas determinações


sociais da organização societária vigente, isto é, o capitalismo:

Corresponde a Universalidade ao plano em que estão colocadas as


grandes determinações gerais de certa formação histórica, leis e
tendências de um dado complexo social. Estas leis e determinações
na esfera da singularidade são obscurecidas pela dinâmica dos fatos
(imediaticidade/factualidade) e cada fato parece explicar-se a si
mesmo obedecendo a uma causalidade caótica. A legalidade,
mesmo tendo um caráter de universalidade para o ser social, se
expressa em cada complexo de modo particular, ou seja, uma dada
lei histórica/social que se apresenta como uma férrea necessidade.
Neste sentido, a universalidade permite a efetiva captação da
objetivação e das determinações especificas do objeto, assim como
suas conexões, relações, etc., ou seja, é no campo da universalidade
que se pode elevar o conceito e criar relações que são universais e,
ao mesmo tempo especificas, de modo que se tem gradativamente
um processo mais intenso onde são apreendidas as diferenças e
contradições. São estas diferenças e contradições que permitem a
apreensão das particularidades. (PAULA, 2015, p. 84).

Mas é importante não reduzir o conhecimento do real como um enlace da


singularidade a universalidade, desprovida de mediações, algo linear. Ao contrário, é
permeada por mediações que informam as contradições existentes e moventes. A
particularidade é esse caminho saturado de mediações que permite reconstruir o
objeto de intervenção seja das pesquisas, seja da superação das demandas
institucionais que estão postas no cotidiano do fazer profissional.

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A universalidade e a singularidade concentram-se cada uma em seu


ponto final. A particularidade, por sua vez, é um território central, um
campo de mediações entre a universalidade e a singularidade cujos
limites não são precisos e, muitas vezes, são imperceptíveis. Por
isso, torna-se muito mais difícil para a consciência cotidiana captar a
particularidade, pois esta tem núcleo muito menos preciso e menos
clarificado que a universalidade e a singularidade. Sem uma visão
dialética torna-se tortuoso compreender a natureza e fazer sua
exposição. (PAULA, 2015, p. 86).

Neste sentido, a perspectiva de totalidade marxiana pode ser apreendida


a partir de uma única singularidade (com suas mediações), vez que a singularidade
é parte e expressão das múltiplas determinações societárias. Marx entendeu a sua
realidade concreta igualmente a partir do ponto de vista ontológico, como assevera
PAULA (2015, p.67) ao citar Marx:

Metodologicamente, Marx estabelece a prioridade do ontológico, ou


seja, o ser social que existe independentemente de seu
conhecimento em relação ao método de sua apreensão. Há dois
complexos: o ser social e o conhecimento deste ser social. O homem
é um ser, ao mesmo tempo, singular e genérico. “O engendrar
prático de um mundo efetivo, a elaboração da natureza inorgânica é
a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um
ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou
[se relaciona] consigo enquanto ser genérico (MARX, 2010b, p.85).

O ser social não é abstração, o ser social é constructo histórico mediado


pela atividade trabalho e se constitui como tal a partir das objetivações dessa
atividade, vez que, segundo Marx e Engels (2007, p.33):

[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda


existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o
pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver
para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de
tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais.
O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a
satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material,
e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de
toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser
cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os
homens vivos.

De acordo com PAULA (2015, p. 68):

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Estas objetivações, na sociedade capitalista, passam


fundamentalmente por uma questão de classe. É preciso dinheiro e
tempo para apreciar um quadro pintado por Van Gogh, para ouvir a
orquestra sinfônica de Viena, para assistir a um filme de Lars Von
Trier. Assim, não há humanamente uma diferença entre um ser mais
rico ou mais pobre: são os determinantes econômicos, sociais e
históricos, são as bases da sociedade capitalista que tornam os
serem mais ‘ricos ou mais pobres’.

Mas como a vida social cotidiana é processualidade, Marx (1998, p. 35)


defende que o capitalismo traz em si o germe da própria destruição, pois a história é
dialética. Em suas palavras:

[...] Mas a burguesia não se limitou a forjar apenas as armas que lhe
trarão a morte. [...] A burguesia produz, sobretudo, seus próprios
coveiros. [...] De tempos em tempos os operários vencem, porém só
transitoriamente. O verdadeiro resultado das suas lutas não é o êxito
imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores [...].

Com estas reflexões, é possível compreender que a complexidade deste


tema permite aproximações importantes com a categoria totalidade. Aproximações
porque o movimento do real, a inconstância que a realidade social é em si são
intrínsecas a essa categoria, ou seja, o olhar para o todo não é estático. Com isto
observa-se que estas reflexões jamais se esgotariam tampouco neste artigo. A partir
destas ponderações teóricas, nos próximos capítulos pretende-se vincular estas
aproximações à categoria de totalidade marxiana ao exercício profissional,
destacando-se a atuação do Serviço Social no campo Judiciário.

2 - A ELABORAÇÃO DO ESTUDO SOCIAL E A CATEGORIA


TOTALIDADE

Como visto anteriormente, a totalidade é uma das categorias centrais do


materialismo histórico-dialético, sendo “inclusiva e macroscópica, de máxima
complexidade, constituída por totalidades de menor complexidade” (NETTO, 2011,
p. 56), sendo portadora de uma historicidade de um todo integrado.
Como enfatiza Konder (1981, p. 36), é a partir da visão do conjunto que
se pode avaliar a dimensão de cada elemento do quadro, ou seja, diante dos
problemas que se colocam há que se ter uma visão de conjunto.

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Assim, ao se ter a concepção de realidade como totalidade não se busca


pensar “em tudo”, mas pensar “em um todo” que se articula, num determinado
período sócio-histórico. A totalidade vai buscar as conexões dos aspectos
particulares, com o contexto mais amplo onde se produzem as contradições.

Esta prioridade do todo sobre as partes, do complexo total sobre os


complexos singulares que o formam, deve ser absolutamente
considerada estabelecida, porque de outro modo – quer se queira
quer não – chegar-se-á a extrapolar e tornar autônomas aquelas
forças que, na realidade, simplesmente determinam a particularidade
de um complexo parcial no interior da totalidade; se elas se tornam
forças autônomas, não contidas por nada, permanecem
incompreensíveis as contradições e desigualdades do
desenvolvimento que emergem das interrelações dinâmicas entre os
complexos singulares e, sobretudo, do lugar destes últimos no
interior da totalidade. (LUKÁCS, 1981, p.145)

O Serviço Social busca, na construção de seu ethos profissional, uma


visão de conjunto de sociedade e dos objetos em análise, no entanto, essa visão de
conjunto é sempre provisória, pois é uma totalidade dinâmica, sempre em
movimento, isto porque as totalidades possuem caráter contraditório, pois ainda
segundo Lukács (2009, p. 59), cada totalidade é relativa e mutável, mesmo
historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se; seu caráter de totalidade subsiste
apenas no marco de circunstâncias históricas determinadas e concretas.

O ponto de vista da totalidade não se restringe, apenas, à apreensão


da realidade objetiva (como objeto do conhecimento), ele foca,
também, o sujeito. Em outras palavras, apreender a realidade
objetual como totalidade implica, também, encarar o sujeito como
uma totalidade. Na sociedade moderna, as classes sociais são
representativas dessa totalidade subjetiva.” (HUNGARO, 2001,
p.189)

Há delimitações do sujeito, em sua complexidade, e comumente busca-se


escamotear a crise e o conflito capital-trabalho, fazendo apologia ao consenso, à
conciliação, buscando-se a harmonia. No entanto, é preciso ter em mente que as
perspectivas de gênero, raça/etnia e classe social devem ser pensadas, não de
forma isolada, mas na relação com a sociedade concreta de homens e mulheres,

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das relações sociais que se estabelecem entre si e entre si e a natureza por meio do
trabalho.

(...) da realidade social que é, ao mesmo tempo, una e diversa e na


natureza intersubjetiva de sua apreensão, caráter uno e diverso da
realidade social nos impõe distinguir os limites reais dos sujeitos que
investigam dos limites do objeto investigado. Delimitar um objeto
para investigar não é fragmenta-lo, ou limitá-lo arbitrariamente. Ou
seja, o processo de conhecimento nos impõe a delimitação de
determinado problema isto não significa que tenhamos que
abandonar as múltiplas determinações que o constituem. É neste
sentido que mesmo delimitado um fato teima em não perder o tecido
da totalidade e que faz parte indissociável. (FRIGOTTO, 2008, p.42).

A totalidade possui uma valoração lógica intrínseca

(...) sem a qual, qualquer interpretação teórica do mundo fica


reduzida a um amontoado incoerente, amorfo e desarticulado de
fragmentos, do qual não pode resultar qualquer processo de efetiva
produção do conhecimento. (...) Numa totalidade, o conhecimento
das partes e do todo pressupõe uma reciprocidade, de modo que não
pode haver conhecimento de um todo ou de partes dele se amputada
sua totalidade (CARVALHO, 2008, p. 51).

Entre a totalidade inclusiva e cada uma das totalidades constitutivas se dá


uma complexa interação, na qual é a totalidade inclusiva que, por conter o conjunto
de necessidades do processo de reprodução social do homem, cumpre o papel
predominante na reprodução social do capital.
A categoria totalidade é imprescindível para entender o Serviço Social na
construção de seu conhecimento, ainda que, contraditoriamente, delimitado nas
Ciências Sociais.
O ser social é uma totalidade constitutiva e, portanto, possui o modo
inerente à sua estrutura – contendo demandas, relações sociais, necessidades e
interações, cabendo ao profissional desvendá-las com seu aparato técnico-
operativo, mas também com seu amadurecimento interventivo, teórico-metodológico,
produzindo idealização que o encaminha para uma ação real, balizada por um
código ético-político, pois como nos ensina Guerra (2014, p. 63), entre o
conhecimento e a ação há mediações de diferentes naturezas, sobretudo,
determinações objetivas da realidade e subjetivas dos sujeitos.

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A categoria totalidade está intrinsecamente ligada à ideia de ruptura com


a “aparência superficial” buscando aprofundar-se na essência:
Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma
representação caótica do todo e, por meio de uma determinação
mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais
simples; do concreto repensado [chegaria] a conceitos abstratos
[Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse chegado às
determinações mais simples. Dai teria de dar início à viagem de
retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas
desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como
uma rica totalidade de muitas determinações e relações. (MARX,
2011, p. 54)

A essência “não se apresenta imediatamente, ela é mediata ao fenômeno,


o qual ao mesmo tempo, a revela e a esconde” (RICHTER, 2012, p. 287),
entendendo o concreto pensado como síntese, a junção entre a aparência e a
essência do fenômeno.
Assim, o profissional deve sempre buscar a síntese para melhor
compreender a realidade, pois é através desta síntese que poderá desvendar a
estrutura desta mesma realidade.

Sem as contradições, as totalidades seriam totalidades inertes,


mortas – e o que a análise registra é precisamente a sua contínua
transformação. A natureza dessas contradições, seus ritmos, as
condições de seus limites, controles e soluções dependem da
estrutura de cada totalidade – e, novamente, não há fórmulas/formas
apriorísticas para determiná-las. (NETTO, 2009, p. 684)

A instrumentalidade profissional consiste em desvelar as relações sociais


e os processos que ocorrem nas totalidades constitutivas, em suas diversidades,
entre elas próprias e a totalidade social, compreendendo que tais relações não são
diretas, são mediadas pelos diferentes níveis de complexidade e pelas
peculiaridades de cada totalidade constitutiva, com mediações que articulam tais
totalidades entre si e a totalidade social

(...) se o “fazer” do assistente social é dado pela sua


instrumentalidade, pela manipulação de variáveis empíricas, esta

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dimensão da profissão, sendo a mais desenvolvida, é capaz de


designar os processos que se manifestam no âmbito da profissão,
entre elas, as racionalidades que a sustentam. (GUERRA, 2014
p.73).

Ao assistente social no Judiciário, durante a elaboração do estudo social,


compete levantar aspectos socioeconômicos, familiares e culturais, desvelando a
realidade social em suas conexões mais amplas e particularizadas, buscando
informações relacionadas ao mundo do trabalho, às políticas sociais, à dinâmica do
território vivido, com o objetivo de atingir a interpretação dessa realidade,
favorecendo a contextualização dentro de sua construção histórica, trazendo
aspectos importantes a respeito da sua capacidade protetiva e a existência, ou não,
de um aparato social capaz de fortalecê-la. Dessa forma, os laudos e pareceres
poderão evidenciar, também, se este aparato responde satisfatoriamente a demanda
que se apresenta, reavaliando as posturas voltadas à culpabilização unicamente do
indivíduo ou grupo, pelas fragilidades que os cercam. A este respeito Fávero e Gois
dizem que:

(...) a realização de estudos fundamentados, teórica e


metodologicamente, sobre a realidade social vivida pelos sujeitos
pode fornecer subsídios a juízes, Defensoria e particularmente
Ministério Público no que se refere à responsabilização do Estado
quanto à proposição e execução de políticas sociais ou mesmo de
ações localizadas de atenção às demandas observadas, visando à
efetivação de direitos sociais. (FAVERO; GOIS, 2014 p. 16).

O assistente social deve ter como ponto de partida de seu trabalho o


concreto real (não o pensado), para iniciar a sua intervenção profissional e assim
refinar seu entendimento sobre a situação em estudo e fazer aproximações com o
concreto pensado, que será descrito e explicitado.
Para se ter o concreto pensado é necessário decompor um todo e
elucidar as especificidades, rompendo com o aparente, buscando o que está
“escondido” e desconhecido. Para Kosik (2010, p.44) a “realidade como um todo
estruturado, dialético, no qual ou do qual um fator poder a vir a ser racionalmente
compreendido”.

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O profissional de Serviço Social, apesar de desenvolver análises de


“micrototalidades”, não deve perder de vista a concepção de totalidade social, pois
quanto mais se apropria dos elementos e da análise de diferentes aspectos
socioculturais, socioeconômicos e políticos, dentre outros, mais completa e refinada
fica a sua interpretação da realidade social dos usuários.

(...) é muito importante sabermos qual é o nível de totalização exigido


pelo conjunto de problemas com que estamos nos defrontando; e é
muito importante, também, nunca esquecermos que a totalidade é
apenas um momento de um processo de totalização (que, conforme
já advertimos, nunca alcança uma etapa definitiva e acabada).
(KONDER, 1981, p. 39)

A atuação profissional dentro da concepção de totalidade pressupõe


buscar as múltiplas determinações (fundamentais e secundárias) e as mediações
históricas que constituem a realidade em estudo.
O exercício profissional, assim como os indivíduos, usuários dos serviços
e as instituições, também fazem parte da totalidade social e não podem ser vistos de
modo isolado, mas num conjunto de relações – particularidades e singularidades,
que possibilitam enxergá-los no movimento da totalidade.
Assim, a articulação entre a singularidade, a particularidade e a
universalidade enriquece a dimensão investigativa do assistente social, a qual
implica em resgatar a historicidade dos sujeitos do estudo social, no sentido de
desvelar conflitos, contradições e interesses que estão por trás da realidade em
estudo, superando uma investigação meramente narrativa, apenas e tão somente
descritiva dos fatos, permitindo uma apreensão mais concreta das condições
objetivas e subjetivas dos sujeitos.
A lógica da descoberta é essencial. Estar disponível para compreender o
discurso, despojar-se de atitudes corporativas, institucionais e refratárias, buscando
processos de comunicação abertos e democráticos – ideias, integração e construção
conjunta - “(...) apreender a totalidade da qual a problemática levantada faz parte,
identificando inclusive os sujeitos históricos a quem essa problemática se refere.
(NETTO, 2011, p. 25)”.

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A incompletude e a contradição devem integrar o cotidiano profissional. A


realidade da pobreza e da exclusão social exige o entendimento ampliado na
perspectiva da totalidade.
Dentro do processo de apreensão da realidade em estudo, o assistente
social idealiza um plano interventivo para a objetivação de sua ação profissional,
assumindo postura crítico-analítica para compreender a realidade em estudo e suas
várias complexidades.
A gama de processos sociais que permeiam o Serviço Social demanda
aos profissionais um conhecimento crítico da realidade, apoiados numa teoria social
que capte as contradições e complexidades que singularizam a prática e, se isso
não ocorre, tem-se o risco de favorecer o neoconservadorismo, tão em moda na
atualidade; o pragmatismo desprovido de teoria, vazio; e o moralismo, significando
um retrocesso histórico da profissão.
Assim, é possível delimitar uma totalidade constitutiva, mas sem perder
de vista que é necessário analisá-la na sua relação com as demais totalidades e,
necessariamente, com a totalidade social.
Em contraposição à ideia de totalidade, obtém-se, então, o pensamento
pós-moderno. Guerra (2004, p. 17) descreve como esta concepção entende o
mundo contemporâneo, dizendo que para os pós-modernos o mundo
contemporâneo é o locus da individualidade, do arbitrário, do virtual,
do simulacro, do “aqui e agora”, daí a simpatia que nutrem pelo individualismo
possessivo, por um sujeito psicológico, pelo presente perpétuo (presentificação),
pela psicologização das relações sociais, pelo local, pelo micro, pelo efêmero, pelas
teorias comportamentais (ou neobehavioristas) e, finalmente pelos jogos de
linguagem.

3 - TOTALIDADE E DESAFIOS NO COTIDIANO DO SERVIÇO


SOCIAL

Ao provocar uma reflexão acerca do cotidiano do Serviço Social, é comum


que o trabalho profissional seja limitado à sua prática e, mais ainda, aos
instrumentos técnicos a ele inerentes, por vezes imiscuindo-se de efetuar uma
análise ampla da realidade social a partir do conhecimento teórico que, acumulado

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continuamente ao longo de uma dada experiência profissional, permite a execução


dos estudos sociais.
Os desafios impostos ao exercício profissional dos assistentes sociais no
âmbito do judiciário sinalizam a necessidade de se promover a interlocução entre
realidade concreta (objeto) e pensamento (razão), processo este que Santos (2013 –
p.18) sintetiza a partir do materialismo histórico dialético, defendendo que a
realidade pode existir sem o sujeito, mas não pode existir conhecimento (a teoria,
razão) sem sujeito, assim: “[...] apropriar-se do concreto pelo pensamento é um ato
teórico, enquanto o concreto, em si, é um ato prático que está vinculado às
necessidades e às ações práticas dos homens, portanto, existe fora do
pensamento”.
A partir da realidade concreta da vida dos sujeitos – cuja matéria foi
debatida durante o estudo de casos e que ofereceu um rico e valioso material para o
trabalho aqui proposto, bem como através da articulação a ser construída junto à
rede socioassistencial ao enfrentamento coletivo das expressões da questão social,
tem sido cada vez mais recorrente a necessidade de apreensão dessa realidade em
sua totalidade, como propõe FÁVERO (2014 –12):

Essa realidade impõe ainda mais aos assistentes sociais a


necessidade de um compromisso efetivo de ir além da constatação e
da indignação com a barbárie, a começar pelo exercício profissional
cotidiano, lá na ponta do atendimento. O que implica a necessidade
de entender e explicar a realidade social na qual os sujeitos se
inserem – nesse caso em estudo, para que os registros em relatórios
e laudos que irão compor os autos e subsidiar decisões judiciais não
sejam somente o “retrato” congelado da situação apresentada, mas
revelem sua construção histórica e sua dimensão política, dando
margem a ações individuais e coletivas no campo da luta política
pelo acesso e efetivação de direitos.

No que se refere aos estudos e pesquisas sobre a relação teoria e prática


no cotidiano do trabalho profissional, são importantíssimas as produções científicas
alinhadas ao pensamento hegemônico da profissão – ao Código de Ética
Profissional – pois trazem ao debate contemporâneo a preponderância da análise
frente a uma realidade social cada vez mais complexa, buscando a superação da
aparência dos fenômenos (indo além do imediato, do sensível) para se alcançar
pensamentos (mediatos) por meio de várias mediações (da razão - inteligência):

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O ponto de partida da investigação é o empírico, os homens em suas


relações econômicas e sociais, é a relação homem/natureza
mediada pelo trabalho [...]. Mas esses dados devem ser superados,
ultrapassados, o que significa não os considerar em si; supõe-se ir
além de sua forma buscando sua estrutura dinâmica, suas
determinações. Esse processo não modifica, necessariamente, “o
dado”, que pode permanecer o mesmo no plano empírico. O que
modifica é o conhecimento que se tem sobre ele. (SANTOS, 2013, p.
20).

Esse exercício favorece ao profissional de Serviço Social, em sua práxis,


a construção de aproximações sucessivas que permitam a compreensão da
categoria totalidade na produção dos estudos sociais, salvaguardando uma postura
ético-política de não delegar, unicamente às famílias, as responsabilidades pelos
seus diversos modos da vida objetiva.

Toda prática implica uma direção social e pressupõe um processo


cognoscente que estabelece a relação entre conhecimento e
realidade, teoria e prática [...]. A direção social encontra-se implícita
no processo do conhecimento em si, sempre vinculado à realidade,
isto é, a matéria influencia a teoria e, por se tratar de um caminho de
mão dupla, a aplicação da teoria interfere na matéria e a transforma
em uma determinada direção”. (COELHO, 2008, p.247).

Nessa perspectiva, Iamamoto (2010, p. 286) contribui de forma clara e


objetiva acerca da atitude investigativa e da pesquisa, enquanto dimensões
constitutivas do trabalho do assistente social, que tem como pressuposto o
conhecimento da realidade para além da sua “fotografia descritiva”:

O trabalho profissional exige captar e reconstruir os processos


sociais desencadeadores das situações vividas em nível individual
e/ou familiar, nas suas múltiplas relações e determinações,
permitindo sua interpretação crítica. Abrange o conhecimento das
trajetórias dos sujeitos, suas experiências e privações sociais, a
formação cultural de que são portadores e a rede de sociabilidade de
que participam. Exige articular a vida dos indivíduos singulares com
as dimensões estruturais e conjunturais que a conformam, desafio
que requer uma formação teórico-metodológica que permita conduzir
a análise na perspectiva da totalidade.

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Conformando essa linha de pensamento, obtém-se a importante


contribuição de Sousa (2014, p.48) em sua obra sobre o cotidiano profissional no
campo sociojurídico, na qual o autor aborda questões acerca dos rebatimentos da
ação profissional desprovida de reflexão crítica, destacando os riscos de uma prática
desconectada dos princípios éticos da profissão, violadora de direitos e reprodutora
de uma ideologia de dominação e exploração de classe:

[...] a submissão à cotidianidade, a não reflexão crítica sobre ela,


tende a produzir práticas que podem corroborar sua reprodução
acrítica e, assim, violar princípios e valores muito caros à profissão. E
ainda mais: sintoniza o Serviço Social com uma política que
intensifica a desigualdade social e criminaliza os pobres, que viola
direitos e impõe valores de um cotidiano que está a serviço da
dominação e da exploração burguesas; enfim, reproduz,
dramaticamente, uma ordem social que ganha, a cada dia, contornos
de barbárie.
Considerando a complexidade do trabalho profissional no que tange ao
compromisso teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo, é possível
afirmar que, cotidianamente, nos deparamos com um emaranhado de expressões da
questão social que se manifestam na vida dos sujeitos e que muitas vezes são
determinantes em suas histórias de vida, condições materiais (trabalho,
escolaridade, moradia, acesso às políticas públicas) e relações humanas
estabelecidas (contexto social e familiar).
Dentre os desafios que estão postos ao Serviço Social, um deles é a
imediaticidade, que dificulta a aproximação do objeto de intervenção, especialmente
pelas demandas institucionais, como afirma Pontes (2016, p.188-189):

Os sistemas de mediação que articulam o ser da profissão na


dinâmica social vão-se estruturando histórica e processualmente.
Ficam submersos na imediaticidade da forma de aparecer da
profissão na sociedade, e particularmente nas instituições. Em face
disto, se se deseja uma real aproximação ao conhecimento do objeto
de intervenção da profissão, necessário se faz empreender uma
verdadeira “caça” às mediações que se articulam na intimidade do
tecido sócio institucional.

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A atuação no imediato, segundo COELHO (2008 p.12), leva à dicotomia


entre teoria e prática:

Para responder às heterogêneas e imediatas demandas sócio


institucionais no cotidiano da prática profissional, os assistentes
sociais − como muitos outros profissionais −, por meio do movimento
da consciência que se atém à certeza sensível, ou à percepção ou
ao entendimento, apreendem apenas as expressões fenomênicas da
realidade, conectando imediatamente teoria e prática.

Outro desafio posto na atuação profissional do assistente social é o da


cotidianeidade, caracterizada “pela rotina, repetição de tarefas e pela
espontaneidade necessárias para a reprodução do indivíduo e da profissão, a fim de
responder às múltiplas exigências estabelecidas no âmbito da reprodução social”.
(COELHO, 2008, p.12)
Em relação à atuação do assistente social na área sociojurídica outro
desafio se coloca a ser superado são as práticas policialescas, fiscalizatórias e
punitivas, como coloca Fávero (2014, p.16):
A análise dessa realidade exige também que nós profissionais nos
desfaçamos das “receitas” e “normativas” institucionais de
intervenção, postas e impostas historicamente no dia a dia do
trabalho, particularmente nas organizações de controle social que
enquadram, classificam e subsidiam registros sobre a vida dos
sujeitos com vistas a “medidas protetivas, coercitivas e/ou punitivas”,
nem sempre considerando o que está além do prescrito.

Dessa prática policialesca decorre a culpabilização dos sujeitos,


especialmente na atual conjuntura, que coloca a centralidade na família,
principalmente na figura da mulher, desresponsabilizando o Estado da proteção
social.
Ainda que presentes nas intervenções dos profissionais que estão nos
espaços sociojurídicos, tais condutas culpabilizantes se inter-relacionam com
práticas inovadoras, as quais, segundo Iamamoto (2010, p. 283), apontam para uma
renovação do trabalho profissional na viabilização dos direitos (civis, políticos e
sociais) para todos, sendo que o mais importante desafio, na atualidade, é a luta
contra as forças neoconservadoras que têm se firmado recentemente no Serviço
Social.

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Outra observação da referida autora, reside no enfrentamento de outros


desafios como: constante crítica às estruturas institucionais, considerando-se que
constituem espaços permeados pela hierarquia e burocracia, cujas ações
frequentemente se direcionam para um forte controle dos comportamentos e,
consequentemente, para a punição dos sujeitos sociais, em nome da manutenção
da ordem social burguesa dominante; viabilização do acesso aos direitos pela via da
socialização das informações; a articulação com outros poderes do Estado (em
especial o Executivo); a luta por melhores condições de trabalho para a garantia da
qualidade do serviço prestado; a reafirmação do projeto ético-político profissional,
entre outros.
Sendo assim, a superação desses desafios implica considerar a totalidade
da realidade social das famílias atendidas pelo Poder Judiciário – onde os sujeitos
se inserem – em especial aquelas que são destituídas do poder familiar, submetidas
às mais diversas expressões da questão social, tais como baixa escolaridade,
ausência de trabalho e renda, inserção em trabalhos informais e/ou com baixa
remuneração, situações precárias de moradia, situação de rua, problemas de saúde
(mental, uso de drogas).
Orientar o trabalho nos rumos aludidos requisita um perfil profissional
culto, crítico, capaz de formular, recriar e avaliar propostas que
apontem para a progressiva democratização das relações sociais.
Exige-se, para tanto, uma competência teórico-metodológica que se
traduza na apropriação de uma lógica de explicação da dinâmica da
vida social na sociedade capitalista, aliada à pesquisa da realidade
que permita decifrar situações particulares com que se defronta o
assistente social no seu trabalho, conectando-as aos processos
sociais macroscópicos que as geram e as modificam. Mas, também,
um profissional versado no instrumental técnico-operativo capaz de
potencializar as ações nos níveis de assessoria, planejamento,
negociação, pesquisa e ação direta, estimuladora da participação
dos sujeitos nas decisões que lhes dizem respeito, na defesa de
seus direitos e no acesso aos meios de exercê-los. (IAMAMOTO,
2010, p. 295).

4 - ESTUDO DE CASO

A situação apresentada em anexo, refere-se a um fenômeno da violência


em decorrência dos direitos violados, tanto dos infantes quanto dos seus genitores
biológicos.

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Por não terem seus direitos sociais básicos garantidos (aqueles


apregoados pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988 20) as crianças e os
adultos foram submetidos a um longo período de desproteção.
A desproteção social aqui tratada refere-se a um sistema de organização
societária baseado na exploração e na desigualdade social, que não garante o
mínimo necessário para a sobrevivência dos sujeitos sociais.
Há uma demanda imediata que carece de resposta; a encontrada - o
acolhimento - é uma resposta sem mediações, na imediaticidade da questão posta
às instituições que atuam na proteção integral, vez que não há referência à atuação
e intervenção da rede socioassistencial acerca do acompanhamento sociofamiliar,
ou seja, aos genitores e sua prole. Na contraditória dinâmica que se estabeleceu,
coube ao adotante buscar informações sobre a dinâmica familiar e dados referentes
aos genitores, vez que suas ações culminaram na devolução dos filhos já adotados.
O questionamento que se estabeleceu, durante a análise do referido caso,
refere-se à por que, na maioria das vezes, considera-se que a melhor resposta para
a proteção de crianças e adolescentes é a institucionalização. Por que a garantia à
convivência familiar e comunitária, constante no artigo 19 do ECA 21 não é priorizada
através do acompanhamento à família natural? Já não se estabeleceu a
excepcionalidade das medidas de acolhimento institucional e colocação em família
substituta? Ao que tudo indica esta tem sido a regra e não a exceção.
Em uma sociedade pautada pela luta de classes e pela desigualdade
social, em que tudo se transforma em mercadoria, tais direitos também são moeda
de troca no mercado: de um lado a família natural desprotegida e, de outro lado, a
família substituta “ganha” tal poder sem as garantias de um acompanhamento
genuíno das motivações para a adoção, uma vez que o caso asseverou as ações
empreendidas de busca ativa por crianças em condições de serem adotadas.
As expressões da questão social que incidem sobre a família de origem:
vivência em situação de rua, mendicância/trabalho infantil, habitação precária,
histórico de acolhimentos institucionais, violência, uso abusivo de substâncias

20 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988)
21 Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e,

excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em


ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. (BRASIL, 1990)
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psicoativas, ausência de rede de proteção familiar, território de alta vulnerabilidade,


aliadas à desproteção social do Estado levaram à destituição do poder familiar.
Não foi possível identificar as possibilidades de acompanhamento para
essa família, nem quais as propostas levantadas pelas políticas públicas locais de
saúde, educação, assistência social e habitação.
Evidencia-se, a partir daí, um nefasto jogo de interesses: crianças
acolhidas versus pretendentes à adoção. O melhor interesse da criança não pode
ser confundido com o melhor interesse dos adotantes.
Se por um lado a convivência familiar constitui um direito da criança, a
adoção é também um processo garantido pela lei, que transfere direitos e deveres
de pais biológicos para outra família.
Essa complexidade revela que a construção do vínculo afetivo não
depende somente de adotantes e adotandos. Nesse processo, estão implicados e
são corresponsáveis diferentes atores sociais e instituições.
Entende-se que a adoção é um ato de escolha e que se desenvolve pela
aprendizagem e pela prática cotidiana das relações. Construir um vínculo de filiação
exige esforço, dedicação, trabalho e, sobretudo, tempo. A criança é um sujeito com
direitos, desejos e sonhos, com uma história anterior à adoção, que precisa de um
tempo para elaborar suas perdas e construir novos vínculos.
Essas crianças trazem consigo uma história de vida, que no caso avaliado
é extremamente violenta: foram afastadas dos seus genitores, tiveram que se
adaptar a uma realidade já instituída e sofreram as agruras da reprodução da
violência na família substituta.
Os adotantes apresentavam em seu histórico indicativos de dificuldades
para aceitar regras e limites, sendo exemplo não aguardarem ocorrer o curso
preparatório para pretendentes em sua cidade de moradia, dando andamento para
sua inscrição em outra localidade. Também não aguardaram o posicionamento
regular da fila de espera quando aprovados e inscritos, procurando crianças por
meios próprios, tendo encontrado as acima mencionadas.
A colocação restou frustrada, talvez em razão dos pretendentes não
conseguirem rever suas condutas, sempre atribuindo às crianças a dificuldade na
interação entre eles, bem como a terceiros as consequências de suas falhas
pessoais.

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Ao que tudo indica, os adotantes esperavam que as crianças atendessem


e se moldassem as suas expectativas, o que não favoreceu uma relação de iguais,
de pertencimento e de trocas, mas de desiguais, de superioridade e inferioridade.
No entanto, há que se apontar que esse insucesso possivelmente
também decorreu de falhas do Poder Judiciário no processo de habilitação dos
adotantes para o cadastro, nas medidas aplicadas às crianças e no
acompanhamento do estágio de convivência.

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5 - CONCLUSÃO

A questão norteadora deste artigo foi precisamente a de realizar


aproximações sucessivas da categoria marxiana totalidade nos estudos sociais
executados no cotidiano do serviço social do judiciário. É uma análise complexa e
por isso mesmo desafiadora, mas o grupo se lançou nessa seara por entender que a
complexidade da estrutura e da conjuntura societária atravessa a vida social dos
sujeitos e famílias atendidas diariamente no exercício profissional e os registros
efetuados por esses profissionais através de relatórios, laudos e pareceres devem
explicitar esse complexo a fim de possibilitar leituras cada vez mais desalienantes,
bem como de se propor orientações e encaminhamentos que possam, de alguma
forma, efetivar direitos sociais para os estratos da classe trabalhadora mais
vulnerabilizados.
Para tanto, no primeiro subtítulo, “Categoria Totalidade em Marx: uma
apreensão necessária”, assinala-se, resumidamente, os elementos intelectivos de
compreensão dessa categoria. O movimento do real apresenta um conjunto de
categorias que informam a dialeticidade da sociedade capitalista e contribuem para
avançar da empiria (imediaticidade) do mundo fenomênico à essência do fenômeno.
Nesse caminho as mediações necessárias devem ser construídas a fim
de que o complexo do real seja desvelado, uma vez que a vida cotidiana por si
mesma não é capaz de clarificar a totalidade da vida social, pois ela oculta o cerne
da mediaticidade, ao mesmo tempo que a revela logo, para isto precisa-se de um
trabalho intelectivo denso e árduo.
A categoria totalidade, portanto, traz em seu bojo a possibilidade de se
transcender a imediaticidade das diversas facetas da questão social que
cotidianamente são colocadas à análise dos assistentes sociais do judiciário. Outras
categorias como a negatividade, a contradição e a mediação devem ser objetos de
estudo com a totalidade para a captação do movimento do concreto, que só é
concreto em decorrência das múltiplas determinações sociais.
Esses determinantes não são aparentes, não se dão de forma imediata, é
preciso muito mais que boa intenção para decifrá-los. A apreensão desses
determinantes requer muito estudo e investigação, porque não são simples de
capturar no movimento contraditório da realidade social.

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O conhecimento desse concreto só é possível por meio da tríade


singularidade, particularidade e universalidade que são elementos da dialética, tendo
na particularidade um campo de mediações. Em outras palavras, mesmo quando se
busca atender apenas um único sujeito social, nele e na sua histórica de vida se
processa o todo, caminho abstraído a partir da particularidade.
Esse campo de mediações possível pela particularidade é um dos
desafios para o Serviço Social, para toda a categoria profissional de assistentes
sociais que compartilham desse projeto ético-político. Assim deu-se a construção do
segundo subtítulo, “Totalidade e desafios para o cotidiano do Serviço Social”, no
intuito de se apreender que o exercício profissional é atravessado pelas diversas e
multifacetadas questões que permeiam a vida social da classe trabalhadora.
Para que o trabalho do Serviço Social, pautado no compromisso com a
justiça social, cada vez mais contribua com a parcela da classe trabalhadora que
chega às diversas Varas das repartições públicas buscando por “justiça”, alguns
outros desafios devem ser perquiridos como a atitude investigativa e da pesquisa,
enquanto dimensões constitutivas do trabalho do assistente social em virtude de não
estarem desprovidas de reflexão crítica e desconectadas dos princípios éticos da
profissão; a sustentação da criticidade às estruturas institucionais e de quem as
constituem, vez que são espaços permeados pela hierarquia e burocracia que
próprios das instituições e que por vezes se orientam mediante um forte controle dos
comportamentos e, consequentemente, para a punição dos sujeitos sociais, em
nome da manutenção de uma ordem social; a capacidade crítica de dialogar no
intuito de alcançarmos um espaço sócio ocupacional capaz de acolher os sujeitos
atendidos nos setores técnicos do judiciário. Enfim, os desafios estão postos e eles
precisam ser trazidos à luz de forma crítica a fim de que o trabalho técnico
executado neste âmbito seja cada vez mais qualificado, vez que a instrumentalidade
profissional, conforme aponta Guerra, 2014 consiste em desvelar as relações sociais
e os processos que ocorrem nas totalidades constitutivas, em suas diversidades,
entre elas próprias e a totalidade social, compreendendo que tais relações não são
diretas, são mediadas pelos diferentes níveis de complexidade e pelas
peculiaridades de cada totalidade constitutiva, com mediações que articulam tais
totalidades entre si e a totalidade social.

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Conhecedores desses desafios, o grupo realizou um trabalho intelectivo


de “estudo de caso” e, a partir da análise crítica de três estudos, apenas um foi eleito
para compor esse artigo e para melhor compreendê-lo, foram utilizados diversos
autores e, como já citado, algumas categorias marxianas foram norteadoras.
As duas famílias apresentadas no estudo social têm como elo de
unicidade duas crianças, que saem judicialmente de sua família de origem, passam
por instituição de acolhimento e são adotas por uma família que não consegue tecer
vínculos sócio familiares de confiança e de afeto, porque os genuínos querer e ser
da parentalidade não foram possíveis de serem construídos, vez que o exercício da
vida paterna e materna foi tido como um objetivo a qualquer custo e acabou
desencadeando a desproteção social das duas crianças que, novamente devolvidas,
são entendidas e ressignificadas como objetos a serem adquiridos. A análise social
leva a refletir até que ponto os interesses dos adotantes devem ser valorizados e
superdimensionados em detrimento da proteção integral de crianças e
adolescentes?
Em uma sociedade que valoriza o status da parentalidade e não “o melhor
interesse” de crianças e adolescentes incorre-se no risco permanente de
desprotegê-los quando se deveria prezar pela proteção social. A adoção, neste
caso, configurou-se em reprodução da mesma violência, essa que permeia a vida da
família de origem e de suas crianças. A solução imediata para uma demanda
igualmente imediata foi a perda do poder familiar da família de origem, a colocação
em instituição de acolhimento e a adoção “à toque de caixa”, tanto assim, que as
crianças ao reproduzirem suas vivências de violências foram expelidas para fora da
vida de seus novos pais.
No estudo desse caso as violações de direitos são latentes desvelando
que as vidas infantis foram negligenciadas (e aqui cabe bem essa terminologia) para
atender o melhor interesse dos adultos. Também foi possível observar que a
ausência de elementos que pudessem saturar todas as possibilidades para que a
adoção fosse a exceção, culminou como regra na vida da família de origem, tendo
em vista que os pais foram destituídos do seu poder familiar em relação a outros
filhos.
Assim, a culpabilização da família na perspectiva da questão social
encontra-se posta pela falta de articulação efetiva de toda a rede sócio assistencial.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A hipótese é de que tudo falhou: poder público, políticas sociais e seu acesso,
condições para acompanhamento familiar, sobretudo, em se tratando, de saúde
mental pública. A análise elucida o equívoco das mediações articuladas por esses
agentes cuja opção política priorizou outras áreas que não a da esfera social,
distanciando-se do acesso aos direitos sociais em sua integralidade.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

6 - ANEXOS

ESTUDO DE CASOS SERVIÇO SOCIAL – GRUPO DE ESTUDOS DA


CAPITAL ESTUDO SOCIAL

Obs: nessa discussão, alterados nomes próprios e de localidades, a fim


de se preservar as informações contidas nos autos, tendo-se como objetivo apenas
o estudo da questão social aqui colocada.

RESUMO EM ORDEM CRONOLÓGICA

- Do acolhimento em Fortaleza – Ceará

Cristina, 5 anos, teria sido abordada pelo Conselho Tutelar a caminhar


desacompanhada na orla marítima de Fortaleza e, durante a abordagem, mencionou
seu irmão Maurício, 3 anos, levando-os até uma espécie de coberto de lona, no qual
se abrigavam com seus pais na praia. As crianças teriam sofrido vários tipos de
maus tratos, apresentavam queimaduras de cigarro, foram vistas por vezes pedindo
nas ruas e constantemente eram deixadas sós, abandonadas à própria sorte. Foram
acolhidas junto ao abrigo conhecido como Casa de Adoção Romero Campos. Após
acolhimento institucional, conforme consta naqueles autos, os genitores foram
localizados e fizeram algumas visitas às crianças no local. Em uma delas tentaram
agredir Cristina. Apontados enquanto dependentes químicos, cuja investigação
familiar feita por aquele serviço não apontou familiares extensos que pudessem
assumir a guarda e responsabilidade pelos infantes, que permaneceram acolhidos.
Uma investigação posterior, feita pelo requerido Sr. Reinaldo (adotante)
junto a esses autos, deu conta de localizar os familiares biológicos e que os mesmos
viviam em uma cidade de nome Juazeiro, próxima a Fortaleza, e desconheciam o
destino das crianças; a genitora teve outro filho acolhido e encaminhado à adoção, e
os familiares tentaram permanecer com Cristina e Mauricio antes que os genitores
os levassem com eles para a Capital, sem sucesso. Era hábito dos genitores ficar
um tempo sem dar notícias e posteriormente buscar ajuda junto aos familiares
novamente. Desta feita, voltaram sem as crianças, que foram acolhidas, porém não
teriam informado aos parentes onde haviam ficado acolhidos.
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- Os pretendentes

Reinaldo e Maria foram habilitados no Município de Pindamonhangaba,


SP. Levantou-se que, na oportunidade não havia sido implantado o Curso para
Pretendentes a Adoção no Município, sendo-lhes solicitado que aguardassem sua
implantação, pois dele dependia a habilitação.
Os pretendentes se recusaram a esperar, buscando o Município de
Sorocaba, que já havia implantado o curso para anteciparem a habilitação.
Habilitados, Sr. Reinaldo, que costumava viajar bastante para o Nordeste,
passou a buscar serviços de acolhimento, intencionando encontrar crianças
destituídas para que pudessem efetivar a adoção.
Estando em Fortaleza, conheceu a Casa de Adoção Romero Campos e,
durante um evento no local, do qual participou, conheceu Cristina e Maurício.
Tendo optado por realizar o que na época era referido como “adoção
tardia” – tratando-se de adoção de crianças maiores – Reinaldo informou a Maria
acerca dos irmãos – uma vez que aceitavam adotar um grupo de até 03 irmãos;
Maria concordou, de imediato, em conhecer as crianças, o que fizeram sem que as
mesmas soubessem de sua intenção de adotá-los, ofertando um café da tarde para
todos os abrigados da Romero Campos.
Habilitados em Pindamonhangaba e bem avaliados pelos técnicos do
serviço de acolhimento de Fortaleza, iniciaram o processo de aproximação com as
crianças, sendo que estiveram na cidade por três vezes; alugaram um apartamento
e para lá se dirigiam uma vez ao mês. Retiravam as crianças para passar o dia, mas
nunca foi autorizado o pernoite, então as deixavam no acolhimento, aos finais de
tarde.
Os pretendentes, em todo esse período, informaram o Setor Técnico de
Pindamonhangaba acerca dessa situação, ainda assim foram orientados a aguardar
a indicação de crianças do próprio cadastro Municipal, porém não observaram essas
orientações, prosseguindo com o feito.

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- Descrição da convivência estabelecida com os adotantes


(percepção dos adotantes):

Residiam em imóvel próprio, com cinco cômodos e dois banheiros (três


quartos), com uma pequena piscina na área externa. O local era impecavelmente
organizado, muito limpo, mesmo com a presença de três animais de estimação
(cachorros).
Sra. Maria afirmou que desde que foi a Fortaleza para aproximação com
as crianças, estas já apresentavam alguns comportamentos preocupantes (citou
birras, principalmente de Cristina, que se jogava no chão quando contrariada),
contudo sempre eram atribuídos à situação em que viviam. Ao conseguirem a
guarda provisória, trouxeram as crianças para Pindamonhangaba, tendo-os colocado
em um mesmo quarto, impecavelmente preparado para recebê-los.
Ocorre que os irmãos brigavam muito e se engalfinhavam, a ponto de
terem que colocá-los em quartos separados; quebravam os brinquedos que os
adotantes compravam, tinham comportamento destrutivo; batiam em objetos, móveis
e até mesmo nas bordas da piscina, até quebrarem tudo.
Em seguida passaram a esconder toda sorte de comida que encontravam;
primeiro comiam muito quase até vomitar e o que não conseguiam comer escondiam
no telhado, atrás da mobília da casa e chegaram mesmo a entupir o vaso sanitário
com um saquinho de pipocas.
Além disso, tinham o hábito de “roubar” todo dinheiro que podiam,
chegando a gastar cerca de R$ 50,00 em um só dia na cantina da escola,
comprando coisas para amigos. Esse comportamento era mais observado em
Maurício.
Ambos foram matriculados em uma escola conceituada em
Pindamonhangaba, entretanto Cristina não conseguia acompanhar, tanto que a
escola chamou os adotantes, sugerindo que fosse matriculada em uma escola
pública, até que o fizeram.
Reinaldo e Maria chegaram a surpreender os irmãos simulando um ato
sexual, o que os chocou bastante. Na presença deles, eram muito comportados,
mas quando ficavam na companhia de outra pessoa (amigos, avós ou tios) se

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portavam muito mal, até que ninguém mais queria ficar com as crianças e Maria foi
obrigada a parar de trabalhar, tendo montado um Pet Shop em casa.
Esse negócio não prosperou, sendo que ela culpabilizou as crianças por
roubarem dinheiro de suas clientes, obrigando-a a fechar o estabelecimento.
Reinaldo e Maria afirmaram que a vida social do casal foi muito
comprometida com a chegada das crianças, pois em função de seu mau
comportamento, parentes e amigos passaram a evitá-los.
Cristina passou a demonstrar claramente que não gostava da adotante,
passou a acusá-la de machucá-la, pedindo socorro na escola, na rua, voltando as
pessoas contra Maria, envergonhando-a em público. Maurício se mostrava
“manipulador e maldoso”, sendo que o casal passou a trancar a porta da cozinha,
para que não estragassem os alimentos, e a trancar a porta do próprio quarto, com
medo de serem atacados pelas crianças.
Buscaram auxílio Psiquiátrico e Psicológico e foram aconselhados a tomar
precauções com as crianças, pois ofertavam riscos; elas passaram a fazer uso de
medicação controlada, ainda assim mantinham o mesmo comportamento, tornando
a convivência entre eles insuportável (SIC).
Após várias denúncias ao conselho tutelar local, de prática de agressões
dos pais contra as crianças, elas foram acolhidas, sendo que Maurício passou a
culpabilizar a irmã pelo acolhimento; Maria afirmou ter corroborado com essa
impressão, afinal foi ela quem a expôs publicamente.
Reinaldo tentou manter contato com os filhos no acolhimento, porém
Maria confessou estar aliviada pela medida, pois alegou que as crianças afastaram
toda a possibilidade de formação de vínculo familiar.
Os adotantes passaram todos os contatos dos parentes biológicos que
conseguiram reunir, comprometeram-se a repassar recursos financeiros para as
crianças e fizeram cerca de duas visitas ao serviço de acolhimento.
Disseram ter buscado o fórum local para pedir orientações de como
proceder com os filhos, mas arguiram terem sido mal recebidos pelo setor técnico,
que se omitiu de intervir, uma vez que não respeitaram as orientações, tendo
empreendido busca ativa pelas crianças.
Alegaram que as crianças já tinham muitos problemas, todavia se
consideram enganados pelos diretores do serviço de acolhimento, uma vez que

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omitiram informações sobre o comportamento das crianças, para que eles os


levassem embora, pois foram avaliados como ótima possibilidade de convívio
familiar para as crianças.

EPÍLOGO

As crianças permanecem em situação de acolhimento institucional há


cerca de dois anos, sendo que houve apenas um episódio em que Cristina fugiu do
local, levando outras duas crianças acolhidas (foram encontradas perto do serviço).
Os educadores relatam que são crianças resistentes a normas e regras,
não muito diferentes de outras que lá estão, porém não houve outros episódios de
grande relevância e que indicassem necessidade de outras intervenções.
As crianças atualmente estão apresentando possíveis distúrbios
alimentares e sobrepeso; Cristina fala recorrentemente que não deseja família
alguma para si. Maurício inicialmente culpabilizava a irmã pelo acolhimento e
afirmava que seria levado pelos pais e deixaria a irmã no local; atualmente não
conversa mais acerca dessas possibilidades.
Os irmãos não exibiram sinais de agressividade que demandem medidas
interventivas, como por exemplo, de contenção, tornando incongruente a afirmação
de que ofereciam risco.
Estão acolhidos em modelo Casa Lar, Maurício tem um padrinho afetivo e
Cristina ainda não, pois tem resistência em retornar a qualquer convívio familiar.
Foram deprecados estudos social e psicológico junto à família de origem, todavia a
possibilidade de colocação em família substituta ainda não foi descartada.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DINÂMICA FAMILIAR EM PROCESSOS


DE GUARDA EM FAVOR DOS AVÓS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
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COORDENAÇÃO

Axel Gregoris de Lima – Assistente Social Judiciário – Secretaria de Gestão de


Pessoas

AUTORES

Alessandra Pissoli Assaly Abilel – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapecerica da


Serra
Branca de Almeida e Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca da Capital
Carlos Francisco Lombardi – Psicólogo Judiciário – Comarca de Embú das Artes
Elisângela Sastre – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Fábio Sergio do Amaral – Psicólogo Judiciário – Comarca de Tremembé
Marcelo Messias dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão
Pires
Maria José Graciliano da Silva Oliveira – Assistente Social Judiciária – Fórum
Regional Nossa Senhora do Ó
Regina Rodrigues Rinaldi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Registro

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INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos “Família” para o ano de 2018 decidiu focar dentro da


temática da família, os avós que assumem a guarda dos netos, de que forma esse
fenômeno familiar se apresenta ao judiciário e ao trabalho das equipes técnicas das Varas
de Infância e Juventude.
Na contemporaneidade o papel dos avós na família passou a assumir uma
importância central, dada às características que os novos modelos familiares vão se
moldando face às transformações impostas a ela pelo modo de produção capitalista. As
transformações que se operam na dinâmica familiar, nas relações afetivas e
principalmente geracionais foram aspectos estudados pelo grupo.
No intuito de enriquecer o debate, o grupo recorreu a fontes bibliográficas,
livros, textos e artigos científicos todos focados nas novas relações geracionais entre
avós e netos, nas circunstâncias em que eles assumem a responsabilidade pelo
cuidado das crianças.
O aspecto geracional, a transmissão da vida psíquica no âmbito familiar, a
simbologia cultural do papel representado pelos avós no imaginário popular foram
variáveis discutidas pelo grupo.
Esperamos contribuir com uma reflexão sobre os novos papéis assumidos
destes avós no cuidado dos netos para aperfeiçoar nosso trabalho junto a estas
novas famílias.
Boa leitura a todos.

1 – TRANSMISSÃO DA VIDA PSÍQUICA ENTRE GERAÇÕES

O foco deste estudo recaiu sobre o papel dos avós, que, nos últimos
tempos tem se ocupado cada vez mais dos netos na tarefa, quase que exclusiva, de
educá-los, em detrimento da ausência dos pais ocupados com o trabalho fora de
casa. O tema da herança psíquica, quanto aos comportamentos, valores e cultura
são transmitidos entre as gerações e reproduzidos nas relações familiares, para
além dos aspectos materiais que sustentam o núcleo familiar.
Nas transmissões intersubjetivas, o sujeito receptor significa, interpreta e
ressignifica as expressões deformadas que outros seres humanos deram a seus
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próprios sentimentos através das alianças, pactos e contratos inconscientes. Por


intermédio desses grupos, são transmitidas e remanejadas as formações do ideal,
as referências identificatórias, os enunciados míticos e ideológicos, os mecanismos
de defesa, os ritos. Já as transmissões intrapsíquicas fazem parte do funcionamento
do indivíduo através do Id hereditário, Ego que deriva do Id, Superego herdeiro do
Complexo de Édipo e, portanto, do Superego dos pais, as exigências pulsionais
inconscientes, o Ideal do Ego e do Superego.
O sujeito da herança está dividido, como o sujeito do inconsciente, entre a
necessidade “de ser um fim para si mesmo” e de ser “o elo de uma cadeia à qual
está sujeito sem a participação de sua vontade”, mas à qual deve servir e da qual
pode esperar tirar benefícios.
Traços e sintomas continuarão a ligar as gerações entre si, num
sofrimento cuja motivação, mantida, será desconhecida, inacessível pela linguagem
das palavras e dos atos de fala: é uma transmissão de coisa. Há um
desapossamento da subjetividade do sujeito. O sujeito preserva o projeto
identificatório através da repetição de comportamentos aparentemente sem sentido.
O conceito de transmissão psíquica em certo momento também foi
comparado à noção dos mitos na terapia familiar, enquanto padrões de expectativas
que a família guarda a respeito dos seus membros e sua capacidade de influenciá-
los em seus desejos e ações. Outro aspecto da herança psíquica apontado diz
respeito à prática de depositarmos nos filhos a esperança de não repetirem nossas
falhas ou resgatarem nossas necessidades. Neste sentido, herdamos dos nossos
ancestrais desejos e necessidades que em algumas situações podem não se
enquadrar numa relação saudável do indivíduo com o seu mundo. Ex.; da mulher
que não conseguia desenvolver uma relação conjugal de confiança em razão de ter
presenciado, na sua infância, a mãe ser agredida pelo marido.
As demais instituições sociais, além da família, também exercem grande
influência sobre a transmissão de valores e regras absorvidas pelas pessoas. Não
há escolha de não pertencer ao grupo e muitas vezes nos cabe somente a tarefa de
refletir sobre nossas ações a fim de não repetir, sem algum tipo de crítica, as
determinações psíquicas.

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A análise mostra que a negociação psíquica de uma herança como essa


comporta uma face positiva, construtiva de uma realidade que dá conta do
sofrimento e das origens, e uma face negativa, devido à destrutividade que veicula.
Os objetos psíquicos inconscientes transformáveis teriam a estrutura do
sintoma ou lapso. Esses objetos transformam-se naturalmente dentro das famílias:
formam a base e a matéria psíquica da história que as famílias transmitem a seus
descendentes de geração em geração.
Os objetos não-transformáveis, cujos efeitos podem ser percebidos nos
objetos brutos, espécie de coisas em si cuja finalidade é, entre outras, atacar o
aparelho de transformação. Permanecem enquistados, incorporados, inertes.
Quando são transferíveis, o são primeiro no modo da transfusão ou das
identificações adesivas e projetivas. É essa não inscrição do “vivido não vivido e
sempre a reviver” e do temor de um colapso que já ocorreu, mas sem que o Ego
seja capaz de metabolizar o que então foi vivido sem qualquer representação de
palavras num provável fracasso denominada a função do porta-voz. Demanda
trabalho intenso sobre as resistências, desvendando o pacto negativo contrato
grupal ou familiar sobre o negativo e o que o mantém. Essas resistências podem ter
a função de preservar um vínculo necessário com mais de um outro.

2 – SOBRE OS AVÓS QUE ASSUMEM A CRIAÇÃO DOS NETOS:

As autoras refletem que, com o aumento da longevidade, há ampliação da


convivência intergeracional. Com isto, muitas avós acabam por assumir
responsabilidades frente aos netos, ou mesmo bisnetos. Se por um lado a elas é
atribuída a responsabilidade por duas ou três gerações, acreditam que, com isso,
eles podem ser considerados “fontes de renovação e renascimento, possibilitando a
chance de repensar antigos conflitos” (MAINETTI, A.C. & WANDERBROOKE,
A.C.N.S, pág 87). O que não muda, talvez, seja o fato de que estas atribuições
recaiam sempre sobre as mulheres.
A chegada de uma criança à família possibilitaria a ressignificação da
existência destas avós, reavivando desejos, sonhos e ideais adormecidos.
As funções primordiais nas relações com netos seriam a transmissão de
sua história de vida, e oferecer cuidados de apoio enquanto a mãe trabalha, ou

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minimizando sua ausência quando do nascimento de um filho com necessidades


especiais, e consequente intensificação de seus cuidados.
Entende-se, no entanto, que tem sido crescente o número de avós que
assumem a guarda (de fato, ou legal), dos netos, em razão da ausência dos
genitores devido a abandono, falecimento, prisão, pais despreparados para
exercerem a paternidade, usuário de drogas; entre outros. Os resultados negativos
direto disso, na vida dos avós, seriam a sobrecarga financeira e de trabalho, conflitos
com seus próprios filhos que querem interferir na educação e cuidados oferecidos,
queda na qualidade de vida e saúde, esgotamento emocional (...). Como ganhos,
enumera-se o sentimento de renovação pessoal, gratificação por estar provendo
uma nova geração, alegrias, amor e objetivos para viver (Mainetti, A.C. &
Wanderbroocke, A.C.N.S, pg.88).
Para as crianças nesta situação, um dos principais ganhos seria o fato de
continuar pertencendo àquela família; além do fato de, com suas experiências de
vida, os avós poderem transmitir estas experiências e conhecimentos. Tal fato
suprimiria o déficit de conhecimento formal, uma vez que estes avós, em geral,
possuem baixa escolaridade.
Temos como exemplo uma pesquisa em que as autoras utilizaram como
amostra alunos de duas escolas da periferia de uma capital brasileira que, por si só,
demonstra ser um olhar sobre famílias pobres. Enquanto grupo reflexivo, não
podemos deixar de destacar possível rotulação desta população pobre. Obviamente,
em famílias mais abastadas também ocorre a “terceirização” dos cuidados aos filhos,
e talvez os mesmos conflitos com relação a uso ou abuso de drogas, abandono,
descasamentos, recasamentos (...) porém resta evidente que estas famílias não
ficam tão expostas quanto aquelas de origem pobre; que são o público-alvo da
pesquisa.
Esta leitura fica ainda mais clara quando se descreve o perfil das
participantes na pesquisa: trabalhadoras domésticas, auxiliares de limpeza,
trabalhadoras informais; com renda familiar baixíssima, e baixa escolaridade.
As razões, no entanto, para que estas avós assumam a responsabilidade
integral pelos netos, parecem ser comuns a qualquer parcela social: pessoas que
tiveram filhos muito jovens, e sem maturidade para lidarem com as demandas dos
filhos; uso de drogas, recasamentos, negligência; que apenas parecem ficar mais

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

evidentes em famílias pobres, em razão da dificuldade para acessarem serviços


essenciais, ou devido à dificuldade de proverem seu sustento.
Neste contexto, os pais são vistos como pessoas incapazes de
oferecerem cuidados básicos aos filhos. Com a ausência ou inadequação das mães,
parece que as avós são as responsáveis naturais para exercerem estes cuidados.
Concluem que “apesar de atualmente haver menor desigualdade entre homens e
mulheres em diferentes esferas, ainda persiste a crença de que as crianças são
responsabilidade da mulher, reforçando a dicotomia mulher cuidadora e homem
provedor” (Mainetti e Wanderbroocke, pág. 92). Tal panorama é observado
diariamente na atuação profissional dos componentes deste grupo, nas diversas
comarcas aqui representadas; não parecendo que a pesquisa destoe da realidade
geral.

2.1 - MOTIVOS PARA AS AVÓS ASSUMIREM OS NETOS:

- Já participava dos cuidados dos netos;


- Disponibilidade de tempo para exercer esses cuidados;
- Moradia em comum com os filhos, pais destes netos;
- Mães solteiras;
- Pais separados.

2.2 - REPRESENTAÇÃO DO PAPEL DA AVÓ QUE CUIDA DOS NETOS:

- Papel similar ao da mãe (mães substitutas);


- Transmissão de conhecimentos, valores e afetos e mesmo autoridade
dentro da família e na vida dos netos.

2.3 - CONSEQUÊNCIAS DA CRIAÇÃO DOS NETOS PELOS AVÓS:

- Preocupação com a responsabilidade de suprir as necessidades dos


netos. Ficam com a sobrecarga financeira, utilizando sua renda com os netos;
- Muitas vezes, voltam ao mercado de trabalho;
- Dificuldades para trabalhar com a responsabilidade de cuidar dos netos;

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- Sensação do preenchimento da perda de filhos com a renovação da vida


emocional na companhia dos netos.

3 – AVÓS E NETOS NA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA:

Da bibliografia estudada, observa-se que ocorreram mudanças


estruturais nas famílias contemporâneas, ocasionando alterações de papéis
parentais em várias destas famílias, com os avós assumindo o papel de educadores
e/ou provedores familiares. Estes avós contrariam o senso comum de “mimarem” e
“paparicarem” os netos, assumindo a função de estabelecer regras e limites, muitas
vezes de forma rígida.
A convivência de diferentes gerações familiares, cada uma com
significados próprios nesta dinâmica, traz à tona a necessidade de compreensão das
causas de modificação das relações familiares.
O tempo também aparece como uma cisão na relação intergeracional,
pois é visto como uma descontinuidade temporal. Enquanto os avós usam “no meu
tempo”, os jovens usam “no nosso tempo”, representando que o passado é o tempo
dos avós e o presente o tempo dos netos, causando conflitos de valores
intergeracionais.
Segundo Marangoni e Oliveira:

(...) Quando (as avós) reportaram sua fala para ‘antigamente’,


assumiram um tom saudosista, evocando a imagem de uma outra
realidade histórica, tida como ‘maravilhosa’, na qual era possível ir e
vir com mais segurança e tranquilidade.

Ainda:

(...) Suscitou uma série de recordações por parte dos avós, que os
remeteram às relações com os seus próprios avós, a infância, assim
como ao começo de suas vidas conjugais, quando se deu o
nascimento de seus filhos e posteriormente de seus netos. (...)
contextualizaram situações e condições sociais, econômicas,
históricas e culturais particulares, que se confrontam com as imagens
idealizadas do passado (...).

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Diversos aspectos influenciam nas relações avós x netos, tais como a


“idade, gênero, mediação dos pais, distância geográfica, trabalho e saúde dos avós,
o nível socioeducacional da família...” e outros eventos que interferem nesta relação,
tais como a separação, crises e doenças dos pais.

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4 - CONCLUSÃO

O Grupo de Estudos ‘Família’ optou durante esse ano de 2018, por


estudar, dentro do contexto familiar, a relação entre avós e netos, quando os avós
assumem a guarda destes. A maioria dos membros do grupo, se deparou em seu
cotidiano profissional, com inúmeros pedidos de guarda neste sentido.
Os textos escolhidos para fundamentar o “porquê” esse fenômeno tem
aumentado na família contemporânea brasileira, tanto em seus aspectos sociais
como psicológicos, demonstrou uma nova dinâmica familiar que está surgindo
quando os avós, não só assumem os cuidados dos netos, mas também, se tornam
os chefes dessas famílias. Existe, conforme os textos apontam, um choque
geracional que interfere diretamente nesse relacionamento.
O aspecto intergeracional é fundamental para entender que não é
somente a herança genética que é transmitida, mas também a matéria psíquica que
tem um papel mais importante, que é o de transmitir os sentimentos, os valores e até
os comportamentos.
O idoso está assumindo, na sociedade contemporânea, destaque por
conta de sua importância no seio familiar, não só pela sua experiência, mas também
em seus aspectos econômicos, diferente da situação das famílias de classes mais
privilegiadas.
Sua longevidade permite participar da educação dos netos, e nas
camadas sociais menos privilegiadas, eles muitas vezes são os membros que
acabam assumindo o cuidado e manutenção da família, não tendo a escolha de
querer ou não assumir este papel.
Muitos pais acabam constituindo novas famílias e não levam seus filhos
de outros relacionamentos anteriores para compor este grupo. Quando existe a
figura dos avós, são eles que assumem esses cuidados, por absoluta falta de opção,
pois não há outro parente disponível para cuidar. Em muitas situações, esses avós
não estão preparados para assumir esse novo papel, porque precisam cuidar de si
próprios, ou até por conta da idade avançada haverá muita dificuldade em
acompanhar a educação e os cuidados dos netos.
Para além da observação da prática com famílias atendidas, fizemos uma
reflexão sobre nossas próprias famílias, nas quais não raro, precisamos contar com

203
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

o apoio dos nossos pais no cuidado com os filhos pequenos, corroborando as


constatações da bibliografia estudada.
Além do aspecto financeiro, deixar os filhos sob a responsabilidade dos
avós, gera maior tranquilidade aos pais, pois têm a certeza de que os filhos estarão
com pessoas de sua extrema confiança.
Por outro lado, há participantes já na “terceira idade” que, de certa forma,
contribuem eventualmente no cuidado dos netos, no entanto sem grandes
responsabilidades permanentes neste papel, pois entendem que cabe aos pais tal
cuidado.
Portanto, o que se conclui é que não existe um modelo ideal de
responsabilidade, e sim cada família vai encontrar, em sua dinâmica, a forma que
melhor atenda suas necessidades, para além de atribuir somente aos avós a
responsabilidade de cuidar dos netos.

204
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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REFERÊNCIAS

KAES, R. Introdução: O Sujeito da Herança. IN: KAES et all. TRANSMISSÃO DA


VIDA PSIQUICA ENTRE GERAÇÕES. Casa do psicólogo, 2001, 2ª edição, pág. 9-
25.

MAINETTI, A.C. & WANDERBROOKE, A.C.N.S. Avós que Assumem a Criação dos
Netos. In: PENSANDO FAMÍLIAS, 17 (1), 2013, Pág. 87-98. PEPSIC.

MARANGONI, J. & OLIVEIRA, M.C.S.L. Relacionamentos Intergeracionais: Avós e


Netos na Família Contemporânea. IN: A FAMÍLIA E O IDOSO: DESAFIOS DA
CONTEMPORANEIDADE. Papirus, 2010, pág. 37-52.

VITALE, M.A.F. Avós: Velhas e Novas Figuras da Família Contemporânea. In:


FAMÍLIA: REDES, LAÇOS E POLITICAS PUBLICAS. São Paulo: IEE/PUCSP, 2003.
Pág. 93-105.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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SOBRE OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA:


NOVAS PERGUNTAS PARA NOVAS RESPOSTAS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“JUSTIÇA RESTAURATIVA”

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2018

206
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COORDENAÇÃO

Carla Pontes Donnamaria – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

Silvana Ilek Barbosa – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa


do DAIJ - 1.4

AUTORAS

Andrea Svicero – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa do


DAIJ - 1.4
Celia Regina de Biasi Arelaro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Socorro
Cristina de Carvalho Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca Monte Azul
Paulista
Fabiana Maria Dias Aranha – Assistente Social Judiciário – F VEIJ da Capital
Gabriela Balaguer – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franco da Rocha
Iara Dourado Nogueira Giotto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Amparo
Izabel Rita Fregnani – Assistente Social Judiciário – Serviço de Serviço Social DAIJ -
1.2
Josiane Moraes – Assistente Social Judiciário – F VEIJ da Capital
Juliana Frota Viégas – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itu
Leni Coimbra Massei – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas
Maria Cristina Abi Rached – Assistente Social Judiciário – F. Regional de Santana
Maria Gorette Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itariri
Maria Ines de Souza Gandra - Psicóloga Judiciário – F. Regional de Santo Amaro
Maria Lucia Bianchini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das Artes
Mariane da Silva Fonseca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Serra Negra
Rubia Carla Ribeiro – Psicóloga Judiciário – F VEIJ da Capital
Takeko Gushiken – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu
Telma Dantas da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Arujá
Zilda Rodrigues Nogueira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Um ser humano é parte de um todo, por nós chamado de “universo”,


uma parte limitada no tempo e no espaço.
Ele vivencia a si mesmo, seus pensamentos e sentimentos
como algo separado do resto...
uma espécie de ilusão de ótica de sua consciência.
Esta ilusão é um tipo de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos
desejos pessoais e à afeição por umas poucas pessoas mais próximas de nós.
Nossa tarefa é nos livrarmos dessa prisão, ampliando nosso círculo de compaixão
para abraçar todas as criaturas vivas e toda a natureza em sua beleza.

(ALBERT EINSTEIN apud BOYES-WATSON, C. e PRANIS, K. 2011, p. 250)

INTRODUÇÃO

Completando seu terceiro ano de existência, o Grupo de Estudos de


Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem pautado
sua trajetória desde a aproximação ao conceito de Justiça Restaurativa (JR) e como
ela tem se desenvolvido no Brasil22 experimentando vivencialmente uma das
abordagens atinentes à Justiça Restaurativa - Processos Circulares - refletindo a
partir desta experiência e de bibliografia específica23.
“Acima de tudo, a Justiça Restaurativa é um convite ao diálogo para que
possamos apoiar um ao outro e aprender uns com os outros” (ZEHR, 2017, p. 89).
Ao longo de dez encontros, o grupo constituído pelas signatárias deste artigo, elegeu
aprofundar o estudo sobre os Princípios Fundamentais da Justiça Restaurativa,
partindo do que Howard Zehr explana na obra intitulada: “Justiça Restaurativa”
(2017), que no ano presente recebeu uma nova edição, ampliada e atualizada.

22
O artigo elaborado em 2016, intitulado “Justiça Restaurativa: um novo paradigma em construção”,
pode ser acessado na íntegra através da página:
<http://www.tjsp.jus.br/Download/EJUS/AVAS/CadernosDeEstudo/Caderno13GruposEstudosSSPJ.pd
f>
23
O artigo elaborado em 2017, intitulado: “Justiça Restaurativa: vivenciando a metodologia do
Processo Circular”, pode ser acessado na íntegra através da página:
<http://www.tjsp.jus.br/Download/EJUS/AVAS/CadernosDeEstudo/Caderno14GruposEstudosSSPJ.pd
f>
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Para nossa reflexão e partilha, bem como para a construção conjunta,


pautamo-nos e partimos sempre da metodologia do processo circular 24, fazendo uso
de um objeto da palavra25, concedendo a cada membro vez e voz, bem como a
garantia de escuta respeitosa e atenta.
Como forma de consolidar no grupo a ideia de que “[...] estamos todos de
fato inseridos em uma rede de relacionamentos” (ZEHR, 2017, p. 89) em um de
nossos encontros vivenciamos uma adaptação do “Círculo para criar um Mundo
Melhor”26. Com isso fomentou-se uma consciência ainda mais intensa de que
estamos interligados, e que quando essa teia se rompe todos são afetados, sendo
todos nós guardiões corresponsáveis pelos vínculos que constituímos.
Para que consigamos sustentar os pilares da Justiça Restaurativa - os
danos e as consequentes necessidades, as obrigações e o engajamento - e
alcancemos decisões que promovam responsabilidade, reparação e
restabelecimento para todos é vital que nossas práticas estejam fundadas em
valores e princípios, abordados neste trabalho.
Quanto aos valores Howard Zehr (2017, p. 88) toma como base os três
“R”: respeito, responsabilidade e relacionamento, de onde o respeito é fundante.

Os princípios da Justiça Restaurativa são úteis apenas se estiverem


enraizados em certos valores subjacentes. [...] Para aplicar os princípios de
modo coerente com o seu espírito e propósito, devemos ser explícitos em
relação a esses valores. Caso contrário, por exemplo, pode acontecer de
utilizarmos um processo baseado na Justiça Restaurativa, mas acabamos
chegando a decisões não restaurativas (ZEHR, 2015, p. 52)

24
Práticas Restaurativas compreendem a utilização de diferentes metodologias de estruturação e
promoção de encontros entre as partes envolvidas, objetivando a facilitação do diálogo, a superação
de conflitos e a resolução de problemas de forma consensual e colaborativa. Diferentes metodologias
podem ser escolhidas e utilizadas segundo as circunstâncias do caso, objetivando proporcionar um
ambiente seguro e protegido para o enfrentamento das questões propostas. (Brancher; Flores, 2016,
p. 110).
25
O bastão ou “objeto da fala”, elemento-chave do círculo, é um objeto escolhido pelo grupo ou pelo
facilitador, que é passado de pessoa para pessoa na sequência da roda. O objetivo do bastão é
regular o diálogo dos participantes, permitindo que o seu detentor fale sem interrupções e que os
demais foquem na escuta. (SVICERO e PENHA, Org. 2017, p. 217) Disponível em:
<http://www.tjsp.jus.br/ownload/EJUS/AVAS/CadernosDeEstudo/Caderno14GruposEstudosSSPJ.pdf
> Acesso em: 29 out. 2018.
26
Vide “No Coração da Esperança - guia de práticas circulares” - Carolyn Boyes-Watson & Kay
Pranis, p. 61-63, disponível em:
<https://parnamirimrestaurativa.files.wordpress.com/2014/10/guia_de_praticas_circulares.pdf>

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Acerca dos princípios, foco deste artigo, ilustramos abaixo aqueles que,
segundo Zehr, são fundamentais, agrupados abaixo em quatro pontos:

Figura 1 - Princípios da Justiça Restaurativa

Fonte: ZEHR, 2018, p. 51

 Focar nos danos e consequentes necessidades da vítima, mas


também do ofensor e da comunidade;
 Tratar das obrigações que resultam daqueles danos, envolvendo todos
que tenham legítimo interesse na situação (vítimas, ofensores, membros da
comunidade e da sociedade);
 Utilizar processos inclusivos e cooperativos;
 Reparar os danos e endireitar as coisas, na medida do possível.
A imagem da flor é bastante sugestiva, para que tenhamos presente que
os princípios da Justiça Restaurativa não são estanques, mas interligados de forma
orgânica e interdependente. Recordamo-nos que a vivência de uma prática
restaurativa é essencialmente circular, prevalecendo a responsabilidade
compartilhada.
O aprofundamento acerca dos Princípios enseja aproximar-nos deste
outro paradigma que a Justiça Restaurativa se propõe ser, almejando que o crime, o
autor do delito e os processos de ressocialização cheguem a expressar outras
percepções, que não a traduzida por Verzola (2016):

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ressocialização.
É bom voltar pra casa, não vou falar que não, mas não consigo curtir direito.
Disseram lá no laudo que eu tô ressocializado, reabilitado, reeducado e
pronto para ser reintegrado na minha comunidade. Que eu me arrependi e
agora consigo ver a dimensão dos meus atos. Parece piada, mas é o jeito.
Como se seis meses na Fundação fossem servir de alguma coisa que não
mais dor? Como ressocializar um cara que sempre teve na escola um
ambiente hostil? Como reinserir na comunidade um cara que nunca foi
aceito por ela? Não conseguem ver que justamente aí que entra o crime? A
ideia da merda do roubo não surgiu do nada na minha cabeça, não foi um
ato impensado do qual me arrependo puramente. Foi um evento de certa
forma inevitável. Não que todo mundo acaba correndo pelo errado quando
tá na mesma situação que a minha. Mas a própria ideia de certo e errado é
relativa. O certo e o errado preto-no-branco é óbvio pra quem tem desde
sempre as referências deles. Quem não tem só se fode. Se não se adequa
abaixando a cabeça, se adequa na marra, na porrada. Voltando ao roubo, é
fácil pra caralho tratar como um erro isolado que comporta um
arrependimento qualquer. Difícil é compreendê-lo como sintoma de uma
doença maior, que é causada justamente por quem fala que vai combatê-lo
prendendo a molecada. Não é me vitimizar. Não sou santo, porra. Claro que
eu fiz merda, só que eu não acredito nesse lance de recompensa, de se
apegar pelo que fez. Porque no final das contas eu acabaria fazendo tudo
de novo. Isso não significa que eu não tenho jeito, que eu sou caso perdido,
senão que eu sou exatamente quem eles queriam que eu fosse: o vilão
perfeito para eles botarem na conta as atrocidades que eles mesmos
causam. É mais fácil quando se tem o inimigo tangível. O preto favelado
com o cano na mão é fácil de se desenhar. É uma ameaça visível que se
combate a tiro. E o filho da puta que faz propaganda de um tênis caro, que
salário de trabalhador nenhum consegue comprar, e que mesmo assim te
faz sentir um bosta sem ele? Ele não tem culpa de nada, tá fazendo o
trabalho honesto dele, com ele a sociedade se identifica. Comigo não. Eu
sou marginal, nasci marginal, me criei marginal e vou morrer marginal,
provavelmente na mão de um herói fardado que vai ganhar uma medalha.
Pode tentar me reeducar, me reabilitar, me ressocializar, me reinserir, me
re-a-porra-toda. É muito mais confortável, dá a impressão de que o trabalho
está sendo feito. Mas se os caminhos me levarem de novo até a mesma
situação eu puxo o gatilho que nem da outra vez. Sorte tua se não for
contigo.

É um relato que choca, que impacta, mas é a realidade de muitos


adolescentes em conflito com a lei e em cumprimento de medida socioeducativa. E
se olhássemos para este adolescente desde outra lente? A lente restaurativa. Uma
lente que projeta o conceito de “justiça” enquanto valor, de modo que cuidemos dos
sentimentos e das necessidades de todos os envolvidos na ofensa, seja do autor, da
vítima e/ou da comunidade. Nesse sentido, convidamos você a imergir nas próximas
páginas deste artigo e refletir sobre os princípios da Justiça Restaurativa.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

O crime não é primeiramente uma ofensa contra a


sociedade, muito menos contra o Estado. Ele é em
primeiro lugar uma ofensa contra pessoas, e é delas que
se deve partir.
(ZEHR, 2008, p. 172)

Segundo Zehr (2017), uma das razões para a emergência da Justiça


Restaurativa é o reconhecimento de que a Justiça Retributiva tem uma visão restrita
acerca de quem tem legítimo interesse em um processo judicial. Ele afirma: “A
Justiça Restaurativa expande o círculo dos interessados no processo (aqueles que
foram afetados ou têm uma posição em relação ao evento ou caso) ampliando-o
para além do Estado e do ofensor a fim de incluir também aqueles diretamente
vitimados e os membros da comunidade” (ZEHR, 2017, p. 27). Conforme veremos
ao longo deste artigo, a justiça restaurativa permite que vítima, ofensor e familiares
apresentem suas necessidades e se posicionem em relação ao fato ocorrido.
O envolvimento dos diferentes interessados em um conflito está
estreitamente relacionado à noção – presente em muitas culturas ancestrais e
tradicionais – de que o crime é uma violação das pessoas e/ou dos relacionamentos.
Neste sentido, o autor afirma:

Dentro dessa cosmovisão, o problema do crime – e dos


comportamentos nocivos em geral – é que ele representa uma chaga
na comunidade, um rompimento da teia de relacionamentos.
Significa que vínculos foram desfeitos. E tais situações são tanto a
causa, como o efeito do crime. Muitas tradições oferecem ditos
populares no sentido de que o dano de um é o dano de todos. Um
mal como o crime provoca ondas de repercussão e acaba por
perturbar a teia como um todo. Além do mais, o comportamento
socialmente nocivo é, via de regra, sintoma de que algo está fora de
equilíbrio nessa teia (ZEHR, 2017, p. 36).

Dessa forma, partindo do pressuposto de que todos estão interligados, o


autor propõe que o conflito e, portanto, o dano sejam compreendidos em um
contexto de complexas interações e relações sociais.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1.1 - FOCAR NOS DANOS E NAS NECESSIDADES: ENVOLVENDO A VÍTIMA, O


OFENSOR E MEMBROS DA COMUNIDADE E DA SOCIEDADE

A justiça, seja a retributiva ou a restaurativa, parte do pressuposto de que


o conflito, interpessoal ou mesmo envolvendo grupos e sistemas sociais maiores,
deve ser analisado e julgado sob o ponto de vista da responsabilização dos
ofensores, ou seja, aqueles que produziram algum dano a alguém devem ser
responsabilizados. Nenhuma das duas formas de pensar a justiça opõem-se à ideia
do reconhecimento do dano e da responsabilização, no entanto, é possível
reconhecermos na justiça restaurativa um modo diferente e, não necessariamente
oposto ao da justiça retributiva, de compreender a violência/conflito e os danos dela
decorrentes e, daí, lidarmos com a responsabilização.
Entendemos que o dano gerado não deve apenas instaurar um processo
de retaliação ao ofensor, mas, sim, permitir uma reconexão do ofensor com a vítima
a partir dos efeitos produzidos pelos seus atos. No sistema de justiça retributiva, a
vítima não participa do processo, sendo representada pelo Estado, uma vez que “o
crime é definido como ato cometido contra o Estado, e por isso o Estado toma o
lugar da vítima”. (ZEHR, 2015, p. 28) Na Justiça Restaurativa, as vítimas podem
encontrar lugar para falar sobre o dano sofrido e as necessidades geradas a partir
dali, num processo de participação direta e não mediada por outros.

Os defensores da Justiça Restaurativa examinaram as necessidades


que não estavam sendo atendidas pelo processo legal corrente.
Observaram também que é por demais restritiva a visão prevalente
de quais são os legítimos participantes ou detentores de interesse no
processo judicial. A Justiça Restaurativa expande o círculo dos
interessados no processo (aqueles que foram afetados ou têm uma
posição em relação ao evento no caso) ampliando-o para além do
Estado e do ofensor a fim de incluir também aqueles diretamente
vitimados e os membros da comunidade. (ZEHR, 2015, p. 27).

Zehr (2015, p. 26) recorda que os danos causados pelo crime possuem
dimensões públicas e privadas, isto é, uma dimensão social e outra mais pessoal ou
interpessoal. Para ele, o sistema jurídico se preocupa com a dimensão pública, ou
seja, os interesses e obrigações da sociedade representada pelo Estado. Mas esta
ênfase relega ao segundo plano, ou chega a ignorar, os aspectos pessoais e
interpessoais do crime”. Desse modo, a fim de compreendermos a dimensão

213
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

interpessoal do conflito, vamos nos debruçar sobre as condições da participação de


todos os envolvidos, direta ou indiretamente, no conflito/violência.

A - A PARTICIPAÇÃO DA ‘VÍTIMA’ NA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Muitas vezes as vítimas se sentem negligenciadas em relação às


informações de como se deu o processo de responsabilização do ofensor no âmbito
do sistema de justiça, isso tende a gerar um sentimento de incerteza e
deslegitimidade em relação ao dano sofrido.
A participação da vítima – que é convidada a se tornar um protagonista na
busca de “endireitar as coisas” – é um dos elementos distintivos e mais importantes
da Justiça restaurativa. Conforme já abordado anteriormente, enquanto na Justiça
Retributiva o crime é considerado como um ato cometido contra o estado, na Justiça
Restaurativa há importante reconhecimento da vítima como alguém que sofreu um
dano, possui necessidades e não pode ser um mero coadjuvante do processo
judicial. É interessante notarmos que Zehr (2017) também expande o sentido mais
corrente de vítima no âmbito legal, salientando que familiares, amigos e outras
vítimas secundárias também podem ser profundamente afetados em um dano.
Além disso, percebemos a necessidade das vítimas narrarem os danos
sofridos ao seu modo, como forma de reconhecimento dos sentimentos envolvidos
no conflito. Esse compartilhar da história narrada pela vítima permite que os outros
envolvidos no processo de justiça restaurativa possam ser afetados pelos
sentimentos e necessidades desta e assim construam empatia para com ela.
(ROSENBERG, 2006)
Benjamin (1994, p.205) procura descrever a noção de experiência a partir
da capacidade de narrar:

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão -


no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido,
uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em
transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou
um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

214
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesse sentido, ao darmos o direito à vítima de narrar a sua história


significa estarmos na companhia dela e mergulhar nos afetos e necessidades que
aparecem naquele momento. A narrativa torna a vítima potente no sentido que
permite a ela reconhecer os sentimentos e as necessidades decorrentes do dano
sofrido e ir em direção a elas.

B - O PAPEL DO ‘OFENSOR’ NA JUSTIÇA RESTAURATIVA

A participação do ofensor é deslocada da posição de mero receptor de


uma punição para uma posição mais consciente e atuante no processo de (auto)
responsabilização. Zehr (2017) salienta que, muito comumente, os ofensores
também possuem necessidades, considerando ser recorrente um histórico de
vulnerabilidade e exclusão social; desta forma, as práticas restaurativas podem dar
espaço para que necessidades dos próprios ofensores venham à tona. Além disso, o
autor indica que muitos ofensores passaram por situações traumáticas, que também
podem ser nomeadas e receber continência a partir da Justiça Restaurativa.
Zehr (2017) dá igual destaque ao fato de que familiares e amigos dos que
causaram dano também podem ser profundamente afetados e que, no contexto da
justiça retributiva, eles têm pouco, ou nenhum, espaço para trazer suas perspectivas
e necessidades.
É importante salientarmos que o princípio de envolvimento da vítima e
ofensor não implica necessariamente o encontro entre eles. De acordo com Zehr
(2017), há casos de violência (especialmente física e sexual), em que este encontro
pode não ser apropriado; ademais, em muitos casos, a vítima não quer ser
considerada como parte em um conflito. Neste sentido, o autor afirma:

Um encontro – seja direto ou indireto – nem sempre é possível e, em


alguns casos, pode ser indesejável. Em certas culturas, um diálogo
presencial poderia ser até inadequado. Os encontros indiretos
razoavelmente eficazes sem serem ofensivos, poderão tomar a
forma de uma carta, um vídeo gravado, ou ser realizados através de
um representante da vítima. Em todas essas modalidades, devem
ser envidados esforços para oferecer o máximo de troca de
informações e envolvimento entre as partes interessadas. (ZEHR,
2017, p. 43).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Dessa forma, o envolvimento da vítima e do ofensor é um princípio que pode


ser efetivado através de várias formas, considerando a singularidade de cada caso.
Pretende-se, a partir da Justiça Restaurativa, que o ofensor possa se responsabilizar
pelo dano causado, o que não significa necessariamente, ou exclusivamente, ser
punido pelos atos cometidos, mas “compreender as consequências de seus atos ou
desenvolver empatia com a vítima” (ZEHR, 2015, p. 30), envolvendo-se na
reparação do dano na medida do possível.
Ora, muitas vezes, no processo penal, o ofensor procura apenas se
defender do encarceramento ou das sentenças longas, afinal a própria punição dada
não guarda nenhuma menção ou referência em relação à vítima e/ou ao dano
cometido. Percebemos o quanto isso gera entre os ofensores formas defensivas
(racionalizações e estereótipos) de participarem do processo de modo a não entrar
em contato empaticamente com a dor das vítimas e da comunidade envolvida e, por
consequência, com seus próprios atos.
Rosenberg (2006, p.177) menciona o quanto as formas de comunicação
alienantes marcadas em julgamentos moralizadores, comparações entre uns e
outros e de negação de responsabilidade sobre nossos atos, sentimentos e
pensamentos impedem o desenvolvimento da capacidade de empatia ou compaixão
de nós com nós mesmos e com os outros. Desse modo, ele acrescenta, “continuo a
me espantar com o poder curativo da empatia. Repetidas vezes tenho testemunhado
pessoas transcendendo os efeitos paralisantes da dor psicológica, quando elas têm
contato suficiente com alguém que as possa escutar com empatia”.

C - A PARTICIPAÇÃO DA ‘COMUNIDADE’ E DA ‘SOCIEDADE’ A PARTIR DA


JUSTIÇA RESTAURATIVA

Além da vítima e do ofensor é necessário enfatizarmos o lugar da


comunidade na Justiça Restaurativa. Zehr (2017, p. 32), afirma:

Os membros da comunidade têm necessidades advindas do crime, e


também papéis a desempenhar. Defensores da Justiça Restaurativa
como o antigo juiz Barry Stuart e Kay Pranis argumentam que,
quando o Estado assume o lugar do cidadão, isso termina por
enfraquecer nosso sentido comunitário. As comunidades sofrem o
impacto do crime e, em muitos casos, deveriam ser
consideradas como partes interessadas, pois são vítimas

216
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

secundárias. As comunidades também podem ter responsabilidades


em relação às vítimas, aos ofensores e aos seus próprios membros.
(grifo nosso).

Logo, de forma consonante ao já exposto em nosso artigo, o envolvimento


da comunidade se dá a partir do pressuposto de que as pessoas estão interligadas e
que, numa situação de dano, a comunidade é tanto um membro afetado como um
conjunto de pessoas com alguma corresponsabilidade pela situação.
Neste ponto, torna-se fundamental destacarmos uma questão importante
levantada por Zehr (2017) para o contexto social do ocidente contemporâneo: o que
é a comunidade? Diferentemente de algumas comunidades tradicionais (p.ex.
grupos indígenas ou autóctones), a nossa cidade ou bairro podem não ser
representados ou sentidos como nossa comunidade. Por outro lado, podemos
estabelecer vínculos comunitários entre pessoas em diferentes locais, facilitados
pelos atuais meios de comunicação e transporte. O autor também afirma que o
conceito de comunidade pode ser apreendido num sentido abstrato, o que traria
pouca contribuição prática. Neste sentido, Zehr (2017, p. 44) acrescenta:

Na prática, a Justiça Restaurativa tem tendido a se concentrar nas


“comunidades de cuidado” ou microcomunidades. Há comunidades
de lugar, nas quais interagem pessoas que vivem próximas umas
das outras; mas há também redes de relacionamentos que não estão
definidas geograficamente. Para a Justiça Restaurativa as questões
fundamentais são: 1) quem da comunidade se importa com essas
pessoas ou com a ofensa? e 2) como envolvê-las no processo?
(grifo nosso).

O critério principal de comunidade, para os fins da Justiça Restaurativa,


seria a própria implicação da pessoa no dano/conflito e viabilidade de participação
nas práticas ou procedimentos restaurativos. É importante notarmos que a
participação da comunidade num caso não se limita ao escopo do conflito singular.
Zehr (2017, p. 32) afirma: “Quando a comunidade se envolve com o processo,
poderá iniciar um fórum para discutir essas questões, atividade que vai, ao mesmo
tempo, fortalecer a própria comunidade”. Desta forma, consideramos que o
envolvimento da comunidade pode estreitar as relações sociais, prevenir conflitos
futuros e humanizar as interações entre pessoas nas suas diferentes posições:
social, étnica, religião, etc.
217
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ao lado da comunidade, o autor também apresenta – e diferencia – o


envolvimento da sociedade. Embora Zehr (2017, p. 44) assevere que a Justiça
Restaurativa se concentra nas microcomunidades, ele afirma que:
[...] há preocupações e obrigações maiores que dizem respeito à
sociedade como um todo, transcendendo aquele grupo que tem
interesse direto em dado evento específico. Dentre estes estão: a
preocupação da sociedade com a segurança, os direitos humanos e
o bem-estar de seus membros em geral. Muitos sustentam que o
Estado desempenha o importante e legítimo papel de cuidar de tais
questões de âmbito social.

Um exemplo de participação da sociedade consiste em um dos objetivos


da justiça restaurativa: o de “tratar das causas”. Neste sentido, o envolvimento da
sociedade seria fundamental para lidar com injustiças sociais e outras iniquidades
que corroboram com as causas da criminalidade.
Em relação ao envolvimento da comunidade e da sociedade, é
interessante destacarmos uma interface entre o pensamento de Zehr e a
implantação da Justiça Restaurativa no contexto brasileiro. Segundo Zehr (2017),
não há um modelo puro ou ideal de Justiça Restaurativa; consequentemente, deste
modo, práticas consolidadas em diversas localidades ou países podem ser
integradas (ou ressignificadas) através das lentes da Justiça Restaurativa 27.
De acordo com o art. 3º, II, da Resolução 225/201628 do Conselho
Nacional de Justiça, as ações no âmbito da Justiça Restaurativa devem ser
realizadas “buscando estratégias que promovam, no atendimento dos casos, a
integração das redes familiares e comunitárias, assim como das políticas públicas
relacionadas a sua causa ou solução”.
Desta forma, o modo de trabalho e funcionamento em sistemas e redes –
desenvolvido em setores como a saúde (SUS), a assistência social (SUAS) e
socioeducação (SINASE) – é trazido para o contexto das práticas e procedimentos
restaurativos. Além disso, a resolução citada acima não se atém às redes
intersetoriais, mas dá igual peso ao envolvimento comunitário, o que é coerente com
a seguinte proposta do autor:

27
Zehr (2017) cita exemplos de práticas tradicionais/comunitárias em países como Gana e Paquistão.
Contudo, neste artigo propomos uma extensão desta compreensão para alguns aspectos da interface
entre a justiça restaurativa e o modo de funcionamento de algumas políticas públicas no Brasil.
28
Disponível em
<http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_225_31052016_0206201616141
4.pdf> Acesso em 19 nov 2018
218
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[...] todos os modelos estão, em alguma medida, atrelados à cultura.


Portanto a Justiça Restaurativa deve ser construída de baixo para
cima, pelas comunidades, através do diálogo sobre suas
necessidades e recursos, aplicando os princípios às situações que
lhe são próprias. (ZEHR, 2017, p. 23).

Nesse sentido, podemos compreender que o Brasil – com arranjos


grupais/institucionais como as associações de moradores, ações de educação
popular, movimentos sociais, comunidades eclesiais de base e outras iniciativas
comunitárias –, apresenta um modo singular de se apropriar deste princípio da
Justiça Restaurativa.
Ao discutir as metas da Justiça Restaurativa, Zehr (2017) também indica
certo escalonamento em relação ao envolvimento das pessoas nos seus processos
decisórios. Ele afirma que os programas e procedimentos restaurativos objetivam
“colocar as decisões chave nas mãos daqueles que foram mais afetados pelo crime”
(p. 54). Logo, tomando como exemplo o envolvimento da vítima em relação à
participação da sociedade/Estado, podemos compreender que um representante
deste último deve ter menos poder decisório que a pessoa (ou conjunto de pessoas)
que foi mais diretamente ofendida pelo dano.
Se apenas o Estado assume o lugar do cidadão e da comunidade, tal
como ocorre na Justiça Retributiva, haverá um enfraquecimento da participação
comunitária. Este modo de agir do Estado-Juiz pode resultar ineficaz, tanto para
dimensionar o(s) crime(s) quanto para a conscientização de responsabilidade(s) e
corresponsabilidade(s) de todos os envolvidos na situação.
Desse modo, a Justiça Restaurativa promove o engajamento comunitário,
ampliando a participação de representantes que estejam, direta ou indiretamente,
envolvidos no conflito e, possivelmente, também na solução.

1.2 - DAS OBRIGAÇÕES QUE RESULTAM DO DANO

Este princípio da Justiça Restaurativa compreende essencialmente o


estabelecimento das obrigações que cabem ao ofensor para que a reparação do
dano seja atingida. Contudo, como já destacamos anteriormente, a assunção de
responsabilidades não deverá caber apenas ao ofensor, mas também à comunidade
à qual pertencem o ofensor e a vítima, bem como à sociedade, uma vez que estas
219
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últimas podem contribuir para a criação de condições para que a ofensa não seja
perpetrada novamente pelo ofensor, ainda que dirigida a outra vítima.
Em outras palavras, a sociedade deve ser chamada para auxiliar o
ofensor em sua jornada pela reparação do dano a fim de que esta seja também uma
oportunidade, com intuito de que ele supere quaisquer circunstâncias que possam
ter contribuído para que viesse a perpetrar o dano.
Como ensina Kuhn (1998, p. 204) “o que um homem vê depende tanto
daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o
ensinou a ver”. A violência avassaladora existente na sociedade brasileira, que
registrou em 2017 mais de 60 mil homicídios e mortes violentas faz com que, à
primeira vista, a Justiça Restaurativa possa parecer uma quimera. Entretanto, ao
conferir protagonismo às vítimas e às comunidades, ela se apresenta como uma
alternativa importante para muitos casos, de modo que o objetivo maior seja
alcançado: a Justiça.

1.3 - UTILIZAR PROCESSOS INCLUSIVOS E COOPERATIVOS

A Justiça Restaurativa é inclusiva, pois se preocupa com os que sofreram


danos, com os que o causaram e com o bem-estar de toda a comunidade, já que “o
dano de um é o dano de todos” (ZEHR, 2017, p. 36). Procura distribuir igualmente o
cuidado a todas as partes envolvidas e promover o engajamento destas no
processo, visando “oferecer uma experiência reparadora para todos os envolvidos”
(p. 39).
Para se falar em cooperação na JR é importante recordarmos a ideia de
interconexão (ZEHR, 2017) que supõe que estamos todos ligados, formando uma
teia de relacionamentos (p. 36). Cooperar é agir conjuntamente com o outro com um
fim em comum. A cooperação pode se dar em todas as esferas da vida social: no
trabalho, nas relações familiares, na política, no esporte, na escola, entre outras.
A JR “recorda-nos de que vivemos em relacionamento, que nossas ações
têm impacto sobre os outros, que quando essas ações são danosas temos
responsabilidades” (idem, p. 86).
Os participantes de um processo circular (ou de outra prática restaurativa)
devem ser livres para expressar os seus sentimentos e suas necessidades,

220
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corresponsabilizando-se quanto à tomada conunta de decisões, no sentido de


reparar os danos gerados. O respeito mútuo gera confiança entre os participantes.
Neste sentido, se a participação for imposta (lembrando que, na Justiça
Restaurativa, tudo é um convite), ou se alguém se sentir excluído e desrespeitado
durante um processo, este não pode ser considerado restaurativo.
Esforçar-se para ser inclusivo e colaborativo na JR supõe compreender
que o processo deve ser aberto a todas as partes envolvidas no conflito, direta ou
indiretamente, incluindo a comunidade e a sociedade.
Ter a consciência de que somos corresponsáveis pelo processo de
mudança social supõe compreender que, como sociedade, é fundamental a
participação e a cooperação na prevenção e restauração dos danos causados pelo
ofensor à vítima, reverberando-se seus efeitos a toda a teia social de
relacionamentos.
Os mais afetados pelo conflito/violência – vítimas, ofensores e suas
comunidades de interesse – devem ser, no processo, os principais tomadores de
decisão, ao invés de profissionais representando os interesses do Estado. Todos os
presentes no encontro de Justiça Restaurativa detêm valiosa contribuição, por isso,
a importância de dar vez e voz a todos, o que fica regulado especial – mas não
exclusivamente – pelo uso do objeto da palavra, e pelos valores e diretrizes
construídos e compartilhados pelos participantes.
Independentemente do modelo/abordagem adotado – segundo Zehr
(2017, p. 62) há três que tendem a dominar a prática da JR: os encontros vítima-
ofensor, as conferências de grupos familiares e os processos circulares – cada
abordagem possui suas especificidades e elementos comuns entre eles.
Seja qual for o processo adotado, sua tônica inclusiva e cooperativa se dá
desde algum tipo de encontro e diálogo (ibidem), de preferência presencial, que
parte de uma participação voluntária, e é conduzido por facilitadores restaurativos.
Em todos os modelos, e quando habilmente facilitados (ZEHR, 2017, p.
20), abre-se espaço, além do reconhecimento do mal cometido-causado, da busca
conjunta por sua reparação, à perspectiva de futuro, contribuindo, deste modo, para
a “transformação das pessoas, dos relacionamentos, das comunidades” (idem, p,
21).

221
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1.4 - REPARAR OS DANOS E ENDIREITAR AS COISAS NA MEDIDA DO


POSSÍVEL

Zehr (2015, p. 26) ressalta que o esforço do ofensor para corrigir o dano
causado, mesmo que seja de forma parcial, é uma maneira de dizer à vítima: “estou
assumindo a responsabilidade, você não é culpado/a pelo que eu fiz”.
Além disso, a responsabilização como parte do processo de Justiça
Restaurativa produz o reconhecimento simbólico do dano cometido, assegurando à
vítima a necessidade de segurança e confiança no grupo, ou ainda, na sociedade,
pelas necessidades cuidadas.
Importante ressaltarmos, neste momento, que o movimento de endireitar
as coisas na medida do possível mantém relação com o que Zehr (2017) identifica
como algo que a JR não é - e que muitas vezes é interpretado como volta às
circunstâncias anteriores ao fato danoso.
Assim, Zehr (2017, p. 20 e 21) se alinha a outros defensores da JR
vendo-a como caminho para restaurar um sentido de esperança, um sentido
comunitário no mundo ou, como explicita nos dizeres de Fania Davis, citada por ele:
“trata-se de retornar àquela parte de nós que realmente quer estar ligada ao outro de
um modo positivo. Retornar à bondade inerente presente em todos nós”.
Como bem refletido no texto exposto ao início deste artigo -
Ressocialização - o processo no sistema tradicional dificilmente estimula o ofensor a
desenvolver empatia para com a vítima, ou a compreender as consequências de
seus atos, contribuindo, antes, muito mais a um senso de alienação social de sua
parte, desestimulando sua responsabilidade e capacidade empática. (ZEHR, 2015).
Quanto mais aprofundamos acerca dos três pilares da JR – danos e
consequentes necessidades, obrigações e engajamento – mais percebemos a
essencial importância de implicações de atores políticos que com suas
responsabilidades garantam políticas públicas que atendam às necessidades de
vítima, ofensor, comunidade.
Em casos onde ocorrem círculos de resolução de conflito, não há isenção
da inclusão de representantes de políticas públicas, para atendimento das
necessidades dos envolvidos, sendo estes importantes atores no processo de
endireitar as coisas, de restauração.

222
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Assim, entendemos que os órgãos responsáveis pelos direitos dos


envolvidos (sejam adolescentes, idosos, famílias, entre outros), necessitam garantir-
lhes o acesso às políticas, atendendo-lhes necessidades básicas, como por exemplo
o direito à educação pública de qualidade, saúde, inserção em ambientes de arte e
cultura, por citar alguns.
Observamos que, quando se trata de vidas em processo de
desenvolvimento (crianças e adolescentes), a JR precisa ir além do uso dos três
pilares anteriormente citados. É preciso corresponsabilizar os detentores de poder,
atores responsáveis pela garantia de direitos, de acesso a políticas públicas. Sem a
vertente política atuante enquanto ferramenta importante em determinados
processos restaurativos, alguns hiatos possivelmente incorrerão em reprodução de
comportamentos que romperão a teia de relacionamentos mais uma vez, gerando
um círcuito vicioso, viciado e viciante de necessidades não atendidas e de
conflitos/violência.
Zehr (2018, p. 244) afirma: “se a justiça restaurativa replicar a ênfase
dada aos indivíduos pelo sistema judiciário sem tratar das causas mais amplas,
estruturais, da ofensa e vitimização, ela continuará a perpetrar o crime”. Ele defende
uma “abordagem transformadora para a justiça, que não apenas trate da questão do
ato lesivo individual, mas também dos danos e obrigações inerentes aos sistemas
sociais, econômicos e políticos”, convidando-nos a perguntar se estamos “ignorando
ou reproduzindo padrões”, se estamos “monitorando e tratando adequadamente
essas questões estruturais mais amplas, se estamos conscientes de nossos
preconceitos e responsabilidades” em relação a tudo isso (idem, p. 245).
Assim, entendemos que quanto mais a JR se aprofunda em suas práticas,
que se propõem tão humanizantes, mais necessário se faz incluir politização em seu
bojo para que seja possível encaminhar com ‘garantismos’, ou seja, com garantia de
direitos básicos e fundamentais, o endireitar as coisas, a reparação de danos.

223
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2 - CONCLUSÃO

Trocamos as lentes e percebemos que faltava ajustar o foco. Assim, neste


terceiro ano de estudos e discussões sobre a JR, voltamo-nos aos seus princípios,
revisitados e refletidos neste artigo.
Nesse percurso, observamos que nenhuma parte é mais importante que o
todo. A reparação é central, a vítima é merecedora de acolhimento e de respeito,
mas é também por respeito a ela que a necessidade do ofensor não se torna menos
relevante. A vítima, o ofensor, a comunidade e a sociedade são corresponsaveis
pela violência/conflito gerado, questão abordada detalhadamente ao longo deste
artigo. Se estamos todos interligados, fazer justiça significa favorecer a recuperação
de laços, de sentimento de pertencimento, de senso de comunidade, sem exclusões.
Afinal, conforme pontuado por Kay Pranis e Carolyb B. Watson (2011, p. 23 e 24),
quando trataram dos pressupostos centrais da JR, “todos os seres humanos têm
profundo desejo de estarem em bons relacionamentos”, bem como, “o mundo está
profundamento interconectado”.
Notamos a relevância do contexto e a importância de se considerar a
singularidade de cada comunidade. Fazer Justiça Restaurativa no Brasil requer
considerar suas peculiaridades. Zehr (2015), em sua obra sobre Justiça
Restaurativa, lida por este grupo de estudos ao longo deste ano, chamou atenção
para que cada sociedade compreenda os principios da JR a partir de seus contextos
e realidades.
É chegado o momento de dizer “até logo”, afinal as discussões não se
encerram aqui. Algumas possibilidades já são vislumbradas para futuros estudos,
por exemplo, durante as discussões, consideramos que, enquanto profissionais do
sistema de justiça, deparamo-nos com questionamentos quanto à adequação desse
trabalho nesse ambiente, talvez no próximo ano também possamos focar na questão
em torno dos benefícios e desafios de se trabalhar com justiça restaurativa nesse
específico contexto.
Por ora, reflitamos:

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

UM AJUDANDO O OUTRO

Não há poder maior do que uma comunidade descobrindo o que lhe importa.
Pergunta: “o que é possível” e não “o que está errado”
Continue perguntando.
Perceba aquilo que importa para você.
Suponha-se que muitos outros compartilhem o seu sonho.
Seja corajoso o suficiente para iniciar conversas que tenham significado.
Converse com as pessoas que você conhece.
Converse com pessoas que você não conhece.
Converse com pessoas com quem você nunca conversa.
Fique intrigado com as diferenças que você ouvir.
Espere ser surpreendido.
Valorize a curiosidade mais do que a certeza.
Convide a todos que se importam para trabalhar no que é possível.
Reconheça que todos são experts em alguma coisa.
Saiba que soluções criativas surgem de novas conexões.
Lembre-se, você não teme as pessoas de quem você conhece as histórias.
Escutar de verdade sempre aproxima as pessoas.
Confie que conversas significativas possam mudar o seu mundo.
Conte com a bondade humana.
Fiquem juntos…

(autor desconhecido).

225
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:


Brasiliense, 1994.

BOYES-WATSON, Carolyn e PRANIS, Kay. No Coração da Esperança - guia de


práticas circulares. Porto Alegre. Edição Brasileira: Justiça para o século 21-
instituindo práticas restaurativas, 2011.

FLORES, Ana P. P.; BRANCHER, Leoberto. POR UMA JUSTIÇA RESTAURATIVA


para SÉCULO 21. In: Justiça Restaurativa: Horizontes a partir da Resolução CNJ
225. (Coord. Fábio Bittencourt da Cruz): Brasília, 2016, p.89-127

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. 9. Ed. São Paulo:


Perspectiva, 1998.

ROSENBERG, M. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar


relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.

VERZOLA, Lucas. Em conflito com a lei. São Paulo, 2016. Ed. Reformatório. pág.
57.

ZEHR, H. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2015.

________. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2017.

________. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Justiça


restaurativa. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena Editora, 2008, p. 172.

226
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

________. Trocando as lentes - Justiça restaurativa para o nosso tempo - nova


edição ampliada e revisada - Ed. de 25º aniversário. Trad. Tônia Van Acker. São
Paulo. Palas Athena Editora, 2018.

227
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O OLHAR DO SERVIÇO SOCIAL SOBRE A DESIGUALDADE


DE GÊNERO NAS RELAÇÕES FAMILIARES
JUDICIALIZADAS: GUARDA COMPARTILHADA E
ALIENAÇÃO PARENTAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“SERVIÇO SOCIAL NAS VARAS DE FAMÍLIA E
SUCESSÕES: PARTICULARIDADES E IDENTIDADE
PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

228
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Rita de Cássia Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – FR Lapa

AUTORES

Ana Beatriz Benetti Salesse dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Ana Carolina dos Santos Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Guararema
Andreza Cristina Oliveira da Silva Calixto – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Campinas
Bianca Da Silva Oliveira – Assistente Social Judiciário – FR Jabaquara
Dina Da Silva Branchini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Poá
Dulce Alves Taveira Koller – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi Cruzes
Elaine Aparecida Fante da Paixão – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Campinas
Glaucia Cristina de Melo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cordeirópolis
Greicieli Ramos Almeida Rufino – Assistente Social Judiciário – FR Santo Amaro
Josiane Dacome – Assistente Social Judiciário – Comarca de Hortolândia
Monica Giacometti Secco – Assistente Social Judiciário – Comarca de Hortolândia
Regina Celia Andreazzi – Assistente Social Judiciário – FR Penha
Solange Rolo Silveira – Assistente Social Judiciário – FR Santo Amaro
Sylvia Coutinho da Gama Pereira Correia – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Jandira

229
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Aos 18 anos Monica se deparou com a gravidez não planejada de


relacionamento recente. Eduardo, 30 anos, questionou: quem garante que é meu?
Sem seu apoio e afeto, ela contou com os pais, ainda que chocados e
decepcionados com a notícia. Todos moravam em cidade do interior de São Paulo.
Feito o exame de DNA após o nascimento do bebê, ficou comprovado ser o filhinho
realmente do Eduardo que, então, passou a fazer visitas e contribuir com suas
despesas. Quando Eduardo foi trabalhar em outro estado, convidou Monica e o
filhinho para passarem um período com ele. Voltaram a se relacionar e casaram:
enquanto Monica cuidava da casa, filho e marido, Eduardo trabalhava e fazia curso
de pós graduação. De volta a São Paulo diante de nova proposta de trabalho na
capital, mantiveram a mesma organização tradicional entre provisão e cuidados. Mas
o relacionamento que já era distante do idealizado por Monica, piorou a partir da
traição conjugal por Eduardo, tendo como resultado a separação. O filhinho de
Eduardo continuou sob os cuidados de Monica, regulamentando-se guarda unilateral
materna, pensão e visitas paternas. Eduardo e Monica casaram-se com outras
pessoas e quando o filhinho de Eduardo estava com nove anos, o pai pediu a
modificação de guarda, alegando prática de alienação parental pela mãe e melhores
condições socioeconômicas para cuidar dele.
Embora os nomes sejam fictícios, a história é real e representativa das
situações vividas por muitas crianças, adolescentes, homens e mulheres29, sujeitos
dos estudos e pareceres sociais que realizamos nas ações judiciais das Varas de
Famílias.
No mundo contemporâneo muito se fala sobre a necessidade de superar
o conceito de família patriarcal, na qual a mulher é a única responsável pelas
atividades domésticas e pelos cuidados com os filhos, enquanto o homem tem o
papel de provedor. Na sociedade capitalista em que vivemos tal modo de
organização familiar não é o único, sendo cada vez mais frequente encontrarmos
famílias monoparentais, comandadas por mulheres que continuam assumindo o

29
Embora o conceito de família que adotamos supera a relação heteronormativa exclusiva entre homem e mulher
e a relação parental polarizada entre pai/mãe, utilizaremos tais termos por representarem ainda a maioria dos
usuários da justiça de família. O mesmo vale para as questões relativas à identidade de gênero que não foram
foco deste estudo.

230
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

trabalho doméstico, o cuidado com os filhos e estão inseridas no mercado de


trabalho (com a chamada “dupla jornada de trabalho”). Por outro lado, muitos
homens têm pleiteado o direito de participar mais ativamente dos cuidados com os
filhos, apesar da divisão do trabalho ainda ocorrer de forma desigual entre pais e
mães, sendo mais comum que a mulher fique mais sobrecarregada do que os
homens.
Nesse contexto as relações de gênero estão presentes e atravessam
nossas histórias, embora muitas vezes, sequer nos atentemos para tal perspectiva.
As relações profissionais que estabelecemos com os(as) operadores do Direito e
com as pessoas envolvidas nos processos, assim como a leitura que fazemos dos
conflitos familiares decorrentes da vivência, ao mesmo tempo, de novas e antigas
formas de ser pai e mãe, expressam representações sobre esses papeis.
Nossa expectativa é a de que este texto 30 propicie a ampliação das
reflexões sobre as relações de gênero, articuladas às de classe social e raça,
enriquecendo com isso as análises sociais nos estudos e relatórios que envolvem
tantas Monicas, Eduardos e seus filhinhos nas demandas de Varas de Família,
contribuindo para relações sociais mais equânimes e para o fortalecimento de nossa
identidade profissional nesse espaço sócio ocupacional.

1 - RELAÇÕES DE GÊNERO: DESIGUALDADE E VIOLÊNCIA NA


FAMÍLIA

Embora a igualdade entre homem e mulher seja um princípio


constitucional brasileiro, na realidade ainda está posta a vivência da desigualdade
entre eles, tanto no âmbito público (no trabalho e na sociedade) quanto no privado
(na família). Por um lado, alguns aspectos dessa desigualdade afetam diretamente o
direito das mulheres e por outro, o dos homens, especialmente no que refere a
cuidados e convívio com os filhos.
Apesar da aprovação da guarda compartilhada em 2008 que se torna
regra em 2014, tal modalidade vem sendo incorporada lentamente pelo judiciário,
pois a guarda unilateral materna ainda predomina em 69,4% dos casos.

30
Ana Beatriz Benetti Salesse dos Santos, Ana Carolina dos Santos Oliveira, Glaucia Cristina de
Melo, Josiane Dacome, Monica Giacometti Secco, Rita de Cassia Silva Oliveira e Sylvia Coutinho da
Gama Pereira Correia contribuíram diretamente para a construção do texto.
231
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A pesquisa Estatísticas do Registro Civil, desde a promulgação da


Lei do Divórcio, capta informação sobre a guarda dos filhos por um
ou ambos os cônjuges. Em 2014, a proporção de guarda
compartilhada entre os cônjuges era de 7,5%, o que evidencia o
crescimento dessa modalidade de guarda como consequência da lei
supracitada. Considerando o recorte regional, em todas as regiões,
há aumento de divórcios judiciais concedidos cuja decisão foi pela
guarda dos filhos menores para ambos os cônjuges, entretanto, a
Região Sul, com 24,2%, possui o maior percentual de divórcios
judiciais dentro dessa modalidade. Ainda assim, há que se destacar,
em todas as Grandes Regiões, a predominância das mulheres na
responsabilidade da guarda dos filhos menores na ocasião do
divórcio judicial concedido em 1a instância. Em 2017, no Brasil, esse
percentual atingiu o valor de 69,4%, contudo, sendo inferior ao obtido
em 2016, quando era de 74,4%. (IBGE, 201731)

As mudanças legais ocorridas e as novas proposições de lei em curso


explicitam o embate vivenciado entre pais32 e mães em relação ao convívio e
cuidados dos filhos a partir da ruptura do convívio conjugal.
No terceiro ano de funcionamento deste Grupo de Estudos “Serviço Social
nas Varas de Família: particularidades e identidade profissional” a escolha pelo
estudo das relações de gênero partiu de dados da realidade social brasileira: os
resultados do levantamento feito em 201733 e o acentuamento do embate entre pais
e mães com o incremento da crítica à Lei de Alienação Parental posta pelo Conselho
Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), a partir da publicação
de nota técnica neste ano.
Hümmelgen e Cangussú (2017), pesquisadores da área do Direito,
propõem um debate sobre a alienação parental na perspectiva interdisciplinar,
articulado às particularidades das relações de gênero e da construção social dos
lugares de pai e mãe. Criticando a suposta neutralidade do Direito e as formulações

31
Disponível em
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2017_v44_informativo.pdf. Acessado em
10.12.2018.
32
O movimento dos homens que querem cuidar e conviver com os filhos deu origem à criação da
Associação de Pais Separados (APASE) em 1997, organização responsável pela apresentação e
aprovação de vários projetos de lei tais como o da guarda compartilhada e da alienação parental
dentre outros. Posteriormente a sua criação a APASE também incluiu as mães separadas.
33
Os participantes do GE 2017 realizaram levantamento em 113 laudos e relatórios sociais referentes
a processos judiciais das Varas de Família e Sucessões. Para mais informações, consulte o texto
“Particularidades da realidade social dos sujeitos dos Estudos Sociais: indicativos para a
fundamentação teórica nas demandas da Justiça de Família”, p.229/253, disponível nos CADERNOS
DOS GRUPOS DE ESTUDOS DE 2017, EJUS/TJSP, acessado por meio do Portal do Servidor do
TJSP.
232
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

teóricas pautadas em ideias abstrato-normativas, em geral, sem realizar pesquisa de


campo, os autores analisaram textos e doutrinas jurídicas sobre alienação parental.
Concluíram que as opiniões homogêneas sobre o tema se repetem e reproduzem
estereótipos ligados ao feminino. Embora os textos por eles pesquisados
mencionem que a maioria dos alienadores seja a mulher, continuam usando
“alienador e alienado”, numa suposta neutralidade ancorada no genérico masculino,
o que os autores referendam como insensibilidade ao gênero à luz da discussão de
Alda Facio (1999, p. 207).
Os autores classificaram os perfis e os padrões de comportamento
estereotipados encontrados nos textos jurídicos, a partir de três imagens femininas
que comumente identificamos nas petições que compõem os processos judiciais: a)
a mãe egoísta e controladora que não admite que o filho(a) conviva com outra
pessoa; b) a ex cônjuge ciumenta e vingativa que reage mal frente a nova relação
amorosa do ex marido, confunde conjugalidade e parentalidade e faz campanha
negativa da imagem paterna como forma de revanche; c) a alienadora mentirosa e
paranoica que numa síntese das anteriores, alega abuso sexual para afastar os(as)
filhos(as) da figura paterna, o que poderia ser fruto de mentira, mas também de
fantasia paranoica da mãe.
A insensibilidade de gênero reflete a desatenção sobre formas distintas do
homem e da mulher vivenciar o mesmo fenômeno, ao se levar em conta os papeis
sociais, a valorização cultural de cada um e a posição de menor poder das mulheres.
Dessa maneira analisam que embora esses estereótipos estejam relacionados às
mulheres, os textos pesquisados pouco falaram sobre as razões da prática de
alienação parental se dar por elas.
Tal pesquisa a nosso ver reforça a importância de considerarmos as
particularidades de gênero em nossos estudos sociais na contra mão da
insensibilidade de gênero posta pelo Direito. Compreender a diversidade dessa
vivência para cada um certamente ampliaria nossa análise social.
Como será que Eduardo e Monica vivenciaram e significaram a união
conjugal, a paternidade e a maternidade, a separação e o processo judicial? Vamos
trazer mais a frente informações que esclarecem essas questões, mas antes vamos
retomar alguns resultados do levantamento realizado pelo grupo de estudos em
2017. Foi uma sistematização importante do nosso trabalho que contribuiu para a

233
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ampliação do olhar na realização dos estudos e perícias sociais, tendo em vista


trazer diversos elementos fundamentais para compreender os aspectos sociais e a
desigualdade de gênero presente nos processos de disputa de guarda, convívio e
cuidados de filhos(as). Identificamos que a maior demanda processual nas Varas de
Família é de ações judiciais de guarda e regulamentação de visitas de filhos, em sua
maioria na faixa etária correspondente à primeira infância34.
Chamou-nos a atenção o equilíbrio quantitativo entre o pai e a mãe que
requer a guarda, o que aparentemente, poderia ser visto como uma mudança
cultural em que o homem tanto quanto a mulher exerceria os cuidados com os filhos.
Entretanto, no que se refere à organização da rotina no domicílio, o levantamento
reafirmou a predominância da centralidade dos cuidados femininos. O pai que requer
a guarda também conta com a figura feminina para os cuidados dos filhos, sendo ela
a avó paterna em primeiro lugar e em segundo, a madrasta da criança.
A particularidade de gênero não só aparece nos cuidados com os filhos,
mas incide também nos aspectos socioeconômicos desse sujeito avaliado.
Analisando os dados do perfil socioeconômico35 o homem-pai apresentou maior
renda, apesar de ter similar nível de escolaridade que a mulher-mãe. Sobre a
inserção no mercado de trabalho36, o maior índice para ambos é o do vínculo formal.

34
Das 115 crianças, 41 delas estavam na faixa de 0 a 3 anos, 34 estavam na faixa de 07 a 9 anos, 22
de 10 a 12 anos, e 13 delas estavam entre 13 a 15 anos.
35
Quanto a renda das mulheres requerentes à guarda dos filhos 61% (17) estavam na faixa de 1 a 3
salários mínimos e 11% (3) na faixa de 16 salários mínimos ou mais, as quais correspondiam às pós-
graduadas. Dos homens requerentes à guarda dos filhos: 23% (7) se inseriam na faixa de 1 a 3
salários mínimos, 16% (5) de 4 a 6 salários mínimos, 16% (5) sem informação e 6% (2) acima de 10
salários mínimos.
Sobre a escolaridade das mães requerentes a guarda 43% (12) tinham o ensino médio (completo ou
não), 18% (5) ensino superior (idem) e 14% (4) pós-graduação (advogada medica e psicóloga).
Dos pais requerentes a guarda 42% (13) tinham ensino médio (completo ou não), para 35% (11) não
havia a informação, 32% (10) ensino superior (completo ou não), 2 pós-graduados. Da escolaridade
dos pais e mães requerentes a guarda, portanto, o ensino médio completo se destaca para ambos,
índice superior ao da média da população brasileira na região sudeste, de 8,4 anos (PNAD 2015). Já
em relação ao ensino superior o destaque é para os pais (quando é requerente e especialmente
quando é requerido), contrariando a tendência das mulheres estudarem mais que os homens. Poderia
significar que para mulher o casamento e os filhos implicaram na suspensão do prosseguimento dos
estudos além do nível médio, enquanto o contrário se deu para o homem? Será que levamos em
consideração tal questão em nossos estudos sociais? (CADERNOS DOS GRUPOS DE ESTUDOS
DE 2017, EJUS/TJSP, n.14,p.251)
36
Sobre a inserção no trabalho das mães requerentes a guarda, 42% (12) tinham vínculo
empregatício e 25% (7) estavam fora do mercado de trabalho. Para várias das últimas, havia a
indicação de serem "do lar". Dos pais requerentes a guarda 45% (14) tinham vínculo empregatício,
29% (9) eram autônomos (dentre eles alguns empresários), 13% (4) não tinham vínculo empregatício,
e 6% (2) estavam fora do mercado de trabalho (IBID, p.251/252)
234
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Entretanto, o segundo índice indica maior número de mulheres fora do mercado de


trabalho.
Nosso levantamento concluiu que os ciclos de vida constituídos por
casamento, maternidade e separação conjugal impactam negativamente a vida
socioeconômica da mulher e por consequência também de seus filhos e da família.

Se articularmos os dados significativos da mulher-mãe em relação ao


homem-pai – renda inferior, saída do mercado de trabalho para cuidar
da casa e dos filhos/as, não inserção no ensino superior – é possível
concluir que casamento, maternidade e separação conjugal impactam
negativamente a vida socioeconômica da mulher e por consequência
de toda família. (CADERNOS DOS GRUPOS DE ESTUDOS DE 2017,
EJUS/TJSP, n.14, p.252).

Tal leitura traduz a história de Monica e até mesmo as dificuldades que


ela vivencia na atual disputa de guarda do filho.
Para Eduardo e Monica a história romantizada não se confirmou.
Eduardo, de forma natural e socialmente estabelecida, ascendeu profissionalmente
durante os anos de casamento, fortalecendo-se de modo a alcançar estabilidade
econômica, autonomia pessoal e plenas condições de competir no mercado de
trabalho. Ele contou com Monica, nos bastidores de sua vida, assumindo os
aspectos domésticos e os cuidados com a família fundamentais para ele, sem exigir-
lhe dedicação neste sentido. Grávida aos 18 anos, Monica não deu continuidade aos
estudos (ensino médio completo) e ficou fora do mercado de trabalho por oito anos
do casamento. Ela assumiu os papeis afetivos e do lar, não investiu em seu
desenvolvimento, acreditando ser esse seu papel como historicamente veio sendo
valorizado para as mulheres. Não vislumbrava, como muitas outras Monicas que
atendemos, as dificuldades que poderia enfrentar no caso de uma dissolução
conjugal, visto ter se ausentado do campo profissional durante os anos de dedicação
à reprodução social da família, realizando um trabalho não remunerado.
Após a separação, obteve emprego de baixa remuneração e, em curto
período, reconstituiu vida marital e engravidou do segundo filho. Com o atual marido
tem uma rotina de compartilhamento de algumas tarefas como o transporte das
crianças para a escola, os cuidados enquanto ela não retorna do trabalho.
Entretanto, se vê sobrecarregada com a dupla jornada e a desqualificação constante

235
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de Eduardo sobre os cuidados ao filho. Não foi possível ainda para Monica
prosseguir nos estudos. Seu atual marido, formado em educação física, se divide em
duas atividades de trabalho, mas também tem rendimento mensal limitado. Sem
retaguarda familiar nesta cidade, Monica deixa o filhinho de Eduardo na casa da
sogra no período de contra turno escolar. Nem Eduardo, nem o filhinho apreciam tal
organização.
Como podemos analisar, a dissolução conjugal apontou uma relação
desigual de gênero entre Monica e Eduardo, haja vista que as possibilidades dele
são mais amplas que as dela, condição esta que implicou também na relação com o
filho já crescido, cujas vontades e necessidades serão facilmente atendidas pelo pai
e não pela mãe.
Nesse contexto, é fundamental, portanto, afinar nossa leitura de realidade
social a partir do conceito de gênero, especialmente se considerarmos que o
judiciário brasileiro, apesar de vir assumindo algumas defesas inovadoras, é uma
instituição conservadora que reproduz o poder da supremacia masculina,
heterossexual, branca, tal qual posto na sociedade brasileira capitalista. Segundo
Sartori “ao estudar gênero, procurar-se romper com a natureza do mundo
falocêntrico, isto é, com as simbologias identificadas com a prevalência do
masculino” e hierarquização dos sexos (2004, p 171).
Considerando que gênero é um conceito estudado especialmente pelas
Ciências Sociais, tal perspectiva representa importante contribuição do Serviço
Social nos estudos/perícias e seus respectivos registros. Dos textos indicados por
Graziela Pavez37, elegemos Heleietti Safiotti, socióloga marxista brasileira, como
nossa guia para o estudo. Conforme já mencionado, articulamos a discussão com
pesquisadoras(es) do Direito que deram destaque a tal conceito, a fim de melhor
compreender como as doutrinas jurídicas abordam a alienação parental. E,
especialmente, com três pesquisador(as) do Serviço Social que tiveram a alienação
parental como objeto de pesquisa.
O conceito de gênero traz em si vários aspectos, cada autor/a enfatiza um
destes, contudo há consenso na consideração de “gênero ser uma construção social
37
Neste ano contamos com a participação fundamental de Graziela Acquaviva Pavez, assistente
social com experiência profissional na área da violência contra a mulher, pesquisadora sobre as
relações de gênero. Além de realizar o diálogo com as participantes do GE, ela preparou a bibliografia
para estudo sobre o tema. E também com Maria Amalia Faller Vitalle, assistente social, terapeuta
familiar, pesquisadora sobre o tema família, com experiência como assistente técnica.
236
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do masculino e do feminino”. Enquanto o sexo é biológico, o gênero é apreendido. E


por se tratar de uma construção cultural, pode ser transformada.
À luz de Saffioti, despertamos para considerar que “o conceito de gênero
não explicita necessariamente, desigualdades entre homens e mulheres. Muitas
vezes a hierarquia é presumida.” (1999, p 82). A noção da desigualdade aparece
quando se olha a partir do ponto de vista do patriarcado. É na dimensão cultural que
identificamos a naturalização do patriarcado, da violência contra mulher, bem como
das desigualdades econômicas e sociais. Portanto, esse é um conceito fundamental
de estudo atrelado ao de gênero.
Mas será que realizar a análise de relações de gênero implicaria em
tomar partido da mulher? Como tal perspectiva pode repercutir na busca da
“imparcialidade possível” na realização das perícias sociais em disputa de guarda de
filhos? Qual seria o parecer social sobre a modificação de guarda do filho, coerente
com a desigualdade de gênero vivida por Monica em seu casamento com Eduardo?
Um caminho para esse dilema é a compreensão que Sartori aponta que
“homens e mulheres precisam ser estudados juntos e não mais de forma separada”
(2004, p 172). O gênero traz em si um caráter relacional, que “diz respeito as
relações de dominação e opressão que transformam as diferenças biológicas entre
os sexos em desigualdades sociais ou exclusão” (Sartori, 2004, p 174).
E isso se traduz na nossa prática, na forma como a desigualdade de
gênero aparece nas relações sociais, na separação conjugal, na guarda dos filhos,
na curatela, na interdição, “o que significa dizer que todo indivíduo é sexuado e que
é nessa situação irredutível que virá se situar nesse mundo, ou seja, ter
oportunidades, escolhas, trajetórias, vivências, interesses, lugares” de acordo com o
sexo biológico que nasceu (Sartori, 2004, p 174).
Há que se considerar também a articulação do gênero com outras
categorias estruturantes da sociedade, tais como classe social, raça e etnia. A
autora aponta que “o sujeito constituído em gênero, classe, raça/etnia, não
apresenta homogeneidade: dependendo das condições históricas, uma destas faces
estará proeminente” (Saffioti, 1999, p.82/85). Não somente o fato de ser homem ou
mulher vai implicar no modo de ser e estar na sociedade, mas também o fato de ser
“branco ou negro, mais ou menos abastado” (Saffioti, 1994, p 281).

237
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Nesse aspecto, considerando a intrínseca relação entre gênero, raça/etnia


e classe social, tais categorias de análise são eixos de análise que devem compor
nossos estudos sociais, relatórios, laudos e pareceres.
Dessa forma, devemos considerar “a importância de analisar as relações
intrafamiliares tendo o elemento gênero como ancoragem e eixo principal de estudo”
(Sartori, 2004, p 175). Assim, há o entendimento que não se pode falar em
socialização se não falarmos dos papéis de cada um dentro da família, constituídos
historicamente: o dever do pai, da mãe, o mito do amor materno, o patriarcado. A
relação entre esses personagens se faz diferente à medida em que o entendimento
de gênero também se apresenta, aliado à classe social, raça/etnia (Sartori, 2004, p.
175-176).
Analisando os textos sobre gênero identificamos que muitos eram
voltados para discutir a violência contra a mulher. Saffioti (1999, p 82) chama a
atenção para a “confusão entre violência doméstica e outras formas de violência”,
sendo comum (...) “a expressão violência doméstica ser empregada como sinônimo
de violência familiar e, não raramente, de violência de gênero”, isso se traduz, por
exemplo, nas Varas Especializadas, que deveria tratar da violência contra a mulher,
e trata majoritariamente de violência contra criança e adolescente. O ponto negativo
dessa realidade é que a violência, que tem o gênero como fator gerador principal,
acaba sendo diluída em tantas outras de igual relevância, mas que ocorrendo dessa
forma, ofusca e mascara dados importantes, assim como limita as estratégias para
superá-la.
A autora chamou a atenção para as diferentes formas de violência, como
a patrimonial, por exemplo, que fica mais evidente nas Varas de Família, “a ameaça
permanente do empobrecimento induz muitas mulheres a suportar humilhações e
outras formas de violência. (...) o poder do homem rico no uso do patrimônio como
mecanismo de sujeição/intimidação da mulher” (Saffioti, 1999, p 87).
Num primeiro momento pensamos que não seria de nosso interesse o
estudo focado na “violência doméstica” para analisarmos as demandas oriundas das
Varas de Família. Entretanto, tal estudo contribuiu para o ajuste de nosso olhar
permitindo interpretar diferentes formas de desigualdade entre o homem e a mulher
no âmbito privado que se constituem como violência, para além da física.

238
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Retomando o vivido por Eduardo e Monica podemos concluir tratar-se de


uma violência naturalizada o fato de tantas mulheres ao engravidar não contarem
com o afeto e/ou o apoio financeiro do co-responsável pela gravidez, sob a alegação
da incerteza da paternidade biológica. Na situação específica, é possível ainda
considerar o acentuamento dessa violência a partir da diferença de idade entre eles
que tornou ainda maior a desigualdade do poder socioeconômico decorrente.
A autora Sartori nos chama a atenção para a necessidade de
compreender e romper com a “concepção da condição humana baseada no homem
branco e ocidental” (2004, p 171). E parafraseia Duque-Arrazola quando diz que
“são as relações de gênero que organizam a desigualdade social entre homens e
mulheres” (2004, p 172).
Aguiar (2000) explicita que abordar o patriarcado se faz relevante à
medida “que essa discussão contribui para a análise de relações de poder que
ficaram fora do alcance do Estado”, pois ocorrem no privado, ou seja, dentro das
famílias.

a presença de violência doméstica, por exemplo, evidencia que a


separação entre público e privado se deu de forma tão ampla que
ocorrem situações de dependência no interior do espaço familiar,
particularmente das mulheres com relação aos homens. Nesse caso,
as instituições políticas ignoram essa situação que permanece à
margem do sistema normativo. O patriarcado é um sistema de poder
análogo ao escravismo. (AGUIAR, 2000,p.3).

Outra forma de violência em que a análise de gênero se faz importante,


especialmente no trabalho desenvolvido no Judiciário, são os casos em que o outro
‘inferniza’ a mulher até seu descontrole e a qualifica como desequilibrada, o que
passa a compor a alegação de alienação parental inclusive. Casos assim não são
incomuns em nossa atuação e é uma forma sutil de violência a que a mulher está
submetida, e ela não aparece como vítima, mas em geral passa ser considerada de
forma estereotipada como ‘louca’.
Nos casos em que atuamos nas Varas de Família, não raras vezes o homem
apresenta comprovantes de suas atividades e responsabilidades com os filhos, em
detrimento ao não feito pela mulher, como se isso fosse um trunfo, uma qualidade e
não dever/obrigação enquanto genitor. Reclama-se que as mulheres não são boas

239
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donas de casa, como se fosse sua função exclusiva e inerente. Também é comum
observamos que as mulheres muitas vezes são depreciadas pelo ex-cônjuge pela
condição socioeconômica inferior, sem a devida valorização e respeito ao período de
dedicação exclusiva aos cuidados domésticos e dos filhos, tendo contribuído,
assumindo este papel, para o crescimento profissional e econômico do ex-marido.
Neste aspecto se observa uma relação de dominação do gênero masculino e de
fragilidade do gênero feminino durante o litígio do ex-casal, onde o homem se
reconhece numa condição de superioridade pela ascensão socioeconômica e a
mulher sem recursos internos e externos que possibilitem ascender, ao menos
inicialmente, de modo a possuir condição equiparada ao ex-cônjuge, considerando o
sistema econômico vigente e as dificuldades de recolocação no mercado de trabalho
atual.

2 - O APELO DO CONANDA À REVOGAÇÃO DA LEI DE ALIENAÇÃO


PARENTAL: O EMBATE ENTRE PAIS E MÃES E A (DES)PROTEÇÃO
DE FILHOS(AS)

O termo “Síndrome de Alienação Parental – SAP” foi introduzido na


literatura pelo psiquiatra americano Richard Gardner em 1985. Ao caracterizar o
fenômeno como doença, o psiquiatra não analisa os fatores sócio históricos, nem as
construções sociais das relações de gênero e as relações de poder dos pais em
relação aos filhos.
A questão social tem múltiplas expressões, dentre elas a violência contra
a mulher e a violência contra criança e adolescente, que em geral ocorrem no
contexto familiar por meio de relações de poder, típicas do padrão de família
patriarcal, com características de exploração, opressão e dominação do outro.
Na alienação parental, crianças e adolescentes não são entendidos como
sujeitos de direito em suas relações familiares. Com isso, não há o reconhecimento
de que crianças e adolescentes possuem desejos e necessidades diferentes de seus
pais e/ou de seus responsáveis. Por conta disso, há uma interferência de um dos
pais e/ou responsáveis nos interesses e vontades da criança e do adolescente, de
forma a afastar ou rejeitar o convívio com o(a) outro(a) responsável por eles.
Gardner pleiteava a inserção da síndrome no DSM - Manual de
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Apesar das críticas contrárias a tal
240
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inserção, especialmente da Psicologia, em 2013 ocorreu isso veio a ocorrer no DSM


– 5, não de forma clara, como síndrome, mas que poderia ser identificada nos itens
V61.20 (Z62.820) e V61.29 (Z62.898) , que especificam “Criança afetada pelo
sofrimento na relação dos pais, intitulado Problemas de relacionamento entre pais e
filhos” e “Criança afetada pelo sofrimento na relação dos pais”. Porém, a
Organização Mundial da Saúde reconheceu a síndrome da alienação parental como
uma doença, inserindo-a, desde o mês de junho de 2018, na 11ª edição da
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a
Saúde – CID XI38.
A limitação e até mesmo o impedimento do convívio de crianças e
adolescentes com um dos pais, ocasionado por parte do outro ou de pessoa
responsável, não é novidade em nossa sociedade. Seu debate, porém se
intensificou diante do aumento da ocorrência de separações, das mudanças nos
papeis de homens e mulheres quanto ao convívio e cuidados dos filhos e da
aprovação da lei de alienação parental (LAP) 12.318/2010 que prevê aplicação de
multa e inversão da guarda, caso se comprove sua prática. A referida lei, em geral
enaltecida pelos operadores do Direito, foi criticada pelos assistentes sociais e
psicólogos, especialmente pela perspectiva punitiva ao prever a reversão da guarda
do filho, caso se comprove a prática de atos de alienação parental. Nossa
compreensão é a de que a criminalização produz mais efeitos negativos em todo
contexto que envolve a denúncia de alienação parental e que a ênfase vem se
dando na perspectiva punitiva contra a pessoa considerada alienadora em vez da
proteção da criança/adolescente.
Ressaltamos que a aprovação da Lei da Alienação Parental em 2010,
dois anos após a promulgação da guarda compartilhada, ocorreu no contexto de
fortalecimento dos coletivos representativos de pais em busca da equidade no
convívio e criação dos filhos, sem que ocorresse um efetivo debate público.
No cenário de predominância da guarda judicial unilateral, apesar das
mudanças legais, acrescida da aprovação em 2014 da guarda compartilhada como
regra, foi proposto outro projeto de lei com o objetivo de punir com a detenção quem
praticasse alienação parental. O PL 2244/2016 do Deputado Federal Arnaldo Faria
de Sá, propunha pena de detenção de 03 (três) meses a 03 (três) anos para quem
38
http://www.crianca.mppr.mp.br/2018/08/22/ALIENACAO-PARENTAL-OMS-inclui-Sindrome-da-
Alienacao-Parental-na-classificacao-mundial-de-doencas.html. Acesso em 25 de novembro de 2018.
241
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

cometesse “atos com o intuito de proibir, dificultar ou modificar a convivência com


ascendente, descendente ou colaterais, bem como àqueles que a vítima mantenha
vínculos de parentalidade de qualquer natureza.” A Relatora da comissão que
analisou tal projeto de lei, Deputada Federal Sheridan, emitiu parecer em 05.09.2017
considerando que “o projeto de lei em exame, embora bem-intencionado, produz
muito mais efeitos negativos do que positivos, sendo necessário reformular a
proposta na forma de um substitutivo”. O substituto, por ela apresentado, propunha
“aprimorar as regras procedimentais e conferir maior segurança ao magistrado para
decidir os casos de alienação, em especial quando na outra ponta há uma denúncia
de abuso sexual formulada por um dos genitores”, prevendo criação de sala
adequada para oitiva da criança, gravação da audiência, avaliação por equipe
multidisciplinar em caso de alteração da guarda e acompanhamento psicológico, em
casos de divórcio litigioso no qual haja criança ou adolescente. Nesse contexto,
discordando do substitutivo, o autor Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá retirou o
PL de tramitação em junho de 2018. Porém, na conjuntura brasileira atual,
possivelmente teremos nova proposição de punição com aprisionamento da pessoa
considerada alienadora.
No confronto a esse movimento masculino, fortaleceu-se a organização de
coletivos de mães39 que, ao denunciar ocorrência de abuso sexual por parte dos
respectivos pais, foram sentenciadas judicialmente como alienadoras e perderam a
guarda dos filhos. Esses coletivos denunciaram na Comissão de Inquérito
Parlamentar (CPI) do Senado, em maio de 2018, a respeito da má aplicação da Lei
de Alienação Parental, pedindo a revogação dessa lei.
Recentemente, nesse contexto de embate entre as organizações que
representam pais e mães, ocorreu em 30.08.2018, a emissão da Nota Pública do
CONANDA sobre a lei da Alienação Parental, que sugere a revogação do inciso VI
do artigo 2º (apresentação de falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste
ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou
adolescente) e dos incisos V, VI e VII (V- determinar a alteração da guarda para
guarda compartilhada ou sua inversão; VI - determinar a fixação cautelar do
domicílio da criança ou adolescente; VII - declarar a suspensão da autoridade

39
Destacamos dentre eles as organizações que assinaram um manifesto público pedindo apoio da
sociedade: Coletivo de Proteção a Infância Voz Materna, Mães na Luta, Todas Maria, Mães
Clamando por Justiça, União pela Defesa da Infância UNIdi, Vozes de Anjos e Arte é Vida.
242
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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parental) do artigo 6° da Lei n° 12.318 de 2010, sem prejuízo ao aprofundamento do


debate acerca da possibilidade da revogação de outros dispositivos ou de inteiro teor
da referida Lei da Alienação Parental.
Em 2018 ainda foram apresentados mais projetos de lei que visam a
revogação ou modificação da referida lei. O PL 10639/2018 de autoria do Deputado
Federal Flavinho propõe a revogação da Lei de Alienação Parental justificando que a
lei aprovada para manter os laços afetivos de pais e filhos, acabou por viabilizar um
meio para que pais que abusaram sexualmente dos seus filhos pudessem exigir a
convivência com essas crianças, inclusive retirando-os da presença das mães.
O PL de 2018 da Deputada Federal Soraya Santos, menciona o movimento
de mães que ao denunciar casos de maus tratos e de violência sexual contra seus
filhos e suas filhas, acabam sendo enquadradas como casos de alienação parental.
Propõe modificações na lei como a ocorrência de perícia em caso de alteração da
guarda como medida provisória, para identificar se o melhor para a criança ou o
adolescente é a inversão de guarda e a diminuição do prazo para a realização da
perícia de 90 para 10 dias, além da obrigatoriedade (e não mais a opção) do
acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial para os envolvidos.
O grupo avaliou que os projetos de lei assumem defesas parciais sobre o
fenômeno complexo que constitui a alienação parental, fazendo uma relação
automática com abusos sexuais, configurando uma polarização nessas discussões
que não dá conta de suas variadas dimensões. Na projeto de lei apenas a mãe
aparece como alienadora, porém há muitos casos em que o pai pode ser
considerado como tal. Há uma articulação automática entre alienação parental e
abuso sexual sem menção a outras formas de violência contra filhos(as) que fazem
parte desse contexto.
Nesse cenário nos parece fundamental fortalecer o debate do Serviço Social
sobre a identidade profissional na atuação de demandas judiciais de alienação
parental, propondo inclusive que nossos coletivos profissionais o façam de forma a
contribuirmos com a discussão mais ampla, visto afetar o direito fundamental de
crianças e adolescentes ao convívio familiar e comunitário com ambos os polos de
sua origem familiar.

243
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3 - GUARDA COMPARTILHADA E ALIENAÇÃO PARENTAL:


CONTRIBUIÇÕES DO SERVIÇO SOCIAL

Realizar estudos e perícias sociais em processos judiciais em que o pai


ou a mãe acusa o(a) outro(a) responsável de praticar atos de alienação parental é
um grande desafio para o assistente social que conta com raros estudos e pesquisas
sobre o tema e enfrenta ainda a dificuldade de identificar a alienação parental como
objeto profissional, visto estar atrelado à perspectiva médica e legal.
Três pesquisas de assistentes sociais trazem importantes subsídios para
refletirmos sobre o tema da alienação parental articulado ao das relações de gênero,
da transformação sócio histórica das famílias, do direito à convivência familiar e
comunitária e ainda quanto a se constituir como expressão da questão social e
portanto objeto profissional do assistente social.
Lima (2016) e Batista (2016), ambas inseridas no espaço sócio
ocupacional judiciário (respectivamente em São Paulo e no Espírito Santo) - tendo
como atribuição a realização cotidiana de estudos e perícias sociais nas demandas
da justiça de família - desenvolveram seus estudos por meio de pesquisas de campo
junto a assistentes sociais sobre a alienação parental.
Lima (2016) foca nas transformações sócio históricas das famílias como
eixo central de conhecimento para o assistente social entender e analisar os
conflitos judiciais da família atendida, levando-se em conta as mudanças pelas quais
elas têm passado nos últimos tempos e como isto tem afetado as relações e o
rompimento conjugal.
Batista (2016) articula a discussão sobre alienação parental às dimensões
socioculturais dos papeis de homem/pai e de mulher/mãe cuja e das transformações
familiares na sociedade contemporânea que resultam em conflitos para os quais se
busca a intervenção judiciária. Ela desenvolve a temática em articulação com o
projeto ético politico profissional, a fragilidade das políticas sociais e da
concretização de direitos na sociedade capitalista contemporânea, resultando no
fenômeno da judicialização social.
Ambas discorrem sobre as transformações nas famílias, incluindo nessa
abordagem as diferenças entres os modos de ser pai e mãe, não dando, porém,
destaque ao conceito de gênero. Entretanto, ao partirem do conceito de família como

244
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produto de uma construção sócio histórica, econômica e cultural, recorreram à


discussão sobre os papeis atribuídos a cada um.
Montaño (2016), acadêmico reconhecido de nossa literatura profissional
na perspectiva teórico critica, abordando temas de âmbito macro social como
terceiro setor, questão social, políticas sociais, projeto profissional, dentre outros,
realizou pesquisa bibliográfica sobre alienação parental. Em seu livro esclarece que
a articulação da profissão com temas do cotidiano da vida familiar de adultos e
crianças/adolescentes, emergiu de seu papel como pesquisador, pai e militante da
igualdade parental. Assumindo a perspectiva marxiana da totalidade que “exige
abordar o tema nas suas múltiplas determinações”, aborda as mudanças legais que
incidem nas famílias, focando especialmente na alienação parental e guarda
compartilhada. Retomando pesquisas e produções teóricas na perspectiva do Direito
e da Psicologia, ressalta a “timidez” do Serviço Social frente a tais temas, propondo
que sejam assumidos como agenda política da profissão. (MONTAÑO, 2016,p. 260).
Montaño (2016) se referencia em alguns autores que discutem questões
relacionadas a gênero e ao feminismo para ancorar a defesa da igualdade parental
em vários momentos do texto. Embora não se aprofunde na discussão sobre as
transformações sócio históricas dos modos de ser família, para trazer a discussão
sobre divórcio e novos arranjos familiares, faz uma síntese dessas mudanças por
meio de Friedrich Engels que articula família monogâmica, propriedade privada e
patrimônio como pilares da sociedade capitalista.
Montaño (2016) destaca quatro aspectos para a compreensão dos
possíveis motivos que desencadeiam a alienação parental: a) psicológicos –
relacionados às dificuldades em vivenciar o fim de uma relação amorosa e/ou ter
vivenciado a alienação parental em sua infância; b) culturais – a lógica machista,
patriarcal e sexista que se expressa na divisão de papeis da tradicional família, pode
sustentar a prática da alienação pelo homem como aquele que historicamente tinha
maior autoridade e poder sobre a família, inclusive o de provisão; nessa mesma
lógica, pelo viés da suposta vocação feminina para o cuidado, pode sustentar a
prática da alienação por parte da mulher; c) pessoais – planejados com vistas a
vingança e o afastamento criança-alienado e interesses econômicos; d)jurídicos – o
poder atribuído pela guarda unilateral.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O autor alerta que a defesa da guarda unilateral se funda nos


pressupostos da sociedade patriarcal, não podendo ser tomada como uma bandeira
feminista e progressista. Ao mesmo tempo, a defesa da guarda compartilhada não
pode ser considerada machista, pois tem como fundamento “(...)a igualdade
parental, uma particularidade da igualdade de gênero, bandeira central do
movimento feminista e dos movimentos por direitos humanos”.(p.126) .
Montaño (2016), sobretudo, critica a concessão da guarda unilateral que
gera o exacerbamento do poder ao guardião e relação desigual de poder familiar
entre os pais, favorecendo práticas de alienação parental que muitas vezes envolve
a falsa denúncia de abuso sexual. Sob a perspectiva da igualdade parental, ele nos
provoca a derrubar o que chama de “mitos” presentes nesse debate, tais como a
recorrente defesa da necessidade de se garantir a rotina e a “estabilidade” da
criança em uma única casa. Havendo disponibilidade de ambos, sua defesa é a
convivência do filho em tempo equânime entre os pais com alternância de moradia.
A seu ver o que garante a estabilidade da criança é a garantia do convívio saudável
com pai e mãe. A casa é uma decorrência disso.
Montaño é explicito quanto a defesa da guarda compartilhada como
premissa a ser assumida pela profissão, considerando-a “antídoto para a
alienação parental” (p.122). O autor centra sua crítica à perspectiva machista,
sexista e patriarcal do judiciário que continua quase que exclusivamente atribuindo a
guarda unilateral de filhos para a mãe. E ainda, quando decide pela guarda
compartilhada, estabelece como eixo de moradia a casa materna, o que ele intitula
como “guarda compartilhada com guarda física unilateral”.
Lima (2016) corrobora a defesa da guarda compartilhada como regra
assim como já estipula a lei, mas com ressalvas, e Batista (2016) não a aborda. Para
a primeira, considerando o eixo do direito à convivência familiar, do ponto de vista
social, todos os pais deveriam exercer a guarda compartilhada, porém, faz algumas
ponderações que relativizam sua afirmativa. A seu ver, independente da modalidade
de guarda, o que demarca e fortalece as relações entre pais e filhos são a forma de
comunicação, as vivências construídas e a atenção dos pais às necessidades
materiais e afetivas de seus filhos, incluindo o direito à convivência familiar deles.
As autoras e o autor afirmam considerar a alienação parental como
expressão da questão social e, portanto, objeto de estudo do serviço social.

246
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Embora Montaño (2016) dialogue a maior parte do tempo com


publicações do Direito e da Psicologia sobre guarda compartilhada e alienação
parental, elabora algumas articulações com a teoria social crítica que gostaríamos
fossem mais aprofundadas. Ficamos com a impressão de um aligeiramento em
algumas afirmativas, por exemplo, quanto a identificação da alienação parental como
expressão da questão social. O autor não considera relevante a crítica de autores
sobre a caracterização da alienação parental como síndrome ou patologia,
afirmando caber ao assistente social entende-la como uma manifestação da questão
social, usando como apoio a referência a Fávero (p.49).
Lima (2016) considera a alienação parental como uma das expressões da
questão social que cada vez mais tem sido judicializada, vinculando-a diretamente
relacionada ao não exercício pleno da convivência familiar, sendo esta mais
claramente uma expressão da questão social.
A maioria das entrevistadas por Batista (2016) confirmou tratar-se de
expressão da questão social por se destacar na realidade das famílias estudadas
várias formas de precário acesso aos direitos sociais (trabalho, saúde, educação,
assistência social, defensoria pública) e a presença da dependência química/uso
abusivo entre outros. Houve, porém, quem ponderasse sobre o predomínio de
questões psicológicas vivenciadas em decorrência da dificuldade de separação entre
conjugalidade e parentalidade entre o ex-casal.
Batista (2016) alerta para a importância de extrapolarmos a visão imediata
da demanda individual, circunscrita ao litígio entre as partes que, a princípio pode se
revelar sem qualquer ligação com o modo de produção capitalista que constrói e
reproduz relações sociais de desigualdade. Nesse aspecto, destaca a necessidade
de realizarmos mediações que nos permitam trazer à tona os elementos que
permeiam as relações familiares à luz das transformações sociais e das mudanças
de paradigmas que perpassam a maternidade e a paternidade.
O autor e as autoras, ainda que sem destaque, abordam a importância do
enfoque no “superior interesse ou melhor interesse” da criança. Exaltado pela
doutrina jurídica, na realidade o interesse da criança dificilmente se sobrepõe ao dos
adultos, sejam eles seus pais/responsáveis ou nós assistentes sociais - o que vale
para outros(as) profissionais que fazem parte do processo judicial - que realizamos
estudos sociais, apesar de repetidas vezes afirmamos que nosso foco é o direito das

247
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

crianças. De modo geral dedicamos em nossos registros muitos parágrafos para


falar sobre os adultos de sua vida e bem poucos para falar sobre ela. Tal dificuldade
é decorrente de uma construção social. Assim como o ser pai, ser mãe e ser família
é resultado de uma construção sócio histórica, o ser criança e ser filho(a) também. E
em nossa sociedade ainda vigora a perspectiva adultocêntrica, tão evidente nos
processos de disputa de guarda.
Nesse aspecto, como foi mesmo apreendida a vivência do filhinho de
Eduardo em relação ao litígio entre os pais?

Trazido pela mãe para entrevista, o filhinho do Eduardo tinha clareza


sobre o que se tratava o processo judicial e se manifestou por
continuar morando com ela e ter maior convívio com o pai.
Compreendemos existir significativo pertencimento à escola para
onde retornou, após um período em que morou em outra cidade.
Afirmou se relacionar bem com o padrasto e a mãe dele, assim como
com seu irmão, mas não trouxe detalhes sobre tais relações.
Pudemos compreender que ele vivencia atenção paterna diferente do
período em que os pais eram casados, o que, devido às
particularidades ligadas ao gênero masculino, são significativas para
a fase em que se encontra. No ambiente paterno ele expressou
vontade de morar com o pai.
Apreendemos que a criança não quer gerar ressentimentos nos pais
com uma possível escolha entre eles, contemplando a cada um
sobre sua preferência de moradia. Entretanto, a partir da observação
nos dois ambientes, percebemos a expressão de maior alegria e
pertença social no ambiente paterno, onde aparentou usufruir de
atenção exclusiva para si e estímulo aos seus gostos e interesses
(trecho do parecer do relatório social de Eduardo e Monica, 2018).

Como articular a defesa dos direitos de Eduardo e especialmente de


Monica com a do filhinho de Eduardo? Na construção de sua história ele vivenciou a
alienação parental que não foi exatamente de responsabilidade de sua mãe. Tal
alienação teve participação de seu pai e da sociedade e ocorreu quando ele ainda
estava sendo gestado. Mas que difícil considerar sua necessidade e seu direito de
viver mais próximo desse pai!
O objetivo do estudo social no processo judicial do filhinho de Eduardo
não era apenas indicar a vivência ou não da alienação parental supostamente
praticada pela mãe, mas referenciar uma possível mudança de moradia em seu
atual contexto de vida.

248
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Sobre a pertinência do assistente social que realiza o estudo/perícia


social afirmar a ocorrência (ou não) da prática de atos de alienação parental,
compreendemos que enquanto Montaño (2016) é enfático ao afirmar esse papel,
Lima (2016) e Batista (2016) explicitam que tal questão vem sendo contraditória no
meio profissional, inclusive por aspectos trazidos pela legislação de alienação
parental.
Lima (2016) problematiza que o parecer social não deve se voltar para tal
perspectiva, o que além de confrontar nosso projeto profissional, contribui para o
acirramento de conflitos entre as pessoas. Indica ainda o risco de se fazer
afirmativas como se fossem verdades absolutas, referindo-se a possibilidade de
processos éticos. A seu ver, é possível apontar indício da violação do direito da
convivência familiar e comunitária, valorizando, porém que o laudo social registre,
sobretudo, o contexto em que isso ocorre.
Montaño (2016), por sua vez, inverte a lógica pontuada por Lima (2016),
pois considera importante o contexto dos possíveis motivos para a prática da
alienação parental com o foco em identificar os indícios de alienação parental,
registrando-os nas perícias para que possam ser revertidos e a criança possa ser
protegida. Embora o autor não defenda a criminalização da alienação parental,
concordando com a perspectiva relacional do fenômeno, considera que os atos são
praticados por um autor que tem responsabilidade sobre eles.
A maior parte dos entrevistados por Batista (2016) informou indicar
indícios de atos que viessem dificultando o acesso aos filhos ou a desqualificação
para o filho da imagem do outro genitor. A autora conclui que o assistente social se
vê confrontado em relação a seu papel, seja porque a legislação de alienação
parental não deixa claro direciona para a necessidade de “perícia psicológica e/ou
biopsicossocial”, seja pela falta de discussão suficiente pela categoria profissional.
Sinaliza o cuidado quanto a fazermos uso da expressão “síndrome da alienação
parental”, por remeter a um conceito da área médica.
Quanto ao papel do assistente social, Batista (2016) ressalta que apesar
da preocupação dos entrevistados em ir além do papel de perito ou “parecerista”,
contribuindo para que homens e mulheres possam ressignificar os papéis sociais de
pai e mãe, superando a noção do homem como “coadjuvante” na relação com os
filhos, é de fundamental importância a implementação de uma política pública, por

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

parte do executivo, para o efetivo atendimento das demandas relacionadas aos


conflitos conjugais e a separação, estando elas judicializadas ou não.
Montaño (2016) ressalta a importância de trabalhar na perspectiva da
mediação e da sensibilização sobre o convívio igualitário do filho com ambos, apesar
da separação.
Lima (2016) aponta que o assistente social tem o compromisso ético de
buscar desvelar os processos sociais que perpassam a vida das pessoas que se
encontram envolvidas na lide, trazendo à tona seus aspectos mais amplos e
refletindo como estes rebatem também nas singularidades dos sujeitos, considera
central o papel do perito em trazer o contexto.
Em síntese podemos considerar que a abordagem do fenômeno da
alienação parental, a partir das relações de gênero, e raça, além de classe social
pode ser importante contribuição do Serviço Social, permitindo sua apreensão como
expressões da questão social.
Amparada na definição conceitual de questão social, a alienação parental
pode ser considerada expressão dela por violar o direito da criança à convivência
familiar e comunitária. Muitas vezes, a “denúncia” de alienação parental está ligada a
questões financeiras, como por exemplo, casos em que a mãe dificulta a
convivência, porque o pai não está pagando a pensão alimentícia ou casos em que o
pai pretende a guarda compartilhada para fortalecer seu pedido de revisão de
pensão alimentícia. O interesse patrimonial e econômico faz parte das ações
judiciais que se referem aos filhos e muitas vezes se mostram até mesmo superiores
ao foco na proteção dos(as) filhos(as).
Em muitas situações, a questão socioeconômica perpassa a questão da
guarda, ainda que não seja o foco principal. Por isso, devemos refletir nessa
perspectiva da relação capital/trabalho que não está posta no imediato das situações
estudadas.
O grupo discutiu sobre a importância dos eixos que devem se embasar os
estudos e análises do Serviço Social: o contexto socioeconômico, perpassando por
todos os condicionantes da vida da família: os modos de ser de pai e de mãe; qual
sentido que cada um tem em relação a tais papéis; como cada parte viveu o
casamento, a separação, o papel de pai/mãe; como foram socializados, etc.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O relato de Eduardo sobre o casamento com Monica enfatizou


inicialmente aspectos materiais e financeiros sob sua
responsabilidade durante o convívio e após a separação, com uma
tendência de desqualificação da ex-mulher. Ele afirma ter se casado
pelo filho e “não por amor”.
Diante da ênfase crítica de Eduardo sobre os cuidados maternos, à
pergunta sobre como era o exercício parental durante o casamento
com Monica, reconheceu que participava pouco dessa rotina, pois
trabalhava muito e viajava profissionalmente. A seu ver, os cuidados
maternos eram “razoáveis”.
Monica relata uma vivência conjugal com Eduardo na qual se sentia
desvalorizada e humilhada e aparentemente com poucos recursos
para se contrapor a isso. Numa análise social é possível inferir
características de um relacionamento em que predominou a
desigualdade de gênero que pode ser ilustrada com a diferença de
idade entre eles, de formação educacional e de dependência
econômica feminina após o casamento.
Tal vivência se articula com o discurso de Eduardo que tendeu a
desqualificação de Monica como ex-mulher e como mãe, deixando
de trazer informações sobre esse convívio, e qualquer reflexão sobre
sua contribuição para os conflitos advindos da separação. Ele
ressalta, porém, a união atual pautada pelo companheirismo e
compartilhamento de projetos, em que prevalece maior equivalência
socioeconômica entre ele e a mulher.
A partir da separação conjugal, o pai passou a desempenhar mais
explicitamente algumas funções inerentes ao papel paterno, o que se
revelou importante para a criança.(trecho do parecer do relatório
social de Eduardo e Monica, 2018)

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4 - CONCLUSÃO

Os estudos sobre gênero são densos e certamente não se esgotaram no


exercício que realizamos. Há diferenças entre autores e correntes teóricas e a
discussão também é polêmica no Serviço Social. Entretanto, os estudos
bibliográficos e as discussões realizadas possibilitaram avançar na identificação de
aspectos socioculturais presentes nas relações familiares judicializadas, seja em
demandas de guarda, regulamentação de visitas, alienação parental e outras.
A discussão sobre guarda e alienação parental para além das dimensões
legais requer a abordagem mais ampla da transformação sociohistórica dos modos
de ser família, pai, mãe, filho(a), criança, adolescente numa sociedade marcada pela
desigualdade social de classe, raça e gênero (e também de geração), onde a
proteção social pública é inexpressiva e a responsabilização das famílias é cada vez
maior. Embora a abordagem sociohistórica não seja exclusividade do Serviço Social,
na interface com o Direito e a Psicologia, tal perspectiva representa uma importante
contribuição para a formulação de um conhecimento que se aproxime das diversas
dimensões que compõem a realidade social das famílias em litígio, representando
também a demarcação de nossa identidade profissional.
Nesse aspecto, a análise das relações de gênero subsidia a identificação
de aspectos socioeconômicos e culturais que são de nossa competência destacar
como chaves importantes de conhecimento sobre os indivíduos sociais, tal como
posto por Fávero (2008). Com isso o Serviço Social pode oferecer conhecimentos
fundamentados teoricamente para romper com a insensibilidade de gênero, tal como
discutido por Hümmelgen e Cangussú (2017). Não se pode sustentar novas
proposições de lei a partir de estereótipos generalizados e perspectivas punitivas
sem se trabalhar uma mudança de mentalidade sobre os papeis de homens e
mulheres no âmbito privado familiar.
Provocadas por Montaño (2016) que considera que o Serviço Social deve
assumir a defesa da guarda compartilhada como “antídoto” para a alienação parental
e como expressão da igualdade entre homens e mulheres, ponderamos que essa é
uma premissa a ser assumida “a priori”, afinal nossa defesa é pela transformação e
superação sócio histórica dos cuidados de filhos e filhas como tarefa exclusiva da
mulher/mãe. Entretanto, quando há indicativos de desigualdade de poder masculino

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e de violência contra a mãe que afetam os filhos, tendo em vista o balizamento dado
pela equidade de gênero, consideramos pertinente que o parecer social pondere se
a guarda unilateral materna poderia ser o que melhor represente essa perspectiva.
Articular a análise de gênero e de geração (interesse do adulto x o da
criança) gera dúvidas, questionamentos e angústia. Ao enxergarmos que Monica
teria vivenciado em seu casamento com Eduardo, não apenas a desigualdade de
gênero, mas também outras formas de violência, num primeiro momento,
consideramos que a demanda paterna pela modificação de moradia do filho seria
impertinente. Entretanto, aprofundando o estudo a partir do enfoque relacional de
gênero e especialmente da perspectiva do direito e da necessidade da criança,
chegamos a conclusão que seria benéfico para o filhinho de Eduardo conviver mais
com o pai, ainda que a mãe tivesse condições socioeconômicas de continuar
cuidando dele.
Ao recorrente questionamento sobre o risco de se tomar partido da
mulher/mãe ao se realizar um estudo ou perícia social com análise de relações de
gênero, consideramos importante levar em conta a perspectiva relacional de gênero
e a defesa da equidade entre homens e mulheres, que pressupõe levar em
consideração suas diferenças e extrapolar a perspectiva binária, excludente e
punitiva tão comum na lógica dos processos judiciais. Isso não significa ser uma
tarefa fácil, pelo contrário. Esperamos avançar nas análises sociais das demandas
da Justiça de Família adensando a leitura da realidade social das famílias a partir da
relação entre os eixos classe social, raça e gênero que elas apresentam.
Que as Monicas, assim como os Eduardos, possam se desenvolver como
indivíduos sociais e ambos compartilhem cuidados com casa e com os filhos!

253
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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256
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REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS ALTERNATIVAS


PARA OS CONFLITOS DE VARAS DE FAMÍLIA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“VARA DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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COORDENAÇÃO

Cristina Benedetti Sampaio – Assistente Social Judiciário – Varas de Família Foro


Central
Wadson do Carmo Alonso – Psicólogo Judiciário – Comarca de Santo André

AUTORES

Ana Paula da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí


Christiane Sanches – Psicóloga Judiciário – Foro Regional XI - Pinheiros
Claudia Gavião Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapetininga
Edna Fernandes da Rocha Lima – Assistente Social Judiciário – Varas de Família do
Foro Central
Elenir Nascimento de Carvalho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ubatuba
Eliana Aparecida D. Giacobino – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu
Elizabeth Terezinha Raggio da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itapetininga
Juliana Costa de Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapevi
Liliane Martins do Vale – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Maria Aparecida Fachin – Psicóloga Judiciário – Comarca de Fernandópolis
Maria Elaine Martins – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Marisa Lourenço Ubeda – Psicóloga Judiciário – Comarca de Cubatão
Marli Sousa Maciel Parejo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu
Nilce Margareth Franca Barros – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cubatão
Paula Silveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Praia Grande
Renata da Silva Vieira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapecerica da Serra
Roberta Goes Linaris – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Rodrigo Bronze dos Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de Mairiporã
Salvador Loureiro Rebelo Júnior – Psicólogo Judiciário – Foro Regional do Ipiranga
Sandra Aparecida Donaire – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jales

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INTRODUÇÃO

PRÁTICAS EMERGENTES E ALTERNATIVAS EM VARAS DE FAMÍLIA

Estudos nacionais e internacionais têm apontado ao longo dos anos a


preocupação com a saúde mental das crianças que estão submetidas a processos
que envolvem disputa de guarda e qualidade de relacionamento entre os pais, após
a sentença. Emery, Otto e Ond`Donohue (2005), já apontavam que a continuidade
do relacionamento familiar é mais importante para a saúde mental da criança do que
o tipo de guarda, levando em consideração a importância dos laços afetivos. Os
autores acrescentam a importância da educação para os pais, negociações e
alternativas de compartilhar a responsabilidade pelos filhos e garantia a
convivência familiar, para facilitar o relacionamento positivo entre crianças e
pai/mãe, podendo inclusive reduzir o número de disputas litigiosas (tradução nossa).
Em novembro de 1997 as Nações Unidas proclamaram o ano 2000 como
o Ano Internacional da Cultura de Paz, marcando início de uma mobilização mundial
e de norteadores na busca dessa cultura em ações concretas. A cultura de paz –
relacionada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos – está baseada na
tolerância e na solidariedade, respeitando todos os direitos individuais, visando
prevenir conflitos e resolvê-los por meio do diálogo, da negociação e da mediação.
Na contramão desta nobre proposta, encontramos a belicosidade
presente nos processos de Varas de Família, sempre produtora de angústia e
mobilizadora de esforços por parte das equipes de Assistentes Sociais e Psicólogos
do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo que visam acima de tudo trabalharem
inspirados nesta Cultura de Paz, buscando a garantia dos Direitos das crianças,
adolescentes, famílias e na promoção do bem-estar.
Na prática diária, o perito das Varas de Família e Sucessões depara-se
com ações litigiosas de diversas naturezas, variando em distintos graus de
intensidade e gravidade, submetidas à leitura pericial visando compor provas
técnicas que subsidiarão os juízes na tomada de decisão. Contudo, tal conduta se
lastreia no bojo de uma atuação adversarial, onde as vivencias marcadas por
conflitos, muitas vezes são agravadas por atuações de advogados, que na arena
judicial, buscam comprovar que seus clientes são os detentores da razão e devem

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obter sentença favorável a eles comprovando a “inadequação” da parte contraria e


levando a “vitória”.
Geralmente os casais que estão se separando, contaminados pela
mágoa, frustração, decepção e outros sentimentos, buscam nos processos judiciais
além do término do relacionamento, “o propósito de devastar o outro, retirando-lhe
tudo o que for possível, tanto no sentido material quanto emocional” (SILVA, 2015, p.
25), frente a tal cenário, cotidianamente encontrado, questiona-se: como
salvaguardar a integridade psíquica e social tanto dos filhos como de seus pais, uma
vez que as perícias se mostram efetivas somente até certo ponto?
Por conta de uma percepção crescente sobre as limitações do alcance do
trabalho pericial clássico, frente à busca pelos objetivos norteadores acima descritos,
diversos profissionais vêm inclinando-se a pensar sobre práticas inovadoras que
pudessem somar às atuações dos peritos, intencionando-se a diminuição do grau de
litigiosidade e promovendo práticas de empoderamento e subjetivação das famílias,
que definitivamente auxiliassem os sujeitos envolvidos a resolverem seus conflitos e
promoverem convivências mais harmônicas, pacíficas e autônomas possíveis.
Sob esse prisma, algumas práticas foram levantadas a partir da vivência e
curiosidade dos profissionais deste grupo de estudos, seja pela iniciativa audaciosa
de certas profissionais, seja por terem parceiros de equipe que se empenham em
estudá-las, elencando-se algumas para um estudo mais aprofundado. Tais escolhas
se basearam em dados literários e na percepção empírica de como as decisões
judiciais por si, muitas vezes não abarcam a realidade, não alcançando um dos
principais objetivos do sistema judiciário que é a pacificação.
As práticas elencadas para o aprofundamento foram: Grupo Informativo
“Questões de Guarda”; “Oficina de Pais”; “Constelação Familiar Sistêmica de Bert
Hellinger” para o âmbito Jurídico e a “Mediação de conflitos”.

1 - GRUPO INFORMATIVO “QUESTÕES DE GUARDA”

Esta prática foi concebida por uma participante deste grupo de estudos,
psicóloga Roberta Góes Linaris, da Comarca de Bragança Paulista, estado de São
Paulo, sendo idealizada a partir da percepção, durante avaliação psicossocial, de

260
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que as partes demandavam informações acerca do desenvolvimento afetivo dos


filhos e do rito processual. Os encontros deste grupo ocorreram no ano de 2017.
A ideia foi trabalhar em grupos de pais e mães informações gerais e
mostrar que aquele era um espaço de troca de experiências e tomada de
consciência sobre diversas questões envoltas nos processos de Guarda envolvendo
crianças.
Foi desenvolvida no ano de 2017, na Comarca de Bragança Paulista,
estado de São Paulo, e contou com o apoio e anuência dos magistrados
responsáveis pelas quatro Varas Cíveis, daquele Fórum.
O objetivo era o de oferecer espaço de escuta qualificada, favorecer a
troca de experiência afetiva entre os participantes; informar sobre temas que
envolvem a dinâmica e desenvolvimento emocional de pais e filhos durante o
momento de separação do casal parental; sensibilização para o reconhecimento das
emoções das crianças e dos pais envolvidos, levando-se sempre em consideração
os direitos e deveres de ambas as partes com relação a seus filhos; incentivar a
reflexão sobre as motivações acerca do litígio que envolve o casal parental, assim
como estimular a possibilidade de ressignificação dos papéis parentais e
envolvimento e responsabilização com os filhos.
Para tanto, eram apresentadas e discutidas informações acerca da:
dinâmica processual; modalidades de Guarda possíveis, mantendo foco nas
indicações e consequências de cada uma; estruturação emocional dos envolvidos;
na forma de convívio estabelecida entre os genitores; distinção entre conjugalidade e
parentalidade; desenvolvimento psico-afetivo dos filhos; condições emocionais do
casal parental em divórcio ou separação. Além destes temas centrais, outros que
emergiam durante o grupo também eram discutidos.
O grupo era realizado em momento anterior à Audiência de Mediação,
tendo também a função de auxiliar os pais e responsáveis para que possam exercer
a escolha com maior compreensão acerca das questões que envolvem tal momento,
no qual se reconhece a sensibilidade emocional pela qual passam os familiares.
Os encontros ocorreram com a periodicidade mensal, com duração de
duas a três horas, dividido entre homens e mulheres, uma semana antes das
Audiências de Mediação, para que os participantes tivessem tempo para refletir
sobre os temas e a opção de Guarda.

261
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Um foco maior era dado nas características da Guarda Compartilhada,


com suas especificidades e recomendações de convívio, responsabilização,
reconhecimento dos papéis parentais e benefícios afetivos direcionados aos filhos.
Percebeu-se que figuras parentais sentiram-se mais confiantes para
exercer a escolha, assim como para propor soluções voltadas ao convívio e
organização do cotidiano familiar, durante a Audiência de Mediação. Segundo
observações feitas pelos auxiliares dos magistrados presentes, tais condições
facilitaram o trabalho da equipe, que também explicita sentimento de desgaste
emocional, na vivência de conflitos e discussões realizadas durante algumas
Audiências.
A prática dos grupos também mostrou um posicionamento afetivo dos
participantes que desperta a possibilidade de conversa e acordo entre as partes,
possivelmente provocado pela tomada de consciência de tais sentimentos, e a
distinção entre os sentimentos parentais e filiais.
Uma breve pesquisa foi realizada após a participação das pessoas nos
grupos e mostrou que o número de acordos alcançados, durante a Audiência de
Mediação, indica que este projeto inserido na dinâmica processual, pode trazer
benefícios tanto para a equipe de servidores do Fórum como para as pessoas
envolvidas, que referiram se sentirem reconhecidas em suas fragilidades e terem se
favorecido de informações adequadas acerca do rito processual.
Compreendeu-se que a prática deste tipo de intervenção, por ser coletiva
e focada nas demandas especificas das famílias em litigio, poderia impactar de
maneira positiva nos fluxos de trabalho e sobretudo nas dinâmicas familiares.
Na avaliação da profissional, a participação na coordenação do grupo
informativo não prejudicou a avaliação psicológica, uma vez que não é feita
avaliação ou intervenção terapêutica, algo a ser considerado quando pensamos
sobre o lugar de peritos que ocupamos.
Neste sentido, compreende-se que o mais adequado seria que a
coordenação dos grupos ficasse sobre responsabilidade das equipes técnicas em
virtude do know-how acumulado e das questões de sigilo e confiabilidade.
Contudo faz-se a ressalva de que as equipes em sua maioria estão muito
defasadas e sobrecarregadas, de modo que, mais esta atribuição poderia
incorrer em novos prejuízos aos profissionais e jurisdicionados.

262
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Este projeto no geral tem um escopo e estrutura simples e acredita-se que


qualquer profissional da área técnica poderia aplicá-lo, podendo ser adaptadas
outras leituras conceituais de trabalho. E apesar de ter sido idealizado por uma
psicóloga, compreende-se que Assistentes sociais também poderiam aplicá-la.
Acredita-se que por este tipo de intervenção ser de caráter coletivo,
o impacto no número de processos que chegam em acordo poderia refletir em
alívio de demandas que chegam aos Setores Técnicos, uma vez que somente os
casos de grande necessidade de atendimento individualizado ao processo,
estritamente necessários para decisão dos magistrados, seriam encaminhados para
perícia.
Os entraves para a inserção desta alternativa se dão na medida em que a
realização dos Grupos não é formalizada, como possibilidade das atribuições do
Setor Técnico de Psicologia e Serviço Social, ela ocorre em função da administração
da equipe, sofrendo interferência de questões hierárquicas e crenças
institucionalizadas, que influenciam sua realização e a administração do fluxo de
trabalho.
Compreende-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo apresenta um
campo fértil para desenvolver este tipo de atuação, oferecendo respaldo adequado
ao cidadão e a atuação das equipes técnicas, que poderiam se expandir e atuar
também em projetos de prevenção ao agravo dos litígios.

2 - “OFICINA DE PAIS”

Tendo como sua lógica a cultura de paz, a oficina de parentalidade tem


como principal objetivo a diminuição do litígio em processos relacionados à
separação conjugal e, consequentemente, redução do sofrimento dos filhos do casal
litigante. Com uma metodologia pedagógica e acolhedora, as oficinas buscam
instrumentalizar os participantes (pais, mães e filhos crianças e/ou adolescentes) a
lidar com os sentimentos e dificuldades emergidos decorrentes da separação e fim
da conjugalidade.
A intenção é a de que as oficinas sirvam como propostas
preventivas e de resolução de conflitos com a intenção de proteger os filhos

263
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da devastação emocional que pode eclodir a partir da ruína do matrimonio dos


pais.
Para efeito de estudos, buscaram-se referenciais na internet, a partir da
sugestão dos participantes do grupo, encontrando-se algumas para a prática da
Oficina de Pais ou de Parentalidade, sendo elas: a Cartilha do CNJ, a Oficina de
Pais de Palmital e a Oficina de Parentalidade da UFTM – Uberaba-MG.
A “Cartilha do Instrutor” (CNJ, 2013) propõe que a “oficina de Pais e
Filhos” seja realizada da seguinte forma: uma “Oficina de Pais” em apenas uma
sessão, com duração de quatro horas, e uma “Oficina dos Filhos”. De modo geral, os
pais formam dois grupos, que são realizados em salas distintas, sendo que cada
grupo é composto entre dez a vinte adultos, homens e mulheres, conforme a
disponibilidade de espaço. Na “Oficina de Filhos” são subdivididos em dois grupos:
grupo das crianças (de 6 a 11 anos) e grupo de adolescentes (de doze a 17 anos).
Nesta proposta de trabalho, as oficinas são realizadas por instrutores voluntários
(assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados com perfil colaborativo,
Mediadores, Juízes de Direito e Promotores de Justiça), como também, pela Equipe
Multidisciplinar do Fórum, conforme a sua disponibilidade.
As “Oficinas de Parentalidade” desenvolvidas pela Universidade Federal
do Triângulo Mineiro em parceria com a 8ª Promotoria de Justiça de Uberaba-MG,
tem por objetivo “atender famílias em processo de divórcio e/ou dissolução da união
estável, com um viés pedagógico e não terapêutico” (pág. 18) As oficinas são
desenvolvidas em duas fases: “sendo a primeira correspondente ao convite e à
capacitação de voluntários para atuarem como instrutores nas oficinas e a segunda
relativa à execução das oficinas”. (Pág. 20) Os profissionais capacitados atuam
como instrutores voluntários em três tipos de oficinas: pais (o ex-casal é alocado em
oficinas diferentes), adolescentes (12 a 17 anos) e crianças (6 a 11 anos). Além dos
instrutores, participam também extensionistas dos cursos de Psicologia, Serviço
Social e Enfermagem. A capacitação ocorre em quatro encontros com duração de 16
horas. As “Oficinas de Parentalidade” acontecem uma vez por mês, com duração de
4 horas, com público diferente a cada novo encontro. (SILVA, Luciana Maria et al.
Oficinas de Parentalidade. Participação, n.27, p.18-26).
Na Comarca de Palmital, estado de São Paulo, antes da execução da
primeira edição da oficina, foram realizadas reuniões com os profissionais da rede

264
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de outros municípios que compõe esta Comarca, “com a finalidade de estarem


instruídos e partilharem do trabalho, desenvolvendo intervenções em suas
localidades para reforçar aquilo que se debate na oficina” (pág. 221). Nesta primeira
oficina, baseada no projeto piloto da Juíza Vanessa Aufiero (Comarca de São
Vicente/SP), a equipe optou por algumas modificações, a saber: a oficina foi
realizada em apenas um encontro, com duração de duas horas e meia. Em Palmital,
estado de São Paulo, a oficina foi executada com dez instrutores voluntários, sendo
que o público alvo era separado da seguinte forma: crianças, pais (mãe em uma
oficina e pai em outra), e adolescentes. Ao longo do artigo, a autora narra
especificidades do trabalho executado, como também, avalia que houve aumento da
demanda para participação nas oficinas (inclusive de participação “voluntária”) e que
não foi possível efetuar “oficina para adolescentes”, pois não houve demanda para
tal. (PAIÃO, 2014).
De modo geral, os participantes do Grupo de Estudos em “Varas de
Família” apontaram escassez de tempo e de recursos humanos nas equipes
multidisciplinares dos Fóruns para organizar tais oficinas, estabelecer
parcerias (com universidades e outras entidades) e capacitar os voluntários
executores.
Durante a discussão, foram levantadas outras questões: a falta de um
sistema de avaliação e acompanhamento das Oficinas, objetivando medir o
resultado da ação e, mais adiante, do impacto causado pelo trabalho realizado por
estas equipes; e a falta de apresentação e sistematização de resultados obtidos nos
artigos estudados. Sendo assim, apesar dos objetivos nobres que lastreiam a prática
das “Oficinas de Parentalidade”, não se encontrou dados sobre o alcance destes
resultados.
Os profissionais participantes do Grupo de Estudos foram uníssonos em
desconhecer como ela se operacionalizaria em seus locais de trabalho. Uma
integrante do Grupo de Estudos mencionou ter participado de algumas sessões
iniciais da Oficina, nas quais situações-problemas do cotidiano familiar são
encenadas.
Observaram que em algumas Comarcas Juízes estão determinando nos
autos a participação de pais nas Oficinas, presencialmente e virtualmente (através

265
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da plataforma do Conselho Nacional de Justiça http://www.cnj.jus.br/formacao-e-


capacitacao/cursos-abertos?view=course&id=18) .
Vale acrescentar que uma colega do Grupo de Estudos e o Coordenador,
submeteram-se à Oficina de Pais e Filhos da plataforma do CNJ, dividida em 05
módulos, com duração de 20 horas, e, de modo geral, avaliaram que o material
utilizado é “interessante em conteúdo e na forma apresentada”.

3 - “CONSTELAÇÃO FAMILIAR SISTÊMICA” DE BERT HELLINGER

3.1 - A PRÁTICA NO DIREITO BRASILEIRO

Um dos pontos que sempre chamou a atenção nos encontros deste grupo
era a queixa recorrente de um dos membros familiares, o sentimento de
exclusão do grupo familiar, mobilizando mágoas e comportamentos que contribuíam
de forma intensa para o litigio, podendo prejudicar, inclusive, a identificação das
necessidades reais e globais da criança. Por conta disso e pela crescente expansão
desta pratica terapêutica dentro do universo jurídico, escolheu-se estudá-la.
Sami Storch, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, é
o precursor na aplicação das constelações familiares, no sistema judiciário do Brasil
e também autor da expressão "Direito Sistêmico". Desde o ano de 2012, o juiz
passou a utilizar a técnica como forma de melhorar ainda mais os resultados das
sessões de conciliação.

Em ações de família, muitas vezes uma constelação simples,


colocando representantes para o casal em conflito e os filhos, é para
evidenciar a existência de dinâmicas como a alienação parental e o
uso dos filhos como intermediários nos ataques mútuos, entre outros
emaranhamentos possíveis. Essas explicações têm se mostrado
eficazes na mediação de conflitos familiares e, em cerca de 90% dos
casos, as partes reduzem resistências e chegam a um acordo
(STORCH, 2018).

Atualmente, a Constelação Sistêmica está inclusa em vários Tribunais do


país, sua aplicação hoje é possível devido a Resolução 125/2010 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e a vigência do Novo Código de Processo Civil, artigo 3º:

266
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§ 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução


consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público,
inclusive no curso do processo judicial.

Storch (2018) afirma que o Direito Sistêmico, tendo como base a


Constelação Familiar, objetiva realizar as decisões judiciais mais humanizadas e
harmoniosas entre os envolvidos, buscando através desta técnica conhecer a origem
do problema apresentado, compreendendo e analisando sob esta nova perspectiva
as dificuldades pessoais envolvidas na ação. Portanto, a expressão Direito Sistêmico
representa a atuação dos operadores do direito, não com um olhar apenas
processualista, mas sim, sistêmico, onde as Leis Sistêmicas são aplicadas aos
conflitos.
Desta forma, compreendendo que a Constelação Familiar está em
perfeita consonância com o ordenamento processual civil brasileiro, a técnica
passou a ser utilizada também por outros profissionais, a exemplo dos assistentes
sociais e psicólogos do judiciário.

3.2 - CONSTELAÇÃO FAMILIAR SISTÊMICA COMO ESTRATÉGIA FRENTE AOS


LITÍGIOS DE VARA DE FAMÍLIA

Com o objetivo de melhor conhecer a técnica e a teoria da Constelação


Familiar Sistêmica, o grupo convidou a palestrante Nádia Cristina Oliveira 40,
Psicóloga Judiciário da Comarca de Jundiaí, estado de São Paulo e Consteladora
Sistêmica Familiar e Organizacional.
A palestrante iniciou a apresentação esclarecendo os princípios da
Constelação Familiar Sistêmica. Bert Hellinger formulador das Constelações
Sistêmicas, nascido em 1925 na Alemanha, tem obras traduzidas em mais de 20
países, considera que há três leis que regem relacionamentos humanos e as
denominou de “As Ordens do Amor”. Estas se manifestam de forma complexa e
asseguram a sobrevivência na constituição dos sistemas ou grupos sociais, a saber:
A ordem de pertencimento; A ordem de hierarquia; A ordem de equilíbrio.

40
Nádia Cristina de Oliveira também coordena o projeto “Mediação a Serviço da Vida” junto ao
CEJUSC do Fórum Regional I – Santana, onde realiza palestras, oficinas e supervisiona mediações
que utilizam a técnica das Constelações Sistêmicas como ferramenta facilitadora.
267
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Cada uma dessas três ordens submete o indivíduo a forças que desafiam
seus desejos e ânsias pessoais, controlando, exigindo obediência e coagindo.
Operando, então, como leis que limitam as vontades e expressões individuais, mas
também tornam possíveis os relacionamentos íntimos com outras pessoas.
(HELLINGER. 2015.p.25).
“A dinâmica dessa teoria afirma que existe uma ligação inconsciente que
influencia mutuamente as pessoas que convivem dentro de um sistema” (POSSATO,
2008).
Para Hellinger o seu trabalho busca uma competência apurada para
escutar a autoridade da nossa própria alma que seria a única verdadeira técnica que
é a oposição a uma aceitação cega dos nossos comportamentos. Ele valoriza a
importância do seu aprendizado por meio da integração das diversas fontes e
estudos.
Durante uma constelação, a proposta é identificar quais destas Leis
podem ter sido transgredidas e contribuir para que o indivíduo possa ter a
oportunidade de sair da aceitação cega destes comportamentos inconscientes.
Segundo Bert Hellinger (2001), sistema significa um grupo de pessoas
unidas pelo destino, de maneira que, os atos de cada um influenciam nos destinos
uns dos outros, inclusive através das gerações. Nessa direção, frisa que o primeiro e
mais importante sistema no qual o indivíduo é inserido é sua família, na qual
decorrem as primeiras interações (MADALENO, 2015).
A palestrante citou que durante a aplicação da técnica, ela busca aonde
está o “amor” daquela pessoa, aquilo que lhe move, promovendo a sua
capacidade de poder retornar ao período de sua infância. A pessoa é então,
convidada a observar respostas corporais e vivenciá-las livremente, a exemplo de
sensações de frio ou calor, batimentos do coração, postura corporal, respiração e
etc. Nas palavras do mentor da prática:

O aspecto mais importante foi reconhecer que o amor atua por trás
de todos os comportamentos, por mais estranhos que nos pareçam,
e também de todos os sintomas de uma pessoa. Por esse motivo, é
fundamental na terapia que encontremos o ponto onde se concentra
o amor. Então chegamos à raiz, onde se encontra também o
caminho para a solução, que sempre passa também pelo amor
(Hellinger, 2001).

268
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considerando exemplo de caso, Nádia descreveu a Lei do Pertencimento.


Expôs como um adolescente, acolhido institucionalmente, com histórico de genitores
(falecidos) traficantes e comportamento autodestrutivo, conseguiu por meio do
modelo da constelação sistêmica tomar consciência da sua história, reconhecer-se
em um papel que desempenhara dentro da dinâmica de sua família e vislumbrar
novas opções de escolhas de vida que até então não percebia, pois tendia a repetir
de forma inconsciente a história de seus genitores.
“Quando se vive a mesma história eu sinto que posso pertencer. Então
acabamos servindo, de forma inconsciente, àquele sistema. A cura acontece quando
tomamos consciência. Quando a pessoa sai daquela vinculação e então se torna a
autora da própria história, buscando o equilíbrio”, disse Nádia.
A Psicóloga explicou que, de acordo com a ordem do pertencimento
ninguém pode ser excluído do sistema familiar. Quando isso ocorre, alguém em
geração posterior repetirá o destino do excluído:

Há uma lei importante do comportamento sistêmico que precisa ser


obedecida: o sistema se rompe quando um dos seus membros é
rejeitado ou excluído. Para que haja solução, cumpre respeitar a
totalidade do sistema, trazer de volta o excluído e cada um assumir a
devida quota de responsabilidade” (Hellinger, 2015, p. 85-86).

Quanto à Lei da Hierarquia, Hellinger afirma que, existe uma hierarquia


baseada no momento em que se começa a pertencer a um sistema, baseada na
ordem de origem, a qual se orienta pela sequência cronológica do ingresso no
sistema, ou seja, a relação afetiva dos pais tem precedência sobre a relação
parental, enquanto que os filhos mais velhos antecedem aos seguintes
(HELLINGER, 2001, p. 25).
Certos participantes do grupo levantaram comparações com as técnicas
existentes dentro da psicologia (psicodrama, terapia breve, etc). A palestrante em
consonância com o exposto fez menção as influências sofridas por Bert Hellinger,
oriundas da psicologia e também da filosofia na construção do modelo das
constelações sistêmicas.
Nádia pontuou que, diferentemente do ambiente jurídico, que temos
informações do indivíduo por meio da leitura dos Autos, no consultório ela emprega
269
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a técnica sem maior aprofundamento prévio. Desta forma, pergunta-se ao cliente


qual a questão a ser constelada, com intuito de avaliar a consciência coletiva e
pessoal, dentro do contexto familiar (em que está inserido ou excluído).
Solicitada a explicar o uso da Constelação Sistêmica nos seus
atendimentos enquanto psicóloga do judiciário, Nádia expôs que aplica a técnica
ao final do atendimento, mas não faz menção do conteúdo emergente no seu
relatório, justamente porque devemos sempre pensar no uso adversarial a que tais
informações podem servir.
O intuito é de trabalhar com as partes, a exemplo de uma disputa de
guarda, como a criança possa se sentir em meio ao conflito, a partir da dinâmica
familiar de cada membro daquele sistema, com a finalidade de unir as histórias e
assim obter melhor compreensão do litígio e equilíbrio sistêmico.
Questionada, informou não existir proibição por parte do CRP na
aplicação das constelações sistêmicas enquanto técnica observou ainda que
no próprio judiciário, o modelo vem sendo aplicado nos casos de mediação.
Contudo, formalmente o Conselho de Psicologia não apresenta posicionamento
claro quanto a esta técnica.
Nádia convidou os participantes do grupo a escolherem um caso de litígio
para aplicar a técnica da constelação familiar. E, por fim, o grupo debateu
importantes dados observados durante o procedimento, a exemplo de prática de
alienação parental, questionamento sobre a natureza de denúncia de abuso sexual,
entre outros.

3.3 - CONSIDERAÇÕES SOBRE ALCANCES E LIMITES DA CONSTELAÇÃO


FAMILIAR SISTÊMICA EM VARA DE FAMÍLIA

O estudo sobre a constelação familiar pode contribuir para a elucidação


de quais conflitos estão camuflados sob demandas legais que ocultam
vivências dolorosas, segredos e pouca atenção das partes envolvidas para
aspectos subjetivos.
É elemento de preocupação a garantia de um ambiente protegido
eticamente referente à exposição de fragilidades dos participantes e o cuidado com
o suporte promovido aos afetos e segredos familiares emergidos em tal prática,

270
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

considerando que pode haver risco de profissionais de áreas não afeitas às práticas
de cuidado apropriarem-se de forma equivocada sobre esta técnica.
A falta de aceitação e espontaneidade dos envolvidos pode ser um fator
limitante dessa modalidade de intervenção, bem como a fantasia de que a exposição
possa promover eventual prejuízo no processo.
É necessário atentar-se à importância da qualidade da formação do
Constelador, com relevo ao suporte do profissional por meio de supervisão e
aprimoramento. Foi questionada em que medida as questões abordadas possam
vir a ser acompanhadas posteriormente, sendo apontada a clareza dos profissionais
capacitados na identificação dos conteúdos trabalhados, sobretudo por conta do
grau crítico de fragilização do público atendido.
Compreendeu-se também que é uma técnica rica de elementos,
construída a partir de diversas bases epistemológicas e empíricas, mas que
necessita de pesquisas para que Psicólogos e Assistentes Sociais possam utilizá-la
com maior segurança científica.

4 - MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

Prevista desde a Constituição do Império em 1824, como prática


interventiva, onde um terceiro facilita a comunicação para que as partes cheguem ao
acordo, a mediação foi reforçada no preambulo da Constituição de 1988 ao prever a
pacificação, regulamentada pela Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de
Justiça e formalmente entendida no Brasil como política pública por meio da lei
15.130 de junho de 2015.
Conceituada como “atividade técnica exercida por terceiro imparcial, sem
poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a
identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia” (Art. 1º
Paragrafo único), a mediação é orientada pelos princípios da imparcialidade do
mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade e autonomia das
vontades, buscando o consenso, por meio das premissas da
confidencialidade, da boa-fé com a intenção de que os envolvidos possam
protagonizar saídas produtivas para os impasses em que estão envolvidos (Faleck
e Tartuce, 2016).

271
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A compreensão de conflito nesta perspectiva, não é necessariamente


vinculada a um problema, mas como algo natural e inerente ao convívio humano.
Logo a forma de lidar com ele é o que de fato importa. A perspectiva aqui
apresentada é a de que os envolvidos possam reeducar o pensamento quanto à
forma de gerir os conflitos. A intenção é a de que esta reeducação se expanda
para além do litigio em questão e que se estenda a outros contextos da vida.
Ao que tange especificamente a mediação familiar observa:

(...) a prática é adequada à resolução dos conflitos, promove a


conscientização das responsabilidades e dos papeis que cabe a
cada um, constrói outro laço parental e prioriza o dever constitucional
da família, da sociedade e do Estado de assegurar proteção à
criança e ao adolescente com relação ao seu direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e
comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRAGA
NETO, 2018, p. 2).

Durante a exploração do tema pelo grupo de estudos teve-se clareza que


existem linhas de trabalho na mediação, sendo as principais a harvardiana 41, a
circular narrativa42 e a transformativa43. Houve exponencial apresentação acerca da

41
A Escola de Harvard de negociação e mediação, em termos de estigma, ficou identificada como a
linha de pensamento que propõe o enfoque de interesses ao invés de posições, e com a teoria da
negociação baseada em princípios. (...) Pode-se afirmar que os “modelos” transformativo e circular-
narrativo se apoiam no fundamento de focar em interesses e em criação de valor, entre outros
princípios fundamentais. Assim, não podem ser considerados como contrapostos à Harvard, mas
sim como desdobramentos dos estudos de sua linha mestra. (Faleck e Tartuce, 2016, p.11).
42
Esta corrente decorre do processo criativo da professora americana Sara Cobb, que em uma de
suas obras criticou as concepções tradicionais de empoderamento, investigando e criticando se
realmente sua ocorrência era real; embora pesquisas em comunidades respondessem
positivamente, em seu sentir era questionável o resultado porque a simples ausência de conflitos na
comunidade não indicava a presença de justiça. (...) tal concepção foca a desconstrução das
narrativas iniciais da história dos envolvidos; por meio de perguntas circulares (promotoras de
mudança de foco do problema), visa a permitir diferenciadas conotações e compreensões sobre as
ocorrências vivenciadas rumo à construção de outra história.
43
Nessa concepção empoderamento e reconhecimento são os dois mais relevantes efeitos que a
mediação pode gerar e atingi-los é o objetivo mais importante. Em termos gerais, há
empoderamento quando os envolvidos fortalecem a consciência sobre seu próprio valor e sobre sua
habilidade de lidar com quaisquer dificuldades com que se deparem a despeito de pressões
externas; já o reconhecimento é alcançado quando as partes em disputa vivenciam uma ampliada
disposição de admitir e ser compreensivo quanto às situações da outra pessoa. Como se pode
perceber, a meta é modificar a relação entre as partes, não importando se é celebrado ou não um
acordo desde que haja “transformação relacional”. (Faleck e Tartuce, 2016, p. 14)
272
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ultima pelo professor Adolfo Braga Neto44, expert no tema, o qual aceitou convite do
grupo.
Em sua exposição Braga Neto deixou claro que praticamente todos os
conflitos são mediáveis, havendo ressalvas àqueles que envolvam violência e
os decorrentes de alguma patologia que comprometa as faculdades mentais.
Narrou que a prática da mediação nos instiga a olhar para os conflitos e
sua amplitude, enfatizando que estes deveriam ser entendidos como naturais a
qualquer laço familiar, fruto da evolução dos diversos níveis relacionais.
Relatou ainda que a prática que se dá no judiciário é diferente da que tem
praticado na via extrajudicial, mas corroborou que tem iniciativas para introduzir o
viés transformativo também como alternativa nas mediações processuais.
Exemplificou como o emprego adequado de técnicas pode favorecer a
construção de soluções inovadoras e criativas, resgatar laços de harmonia e
capacitar as pessoas para o exercício da autonomia, o que de modo geral
consubstancia que as demandas tratadas não retornem ao judiciário, haja vista que
um acordo construído pelas partes traz uma apropriação diferenciada e é mais
aberto a reajustes, quando necessário.
As exposições apresentadas produziram no grupo conclusões sobre o
quanto, o emprego adequado dessa alternativa, descongestionaria o judiciário e
permitiria a atuação mais focada dos técnicos, apenas nos casos em que a
litigiosidade não fosse resolvida por meio da mediação.
Restou claro também que a mediação atende adequadamente o
conflito, por ser célere e tratar a demanda em profundidade. Em contrapartida
o descongestionamento das pautas judiciárias permitira o acesso à justiça
previsto no artigo 5º da constituição, em tempo mais apropriado ao que a
realidade solicita.
Os entraves levantados foram: a baixa adesão de alguns profissionais do
Direito, tais como advogados e juízes, que cumprem o determinado no código civil,
44
Adolfo Braga Neto: Presidente do Conselho de Administração do Instituto de Mediação e
Arbitragem do Brasil – IMAB; Vice-Presidente do CONIMA - Conselho Nacional das Instituições de
Mediação e Arbitragem; Diretor do Fórum Mundial de Mediação; Diretor do Conselho de
Administração do Instituto de Mediação e Arbitragem de Portugal – IMAP; Coordenador do GT de
Mediação de Conflito da Comissão de Arbitragem da OAB, secção São Paulo; Conciliador de 1ª
Instância do Setor de Conciliação do Fórum João Mendes de São Paulo e do Fórum Regional de
Pinheiro; Co-Autor do livro “O que é Mediação de Conflito”, 2007; Mediador e árbitro incluído em
listas de entidades brasileiras e estrangeiras; Advogado.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sem implicação para que o processo alcance o objetivo de pacificação das relações;
o caráter de voluntariado da atividade (especificamente em São Paulo); a falta de
supervisão quanto à qualidade do serviço ofertado; a disponibilização desse
instrumento em pautas abarrotadas, que muitas vezes, sugerem sessões de 15 a 20
minutos, inviabilizando a prestação de um serviço adequado conforme as
recomendações da literatura.
Dito isto, considera-se que a leitura adequada da conjuntura envolvendo a
mediação favoreceria a constituição de acordos exequíveis, onde cabem os
contornos e adequações necessárias a realidade dos envolvidos.
Enquanto técnicos do sistema judiciário, concluiu-se que a concepção sobre a
natureza humana e a evolução da maneira de lidar com os conflitos familiares são
muito próximos das bases teóricas de formação de Psicólogos e Assistentes Sociais,
influenciando a partir delas a similaridade em algumas técnicas usadas na
mediação, como as comunicacionais, de modo que estudar sobre Mediação pode
ser de grande serventia para promover reflexões que ajudem os envolvidos a
realizarem movimentos empáticos que diminuam a litigiosidade.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

5 – CONCLUSÃO

A proposta deste trabalho foi de apresentar algumas sugestões de


práticas que emergem da necessidade de novos olhares, frente à realidade litigiosa
das famílias, e que poderiam inspirar profissionais e operadores do Direito buscar
formas de intervir baseados na Cultura de Paz e promoção da qualidade de vida das
famílias.
Compreendeu-se que a conscientização, reflexão e introjeção dos
conteúdos apresentados nas diversas modalidades, possibilitam a família vislumbrar
a transposição da fase de ruptura e avançar para fase de elaboração. Além disso,
com a sensibilização e empoderamento das pessoas envolvidas em litígio, há maior
chance de que consigam construir a própria resolução e cumprirem os acordos,
responsabilizando-se pelas suas vidas e a de seus filhos. Como consequência,
haver-se-ia efetividade de resoluções dos processos e redução de demandas
desnecessárias e repetitivas na Justiça, contribuindo para tornar os sujeitos
protagonistas e responsáveis por suas próprias histórias levando em consideração a
continuidade dos laços afetivos.
Algumas dificuldades de implantação e execução surgiram em todas as
práticas, tais como: a falta de investimento em treinamento; falta de mão de obra
qualificada; o risco do voluntariado; a preocupação quanto ao sigilo; os obstáculos
institucionais e a cultura adversarial imperativa no sistema judiciário, representado
pelos advogados de família. Todos estes obstáculos abrem a necessidade de os
psicólogos e assistentes sociais pensarem cada vez mais no seu papel de
articulação política e postura ética dentro da instituição, estimulando o
desenvolvimento de novas competências para a eficiência do trabalho e busca pela
saúde mental.
Observou-se também que o trabalho com o sistema de garantia de
direitos é fundamental para a boa execução destes projetos, como no caso da
Oficina de Parentalidade da UFTM, mas também pode envolver certas complicações
relacionadas ao sigilo em caso de cidades muito pequenas.
O desafio é conciliar estas práticas e o trabalho pericial. Compreendemos
que o trabalho pericial é o carro chefe de nossas atribuições e deve ser
compreendido também como um veículo de transformação dos sujeitos atendidos,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

um espaço de subjetivação, escuta e busca pela autenticidade. E frente às atuais


demandas sociais, novas formas de intervenção podem ser evocadas para ajudar os
peritos na elucidação de aspectos do litígio, ao mesmo tempo ajudar aquele sujeito a
melhorar sua compreensão sobre si, seu filho e a família. Desta forma todos ganham
dentro deste sistema que se forma entre o perito, a família e o judiciário.
Faz-se a ressalva de que ao mesmo tempo em que uma instituição possui
limites para a implantação de praticas criativas, ela também permite a convivência e
aliança com diversos outros profissionais interessados e curiosos, através das trocas
e parcerias, estratégias de enfrentamento podem impactar diretamente no bem-estar
e produtividade de nós trabalhadores, assim como na propagação da ideia de
pacificação social e ampliação de repertório das famílias.

276
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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mediação em contextos de disputa.

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mediação. Disponível em <http://www.fernandatartuce.com.br/artigos da
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

POSSATO, Alex. O que é constelação sistêmica? 2008. Disponível em:


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STORCH, Sami. Direito Sistêmico: uma luz na solução de conflitos. Disponível


em https://www.conjur.com.br/2018-jun-20/sami-storch-direito-sistemico-euma-luz-
solucao-conflitos. Acesso em ZANFERDINI, Flávia de Almeida Montingeli.
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NEJ – Eletrônica, vol. 17 – nº 2 – p. 237-253/Mai-Ago 2012.

WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para


Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses. Revista de Processo (RePro).
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278
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER


NO JUDICIÁRIO

GRUPO DE ESTUDOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Fausto Santos Borges – Psicólogo Judiciário – Vara da Infância e Juventude do Foro


VII - Itaquera
Maria de Fátima de Jesus Agostinho Ferreira – Assistente Social Judiciário – Vara
do Foro Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher - Fórum Criminal
da Barra Funda

AUTORES

Celia Pereira de Lemos – Assistente Social Judiciário - Comarca de Santana do


Parnaíba
Claudia Figliagi Sellmann Nazareth - Psicóloga Judiciário - 3ª Vara da Comarca de
Embu das Artes
Estevam Colacicco Holpert – Psicólogo Judiciário – Vara da Infância e Juventude do
Foro Regional VII - Itaquera
Elaine Cristina Major Pavanelo – Assistente Social Judiciário – Foro das Varas
Especiais da Infância e da Juventude
Fernanda Caldas de Azevedo – Assistente Social Judiciário – Foro das Varas
Especiais da Infância e da Juventude
Lilian Flavia Tavares Duarte – Psicóloga Judiciário – Vara da Infância e Juventude
da Comarca de Botucatu
Lilian Magda de Macedo – Psicóloga Judiciário – Vara da Infância e Juventude,
Família e Sucessões – Foro Regional – XI - Pinheiros
Maria Cristina Marques Ribeiro – Psicóloga Judiciário – 3ª Vara Comarca de
Ribeirão Pires
Maria Emilia Lucas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santos
Melina Barbosa Rubira – Assistente Social Judiciário – 2ª Vara Criminal da Comarca
de São Carlos
Rosangela Rinaldi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santos
Vanessa Ferreira Lopes – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e da
Juventude – Foro Regional VII - Itaquera

280
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras,


o que importa é modificá-lo.
Karl Marx

INTRODUÇÃO

No ano de 2018, o Grupo de Estudos Violência Doméstica e Familiar


estudou o tema violência institucional contra a mulher no Judiciário, prioritariamente
pela relevância da questão no cotidiano profissional nas diversas Varas.
A partir de estudos psicossociais realizados junto aos processos e
inquéritos policiais das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, das
Varas de Família e Sucessões, das Varas de Infância e Juventude, nas Varas das
Comarcas do interior do Estado de São Paulo (nas quais algumas são únicas e
todas cumulativas) de acordo com relatos das pessoas atendidas, identificamos a
existência deste tipo de violência em suas variadas expressões.
Dessa forma, ao longo deste ano, estabelecemos rodas de conversa em
que trocamos experiências a partir das práticas profissionais como assistentes
sociais e psicólogos, discutimos a realidade profissional e os desafios vivenciados
levando em conta as condições de trabalho.
Os métodos utilizados no decorrer deste ano foram: leitura, discussão de
textos, troca de experiências e convidamos a psicóloga Isabel Cristina Gonçalves
Bernardes para abordar o artigo que apresentou em Congresso, a dissertação de
mestrado que aborda o assunto e a vivência com o tema de forma rotineira no
Núcleo Especial de Direito da Mulher e de Vítima de Violência (NUDEM) da
Defensoria Pública de São Paulo.
Deparamo-nos com a escassez de bibliografia e acreditamos que, de
modo geral, uma justificativa possível de ser considerada é a dificuldade de criticar,
por vezes solitariamente, as questões que se colocam no interior das instituições,
considerando a relação de trabalho uma relação eminentemente política.
A violência institucional é mais presente do que prevíamos inicialmente
identificar, pelo fato das expressões da violência em si serem atendidas por diversas
instituições tornando-se essa realidade reproduzida incessantemente, seja em Vara
da Infância e Juventude, Família e Sucessões, Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher, Criminal, Vara Especial da Infância e Juventude, permeando os Conselhos
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de Direito, as Delegacias, a Defensoria Pública, a Promotoria Pública e os órgãos


competentes no encaminhamento dos fatos e providências a partir da denúncia,
formalização, encaminhamento das ações na sequência dos inquéritos policiais e
processos até o atendimento e acompanhamento das situações apresentadas e
julgadas e, posteriormente, nos locais em que as políticas sociais deveriam ser
efetivadas.
A fim de demonstrar o percurso da pesquisa realizada neste ano e ao
mesmo tempo apontar questões relevantes já incorporadas as lutas sociais e
vislumbrar novos aspectos a serem debruçados, o artigo encontra-se organizado em
três partes.
A primeira abordando a violência de gênero, perpassa os tipos de
violência, conceitua o que o grupo compreendeu como violência institucional contra
as mulheres e alcança historicamente a luta do movimento feminista e os próprios
serviços que dão vida a esse percurso.
Em continuidade, traz no segundo item a crítica ao Judiciário, que como
aparato do capitalismo nessa sociedade, constitui mecanismos que invisibilizam as
dimensões da violência, naturalizando os processos. Ainda aborda teoricamente a
reprodução da violência estrutural, alcançando aspectos da própria violência
institucional.
Por fim, dando voz ao espaço de trabalho técnico no Judiciário, aborda na
terceira e última parte, como assistentes sociais e psicólogos se deparam
cotidianamente com essa questão.
As considerações finais retomam alguns aspectos do texto, apontando as
percepções do estudo anual.

1 - VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Violência é um fenômeno complexo, sócio-histórico e multicausal. É uma


ação determinada por intermédio das relações de força envolvendo todas as classes
sociais e tem como alvo as representações sociais do ser homem ou ser mulher na
sociedade patriarcal, racista, classista e misógina.
Para Chauí (1985), a violência representa a conversão dos diferentes em
desiguais tratando o ser humano não como sujeito, mas como coisa. Quando a fala

282
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

do outro é impedida, ocorre a violência. De acordo com Minayo e Souza (1999), a


violência precisa ser interpretada em suas várias faces, de maneira interligada por
meio de situações em que se expressa, repercute e se reproduz.
Violência de gênero pode ser expressada por homens contra outros
homens, mas o que detectamos cotidianamente e majoritariamente é a opressão dos
homens sobre as mulheres que prejudica o exercício da sua cidadania. Ela ocorre
como uma violação sistemática dos direitos humanos nas dimensões sociais,
políticas, físicas, emocionais e subjetivas na vida pública e privada.
De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra as Mulheres, conhecida como Convenção de Belém do
Pará, entende-se como violência contra a mulher “qualquer ato ou conduta baseada
no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher” (Passos e Sauaia, 2016, p. 143).
A violência de gênero é entendida como ofensa à dignidade humana e
como manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e
mulheres. Na reprodução do patriarcado manifesta-se a lógica estruturada de
dominação masculina, a subalternidade e a invisibilidade das mulheres, inclusive
com as travestis e mulheres transexuais.
O patriarcado é estruturado por uma lógica heterossexista, relacionada à
apropriação masculina sobre o corpo e o modo de ser mulher. A cultura e as
relações patriarcais de gênero são socialmente determinadas e associadas ao
controle do corpo da mulher e da população LGBT, da divisão racial do trabalho e a
violência. (Cisne, 2018, p. 45)

Controle e medo que se combinam para assegurar condições de


exploração, de opressão, violação de direitos, violência e a garantia
da reprodução da propriedade privada, o que demanda a construção
de ideologias que naturalizam os sexos e as relações de
desigualdades, além de suprir ou desvalorizar a dimensão da
diversidade humana.

Por intermédio da construção histórica do feminino, incorpora-se a


desvalorização e subserviência da mulher, legitimando-se essa representação
social. Com a evolução do movimento feminista, abre-se um debate a partir de
reflexões sobre as diferenças socialmente construídas entre homens e mulheres que

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

questiona a inferioridade da mulher em relação ao homem, uma vez que essa é uma
ideia preconceituosa que busca impor uma hierarquia masculina com bases
biológicas.
A violência de gênero não pode ser entendida fora de valores culturais e
históricos. A compreensão deste fenômeno inclui diversas visões, mas partimos de
um pressuposto de que nenhum ser humano tem o direito de submeter o outro a
qualquer comportamento que vise a satisfação própria em detrimento de outra
pessoa, sendo esta postura considerada violência.
Gênero problematiza a tentativa de imposição cultural sobre o que é ser
homem e o que é ser mulher na sociedade e possibilita uma análise crítica sobre o
padrão estabelecido em relação ao comportamento esperado e aceitável para cada
um deles, já que legitima as relações de poder entre ambos.
“A estratégia de fortalecimento de uma perspectiva feminista, mostrou que
a condição de gênero definiu lugares e papéis sociais diferenciados para homens e
mulheres nas formas de sociabilidade” (Mirales, 2013, p. 30).
A autora explica o fenômeno do entrelaçamento a outras formas de
dominação-exploração que:

Reproduz as condições de naturalização e manutenção da violência


contra as mulheres [como forma de controle e sustentação de
poderes, compondo-se às] formas que mantém a divisão social do
trabalho e a apropriação privada dos meios de produção. (MIRALES,
2013, p. 32).

Assim, a violência de gênero é uma violação dos direitos humanos e


acontece em todos os lugares e espaços, e, independentemente da categoria de
análise, as mulheres são as mais atingidas. Nesse sentido, não está restrita ao
âmbito doméstico e familiar, incluindo os serviços públicos da rede de proteção
social, de saúde, segurança pública, jurídica etc.
De acordo com as pesquisas citadas pela autora Martinez (2008, p.2), os
dados obtidos nos últimos anos não revelam a realidade existente, pois os casos de
violência são subnotificados e, na maioria das vezes, não há registros pela
dificuldade de provar os maus-tratos sofridos pelas mulheres e praticados por
funcionários e profissionais dos diversos serviços públicos.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Assistentes sociais, psicólogos e profissionais da área jurídica ao


realizarem os atendimentos, se deparam com esta realidade nas Varas Especiais e
as da Infância e Juventude; Família e Sucessões; Varas Únicas; Varas de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, Ministério Público e Defensoria Pública da
Capital e Estado de São Paulo em que os componentes do Grupo estão inseridos.
Para Velásquez (2006 apud Cisne, 2015) a violência de gênero engloba a
violência doméstica, violência contra a mulher, violência familiar ou intrafamiliar,
violência conjugal, violência sexual, psicológica, patrimonial em que a coerção, a
ameaça, a coação, o abuso, a força, o controle e o poder.
Segundo a autora

Violência de gênero abarca todos os atos mediante os quais se


discrimina, ignora, submete ou subordina as mulheres nos diferentes
aspectos de sua existência. É todo ataque material ou simbólico que
afeta sua liberdade, segurança, intimidade e integridade moral e/ou
física. (VELÀSQUEZ, 2006, apud CISNE, 2015, p. 41).

Os estudos de gênero refletem a complexidade da questão ao longo da


história, a diferença sexual e a desigualdade social existentes entre os sexos. Nesse
sentido, a categoria gênero é incorporada como fundamento da violência contra a
mulher e estabelece um catálogo de direitos abarcando um amplo conceito de
violência doméstica e intrafamiliar bem como, a violência institucional identificada de
várias formas, tais como: maus-tratos por parte dos profissionais, descaso e falta de
atenção, demora excessiva para o atendimento, ausência de privacidade para expor
assuntos delicados, negligência, rispidez, desqualificação, banalização das
necessidades e violação dos direitos, entre outros.
Salientamos, porém, esse cenário não é imutável, sendo possível
repensar a prática profissional, os padrões institucionais e sociais vigentes, combater
a reprodução de preconceitos e assumir uma postura ética no enfrentamento dessa
realidade.

1.1 - BREVES CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A VIOLÊNCIA


INSTITUCIONAL

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Uma das contribuições da psicanálise foi demonstrar, pelo estudo do


inconsciente, que a violência não está fora, mas recalcada. O ato de violência
corresponde a uma ruptura do contrato social, e pode ter diversas origens. Mas a
psicanálise mostra que o ato violento de um indivíduo específico revela um pequeno
aspecto de um fenômeno maior e mais complexo.
De fato, a violência pode tomar muitos aspectos e ser sutil como uma
forma de tratamento ou uma piada. A psicanálise mostra como a linguagem, em
suas sutilezas, é rica em revelar conteúdos inconscientes que originalmente
deveriam permanecer reprimidos (ex: falas machistas, depreciativas contra minorias
sociais ou população em situação de vulnerabilidade social, etc). Pode-se pensar
que a violência institucional se enquadra nesta situação, na medida em que as
instituições, em si, têm o dever de representar e servir à população, mas de forma
discreta (ou nem tanto) reproduzem desigualdades e perpetuam injustiças. O sujeito,
protegido pelo burocracia da instituição, tira proveito da sua função (delegado,
profissional de saúde ou do sistema judiciário, etc.) para dar vazão , ainda que
inconscientemente, a conteúdos racistas, misógenos, elitistas, etc. que pode
conscientemente recusar ou não reconhecer como seus.
Nestas situações, ao ser confrontado, o sujeito geralmente reage com
uma negação. É comum que o preconceito seja projetado no outro. Vivemos em
tempos de polarização das opiniões de deterioração do debate político. O bem de
todos, o diálogo e a auto-crítica têm perdido espaço para o extreminsmo, a
segregação e o isolamento. Neste contexto, o caráter estático das instituições tem
sido campo de exercício constante destas formas de violência sutil, mas
devastadora, na medida em que vitimiza os que mais precisam delas.
Ao mesmo tempo, a solução não é simples. Combater a violência significa
chegar ao cerne das motivações humanas. A própria cultura pode ser entendida
como uma forma de violência, na medida em que molda os seres aos seus próprios
preceitos. Mas é pela própria cultura que se pode coibir abusos e corrigir desvios:
pelo debate, pela educação, pelo diálogo. A vida em sociedade pressupõe renúncia,
dizia Freud (1996), e o mal-estar na cultura é inevitável. O mal-estar de aceitar o
diferente, de se submeter a regras que se sobrepõem a individualidades. Regras e
proibições também são instituições, na medida em que representam e constituem a
estrutura de uma sociedade.

286
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Então, a violência institucional acontece quando estas regras são


distorcidas em virtude do gozo (no sentido lacaniano de um ‘a mais’) individual ou de
pequenos grupos. Neste sentido, a corrupção, o desvio de recursos públicos, o
favorecimento de aliados políticos são também formas de violência institucional. O
maquiamento de contas públicas ou privadas, a exploração da força de trabalho
constituem formas de utilizar instituições, que deveriam representar o bem de todos,
em benefício próprio. Administrações públicas que não têm verbas para educação,
saúde, cultura, esportes e lazer, refletem a perversão do bem público, de uma forma
mais explícita e generalizada. De qualquer forma, tanto no âmbito geral, quanto nas
particularidades das instituições, o combate à violência passa pela reavaliação dos
valores individuais e coletivos, e pelo entendimento necessário de que a própria
existência em sociedade requer que prazeres individuais ou de pequenos grupos
sejam abandonados em função do todo, e que a frustração decorrente seja
transformada em produtos à própria cultura, por meio da arte, esportes, ciência, etc.

1.2 - TIPOS DE VIOLÊNCIA

A Lei Maria da Penha de nº 11.340/2006 em seu artigo 7º aponta formas


de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe
cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe
o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja
a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
287
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite


ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.
Ainda assim, de acordo com a Legislação citada e com o Conselho
Nacional de Justiça, conceitua-se os diversos tipos de violência, como segue:

Violência contra a mulher - é qualquer conduta - ação ou omissão -


de discriminação, agressão ou coerção, ocasionada pelo simples fato
de a vítima ser mulher e que cause dano, morte, constrangimento,
limitação, sofrimento físico, sexual, moral, psicológico, social, político
ou econômico ou perda patrimonial. Essa violência pode acontecer
tanto em espaços públicos como privados.
Violência de gênero - violência sofrida pelo fato de se ser mulher,
sem distinção de raça, classe social, religião, idade ou qualquer outra
condição, produto de um sistema social que subordina o sexo
feminino.
Violência doméstica - quando ocorre em casa, no ambiente
doméstico, ou em uma relação de familiaridade, afetividade ou
coabitação.
Violência familiar - violência que acontece dentro da família, ou seja,
nas relações entre os membros da comunidade familiar, formada por
vínculos de parentesco natural (pai, mãe, filha etc.) ou civil (marido,
sogra, padrasto ou outros), por afinidade (por exemplo, o primo ou tio
do marido) ou afetividade (amigo ou amiga que more na mesma
casa).
Violência institucional - tipo de violência motivada por desigualdades
(de gênero, étnico-raciais, econômicas etc.) predominantes em
diferentes sociedades. Essas desigualdades se formalizam e
institucionalizam nas diferentes organizações privadas e aparelhos
estatais, como também nos diferentes grupos que constituem essas
sociedades.

A partir dos apontamentos nos deteremos na violência institucional contra


as mulheres, que é o nosso objeto de estudo
.

288
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1.3 - VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA AS MULHERES

Consideramos para fins desse artigo, com o recorte estudado, que


violência institucional é toda e qualquer violência cometida por agentes do Estado ou
no interior de espaços em que o Estado é responsável direto, ou seja, é aquela
praticada por ação e/ou omissão nas instituições prestadoras de serviços públicos
que atuam ou deveriam atuar na prevenção, combate, assistência e garantia de
direitos. (Martinez, 2008)
Essa violência é ocasionada pela falta de acesso aos serviços ou pela má
qualidade dos serviços prestados nas mais diversas instituições. Algumas vezes é
naturalizada pela grande maioria, descaracterizada e desta forma, ignorada como
violência por conta do desrespeito, da cultura dominante, das relações desiguais de
poder e abusos cometidos entre quem executa o serviço e o usuário.
Violência Institucional contra as mulheres ocorre por profissionais e
trabalhadores que deveriam proporcionar e garantir uma atenção humanizada,
preventiva e reparadora de danos. As mulheres que vivenciam essa situação e
sofrem com a revitimização, pelo fato de terem que revelar seu sofrimento várias
vezes nos espaços públicos e, assim, reviverem as dores, a sensação de impotência
e até a injustiça a que foram submetidas.
Outro momento que esta violência ocorre é quando nos locais de
atendimento são julgadas pelos diversos funcionários que prestam os serviços, cuja
exposição às experiências vexatórias, humilhantes, de crítica e condenação moral,
as excluem desses recursos. Não só com o julgamento, mas por vezes ainda são
responsabilizadas e culpabilizadas por terem sido expostas a essas diversas
expressões da violência.
Apesar de serem combatidas por Leis, essas intervenções subexistem de
formas veladas como violência ativa, servindo tanto as ações quanto as instituições
com suas práticas burocráticas e discriminatórias que revelam preconceitos, sob a
forma de poder, que não aconteceriam em outros espaços e contextos.
As mulheres vítimas de violência institucional não são respeitadas na sua
dignidade e sofrem uma agressão igual ou pior do que aquela vivida anteriormente.
É necessário, portanto, garantir um atendimento qualificado e humanizado a todas
elas.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outro aspecto a ser observado é que esta questão só pode ser entendida
no contexto das relações desiguais de gênero, como forma de reprodução do
controle do corpo feminino numa sociedade sexista, misógina e patriarcal. As
discriminações cometidas pelos trabalhadores ocorrem e perpassam as questões de
gênero, raça, etnia, classe social e geração.
Conforme Chauí (2006, p. 119 ) a “violência por não ter medida e nem
limites, devasta a natureza, o corpo, o espírito e a sociedade”. Ainda a autora aponta
que, ao ser compreendida como questão social e cultural é considerada “um ato
brutal e antinatural de transgressão e violação da natureza, do direito, da justiça, das
leis, dos costumes, do sagrado, das mulheres e dos mais fracos”. Chauí ( 2006, p.
120).
A autora menciona que a violência representa a brutalidade e as relações
violentas transformam os diferentes em desiguais, desqualificando as vítimas por
intermédio das relações sociais, interpessoais e atravessando as instituições
públicas. Tal prática ao longo do tempo foi tratada como algo normal e tolerável. A
Lei Maria da Penha rompe com a naturalização da violência e, por consequência,
com a obediência à determinação masculina, propondo e reivindicando tratamento
respeitoso e justo às mulheres.
Nesta perspectiva, é importante pensar na situação vivenciada pelas
mulheres encarceradas que por vezes são privadas de seus direitos fundamentais,
em especial, quanto aos direitos sexuais e reprodutivos.
É importante ressaltar que a implantação de instituições especializadas
não elimina a violência institucional contra a mulher, sendo necessário repensar o
papel da mulher enquanto sujeito que pode ser protagonista e cidadã, exercendo
pressão e cobrando ações do poder público no efetivo combate à violência que lhe é
imposta.

1.4 - SERVIÇOS E MOVIMENTO FEMINISTA NA LUTA POR ESTA DEMANDA

O movimento feminista no século XX provocou uma revolução nas


relações sociais entre os gêneros, sendo importante analisá-lo na perspectiva sócio-
histórica. No contexto brasileiro, destacam-se dois períodos: o final do século XIX
até 1932 e o período pós-1968.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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No primeiro período, ainda conservador, não se questiona a opressão


sofrida pelas mulheres, cujo foco era o movimento sufragista. Numa etapa posterior,
o feminismo se amplia e reúne mulheres não só intelectuais, mas das classes
operárias que questionam a dominação masculina e defendem o direito à educação,
entre outros. Durante a ditadura Vargas, ocorreu uma retração que se estendeu até
o início dos anos 1970, mas não significou o abandono das pautas feministas.
Na década de 1970, mesmo com as restrições e violações de direitos, o
feminismo tomou novos contornos no Brasil e se expandiu pelo mundo, sendo que
em 1975 foi decretado o “Ano Internacional da Mulher”, pela Organização das
Nações Unidas (ONU).
O movimento feminista participou e contribuiu para o processo brasileiro
de redemocratização. A partir da década de 1980, surgiu também o feminismo
acadêmico apoiado pelas universidade, com a existência de núcleos de pesquisa em
estudos da mulher. Outra conquista ocorreu em 1980 com a implantação do
Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e em 1985, com a
criação das primeiras delegacias de defesa das mulheres. Foram avanços
importantes, mas que não são suficientes no enfrentamento da violência contra a
mulher.
O debate proporcionado pelo feminismo trouxe à tona a realidade
existente, deixando claro que as mulheres sofrem cotidianamente com o fenômeno
da violência doméstica no espaço privado e público atingindo diferentes classes
sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridade ou raças.
Na década de 1990, verificou-se o surgimento de muitas organizações
voltadas ao combate da violência doméstica, inclusive de educação popular para o
direito. Nessa perspectiva, surgiu no Chile, Peru e Argentina, o curso de capacitação
legal de mulheres. Essa ideia foi trazida para o Brasil pelo grupo Themis de
assessoria jurídica, de Porto Alegre e pela União de Mulheres de São Paulo por
meio do curso de Promotoras Legais Populares.
No caso das Promotoras Legais Populares de São Paulo, houve uma
manifestação durante a gestão do presidente do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, Desembargador Sergio Augusto Nigro Conceição, gestão 2002/2004,
reivindicando a criação de um Juizado Especial da Violência Doméstica, antes da
criação da Lei Maria da Penha, tendo em vista a urgência dessa demanda e a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

necessidade de um atendimento especializado e qualificado para as mulheres


vítimas de violência. Essa foi uma iniciativa que demonstra a força da mobilização e
a resistência popular.
As edições dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (2004 –
2007, 2008 – 2011, 2012 – 2015), criaram ações e metas para o desenvolvimento de
um sistema nacional de dados, mas não foram capazes de mostrar a dimensão da
violência contra a Mulher. Não existem estatísticas ou dados que mostrem a
magnitude desta questão.
O Estado brasileiro tem um papel a cumprir no enfrentamento da violência
contra as Mulheres com base em quatro eixos/áreas estruturantes, sendo que o
primeiro que é a Implementação da Lei Maria da Penha e o Fortalecimento dos
Serviços Especializados de Atendimento, eixo que se encontra extremamente
comprometido por conta da política de governo que retira direitos, exclui Ministério,
Secretarias, além de serviços diretos que prestam atendimentos essenciais às
mulheres vítimas de violência.
De acordo com Pasinato e Blay (2018), a Lei Maria da Penha tem sido:

Ameaçada por projetos legislativos que pretendem modificá-la com o


argumento de que é ineficaz diante do crescimento de casos de
violência doméstica e familiar. Existem questionamentos em relação
à Lei do Feminicídio, mas não temos informações para saber se os
homicídios de mulheres estão sendo corretamente enquadrados de
acordo com o tipo penal [...]precisamos saber se as mortes violentas
de mulheres estão sendo corretamente enquadradas de acordo com
o tipo penal [...] precisamos refletir sobre as mortes violentas
praticadas por razão de gênero.

2 - VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL NO JUDICIÁRIO

2.1 – O JUDICIÁRIO A PARTIR DE UMA VISÃO CRÍTICA

Da consideração de que não há como produzir algo que gira em torno do


Judiciário sem compreendê-lo a partir da sociedade que ele faz parte – Capitalista –
debruçamo-nos sobre este item. Ou seja, refletir criticamente sobre o espaço do
Direito no Modo de Produção Capitalista colabora na busca pelo rompimento a partir

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de estratégias que possam ser traçadas coletivamente e neste coletivo, apontamos


as (os) assistentes sociais e as (os) psicólogos do Judiciário.
Para tanto, perpassamos a relação do Direito com o Estado
compreendendo a Justiça como um dos elementos da totalidade da sociedade do
capital. Marx aponta que o Direito é uma forma de dominação de classe, com
mandamentos reafirmados pelo Estado, permitindo-nos pensar que uma sociedade
verdadeiramente humana não apontará a necessidade do Direito como força externa
e coercitiva que serve para constranger o indivíduo. Portanto, questionamos como
ter equalizações entre relações desiguais, o que reafirma a própria crítica ao
conceito de justiça no Capitalismo. E este é o ponto de partida.
Sartori (2010) aponta que o Direito surge como medição quando a
regulamentação dos conflitos sociais não é mais possível sem um estrato de
especialistas que se encontre - pelo menos na aparência – acima das classes
sociais e da sociedade.
Assim o Direito se coloca como aparato essencial aos conflitos políticos
que se voltam para o controle da sociedade burguesa e a Justiça colabora na
materialização desse contexto considerando que as normas jurídicas se organizam
para e pela sociedade capitalista.
Pensar o surgimento do Direito na sociedade Capitalista requer
compreender que a fonte dos direitos individuais está na “livre” relação do sujeito e
seus bens com o mercado, onde a força de trabalho se apresenta como trabalhador
(a) assalariado (a), podendo levar à confusão entre sujeitos e mercadorias. Sendo o
fetichismo jurídico o fetichismo da mercadoria, quanto mais sofisticado o Direito,
mais fetichizada está a relação do homem e mais distante fica a sua libertação.
O Direito em sua configuração moderna surge para assegurar a
sociedade de mercado e seus pilares como troca, liberdade econômica, relações de
trabalho, exploração de mais valia. Pachukanis define o Direito como uma relação
social de troca de mercadorias, com interesses sempre privados, permeada pela
forma jurídica que se expande para as demais formas sociais. Ou seja, Bottomore
(2001, p. 27) aponta que “a estrutura econômica da sociedade condiciona a
existência e as formas do Estado e da consciência social (superestrutura)”.
Na mesma direção, Borgianni (2013, p. 416), a partir de Lukács,
retoma as teologias primárias e secundárias conforme o lugar que ocupam em meio

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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à totalidade social. Resumidamente, para fins analíticos tendo em vista que estas
não se segregam, o trabalho é uma posição teleológica primária de interação dos
homens com a natureza para produzir os meios de sua subsistência a partir dos
instrumentos e técnicas. Já as secundárias visam agir sobre um grupo de homens, a
sociedade, um coletivo e isso pode ser na direção de transformação ou manutenção
da ordem. A ação política serve como exemplo de transformação, assim como o
próprio Direito que tem um papel importante de reprodução societária, ou seja, na
manutenção da ordem. A autora aponta que é por meio das teologias secundárias
que se criam mediações que se institucionalizam dando “as formas da totalidade
social no universo burguês” (Borgianni, 2013, p. 417).
Salientamos assim que as formas de consciência trazem relação de
determinação econômica e política. E o Estado, como expressão da sociedade
política, colabora na representação das relações de produção postas nesta
sociedade que em conjunto constituiu a estrutura econômica (Gruppi, 1996).
Reafirmando Mascaro (2018) aponta que o Estado é forma política do Capital e é
forma social que materialmente estrutura a acumulação do Capital a partir das suas
regulamentações legais.
Gruppi (1996) aborda o quanto as leis que declaram que todos são iguais
juridicamente colabora para separar a vida econômica do homem (como ele se
insere nas relações de produção) da sua figura jurídica. A igualdade forjada cinde a
unidade homem – trabalho, homem – lei. Borgianni (2013) em conformidade aborda
a aparência do Direito como algo acima dos interesses antagônicos das classes
sociais tendo o Capitalismo colaborado para que surjam especialistas e para que o
Judiciário assuma a figura de autonomia relativa, que acompanham o próprio
desenvolvimento social.

O que aparece [...] é a característica que o direito e o ordenamento


jurídico adquirem, ao longo do desenvolvimento do ser social, de
tornarem-se escoras complexas de uma ordem societária injusta – e
ela mesma reprodutora de desigualdades – fornecendo-lhe uma
aparência de igualdade (BORGIANI, 2013, p. 420).

Pelo mesmo percurso, Pachukanis (1989) compreendia que o Direito se


baseia na individualidade, na igualdade e na equivalência abstrata das partes legais.
Abstratas, não reais. O que cumpre um papel fundamental na construção de uma
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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aparência fetichizada ou até reificada de relações de desigualdade que não podem


aparecer enquanto tais sendo omitidas, mas reproduzidas, pelas instituições - e
consciências, pois são sujeitos sociais que se encontram nas instituições - que
compõem esta sociedade.
Dessa forma, as instituições que sustentam o Direito nessa sociedade
fazem parte dos pilares que permitem a sua própria existência.
Marx e Engels (2007, p. 74) sinalizam que
Sendo o Estado [...] a forma pela qual os indivíduos de uma classe
dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume
toda a sociedade civil [-burguesa] de uma época, conclui-se que
todas as instituições comuns passam pela mediação do Estado e
recebem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei repousa na
vontade e, mais ainda, em uma vontade livre, destacada de sua base
concreta. Da mesma maneira, o Direito, por sua vez, se reduz à lei.

Assim, todos esses elementos abordados apontam que

O vínculo entre Estado e Direito é uma relação de interdependência,


na qual o primeiro utiliza o segundo como instrumento de sua ação
política, sendo ao mesmo tempo regulado por este (AZEVEDO,
2017, p. 128).

Dessa forma, o Judiciário na sociedade Capitalista vem no engajamento


na manutenção da ordem vigente baseando-se em respostas mínimas às
contradições sociais, que, inseridas no contexto de crise do capitalismo, em que os
sujeitos acreditam que se vivem “problemas individuais”, quando estes na realidade
são reflexo das relações sociais estabelecidas, gera[ndo], entre outros aspectos, a
despolitização de classe. (Azevedo, 2017, p. 123-134).
E isso traz consequências para a vida daqueles atendidos por este
espaço, pois estão sujeitos às categorias dominantes desta sociedade, reproduzindo
inclusive o próprio Judiciário toda a violência (a partir de diversas mediações) pela
qual lutamos contra.
Relevante considerar que o Direito compreendido como processo social
permeado de contradições se coloca permeável às forças contrárias que buscam
novos ordenamentos sociais se distanciando da manutenção da ordem vigente, e é

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

neste espaço que percebemos as(o) Assistentes Sociais e as(os) Psicólogas (os)
inseridas (os).
A questão que nos desafia é como o Assistentes Sociais e Psicólogos no
espaço do Judiciário podem colaborar com o rompimento dos elementos da
sociedade capitalista que estão intrínsecos a forma que o próprio Tribunal de Justiça
assume nesta sociedade? Ou seja, como não revitimar ou violentar, como
representantes de uma instituição, mulheres que adentram este espaço? O
compromisso ético-político de ambas categorias pode nos deixar pistas, mas
também entender a origem do Direito em uma sociedade de classes é um
compromisso de localizar as forças contraditórias que estão no seu interior. Isso é
ferramenta, estratégia para a luta coletiva.

2.2 – REPRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL

A organização da sociedade capitalista e a formação do Estado, bem


como a função do Direito como já expostas, apontam para complexidades variadas
em suas funções de reprodução por meio das instituições que compõem a
particularidade de cada momento histórico, de cada nação e sua dinâmica política.
Hábitos, tradições, comportamentos humanos, subjetividades são construídas ao
longo do tempo no interior de instituições que possibilitam a reprodução das relações
sociais hegemônicas e dominantes, desde a primeira instância de socialização, a
família, passando pela escola, até as organizações de trabalho.
Uma Instituição pode ser definida como um conjunto de normas que
regem a padronização de um determinado hábito na sociedade e que garante sua
reprodução. Embora não sejam imutáveis, têm história e são mais estáveis no tempo
definindo-se por horários, instrumentais, hierarquias e, dentre outros aspectos, por
relações de poder.
A instituição familiar (responsável pela socialização primária em nossa
sociedade) é compreendida, assim, como a instituição da afetividade, da
sexualidade, da divisão do trabalho, das hierarquias de gênero e geração.
Nela própria, como já apontado neste artigo, ocorrem variadas tipologias
de violência definidas pela manutenção do ordenamento societário pautado na figura
do homem e no lugar socialmente esperado que as mulheres ocupem. Aqui se
coloca um exemplo de reprodução social institucional. Em uma dimensão macro, o
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

espaço do trabalho no judiciário e sua estruturação representam reproduções da


organização societária e de seu ordenamento e valores definidos a partir da moral
burguesa e capitalista.
A esta estruturação representativa do Estado recorrem mulheres, crianças
e adolescentes vítimas de violência, sendo a função de seus profissionais, na ordem
do discurso, a restituição de direitos humanos violados, em especial na definição de
uma justiça tal como postulada na Constituição Federal de 1988.
Como espaço formal designado ideologicamente para se restituir direitos
humanos violados, o Judiciário, igualmente é marcado pela reprodução social de
violências variadas que perpassam todo o ordenamento social na manutenção de
sua estruturação capitalista em suas diferentes fases.
Martin-Baró (1996) entende que a violência é um fenômeno de múltiplas
formas de expressões, mas que possui peculiaridades sendo a primeira delas o fato
de, independentemente de se tratar de atos agressivos ou da coerção, e de onde
aconteça, sempre estar relacionada à estrutura social.
Para o autor, o que estrutura o ato como agressivo não é o uso da força
física, mas sim a opressão, a submissão que condiciona e o fato de possuir um
objetivo, uma finalidade a ser alcançada, a qual sempre implicará em prejuízo para
um dos lados, o lado agredido, vitimizado, oprimido (Martín-Baró, 1996).
Somada a estas reflexões é fundamental enfatizarmos nesse ponto, outra
dimensão diretamente relacionada à violência: sua finalidade não se refere apenas
ao homem-corpóreo, como aponta Vasquez (1990), mas também à consciência do
homem.

A ação violenta como tal é a ação física que se exerce sobre


indivíduos concretos, dotados de consciência e corpo (...) o corpo é o
objeto direto e primeiro da violência, mesmo que esta, a rigor, não se
dirija em última instância ao homem como ser meramente natural, e
sim como ser social e consciente. A violência visa dobrar a
consciência, obter seu reconhecimento (...) seu verdadeiro objeto
não é o homem como ser natural, físico, como ser corpóreo, mas sim
como ser humano e consciente. (VASQUEZ,1990, p. 379-80).

E prossegue o filósofo,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Uma vez esquecida a raiz objetiva, econômico-social, de classe, da


violência, o caminho fica livre para que a atenção se centralize na
própria violência, e não no sistema que a engendra necessariamente.
(...) Perde-se de vista que essa violência, que aparece claramente na
superfície dos fatos e que é vivida diretamente, é a expressão de
uma violência mais profunda: a exploração do homem pelo homem, a
violência econômica a serviço da qual aquela está. (VASQUEZ,
1990, p. 395).

A partir dessas considerações, destaca-se a necessidade de um fazer


profissional crítico no interior dos equipamentos do Estado, dentre eles o Judiciário,
pressupondo-se reflexões constantes sobre sua ação cotidiana, além de
engajamento social que possibilite a busca por autonomia dos sujeitos, sempre na
direção de sua emancipação.
Assim, destacamos as considerações de Martín-Baró (1996, p. 18) quanto
ao fazer Psicológico, mas que podemos estender ao fazer do Serviço Social junto
aos usuários do serviço público.

Propõe-se como horizonte do seu fazer a conscientização (...) o


processo mesmo de conscientização supõe abandonar a mecânica
reprodutora das relações de dominação-submissão, visto que só
pode ser realizado através do diálogo. Em última instância, o
processo dialético que permite ao indivíduo encontrar-se e assumir-
se como pessoa supõe uma mudança radical das relações sociais,
em que não existam opressores nem oprimidos, e isto diz respeito
tanto à psicoterapia quanto à educação escolar, ao processo de
produção em uma fábrica, ou ao trabalho cotidiano em uma
instituição de serviço.(MARTIN-BARÓ, 1996, p. 18).

A conscientização, por sua vez, não consiste em uma simples mudança


de opinião sobre a realidade, em uma mudança da subjetividade individual que deixe
intacta a situação objetiva; a conscientização supõe uma mudança das pessoas no
processo de relação com o meio ambiente e, sobretudo, com os demais.
Não há saber verdadeiro que não seja vinculado com um saber
transformador sobre a realidade, mas não há saber transformador da realidade que
não envolva uma mudança de relações entre os seres humanos.
Desta forma, a conscientização da reprodução da violência institucional
praticada pelos trabalhadores no interior do Judiciário que implica o processo

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

constante de reflexão e formação crítica permanente, isso porque, conforme


apontado por Passos e Sauaia (2016, p. 143):
Uma formação técnica específica deve garantir aos operadores do
direito (e não só a eles) a compreensão das relações de
desigualdade de gênero e das estruturas simbólicas patriarcais na
sociedade brasileira (grifo nosso).

Um exemplo do que foi apontado como reprodução da violência estrutural


pode ser observado em algumas situações que o Judiciário naturaliza a partir da
compreensão burguesa e dominante (que traduz frustradamente a generalização
das situações que adentram o seu espaço) as relações de gênero e quando as
decisões judiciais são baseadas nos pressupostos que organizam a sociedade
capitalista ferindo toda a legislação de proteção aos direitos humanos das mulheres.
Passos e Sauaia (2016, p. 143) também apontam que:

Um dos efeitos simbólicos do veredito judicial pode ser a


consagração da ordem estabelecida, que no caso das relações de
gênero, é a doxa masculina, androcêntrica, heteronormativa,
patriarcal, num processo de legitimação da estrutura da qual é
resultado.

Os movimentos feministas ensejaram denúncias de abusos e violências


aos quais as mulheres eram submetidas em uma sociedade patriarcal, dando
visibilidade às ocorridas no âmbito doméstico e familiar, passando-se a cobrar o seu
enfrentamento pelo Estado. A discussão sobre a criminalização da violência contra
as mulheres passou a ser um objeto de preocupação em acordos e tratados
internacionais, dos quais o Brasil é signatário e as Conferências da ONU no início da
década de 90 reconhecem o direito das mulheres e a sua violação como violação
dos direitos humanos.
Nos documentos da Conferência de 1993, em Viena, na Áustria,
reconheceram-se as mulheres como sujeitos internacionais de direitos, a violência
de gênero, a necessidade de seu enfrentamento e o combate à violência
institucional, principalmente no âmbito judicial. A Convenção Interamericana de
Belém do Pará, em 1994, define de forma importante o conceito de violência contra
a mulher, bem como impõe deveres ao Estado, tais como em seu Art. 7º

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...] abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher


e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal; bem
como agentes públicos ajam de conformidade com essa
obrigação;[...] modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que
respaldem a persistência e a tolerância da violência contra mulher.
(PASSOS e SAUAIA, 2016).

Contudo, no Brasil, somente em 2006, foi criada uma legislação


específica sobre o tema, após condenação pela Organização dos Estados
Americanos (OEA) por violar a referida Convenção por omissão e negligência quanto
à violência doméstica, em relação a Maria da Penha Fernandes, que nomeia a Lei
11.340/2006. Esta surge com o intuito de criminalizar a violência doméstica e familiar
criando mecanismos protetivos e processuais adequados às mulheres em situação
de violência, dando visibilidade às relações de desigualdade de gênero e à violência
simbólica, despercebidas e/ou toleradas pela sociedade patriarcal.
A Lei Maria da Penha vem para afastar o caráter conciliatório e
despenalizador da Lei 9.099/95 dos Juizados Especiais, admitindo o potencial
ofensivo dos crimes de violência doméstica que podem evoluir das agressões
verbais, psicológicas, patrimoniais, morais físicas, até o feminicídio.
Ainda que a Lei Maria da Penha traga em seu ordenamento jurídico um
sistema de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a sua
entrada em vigor não representa de imediato uma mudança da realidade social e em
suas práticas cotidianas e suas instituições. Isto porque os profissionais operadores
da norma estão inseridos no mesmo campo social patriarcal que produz e reproduz
o modelo androcêntrico em suas práticas cotidianas e no sistema jurisdicional.
Por este motivo, os profissionais do Poder Judiciário, entre outros
envolvidos, precisam de capacitação e reflexão permanente para não reproduzir o
modelo androcêntrico e patriarcal, que se perpetua em um ciclo de dominação
simbólica, de modo a se enfrentar e tratar adequadamente, as questões de gênero e
violência familiar e doméstica contra as mulheres.

3 - ATUAÇÃO DOS(AS) ASSISTENTES SOCIAIS E


PSICÓLOGOS(AS) DIANTE DAS VIOLÊNCIAS INSTITUCIONAIS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Notadamente, muitas instituições tendem a perpetuar padrões de


comportamento e valores do cotidiano de uma sociedade, os quais podem ser
identificados como sendo patriarcais e autoritários, haja vista naturalizarem a
violência, não cedendo espaço para que haja um debate acerca dessas questões.
Conforme apontado por Martinez (2008, p. 6), tem-se que:

Muitas vezes não oferecemos ao debate a convivência relacional, a


discussão da Nossa Herança Escravista, essa herança se manifesta
por meio do coronelismo (ainda presente na nossa sociedade) e do
patriarcalismo (que sustenta e justifica a violência de gênero). Mas
um traço que eu acredito ser mais pertinente à discussão da
violência Institucional é o Ranço Autoritário que permeia toda a trama
das relações sociais, desde a vida privada até a vida pública, dentro
e fora das instituições dos Estados nacionais.

Deste modo, tais características acabam por legitimar a violência cometida


contra a mulher, que é perpetuada por meio das instituições, dentre elas, o
Judiciário, conforme salienta Bernardes (2014, p.4 ):

A violência simbólica sofrida pelas mulheres nessa situação com


base em expectativas de comportamento fundadas em conceitos
normalizadores de mulher estruturados e estruturantes das
sociedades patriarcais, colocam-nas novamente em situação de
violência e negligência, desta vez, violência institucional de gênero.
Violência institucional pelo fato de serem mulheres.

Estes comportamentos naturalizados além de acarretarem a ausência de


discussão, também trazem como consequência distorções em relação aos direitos
humanos, educação e equidade de gênero:

No que toca à questão de Educação em Direitos Humanos, é preciso


assumir que, por mais alardeados que sejam pelo senso comum os
tímidos avanços em direção à equidade de gênero, atualmente, as
pessoas ainda estão imersas em uma sociedade patriarcal e
heteronormativa, de modo que a reprodução de práticas sexistas
tanto pelas pessoas quanto pelas instituições – formadas afinal de
contas, por pessoas – é o caminho mais fácil, no sentido de não
envolver reflexão, tampouco (auto)crítica. (BERNARDES, 2014,
p.11).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Nessa perspectiva, é possível imaginar que os profissionais que compõe


essas instituições também trazem para sua prática cotidiana características e
valores que invariavelmente tendem a perpetuar este ciclo de dominação simbólica e
de violência, de modo a estabelecer relações de poder frente aqueles que atendem.
Consoante aponta Guilhon, 1978, apud Guirrado, 1986, p. 151.

A instituição como conjunto de práticas sociais que se reproduzem e


se legitimam, num exercício incessante de poder; um poder entre
agentes, dos agentes com a clientela; um poder na apropriação de
um certo tipo de relação como própria, como característica de uma
determinada instituição.

Neste mesmo contexto, Bernardes (2014) ressalta que os operadores do


direito, em sua formação, carecem de estudos ou de disciplinas que tratem de
questões relacionadas ao gênero ou aos direitos humanos das mulheres. Observa,
ainda, o descaso governamental no tange à disponibilidade de informações sobre
como prevenir e combater a violência, aos investimentos nos serviços
especializados que atendem a mulher vitimizada, à disponibilização de
infraestrutura, recursos e profissionais capacitados para o atendimento e
encaminhamento dessas demandas.
Ademais, a autora destaca que a violência institucional contra a mulher
perpassa também todas as instâncias pelas quais ela transita em busca de seus
direitos, principalmente em decorrência da falta de qualificação e da inabilidade dos
profissionais para lidar com tais problemáticas. Outrossim, é discutido o fato de que:

O sentimento de competência advém da instrumentalização e


familiarização do sujeito com o trabalho a ser realizado, de modo que
é possível refletir sobre a possibilidade de que parte da angústia do
trabalho de policiais e operadores/as do Direito e da negligência com
relação às questões de violência de gênero advém da falta de
conhecimento a respeito do assunto e do sentimento de impotência
para resolvê-las quando tal demanda surge. (BERNARDES, 2014,
p.15).

E complementa seu raciocínio ao afirmar que:

302
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Diante dessa inabilidade e dessa carga afetiva e emocional sobre


as/os trabalhadoras/es das delegacias, a pesquisa indica que muitas
vezes a fala dos/as policiais se voltam contra a própria denunciante e
que o senso comum a respeito das relações entre homens e
mulheres e das soluções adequadas aos problemas apresentados
pelas mulheres passa a ser o referencial desses profissionais para
prosseguir com o atendimento desse público. (BERNARDES, 2014,
p.15).

Todo este contexto supramencionado leva a uma revitimização das


mulheres que buscam proteção e, ao mesmo tempo, prevalência de seus direitos.
Esta conjuntura gera nova violência, mas, desta vez, perpetrada por aqueles que
efetivamente deveriam protegê-las, isto é, transformam-nas de vítimas a culpadas,
com profundas consequências sociais e psicológicas que impactam indelevelmente,
de forma negativa, as suas vidas.
Destarte, a despeito de os profissionais psicólogos e assistentes sociais
terem como norte – em sua formação e em suas práticas de trabalho – o processo
de interiorização e conscientização humana com vistas à transformação individual e
social e a promoção da equidade e dos direitos humanos, ainda assim, não se
encontram imunes a se tornarem agentes de violência institucional ou mesmo de
sofrê-la. Isto se dá pois nascem e convivem em meio da cultura dominante, isto é,
são partes integrantes do mundo contemporâneo pautado por valores neoliberais
excludentes, individualistas e que reforçam as diferenças e as hierarquias, também
presentes na cultura institucional.
Assim, promover uma transformação da realidade que os cerca, só se faz
possível por meio da adequada e contínua qualificação desses profissionais e da
criação de espaços que permitam uma permanente discussão, oportunizando
observações ampliadas, questionamentos da realidade existente, análise crítica das
práticas cotidianas e posicionamentos coletivos de defesa de direitos.
Em consonância com o pensamento de Passos e Sauaia (2016, p. 69), é
possível constatar que “romper com a violência simbólica dentro de estruturas do
Poder Judiciário é um desafio para o Estado, que só poderá ser alcançado através
da qualificação técnica de seus agentes, sistemática e continuada”.
No entanto, o que se verifica é a progressiva diminuição dos espaços de
estudos, debates e deliberações sobre essa realidade, que permitiriam a estes

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profissionais uma formação continuada e sintonizada com as atuais demandas da


população atendida por eles.
Fávero (2005), em suas pesquisas sobre a atuação de psicólogos e
assistentes sociais, ressalta a existência de grande demanda no que concerne aos
atendimentos, bem como a defasagem do quadro de pessoal e a ausência de
capacitação e de centros de apoio técnico.
Já Lapassade (1986) destaca a importância de haver grupos reflexivos
que possam ajudar os profissionais a refletir sobre – e a reorganizar – suas formas
de atuação na esfera das instituições em que trabalham, proporcionando espaços
em que se possa trocar experiências e metodologias que abarquem as questões
enfrentadas no dia a dia.
Especificamente no que tange ao âmbito institucional do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, os(as) psicólogos e assistentes sociais dos setores
técnicos atuam como parceiros em um trabalho multi e interprofissional. A atividade
desenvolvida é de extrema responsabilidade e envolve casos de alta complexidade,
inclusive com severas violações de direitos por longos períodos de tempo. Esses
profissionais procuram compreender a dinâmica das relações intra e extrafamiliares
dos sujeitos atendidos, a partir de um ponto de vista que englobe aspectos de suas
subjetividades e das expressões da questão social.
Um dos instrumentais técnicos de trabalho que psicólogos(as) e
assistentes sociais têm em comum é “a entrevista” e, no que se refere a esta
ferramenta, é possível concordar com Bleger (2002, p.4), quando este afirma que: “o
instrumento de trabalho do entrevistador é ele mesmo, sua própria personalidade”.
Assim, tal como pontua o autor, verifica-se que estes profissionais trabalham sempre
dissociados, isto é: ao mesmo tempo em que se identificam projetivamente com as
pessoas e as situações que lhes são apresentadas, colocam-se no papel
diferenciado de entrevistador, a fim de que possam garantir um distanciamento
mínimo da circunstância, objetivando detectar, apontar e interpretar o que ocorre
nesse campo em construção.
Desta maneira, atuar na rede de proteção a mulheres (crianças,
adolescentes, adultas e idosas) vítimas de violência, seja em que vertente for,
constitui sempre um trabalho de intenso desgaste emocional, mas também
proporcionador de muita reflexão, se for conduzido de forma adequada. Para tanto,

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faz-se necessário muito estudo, discussão, análise crítica da postura profissional,


síntese dos conteúdos sociais e pessoais complexos que envolvem o fenômeno da
violência de gênero, assim como proposições junto à rede de proteção social para
mudança dessa realidade. Se esse processo de trabalho não for assim conduzido,
corre-se o risco de que estes profissionais tornem-se agentes de violência
institucional.
É por intermédio dos estudos e dos laudos sociais e psicológicos, com a
emissão de pareceres técnicos, que é possível subsidiar Juízes e Juízas em suas
decisões. Logo, é de fundamental importância que esta prática profissional esteja
embasada com fundamentações teóricas pertinentes, encaminhamentos operativos,
direção ética e comprometida com a viabilização e garantia de direitos humanos
fundamentais. Pois somente desta forma será factível descortinar situações
complexas no Sistema de Justiça e, quiçá, minimizar as violências sofridas.
O que se constata é que, no interior da rede de proteção, o Judiciário
figura como a última instituição a acolher as vítimas mulheres em sua busca por
Justiça, por reparação pessoal e social em razão da violência sofrida. Nesse longo
caminho percorrido – Delegacia, Hospital, Instituto Médico Legal, Conselho Tutelar,
Conselho do Idoso, Ambulatório de Infectologia, Serviços de Atendimento
Psicológico, Psiquiátrico e Social de longa duração (não necessariamente nessa
ordem) –, a revitimização institucional pode ocorrer por parte de dois atores que
nestes espaços atuam, quais sejam: o trabalhador e o Estado. No caso do
trabalhador, é possível que ele não seja bem qualificado para atender a essa
demanda por falta de afinidade pessoal, por ausência de capacitação profissional ou
pelo processo de alienação em decorrência do sofrimento psíquico, Em relação ao
Estado, por investir poucos recursos econômicos, debilitando os serviços, seja no
que se refere à burocracia, às gestões hierarquizadas e autoritárias, ou ainda, à
contratação reduzida de profissionais, às precárias instalações de atendimento, às
ínfimas qualificações permanentes, dentre outras deficiências existentes.
Assim, quando a mulher vítima de violência chega para uma avaliação
psicossocial no Setor Técnico do Judiciário, é comum que os profissionais se
depararem com uma pessoa muito fragilizada, já destituída muitas vezes de
qualquer esperança de proteção e de Justiça. Em casos extremos, ela se cala por
completo, enquanto apenas se ouve de seus familiares protetores uma série imensa

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de maus-tratos psicológicos sofridos, em múltiplas revitimizações nessa


peregrinação em busca de atendimento.
Para se compreender como a rede de proteção social também pode atuar
como instrumento de revitimização, é necessário voltar o olhar para o Estado e para
a sociedade na qual está inserida. Atualmente, vive-se em um sistema econômico
capitalista, globalizado, legitimado por um Estado que mantém a ideologia da classe
dominante, fundamentada na propriedade privada, na sociedade de classes e no
patriarcado. Em suma, tem-se, nos dias de hoje, uma sociedade hierarquizada,
baseada em relações desiguais de poder, que apenas conquistou direitos – no que
se refere ao mundo do trabalho e ao mundo das relações de gênero – a partir de
muita luta, a fim de fazer valer as reivindicações dos trabalhadores explorados e as
demandas das mulheres.
Percebe-se que o mau funcionamento da rede de proteção às mulheres
vítimas de violências – e nela se inclui o Judiciário – deve-se às profundas
contradições entre um sistema econômico e social injusto e a busca pela igualdade
econômica e social em todo o mundo.
Portanto, parece que o caminho a ser percorrido, no sentido de procura
por melhores serviços de referência às mulheres vítimas de violência, passa
principalmente pelo exercício da cidadania, pelo protagonismo do movimento de
mulheres, pela constante luta política de reivindicação de igualdade social e de
gênero, bem como pela qualificação teórica continuada e pela participação em
grupos reflexivos dos profissionais atuantes nessa rede de proteção.
É possível observar que alguns fatores podem agravar ou serem
indicativos de possibilidades para que ocorra a violência institucional, são eles:
 A falta de conhecimento e de preparo no que concerne aos
profissionais envolvidos no atendimento às mulheres;
 Atendimentos discriminatórios, que reforçam o preconceito ao invés de
combatê-lo;
 Revitimização, com atendimento negligente ou fazendo com que as
vítimas exponham por diversas vezes a situação;
 Questões morais, religiosas e pessoais, as quais interferem
negativamente no atendimento profissional, enquanto as vítimas esperam que haja

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respeito, sensibilidade, entendimento e compreensão acerca das situações


vivenciadas;
 Não naturalizar a violência e os seus ciclos, bem como o pacto de
silêncio vivido pelos sujeitos envolvidos na violência.

É necessário e demasiado importante que os profissionais ampliem o seu


conhecimento por intermédio de capacitação, na perspectiva de educação
permanente, de modo a entender que a realidade é dinâmica, complexa,
contraditória e exige uma leitura crítica e, por conseguinte, uma adequada análise de
conjuntura. Assim, posteriormente, será possível ter condições de assessorar
apropriadamente os operadores do direito, inclusive alertando-os e mostrando-lhes
de que forma se acaba por cometer violência institucional na rotina do Sistema de
Justiça.
Faz-se necessário que, na realização das avaliações psicossociais, os
profissionais das diversas Varas levem em consideração os seguintes pontos:
 As categorias de gênero, violência de gênero e contra as mulheres,
racismo/etnia e classe social, a fim de melhor interpretar as características,
demandas e realidades apresentadas, objetivando analisar as possibilidades de
acesso a direitos, para que as mulheres tenham a oportunidade de romper com as
violências, mas respeitando o tempo de cada pessoa;
 Compreender a dinâmica das relações sociais e suas especificidades
decorrentes da desigualdade de poder entre as partes, bem como os vínculos de
afeto existentes entre as pessoas envolvidas;
 Reconhecer a responsabilidade atribuída somente à mulher no tocante
aos cuidados com a sua prole e também a culpabilização imposta a ela em casos de
maus-tratos e negligência, muitas vezes, sem a contextualização necessária da sua
realidade;
 Articulação entre os diferentes espaços e serviços que compõem a
rede de proteção e de atendimento à mulher em situação de violência;
 Compreender a complexidade de questões que envolvem a
dependência emocional e financeira nas relações familiares.
Por fim, as competências e atribuições de psicólogos(as) e de assistentes
sociais precisam necessariamente estar vinculadas aos processos sócio-históricos,

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bem como considerar o conhecimento teórico-metodológico e compromissos ético-


políticos. Ademais, deve atentar para a capacitação técnico-operacional, de maneira
a atender o que Iamamoto (2002) denomina de dupla dimensão do trabalho, com
compromissos que devem considerar:

De um lado, as condições macrossocietárias que estabelecem o


terreno sócio-histórico em que se exerce a profissão, seus limites e
possibilidades; e, de outro lado, as respostas técnico-profissionais e
ético-políticas dos agentes profissionais nesse contexto, que
traduzem como esses limites e possibilidades são analisados,
apropriados e projetados pelos assistentes sociais. (IAMAMOTO,
2002, p. 19).

O que amplia a responsabilidade destes profissionais diante do espaço


sócio-ocupacional em que estão inseridos, visto que o seu posicionamento dará
sustentação ao Sistema de Justiça, podendo elucidar situações no cotidiano
profissional. E que assim seja, que estas intervenções e ações “alavanquem
transformações da realidade” (CFESS, 2014, p. 48).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após um ano de reflexão crítica a respeito do tema da violência


institucional contra as mulheres no Judiciário e na rede de proteção social,
percebemos que o fenômeno da violência de gênero e a sua possibilidade de
revitimização institucional se inscreve na própria dinâmica contraditória de uma
sociedade neoliberal, de economia capitalista e ideologia patriarcal, sexista, racista e
misógena, cujos movimentos sociais de mulheres, ao longo de décadas de luta,
conquistaram uma legislação avançada de proteção às mulheres que pressupõe
mecanismos de responsabilização de seus agressores. Mas, essa conquista coletiva
não é suficiente para barrar o preconceito, a discriminação e a naturalização da
violência, que ainda prepondera de maneira significativa.
A violência institucional contra as mulheres vítimas, que também ocorre
no Judiciário, parece ser uma forma de resistência social à efetiva implantação da
Lei Maria da Penha. No momento atual, pode-se mesmo dizer que há ainda setores
organizados da sociedade que lutam por sua extinção.
Dessa forma, um dos caminhos para o combate à violência institucional
contra as mulheres no Judiciário implica em educação popular de direitos à
população, na ampliação da luta por igualdade social e pela implementação e
fortalecimento da Lei Maria da Penha e dos serviços especializados ao atendimento
das mulheres vítimas de violência de gênero, bem como na qualificação dos
profissionais que atendem essa demanda.
Quanto a atuação do Serviço Social e da Psicologia compreendemos a
necessidade e a importância da educação permanente, atualização e ampliação de
conhecimentos que subsidiem e preparem os profissionais para terem percepção,
sensibilidade, empatia, responsabilidade e compromisso ético em suas ações
voltadas à proteção e à garantia de direitos.
É necessário atentar para a complexidade dos casos que chegam no
Judiciário, cuja intervenção profissional exige uma escuta qualificada às mulheres
vítimas de violência, o conhecimento da Lei Maria da Penha e do conceito de
gênero, visando o atendimento qualificado que contribua para a promoção do
protagonismo feminino e o combate à sua revitimização, bem como subsidie os (as)
magistrados(as) para a tomada de decisão e aplicação da Justiça num sentido

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amplo de garantia de direitos. Ao mesmo tempo, é dever profissional apontar as


incongruências e/ou violações institucionais existentes, evitando-se expor a vítima a
situações legais que causem prejuízos iguais ou até maiores do que a violência que
originou o processo.
É imprescindível, portanto, superar o senso comum e levar em
consideração as categorias gênero, violência de gênero contra as mulheres, racismo
e classe social nas avaliações realizadas pelos/as Asisstentes Sociais e
Psicólogos/as Judiciários/as, interpretando criticamente a realidade apresentada e o
contexto no qual vivem e estão submetidas muitas mulheres que necessitam de
acolhimento e fortalecimento pessoal para romperem com os ciclos da violência,
muitas vezes, perpetuado por gerações. Esse é um grande desafio, o qual exige
tempo, compromisso, esforços e a participação da população e dos atores que
compõem o Sistema de Garantia de Direitos.

310
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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313
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

PROCESSO AVALIATIVO PSICOLÓGICO E SOCIAL DOS


PRETENDENTES À ADOÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ARAÇATUBA


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
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COORDENAÇÃO

Amanda Vaz Valeriano Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba


Claudia Lopes Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac

AUTORES:

Cássia Regina De Souza Preto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba


Cíntia Lupifierio Antônio Ramos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac
Fátima Lie Asao Mendes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Valparaíso
Graciela Aparecida Franco Ortiz – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Karina Cristina Auko Veiga – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ilha Solteira
Lianara Carmona Vallego – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guararapes
Márcia Kioko Hiraga – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes
Marise do Nascimento Pinhata – Psicóloga Judiciário – Comarca de Valparaíso
Nair Yayoi Haikawa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pereira Barreto
Regiane Silvério da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O trabalho desenvolvido no grupo de estudos deste ano de 2018 contou


com a participação de Assistentes Sociais e Psicólogas Judiciários da circunscrição
de Andradina – Comarcas de Ilha Solteira e Pereira Barreto, e da circunscrição de
Araçatuba com as Comarcas de Araçatuba, Bilac, Guararapes e Valparaíso,
totalizando doze participantes.
A escolha do tema decorreu de reflexões das equipes técnicas acerca do
processo avaliativo realizado junto aos pretendentes à adoção, que identificaram a
necessidade de aprofundar os estudos sobre esta temática, com vistas a aprimorar a
qualificação técnica das equipes objetivando a realização de um trabalho consistente
que assegure tanto a qualidade da avaliação quanto na colocação de crianças e
adolescentes em adoção e, concomitantemente, compreender pela ótica dos
pretendentes habilitados, as satisfações e insatisfações encontradas em todo o
processo avaliativo, visando melhor atendê-los em suas demandas.
Desta forma, o artigo conta com um estudo bibliográfico sobre a evolução
histórica e legislativa da adoção no Brasil e segue reunindo as normas que dispõem
sobre as atribuições técnicas dos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários
competentes na prática de adoção. Também foi descrito o processo avaliativo dos
pretendentes à habilitação à adoção realizada pelas equipes técnicas.
Na sequência o artigo apresenta a pesquisa realizada por meio de
entrevista com aplicação de questionário com dez casais habilitados com o objetivo
de levantar, sob o olhar dos pretendentes, como foram as avaliações social e
psicológica, se são consideradas importantes e se contribuem para a efetivação da
adoção. Além disso, foi possível avaliar os cursos preparatórios oferecidos nas
comarcas e pontuar os aspectos facilitadores e dificultadores encontrados durante
todo o processo de habilitação.

1 - EVOLUÇÃO HISTÓRICA E LEGISLATIVA

A adoção pode ser caracterizada como uma relação social praticada ao


longo da história do homem, expressando a cultura e os aspectos econômicos e
políticos.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

De acordo com Barros (2014), na antiguidade grega e romana a adoção


era caracterizada por questões religiosas. Era realizada por pessoas que não
possuíam descendência masculina, com o intuito de garantir a continuidade do culto
doméstico (proteção e tranquilidade dos mortos) e evitar a extinção da família. Nesta
relação de adoção o que predominavam eram os interesses dos adotantes.
É possível constatar o quanto a prática da adoção é antiga, até mesmo na
legislação, analisando o Código de Hamurabi (criado no reinado de Hamurabi: 1750
– 1685 A.C.) na Babilônia. Nele encontramos nove artigos (total de 282 artigos),
referindo-se à adoção (BARROS, 2014).
Na Idade Média houve um declínio da prática da adoção, pois a Igreja
concebia a adoção como um instrumento usado para legitimar filhos de
relacionamentos extraconjugais, o que era visto como uma ameaça ao casamento e
à filiação legítima. Os ensinamentos religiosos contribuíram também para que o
homem deixasse de ter medo de não deixar descendentes. Além disso, nesta época
existia um descaso em relação à infância e não se via necessidade de proteger a
criança (BARROS, 2014).
Na era moderna a adoção novamente ganhou força, inclusive com o
surgimento de uma normativa por meio das leis, em que foram definidos os direitos
dos adotados e as condições de adoção.

(...) é na Dinamarca, no ano de 1683, que encontramos a referência


ao instituto da adoção, no Código promulgado por Cristian V. Surge
ainda na Alemanha, no Código Prussiano, conhecido também como
Código de Frederico e no Codex Maximilianus da Bavaria, em 1756.
Por essas leis era indispensável o contrato por escrito, que era
submetido à apreciação do tribunal. Devia apresentar vantagens para
o adotado, estabelecia diferença de idade e a imposição de ter o
adotante cinquenta anos, no mínimo. Incluía direitos sucessórios e o
caráter de irrevogabilidade de adoção (GRANATO, 2006, apud
BARROS, 2014, p.49).

Essa legislação influenciou o Código Napoleônico que foi outro marco


jurídico na legislação sobre adoção na sociedade ocidental, pois foi a base para a
constituição da lei em muitos países europeus. Em 1939, a legitimação adotiva é
tratada na legislação francesa, no decreto lei de 29 de julho de 1939 (BARROS,
2014).

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Ainda segundo Barros (2014), a 1ª Guerra Mundial provocou a incidência


de um expressivo número de crianças órfãs e um grande problema social, por esta
razão assume um caráter mais social e passa a ser vislumbrada como solução para
o bem-estar de crianças sem pais.
A partir daí, no Brasil a concepção de adoção continua se fortalecendo e
ganha mais força ainda em 1990 com o ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente), adquirindo um caráter de garantia de direitos de crianças e
adolescentes.
Podemos observar então que no decorrer da história, conforme a cultura
da época, vem ocorrendo mudanças nas leis e na cultura social, que passa da
intenção de solucionar o problema de pais que não podem ter filhos para a
necessidade de solucionar o problema da criança que tem o direito de ter uma
família.
No entanto, o que ainda acontece, mesmo com toda a mudança nos
valores culturais e legislação no que diz respeito à valorização da criança e do
adolescente, a sociedade ainda vivencia a adoção como uma perspectiva de dar
filhos a quem não os pode gerar (GRANATO, 2006; BARROS, 2014).
De acordo com Barros (2014), a adoção é vista como última alternativa e
ainda há uma supervalorização da maternidade biológica. Pois culturalmente é
imposta à mulher a obrigação de ser mãe e há o fortalecimento do mito do instinto
materno ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho. A maternidade passa a ser
uma realidade subjetiva desejada por muitas mulheres que acreditam ter nascido
essencialmente para serem mães, na crença de que o amor é consanguíneo e
natural.
Mesmo na modernidade onde a mulher passa a desempenhar vários
papéis, a maternidade se configura como algo essencial, dando vida à
representação social de mulher como sinônimo de mãe. Sendo assim, mulheres
portadoras de infertilidade se sentem “incompletas” e “diferentes” (BARROS, 2014).
Diante desta realidade, procuram através da adoção na maioria das
vezes, crianças recém-nascidas e com características semelhantes às dos
adotantes, tentando “fazer de conta” que a filiação é biológica.
Scorsolin‑Comin; Amato; Santos (2006) discriminam duas possibilidades
em relação aos pais adotivos: tentar reproduzir o modelo de família biológica, por

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meio de um processo de identificação com a criança calcado na busca de


semelhanças físicas, apagando a origem do filho adotivo; ou conseguir encontrar
outras soluções para inserir a criança no imaginário parental. Os autores
esclarecem:

Os pais adotivos que aguardam e anseiam pelo filho que vão adotar
também devem adaptar o “espaço” físico e psíquico para sua
chegada. Toda essa preparação constitui o processo de transição
para a parentalidade, que não se encerra com a chegada da criança
ao lar, mas que recobre todo o tempo que antecedeu esse fato – a
preparação dos pais e da família, participação nos cursos de
postulantes à adoção – e também os primeiros meses ou anos da
constituição dessa nova família. (MORELLI; SCORSOLINI-COMIN;
SANTEIRO, 2015, p. 189).

Esta situação se expressou também na legislação. Primeiramente no


Código Civil Brasileiro de 1916 (Lei nº 3.071), em que se estabelecia que só os
maiores de cinquenta anos de idade e sem descendência legítima tinham o direito
de adotar; a adoção era revogável e aos filhos adotivos não eram concedidos
direitos sucessórios quando os adotantes possuíssem filhos biológicos (BARROS,
2014).
Ainda segundo a mesma autora (BARROS, 2014), em 1957, com a Lei nº
3.133, novas diretrizes ao processo de adoção são estabelecidas com o propósito de
incentivar a prática. Reduziu a idade mínima de cinquenta para trinta anos; instituiu
que os casais só podiam adotar após cinco anos de casados; extinguiu a exigência
de o adotante não ter filhos legítimos e diminuiu a diferença entre adotantes e
adotados de dezoito para dezesseis anos de idade.
A Lei nº 4.655 promulgada em 1965 constituiu os fundamentos para a
adoção plena. Esta lei instituiu a irrevogabilidade da legitimação adotiva; dispensou
o prazo de cinco anos de casamento mediante a comprovação da estabilidade da
vida conjugal e da esterilidade de um dos cônjuges e regulamentou a adoção de
crianças acima de sete anos que já estivessem sob a guarda dos adotantes
(BARROS, 2014).
A adoção plena foi instituída com o novo Código de Menores, Lei nº
6.697/1979, revogando a legitimação adotiva e admitindo a adoção simples
regulamentada pelo Código Civil em vigor naquela época.

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Esta nova modalidade de adoção dispunha sobre o rompimento entre o


adotando e sua família biológica com a inclusão definitiva na família substituta;
mantém a irrevogabilidade; concede aos filhos adotivos os mesmos direitos
sucessórios que os filhos biológicos; e a emissão do novo registro de nascimento do
adotando constando a nova filiação e automaticamente o cancelamento do registro
anterior. Com esta equiparação no mundo jurídico, iniciou o processo de
desconstrução da discriminação de direitos vivenciados, histórica e legalmente,
pelos adotandos (GRANATO, 2006).
Este processo sofreu avanços com a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, na qual dispõe em seu art. 227, § 6º: “Os filhos,
havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”
(BRASIL, 1988).
Ainda dentro desta perspectiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA (Lei 8.069/1990) passou a reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos
de direitos e mantidos preferencialmente junto ao convívio familiar biológico, e
excepcionalmente, em família substituta mediante guarda, tutela ou adoção
(BRASIL, 1990).
Após 18 anos da promulgação do ECA, foi criado o Cadastro Nacional de
Adoção pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Atualmente, há 43,8 mil
pretendentes cadastrados e 8,8 mil crianças e adolescentes à espera de uma
família, segundo o site do CNJ (CNJ, 2018).
O ECA estabelece alguns parâmetros aos pretendentes à adoção:

Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos,


independentemente do estado civil.
§ 1º Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando.
§ 2o Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam
casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a
estabilidade da família.
§ 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho
do que o adotando.
§ 4o Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-
companheiros podem adotar conjuntamente, contanto que acordem
sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de
convivência tenha sido iniciado na constância do período de
convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de

320
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que


justifiquem a excepcionalidade da concessão.
§ 5o Nos casos do § 4o deste artigo, desde que demonstrado efetivo
benefício ao adotando, será assegurada a guarda compartilhada,
conforme previsto no art. 1.584 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de
2002 – Código Civil.
§ 6o A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca
manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento,
antes de prolatada a sentença (BRASIL, 1990, 2009).

A Lei 12.010/2009, conhecida como a “Nova Lei de Adoção”, altera o ECA


– Estatuto da Criança e do Adolescente normatizando a adoção mediante o
aperfeiçoamento do sistema referente ao direito à convivência familiar das crianças e
dos adolescentes como a ratificação da excepcionalidade e provisoriedade do
acolhimento institucional e a preservação deles com a família de origem ou
extensa/ampliada, e excepcionalmente, adotiva (BRASIL, 2009).
Outro destaque se refere à normatização detalhada da habilitação de
pretendentes à adoção estabelecendo como obrigatória a participação dos
pretendentes em programa de preparação à adoção, mediante o esclarecimento e
orientação acerca das crianças e adolescentes disponíveis para adoção.

Art. 197-C. Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe


interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, que
deverá elaborar estudo psicossocial, que conterá subsídios que
permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o
exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos
requisitos e princípios desta Lei.
§ 1o É obrigatória a participação dos postulantes em programa
oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente
com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política
municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos grupos
de apoio à adoção devidamente habilitados perante a Justiça da
Infância e da Juventude, que inclua preparação psicológica,
orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças ou de
adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com
necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos.
§ 2o Sempre que possível e recomendável, a etapa obrigatória da
preparação referida no § 1o deste artigo incluirá o contato com
crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou
institucional, a ser realizado sob orientação, supervisão e avaliação
da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude e dos
grupos de apoio à adoção, com apoio dos técnicos responsáveis pelo
programa de acolhimento familiar e institucional e pela execução da
política municipal de garantia do direito à convivência
familiar (BRASIL, 1990, 2009, 2017).

321
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Dessa forma, a adoção configurada no Estatuto da Criança e do


Adolescente e ratificada pela Nova Lei de Adoção, demanda desafios na
consolidação de uma nova cultura da adoção, ao romper juridicamente com os
valores culturais relacionados à adoção construídos historicamente, em que
prevalecem os interesses dos adotantes que buscam, em sua maioria, resolver as
questões referentes à maternidade e à paternidade, diante da impossibilidade de
gerar filhos, biologicamente.

2 - ATRIBUIÇÕES DOS ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS


NOS PROCESSOS DE HABILITAÇÃO À ADOÇÃO

Conforme as Normas de Serviço da Corregedoria Geral do Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo cumprem aos profissionais de Serviço Social e
Psicologia atuar nos processos de Habilitação de Pretendentes à Adoção de acordo
com o inciso XII do Artigo 804, que expressa a atribuição da equipe interprofissional
junto às Varas da Infância e da Juventude:

XII - intervir no procedimento de postulação ao cadastro de


pretendentes à adoção, elaborando estudo psicossocial, que
conterá subsídios que permitam aferir a capacidade e o
preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade
ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e princípios
do Estatuto da Criança e do Adolescente (TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2013).

O processo de habilitação de pretendentes à adoção pauta-se em


procedimentos técnicos, em acordo a “Atuação dos Profissionais de Serviço Social e
Psicologia, Infância e Juventude, Manual de Procedimentos Técnicos” e inicia-se
quando este é remetido à equipe interprofissional da Vara da Infância e Juventude
ou com competência para tal, para realização de avaliação psicológica e social.
O processo de avaliação de pretendentes à adoção pauta-se em
procedimentos técnicos, em acordo a “Atuação dos Profissionais de Serviço Social e
Psicologia, Infância e Juventude, Manual de Procedimentos Técnicos” e inicia-se
quando os Autos são remetidos à equipe interprofissional da Vara da Infância e
Juventude ou com competência para tal, para realização de avaliação psicológica e
social.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

De acordo com as Normas da Corregedoria a equipe interprofissional possui


um prazo de quarenta e cinco dias para apresentar um parecer conclusivo, podendo
requerer dilação de prazo processual justificadamente, se necessário.
Após habilitados, os pretendentes à adoção devem ser reavaliados pela
equipe interprofissional a cada três anos, conforme nova redação dada pela Lei nº
13.509 de 2017, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, salvo fundada
necessidade de reavaliação em menor espaço de tempo. Anteriormente, os
pretendentes habilitados eram reavaliados a cada dois anos.
Compete ainda às equipes interprofissionais a realização dos Cursos de
Preparação à Adoção, requisito indispensável aos postulantes ao cadastro.
Aos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários, consoante Portaria nº
9.277/2016 que dispõe sobre as atribuições dos respectivos cargos observa a
sumária das atribuições, em Lei Complementar, nº 1.111/2010, compete o
procedimento de atribuições específicas e inerentes a cada profissão.
Aos Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários competem os procedimentos
de avaliações sociais e psicológicas respectivamente, elaboração e análise de
laudos técnicos, pareceres, relatórios e outros documentos relacionados aos
processos judiciais e administrativos da área de suas competências, estabelecidas
pelo Tribunal de Justiça, bem como o atendimento ao público interno, segundo a
orientação existente.

3 - AVALIAÇÃO SOCIAL E PSICOLÓGICA

O processo de avaliação é iniciado por meio do esclarecimento de


informações aos candidatos postulantes a adoção acerca dos passos para a
habilitação. Algumas comarcas recebem a demanda espontânea dos candidatos via
plantão nos setores técnicos, em outras são recebidos pelo cartório competente.
Dentre as comarcas representadas neste grupo de estudos, em apenas uma o
requerimento para habilitação à adoção é iniciado no Setor Técnico, sendo que
nesta o processo ainda hoje se encontra no formato físico.
Com o protocolo do requerimento pelo candidato, seja via Setor Técnico
ou seja via cartório, o rito processual caminha para a convocação dos candidatos
para a participação no Curso de Adoção, não sendo uma regra, tendo em vista que

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

em algumas situações excepcionais diante da demanda a avaliação psicológica e


social é realizada antes, a fim de aguardar calendário posterior para a realização do
curso.
Vale considerar que o curso preparatório para os postulantes à adoção é
organizado conforme a demanda e disponibilidade das equipes interprofissionais de
cada comarca, e conforme Provimento n.30/2019.
A avaliação social realizada pelas profissionais participantes possui
planejamento do estudo com intervenções e metodologia. Em comum são feitas uma
média de três entrevistas por processo, sendo a primeira de acolhida e levantamento
das demandas, e as demais avaliativas e informativas acerca do resultado do
processo, além da visita domiciliar como prerrogativa para a avaliação.
A metodologia utilizada refere que o plano de entrevista não apresenta
roteiro, sendo constituído por perguntas semiestruturadas e/ou abertas. Dentro dos
procedimentos da avaliação também há discussão de caso entre as profissionais do
serviço social e também da psicologia além da pesquisa bibliográfica.
Sobre o objetivo da avaliação, as assistentes sociais ponderam que o foco
são as relações intrafamiliares estabelecidas, bem como as relações com a família
extensa e se há abertura de todos os membros familiares para receber e acolher a
criança ou adolescente a ser adotado.
A avaliação também foca os aspectos culturais relativos à construção
social sobre a adoção e a motivação dos pretendentes, de forma a compreender os
aspectos do lugar de pertencimento da criança ou adolescente pretendido.
A avaliação socioeconômica realizada pelas assistentes sociais se
constitui o processo tem por objetivo avaliar o acesso dos pretendentes a políticas
públicas por meio das condições de articulação do candidato para acessar os
serviços, como fatores de capacidade protetiva.
A avaliação psicológica visa apreender o funcionamento psíquico de cada
pretendente, a dinâmica familiar, o histórico de vida, a relação conjugal, os papéis
familiares, como por exemplo, a participação de cada cônjuge no processo educativo
da criança ou adolescente, a motivação para adotar, o perfil da criança/adolescente
desejado, a qualidade da interação conjugal e a construção dos papéis de mãe e de
pai.

324
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os instrumentais utilizados pelos profissionais da psicologia são as


entrevistas (abertas, semiestruturadas e/ou estruturadas, conforme a necessidade),
além disso, é facultativo a cada profissional, a aplicação de testes psicológicos e
realização de visitas domiciliares. No que tange às devolutivas são realizadas
entrevistas com esse objetivo.

4 - PESQUISA COM OS PRETENDENTES

A pesquisa foi realizada através de entrevista aplicada aos pretendentes à


adoção, que já adotaram ou não, porém que já passaram por avaliação técnica e
foram habilitados para inscrição no Cadastro Nacional de Adoção. Utilizou-se de
amostragem entrevistando dois pretendentes de cada Comarca da Circunscrição de
Araçatuba/ SP e Andradina/ SP, onde participaram as Comarcas de Araçatuba,
Bilac, Valparaíso, Guararapes e Ilha Solteira, compreendendo um total de dez
entrevistas aplicadas.
A pesquisa objetivou melhor compreender o processo de avaliação social
e psicológico que hoje é realizada pela equipe técnica do Tribunal de Justiça
considerando a perspectiva dos pretendentes à adoção. Através da entrevista
buscaram-se dados referentes à importância da avaliação e do curso preparatório
cujos pretendentes estão submetidos, os aspectos facilitadores e dificultadores do
processo, bem como sugestões que possam contribuir para satisfação no preparo
dos respectivos pretendentes.
A primeira pergunta buscou conhecer o processo de avaliação para o
cadastro de pretendentes à adoção.
E desta forma obteve-se os seguintes resultados no que diz respeito à
Avaliação Social que foi avaliada pelos pesquisados como sendo esclarecedora,
informativa, contribui com o acesso à informação e a reflexão sobre a realidade da
adoção no Brasil. Todos os entrevistados pontuaram o acolhimento e o
esclarecimento de dúvidas através da informação como importantes neste processo.
Três entrevistas indicaram o estabelecimento de vínculo positivo entre pretendentes
e Assistentes Sociais. Um entrevistado disse que às vezes é desestimulante visto
que a realidade das crianças e adolescentes apresentadas pela equipe não
corresponde aos anseios de quem adota. Outros afirmaram que as informações

325
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

recebidas contribuíram para as escolhas realizadas, muitas vezes com mudanças de


visão e perspectivas.

“A adoção é mais fácil quando as escolhas são mais reais...”


(Araçatuba, 2); “...para nós tudo ainda estava no futuro, no imaginário
(...)” (Araçatuba, 1) “...muitas vezes nos ensinou a termos “os pés no
chão” para compreendermos a realidade na qual está inserido todo o
processo de adoção.” (Valparaíso, 2).

Com relação à Avaliação Psicológica os pretendentes pontuaram como


sendo importante ao promover reflexões sobre a dinâmica familiar, o
autoconhecimento, o comportamento apresentado pelas crianças e os possíveis
conflitos por elas vivenciados advindos do acolhimento institucional, fundamentais
neste processo ao contribuir para as escolhas referentes ao perfil da criança a ser
adotada. Dois entrevistados trouxeram aspectos como motivação, segurança e
tranquilidade percebidos durante o processo de avaliação. Consideramos que três
pretendentes apontaram a demora e/ou morosidade já que a entrevista foi realizada
em outra comarca devido à falta do profissional na comarca de origem.

“A psicóloga também nos ajudou a entender os conflitos que uma


criança pode ter se ela passou um longo período em um abrigo. Ela
também nos adiantou sobre como geralmente acontece, ou como se
apresenta o comportamento da criança, no início da convivência (...)”
(Araçatuba, 1); “Compreender o funcionamento da nossa própria
família (pais, avós, tios) é um conhecimento que adquirimos durante
o processo de avaliação e que trazemos conosco até hoje”
(Araçatuba, 2) “A ressalva que faço é em relação à demora para as
coisas acontecerem.(...)” (Guararapes, 2).

A segunda questão procurou identificar o nível de importância das


avaliações para os pretendentes e todos os entrevistados consideraram as
avaliações importantes denotando conhecimento sobre os objetivos de serem
avaliados durante o processo de Habilitação a Adoção.

“O estudo social e psicológico para adoção são muito importantes,


pois ajuda o pretendente agregar conhecimento e amadurecimento
durante o tempo de espera...” (Araçatuba, 1); “...as avaliações nos
colocam de frente com o que realmente é possível, te traz para perto
desta “gestação” que é tão teórica e impalpável, em cada avaliação
aprende-se muito sobre o que esperar, como esperar, e a lidar com a
326
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

chegada do filho.” (Araçatuba, 2); “...nos ajuda a definir o perfil da


criança que o casal quer adotar. E também para ver se o casal
preenche os requisitos para a adoção”. (Valparaíso, 1); “O foco é
sempre a criança, e os casais pretendentes à adoção tem que
entender isso (...)”. (Guararapes, 2).
A terceira questão tratou da opinião dos pretendentes com relação ao
curso preparatório ofertado que foi apontado como importante durante o processo de
avaliação visto seu papel informativo e esclarecedor.

Nós gostamos muito do curso e acreditamos que seja de grande


valia para abrir a mente dos pretendentes em relação,
principalmente, a adoção tardia e a realidade das crianças que se
encontram abrigadas (Bilac, 1);

Entretanto, muitos pretendentes consideraram desmotivador mediante o


enfoque nas dificuldades apresentadas.

“... a importância do curso é indiscutível, mas acreditamos que ao


invés de incentivar, desmotiva os candidatos (...) percebemos que as
dificuldades são mais enfatizadas em proporção muito maior que os
fatores que contribuem para um processo mais leve e prazeroso (...)
vimos as angústias de outros casais (alguns querendo desistir, outros
procurando crianças para serem seus filhos entre vizinhos e colegas,
pois já estavam totalmente desmotivados) (...) Naquele momento,
tivemos a impressão de que a “adoção” seria algo distante e
praticamente inalcançável...” (Valparaíso, 2)

Ressalta-se que atualmente o Curso ofertado para preparação dos


pretendentes nas Circunscrições participantes do Grupo de Estudos se dá de
maneira informativa, em apenas um encontro, em que dados reais sobre a adoção
no Brasil são disponibilizados, bem como a realidade das crianças acolhidas e o
perfil de crianças esperado pelos pretendentes habilitados que tornam muitas vezes
inviáveis e/ou moroso o respectivo processo. Logo, tais informações percebidas
durante o curso desmistificam a adoção aos pretendentes que, muitas vezes, se
apresentam ansiosos e repletos de expectativas, decorrendo na desmotivação
apontada pela pesquisa.

327
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Curso Preparatório para Adoção

Esclarecedor
Desmotivador

Gráfico 1. Avaliação dos pesquisados sobre o Curso de Adoção.

Dentre as sugestões apresentadas pelos entrevistados considera-se a


oferta de um maior tempo de escuta aos pretendentes, permitindo que falem mais de
suas angústias e expectativas mediante a adoção viabilizando trabalhar no grupo as
motivações pessoais apresentadas. Além disso, sugeriu-se apresentar mais relatos
de pais que tiveram sucesso na adoção buscando a motivação e/ou o incentivo dos
participantes.
A quarta pergunta tratou de conhecer os aspectos facilitadores e
dificultadores no processo de avaliação e dentre aspectos facilitadores destacados
predominaram o atendimento solícito com fácil acesso a informações e
esclarecimento de dúvidas ofertado pela equipe psicossocial, compreendendo a
especialidade em conflitar os pretendentes quanto à intenção de adotar, com
sensibilidade e respeito, facilitando aos pretendentes a tomada de decisões. Além
disso, três entrevistados consideraram como facilitador a celeridade dos processos
que tramitam nas comarcas pequenas comparados à morosidade das grandes
comarcas. Duas pessoas não indicaram aspectos facilitadores sendo possível aferir
que para estas sobressaíram-se os dificultadores.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Facilitadores

Equipe
Atendimento
Comarca pequena
Não manifestaram

Gráfico 2. Aspectos facilitadores relacionados ao processo de adoção.

Quanto aos dificultadores sete dos dez entrevistados pontuaram a demora


e/ou espera para adotar, considerando a lentidão dos trâmites legais e a burocracia
enfrentada. Três entrevistados destacaram dificuldades pessoais em traçar o perfil
da criança a ser adotada. Além disso, a pesquisa identificou a omissão de
informações aos pretendentes sobre a criança a ser adotada e a dificuldade destes
em lidar com profissionais não treinados para adoção, como funcionários de casas
de acolhimentos, por exemplo.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Dificultadores

Demora
Omissão informações
Traçar perfil
Burocracia

Gráfico 3. Aspectos dificultadores relacionados ao processo de adoção.

A pesquisa também visou compreender de que forma o processo de


preparação à adoção contribuiu para a adoção e dentre os entrevistados oito
ponderaram importante o preparo para adoção ofertado pelas equipes deste Tribunal
de Justiça, considerando que as informações e o esclarecimento de dúvidas
contribuíram para amadurecer decisões frente a adoção.

“O auxílio que obtivemos no processo de preparação para a adoção


auxiliou em nossa postura sobre os procedimentos legais aos quais
uma adoção consiste, além das orientações que foram essenciais
para o amadurecimento das ideias e preparação para o Dia tão
esperado! (...).” (Valparaíso, 2); “O tempo que leva todo o processo
ajuda pelo fato dos pretendentes terem mais tempo para ter certeza
sobre as decisões a serem tomadas.” (Bilac, 1).

Um questionário afirmou que o processo de preparação para adoção teve


pouca contribuição “Pouco, já tínhamos a convicção da adoção. (Ilha Solteira, 1).ou
nenhuma contribuição. “Não contribuiu em nada, haja vista que ainda não
adotamos.” (Valparaíso, 1);
A última questão solicitou aos entrevistados sugestões de
mudança/alteração no processo de avaliação e os pretendentes reclamaram da
demora para conclusão dos processos de adoção, sendo a agilidade apontada como

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

prerrogativa por metade dos entrevistados. Um entrevistado sugeriu uma revisão na


classificação dos cadastros tanto nas comarcas como no Cadastro Nacional de
Adoção almejando, se possível, diminuir a espera para adotar.
A outra metade dos entrevistados afirmou que não mudaria em nada a
preparação realizada no processo de habilitação, considerando a avaliação completa
e necessária para extirpar as indecisões e ter clareza sobre a adoção. Houve
sugestões para apresentação de mais casos reais de adoção, tanto de sucesso
como de fracassos, e a indicação de livros e filmes que possam ajudá-los durante o
preparo e/ou a espera em adotar.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos estudos e discussões realizadas verificou-se que apesar das


características específicas de cada comarca, que refletem nas individualidades e no
desenvolvimento do processo de avaliação de cada equipe, identifica-se que os
procedimentos técnicos e o resultado apreendido pelos pretendentes são comuns
nas circunscrições participantes.
A pesquisa revelou que durante todo o processo de habilitação o vínculo
construído entre o(s) pretendente(s) e a equipe técnica, bem como, o tempo
aguardado para a adoção (que favorece a compreensão e o amadurecimento dos
mesmos frente ao processo) são fundamentais para a satisfação diante da avaliação
realizada.
Deste modo, ponderou-se que a pesquisa contribuiu significativamente
para ampliar a compreensão técnica sobre o processo de habilitação à adoção e
sobre as demandas, refletindo na qualificação dos serviços prestados junto aos
pretendentes.
Na pesquisa pontua-se que os aspectos dificultadores elencados pelos
pretendentes não estão relacionados à atuação da equipe técnica, mas às
expectativas geradas em relação à adoção e a burocracia institucional existente.
A motivação da escolha do tema foram às inquietações do grupo frente às
avaliações realizadas, já que os critérios estabelecidos para habilitar os
pretendentes são genéricos e não se esgotam na literatura atual. Puderam-se
problematizar durante os encontros ações técnicas e situações específicas que
provocaram reflexões ante a realidade dos processos de habilitação das comarcas
participantes que repercutiram favoravelmente no desempenho do trabalho.

332
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BARROS, R. M. S. de. Adoção e Família: a preferência pela faixa etária, certezas e


incertezas. Curitiba: Juruá Editora, 2014, 146p.

BRASIL. Lei 8.069, de 13.07.1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário


Oficial da União. Brasília, 13 jul 1990.

BRASIL. Lei 10.406, de 10.01.2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União.
Brasília, 11 jan 2002.

BRASIL. Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009 Dispõe sobre adoção; altera as


Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente,
8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de
janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT,
aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras
providências. Diário Oficial da União. Brasília, 03.ago 2009.

BRASIL Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 Dispõe sobre o Código de


Processo Civil. Diário Oficial da União. Brasília, 17. mar. 2015.

BRASIL. Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a


Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o
de maio de 1943, e a Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário
Oficial da União. Brasília, 11.jul 2017.

MORELLI, A. B.; SCORSOLINI-COMIN, F.; SANTEIRO, T. V. O “lugar” do filho


adotivo na dinâmica parental: revisão integrativa de literatura. Psicologia Clínica, Rio
de Janeiro, vol. 27(1), 175-194, 2015.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Corregedoria Geral Da
Justiça. Normas de serviço. Ofícios De Justiça. Tomo I. Provimentos Nos 50/1989 E
30/2013. São Paulo. 2013.

333
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

PROCESSO DE AVALIAÇÃO PARA PRETENDENTES À


ADOÇÃO: VIVÊNCIAS E REFLEXÕES DOS PROFISSIONAIS
DE PSICOLOGIA E SERVIÇO SOCIAL NO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DE SÃO PAULO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - ASSIS


“O COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

334
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Roseclair Keller de Oliveira Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis


Vanessa Aparecida Tusco Bregagnoli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Assis

AUTORAS

Carmen Sílvia Righetti Nóbile – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cândido


Mota
Flávia Domingues de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis
Laura Moreira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Palmital
Maria Alice Siqueira Mendes e Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Fé
do Sul
Maria Aparecida Pareschi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cândido Mota
Marta Fresneda Tomé – Psicóloga Judiciário – Comarca de Chavantes
Rita Helena dos Santos Godoi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Palmital
Roberta Schiavinato Felipe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Maracaí
Thaís de Cássia Ribeiro Pereira Rupel – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Chavantes
Viviane Caputo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Quatá

335
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DEDICATÓRIA

Dedicamos o presente trabalho aos pretendentes à adoção: por


sonharem e tornar possível nosso trabalho e infindáveis reflexões.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AGRADECIMENTOS

Ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pela viabilização desse


espaço de estudos.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente trabalho compreende a produção do Grupo de Estudos da


Circunscrição de Assis, que é formado por Assistentes Sociais e Psicólogos
pertencentes às comarcas de Assis, Cândido Mota, Chavantes, Maracaí, Quatá e
Santa Fé do Sul, e tem como eixo temático “O COTIDIANO DA PRÁTICA
PROFISSIONAL”. Especificamente neste ano, abordamos “As vivências e reflexões
dos profissionais de Psicologia e Serviço Social no Tribunal de Justiça acerca do
processo de Avaliação de Habilitação para Adoção”.
Inicialmente, é preciso considerar que desde a Constituição de 1988, a
adoção no Brasil é vista como uma medida protetiva à criança e ao adolescente.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cujo objetivo é
promover a proteção integral desse público, a adoção passou a inseri-los à família
do adotante, igualando sua condição à do filho natural, o que alterou, de forma
significativa, os efeitos da adoção no Brasil.
Este arcabouço legal - Constituição Federal, art. 227, e o ECA, art. 19 -
elevou o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária ao
status de direito fundamental. Do mesmo modo, legitimou a função dos psicólogos e
assistentes sociais no judiciário, cujo trabalho consiste numa série de procedimentos
com vistas a auxiliar as decisões do juiz no que diz respeito à garantia do citado
direito.
No caminho para a efetivação da adoção, os pretendentes passaram a ter
a obrigação de procurarem o judiciário para regulamentar o processo de adoção. Da
mesma forma, passou a fazer parte da rotina do trabalho dos técnicos no poder
judiciário atuar diretamente com os pretendentes que almejam se habilitar
legalmente como candidatos à adoção de crianças e adolescentes.
Apesar de essa atuação estar regulamentada como atribuição profissional
e ser norteada por orientações institucionais, não tem tido um consenso sobre a
ação técnica a ser desenvolvida, tampouco se mostrado uma tarefa fácil para o setor
de serviço social e psicologia, sendo muitas as inquietações acerca desta prática.
O presente artigo objetiva trazer à tona reflexões sobre essas
inquietações. Para fins didáticos, foi dividido em quatro partes constitutivas. Na
primeira parte do texto, buscou-se discorrer acerca das diretrizes orientadoras do

338
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

processo de adoção, com ênfase no arcabouço teórico que respalda a atuação dos
assistentes sociais e psicólogos atuantes no judiciário, durante a avaliação
psicossocial dos pretendentes à adoção. Na sequência, apresentou-se uma
discussão, dividida em duas partes, sobre a atuação desses profissionais no que diz
respeito, especificamente, à habilitação dos pretendentes à adoção. Para finalizar,
foi exposta uma discussão sobre as vivências dos processos de avaliação
psicossocial para habilitação à adoção, realizados pela equipe do Setor Técnico.
Intencionamos, com isso, proporcionar uma análise acerca das diretrizes
orientadoras do processo de adoção e reflexões sobre suas repercussões no
cotidiano da prática profissional dos assistentes sociais e psicólogos no poder
judiciário. Todavia, não temos a pretensão de esgotar o assunto, visto ser rico,
importante e dinâmico, passível de ganhar contornos próprios de quem o trata.

1 - AS DIRETRIZES ORIENTADORAS DO PROCESSO DE ADOÇÃO

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito deste


público ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, conviver
em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, por meio da
adoção. Foi esta legislação que instituiu o Cadastro de Pretendentes à Adoção como
parte do processo de adoção de crianças e adolescentes no Brasil.
Cabe ao Setor de Serviço Social e Psicologia no Judiciário promover a
habilitação dos pretendentes à adoção em diversas fases, sendo uma delas a
avaliação destes candidatos. Utiliza-se, para tal, procedimentos éticos e teóricos-
metodológicos pertinentes a cada área de atuação, de acordo com a singularidade
de cada caso em atendimento, da sua complexidade e urgência.
O Manual de Procedimentos Técnicos, elaborado pelo Núcleo de Apoio
Profissional de Serviço Social e Psicologia do Poder Judiciário do Estado de São
Paulo, destaca alguns apontamentos para a avaliação dos pretendentes à adoção.
Um deles afirma “[...] que o processo de avaliação inicia-se desde o primeiro contato
dos interessados em inscrever-se no CPA (Cadastro de Pretendentes à Adoção)”.
(2005, p. 154)
De acordo com esse Manual, a avaliação dos candidatos à adoção deve
ser efetivada em duas fases, sendo a primeira relacionada ao processo de

339
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

orientações e esclarecimentos do cadastramento dos possíveis adotantes. Para


tanto, faz-se necessário elucidar aos interessados: a organização do Cadastro de
Pretendentes à Adoção; a importância do estudo social e psicológico – seus
aspectos técnicos e a possibilidade de reflexão sobre o tema “adoção”; o
amadurecimento das ideias referentes às expectativas relacionadas ao assunto;
esclarecimentos quanto ao perfil das crianças em demanda de adoção e a realidade
social das famílias de origem (destituição do poder familiar, abandono, colocação em
adoção) e esclarecimentos das dúvidas iniciais que surgirem durante os primeiros
contatos.
Ainda no tocante à fase de orientação e esclarecimentos aos
pretendentes, o material institucional descreve que “[...] representam uma etapa
importante do cadastramento inclusive para melhor situar os pretendentes à adoção
quanto a sua realidade e procedimentos.” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO
PAULO, 2005, p. 158).
Neste contexto, o Provimento 36/2014 trouxe diretrizes normativas para
os Encontros Preparatórios Obrigatórios para pretendentes à adoção, de modo
positivo, pois trouxe legitimação para um trabalho que já vinha sendo desenvolvido
pelas equipes técnicas. Este grupo de estudo reconheceu a importância desta etapa
preparatória realizada pelos profissionais que desenvolvem esse trabalho, visto que,
apesar do caráter eminentemente informativo, também se caracteriza como um
espaço de reflexão, trocas de experiências, amadurecimento e sensibilização dos
pretendentes à adoção - sobretudo para dialogar melhor sobre o perfil da
criança/adolescente pretendido.
Observou-se que os Cursos Preparatórios favorecem o entrosamento das
equipes técnicas com os diferentes atores/parceiros da Rede de Atendimento e
Proteção (OAB, Prefeituras Municipais, ONG’s etc.), inclusive com a disponibilização
de espaço físico e equipamentos, entre outros. Além disso, as Comarcas menores e
próximas realizam tais cursos conjuntamente devido a pouca demanda de
pretendentes, equipes incompletas entre outros fatores.
Ainda em relação aos cursos, constata-se a falta de espaço físico,
recursos materiais disponíveis, apoio logístico e verbas destinadas para esse fim
(café, lanche, material para os participantes), o que demonstra que alguns desafios
ainda precisam ser superados nessa primeira fase do processo avaliativo.

340
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na segunda fase, deverá ser realizada a avaliação psicossocial daqueles


que pretendem adotar. Para tanto, devem ser contemplados os aspectos éticos,
técnicos, teóricos e metodológicos específicos dos campos do saber–fazer da
Psicologia e do Serviço Social, garantindo-se aos pretendentes os princípios da
imparcialidade, de maneira a evitar pré-julgamentos de qualquer natureza.
É recomendável a vinculação positiva com os atendidos, a utilização de
uma escuta apurada e a observação de “[...] como os pretendentes à adoção lidam
com as suas relações sociofamiliares e afetivas, que trarão elementos significativos
para a avaliação.” (op. cit, p. 156).
Neste artigo, nos debruçamos à análise da segunda fase deste processo,
visto que esta trata, especificamente, dos aspectos técnicos da avaliação
psicossocial dos pretendentes à adoção, com vista à habilitação - ou não - dos
pretendentes.
No tópico seguinte, apresentamos considerações sobre os processos de
avaliações realizados pelo psicólogo e pelo assistente social no judiciário, de modo a
assegurar as particularidades das atuações de cada área. Entretanto, é fundamental
ressaltar que a intervenção psicossocial, para além dessas avaliações, trata-se de
um estudo que visa a uma observação e compreensão global da conjuntura física,
social e psicodinâmica que envolve os interessados à adoção.
Com o intuito de explicitar, mais pormenorizadamente, como ocorre a
construção do trabalho dos citados profissionais, abordamos a seguir os modos
como, no cotidiano, vão sendo tecidos as avaliações dos pretendentes e seus
respectivos laudos/relatórios, os quais deverão subsidiar a decisão do Juízo.

2 - A AVALIAÇÃO SOCIAL DOS PRETENDENTES À ADOÇÃO

No Serviço Social, quando falamos da avaliação dos pretendentes à


adoção precisamos nos valer das técnicas profissionais que nos instrumentalizam no
trabalho cotidiano, tal como o estudo social, o qual pode ser entendido como um
processo metodológico que, por meio de fundamentação rigorosa e com base no
projeto ético-político da profissão, nos permite contribuir com o acesso, garantia e
ampliação de direitos dos sujeitos que atendemos, no caso os candidatos à adoção
(FÁVERO, 2009).

341
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A realidade socioeconômica e cultural dos sujeitos que se tornam “partes”


das ações processuais é a base sobre a qual a instrução social se apresenta.
Desvendar a realidade social em suas conexões e determinações mais amplas e
sem suas expressões particularizadas no dia a dia dos envolvidos nessa ação,
interpretá-la com o apoio de conhecimentos científicos pertinentes à área e tomar
uma posição, fundamentada teórica e eticamente, apresenta-se como conteúdo
central do estudo social.
De acordo com Fávero (2009, p.2-3):

Isso significa considerar que a instrução social se dá com base na


construção do conhecimento da situação que se apresenta como
objeto de uma ação judicial, articulada ao conhecimento acumulado
pela ciência, que vai balizar e referendar uma ação e uma análise
competente do ponto de vista profissional. Nesse processo de
trabalho, o estudo social e/ou sua tradução, em alguns espaços do
campo sociojurídico, como perícia social tornam-se procedimento
essencial.

Nesses termos, a construção do conhecimento na área do Serviço Social


acerca de uma situação processual acontece geralmente por meio do estudo social.
Os conhecimentos decorrentes deste último - registrados em um relatório, um laudo
ou um parecer - servem de referência documental que vai contribuir para formar o
processo, para informar a ação sobre a qual o magistrado decidirá.
Desta maneira, é fundamental ter clareza de qual é o objeto de
conhecimento em uma determinada demanda que chega para o assistente social,
visto que existe uma finalidade institucional e a particularidade do trabalho técnico.
Muitas vezes, confunde-se a finalidade institucional - dirimir conflitos,
julgar, entre outros - com a finalidade profissional. Importante ressaltar que, apesar
de elas manterem certo grau de interdependência, cada qual tem a sua
especificidade.
No tocante à prática, a finalidade está relacionada à busca de conhecer,
profunda e criticamente, uma situação ou expressão da questão social, objeto de
intervenção profissional, em especial dos aspectos socioeconômicos e culturais
(FÁVERO, 2014). Assim:

342
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...] é imprescindível considerar que ‘o caso’ em estudo não é ‘um


caso’, ou seja, ele tem sua condição singular. Todavia, a sua
construção é social, histórica, cultural. As influências familiares, as
condicionantes culturais, as determinações sociais relacionadas ao
mundo do trabalho, as políticas sociais, o território onde vive,
particularizam-se em sua história e explicam sua condição presente
(FÁVERO, 2009, p. 5).

Fazer essa leitura do ponto de vista social exige um técnico qualificado,


que não somente apresente laudos visando ao cumprimento de processos, mas
também reforce e amplie sua competência crítica, um profissional que pense,
analise, pesquise e seja capaz de decifrar a realidade (IAMAMOTO, 1995). Neste
aspecto, o assistente social precisa ter domínio das três dimensões de sua atuação,
a saber: a competência ético-política, a competência teórico-metodológica e a
competência técnico-operativa.
A competência ético-política refere-se a um “[...] profissional culturalmente
versado e politicamente atento ao tempo histórico, atento para decifrar o não-dito do
discurso autorizado pelo poder” (IAMAMOTO, 1995, p.3) e ainda ter um
posicionamento crítico e não ser, apenas, um mero executor de tarefas.
A competência teórico-metodológica relaciona-se ao saber. O assistente
social deve ser qualificado para conhecer e decifrar a realidade social, política,
econômica em que trabalha.
A competência técnica-operativa, por sua vez, concerne à instância do
fazer, exige conhecer, se apropriar e criar um conjunto de habilidades técnicas que
permitam, ao mesmo tempo, desenvolver ações profissionais junto à população
usuária e às instituições contratantes que respondam às demandas colocadas pelos
empregadores, pelos profissionais e pela realidade social.
Portanto, é necessário não reduzir a intervenção do assistente social às
ações imediatas, pontuais e fragmentadas, despidas de análise crítica e reflexiva,
condição somente possível por meio de um profissional que faça enfrentamentos e
não responda docilmente às exigências institucionais. (PORTES e PORTES, 2016).
No cotidiano de sua atuação, as particularidades a serem abordadas
durante os atendimentos técnicos do assistente social, são estas: história de vida
dos interessados; constituição familiar; identificação de valores e conceitos; relações
com a rede social; vida cultural e rede social representativa; inserção no mundo do
trabalho e vínculos empregatícios; situação socioeconômica e habitacional;
343
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

motivação para a adoção, existência de casos de adoção na família ou de pessoas


próximas; aceitação dos familiares à adoção; postura do casal sobre a revelação da
adoção à criança; infraestrutura para cuidar da criança; vida dos pretendentes com a
criança; a criança pretendida, disponibilidade para buscar orientações e ajuda
externa.
A realização da avaliação social dos pretendentes à adoção inicia-se pelo
estudo dos autos judiciais. Após, de acordo com a autonomia técnica do assistente
social, vários instrumentais poderão ser utilizados, entre eles: entrevista individual,
entrevista com o casal, entrevista com demais familiares, visita domiciliar, discussão
do caso com os profissionais da Psicologia e, na finalização, a elaboração do
relatório/laudo social, com vista a subsidiar a decisão judicial no sentido de deferir ou
não a inscrição dos pretendentes no cadastro de adoção, seja ele estadual ou
nacional.
Com o objetivo de fundamentar uma compreensão acerca das vivências,
intersecções e interlocuções entre o modus operandi do assistente social e o modus
operandi do psicólogo na construção da avaliação dos pretendentes à adoção e da
elaboração dos laudos/relatórios psicossociais, faz-se necessária a apresentação da
maneira como se processa o trabalho do profissional da Psicologia no Judiciário.

3 - A AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DOS PRETENDENTES À ADOÇÃO

Cabe privativamente ao profissional de Psicologia a realização do Estudo


Psicológico, utilizando-se dos procedimentos técnicos pertinentes à sua formação
teórica e técnica e considerando os princípios éticos pertinentes à atuação do
psicólogo.
As técnicas mais utilizadas em Psicologia são as entrevistas, a observação, a
observação lúdica, a interação social, a linguagem não-verbal, a utilização de testes
psicológicos aprovados e autorizados pelo Conselho Federal de Psicologia, entre
outras respaldadas em conhecimento científico e devidamente reconhecidas pelo
referido Conselho.
A escolha das técnicas a serem utilizadas pelo profissional de Psicologia,
além das supramencionadas, deve ser considerada a partir das particularidades dos

344
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

casos atendidos, da complexidade dos mesmos e da urgência da circunstância


demandada.
Em relação ao trabalho do psicólogo junto a crianças e adolescentes, o artigo
151 do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente – preconiza a autonomia e
liberdade de atuação profissional.
No que se refere à autonomia e liberdade técnico-profissional dos psicólogos
na avaliação dos pretendentes à adoção, destaca-se que as diretrizes norteadoras
da primeira fase desse processo – fornecidas pelo Núcleo de Apoio Profissional de
Serviço Social e Psicologia – são as mesmas que orientam o trabalho do assistente
social. A título de retomá-las brevemente, tais diretrizes versam sobre a
compreensão do primeiro contato com os pretendentes como parte do processo
avaliativo assim como o entendimento de que esse contato se configura como
decisivo para as ações que devem transcorrer na sequência de todo o processo.
Da mesma forma, as orientações referentes à segunda fase - dadas aos
psicólogos pelo citado Núcleo de Apoio – são, inicialmente, coincidentes com as dos
assistentes sociais, a saber: a importância de uma atuação técnica fundamentada
teórica, metodológica e eticamente, de maneira a assegurar aos pretendentes os
princípios da imparcialidade, evitando qualquer forma de preconceitos e buscando,
principalmente, o estabelecimento do rapport45.
Especificamente para o estudo psicológico, as orientações do Manual de
Procedimentos Técnicos, elaborado pelo Núcleo de Apoio Profissional de Serviço
Social e Psicologia do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, sugerem que sejam
contemplados, entre outros elementos pertinentes ao estudo:

O bom conhecimento de si próprio(s) e das funções parentais do(s)


requerente(s); a real motivação para a adoção (dificuldades em
conceber um filho biológico; esterilidade – reação e elaboração;
premissas como “meio de salvar o relacionamento conjugal”;
“promessa”; espírito altruísta; se não há precipitação dos
pretendentes e se refletiram sobre sua intenção; a análise da
estabilidade afetiva do relacionamento conjugal e a maturidade
emocional dos avaliados, verificando-se se o ideal de adoção é
compartilhado mutuamente; observar se houve a elaboração da
esterilidade e/ou luto, quando for o caso; como os pretendentes
veem a adoção; casos na família; o que imaginam sobre a família de
origem da criança; o que pensam de uma criança que é colocada em

45Rapport: Técnica utilizada na Psicologia para criar empatia com outra pessoa numa situação de
entrevista ou estabelecimento de aliança terapêutica, dentro de um processo de trabalho.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

lar substituto; a aceitação dos familiares quanto ao projeto de


adoção; identificar e refletir sobre a postura, conceitos e sentimentos
do casal ante a revelação da adoção; perceber fatores considerados
positivos à pretensão de adotar: reflexão, ponderação, abertura
emocional e flexibilidade para receber e aceitar integralmente uma
criança; a observação de padrões rígidos de comportamento dos
pretendentes; disponibilidade dos pretendentes para buscar
orientações e ajuda externa. (op. cit, p. 158-159).

Vê-se, a partir desses elementos, que o trabalho do psicólogo adentra as


entranhas dos afetos dos pretendentes, que toca em feridas, provavelmente, ainda
abertas e sensíveis, mas não sem serem, também, tocados.
Assim, se, por um lado, os profissionais da Psicologia e do Serviço Social
no judiciário são constantemente mobilizados em seus afetos pelos conteúdos com
os quais lidam cotidianamente – o que lhes gera sofrimento do trabalho – por outro,
os impulsiona a desejarem saber, a constantemente refletirem sobre sua práxis.
Esse artigo é resultante deste movimento.
Com vistas a abordar os elementos que, na prática do processo de
avaliação, geram inquietações sobre seu saber-fazer, apresentaremos a seguir
algumas reflexões sobre as vivências dos profissionais do Setor Técnico no
Judiciário, discutidas pelo Grupo de Estudos da Circunscrição de Assis, durante
esse ano.

4 - AS VIVÊNCIAS DO ASSISTENTE SOCIAL E DO PSICÓLOGO


JUDICIÁRIOS NO PROCESSO DE AVALIAÇÃO DOS
PRETENDENTES À ADOÇÃO: COGITAÇÕES

Fertilizar o passado e dar à luz ao futuro: que


assim seja meu presente. (Friedrich Nietzche).

Vimos que a avaliação psicossocial dos pretendentes à adoção é uma


etapa de grande importância dentro do processo de habilitação. Essa
conscientização impulsionou os técnicos de Serviço Social e de Psicologia no
Judiciário a buscarem, constantemente, o aperfeiçoamento de suas práticas, através
de leituras e trocas de experiências, possibilitadas pelos grupos de estudos.
Destaca-se, nesse quesito, que as equipes técnicas do judiciário vêm se
embasando no Manual de Procedimentos Técnicos elaborado pelo Poder Judiciário

346
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

do Estado de São Paulo, o qual nos traz alguns apontamentos para a habilitação dos
pretendentes à adoção. Entretanto, nota-se que o que diz respeito a esse tema, há
escassez de bibliografia específica sobre o assunto, principalmente para os
profissionais do Serviço Social, o que é sentido como um empecilho para o
aperfeiçoamento dos atendimentos, uma vez que este último fica parcialmente à
deriva e dependendo, preponderantemente, da experiência de cada profissional.
Um dos temas mais recorrentes nas nossas discussões desse ano, disse
respeito ao cuidado que os profissionais devem ter para não padronizar os
procedimentos de forma automática e mecânica a partir das orientações recebidas.
Refletimos, então, que tal postura não significaria um alheamento às
diretrizes proporcionadas pelo citado Manual, mas a partir delas, tornar-se um
processo de assunção responsável, por meio do qual os profissionais da Psicologia
e do Serviço Social compreenderiam seu papel e participariam como co-atores -
junto aos pretendentes - na construção de uma leitura fidedigna da realidade social e
da subjetividade e subjetivação de cada envolvido.
Também emergiram outros questionamentos que vão além do que é
considerado nos Estudos Sociais e Avaliações Psicológicas de Processos da Vara
da Infância e Juventude, como por exemplo, a necessidade de avaliar a família
extensa dos pretendentes, a obrigatoriedade de participação em Grupos de Apoio à
Adoção e, até mesmo, as questões em torno de um parecer desfavorável à
habilitação.
Em relação à avaliação da família extensa, chamou atenção a importância
de uma avaliação mais ampla, abrangendo também a família extensa e outras
pessoas de referência familiar, embora não seja uma obrigatoriedade. Tal ação se
justifica quando consideramos o real interesse da criança e, também, que o instituto
da adoção, conforme o Art. 41. do ECA, pressupõe "[...] a condição de filho ao
adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de
qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais."
Discutiu-se, ainda, sobre a autonomia do casal em tomar decisões a partir
de suas reflexões e desejo, que vão além da concordância de outros entes
familiares.
Concluiu-se, a partir das ponderações feitas, que o profissional envolvido
em um processo de habilitação de pretendentes à adoção precisa ter aporte teórico-

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

metodológico e capacidade de discernir as implicações psicossociais, assim como o


grau de divergência familiar, que envolvem uma situação de adoção, tendo em foco
sempre o superior interesse da criança, de maneira a considerar a plenitude da
adoção, uma vez que seus efeitos estendem-se para todos os familiares que
assumirão, a partir de então, a condição de parentes (tios, avós e primos).
Há também os processos cuja avaliação psicossocial define-se por emitir
parecer desfavorável à habilitação dos pretendentes. São os casos em que, a partir
de todos os procedimentos técnicos de cada área e daqueles que são realizados
conjuntamente, os psicólogos e assistentes sociais chegam à conclusão condizente
ao que versa o artigo 29 do ECA, que nos fornece a seguinte orientação: “Não se
deferirá colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo,
incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar
adequado.”
Escrito de forma objetiva, tal artigo é expandido pelo trabalho do
Assistente Social e Psicólogo na Vara da Infância e Juventude, visto que esses
profissionais atuam não somente para respeitar as orientações jurídicas, mas para ir
além das aparências e do senso comum, de modo a abranger a totalidade das
questões envolvidas em cada processo de habilitação - o que demanda deles
apurado conhecimento teórico-técnico e condição interna suficientemente boa para
lidarem com um tema de caráter afetivo-emocional tão delicado.
Considerar tanto a possibilidade de um parecer favorável como a
possibilidade de um parecer desfavorável às pessoas que visam à inscrição no
Cadastro de Adoção demonstra bem o caráter da concepção que norteia o trabalho
dos psicólogos e assistentes sociais no judiciário, a saber: que o objetivo desse
procedimento é o de encontrar as melhores condições socioafetivas para
proporcionar à criança ou ao adolescente uma vida familiar compatível com suas
necessidades e direitos, tendo em vista que o ponto central da avaliação diz respeito
aos interesses da criança e, não, aos interesses e às necessidades dos
pretendentes.
Adentrar o universo dessas indagações emergidas no Grupo de Estudos,
nos fez refletir sobre a importância da formação permanente e do estudo
aprofundado sobre todos os aspectos que envolvem a Adoção, principalmente

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

daqueles que se referem à desmitificação dos estigmas sociais que envolvem as


famílias adotivas e as crianças que serão adotadas.
Consideramos que se faz necessária também uma reflexão acerca do fato
de que nem todos os pretendentes apresentam condições para o exercício da
maternidade/paternidade e o posicionamento contrário à habilitação destes
postulantes não deve ser desprezado pelos profissionais. Entretanto, se, por um
lado, a Equipe Técnica avalia que alguns pretendentes não se encontram em
condições de serem habilitados, por outro, essa mesma equipe reflete sobre as
possibilidades que emergiriam quando do encontro, visto que, de fato, não há como
predizer ou controlar o que sentiriam as pessoas em determinada situação – no
caso, o encontro emocional que poderia ocorrer entre esses pretendentes a serem
pais e as crianças que necessitam e desejam ter pais.
Refletir sobre tais contradições inerentes ao trabalho psicológico no
judiciário e aquelas concernentes às subjetividades nos levou a discutir as
abrangências e limitações de todo processo avaliativo. Porém, pensar sobre essas
últimas não nos paralisou. Pelo contrário, concluímos que a angústia suscitada pelo
não controle da situação é a força motriz que nos mobiliza, constantemente, à
contemplação do que é singular nos seres humanos e a elucubrar sobre as
vicissitudes de diferentes naturezas que os atingem. Do mesmo modo, nos
impulsiona a buscar novas concepções teóricas e instrumentos metodológicos que
poderão melhor fundamentar nosso trabalho.
Outra questão debatida refere-se à realidade de que, somada a todas
essas práticas profissionais que os técnicos de Serviço Social e Psicologia no
Judiciário enfrentam como suas atribuições, tem-se também a exigência de novos
prazos previstos no ECA – Lei 8.069/90, dados pelas alterações promovidas pela Lei
13.509/2017, que visam à redução do prazo que envolve todo o processo de
adoção, com o objetivo de incentivar e facilitar a adoção no Brasil.
Essas alterações tem causado divisão de opiniões entre as partes
envolvidas. De um lado, os pretendentes à adoção e a sociedade de uma forma
geral manifestam-se positivamente à celeridade do processo e, por outro, os
especialistas da área da infância e juventude e os profissionais do Serviço Social e
da Psicologia no Judiciário, em sua maioria, apresentam receios por conceberem
que os processos conscientes e inconscientes subjacentes às motivações para a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

adoção são tecidos e configurados em múltiplos arranjos, os quais, na maioria das


vezes, não são facilmente identificados. Desse modo, tais profissionais acreditam
que a diminuição dos prazos que envolvem todas as etapas do processo de
habilitação para adoção pode levar a uma análise superficial dos pretendentes – o
que seria um contrassenso à obrigatoriedade da avaliação.
Assim, há que se considerar que a natureza do conteúdo de trabalho dos
Técnicos no Judiciário é abstrata, fugaz e incontrolável, pois tratam de assuntos que
ganham caráter íntimo e afetivo, cuja lógica se processa no registro do inconsciente
e, portanto, em um tempo subjetivo que não necessariamente verga-se – ou adapta-
se – ao tempo objetivo.
Se, por um lado, os estudos social e psicológico apresentam outra lógica
argumentativa e temporal ao campo jurídico - causando muitas vezes estranheza e
desconforto - por outro, é sua especificidade de requerer uma abordagem empática
e uma análise minuciosa dos pretendentes à adoção que permite que seja possível a
esse campo um olhar para além das aparências da realidade concreta.

350
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos encontros no grupo de estudo “Cotidiano das Práticas


Profissionais” foi possível refletir acerca das inquietações desencadeadas durante as
avaliações dos pretendentes à habilitação para adoção. Conforme já exposto, o
trabalho dos técnicos está intrinsicamente associado à subjetividade dos sujeitos e a
sua realidade social, sendo necessário lidar com as angústias suscitadas frente às
singularidades dos envolvidos no processo de habilitação.
Foi possível observar que, neste grupo, composto por profissionais de
várias Comarcas, há uma diversidade na construção e manejo técnico da
intervenção psicológica e social no processo de habilitação para adoção. No entanto,
constatou-se unanimidade em relação aos elementos fundamentais a serem
considerados neste processo. Neste aspecto, as discussões foram confluentes com
a literatura pertinente, que apontam a importância do trabalho pautado numa análise
ético-política, que contemple as necessidades de crianças e adolescentes como
prioridades absolutas face aos anseios dos sujeitos que buscam a habilitação.
Sendo assim, pensamos que os olhares dos assistentes sociais e dos
psicólogos devem ser voltados à motivação, concreta e latente; ao percurso do
desejo; ao lugar do filho idealizado/real; ao exercício das funções parentais
ambicionadas contrapostas às possíveis, dentre outras.
Isso posto, entendemos que a avaliação dos pretendentes à adoção se
trata de um processo dinâmico e contínuo, que não se esgota ao término da
avaliação psicossocial. Além disso, por ser pautado em conhecimento científico,
carece de cuidado empático neste campo onde os afetos se comunicam e as
escolhas necessitam ser consideradas, uma vez que repercutirão nas relações a
serem estabelecidas nesta nova configuração familiar.
A despeito de todo cuidado e considerações referidas, ainda assim, é
possível que neste trajeto desencontros aconteçam e os candidatos a pais não
consigam se legitimar neste lugar, e nem mesmo os pretensos filhos se reconheçam
nesse novo contexto.
Para além da realidade a qual nos referimos, e parafraseando Nietzche,
desejamos que assim seja a nossa presença no processo de avaliação dos
pretendentes: fertilizadora de passados e iluminadora de futuros. Ou iluminadora de

351
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

passados e (in)fertilizadora de futuros. Que nossas ações no presente sejam


profícuas, independentemente de um pretendente ser ou não habilitado à adoção.

352
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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MANUAL DE PROCEDIMENTOS TÉCNICOS. ATUAÇÃO DOS PROFISSIONAIS


DE SERVIÇO SOCIAL E PSICOLOGIA. INFÂNCIA E JUVENTUDE. Volume I.
Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e Psicologia – Corregedoria Geral da
Justiça do Estado de São Paulo. Biênio 2006-2007: Artes Gráficas Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, 2007.
353
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

MINISTERIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Comparativo. ECA – Estatuto


da Criança e do Adolescente e as alterações definidas pela Lei 13.509/2017, de 22
de novembro de 2017. Curitiba: Centro de Apoio Operacional das Promotorias da
Criança e do Adolescente e da Educação, 2018. Disponível em:
http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/caopca/comparativo_eca_x_lei_13
509_2017_caopcae.pdf>. Acesso em 28 set. 2018.

MIOTO, R. C. T. Perícia social: proposta de um percurso operativo. In: Revista


Serviço Social e Sociedade. n. 67, ano 2001, Temas sociojurídicos, São Paulo:
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PORTES, L. F; PORTES, M. F.; Os instrumentos e técnicas enquanto componentes


da dimensão técnico-operativa do serviço social acerca da observação e da
abordagem. In: Instrumentos técnico-operativos no serviço social: um debate
necessário. Ponta Grossa (PR): Editora Estúdio Texto, p. 59-79, 2016.

SILVA, M. S.; MOURA, R. R.; Considerações sobre a visita domiciliar: instrumento


técnico-operativo do serviço social. In: Instrumentos técnico-operativos no serviço
social: um debate necessário. Ponta Grossa (PR): Editora Estúdio Texto, p. 103-127,
2016.

354
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ANÁLISE DAS ALTERAÇOES TRAZIDAS PELA LEI


13.509/17 PELA PERSPECTIVA DOS ASSISTENTES
SOCIAIS E PSICÓLOGOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DE SÃO PAULO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - BAURU


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

355
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Joyce Borges Romeiro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru


Lucia Pereira dos Santos Martarelli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bauru

AUTORES:

Ana Paula Alves dos Santos Gonçalves – Psicóloga Judiciário – Comarca de


Pederneiras
Ana Paula Cardia Soubhia – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pederneiras
Ana Paula Gonçalves Calazans – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Duartina
Carlos Felipe de Freitas Rossi – Psicólogo Judiciário – Serviço Psicossocial Clínico
da Comarca de Bauru
Denise Ferraz de Aguiar – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Cruz do
Rio Pardo
Denise Vitório – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Ecléa Correa de Lacerda Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Edelmaris Campanhã de Moraes e Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Lençóis Paulista
Eliane Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Fabiana de Oliveira Rosolin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pederneiras
Helen Milene Cursino dos Santos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Ivandra Carla Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Izabel Cristina Bergamini de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Iacanga
Laís Elaine Catini Sattin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Luciana Cristina Mastreli Bonora Alves – Psicóloga Judiciário – Comarca de Agudos

356
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Maria Camila Lopes Lenharo Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Bauru
Regiane Lucas de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirajuí
Silvia Regina Gonçalves Serrano – Assistente Social Judiciário – Comarca de Gália
Solange Aparecida Serrano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Vania Aparecida Borim Moretto Delpino – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jaú.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AGRADECIMENTOS

À Instituição Toledo de Ensino pela disponibilização da infraestrutura


necessária à realização dos Encontros do Grupo de Estudos durante o ano.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

A metodologia de trabalho utilizada pelo Grupo de Estudos de Bauru


contemplou reuniões mensais realizadas entre março e dezembro de 2018. No
primeiro encontro, definiu-se o cronograma de atividades sobre o tema do Estudo
Psicossocial e a distribuição em subgrupos formados por técnicos (assistentes
sociais e psicólogos) que ficariam responsáveis pela condução da discussão em
cada encontro.
Nesta ocasião realizou-se a leitura e discussão da Lei 13.509/17,
sancionada em novembro de 2017, que entre outras modificações, alterou os prazos
para a adoção. A referida Lei além de acelerar o procedimento, dá prioridade aos
casos que envolvem irmãos, ou ainda, crianças e adolescentes que possuam
problemas de saúde. As novas regras dividem a opinião de especialistas e do
Judiciário, por isso, o tema foi selecionado para estudo no ano de 2018.
Além de alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a nova Lei
também traz mudanças na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Com a nova
medida, quem adota uma criança passa a ter as mesmas garantias trabalhistas dos
pais biológicos, tais como licença maternidade, estabilidade provisória e direito à
amamentação.
As reflexões do Grupo de Estudos de Bauru voltaram-se para a
compreensão das temáticas que envolveram questões relacionadas à adoção,
dentre elas: entrega voluntária, acolhimento, programa de apadrinhamento afetivo,
destituição do poder familiar e adoção.
O primeiro tema apresentado e discutido foi a entrega voluntária que
abordou principalmente o fluxo de procedimentos da Equipe Técnica do Poder
Judiciário no que tange ao atendimento às mulheres que intencionam ou
procederam a entrega de um filho para adoção. Ressaltou-se o olhar peculiar que
deve ser direcionado a elas que tomam tal decisão, ao envolver desde o acolhimento
inicial de suas demandas até a tentativa de compreensão integral das dimensões
que perpassam tal escolha.
Apesar do segundo tema o qual o grupo se dedicou ter sido o
acolhimento, primou-se em maior ênfase ao institucional, que abordou o fluxo de
procedimentos, as orientações metodológicas e as alterações na legislação
pertinentes ao tema.
359
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O terceiro assunto, tratado foram os programas de apadrinhamento


afetivo, que trouxe como referenciais as portarias das Comarcas de Bauru,
Pederneiras e São Manuel. Destacou-se a normatização proposta pela Lei
13.509/17, no que se refere à regulamentação legal do apadrinhamento.
Dando prosseguimento aos estudos discutiram-se as novas configurações
da destituição do poder familiar, com prioridade para a atuação dos Assistentes
Sociais e Psicólogos do Poder Judiciário nesse âmbito.
Por fim, abordou-se o tema da adoção, momento em que o grupo
responsável apresentou um comparativo entre as alterações da Lei 13.509/17 e o
ECA, o que gerou uma reflexão sobre os impactos na atuação das Equipes Técnicas
do Poder Judiciário.

1 - ENTREGA VOLUNTÁRIA

“Que absurdo! Onde já se viu fazer isso? Não é cachorro para dar...
Por que não se preveniu? Não tem coração... Precisa ter muita
coragem para fazer isso...”
Essas frases são comentários típicos voltados a mulheres que
entregaram ou intencionam entregar o filho para adoção. Uma
mescla de raiva, repulsa e punição são dirigidos a essas mulheres,
tidas como monstros.
Mas será bem assim? O que motiva tal atitude? O que fez essas
mulheres atravessarem os desafios de uma gestação para
entregarem um filho? Quais sentimentos vivenciam? Será que
encerram com a entrega? Qual caminho percorrem? Recebem os
atendimentos de que necessitam?

As questões apresentadas por Leão e Serrano (2017, p. 173) abordam o


discurso de rejeição e repulsa, normalmente direcionados às mulheres que
intencionam ou procederam a entrega de um filho em adoção. A experiência
profissional ao atuar em casos de entrega voluntária no atendimento dessas
pessoas, também partilha das inquietações expostas nas perguntas anteriores
assim, o grupo mobilizou-se para estudar tal tema, objetivando discutir conteúdo
bibliográfico acerca do assunto, bem como as mudanças decorrentes da Lei
13.509/17, relacionando-os à nossa experiência e aos casos atendidos em nossa
prática profissional no âmbito dos Fóruns.

360
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O ato de entrega do filho em adoção pela mãe se faz presente na história


da sociedade brasileira, vista por diversas óticas ao longo do tempo, cuja trajetória,
nos primórdios se apresenta como prática clandestina, pecaminosa, que deveria
ocorrer às escondidas, não havendo espaço para que a genitora pudesse vislumbrar
alternativa diferente que não, confiar o destino de sua prole à benevolência de
terceiros. Tal situação era reforçada pela inexistência de política pública voltada a tal
realidade, tendo como pano de fundo, basicamente, a postura caritativa da igreja no
papel de zelar pelos pequenos órfãos e desamparados da sociedade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em sua redação original
(BRASIL, 1990), assegura o direito das crianças e adolescentes e especifica os
deveres a serem cumpridos pelos pais e responsáveis e a forma como o Estado e a
Sociedade devem agir frente às necessidades desses seres em desenvolvimento,
ensejando uma Política Pública de garantia dos direitos a eles atribuídos.
A atenção às famílias visando à manutenção da criança e do adolescente
no seio familiar sempre esteve presente no ordenamento jurídico, que também
ressaltou a possibilidade da criança e do adolescente serem colocados em adoção,
assegurando a convivência em família mesmo que não seja a sua, natural ou
extensa.
Decorridos 19 anos de existência a Lei Federal nº 12.010/09, entre outros
assuntos, incluiu-se o parágrafo 5º no artigo 8º e o Parágrafo Único do artigo 13 do
ECA no tocante a possibilidade da gestante ou mãe escolherem entregar o filho em
adoção, mediante o encaminhamento obrigatório destas à Justiça da Infância e da
Juventude.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), com
vistas a padronizar o atendimento a essas mulheres no âmbito das Varas da Infância
e Juventude e garantir o direito ao convívio familiar e comunitário da criança, editou
o Provimento da Corregedoria Geral (CG) nº 43/2015.
A Lei Federal nº 13.257/16, a qual dispõe sobre as Políticas Públicas para
a Primeira Infância, altera o Capítulo do Direito à Vida e à Saúde do ECA e amplia
os direitos às gestantes e mães, inclusive as que manifestem o desejo de entrega do
filho em adoção e às que se encontram com a liberdade privada, de terem acesso
aos serviços de saúde de forma integral.

361
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Seguindo essa linha de atuação por parte do Estado, em 22 de novembro


de 2017, foi promulgada a Lei 13.509, alterando o disposto na Seção I do Capítulo III
do ECA “Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária”, com a inclusão do artigo
19-A, parágrafos 1º ao 9º que trata exclusivamente do processo de entrega do filho
em adoção, antes ou após o nascimento, no sentido de oportunizar a mulher o
devido amparo legal para sua decisão, a possibilidade de ser atendida, ouvida e
assistida pelo poder público frente a tal medida, bem como o direito da criança em
ser inserida em família substituta sem ter que vivenciar períodos indefinidos de
acolhimento.
Ainda que a lei vigente traga ao conhecimento da sociedade a
possibilidade de entrega do filho em adoção, como uma decisão possível e pensada,
a prática vivida no trabalho da Equipe Técnica do Poder Judiciário apresenta um
quadro de sofrimento, insegurança, conflitos e preconceito, situações que se
abordaram mediante recortes de casos analisados.
Com base na prática profissional elegeram-se três casos distintos que se
referem à intervenção de membros do grupo junto a mães que se manifestaram pela
entrega do filho em adoção.
O primeiro caso a ser apresentado trata de uma mãe com formação
universitária, que omitiu a gestação de seus familiares. Realizou o pré-natal
regularmente e o parto ocorreu em maternidade particular. Segundo relatos da
genitora durante a gestação preparou-se para a entrega do filho por meio do acesso
às questões jurídicas/legais de sua decisão.
Ao considerar a pouca ocorrência da manifestação pela entrega de
crianças naquela unidade hospitalar, os profissionais daquele Serviço Social
estabeleceram contato com a Equipe Técnica da Vara da Infância e da Juventude
(VIJ), com vistas às orientações que perpassam os aspectos normativos e legais
frente ao desejo manifesto pela genitora. Tais orientações foram devidamente
prestadas à citada equipe.
No entanto, durante os procedimentos iniciais realizados pelas
profissionais de Serviço Social e Psicologia da VIJ, a genitora se retratou quanto a
manifestação inicial, pois segundo ela, ao retornar para casa após a alta hospitalar,
refletiu sobre sua decisão e avaliou que não poderia conviver com o fato da entrega
do filho. Demonstrou arrependimento e a intenção em ter o filho sob seus cuidados.

362
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Frente à retratação da genitora e com base nos estudos social e psicológico, a


criança retornou ao convívio familiar.
No segundo caso, na maternidade houve a manifestação quanto ao
desejo de entrega possivelmente em decorrência de uma sobrecarga da genitora,
que não havia feito o pré-natal. A referida residia com o companheiro e três filhos
ainda em tenra idade. Ao se iniciarem os estudos, verificou-se que a genitora se
posicionou pela entrega, no entanto, o genitor se mostrava contrário.
Ao avaliar a manifestação diversa dos pais, a princípio, a entrega foi
descaracterizada e houve a possibilidade dos pais se aproximarem da criança
inserida no serviço de acolhimento. No entanto, os genitores não realizaram visitas e
no decurso processual novamente a mãe se pronunciou pela entrega e o genitor não
compareceu às intervenções propostas. Assim, respeitou-se a manifestação da
genitora.
A terceira situação se refere a uma genitora, mãe de três filhos, que
residia em outro estado da Federação e ao ter conhecimento sobre a gestação
passou a morar nesta localidade junto ao único familiar que teve conhecimento
sobre a entrega do filho em adoção. Realizou todos os procedimentos inerentes ao
pré-natal e demais acompanhamentos de saúde e após o parto manteve a decisão
inicial. Observa-se que neste caso, após os procedimentos judiciais a genitora
retornou à cidade de origem, onde seus familiares não sabiam do ocorrido.
Ao finalizar as considerações que são propostas, ressalta-se que a
atuação nos casos de mães que intencionam a entrega do filho em adoção, envolve
o acolhimento inicial de suas demandas e a compreensão integral das dimensões
que perpassam tal decisão. Registra-se que, conforme apresentado nos estudos
elaborados por Leão e Serrano (2017), em algumas situações a genitora ao ser
esclarecida de que seus filhos serão colocados em família adotiva e não
permanecerão em serviços de acolhimento por tempo indeterminado tendem a se
tranquilizar, ainda que momentaneamente.
Ainda tendo como referência os estudos de Leão e Serrano (2017, p.
181.): “Chama a atenção à escassez de pesquisas em relação a essas mulheres,
bem como a evolução da vida após a entrega da criança, o que dificulta a
compreensão sobre o significado desta separação para a mãe”.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outra questão observada se refere aos limites, ainda presentes, quanto à


intervenção das Políticas Públicas na atuação, cuidados e proteção a essas
mulheres. Observou-se a necessidade de aprofundamento dos estudos, bem como
aprimoramento do trabalho em rede.

2 - ACOLHIMENTO

A Política Nacional de Assistência Social prevê o serviço de acolhimento


inserido na Proteção Especial de Alta Complexidade, que podem ser divididos nas
seguintes modalidades, a saber: abrigo, casa lar, casa de passagem e residência
inclusiva. Há também o serviço de acolhimento em república, em família acolhedora,
e a proteção em situações de calamidades públicas e emergências.
Nesse trabalho focou-se o acolhimento institucional na modalidade de abrigo,
verificando-se que é a que mais atende a demanda nas Comarcas representadas no
grupo de estudos. Verificou-se também que existe a demanda para outras
modalidades de acolhimento institucional, mas na maioria das jurisdições o serviço é
inexistente.
Quanto ao fluxo do acolhimento, geralmente ocorre por requisição do
Conselho Tutelar ou por determinação do Poder Judiciário – neste caso geralmente
o Ministério Público oferece denúncia ao juiz sobre a situação de risco da criança ou
do adolescente e o magistrado determina o acolhimento, que pode ser ou não
precedido por estudo psicológico, social ou psicossocial da Equipe Técnica
Judiciária.
Tomando-se por base o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Direito à
Convivência Familiar e Comunitária, é importante considerar que a decisão pelo
afastamento do convívio familiar é extremamente séria e de profundas implicações
tanto para a criança quanto para a família. Portanto, deve ser aplicada apenas
quando representar o melhor interesse da criança/adolescente e o menor prejuízo ao
seu processo de desenvolvimento.
O acolhimento institucional em abrigo é destinado a crianças e adolescentes
em situações graves de abandono, vitimização, explorações sexual e de trabalho,
fuga do lar, vivências de rua, vulnerabilidade social e pessoal, ou seja, destinam-se a
indivíduos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, a fim de garantir-lhes
proteção integral.
364
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Devem ser observadas as orientações metodológicas e o que a legislação


indica em diferentes situações, ressaltando-se que a falta de recursos materiais não
constitui motivo de acolhimento, portanto em caso de pobreza a família deve ser
incluída em programas oficiais de auxílio; também nos casos de violência
intrafamiliar quem deve ser afastado da moradia comum é o agente agressor; e nos
casos de crianças com necessidades especiais, estas devem ser encaminhadas
para serviços de saúde, educação e assistência social.
A organização do serviço de acolhimento deve garantir a privacidade, o
respeito aos costumes, às tradições e a diversidade de ciclos de vida, arranjos
familiares, raça/etnia, religião, gênero e orientação sexual. O atendimento deve ser
personalizado e em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar e comunitário.
As regras de gestão devem ser construídas de forma participativa e coletiva.
Necessitam funcionar em unidade inserida na comunidade e com características
residenciais.
Segundo Oliveira (2003, p.36):

A proposta do atendimento é que se reproduza um cotidiano similar


ao de um ambiente residencial, o que não significa substituir a família
ou imitá-la. Para concretização desse princípio devem-se considerar,
entre muitas questões, a capacidade de abrigamento da unidade, o
imóvel em que ela funciona, a possibilidade de um relacionamento
contínuo entre abrigados e funcionários, e o plano de trabalho,
dirigido a cada criança ou adolescente que, com base no resgate de
sua história, procurará encontrar alternativas para a reintegração
familiar.

Durante o processo de acolhimento enfatiza-se a necessidade do trabalho


em rede, comunicação e articulação entre os atores, o que proporciona um olhar
transdisciplinar, conjuga e integra a população alvo a uma cadeia de programas e
serviços interligados, proporciona intervenção agregadora e includente.
Considera-se como espaço de proteção as redes de proteção
espontâneas e de serviço sociocomunitário, além das redes sociais movimentalistas,
as redes setoriais públicas e a rede privada.
Imediatamente após o acolhimento da criança ou do adolescente a
entidade responsável pelo programa de acolhimento institucional ou familiar elabora

365
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

um PIA (Plano Individual de Atendimento), visando a reintegração familiar ou


colocação em família substituta.
O PIA é um instrumento que norteia as ações a serem realizadas para
viabilizar a proteção integral, a reinserção familiar e comunitária e a autonomia de
crianças/adolescentes afastados dos cuidados parentais. Fixa os compromissos
assumidos pelos pais ou responsável, pela própria criança/adolescente, pelos
responsáveis pelo acolhimento e pelas políticas setoriais. Prevê a definição de
metas, estratégias, responsabilidades e prazos acordados entre os pares para
alcançar sua finalidade.
A equipe interprofissional do serviço de acolhimento é responsável pela
coordenação e elaboração do PIA, mas ele deve ser construído em parceria com os
profissionais da rede socioassistencial, contar com a participação ativa da
criança/adolescente acolhido, considerando-se o seu grau de desenvolvimento, bem
como da sua família.
Esse instrumental deve criar estratégias para superação dos motivos que
levaram ao afastamento da criança/adolescente do convívio familiar e possibilitar
seu retorno à família de origem (natural ou extensa), e nos casos em que se
esgotarem as possibilidades de reintegração, deve incluir ações que visem a
colocação da criança em família substituta (nas modalidades de guarda, tutela ou
adoção).
Em relação ao acolhimento institucional enfatiza-se que a Lei 13.509/17
trouxe alterações importantes ao Art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
onde passou a constar que:
Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de
acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada no máximo a cada
três meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório
elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma
fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou pela colocação em
família substituta;
A permanência da criança ou do adolescente em programa institucional
não se prolongará por mais de dezoito meses, salvo comprovada necessidade que
atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade
judiciária;

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família


terá preferência em relação a qualquer outra providência, caso em que será incluída
em serviços e programas de proteção, apoio e promoção;
A criança ou adolescente em programa de acolhimento institucional ou
familiar poderão participar de programa de apadrinhamento.
Desta forma, as alterações na legislação buscam uma padronização dos
serviços de acolhimento e maior agilidade na reavaliação dos casos das crianças e
adolescentes acolhidos, proporcionando-lhes menor tempo de institucionalização
possível.

3 - PROGRAMA DE APADRINHAMENTO AFETIVO

O Programa de Apadrinhamento Afetivo foi estabelecido pelos


provimentos CG nº 36 de 2014 e CG nº. 40 de 2015, tais normativas objetivavam
disseminar a prática do apadrinhamento afetivo como ferramenta útil no sentido de
proporcionar convivência familiar a crianças e adolescentes com poucas
perspectivas de retorno à família de origem ou à adoção. Em seguida a Lei nº
13.509 de 22 de novembro de 2017, regulamentou legalmente o apadrinhamento.
Cada Comarca do TJSP regulamentou em Portaria própria o projeto de
apadrinhamento conforme a realidade local. O presente texto utilizou três projetos
implementados em cidades pertencentes à Região Administrativa de Bauru.
O Apadrinhamento Afetivo é um programa para crianças e adolescentes
acolhidos, visando o desenvolvimento de estratégias e ações para fortalecimento da
convivência comunitária de crianças e adolescentes, útil nos casos em que tal direito
está ameaçado, quando os laços familiares estão fragilizados ou rompidos e são
remotas as chances de inserção em família adotiva. A vivência de um vínculo
individualizado e duradouro, as experiências de convívio familiar, a ampliação de
participação na vida comunitária e do repertório social e cultural estão entre os
benefícios esperados para as crianças e adolescentes participantes.
Sousa e Paravidini (2011, p. 538) definem:

[...] o apadrinhamento afetivo como uma prática que intenta


proporcionar às crianças acolhidas vínculos alternativos dotados de
significado, que contribuam para que elas tenham vivências
familiares e emocionais saudáveis ao seu desenvolvimento psíquico.
367
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Os autores entendem que é possível, dentro do contexto das crianças


institucionalizadas, surgir um sujeito desejante apesar dos entraves do tempo e das
rupturas dos laços vivenciadas por elas.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente a instituição de
acolhimento é um local para permanência temporária de crianças e adolescentes
impossibilitados de estarem com suas famílias, é fato que muitos passam anos
nessas instituições, privadas do convívio familiar e comunitário. Muito embora o
serviço de acolhimento institucional funcione no sentido de atender à prerrogativa do
artigo 92 do ECA, que indica atendimento personalizado e em pequenos grupos,
respeitando a individualidade de cada acolhido, aproximando-se o mais perto
possível de uma realidade familiar, a ligação afetiva ainda é frágil. Vários motivos
podem explicar tal fato, um deles seria a atuação em regime de plantão dos
cuidadores/educadores.
No entanto, Souza e Paravini (2011, p. 538), baseados na experiência do
estágio clinico, observaram que, apesar das

[...] psicopatologias encontradas nos estudos sobre crianças


abrigadas, é possível, sim, alcançar formas subjetivantes,
desejantes, almejantes de sonhos, de crescimento e de
amadurecimento emocional.

Pode-se perceber que é possível que essas crianças tomem posse de


sentidos de existência, construindo relações significativas. Espera-se que a troca
afetiva com um padrinho e/ou madrinha possibilite à crianças e adolescentes
acolhidos construírem referências afetivas e sociais, podendo favorecer a superação
da lástima do abandono e o desenvolvimento do sentimento de pertencimento.
Dessa forma, cria-se a possibilidade de recuperar a autoestima de
crianças e adolescentes, pela oportunidade de serem investidos de afetos e
cuidados. A vinculação afetiva de qualidade favorece o estabelecimento de
relacionamentos estáveis e duradouros que se tornarão referenciais familiares e
sociais para o futuro. Essa experiência pode ajudar na superação do sentimento de
solidão, muito comum nos jovens em situação de abandono, quando atingem a
maioridade.
A medida pressupõe três modalidades de apadrinhamento:

368
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

● Apadrinhamento afetivo/padrinho afetivo: implica em contatos


diretos entre apadrinhado e padrinho, de forma regular, inclusive com autorização
para atividades fora do serviço de acolhimento, direcionam-se às crianças com idade
a partir de 8 anos.
● Apadrinhamento financeiro/padrinho provedor: consiste em
contribuição econômica para atender as necessidades de uma criança ou
adolescente acolhidos institucionalmente, independente da idade. Tal modalidade
não pressupõe contato direto entre “padrinho” e “apadrinhado”, podendo, a critério
do “padrinho” ser convertido em apadrinhamento afetivo, com ou sem prejuízo do
apadrinhamento financeiro, respeitando-se a idade mínima estabelecida para
apadrinhamento afetivo.
● Apadrinhamento profissional/padrinho prestador de serviços:
trata-se da oferta profissional de serviços que atendam a demanda dos acolhidos e
da instituição, tais serviços serão voltados à cultura, esporte, lazer, educação, saúde
inerente à profissão, ofício ou talento inerente ao padrinho. (Portaria nº 01/18)
Na nossa experiência verifica-se que os projetos de apadrinhamento
afetivo são executados pelos setores técnicos do TJSP ou em parceria com a
sociedade civil. O apadrinhamento afetivo fica a cargo do poder judiciário, que
seleciona e acompanha o andamento dos contatos entre padrinho e apadrinhado. O
programa estabelece fluxos que envolvem o juiz responsável pela Vara da Infância e
da Juventude, equipes técnicas judiciárias e os profissionais do serviço de
acolhimento.
Aos pretendentes a padrinhos afetivos cabem à solicitação formal ao
judiciário, os quais passam por avaliação da equipe técnica do juízo, sendo
avaliados requisitos para o exercício de padrinhos afetivos, que envolvem:
disponibilidade de tempo e afeto; ambiente familiar receptivo; concordância dos
demais familiares (cônjuge/companheiros, filhos, pais); não apresentar qualquer
demanda judicial envolvendo crianças e adolescentes.
O apadrinhamento financeiro e profissional é executado pela equipe do
serviço de acolhimento, responsabilizando-se pela divulgação de tais possibilidades
de apadrinhamento, assim como, de manter registro dos padrinhos dessas
modalidades.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O apadrinhamento é uma prática que historicamente já era desenvolvida


pelos serviços de acolhimento e a Lei 13.509/17 que deu visibilidade e formatação a
esta prática. Há que se ressaltar que o ideário segue no sentido de possibilitar o
direito deste público alvo à convivência e referenciais distantes do serviço de
acolhimento, ou melhor, difícil de ser exercido por uma entidade social. Assim,
considera-se que existe necessidade de maior aprofundamento, debate e pesquisas
com vistas a analisar o melhor interesse de crianças e adolescentes acolhidos.

4 - NOVAS CONFIGURAÇÕES DA DESTITUIÇÃO DO PODER


FAMILIAR

As equipes técnicas das Varas da Infância e da Juventude no Brasil são


basicamente formadas por assistentes sociais e psicólogos, os quais possuem a
atribuição de auxiliar os magistrados nas decisões acerca dos processos referentes
a essa matéria. Dentre as ações de responsabilidade das referidas varas, destaca-
se a Destituição do Poder Familiar, cuja finalidade é investigar a capacidade dos
genitores para exercerem os cuidados com os filhos e pode implicar na ruptura
temporária ou permanente dos vínculos entre eles.
O ECA preconiza como dever dos pais, no exercício do poder familiar, o
sustento, a guarda e a educação dos filhos menores. Os genitores têm atribuídos a
si, direitos e deveres pertinentes à pessoa e aos bens dos referidos filhos.
Relaciona-se ao antigo pátrio poder, termo contido no Código Civil de 1916, que
considerava somente o pai como detentor do poder familiar.
Os critérios utilizados pelos profissionais nas avaliações dessa matéria
são abrangentes, mas em sua maioria observam a competência parental para
cumprirem o estabelecido no art. 22 da Lei 8.069/9046, definida como o conjunto de
capacidades que permitem aos pais lidarem de modo flexível e adaptativo com a
tarefa de criarem filhos, no atendimento de suas necessidades nas áreas físico-
biológica (cuidados com a integridade física, alimentação, higiene, sono, atividade
física e proteção frente a riscos potenciais), cognitiva (estimulação sensorial,
exploração e compreensão da realidade física), emocional e social (segurança
emocional, identidade pessoal e autoestima, rede de relações sociais,

46
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-
lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
370
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

estabelecimento de limites de comportamento e educação) e não sobre um padrão


ideal de parentalidade. (EIDT, 2016).
Entretanto, na maioria dos casos, as famílias avaliadas encontram-se em
situação de vulnerabilidade e risco social47, com o uso abusivo de álcool e outras
substâncias psicoativas e demandas na área de saúde mental, pobreza, violência
doméstica, encarceramento dos genitores, etc. Ainda neste contexto são avaliadas a
disposição dos genitores e como percebem e vivem a sua função como pais,
satisfação com a tarefa, consciência da importância do seu papel na vida dos filhos,
autonomia e busca de apoio (rede de apoio familiar e social). Dos pais são exigidas
todas as responsabilidades sobre a proteção dos filhos e com isso fica velado que
muitas vezes, a perda do poder familiar, ocorre de um abandono que parte primeiro
do Estado pela ineficiência das políticas públicas.
Em casos mais extremos, como no atendimento de gestantes usuárias de
substâncias psicoativas, em situação/vivência de rua, sem
atendimento/acompanhamento médico para realização do pré-natal, observa-se uma
prática de notificação ao sistema de justiça, por parte das instituições
hospitalares/maternidades, quando essas mães dão entrada para a realização do
parto, para as devidas providências e/ou apreciação do caso pelo Judiciário, o que
implica muitas vezes, no acolhimento familiar ou institucional do recém-nascido na
alta hospitalar, sob a alegação de que estaria em situação de risco e posterior Ação
de Destituição do Poder Familiar. Tal conduta nos chama a atenção e suscita vários
questionamentos em nosso campo de atuação.
Nesta perspectiva, o CONANDA (BRASIL, 2017) reporta considerações
pertinentes frente à retirada compulsória de bebês de mães usuárias de substâncias
psicoativas, observando que:

[...] tal medida adotada aprofunda a criminalização e penalização da


pobreza e da situação de vulnerabilidade social [...] não inclui mães
usuárias dos sistemas privados de saúde, tampouco as usuárias de

47
SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE “decorrentes da pobreza, privação (ausência de renda,
precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos afetivos –
relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiência,
dentre outros)”. (PNAS/2004, p. 33).
SITUAÇÕES DE RISCO PESSOAL E SOCIAL, “por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e,
ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas
socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras” (PNAS/2004, p. 37).

371
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

drogas lícitas, como álcool e o tabaco [...] Reconhecer que a


dependência química e a situação de trajetória de rua, bem como a
ausência de recursos materiais não devem constituir-se como
fundamentos para a retirada compulsória de bebês de mães nessa
situação, conforme prevê Art. 23, § 1º da Lei 8.069/1990. [...]
Reafirmar a defesa da proteção integral de crianças e adolescentes,
do direito prioritário da convivência familiar e comunitária e demais
garantias expressas na Lei.

Há que se considerar igualmente que, embora o Sistema de Justiça deva


pautar-se por ações homogêneas nesta questão, particularmente observa-se que as
intervenções são balizadas pelo entendimento legal do magistrado, ocasionando
condutas diversas em cada Comarca.
O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece no Capitulo III -
Seção II – Art. 155/163 o procedimento para a Perda ou Suspensão do Poder
Familiar, sendo que recentemente ocorreram mudanças em seu texto, trazidas pela
Lei 13.509/17, as quais se referem a: entrega voluntária, destituição do poder
familiar, acolhimento, apadrinhamento, guarda e adoção de crianças e adolescentes.
O Estatuto foi impactado, igualmente, pelas modificações da mesma Lei, ocorridas
na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT (para estender garantias trabalhistas
aos adotantes), e no Código Civil (para acrescentar nova possibilidade de destituição
do poder familiar).
A seguir, destacam-se algumas alterações concernentes à destituição do
poder familiar, assim como aos temas conexos a este, contidas no ECA:

- Art. 19, § 1: Redução no prazo de reavaliação das


crianças/adolescentes em situação de acolhimento, de seis para três
meses;
- Art. 19-A: Regulamentação da entrega voluntária e dos
procedimentos para execução, considerando a posterior decretação
de DPF, se não houver a indicação do genitor ou de outro
representante da família extensa apto a receber a guarda;
- Art. 101, § 10: Redução do prazo atribuído ao Ministério Público
para ingresso com a ação de destituição do poder familiar, de trinta
para quinze dias; salvo se houver o entendimento quanto à
necessidade de realização de estudos complementares ou de outras
providências imprescindíveis ao ajuizamento da demanda;
- Art. 151, parágrafo único: Autorização para nomeação de peritos,
visando a realização de estudos psicossociais ou qualquer outra
avaliação técnica, na ausência ou insuficiência de servidores
públicos do Poder Judiciário;

372
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

- Art. 157 e parágrafos seguintes: Determinação de estudo social ou


perícia realizada por equipe interprofissional ou multidisciplinar para
comprovação de uma das causas de suspensão ou destituição do
poder familiar; ressalvando-se a disposição no § 10 do art. 101 do
ECA (necessidade de estudos complementares para o ajuizamento
da ação), e observando-se a Lei 13.431/17, que estabelece o
sistema de garantia de direitos da criança/adolescente testemunha
ou vítima de violência. Havendo ainda a prerrogativa para
intervenção de representantes do órgão federal responsável pela
política indigenista, no caso de pais provenientes de comunidades
indígenas;
- Art. 158 e parágrafos seguintes: Para citação do/s requerido/s, há
previsão de que familiares e vizinhos sejam informados quanto ao
retorno do oficial de justiça, no caso de ausência do/s interessado/s;
e a citação por edital dos genitores com paradeiro desconhecido,
dispensando-se o envio de ofícios para localização;
- Art. 163: Agregado ao prazo de 120 (cento e vinte) dias para
conclusão do procedimento de DPF (já definido em redação anterior),
houve a inclusão da incumbência do juiz em direcionar esforços para
preparação da criança/adolescente, visando a inserção em família
substituta, quando houver notória inviabilidade de manutenção do
poder familiar” (BRASIL, 2017).

Aparentemente, as alterações trazidas por esta Lei tendem a cooperar


para conceder celeridade ao processo de adoção, haja vista a diminuição e/ou
estabelecimento de prazos, a dispensa de alguns procedimentos e a
regulamentação de ocorrências não previstas na legislação anteriormente.

5 – ADOÇÃO

No quadro a seguir se faz um comparativo entre o Estatuto da Criança e


do Adolescente (ECA) e a Lei 13.509/17.
Seção III- Da Família Substituta
Subseção IV- Da Adoção
Antes Atualmente
Art. 46. A adoção será precedida de Art. 46. A adoção será precedida de
estágio de convivência com a criança estágio de convivência com a criança
ou adolescente, pelo prazo que a ou adolescente, pelo prazo máximo de
autoridade judiciária fixar, observadas 90 (noventa) dias, observadas a idade
as peculiaridades do caso. da criança ou adolescente e as
peculiaridades do caso.

373
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

§ 3o Em caso de adoção por pessoa ou § 3o Em caso de adoção por pessoa ou


casal residente ou domiciliado fora do casal residente ou domiciliado fora do
País, o estágio de convivência, País, o estágio de convivência será de,
cumprido no território nacional, será de, no mínimo, 30 (trinta) dias e, no
no mínimo, 30 (trinta) dias. máximo, 45 (quarenta e cinco) dias,
prorrogável por até igual período, uma
única vez, mediante decisão
fundamentada da autoridade
judiciária.
Art. 50- § 10. A adoção internacional Art. 50- § 10. Consultados os
somente será deferida se, após cadastros e verificada a ausência de
consulta ao cadastro de pessoas ou pretendentes habilitados residentes no
casais habilitados à adoção, mantido País com perfil compatível e interesse
pela Justiça da Infância e da Juventude manifesto pela adoção de criança ou
na comarca, bem como aos cadastros adolescente inscrito nos cadastros
estadual e nacional referidos no § 5o existentes, será realizado o
deste artigo, não for encontrado encaminhamento da criança ou
interessado com residência permanente adolescente à adoção internacional.
no Brasil.
Art. 51. Considera-se adoção Art. 51. Considera-se adoção
internacional aquela na qual a pessoa internacional aquela na qual o
ou casal postulante é residente ou pretendente possui residência habitual
domiciliado fora do Brasil, conforme em país-parte da Convenção de Haia,
previsto no Artigo 2 da Convenção de de 29 de maio de 1993, Relativa à
Haia, de 29 de maio de 1993, Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação
Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional,
em Matéria de Adoção Internacional, promulgada pelo Decreto no 3.087, de
aprovada pelo Decreto Legislativo no 1, 21 de junho de 1999, e deseja adotar
de 14 de janeiro de 1999, e promulgada criança em outro país-parte da
pelo Decreto no 3.087, de 21 de junho Convenção.
de 1999.
§ 1o ... I - que a colocação em família
§ 1o .... I - que a colocação em família adotiva é a solução adequada ao caso

374
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

substituta é a solução adequada ao concreto;


caso concreto;
II - que foram esgotadas todas as II - que foram esgotadas todas as
possibilidades de colocação da criança possibilidades de colocação da criança
ou adolescente em família substituta ou adolescente em família adotiva
brasileira, após consulta aos cadastros brasileira, com a comprovação,
mencionados no art. 50 desta Lei; certificada nos autos, da inexistência de
adotantes habilitados residentes no
Brasil com perfil compatível com a
criança ou adolescente, após consulta
aos cadastros mencionados nesta Lei;

Na sequência apresentam-se os artigos que foram incluídos pela referida Lei.

Art. 39- § 3o Em caso de conflito entre direitos e interesses do adotando e de


outras pessoas, inclusive seus pais biológicos, devem prevalecer os direitos e
os interesses do adotando.
Art. 46- § 2o-A. O prazo máximo estabelecido no caput deste artigo pode ser
prorrogado por até igual período, mediante decisão fundamentada da
autoridade judiciária.
§ 3o-A. Ao final do prazo previsto no § 3o deste artigo, deverá ser apresentado
laudo fundamentado pela equipe mencionada no § 4 o deste artigo, que
recomendará ou não o deferimento da adoção à autoridade judiciária.
§ 5o O estágio de convivência será cumprido no território nacional,
preferencialmente na comarca de residência da criança ou adolescente, ou, a
critério do juiz, em cidade limítrofe, respeitada, em qualquer hipótese, a
competência do juízo da comarca de residência da criança.
Art. 47- § 10. O prazo máximo para conclusão da ação de adoção será de
120 (cento e vinte) dias, prorrogável uma única vez por igual período,
mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária.

375
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Art. 50- § 15. Será assegurada prioridade no cadastro a pessoas


interessadas em adotar criança ou adolescente com deficiência, com doença
crônica ou com necessidades específicas de saúde, além de grupo de irmãos.

As alterações propostas nos artigos que tratam, diretamente, sobre o


processo de adoção enfatizam a prevalência do princípio norteador do interesse
superior da criança e do adolescente.
As determinações inéditas e alterações nos prazos pretendem a
celeridade do processo sem desconsiderar a regra em que a inserção da
criança/adolescente em família adotiva deva se dar de forma gradativa e
programada, respeitando o tempo do adotado e a sua evolução na nova família, com
o devido acompanhamento da equipe técnica. Objetivando a celeridade, a finalidade
permanece sendo sempre o bem-estar da criança e do adolescente. Por isso,
prazos estipulados podem ser postergados pela autoridade judiciária diante das
peculiaridades do caso, com justificativa fundamentada.
A legislação passa a dar prioridade, ainda maior, à habilitação de
pretendentes que tenham interesse em adotar crianças ou adolescentes com
deficiência, doença crônica ou grupo de irmãos, oportunizando maior agilidade
nesses procedimentos, bem como da busca e vinculação.
Assim como deixa claro que a adoção internacional passa a ser aquela
em que o pretendente possui residência habitual em país parte da 'Convenção de
Haia', e não mais residente e domiciliado fora do Brasil.
Por fim, altera a nomenclatura de família substituta para família adotiva,
mantendo a necessidade de comprovação - certificação nos autos - da inexistência
de adotantes habilitados residentes no Brasil com perfil compatível com a criança ou
adolescente, após consulta aos cadastros.

376
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

6 - CONCLUSÃO

O tema proposto pelo Grupo de Estudos do Serviço Social e Psicologia


Judiciários – Família - Bauru/SP no ano de 2018 foi a análise das alterações trazidas
pela Lei 13.509/17 e suas implicações para a atuação profissional.
Ainda que a referida Lei trate de assuntos que já fazem parte da rotina
profissional do Assistente Social e do Psicólogo no Tribunal de Justiça, entendeu-se
como importante o estudo da normativa com referência à prática estabelecida até
então, no sentido de verificar os avanços atingidos, com o reconhecimento de
direitos, bem como avaliar como a legislação muitas vezes está à frente do que a
realidade oferece, principalmente quando se depara com uma Rede ainda frágil e
inconsistente.
A questão do direito da gestante e mãe de escolher entregar seu filho em
adoção está previsto na seara legal, prevendo a oferta de serviços e equipamentos
de acolhida e escuta, porém ainda depara-se com a dificuldade da sociedade, e
também de profissionais de diversas áreas e segmentos, em de fato encampar tal
atitude sem preconceito. Neste trabalho foi possível verificar pelo estudo do texto de
referência que a inexistência de pesquisas com genitora e mãe que desejam
entregar o filho em adoção dificulta a compreensão dos conteúdos emocionais,
sociais, morais e culturais, que envolvem a questão.
A medida protetiva de acolhimento recebeu atenção tendo diminuído o
prazo para a reavaliação da necessidade do acolhimento e do tempo de duração do
afastamento do convívio familiar, enfatizando a importância de se definir a situação
jurídica do acolhido com a maior brevidade, seja com seu retorno ao convívio da
família natural e extensa, ou sua colocação em família por meio da adoção.
A Lei em questão também trouxe ao conhecimento a prática instituída
pelos Serviços de Acolhimento ao longo do tempo, dando corpo, forma e
uniformidade ao apadrinhamento, e nesse sentido buscou que as crianças e
adolescentes de todos os serviços de acolhimento, cujo retorno ao seio da família
natural e extensa seja inviável e com remota chance de inserção em família adotiva,
possa experimentar a convivência com uma família mediante o apadrinhamento,
relação pautada pela proximidade e vínculos afetivos estabelecidos gradualmente.
As modalidades de apadrinhamento financeiro e profissional também foram
evidenciadas pela Lei, no sentido de atender a outras necessidades da criança e do
377
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

adolescente que se encontram acolhidos. Observou-se pelo estudo que o Programa


de Apadrinhamento é desenvolvido de formas diferentes pelas Comarcas, todavia o
objetivo é o mesmo e muito tem contribuído.
Quando se verifica que a medida mais adequada aos interesses da
criança e do adolescente acolhido é colocação em família substituta por meio da
adoção, a Ação para Perda ou Suspensão do Poder Familiar se faz necessária. Tal
procedimento recebeu atenção da Lei em foco, tratando dos procedimentos a serem
adotados junto aos genitores para que o processo tenha trâmite célere visando não
restringir as possibilidades do acolhido em ser adotado. No que tange a destituição
do poder familiar, sob a ótica da família destituída, observou-se que são diversas as
situações que envolvem tal medida, muitas vezes o que está em evidencia não é a
ausência de sentimentos e de afetividade, mas uma realidade social complexa
devido, não via de regra, mas com uma incidência bastante considerável, o uso e
dependência de substância entorpecente e de etílicos por parte dos genitores.
A adoção não deixa de ser ressaltada na Lei 13.509/17, que reduz o
período do estágio de convivência da criança e do adolescente com os postulantes à
adoção, e ressalta a prioridade no cadastro à adoção dos pretendentes que
manifestem interesse em adotar criança ou adolescente com deficiência, com
doença crônica, ou necessidades especiais e grupo de irmãos, visando ampliar as
possibilidades destes em contarem com uma família.
No decorrer do trabalho questionou-se sobre a efetivação da Lei em tela
tendo como base a prática desenvolvida pelos Assistentes Sociais e Psicólogos do
TJSP, sendo observado que os assuntos abordados são dinâmicos e merecem
constante análise e estudo além de um olhar apurado por parte dos profissionais no
cotidiano de sua atuação, sempre buscando o melhor interesse da criança e do
adolescente.

378
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal 8.069/90, de 13 de julho


de 1990, dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, Brasília,
Ministério da Justiça, Brasília – DF. 1995.

_______. Lei Federal nº 12.010, de 13 de agosto de 2009. Brasília, DF.

_______. Lei nº 13.509, de 22 de Novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera


a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o
de maio de 1943, e a Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/lei/L13509.htm

________. Lei Federal nº 13.257 de 2016, de 08 de março de 2016. Brasília, DF.

________. Política Nacional de Assistência Social - PNAS/2004. Norma Operacional


Básica – NOB/SUAS. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Secretaria Nacional de Assistência Social. Brasília, DF. 2005.

_______. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência


Familiar e Comunitária, Brasília, CNAS/CONANDA, 2006.

________. Resolução n.109, de 11 de novembro de 2009, dispõe sobre a Tipificação


Nacional de Serviços Socioassistenciais, Brasília, Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, Conselho Nacional de Assistência Social, 2009.

Comparativo entre o Eca e a nova lei de adoção. Disponível em:


www.crianca.mppr.mp.br/.../eca/comparativo_eca_x_lei_13509_2017_caopcae.pdf

CONANDA. Nota Pública do CONANDA de Repúdio a Retirada Compulsória de


Bebês de Mães Usuária de Substâncias Psicoativas. Brasília, 19 de Outubro de
2017.
379
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

CNAS (CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL). Política Nacional de


Assistência Social. Brasília: MDS, 2005.

EIDT. Helena B. AVALIAÇÕES DE PERDA DO PODER FAMILIAR: PRÁTICAS NO


CONTEXTO BRASILEIRO E UTILIZAÇÃO DO SISTEMA DE AVALIAÇÃO DO
RELACIONAMENTO PARENTAL (SARP), Universidade Federal do Rio Grande do
Sul Instituto de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Porto
Alegre/RS, Maio de 2016. Disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/166079/001005427.pdf?sequence
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SOUSA, K. K., & PARAVIDINI, J. L. L. Vínculos entre crianças em situação de


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paternidade socioafetiva. Diário Oficial Eletrônico do Estado de São Paulo. 12 de
dezembro de 2014.

______. Corregedoria Geral de Justiça. Provimento nº 43, de 14 de outubro de 2015.


Regulamenta o procedimento de entrega voluntária de infante pela genitora no

380
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

âmbito das Varas da Infância e da Juventude. Diário Oficial Eletrônico do Estado de


São Paulo. 17 de dezembro de 2015.

______. Juiz de Direito Corregedor Permanente do Cartório do Ofício da infância e


Juventude da Comarca de Bauru. Portaria nº 12, de 28 de abril de 2017. Institui na
Comarca de Bauru o programa de apadrinhamento afetivo na Comarca de Bauru.

______. Juiz de Direito da 2ª Vara Judicial de Pederneiras. Portaria nº 01, de 8 de


fevereiro de 2018. Institui o programa de apadrinhamento de crianças e
adolescentes acolhidos institucionalmente na Comarca de Pederneiras.

______. Juíza de Direito da 2ª Vara Judicial Cumulativa e Anexo da Infância e


Juventude da Comarca de São Manuel. Portaria nº 02, de 12 de junho de 2017.
Institui o programa de apadrinhamento de crianças e adolescentes acolhidos
institucionalmente na Comarca de São Manuel.

381
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A PATERNIDADE NA MODERNIDADE E SUAS


DIFERENTES VERTENTES: O OLHAR DA EQUIPE
INTERPROFISSIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DE SÃO PAULO

GRUPO DE ESTUDOS INTERIOR – CAMPINAS


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
382
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Marcia Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas


Maria Amália do Val Simoni – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

AUTORAS

Adriana Miquelini Lavoura – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapira


Claudia Maria Zoppe Coregio – Assistente Social Judiciário – Comarca de Serra
Negra
Daniela Cristina Roque de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
João da Boa Vista
Gisele Bueno de Godoi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi Mirim
Maira Goulardins Gomes – Assistente Social Judiciário – Comarca de São João da
Boa Vista
Maria Aparecida de Vasconcellos Pompeo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi
Guaçu
Maria Isabel Monfredini – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapira
Maria Nilza Ferreira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Águas de
Lindóia
Paula Renata Baltazar Rodrigues da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Paulínia
Vanessa Pereira Cleto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itatiba

383
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“A paternidade, quer do pai ou da mãe, é a


mais difícil tarefa que os seres humanos tem
para executar. Pois pessoas, diferentemente
dos outros animais, não nascem sabendo
como serem pais. Muitos de nós luta do
princípio ao fim”.
Karl Menniger

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos – Família – Campinas, neste ano se debruçou sobre


o tema da Paternidade.
Considerando a importância das figuras parentais, enfocaremos neste
artigo a relevância da paternidade nos cuidados com os filhos, na medida em que
observamos a existência de uma geração de pais mais conscientes, ativos,
participativos, disponíveis e desejosos de um contato e convivência mais extensiva
com os filhos e também, de outro lado, pais que se ausentam desses cuidados e
rompem esses vínculos.
Atuamos no cotidiano do nosso trabalho com situações singulares e em
processos múltiplos e complexos que permeiam as relações humanas no contexto
dos sujeitos e de suas respectivas famílias, bem como na primazia da perspectiva da
garantia de direitos, na qual a questão da paternidade na modernidade é uma
demanda que se apresenta e nos impulsiona a elaborar uma análise cuidadosa dos
papéis exercidos e do lugar que este filho ocupa.
Novas designações surgiram e os formatos de famílias se ampliaram, em
contextos distintos, nos quais o afeto passou a ser um delineador comum de muitas
relações familiares estabelecidas. Conforme observa Dias (2017), baseando-se em
Catalan, “como a família é uma estrutura de afetividade, as verdades parentais são
construídas no tempo e no espaço do convívio cotidiano. O parentesco não está
atado necessariamente a vinculação genética ou a outra moldura excludente,
qualquer que seja ela”.
A influência da família – sem desconsiderarmos a multiplicidade de
definições que a circundam – e dos papéis parentais na construção da identidade da

384
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

criança é essencial para a sua formação e desenvolvimento e contribuirá para a sua


definição como pessoa única e singular.
Atentas à multiplicidade das relações, ao tempo histórico, bem como às
influências que atingem as relações familiares, o papel dos pais na atenção e
cuidados aos filhos é de fundamental importância para a formação de suas
identidades e assume um lugar de centralidade, na medida em que observamos
grandes mudanças, que trazem à tona não somente a incumbência de cuidados dos
pais com os filhos biológicos, mas também a questão da família recomposta, que
infere e estabelece uma nova modalidade de pais que, em virtude do
estabelecimento de novas uniões conjugais, muitas vezes assumem e mantêm uma
relação paterno-filial - construída pelo afeto – com os filhos dos companheiros.
Uma das tarefas fundamentais dos pais é o cuidado com o filho, de modo
a atender suas necessidades, tanto física quanto emocionalmente e, atentas à figura
e ao papel paterno “pensamos na paternidade não como uma obrigação, mas como
algo pertencente à ordem do desejo, à demanda do direito, e que implica um
compromisso” (LYRA, 2005, p.89).
Debruçamo-nos a estudar e a refletir que tornar-se pai é um processo em
construção – exercício de um papel além da obrigação alimentar, que abarca o
direito do filho à convivência familiar e ao cuidado. Existe também a situação
inversa, na qual apesar de constituída uma relação paterno-filial legalmente
reconhecida, muitos pais ingressam com ações de negatória de paternidade.
Embora tenhamos desenvolvido, ao longo de séculos, a tendência natural,
cultural e histórica em que se situa e reconhece o filho na ordem de domínio da mãe,
enaltecendo a maternidade como uma missão divina e ao pai sendo delegado o
compromisso do sustento e do provimento material, o que vemos na atual conjuntura
é que muitos pais deixaram de ocupar o papel de mero provedor e também de se
submeterem a um contato e proximidade com o filho de forma esporádica e
superficial. Por outro lado, temos que a omissão da figura paterna em reconhecer
e/ou conviver com os filhos, configura o descumprimento do dever do cuidado,
demandando no sistema judiciário ações que englobam o pedido de reconhecimento
da paternidade e/ou de pagamento de indenização por abandono afetivo.

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1 - A PARENTALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Vivenciamos importantes mudanças no contexto socioeconômico, cultural,


biológico, jurídico e tecnológico, que trouxeram significativas implicações na
estrutura familiar, bem como repercutiram na maternidade e na paternidade.
O movimento feminista, o advento da pílula anticoncepcional, a inserção
da mulher no mercado de trabalho, a questão da dupla jornada da mulher, os
avanços das técnicas de reprodução assistida, o advento do exame de DNA, o
controle da fecundidade, a dissolubilidade do vínculo conjugal, somados aos
avanços legais que validaram o compartilhar de direitos e deveres pelo homem e
pela mulher na sociedade conjugal, a criança como sujeito de direitos –
considerando a Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente e as
reformulações importantes no Código Civil – a legalização das uniões homoafetivas,
a guarda compartilhada, a paternidade socioafetiva, acrescidos ao surgimento e à
dinâmica das redes de relacionamento pela internet, e até mesmo o aparecimento
de novas expressões, como multiparentalidade e parentalidade socioafetiva,
apresentam para a sociedade e, principalmente, para a equipe interprofissional, que
atua no âmbito do judiciário, tarefas desafiadoras no desvelar de papéis instituídos
para responder às demandas apresentadas com essas novas configurações.

As novas relações de gênero implicam redefinições nas identidades


individuais, conjugais e parentais, o que significa dizer que: gênero,
casamento, maternidade e paternidade, na atualidade, são questões
cada vez mais complexas, à medida que não há mais padrões
tradicionalmente instituídos e a experiência torna-se particularizada e
múltipla. (COSTA, 2014, p.79).

As transformações decorrentes deste processo histórico desencadearam


mudanças significativas nas famílias e nas relações de gênero, abarcando não
apenas modificações nas relações entre o homem e a mulher, mas também dos
papéis desempenhados, “o homem foi colocado em uma posição de escolha, de ser
pai ou não” (COSTA, 2014, p.79).
Normas e ações instituídas ao longo de séculos, que perpassavam as
relações, expuseram outras práticas e valores que influenciam nas relações de
produção e do mercado, no âmbito da sexualidade e do afeto, na representação e na
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

alteração dos papéis sociais assumidos pelo homem e pela mulher, no trato da
infância e adolescência, na relação entre adultos e crianças, produzindo avanços
também no marco das legislações.

[....] essas “interferências” históricas na família e nas relações de


gênero produziram modificações nas relações entre o homem e a
mulher, e no papel de cada um deles no contexto familiar. As
divisões dos papéis desempenhados no seio da família, que eram
bem claras e definidas, após várias transformações, foram se
modificando. As mulheres passaram a contribuir financeiramente
para o sustento familiar e os homens timidamente, passaram a
participar dos cuidados dos filhos e de algumas tarefas domésticas.
(LEITE, 2013, p. 7)

Ainda assim, mesmo diante de tantas mudanças, quando da confirmação de


uma gravidez, eis que surgem algumas questões, as quais perpassam desde o sexo
do bebê até o reconhecimento e funções a serem assumidas pelos pais.
Naturalmente, está arraigado o desempenho dos papéis a serem exercidos nos
cuidados à criança, especialmente aqueles relacionados à questão de gênero,
havendo ainda uma idealização do papel da mãe quanto ao cuidado e, o do pai,
considerado na sua função mais elementar – a de provedor.
Entretanto, o estabelecimento de relações menos formais e estáveis afetou as
expectativas de homens e mulheres diante dos papéis desempenhados, trazendo
implicações nas relações estabelecidas, modificando as estruturas familiares e a
função parental.

As novas configurações familiares vêm mostrando mudanças nos


arranjos familiares e a reorganização dos papéis sociais, tanto por
parte do homem quanto da mulher. Isso vem atingindo, diretamente,
os papéis de mãe e de pai dentro do contexto familiar. Assim, mesmo
no interior de uma família nuclear, constituída de pai, mãe e filho(s),
são observadas modificações no exercício da parentalidade, ou seja,
do ser pai e do ser mãe, e são essas mudanças que, atualmente,
estão sendo pesquisadas. Novos casais, tais como: homoafetivos,
recasados, sem filhos, com filhos, promovem novas formas de
construir a parentalidade. Daí, o exercício de ser pai e de ser mãe
requer olhar sobre uma nova ótica para a família contemporânea.
(COSTA, 2014, p.80).

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A relevância de compreender a diversidade das relações, as


transformações ocorridas e o reconhecer de práticas de cuidado, considerando o
momento histórico, incide diretamente na forma como concebemos o papel do
homem e da mulher no cuidado com os filhos, de modo a não mais privilegiarmos a
representação da mãe como a única cuidadora por excelência e nem de atribuirmos
ao homem um papel secundário e de mero coadjuvante na vida dos filhos.
As funções exercidas pelo cuidador principal, logo após o nascimento do
bebê, podem ser exercidas por qualquer adulto capaz e responsável. No entanto, se
a genitora não tiver algum impedimento, ela é naturalmente a pessoa indicada para
fazê-lo, inclusive porque, do ponto de vista biológico, está preparada para este
exercício, situação que pode se modificar paulatinamente, de modo a permitir que
outro adulto presente – o pai, protetor desta dupla, compartilhe dos cuidados.
Entendemos que, com as transformações nas famílias e nos papeis
parentais, fica cada vez mais evidente a importância também do pai nas relações de
cuidado e de afeto, e nos casos de separação e/ou de arranjos familiares distintos é
fundamental garantir a continuidade da presença e dos cuidados de ambas as
figuras parentais, lembrando que a convivência é um direito de pais e filhos.
Muitos não têm assegurado o seu direito de filho na relação e convívio
paterno, seja por não ter tido a paternidade reconhecida, seja por tê-la e não
conseguir ou não ter respeitado o seu direito à convivência, sendo desconsiderada a
condição de dependente e também de ter e receber cuidados e afeto.
Para Boff (1999), “o cuidado é parte integrante e constitutiva do ser
humano e tem, portanto, uma dimensão ontológica, fazendo parte da estrutura de
base do ser humano o precisar ser cuidado e o sentir o impulso de cuidar”. Indicando
assim que é a partir do cuidado que vínculos são estabelecidos na relação com o
outro.
Entendemos parentalidade como o exercício de um conjunto de papéis
estruturantes no psiquismo humano – a função materna e paterna. A primeira,
definida como a capacidade de reconhecer e atender às necessidades de uma
criança, intermediar seu conhecimento do mundo. A paterna, de dar limites a esta
ligação simbiótica e introduzir a criança no mundo social e à lei. Estas funções se
sobrepõem no exercício, mesclam-se nos papéis dos cuidadores da criança e não
são atributos exclusivos e específicos da mãe e do pai.

388
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Na ruptura da relação conjugal, o processo de guarda busca reassegurar


o direito da criança a prosseguir seu desenvolvimento físico e socioafetivo da forma
mais plena possível, com o amparo de adultos que possam garantir a continuidade
de cuidados. Buscamos, então, o que se denomina o “melhor interesse da criança”.
Tais considerações são importantes na medida em que um ato jurídico pode ter
consequências na continuidade da estruturação psíquica da criança, pois uma
decisão judicial pode ter efeito legal, mas não ter validade no plano emocional,
acarretando vitimização.
Nesse contexto, ocorre a reflexão do que são os papéis parentais e suas
competências, considerando que delas derivam as condições para que tal
desenvolvimento prossiga a contento.
Não bastaria, então, que se reportasse aos laços biológicos, visto que, por
si só, não garantiriam a proteção e entorno afetivo que a criança necessitaria para
atravessar uma fase de descontinuidade, representada pela ruptura conjugal dos
pais, ou cuidadores de referência. Surge então, a distinção entre a paternidade
derivada da condição de filiação biológica e o exercício da parentalidade de fato, na
qual os laços de afetividade cada vez mais se sobrepõem em nossa cultura.
Se o vínculo biológico não é suficiente para garantir o laço de
compromisso e afeto entre a criança e seus pais, conclui-se que o processo de se
tornar pai, ou mãe, é uma construção complexa que se dá ao longo de uma relação,
de um tempo e um entorno cultural.

2 - O PAI NO SISTEMA DE JUSTIÇA, SOB O OLHAR DA EQUIPE


INTERPROFISSIONAL

Efetuamos uma análise acurada da condição de vida das famílias e das


relações parentais, assumidas ou não, diante de inúmeras demandas que se
apresentam ao judiciário e, considerando a relação paterno-filial, o nosso trabalho
permeia ações que se circunscrevem em pressupostos condicionados à questão do
acesso e à garantia de direitos, cuja atuação está pautada em avaliação que
perpassa o fundamental respeito pelos sujeitos, atenção ao tempo histórico, às
relações de poder, às transformações e alterações de modelos instituídos, à
reprodução ou não reprodução destes modelos, às necessidades e carências,

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considerando os condicionantes éticos, políticos, econômicos, tecnológicos e


afetivos.
Assim, no âmbito do judiciário, as demandas apresentadas nos autos,
relacionadas às questões da paternidade, apontam para algumas mudanças de
paradigmas, considerando a dinâmica das relações, a flexibilização dos papéis nos
cuidados com os filhos e a valorização da questão do cuidado dentro do âmbito
paterno.
Filhos oriundos de relações conjugais rompidas têm o direito à preservação
dos vínculos parentais e de convívio na relação paterno-filial e, diante da
reconfiguração familiar, outras modalidades de vínculos também podem ser
constituídas, daí a importância de também nos atermos à questão da
multiparentalidade, do vínculo socioafetivo e à preservação destes.
Uma parcela significativa de homens conseguiu imprimir uma disponibilidade
de cuidados, proteção e atenção e vislumbra a perspectiva de uma convivência mais
ampla e/ou o assumir responsabilidade perante os filhos, almejando ocupar
efetivamente o papel de pai na vida deles, e desejosos de fazer parte de uma
dinâmica familiar na qual se reconheçam como partícipes. Nesse sentido, segundo
Leite (2013) a situação do divórcio pode ser um dos fatores que justifica a mudança
no perfil dos homens.

Essa conjuntura permitiu também que o homem descobrisse e


valorizasse o prazer, a gratificação, a realização como pai, de estar
mais próximo dos seus filhos. Por isso, cada vez, os pais (de) ??
interessem e buscam lutar por seus direitos de exercer a guarda, de
estarem presentes e compartilharem das responsabilidades,
reconhecendo a importância, o significado e a contribuição de cada
genitor na formação de seus filhos. (LEITE, 2013, p.11).

Diante de um engajamento maior do homem no assumir e desempenhar


sua função parental, ensejando o direito de convivência e assumindo a
responsabilidade na tarefa do cuidado direto com o filho, muitos pais já não são mais
estigmatizados como ausentes. Por outro lado, ainda há mulheres com dificuldade
de favorecer o compartilhamento dos cuidados que lhes foram instituídos ao longo
dos anos pela sociedade. Leite (2013) esboça que as transformações sociais que
afetam as famílias proporcionam modificações nos papéis desempenhados, e um
390
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

novo universo masculino passa a ser construído, evidenciando talentos da


paternidade mesmo que de maneira tímida.
A mudança da conduta de muitos pais diante desta paternidade assumida
e exercida é um marco importante na vida dos filhos, de modo que estes não se
tornem indefinidamente “o bebê da mamãe”, que tenham suas atitudes também
validadas pela figura paterna e que a voz do pai tenha a devida importância.
Contudo, temos que ter o cuidado de relativizar, na medida em que alguns pais não
conseguem imprimir um papel ativo e participativo na dinâmica de convívio e
interação com os filhos.

3 - O PAI NO SISTEMA DE JUSTIÇA: REFLEXÕES A PARTIR DE


EXEMPLOS ENCONTRADOS NO COTIDIANO DAS EQUIPES
INTERPROFISSIONAIS

As mudanças culturais, sejam positivas ou negativas, sugerem que cada


família acomoda a sua história, o seu modelo. Partindo desse pressuposto e também
da proposta de se refletir como cada um de nós aprendeu sobre gênero desde a
infância até a vida adulta e, na atualidade, como percebemos na família as funções
paterna e materna em relação aos cuidados com as crianças nas tarefas domésticas
e como elas são distribuídas, o grupo de estudos promoveu um exercício de reflexão
tomando como referência a família de cada uma das profissionais integrantes.
As vivências apontaram para diferentes dinâmicas. Algumas comentaram
que quando crianças, embora houvesse distinção das funções parentais, a mãe era
a cuidadora e o pai provedor. Perceberam ao longo do tempo que algumas tarefas
domésticas desempenhadas apenas pela mãe foram sendo absorvidas pelo pai,
como fazer o café, corroborando que, embora o sistema crie necessidades, dite
parâmetros, a dinâmica interna de cada um demonstra a especificidade que cada
família tem na escolha do modelo a ser seguido. Também foram trazidas vivências
em que os pais sempre dividiram tarefas, predominando o modelo de parceria,
sinalizando quanto à importância de se partilhar tarefas para preencher tanto os
desejos quanto as necessidades de cada um.
Foi apresentado como exemplo um caso de adoção de grupo de irmãos
por casal homoafetivo, no qual os adolescentes manifestavam não verem diferenças,
pois para eles os papeis parentais eram desempenhados de forma igual, mas ao

391
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

descreverem o cotidiano, faziam distinções com as funções assumidas por cada um


dos pais. Nesse sentido, salientamos que houve aprimoramento no desempenho de
muitas tarefas no decorrer das gerações. Por exemplo, a mulher não sabia dirigir,
até o momento em que começou a fazê-lo, e hoje dirige bem. Também assumiu
algumas profissões que até bem pouco tempo eram desempenhadas apenas por
homens e, assim, fazendo um paralelo, podemos comparar a questão do
aperfeiçoamento do homem no desempenho da função de pai cuidador, zeloso,
prestativo, cooperativo, participativo etc. Nesse sentido, relembramos Costa (2014)
ao salientar na atualidade o exercício da paternidade.

Se antigamente o exercício da paternidade requeria menor inserção


na família nuclear, hoje a parentalidade e a conjugalidade são
exercícios separados, inclusive juridicamente, pois pode ser exigido
do pai o envolvimento na vida dos filhos, mesmo quando houver
separação, alguns autores trazem a palavra paternagem referindo-se
ao papel do pai no exercício dos cuidados com o filho. A mulher e a
sociedade, como um todo, exigem novas demandas do pai atual. [....]
Autores como Ramires (1997) e Osório (2002), realizaram estudos
sobre a constituição do patriarcado. Segundo eles, a inauguração da
supremacia masculina se deu quando o homem invejou as
capacidades femininas e começou a dominá-la. (COSTA, 2014,
p.80).

Ponderamos que são a prática e a disponibilidade que criam habilidades


parentais, e por mais que sejam funções determinadas, são passíveis de
reconstrução, de modo que os modelos podem ser ressignificados. Apontamos que
não se nasce mãe, torna-se mãe, assim, para tornar-se pai, é necessário ter
consciência do lugar que se ocupa. Por tais questões decorre a dificuldade de se
romper com alguns paradigmas internalizados e a importância de se entender o
exercício da parentalidade, de buscar no cotidiano do nosso trabalho conhecer o que
está posto na dinâmica familiar, inclusive no momento da crise, e como esses papeis
parentais vieram se desenvolvendo e estão se configurando.
Recordamos o exemplo de uma entrevista com uma criança resistente ao
contato com familiares da linhagem paterna, sendo percebido pela profissional que
não havia valorização do passado do pai e dos avós. Nesse aspecto, complementa-
se que a identidade desta linhagem, no caso a paterna, fica fragilizada, pois se

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

percebe que em muitas famílias assistidas não há história preservada e nem


repassada por gerações, favorecendo o desenraizamento, porque não há
pertencimento.
Exemplos também foram retomados em relação às insistências em
projetos de reconhecimento de paternidade que nem sempre indicam ser
pertinentes, pois nem todos os pais que se tornam registrais assumem o papel
afetivo da relação paterno-filial. Assumem a paternidade, alegam que irão promover
a aproximação para convivência, ajuízam ação de regulamentação de visitas,
promovem apenas uma ou duas visitas e não sustentam o prosseguimento desta
convivência, tornando-a frágil e instável.
Os pedidos de negatória de paternidade podem ser exemplos. Nesses
casos, nos deparamos com situações em que os homens assumiram a paternidade
legal mesmo não sendo os genitores ou tendo dúvidas da paternidade biológica.
Quando ocorre uma busca pela interrupção definitiva da relação com esta criança,
ao término do relacionamento conjugal, percebe-se que a iniciativa de registrar a
criança naquele momento era vista como vantajosa para os adultos, e não
necessariamente atendiam aos interesses da criança, que ficam relegados a
segundo plano quando o vinculo existente é interrompido, havendo, em muitos
casos, a preponderância da questão financeira. Em tais circunstâncias, mais uma
vez as crianças ficam a mercê daquilo que convém aos adultos, a despeito de suas
necessidades.
Outra questão que normalmente vem sendo observada se volta para
ações diferentes e excludentes, embora coexistam, ou seja, ação de
regulamentação de visita paterna e ação de negatória de paternidade, indicando
algumas controvérsias da vida real, que se apresentam no sistema de justiça em
relação à questão da paternidade.
Ainda no campo da exposição de exemplos, foi trazido um atendimento
em que a genitora ajuizou ação de negatória de paternidade do pai registral e ao
mesmo tempo ajuizou ação de reconhecimento de paternidade e de alimentos do
suposto pai biológico. A mãe manteve namoro por três anos. Separaram-se e ela se
envolveu com uma pessoa de outra cidade. Reatou o namoro, descobriu-se grávida
e se casou. Essa questão veio à tona quando a criança estava com quatro anos,
porque o marido ouviu dizer que o filho talvez não fosse dele. A realização de exame

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de DNA indicou a não paternidade. Separaram-se quando a criança tinha por volta
de cinco anos. A mãe revelou ao filho seu possível pai biológico e foi à procura
deste, o localizando pelas redes sociais. Hoje a criança está com 11 anos de idade e
durante esses cinco anos não conheceu pessoalmente seu possível pai biológico,
que é casado e tem outros filhos. Durante estudo realizado a criança perguntou para
as técnicas se poderia ficar com os dois pais. O pai registral se mostrou totalmente
resistente em manter qualquer contato mais próximo com a criança, alegando que
não conseguia, pois não o via como filho. O objeto do estudo versou em avaliar a
paternidade socioafetiva, sendo pontuado que ela se tornou unilateral, isto é, apenas
da criança para com o pai registral, bem como assinalado que, embora o desejo
manifesto da criança fosse ficar com os dois pais, poderia acabar por ficar sem
nenhum deles, e sem nenhuma referência afetiva nesse sentido.
Mais exemplos foram discutidos e um assunto que também acabou
levantando reflexões do grupo foi a existência de práticas de inseminações caseiras.
A ação chegou para estudo psicossocial como pedido de adoção unilateral, ajuizada
pela companheira da genitora da criança. Esse tipo de conduta vem sendo
disseminada, e ao se pesquisar na rede sobre o assunto, percebeu-se que várias
pessoas se predispõem a fazê-la. Comentários sobre essa prática foram feitos uma
vez que ações já estão em curso no judiciário, traduzidas em ações de adoções
unilaterais.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A validação do papel parental do pai na vida dos filhos perpassa a


questão da aproximação, da vinculação, da continuidade dos cuidados, e se
inscreve na atualidade como um canal de aprendizado dentro do contexto das
relações estabelecidas, sendo imperioso compreender a extensão do lugar ocupado
por este pai, sem cairmos no ceticismo de uma supervalorização ou permissividade
do papel assumido, pois muitas mães se reinventam cotidianamente para atender as
demandas e manter os cuidados aos filhos e suas atitudes e empenhos são tidos
como “naturais” ou como uma obrigação, mas quando os pais o fazem, são vistos
como “super-heróis” e por vezes contam com a complacência de terceiros, mesmo
não cumprindo de forma satisfatória com seu papel, inclusive por profissionais das
mais diversas áreas de atuação.

Na sociedade contemporânea, apesar de a família ter passado por


grandes mudanças ficando mais vulnerável à dissociação, ela, ainda
assim, é um valor que a sociedade cultiva. As mudanças familiares,
nos últimos tempos, transformaram o modo de compreender o amor
e a sexualidade, a criação, a maternidade e a paternidade de tal
forma que parecia que a família poderia desaparecer. No entanto, a
família tende a se reorganizar, a ponto de permanecer constituindo-
se como estrutura básica social. (COSTA, 2014, p. 81).

As reflexões apresentadas constituem uma amostra do grau de


complexidade que a tarefa do profissional Assistente Social e Psicólogo Judiciário
representa. Sabemos que a verdade é sempre impossível de ser apreendida
totalmente. As partes em lide procuram apresentar sua leitura dos fatos, às vezes,
com queixas simétricas um do outro; tais construções de pensamento, muitas vezes
repetidas, passam a se constituir verdades para o sujeito.
O profissional tenta se isentar destes vieses e, principalmente, do seu
próprio, a fim de não cair no lugar comum e em pseudocertezas, buscando separar o
que é real interesse e afeto pelo filho, de outros que se centram em motivações mais
patológicas. Tudo isto compreendendo o sofrimento das dolorosas perdas
acarretadas por separações, feridas que, por vezes, jamais cicatrizam.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considerando as transformações nas organizações familiares e a


ampliação do papel parental do pai, bem como, tendo em vista as necessidades das
crianças e adolescentes de pertencimento, cuidado e afeto, que lhes permitam se
desenvolver de maneira saudável, este deverá ser o norte das ações e prática
profissional cotidiana nas avaliações dentro do judiciário, favorecendo o
desenvolvimento de relações familiares, ainda que não haja convivência diária.
O melhor interesse das crianças e adolescentes deve balizar o trabalho
técnico e ser o ponto de partida nas avaliações e na elaboração dos laudos, assim
como nas reflexões a serem feitas com os pais.

396
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

COSTA, D.C.G. Negatória de Paternidade : uma análise sob a ótica do pai.


Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Universidade Estadual Paulista.
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Franca: 2014.

DIAS, M.B. Filhos do Afeto. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

LEITE, A.F.D. Da Construção do Espaço familiar aos vínculos de afetividade entre


os homens/pais e filhos e o compartilhamento da guarda. 2013 Disponível em:
http://www.cress-mg.org.br/hotsite/1/paginas/home.php?pg=5. Acesso em:
11.04.2018.

LYRA, J. Homens e cuidado: uma outra família? IN: ACOSTA, A.R.; VITALE, M.A.F.
(organizadoras). Família: redes, lações e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 2005.

397
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

SIM OU NÃO? O DESAFIO DA HABILITAÇÃO DOS


PRETENDENTES À ADOÇÃO PELAS EQUIPES TÉCNICAS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - DRACENA


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Alessandra Pereira da Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Teodoro


Sampaio
Josy Ferreira Primo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pacaembu

AUTORES

Angela Maria de Carvalho Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Junqueirópolis
Cristiana Kuniko Urahama Iwama – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Dracena
Elisandra Murer Fruchi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Dracena
Lizandra Belloni de Paula Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Dracena
Luciana de Mattos Dias – Psicóloga Judiciário – Comarca de Lucélia
Priscila Alves Martos Casoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de Flórida
Paulista
Regina Furtado Costa Campos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pacaembu

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - SIM OU NÃO? O DESAFIO DA HABILITAÇÃO DOS


PRETENDENTES À ADOÇÃO PELAS EQUIPES TÉCNICAS

A discussão sobre adoção é sempre desafiadora no âmbito profissional.


Neste ano, elegemos como tema de estudo a habilitação dos
pretendentes à adoção pelo fato de ser esta uma de nossas atribuições profissionais
que desperta angústias e preocupações técnicas, além de incitar inquietações
éticas.
Quando voltamos nossa atenção para o estudo de pretendentes à
adoção, vários são os questionamentos que nos mobilizam, diante da
responsabilidade assumida na aferição ao avaliar se uma pessoa ou um casal reúne
ou não condições e habilidades para virem a se constituir como pais, o que implica o
exercício da complexa função parental junto a crianças e adolescentes singulares.
Reportamo-nos àqueles que, decorrente das adversidades da vida e da
conjuntura sociopolítica do país, não puderam permanecer em seus núcleos
familiares de origem, sendo encaminhados aos serviços de acolhimento, de onde
aguardam a possibilidade de inserção em uma família substituta, mediante adoção.
O processo de encontro entre sujeitos sociais que desejam ter filhos
adotivos com crianças e adolescentes que almejam uma família que possam chamar
de sua não tem sido fácil, especialmente porque entre os que aguardam um pai e
uma mãe, em sua maioria, não correspondem ao perfil de boa parte dos adotantes
habilitados no Cadastro Nacional de Adoção.
Não obstante, em nosso cotidiano de trabalho temos nos deparado com
experiências de devolução de crianças e, ou de adolescentes durante estágio de
convivência, o que nos provoca a repensar criticamente acerca da nossa atuação
nesse campo, sobre os critérios avaliativos utilizados para a habilitação de pessoas
e casais nos cadastros, refletindo sobre aspectos psicossociais para os quais
devemos aprofundar o olhar e a análise.
Neste sentido, na produção deste artigo procuramos direcionar nossos
esforços para compreensão da habilitação da adoção, reunindo as legislações em
vigor que versam sobre isso, atentando para questões que nos dizem respeito
(intervenção técnica de assistentes sociais e de psicólogos), com recorte para os
provimentos, para as normativas e resoluções do Tribunal de Justiça do Estado de
400
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

São Paulo, instituição na qual estamos inseridas. Buscamos analisar o curso


preparatório de adoção e refletir sobre a avaliação em si, contemplando as
especificidades de cada área profissional, adentrando, ainda, nos desafios e
dificuldades do posicionamento desfavorável à habilitação dos pretendentes.
Da legislação, sentimo-nos em um espaço privilegiado, pois em vista de
outros estados da federação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se
mostra preocupado em adequar práticas e condutas que estejam concatenadas com
a Lei vigente e com as normativas da Corregedoria Geral de Justiça e do Conselho
Nacional de Justiça.
Em 2015, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo lança o
Provimento CG 01/2015, que regulamenta as atribuições dos magistrados e
servidores em relação aos Cadastros Nacionais da Infância e da Juventude, entre os
quais o Cadastro Nacional de Adoção – CNA e o Cadastro Nacional de
Criança/Adolescente Acolhido – CNCA.
Para uma melhor compreensão do funcionamento da habilitação, das
pesquisas realizadas para busca de pretendentes para as crianças e adolescentes
disponíveis para adoção, dos registros nos livros próprios que cada comarca deve
manter atualizados, apensamos material explicativo a respeito (vide APÊNDICE1).
No que concerne aos cursos preparatórios de adoção, compreendemos
que:

A adoção é um modo de filiação que requer cuidados especiais, e,


por essa razão, caberá a todos os profissionais nela envolvidos, zelar
para que sejam evitados novos rompimentos afetivos na vida das
crianças e adolescentes. Neste sentido é possível afirmar que o seu
sucesso ou insucesso não poderá ser deixado apenas a cargo de
pais e filhos. (Cynthia Peiter).

É nesta perspectiva que refletimos sobre a importância do curso


preparatório durante o processo de habilitação para adoção, reforçando a
responsabilidade e compromisso dos técnicos envolvidos desde o início de todo o
processo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA é o arcabouço legal que
apresenta os requisitos que regulam o processo de adoção. Alterações importantes
decorrentes da Lei nº 12.010/2009 - Lei Nacional da Adoção – trouxeram mudanças

401
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ao referido Estatuto, entre elas a obrigatoriedade do curso de preparação para os


pretendentes à adoção (artigos 50 e 197 C).
Neste contexto, houve uma redefinição dos papéis da equipe técnica nas
Varas de Infância e Juventude, pois a lei anterior não ordenava a preparação
psicossocial e jurídica dos interessados em adotar que tem como finalidade prevenir
eventuais danos ao adotando.
Refletindo sobre o curso preparatório, consideramos que duas questões
básicas precisam ser primeiramente compreendidas para nortear a ação técnica: o
que é e por que realizar o curso preparatório?
Entendemos que o curso demanda uma abordagem interdisciplinar
(envolve assistentes sociais, psicólogos, operadores do Direito), de caráter coletivo
para os pretendentes à adoção, com o objetivo de fornecer informações a respeito
dos procedimentos e etapas que permeiam os processos de adoção, analisando
expectativas e dirimindo dúvidas.
Para Giberti (1944) apud Paiva (1944, p.98), esse trabalho caracteriza
uma forma de prevenção, pois tem como objetivo abordar possíveis conflitos e
interrogações formuladas pelos pretendentes, buscando evitar que dúvidas e
ansiedades interfiram no vínculo a ser construído com a criança e com o
adolescente.
Em 2014, a Corregedoria Geral da Justiça publicou o Provimento CG
36/2014, o qual veio normatizar, entre outros aspectos da adoção, o curso
preparatório, com base nas seguintes diretrizes: necessidade da programação dos
encontros serem feita pela equipe da infância e da juventude, vedado delegar para
outros serviços da rede (Artigo 5º); dos encontros preparatórios para à habilitação
organizados pela vara da infância e da juventude terem um caráter de primeira
sensibilização (Artigo 5º § 1º); ser de caráter facultativo e voluntário para
pretendentes já habilitados (Art. 5º § 2º); apoio dos magistrados às equipes técnicas
para a organização, definição de carga horária, conteúdo mínimo e periodicidade
máxima entre os encontros (Artigo 6º); requisitos para a realização de visitas às
instituições de acolhimento durante os encontros preparatórios obrigatórios
promovidos pela vara da infância e da juventude (Artigo 7º); e possibilidade de
firmar parcerias com grupos de apoio a adoção com visitas à preparação para a
adoção (Artigo 8º).

402
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

É importante destacar que, anteriormente ao Provimento subscrito, no ano


de 2010, foi disponibilizado pelo Núcleo de Apoio Profissional do Serviço Social e da
Psicologia do TJSP, conjuntamente com a CEJAI-SP, um comunicado com sugestão
de conteúdos para o curso preparatório48.
Em pesquisa bibliográfica encontramos outras sugestões de aspectos que
podem ser abordados no curso preparatório:

O curso segue uma estrutura, inicialmente vem a apresentação,


dinâmicas para quebrar o gelo, depoimentos, e os conteúdos
discutidos como: Os aspectos teóricos da adoção, O que é adoção?
O que não é adoção! Os adotantes, Infertilidade, esterilidade,
motivação para adoção, preconceito, a mãe doadora ou desistente, a
criança, o nome da criança, verdade ou revelação sobre a adoção,
medos, anseios, laços consanguíneos, adoção da criança maior,
quem pode adotar, busca da origem, consciência da maternidade e
paternidade, projeto educativo, alertas sobre licença maternidade,
plano de saúde, matrícula escolar, entre outros assuntos pertinentes.
(DUDA, 2017, p. 49).

Entendemos que as orientações citadas são norteadoras de como


estruturar e desenvolver um curso preparatório. Compreendemos também que, de
forma geral, as Comarcas têm autonomia para se organizarem e adaptarem o
formato de acordo com suas diferentes realidades.
Para visualizarmos como as questões metodológicas e estruturais vêm
ocorrendo na prática, no planejamento e desenvolvimento do curso preparatório,
decidimos realizar uma pesquisa junto a Setores Técnicos de outras circunscrições.
Assim, elaboramos um questionário e enviamos por meio eletrônico (e-mail), entre
os dias 17 a 30 de abril de 2018, para Comarcas aleatórias, convidando profissionais
dos setores técnicos, sendo facultativa a participação.
Enviamos os e-mails para 15 Comarcas, das quais 08 colaboraram. São
elas: Adamantina, Bastos, Lucélia, Itapecerica da Serra, Presidente Prudente,
Rancharia, Regente Feijó e Registro.
Os dados foram compilados e sistematizados na tabela abaixo:
Perguntas: Respostas:
Qual a Todas as Comarcas participantes

48
Este documento pode ser encontrado na intranet do TJSP, dentro do site da Coordenadoria da
Infância e Juventude, na área reservado ao Núcleo de Apoio, em ‘Novas Informações’.
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periodicidade dos cursos? realizam o curso semestralmente, desde que haja o


número mínimo de 06 pessoas, conforme prevê o
artigo 6º do Provimento 36/2014.
Em qual momento, 03 comarcas - após a avaliação
no procedimento de habilitação psicossocial;
de pretendentes à adoção, a 02 comarcas - em qualquer fase que
equipe técnica solicita a precede a habilitação;
participação dos pretendentes 02 comarcas - não responderam;
no curso (antes, durante ou 01 comarca - antes do pedido de
após a avaliação habilitação.
psicossocial)?
Local (própria 06 comarcas- em nível de Circunscrição -
Comarca ou em nível de sendo que: 05 comarcas realizam na sede da
Circunscrição) circunscrição e 01 comarca em forma de rodízio;
02 comarcas - na própria Comarca.
Se em nível de 04 comarcas – a organização fica a
Circunscrição: Quem cargo da equipe técnica da comarca que sedia.
organiza? 01 comarca – participa no dia o curso,
Quem participa não há reunião preparatória.
(técnicos)? 01 comarca – não discorreu sobre a
Há reunião participação.
preparatória com todos os
técnicos?
Conteúdo básico Somente 01 comarca respondeu
abordado no curso detalhadamente, esclarecendo que os temas que
são abordados estão relacionados, basicamente,
em desmistificar quem são as crianças que se
encontram em situação de acolhimento. Apresentam
dados, Discutem sobre a origem das crianças e
suas famílias. “Quem são e de onde vem?”.
Abordam também questões de ordem racial no
Brasil, na família brasileira e consequentemente,
sobre as questões raciais das crianças em serviço
de acolhimento, além da faixa etária, da situação de

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

grupos de irmãos, problemas de saúde, entre


outros. Outros temas comum relacionados à família
de origem: abandono, entrega, as expressões da
questão social, etc. Convidam médicos para discutir
questões relacionadas ‘as heranças genéticas’ com
o intuito de esclarecer e reduzir estigmas,
principalmente pela abordagem sensível e
cuidadosa do palestrante. Aspectos relacionados à
adoção – processualidade da adoção: aproximação,
estágio de convivência, filiação, aspectos relacionais
com a criança/adolescentes, etc. Outro tema
discutido está relacionado à situação jurídica da
criança (ação de acolhimento institucional,
destituição do poder familiar, adoção, entre outros).
A metodologia dos encontros tem um formato
variado, mas sempre tentam iniciar com exposição
verbal, posteriormente, usam vídeos (Série Proteção
Integral à Criança e ao Adolescente – encontrados
nos links no site da AASPTJ), há também espaço
para relatos de experiências por famílias adotivas e
um momento para trabalho em pequenos grupos de
pretendentes, com sorteio de temas para debate
entre eles, com a ideia de que sejamprotagonistas
do processo.
Duração 01 comarca - vários encontros, restando
(dias/horas) prejudicada em relação a carga horária;
01 comarca - três encontros com três
horas de duração cada;
01 comarca - seis encontros com carga
horária de duas horas e uma visita aos serviços de
acolhimento;
01 comarca - um encontro com carga
horária aproximada de quatro a cinco horas;
01 comarca - um encontro com carga

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horária aproximada de quatro horas;


01 comarca - um encontro com carga
horária de aproximada de seis horas;
02 comarcas - não responderam.
Nos assuntos 03 comarcas - juiz da Infância e
referentes aos aspectos Juventude e promotor;
jurídicos, participam juízes e 01 comarca – juiz da Infância e
promotores ou se valem de Juventude;
outros profissionais do ramo do 01 comarca - juiz da Infância e Juventude
Direito? e promotores, mas quando não há ninguém do
‘jurídico’, é o serviço social e a psicologia que
aborda as questões que lhe são possíveis;
03 comarcas - não responderam.
É disponibilizado 01 comarca - equipamento áudio visual e
algum recurso pela material de apoio (impressão, papel, caneta, copos
Administração (Tribunal) para e outros); 01 comarca – somente espaço físico;
organização do curso? 01 comarca - impressão dos certificados;
01 comarca - espaço físico, café e água;
04 comarcas - não responderam.
Há 01 comarca – parceria com a rede
parcerias/articulação com a municipal que cede o espaço físico;
rede de apoio do município 01 comarca – parceria com a rede
onde ocorre o curso? municipal que disponibiliza sala de multimídia;
01 comarca – parceria com o grupo de
apoio à adoção (para palestra durante o encontro e
convite para participação posteriormente), com as
equipes dos serviços de acolhimento (para palestra
sobre o cotidiano das crianças e visitas com os
pretendentes como parte do processo de
preparação para a adoção, etc.), com a rede
socioassistencial (para palestra durante os
encontros), e com a universidade local (para sediar
o evento);
01 comarca – não há parcerias;

406
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04 comarcas – não responderam.

Ressaltamos que a colaboração recebida das equipes técnicas de 08


comarcas foi de extrema importância para o enriquecimento de nossas discussões e
reflexões sobre a temática, pois oportunizou conhecer diferenças ou particularidades
de cada local, bem como semelhanças entre comarcas, sendo muitas delas de
circunscrições distintas; reafirmando também a importância dos espaços de
interlocução profissional, voltados à troca de experiências e aprofundamento de
conhecimentos para a promoção da qualificação profissional das equipes técnicas.
Sobre a avaliação psicossocial dos pretendentes, o ECA, a partir da
Lei 12.010/09 designa toda a processualidade da adoção aos profissionais que
compõem a equipe interprofissional do Juízo e, dentre as atribuições que lhes
compete, destaca-se o trabalho relativo à avaliação dos pretendentes até a
colocação da criança em família substituta na modalidade de adoção. Todo o
processo caracteriza-se por especificidades que exigem dos profissionais envolvidos
um olhar distinto e único.
Observamos que não há uniformidade em todas as comarcas que
compõem o nosso grupo de estudos acerca da processualidade da adoção, porém,
o Tribunal de Justiça disponibiliza em sua página oficial um roteiro com orientações
para avaliação de pretendentes à adoção internacional que, também, pode ser
utilizado como parâmetro para os cadastros nacionais.
Na área do Serviço Social há parcas produções referentes à avaliação
dos pretendentes, demandando aos assistentes sociais a busca por referencial
teórico de outras áreas do conhecimento, sobretudo, da Psicologia, visando
complemento de referencial teórico, trazendo à tona a necessidade de
aprofundamento nessa temática e, a partir da prática cotidiana dos assistentes
sociais, avançarem nas contribuições teóricas.
Nossa atuação no processo de habilitação para a adoção inicia-se pela
orientação às pessoas e casais que apresentam interesse na adoção. Nesse
primeiro momento, aproveitamos para acolhê-los e oferecer as primeiras
informações sobre o processo adotivo, que é composto por várias etapas,
esclarecendo dúvidas e respondendo aos questionamentos que nos são feitos.

407
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Compreendemos que a orientação inicial consiste em um momento


importante por oportunizar acolhida, incitar reflexões sobre as motivações que giram
em torno do desejo de estabelecer vínculo de filiação com uma criança/adolescente,
por meio da adoção.
Quando as pessoas e/ou casais retornam com a documentação
preenchida e, após determinação judicial para a avaliação social e psicológica dos
pretendentes, iniciamos os estudos, cuja atuação na maioria das vezes é realizada
conjuntamente, o que qualifica e aprimora o trabalho desenvolvido, possibilitando a
troca de experiências profissionais de cada área.
Consideramos ter autonomia na escolha da metodologia a ser utilizada na
avaliação, momento em que as áreas do saber envolvidas se apropriam de seus
instrumentais técnico-operativos, que lhes permitam o alcance dos objetivos
propostos do Estudo Psicossocial.
Essa avaliação visa conhecer o contexto social e emocional dos
pretensos pais adotivos, bem como, suscitar reflexão junto a estes em relação às
peculiaridades da filiação, especificamente a adotiva.
Nossas discussões suscitaram questionamentos, direcionando nosso
olhar para a compreensão do que consistiria nosso objeto de estudo no processo
avaliativo de habilitação de adoção e as especificidades de cada área profissional no
sentido de delimitar o que competiria ao Serviço Social e à Psicologia analisarem.
Em linhas gerais, compreendemos que o Serviço Social tem como objeto
de trabalho a questão social em suas múltiplas manifestações e a adoção se
constitui em uma de suas expressões. Desse modo, é produto da sociedade
capitalista na reprodução de suas relações de exploração, de desigualdade, de
injustiça e de segregação social.
Observamos, no entanto, uma tendência dos assistentes sociais, da qual
nos incluímos, em focar sua avaliação nos aspectos objetivos da vida dos sujeitos,
concernentes ao contexto socioeconômico, habitacional, familiar, cultural, enfim, com
aparente dificuldade de adentrar nos aspectos subjetivos, daquilo que é observado e
que está nas entrelinhas dos discursos apresentados pelos pretendentes, das
incongruências entre o que é falado e o que é sentido, da inautenticidade dos
interesses, desejos e disponibilidades.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As questões objetivas se apresentam como manifestações da


questão social, produzidas e reproduzidas pelas relações na
sociedade capitalista (trabalho, moradia, saúde, educação, terra,
assistência social, violência, questão de gênero, dentre outros) e as
questões subjetivas se apresentam no contexto das relações
sociais, ligadas aos impactos que a trajetória de vida e a
sociabilidade imprimem à identidade dos indivíduos em sua
singularidade, se expressando através de sentimentos, emoções e
significados em seu contato com o mundo e com outros indivíduos,
conforme vínculos estabelecidos (CAVALCANTE et al apud SILVA
2017, p. 479).

Trata-se de uma subjetividade distinta daquela que perpassa o território


de conhecimento da Psicologia, tem a ver com o social, com as relações humanas
empreendidas na esfera familiar de sujeitos que trazem particularidades pessoais.
Essa subjetividade está pautada na construção das relações sociais e no
processo de socialização dos indivíduos, somado as suas particularidades,
trajetórias, modelos, vínculos, arranjos, dinâmica, relações, redes de apoio, que
tornam a identidade dos indivíduos singular.

Os pretendentes à adoção, de modo geral, apresentam condição


socioeconômica favorável e praticamente nenhuma vulnerabilidade,
portanto, os aspectos objetivos da avaliação geralmente são
favoráveis ao atendimento das necessidades materiais de uma
criança/adolescente. Sendo assim, são as questões subjetivas que
devem ocupar um lugar de destaque nessa avaliação social e o
reconhecimento disso favorece uma escuta qualificada e
comprometida com o outro em atendimento (CAVALCANTE et al
apud SILVA, 2017, p. 480).

Nessa toada, discutimos a respeito da escassez de produções


bibliográficas e da necessidade urgente do Serviço Social produzir textos, artigos e
livros que versem sobre os aspectos subjetivos relacionados à demanda de adoção,
especificamente no que tange à habilitação dos pretensos pais adotivos e ao estágio
de convivência.
Uma das angústias que surgiu em nossos encontros se refere ao desafio
de sustentar teoricamente e de forma fundamentada, um parecer social desfavorável
à habilitação de pessoas e, ou casais que, em princípio, reúnem condições objetivas
e materiais de adotarem uma criança e, ou um adolescente, cujo perfil
409
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

socioeconômico, cultural, habitacional destoa do público atendido nas ações de


proteção.
Compreendemos, por outro lado, que o Serviço Social atingiu um patamar
de competência tão significativo, que nos permite avançar as análises objetivas,
aprofundando e se apropriando dos aspectos subjetivos, na medida em que o olhar
técnico é direcionado para a totalidade do ser, respeitando o movimento histórico e
as potencialidades dos sujeitos sociais.
Deste modo, a intervenção social deve estar essencialmente
fundamentada e direcionada na análise das potencialidades ou não dos
pretendentes em proporcionar às crianças e adolescentes, que tiveram sua vivência
permeada por violação de seus direitos e foram afastadas do seio familiar de origem,
um ambiente acolhedor, protetivo, seguro e afetivo.
A área da Psicologia conta com amplo aporte teórico, o que não
simplifica, nem isenta o profissional de dúvidas e angústias na execução da
avaliação psicológica dos postulantes à adoção. Os profissionais da psicologia se
debruçam sobre as questões subjetivas, cujas análises e reflexões estão ligadas às
questões inconscientes relativas às motivações, às perdas, aos lutos, ou seja, à
complexidade da formação dos desejos.
Neste sentido, alguns conceitos se destacam como importantes no
processo de avaliação: motivação para adoção; luto pela infertilidade; aspectos do
histórico pessoal ligados ao estabelecimento de relacionamentos afetivos; assunção
de responsabilidades e referenciais de cuidado.
Assim, trata-se de conhecer e pensar em conjunto com os requerentes
sobre o que está determinando tal iniciativa, os afetos em jogo e o nível de
consciência sobre eles, as idealizações que nutrem sobre um filho, características
pessoais, o histórico familiar e de cuidados vivenciados por cada um, o vínculo, a
história e cotidiano do casal.
A avaliação para a habilitação no cadastro de pretendentes à adoção
poderá configurar-se como uma oportunidade de transformação e desenvolvimento.
Há que se considerar a importância de construir um contexto no qual os
pretendentes possam adquirir maior compreensão dos sentidos que investem no
projeto de adotar, sentindo-se autorizados a imaginar, pensar e falar sobre as
próprias expectativas e dúvidas.

410
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As discussões e troca de experiências nos propiciaram avanços na leitura


e compreensão do papel profissional dessa demanda, bem como, evidenciou-se as
especificidades de cada área de conhecimento, interface e articulação
interdisciplinar neste campo.
No decorrer dessa caminhada de estudos, chamou-nos a atenção para o
investimento e esforços de qualificação e aprimoramento dos trabalhos técnicos na
avaliação dos pretendentes, ficando a cargo do próprio profissional envolvido nesse
processo. Contudo, entendemos que esta é também uma responsabilidade
institucional.
Pontuamos ainda, que a avaliação dos postulantes à adoção por si só não
pode garantir uma adoção satisfatória. Consideramos que, tão importante quanto
essa avaliação, é assegurar a autonomia dos profissionais na condução de todas as
etapas que envolvem o processo, sobretudo, a preparação das crianças e
adolescentes para essa medida de proteção e acompanhamento do estágio de
convivência.
Nessa tarefa os profissionais envolvidos deverão ainda apontar sobre a
construção ou não dos vínculos e se a convivência familiar mostra-se favorável ao
acolhimento e desenvolvimento de uma criança e/ou adolescente, cuja história de
vida e inserção social lhe são estranhas.
Podemos pensar sobre a necessidade de articulação dentro da instituição
judiciária e um alinhamento conceitual acerca do processo adotivo, isto é, que sejam
implementadas ‘diretrizes’ para o desenvolvimento desse importante trabalho.
No tocante à reavaliação psicossocial, embora esteja contemplada em
normativa, em consenso, consideramos que sua realização periódica transcende a
atualização de dados no procedimento, tornando-se momento imprescindível para
reavaliar o projeto familiar de adoção almejado em consonância com as possíveis
mudanças ocorridas na vida cotidiana dos sujeitos envolvidos (propósito de adoção,
gravidez, desemprego, separação conjugal, vivência de luto, mudança no arranjo
familiar, dentre outros).
Nesse sentido, entendemos que a avaliação e reavaliação priorizam e
primam (ao menos deveriam) pela garantia de direitos da criança e do adolescente.
Reiteramos que o sucesso ou o fracasso da adoção não está em nossas
mãos, temos clareza disso. Mas, compreendemos, também, que precisamos nos

411
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

apropriar daquilo que nos compete, enquanto atores sociais que participam desse
processo, não apenas de avaliação dos pretendentes, como também, do estágio de
convivência e de seus resultados, sejam eles frutíferos ou não para a concretização
da filiação adotiva.
O norte que define nossas ações e intervenções é o princípio do melhor
interesse da criança, respeitando as prerrogativas estabelecidas no ECA, que, sem
dúvidas, trouxe avanços significativos no Direito da Infância e Juventude de nosso
país, tornando crianças e adolescentes protagonistas e sujeitos de direitos e
deveres.
Nesse sentido, não se trata simplesmente de habilitar (sim) ou não os
pretendentes à adoção, mas avaliar e analisar se estes reúnem condições de
receberem uma criança e, ou um adolescente em seus lares, tratando-os não como
filhos adotivos, como filhos, aceitando-os em suas limitações e imperfeições, sem
(re) abandoná-los.
Longe de esgotar uma temática tão complexa e delicada, nosso intento
caminhou na direção de nos perceber responsáveis pelo processo de habilitação
daqueles que manifestam o interesse pela filiação adotiva e externar os desafios
dessa intervenção no cotidiano profissional.
Mais do que respostas às nossas angústias e inquietações, vislumbramos
no decorrer deste ano e, sobretudo, ao final dele, que precisamos nos aprimorar, nos
capacitar e nos qualificar profissionalmente não apenas por um dia, mas por toda a
vida, para que consigamos acompanhar a dinâmica das relações psicossociais, seja
na demanda de adoção como em todas as outras.

412
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente.

Brasília, 1990. BRASIL. Lei 12010, de 03 de Agosto de 2009. Dispõe sobre adoção.
Brasília, DF, 2009.

Cadastro de Adoção: Orientações da Coordenadoria da Infância e da Juventude do


TJSP (2013).

DUDAS, Clarice. Curso de Preparação Psicossocial e Jurídico aos Pretendentes à


Adoção: encontro com a realidade e reflexões acerca da adoção. 1º Seminário dos
Grupos de Pesquisa do Curso de Psicologia. Celer Faculdades, Xaxim/SC. Revista
Conversatio Volume 2 – Número 2 – Edição Especial – Jan/Jun. 2017.

GOES, A. E. D. (Des) Caminhos da Adoção: A devolução de Crianças e de


Adolescentes em Famílias Adotivas. Dissertação de Mestrado. Pontifícia
Universidade Católica – PUC/SP, São Paulo, 2014.

ORIENTAÇÕES PARA A ELABORAÇÃO DE RELATÓRIO PSICOSSOCIAL DE


PRETENDENTES À ADOÇÃO. XIII Reunião do Conselho das Autoridades Centrais
Brasileiras. Brasília, dez.2010.

QUESITOS PARA HABILITAÇÃO DE PRETENDENTES À ADOÇÃO. Disponível


em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1546.html. Acesso em: 18 mai. 2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (TJSP).Cadernos dos Grupos de Estudos
– Serviço Social e Psicologia Judiciários, Gráfica do TJ/DAPRE, Edição n. 07, São
Paulo: 2010.

______. Caderno II – Grupo de Trabalho na Área Protetiva - Serviço Social e


Psicologia Judiciários. Avaliação dos Pretendentes à Adoção, p. 19, São Paulo,
2015.

413
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

______. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia Judiciários.


Aproximações sobre a adoção de crianças e adolescentes: aspectos teóricos,
metodológicos e práticos da atuação dos profissionais do tribunal de justiça, n.13,
p.366-397, São Paulo, 2016.

______. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia Judiciários.


O Percurso da concretização da adoção: Da Habilitação dos Pretendentes à
construção dos laços de filiação adotiva, n. 14, p. 474-507, São Paulo: 2017.

______. Coordenadoria/ Núcleo de Apoio/Manual de Procedimentos Técnicos.


Atuação dos Profissionais de Serviço e Psicologia. Infância e Juventude. Edição
Atualizada. 2017.
______. Provimento CG nº 36/2014. Disponível em:
https://www.dje.tjsp.jus.br/cdje/consultaSimples.do?cdVolume=10&nuDiario=2111&c
dCaderno=10&nuSeqpagina=10. Acesso em 20/04/2018.

______. Provimento CG nº 01/2015.

______. Provimento CG nº 06/2015.

______. Provimento CG nº 04/2018.

______. NORMAS DE SERVIÇO DA CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA.


Disponível em
http://www.tjsp.jus.br/Corregedoria/Comunicados/NormasJudiciais.Acesso em:
13/06/2018.

414
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

APÊNDICE 1 – ORIENTAÇÕES, PROCEDIMENTOS E LEGISLAÇÕES


PERTINENTES À ADOÇÃO

Adoção é especificidade das Varas da Infância e da Juventude, instituído


pelo ECA (39-52 E 165-170) e reforçado pela Lei 12.010/2009.
A adoção é uma medida protetiva complexa que se desdobra em várias
etapas de igual importância para o sucesso da colocação em família substituta
sendo, portanto interdependentes.
Por essa razão a atuação dos assistentes sociais e psicólogos que
compõem as equipes multiprofissionais das Varas da Infância e da Juventude (VIJ)
do Tribunal de Justiça trarão importante contribuição para:

 O atendimento à família de origem e/ou extensa;


• Os encontros preparatórios dos interessados em adotar;
• A avaliação dos interessados na habilitação para a adoção;
• A reavaliação dos pretendentes à adoção;
• As pesquisas nos cadastros de adoção durante a busca de famílias
substitutas para a colocação familiar através desta medida de proteção;
• O acompanhamento e preparação das crianças e adolescentes com
perspectiva de colocação em família substituta através da adoção;
• A preparação e acompanhamento dos adotantes e das
crianças/adolescentes para a aproximação paulatina entre os mesmos e o
desacolhimento;
• O acompanhamento do estágio de convivência;
• As atualizações dos cadastros de adoção local, estadual e nacional,
sempre que nova informação decorrer de entrevista, visita domiciliar, visita nas
instituições de acolhimento, reuniões com a rede, pesquisas e outros atos que
decorram direta ou indiretamente de sua atividade.

Como descrito sobre as várias etapas da adoção, ela se trata de medida


protetiva intimamente relacionada com a garantia de um direito humano que é a
convivência familiar e comunitária. Assim, a atuação da Vara da Infância e da
Juventude junto com os demais serviços da rede de atendimento deverá conceder
415
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

total prioridade aos casos das crianças e adolescentes que estiverem privados do
exercício deste direito primordial.
“A falta de sistematização e detalhamento dos procedimentos desse longo
percurso da Adoção dentro do Tribunal, reconhecida de maneira geral, pode
comprometer a qualidade do acompanhamento realizado em todo esse delicado
processo, além de levar a dificuldades operacionais, inclusive na concretização da
adoção entre comarcas distintas” (CADERNOS, p. 448).

ORIENTAÇÕES INICIAIS AOS INTERESSADOS EM ADOTAR

A pessoa ou casal interessado em se inscrever no Cadastro de


Pretendentes à Adoção (CPA) deverá dirigir-se à VIJ com competência na região de
seu domicílio, onde receberá as primeiras orientações e esclarecimentos pela equipe
multiprofissional da VIJ ou, na impossibilidade, por cartorário devidamente preparado
para todas as informações necessárias.
Art. 839. Os pretendentes à adoção (brasileiros e estrangeiros residentes
no País) deverão cadastrar-se junto ao Juízo da Infância e da Juventude de seu
domicílio.
Parágrafo único. O atendimento será prestado pelo Setor Técnico da Vara
da Infância e da Juventude ou, na impossibilidade, por cartorário devidamente
preparado para prestar todas as informações necessárias ao processo de
habilitação. (NORMAS).

REQUERIMENTO DE INSCRIÇÃO

O pretendente preencherá requerimento em modelo padronizado


oferecido pela VIJ e o protocolará no Cartório da Infância e Juventude,
acompanhado dos documentos necessários que constam nas Normas Gerais da
Corregedoria, artigos 838 a 850, Seção LI “Sobre Cadastramento em Juízo para Fins
de Adoção”.

PLANILHAS E HABILITAÇÃO:

416
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Segundo as Normas da Corregedoria: em seu art. 843 § 1º, define que no


prazo de 48 (quarenta e oito) horas (ECA, art. 50, § 8º, parte final), o juízo deverá
comunicar a habilitação e encaminhar a planilha com os dados colhidos à CEJAI –
para inclusão no cadastro estadual a possibilitar futuras consultas dos demais Juízes
do Estado, bem assim ao Cadastro Nacional de Adoção do Conselho Nacional de
Justiça (CNA/CNJ), especificando, nessa hipótese, a Unidade ou as Unidades da
Federação escolhida(s) pelo(a/s) pretendente(s).
O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que sejam criados
cadastros estaduais e cadastro nacional de crianças e adolescentes em condições
de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados à adoção (Art.50; § 3º).
Esse documento legal também postula no artigo 51 que a adoção
internacional será deferida a pessoa ou casal residente fora do Brasil quando restar
comprovado o esgotamento das possibilidades de adoção por família residente no
Brasil e a adequação da medida para o caso concreto.
Outro aspecto importante a ser destacado é o de que os cadastros de
adoção são bancos de dados acessados por milhares de profissionais do sistema de
justiça, no estado de São Paulo em todo o país, e precisam estar atualizados para
que possam ser um instrumento eficaz na busca de pessoas e famílias para a
colocação em família substituta.
Dessa forma, todos que dele dependem para a efetivação dessa medida
protetiva possuem sua parcela de responsabilidade, e precisam cuidar para que
todas as mudanças de situação de pretendentes, crianças, adolescentes e do
andamento da adoção sejam lançados nesses bancos de dados com a maior
brevidade possível.

AS PESQUISAS NO CADASTRO LOCAL (VIJ):

As equipes consultam inicialmente o cadastro de pretendentes habilitados


com domicílio na área atendida pela Vara da Infância e da Juventude, e realizam
pesquisa por pretendentes que se manifestaram disponíveis para o perfil da
criança(s), adolescente(s) e/ou grupos de irmãos.
Os potenciais adotantes serão listados no resultado da pesquisa tendo
como primeiro critério de indicação a sequência das datas de habilitação dos

417
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pretendentes. No entanto, a ordem cronológica não será o único critério a ser


considerado (CARVALHO, 2013).
Assim, o foco do trabalho psicossocial estará também em buscar família
substituta por adoção que atenda as necessidades da criança/adolescente e/ ou do
grupo de irmãos em questão.
A experiência das equipes multiprofissionais a serviço da VIJ tem
demonstrado a existência de situações em que durante os trabalhos de pesquisa
e/ou na entrevista que antecede a apresentação entre os mesmos, são constatadas
ocorrências e novas informações que poderão contraindicar determinado
pretendente para o caso concreto, naquele momento.
Quando isso acontecer, as equipes de psicologia e de serviço social
poderão informar o magistral do e com parecer fundamentado do ponto de vista
psicológico e/ou social fazer a indicação de outro pretendente que não esteja
exatamente na ordem sequencial de data de habilitação, mas que denote reunir
melhores condições para atender aos interesses da criança e adolescente em
questão.
Essa diretriz de procedimento psicossocial poderá ser considerada
inclusive para as pesquisas nos demais cadastros (estadual, nacional e
internacional), sempre que consubstanciada em considerações do ponto de vista
ético, teórico e metodológico psicológico e/ou social.
Muitas comarcas fazem a consulta direta aos cadastros das comarcas
vizinhas, quando não tem sucesso na busca de famílias substitutas no cadastro da
própria vara, mediante autorização do magistrado.

AS PESQUISAS E AS ATUALIZAÇÕES DO CADASTRO CENTRALIZADO


ESTADUAL (CEJAI-SP):

Quando esgotadas as buscas no cadastro local/regional ser possível


consultar o Cadastro Centralizado Estadual cujo sistema informatizado está
localizado no banco de dados da CEJAI-SP.
O banco de dados do cadastro estadual contempla as informações sobre
os pretendentes habilitados e também sobre os pretendentes cuja habilitação foi
indeferida.

418
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Seu programa informatizado não é alimentado pela internet (via WEB)


como o Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e esses dois bancos de dados pedem
informações diferentes sobre pretendentes, crianças e adolescentes.
Por esses motivos, para a realização de pesquisa no Cadastro
Centralizado Estadual será necessário o pedido de pesquisa com o envio da planilha
disponibilizada no site da CEJAI, diretamente àquela comissão, que enviará resposta
à VIJ com a listagem de pretendentes localizados.
Todas as alterações e mudanças de situação dos pretendentes a adoção
serão informadas à CEJAI-SP pelos profissionais designados pelo juiz da infância e
da juventude para essa atualização, para que o cadastro centralizado estadual
mantenha-se atualizado.
Os casais internacionais, quando habilitados pela Cejai são cadastrados,
também, no CNA.

AS PESQUISAS E AS ATUALIZAÇÕES DO CADASTRO NACIONAL DE


ADOÇÃO (CNA):

A pesquisa no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) é feita diretamente via


WEB, no banco de dados do Conselho Nacional de Justiça, com acesso direto pelos
profissionais indicados pelo magistrado, por meio de senha pessoal e intransferível.
O Provimento CG 01/2015 regulou as atribuições dos magistrados e
servidores em relação aos Cadastros Nacionais da Infância e da Juventude, entre os
quais o CNA e CNCA.
O assistente social e o psicólogo das equipes técnicas realizarão as
atualizações sempre que nova informação decorrer de entrevista, visita domiciliar,
visita nas instituições de acolhimento, reuniões com a rede, pesquisas e outros atos
que decorram direta ou indiretamente de suas atividades.
Quando houver possibilidade de indicação de pretendentes de outros
municípios ou estados poderá ser valiosa a realização de consulta junto aos
profissionais da VIJ que os habilitou para informações atualizadas e discussão do
caso concreto.
Esse contato entre profissionais das equipes técnicas de diferentes locais
talvez possibilite encontrar formas de viabilizar que o núcleo familiar em formação
não fique muito tempo sem o necessário acompanhamento psicossocial, após a

419
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

colocação familiar e mudança da criança ou adolescente para outra cidade ou


estado com vistas ao estágio de convivência.
Quando o pretendente listado no resultado da pesquisa residir em outro
município ou estado também será possível que o juiz do local onde se encontra a
criança ou adolescente em condição de ser adotado solicite cópia integral do estudo
psicossocial e outras informações da vara que o habilitou, antes de autorizar o
processo de adoção (Art. 848 NSCG).

AS PESQUISAS NO CADASTRO DE PRETENDENTES À ADOÇÃO


INTERNACIONAL:

Quando as buscas nos cadastros local, estadual e nacional de adoção


forem infrutíferas poderá ser considerada a possibilidade de colocação em família
substituta residente em outro país através da adoção internacional, e nesses casos
se fará necessária uma reavaliação específica quanto à adequação desta medida
para a criança e adolescente em questão.
Uma vez constatada a adequação da adoção internacional, a busca no
cadastro de pretendentes habilitados para a adoção internacional será realizada
após autorização do magistrado, junto à CEJAI-SP, que é autoridade estadual
responsável por garantir o respeito aos procedimentos da Convenção de Haia
Relativa à Proteção das Crianças e Adolescentes e à Cooperação em Matéria de
Adoção Internacional.
A pesquisa pode ser feita com o envio da planilha específica com
informações sobre a criança/adolescente àquela comissão, que responderá à equipe
com o envio dos resultados obtidos.
E é recomendável que seja pactuado um prazo para confirmação dos
interessados pretendentes listados em dar continuidade à aproximação que seja o
mais breve possível.
Ao ser confirmado o interesse de ambas as partes em dar andamento ao
processo de adoção internacional, o representante entrará com a documentação
necessária no Cartório da Vara da Infância e da Juventude com vistas a formalizar o
interesse do pretendente internacional.

420
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O pretendente providenciará as certidões e demais documentos


necessários junto às autoridades centrais estadual, federal e do país de acolhida
para esse e todos os demais procedimentos da adoção internacional.
Cabe observar que quando o resultado da primeira busca no cadastro de
pretendentes internacionais for infrutífero, a equipe multiprofissional da VIJ, com
autorização do magistrado, poderá solicitar autorização para contatar diretamente os
representantes de organismos internacionais credenciados que foram homologados
no Estado de São Paulo, guardando-se igual oportunidade de conhecimento sobre o
caso a todos.
A experiência das equipes tem sido a de que a discussão mais detalhada
permite levar subsídios para que os representantes dos organismos internacionais
credenciados localizem, com maior facilidade, pessoas ou casais habilitados
disponíveis e preparados para colocações familiares mais complexas, como de
grupos de irmãos, crianças maiores e adolescentes, bem como com problemas de
saúde ou deficiências.

OS RELATÓRIOS SOBRE AS PESQUISAS PARA A COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA


SUBSTITUTA E O ACOMPANHAMENTO DA CRIANÇA/ADOLESCENTE
DURANTE ESTE TRABALHO

Durante as pesquisas será necessário relatar seus resultados, e nesse


relatório é importante que sejam informadas todas as tentativas empregadas na
busca, se chegaram a entrar em contato com algum pretendente e sua resposta, nº
de inscrição, motivo de recusa, bem como outras informações e sugestões
relevantes para o caso concreto.

421
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A (RE)SIGNIFICAÇÃO DA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE: TEMPOS SOMBRIOS

GRUPO DE ESTUDO DO INTERIOR – FRANCA


“FAMÍLIA, INFÂNCIA E JUVENTUDE”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
422
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COORDENAÇÃO

Marina Pereira Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará


Mateus Beordo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará

AUTORES

Alessandra Gonçalves Leite Saraiva – Psicóloga Judiciário – Comarca de São


Joaquim da Barra
Amanda Castro Aguiar – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ituverava
Ana Maria Alves da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Ana Maria Damando Pavan – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ipuã
Ariadne Pedrosa de Macedo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca
Carine Mendes Abreu da Fonseca – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ituverava
Cristiane Barbosa Rezende – Assistente Social Judiciário – Comarca de Batatais
Denise Jesuina Faria Tostes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Edilaine Aparecida dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pedregulho
Josiane Avelar Saborito da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Juliana Cristina Paiva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Igarapava
Leila Regina Campos Moreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ituverava
Maila Rezende Vilela Luiz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Igarapava
Maria Helena de Oliveira Borges – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Mariscler Regivane da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Morro Agudo
Neli Aparecida de Sousa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Raquel Renzo da Silva Pequia – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Sueli Aparecida Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Brodowski
Vanessa de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Altinópolis

423
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

A conjectura contemporânea e sua dinamicidade são sentidas na


realidade cotidiana, e tem se evidenciado nos rebatimentos e relações entre o
Estado e a sociedade.
Os resvalos ao exercício profissional do Assistente Social e do Psicólogo,
junto ao Poder Judiciário no contexto de aproximação da realidade das famílias e os
sujeitos nos processos judiciais, se configuram como um grande desafio quer seja
pela complexidade das relações sociais, quer seja pela inserção delas em uma
sociedade dual, expostas a situações de intensas precariedades e vulnerabilidades
sociais, desencadeadas pelas transformações constantes do Estado, do mercado e
das próprias relações sociais.
Descortinar e trazer à tona elementos que auxiliem a compreender este
contexto nos embasam em nossa competência profissional.
O ingresso de novos integrantes no Grupo de Estudos, em 2018, suscitou
a necessidade de refletirmos temas diretamente relacionados à Infância e à
Juventude, exigências cotidianas vivenciadas.
Ao problematizar este contexto, o Grupo de Estudos Franca/SP se propôs
em debruçar nas reflexões e aprofundamento dos estudos acerca da (Des)Proteção
Integral à Criança e ao Adolescente, abordando:
- Aspectos históricos dos direitos da criança e do adolescente;
- O que é? Risco, Vulnerabilidades e Negligência;
- Acolhimento;
- Destituição do Poder Familiar;
- Estatuto da Adoção;
- Violências: quando não há proteção – a violação aos Direitos;
- Avanços e Retrocessos da (Futura) Legislação.
Neste momento, outro importante desafio que agora nos cabe é, em
apertada síntese, apontar o quão intenso e importante foram os debates e
discussões por nos proporcionar o compartilhar de conhecimentos, de experiências
e nos permitir reflexões sobre o cotidiano e de nossa atuação profissional.

424
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - ASPECTOS HISTÓRICOS DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA


CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A apreensão da realidade perpassa, inevitavelmente, pela compreensão


de que ela é dinâmica e que seus rebatimentos se relacionam entre o Estado e a
sociedade e como se articulam em um confronto entre o econômico e o político, o
privado e o público, o poder clientelista/autoritário e o movimento pelos direitos de
cidadania nas relações hegemônicas construídas conforme influências dos blocos no
poder.
Estas influências conduzem as estratégias de ação conforme os
determinados momentos históricos, ensejando na ação dos diversos atores sociais.
Neste sentido, reflete também na infância e juventude, cujas ações
delineiam-se entre, dentre outros aspectos, a política de inserção de crianças e
adolescentes pobres no trabalho precoce e subalterno, e a relação entre a causa
pública e a coisa privada, a repressão, a filantropia e a cidadania.
Desta forma, a prática do trabalho para os “desvalidos”, situa estes
sujeitos cada vez mais à margem, pois deixa de priorizar os estudos e capacitação
técnica, exigindo deles o trabalho manual e degradante. Quanto ao atendimento
dado às crianças, era uma mistura do público, com caráter privado, confundido
também na relação filantropia e cidadania e entre o espaço doméstico e o público.
Logo, a questão da infância localiza-se na perspectiva do
autoritarismo/clientelismo, combinados com benesses e repressão, “[...] concessões
limitadas, pessoais e arbitrárias; com disciplinamento, manutenção da ordem, ao
sabor das correlações de forças sociais ao nível da sociedade e do governo [...]”. As
políticas adotadas se divergem entre os que privilegiam a punição e os que
enfatizam o diálogo, a negociação e as medidas educativas (FALEIROS, 2009, p.
35).
No período de 1889 a 1930, conhecido como República Velha, à política à
infância baliza-se na omissão, repressão e paternalismo, fruto de uma visão liberal –
onde o Estado, via de regra, não intervém na área social –, e da correlação de forças
dominado pelo bloco oligárquico/exportador (FALEIROS, 2009, p. 36).
O predomínio da agricultura e pela acentuação da urbanização, no qual a
burguesia traz a liberdade de contrato e da harmonia social, deixa desemparada a
família, geralmente composta por pais e cinco filhos, e pelo agravamento da
425
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

carência social, levando alguns autores da época a questionar esta condução e


ponderando que não havia nenhuma lei que protegesse a primeira infância no Brasil.
A influência de juristas modificou este cenário com a criação do Juizado
de Menores, onde muitos se manifestavam favoráveis à implantação de instituições
especiais de correção e tribunais para menores.
Em 1920 é realizado o 1º Congresso Brasileiro de Proteção à Infância que
traz à tona a proteção social, resultando em 1921, na autorização do governo para
organizar um serviço de proteção e assistência ao menor abandonado e delinquente,
aprovado em 1923.
Durante o governo de Arthur Bernardes (1920 a 1926) é concebido e
posteriormente promulgado, o Código de Menores (1927), cuja premissa é que o
Estado tem o dever de proteção à criança, afinal, elas são o futuro da nação,
balizado pela integração destes pelo trabalho ou o domínio pela repressão.
O Código de Menores põe fim à roda dos expostos, mas mantem o
registro secreto e a proteção legal até os 18 anos, o pátrio poder pode ser suspenso
ou perdido devido à ausência dos pais. Determina também que o menor de 14 anos
não poderá ser submetido a processo penal e de 14 a 18 anos terá processo
especial, instituindo-se a liberdade vigiada. No tocante ao trabalho, ficou proibido
aos menores de 12 anos, assim como aos menores de 14 anos que não tenham
cumprido a instrução primária. Cria-se o Juízo Privativo de Menores e o Conselho de
Assistência e Proteção a Menores. A esfera diretamente policialesca do Estado
passa a ser assumida/substituída por instituições médicas e jurídicas, com novas
formas de intervenção que vão superando a detenção em celas comuns, sem,
contudo, fugirem do caráter repressivo (FALEIROS, 2009, p. 49).
A partir da década de 1930, e com a imposição, por Vargas, da
Constituição de 1937, concomitante ao cenário instalado, onde as questões
econômicas e sociais passam a serem questões nacionais, a política da infância
sofre alterações e a partir de 1932, devido ao apelo dos industriais.
Assim, o Código de Menores é modificado, e passa a autorizar o trabalho
de menores de 14 anos onde trabalhem pessoas da mesma família, ao passo que
em 1943, com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), regulamenta
a proteção do trabalho do menor, proibindo-o até os 14 anos e restringindo-o dos 14
aos 18 anos.

426
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O Decreto-Lei nº 6.026, de 24 de novembro de 1943, estabelece em 18


anos a imputabilidade e regulamenta o processo de alimentos relativo ao direito das
crianças em caso de separação. O judiciário mantém a estratégia da manutenção da
ordem e preservação da raça e o juiz arbitra sobre a periculosidade dos menores
entre 14 a 18 anos.
A Constituição de 1946 traz em seu texto o salário mínimo familiar, a
proibição do trabalho aos menores de 14 anos, a assistência sanitária e médica ao
trabalhador e à gestante, e a previdência social.
A política à infância adota a estratégia de preservação da saúde e de
participação da comunidade, se afastando do assistencialismo e da repressão.

Para os excluídos de produção e das normas dominantes,


considerados suspeitos, perigosos, mantém-se a estratégia de
controle e da ordem social. Isto se manifesta na prática dos juízes de
menores que continuam reclamando por recursos, estabelecimentos
e vagas, parecendo ver apenas uma solução para o problema da
miséria e da infância abandonada (conforme Juiz de Menores do DF
em 1954, apud Botelho, 1993, p. 60) (FALEIROS, 2009, p. 60).

Já em 1958 é criado o Conselho Nacional de Menores e após o golpe de


1964 é criado a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM) que
adquire configuração de controle social, onde o presidente do órgão coloca que a
marginalização seria causada pela migração, pela urbanização e pelo esfacelamento
da família.
O Código de Menores, promulgado em 1979, adota a doutrina da situação
irregular que coloca “[...] os menores são sujeitos de direitos quando se encontrarem
em estado de patologia social, definida legalmente [...]” (BRASIL, 1979 apud
FALEIROS, 2009) e define a situação irregular como a privação de condições
essenciais à subsistência, por omissão, ação ou irresponsabilidade dos pais ou
responsáveis; por ser vítima de maus-tratos; por perigo à moral, em razão de
exploração ou encontrar-se em atividades contrárias aos bons costumes, por
privação de representação legal, por desvio de conduta ou autoria de infração penal.
No final da década de 1980 e início da década de 1990, o clima nacional é
de liberalização e democratização, inclusive há a efervescência de inúmeras

427
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

organizações sobre os direitos das crianças que apareceram como sujeitos de


direitos, como cidadãos (FALEIROS, 2009, p. 80).

Os direitos da criança perpassam as diferentes áreas, mas ficam


bem estabelecidos nos artigos 227, 228, 229 da Constituição de
1988. Garante-se à criança e ao adolescente, “como dever do Estado
e da sociedade os direitos à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”. A inimputabilidade penal fica definida até os
18 anos, e o trabalho proibido até a idade de 14 anos, salvo na
condição de aprendiz (art. 7º, item XXXIII) (FALEIROS, 2009, p. 75-
76).

E contando com o apoio de intelectuais, juízes progressistas, promotores,


Pastoral do Menor, e parlamentares, atendendo as premissas da Constituição e a
partir da organização de vários encontros, negociações e pressões, aprovam, em
tempo recorde, e exigem a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), que apresenta o detalhamento dos direitos da criança e do adolescente em
diretrizes gerais, adotando a Doutrina da Proteção Integral, reconhecendo-os
como cidadãos e articulando o Estado com a sociedade para a operacionalização da
política através dos Conselhos de Direitos, dos Conselhos Tutelares e Fundos 49.
Sendo assim, podemos destacar que

[...] ao longo do período analisado as relações entre agentes estatais,


portanto com poder legal e capacidade de uso de recursos públicos,
estiveram em constante interação com agentes privados, com
interesses particulares, pessoais, religiosos, morais, econômicos,
políticos, no processo de definição das políticas ou da ausência de
políticas para a infância e a adolescência pobres. Um modo de
relação estatal/privado, próximo do patrimonialismo vem se
confrontando com a relação público/privado/sociedade na abertura
de espaços públicos para exercício da cidadania (FALEIROS, 2009,
p. 86).

Em trinta anos de promulgação da Constituição Federal e após vinte e


oito anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecemos avanços
49
São recursos públicos oriundos de repasses orçamentários, de doações voluntárias ou parte dos
IMPOSTOS de RENDA das pessoas físicas ou jurídicas, destinadas a programar as políticas de
atendimento à criança e ao adolescente.
428
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

importantes na diretriz com relação à Proteção Integral de crianças e adolescentes,


mas, sua consolidação carece de efetivação e investimentos e, neste sentido, as
ameaças e os desmontes se fazem presente.

2 - O QUE É? RISCO, VULNERABILIDADE E NEGLIGÊNCIA

A complexidade das relações sociais, como já apontado historicamente,


nos leva a enveredar pela problematização dos conceitos de risco, vulnerabilidade e
negligência. Há a possibilidade de definirmos estes conceitos?
Para início desta análise precisamos conceituar acerca de alguns direitos
fundamentais garantidos e definidos na Constituição Federal como: à saúde, à
convivência familiar e comunitária, à educação, ao esporte e ao lazer, à dignidade,
ao respeito e à liberdade e à preparação e proteção ao trabalho.
O artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente preceitua que
“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (BRASIL, 1990).
Quando alguns destes direitos são violados caracteriza-se uma situação
de risco pessoal e social, isto é, estão presentes circunstâncias que negligenciam o
desenvolvimento saudável da criança e do adolescente (Artigo 7º, ECA) (BRASIL,
1990), como a exposição à violência física e psicológica, o uso de substâncias
psicoativas, exploração e abuso sexual, trabalho infantil, entre outros.
O compromisso social com a defesa dos direitos da criança e do
adolescente, que legalmente deve ser compartilhado pela família, comunidade,
sociedade em geral e pelo poder público, conforme prevê o ECA, que revela a
concepção da infância como uma fase de fragilidade e, portanto, de necessário
suporte e proteção ofertados pelos adultos.

A infância, tida como um dos segmentos sociais que ocupa a


centralidade no debate contemporâneo, em vista da luta pela
garantia de direitos legalmente assegurados, é compreendida nesta
reflexão como uma forma de ser socialmente construída, a partir das
transformações societárias e das novas demandas surgidas do
movimento da história (BERBERIAN, 2015, p.15).

429
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No contexto normativo – Constituição Federal (CF) (BRASIL, 1988),


Código Civil (BRASIL, 2002) e Lei Orgânica da Assistência Social/LOAS – a família é
compreendida como instância de proteção social.

[...] o redimensionamento dessa ação profissional na perspectiva


crítica significa o rompimento com uma perspectiva pautada na
individualização dos problemas sociais no momento em que a
hegemonia da lógica neoliberal insiste na redução do papel do
Estado no âmbito da proteção social e recoloca a família como
instância máxima de proteção social [...] (MIOTO, 2009, p. 17).

A vulnerabilidade, derivação da palavra vulnerável oriunda do latim


vulnerabilis, significa causar lesão, provocar dano. Assim, o termo apresenta
conotação negativa, relacionando- se com a ideia de perdas.
Neste diapasão, Hillesheim e Cruz pontuam que:

Pode-se dizer que, no campo socioassistencial, há uma descrição


ampla sobre o que compõe a vulnerabilidade social, entendida não
como um estado, mas como uma condição que pode ser temporária.
Dessa maneira, as ações da proteção básica têm como alvo as
situações de vulnerabilidade social, preconizando ações voltadas
para a atenção e prevenção a situações de risco (HILLESHEIM;
CRUZ, 2016, p. 300-302).

A aproximação e busca pela compreensão desta terminologia tem


importante centralidade uma vez que “[...] enquanto alguns trabalhos referem-se à
vulnerabilidade como suscetibilidade à pobreza, outros a caracterizam como sintoma
de pobreza. Haveria ainda aqueles que a compreendem como uma das dimensões
da pobreza” (PROWSE, 2003 apud IPEA, 2018, p.10).
Na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2004), um
dos desafios expressos é a necessidade de se criar indicadores de vulnerabilidade
social territorial, para além do acesso à renda, e que indiquem, também, a
capacidade de dar respostas a diversas situações vivenciadas por sujeitos e famílias
em condição de queda de bem-estar (SEMZEZEM; ALVES, 2013, p.144-145).
Sobre risco é apresentado diferentes acepções, havendo controvérsias
quanto a sua origem. Para Luhmann (1993), sua etimologia é desconhecida, embora
existam suposições de que se remeta ao árabe.

430
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na Europa a palavra é encontrada em documentos medievais, em um


primeiro momento sendo usada, segundo Hillesheim e Cruz (2016) em diversos
contextos e aplicada, de forma significativa, no campo das navegações e do
comércio.
Spink, Medrado e Mello (2002) aponta que a palavra risco esteve
incorporada às áreas da Economia e da Medicina e após a 2ª Guerra Mundial, o
conceito passaria a ser utilizado de maneira mais ampla, a partir do que se intitula
como “análise dos riscos”.
Ainda que pese as considerações apresentadas, observa-se que nas
distintas circunstâncias em que o termo aparece no ECA, é possível perceber que o
mesmo está associado à violação de direitos.

Nesse sentido, os Conselhos Tutelares, Juízes da Infância e outros


profissionais passam a utilizá-lo, sendo que, após a implementação
da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004, a
expressão se difunde no campo socioassistencial (HILLESHEIM;
CRUZ, 2016, p. 243-244).

Na PNAS, os conceitos de "vulnerabilidade social" e "risco" se colocam


como conceitos estruturantes, em seus documentos e cotidiano de trabalho, embora
nem sempre estejam bem definidos em suas normas e orientações técnicas.
São conceitos complexos e multifacetados, abarcando dimensões, de
ordem econômica, ambiental, de saúde, de direitos, dentre outras, individuais e
sociais, que nos permitem identificar situações de vulnerabilidade dos indivíduos,
famílias e/ou comunidades (ROMAGNOLI, 2015).
Com relação à negligência, os estudos referentes a ela são de cunho
mais recente porque enfrentaram dificuldades básicas de conceituação, uma vez
que é preciso observar até que ponto um comportamento é negligente ou está
profundamente associado à pobreza das condições de vida.

A negligência é um termo recorrente em relatos, pareceres e


sentenças judiciais, principalmente naqueles que dizem respeito às
relações de crianças e suas famílias. Frequentemente é apontada
para a destituição do poder familiar e para o abrigamento
(BAPTISTA; VOLIC, 2005, p. 147).

431
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

É preciso estar alerta, pois nesta sociedade “[...] a opressão econômica


impera, as dificuldades de se abordar um fenômeno, que pode trazer à tona esta
mesma opressão, estão presentes entre os pesquisadores” (GUERRA, 1997, p. 45
apud BERBERIAN, 2015, p. 5).
Outros autores também apontam de forma enfática e problematizam a
questão quando destacam:

[...] os laudos, os pareceres técnicos, que subsidiam decisões que


muitas vezes alteram a vida das pessoas atendidas na esfera do
judiciário se realizam a partir da coexistência de “múltiplos olhares
técnicos”, de diferentes conceitos e representações, por vezes
contraditórias, dos operadores do sistema de justiça, sem que haja
uma explicitação normatizadora do conteúdo desse conceito
(FUZIWARA, 2004, p.1-4 apud BAPTISTA; VOLIC, 2005, p.149).
O poder saber profissional pode ter direcionamentos distintos, a
depender da visão de mundo do profissional e de seu
(des)compromisso ético. [...] A culpabilização pode traduzir-se, em
alguns casos, em interpretações como negligência, abandono,
violação de direitos, deixando submerso o conhecimento das
determinações estruturais ou conjunturais, de cunho político e
econômico, que condicionam a vivência na pobreza por parte de
alguns sujeitos envolvidos com esses supostos atos (FÁVERO, 2007,
p. 161 apud BERBERIAN, 2015, p.3-4).

Assim, segundo Azevedo e Guerra (2003) “[...] a negligência se configura


quando os pais (ou responsáveis) falham em termos de atendimento às
necessidades dos seus filhos (alimentação, vestir, etc.) e quando tal falha não é o
resultado das condições de vida além do seu controle”.
A negligência assume formas diversas, que podem compreender
descasos: com a saúde da criança, por exemplo, ao deixar de vaciná-la, com a sua
higiene; com a sua educação, descumprindo o dever de encaminhá-la ao ensino
obrigatório, com a sua supervisão, deixando-a sozinha e sujeita a riscos, com a sua
alimentação; com o vestuário; dentre outras.
Pode-se dizer que o abandono, deixando a criança à própria sorte, e, por
conseguinte, em situação de extrema vulnerabilidade, seria a forma mais grave de
negligência (PNCFC, 2006, p. 35).
No artigo 18 do ECA dispõe que “[...] é dever de todos velar pela
dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento
desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (BRASIL, 1990).
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No entanto, como problematiza o Plano Nacional de Convivência Familiar


e Comunitária (PNCFC) “[...] por motivos diversos, tais violações de direitos podem
vir a ocorrer no seio da própria família, na relação que os pais, responsáveis ou
outros membros do grupo familiar estabelecem com a criança e o adolescente”
(2006, p. 34).
Buscar aproximar de todo este aparato teórico, suas nuances e
concretude em nosso cotidiano é fundamental na luta permanente pela defesa da
garantia de direitos e efetivação do Sistema de Proteção Integral à Criança e ao
Adolescente.

3 - VIOLÊNCIAS: A AUSÊNCIA DE PROTEÇÃO E A VIOLAÇÃO AOS


DIREITOS

A proteção social tornou-se, nas últimas décadas, um campo de estudos


de diversas disciplinas, sob diferentes vertentes analíticas. Desta maneira, cumpre-
nos salientar que, adotamos o conceito de proteção aliado ao da desproteção que
reflete a realidade enfrentada pela infância e juventude em nosso país.
A preocupação com o crescimento da violência e suas diferentes formas
de manifestação precisa ser considerada para fundamentar nossa compreensão da
violência contra crianças e adolescentes, fenômeno social grave no Brasil, para
enfim, vislumbrarmos conceber com eficácia a proteção.
Especialmente o uso da força física esteve sempre presente na história
humana ocidental, utilizado com relevância como um mecanismo educativo, como
meio de resolução de conflitos e também para estabelecer as relações de
subordinação.
No livro “A História Social da Infância”, Aries (1989) relata como foi
empregada a força física contra crianças e adolescentes ao longo dos séculos, visto
que as crianças eram consideradas desprezíveis e de propriedades paternas. No
entanto, com o avanço da racionalidade moderna, ocorreram mudanças culturais e
de mentalidade quanto aos direitos individuais e sociais, dentre os quais a
inviolabilidade do corpo.
A despeito do avanço legal, a punição física ainda ocorre de forma
insidiosa em todas as instâncias de socialização e continua desejada e justificada
por grande parte da população.
433
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Para se falar de violência física, podemos utilizar do termo abuso físico


para descrever violência no ambiente familiar. Tal termo traduz a noção de poder e
controle em que uma pessoa mais velha, mais forte ou mais influente tenta obter o
que deseja, impingindo tortura, terror e dor. Já quando o foco é a violência praticada
na comunidade de convivência opta-se para uso do termo violência.
O abuso físico tem características clínicas estabelecidas, quando em
crianças menores são frequentes, deixam marcas específicas do instrumento da
agressão (cintos, fivelas, dedos, dentes, cordas), além dos hematomas e equimose
e queimaduras na região das nádegas, coxas, troncos, mãos e pés. Já os
traumatismos privilegiam a cabeça e o abdome.
No adolescente, o abuso físico intrafamiliar causa danos mais graves,
incluindo a morte. Pesquisas revelam que os adolescentes que sofrem abuso físico
dos familiares expressam angústias e sentimentos de raiva, ambivalência nos
sentimentos por seus familiares, juntamente com a aceitação de que os maus-tratos
sofridos foram merecidos, para educá-los. Reforçando assim, o aprendizado cultural
da prática da violência e contribuindo para potencializar a violência social.
Sobre a violência institucional, é sabido que a “pedagogia da punição
corporal” foi abolida do âmbito escolar. Existem poucos estudos atestando a
ocorrência da violência nas escolas do Brasil, porém, os dados são suficientes para
confirmar que a prática continua a existir em pleno século XXI.
Outra forma de violência é a psicológica, que em sua maioria é velada
esta é aplicada no intuito de desqualificar a criança ou adolescente de suas
capacidades e tem como foco central rejeitar e humilhar a pessoa.
Pode-se observar no decorrer do trabalho profissional no Judiciário que
na família, os pais praticam esse tipo de abuso com frequência, estabelecendo um
padrão para a resolução dos problemas familiares.
As escolas também são palcos para a ocorrência de abuso psicológico
para a ocorrência de abuso psicológico sobre criança e adolescente, destaca-se as
relações conflituosas entre os alunos, o denominado na contemporaneidade por
bullying e os tratamentos humilhantes e desrespeitosos entre o corpo discente e
docente.
A convergência entre estas formas de violência podem resultar em outros
meios de dominação e demonstração de poder, como o abuso sexual infantil,

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

envolvendo questões legais de proteção à criança e atenção à sua saúde física e


mental, tendo em vista as consequências psicológicas decorrentes da situação de
abuso.
Violência sexual ou abuso sexual é conceituado como toda situação na
qual um ou mais adultos, do mesmo sexo ou não, apropriam-se da criança ou
adolescente com a finalidade de obter prazer sexual. O abuso pode ocorrer com ou
sem contato físico.
Nessa linha, é importante fazer uma distinção entre abusador e o pedófilo,
pois nem todo pedófilo é abusador, nem todo abusador é pedófilo. Abusador é quem
comete a violência sexual, independentemente de qualquer transtorno de
personalidade, se aproveitando da relação familiar, de proximidade social ou
qualquer outra vantagem.
O abusador sexual utiliza-se de estratégias para atrair a vítima, entre
outras, especialmente a oferta abundante de carinho e afeto na fase da sedução e
conquista.
Neste sentido, pode-se dizer que práticas parentais positivas,
monitoramento e supervisão constante constituem-se no mais poderoso meio de se
reduzir o risco de crianças e adolescentes tornarem-se vítimas de violência sexual.
Os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes devem ter
conhecimento das reações psicossomáticas e as desordens de comportamento
geradas pelo abuso sexual para que seja possível protegê-las. Em curto prazo
podem aparecer problemas tais como: comportamento sexualizado, ansiedade,
depressão, comportamentos regressivos (enurese, encoprese, birras, choros),
comportamentos autolesivos, problemas escolares, entre outros. Em longo prazo há
risco de: depressão, ansiedade, prostituição, problemas com relacionamento sexual,
promiscuidade, abuso de substâncias psicoativas, ideação suicida, entre outros.
A criança ou adolescente vítima de abuso sexual busca fonte de apoio,
elege uma figura de afeto, como professores, avós ou irmãos. Tal pessoa pode se
tornar um suporte importante nos momentos de estresse promovendo, também, a
competência, a autonomia e a confiança da criança.
Em muitas famílias pode-se observar a reprodução de uma cultura familiar
em que os diferentes tipos de violência acontecem e se mantêm. Apreender os
aspectos envolvidos dentre eles os psicológicos, interacionais, sociais, econômicos e

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culturais, na história da família e sua contextualização atual são fundamentais para


construir estratégias de intervenção profissional.
Os profissionais que atuam na área da infância e juventude precisam
estar habilitados a identificar os fatores de risco e especialmente os de proteção, tais
como os recursos existentes dentro das próprias famílias, o suporte da vizinhança, o
ambiente escolar, os grupos e os recursos da comunidade nas áreas da saúde,
cultural, social, para assim formular estratégias protetivas de modo eficaz.
Importante se faz o trabalho em rede que envolva ações integradas de
cuidado e atenção às famílias submetidas a situações de violência, bem como o
desafio de criar dispositivos que integrem todas essas ações.

4 - ACOLHIMENTO

Ao se chegar à conclusão de que os riscos, negligência e/ou


vulnerabilidades são evidentes e visando o melhor interesse da criança ou do
adolescente, o acolhimento se trata de uma das medidas protetivas previstas no
ECA (BRASIL, 1990) que tem por objetivo proteger diante de situação grave, ao
mesmo tempo contribuir para a restauração e fortalecimento dos vínculos com a
família de origem ou apontar a necessidade do encaminhamento para a colocação
em família substituta.
Assim sendo, segundo a Tipificação Nacional dos Serviços
Socioassistenciais há as seguintes modalidades de acolhimento:
1. Serviço de Acolhimento Institucional (abrigo ou casa-lar);
2. Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora; e
3. República.
De acordo com o ECA a medida de acolhimento deve estar balizada nas
premissas da excepcionalidade e da provisoriedade, sendo que tal instrumento legal
versa, sobre os princípios que pautam os serviços de acolhimento,
independentemente da sua modalidade.
Contudo, é importante destacar que, no que diz respeito à perspectiva da
criança e do adolescente frente à medida de acolhimento institucional, estudos
apontam que, muitas vezes, ela não é percebida como uma intervenção protetiva,
mas como uma punição.

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Entende-se que para a garantia e a restituição dos direitos desses


sujeitos, é necessária a ação de uma complexa rede de equipamentos das políticas
públicas setoriais articuladas.
Moreira (2014) indica que a existência de um processo de judicialização
das relações familiares, expressa pela invasão do direito em áreas antes regida pela
tradição e que tal intervenção não esgota toda a complexidade das relações
familiares.
Além das dificuldades de ordem material, as famílias que têm crianças e
adolescentes acolhidos, são vistas como frágeis do ponto de vista simbólico e
consideradas “desestruturadas” nas relações de autoridade.
A prática desta medida tem mostrado que seus operadores são eficazes
na proteção da criança e do adolescente em situação de risco pessoal e social. No
entanto, têm tido grandes dificuldades para efetivar a restauração dos vínculos
familiares, por várias razões, uma delas pela crença de um modelo ideal de família.
Lembrando o paradoxo que faz da família a entidade central na promoção
dos direitos da criança e do adolescente e, ao mesmo tempo, uma instância incapaz
de promover e defender direitos.
Em suma podemos pontuar obstáculos para a potencialização dos
recursos da família: a adesão às medidas anteriores ao acolhimento institucional, em
decorrência da desconexão entre diversos pontos da rede de proteção social, o que
acarreta ações desencontradas e, por vezes, sobrepostas e, ainda, a descrença de
que a família possa se reorganizar, resultando, por ora, no seguimento à destituição
do poder familiar.

5 - DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR

O poder familiar é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais em


relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção
destes.
A Destituição do Poder Familiar ( DPF) é uma medida protetiva que
visa resguardar as crianças e adolescentes de situações que afetem sua educação,
saúde, moral, integridade física e psicológica.

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O Estado tem legitimidade para intervir nas relações familiares com o


escopo de preservar o interesse das crianças e adolescentes quando os genitores
deixam de cumprir o ordenamento inerente ao poder familiar, podendo suspender ou
extingui-lo.
A legislação aponta os critérios que podem ensejar a DPF, ficando a
cargo do Poder Judiciário a identificação dos fatores que culminam com o
afastamento definitivo dos genitores de seus filhos.
Aos pais são exigidas todas as responsabilidades sobre a proteção dos
filhos e com isso fica velada que a perda do poder familiar muitas vezes ocorre de
um abandono que parte primeiro do Estado e, por isso, em decorrência da carência,
sobretudo social e econômica, ainda que nem sempre essa apareça explicitamente
como fator condicionante, são as causadoras da retirada de crianças e adolescentes
de seus lares.
A decisão pela DPF deve constatar a existência real e efetiva que impeça
a permanência da criança ou adolescente naquela família, o que é casuístico,
avaliando a relação vincular da mesma com seus genitores e as potencialidades
psicológicas desses últimos para retomarem ou não os cuidados à criança e/ou
adolescente.
As ações de destituição tendem a se prolongar, enquanto isso as crianças
ou adolescentes permanecem em Instituições de Acolhimento ou são inseridas
provisoriamente em Famílias Acolhedoras, o que pode favorecer sua perda de
autonomia e identidade, além de comprometer seu desenvolvimento psicossocial.
Por outro lado, se a destituição ocorrer de forma abrupta, dificulta a avaliação da
possibilidade de mudanças no contexto familiar.
Nesses casos, em que as consequências da decisão judicial são
drásticas, os cuidados por parte dos profissionais que avaliam as famílias devem ser
redobrados. Os desafios envolvem as incertezas em fazer previsões em longo prazo
de consequências emocionais e comportamentais relacionadas aos cuidados
parentais.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (2007) publicou orientações aos
técnicos que atuam junto à área da Infância e da Juventude. Com relação aos
procedimentos a serem utilizados pelos profissionais nas avaliações de perda do
poder familiar, destacam-se a entrevista, a visita domiciliar, os contatos com outras

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

equipes e profissionais que prestaram atendimento à família em questão, técnicas


de observação, técnicas lúdicas e testes (no caso dos psicólogos).
Ao solicitar o auxílio da equipe interprofissional da Vara da Infância e da
Juventude na elucidação destes processos, o magistrado apresenta questões a
serem dirimidas. Dentre elas, o esclarecimento sobre a capacidade do adulto em seu
papel parental e sobre a possibilidade deste genitor oferecer algum risco à criança.
Neste sentido, entendemos que abordar sobre DPF nos remete de forma
imprescindível a pontuarmos sobre as relações sociais e afetivas.
No cotidiano da vida familiar as trocas afetivas imprimem marcas que as
pessoas carregam pela vida, definindo direções no modo de ser com os outros
afetivamente e no modo de agir com as pessoas. São nos vínculos afetivos que os
sujeitos buscam apoio e se sentem acolhidos.
A vida em família não pode ser separada do mundo, das transformações
que ocorrem nele, da criação de valores. A socialização não ocorre só na família,
mas também na escola, comunidade, igreja e é fortemente moldada pela sociedade
e pelo Estado.
Falar em DPF, nos remete também abordar as expressões da questão
social, uma vez que o sistema capitalista valoriza o capital em detrimento do
humano. Isso amplia as desigualdades sociais e aumenta a exploração do
trabalhador.
A pobreza deixa os indivíduos mais vulneráveis à situação de risco, à
exploração, ao abandono e, por isso, não raro são estas famílias expostas a estes
contextos que vivenciam de forma mais recorrente a destituição do poder da família.
Importante ressaltar que a pobreza está associada a um conjunto de
ausências relacionadas à renda, educação, trabalho, moradia e rede sociofamiliar de
apoio.
Com a desproteção do Estado e com as oportunidades desiguais para os
indivíduos percebe-se que no descortinar deste acolhimento institucional existe uma
família que foi primeiramente negligenciada, abandonada e excluída socialmente.

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6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O decurso do estudo realizado nos remete, em um primeiro momento,


compreender que, aprofundar na reflexão sobre conhecimentos produzidos na área
da infância e juventude como também da legislação, é basilar para nossa atuação
profissional.
Ressaltamos como fundamental um trabalho que analise do macro para o
particular, com o intuito de efetivar ações que protejam as crianças e os
adolescentes. Ações que apoiem as famílias para que não sofram com medidas
extremas como a destituição do poder familiar, por exemplo.
É necessário empreender esforços, adensar as lutas e movimentos na
perspectiva de que o Estado garanta o cumprimento de programas sociais e de
políticas públicas que visem à garantia dos direitos, a fim de proporcionar às famílias
condições efetivas para o cumprimento dos cuidados e proteção junto aos seus
filhos.
A inclusão dos indivíduos na sociedade só acontecerá com a efetivação
dos direitos sociais, políticos e civis. Para isso é necessário cessar a acumulação de
riqueza nas mãos de poucos, transformar as estruturas, aumentar as remunerações
dos trabalhadores, melhorar as condições de trabalho e fortalecer os vínculos
sociais.
Criar alternativas de intervenção que atendam as particularidades e que
trabalhem para emancipação dos indivíduos. Para a garantia e a restituição dos
direitos é necessário que uma complexa rede de equipamentos sociais esteja
articulada.
No processo de desenvolvimento deste trabalho foi possível vivenciar
discussões e problematizar aspectos que nos levaram a refletir sobre o quão, de
fato, se torna (des)proteção as medidas previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente, imbuída de toda a complexidade de interpretação do real, sob uma
ótica, para além do pessoal, e sim do profissional.
Em tempo, cabe destacar também que abordamos o Estatuto da Adoção
(Projeto de Lei nº 394/2017, que buscava instituir o Estatuto da Adoção), o qual foi
apresentado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) que, em

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síntese, delineava que a adoção deixaria de compor o Estatuto da Criança e do


Adolescente (ECA), criando regramento próprio.
A proposição e conhecimento do Projeto, diante de sua extensão e
possível impacto, desencadeou a criação do Movimento Integral de Proteção à
Criança e ao Adolescente que de forma enfática problematizou a questão (adoção)
proporcionando debates e reflexões para a sociedade no contexto do Sistema de
Garantia de Direitos à Criança e ao Adolescente, uma vez que o referido Projeto se
apresentava na contramão desta história e luta, na medida em que impunha ao ECA
apenas direcionar questões relacionadas a crianças e adolescentes que
cometessem atos infracionais.
Contudo, em 17/10/2018, o IBDFAM emitiu uma nota pública sobre a
manutenção, a aplicação e fortalecimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), enfatizando a importância do mesmo e manifestando apoio a sua efetivação.
Entendemos que tal manifestação surge no contexto de ações empreendidas pelo
Movimento Integral de Proteção à Criança e ao Adolescente.
As ameaças aos direitos e a consolidação destes na área da infância e
juventude são inúmeras, diversas e recorrentes.
Importante apreendermos que as diretrizes constantes no ECA
necessitam de fato serem implementadas, demandam investimentos públicos, e
fortalecimento da rede, da família, assim como da criança e do adolescente.
Por fim, assume relevância pontuar que as discussões sinalizaram para o
cuidado que os profissionais do Judiciário devem observar quanto à possibilidade da
judicialização das relações familiares, o que tende a idealizar um modelo de família,
desconsiderando aspectos relevantes como vinculação afetiva, apesar da aparente
miserabilidade da família e da incapacidade de proteção do Estado.

441
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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448
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR: CONSTANTES


DESAFIOS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR


JUNDIAÍ-BRAGANÇA PAULISTA
“INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
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COORDENAÇÃO

Cláudia Maria Nóbrega – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santo André


Fabíola Maria Mota Costa de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Nazaré Paulista

AUTORES

Ana Carolina da Silva Payolla – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas


Débora Silva Barros de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Cabreúva
Eduarda Vieira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Edna Maria Brandão – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Magnólia Mota Zamariolli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Piracaia
Maria Helena Pompeu – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pinhalzinho
Tamara Cristina Barbosa Soares – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira
Valéria Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Limeira

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Este grupo realiza pesquisas e aprofunda temas relacionados a nossa


atuação enquanto profissionais técnicos há vários anos. Por muito tempo nos
concentramos nas questões relativas à Vara de Família. Entretanto, todas nós
também atendemos às Varas da Infância e Juventude, de modo que consideramos
que as questões igualmente complexas desta vara merecem debate e discussão,
culminando na mudança do nome em 2017 para “Infância e Adolescência” e
ampliando as possibilidades de pesquisa.
Notou-se nos anos de desenvolvimento e amadurecimento desse Grupo
de Estudos que algumas características individuais e coletivas foram frequentes e
unem as integrantes, as quais se referem em efetivar a garantia direitos de crianças
e adolescentes por meio da análise constante em seu cotidiano profissional dos
riscos e vulnerabilidades sócio emocionais dos usuários e das fragilidades de suas
redes afetivas e assistenciais em diversos contextos e localidades, objetivando
também ao responder a demanda processual, apresentar por meio da produção
técnica a compreensão da singularidade e diversidade dos indivíduos considerando
“o princípio do melhor interesse de crianças e adolescentes”.
Considerando os aprofundamentos dos temas relacionados à Rede Sócio-
Assistencial em 2017 e na esteira da discussão sobre efetivamente garantir direitos
deu-se início as atividades desse ano elencando-se dois temas centrais para
reflexão e estudo, a saber: Destituição do Poder Familiar e Guarda Compartilhada,
os quais se apresentaram significativos no cotidiano profissional das profissionais da
Comarca que integram o GE.
Com a aprovação recente da Lei 13.715/2018, a qual amplia as
possibilidades da perda do poder familiar decidiu-se aprofundar esse tema e
aprimorar nosso conhecimento a respeito de todos os aspectos que o envolvem,
subsidiando nossa prática profissional.
O foco ao trabalharmos esse tema foi a análise da competência técnica
dos serviços auxiliares de Psicologia e Serviço Social para emissão de pareceres em
processos de destituição do poder familiar.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Após a delimitação do tema foram pontuados subtemas para as


discussões e objetivando a elaboração do presente artigo, assim como as sugestões
de textos e demais referências bibliográficas.
Transversalmente com o desenvolvimento dos subtemas, as discussões
abrangeram a realidade sobre as instituições que compõem o Serviço de
Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA) e as dificuldades na
efetivação das intervenções articuladas com esses serviços nas comarcas;
compreensão sobre critérios considerados pelas equipes técnicas nas ações de
Destituição do Poder Familiar, atuais mudanças legislativas sobre o assunto;
ausência e modalidades de Políticas Públicas voltadas às famílias de origem das
crianças e adolescentes acolhidos e sua acessibilidade, a importância de grupos
comunitários para resgatar e/ou desenvolver a potencialidade protetiva das famílias.
Nesse sentido o presente artigo apresenta as reflexões construídas
coletivamente e expressa também o reconhecimento das nossas limitações,
enquanto técnicas do Tribunal de Justiça em promover com eficácia ações que
alterem de maneira significativa as condições das famílias que têm seu poder
familiar suspenso ou destituído.

1 - DIAGNÓSTICO

Embora sempre trabalhemos com situações imersas em sofrimento e


muitas vezes, em violações de direitos infantis (considerando aqui também os
adolescentes), deparar com uma Destituição do Poder Familiar nunca é algo
simples. Este parece ser um sentimento compartilhado pelos mais diferentes
profissionais dos Setores Técnicos Judiciários.
Desde 2004, ocasião do primeiro caderno dos Grupos de Estudos do
Tribunal, quase todos os anos houve pelo menos um artigo que tratava ou se referia
a esta tão delicada questão, seja em termos da entrega espontânea de um filho
(2004, 2015), seja pensando em possíveis critérios que referendem ou não a medida
(2006, 2011, 2016, 2017) ou em questões tangentes a esta, tais como: maus tratos e
violência (2007, 2009, 2010, 2013) e reflexões sobre o empobrecimento (2007). Nós
cremos que esta é uma questão que angustia porque ela “mora” em um nó
altamente problemático: ela está entre o Direito da Convivência Familiar e

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Comunitária (e todas as garantias que o Estado deveria oferecer às famílias) e a


proteção de crianças e adolescentes em contextos de violações de direitos. Porque
se há que se conviver em família, a esta é atribuído o papel de garantir nossa
sobrevivência e desenvolvimento físico e sócio emocional.
Trabalhando na alta complexidade, observa-se que nem todas as famílias
conseguem garantir este contexto:

Indiscutivelmente, a destituição do poder familiar é uma medida


drástica, pois promove o rompimento irrevogável dos vínculos
parentais. Pode representar garantia de direitos, quando protege a
criança e o adolescente de situações que a colocam em risco,
decorrente do abuso ou omissão do poder familiar. Mas também
pode contribuir exatamente para o inverso, legitimando a violação
dos mesmos, especialmente quando não há outras possibilidades
para esta criança e/ou adolescente ou quando há evidências de que
a situação de risco contempla toda a família, vítima de uma violência
estrutural, caracterizada pelo não acesso às políticas públicas (Grupo
de Estudos da Capital – Adoção II, 2016, p. 37).

Assim, um dos grandes problemas ao se deparar com a questão da


Destituição é observar que ela está ligada ao empobrecimento das famílias (em seus
anos de trabalho no Judiciário, quantas crianças oriundas de famílias abastadas
você viu destituídas?) e à falta de Políticas Públicas. Talvez “falta” não seja
exatamente a palavra que procuramos, uma vez que, a nosso ver, os equipamentos
tanto do SUAS quanto do SUS existem. Talvez a palavra que procuramos seja
“ineficácia”. E são várias as facetas deste tema (e algumas se aplicam também a
nós).
Diante da nossa situação brasileira, com desemprego e subemprego
perenes, temos uma naturalização da violência, que passa por diversas questões.
Uma delas é que as políticas públicas que temos disponíveis parecem oferecer um
serviço que tampona carências e socorre problemas, mas que dificilmente intervirá
nas profundas dinâmicas psíquicas e sociais de gerações ali imersas. Supor que
uma família onde se manifesta a violação será capaz de fazer mudanças de
comportamento através de orientações em atendimentos esporádicos (em algumas
cidades uma por bimestre e até por trimestre) é, basicamente, uma ilusão. É
imaginar que a orientação tem um poder muito maior do que anos e anos de
funcionamento familiar. E por falar em ilusão, encontramos outra questão: a ideia

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que temos de como deveria uma família funcionar (como deveria uma família
funcionar? Tem modelo ideal? Não tem modelo ideal?). Conforme citam as colegas
do Grupo de Estudos de São Paulo, referindo Minuchin:

Sobre tal aspecto, Minuchin (2008), ao dissertar sobre as famílias


norte-americanas e a necessidade de proteção à infância, aponta a
diferenciação entre a atuação junto às famílias de classe média e
aquelas de baixa renda, referindo-se à “intrusão” de instituições no
âmbito privado das famílias pobres. Segundo o autor, ao entrarem no
espaço da família (físico e psicológico), com ideias preconcebidas
sobre como a dinâmica familiar deveria estar funcionando,
profissionais, muitas vezes, provocam outras demandas e conflitos,
ao invés de contribuírem para a superação da problemática.
Ademais, são citados casos de famílias nucleares nas quais as
intervenções são voltadas para as mulheres (mães), enquanto os
homens (pais) são excluídos do processo de avaliação e
atendimento. As orientações são excessivas e divergentes, minando
a autoridade que compete às famílias, que são “tuteladas” e se
esgotam com as “intrusões” de todos profissionais. Segundo o
referido autor, famílias mais simples (mais pobres) são as mais
suscetíveis, pois estão fragilizadas, não apresentam oposição e,
muitas vezes, não têm crítica de sua situação e consciência de seus
direitos (Grupo de Estudos da Capital – Adoção II, 2016, p. 61, 62).

As questões que se colocam para um profissional lidar diante de famílias


onde se manifestam violações são desafiadoras. Não é à toa que as chamamos de
“média” e “alta complexidade”. Contudo, é frequente observarmos colegas
inexperientes a trabalhar exatamente nestes equipamentos. Não que a inexperiência
seja um problema em si, mas estamos diante de alguém que, em geral, está ainda
construindo sua identidade profissional e criando dentro de si mesmo uma série de
condições emocionais e caminhos cognitivos, tendo que atuar em situações, muitas
vezes, urgentes. Piora todo o quadro a falta de investimentos financeiros: temos
equipes fragmentadas, incompletas, insuficientes, trabalhando em condições muitas
vezes precárias.
Ainda que existam políticas públicas e leis de defesa dos direitos das
crianças e adolescentes, para que se efetivem de fato e a infância possa ser vista,
entendida e protegida, como um estágio específico do desenvolvimento humano,
portanto, sujeito de direitos e prioritariamente de proteção e atenção (Artigo 4º do
ECA), talvez seja necessário ampliar a análise em sua essência quando as
pactuações são formuladas numa agenda política. Assim, as propostas e

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

encaminhamentos da Política para a infância fazem parte da forma como o Estado


brasileiro foi se constituindo ao longo da história, combinando autoritarismo, descaso
ou omissão para com a população pobre com clientelismo, populismo e um
privilegiamento do privado pelo público, em diferentes contextos de institucionalidade
política e de regulação das relações entre Estado e sociedade (FALEIROS, 1995, p.
301).
Como avaliar a efetividade, os impactos sociais, financeiros e de mudança
de paradigmas numa Política Social voltada para a garantia de direitos à Infância?
Mais especificamente, quando falamos de destituição do poder familiar na sociedade
atual, com essa mesma Infância ainda não totalmente compreendida, desmistificada
e posta como sujeito social, sofrendo as influências de um modelo de sociedade
baseada no lucro/capital/descartável e rápido e a marginalização ao ter uma família
que não se adequa (na maioria das vezes não por escolha própria) aos padrões
estabelecidos socialmente.
A sociedade brasileira é fundada na desigualdade social, encoberta pela
igualdade formal. Há inúmeros relatos das violências domésticas, estruturais e de
Estado que vitimizam um número considerável de famílias e indivíduos. Nesse
contexto as políticas sociais cumprem um papel mitigador, afiançando serviços,
programas no campo dos direitos sociais, mas como mensurar a eficácia dos
mesmos?
Compreender as políticas sociais, a maneira como foram formuladas,
implementadas e executadas é fundamental para fazer uma análise dos entraves e
os motivos de sua baixa eficácia na vida das famílias que tanto necessitam de seus
serviços e sua proteção. Atualmente, diferente do que vimos na história, embora
haja tantas políticas sociais para a garantia de direitos à Infância e Juventude e suas
famílias, o quanto de fato, elas se concretizam em ações de mudanças positivas e
efetivas na vida de cada criança, cada adolescente e seu núcleo familiar parece que
ainda é algo a ser construído. O Estado, a família e a comunidade em geral ainda
encontram dificuldades em efetivar as leis que visam proteger e garantir os direitos
fundamentais a toda criança e adolescente.
Quando estudamos a natureza que produziu a necessidade de destituição
do poder familiar a essas crianças e adolescentes e a função social das políticas
públicas, constatamos que em raras ocasiões o fenômeno se deu numa questão

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pontual, decorrente daquele exato momento de vida do sujeito. O que temos,


empiricamente, é que as famílias de crianças e adolescentes destituídos ou em
processo de destituição do poder familiar, em sua grande maioria já são
acompanhadas pelos serviços socioassistenciais há algum tempo; e não raramente,
gerações destes sujeitos são “cuidadas” por este Estado.
Por alguma ou várias circunstâncias determinadas pelo contexto
estrutural, o trabalho desenvolvido não atendeu às necessidades daquele núcleo
familiar, culminando no acolhimento institucional. Reafirmamos o que de imediato
emerge: salários mais baixos, alta rotatividade profissional, ausência de técnicos
devidamente capacitados para atender à demanda dos usuários, comprometem a
eficácia dos serviços oferecidos pelas Organizações da Sociedade Civil através da
parceria firmada com o Poder Público. Portanto, a Política Pública de Assistência
Social é constantemente repensada, implementada e reavaliada. Cria-se um serviço
para tentar dar conta da necessidade da população e outras demandas surgem. Um
constante ir e vir. A criança e o adolescente na maioria das vezes não podem (e não
devem) esperar por este refazer, recriar, recomeçar constante dos serviços
prestados na tentativa de potencializar as famílias para a permanência de seus filhos
em seus núcleos familiares biológicos.
Conseguir se efetivar como Política é uma luta num campo de
permanente tensão. Angariar recursos para dar o atendimento com qualidade é
outra, garantir o caráter público na intensa disputa de projeto societário, um embate
duro, ser efetiva e cumprir com eficácia sua função, algo ainda a ser alcançado. Aqui
não falamos das propagandas eleitoreiras, tampouco de um pessimismo trágico e de
não reconhecimento dos avanços, mas das dificuldades reais quando a questão é
proteger quem precisa e a urgência de um parecer técnico sobre uma destituição do
poder familiar ou a permanência do sujeito em seu núcleo de origem. É
compreensível que muitas vezes a sociedade olhe para estas famílias, crianças e
adolescentes e se questione sobre o investimento realizado através de recursos
públicos com tão pouco retorno e sucesso, quer seja para a sociedade e,
principalmente, para a mudança de suas histórias de vida.
O que não podemos deixar de apontar é que a culpa não deve nunca
recair sobre as vítimas, como bem faz a sociedade capitalista: “você é culpado por
sua falta de sorte, nasceu na hora errada, no lugar errado e ainda é ingrato com

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

quem é bom para você”. Esse discurso burguês e meritocrático não faz avançar e
modificar uma sociedade, mas corrobora para a manutenção e “exploração do
homem pelo próprio homem”, neste caso, de crianças e adolescentes violados em
direitos básicos. A Assistência Social tenta garantir o acesso ao mínimo necessário,
mas necessita de outros atores e demais políticas para compor com ela quando o
que está em debate é a qualidade e garantia de direitos de crianças e adolescentes
em risco de destituição do poder familiar.
As Políticas Públicas são suficientes em sua teoria, embora nem sempre
efetivas e eficazes. A intersetorialidade acontece muito mais dependendo dos
“atores sociais”, do que da compreensão da necessidade de readequação do que
está previsto na lei. As leis vigentes são de fato, voltadas para a garantia de direitos,
mas a pactuação política para a destinação de recursos financeiros, a fim de efetivar
concretamente estas mesmas leis, estão longe de ser uma realidade no universo do
Poder Público e dos homens que detêm nas mãos o poder de mando.
Se o investimento e a eficiência dos serviços prestados a essas famílias
fossem parte do cotidiano profissional, talvez outros fatores pudessem ser mais bem
avaliados, como por exemplo, a função de uma família de cuidar, para além das
condições sociais e econômicas, uma vez que essas não seriam determinantes
quando o assunto a ser tratado fosse a destituição do poder familiar. Atualmente os
desafios são muitos, pois a escassez de todo tipo de recurso é uma realidade na
vida destes indivíduos.

2 - TIPIFICAÇÃO SUAS

A Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais foi elaborada no


ano de 2009 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome –
Secretaria Nacional de Assistência Social, em decorrência da Resolução nº
109/2009 do CNAS. É uma normativa que permitiu a unificação dos serviços de
proteção social básica e especial em todo o território nacional, organizando os
conteúdos essenciais, público a ser atendido, objetivo de cada um deles e os
resultados esperados para a garantia dos direitos socioassistenciais. Estão
instituídos também as provisões, aquisições, condições e formas de acesso,
unidades de referência para a sua realização, período de funcionamento,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

abrangência, a articulação em rede, o impacto esperado e suas regulamentações


específicas e gerais.
Antes de apresentarmos os pontos relevantes e analisarmos
tecnicamente algumas de suas pontuações, faz-se necessário retomar o contexto
jurídico do país que culminou nesta elaboração. A Constituição Federal de 1988
inaugurou a regulamentação de direitos sociais nos textos constitucionais de nosso
ordenamento jurídico. A partir desta demarcação pela chamada Constituição Cidadã,
abriu-se no campo da Seguridade Social (formada pelo tripé: Saúde Pública,
Previdência Social e Assistência Social) a regulamentação de um conjunto de
políticas sociais com finalidade de amparo e assistência ao cidadão e aos seus
familiares.
A Assistência Social obteve regulamentação com a Lei Federal nº 8.742,
de 1993: Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). A partir desta legislação, a
Assistência Social enquanto direito do cidadão e dever do Estado, adquire status de
política pública não contributiva que objetiva prover os mínimos sociais, sendo
realizada por um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade
para garantir o atendimento às necessidades básicas da população em
vulnerabilidade social.
Com base na LOAS e na sua expressiva alteração pela Lei 12.435, em
2011, que incorporou os avanços significativos advindos da implantação do Sistema
Único da Assistência Social (SUAS) no país, cria-se a possibilidade de padronização
em todo território nacional dos serviços de proteção social básica e especial,
tornando-se possível por meio da Tipificação Nacional dos Serviços
Socioassistenciais.
O texto da Tipificação Nacional divide os Serviços por níveis de
complexidade do SUAS, sendo estes: Proteção Social Básica e Proteção Social
Especial de Média e Alta Complexidade, de acordo com a disposição abaixo:
I - Serviços de Proteção Social Básica:
a) Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF);
b) Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV);
c) Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com
deficiência e idosas.
II - Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade:

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

a) Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e


Indivíduos (PAEFI);
b) Serviço Especializado em Abordagem Social;
c) Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de
Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à
Comunidade (PSC);
d) Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência,
Idosas e suas Famílias;
e) Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua.
III - Serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade:
a) Serviço de Acolhimento Institucional, nas seguintes modalidades:
- abrigo institucional;
- Casa-Lar;
- Casa de Passagem;
- Residência Inclusiva.
b) Serviço de Acolhimento em República;
c) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora;
d) Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de
Emergências.
A finalidade da Proteção Social Básica é prevenir situações de risco por
meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, bem como visa o
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Sua operacionalização
acontece por meio do PAIF, SCFV e atendimento domiciliar para pessoas idosas e
com deficiência. De caráter continuado e preventivo, objetiva fortalecer a função
protetiva das famílias, prevenindo a ruptura dos seus vínculos e promovendo seu
acesso e usufruto aos direitos.
A Proteção Social Especial de Média Complexidade é destinada a famílias
e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência
de abandono, maus tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias
psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de
trabalho infantil, entre outras situações de violação dos direitos. As famílias são
referenciadas ou atendidas pelos seguintes serviços: PAEFI, Serviço Especializado
em Abordagem Social, Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida ou de Prestação de Serviços à


Comunidade, Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência,
Idosas e suas Famílias e Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua.
Da mesma maneira que a Proteção Social Básica, a Proteção Social
Especial busca o fortalecimento da função protetiva das famílias diante do conjunto
de condições que as submetem a situações de risco pessoal e social.
Em situações que os vínculos familiares encontram-se rompidos ou
fragilizados, o atendimento é direcionado para a Proteção Social Especial de Alta
Complexidade, que organiza os serviços de acolhimento institucional em
modalidades que atendem crianças, adolescentes, adultos e idosos: abrigo
institucional, casa-lar, casa de passagem e residência inclusiva; Serviço de
Acolhimento em República; Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora; Serviço
de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências.
O acolhimento acontece em diferentes modalidades, a fim de garantir a
proteção integral de crianças/adolescentes que vivenciam a fragilização e/ou
rompimento dos vínculos familiares. O acolhimento deve ser provisório e excepcional
e especificamente nas medidas que envolvem crianças e adolescentes em situação
de risco pessoal e social, cujas famílias ou responsáveis encontrem-se
temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção, uma
das exigências é que a permanência em acolhimento perdure até que seja possível
o retorno à família de origem (nuclear ou extensa) ou colocação em família
substituta, considerando a brevidade da medida.
Importante destacar que crianças e adolescentes no ordenamento jurídico
brasileiro obtiveram especial atenção e garantia de direitos por intermédio da
Constituição da República de 1988 que introduziu a doutrina da proteção integral.
Neste período histórico, os legisladores consideraram a importância da proteção à
população infanto-juvenil, até então às margens das garantias legislativas, para o
futuro de nossa sociedade.
Na perspectiva de proporcionar a estes sujeitos os direitos inerentes à
peculiar fase de pessoas em desenvolvimento, formulou-se o Estatuto da Criança e
do Adolescente, Lei nº 8069/1990. Essa legislação em consonância com a
Constituição Federal e o Código Civil, compõe um sistema de atenção, proteção e
garantia de direitos especiais às crianças e adolescentes.

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Através da participação da família, da comunidade, da sociedade em


geral e do poder público cria-se um microssistema de prioridade de atendimento com
finalidade absoluta de alcance do melhor interesse das crianças e adolescentes,
proporcionando-lhes um desenvolvimento sadio e integral, em condições de
liberdade e dignidade.
O melhor interesse das crianças e adolescentes que fundamentam as
ações dos atores envolvidos deve prevalecer sobre quaisquer outros direitos,
inclusive dos pais, quando tratar-se de questões parentais, e, igualmente,
prevalecem sobre os interesses do Estado e da sociedade quando presentes
omissões ou violações que prejudiquem o desenvolvimento integral do indivíduo.
Na efetivação da teoria o Estado apresenta-se como articulador e
fiscalizador das políticas públicas que envolvem as crianças e adolescentes. Ao
analisar as condutas que interferem no desenvolvimento integral das crianças e
adolescentes, o poder público passa a interferir no instituto do poder familiar sendo
este entendido como direitos e deveres assegurados aos genitores sobre os filhos.
Diante da possibilidade do Estado adentrar no seio da família e garantir que as
crianças e adolescentes obtenham total acesso aos direitos que lhes são inerentes,
a legislação civil prevê a extinção do poder familiar em decorrência de decisão
judicial (art. 1635, inc.V) .
Os genitores que incorrerem em ações ou omissões capazes de
prejudicar o desenvolvimento integral dos filhos e que não compactuem
satisfatoriamente com as garantias de direitos da população infanto-juvenil, poderão
vir a ser destituídos do poder familiar.
O deferimento judicial da destituição do poder familiar deve ser
considerado como última possibilidade de garantia do melhor interesse da criança e
do adolescente, tendo em vista o direito de manutenção dos seres em
desenvolvimento em sua família natural ou extensa e as consequências advindas
desta drástica medida. Devem-se analisar as vulnerabilidades sociais da família e as
possibilidades de promoção e proteção que estão sendo disponibilizadas pelo poder
público para modificação das situações reais que prejudicam o pleno acesso aos
direitos atribuídos aos menores de idade.
Neste cenário o grupo familiar deverá ser referenciado pelo Serviço
Socioassistencial que atende suas especificidades, assim como se deve considerar

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a existência ou não de acompanhamento da política de assistência social anterior às


ações que podem ocasionar a Destituição do Poder Familiar e quais demandas
foram apresentadas. Na realização deste diagnóstico pode-se depreender sobre
ocorrências de ações protetivas e de promoção social à família ou a omissão do
Estado nesta função de matricialidade familiar.
A avaliação do Judiciário quanto às possibilidades de cuidados que a
família natural é capaz de exercer, inserida no contexto atual de desigualdades
sociais e consequentes vulnerabilidades econômicas, implica discutir em que ponto
a destituição do poder familiar garante os direitos fundamentais das crianças e
adolescentes, ou os viola ao desconsiderar que o Estado não executa as políticas
públicas capazes de intervir no contexto familiar vulnerável, portanto a lógica da
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais apresenta-se como uma proposta
conceituada e válida, mas que por vezes apresenta-se inviável por não conseguir
modificar a realidade da população atendida.

3 - TIPIFICAÇÃO SUS

As crianças e adolescentes que retornam as suas famílias após a medida


extrema prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente de acolhimento
institucional, não raramente voltam para o mesmo ambiente do qual sairam e
também não raras vezes nas mesmas condições que provocaram seu afastamento,
mesmo que de forma atenuada. Com a reintegração de crianças e adolescentes as
suas famílias, faz-se importante o trabalho de fortalecimento dos vínculos e de
manejo de questões familiares que emergem, muitas vezes em forma de conflitos,
por conta de diferentes fatores, tais como inabilidade ou incompetência parental por
parte dos pais ou responsáveis, faixa etária que a criança ou adolescente se
encontra, problemas de ordem relacional familiar, entre outros.
Nesse sentido, do ponto de vista clínico psicológico no âmbito do
atendimento do conjunto familiar, buscou-se pesquisar o que pode ser oferecido pelo
sistema de saúde pública a fim de prevenir ou evitar um novo rompimento da
convivência familiar e o reacolhimento das crianças e adolescentes nos serviços,
seja institucional ou em famílias acolhedoras. No documento, expedido pelo
Conselho Federal de Psicologia, intitulado “A regulação dos serviços de saúde

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mental no Brasil” fica explicitado que o atendimento das famílias no sistema de


saúde pública está restrito, seja pelo integrante da família que adentre ao sistema,
adulto, idoso ou criança ou adolescente, aos problemas de ordem mental no caso,
transtornos mentais ou ao uso de substâncias psicoativas e ao equipamento CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial) em suas modalidades I, II, III, AD ou Infantil.
Nestes espaços está prevista a psicoterapia individual e/ou em grupo de
pacientes, visitas domiciliares e o atendimento à família é realizado enquanto
recurso de apoio ao paciente e não de atenção em psicologia clinica à família, ou
seja, a psicoterapia familiar. No mesmo sentido, nas unidades básicas de saúde,
centros de saúde e ambulatórios está prevista a psicoterapia individual e/ou em
grupos, em forma de grupos operativos, terapêuticos e orientação de atividades
socioterápicas ou educativas, o mesmo ocorrendo nos hospitais-dia e nas
internações hospitalares. Tampouco na saúde suplementar, representada pelos
planos de saúde também está previsto o atendimento à família com foco na doença
mental.
Deste modo, o trabalho com famílias que necessitam elaborar seus
papéis parentais, vínculos relacionais e a dinâmica funcional a fim de torna-la
adaptada e suficientemente boa, não encontra respaldo na política de saúde pública.
Contudo, uma brecha possível, pode ser encontrada na recente Portaria nº 702 de
21 de março de 2018 do Ministério da Saúde que integra novas práticas na política
nacional de práticas integrativas e complementares.
Entre as novas práticas, pode se encontrar a técnica de Constelação
Familiar que consiste em representar as relações familiares e permite identificar
bloqueios emocionais de gerações ou membros da família. A técnica foi
desenvolvida na década de 1980, pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, que
preconiza a existência de um inconsciente familiar, além do inconsciente individual e
do inconsciente coletivo, que atua em cada membro de uma família. A técnica
trabalha com o relacionamento humano em termos de pertencimento ou vínculo,
ordem de chegada ou hierarquia, e a do equilíbrio, as quais atuam ao mesmo tempo
dentro da família convivente. De acordo com Hellinger, a consonância destas
variáveis favorece que a vida flua de modo equilibrado e harmônico, mas a sua
transgressão pode ocasionar perda da saúde, da vitalidade, da realização, dos bons
relacionamentos, com decorrente fracasso nos objetivos de vida. O objetivo é levar o

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indivíduo a outro nível de consciência em relação ao problema e mostrar uma


solução prática e amorosa de pertencimento, respeito e equilíbrio. A técnica é
indicada para todas as idades, classes sociais, e sem qualquer vínculo ou
abordagem religiosa.
Porém, o trabalho clínico psicológico com famílias não deveria se ater a
uma técnica, ainda não reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia, mas sim
oferecer as variadas abordagens psicológicas para atendimento familiar que a
psicologia dispõe. Desta forma, as famílias cujos membros, não necessariamente
estejam envolvidos em questões de saúde mental, mas apresentem problemas no
que tange o exercício parental e relacional entre si, poderiam ser contemplados, de
modo a evitar novos rompimentos de vinculo e convivência dos integrantes da
família.

4 - CONHECENDO UMA EXPERIÊNCIA EM ANDAMENTO:


(AUSÊNCIA DE) POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MÃES EM
VULNERABILIDADE - É POSSÍVEL INTERVIR POR MEIO DO PODER
JUDICIÁRIO?

Na cidade de Pinhalzinho/SP (13.105 habitantes), uma iniciativa


fomentada pela Rede Social da Infância e Adolescência com apoio dos Poderes
Judiciário e Executivo locais está em andamento desde agosto de 2017. Trata-se de
uma organização não governamental idealizada para fornecer suporte diferenciado a
famílias em alta vulnerabilidade com crianças na primeira infância: Projeto Social
Oca de Pinhalzinho, o qual reúne em um mesmo local, dois ambientes distintos com
finalidades complementares:
1) Oficina de Costura, onde se desenvolve um projeto de confecção de
fraldas e absorventes ecológicos (não descartáveis, tamanho único, para bebês e
absorventes para pessoas sem controle de esfíncteres), sendo que até o momento a
produção atendeu às necessidades de aprendizado, de desenvolvimento dos
produtos e a demanda das próprias mães, que passaram a usar fraldas que
produziram, deixando de gastar com este item.
2) Oficina das crianças, onde o espaço foi idealizado para oferecer o
melhor em termos de estimulação para as crianças, com as mães aprendendo a
estar com os filhos por meio do brincar.

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A equipe de infraestrutura (alimentação e limpeza), igualmente composta


pelas mães também compõe a ONG.
A proposta foi construída desde o primeiro momento com as mães e a
Rede de Serviços que atende a Infância na cidade. A Rede elencou casos
considerados críticos: situações desafiadoras, famílias que “não aderem”, mães em
risco de perda do poder familiar – pelos mais diversos motivos: histórico de
dependência química, negligência crítica, baixo nível intelectual comprometendo a
maternagem, abuso sexual intrafamiliar, histórico de encarceramento da própria mãe
ou do pai, ausência de renda, adolescentes gestantes em contextos de alto risco
social, entre outros motivos.
Inicialmente as pessoas consideradas nas situações mais desafiadoras
pelos participantes na Rede da Infância foram convidadas a participar com os filhos,
de uma roda de conversa em que foi apresentado o filme “O Começo da Vida”
(Instituto Alana).
Após esse evento, em dois meses a ONG foi fundada e começando a
estruturar-se – estatuto, diretoria, registro e início das oficinas. Das 16 convidadas,
11 começaram a se reunir. A princípio uma vez por semana por quatro horas,
dividindo-se em três grupos (costura, crianças e infraestrutura de limpeza e comida)
que se revezavam nestas três tarefas. Depois de dois meses, passaram a ficar um
dia por semana reunidas. A princípio dentro de um centro de aprendizado da
prefeitura municipal, espaço limitado, com recursos financeiros basicamente de
doações (para a refeição coletiva e materiais de costura), com brinquedos coletados
entre todos.
Com limitados recursos humanos: a presidente da entidade (ex-
conselheira tutelar, na época ainda estudante de Serviço Social), a assistente social
judiciária, a professora de corte e costura da Secretaria da Assistência,
eventualmente contando com a participação de técnicos da prefeitura (nutricionista,
enfermagem, psicóloga) e com muita ambição e participação de mulheres que
viviam situações limites, a proposta tomou corpo e forma.
O Poder Judiciário acreditou na proposta e contribuiu. O Juiz autorizou
participação da assistente social por um dia na semana, enquanto atividade de Rede
e trabalho preventivo à infância e cedeu os brinquedos enviados ao Setor Técnico à
oficina das crianças, os quais se encontravam guardados por falta de espaço no

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fórum. O Poder Executivo local acreditou e se entusiasmou, ofereceu em comodato


uma antiga escola infantil rural que estava desativada e praticamente abandonada
há muitos anos, assim como o transporte próprio municipal (micro ônibus) que serve
à Educação e à Assistência foi cedido para transportar as mães e crianças. O
Projeto passou a funcionar três vezes por semana – terças, quintas e sextas em
fevereiro de 2018 – dias em que o transporte era possível.
Em regime de mutirão com trabalho de todos, inclusive em alguns casos
de pais das crianças, vizinhos, adolescentes que se interessaram por ajudar
realizou-se a Posse e a transformação do local – limpeza, pintura, formação da
horta, troca de vidros quebrados, aquisição de máquinas de costura usadas, prensa
térmica e tudo o que se descobria necessário. Muitos doadores de alimentos
permanecem participativos, assim como um fornecedor de frutas e legumes e cestas
básicas. Improvisando e criando a todo o momento, o espaço, o tempo e o trabalho
foi se definindo.
Desde o início a proposta se baseou em princípios e metodologia de
processos circulares - Kay Pranis – Justiça Restaurativa, com vistas em enfrentar o
desafio de compartilhar o stress tóxico que os integrantes vivenciam como, por
exemplo, situações extremas, recaídas, medos e as possibilidades de transformar
relações e mudar a realidade construindo vínculos mais saudáveis. Esta base da
proposta tem sido essencial.
As mães gradativamente se subdividiram em costureiras, cuidadoras das
crianças e cuidadoras do espaço e da alimentação. As crianças são benvindas
sempre, inclusive quando estão doentes. Em férias escolares 24 crianças
frequentaram o espaço, mas em média por volta de 10 crianças (bebês a 11 anos de
idade). Acima de quatro anos de idade, quando já frequentam escola, ficam apenas
no contra turno escolar. Fazemos em conjunto lições de casa e garantimos que não
faltem às aulas.
Em junho ganhamos de uma empresa uma brinquedoteca. Em setembro
conseguimos duas verbas para projetos distintos. Uma delas, o Projeto de Melhoria
das Condições Físicas (verba das Penas Pecuniárias - Fórum), com a qual fizemos
novo alambrado, colocação de forro (prefeitura já havia feito novo telhado e nova
instalação elétrica), e se montou a oficina das crianças e o playground externo. A

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segunda foi para Melhorias na Oficina de Costura, a partir de uma verba de


responsabilidade social de uma multinacional existente em cidade vizinha.
A segunda fase se iniciou e englobou dois desafios: a geração de renda
que será revertida às mães e o desafio de constituir uma equipe de apoio às mães
(serviço social, pedagogia, psicologia, administração ou engenharia de produção).
Hoje estamos com página no Facebook para a comercialização dos produtos já
montada, mas ainda não ativada. Em termos de equipe, neste momento
trabalharemos com estagiários com supervisão assegurada. Por questões de custo e
também conceitual, todos começamos como voluntários, as mães inclusive. A ONG
ainda não tem fonte de custeio para despesas de pessoal. As mães encontram-se
há mais de ano construindo a instituição com seu trabalho voluntário, e
consideramos que os estagiários que desejarem aprender e ajudar a criar esta
alternativa podem começar nessa mesma condição.
O Projeto tem assegurado às mães suporte, geralmente na forma de
gêneros alimentícios. A alimentação na ONG, com café da manhã, almoço e lanche
da tarde é fornecida, custeada pelos voluntários. Quando se ganha alimentos (o que
tem sido constante – um fornecedor de um supermercado local conheceu o projeto e
envia mensalmente caixas de legumes e frutas), eles são divididos entre as mães na
maior parte. A menor parte fica para ajudar nas despesas. Por se encontrar
localizado em área rural, muitos vizinhos (que foram convidados a conhecer o
projeto desde o início) levam verduras.
Também o fato de deixarem de gastar com fraldas descartáveis ajuda e
muito. Muitas vezes este item responde por parte importante da (pouca) renda que
dispõem. Também todas as verbas assistenciais existentes são acionadas, e há um
esforço intensivo de toda a Rede Social no sentido de dar uma atenção diferenciada
a estas famílias. A saúde de todas as mães e crianças envolvidas, por exemplo, é
cuidada. Mãe com dificuldade cognitiva, por exemplo, é acompanhada agora por
alguém, geralmente outra mãe. A ajuda mútua em crises se tornou uma constante. A
Oca virou a rede de apoio que várias delas não tinham.
A marca já se encontra registrada no INPI – “Bem Amado Humano”, e
estamos muito próximos de começar a comercializar nossos produtos, gerando
renda que será revertida às mães, sendo partilhada igualmente entre todas. Com o

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crescimento, a intenção é a contratação dos estagiários ao se formarem e se manter


a Diretoria sem remuneração.
Consideram-se grandes os desafios. Estamos produzindo nova tecnologia
social, que se espera ser reproduzível, e aprendendo juntos. Objetivou-se e a ONG
se mantém nesse principio de mudar a lógica perversa que acompanha a condição
feminina na maternidade em situação de extrema vulnerabilidade, em que, por falta
de políticas públicas de apoio às famílias mais fragilizadas, ou por existência de
política pública que privilegia a colocação de crianças destas famílias em adoção, a
afirmação legal que a carência econômica não pode ser o critério para perda do
poder familiar é apenas figura de retórica.

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5 - CONCLUSÃO

Durante o ano de 2018 nos propusemos a (re)pensar a questão da


destituição do poder familiar, tema complexo e constantemente posto em pauta, não
só nos Grupo de Estudos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como por
alguns dos autores dos textos utilizados em nossas conversas.
A quem recai a responsabilidade pela destituição do poder familiar? Quem
são os culpados? Família, Poder Executivo, Sistema de Garantia de Direitos? Tais
questões foram relevantes durante o processo de trabalho do grupo. A cada
encontro nos deparávamos com novidades não tão novas e por questionamentos
persistentes. O que nos leva a crer que tais questionamentos ou não possuem uma
resposta assertiva ou ainda precisam de maior entrosamento, eficácia e eficiência
das políticas públicas. Apesar disso, chama a atenção que, em maioria absoluta, são
as famílias pobres o principal alvo das ações de destituição do poder familiar.
Há de se considerar que a legislação brasileira teve avanços significativos
no modo de pensar a família e de propor políticas publicas, e aqui nos referimos
especificamente a de Assistência Social. Conforme apontamos em relação ao
SUAS, a tipificação nacional dos serviços socioassistenciais elenca uma série de
serviços de cunho básico e especial para atender às diferentes demandas das
famílias que acessam tal política pública, seja por necessidade, seja por imposição.
Quando se abordou o diagnóstico, no primeiro momento, levantamos o
quanto a política econômica social obteve progresso, ao passo que refletimos o
quanto o Estado ainda se mostra frágil e desarticulado no entendimento e
atendimento as famílias a quem se determina a destituição do poder familiar, por
falta – ainda – de políticas públicas. Famílias negligenciadas que negligenciam seus
filhos numa engrenagem que parece não se modificar.
O SUS da mesma forma se destacou como política pública que visa à
atenção integral e universal dos indivíduos, contudo, não atinge parcela da
população que necessita de atendimento/tratamento específico sobre
conflitos/relações familiares. O foco permanece na saúde mental.
A família que nem mesmo o SUAS tem dado conta, muito menos será
percebida no SUS. No texto exemplificamos a constelação familiar como uma

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técnica que pode ser utilizada para esse fim, entretanto, pouco conhecida, utilizada e
não reconhecida pelo CFP.
No entanto, nossas reflexões não se pautaram apenas em lamentar nossa
atuação no âmbito do judiciário e das dificuldades de trabalhar em rede e de
observar as famílias com possibilidades de destituição do poder familiar
precocemente. Na contra mão do sistema, temos como exemplo e estímulo, a
cidade de Pinhalzinho, município no qual uma das assistentes sociais do grupo atua
há algum tempo. A rede municipal nos ensina sobre articulação, cooperação,
superação, pertencimento, insistência, resistência e resiliência. Não ficando apenas
no discurso das dificuldades, mas colocando em prática o fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários, desenvolvendo potencialidades e aquisições, pontos tão
bem explanados na tipificação dos serviços socioassistenciais.
A destituição do poder familiar provavelmente permanecerá como questão
a ser incitada, explorada, por mais algum tempo por estes profissionais. De forma
alguma pudemos elencar um “check list” em relação às dinâmicas familiares,
comportamentos existentes e esperados que acarretem ou que previnem a
destituição do poder familiar. No decorrer dos estudos foi possível visualizar
possibilidades de intervenções positivas de garantia e acesso de direitos como
alternativas para que as famílias possam desempenhar integralmente seus poderes
parentais.
O que permaneceu claro ao grupo é a necessidade de mantermos nossas
ponderações e “catracas ativas”, para não nos engessarmos diante de Sistemas que
nem sempre garantem direitos e incorrermos no erro de culpabilizar a família pelas
mazelas a que estão expostas, e que possamos de fato trabalhar em Rede e inserir
as famílias – ponto principal – em nossas conversas, considerando suas
potencialidades, fragilidades e necessidades, e em justa medida há de se considerar
o mesmo em relação às Políticas Públicas.

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____.Reflexão sobre famílias empobrecidas. São Paulo: 2007. Disponivel em:


http://www.tjsp.jus.br/RHF/PortalServidor/Categoria/402716000/cadernos-de-
estudos-servico-social-e-psicologia-judiciarios Acesso: maio, 2018.

____.Reflexões éticas frente ao direito de sigilo de mães que entregam seus filhos a
adoção. São Paulo: 2015. Disponivel em:

474
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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____.Em que trama os fios dos maus-tratos são tecidos. São Paulo: 2009.
Disponivel em:
http://www.tjsp.jus.br/RHF/PortalServidor/Categoria/402716000/cadernos-de-
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____.Violência e suas implicações na família. São Paulo: 2013. Disponivel em:


http://www.tjsp.jus.br/RHF/PortalServidor/Categoria/402716000/cadernos-de-
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____.Violência Intrafamiliar – famílias abusivas e a infância. São Paulo: 2010.


Disponivel em:
http://www.tjsp.jus.br/RHF/PortalServidor/Categoria/402716000/cadernos-de-
estudos-servico-social-e-psicologia-judiciarios Acesso: maio, 2018.

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O (DES) CUIDADO PARENTAL NAS FAMÍLIAS EM LITÍGIO

GRUPOS DE ESTUDOS DO INTERIOR – LIMEIRA


“O (DES) CUIDADO PARENTAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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COORDENAÇÃO

Adriana Negretti Cruz Campana – Psicóloga Judiciário – Vara da Infância e


Juventude da Comarca de Rio Claro

Beatriz Oliveira Batista Simonetti – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e


Juventude Comarca de Rio Claro

AUTORES:

Alice Rodrigues Gonzales Florentin – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Americana

Celia Cristina Nunes Miotto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rio Claro


Claudia Pereira de Lacerda – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rio Claro
Cleise Regina Contarini Theodoro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rio
Claro
Fabiana Aparecida de Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Limeira
Juliana Vieira Von Zuben – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira
Milla Cristiane Pavão Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Comarca de Leme
Miriam Bratfisch Villa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Esse artigo pretende discutir as diferentes formas de (des) cuidado


materno e paterno que se estabelecem nas relações parentais com o final da
conjugalidade; questão evidenciada nos procedimentos técnicos e avaliações
psicossociais dos setores técnicos do Tribunal de Justiça de São Paulo,
especialmente os representados no Grupo de Estudos da Comarca de Limeira.
A escolha do tema a ser trabalhado no Grupo de Estudos da Comarca de
Limeira, neste ano, nasceu do desejo do grupo em aprofundar os estudos na área da
Família e dar sequência ao percurso já trilhado nos anos anteriores.
A experiência profissional e as discussões técnicas ao longo dos estudos
e das avaliações psicossociais na Vara de Família despertaram-nos o interesse em
compreender melhor a dinâmica familiar e as dificuldades parentais no cuidado para
com seus filhos ao longo do litígio conjugal.
Um olhar mais pormenorizado levantou-nos a correlação entre (des)
cuidado dos filhos, crianças e adolescentes em sofrimento, “esquecidos e
negligenciados” dentro do conflito dos pais, e o cuidado parental que tem sido
possível de serem ministrados aos filhos por estes pais também em sofrimento, haja
vista que a separação se assemelha à morte de um ente querido (Barbosa e Castro,
2013), trazendo consigo todas as vicissitudes do luto.
Todas estas questões nos instigam a considerar as formas de (des)
cuidado como sendo o cuidado possível que aqueles genitores vêm conseguindo
oferecer até aquele determinado momento e também a pensar o que estaria ao
alcance dos profissionais de Psicologia e Serviço Social Judiciários, no sentido de
favorecer aos pais a reflexão, a consideração de novos paradigmas e a
ressignificação de suas responsabilidades, buscando-se minimizar o sofrimento
familiar.
Os encontros enredaram-se na perspectiva teórico-metodológica
referenciada nas diferentes experiências profissionais cotidianas e no material
estudado.
Diante disso, o grupo construiu como questão direcionadora de seus
trabalhos: O que seria o (des) cuidado parental dentro das situações de litígio?

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Para tanto, trilhamos um caminho de estudo e iniciamos com a leitura de


textos que abordavam sobre o descuidado com os filhos em meio ao litígio. Contudo,
à medida que nos aproximávamos das observações estabelecidas coletivamente,
percebemos que não era possível discuti-las sem antes definirmos em conjunto um
conceito de cuidado com o qual os profissionais do Serviço Social e da Psicologia
encontrassem uma representação mais afinada.
Conforme novas questões surgiam, decidimos pela revisão dos artigos
elaborados nos anos anteriores, pelo estudo dos conceitos de conjugalidade,
parentalidade e cuidado parental, bem como pelo estudo de dinâmicas familiares no
litígio conjugal possibilitando-nos a percepção de que, muitas vezes, o (des) cuidado
para com os filhos já se fazia presente durante a conjugalidade.
Sendo assim, passamos a delinear uma construção reflexiva que
fortalecesse a atribuição ética e técnica dos psicólogos e assistentes sociais
judiciários em relação à garantia dos direitos destas crianças e adolescentes.
Desse modo, o presente artigo encontra-se organizado em seis partes:
Introdução; O cuidado: do que falamos; Relação Conjugal e Parental: antes e após o
litígio; O lugar do (des) cuidado ou do cuidado possível nas relações parentais de
famílias em litígio; Intervenção da Equipe Técnica do Tribunal de Justiça junto às
famílias em litígio; Considerações e Bibliografia.

1 - O CUIDADO: DO QUE FALAMOS?

Tendo em vista o trânsito proposto pela temática do presente estudo -


cuidado e descuidado - houve a necessidade de realizarmos aproximações ao
conceito de cuidado.
É possível considerar que esse é um conceito investigado e desenvolvido
por alguns pensadores que possuem diferentes abordagens no processo de
construção de conhecimento. Assim, temos, além de outros, desde autores
existencialistas a materialistas históricos, que se preocuparam em situar essa
categoria em suas perspectivas de análise.
Na perspectiva filosófica, por exemplo, a partir de formulações
heideggerianas e as relações estabelecidas com o universo que o autor chama de
totalidade, o cuidado revela - se através do modo prático de o homem “ser-no

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

mundo”, “ser-com”, “ser-em relação” escolhido pelo ser humano em relação à sua
ação e ao fenômeno da vida em sua totalidade. Nessa linha de pensamento o
cuidado é ontológico, ou seja, inerente à existência e essência humana.

Assim entendido, o cuidado antecede toda atitude e situação


humana, caracterizando-se, portanto, enquanto um fenômeno
ontológico- existencial ou seja, o cuidado está na essência da
existência humana, sendo inerente ao homem. (BALLARIN,
CARVALHO, FERIGATO, 2010, p. 446).

Outra possibilidade de análise da categoria cuidado é a perspectiva


marxista, nela ocorre à conexão com a realidade macroestrutural definindo o cuidado
como:

(...) trabalho e que possui o intuito de auxiliar na satisfação das


necessidades primárias dos indivíduos que se encontram
incapacitados para realizá-las em determinados períodos e/ou por
toda a vida. Além disso, é na reprodução social que localizamos o
trabalho do cuidado, compreendendo-o enquanto resultado do
desenvolvimento das necessidades do ser social que são
consequências do processo de sociabilidade. (PASSOS, 2016, p.
282).

Nessa perspectiva, uma das decorrências atribuídas ao sujeito histórico é


o cuidado. Assim, em um dos desdobramentos relacionados à procriação, produção
e reprodução da vida no âmbito das relações sociais, o adulto desenvolve formas de
cuidar daqueles que – em sua família – não são capazes de fazê-lo.
Consideramos que as diferentes concepções de cuidado não se
sobrepõem, ao contrário, divergem. Na perspectiva existencialista, o cuidado
aparece como condição e elemento ontológico, inerente ao humano. Na perspectiva
marxista, aparece como elemento atribuído ao sujeito histórico em seu processo
social da produção e reprodução da vida e que se dará de acordo com as
possibilidades de seu tempo, espaço e classe social.
Embora sejam muito breves as aproximações realizadas, podemos
perceber que compreendida de uma forma ou de outra, o cuidado demanda do ser
humano o reconhecimento do outro ser humano, de seu modo de ser no mundo e
das relações e interações desenvolvidas em seu tempo e espaço.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Como é possível nesse universo genérico relacionarmos o cuidado


parental? Ora, tratamos de uma inicial condição humano-genérica, em que,
independente da perspectiva, compreendemos o cuidado como categoria necessária
de produção e reprodução da vida. Realizar nesse texto o recorte para os cuidados
parentais faz-se necessário para desconstruirmos idealizações acerca do próprio
objeto.

1.1 - O QUE CHAMAMOS DE CUIDADO PARENTAL?

A parentalidade, conforme apontado por Boamorte (2014) refere-se à maneira


que o papel de pai ou de mãe é desempenhado por um indivíduo, configurando
dessa forma o relacionamento entre genitores e filhos. Ademais, é sabido que este
relacionamento é de extrema relevância para o desenvolvimento dos filhos.
De Souza e Baptista (2017) mencionando informações da OMS (Organização
Mundial da Saúde) indicam o afeto, a atenção e o cuidado dispensado pelos pais
como fatores facilitadores do desenvolvimento normal dos filhos, ao passo que
quando tais cuidados não são ofertados, há maior risco das crianças virem a sofrer
de problemas no âmbito da saúde mental.
Nesse sentido, podemos compreender o cuidado parental nos estágios iniciais
do desenvolvimento infantil como a responsividade do adulto frente às necessidades
essenciais do bebê, uma vez que a criança nessa fase carece de cuidados e da
presença de adultos que garantam sua sobrevivência, sendo que na maioria dos
casos são os genitores que se responsabilizam por tais cuidados.
Assim, a literatura aponta para a importância das relações estabelecidas entre
os pais/mães e seus bebês, como indicado por Alvarenga, Weber e Bolsoni-Silva
(2016), por exemplo, ao comentarem sobre a Teoria do Apego de Bowlby, segundo
a qual o relacionamento saudável entre o cuidador e a criança nos estágios iniciais
de desenvolvimento, garantiria o funcionamento interno determinado por uma
sensação de segurança seguindo um padrão de estabilidade, cujo reflexo se daria
nos estágios posteriores do desenvolvimento do indivíduo, configurando suas
relações intrínsecas e extrínsecas de maneira positiva.
É importante destacar que os teóricos do apego definem a responsividade
sensível “como a capacidade do cuidador de atentar, perceber e interpretar
acuradamente as respostas do bebê e de responder a elas de forma contingente e
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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apropriada” (Isabella et al., 1989, apud Alvarenga, Weber & Bolsoni-Silva, 2016, p.
07). Já na perspectiva comportamental, à medida que o cuidador é sensível e
responsivo há uma tendência à ampliação do repertório comportamental da criança,
acarretando nela sensações como conforto, segurança ou confiança, tornando
possível o estabelecimento de recursos emocionais e comportamentais, os quais
favorecerão o desenvolvimento de habilidades para explorar o ambiente (Alvarenga
et al., 2016).
Dessen e Braz (2005) ao mencionar dados da literatura apontam para a
existência de fatores que estão associados à maneira como os pais/mães
influenciam o desenvolvimento dos filhos, a partir das relações parentais
estabelecidas. Tais fatores incluem os recursos psicológicos pessoais dos genitores,
as características das crianças e as fontes de estresse e suporte.
Refletindo sobre o cuidado, especificamente, em relação aos filhos das
famílias litigantes, tecemos considerações sobre a conjugalidade e a parentalidade,
e como esses dois aspectos muitas vezes se entrelaçam nas famílias que recorrem
ao Judiciário, buscando a interferência de um terceiro, o juiz, para determinar como
se dará então o convívio e o cuidado por parte dos pais a partir da separação.

2 - RELAÇÃO CONJUGAL E PARENTAL: ANTES E APÓS O LITÍGIO

2.1 - SOBRE A CONJUGALIDADE

Dentre tantos aspectos que significaram e constituíram as relações


amorosas e do casamento ao longo dos séculos, não há como não refletir sobre as
relações de gênero e sobre como foram construídas pela sociedade em cada época.
Entre as transformações que se destacam apontamos aquelas
provocadas pela industrialização e pelo consequente desenvolvimento do
capitalismo, quando as casas deixaram de ser um local de trabalho e produção e a
mulher deixou de exercer uma função considerada produtiva, passando então a
ocupar o lugar de grande responsável pela harmonia do lar, principalmente pelo
desenvolvimento saudável das crianças, criando a imagem da mulher como guardiã
da família.
Esse período, do final do século XIX, também difundiu a ideia da infância
como um período diferenciado do desenvolvimento humano, que necessitava de
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

investimento afetivo e emocional distinto, que seria exercido principalmente pela


mulher, considerada por isso a “rainha do lar”, reforçando seu papel como mãe,
anuviando a importância da função paterna na criação dos filhos.
Esse contexto começou a se modificar dentro do próprio processo da
industrialização, quando a mão-de-obra passou a abarcar também as mulheres.
Dessa forma, as fronteiras entre o público-privado, entre a casa e o trabalho,
deixaram de ser estabelecidas de acordo com o gênero.
Dentro dessa conjuntura, destacam-se os movimentos sociais que
também contribuíram para as mudanças ocorridas no estabelecimento de papeis
sociais dentro das famílias, como por exemplo, o movimento feminista. Com essas
transformações sociais, destaca-se que as mulheres passaram a ter outras metas
existenciais, além do casamento e da maternidade, tornando-se mais independentes
econômica e afetivamente.
Atualmente, o casamento, seja ele formal ou união estável, tem sido
compreendido como o relacionamento afetivo entre duas pessoas que compartilham
a vida e desfrutam mutuamente de sua sexualidade (Villa e Del Prette, 2013). Dessa
forma, diferentemente de outrora, as expectativas num relacionamento envolvem
companheirismo, compromisso mútuo, realização sexual, construção de uma família,
inclusive com as atribuições de mãe e pai (VILLA & DEL PRETE, 2013).
Neste sentido, o que se espera de um casamento não é apenas o status
que o mesmo pode oferecer, mas um relacionamento que produza satisfação para
ambos e a oportunidade de desenvolvimento pessoal.
Assim, considerando as transformações sociais do último século, destaca-
se o divórcio ou a separação e o recasamento como fenômenos mais recentes.
Separação, segundo conceituou Boamorte (2014), pode ser compreendida como a
situação na qual o casal não mais convive, ou seja, independentemente se casados
legalmente, houve o rompimento do vínculo entre dois indivíduos que formavam um
casal.
Dantas, Jablonsky e Féres-Carneiro (2004), apontam estudos em que
famílias contemporâneas têm apresentado elevado índice de divórcio, da ordem de
quase 50%, não estando à sociedade preparada para lidar com este fato. Destes
casais que se separam a maioria dos indivíduos irá casar-se novamente,
constituindo, portanto, um padrão de sucessões conjugais.

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Outro aspecto a ser apontado nas características e expectativas do


relacionamento conjugal que vem se transformando é a questão da parentalidade.
Antes, gerar filhos e educá-los, deixando descendentes, eram obrigações sociais do
casal. Atualmente, tornou-se uma opção ter ou não ter filhos. Contudo, quando o
casal os tem, o papel do mesmo em relação às crianças é fundamental.

2.2 - SOBRE A PARENTALIDADE

A parentalidade é um termo relativamente recente que começou a ser


utilizado na literatura psicanalítica francesa, a partir dos anos 60, para marcar a
dimensão de processo e de construção no exercício da relação dos pais com os
filhos.
Sabe-se que o processo de se tornar pai e mãe vai muito além da função
biológica, sendo necessariamente marcado pelo contexto sociocultural, pela história
do sujeito na sua família e pela subjetividade de cada um. A chegada de um filho
põe em movimento aspectos subjetivos de cada um dos pais, englobando ideais,
medos, lembranças da própria infância, modelos paternos e maternos, além de
expectativas acerca do futuro.
Cruz (2005) define parentalidade como o “conjunto de ações encetadas
pelas figuras parentais (pais ou substitutos) junto dos seus filhos no sentido de
promover o seu desenvolvimento da forma mais plena possível, utilizando para tal os
recursos de que dispõe dentro da família e, fora dela, na comunidade” (p.13).
Palácios e Rodrigo (apud Machado 2007) apontam algumas funções
específicas que os pais têm para com os filhos, tais como: assegurar a sua
sobrevivência, o crescimento e socialização nos comportamentos de comunicação,
diálogo e simbolização; proporcionar-lhes um ambiente de afeto, apoio e estímulo;
tomar decisões tendo em conta os outros contextos educativos nos quais a criança
se integra.
Souza e Baptista (2008), apontam de forma contundente, a importância
do papel da família para a saúde mental dos filhos. Para estes autores, quando as
funções familiares primordiais são cumpridas, vislumbra-se potencial promoção à
saúde mental, suporte este compreendido como manifestação de atenção, carinho,
diálogo, proximidade afetiva, também autonomia e independência. Por outro lado, no

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grupo familiar pode haver predisposição a enfermidades, regressão, desintegração e


ruptura.

2.3 - CONJUGALIDADE E PARENTALIDADE APÓS A SEPARAÇÃO

Diversos estudos têm apontado à interferência do relacionamento residual


do ex-casal sobre a vida dos filhos no período pós-separação, uma vez que a
qualidade deste relacionamento tem grande influência para o bem estar deles.
Na experiência de atendimento nas Varas de Família nos deparamos com
diversos casos de casais em litígio e seus filhos, nos quais o Juiz determina a
realização de estudo psicossocial que tem a finalidade de auxiliar na decisão sobre a
melhor definição ou readequação da guarda e visitação para crianças e
adolescentes.
Shine (2002) aponta que em muitos desses casos observa-se que as
partes procuram, por meio de um discurso baseado em críticas, desqualificar o outro
genitor alegando que ele próprio seria o mais indicado e adequado para cuidar e
proteger seu(s) filho(s), em detrimento do outro. Essas críticas, geralmente,
baseiam-se em apontar comportamentos do outro genitor durante o período em que
estavam juntos e/ou agora que estão separados, ou ainda, fazendo comparações
menosprezando o papel parental do outro.
Barbosa e Castro (2013) destacam a dificuldade que os genitores
encontram quando a relação deixa de ser conjugal e se restringe ao exercício da co-
parentalidade. A inabilidade dos mesmos em exercer esse papel diferenciado pode
culminar em críticas e agressões recíprocas, conforme a necessidade dos pais de se
desqualificar mutuamente confundindo sua percepção sobre o outro em relação aos
papéis conjugal e parental.
Neste contexto, mágoas decorrentes da convivência e da separação
acabam por afetar os filhos, os quais muitas vezes tendem a se identificar com um
dos pais, tomando para si as mágoas não necessariamente dirigidas a ele.
Outro fator importante considerado pelos autores citados, quando da
análise das características conjugais e parentais durante o litígio, é a forma como a
comunicação entre os genitores e destes com seus filhos podem vir a ser afetada.
Barbosa e Castro (2013) apontam que a comunicação eficaz é vital para o bom

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funcionamento familiar e que o processo de divórcio tende a impactar negativamente


a qualidade da comunicação, minando os recursos e competências da família. Além
disso, os filhos podem passar a intermediar a comunicação entre os pais, os quais,
estando com o padrão comunicacional frágil ou interrompido, acabam por
desencadear novos conflitos, inclusive, envolvendo os filhos e prejudicando os
vínculos parentais.
Hack e Ramires (2010) afirmam que independentemente do conflito
conjugal, a parentalidade pode ser afetada após o divórcio, havendo diminuição de
sua qualidade, pois o tempo de permanência com um dos pais pode ser menor.
Ademais, nos casos em que a criança passa a residir com a mãe, alguns pais
passam a encarar seus filhos como “ex-filhos”, assim como diminuir o tempo de
convivência.
Em relação às mudanças na parentalidade após o divórcio, Stewart, 1999
(apud Dantas, Jablonsky e Féres-Carneiro, 2004) cita a dificuldade do pai não
residente em se envolver na rotina dos filhos, devido ao distanciamento, bem como
as questões emocionais e outros papéis que o pai, eventualmente, passa a exercer
como recasamento.
Por outro lado, segundo Dantas, Jablonsky e Féres-Carneiro (2004),
muitos pais, devido à diminuição do contato com seus filhos, passam a buscar uma
vivência de maior qualidade com eles, buscando compensar a ausência diária. Além
disso, consideram que o nível de satisfação materna é passível de refletir
positivamente no comportamento do pai e, consequentemente, propiciar o bem estar
da prole.
No entanto, para Barbosa e Castro (2013), as inabilidades parentais, logo
após a separação e no período de litígio mais intenso, são consideradas
circunstanciais. Com o passar do tempo e a diminuição do litígio, é possível que os
genitores consigam mobilizar seus próprios recursos para pacificar os conflitos e
estabelecer uma relação parental mais cooperativa, retomando à co-parentalidade,
arrefecendo as críticas.

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3 - SOBRE O DESCUIDADO E OS CUIDADOS POSSÍVEIS DA


PARENTALIDADE EM SITUAÇÕES DE LITÍGIO

É possível notar diferentes graus no descuidado parental de casais em


litígio, que vão desde pequenas negligências, que podem estar relacionadas a
questões de ordem prática, como à necessidade dos genitores reorganizarem suas
rotinas em função da nova configuração familiar, ou ainda, pelo eventual
fracionamento dos recursos financeiros e materiais antes disponíveis ao cuidado dos
filhos.

Em alguns casos mais extremos, por estarem impactados pelo litígio


conjugal, os pais acabam deixando de exercer suas responsabilidades com os filhos,
vindo em alguns casos a protagonizar situações de violência doméstica ou
negligência para com os mesmos.
De Souza e Baptista (2017) identificaram alguns fatores relevantes para
se identificar os graus de vulnerabilidade e de potencialidade da família diante da
situação de separação e da necessidade de cumprir seu papel protetivo aos filhos,
como por exemplo, a qualidade de comunicação do casal, a expressão de afetos, a
qualidade da resolução de seus conflitos, etc. Neste sentido, estas autoras
procuraram ainda desmistificar a noção popular de família estruturada, apontando
que a saúde mental de seus membros está na realidade implicada com a dinâmica
familiar entre eles.
Outro aspecto importante são as “expectativas sociais” impostas aos pais
após a separação, desconsiderando que estes muitas vezes necessitam da
intervenção de um juiz para dar novos rumos a esta família, pois inevitavelmente
ficam sujeitos a sintomas derivados da ruptura da conjugalidade. Almeja-se que eles
tenham maturidade e que estejam aptos para essa nova configuração familiar, no
entanto, diz Castro:

(…) é inegável que a separação é um momento de crise, de


mudança que abala a dinâmica emocional de todos os envolvidos. A
separação gera angústia e incertezas em diversas áreas: como
contar aos filhos, como dividir os bens, como estabelecer o sistema
de visitas, como apresentar-se em público sozinho, a incerteza de
ser capaz de ficar só, pelo menos durante um tempo, etc. (2003,
p.51).

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Outros aspectos importantes presentes na configuração de maior ou menor


cuidado nas relações parentais, conforme Rangel (2014) são as mudanças de
posição civil e social do casal e as concepções culturais dos papéis e
responsabilidades parentais atribuídos aos gêneros. A autora aponta que a
capacidade parental dos pais pode se mostrar diminuída diante do sofrimento
provocado pela separação, tornando-os reféns de seus próprios sentimentos e
incapazes de suportar o sofrimento causado aos filhos e de lhes oferecer suporte às
suas demandas.
King e Heard (1999) afirmam também que a satisfação materna em relação
ao pai, após a separação, é um elemento crucial que irá beneficiar a adaptação do
filho a essa nova situação. Dessa forma, mães infelizes e insatisfeitas podem
transmitir esses sentimentos aos seus filhos.
Como colocam Souza e Ramires (2006), não é possível estabelecermos uma
relação linear de causa e efeito entre divórcio e consequências negativas. É
importante que se compreenda a complexidade e a multiplicidade dos fatores
envolvidos, que poderão conduzir a inúmeros desfechos, desde os mais adaptativos
e integrados até os mais conflitivos e sintomáticos.
Os filhos envoltos nesta dinâmica conflitiva dos pais acabam sofrendo as
consequências negativas do litígio, tendo muitas vezes seus direitos à convivência
familiar negligenciados.
É comum observamos dentro das Varas de Família a dificuldade dos
genitores em estabelecer amistosamente um acordo de convivência com os filhos,
em que pese, sobretudo, o superior interesse destes. Deste modo, uma intervenção
judicial para uma regularização da guarda (compartilhada ou unilateral) e a
regulamentação das visitas, é imprescindível à garantia do direito destes a essa
convivência.
Os genitores, muitas vezes, motivados pelos sentimentos de mágoa e
ressentimentos da união/separação conjugal nutrem um diálogo de desacordos e
contradições, nos quais situações positivas passam a ser consideradas e apontadas
como aspectos negativos do outro, na tentativa de desqualificá-lo.
Segundo Shine (2002), se no período em que o casal estava junto o pai não
se envolvia muito nos cuidados da criança e após a separação passa a se envolver
e solicitar a participação maior nos cuidados com a mesma, a mãe pode tecer
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críticas no sentido de que ele nunca fez questão de se envolver e somente agora,
com a separação, apresenta essa mudança de atitude. Outro exemplo seria o pai
que solicita a guarda dos filhos, alegando que a mãe seria muito rígida e exigente
com os infantes. Porém, durante a constância do relacionamento conjugal, ele
compactuava com a forma como a genitora tratava os filhos comuns do casal.
Nesse sentido, garantir que os pais possam exercer a parentalidade em sua
integralidade, ou seja, participar efetivamente dos cuidados e responsabilidades
inerentes à criação dos filhos minimiza os prejuízos decorrentes das mudanças na
dinâmica familiar a que ficaram expostos com a separação dos pais.

4 - INTERVENÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA DO TRIBUNAL DE


JUSTIÇA JUNTO ÀS FAMÍLIAS EM LITÍGIO - ATUAÇÃO
PROFISSIONAL

Os assistentes sociais e psicólogos que compõem o quadro dos Setores


Técnicos do Tribunal de Justiça tem como principal atribuição proceder à avaliação
dos processos e elaboração de laudos com a finalidade de subsidiar a decisão
judicial, possibilitando conhecimento dos aspectos socioeconômicos, culturais,
interpessoais, familiares, institucionais, psicológicos e comunitários.
Na atuação do profissional forense, observamos a importância deste se
posicionar de modo a não fomentar o litígio que porventura esteja ocorrendo no
núcleo familiar avaliado. Desta forma, é valioso e pode ser determinante que esteja
atento à fase processual na qual se atende à família, pois, conforme a bibliografia
pesquisada ao longo deste estudo indicou, o momento do litigio em que a
intervenção judicial ocorre implica na (im) possibilidade de escuta e adesão às
orientações e encaminhamentos pelas partes envolvidas. Além disso, especialmente
no caso de haver audiências agendadas, o laudo apresentado poderá servir como
instrumento de argumentação jurídica para o eventual acirramento de um conflito
pré-existente ou para uma resolução mais cordata. As crianças e adolescentes
envolvidos correm o risco de se tornarem objetos de intensas disputas, usados como
moeda de troca ou sendo vítimas de chantagem, tendo preteridos os seus
interesses.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Dentro do caos habitual que se tornam os processos envolvendo


disputas, sugere-se que o profissional não se esqueça de qual é o
lugar das crianças nos litígios, isso pode trazer um mínimo de
estabilidade para se pensar sobre o caso, o que habitualmente
inexiste nos processos litigiosos. (SAMPAIO; ALONSO, 2017, p.
258).

Os litígios familiares apresentam demandas sociais e psicológicas que


muitas vezes exigem que os profissionais, além de oferecer subsídios à autoridade
judiciária, realizem intervenções como orientações, encaminhamentos e articulações
com a rede sócio comunitária e socioassistencial. Assim, a escuta das partes não
deve estar restrita aos aspectos legais e factuais, sendo possível que o acolhimento
e a intervenção do perito possam promover ou facilitar a sensibilização e a
conscientização de cada familiar para uma melhor resolução do conflito.
Observa-se em muitos casos que os envolvidos esperam que a
autoridade judicial resolva um conflito que é de ordem subjetiva, e que eles próprios
ainda não conseguiram solucionar, como ressentimentos e mágoas.

Brito (2008) comenta que, na luta por maior proximidade com seus
filhos, muitos pais travam batalhas intermináveis nos tribunais,
valendo-se de argumentos que desqualificam o ex-cônjuge, na
tentativa de ter sua competência reconhecida para ficar mais tempo
com suas crianças (apud Rangel, 2014, p.55).

Nessa dinâmica as partes tentam desabonar, a todo custo, o outro


genitor, se utilizando de argumentos e queixas que mais indicam a sua insatisfação
com a forma como a união conjugal se estabelecia, do que como a parentalidade era
exercida.

Rosalina e Castro (2013 p. 48 apud Rangel, 2014, p.55) consideram que:

Colocar os interesses (...) acima do sofrimento que pode acarretar


aos filhos uma disputa judicial - apenas para atingir ou magoar o ex-
companheiro – já é evidência de um problema para exercer a
maternidade e/ou paternidade de forma madura, responsável.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesse sentido, a equipe técnica do judiciário é desafiada diariamente a


avaliar a família em sua totalidade, se empenhando em enxergar para além do
recorte temporal apresentado durante o processo.
Nosso potencial de atuação técnica nas avaliações dos autos relativos às
Varas de Família está, principalmente, no que tange às orientações e
direcionamentos acerca dos (des) cuidados parentais identificados.
A livre manifestação técnica abre possibilidade de fazer uma interlocução
entre o saber e o fazer, valendo-nos de instrumentais e formas de abordagem que
podem contribuir nos aspectos mais delicados do processo de modo que as partes
possam transcender os afetos hostis em relação ao ex-cônjuge, reconhecendo, a
importância da presença de ambos na vida dos filhos, ressignificando sua
responsabilidade parental de forma de propiciar um ambiente mínimo de harmonia e
segurança, favorável ao desenvolvimento integral.
Atualmente observamos que o Código de Processo Civil tem demonstrado
avanços significativos para acompanhar as mudanças da sociedade.
A instituição das audiências de conciliação, enquanto oportunidades nas
quais as partes podem acordar e estabelecer o melhor regime de guarda e
convivência para os filhos, trouxe a possibilidade dos pais, reconhecerem-se
protagonistas de suas vidas e se apropriarem de suas responsabilidades, direitos e
deveres, garantindo-se assim, a sobreposição do melhor interesse dos filhos aos
ressentimentos derivados da convivência e da separação conjugal.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as reflexões apresentadas compreendemos que é


imprescindível, dentro da avaliação da equipe judiciária nas Varas de Família,
direcionar o olhar técnico para além da realidade imediata/exposta no momento da
avaliação profissional. Conhecer o sujeito do estudo, dentro de sua realidade sócio
histórica, pode e deve ser condicionante para se compreender que muitas vezes,
uma possível “desatenção” aos filhos, dentro do processo de dissolução de união ou
divórcio, está intrinsecamente ligada à fase da separação, sem caracterizar, de fato,
uma possível inadequação do genitor residente ou visitante.
Nesse entendimento - salvo em situações de risco explícito - a inabilidade
dos pais em elaborar e discriminar os sentimentos da conjugalidade aos da
parentalidade pode estar associada ao sofrimento inerente a um relacionamento
conflituoso, ao término da relação, às dificuldades subjetivas e práticas provocadas
na dinâmica familiar e seus desdobramentos.
Alguns condicionantes foram aventados como importantes de serem
considerados na avaliação, dentre eles o momento, no sentido temporal/cronológico,
que o processo chega para a avaliação profissional, assim como a qualidade do
relacionamento e diálogo que o casal parental estabelecia durante a convivência,
antes da separação.
Verificamos que quanto mais próxima da ruptura da relação é iniciada a
avaliação, mais perceptível estará aos técnicos a interferência dos problemas da
conjugalidade no exercício das funções parentais e da garantia aos filhos da ampla
convivência com ambas as famílias.
Muitas vezes a negligência, a ausência de cuidados adequados aos filhos
e a restrição dos direitos destes estão ligados à falta de condições emocionais do (a)
genitor (a) em lidar com os próprios sentimentos, o que provoca, em algumas
ocasiões, dificuldade em identificar, atender ou mesmo priorizar as necessidades
dos filhos, tornando-os reféns de seus ressentimentos e sentimentos ambivalentes.
Uma relevante dificuldade levantada pelo grupo foi a inexistência de
serviços públicos específicos e especializados para auxiliar as famílias em processo
de separação e adaptação à nova dinâmica familiar, inviabilizando uma perspectiva
mais positiva de superação para os sujeitos que experimentam um intenso

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sofrimento ao longo do litígio e não dispõem de condições financeiras para inserir-se


em um tratamento/acompanhamento profissional particular.
Destaca-se a importância do acolhimento das partes e dos filhos pela
equipe psicossocial judiciária, ao longo do período de avaliação e do processo a ser
trabalhado, uma vez que o encontro com estes técnicos pode tratar-se do primeiro e
único momento em que estes sujeitos sejam ouvidos em sua angústia e entrem em
contato com a mesma, possibilitando-lhes alguma elaboração. Pontua-se que este
acolhimento pode favorecer nos genitores uma ressignificação sobre o litígio, sobre
o melhor interesse dos filhos, assim como revitalizar suas potencialidades parentais
diante do conflito, sobrepujando-as em relação às dificuldades conjugais. Do mesmo
modo, a audiência de conciliação é um instrumento jurídico em que as partes podem
por si mesmas, discutir e estabelecer o regime de convivência mais conveniente
para as partes e os filhos.
Conclui-se, dentro da perspectiva aqui discutida, que o (des) cuidado
parental infringido aos filhos deve ser considerado em uma perspectiva ampla,
sociocultural, cronológica, temporal, prevalente ou circunstancial, levando-se em
conta o modelo de relacionamento familiar que se estabeleceu ao longo da
convivência e após a separação, bem como durante o litígio como uma forma de
diminuirmos o risco de prejudicar o direito de convivência dos filhos e a possibilidade
de uma nova reconstrução e reestruturação familiar.

493
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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496
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS:


DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - MARÍLIA


“COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
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COORDENAÇÃO

Rodrigo Alves Peres – Psicólogo Judiciário – Comarca de Pompeia


Walkíria Rodrigues Duarte – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pompeia

AUTORES

Bárbara Maira da Costa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Gália


Berenice de Lara Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília
Carlos David de Freitas – Psicólogo Judiciário – Comarca de Marília
Janice Maria do Prado – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Maria Abigail Farinazzi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Maristela Colombo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília
Paula Werner Severo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília
Yeda Paula Targa Morgante – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Vivemos um tempo de grandes barulhos externos. Um tempo com muitos


sinais de que algo não vai bem no mundo. A saúde mental ocupa o ranking de uma
busca desenfreada por entender o que acomete o homem da atualidade. A inversão
de valores – humanos, éticos, culturais, cívicos -, responde igualmente como
protagonista nesse cenário de sofrimento da sociedade.
Índices crescentes de suicídios entre as gerações mais jovens estampam
as manchetes dos noticiários; escolas são invadidas pela criminalidade e ganha a
adesão de pré-adolescentes.
Nossas convicções estão ameaçadas. Estamos mesmo numa era de
avançada civilização?
O Grupo de Estudos da Comarca de Marília e Região, discutindo sobre as
demandas da prática profissional, marcada pelos desafios contemporâneos do
nosso mundo, compreendeu que o cotidiano de trabalho dos setores técnicos do
Tribunal de Justiça de São Paulo é constituído por essa realidade, eivado que está
de contradições e demandas só possíveis de serem compreendidas à luz do estudo
de autores que elegeram esses temas como objeto de estudos.
Diferentes pensadores se debruçam sobre este tema. Elegemos alguns
para este trabalho, com o entendimento de que trazem uma importante contribuição
na discussão do tema, sem, contudo, qualquer pretensão de esgotá-lo.

1 - MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (CULTURA)

O Mal-Estar na Civilização é um texto do médico e fundador da


psicanálise Sigmund Freud, que discute o fato da cultura – termo que o autor iguala
à civilização – produzir um mal-estar nos seres humanos, pois que existe uma
dicotomia entre os impulsos pulsionais e a civilização. Portanto, para o bem da
civilização, o indivíduo é oprimido em suas pulsões e vive em constante mal-estar.
Por civilização o autor definiu tudo o que diferencia o homem do animal.
Engloba o controle do homem sobre a natureza dentro de um conjunto de
regulamentos que regem os relacionamentos. Os primeiros controles que constituiu

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

uma organização social ou origem da civilização teria sido o tabu do incesto e o


parricídio, leis que fundamentam uma sociedade; o contrário seria antissocial.
Para Freud a cultura, produz um mal-estar nos seres humanos,
antagoniza o princípio do prazer, das pulsões de vida, das exigências da
civilização/processo civilizatório. Daí o sacrifício do prazer e da felicidade, abordado
na sequência.
Freud discute sobre a repressão imposta pela sociedade, na qual o ser
humano fica exposto a um policiamento, que seria uma alienação de regras, e isso
inibe o desenvolvimento. Quando o indivíduo se liberta dessa repressão, destrói o
meio no qual vive, pois tem um instinto primário agressivo.
Freud falou em termos de compulsão, regulação, supressão ou renúncia
forçada como mal-estares – marca registrada da modernidade. Excesso de ordem e
escassez de liberdade. Liberdade do indivíduo para a procura do prazer numa
estrutura de civilização concentrada na segurança. Mais liberdade implica em menos
mal-estar; se escolhe limitar a liberdade, em nome da segurança, mais ordem com
mais mal-estar.
Segundo o autor, o desenvolvimento do ser humano e o da sociedade,
entendida como o meio no qual vive, somente é possível a partir do controle das
pressões que são impostas. O ser humano é regido pelo instinto de vida e pelo
instinto de morte, esta equiparada à dor moral.
Quando o homem não encontra a liberdade para utilizar e satisfazer o
instinto de vida no meio onde vive, não encontra possibilidades de concretizar a
felicidade, no sentido de liberação de energias de vida instintivas, o princípio da
realidade - instinto de morte - toma o controle, através da repressão e alienação.
Porém, a plenitude da felicidade não existe; são momentos de satisfação
temporários, consequência dos impulsos, principalmente, os sexuais.
O conflito entre prazer - desejo e afloração da sexualidade -, e realidade -
manifestações da agressividade decorrentes da insatisfação e incapacidade de
concretizar o amor -, afeta a relação entre amor e dor (moral). Por um lado, o ser
tem necessidade de não ser privado do objeto de seu desejo e, por outro, tem a
sensação desagradável de não ver concretizado esse desejo dentro de uma relação
interpessoal.
Segundo Freud,

500
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se


como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; porém,
significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu
próprio castigo. [...] Apesar dos esforços da sociedade, sempre
existirá uma parte da humanidade que, em função de alguma
patologia ou do excesso de pulsão, permanecerá associal. (FREUD,
s/d).

Nossa hora é a da desregulamentação. Compulsão e renúncia forçada


investe contra a liberdade individual. A civilização é construída sobre uma rotina de
renúncia ao instinto. De acordo com Freud, na noção de civilização há três fatores
interligados: angústia, agressividade e sentimento de culpa; ela impõe sacrifícios à
sexualidade, à agressividade do homem.
A tarefa do processo civilizatório seria evitar o sofrimento e oferecer
segurança, entendida como possível quando se coloca o prazer em segundo plano.
O anseio de liberdade é dirigido, portanto, contra formas e exigências da civilização,
em parte ou toda ela. O princípio de prazer está reduzido à medida do princípio de
realidade, e as normas compreendem essa realidade, que é a medida do realista.
O homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de
felicidade por um quinhão de segurança. Qualquer valor só é um valor, graças à
perda de outros valores que se tem de sofrer a fim de obtê-los. O que chamamos
felicidade vem da satisfação de necessidades represadas até um alto grau e por sua
natureza, só é possível como fenômeno episódico. Só podemos extrair intenso
deleite de um contraste, e muito pouco de um estado de coisas.
Após 65 anos da obra de Freud a liberdade individual reina soberana, é
um valor pelo qual os outros valores vieram a ser avaliados, é referência para
normas e resoluções supra individuais. A liberdade individual, antes uma
responsabilidade e um (ou o) problema para os edificadores da ordem, tornou-se o
maior dos predicados e recursos na perpétua autocriação do universo humano.

2 - O MAL-ESTAR NA PÓS-MODERNIDADE

Para o sociólogo Zygmunt Bauman “O Mal-Estar da Civilização” de Freud


consiste em um “provocador desafio ao folclore da modernidade”. Para o autor a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

obra trata da história da modernidade, apesar de chamada por Freud de Cultura ou


Civilização.
Bauman, numa releitura da obra de Freud sob o ponto de vista da
sociologia contemporânea, usa o conceito de “liquidez” para explicar o sentido da
pós-modernidade. O autor explica que a crise das grandes ideologias da
modernidade produziu uma cultura “fluida, líquida, leve, caracterizada pela
precariedade, incerteza, rapidez de movimento, característicos da pós-
modernidade”.
Ele diz:

Vivemos com uma sensação de que algo está errado com a


humanidade. O mal-estar social é resultado de algo instalado na
consciência do homem pós-moderno como uma angustia, vive como
um peregrino sem rumo histórico! (BAUMAN, 1998)

De acordo com o autor, a sociedade contemporânea vive um sentimento


de fracasso por não alcançar a tão almejada felicidade. As utopias se
desmancharam no ar, as ideologias coletivas se fragmentaram em aspirações
individuais. Toda a estrutura sólida de uma sociedade ancorada nos preceitos
positivistas de “ordem e progresso” ruíram.
O Iluminismo com a preeminência da razão, trouxera a certeza de que o
homem evoluiria e que as sociedades se tornariam cada vez mais civilizadas e
felizes. Contudo, os acontecimentos são portadores de más notícias:

[...] o “tempo começou a fechar” passando para uma primavera, onde


as flores são de plásticos e o chão é de uma fina casca de gelo, se
pararmos, caímos. Precisamos manter o movimento, mas não
sabemos exatamente em que direção. (BAUMAN, 1998).

O Estado perdeu a referência de Estado sólido, organizado, produtor de


justiça que ocupava na Modernidade. A ideia de que garantiria a qualidade de vida
das pessoas e teria um “capitalismo civilizado” e sob controle, ruiu. Na pós-
modernidade o Estado perdeu o poder para o livre mercado e cada vez mais parece
se distanciar de sua razão de existir: quanto maior, mais atrapalha!

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A família tornou-se liquida, fluída, se desfaz e se modifica com rapidez. Os


relacionamentos, assim como as coisas, tornaram-se descartáveis, obedecendo à
lógica do mercado capitalista. “O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e
inescrutável” (Bauman, 2003).
A religião parece mais um amuleto que uma confissão, sem sacrifício e
dogmas complexos, se multiplicam ao gosto do consumo. “Uma religião light, fácil de
consumir”. (DANIEL, 2015).
A grande contribuição do autor é o alerta que faz, não apenas para as
mudanças culturais que estão acontecendo na sociedade contemporânea, mas
também sobre os efeitos que elas produzem na vida corriqueira dos
relacionamentos, dos afetos e dos sentimentos humanos.

3 - SOCIEDADE DO CANSAÇO

O autor inicia sua explanação sobre as mudanças na sociedade através


de uma analogia com o funcionamento corporal frente a uma doença. A sociedade
anterior identificava como perigo aquilo que era adverso, diferente, tal como uma
doença bacteriológica. A sociedade passava a atacar a alteridade, assim como as
respostas imunológicas do corpo atacam este inimigo externo. Já no século XXI
teríamos uma doença neuronal, interna. Onde o causador é o próprio sujeito que
direciona a agressividade para si mesmo. As doenças não são mais provocadas
pela NEGATIVIDADE, pelo imunologicamente adverso, e sim, pelo excesso de
POSITIVIDADE.
A sociedade da negatividade era disciplinar, como descrita por Foucault,
feita de hospitais, asilos, presídios, quarteis e fábricas. Em seu lugar, há muito
tempo, entrou outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness,
prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de
genética. É uma sociedade de DESEMPENHO. Seus habitantes também não são
mais conhecidos como “sujeitos de obediência”, mas sujeitos de DESEMPENHO
e PRODUÇÃO. São empresários de si mesmos. Aqueles muros das instituições
disciplinares, que delimitam o normal e o anormal tornaram-se arcaicos. A teoria de
Foucault não dá conta de descrever as mudanças psíquicas e topológicas que
ocorreram com a mudança da sociedade disciplinar par a sociedade de

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

desempenho. O conceito de “sociedade de controle” também não explica a


mudança, pois contem muita negatividade. O verbo modal que a domina é NÃO-
TER- O- DIREITO.
Na sociedade do desempenho o poder é ilimitado, e o seu verbo modal
é: YES, WE CAN! – o plural coletivo dessa afirmação, expressa precisamente o
caráter de positividade da sociedade de desempenho. Em vez de proibição,
mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar
produz loucos, delinquentes. Ao contrário, a sociedade do desempenho
produz depressivos e fracassados.
O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração.
Parece ser mais eficiente que a exploração do outro. Acredita ser livre, mas a queda
da instância dominadora não leva à liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o
explorado. Não se distingue mais vítima de agressor. Essa autoreferencialidade
gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe
são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos ( depressão,
TDAH, , Transtorno de Personalidade Limítrofe, Síndrome de Burnout, para citar
algumas) da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações
patológicas dessa liberdade paradoxal.
BYUNG aponta outras características da sociedade de desempenho: O
excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos,
informações e impulsos. Muda radicalmente a estrutura e economia da atenção,
fragmentando-a e destruindo-a. A multitarefa não representa nenhum progresso
civilizatório, como querem alguns. Ao contrário, é um retrocesso, pois amplamente
disseminada entre os animais selvagens, indispensável para a sobrevivência da vida
selvagem. Explica: um animal ocupado em comer, cuida para que ele próprio não
seja comido, ao mesmo tempo em que vigia sua prole e a sua parceira. Na vida
selvagem, o animal é obrigado a dividir sua atenção em várias atividades, não
podendo mergulhar contemplativamente no que tem diante de si. Não só a
multitarefa, mas também atividades como jogos de computador geram uma atenção
ampla, mas rasa.
Outra consequência apontada pelo autor é o assédio moral, que
alcançou proporção pandêmica. A preocupação pelo bem viver, cede à preocupação
pelo sobreviver.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O excesso de positividade da sociedade atual também não consente com


sentimentos como tristeza, angústia e tédio; levando o sujeito a tentar erradicar tais
sentimentos, favorecendo o uso tanto de drogas legais, quanto ilegais.

4 - AS REDES SOCIAIS DIGITAIS E SUA INFLUÊNCIA NA


SOCIEDADE E EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEAS

Nesta perspectiva, vemos a sociedade contemporânea se deslumbrar


diante das redes sociais, pelas quais a possibilidade de uma vida idealizada (mas
virtual), se coloca acessível. A utopia ao alcance de todos com um simples toque.
Santos & Santos (2014) argumentam que atualmente as redes digitais,
permitem a criação de novos espaços sociais de relacionamento, participação
política e entretenimento.
Os citados autores denominam o período atual como técnico-cientifico-
informacional, que modificou o ponto de vista social, politico, econômico e cultural na
sociedade contemporânea, configurando outra realidade. Consequentemente, fez
com que surgissem novas maneiras de ensinar e aprender.
Argumentam que, no âmbito educacional, as redes digitais representam a
busca nos espaços escolares com as tecnologias de informação e comunicação e
que os professores precisam se dedicar ao novo contexto para obter bons resultados
no processo de educação.
Conforme os referidos autores, diante das redes digitais, os professores
devem possibilitar aos alunos, varias formas de entendimento, em razão dos atuais
processos sociais, políticos e econômicos que repercutem diretamente e
decisivamente na Educação.
Pontuam que o professor, por exemplo, pode demonstrar aos alunos, o
aumento da participação popular na internet, esclarecendo sobre as estratégias das
empresas que para aumentar o lucro das vendas, por meio do desenvolvimento de
estratégias de consumo, o que deve ser pensado nas disciplinas curriculares,
contribuindo assim, na formação de sujeitos critico-reflexivos e autônomos.
Esclarecem que é necessário que as instituições de ensino se insiram
nas redes digitais, para que possam se aproximar dos alunos que as usam. Para
que isto ocorra, devem ser criados, grupos, páginas, eventos, aplicativos, voltados à
educação e assim, aproveitar as possibilidades que os recursos das redes digitais
505
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

oferecem e, desta forma, complementar o ensino com as tecnologias educacionais


presentes no ambiente escolar.
Os autores também pontuam que as redes sociais digitais estão no
cotidiano dos alunos e que muitos professores estão tendo problemas para
acompanhar esta situação, pois sua formação não atende tal realidade, o que causa
distanciamento – entre professores e alunos – e sua relação com o alunado deixa de
ser contextualizada e torna-se fragmentada.
Argumentam que os professores não são obrigados a participar de uma
rede social digital, mas devem estar atentos a este fenômeno, saibam conduzir o
aluno a crítica, através do diálogo e ou debates em sala de aula, sendo o papel dos
educadores o de mediadores. Entretanto, a formação continuada (reciclagem e
atualização quanto ao uso das ferramentas tecnológicas), pode prepará-los para os
desafios do período técnico-científico informacional.
De acordo com os citados autores, a incorporação das redes sociais
digitais nos processos didáticos e pedagógicos na educação formal não podem ser
entendido como único caminho a ser seguido, porém, os professores devem
favorecer a reflexões que possibilitem pensar sobre tais os atores ferramentas de
comunicação, e delas extrair o que é importante para a formação humana e
profissional, considerando que vivemos que vivemos imbuídos nesses sistemas de
objetos, comunicações e informações.

5 - MAL ESTAR, SOFRIMENTO E SINTOMA

O psicanalista Christian Dunker faz uma interessante análise do percurso


da psicopatologia do Brasil entre muros, como forma de buscar compreender o mal
estar que se instala em nossa sociedade, a partir de nossas próprias idiossincrasias.
Em suas reflexões, ele se apoia na filosofia freudiana, para quem
sofremos porque temos que viver em conjunto, lidando com particularmente com três
condições: o declínio natural de nosso corpo, as imperfeições de nossas leis e as
exigências internas de nossas insatisfações.
Ele parte de registros literários, como o conto “O Alienista”, de Machado
de Assis, que em 1881 já denunciava através de seu personagem Simão Bacamarte
a tentativa humana de localizar a estranheza do mundo, o deslocado, fora de si, no
outro. Segmentando aquilo que considera demonstrações de loucura, a análise se
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avoluma de tal maneira que a todos cabe a pecha de desajustado. Assim, todos
deveriam ser trancados entre muros – ou ainda o próprio personagem.
Em 1920, com a chegada da psicanálise aqui, o Brasil seria interpretado
ainda como um país “desajustado”, sempre questionando-se se chegaria a dar certo,
ou se quer viável para seus habitantes.
Nina Rodrigues, importante pensador, antropólogo, psiquiatra, entre
várias outras formações, defendia então a ideia de que o país só daria certo quando
“branqueasse”, visto que, sob seu ponto de vista, o cruzamento entre raças era
medicamente suspeito e indesejado, pois a mistura das diferentes subjetividades da
raça branca e da negra levaria a problemas incontornáveis.
A isto se oporiam Oswald e Mário de Andrade, através do Manifesto
Antropofágico, para quem a brasilidade se manifestaria mais genuinamente nessa
mistura recorrente no país. Eventualmente o povo até poderia branquear, mas por
força de tanta mistura. De toda forma, para eles não residiria ali, a razão de nosso
atraso.
Na busca de uma identidade para o brasileiro, outros autores
apresentariam sua tese: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda apresentam a
teoria do “homem cordial” entre 1930 e 1940, que teve grande aceitação e definiu de
certa forma o “caráter brasileiro” pelas décadas seguintes.
Já na década de 1950, Moreira Leite fazia um diagnóstico do Brasil
entendendo nossos conflitos internos como moduladores de nosso caráter. Um povo
ainda e sempre em busca de uma identidade.
Dez anos depois, nos anos 1960 assumimos a miscigenação como parte
de nossas características e Nelson Rodrigues cria a expressão e nos define como
“um povo com complexo de vira-latas”. Ao aceitarmos isto, seria como assumimos
nossa democracia racial. Como se a aceitação da denominação tornasse tudo assim
tão fácil.
O foco então para a causa de ainda não termos dado certo como povo
estaria em nosso atraso econômico. O diagnóstico da época apontaria que o Brasil
só daria certo quando se desenvolvesse. O que decorre então é o surgimento e
expansão das teorias de desenvolvimento. Na área da Psicologia, maior ênfase é
dada aos testes para se mensurar o desenvolvimento de crianças e adultos, e o

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desenvolvimento econômico seria visto como algo a ocorrer pari passu com o
desenvolvimento individual.
Com o golpe militar de 1964, o Brasil deixa de elaborar seus conflitos e
sofrimentos, concentrando as energias em outros pontos, formando sintomas sociais
e, sob a influência crescente do avanço do neoliberalismo americano de um lado e
os movimentos libertários franceses de outro, o brasileiro como que se confunde
mais uma vez.
Esse povo sem firmeza em sua identidade vai copiando modelos. Em
1965 o cineasta Jean-Luc Godard filma “Alphaville”, um mundo distópico, perfeito em
tese, onde as pessoas vivem de forma planejada – um lugar protegido entre muros.
A ironia da leitura brasileira da questão é que, em 1970, Alphaville é
construída em Barueri, entre os primeiros condomínios residenciais do Brasil.
Tentativas de se isolar dos não-iguais, buscando se fugir da angústia e mal estar da
convivência ordinária, não seletiva.
Outros surgirão: Passárgada, também horizontal e nas redondezas de
São Paulo; Ilha do Sul, na Zona Oeste da capital paulista, reforçam a busca de se
criar um paraíso, no último caso, vertical, para cerca de 4.000 pessoas viverem um
mundo a parte. Ele quase se auto-sustenta. Tem restaurantes, escola até o Ensino
Fundamental, locadora de vídeos, biblioteca, um teatro de alto luxo, piscinas,
quadras de esportes variados, cabeleireiro, barbeiro, aulas de inglês, yoga, duas
agências bancárias... Tudo a ser desfrutado apenas por seus moradores e
convidados, entre muros.
É o sonho de consumo, realização de um projeto de bem viver, entre
iguais, com economia própria inclusive, em muitos aspectos.
Assim, na aplicação de ideais neoliberais – nada fica fora da economia –
áreas que antes eram obrigação do Estado, como saúde e educação, vão deixando
de ser.
A sociedade vai se segmentando, tudo cada vez mais específico para
determinadas coisas e circunstâncias. Assim ocorre também com os transtornos na
saúde, que mais acentuadamente são vistos de forma dissociada. O sofrimento
gerado pelo trabalho deixa de ser pensado como consequência e a doença é
dissociada da questão em si. Doença é da ordem do indivíduo e trabalho é relativo
ao coletivo. Em 1974 a reformulação do DMS-CID muda a nomenclatura das

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doenças e coloca-se sob suspeição a ideia de que um sintoma tem relação com o
contexto da pessoa que o desenvolve e que ele se desloca, na mera tentativa de
supressão.
Na França, Jean-Christophe Dejours pesquisa os sintomas das
telefonistas francesas com uma demanda excessiva de trabalho e descobre que a
forma que elas encontram de superar o sofrimento é se anestesiando com mais
trabalho, por assim dizer, executando-o cada vez mais rapidamente.
O sofrimento virou parte do capital.
No Brasil, vemos uma recorrência da ideia de rupturas, de isolamento,
segmentação, seja na psicopatologia, seja na cultura, na forma de viver.
E o Brasil ainda não descobriu sua verdadeira identidade, continua
esperando se tornar um país viável, que dê certo. O sofrimento desse compasso de
espera afeta geração após geração. Se misturou racialmente, mas não se integrou.
Se isolou entre muros, na busca de uma falsa liberdade e não está ainda feliz...
O mal estar na cultura está permeado pelo sentimento de estar fora de
lugar, “eu não pertenço ao lugar onde estou”. O ideal a ser atingido está sempre
depositado em outro locus.
Nossa cultura não nos dá paz – como Dunker coloca, cultura é um lugar
de descanso, onde se toma fôlego, apenas se está. Isto ainda não alcançamos.
A vida entre muros de condomínios prosperou muito no país como ideal -
mas ideais não são exatamente para serem alcançados, há neles a condição de algo
“faltante”, que os fazem ser ideais. Uma vez alcançados, a felicidade é depositada
além – talvez no país que já deu certo, longe da América do Sul, outro ideal a ser
sonhado.
A segurança entre iguais pressupõe a exclusão da diferença, atrás dos
muros do condomínio, com o que se barra o Outro.
Para Dunker, vivemos ilusões de felicidade e o sintoma em nossa
sociedade surge como forma de tentar nos adaptar ao sofrimento. É uma metáfora,
como o condomínio é uma metáfora para nosso microcosmos.

6 - POSSÍVEIS FORMAS DE AMENIZAR SOFRIMENTO NA VIDA EM


SOCIEDADE

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Após a discussão desses vários autores que apresentaram uma visão da


sociedade atual, visando compreender fluxos, determinantes, e tudo que sustenta o
sistema vigente, quais seriam as visões promissoras sobre o contexto em que
vivemos?
Uma série de vídeos curtos sobre a questão ajudaram nessa
compreensão.
O vídeo intitulado “Viver em Sociedade é Sobreviver”, de Luís Mauro,
conduz a uma reflexão importante sobre a necessidade de convivência, o que ele
chama de uma “abertura para a alteridade”, o respeito ao outro, que como humano,
apresenta as mesmas necessidades.
Já Brené Brown em seu vídeo “O Poder da Empatia” ajuda a
compreender o que é, e o que não é empatia, o que sem dúvida traz um diferencial
muito importante para a prática, para uma boa relação entre as pessoas, para uma
convivência mais saudável e harmoniosa.
Em “Não Busque Uma Vida Equilibrada”, Luis Alberto Hanns, expõe que a
busca da vida equilibrada, assim como propagada pela mídia, tem deixado muitas
pessoas angustiadas e com sensação de incompetência. Segundo Hanns, o ser
humano não deve procurar ter uma vida equilibrada, nem se culpar por não ter uma
vida equilibrada. Conforme cada período de sua vida, o ser humano deve optar por
dar mais atenção a uma área e dela tirar o melhor proveito. Para isso, o indivíduo
deve traçar metas legítimas e possíveis para se ter o equilíbrio emocional, seja por
meio de terapia, ou esporte, lazer, entre outros. São pontos de vista.
Ainda nessa mesma linha, Felipe Pondé, no vídeo “Tédio, divertimento e
vazio” traz uma reflexão sobre o conceito de felicidade, e começa apontando as
distorções vigentes. Ele propõe que o “dever de ser feliz”, imposto culturalmente,
mina o próprio processo. A proposta é que compremos menos discursos prontos de
que felicidade é uma ou outra coisa, e quebremos essa relação de felicidade com
visibilidade, sucesso ou corpo perfeito, que no geral são situações que podem trazer
algum prazer, mas funcionam pouco e duram menos ainda. Ou seja, Pondé faz um
um convite ao autoconhecimento, ao conhecimento do outro e a busca da felicidade
em sua essência, não em distrações.
A reflexão sobre possibilidades de novas mudanças relativas ao conceito
atual de felicidade e a sugestão de um resgate de valores éticos básicos, como

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respeito, empatia e aceitação do outro, colaborou para o surgimento de perspectiva


de uma sociedade melhor, mais adaptada e harmoniosa. Perspectiva esta que
emerge ligada a uma postura de maior responsabilidade, principalmente no nível
pessoal. É necessário programar mudanças, fazer o possível, começar por si
mesmo, pelo simples.

7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que as visões trazidas pelos autores estudados, assim


como todo o conhecimento trocado durante os encontros contribuíram para uma
visão mais rica do momento histórico em que vivemos.
Este trabalho não teve a pretensão de encontrar uma verdade única e
completa, ou esgotar o assunto, mas sim compreender a complexidade da
organização social vigente, que se encontra em constante construção.
Todo esse estudo nos trouxe um alerta para a constante mudança de
paradigmas e a necessidade de estarmos em constante atualização, já que o
contato direto com os atores sociais no cotidiano de nossas práticas desperta a
necessidade de desenvolver uma visão mais ampla, assim como de perceber o
nosso papel nesse sistema.

511
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BROWN, B. O Poder da Empatia. Animamundhy.

DANIEL. J. O Mal-Estar na Pós-Modernidade segundo Zygmunt Bauman disponível


em http://obviousmag.org/sensusagape/2015/10/o-mal.html#ixzz5ZKflWDln. Site
acessado em 07/12/2018.

DUNKER, C. Café filosófico – Mal estar, sofrimento e sintoma -


https://www.youtube.com/watch?v=GV-75hpCdJY

FREUD, S. O mal estar na civilização. Vol. 21, Rio de Janeiro/RJ, Ed. Imago,
Standard Brasileira das Obras Completas s/d.

HAN, BYUNG-CHUL. Sociedade do Cansaço (tradução: Ênio Paulo Giachini), 2ª


Edição Ampliada, Editora Vozes, Petrópolis, 2017.

HANNS, L. A. Não Busque Uma Vida Equilibrada. Casa do Saber. In:


https://www.youtube.com/watch?v=uPEgQrPQ_n0

MAURO, L. A essência da Felicidade. Casa do Saber. In:


https://youtu.be/sTyYYqTOEg4

MAURO, L. Viver em Sociedade é Sobreviver. Casa do Saber. In:


https://youtu.be/Ik2Y0SMAQkM

PONDÉ, L. F. Tédio, divertimento e vazio. Casa do Saber. In:


https://youtu.be/2VCgduVeF-0

SANTI, P. Depressão e Vazio Reflexivo. Casa do Saber. In:


https://www.youtube.com/watch?v=uUs7Jvo3le4&t=5s

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

SANTOS, V.L.C., SANTOS, J.E. As Redes Sociais Digitais e sua Influência na


Sociedade e Educação Contemporâneas. In: Revista Holos. Rio Grande do Norte,
Vol.6, 2014. P. 307-328.

http://obviousmag.org/sensusagape/2015/10/o-mal.html#ixzz5ZKflWDln

http://www.palavraescuta.com.br/textos/o-mal-estar-na-civilizacao-1930-resenha.
Site acessado em 30/05/2018

https://www.recantodasletras.combr/resenhasdelivros/86603. Site acessado em


04/006/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=VRXmsVF_QFY

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL E PSICÓLOGO


JUDICIÁRIOS NO ACOMPANHAMENTO DO ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL DE LONGA PERMANÊNCIA
E DIFÍCIL COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR


PRESIDENTE PRUDENTE I
“O COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
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COORDENAÇÃO

Ana Cristina Turino Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Vera Lúcia Vieira Ferreira Screpanti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau

AUTORES
Ana Luiza Yassuda Viel – Psicóloga Judiciário – Comarca de Martinópolis
Anna Maria Britto de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rancharia
Adriana Lário Ramalho Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Andréia da Silva Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Carlos Siqueira da Mata – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mirante do
Paranapanema
Célia Regina Grigoleto Rosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente Feijó
Daniela Franco Motta Nesso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Venceslau
Denise Ocolati Vitale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Elisangela Carvalho de Lima Paulino – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Gisele Peruzzo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rosana
Irene Cristina Correa de Brito Farah – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Epitácio
Katiúscia Cristina Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Quatá
Letícia Mara Batalini Menosse Galeti – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pirapozinho
Linda Delaine da Silva Ibañez Tiago – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Luci Meire Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirapozinho
Lucilene Almeida Bertone de Cápua – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santo
Anastácio
Maria Lucia Trevisanelli Dela Viuda – Psicóloga Judiciário – Comarca de Rancharia
Pedrina Celismara Girotto Dornelas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Bernardes
Salma El Hage – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Venceslau
Vanuza da Fonseca Matos Tedesco – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Epitácio

515
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

A partir do ano de 2016, o Grupo de Estudos I de Presidente Prudente –


O cotidiano da Prática Profissional vem se dedicando a questões afetas à adoção e
aos desafios técnicos que esta temática engloba.
Refletindo o percurso que envolve o trabalho dos técnicos judiciários no
processo de adoção no ano de 2017, evidenciou-se a preocupação com as
devoluções de crianças em estágio de convivência, assunto que foi debatido no
referido ano. Neste contexto, surgiram angústias frente a situações de crianças e
adolescentes em acolhimento institucional de longa permanência.
Buscando artigos anteriormente produzidos pelos grupos de estudos do
Tribunal de Justiça de São Paulo, observou-se material referente ao trabalho das
equipes técnicas a partir do acolhimento, sempre com a perspectiva da brevidade da
medida, conforme preconizada na legislação.
Porém, a preocupação deste grupo voltou-se para a atuação profissional
da equipe técnica judiciária em relação a crianças e adolescentes em situação de
acolhimento institucional de longa permanência e difícil colocação em família
(parcela expressiva da população acolhida), com a finalidade de se apropriar de
possibilidades e enfrentamentos possíveis frente aos desafios que esta demanda
apresenta.
O presente artigo tem como objetivo refletir a atuação profissional do
assistente social e psicólogo judiciários junto ao acolhimento institucional de longa
permanência, bem como promover uma análise crítica em relação ao tema que, em
regra, deveria servir como medida protetiva de garantia dos direitos violados.
Para isso, estudaram-se as consequências psicossociais que esta
situação acarreta aos acolhidos. A partir daí, buscou-se entender as diversas formas
de atuação profissional decorrentes desta demanda, identificadas no presente artigo
como o acompanhamento dos profissionais do judiciário junto: à criança /
adolescente, à família, à equipe da instituição de acolhimento e à rede intersetorial
de proteção.
Diante destas pretensões, uma indagação permeou o estudo: seria
possível trabalhar a busca da autonomia do acolhido, as possibilidades de
apadrinhamento, e ainda preservar laços afetivos com uma família com histórico

516
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

violador, destituída ou não do poder familiar, considerando que esta pode ser a única
fonte de pertencimento destas crianças e adolescentes?

DESENVOLVIMENTO

1 - SOBRE ‘LONGA PERMANÊNCIA E DIFÍCIL COLOCAÇÃO’

Dentro do campo temático escolhido até então o grupo considerava o


período de dois anos de acolhimento como sendo ‘de longa permanência’.
Todavia, apoiando-se na Lei nº 13.509, de 2017 que em seu Artigo 19 §
2º institui que a permanência não se prolongará por mais de dezoito meses, bem
como no referencial teórico e nas discussões deste Grupo sobre as consequências
psicossociais do período de acolhimento, compreendeu-se que a institucionalização
‘de longa permanência’ de crianças e adolescentes é aquela que ultrapassa o
período de um ano em serviço de acolhimento, governamental ou não.
Considerou-se ainda que estão contemplados como ‘de difícil colocação
em família’ acolhidos que fazem parte de grupo de irmãos, que possuem alguma
deficiência ou patologia mais grave, e os que têm idade acima de oito anos (seja
porque foram acolhidos mais crescidos, seja porque em razão de motivos diversos
permaneceram institucionalizados sem retornar à família de origem nem serem
encaminhados para família substituta).
Nessa mesma perspectiva encontram-se crianças e adolescentes que
permanecem acolhidos por não demostrarem abertura para se vincular a uma nova
família através da adoção; seja por sua forte vinculação com a família biológica, seja
pelo vínculo negativo em razão da má experiência anterior, o que consequentemente
dificulta o estabelecimento de novos relacionamentos familiares.
Não havendo possibilidade de retorno para a família biológica ou
colocação em família substituta, o caso ganha contornos de acolhimento institucional
de longa permanência e difícil colocação.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2 - SOBRE AS CONSEQUÊNCIAS PSICOSSOCIAIS

Para se entender as consequências emocionais do acolhimento


prolongado e a intensidade de suas sequelas, faz-se necessário retomar a
importância das figuras parentais nos cuidados, na identificação e enquanto
facilitadora da construção do psiquismo e da personalidade das crianças. Importante
também lembrar que os danos do acolhimento/rompimento dos vínculos familiares e
afetivos, dependerão da associação entre a idade da criança, a relação inicial
estabelecida com a figura materna, o tempo de separação e a vulnerabilidade de
cada indivíduo50.
Segundo a teoria psicanalítica, o nascimento psicológico é um ‘processo
intrapsíquico de lento desdobrar’, ‘um processo de individuação-separação’ (Mahler,
2002 apud Cuneo, 2016), no qual a mãe (ou a substituta dessa) é figura fundamental
no primeiro ano de vida, por ser responsável em ajudar o bebê (totalmente
dependente e indiferenciado) a se reconhecer como uma pessoa diferente do outro.
Essa diferenciação/construção da identidade acontece na medida em que o bebê
percebe que tem a mãe para atender suas necessidades (corporais e afetivas) e que
pode confiar nela (estabelecimento da relação de apego). A partir desse binômio,
ocorre a introdução do terceiro na relação (geralmente o pai, ou quem ocupe a
função paterna), o qual deverá transmitir limites ao filho, ensinar a diferença entre o
certo e o errado, e introduzi-lo na sociedade.
O desenvolvimento infantil, portanto, depende do suprimento de um
ambiente satisfatório para que as necessidades individuais sejam atendidas. As
relações e a continuidade de cuidados afetivos são fundamentais no
desenvolvimento do ser humano. Como aponta Erik Erikson (apud Cuneo, 2016)
além dos cuidados básicos, a mãe (ou sua representante) ‘precisa amar com
consistência e reagir de maneira previsível e confiante para com a criança’. Portanto,
a qualidade da relação dos pais com o bebê dota a criança de confiança em relação
ao mundo e às pessoas, ao passo que experiências traumáticas podem
desorganizar sua vida de forma severa (Spitz,1945, idem).
A literatura não especifica o espaço de tempo que definiria quando se dá
o prejuízo ocasionado pela separação ou mesmo pela negligência do suporte

50
Levantamento mais detalhado dessa fase pode ser lido no artigo de Cuneo (2016): Abrigamento
Prolongado: os filhos do esquecimento.
518
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

emocional e afetivo. Cuneo (2016) adota como período superior a um ano, a


institucionalização prolongada para demonstrar com ela, o impedimento da
ocorrência de condições favoráveis para o desenvolvimento sadio. E coloca como
variáveis para tal impedimento, a ‘submissão a rotinas rígidas, a precariedade de
atenção individualizada, a falta de vida em família sem suas trocas afetivas e a
descontinuidade de vínculos iniciais’.
Nesse sentido, a descontinuidade dos vínculos provocada pelo
acolhimento e a ausência do referencial parental contribui para a ‘formação insegura
dos padrões de apego, que pode levar a prejuízos de ordem somática, emocional,
intelectual e social’. Prova disso foi evidenciada há tempos nas pesquisas de Spitz
(1945) ao constatar que bebês institucionalizados, embora alimentados, adoeciam
ao serem privados de afeto, por não receberem atenção e carinho. As marcas
dolorosas, se não elaboradas, podem refletir na formação do indivíduo até a vida
adulta.
Bowlby (1969 apud Cuneo, 2016) enfatiza que as relações objetais
primárias são fundamentais para o desenvolvimento do apego seguro (segurança)
que refletirá futuramente nas relações sociais do indivíduo.
Pensando na prática profissional, mais especificamente na primeira
avaliação realizada por Assistentes Sociais e Psicólogos Judiciários em relação à
criança que foi recentemente acolhida, difícil será identificar a qualidade dos vínculos
iniciais. Supõe-se que a partir do acompanhamento da criança acolhida e da família
os profissionais possam avaliar tal relação.
O acolhimento institucional provoca a separação brusca da criança com
sua família, tal separação provavelmente é vivenciada como sentimento de perda e
possivelmente de abandono para a criança. Acarreta a ruptura dos vínculos afetivos
com as figuras de referência, geralmente afetando o contato dela com o mundo à
sua volta e todas as relações sociais e comunitárias relativas ao seu cotidiano.
Como consequência a partir da vivência de acolhimento vem o medo e a
angústia de viver novas separações, a desconfiança tanto na relação com o outro
como na permanência do relacionamento. Observa-se ainda dificuldade na formação
de novos vínculos afetivos em razão da associação da vinculação afetiva com a
perda. O medo de sofrer pode levar ao entendimento de que ‘amar é perigoso’
desenvolvendo assim a resistência aos contatos afetivos. Também como

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

consequência pode surgir certa esterilidade emocional, com dificuldade de dar e


receber afeto.
Várias outras características são citadas na literatura como possíveis de
serem desenvolvidas a partir das rupturas prolongadas. Dentre elas a carência
afetiva, baixa autoestima, sentimentos de rejeição e isolamento, atividades auto
eróticas, agressividade aumentada, atitudes de oposição, humor deprimido,
irritabilidade, falta de capacidade para aceitar limites/frustrações (frustação essa
decorrente da ansiedade e da expectativa de um acolhimento familiar), dificuldades
de adaptação ao meio e de ser cooperativa, atraso no desenvolvimento cognitivo/
aprendizagem, fragilidade física e reações psicossomáticas.
Segundo Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007), o acolhimento de longa
permanência leva a criança a se relacionar com um conjunto de pessoas que
dividem o poder e a responsabilidade sobre ela, os quais se tornam seu novo
referencial de convivência. Na instituição o padrão de cuidado tende a ser instável e
pouco afetuoso, a referência de relações afetivas é geralmente superficial e
interrompida, seja pela troca de turno de cuidadores ou pela rotatividade de
profissionais. Fatores esses, que trarão dificuldades às crianças de estabelecerem
relações afetivas baseadas na confiança.
Esta ideia corrobora com o afirmado por Cuneo (2016, p. 423) “se a
ruptura dos vínculos iniciais é prejudicial, a continuidade dessas rupturas é ainda
pior”.
Importante pensar que quanto mais prolongado é esse acolhimento, mais
situações de troca de referencial a criança/adolescente vivencia, e
consequentemente mais situações de separação - seja de amigos que fez na
instituição de acolhimento, seja de cuidadores - que podem reforçar o sentimento de
abandono/desamparo e de desesperança.
Neste mesmo entendimento Cuneo (2016, p.422) afirma:

[...] Por melhor que seja a instituição, por mais que haja uma
atmosfera de ambiência familiar artificialmente criada, somente uma
relação familiar propicia um sentimento de intimidade, cumplicidade e
um convívio mais afetuoso, personalizado e individualizado.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Se por um lado a institucionalização muitas vezes pode reproduzir


situações de privação, por outro lado, quando comparada a situações muito
prejudicadas vividas anteriormente junto à família de origem, pode apresentar
aspectos positivos em termos de oportunidade de desenvolvimento, como cuidados
médicos, odontológicos, de higiene, inserção e acompanhamento escolar, estímulo
educacional, etc.
A criança acolhida vivencia um panorama de fragilidades, inseguranças e
sensação de estranhamento ao chegar à entidade, local desconhecido às suas
referências familiares relacionadas à rotina, movimentação do dia a dia, cheiros e
memórias, e passa a conviver em um local com outras tantas crianças com
características distintas, tradições e regras diferentes das suas, com pessoas que se
revezam e que adotam atitudes diversas frente a situações semelhantes.
Ainda como consequência social do acolhimento, evidencia-se de forma
frequente a reorganização da família sem a presença da criança/adolescente, o que
é uma contradição, uma vez que se busca justamente a reintegração familiar.
Se por um lado, o Poder Judiciário determina o afastamento do acolhido
de sua família biológica - seja ao acolhê-lo, seja ao destitui-la na tentativa de
inserção do acolhido em família substituta - por outro, ao se deparar com a
impossibilidade desta colocação, tenta retomar o contato com sua família (mesmo
que destituída).
Esta atitude evidencia um movimento contraditório, principalmente nos
casos em que o adolescente está prestes a atingir a maioridade e cuja retomada de
contato é identificada como única possibilidade de referência para o acolhido. Nestes
casos, percebe-se o estranhamento dele com a família de origem como mais uma
perversa consequência da fragilização dos vínculos ocorrida de ambos os lados.

3 - A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL E PSICÓLOGO


JUDICIÁRIOS

- JUNTO À CRIANÇA E ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO DE


LONGA PERMANÊNCIA E DIFÍCIL COLOCAÇÃO

Em se tratando da atuação dos profissionais em processos que visam a


reavaliar a situação de crianças e adolescentes acolhidos há vários anos e com

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

poucas chances de serem adotados, observa-se a difícil missão em conseguir


identificar quais investimentos se constituem em decisão mais benéfica para os
mesmos.
Em muitos casos o profissional se depara com um prognóstico de futuro
pouco promissor, no qual não se vislumbra referências de suporte (significativo ou
adequado) para nortear o acolhido frente ao desacolhimento, quando atinge a
maioridade.
Ao se pensar que a criança e o adolescente têm o direito de crescer num
contexto familiar e comunitário e que necessitam de adultos de referência,
necessário haver maior reflexão quanto ao papel dos profissionais do judiciário, pois
sua intervenção poderá restringir ou ampliar direitos; contribuir com novas rupturas
de vínculos ou ampliar possibilidades de novas relações.
Olhar para criança e adolescente como sujeito de direitos e reconhecê-lo
como protagonista de sua história deve ser o primeiro exercício do profissional, tanto
ao atendê-lo, como através do diálogo com a entidade de acolhimento, com a família
e com a rede.
Neste sentido, a intervenção profissional deve contemplar
fundamentalmente a escuta contínua da criança, a ampliação do conhecimento de
sua história de vida, de suas relações familiares e comunitárias, relações
constituídas antes e durante o período de acolhimento de modo a oportunizar que de
fato protagonize sua história e a ressignifique refazendo seu projeto de vida.
O levantamento de informações sobre a vida da criança pode ser feito
tanto a partir de sua escuta, bem como poderá se dar por meio de outras fontes,
como por exemplo, adultos que fazem parte de sua rotina institucional ou que os
acompanhem em outros ambientes como escola, projeto e comunidade.
Conforme o profissional vai se aproximando da história e realidade da
criança e do adolescente, poderá ter maiores possibilidades de se apropriar de
informações relevantes sobre a vida dos mesmos, permitindo elaboração de
propostas, as quais deverão ser construídas em conjunto com o acolhido, pensando
nele como protagonista de sua própria história.
Este exercício poderá fornecer indicativos ao profissional de modo a
direcionar em que sentido as ações devem ser investidas. Em se tratando da
demanda aqui estudada, se depara com a tarefa de equacionar investimentos na

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

família de origem (com histórico de violação e vínculos fragilizados) X investimentos


em novas relações (que podem ou não resultar em novos vínculos).
Pensando no adolescente que está prestes a completar a maioridade,
embora a equipe da entidade de acolhimento deva realizar o trabalho de
planejamento do projeto de vida, fortalecimento da autonomia e inserção no
mercado de trabalho desde seus dezesseis anos, entende-se que também é
atribuição da equipe do judiciário participar de tais ações. Isto porque, considera-se
que tais profissionais muitas vezes são os que se mantêm mais estáveis na vida dos
adolescentes, haja vista a frequente rotatividade dos funcionários dos serviços de
acolhimento.
Ao se pensar no adolescente prestes a completar sua maioridade, a
experiência aponta que a maioria retornará à família de origem, ou buscará suporte
nessa para iniciar sua vida produtiva. Esta seria uma das razões para a manutenção
dos contatos com a família biológica, além do apadrinhamento como referência
familiar e social ao adolescente.

- JUNTO À FAMÍLIA DA CRIANÇA E ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE


ACOLHIMENTO DE LONGA PERMANÊNCIA E DIFÍCIL COLOCAÇÃO

Estudar a prática das medidas protetivas de acolhimento institucional


implica compreender os significados vividos pelos envolvidos, pais, adolescentes,
crianças e também pelos assistentes sociais e psicólogos que estarão vivenciando
esta história de rompimentos, separações e perdas.
As famílias acompanhadas são aquelas que ou não cumpriram o seu
dever de proteção, ou são elas o próprio agente de violação ou de violência contra
suas crianças e adolescentes.
Esta afirmação não impregna de culpa somente a família, pois se
considera que existem razões para além do âmbito individual e familiar, levando-se
em conta as contradições e desigualdades impostas pelo sistema socioeconômico
em que estão inseridas, as quais intensificam as vulnerabilidades sociais destas
famílias, expressadas pela pobreza, violência, desemprego, dependência química,
etc.
Para trabalhar com essas famílias faz-se necessário acreditar que é
possível ajuda-las a potencializar seus recursos internos com vistas à reorganização
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pessoal tanto para buscar os recursos materiais quanto para restaurar a própria
autoestima, construir condições de responsabilizar-se por suas escolhas e suas
trajetórias, na perspectiva de alcançar emancipação e autonomia e deixar de ser
tutelada pelo Estado.
O trabalho realizado com a família se dá na perspectiva que o ambiente
familiar é o melhor lugar para o desenvolvimento de uma criança, não obstante
algumas vezes, este mesmo ambiente trazer risco e vulnerabilidade. Em que pese a
ambivalência familiar, na maioria dos casos, é lá que a criança/adolescente quer
estar, pois há a necessidade de trocas afetivas com suas figuras de referência.
O grupo apontou a importância tanto da escuta quanto da reavaliação
continuada do núcleo familiar e membros da família extensa de modo que o
acompanhamento contemple as condições de vida dos envolvidos, as relações
estabelecidas e principalmente as potencialidades buscando sempre dar voz aos
personagens. Destacou ainda a necessidade de um trabalho com a família que
propicie a conscientização sobre o motivo do acolhimento, assim como sua
responsabilidade na condução das ações necessárias à superação de suas
fragilidades.
Importante observar que o encaminhamento da família para atendimentos
da Rede de serviços pode chocar com as orientações sobre a necessidade dela se
tornar autônoma para garantir o sustento da prole. Ou seja, o profissional judiciário
que tem a devolutiva de tais serviços quanto à 'não aderência' da família, deve se
atentar para a viabilidade do comparecimento dessa nos cursos, grupos e
atendimentos da área da saúde, concomitante ao trabalho recém iniciado na
tentativa de sua melhoria.
A medida de acolhimento institucional ratifica a contradição já
mencionada: suprime-se a convivência familiar, com o objetivo final de garantir a
convivência. Vários questionamentos surgiram principalmente ao se tratar das
famílias cujos contatos já estão rompidos.
Observa-se que o lugar da família de origem aparece de forma
antagônica, pois apesar de ser considerada como incapaz em determinado momento
e contexto, muitas vezes ela volta a ser reconhecida como possibilidade de
convivência, quando não são vislumbradas alternativas para criança/adolescente.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Diante da decisão em retomar os contatos do acolhido com essa família,


observa-se ao longo do tempo da institucionalização alterações em sua dinâmica,
porém sendo comum a não superação das demandas que ensejaram o acolhimento,
ou a existência de novos arranjos no grupo, principalmente considerando a
descontinuidade e falta de ações públicas visando romper com ciclos de violação.
Assim, embora as demandas dessas famílias se mantenham, observa-se
que com a efetivação do afastamento da criança/adolescente do núcleo familiar, as
intervenções do Estado tendem a acontecer de forma muito mais isolada e pontual,
geralmente mediante solicitações da própria família, por exemplo, através de
benefícios eventuais.

- JUNTO À EQUIPE DO ABRIGO E REDE NO TRABALHO COM CRIANÇAS E


ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO DE LONGA
PERMANÊNCIA E DIFÍCIL COLOCAÇÃO

Referendado em material teórico pertinente às atribuições técnicas do


serviço social e psicologia no Tribunal de Justiça, identifica-se dois papeis
antagônicos na atuação junto à equipe de acolhimento: a participação na
fiscalização de entidades, envolvendo aspectos de supervisão do trabalho técnico
realizado pela referida equipe, e a parceria efetiva com esse serviço para atender as
demandas das crianças / adolescentes acolhidos.
O artigo do Grupo de Estudos da Capital “Abrigo”, publicado no caderno 4
deste Tribunal (2007) compreende que,

[...] em face da diversidade de instituições de abrigo e de situações


de crianças abrigadas, o Judiciário aparece como elemento comum,
capaz de conhecer a singularidade e a particularidade dessas
crianças, visto que sua intervenção ocorre tanto no nível específico –
quando acompanha a situação de uma criança abrigada em
determinada instituição; quanto no nível mais abrangente – quando
fiscaliza a instituição que abriga a criança acompanhada. (p. 5).

O manual de procedimentos técnicos do Núcleo de Apoio Profissional do


Serviço Social e Psicologia do Tribunal de Justiça de São Paulo (2017) esclarece
que o trabalho de acompanhamento caso a caso deve ser realizado pela equipe do

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

judiciário em conjunto com os profissionais da instituição de acolhimento para que


haja uniformidade de conduta nos encaminhamentos propostos.
Neste sentido, o acompanhamento específico das condições de cada
criança ou adolescente acolhido possibilita o conhecimento das ações que estão
sendo propostas, bem como a qualidade dos cuidados, como se dão as situações
protetivas e o relacionamento com a família, e assim possibilita sua adequação aos
princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para que a preservação de direitos e a proteção propostas pelo ECA se
consolidem, fundamental se faz a construção de um trabalho de parceria efetiva
entre a equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude e do serviço de
acolhimento.
Uma destas parcerias deve se concretizar em discussão de casos e
trabalho conjunto destas equipes, bem como, a participação na elaboração (e
reelaboração) do PIA e no acompanhamento da efetivação das estratégias
indicadas, conforme proposto pela Lei 12.010/2009 em seu Artigo 101.
Observa-se ainda que o manual supracitado indica como função da
equipe técnica judiciária a análise do Plano Individual de Atendimento elaborado
trimestralmente, com a obrigatoriedade de que seja apresentada uma manifestação
a respeito do referido documento.
O grupo compreendeu que a participação da equipe na elaboração do PIA
contribui para a avaliação da eficácia das medidas sugeridas e, no entanto, a sua
análise conforme previsto pelo núcleo pode conflitar com a prática predominante
neste grupo que é a participação nas discussões para elaboração do documento.
No que se refere à atribuição da fiscalização de entidades de
acolhimento, as Normas da Corregedoria, em seu artigo 817, definem que os juízes
da Infância e da Juventude farão visitas semestrais às entidades de acolhimento,
assessorados por equipe do Setor Técnico.
Em concordância, o artigo do Grupo de Estudos da Capital “Abrigo”,
publicado no caderno 4 deste Tribunal (2007) compreende que este papel de
fiscalizador, somado ao poder de decisão do Judiciário sobre a vida da criança,
acarreta a função de mediador da relação entre a família, a criança e a instituição,
através de seu papel de orientador dos direitos e deveres que regulam esta relação.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Pontua-se que a falta de estabilidade oferecida pelos próprios serviços de


acolhimento traz prejuízos à qualidade dos cuidados oferecidos, revelando a
importância de avaliar as violações com o mesmo rigor, independente de onde elas
partem – família, sociedade, instituição de acolhimento. Percebe-se comum a prática
de avaliações com pesos diferentes, determinados em função dos atores da violação
e não, de sua gravidade, ou seja, há processos que foram autuados contra a família,
mas não são instaurados contra os serviços quando estes negligenciam cuidados.
O grupo reconheceu a importância do papel fiscalizador da equipe para a
garantia de direitos dos acolhidos, trazendo exemplos de situações difíceis que,
após serem pontuadas em laudos técnicos, tiveram desdobramentos positivos a
partir da intervenção do Juízo e do Ministério Público. Ou seja, há o reconhecimento
de que o laudo técnico pode ser um instrumento de mudança da realidade
institucional.
Porém, foi identificada a dificuldade da equipe técnica do Tribunal de
Justiça de cumprir as duas funções (fiscalização e parceria) concomitantemente,
sendo necessário estabelecer uma linha de trabalho contínuo e sem ambiguidade de
papéis.
Assumir o papel de fiscalizador traz riscos ao estabelecimento de uma
relação de parceria efetiva, prejudicando a concretização de ações benéficas para
os acolhidos. Todavia, o grupo compreendeu que não deve isentar-se dos
apontamentos necessários para a construção de um trabalho efetivo frente às
necessidades dos acolhidos, porém, estes podem ser realizados de forma contínua
e não hierarquizada em discussões de equipe, tendo como foco a troca de
conhecimento e não o caráter punitivo, impregnado no papel de fiscalizador.
Ainda entendeu-se como função da equipe judiciária a provocação para
que sejam realizadas capacitações das equipes de acolhimento, que incluam
informações a respeito do desenvolvimento infantil e dos prejuízos que podem se
instalar, tanto para os cuidadores dos serviços de acolhimento e famílias
acolhedoras, quanto para os diversos atores da rede.
Em relação ao trabalho junto à Rede intersetorial de proteção dos direitos
da criança e do adolescente, o Manual de Procedimentos Técnicos (2017) afirma
que “Os assistentes sociais e psicólogos realizarão reuniões com a rede e com as

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instituições de acolhimento para discussão dos casos, para o maior embasamento


dos planos individuais de atendimento das crianças e adolescentes” (p. 80).
A articulação intersetorial é papel importante das equipes técnicas do
judiciário, que deve atuar no sentido de integrar a rede de serviços, monitorar as
intervenções e garantir o envolvimento dos atores da rede nos diversos serviços
prestados. O mesmo manual propõe que a Rede seria parceira na indicação da
reintegração familiar ou da destituição familiar, sendo tal compartilhamento de
responsabilidades, outro aspecto importante do trabalho em rede.
Considera-se que uma das maiores dificuldades nesta articulação e
concretização das propostas elaboradas no PIA encontra-se na rotatividade dos
profissionais.
A mudança constante de profissionais nos serviços da rede de proteção
foi apontada como entrave em todas as Comarcas participantes, e é agravada pela
dificuldade de apontar as deficiências destes serviços.
Apesar das dificuldades, observa-se que as reuniões em rede propiciam
uma diversidade de olhares em busca de caminhos possíveis, e minimizam a
sobreposição de “exigências” para a família – trabalhar, fazer cursos, realizar
tratamentos, nos diversos serviços.

4 - DESDOBRAMENTOS E POSSIBILIDADES / DESAFIOS

Para o adolescente acolhido, afastado do convívio familiar, com poucas


chances de adoção, e mesmo para crianças de difícil colocação em família substituta
recomenda-se que além dos trabalhos da instituição de acolhimento no sentido de
promover a autonomia e melhores perspectivas de desenvolvimento, o acolhido
tenha uma referência de família por meio do Programa de Apadrinhamento Afetivo.
O referido programa é regulamentado pela Lei nº 13.509 de 22/11/2017 e
seu objetivo é inserir crianças e adolescentes acolhidos e com poucas chances de
adoção, em famílias cadastradas avaliadas e capacitadas para a função.
Consiste numa referência de família, de modo que essa parcela dos
acolhidos, ao se constituírem em afilhados, recebam afeto e sintam-se amparados e
protegidos tanto na questão afetiva como de orientação, visando desenvolverem a

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autonomia, autoestima, sentimento de pertença, mesmo sem coabitarem ou estarem


sob guarda.
Existe ainda a possibilidade do apadrinhamento financeiro (exercido
cumulativamente pelo padrinho afetivo ou por outra pessoa que assuma apenas tal
modalidade), custeando cursos, tratamentos na área de saúde entre outros
benefícios.
Para sua implantação, o programa deve ser disseminado na rede, com
parceria entre a entidade de acolhimento, CREAS e Poder Judiciário, objetivando a
eficiência e eficácia nos resultados que reflitam de forma positiva na vida das
crianças e adolescentes no que se refere ao direito fundamental à convivência
familiar e comunitária. O sucesso do programa na comunidade está associado à
participação de todos os atores envolvidos, da sociedade civil e poder público.
Uma das fragilidades apontada é a compreensão equivocada dos
profissionais envolvidos e das crianças/adolescentes de que o sucesso do
apadrinhamento se dá quando evolui para uma guarda ou adoção. Entende-se que
este é um desdobramento remoto e não é o objetivo do apadrinhamento, para tanto
os papeis devem estar bem definidos aos envolvidos evitando expectativas
frustradas.
O papel dos assistentes sociais e psicólogos judiciários se dá no incentivo
à implantação do Programa e participação de forma propositiva junto à Rede, como
parceiros, na divulgação, seleção de interessados, avaliação e capacitação dos
atores envolvidos (pretendentes a padrinhos, equipes dos serviços de acolhimento e
público-alvo do programa).
Sem prejuízo do programa, e mesmo sem condições de retorno à família
de origem durante o período de acolhimento, entende-se que esta família deve ser
trabalhada pela Rede, com acesso a serviços da proteção social básica, por meio
dos CRAS, em oficinas que reforcem o exercício da parentalidade e ciclo de vida, a
exemplo dos PAIFs nos territórios, integrado com serviços de saúde, com objetivo de
refletir sobre o seu papel protetivo e possibilidades de reorganização.
Paralelamente, o jovem deve ser treinado e capacitado no Serviço de
Acolhimento, para desenvolver habilidades e preparar-se para exercer minimamente
a sua autonomia, conforme projeto político pedagógico de cada instituição.

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Ao atingir a maioridade existe a previsão legal de um Serviço Público que


faz parte da rede Socioassistencial de Proteção Social Especial de Alta
Complexidade, denominado Acolhimento em República. Tal serviço foi
regulamentado por meio da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais,
editada pelo Ministério do Desenvolvimento Social/ Secretaria Nacional de
Assistência Social, após aprovação da resolução número 109, do Conselho Nacional
de Assistência Social/ CNAS, de 11/11/2009.
A implantação do Serviço de Acolhimento em Repúblicas visa abrigar os
jovens egressos dos Serviços de Acolhimento Institucional e ou Familiar. No entanto,
esta modalidade de atendimento não tem se efetivado, ainda está muito incipiente
no Brasil e na região de Presidente Prudente é inexistente.
Frente à falta do serviço apontado, percebem-se casos de adolescentes
acolhidos que, ao completarem 18 anos, acabam por retornar à família de origem
(nuclear ou extensa).
A questão é polêmica, e merece reflexão e cuidado na atuação técnica
judiciária, pois, ao sugerir o afastamento da família de origem (quando ainda
acolhido) consequentemente ocorre o distanciamento dessa e, não evoluindo para
adoção, o então jovem não tem outra saída a não ser retornar para uma família que
já se reorganizou sem a sua presença, e com a qual os vínculos se fragilizaram.
O que fazer diante disso torna-se um desafio que precisa ser prevenido
com políticas públicas que tenham efetivamente a centralidade da família como
pressuposto básico e a área da criança e do adolescente como prioridade absoluta,
com recursos do orçamento nos fundos, conforme preconiza a legislação.
Nesse sentido o grupo refletiu a viabilidade de que não seja sugerido em
laudo psicológico e social, o deferimento da ação de destituição do poder familiar
quando não há probabilidade momentânea de adoção; visto que recente mudança
na legislação permite a inserção da criança e do adolescente de difícil colocação
mediante cadastro na CEJAI (Comissão Estadual Judiciária de Adoção) mesmo sem
ser concluída a destituição do poder familiar.
Tal posicionamento se justifica em razão dos reflexos (sociais e
emocionais) frente à legitimação da ruptura dos vínculos com a família de origem,
ademais há de se considerar ainda, que mesmo que a criança e ou adolescente não
esteja com situação processual definida é possível realizar buscas por pretendentes

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

cadastrados no CNA visando sua adoção, conforme regulamenta o Comunicado CG


nº1188/2016.
Explica-se: após período de acolhimento e de permanência institucional,
havendo Ação de Destituição do Poder Familiar e sendo constatada pela equipe
técnica judiciária a inviabilidade de reinserção familiar, bem como, a impossibilidade
de adoção, entende-se pertinente que a conclusão do laudo social e psicológico seja
pela suspensão do poder familiar e não pelo deferimento da destituição.
Tal compreensão justifica-se na proposta do grupo de que se deve
realizar um esforço constante para a manutenção dos vínculos (mesmo em família
que não apresente condições para o exercício da proteção e cuidados). Sua
finalidade é evitar o rompimento do laço jurídico entre a família e a criança /
adolescente, bem como minimizar um estranhamento futuro, pois sendo de difícil
colocação, tem chances de retornar à família (única que possui) aos 18 anos,
quando já estiver mais amadurecido e em melhores condições para enfrentar as
vulnerabilidades familiares.
Destarte, entende-se pertinente que um trabalho de desacolhimento
gradual associado às ações que visem à autonomia se inicie com tempo suficiente
(de um a dois anos) para que a reaproximação familiar se efetive antes de completar
a maioridade / desacolhimento, possibilitando assim, acompanhamento e orientação
no processo de reinserção.

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5 - CONCLUSÃO

As sucessivas reflexões ao longo do ano sobre as implicações pertinentes


ao acolhimento de longa permanência, suas consequências e os trabalhos possíveis
e necessários para com essa demanda, foram configurando o entendimento da
atuação dos assistentes sociais e psicólogos judiciários; assim como do sistema de
justiça; enquanto contraditório em sua essência.
Em relação à atuação com criança/adolescente acolhidos observou-se
que o judiciário acolhe visando protegê-los e por vezes se torna o agente provocador
de rupturas, quando o principal objetivo seria preservar vínculos. Ou seja, destitui na
tentativa de propiciar uma família que ofereça proteção integral; frente a esta
impossibilidade e constatando que a longa permanência no serviço de acolhimento
revitimiza e provoca novas violações, tenta recuperar suas raízes e referências
familiares anteriores.
Igualmente, no trabalho com a entidade de acolhimento a equipe técnica
judiciária vivencia contradições, pois ao mesmo tempo em que deve estabelecer
relação de efetiva parceria, também deve ser fiscalizadora daquela instituição.
Antagonicamente lhe é cobrado integrar a rede intersetorial de proteção à infância e
participar da elaboração do PIA X analisar a produção do mesmo.
No mesmo sentido da ambiguidade de papéis perante a instituição de
acolhimento, faz parte da atuação do profissional judiciário a observação crítica à
medida de acolhimento, atentando-se para o risco do acolhido sofrer nesse local
outras violações. Enfatiza-se, portanto, que ao se pensar no agente violador, não é
possível ter um olhar julgador para a família e “conivente” em relação à instituição.
No âmbito da intervenção junto à família, entende-se que o trabalho
também é contraditório, porém fundamental. Vivencia-se com frequência a
ambivalência entre a necessidade de destituir X o possível retorno à família.
Destituída ou não, a perspectiva deveria ser a manutenção do foco na família de
origem, sem sua exclusão, ainda que a possibilidade de reinserção seja remota,
como forma de amenizar o sofrimento da criança/adolescente.
A vivência familiar é comparada à vivência contraditória dos acolhidos,
uma vez que ora é considerada incapaz, ora com a possibilidade de recuperar o
status de referência familiar.

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Estar em contato com essa parcela de acolhidos, com poucas


perspectivas de colocação em família, é angustiante para o profissional, para o
acolhido e para a entidade de acolhimento.
O assistente social e o psicólogo judiciários diante do acolhimento
prolongado devem trabalhar incentivando a autonomia do acolhido, a possibilidade
de apadrinhamento como referência de futuro e ao mesmo tempo ter um olhar
voltado para a família nuclear e/ou extensa, e para a preservação da rede de laços
comunitários. Lembrando que uma das prerrogativas do trabalho é nunca desistir de
tentar, de buscar alternativas criativas, apurar a escuta e direcionar as
possibilidades.
Embora as consequências do acolhimento de longa permanência sejam
reais e o trabalho sempre deva ser pautado na tentativa do desacolhimento, há que
se pensar em possibilidades positivas advindas tanto do oferecimento de atenção a
essa população, quanto da possibilidade da instituição se constituir em identificações
positivas para o desenvolvimento de acolhidos que poucas chances tiveram de
referenciar-se em padrões positivos. A oferta de ação terapêutica deve ser uma
possibilidade em qualquer momento do acolhimento.
Dessa forma, conclui-se possível e indicado trabalhar paralelamente a
busca da autonomia do acolhido, as possibilidades de apadrinhamento, e ainda
restabelecer gradualmente laços afetivos com uma família com histórico violador,
destituída ou não do poder familiar, considerando que esta pode representar a única
fonte de pertencimento destas crianças e adolescentes e a única possibilidade de
convivência familiar.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

CAVALCANTE, Lilia I.C.; MAGALHÃES, Celina M.C.; PONTES, Fernando A.R.:


Institucionalização precoce e prolongada de crianças: discutindo aspectos decisivos
para o desenvolvimento. Aletheia, n25, p30-34, jan/jun.2007
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/aletheia/n25/n25a03.pdf

CONANDA e CNAS (coordenação). Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento


para Crianças e Adolescentes. Distribuição Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. Brasília, junho de 2009.

CNAS. Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistencias. Ministério do


Desenvolvimento Social. Brasília, 2009.
Disponível em:
https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipific
acao.pdf

CUNEO, Mônica R. Abrigamento prolongado: os filhos do esquecimento. A


Institucionalização Prolongada de Crianças e as Marcas que Ficam. Sociedade
Brasileira de Psicologia Jurídica, 2016.
Disponível em: www.sbpj.org/materias/Abrigamento_Prolongado.doc.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (TJSP). Cadernos dos Grupos de Estudos


- Serviço Social e Psicologia Judiciários, Grupo da Capital: “O abrigamento de
crianças e de adolescentes e o direito à convivência familiar e comunitária: foco de
atenção, estudo e ação profissional no judiciário”, nº 4, p. 1 a 13 (estava 4 e 5) – São
Paulo: 2007.

__________. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia


Judiciários, Grupo do Interior - Araçatuba – “Acolheu e daí? O papel da equipe
técnica do judiciário nas ações de acolhimento institucional de crianças e
adolescentes”, nº 9, p. 212 a 237 – São Paulo: 2012.

534
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

___________. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia


Judiciários. Grupo da Capital. Limites, possibilidades e desafios da atuação técnica
frente ao acolhimento de crianças e adolescentes, nº 11, p.1 a 42 (estava p.19) -
São Paulo: 2014.

___________. Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e Psicologia.


Coordenadoria da Infância e da Juventude. Atuação dos Profissionais de Serviço
Social e Psicologia: Manual de Procedimentos Técnicos. São Paulo: 2017.
Disponível em:
http://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/pdf/manual_de_procedimentos.pdf

535
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO DE CRIANÇAS MAIORES

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR


PRESIDENTE PRUDENTE II
“ADOÇÃO TARDIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Igor Costa Palo Mello – Psicólogo Judiciário – Comarca de Presidente Prudente


Marcia Giselda Juvêncio Gervazoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Regente Feijó

AUTORES

Daniele Luiza Armeron Moreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Presidente Prudente
Eduardo Campos de Almeida Neves – Psicólogo Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Evelyn Navarro Justino Soler – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Gabriele Molina Ferrari – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Ivana Diercken Simoni de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Bernardes
Jeise Cristina Alves Sereghetti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tupi
Paulista
Nayara Coimbra Coutinho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Martinópolis
Silvia Cristina Carvalho Santos Vanderlei – Assistente Social Judiciário – Comarca
Martinópolis
Sonia Maria Moretti Chaves – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente

537
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente artigo é produto do trabalho de um grupo de estudos de


profissionais do Serviço Social e de Psicologia que atuam como técnicos judiciários
em comarcas pertencentes à 5ª região administrativa do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, representados pelas comarcas de: Presidente Prudente,
Martinópolis, Regente Feijó, Presidente Bernardes e Tupi Paulista.
A metodologia de trabalho contemplou reuniões mensais realizadas entre
Março e Dezembro de 2018. Em março, houve a definição do cronograma de
atividades, tendo como tema “A adoção de crianças maiores”; nos meses
subsequentes ocorreram discussões coletivas e em subgrupos através de textos,
vídeos e outros documentos atinentes ao assunto, incluindo também o estudo sobre
a redução da duração do estágio de convivência, conforme previsão legal recém
instituída pela Lei 13.509 de 2017.
Neste sentido, escolhemos iniciar por um percurso histórico acerca da
adoção no Brasil, atentando a aspectos jurídicos e sociais, seguindo pela
configuração do estágio de convivência e concluindo com alguns indicadores críticos
que emergem da reflexão acerca da experiência profissional de acompanhamento
dessas situações.

1 - A TRAJETÓRIA HISTORICA DA ADOÇÃO NO BRASIL.

No Brasil, até o século XX, a adoção não era regulamentada


juridicamente. Sua prática era permitida apenas a casais que não tinham filhos
biológicos, através da entrega de crianças que eram deixadas na Roda dos
Expostos – uma roda de madeira fixada no muro ou janela de conventos ou Santas
Casas de Misericórdias, onde um dispositivo era girado, conduzindo a criança para
dentro da instituição sem que sua origem fosse revelada (Kosesinski, 2016).
Neste contexto, os casais e as crianças ficavam em situação de
vulnerabilidade, pois nenhum direito sobre a adoção lhes era assegurado. As
crianças, por exemplo, não podiam receber herança de seus pais, a não ser que a
família recorresse ao judiciário e, em audiência, o juiz confirmasse o interesse de
ambos na adoção.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Somente em meados do século XIX e início do século XX é que começam


a serem formuladas leis voltadas à proteção das crianças. Neste cenário a primeira
legislação sobre adoção é promulgada: Lei 3.071 de 1916, no Código Civil Brasileiro.
Esta lei preconizava que a adoção poderia ser realizada apenas para pessoas ou
casais sem filhos, com idade mínima de 50 anos, restringindo, desta forma, as
adoções para pessoas que não tiveram filhos biológicos. Além disso, deveria haver
uma diferença de idade entre os adotantes e os adotados de 18 anos; o adotante
poderia ser uma única pessoa, mas caso fosse um casal, deveriam ser civilmente
casados. A adoção poderia ser desfeita após a maioridade da criança adotada, se
ela e o(s) adotante(s) assim quisessem, ou então “quando o adotado cometesse
ingratidão contra o adotante”, sem que fosse explicitado na lei do que se tratava
exatamente. A regulamentação se dava através de escritura, quer dizer, era feito um
contrato e o Cartório emitia o documento da adoção sem que houvesse processo
judicial.
Embora não tenha como objeto direto a adoção, a primeira lei de menores
promulgada em doze de outubro de 1927 institui dois termos importantes para a
compreensão do histórico seguinte da legislação sobre o assunto. O termo “menor” é
introduzido pela primeira vez como elemento fundamental, assim como a “doutrina
da situação irregular”. Além dessas contribuições, a referida lei extinguiu a roda dos
expostos (BRASIL, 2018).
A lei 3.133 de 1957 trouxe mudanças visando estimular as adoções. Com
ela, a idade mínima do adotante passou para 30 anos e a diferença entre o adotante
e o adotado para 16 anos, colocando como requisito aos pretendentes que fossem
um casal e que tivessem pelo menos 05 anos de relacionamento oficial. A adoção
também deixa de ser exclusividade de casais sem filhos biológicos. Um incremento
interessante dessa lei foi a possibilidade do adotado, a seu critério, manter o
sobrenome da família de origem e/ou acrescentar o sobrenome da família adotante.
A partir do incentivo da lei de 1957, os juízes da infância (denominados na
época como juízes de menores) passaram a pressionar os Cartórios para que
somente regularizassem a escritura da adoção de bebês mediante uma autorização
judicial. É neste momento que o poder judiciário começa a intermediar a prática da
adoção.

539
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Uma nova Lei foi promulgada, Lei 4.655 de 1965, onde houve a criação
da “legitimação adotiva”. Através de uma decisão judicial, as crianças que estavam
em “situação irregular” passaram a ter os mesmos direitos dos filhos biológicos. Tais
situações foram descritas na legislação como filhos de pais desconhecidos ou pais
que declararam por escrito a concordância com adoção. Para as crianças menores
de sete anos, também se considerou situações em que os pais perderam os direitos
legais sobre os filhos e nenhum outro familiar reivindicou sua guarda. Para as
maiores de sete anos, foi prevista a legitimação adotiva para as crianças que já
estavam sob os cuidados dos adotantes, como no caso de viúvos(as) ou
desquitados(as).
A legislação de 1965 inclui outros dois aspectos, que estão mantidos até
hoje: 1) o rompimento definitivo da criança com a família de origem através da
formalização do registro de nascimento, fazendo constar o nome dos pais e avós
adotantes, suprimindo o nome da família biológica e, por consequência, 2) a
irrevogabilidade da adoção, isto é, ela não poderia mais ser desfeita.
As atenções do poder público continuaram voltadas para a infância, e a
Lei de 1979, Código de Menores, traz grandes alterações quanto à “assistência,
proteção e vigilância” de crianças menores de idade. No que diz respeito à adoção,
esta passa a ser incluída agora como uma medida protetiva da infância – e não mais
dentro do direito de família. Essa legislação estabeleceu dois tipos de adoção:
simples e plena. A adoção simples visava a regulamentação da situação irregular em
que algumas crianças se encontravam, intermediando o acordo entre famílias. Já a
adoção plena, dissolvia as diferenças entre os direitos de filhos biológicos e filhos
por adoção, e explicitou o rompimento de qualquer vínculo entre o adotado e a
família de origem. Pela primeira vez, a lei ordena parâmetros para a adoção
internacional: os estrangeiros só podiam realizar a adoção simples.
O Código de Menores estabeleceu ainda que os adotantes deveriam
comprovar através de documentos as seguintes qualificações: estabilidade conjugal,
comprovação de idoneidade moral, atestado de sanidade física e mental e
adequação do lar. Tais documentações tornaram-se obrigatórias nos processos de
adoção.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) passa a assegurar a
igualdade entre os filhos, anunciando no artigo 227: “Os filhos, havidos ou não da

540
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações,


proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069 de
1990, regulamenta este e outros princípios relacionados à infância, definindo
inicialmente que “criança” são pessoas até 11 anos e 11 meses e “adolescentes”,
pessoas entre 12 e 18 anos. A intermediação e a autorização das adoções pelo
poder judiciário passam a ser imperiosas no caso de crianças e adolescentes,
deixando de existir a modalidade de adoção simples.
Acrescentamos como novidade a avaliação dos adotantes e das crianças
e adolescentes pelo setor técnico do judiciário, validando a inclusão destes no
cadastro ou na busca de famílias, respectivamente.
O ECA sofreu uma grande reformulação através da Lei 12.010 de 2009
(BRASIL, 2009) – que ficou conhecida como Lei da Adoção. Apesar de seu apelido,
esta legislação versa sobre outros aspectos da proteção da infância, objetivando o
“aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à convivência
familiar a todas as crianças e adolescentes”.
A adoção continua sendo compreendida como uma modalidade de
colocação da criança em família substituta, mas introduz a noção de
excepcionalidade. Preconiza que quando um direito da criança ou adolescente está
sendo violado, ela pode ser protegida através do acolhimento institucional. O
primeiro objetivo a ser realizado pela rede de proteção deve ser o retorno à família
de origem (pais biológicos ou família extensa). Quando esse retorno não é possível,
o objetivo passa a ser a colocação em família adotiva.
Atualmente no Brasil, a adoção de crianças e adolescentes é regida pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8069/90 (BRASIL, 1990):

Art. 39:
§ 1º A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve
recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da
criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do
parágrafo único do art. 25 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009).
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os
mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de
qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos
matrimoniais.

541
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ao desejar adotar, o pretendente protocola junto à Justiça, petição inicial


com documentos pessoais e inicia o processo de preparação para adoção com a
atuação dos técnicos judiciários a qual possibilita um momento de reflexão sobre a
decisão e as motivações que levaram à adoção. Momento para pensar se é este o
caminho que almejam seguir e se estão preparados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), no Art. 197-C,
diz que:

Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a serviço


da Justiça da Infância e da Juventude, que deverá elaborar estudo
psicossocial, que conterá subsídios que permitam aferir a capacidade
e o preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade ou
maternidade responsável, à luz dos requisitos e princípios desta Lei.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009).

Esta preparação para adoção inclui desde o contato inicial do pretendente


com a referida equipe interprofissional, com escuta sobre a motivação, orientações
sobre a atual conjuntura da adoção e os procedimentos a serem realizados durante
a avaliação, bem como o estudo que levará a produção do relatório da avaliação.
Dentre os procedimentos a serem realizados está o Curso Preparatório
para Adoção, também previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL,
1990), no artigo 197:

Art.197
§ 1º É obrigatória à participação dos postulantes em programa
oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente
com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política
municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos grupos
de apoio à adoção devidamente habilitados perante a Justiça da
Infância e da Juventude, que inclua preparação psicológica,
orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças ou de
adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com
necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos.
(Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017).

Ao concluir essas etapas o pretendente será incluído em Cadastro de


Pretendente à Adoção.
De acordo com o ECA:

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Art. 197-E.
Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos cadastros
referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a
adoção feita de acordo com ordem cronológica de habilitação e
conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes adotáveis.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009).
Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro
regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de
serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. (Vide
Lei nº 12.010, de 2009).
§ 5 Serão criados e implementados cadastros estaduais e nacional
de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de
pessoas ou casais habilitados à adoção. (Incluído pela Lei nº 12.010,
de 2009).
§ 10 Consultados os cadastros e verificada a ausência de
pretendentes habilitados residentes no País com perfil compatível e
interesse manifesto pela adoção de criança ou adolescente inscrito
nos cadastros existentes, será realizado o encaminhamento da
criança ou adolescente à adoção internacional. (Redação dada pela
Lei nº 13.509, de 2017).

Além da Adoção Nacional também há a Adoção Internacional, de acordo com


o ECA:

Art. 51 Considera-se adoção internacional aquela na qual o


pretendente possui residência habitual em país-parte da Convenção
de Haia, de 29 de maio de 1993, Relativa à Proteção das Crianças e
à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, promulgada pelo
Decreto no 3.087, de 21 junho de 1999, e deseja adotar criança em
outro país-parte da Convenção. (Redação dada pela Lei nº 13.509,
de 2017).

2 - “ADOÇÃO TARDIA” OU ADOÇÃO DE CRIANÇAS MAIORES.

Do ponto de vista legal, não existe distinção entre tipos de adoção. No


entanto, o perfil mais desejado pelos pretendentes a adoção é: criança branca, do
sexo feminino, sem irmãos, saudável e menor de 03 anos de idade. Portanto, as
adoções que ocorrem com menor frequência são aquelas relacionadas às crianças e
adolescentes com os seguintes perfis: portadores de deficiência; portadores de HIV;
negros; grupo de irmãos e crianças maiores de 03 anos. Assim, a chamada adoção
tardia se refere a este último perfil.
O Cadastro Nacional de Adoção apresenta de forma clara a discrepância
entre a escolha dos pretendentes e as crianças/adolescentes disponíveis.
543
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considerando a consulta realizada ao referido cadastro no mês de maio de 2018,


identificou-se 40.831 pretendentes disponíveis à adoção e em contrapartida 4.934
crianças/adolescentes disponíveis para serem adotados (Cadastro Nacional de
Adoção, 2018).
Na pesquisa, 20.415 pretendentes habilitados integravam o grupo que
deseja adotar apenas crianças de até 03 anos e 20.302 se distribuíam para as
demais faixas etárias de 04 a 17 anos (Cadastro Nacional de Adoção, 2018).
Conforme Mendes (2007, p.25 apud Ebrahim, 2001, p.2): “a procura
maciça por bebês, no Brasil, está relacionada com a noção de adotar como solução
para os problemas da infertilidade”.
No entanto, de 4.934 crianças/adolescentes disponíveis a serem
adotados, apenas 132 crianças estão na faixa etária até 03 anos enquanto 4.802
crianças/adolescentes estão distribuídos na faixa etária de 04 a 17anos (Cadastro
Nacional de Adoção), 2018).
Ela também aponta (2007, p. 16 apud Carvalho e Ferreira, 2000, p. 69)

...vários profissionais defendem a idéia de abolição do termo


“adoção tardia”. Entendem que remete à ideia de uma adoção fora
do tempo conveniente ou da existência de um tempo adequado para
adotar, reforçando o preconceito de que ser adotado seja uma
prerrogativa de bebês, prejudicando a viabilidade destas adoções.
Sugerem a utilização de expressão mais apropriada, referindo-se a
este tipo de filiação como “adoção de crianças maiores.

A referida autora ainda destaca que (2007, p.24 apud Nabinger, 1997,
p.80):

Antigamente os casais preferiam adotar crianças mais crescidas,


pois esperavam a confirmação de que a criança tivesse boa saúde
física e mental. Mas com o avanço da medicina permite saber sobre
a saúde da criança mais precocemente, trazendo maiores garantias
para a adoção de um filho saudável. Do seu ponto de vista, os pais
que optam pela adoção precoce “querem ter uma vivência e
intimidades maiores.

Além disso, de forma geral, os pretendentes compartilham a crença de


que na adoção precoce a criança se adaptará melhor, sofrerá menos, não passando
pela vivência do abandono em instituições públicas.

544
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Mendes (2007, p.29-30), também apresenta a ideia da adoção com a


predominância de dois perfis de adotantes, o altruísta e o narcisista, e destaca:

Ao falarmos de pais que desejam muito adotar bebês de cor e


aparência mais próxima possível do padrão das famílias adotantes,
percebemos a necessidade de um filho que possa vir a atender ao
que chamamos, em psicanálise, de desejos narcísicos. Este é um
desejo genuíno e frequentemente presente na vontade de ter filhos,
biológicos ou não.

Por outro lado, Mendes (2007) aponta que nas adoções de crianças
maiores há forte presença de motivações consideradas como altruístas, que não são
diretamente relacionadas a ganhos pessoais, portanto, diferente das motivações
narcísicas, levando a inserção familiar daquela criança sem a expectativa de ver a
própria imagem refletida no filho adotivo.
Referindo-se às motivações altruístas, Mendes (2007, p.34 apud
Levinzon, 2004, p.17) reforça:

Campanhas publicitárias que apresentam como slogan “adote uma


criança”...propõem (...), uma solução simplória para um processo que
necessita ocorrer com bastante cuidado. Assim como qualquer filho
biológico, é importante que a criança adotiva sinta que tem um lugar
escolhido dentro de uma família, e que não represente simplesmente
uma prova de “bondade” de seus pais.

Considerando os apontamentos supracitados, torna-se importante


destacar a necessidade de que os pretendentes realmente desejem a criança como
filho, refletindo sobre a real motivação e sobre a complexidade das questões
envolvidas na adoção de crianças maiores.
A adoção tardia, ou adoção de crianças maiores é apenas uma das
múltiplas faces da temática da adoção. As chances de sucesso ou fracasso no meio
familiar dependem da capacidade de suporte, amor, confiança, companheirismo,
entrega e trocas afetivas. Grande parte das crianças encaminhadas à adoção tem
um histórico de abandono ou orfandade e tal fato deve ser levado em consideração
por todos. Entretanto, quanto maior a idade da criança ou adolescente, mais eles
precisarão da presença constante da família, a fim de sentirem-se aceitos e amados,
para que assim seja possível adaptar e reconstruir uma historia diferenciada de vida.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Neste sentido, essas crianças e/ou adolescentes devem passar pelo de


processo de adaptação às novas famílias, conhecido como estágio de convivência.

3 - O ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA SOB O PRISMA LEGAL, TEÓRICO


E EXPERIENCIAL

O Estágio de convivência tem um peso determinante no processo de


adoção, podendo ser considerado o limiar para a efetivação desta, a qual se
constitui a última medida de proteção destinada às crianças e adolescentes,
possibilitando seu desenvolvimento em família.
Tratando-se de seus aspectos legais, cabe apontar que o Estagio de
Convivência foi mencionado pela primeira vez na Lei 4.655 de 1965, formalizando a
necessidade de um período de convivência anterior à legitimação da adoção.

Art. 1º §2 - A legitimação só será deferida após um período


mínimo de 3 (três)anos de guarda do menor pelos requerentes.
Para esse efeito, será computado qualquer período de tempo,
desde que a guarda se tenha iniciado antes de completar o
menor de 7(sete) anos.

Apesar de definir a necessidade deste período de adaptação entre o


adotando e a família adotiva, a lei acima não o denominava como estágio de
convivência.
Já em meados da década de 70, especificamente em 1979, entra em
vigor o novo Código de Menores, no qual o Estágio de Convivência figura como
pressuposto básico para o deferimento da adoção, que naquela época era aplicada
em duas modalidades – a adoção simples e adoção plena.

LEI N 6.697, DE 10 DE OUTUBRO DE 1979. – Adoção


simples: Art.28 § 1º - § 1º A adoção será precedida de estágio de
convivência com o menor, pelo prazo que a autoridade judiciária
fixar, observadas a idade do adotando e outras peculiaridades do
caso. § 2º O estágio de convivência poderá ser dispensado se o
adotando não tiver mais de um ano de idade. Adoção Plena: Art. 31
A adoção plena será deferida após período mínimo de um ano de
estágio de convivência do menor com os requerentes, computando-
se, para esse efeito, qualquer período de tempo, desde que a guarda

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

se tenha iniciado antes de o menor completar sete anos e


comprovada a conveniência da medida (Grifo nosso).

Importante salientar que em ambas as leis acima preditas, o enfoque


prioritário era o estabelecimento de prazos para a conclusão processual, sem se ater
à adaptação mutua entre a família substituta e a criança.
Com o advento da Constituição de 1988 e posteriormente com a Lei nº
8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e Adolescente), a doutrina da proteção integral é
assumida como política pública de estado, visando o melhor interesse da criança e
adolescente. Assim, a adoção passa a ser tratada como medida de proteção no que
se refere ao direito à convivência familiar, seja por laços biológicos ou substitutos,
bem como à vida comunitária, conforme o Art.227 da Constituição Federal e Art.19
do Estatuto da Criança e Adolescente.
Neste arcabouço legal, o estágio de convivência assume papel
preponderante nos processos de adoção, mas não estabelece a fixação de prazos,
prevendo que estes sejam regulados pelo juiz de acordo com a peculiaridade de
cada caso. A partir de então, já é possível vislumbrar a atuação das equipes técnicas
(serviço social e psicologia) como suporte para o acompanhamento desta fase tão
importante nos processos de adoção.
Posteriormente, a Lei Nº 12.010 de 2009, contemplou algumas alterações
do ECA e fez referência detalhada às situações de Adoção, por isso, passou a ser
chamada de Lei da Adoção.
A última alteração na legislação referente à adoção ocorreu no ano de
2017, com a promulgação da Lei 13.509 de 2017, onde o estágio de convivência
passa a ter novamente prazos previamente estipulados.

Art. 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a


criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias,
observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades
do caso.
§ 2o-A. O prazo máximo estabelecido no caput deste artigo pode ser
prorrogado por até igual período, mediante decisão fundamentada da
autoridade judiciária.
§ 3o Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou
domiciliado fora do País, o estágio de convivência será de, no
mínimo, 30 (trinta) dias e, no máximo, 45 (quarenta e cinco) dias,
prorrogável por até igual período, uma única vez, mediante decisão
fundamentada da autoridade judiciária.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

§ 3o-A. Ao final do prazo previsto no § 3o deste artigo, deverá ser


apresentado laudo fundamentado pela equipe mencionada no §
4o deste artigo, que recomendará ou não o deferimento da adoção à
autoridade judiciária.
§ 5o O estágio de convivência será cumprido no território nacional,
preferencialmente na comarca de residência da criança ou
adolescente, ou, a critério do juiz, em cidade limítrofe, respeitada, em
qualquer hipótese, a competência do juízo da comarca de residência
da criança.” (NR).

Apesar dos artigos supramencionados contemplarem algumas


peculiaridades da adoção, a exemplo da internacional, a mudança significativa
refere-se à delimitação dos prazos. Entretanto, pensando-a como medida de
proteção, a preocupação fundamenta-se na pratica cotidiana dos profissionais, onde
se observa que estágios de convivência mais prolongados se mostram mais
promissores ao sucesso das adoções.
Mais inquietante ainda são os prazos estipulados para a adoção por
estrangeiros, onde crianças e adolescentes, para além de lidar com a experiência da
adoção em si, precisarão se ambientar a um novo país, nova língua, costumes, entre
outros aspectos. Tais mudanças são intensas, significativas e difíceis de serem
assimiladas em curto prazo de tempo para a consolidação da adoção, e ainda em
casos de insucessos, as crianças e os adolescentes nesta condição são acolhidos
em instituições nos países de origem dos adotantes, restando impossível o retorno à
sua pátria.
De acordo com Krauss apud Liana, pag 43, 2010

O momento da adaptação é fundamental para o sucesso do vínculo


porque acontece a integração de elementos de sentido e de
significação que caracteriza a organização subjetiva de um âmbito da
experiência dos sujeitos, ação, construção, história, transações,
trocas sociais e culturais como configurações subjetivas da
personalidade. É um complexo de articulações e possibilidades
contraditórias, processos de ruptura e renascimento, tudo deve ser
visto com sensibilidade e não com um olhar determinista,
universalista, as coisas acontecem e tudo é bem vindo para que a
relação tome sua própria forma e não uma forma mágica aprendida
em livros de contos de fadas.

Ainda na esteira dos aspectos legais do estágio de convivência, o qual


sucede o período de aproximação, sua efetivação ocorre mediante a concessão do

548
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Termo de Guarda e Responsabilidade aos pretendentes, e concomitante


determinação de acompanhamento psicossocial, a fim de apreender e avaliar a
formação do vinculo afetivo entre os adotantes e a criança ou adolescente.
É neste momento que a aproximação, antes realizada através de
passeios e visitas em finais de semana e em férias, dá lugar à convivência cotidiana,
onde a criança será inserida em nova rotina e novas interações sociais, tanto na
família substituta, como na comunidade.
Resgatando a questão dos prazos estipulados pela recente lei, há
entraves referentes ao acompanhamento do estágio de convivência que parecem
não convergir para a sua efetiva aplicação, como o trâmite processual; a alta
demanda de trabalho no judiciário, a qual acarreta em acúmulo de trabalho; a falta
de envolvimento de alguns profissionais; as próprias vicissitudes que permeiam o
processo de adoção, principalmente aquelas atreladas à adoção de crianças
maiores; as dificuldades das famílias de menor poder aquisitivo em custear
acompanhamentos na rede particular para as demandas vivenciadas no estágio de
convivência; e a precariedade da rede de serviços públicos no suporte à família
adotante e à criança ou adolescente.
Conforme o entendimento de Junior, 2017 o estágio de convivência não
se trata de uma experiência qualquer e sim de uma fase de conhecimento mútuo
compreendido como período de integração entre as pessoas envolvidas no processo
de adoção, visando estabelecer bases sólidas para um relacionamento harmônico
de caráter afetivo.
Nesta perspectiva, quanto mais nova for a criança, melhor será para o
recrudescimento dos laços afetivos, porém, no caso de crianças e adolescentes que
muitas vezes passaram por mudanças drásticas de ambientes familiares, ou
experiências frustradas, ele entende que referido estágio, além de ser mais delicado,
exige uma dilação maior do lapso previsto na lei, justamente para aparar arestas de
relacionamentos infrutíferos e contornar os traumas que abalaram sua formação.
Por outro lado, aponta que o novo prazo estabelecido em lei tem como
fator positivo a redução do tempo previsto no procedimento legal, referindo que os
interessados que invocam a tutela jurisdicional pleiteando a adoção vivem, durante
toda a tramitação do processo, momentos de incertezas e muitas vezes até de

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

insegurança e merecem uma resposta que seja célere, sem, no entanto, prejudicar
as avaliações necessárias para a obtenção da medida.
Para Weber, 2001

Tanto os pais como os filhos adotivos dizem ter sentido dificuldades


durante o processo de adaptação. Os pais relataram que tiveram
mais dificuldades nas questões relativas à educação, pois as
crianças um pouco maiores já possuíam algum discernimento e
sabiam dizer não para algumas coisas e tentavam impor suas
vontades diante de questões que não estavam satisfeitas. Entretanto,
essas dificuldades também podem acontecer com um filho biológico
e correspondem às fases de desenvolvimento em que a criança está
e os pais não vivenciaram a experiência de serem pais desde o
início, pois começaram sua jornada com crianças com vontades e
opiniões.

Considerando a complexidade que envolve o processo de adoção, na


perspectiva da construção de vínculos afetivos e de pertencimento, cabe salientar
alguns aspectos que permeiam o estágio de convivência a partir das observações
de Campos (2016) sobre as experiências das famílias adotantes, principalmente
no que diz respeito à adoção de crianças maiores.
Em seu artigo a referida autora aponta o estágio de convivência como um
período fundamental, necessário para que adotantes invistam no fortalecimento dos
vínculos nesta fase.
Ela ainda considera que o estágio de convivência deve seguir o próprio
ritmo, respeitando a singularidade de adotantes e adotandos e justifica seu
posicionamento comparando a adoção de uma criança maior à uma união conjugal
sucedida de um breve namoro, onde as características pessoais vão sendo
desveladas no cotidiano da convivência, necessitando de investimento em tempo,
dedicação, esforço, paciência e compreensão para que não haja a ruptura do vínculo
conjugal.

Na adoção também é necessário esse investimento e a solução do


divórcio não existe, pois a adoção é irrevogável. Por esta razão, o
estágio de convivência é tão importante e não deve ser apressado,
pois é nele que ambos, adotantes e adotandos, devem se conhecer;
é nele que devem surgir as dificuldades e sondadas as
possibilidades e os desafios que aquela adoção implica.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A partir deste entendimento, a autora elenca algumas características


apresentadas pelas crianças a serem observadas pelos profissionais e adotantes
durante o estágio de convivência, como por exemplo: surgimento de comportamento
regressivo; agressividade, em particular contra a mãe adotiva; aquisição de novos
hábitos, inclusive alimentares; a construção de um “novo eu”; mobilização de
emoções intensas e carregadas de ambivalência; enfrentamento da curiosidade e
preconceito social, dentre outras.
Neste contexto que se renova, avança e retrocede cotidianamente, não se
pode afirmar que todos os envolvidos estarão inteiramente prontos e preparados
para as instabilidades emanadas da convivência, porém, não se deve perder o foco
de que a criança ou o adolescente, por sua condição peculiar de desenvolvimento e
sua vulnerabilidade, é o sujeito mais importante de todo este processo, portanto,
uma adoção somente prosperará com um trabalho de interação contínuo entre todos
os envolvidos, desde os profissionais do judiciário, da rede, adotantes e adotandos.

4 - INDICADORES CRÍTICOS E CONSIDERAÇÕES PSICOSSOCIAIS


ACERCA DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE DURANTE O ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

Neste tópico, pretendemos enquanto grupo de estudos propor alguns


indicadores críticos que, do ponto de vista destes profissionais, devem ser levados
em conta na atuação interdisciplinar de assistentes sociais e psicólogas/os do
Tribunal de Justiça no acompanhamento ao estágio de convivência.
As reflexões construídas coletivamente, no decorrer dos encontros do
grupo de estudos, sinalizam maneiras distintas de intervenções e percepções
variadas quanto à inserção de crianças e adolescentes em famílias substitutas,
durante o estágio de convivência. Nessa perspectiva, acreditamos que a
sistematização das práticas em torno dessas questões norteadoras pode auxiliar na
ampliação da análise quanto ao que vem sendo desenvolvido no cotidiano do
trabalho de assistentes sociais e psicólogos(as) inseridos(as) no Poder Judiciário,
conforme exposto a seguir.

551
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4.1 - CARACTERÍSTICAS SÓCIO-CULTURAIS, ÉTNICAS E DE GÊNERO:

Um primeiro indicador crítico a ser apontado é o que considera a


importância da observação da capacidade de acolhimento às características sócio-
culturais (religiosas, étnicas, de gênero, etc.) dos adotandos tanto por parte dos
adotantes como dos técnicos responsáveis pelo acompanhamento da convivência
entre eles. A bibliografia consultada sobre o tema da adoção e a experiência
profissional aponta que a criança e o adolescente adotivo trazem consigo as
concepções sócio-culturais da família e da comunidade de origem e de outros
agrupamentos aos quais tenha pertencido. Neste sentido, postulamos que
elementos como o sistema de crenças orientadoras dos comportamentos da criança
e/ou adolescente devem ser respeitados e refletidos ao longo de seu
desenvolvimento, no período de aproximação, no estágio de convivência e na
adoção.
Com base em nossa experiência profissional, chama a atenção a
dificuldade de relacionamento entre adotandos e adotantes por vezes observada no
cuidado de crianças e adolescentes que se identificam com determinadas vivências
culturais e étnicas, como é o caso de religiões afro-brasileiras. Refletimos que, nos
casos em que isso é identificado pelos adotantes como algo estranho, o preconceito
e a discriminação podem marcar experiências e resultar na estigmatização 51 que se
desenvolve principalmente em torno da criança e do adolescente, afetando
diretamente o desenvolvimento psicossocial do adotando, a construção das novas
relações familiares e a integração entre os membros.
Dessa forma, consideramos que tais manifestações, quando presentes
em processos de adoção, necessitam de um olhar atento de quem acompanha, para
que crianças e adolescentes não sejam expostos a recorrentes violências e
violações de direitos.
Afirmamos a necessidade do olhar atento por parte de quem acompanha
o processo em consideração aos dizeres de Rufino (2003, p. 40):

A busca pelos assemelhados e a dificuldade de aceitar crianças que


não se encaixem nos padrões da estética vigente no imaginário da

51
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Traduzido por
Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 1975.
552
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sociedade brasileira, são aspectos que têm sido incorporados no


interior das práticas judiciárias, e revelam a intolerância às diferenças
raciais, e a negação à diversidade étnico-cultural.

Assim, ao considerarmos a possibilidade de incorporação nas práticas


judiciárias dessa intolerância e negação, caberia a nós pontuar que os desafios
enfrentados no acompanhamento a estas situações não se limitarão às questões
relativas ao processo adotivo propriamente dito. Entendemos ser necessária a
observação quanto ao aspecto mais amplo do respeito e da interação com a
identidade social e cultural da criança e do adolescente, com os seus costumes e
tradições, bem como com as instituições que o representam, no âmbito da esfera
jurídica como um todo.
As mesmas considerações podem ser feitas no tocante às regras sociais
interiorizadas por essas crianças e adolescentes a partir do contato com a família ou
comunidade de origem, que orientam o envolvimento nos afazeres domésticos e na
educação. Destacamos que em alguns casos de acompanhamento realizado ao
longo do estágio de convivência seria preciso atentar ao contraste entre os valores
com os quais se identificam os adotantes e o reflexo de vivências de situações de
trabalho precarizado, imiscuídas com questões de “afazeres domésticos”, as quais
as crianças e adolescentes foram expostas na família de origem.
É particularmente importante ao acompanhamento dos estágios de
convivência a consideração do histórico de vulnerabilidades as quais essas crianças
e adolescentes foram expostos, dentre elas a responsabilização para o exercício de
tarefas complexas tais como o trabalho voltado ao sustento familiar e o doméstico
(limpeza, organização, preparação de alimentos e o cuidado com irmãos menores),
como se promovidas à condição de adulto.
Sobretudo em alguns contextos ainda há valorização do trabalho infantil,
correspondendo a um papel compartilhado com os adultos e permeado no
imaginário dos sujeitos, pelo “sentido de proteção contra os riscos e descaminhos do
mundo da rua” (Sarti,2011,p.104). Por consequência, é perceptível que algumas
crianças e adolescentes destituídos do poder familiar trazem ainda consigo a crença
de que o desenvolvimento de sua individualidade esteja vinculado à possibilidade de
acesso a bens de consumo e serviços por meio da inserção direta no mundo do

553
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

trabalho, sem contar com a mediação de processos educativos formais e no interior


da família.
A interação entre adotandos e adotantes, suas crenças, culturas e
experiências podem interferir negativamente e/ou potencialmente na construção da
nova família e na forma com a qual os membros se relacionam entre si e com o
mundo. É preciso atenção quanto ao que é sinalizado pela criança e adolescente no
que se refere às regras e ao desempenho de papéis sociais, e cautela quanto à
apresentação de outras possibilidades, cuidando para que as idealizações e
expectativas dos adotantes não prevaleçam sobre a identidade social dos
adotandos.
Pensamos que o desafio nessas situações seja o de recolocar o momento de
experimentação e de escolha a respeito das diversas possibilidades abertas pelos
processos educativos em suas mais diversas formas sem negar a importância da
memória da experiência desta criança e/ou adolescente quanto ao trabalho – com
caráter compulsório em sua família de origem.
Com relação a essa abertura de possibilidades efetivadas pela oferta de
diversas modalidades de processos educativos formais e informais,
profissionalizantes ou não, também se nota a importância da existência da
problematização do desempenho equilibrado das tarefas domésticas e aquelas
relacionadas ao cuidado com o adotando por parte dos adotantes. Isso porque nota-
se a predominância e a persistência da divisão sexual do trabalho e do exercício
excessivamente estereotipado de papéis de gênero nos quais apenas à mulher
caberiam essas ações, enquanto aos homens seriam atribuídas as funções de
provedor e de protetor. Essa problematização estaria a serviço da desmontagem da
articulação entre gênero e sexo genital hegemônica na sociedade patriarcal52, que
acabam por acentuar o interesse mais ou menos precoce com relação à sexualidade
nas crianças.
No contexto da “adoção tardia”, há casos em que se nota a emergência do
interesse precoce pela sexualidade genital nas crianças. Algumas atividades
cotidianas como entrar no banheiro com o adotante de outro sexo, aguça a
curiosidade sexual em querer tomar banho junto, por exemplo. Acreditamos que,
dependendo da capacidade de problematização da relação gênero e sexo genital, o
52
CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. Traduzido por Marília
Moschkovich. São Paulo: nVersos, 2015.
554
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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adotante possa demonstrar maior habilidade para lidar com essa situação sem
transparecer excessivo constrangimento.
Também é possível notar em algumas situações o contraste entre o momento
da preparação do adotante para o contato com o adotando, em que fora cogitada a
possibilidade de que o adotando tivesse presenciado relações sexuais no contexto
de sua família de origem e que isso resultasse em manifestações precoces da
sexualidade, e a reação de repulsa quando efetivamente essas manifestações
ocorrem durante o estágio de convivência.
No caso de adolescentes, os adotantes podem se defrontar com o desafio
de lidar com as vivências de sexualidade no contexto da família de origem, podendo,
inclusive, terem ocorrido precocemente durante a infância.
Em todos esses casos, a capacidade demonstrada pelos adotantes em
lidar com a própria sexualidade da forma mais espontânea possível parece ser um
indicador importante de um bom manejo dessas situações junto aos adotandos.

4.2 - A PRESERVAÇÃO E (RE) CONSTRUÇÃO DA HISTORIA E MEMÓRIAS DAS


CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Embora os postulantes a adoção recebam orientações quanto à


importância da revelação e preservação da criança, acerca de sua história, há
barreiras que dificultam a reconstrução da historia. Uma vez iniciada a aproximação
e o estágio de convivência torna-se importante observar a capacidade dos adotantes
de ressignificar a memória que crianças maiores e adolescentes possuem sobre
suas vidas antes da convivência com aqueles, à medida que os adotandos tenham o
desejo de expressar lembranças, sejam elas positivas ou negativas. Oaklander
(1980) entende que as crianças mais velhas possuem uma bagagem de memórias
relacionadas a pessoas, acontecimentos, e instituições, as quais são vivenciadas em
diferentes contextos no decorrer de sua trajetória de vida. Ao serem adotadas, estas
memórias afetivas demandam um direcionamento diferente e em determinadas
oportunidades, auxílio pra elaboração e organização.
Oaklander (1980) analisa que, no curso do desenvolvimento

as crianças fazem o que podem para ir em frente, para sobreviver. A


investida das crianças é em direção ao crescimento. Em face de
ausência ou interrupção no funcionamento natural, elas adotam
555
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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algum comportamento que parece servir para fazê-las avançar. Elas


poderão agir de modo agressivo, hostil, irado, hiperativo. Poderão se
recolher para mundos de sua própria criação. Poderão falar o mínimo
possível, ou talvez nada. Poderão vir a ter medo de todo mundo e de
tudo, ou de alguma coisa em particular que afeta sua vida e a todos
com ela envolvidos. Poderão se tornar exageradamente solícitas e
“boazinhas”. Poderão se apegar de forma irritante aos adultos em
suas vidas. Poderão fazer xixi, cocô nas calças, ter asma, alergias,
tiques, dores de barriga, dores de cabeça, acidentes. Não há limites
para o que a criança pode fazer na tentativa de atender às suas
necessidades.

Isso mostra como no contato com adultos - novos personagens em suas


vidas - as crianças podem se proteger a partir de evitar questões de suas vivências
pessoais que lhes sejam dolorosas, regredindo em seu desenvolvimento, tornando-
se inibidas ou mesmo engajando-se em comportamentos de agressividade ou birra,
buscando atenção inapropriada de seus adotantes. Estas respostas infantis podem
emergir durante estágios de convivência trazendo dificuldades às pessoas e
precisam ser abordadas pelos profissionais do serviço social e da psicologia a fim de
não permitir que o processo de adoção seja solapado na sua fase de convivência,
por estas barreiras do desenvolvimento humano.
Nesse sentido, talvez se possa propor que a adoção seja considerada
como processo que contrasta perdas e ganhos da criança e do adolescente na
relação com a família adotante. A vantagem dessa imagem é a de que deixamos de
idealiza-la como se fosse sempre a melhor saída a garantir o melhor interesse do
adotando diante de situações trágicas vivenciadas por eles em sua família de
origem.

4.3 - CAPACIDADE DE REVELAÇÃO/DIÁLOGO ENTRE ADOTANTES E


ADOTANDOS

No cotidiano de trabalho dos profissionais que integram este grupo de


estudos, ainda é possível observar adotantes que enfrentam dificuldades
significativas para compreender e aceitar os conteúdos trazidos diretamente por
crianças e adolescentes, manifestando receios e preconceitos perante os elementos
que representam e pertencem a história de vida dos adotandos. Aparentemente, por
alguns adotantes, há uma busca por anular ou fragmentar as experiências do

556
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adotando, aquelas anteriores ao contato com a família adotiva. Como se a história


do sujeito fosse dividida entre “antes e depois” da adoção.
Embora a citação de Camargo (2005, p.160) seja direcionada para a
temática da “manutenção do segredo versus revelação” às crianças adotivas sobre
sua real condição e história, aqui será absorvida também para refletir sobre o que
pode perpassar no imaginário dos adotantes:

...reforçamento e corroboração da função duplamente protetora do


segredo: proteger o filho adotado de seu passado de rejeição,
negligência, abandono, etc., e proteger os pais de possíveis e
inquietantes indagações quanto ao que há de estranho em sua
família (filhos com caracteres raciais diferentes, por exemplo).
Contudo, nos leva a postular sobre a existência de uma outra função,
subjacente à de proteção: a função de exclusão. Enquanto a força do
mito da revelação ainda estiver influenciando a decisão de
postulantes à adoção, muitas crianças permanecerão alijadas de seu
direito à família...

Nesta toada, podemos supor que a falta de manejo ou precariedade no


contato dos adotantes com a história e as memórias trazidas pela criança no
cotidiano do convívio familiar; o apagamento das origens dos adotandos e as
representações sociais que percorrem o imaginário das famílias adotivas atravessam
e interferem na consolidação do direito à família, dessas crianças e adolescentes.
O exercício da maternidade, paternidade e filiação requer o
reconhecimento do outro (adotando), enquanto sujeito de direitos, possuidor de sua
história, com a presença mínima de condições de acolhimento por parte dos
adotantes em relação aos conteúdos trazidos pelas crianças e adolescentes.
Aspectos que se não se tornarem evidentes no período de avaliação para a inserção
dos postulantes ao Cadastro Nacional de Adoção, podem transparecer durante a
aproximação e o estágio de convivência.

4.4 - CARACTERÍSTICAS E O VÍNCULO COM A FAMÍLIA DE ORIGEM E A


RELAÇÃO COM O GRUPO DE IRMÃOS

Já tratamos sobre a importância da preservação da memória pessoal e


dos valores assimilados pelo adotando junto a sua família de origem, durante a
convivência anterior ao processo de destituição do poder familiar. Além desses

557
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aspectos, também se considera importante que os técnicos responsáveis pelo


acompanhamento ao estágio de convivência conheçam a característica organizativa
daquele grupo familiar e o vínculo existente com o grupo de irmãos, transmitindo aos
adotantes aspectos importantes desses elementos conhecidos.
Neste sentido, entender se se trata de uma família monoparental
numerosa ou não; com o poder investido em uma figura masculina ou feminina;
convivente com pessoas idosas mais ou menos investidas de autoridade junto ao
núcleo familiar; e com irmãos que compartilham os mesmos genitores ou apenas um
deles podem ser elementos importantes partilhados com os adotantes, no sentido de
que os mesmos tenham informações que ajudem a ampliação da tolerância para
com o adotando e da compreensão de alguns de seus comportamentos.

4.5 - O TEMPO DEMANDADO PELAS DECISÕES JUDICIAIS

A legislação em vigência no Brasil aponta que a adoção de crianças e


adolescentes requer como antecedente a destituição do poder familiar dos genitores
biológicos. Mediada por processos e decisões judiciais que não impedem que
crianças e adolescentes tenham acesso ou conheçam sua origem biológica,
sobremaneira proporcionam uma suposta garantia de segurança jurídica e
estabilidade à relação. Contudo, muitas experiências sinalizam para processos de
destituição do poder familiar, complexos e com duração alongada, seja por
procedimentos e trâmites jurídicos necessários e por vezes mínimos para atender ao
real interesse da criança e do adolescente, e/ou por excessiva demanda de trabalho
à instituição judiciária, comprometendo a proteção da infância e juventude, dentre
outros aspectos.
Por vezes, concomitante e/ou subsequente aos processos que tratam da
destituição do poder familiar dos genitores biológicos está a adoção.
Destaca-se a condição das crianças e adolescentes que iniciam o
convívio com possíveis famílias substitutas, sem o vínculo de filiação rompido e com
situação jurídica e processual indefinida. Tais práticas são presentes em parte das
comarcas em que atuam os profissionais que subscrevem este documento.
Nota-se, nos acompanhamentos realizados e observados, que a
maternidade, paternidade e filiação se harmonizam com o passar dos anos, através
da manifestação de variados movimentos de constituição da família. Há uma
558
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preocupação das equipes técnicas quanto ao encurtamento dos prazos previstos em


legislação para a duração do estágio de convivência, considerando a complexidade
das relações humanas.
Esses técnicos se veem, portanto, numa encruzilhada entre desejar que
os processos sejam menos morosos do ponto de vista do funcionamento legal e
preservar o espaço de tempo necessário, variável em cada estágio de convivência,
para que se possa estabelecer com maior segurança uma posição técnica favorável
ou não à adoção.

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao escolher o tema Adoção de Crianças Maiores, o grupo de estudos II


deparou-se com uma diversidade de questões que permeiam o universo da adoção
como medida de proteção destinada a crianças e adolescentes. Neste artigo,
consideramos os diferentes níveis de demandas jurídicas, sociais e psicológicas,
dentre outras e suas repercussões para a efetivação da adoção, principalmente de
crianças maiores ou adolescentes.
Observamos que enquanto medida de proteção, a adoção evoluiu ao
longo dos anos, deixando de ser um instituto que visava atender ao interesse de
uma família sem filhos, para atender prioritariamente o direito de crianças e
adolescentes de se desenvolverem em família.
Considerando a complexidade que envolve a convivência familiar seja ela
biológica ou substituta, a preocupação do ponto de vista técnico é que na intenção
de garantir às crianças e adolescentes o direito de serem parte de um lar, frente as
mudanças trazidas pela recente lei, no que se refere ao prazo de convivência, a
qualidade do vínculo afetivo entre pais e filhos venha ser relegada, deixando assim
de atender ao melhor interesse daqueles.
É possível pontuar, que se por um lado as mudanças na legislação
beneficiam crianças maiores pela celeridade dos prazos, por outro a mesma
celeridade pode dificultar o sucesso das adoções devido ao encurtamento do tempo
a ser dedicado ao estágio de convivência. Este último considerado pelo grupo de
grande relevância para o sucesso das adoções de crianças maiores.

559
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Apesar das sugestões e indicativos sobre como acompanhar adotantes e


adotandos durante o estágio de convivência, entendemos ser necessário ponderar
caso a caso. Quanto ao estreitamento dos prazos, somente saberemos se as
mudanças ocorridas na legislação trarão benefícios às crianças e adolescentes
através de um trabalho articulado, envolvendo todos os que atuam e reconhecem o
processo da adoção como medida protetiva.

560
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REFERÊNCIAS

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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2003, 9ª impressão 2014, Editora Juruá;

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564
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DIFERENTES OLHARES SOBRE A (DES)PROTEÇÃO À


INFÂNCIA E JUVENTUDE: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS E
VIVÊNCIAS PRÁTICAS NO TJSP

GRUPO DE ESTUDOS DE RIBEIRÃO PRETO


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018
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COORDENAÇÃO

Camila Ferreira Messias Lelis – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Pitangueiras
Vitor Alex Salermo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirangi

AUTORES

Ana Luisa Forti Vaz de Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sertãozinho


Angélica Cristina de Oliveira Micheletti de Andrade – Assistente Social Judiciário –
Comarca de Itápolis
Carla Andreza Kelade Mezzina – Assistente Social Judiciário – Comarca de Porto
Ferreira
Cristiane Ferreira Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Eliana Binhardi Zanineli da Rocha – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sertãozinho
Gilza Lepri Inacio Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de Américo
Brasiliense
Heloisa Chaves Nascimento de Oliveira – Assistente Social Judiciário – da Comarca
de Ribeirão Preto
Juliana Bezzon da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Leniane Facci – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cajuru
Maria Ester Viela Somera Carossi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Rita
do Passa Quatro
Maria Luisa da Costa Fogari – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Rita
do Passa Quatro
Poliana Maria Albrechet – Assistente Social Judiciário – Comarca de Monte Alto
Priscila Aparecida Marchioli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Priscila Mara de Araújo Gualberto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Porto
Ferreira
Priscila Paula Vieira de Medeiros – Psicóloga Judiciário – Comarca de Altinópolis
Richele Ramos da Fonseca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guariba
Tatiane Patricia Cintra – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho

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DEDICATÓRIA

Às crianças, aos adolescentes e às suas famílias, cotidianamente


atendidas por estes profissionais, que desvelam suas vidas e suas intimidades, seja
na expectativa da ajuda ou na insegurança perante autoridade. São essas relações
ambíguas que geram o nosso incômodo e a tentativa de desenvolvimento de um
trabalho mais crítico e ético.

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AGRADECIMENTOS

À equipe multiprofissional do Serviço de Atendimento às Vítimas de


Violência Doméstica e Agressão Sexual – SEAVIDAS e à psicóloga Sheila Soma,
pela participação como palestrantes convidados em nossos encontros. Obrigada
pela parceira e diálogo profícuos!

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INTRODUÇÃO

Na realidade de Ribeirão Preto e região, as demandas de trabalho dos


assistentes sociais e psicólogos judiciários têm envolvido muitas questões
relacionadas ao que entendemos por (des)proteção: a amplitude de seu conceito, os
diferentes arcabouços teóricos que abarcam o tema, os desafios para a identificação
e definição dos fatores que se compõem enquanto risco ou proteção à família, e as
práticas institucionais voltadas à sua efetivação.
Quais os critérios que permitem afirmar que uma criança está sendo
protegida? Como compreender os fatores de proteção e os fatores de risco nas
possibilidades de trabalho no Fórum como psicólogas e assistentes sociais? As
medidas protetivas de fato protegem?
A partir dessas questões, este trabalho teve o objetivo de apresentar as
apreensões e reflexões fomentadas ao longo dos encontros do Grupo de Estudos de
Ribeirão Preto em 2018 sobre o tema “Risco e Proteção à Infância e Juventude”. A
construção das reflexões deste trabalho se deu de forma coletiva, sedimentado a
partir de leituras e debates de textos e produções previamente selecionados pelos
participantes, bem como a partir dos relatos e debates de experiências concretas no
cotidiano profissional no que diz respeito à temática.

1- DESENVOLVIMENTO

O conceito de proteção possui inúmeras vertentes. Ele é definido na


ciência psicológica, na atuação do Serviço Social e da Psicologia, nas políticas
públicas (por exemplo, Sistema Único de Assistência Social - SUAS, Sistema Único
de Saúde - SUS), na legislação (Constituição Federal - CF, Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA), caracterizando-se por inúmeros olhares sobre o tema.
Além disso, o conceito de proteção também pode abranger diferentes
níveis de análise, por exemplo, quando se fala em proteção social no capitalismo,
como uma política de organização socioeconômica (Welfare State, etc.) até ao
analisar um contexto microssocial de violência intrafamiliar. Dentre essas diferentes
abrangências, é possível identificar espectros de proteção/risco intrinsecamente
associados a características do contexto social, pessoal/subjetivo, cultural, étnico,

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econômico, político, geográfico, histórico em que a problemática se desenrola e é


analisada.
Ao longo deste texto, serão apresentados alguns aspectos do histórico da
proteção à infância no Brasil, algumas possibilidades de conceitualização de
proteção, o debate sobre a dificuldade no estabelecimento de critérios para
identificação de fatores de risco e/ou proteção, reflexões sobre os discursos e
práticas relacionados à proteção no exercício profissional como assistentes sociais e
psicólogas do Poder Judiciário e, por fim, um debate pautado na análise de casos a
partir das discussões teóricas.

1.1 - A PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO BRASIL

No histórico da elaboração da Constituição de 1988, delineou-se um


desenho imaginário de país que ainda não representa a realidade concreta da
sociedade brasileira (VALENTE, 2013). Há descrença da população na CF e no
ECA, porque tais legislações sobre o direito da criança e do adolescente são
enfraquecidas na prática.
Entretanto, Valente (2013) provoca a reflexão sobre a importância da
Constituição Federal de 1988 pelo fato de ter possibilitado não apenas a concessão,
mas também os meios para a garantia e a efetivação dos direitos sociais, por meio
da materialidade dos seguintes instrumentos jurídicos: mandado de segurança
coletivo, mandado de injunção, ação popular, denúncia de irregularidades
diretamente ao Tribunal de Contas da União, e ação direta de inconstitucionalidade.
Assim, essa CF permitiu a relação direta entre o cidadão e suas
associações e o Poder Judiciário, contribuindo para o aumento de proposituras de
ações que visem à defesa dos direitos difusos e coletivos (VALENTE, 2013). Esse
caráter dirigente da CF possibilita maior articulação e integração do sistema de
garantia de direitos nas esferas federal, estadual, distrital e municipal.
No que se refere à proteção especial destinada às crianças e
adolescentes, essa ideia foi enunciada pela primeira vez na Declaração de Genebra
sobre os Direitos das Crianças em 1924 (VALENTE, 2013). No histórico de
regulamentação dos direitos das crianças e adolescentes no mundo, destacam-se a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que incluiu implicitamente
direitos e liberdades de crianças e adolescentes, e a Convenção sobre os Direitos da
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Criança, aprovada em 1989 na Assembleia Geral da Organização das Nações


Unidas (ONU) e que regulamentou um conjunto de direitos fundamentais (civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais) abrangentes a todas as crianças. Na
época de publicação dessa Convenção, o Brasil estava vivenciando as repercussões
do movimento pós-constituinte, tornou-se seu signatário e instituiu o ECA em 1990.
A agenda nacional atual para a proteção dos direitos da criança e do
adolescente reitera o desafio de efetivar no ECA os direitos sociais das crianças e
adolescentes previstos no artigo 227 da CF de 1988 e os compromisso acordados
na Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, em um ambiente que
historicamente acostumou-se a tratar as crianças e os adolescentes de maneira
fragmentada e que ainda vivencia conflitos teóricos, conceituais e práticos para lidar
com as demandas da infância e da adolescência.
Nesse contexto, o modelo de proteção social brasileiro apresenta
elementos controversos na caracterização e possíveis soluções para sua efetivação.
Com a redemocratização do país no final do século XX, por meio da CF de 1988 e
legislações decorrentes, observou-se uma guinada da política de assistência social
como integrante da política de seguridade social do país. A proteção social passou a
ser um direito de todo cidadão brasileiro, determinando-a como bem público e social
do estatuto de uma sociedade que se propõe a dar cobertura a todos os seus
membros (VALENTE, 2013). Avança-se de uma perspectiva assistencialista a uma
proposta de política pública pautada no princípio da proteção social como direito.
A proteção social pode ser definida como formas institucionalizadas
constituídas pelas sociedades para proteger parte ou o conjunto de seus membros,
instituindo sistemas de proteção em decorrência de vicissitudes da vida natural ou
social, por exemplo, doenças, privações (materiais e culturais), infortúnios,
necessidades específicas de determinados momentos do desenvolvimento do
indivíduo (infância, adolescência, gestação, velhice) (VALENTE, 2013).
A efetivação da proteção social envolve a consideração das
singularidades dos indivíduos, suas circunstâncias sociais e seu núcleo de apoio
cotidiano. Para isso, é necessário o desenvolvimento de maior capacidade de
aproximação ao dia-a-dia dos indivíduos, pois é na vida diária que os riscos e as
vulnerabilidades se materializam. Assim, as seguranças de sobrevivência (renda e

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autonomia), de acolhida e de convivência familiar, comunitária e social devem ser


garantidas (VALENTE, 2013).
Valente (2013) define vulnerabilidades como o conjunto de situações de
precariedade, para além das condições socioeconômicas, no qual se deve levar em
consideração a composição demográfica da família, as relações cotidianas de vida,
os agravos à saúde, a gravidez precoce, a exposição a situações de violência. A
autora afirma também que risco social pode ser definido como uma grave ameaça
ou um perigo iminente, constituindo-se em evento que traz consequências diretas
para as condições e circunstâncias da vida dos indivíduos e de suas famílias. O risco
social representa a ruptura do pertencimento, pois rompe os laços de sociabilidade
devido ao comprometimento de capacidade do indivíduo ou grupo de assegurar por
si mesmo sua independência social. Representa a ruptura do vínculo societal, da
participação social e do usufruto da riqueza socialmente construída, ocasionando a
violação dos direitos e da dignidade humana. (VALENTE, 2013).
Riscos e vulnerabilidades não resultam de uma problemática individual,
mas decorrem de um conjunto de desigualdades estruturais, socioeconômicas e
políticas, atreladas à ausência de proteções sociais (VALENTE, 2013). Importante
considerar que um único elemento estressor não necessariamente impacta de
maneira contundente o desenvolvimento de um indivíduo. Já a combinação de dois
ou mais estressores pode vir a diminuir a possibilidade de consequências positivas
no desenvolvimento (Machado, 2004). Além disso, cabe considerar que os mesmos
estressores são experienciados de maneiras diferentes por pessoas diferentes. Uma
reflexão importante é a perspectiva de identificar as condições de desenvolvimento e
discutir sobre a ideia da não universalidade dos fatores de risco e de proteção
(Machado, 2004).
A exposição de crianças e adolescentes em situação de risco social e
pessoal insere-se no debate da desigualdade de direitos em nossa sociedade. A
questão da institucionalização das crianças vem sendo tomada como medida de
proteção muitas vezes antes da efetivação de serviços de proteção básica e de
proteção especial de média complexidade. O longo período de institucionalização
pode ser resultado da perpetuação dessas desigualdades. O acompanhamento
psicossocial no judiciário dos processos de acolhimento institucional vem
demonstrando indícios de que as ações levantadas como medidas de proteção

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representam, em contrapartida, rupturas de vínculos e desproteções, pois muitas


vezes repercutem em implicações da institucionalização no desenvolvimento da
criança.
As medidas protetivas objetivam garantir o cumprimento dos direitos de
crianças e adolescentes quando houver ameaças ou violações a esses direitos e são
restritas a situações de atuação do poder público de maneira excepcional na vida
dessas crianças ou adolescentes e suas famílias (VALENTE, 2013). Tais medidas
possuem um caráter socioeducativo, pautado no princípio do desenvolvimento amplo
das potencialidades dos sujeitos e da emancipação humana. A aplicação de
medidas de proteção à criança e ao adolescente exige análise detalhada do caso e o
trabalho em rede para não incorrer em ações impulsivas, pejorativas,
preconceituosas, excludentes e discriminatórias. Valente (2013) aponta que para
atingir sua finalidade como medida protetiva de caráter socioeducativo, deve-se
nortear pelos seguintes princípios: compreensão da diversidade cultural de cada
povo, comunidade ou família; compreensão da perspectiva pedagógica no campo da
proteção; capacidade de conjugar a finalidade pedagógica com o fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários, o que pressupõe o rompimento da cultura de
institucionalização como inerente à ação protetora, mesmo nos casos de urgência; e
observância aos princípios previstos no parágrafo único do artigo 100 do ECA
(condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos; proteção integral e
prioritária; responsabilidade primária e solidária do poder público; interesse superior
da criança e do adolescente; privacidade; intervenção precoce; intervenção mínima;
proporcionalidade e atualidade; responsabilidade parental; prevalência da família;
obrigatoriedade da informação; oitiva obrigatória e participação).
Algumas regiões podem apresentar altos índices de aplicação de medidas
de proteção decorrentes fundamentalmente da ausência ou escassez de políticas
públicas efetivas e/ou abrangentes. Nesses casos, é pertinente a análise dessa
contextualização pelos serviços e autoridades que compõem o Sistema de Garantia
de Direitos da Criança e do Adolescente com vistas à efetivação de ações do poder
público para a garantia dos direitos individuais e coletivos (VALENTE, 2013).
Ainda no que se refere ao modo como a realidade brasileira vem
operando legalmente e socialmente a proteção à criança e ao adolescente, refletiu-
se sobre as incompatibilidades entre algumas legislações, que ora visam proteger a

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criança sob uma vertente e ora visam protegê-la com base em outra, provocando
indícios de ambiguidades no próprio conceito de proteção e sua efetivação. Um
exemplo é a análise relacional entre a lei que estabeleceu a prioridade para a
atribuição da guarda compartilhada e a lei que prevê a identificação e
responsabilização em casos de alienação parental. Por um lado, observa-se a
tentativa legal de preservação dos vínculos parentais de maneira minimamente
igualitária e, por outro lado, observa-se a aplicação de uma normativa legal que
aprecia o conflito parental de uma perspectiva maniqueísta na qual um dos genitores
é apontado como bom e o outro como ruim para a criança ou o adolescente,
podendo promover distorções na compreensão da dinâmica familiar.
Outro exemplo seria a perspectiva de proteção apontada no título II do
ECA (Das medidas de proteção) em relação à lei 13.431/2017, que estabelece o
sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de
violência. Nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes é emergente
a polêmica com relação à condução das intervenções para vítimas e testemunhas, já
que por um lado está prevista a proteção integral por meio do encaminhamento para
atendimento psicossocial especializado e atendimentos de saúde, em uma
perspectiva não revitimizante e de superação da violência e, por outro lado, a
obrigatoriedade da oitiva da criança ou do adolescente em juízo para criminalização
do abusador, em uma perspectiva punitiva e raramente focada na elaboração
emocional da criança sobre a violência sofrida.
As reflexões sobre o histórico da proteção à criança e ao adolescente no
contexto brasileiro provocaram a compreensão da proteção social como um direito,
conforme preconiza a CF em vigor. Emerge a necessidade de considerar as
demandas de um coletivo, como um todo articulado em suas singularidades
culturais, sociais e históricas, e nas especificidades de alguns de seus membros que
exigem atenções particulares, como nos casos das demandas de crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos em situação peculiar de desenvolvimento.

1.2 - CONCEITUALIZAÇÃO DE PROTEÇÃO E A DIFICULDADE NO


ESTABELECIMENTO DE CRITÉRIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DOS FATORES DE
RISCO E PROTEÇÃO

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O termo proteção apresenta uma complexidade em sua conceitualização


e exige a análise de aspectos variados e inter-relacionados, que, se não
profundamente compreendidos, pode implicar na desconsideração de inúmeras
questões relacionadas ao cotidiano das crianças e adolescentes sob intervenção do
poder público quando aplicadas medidas tutelares e/ou judiciais. Portanto,
questiona-se a existência de critérios mais específicos para a definição de fatores de
proteção e fatores de risco. A tentativa de definição desses critérios poderia
contribuir para minimizar o efeito de preconceitos, de atitudes pautadas no senso
comum, de ações impulsivas, pouco refletidas, e da análise moralista e/ou pejorativa
dos casos.
No que se refere à compreensão dos fatores de proteção, Machado
(2004) aponta que devem ser consideradas as complexas relações entre: atributos
do próprio indivíduo (ex.: competência social, cognição, etc.); condições familiares
(ex.: relacionamentos positivos); e condições relacionadas ao ambiente mais amplo
(ex.: características da comunidade, escola, vizinhança, rede de recursos
disponíveis e suporte afetivo e emocional). Sapienza e Pedromônico (2005)
apresentaram como fatores de proteção aqueles associados aos recursos individuais
que reduzem o efeito do risco. Os mecanismos de proteção são caracterizados pela
presença de suporte social e autoconceito positivo. Segundo os autores, múltiplos
fatores protetores promovem a resiliência, ou seja, a tentativa de superação de
situações de risco. A supervisão parental e a participação dos pais nas atividades
escolares foram identificadas como fatores protetores importantes para a prevenção
de riscos na infância e na adolescência. Os fatores de proteção individuais são:
cuidados estáveis, habilidade para solução de problemas, qualidade do
relacionamento com pares e adultos, competência, eficácia, identificação com
modelos competentes. A capacidade de proteção deve ser estendida às variáveis
circunstanciais, principalmente os vários níveis de suporte social. Os mecanismos de
proteção representam a interação entre fatores de complexidade, portanto, não
podem ser analisados isoladamente.
A análise dos fatores de proteção aponta que eles são preditivos de
resiliência e adaptação, enquanto que os fatores de risco não são preditivos para a
apresentação de desordens. Isso implica compreender que se podem analisar
fatores de proteção como aspectos que oferecem indícios de recursos do indivíduo

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ou grupo social para o enfrentamento de vicissitudes e a adaptação a


vulnerabilidades, mas os fatores de risco não podem ser analisados na perspectiva
de preverem o desenvolvimento de desordens ou inadequações do indivíduo ou
grupo na sociedade.
Machado (2004) identificou que os fatores de risco e os fatores de
proteção encontram-se estreitamente relacionados ao conceito de resiliência,
considerado relativamente novo. Define resiliência como a capacidade humana de
enfrentamento e fortalecimento diante da adversidade. Trata-se de um construto
ainda em formação. O uso não refletido do conceito de resiliência pode provocar
compreensões nocivas de que se trata de uma qualidade associada à
invencibilidade do indivíduo, em uma perspectiva individual, que dificultaria a
implementação de políticas e intervenções transformadoras do sistema social que
busquem diminuir as desigualdades de oportunidades de desenvolvimento.
O conceito de resiliência ainda se mistura ao de fatores de proteção. A
resiliência muitas vezes está relacionada a fatores protetores individuais que
predizem consequências positivas em indivíduos expostos a um contexto de risco.
Machado (2004) nos provocou a questionar uma visão de resiliência como conceito
definido e consensual. A autora ajuda a desconstruir a visão de que a Psicologia do
Desenvolvimento é convergente, ao questionar os estudos que analisam contextos
de adversidade de modo pejorativo e a resiliência como invencibilidade. Além disso,
permitiu a reflexão de que fatores de risco e fatores de proteção são atributos de
complexas interações. Pode-se pensar inclusive que estão relacionados a aspectos
culturais e subjetivos.
Os fatores de risco podem ser compreendidos como eventos negativos de
vida, circunstâncias ou variáveis relacionadas com menores chances da ocorrência
de resultados sociais desejáveis. Quando presentes, os fatores de risco podem
aumentar as probabilidades de problemas físicos, sociais ou emocionais no indivíduo
(MACHADO, 2004). Sapienza e Pedromônico (2005) apresentam como definição
consensual de fatores de risco as variáveis ambientais (genéticas, biológicas e
psicossociais) que elevam a probabilidade da ocorrência de algum efeito indesejável
no desenvolvimento do indivíduo.
A vulnerabilidade implica em estressores biológicos e psicossociais. Os
fatores que tornam um indivíduo vulnerável são: prematuridade, desnutrição, baixo

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peso, lesões cerebrais, atraso no desenvolvimento, desordem familiar ou social,


minoria social, desemprego, pobreza, dificuldade de acesso à saúde e à educação,
entre outros. Além desses fatores, há os riscos genéticos, muitas vezes possíveis de
identificação em contexto clínico pela caracterização de familiares com desordens
afetivas, esquizofrenia, desordens antissociais, hiperatividade, déficit de atenção e
isolamento. A adolescência pode ser compreendida por si só como um período de
vulnerabilidade.
Segundo Sapienza e Pedromônico (2005), as variáveis que
individualmente podem ser consideradas risco na infância e na adolescência são:
síndrome pós-trauma, depressão, ansiedade, estresse, distúrbios de conduta ou de
personalidade, evasão escolar, gestação precoce, problemas de aprendizagem, uso
de drogas, violência familiar, desagregação familiar, violência física, abandono,
maus-tratos, entre outras. Nesse rol de variáveis, é preciso identificar os
comportamentos tidos como universais a essa fase do desenvolvimento e os
comportamentos que se expressam de maneira individual, o que contribui para a
análise dos aspectos sociais e de como os indivíduos repercutem esses aspectos no
seu cotidiano.
Quando muitas situações de risco se associam, elas dificultam o
cumprimento da agenda desenvolvimental, a aquisição de habilidades e o
desempenho de papéis sociais. Por isso, a importância em se prever fatores de risco
não está tanto relacionada ao prognóstico ruim, mas principalmente em demonstrar
a necessidade de intervenção precoce e de ser capaz de intervir quando for preciso.
Assim, ao invés de analisar os riscos isolados, é preciso compreender os
mecanismos de risco.
Sapienza e Pedromônico (2005) apontam que os elementos estressores,
ou fatores de risco, raramente se apresentam como eventos isolados, constituindo
um ambiente complexo e que, quando se associam diversos desses elementos em
interligações, pode-se resultar em um mecanismo de risco que influencia
diretamente o indivíduo. As autoras trazem uma abordagem macroanalítica
dissolvida no microssocial, argumentando que a sociedade produz as condições de
vulnerabilidade (SAPIENZA; PEDROMÔNICO, 2005). Portanto, se não houver uma
análise dos mecanismos de risco para a gestão pública da sociedade em uma

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perspectiva preventiva, o trabalho do sistema de garantia de direitos da criança e do


adolescente continuará correspondendo à metáfora de enxugar gelo.

1.3 - DISCURSOS E PRÁTICAS DE (DES)PROTEÇÃO

Na rede complexa de atuação, com delicadas análises, escolhas de


palavras para laudos e relatórios, e modos de interação com os usuários dos
serviços, não é muito difícil que o lugar do profissional de Psicologia e de Serviço
Social nos Tribunais de Justiça seja compreendido como atrelado ao punitivismo. Na
sociedade ocidental pós-industrial, a penalização ou o controle sobre o indivíduo
passaram a ser direcionados não apenas àqueles que infringiram a lei, mas também
às pessoas cujas vidas estão permeadas por problemáticas sociais estruturais
(FÁVERO, 2007). É preciso estar o tempo todo atento para não se perder de vista a
perspectiva de atendimento ético e garantidor de direitos, pois a lógica da proteção é
muitas vezes subsídio para um sistema de controle (ALVES, 2013).
A imagem da “infância em risco” é um clichê que possibilita sustentação
dessa prática e fundamenta a ideia de proteção, que pode esvaziar as
potencialidades dos indivíduos diagnosticados como com necessidade de proteção e
desqualificar suas experiências e sua capacidade de se reinventar e ressignificar,
restando que se curvem às orientações que recebem dos profissionais que
supostamente sabem mais do que eles (ALVES, 2013). É preciso cuidado para que
a prática profissional de assistentes sociais e psicólogos no âmbito judiciário não
incorra na exclusão da cidadania das pessoas atendidas em processos da Vara da
Infância e Juventude.
No debate sobre a atuação profissional como peritos no Poder Judiciário,
Fávero (2007) aponta que a ação de um especialista em determinados saberes
ocorre por meio do recurso a outras áreas do conhecimento no âmbito do judiciário
para a busca de uma maior aproximação à “verdade”. Nessa seara, há, portanto, o
poder oficializado, conferido legitimamente ao juiz de direito, pelo papel institucional
que ele ocupa, e o poder dos especialistas, conferido a esses devido aos saberes
que supostamente eles detêm (FÁVERO, 2007). Trata-se de um poder duplo,
composto pela vertente formal (institucional) e profissional (saber-poder).

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O saber-poder, ou seja, o poder pelo saber do especialista, pode ser


direcionado para perspectivas diametralmente opostas, quais sejam: para a garantia
de direitos dos sujeitos envolvidos na ação, configurando-se como uma resistência à
opressão; ou como forma de controle social e disciplinamento, de cunho moralizante,
culpabilizando individualmente e se configurando como o controle da disfunção
emocional ou social.
Fávero (2007) e Alves (2013), autoras estudadas sobre essas questões,
basearam-se na perspectiva foucaultiana para uma compreensão da sociedade
capitalista ocidental pós Revolução Industrial como essencialmente disciplinar, em
que as disputas de poder cotidiano (lutas, jogos, correlações de força, estratégias)
podem representar formas de resistência que possibilitam a construção de novas
práticas profissionais cotidianas. Alves (2013) apresenta que a perspectiva teórica
de Foucault propõe a ideia do jogo da verdade, que seria um conjunto de regras, no
interior dos discursos, que realizam uma vontade de verdade, ou seja, a
possibilidade de um discurso remete à designação do que pode ser sujeito e objeto
desse discurso. Essa ideia foi introduzida no sistema de justiça por meio do
testemunho. Trata-se de sistemas (racionais – científicos) de prova e respectiva
demonstração que produziram as condições e as regras, aplicadas para o
surgimento da verdade e como desdobramento da arte de persuadir, que é o poder
de convencer alguém da verdade que é dita. Como segundo momento do jogo da
verdade, o inquérito seria a reedição de outra forma de conhecimento, uma invenção
de formas e possibilidades de saber.
Na sociedade ocidental disciplinar, na perspectiva de Foucault, predomina
a racionalidade sobre a verdade, que constituiu a sofisticação da técnica do exame.
Na prática do exame, tudo é pesquisado e analisado, com objetivo de uma sanção
normalizadora, ou seja, de corrigir e trazer o indivíduo à norma, que impõe a
homogeneidade e individualiza a diferença (ALVES, 2013).
O controle efetivo sobre o cotidiano das pessoas é mantido pelo triunfo do
discurso científico da racionalidade, no qual a individualidade é documentada na
prática do exame. Com isso, torna-se inevitável a predominância de uma perspectiva
de patologização do indivíduo, ora como doente, ora como inadequado, ora como
em risco ou vulnerável. Assistentes sociais e psicólogos judiciários estão imersos
nesse sistema e podem vir a exercer o saber-poder examinando indivíduos nessa

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lógica e despersonalizando-os. Fica a questão: será que a pessoa é aquilo que


estou “examinando”?
No Poder Judiciário, o sistema disciplinar transforma os indivíduos em
objetos descritíveis e analisáveis. Numa reatualização do jogo de verdade,
psicólogos e assistentes sociais são convidados a apresentar verdades sobre os
outros, produzir documentos oficiais nos quais prevalece um discurso instituído que
define e classifica condutas e atitudes, “radiografam subjetividades” e realizam
pesquisa sobre a verdade (ALVES, 2013, p. 101).
Fávero (2007, p. 162) aponta como desafio para a atuação profissional a
tentativa de manter o campo de forças entre o disciplinamento e a emancipação
humana direcionado para a efetividade da garantia de direitos humanos e sociais,
pois é muitas vezes priorizado nas práticas judiciárias voltadas à infância e à
juventude o foco no disciplinamento e no controle social de modo pejorativo.
Uma maneira de enfrentar essa questão é evitar preconceitos, os quais
representam uma limitação para a visão de outras possibilidades sobre o outro, por
exemplo, para a mãe e/ou o pai ou para a criança, contribuindo para que não
tenham margem de escolha (FÁVERO, 2007). A análise profissional sobre a
liberdade de escolha do indivíduo muitas vezes a associa à questão de classe social,
provocando a reflexão sobre a presença intensa de desigualdade social no sistema
de justiça.
Laudos e relatórios escritos em condições desfavoráveis de trabalho
(sobrecarga de demandas, prazos exíguos, desvios e/ou acúmulos de funções,
conflitos institucionais, ausência de ambiente de trabalho com recursos mínimos,
etc.) podem provocar lapsos na contextualização dos acontecimentos sociais e
familiares que constituíram as histórias de vida daqueles sujeitos e, portanto, podem
incorrer em análises pejorativas e individualizantes (FÁVERO, 2007). Outro lapso
que deve ser evitado é a análise de perspectivas culpabilizantes e que apresentam
sugestões de ameaças judiciais ou novas violações.
Mesmo quando há tentativa de evitar tais lapsos na análise expressa nos
documentos dos peritos, observa-se a predominância de isolamento das ações no
documento escrito, sem efetivação de encaminhamentos e/ou articulação com
outras instâncias do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente,
que seriam responsáveis pela implementação de políticas públicas para esse

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público. Atrelado a isso, analisa-se que a atuação do “especialista” no judiciário


também pode recair sobre outros profissionais de maneira a destituir a autoridade do
outro, muitas vezes numa lógica de afirmar a própria competência (ALVES, 2013) e
que acaba evidenciando o distanciamento e isolamento que podem estar presentes
no cotidiano profissional.
Volta a ser necessária a simbolização pela metáfora do enxugar gelo, já
que se forma um círculo vicioso de produção escrita pouco representativa de
efetivação de encaminhamentos que respeitem as singularidades e evidenciem as
relações opressivas de gênero, classe, raciais e etárias que contribuem para a
conservação de desigualdades e contradições na função social da justiça (FÁVERO,
2007).
A justiça ainda funciona sobre um paradigma punitivo. O trabalho em rede
tem na justiça o último ponto de cobrança das famílias por atitudes mais próximas de
uma norma social estabelecida ao longo de anos. Os profissionais dos diversos
órgãos do sistema de garantias de direitos imprimem em seu trabalho preconceitos
que, muitas vezes, servem para a manutenção de uma estratificação social. É
importante que os assistentes sociais e psicólogos do judiciário participem do
trabalho em rede com o objetivo de amenizar esse caráter punitivo e auxiliar na
reflexão das práticas profissionais dos envolvidos, buscando fundamentação
científica e crítica. O exercício do nosso trabalho na rede pode fortalecer a
implantação de políticas públicas, cobrando do Poder Executivo ações que
promovam autonomia e melhora nos serviços ofertados às famílias atendidas.
Por isso, aponta-se para a necessidade de que os laudos e relatórios,
pautados na dimensão ética do exercício profissional, possam embasar estudos
sistematizados sobre a questão social de cada realidade em que foram produzidos
com vistas a respaldar movimentos coletivos para transformações efetivas dessas
realidades.

1.4 - ANÁLISE DOS CASOS A PARTIR DAS DISCUSSÕES TEÓRICAS

O profissional que atua em um serviço público de efetivação ou de


controle dos direitos sociais trabalha permanentemente na interação das estruturas,
das conjunturas e do cotidiano (VALENTE, 2013). Nascimento e Scheinvar (2005)
problematizam criticamente os conceitos de “proteção” e “exclusão social” de uma
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forma dialética, compreendendo estas categorias como resultado de uma dinâmica


societária capaz de produzir estas contradições cotidianamente. As autoras
fomentam reflexões sobre a dialética da “proteção” travestida em ações de
“repressão” presentes nas relações cotidianas de instituições como o Poder
Judiciário e de outras instituições tidas como “disciplinadoras”. Muitas instituições
constituintes dessa “rede protetiva” buscam em suas ações a “paz”’ e “harmonia
social”, todavia, sem fazer qualquer crítica ou alteração da estrutura social
constitutiva da violência.
Rodrigues e Cruz (2010) problematizam sobre o papel instituído
juridicamente ao Conselho Tutelar (CT) pelo ECA, enquanto órgão autônomo
responsável por zelar pela proteção da infância. Ocorre que no contexto atual, em
virtude da complexidade e das fragilidades políticas, esse equipamento vem
assumindo um “automatismo” na intervenção de demandas urgentes. Criam-se
práticas mecânicas, instituídas previamente e naturalizadas, de difícil articulação
com a rede. Consequentemente essas ações levam a discursos rasos de
culpabilização da família, de individualização e responsabilização pela pobreza,
retroalimentando a dinâmica da violência.
Situações do cotidiano de trabalho no judiciário nos levam a refletir sobre
a existência de uma inversão dos papéis institucionais, vindo a ocorrer a
judicialização dos casos por outros setores não constitutivos ao Poder Judiciário,
como é o caso do Conselho Tutelar. As práticas do CT também estão adquirindo um
modelo jurisdicional. As decisões, de modo semelhante a um juiz, ficam a cargo do
conselheiro, sem passar por discussões coletivas, constituindo mais um território de
ação personalizada. Cada atendimento é uma sentença individual – prática não
questionada e vista como mais adequada, encobrindo possíveis faltas e omissões
das políticas públicas (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2007, apud RODRIGUES;
CRUZ, 2010).
Nesse movimento, reitera a perspectiva de culpabilização da família na
proporção inversa da oferta de políticas públicas, ressaltando a lógica de
individualização dos problemas socialmente edificados, retirando de foco a
responsabilidade governamental.

(...) é na família que incide a responsabilidade pelos sujeitos... a


família é convocada a explicar e responder pelas ações inadequadas
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de seus filhos, recaindo sobre ela a culpa do que não transcorre


dentro do esperado. Famílias que, pela condição econômica e social,
são, muitas vezes, atreladas ao discurso da negligência, da falta de
cuidados e desinteresse pelos filhos. Sujeitos sem direito à escuta,
mas com a obrigatoriedade da fala e o peso da culpa. (RODRIGUES;
CRUZ, 2010, p. 354).

Assim, verifica-se que a atuação do CT fica restrita, na atual conjuntura, a


ações pontuais de controle e disciplinarização, muito aquém do seu papel de
propor/provocar políticas públicas. Do mesmo modo, muitos profissionais, “os
especialistas”, de vários equipamentos que compõem a rede de proteção também
atuam, a partir de demandas complexas e emergentes do cotidiano, pautados por
práticas imediatistas, isoladas e pelo discurso da individualização dos problemas e
da culpabilização das famílias “pobres”.
A respeito das práticas cotidianas dos equipamentos de proteção à
infância e juventude, Nascimento e Scheinvar (2005) ressaltam uma questão
importante quanto à diferenciação de classes sociais. Destacam que diferentes
ações são criadas de acordo com o nível socioeconômico da população atendida,
verificando-se assim a repetição de ações excludentes de outros tempos, como
aqueles vivenciados no “Código de Menores”.
Dessa diferenciação entre o conceito e ações para a infância e juventude
pobre, explicitando a exclusão de classes, emergem práticas de treinamento para o
mercado produtivo. Diferente da infância e juventude abastada economicamente, à
qual cabem ações do universo lúdico, psicomotor e afirmação da afetividade
(NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2005), à infância e juventude pobre preserva-se o
ranço histórico de “proteção” como coisa “pública” e passa a ser objeto de
intervenção dos chamados “especialistas”, aqueles que detêm formação teórica e
expertise a respeito da infância.

(...) os equipamentos sociais, especificamente no que se diz respeito


a crianças e jovens pauperizados, atendem uma parcela da
população excluída da escola, do modelo de família instituído, dos
padrões de consumo, de atividades lúdicas previamente definidas, do
sistema de saúde, enfim de um modelo do mundo do trabalho.
(NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2005, p. 57).

583
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Assim, as ações de “proteção social” são criadas e organizadas a partir de


uma estruturação política governamental sob o prisma do “poder e do controle”.
Dentro dessas ações, pensadas enquanto “segurança social”, discute-se a paradoxal
relação de autonomia e dependência dos indivíduos, já que para serem atendidos
por tais políticas e atingirem a tão declamada “autonomia”, essa população necessita
estar vinculada a um órgão/equipamento dessa estrutura organizacional. Daí a
contradição entre emancipação e controle, causando a “dependência” dos
“assistidos”.
Nascimento e Scheinvar (2005) apontam que o termo “exclusão social” –
construído socialmente no contexto da sociedade moderna para referenciar os
“desajustados sociais”, os “incapazes de conviver socialmente” – possui na
atualidade um caráter contraditório, pois pensar em exclusão nos remete a ideia de
inclusão. Assim, é um binômio e uma relação que se auto alimenta. Na medida em
que aumenta a “exclusão” advinda dos processos de industrialização capitalista, são
criadas ações de “inclusão” ou mais comumente chamadas de ações de “proteção”.
Dentro da mesma perspectiva de contradição, consideram-se os riscos
contidos na falsa ideia de “reintegração social”, tão presente nos discursos, metas e
competências de muitas políticas públicas. Segundo a análise de Nascimento e
Scheinvar (2005), para reintegrar os sujeitos, em algum momento esses deveriam
ter sido integrados, caso que não se aplica a uma parcela significativa da população
trabalhadora em termos de participação e usufruto da estrutura econômica do país.
Assim, verificam-se ações cujo discurso não corresponde à efetividade, pois “... as
políticas de proteção propostas pelos governos brasileiros, incapacitadas de integrar
jovens ou suas famílias a um mercado de trabalho excludente, quando operam, o
fazem através de práticas de controle disciplinar” (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 57,
2005).
Muitas ações operadas por meio dos chamados “especialistas” –
autorizados pelo saber escolar e atuando a partir da desqualificação dos não
legitimados pela academia – que tratam da “exclusão”, seguem uma lógica de que
os sujeitos vivenciam uma “crise” passageira e pontual, como um processo
transitório passível de “transformação”. “É este exército de notáveis que estabelece
o que é uma omissão, quais os omissos e em que momento cabe protegê-los”
(NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2005, p. 62).

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Considerando as chamadas políticas de proteção e a atuação dos


“especialistas”, faz-se grave pensar sobre nossa atuação no cotidiano do judiciário e
na parceria com outras instituições que também compõe o sistema de garantia de
direitos, refletindo sobre os riscos quanto às superficiais análises tensionadas por
uma conjuntura de trabalho massivo e exaustivo em que se reforçam atuações
pontuais e emergenciais.
Nesta esteira, sobressaem na esfera do poder judiciário, pelos operadores
do direito, a tentativa de psicologização dos problemas sociais da família e de
categorização das limitações da família como culpa individual de seus membros.
Nascimento e Scheinvar (2005) ressaltam que o empoderamento individual, apesar
de importante, não é suficiente para responder, de forma transformadora, às
limitações de recursos no meio, sendo necessário um empoderamento coletivo para
este fim. Há falta e/ou disparidade no reconhecimento do direito e a oferta de
recursos públicos para efetivamente garantir/viabilizar o direito da família.
Apesar da descentralização preconizada pelo ECA na estrutura política à
infância e juventude, verifica-se que o Poder Judiciário ainda detém no imaginário
social o lugar por excelência para a defesa e garantia dos direitos à criança e ao
adolescente. Essa estrutura está associada a espaço de coerção, tida como
instância máxima para a resolução dos conflitos individuais e coletivos. Assim, há,
em demasia, confiança e transposição ao poder judiciário como campo, por
excelência, para garantia de direitos, de forma contraditória ao seu papel histórico de
preservação do status quo.

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2 - CONCLUSÃO

Historicamente, a sociedade humana está sempre em disputa pelo poder.


Nessas disputas, surgiram as disciplinas, com o objetivo de controle das massas e a
emergência dos “especialistas”, profissionais cuja expertise é posta à disposição
sempre que necessário.
No Poder Judiciário, os profissionais do Serviço Social e da Psicologia
passaram a compor um grupo de “especialistas”, a fim de subsidiar ações
relacionadas às crianças, aos adolescentes e suas famílias. O desafio posto está na
tradução, em um texto escrito (relatório/laudo), de uma análise da complexidade das
relações humanas nesses fenômenos judicializados, considerando a dinâmica
dialética entre as singularidades, as características dos grupos sociais, econômicos,
etários, de gênero, etc., e a totalidade da sociedade com seu sistema produtivo e
estrutura hegemônica.
A judicialização dos fenômenos e das relações humanas converte uma
série de complexidades sociais a um órgão que ao longo dos anos têm servido à
manutenção de múltiplos privilégios, por seu caráter individual e binário (verdade vs
mentira; normal vs anormal; ajustado vs desajustado; estruturado vs desestruturado;
etc.) A justiça atua por meio da individualização dos casos, não conseguindo atacar
a pobreza e as desigualdades sociais, aspectos esses que geram muitos dos fatores
de riscos que colocam as famílias em situação de vulnerabilidade. No judiciário,
raramente se atacam as estruturas, as bases de produção, mesmo com o
alargamento do conceito de vulnerabilidade social.
Considerar o micro em relação ao macro nas estruturas familiares,
associadas às questões históricas de uma determinada comunidade, é o desafio que
se coloca no cotidiano de trabalho dos psicólogos e assistentes sociais, tanto aos
profissionais do judiciário quanto aos dos demais órgãos do sistema de garantia de
direitos. As ações emergenciais e imediatistas que os profissionais são levados a
tomar, por uma condição de precariedade no trabalho (excesso de trabalho,
infraestrutura inadequada, escassez de funcionários, entre outros), fomentam
intervenções ineficazes e culpabilizantes.
O trabalho em rede deveria servir para criar ambiente reflexivo, de
organização coletiva e cobrança por políticas públicas capazes de promover criação

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e melhoria de serviços ofertados às populações de classes desfavorecidas. Contudo,


paira ainda sobre o Judiciário a nuvem da estigmatização e da punição, o que gera
entre os membros da sociedade e os profissionais que compõe os órgãos da rede
socioassistencial uma falsa expectativa pela solução rápida e simplista dos
problemas familiares, sob o viés da “proteção”, mas fazendo recair sobre as famílias
a responsabilidade por todas as suas dificuldades.

587
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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de um caso. In: Coimbra, C. M. B.; Ayres, L. S. M.; Nascimento, M. L. (Orgs.)
Pivetes: encontros entre a Psicologia e o Judiciário. Curitiba: Juruá, p. 99-115, 2013.
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Juventude – Proteção X Controle. In: E. T. Fávero. Questão social e perda do poder
familiar. São Paulo: Veras Editora, p. 157-188, 2007.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. R. Ramalhete, 35ª.


ed., Petrópolis: Ed. Vozes, 2008.

MACHADO, Elisana Marta. Risco e proteção: busca por uma compreensão não
linear desses constructos. Dissertação (Mestrado). Campinas: Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, 2004.

NASCIMENTO, Maria Lívia do; SCHEINVAR, Estela. Infância: discursos de


proteção, práticas de exclusão. Estudos e pesquisas em Psicologia, UERJ, RJ, ano
5, n. 2, p. 51-66, 2005.

RODRIGUES, Luciana; CRUZ, Lilian Rodrigues da. Práticas cotidianas de proteção


à infância: movimento de (pre)ocupação com quem? Revista Psicol. Argum.,
Curitiba-PR, v. 28, n. 63, p. 351-357, 2010.

SAPIENZA, Graziela; PEDROMÔNICO, Márcia Regina Marcondes. Risco, proteção


e resiliência no desenvolvimento da criança e do adolescente. Psicologia em Estudo,
Maringá, v. 10, n. 2, p. 209-216, 2005.

VALENTE, Jane. O caráter dirigente da Constituição da República Federativa do


Brasil. In: J. Valente. Família acolhedora: as relações de cuidado e de proteção no
serviço de acolhimento. São Paulo: Paulus, p. 25-70, 2013.

588
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A ADOÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA?

GRUPO DE ESTUDOS DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO


“CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM DIFERENTES
SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE”

TRINUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2018

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COORDENAÇÃO

Emeline Duo Riva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Catanduva


Sheila Barreiros Pereira Metz – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
do Rio Preto

AUTORES

Ana Carolina Petrolini André – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Ana Lúcia da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Américo Brasiliense
Diviane Luiza Santana – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Elaine Cristina Dos Santos De Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Tanabi
Evelisi Tavoloni – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Fernanda Azevedo Cintra e Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do
Rio Preto
Karen Menezes Hirs – Psicóloga Judiciário – Comarca de Novo Horizonte
Luciana de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tabapuã
Maria Teresa Braz Da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itajobi
Mariana Sato dos Reis – Assistente Social Judiciário – Comarca de José Bonifácio
Marli Salvador Corrêa da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Novo
Horizonte
Priscila Silveira Duarte Pasqual – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do
Rio Preto
Rosangela Cristina Alves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tabapuã
Rosimara Oliveira Moraes Teixeira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Macaubal

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INTRODUÇÃO

No ano de 2018, o Grupo de Estudos de São José do Rio Preto decidiu


por debater questões relativas ao tema da adoção. Tendo em vista as recentes
alterações do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei nº 13.509/2017) referente à
adoção, à destituição do poder familiar e à redução dos prazos de reavaliação dos
casos de acolhimento, além da existência do Projeto de lei que dispõe sobre a
criação do Estatuto da Adoção, percebeu-se a perspectiva de implementação da
adoção de crianças e adolescentes como política pública.
Desse modo, as reflexões e discussões acerca do tema partiram do
pressuposto de que a intenção do Estado ao propor, a partir de um projeto de lei, a
desvinculação da adoção, como um estatuto próprio, do ECA seria materializar a
adoção como prática que vise encobrir as desigualdades sociais presentes na
sociedade brasileira e a consequente obrigação do estado com as famílias
desfavorecidas, ao não considerar a adoção como uma medida excepcional e, sim,
como regra principal para garantir a convivência familiar de crianças e adolescentes.
Fávero (2007) sinaliza quanto a importância de programas e recursos que
possibilitem às famílias enfrentamentos da violência decorrente da miséria para que
não se dê margem à criminalização da pobreza, pois se entende que as famílias não
atendem aos valores hegemônicos instituídos sob o olhar jurídico.
A redução do tempo legal para avaliação em casos de destituição do
poder familiar faz com que as atuações nestes casos exijam uma rapidez que não
condiz com o tempo subjetivo das pessoas, surgindo um impasse na atuação,
enquanto técnicos do judiciário, visto que se corre o risco de contribuir para a ordem
hegemônica, pois, ao pensar no melhor interesse da criança e na garantia do acesso
desta aos direitos fundamentais, sinaliza pela destituição parental e sua colocação
em família substituta, a partir de breves estudos realizados.
Com os textos sugeridos para pautarem as discussões, abordou-se em
diversos momentos, ao longo dos encontros, que as crianças de famílias vulneráveis
são olhadas de outra forma quando envolve violência ou abandono, com um viés
que tende à desqualificação, ao contrário das crianças cujas famílias pertencem às
classes favorecidas socialmente. Lembrando ainda, o recuo na garantia dos direitos
na atual conjuntura, tendo em vista que as reformulações na legislação que versa

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sobre a adoção invertem a lógica da proteção e da garantia de direitos, tendo na


adoção uma resolução dos casos envolvendo crianças e adolescentes, sem de fato
resolver o problema da família, a qual continuará em situação vulnerável, com os
direitos violados, reproduzindo, muitas vezes, as mesmas violações que
desencadearam o processo de destituição do poder familiar.
Outros questionamentos e observações do grupo coerentes com o tema
foram tecidos ao longo do ano. Um deles retratou o imaginário dos pretendentes
acerca da história de vida da criança, na maioria das vezes, vinda de família da
classe empobrecida, o que pode mobilizar algumas fragilidades dos próprios
pretendentes como desproteção, abandono e ruptura de vínculos. Assim,
levantaram-se questionamentos sobre os impactos dos adotantes ao lidar com a
história de vida da criança, e com o percurso que a adoção têm para ela, enquanto
sujeito em desenvolvimento, na formação de sua identidade e para o vínculo afetivo
que irá se constituir.
A dimensão da adoção suscitou ainda considerações sobre a importância
da escuta profissional atenta e acolhedora, tanto nos atendimentos às famílias em
processo de destituição do poder familiar, quanto nos casos de pretendentes à
adoção.
Para discorrer acerca do tema proposto, entrelaçando com as dimensões
que impactam a adoção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade,
a divisão do artigo por subtema se deu do seguinte modo: “As mudanças na Lei da
Adoção e suas Implicações”; “Avaliações na Destituição do Poder Familiar e na
Adoção” e “A História da Criança no Vínculo Adotivo – História de Origem, Traumas,
Violências, Pertencimento”.

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1 - AS MUDANÇAS NA LEI DA ADOÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES

A Lei nº 13.509/2017 que dispõe sobre a adoção e altera a Lei nº


8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), estabelece novos prazos e
procedimentos para o trâmite dos processos de adoção, além de prever novas
hipóteses para destituição familiar, apadrinhamento afetivo e normas para a entrega
voluntária de crianças à adoção.
Dentre as principais alterações, cabe ressaltar as que rebatem
diretamente no processo de adoção e destituição do poder familiar, principalmente,
no que diz respeito aos prazos. No caso do acolhimento institucional, o prazo
máximo para o acolhimento mudou de dois anos para dezoito meses. Já a
reavaliação da situação da criança ou adolescente que estiver inserido em programa
de acolhimento institucional ou familiar ocorrerá a cada três meses e não mais seis.
No que tange à destituição do poder familiar, o prazo para o ingresso da
ação pelo Ministério Público, passa de trinta para quinze dias. O estágio de
convivência, etapa de contato entre a criança ou adolescente e a família que
pretende adotá-la, passa a ter duração de, no máximo, 90 dias, sendo que antes não
havia prazo e a avaliação cabia ao Juiz. Já o prazo para a conclusão do processo de
adoção foi modificado para 120 dias, prorrogáveis por igual prazo, uma única vez.
Anteriormente, não havia prazo determinado.
A nova redação incluiu também em seu artigo 197-D a obrigatoriedade em
relação a prazos para reavaliação de postulantes a adoção, a qual ocorrerá no
mínimo, trienalmente.
Ademais, dispensa-se a renovação de habilitação para uma nova adoção
e exige uma nova avaliação frente a três recusas consecutivas e injustificadas dos
habilitados para contato com uma criança e/ou adolescente. Os postulantes serão
excluídos do cadastro em caso de desistência da guarda ou devolução da
criança/adolescente, após o trânsito e julgado da sentença de adoção, vedada à
renovação da habilitação, salvo decisão judicial fundamentada.
No tocante ao princípio da prevalência da família, o destaque dado à
integração da criança em família adotiva e não mais, família substituta, conforme
artigo 100, parágrafo único X, também merece atenção.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A análise de tais alterações pode sugerir a contradição entre a colocação


antecipada da criança ou adolescente em família substituta como possibilidade de
sanar a espera e acelerar os procedimentos de adoção, de maneira a resolver as
questões relativas à infância e juventude e garantir a efetivação de direitos das
crianças e adolescentes em medida protetiva de acolhimento institucional.
Neste sentido, há de se considerar a complexidade da destituição do
poder familiar e a necessidade de se desenvolver um trabalho efetivo com a família,
com vistas à interrupção das violações de direitos infanto-juvenis, que envolve
sistemas de prevenção e trabalho intersetorial; e, a linha tênue entre a intervenção
desenvolvida com a família de origem e as “possibilidades esgotadas” que
ocasionam a destituição do poder familiar.
É importante avaliar que o rebatimento de tais mudanças
automaticamente recai sobre as famílias pertencentes à classe subalterna, sob a
alegação da incapacidade destas em cumprirem os deveres parentais e, por não
conseguirem prover sua sobrevivência e dependerem da intervenção estatal. Sem a
atuação efetiva do Estado sobre a desigualdade social, a situação de pobreza
extrema em algumas famílias tende a se manter por várias gerações, fortalecendo
os argumentos que sustentam a agilidade no processo de destituição do poder
familiar.
As mudanças legais apontadas convergem para o fortalecimento da
prática da adoção. O que a priori, sem uma análise aprofundada, parece ser
benéfica à garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e
adolescentes. Entretanto, se faz imprescindível considerar até que ponto a retirada
dos filhos das famílias da classe subalterna e sua inserção em lares substitutos
garantem de fato a defesa intransigente dos direitos da criança e do adolescente.
Além das mudanças já efetivadas no ECA, é importante salientar a
existência de um Projeto de Lei n°394 de 2017 que tramita no Senado, conhecido
como Estatuto da Adoção, que flexibiliza as normas para a Adoção e a perda do
poder parental. Tal projeto se baseia em argumentos que criticam a lentidão dos
processos de adoção no Brasil, desconsiderando a necessidade de investimento e o
fortalecimento das instituições e políticas sociais já existentes. Ou seja, ao invés de
mudanças na legislação, faz-se necessário o investimento estatal.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Cabe restar à existência de movimentos de entidades ligadas a Proteção


Integral da Criança53 e do adolescente que se posicionam de forma contrária, uma
vez que tal projeto acaba atingindo e até mesmo penalizando as pessoas mais
pobres, dada as dificuldades enfrentadas por estas no acesso a serviços que lhes
possibilitem exercer as funções e cuidados parentais de forma suficientemente
satisfatórias.

53
O Movimento pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes emitiu nota, posicionando-se
contrário ao PLS 394/2017, que pretende instituir o "Estatuto da Adoção", deslocando do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) para uma lei à parte o instituto da adoção, conferindo a estes novos
princípios e sistemática.
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2 - AVALIAÇÕES NA DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E NA


ADOÇÃO

2.1 - MARCO LEGAL DA INSERÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL E DO


PSICÓLOGO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

A atuação profissional do assistente social e do psicólogo judiciário está


pautada na lei nº 8069/1990, nos artigos 150 e 151, capítulo II, seção III – dos
serviços Auxiliares. Como também nas ações cíveis no Código de Processo Civil,
consta na seção VII em seus artigos 420 e seguintes. Outras orientações sobre
atuação da equipe técnica psicossocial estão previstas nas Normas Judiciais da
Corregedoria Geral da Justiça (NJCJ), além dos Comunicados nº 308/2004 (D.O.J.
de 12/03/2003) o qual versam sobre as atribuições dos Assistentes Sociais o de nº
345/2004 (D.O.J. de 26/05/2004) dos psicólogos e finalmente no Código de Ética
Profissional das respectivas profissões.
As equipes técnicas das Varas da Infância e da Juventude no Brasil são,
basicamente, formadas por Assistentes Sociais e Psicólogos, tendo como principal
atribuição auxiliar os magistrados na tomada de decisão, acerca dos processos às
Varas de Infância e Juventude, Família e Sucessões, e em algumas comarcas, as
Varas Especializadas em Violência Doméstica contra mulher.
Ao atuarem nos tribunais de justiça, para os Assistentes Sociais e
Psicólogos é de fundamental importância que conheçam seus objetivos e,
minimamente, sua estrutura administrativa e a organização do trabalho.

2.2 - ATUAÇÃO PROFISSIONAL ÉTICO-POLÍTICO E A ESCUTA QUALIFICADA

Cientes do lugar que estão inseridos, o assistente social e o psicólogo,


munidos de conhecimento teórico metodológico, desenvolvem ações que
efetivamente contribuem para assegurar direitos de crianças e adolescentes que
configuram como os sujeitos dos estudos nos processos de Vara da Infância e
Juventude e da Família e Sucessões.
Dentre as ações de competência das referidas Varas, os técnicos são
solicitados a realizarem avaliações junto aos genitores e ou responsáveis, família

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estendida, pretendentes à adoção e às crianças e adolescentes envolvidos, com o


objetivo de subsidiar as decisões judiciais.
Destacando-se que nas ações de acolhimento institucional ou perda do
poder familiar, que antecedem os processos de adoção, as avaliações técnicas
buscam a verificação da disponibilidade dos genitores para assumirem os cuidados
dos filhos e podem implicar a ruptura temporária, nos casos de acolhimento, ou
permanente dos vínculos entre estes. Enquanto que nos processos de habilitação
avaliamos as possibilidades dos pretendentes para exercício da parentalidade.
No entanto, no Brasil, estudos demostram que a normativa da atuação
dos técnicos nos Tribunais não especifica de forma clara o que é necessário avaliar
para a definição sobre a perda do poder familiar ou o restabelecimento da guarda
dos filhos aos genitores.
Ao pesquisarmos o assunto encontramos orientações para avaliação em
processo de destituição do poder familiar e de adoção no Manual de Procedimentos
Técnicos do Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual se destaca a importância do
assistente social identificar que a questão social, base fundante da profissão,
encontra-se engendrada nos processos da infância e juventude e, por isso, requer
que os profissionais não se desvinculem da realidade social mais ampla. Citando
Fávero (2007, p.49), o Manual aponta que a finalidade do estudo social é entendida
como “conhecer com profundidade, e de forma crítica, uma situação ou expressão
da questão social, objeto da intervenção profissional - especialmente nos seus
aspectos socioeconômicos e culturais”.
Enquanto profissionais qualificados, nos cabem a atualização e
apropriação do conhecimento sobre as políticas públicas, dos indicadores e
movimentos sociais originados em cada momento histórico da sociedade. A
compreensão desses fatores e suas expressões que se particularizam nos “casos”
em que atendemos, norteiam para uma análise crítica destas relações. As situações
postas, no cotidiano de trabalho, trazem em seu bojo as violações de direitos das
famílias, da criança e do adolescente que devemos desvelar.
No âmbito do judiciário o profissional Assistente Social, ao realizar o
estudo social, lança mão destes conhecimentos teóricos metodológicos para
avaliação/escuta, em que será necessária clareza quanto aos aspectos que irá

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

avaliar, tendo em vista qual é a intencionalidade, os pressupostos ético-políticos e os


instrumentos técnico-operativos da profissão a serem aplicados.
Neste sentido o Manual de Procedimentos Técnicos do Tribunal de
Justiça de São Paulo propõe ao técnico assistente social estar atento aos seguintes
fatores:

Situação inicialmente apresentada; Contextualização da demanda;


Histórico de vida do grupo familiar, identificando origem e fatos
significativos; História de vida da criança ou adolescente e seu
processo de socialização; Configuração do grupo familiar, papéis e
padrões de funcionamento: Relação estabelecida com o território em
que vive; contexto socioeconômico e cultural e sua influência na vida
dos filhos; Inserção da família no mundo do trabalho; Presença de
outros adultos significativos que possam proporcionar apoio à família
em crise; Uso problemático de drogas; Recursos e serviços
disponíveis ou utilizados pela criança/adolescente e grupo familiar;
Natureza dos vínculos familiares, outros grupos de convivência
familiar e comunitária; Receptividade da família para receber ajuda,
orientação e acompanhamento; Projeto de vida. (Atuação dos
profissionais de Serviço Social e Psicologia Manual de
Procedimentos Técnicos do Tribunal de Justiça de São Paulo –
Infância e Juventude, 2017).

Cabe lembrar que, o estudo social, isoladamente, não é suficiente para o


conhecimento global dos sujeitos e de suas relações pessoais e sociais, devendo
pautar-se em uma perspectiva interdisciplinar que articule o seu trabalho com o de
outros profissionais e estabeleça relações com o sistema de garantia de direitos.
Dentre a atuação do profissional de serviço social e psicologia, as
entrevistas se configuram como instrumento direto, no qual a escuta qualificada se
torna relevante e significativa na compreensão da realidade social, econômica,
política, cultural e da dimensão psíquica e subjetiva dos indivíduos e grupos a fim de
se buscar propostas e encaminhamentos pertinentes as reais necessidades e
demandas dos usuários.
Nesse sentido, ao falar em escuta profissional devemos partir do
pressuposto de que todo indivíduo, sem exceções, possui um histórico de vida.
Tanto os técnicos do judiciário como as pessoas por eles atendidas são constituídos
de valores socioculturais, referências pessoais e sociais, identidade grupal, relações

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de pertencimento, interpessoais e dinâmica familiar, que vão determinar formas


diferentes de ver o mesmo objeto de análise.
A situação apresentada num processo não pode ser explicada por si só,
mas por um conjunto de fatores, acontecimentos, experiências que compõem o
indivíduo, seja uma criança ou adolescente em medida protetiva de acolhimento,
seja mãe e pai em fase de perder o poder familiar, ou pretendentes a pai e mãe
através da adoção. Dessa forma, os técnicos do judiciário têm que estar abertos às
histórias de vida, relações de poder e desigualdades estabelecidas por fatores
histórico-culturais que perpetuam a produção e reprodução de uma sociedade de
classes.
Sendo assim, a escuta qualificada, trata de um compromisso ético-político
dos profissionais em sua relação com o usuário, um empenho de cada profissional
na defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo
e na eliminação de todas as formas de preconceito como preconizado pelos
Princípios Fundamentais do Código de Ética do Assistente Social (1993) de forma
ainda, conforme artigo. 5ºb do mesmo documento:

[...]garantir a plena informação e discussão sobre as possibilidades e


consequências das situações apresentadas, respeitando
democraticamente as decisões dos/as usuários/as, mesmo que
sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos/as
profissionais.

Nesse mesmo compromisso o profissional Psicólogo também deve observar


os Princípios Fundamentais do Código de Ética do Psicólogo (2005) na atuação
profissional:

I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da


liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser
humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de
vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação
de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando
crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e
cultural.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ainda neste contexto o Manual de Procedimentos Técnicos de Atuação


dos Profissionais de Serviço Social e Psicologia na Infância e Juventude do Tribunal
de Justiça de São Paulo estabelece que,

Do ponto de vista psicológico devem ser levantados prioritariamente


os seguintes aspectos: Análise dos vínculos familiares; Análise das
condições do pai, da mãe para exercer as funções parentais; Quando
a avaliação detecta dificuldade dos pais ou guardiães para cuidar da
criança e/ou situação de vulnerabilidade, o estudo também deverá
contemplar consideração sobre as medidas que poderiam minimizar
as dificuldades existentes; Na entrevista de devolução, o psicólogo
deve ter o cuidado em abordar com as partes os principais aspectos
que foram levantados no curso da avaliação e que serão descritos no
relatório a serem juntados nos autos. (2017, p. 53).

Para além da capacitação técnica e teórica dos Assistentes Sociais e


Psicólogos, há a necessidade de constante autorreflexão e autoanálise. Nas
discussões do grupo de estudo foi tratado sobre quanto o (pré)conceito em relação
às famílias subalternas permeiam o fazer profissional de diferentes técnicos lotados
nos diversos espaços sócio ocupacionais das redes de serviços públicos de
múltiplas localidades. Em comarcas menores, também foi ventilado o quanto as
famílias foco de políticas públicas ficam expostas a reiteradas condutas
profissionais, devido às diminutas equipes de trabalho.

[...] ter a história como aliada nos permite pensar nas relações que
foram qualificando a pobreza como perigosa, desestruturada,
incompetente, fracassada, delinquente, dentre outros atributos de
inferioridade; concebendo, por fim, os pobres como necessitados de
intervenções especialistas que venham regular e tutelar suas vidas
(NASCIMENTO,2008)

Discute-se o quanto a postura profissional pode otimizar, mas também


minar a reconstrução de paradigmas familiares de cuidados e proteção de sua prole.
Enquanto representantes do sistema de garantia de direitos, os técnicos
do judiciário devem buscar compreender que numa escuta profissional, Nascimento
(2008) diz que:

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[…] não devemos deixar de perceber essa crescente presença da


função estatal com o dever de controlar, higienizar e punir a pobreza
brasileira; com poderes para, inclusive, retirar os filhos dos pais que
não se adaptarem às regras familiares burguesas estabelecidas.

Contudo cabe recordar que segundo o ECA, em seu artigo 23 a questão


financeira não é motivo para a desqualificação da família pobre como cuidadora de
seus filhos. Muitas vezes, situações de negligência ganha conotação nos casos de
destituição do poder familiar, contudo, trata-se de famílias que se encontram em
situações de miséria, desemprego, não assistidas pelo Estado e que, por si só, não
têm condições de suprir ou garantir as necessidades de seus filhos, pois, também,
estão privadas de direitos e sem acesso a políticas públicas que lhes garantam os
mínimos sociais.
Para Ariolli (2018, p.182) “é fundamental que essa família seja ouvida
atentamente e trabalhada em suas dinâmicas de relações e com sua história que
inclui perdas e ganhos, violências, questões sociais, culturais e transgeracionais”.
Seja em situações de destituição do poder familiar ou de adoção o ECA
estabelece a prevalência do real interesse para criança e/ou adolescente. Penso
(2016, p.14) aponta que:

[...] não é possível desvincular a história de vida de uma criança a de


sua família, pois toda criança ao nascer está inserida em uma cultura
que abarca sua história social, geográfico e familiar. Esse território
revela o lugar que ela pertence, revela a comunidade que está
vinculada e principalmente determinam sua identidade.

O profissional que realiza a "escuta” necessita estar constantemente


investindo em sua formação profissional continuada. Investindo na constante
capacitação técnica e teórica, supervisões, grupos de Estudos e de Trabalho, etc. O
produto "final" da escuta, o documento produzido pelos profissionais, tem peso para
decisões judiciais, interferindo direta e indiretamente na vida desses sujeitos.

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3 - A HISTÓRIA DA CRIANÇA NO VÍNCULO ADOTIVO – HISTÓRIA


DE ORIGEM, TRAUMAS, VIOLÊNCIAS, PERTENCIMENTO

Toda criança tem a necessidade de conhecer sua origem, como parte do


desenvolvimento infantil, na busca por compreender qual seu lugar na vida e no
desejo dos outros, em especial dos pais. Conforme aborda Ghirardi (2016), no caso
das crianças que foram adotadas, essa curiosidade sobre a origem apresenta uma
peculiaridade, uma vez que sua origem se situa fora do contexto da família por
adoção e desperta fantasias e temores nos adotantes.
Em uma pesquisa realizada por Fonseca (2015), de caráter mais
antropológico, com pessoas que foram adotadas há trinta quarenta anos e hoje são
adultos revelou barreiras judiciais às essas pessoas ao tentarem acessar a própria
história e suas origens, bem como obstáculos encontrados na família que os adotou,
indicando dificuldades ou relutância em revelar informações aos filhos cujos
conteúdos seriam significativos do ponto de vista da constituição subjetiva.
Sabemos que há diversos motivos para que estas histórias fiquem
escondidas, não ditas. A insuficiência das informações sobre a origem de cada
criança e principalmente o temor em conhecer e lidar com histórias tão difíceis,
mobiliza sentimentos de abandono e negligência, não só na criança, mas nos
adultos que se relacionam com ela e estão diante de tal revelação.
Segundo Ghirardi (2016), abordar a origem da criança é uma das
questões que mais angustia os pais adotivos, pois pode envolver: entrar em contato
com perdas dos próprios pais (infertilidade, frustração); fantasias inconscientes de
serem abandonados pela criança no futuro, caso a criança busque os pais
biológicos; medo de expor a criança ao abandono original. Dentro desse contexto,
para conseguir dialogar com a criança sobre sua origem, é necessário que os pais
por adoção tenham elaborado suficientemente seu luto pela infertilidade, pelo filho
biológico imaginado, mas não concebido, e seu percurso em direção à adoção.
Revelar para a criança a adoção significa, para os adotantes, des-velar para si
mesmos suas perdas, em especial do filho biológico idealizado, e lidar com a dor
decorrente, necessária para poder reconhecer a alteridade da criança (que a criança
que chega pela adoção não é o filho biológico idealizado) e só então conseguir
investir afetivamente no novo vínculo. Caso contrário, podem culpabilizar a família

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de origem ou a “bagagem inata” (hereditariedade) da criança por dificuldades que


venham a surgir na relação com o filho.
Já para a criança, lidar com a dor da perda da família biológica é um
trabalho emocional necessário que lhe permite reordenar sua história, assegurando
sua identidade (seu passado, presente e futuro) e sua condição de sujeito.
Segundo Souza et al (2016), é importante a criança conhecer sua história,
mesmo que permeada por rupturas e abandonos, para que ela consiga se apropriar
de sua origem e ressignificá-la, assim transformar no ponto de partida para a
construção de outra história, que poderá ser sonhada e realizada pela própria
criança e adolescente. Conhecer e compreender o passado para projetar desejos e
sonhos futuros.
Falar do direito da criança ao acesso à sua história, implica no respeito ao
desejo da criança em acessá-la, e o cuidado de não invadi-la com informações das
quais ela ainda não está pronta para elaborar. É de suma importância que os
profissionais e pais por adoção estarem atentos aos sinais da criança para, a partir
desta leitura sensata, identificar em quando, como e até onde disponibilizar a história
da criança, pois cada criança se relaciona de uma forma com sua origem, algumas
desejam falar, outras se calar, outras esquecer, enfim, esse olhar exige cuidado e
sensibilidade. É fundamental, aqui, fomentar o querer saber, formular perguntas que
lhe permite acesso a essa rede de informações, na qual a criança vai tecendo sua
própria história.
Crianças institucionalizadas e adotadas apresentam, em sua grande
maioria, feridas psíquicas causadas pelas rupturas e rejeições. De acordo com
Souza et al (2016), se não processadas e significadas, tais feridas podem se
manifestar em sintomas como: inibições, compulsões, retraimento social, violência,
dentre outras, que podem afetar significativamente o funcionamento do indivíduo.
Mesmo cientes da importância do acesso à história, ainda hoje pais e
profissionais envolvidos com o processo de adoção apresentam dificuldades na
revelação da história ao sujeito, por vezes verbalizando de forma crua e sem
mediações, dando margem a interpretações fantasiosas por parte da criança. Assim,
ao dar acesso à sua origem, é necessário sensibilidade e se atentar ao sentido que
a criança pode dar aos fatos revelados.

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Ghirardi (2016) ainda ressalta que atualmente, os pais por adoção têm
consciência da necessidade da criança ter conhecimento da adoção, contudo,
continua sendo uma tarefa angustiante para os adotantes. A relação afetiva que é
construída com a criança é permeada por fantasias inconscientes, mitos e valores
que os adotantes trazem em relação à origem do filho, que podem incluir a ideia de
terem “roubado” a criança da família biológica, além do medo de causar sofrimento à
criança por abordar o desamparo. Todavia, muitas vezes, na intenção de evitar o
sofrimento do filho, os adotantes acabam por intensificá-lo através do silêncio sobre
as origens. Contudo, na comunicação não verbal e inconsciente que perpassa a
relação afetiva pais-filhos, há algo que é percebido pela criança e que, por não poder
ser falado, se torna fonte de insegurança e desconfiança, vindo à tona através de
sintomas, tais como a dificuldade de aprendizagem, na medida em que a curiosidade
(o desejo de conhecer) da criança fica bloqueado no “não poder saber” (p. 34). Por
outro lado, “ao nomear a experiência, os pais propiciam à criança a sua elaboração”
(Rosa, 2000, apud Ghirardi, p. 34).
Porém, para atender as necessidades psíquicas da criança, a revelação
sobre sua adoção não pode ser reduzida a um evento pontual, a uma mera
informação factual. É necessário que o diálogo sobre sua origem e história de vida
se dê em um processo contínuo na relação pais-filho, no qual a criança possa ir
construindo sentidos cada vez mais complexos sobre a sua existência, de acordo
com a fase de seu desenvolvimento.
Assim, reitera-se a importância da construção de uma relação sólida e
segura entre pais e filho(s) por adoção, com pais suficientemente elaborados nos
próprios lutos e conflitos, a fim de que possam auxiliar o(s) filho(s) na construção de
sentidos para a sua história, ao longo de toda sua trajetória de vida e não apenas em
um momento de revelação sobre sua origem.
Segundo Souza et al (2016), ainda se faz necessário aos pais adotivos,
acolherem as intensidades emocionais seguidas da adoção, carregadas de
esperanças e desconfianças quanto a essa nova ligação, com cautela para que os
sentimentos de rejeição, abandono e rupturas não sejam atualizados, pois uma vez
que uma nova relação adquire importância, surge o medo do abandono e a
desconfiança da repetição do trauma.

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Quanto às lembranças do indivíduo, referente à própria história, o


processo de recordar pode ser complexo, de acordo com Freud (1914), o paciente
consegue lembrar claramente de uma experiência anterior que parece não se
confundir com a atual, ficando esta experiência no lugar de um passado, porém há
lembranças que não são acessadas conscientemente e emergem em atuações
transferidas a outras pessoas, por vezes no analista, por vezes nos pais adotivos, o
indivíduo submete-se a uma compulsão à repetição, substituindo o impulso de
recordar. Assim, de acordo com Gueller (2005 p. 83-84), “repete-se na transferência
o que não pode ser lembrado”.
A história da origem da criança e do adolescente é mais fruto do
significado atribuído às experiências vividas, do que os fatos revelados em si do
profissional envolvido com esse sujeito e dos pais adotivos, é ressignificar o vivido
pela criança, se colocando como continente de toda a carga traumática que a
criança mobilizar, transmitindo-lhe segurança e investindo emocionalmente neste
novo vínculo afetivo.
A partir dos pontos apontados por Ghirardi (2016) e Souza et al (2016),
reiteramos que a retirada de uma criança da família de origem e sua colocação em
uma família substituta, por mais que ocorra em curto espaço de tempo, como em
recém-nascidos, envolve consequências psíquicas que demandarão, ao longo de
seu desenvolvimento, um trabalho de elaboração longo e complexo, muitas vezes
angustiante e doloroso, tanto para os adotantes como para a criança.
A adoção pode suscitar sentimentos nas pessoas de altruísmo. Porém, o
desejo de ajudar uma criança não pode ser estabelecido em função de desejos
altruístas (Levinzon, 2004). Ter um filho significa dar a ela um lugar naquela família,
é um investimento narcísico dos pais, necessário e importante para a constituição
subjetiva desse filho.
Portanto, pensar a adoção como um meio para resolver os problemas
sociais enfrentados pela sociedade brasileira se constitui em algo bastante
complexo, pois envolve um delicado processo psíquico de filiação e não pode ser
compreendido como saída para a problemática social do abandono. (Peiter, 2016).

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4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Grupo de Estudos de São José do Rio Preto direcionou neste ano de


2018 as discussões e reflexões em torno das alterações no ECA, que impactam
diretamente a atuação profissional em casos envolvendo adoção de criança e
adolescente.
Ao se analisar a fundo as alterações legais e o projeto de lei que pretende
criar o Estatuto da Adoção, concluiu-se que essas alterações vêm atender a
determinados setores da sociedade que visualizam a adoção como uma maneira de
aplacar as desigualdades sociais, ao mesmo tempo em que “resolve” a questão das
pessoas sem filhos e oferece à criança uma família, sem tantas burocracias e com
prazos reduzidos no processo de adoção.
São evidentes os avanços na legislação sobre a proteção de crianças e
adolescentes e na garantia à convivência familiar e comunitária, todavia, é preciso
cautela ao olhar para as alterações legais que visam atender a uma determinada
demanda da sociedade, esquecendo-se da outra parte, das famílias em situação de
vulnerabilidade que permanecerão na mesma situação que pode ter levado à
destituição do poder familiar.
Foi consenso nas reflexões do grupo que crianças acolhidas, destituídas e
encaminhadas à adoção advêm de famílias subalternas. Por isso, é fundamental que
em casos envolvendo acolhimento institucional ou a destituição do poder familiar, a
avaliação técnica dos Assistentes Sociais e Psicólogos esteja pautada em seu
compromisso ético-político e não recaia em pré-concepções, julgamentos ou
conclusões precipitadas, referendando narrativas excludentes e sem compreensão
do contexto social de vulnerabilidade e dos sofrimentos psíquicos intrínsecos às
condições impostas pela miséria social decorrente do neoliberalismo e das reduzidas
políticas públicas na atual conjuntura. Entretanto, emergiram as angústias
profissionais geradas diante de casos complexos em que o direito da criança precisa
prevalecer.
Ter um filho por meio da adoção envolve muitos fatores não somente para
os habilitados, como para a criança que irá ser inserida em uma nova família. É
preciso cuidado ao lidar com este tema que, muitas vezes provoca incertezas e

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tensões, em que estão envolvidos sentimentos e angústias de cada um dos atores


desse processo.
Por isso, a adoção é algo bastante complicado para ser pensada como
uma medida, paliativa, de resolução das problemáticas atravessadas pela
desigualdade social, ignorando o que mobiliza a complexa constituição dos laços na
filiação adotiva, além de ser utilizada como justificativa para reduzir ou isentar o
compromisso do Estado, por meio de suas políticas públicas, com as famílias em
situação de vulnerabilidade.
Tais normas, com o intuito de acelerar o encaminhamento de crianças à
adoção, podem ser desastrosas na medida em que engendra nas pessoas, por meio
de massivas campanhas publicitárias, sentimentos altruístas que em tese não são
motivos genuínos para que alguém se torne mãe ou pai.

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REFERÊNCIAS

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COORDENADORIA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE
SÃO PAULO Atuação dos Profissionais de Serviço Social e Psicologia: Infância e
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