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tema principal do livro é

º o ponto de intersecção en-


tre o Direito Penal e as demais
áreas das Ciências Humanas,
como Filosofia, Sociologia e Psi-
canálise. Isso porque, quando t
1
j

se discute uma conduta ilícita, •


pressupõe-se uma concepção 1
de conduta em geral, anterior
a qualquer valoração. Ou seja,
'i
f
!

,i
antes de haver delito, é preciso
haver conduta. Pelo menos, é
assim que grande parte da dou-
trina parece entender, apesar j

de, como nos mostra este livro,


a marca distintiva dessa cliscus-
são ser a da controvérsia.
Se, em uma primeira impres-
são, o trabalho parece uma re-
construção histórica das teorias
da conduta, de fato, ele vai além.
Com uma abordagem profunda
e abrangente, Renato Gomes •
traça o caminho percorrido pe- .
.
las teorias da conduta no Direi- .
.
to Penal, aponta e analisa seus
fundamentos e aporias,' tendo
sempre como parâmetro o Esta-
do Democrático de Direito.
Este livro é especialmente
auspicioso em razão da escas-
sez de trabalhos sobre o tema
que incluam as formulações
mais recentes: as teorias da .
f
ação desenvolvidas a partir da
Filosofia da Linguagem.
Teorias da conduta

DEDALUS - Acervo • FD • Fac. de Direito


- 1111111111111111111111111111111111 . , . .:•
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Teorias da ·conduta: antecede.ntes,·tendências e ...
M81535/22 343.231 R576t BCI
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Renato Gomes de Araujo Rocha

Teorias da conduta:
antecedentes, tendências e impasses

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Editora Revan
~e:. .,..J..-
.._.,,..
Copyright © 2016 by Editora Re,-an

Todos os direitos reser\':tdos no Brnsil pcJa Editora Rev:in Ltd:t. Nenhuma parte desta publicação
poderá ser rcproduzid::i, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou vfa cópia xerográfica, sem a
autorização prévia da Editorn.

Editor
Renato Guimariies

&zti.Jào
Roberto Teixeira

C(,p,,
Scnsc Desi,-,rn & Comunic::ição

111,prrsrào
(cm papel uff-sct 75g, após paginação eletrônica cm tipo Gar:unond, e. 11/13)
Dh·isão Gcifica da Editora Revan

CIP-Brnsil. C:1t:ilog:1ção na Fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Ll\'TOS, RJ.

R576t
Rocha, Renato Gomes de Arnujo
Teoruis ela condut:i : antecedentes, tendências impasses / Renato Gomes de
Arnujo Rocha. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Revan, 2016.
348 p. ; 23 cm

Inclui bibliogrnfia
ISBN 978 85 7106 554-3

1. Direito penal - Brasil. 2. Processo penal - Brasil. 3. Direito penal. 1. Título.

15-28807 CDU: 343.1(81)

02/12/2015 02/12/2015
"Mas eles iluminam seus rostos com sorrisos.
Tateiam diante de si como cegos e encontram o
outro como uma porta. (...) Encontram-se, na
verdade, para serem um para o outro,
uma nova estirpe."

Rilke
Para Daura, Lara, Renato e Bia.
AGRADECIMENTOS

À FAPERJ, pela bolsa que tornou possível este trabalho.


Ao professor. Nilo Batista, por mostrar que é possível pensar criticamente
o Direito e que isso se traduz em um compromisso intransigente com as con-
quistas humanas.
Aos professores Vera Malaguti, Juarez Tavares e Davi Tangerino, que me
acolheram com muito carinho na UERJ. Agradeço também aos demais professo-
res do PPGD, todos os quais contribuíram em grande medida para este trabalho:
Professora Patrícia Glioche, Professor Carlos Eduardo Japiassú, Professor Jorge
Camara, Professor Arthur Gueiros, Professora Bethania Assy. Ao Professor Salo
de Carvalho por suas valiosas contribuições e críticas. Ao professor Geraldo Pra-
do pelo incentivo acadêmico ao longo dos anos. Ao professor Juarez Cirino dos
Santos pelas palavras de estímulo.
A todos os servidores da UERJ, em especial aos da secretaria de pós-gradu-
ação. À Angélica, do ICC.
Aos amigos e colegas de pós-graduação da linha de Teoria e Filosofia do
Direito e de Direito Penal, em especial: Rafael, Daniel, Lívia, Karla, Fernanda,
Roberta, Leandro, Marco, Reinaldo, Eduardo, Ellen, Gabi, Ricardo e Marcus Vi-
ruous.
Aos amigos e colegas de graduação, que até hoje têm uma importante influ-
ência em tudo o que penso (a informalidade de nossas conversas frequentemen-
te mascara a profundidade da marca que vocês deixam). Especialmente: Rafael,
Bárbara, Gabi, Fernanda, Victor, Andrea, Luisa, Thais, Pedro, Alexandre, Julia,
Bruna, Carol, l\farina, Isabela, Daniel, Taiguara, Leandro, Clarissa e Gabriel. Com
um agradecimento especial para o amigo Vinicius Zanatta.
À minha mãe, pelo apoio. À Lara, pela compreensão. Ao meu pai, pelo
incentivo. A toda minha familia, pelo ânimo. À Bia, pelo carinho.

7
SUMÁRIO

PREFÁCIO ................................................................................................................................. 13
-
INTRO DU ÇAO........................................................................................................................23
1- PANO RAMA INI CI.AL.....................................................................................................25
2-ATEORIA CAUSAI.rNATURALISTA. ........................................................................37
3 - AS TENDÊNCIAS NEOKANTIANAS.....................................................................47
3.1 -A concepção neokantiana de conduta............................................... 50
4 - A TEORIA FINALISTA DA AÇÃO .............................................................................77
4.1 - Os pressupostos filosófico-teóricos do finalismo: Welzel e seu in-
determinismo relativo..................•.................................................................85

4.2- Breves apontamentos sobre suas consequências dogmáticas...........9~


4.2.1 - Vontade, finalidade e dolo.............................................................98
4.2.2 - A relação entre a conduta e o resultado...................................... 102
4.2.3 - O problema da função de unificnção........................................ 105
4.2.4-Condutasomissivas........................................................................ 106
4.2.5 - Condutas culposas........................................................................ 11 O
4.3 - Crimes de mera suspeita e a função de delimitação (o perigo de
um retorno ao normativismo) .................................................................. 112
4.4 - Uma ontologia normativa?...............................................................116
5 -AS TEORIA.S SOCIAIS...................................................................................................119
-
6 - A TEORIA NEGATWA DA AÇAO ...........................................................................129
7 - O MODELO DE JAKO BS............................................................................................. 143
7.1 - Algumas repercussões dogmáticas ................................................151
7.1.1 - Deveres negativos e positivos.................................................... 154
-
8 - A TEORIA PESSOAL DA AÇAO............................................................................... 161
#
8.1 - A teoria pessoal e algumas nuanças.............................................. 164
8.2 - Considerações finais ........................................................................... 167

9
9 - QUADRO TEÓRICO DOS MODELOS DE AÇÃO FUNDADOS NA FILO-
SOFIA DA LINGUAGEM ................................................................................................................................................................................. 169

9.1 - Pressupostos para a compreensão de Hnbermas ............................ 169

9. 1. 1 - A virnda linguística de Habermas..............................................180


9. 1.2 - Repercussões possíveis no Direito Penal.................................197
9.1.3 - A situação ideal de fula e outrns elaborações problemáticas........202
9 .1.4 - Considerações finais.. ......................................................................................................................................209
9.2 - Introdução e considerações gerais sobre Wittgenstein.................. 213
9.2.1 - Considerações finais (pertinentes ao Direito Penal) ......................221
9.2.2 - Considerações finais (pertinentes a wna crítica ontolôgica) ........222
10 - OS MODELOS ORIENTADOS PELA FILOSOFIA DA LINGUAGEM...227
10.1 - O conceito dogmático de ação ............................................................227

10.1.1 - A vontade e sua relação com a conduta.................................239


10.1.2 - Parâmetros demarcadores da ação comunicativa..................245
10.1.3 - Enquadramento final ............................................................................................................................249
10.2 - A concepção significativa de Vives Antón........................................251
10.2.1 - Intenção, intencionalidade e dolo............................................255

10.2.2 - Considernções finais ..................................................................266


10.3 - A teoria intcrsocial de George Fletcher............................................269

10.4 - A concepção significativa de Paulo César Busato.........................276


10.4.1 - Ação, intenção e significado.....................................................280
10.4.2 - Ação, liberdade e significado....................................................284
10.4.3 - Reflexos dogmáticos (as pretensões de relevância, ilicitude e
reprovação) .................................................................................286

10.4.3.1 - Pretensão de rclcvância.........................................287

10.4.3.2 - Outros patamares de pretensào...........................292

l 0.4.4 - Considerações finais..................................................................293


11 - UM NOVO HORIZONTE TEÓRICO PARA O FINALISM0....................295

10
11.1 - Trabalho, práxis e valor..........................................................................304
11.2 - A relação sujeito-objeto e a questão da liberdade do individuo.......309
12 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................315
REFEMN CIAS.....................................................................................................................336

11
PREFÁCIO

]11arez Cirino dos Santos

A discussão central do livro Teorias da co11d11ta - 011tecedenfes, le11dê11cias e impasses, do


Prof. Me. Renato Gomes de Araújo Rocha, tem por objeto as controvérsias entre
o n,odelo finalista de ação, introduzido no -Direito Penal por Hans \X'elzel, e o 111odrlo
con11111icativo de ação, desenvolvido na sociologia por Jürgen Habermàs. Outras
teorias da ação descritas no texto - como os modelos de ação ca11sol (causação
do resultado por um movimento voluntário, de Llszt e Beling), social (conduta
humana dominada ou dominável pela vontade, dotada de relevância social, de
Jescheck e \Vessels), negativo (evitável não evitação do resultado, na posição de
garantidor, de Herzberg e Behrendt) e pessoal (manifestação da personalidade, de
Roxin) - são deixados de lado neste Prefácio, por sua influência residual sobre o
tema. É suficiente dizer que a crítica comum ao 111odelo teleológico, de ser capaz de
explicar a ação dolosa (realização de atividade final), mas incapaz de explicar a
ação imprudente (realização defeituosa de ação (final) perigosa) e a omissão de
ação (não realização de ação (final) mandada), é equivocada - como se pode ver.

1. A teoria teleológica. O 111odelo teleológico de ação (como desi6111aremos o 111odelo


fi11alista, recuperando sua origem sociológica), desenvolvido pela filosofia grega e
pela sociologia moderna, é introduzido no Direito Penal com a célebre definição
de ação co1no direção fino/ do ca11salidade, distin 6ruindo a causalidade (cega) dos fatos
naturais da finalidade (vidente) da ação humana - afinal, o saber causal, adquirido
pela experiência e preservado como ciência, permite antecipar as consequências
da ação e diri6rir a causalidade para realização do fi1n, definida como s11ijetividade
objetivada, no texto - ou oijetil'oção da s11l!Jelil'l'dode, como definimos em outro lugar. 1
A estrutura teleológica da ação é assim descrita: a) ao nível do projeto in-
telectual: antecipação da finalidade (ou proposição do fi1n), seleção dos 1neios
para realizar o fim (retrospcctivamente) e consideração dos efeitos concomitan-
tes, necessários ou possíveis; b) ao nível da realização do projeto: emprego dos
1neios para produção do fim (com ou sem consequências colaterais, representa-
das como necessárias ou possíveis). O modelo teleológico de ação, originário da
filosofia de Aristóteles, preserva na moderna sociologia a mesma estrutura, como
aparece na definição de Habennas.2

C:IRINO DOS SANTOS,J. - Direito Pcn:iJ - p:irte gemi, 6~nliç:..q). r.


2
HABERMt\S,Jürgcn. Throrie deJ ko11111111nilwtil'm Ha11dd,u. Frnnkfurt an ~fain: Suhrk:imp, 1995, "·
1, p. 126-127). (Tradução livre) 'O ro11crilo de agir teleológico tsl,í drsdt Arislótelu no crntro dt1s lrori,u
Jilosóftrc1s dt1 ,1r,io. O ator rrc,!iz.,1 11111Ji111, 011 produz a oroni11rit1 de rm, estado dui:Jt1do, na medid,1 m, q11e, na
t1/11aç,io dadt11 urolht O! 111eios rapazes de prod11z.1i· o rmtltado t, dt 111odo adtquado, os t111prrg,1. "
13
O texto mostra as consequências sistemáticas do modelo teleológico de
ação sobre a estrutura do fato punível, constituída sobre dois conceitos funda-
mentais - wn produto do 1nodelo teleolôgico asswnido por todos os 1nodelos
de ação posteriores: a) o tipo de injusto, nas dimensões objetiva (resultado e
relação de causalidade) e subjetiva (dolo e imprudência); b) a culpabilidade (im-
putabilidade, consciência do injusto e exigibilidade de outra conduta).

2. A teoria da ação comunicativa. A ação co1111111icafiva relaciona-se às interações


de dois ou mais atores capazes de ação e de fala, em busca de u1na compreensão
para coordenarem, de modo consensual, suas ações. 3 Depois, assumindo a defini-
ção de li11gHagen1 desenvolvida por G. H. Mead, Habermas completa o conceito de
ação comunicativa 1nediante (a) a compreensão, ligada à renovação do conheci-
mento cultural, (b) a coordenação da ação, para integração social e solidarieda-
de e (e) a socialização, com a formação de identidades pessoais. 4
O texto de Renato Gomes mostra que a teoria de Haberinas do agir co1111111i-
cati1'0 está em oposição à teoria de Lukács, do trabalho como práx'is social (a relação
capital/trabalho assalariado, no capitalismo), segundo a teoria marxista da histó-
ria, ou materialismo histórico. Mais, demonstra que a teoria co1111111icafiva não é uma
concepção substancial da sociedade, mas uma teoria formal fundada no consenso
social - logo, assume o discurso do capital, como relação social fundamental -,
que acaba por legitimar a ideologia punitivista do populismo penal conte1nporâ-
neo. A racionalidade comunicativa - ao contrário da razão instrwnental - con-
(Dtr Bw,ff du tclcologischcn Handclns 1/thl Jtil AriJlolr/tJ i111 A1ittrlp1111k.l drr phi/01ophiJcht11 Ha11d-
l111{P_Jlhrorit. Dtr Alr.Jor VtruirkJkbt ti11t11 Z,nck bzp: bn1 irkt dn1 F.,i11trrlt11 ri11t1 rm1iil1Jchtt11 Z111/a11dt1,
1

indrm rr dit in drr,1t,ty,tbtnt11 Sit11alion t,fa((l,vtr.rprrcht11drn A1illrl 11iihll 1111d 1i1 ,grt((l,llrltr IIYei.rt amn11del'~)
l
HABERl\lAS,Jürgcn. Thtorir du konm111nikatit'tn 1-ln11del111. Frankfurt an Main: Suhrkamp, 1995,
v.l, p. 128). (fradução lh·rc) 'O 'ro11crito dr nrão signinc:ith·a relacio11a-1t, mftm, às intrraçõu dr pelo
n1mo1 dois 11ytito1 ,"(Jp,1'-r1 drfala t de nr,io, q11r co11tmrn1 (srj,1 ron, meio1 vrrúaü 011 exlraveroaiJ) 11n1a relaçiio
inlerpt11oal 01 alortJ b111ca111 111110 ron,prwuào robrt a 1il11açào de ação para ,oordt11artn1, dr n1odo ro111rn-
111nl, st111 pla1101 dr arão r, ron, irto, 111(1J nçõt1.
(Dtr Begrijf dt1 konm11111ik.ttlittt11Ha11dr/1111chlit11lkh brz.itht 1ich atif dir lnltraktio11 t'OII 111i11dt1lt11s ~ni
.rprarh- 1111d ha11dm11..P.J.Jiih("l" S11bjtklt11, dir (rti rs 111il t'trbaltn odrrrxlrat·trbnlm iWille/11) ri11t i11lrrprrsonale
Br,_irhmr..( tin._P_rhrn. Dit aktort11 JNchrn ti11t Vrnliind((l,1111..(1, iibtr dir Ha11d/111!P_JJÍ/J1nlio11, 11n1 ihrt J-la11dl111tv,1-
plâi1r 1111d dan1it ihrt Ha11dl1111..v,m ti11t'tn1thn1lith Z!' ,oordli1irrt11.)
4
HABER.MAS, Jürgcn. Throrie dt1 kon1n11111ikatit·rn J-la11de/111. Frankfurt an Main: Suhrkamp, 1995,
v.11, p. 208-209). (fr:idução livre) •~fob o OJ/'rdo fi111do11al da compreensão, a ação ,01111111icaliva
Jt~ à /radiiiio t à rr11ot'tlfàO do ,011htd111rnlo mll11ral,· rob o Mpecto da coordenação da ação, a ação
comunicaci,•a scn·e à integração social e à produção de solidariedade; 10b o aspecto da sociali-
zação, mjin,, a nrão ron11111kativa srn•t àfam,arão dt idmtidadu puroaiJ.
(Unltr drn, fimktio11alen Aspekt der Vcrstandigung dirnl kon1n11mik.alivts l-la11dr/11 drr Traditio11 1111d
der Ernt11trTII{( k.JIÍl11rrllt11 lf/i11t111; 1mltr dtn1 Asprkt drr 1-landlungskoordinierung ditnl t1 drr 1oz.ialt11
lnlrgralio1111111/ drr l-lrr1tell111{v, t-'011 Solidnriliil; 1111/er dm, Aspekt der Sozialisacion rthlieSJ!irh dient ko111-
n11111ikalit-'rJ Handr/11 dtr A111bild1111..". t'On prr1011nlt11 ldt11tiliilr11.)

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cebe a emancipação como produto de educação, e não da ação revolucionária
da teoria marxista, para a qual as instituições jurídico-políticas do capitalismo
são formas ideol6gicas estratégico-táticas que definem as condições históricas
concretas da luta de classes.
Sobre a virada linguística de Habermas (e implícito afastamento do marxis-
mo), em direção à compreensão das relações sociais por uma teoria interpretativa
do sentido - portanto, simples expressão simbólica da linguagem -, a tese mostra
a subordinação progressiva do agir teleológico (atividade orientada pelo fim) aos atos
de Joia (comunicação social), porque o agir co11sens11al e a atividade orie11tada pelo fim
possuem sentidos diferentes (em teoria da linguagem), com predominância do
agir co1111micati110, sempre orientado pelo co11se11so. Afinal, se a execução do plano
pressupõe coordenação com outra pessoa, então o agir comunicativo (como lin-
g11oge111) prevalece sobre o agir teleológico (como realização de fins).
Nessas condições, a ação comunicativa se reduz aos atos de fala da lingua-
gem, de natureza lomcio11ária, iloc11cio11ária e perloc11cio11ária, pelos quais Habermas
define o discurso como fator de consenso, avaliado conforme compreensibilidade,
verdade, sinceridade e correção. Como resultado, a ação co1111111icativa (orientada
pelo consenso), subordina a ação teleológica (orientada pelo fim): o consenso lin!:,>uÍsti-
co, fonte de reprodução simbólica da vida, faz desaparecer os conflitos históricos
externos (conquistas e subjugação de povos) e as contradições sociais internas
(proprietários do capital e força de trabalho). Essa denúncia é pioneira no Direito
Penal brasileiro.

3. A linguagem do agir comunicativo e o Direito Penal. Os atos lin!:,>uísticos


loc11cionários, imc11cionários e perloc11cionários do agir comunicativo teriam significados
curiosos no Direito Penal, como mostra o livro: a) a relação l0CJ1for/ 011vi11te atribui
ao autor do crime um enunciado com pretensão de validade extra-consensual; b)
a relação processual-penal atribui ao convencimento do Juiz papel de manifes-
tação jurisdicional de consenso; c) a relação sujeito/ norma explica a punição do
sujeito por ·violar wna norma consensual. Entretanto, no ho1nicídio com arma
de fogo, por exemplo, teríamos um enunciado destituído de pretensão de validade
comunicativa (pretensão de verdade, justiça, veracidade e compreensibilidade),
excluída na destruição da vida hwnana, em que o processo penal produz wn
juízo estigmatizante. Assim, em situações sociais problemáticas como o crime,
não existe espaço para o consenso da ação comunicativa: ao contrário, as situações
proble1náticas somente podem ser apreendidas por teorias teleológicas ou estratégicos
da ação, caracterizadas pela infl11ê11cia 11nilatera/, que substitui o consenso do discurso
comunicativo pelo co11flito próprio das finalidades de violência, dinheiro, poder ou
sexo da critninalidade. A linguística, como teoria discursiva da verdade conse11s11al,

15
exclui a teoria ontológica da verdade como correspondência representafão/ objeto,
assumida pelo modelo teleológico, diz Renato Gomes. Curto e grosso: o pro-
cesso penal como discurso de convencimento recíproco é i11co11vi11ce11te, porque a
contradição do processo mostra que o convencimento da outra parte é unilateral
- e não recíproco, menos ainda consensual.
Enfim, a conclusão de que a teoria do agir co1111111icativo representa um retro-
cesso na teoria do delito, é ousada e perturbadora: se os elementos do mundo
da vida estão em integração social, então a perturbação do mundo da vida constitui
a110111io, como contradição entre o n11111do do vida (Lebenswelt) e o sistnJJa soàol (a
relação capital/ trabalho assalariado), que promove a desigualdade e inviabiliza a de-
mocracia - que teorias co11se11s11ai.r costumam não ver.

4. A critica de Mészàros à ação comunicativa. A tese recorre à crítica de


1'1észàros (um dos maiores teóricos marxistas da atualidade), sobre o ecletismo
do agir con11111icotivo, que inclui o estrutural-funcionalismo, teorias sistêinicas e a
filosofia da linguagem: se não existem indicações de deter111inações sociais específi-
cas - por exemplo, as determinações de classe -, então o que unifica a sociedade
permanece um n1istério, exceto os "imperativos funcionais" aplicados a todos os
membros da sociedade. E continua Mészàros: se não existem agências sociais de
emancipação historicamente identificáveis, então o que resta (para Habermas)
seria uma circular dedução de co11cordá11cia e co11se11so, tudo garantido pela co111peté11-
cia con11111icatil'a, pois se desenvolvermos o disclfrso de modo suficiente, o resultado
será o co11se.1uo - diz Habermas.
Ainda: a teoria de Habermas exclui a práxis social, que permite substituir
a análise da economia política por teorias econômicas, com a refutação da teoria
do valor de Marx e a compreensão do processo de produção, não como unidade
contraditória entre capital/ trabalho assalariado, mas como simples processo de
trabalho, no qual o capitalista existe como forma legal/organizacional específica,
mascarando uma categoria da produção material sob a figura do titular de direitos
de propnºedade, que disfarça a relação capital/ trabalho assolanado nwna relação neutra
de ricos/pobres - diz l\1észàros, transcrito no livro. Então, é possível escamotear
as categorias dialéticas de forças prod11ti1111s e de relações de prod11ção, substituídas por
funcionais interaçc'3es de trabalho (segundo Parsons), nas quais a /11ta de classes
estaria confinada às contradições do século XlX, hoje substitwda pela teoria do
(01ue.11so do agir comunicativo, no seio da qual ocorre a autoexpansão do ,,alor de
lrofa, como simples dinâinica interna do desenvolvimento tecnológico dos pro-
cessos produtivos.
5. A filosofia da linguagem e a teoria da ação de Juarez Tavares. O conceito
de conduta de Juarez Tavares, fundado na relação entre a co11d11ta e a nat11reza da

16
11or111a, vincula uma pessoa concretizável no processo de co1JJ11nicação normativa - a
forma como define o sistema jurídico, com base na teoria de Habermas. O obje-
tivo desse grande professor de Direito Penal é claro, desde o princípio: construir
uma perspectiva garantista do cidadão, em bases normativa e co11111nicativa, com a
inserção do conceito de conduta em reflexões sistemáticas do Direito, para uma
crítica das proibições e determinações legais de ação. E, para realizar o propósito,
desvincula o Direito de toda abordagem 11at11ralista, ontológica ou sociológica - em
especial, excluindo o modelo teleológico de ação, substituído pelo agir con11111icativo,
de Habermas. T\.fas este parece ser um primeiro problema: a teoria da ação não
pertence ao Direito Penal - não é uma teoria da ação típica, menos ainda uma te-
oria do tipo de injusto, que pertencem ao Direito Penal; a teoria da ação pertence à
Sociologia, que estuda o comportamento humano como fato social, pelos modelos
teleológico, estratégico, normativo, dramatúrgico e, também, comunicativo da
ação - aliás, como descreve Habermas. 5
A crítica de Renato Gomes ressalva, com toda justiça, que a teoria jurídico-
-penal de Tavares representa o qr,e há de mais avançado na dogmática conle111porânea,
mas rejeita o conceito normativo e co11111nicativo de ação proposto por Tavares, que
parece transformar a natureza substantiva do conceito sociológico de ação em
um conceito adjetivo, como o tipo de i1!}11sto. Também refuta a crítica de Tavares
ao modelo teleológico de ação, que fala das ligações de \Velzel com Heidegger,
da subjetivação da conduta e da finalidade potencial nos crimes culposos, argu-
mentando que (a) as ligações de Habermas com Heidegger seriam mais estreitas,
(b) a ação humana é, necessariamente, objetit•açào da s11bjetividade - e, porrnnto, do
tipo de injusto - e (c) a finalidade potencial foi substituída pela lesão do dever de cuidado
na teoria de Welzel - aliás, como sabe Tavares, melhor que todos. Em defesa do
modelo teleológico - originário de Aristóteles, trabalhado por Max \Veber e assu-
mido por Marx (em célebre passagem do Capital) -, conclui: a) a compreensão
da ação como processo de comunicação segundo a filosofia da linguagem parece
uma posição idealista, (b) a maioria das ações delituosas são unilaterais e (c) a
ação comunicativa pode definir formas consensuais de comunicação social, mas
é incapaz de pensar atos unilaterais como o crime - exceto como tentativa de
con111nicação abortada-, diz o autor.
É verdade, que1n conhece os fundamentos filosóficos, a orientação ideo-
lógica e os objetivos políticos de Juarez Tavares - realmente, um dos maiores·
teóricos do Direito Penal da atualidade-, consegue identificar a motivação cien-
tífica da recepção da ação comunicativa por esse grande professor: desenvolver
argumentos limitadores da repressão penal classista (como mostra 1·1arx), racista
s HABERMAS,Jürgcn. J'heo,it drs kon11111miklllil'rn Ha11de/1u. Frankfurt an l\lain: Suhrkamp, 1995,
V. 1, P· 126-128.

17
(como ensina Foucault) e machista (como mostra o Feminismo). Contudo- em-
bora a contribuição de Habermas para a teoria da ação seja notável-, também
penso que o modelo co11se11s11al da ação comunicativa não é capaz de cumprir
aqueles papéis, em formações econômicas e políticas fundadas no mnjlilo social.

6. Outras teorias da ação. A teoria sig11[/frc1ti11a (Vives Antôn) e a teoria i11ler.roáal


(George Fletcher) da ação, também estudadas no texto, são teorias de interesse
científico limitado, de influência reJuzida e, a julgar por seus seguidores, confu-
sas. Apenas um comentário sobre Paulo Busato, discípulo de Vives Antún no
Brasil, também analisado no texto: uma tese marxista não pode perder tempo
com posições conservadoras, expressas em conceitos inconsistentes, do tipo (a)
'b mundo já 11/lrc1passo11 a etapa marxi.fta da divisão entre fapita/ e trabalho e das ,:lasses
divididas entre industriais e trabalhadores': (b) porque "passamos para o mundo da ex,-e-
dê11cia, q11e divide as pessoas entre os q11e consomem e os q11e não consomem': (e) concluindo
que 'a dinâmit:a do tons11mo ia dinámit:a do símbolo (. ..) q11e po,,,:o 011 nada tem a ver ,vm a
rtlafão estável e t)4.p/oratória do trobalho" (transcrito no texto, cf. nota 890, in, Direito
Penal: parte geral. São Paulo, Atlas, 2013, p. 249). Essas ideias não fazem jus
sequer a Habermas (origem filosófica da teoria), que diz mantera teoria de Marx
sobre as instituições-base da sociedade, baseadas no seu modo de produção.6

7. A categoria trabalho como modelo teleológico de ação (Lukács). O nú-


cleo da tese ontológica e teleológica radical de Renato Gomes, apresentada de
modo original e pela primeira vez na ciência penal brasileira, toma por base o
pensamento de Lukács sobre o trabalho, a consciência e a linguagem, cujos fun-
damentos filosóficos, expostos com competência e concisão no texto, merecem
ser sintetizados.
A transição do ser biológico para o ser social ocorre pelo trabalho, a forma
de interação sociedade/natureza - com a divisão do trabalho, a cooperação social
e o desenvolvimento da linguagem-, mediatizada pela proposição de fi11s e pela se/e-
fàO de meios adequados, processos elementares de pensamento abstrato.
Assim, como práxis social, o trabalho possui natureza ontológica, estruturado
pelo método teleológico, que define a proposição de fins para satisfação de necessi-
dades humanas, e pelo método t'a11Ja/, que decide sobre a seleção dos 1neios para
realizar o fim proposto - o que pressupõe (a) investigação das leis que determi-
6
HABE~fAS, Jürgt!n. Thtorit du kon1n11111ikati1't11 Ha11dtl111. Frankfurt an Main: Suhrkamp, 1995,
v. 2, p. 251. (Tradução livrt!) ''J.Jarx dt1rrtvt aJ i111lil11içõt1-bo1t dt 11n1n 1odtdadt, b,mad,1 t1111t11111odo dt
prod11rão, ptlo q11t dtvtn101 mn11lrr 110 smlido dt q11t rndnfom,oção 1ori11/ptm,ilt diftrt11lt1 n1odo1 dt prod11ção. "
("Almx burhrtibl dit Ba1iJi111lill1lio11m ti11tr Gutl!Jrhqft a11ha11d ihrtr pod11klio1wvrist, 1vobti wir i111 Si1111,
bthaltm n11ü1m, doss jtdt Grl!Hhajtsfor111olio11 ~tr1rhitdm, Prod11klio1111vrüm (1111d Vtrbi11d1111!/II l'OII
Prod11klio11J1PtÍJt11) Zftlii11t. ')

18
nam os objetos naturais e (b) certo nível de conhecimento dessas leis naturais. A
experiénda prática do trabalho, possível pelo conhecimento científico das relações
111eio/fim e pela consequente projeção e realização do fim mediante aplicação dos
meios selecionados, é um processo teleológico (direção final da causalidade) sobre
realidades ontol~~icas (emprego de meios sobre o objeto do trabalho), assim consti-
tuído: a) objeto do trabalho - matéria da natureza para transformação; b) meios
de trabalho - a tecnologia, ou instrumentos de transformação da natureza; e)
processo de trabalho - aplicação dos meios aos objetos materiais para produzir
os resultados projetados - a relação entre potê11da e essénda, se!,>undo os gregos.
No processo de trabalho, a consdênda h111JJana constitui a apropriação psíquica
do real natural (objeto do trabalho) e do real lra11sforn1ado (resultado real ideado
pelo trabalho) - processos psíquicos que reproduzem o real como concreto pensado,
como dizia Marx sobre o método em economia política. Em outras palavras, a
consciênda h111nana é a reprodução (espelhamento) da realidade por representações
neurônicas de processos 011tológicos determinados por causas naturais Qeis causais)
e sociais (trabalho humano).
No texto apresentado, o binômio necessidade/ satisfação que configura o
ser humano é mediado pelo trabalho, conforme a relação: necessidade - traba-
lho - satisfação da necessidade. O pressuposto da relação é a correta reprodu-
ção psíquica das ca11salidades naturais e a consequente programação teleológica do
trabalho, pela qual o sujeito transforma o mundo produzindo utilidades (valores
de uso), cujo preço de mercado é medido pelo tempo (valor de troca). A práxis
social, como manipulação teleológica da causalidade pelo processo de trabalho,
é fundada na reprodução (ou espelhamento) consciente das leis causais - origem
da relação sujeito/ objeto-, pela qual os conceitos do real aparecem sob a forma
de linguagem, necessária à reprodução psíquica do real e à comunicação social
correspondente.
A passagem do ser biol{~ico (produto das determinações do passado, que
engendra o presente como herança genética) para o ser social (produto da ação
teleológica do trabalho, que produz o futuro pelas determinações do presente),
explica o dever ser que condiciona o sujeito e disciplina a criação do valor (econô-
mico), medido pelo tempo de trabalho social necessário. Eis a relação dialética
sujeito/objeto: a) o sujeito, cuja ação teleológica objetiva (processo de traba-
lho) produz o futuro como utilidade, está em transformação ontológica subjetiva
permanente pela adaptação à disciplina do trabalho e controle progressivo dos
instintos - no capitalismo, tudo para ampliação do capital; b) o objeto do traba-
lho, como natureza transformada pela tecnologia para criar utilidades e satisfazer
necessidades - a mercadoria, distribuída no mercado como valor de uso dotado
de valor de troca.

19
8. Ser e linguagem em Marx. Como se sabe, na base da teoria de Lukács estão
conceitos de Marx (e de Engels) sobre trabalho, co11sciê11cia e li11g11age111, cuja explici-
tação pode reforçar a excelente tese de Renato Gomes.
Para começar, o ser compreende a nafl,reza e a sociedade, porque o ser social é
o real processo de vida material do ho1nem, expresso por sua consciência. Na
relação dialética ser/consciência, o ser é o dado primário fundante, mas a consci-
ência também exerce poder determinante sobre as relações materiais.7 Em outro
texto, Marx define a consciência humana - e a linb>uage1n, 1neio de estruturação
e de comunicação da consciência - como produto real-prático das necessidades
das relações sociais. A ação de comer e beber - igual em todos os animais - pres-
supõe o domínio de coisas para satisfazer necessidades, com a experiência de
identificação das coisas e das necessidades internalizada e comunicada pela lin-
guagem. A base real-prática da co11sciê11cia e da li11guagen1 é o processo de produção
material, pelo qual ocorre a apropriação de coisas para satisfação de necessidades,
com a representação e comunicação da experiência por signos linguísticos. Em
síntese, a linguagem exprime a experiência prática para satisfação de necessidades
humanas por 1neio dos processos de trabalho.8 Mais: o trabalho não é sünples
atuação do homem sobre a natureza exterior, mas também processo de modi-
ficação da natureza interior do homem9 - portanto, uma atividade consciente
dirigida pelo fim, que transforma a natureza externa e produz a natureza interna
do próprio homem. 10

7
~1ARX/ENGELS. Dit de11tsche ldrolog/t. l\fE\X~ 3, 1845, p. 26 s. (fradução livrt=). "Os ho111t11s
siio os prod1llorn de mas reprrsmlafÕts, ideim ( . . .). A co111rii11ria 11ão pQde 111111m ser algo difire11le. do s,r
crmsrir11lt1 t o srr do úo111r111 i o Jtll rralprorrJIQ de f.'idn. "
('Vit lvfm.Irhm 1i11d dit Prod11z.mtm ihrrr Vontelhmgen, ldtt11 ( . ..). Dns Bew111slseli1 lea11JJ 11ie. efu,as A11-
drrs 1ei11 ais das bru'llsJ/t Sri11, 1111d das Sti11 dtr Menschm ÍJI ihr utirk/ichrr Lepmsprozus'~)
1
~IARX, Rrmd;,Joum ~' A. ll7ni11er. Lehrbuch der Politischt:n Ôkonomie/1879).
9
MARX. Das Kapital, v. 1, p. 192. {Tradução livre) "O trabalho é, imediatamente, um
processo entre homem e natureza, um processo pelo qual o homem, através de sua própria
ação, mediatiza, regula e controla sua troca material com a natureza. Ele se defronta com
a matéria natural como um poder da natureza. Ele coloca em movimento as forças naturais
pertencentes ao seu corpo, braços, penas, cabeça e mãos para apropriar a matéria natural
em uma forma útil para sua vida".
("Der Arbeit ist zunãchst ein Pozess zwischen Mensc/1 und Natur, ein Prozess, worin der
Mensch seinen Stoffwechse/ mit der Natur durch seine eigne Tat vermitte/t, regelt und kon-
tro/liert. Er tritt dem Naturstoff se/bst ais eine Naturmacht gegeniiber. Die seiner Leib/i-
c/1keit angehorige11 Naturkrãfte, Arme und Beine, Kopf und Hand, setz er in Bewegung, um
sich den Naturstoff in einer fiir sein eignes Leben brauchbaren Form anzueignen. '')
10
ENGELS, Frit:drich, Anlril der Arbeit an drr Mensrhu1rrd1111g des Affi11, 1876. (fradução livre). "O
lrnbalho [. ..} i n pni11rim <011diriiofi111da111r11/al de lod,1 vida h11111nna t, 11a vtrdnde, r,11 11111 /ai gra11 q11e, mi
rn1o Jrlllido, de11rrÍt1IIIOJ dizer: tlt (01/Jlrói O próprio ho111en1. ,,

20
Em Ivfarx, a descrição da natureza teleológica da ação de trabalho - portan-
to, do agirprod11ti110, diríamos - aparece na célebre comparação com a atividade da
aranha e das abelhas: a aranha realiza operações iguais às do tecelão, e a abelha
envergonha muito arqwteto na construção de sua colmeia; mas o pior arquiteto
supera a melhor abelha, porque projeta sua casa na própria cabeça, antecipan-
do na representação psíquica o resultado final do processo de trabalho. Nesse
processo, o homem não se limita a modificar a natureza, mas realiza seus fins
na natureza, pelo conhecimento de modos de fazer conforme leis naturais, que
pennite1n subordinar a atividade produtiva à sua vontade. 11

9. Conclusão. O trabalho de Renato Gomes de Araújo Rocha, com o qual ob-


teve o título de Mestre na UERJ, foi escrito sob a lúcida orientação do Professor
Doutor Nilo Batista - cujos méritos reconhecidos e incontestáveis dispensam
qualquer apresentação - e representa um estudo denso, refletido, profundo e,
acitna de tudo, didático da teoria da ação. É, sem dúvida, wna memorável contri-
buição cienúfica ao conceito de ação, sem paralelo na literatura penal contempo-
rânea. A categoria econômica do trabalho, como atividade produtiva orientada
pelo fi1n, te1n potencial sociológico para refundar o modelo teleológico de ação
e, assim, redimir as bases ontológicas do conceito, pensado como objeto do tra-
balho, meios de trabalho, produto do trabalho, verdadeiras categorias do ser,
integrantes da natureza e da sociedade, segundo o materialismo histórico.

("O,r Arbfil {.../ isl dit mlr Gmndbrdin._~11n1, allts 111rnsrhlirbtn Ltbrnr, 11nd zµ-ar in tint111 sokhrn Gmdr,
dt1JJ wir in gtwüssr111 Sinn ia..~m 11JiiJ1rn: Sir htJI drn A1rnirhrn itlbsl1,urh,!ffen. '1
11
l\f~"'{. Das lv,pit11/, v. 1, p. 193. (frndução livre). 'VJJ1a aranha rxtml,1 opmJfÕtJ 1t111rlhanlu à.r do
lr«ltio, r 11111,1 ,,br/ba tflt'r'l,onha JJ111ilo t1rq11ilrlo 111rdi,mlt a ronitmrJo dt ma rob11ria. M,,s o q11r diJtin!,Hr,
dmlr o prindpio, opior t11YJ11Ílrlo da 111rlbor tJbr/h11, i q11t rir lr111 ronslmído ,, rasa r111111,1 rabrra, anlu q11t a
ltnha tdijimdo. No ji11al do pro«uo de /nJb,,lho aparrrr 11111 rr111/lado qHr, no '°""f'O do 111m11u,já txisli,1 na
rrprr1ent,1r,io do trub,1lht1dor, portt1nlo,já rxisti,, dt 111odo idt11l Não i q11t rlt tJ/)tnas produz. H111a 11111d,m;a
drfon11,1 da nah1rrz.n; rir m1liz.a na nt1h1rtz.a, ao 111m110 lt111po, o stllj,i11, poiI rir iabr q11r o 111odo dt smJaz.,r
drlt1111in,1 ro1110 lti, ,i q11t1I tlr prrri1,1 s11bonlin,,r a m,, vonladr. "
(''Hinr Spi,mt vrrrirhlrl Opm,lionrn, dit drnrn dts IJ7rbm ahndn, ,md rint JJirnt btsrhài11I d111Th drn Bt1H
ihrrr ll~1rhsz.rlltn 111anrhrn 111m1rhlirhrn Bt1H111rislrr. fl1/tJS t1btr von vomhrrrin dtn irhtltrhlrslrn B11H111ultr
vor dtr brsltn JJirnt ,1111Z!irbntl, iII, dtts tr dir Zrlk in 1tint111 Kopf grb,1HI hal, brzror tr l'it in JP'arhs bmtl. A111
Hdt dti Arbtiliproz.r11rs lw111111I tin Ivsullal htrt1111 das bri,11 }Jf!.illn dustlbtn srbon in dtr V0r11rl/11ng drs
Arbtiltrr, also srhon idrrl/1 vorlJandrn wc1r. Nirhl d,ui tr nllT'tinr Fonmmiitdmm1, dt1 Natiirúrbtn /mJ,ir/eJ;
tr wrwir/e/irhl i111 Nt1tiirlirhrn Z!f!.ltirh itinrn Zwrrlr., dtn tr JJ7tin, dtr dir Art Hn JJ7tiir Jtinu T11n1 aú
Gtstlz. besli111111/ und dt111 tr srinrn fr/illtn 11nltr0nlntn 1111111. 'J

21
INTRODUÇÃO

A intenção deste livro é tornar mais acessível e mais clara a discussão sobre as
teorias da conduta no Direito Penal. Trata-se de wna velha discussão que, apesar
de sua importância, frequentemente chega até os leitores brasileiros de forma
tangencial e por citações indiretas. Para poder se levar o debate um pouco mais a
sério, torna-se imprescindível mna reflexão 1nais detida sobre o tema, como vem
ocorrendo nos últimos anos. 12
Além da democratização das ideias e do debate, a importância da discussão
e1npreendida aqui diz respeito também a concretas questões do&11T1áticas. Como
se verá mais à frente, dependendo da posição que se adote, do modelo de condu-
ta incorporado, haverá distintas e profundas repercussões sobre toda a teoria do
delito - desde questões envolvendo o tipo até questôes sobre a culpabilidade e
concurso de agentes. E, como era de se esperar, isso implica um maior ou menor
potencial limitador do poder punitivo.
Serão abordadas as teorias causais, neokantianas, finalistas, sociais, negati-
vas, comunicativas etc. O fio condutor que atravessa quase todos os capítulos,
contudo, é o esforço por notar quando e em quais pontos certas tendências e cor-
rentes podem ser vinculadas a wna maior ou menor ampliação do normativis1no
no Direito Penal. Isso porque, contemporaneamente, a expansão de habilitação
de poder punitivo parece se dar pa,i pass11 às pulsões por normativização no Di-
reito Penal. Por força dessa constatação, a posição teórica assu1nida aqui parte
da concepção de que o finalismo - pelo reconhecimento de estrun1ras lógico-
-objetivas da maneira comparativamente mais coerente - é a corrente melhor
capacitada para estabelecer os mais se!,ruros limites ao siste1na de justiça penal.
Infelizmente, ainda são raros os textos que, ao estudar a conduta, incluam as
formulações mais recentes - nomeadamente, as teorias da ação fundadas sobre a
Filosofia da Lin6,uage1n. Por isso, além de um panorama gemi sobre as teorias da con-
duta, buscou-se aqui analisar de forma mais pormenorizada essas teorias de base lin-
guística tanto em sua fundamenttção teórica quanto em suas derivações dogmáticas.
O estudo da fundmnentação teórica das concepçôes co1nunicativas itnporta
para se entender da forma mais completa possível o que esses autores defendem
12 D'AVlLA, i-:ábio Roberto. O conceito de n~o cm dirdto penal: linhas cáticas sobre a ndL-qunção
e utilicfadc dn :içiio n.1 construção te<>àet do crime. Porto Ak·gre: Rie1rdo Lcnz, 2003, p. 279-304;
GRECO, 1.Aús. Tem futuro o conceito de ação? ln: Temas de direito pcn.'ll: parte !:,'Crnl. Rio de J:mci-
ro: Rcnovnr, 2008, p. 147-169; LOBATO,José Danilo T:i,·ares. Há espaço p:tr:t o conceito de ação
n., teorin do delito do século XXI? ln: Revista Liberdades, n. t 1, set-dez. 2012. p. 51-68; SOUZA,
Artur de Brito Guciros. A teoria da ação rui doutrina de Juat'C"t: Tnv:ues: a construção de um direito
penal de g:1r:mti:1. ln: Direito penal como crítiet da pena: estudos cm homenagem nJunrcz Tavares.
São Paulo: ~fr,rcial Pons, 2012. p. 281-300 etc.
23
e também por ser o principal elemento a habilitar uma análise de coerência dessas
perspectivas, para que a crítica dogmática não se esgote em si mesma, pois, como
se irá perceber nessa e em tantas outras teorias da conduta, sua instru1nentaliza-
ção pressupõe um modelo de sociedade. Não obstante, a análise pormenorizada
desse fundamento teórico poderia ser dispensada caso ela já tivesse sido realizada
antes co1n o intuito de explicitar seus pontos de contato co1n o Direito Penal -
como será feito aqui.
Por fim, chamamos atenção para outro ponto central do livro: a partir do
conceito de prá.)<r's, como desenvolvido por Marx e Luk,ícs, pretende-se pro1no-
vcr uma renovação da fundamentação teórico-filosófica do finalismo, de forma
a superar criticamente a concepção de \Velzel, a fim de aproveitar o que ela tem
de melhor e rejeitar seus equívocos. Trata-se, portanto, de uma reapropriação do
finalismo pela proposição de um novo horizonte teórico que permita, ao menos
esperamos, desenvolver os pontos problemáticos de forma a torná-los tenden-
cialmente mais frutíferos.

24
1 - PANORAMA INICIAL13

O conceito de ação parece ter sido inserido sub-repticiamente na teoria do delito,


pois as primeiras levas de penalistas furtavam-se, e1n sua maioria, de discutir dire-
tamente o assunto seja por seu alto grau de abstração, seja por reputarem eviden-
te sua pertinência ao sistema de Direito Penal, 14 assim como ocorreu com Karl
von Grolmann e Ansclm von Fcuerbach, e seus respectivos herdeiros. 15 Ade1nais,
como será exposto com mais detalhes, a trajetória dogmática do conceito de ação
é composta não só pelo esforço em decantá-la do conceito de antijurídicidade,
1nas ta1nbém do conceito de culpabilidade (em seu sentido clássico).
Os modelos apresentados pelos velhos sistemas de delito podem ser tra-
çados até as propostas de Grolmann, que estrutura o delito em faceta objetiva e
subjetiva, e de Feuerbach, que co1npartimenta o delito em elementos necessários
e acidentais. Nos sistemas afins ao de Grolmann já se encontram dois elementos
da ação: feito e vontade, mas a relação entre ambos não consegue muito espaço
e seu vínculo últi1no com a ação é ofuscado pelo agrupamento mecânico desses
elementos. Assim, a distribuição dos elementos em seu sistema de delito aparece
como uma repercussão dos dois principais componentes (vontade e feito), rele-
gando à ação um papel diretivo itnplícito no sistetna. 16
Nos sistemas afins ao de Feuerbach, todos os elementos da ação encon-
traram acolhida (feito, vontade e a relação entre ambos), mas não entre os com-
ponentes necessários do delito, co1no se poderia presu1nir. O feito é absorvido
como elemento necessário, a vontade é inserida entre as condições acidentais e,
por isso, a relação entre feito e vontade precisaria ser remetida a uma terceira
perspectiva, para a qual foi eleita a lei penal. Dessa maneira, a aplicação da lei
penal aparece sob a rubrica de ti11p11tação, mas é delimitada como a relação entre
a determinação da vontade contrária à lei como causa e a ação delitiva como
efeito.17

IJ
Por uma qm:st:ío de tempo não trntaremos da Escola Toscana, sem com isso ignor:irmos sua
import:incia geral e sua enorme influência entre os pt:nal.istas brasileiros.
14
"Até então, :t construç~o do concdto de ação não tinha estrutura própria e era concretizada
através da moral, inclush'e para Carrara, que defendia a origem divina do Din:.ito, j:í que parte -
para chegar :is suas conclusões - de premissas jusnaturnlistas". BÉZE, Patrícia i\lothé Gliocht:.
Concurso formal e crime continuado. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 08.
IS
RADBRUCH, Gustnv. RI ro11rrplo dt arrió11y 111 i11,portanrin pnm ri sislr111n dt drrrrho pmal. .Montt:-
video: Bdd·: 2011. p. 108-11.
16
RADBRUCH, Gustav. E/ ro11rrplo dr arriú11... p. 108-11.
17
"(...) clie Be:dehung einer strafbaren Handlung ais \X'irkung auf dnt: dem Strnfgesetze wi-
dersprechende Willensbestimmung ais Ursache" ou "la rdación de una acción punible como

25
Como esclarece Patrícia Glioche, no quadro mais geral da Escola Clássica
(cujos expoentes mais destacados foram Francesco Carrara e Anselm von Feuer-
bach) o delito aparece co1no u1n ente jurídico e a responsabilidade jurídico-penal
se funda sobre a responsabilidade moral e, consequentemente, o livre-arbítrio. A
própria noção de vontade livre e a de responsabilidade moral eram pressupostas
à ideia da pena co1no retribuição. Feuerbach, não se deve esquecer, foj sobre1na-
neira influenciado pelo pensamento de l(ant. 18
Por questões de lógica (por não ser aceitável, para muitos, elementos "al-
ternativa1nente necessários": os elementos acidentais), o sistema de Grolmann
encontrou maior repercussão. Sem embargo, esse sistema acabou por incorporar
a ideia de imputação do modelo de Feuerbach para tratar da relação entre os
componentes objetivos e subjetivos, os quais deixaria1n de ser agregados 1necani-
camente e de manter uma relação imediata um com o outro. Por sua concepção
originária remeter à teoria da norma, a própria concepção de imputação precisou
ser reformulada de maneira a que a teoria do delito não se visse subsumida à
teoria da lei. 19
Consequentemente, a noção <le jmputação passou a ser tratada dentro da
teoria do delito e a asswnir uma posição 1nais ou menos autôno1na diante das
dimensões objetiva e subjetiva. Parte da trajetória da imputação, portanto, é a
de sua autonomização ou subordinação (dependendo da inclinação do autor) às
facetas objetiva ou subjetiva do delito. Co1n isso, cuhnina sua trajetória e1n Karl
Binding com a tripartição do delito em: feito (aspecto objetivo), culpabilidade
(aspecto subjetivo) e imputação.20
Diante dessa trajetória é possível entender co1no há que1n aq~rumente que o
papel da ação no sistema do delito é oposto à forma de seu surgimento: enquan-
to, na trajetória dos modelos de delito, a ação é analisada sob a rubrica da impu-
tação (como nos autores hegelianos, infra) e, assün, frequente1nente subsu1nida a
juízos valorativos; como componente dos modelos de delito ela assume um stat11s
de elemento fático, que delimita os juízos de imputação. 21

efocto, con una dt::cisión ,·olitiv:i contraria a la ley penal como causa,,, RADBRUCH, Gustav.
E/ ro1l(epto de 1mió11... p. 112; BÉZE, Patríci:i Motht: Glioche. Op. Cit. p. 08.
18 BÉZE, Patrícia ~lotht: Glioche. Op. Cit. p. 08-9.
19 RADBRUCH, Gust:1,·. F:.I ro1/frpto dr nrâ<i11... p. 111-3.
"(...) si ,.fia se: subordina ai bdo objeti,·o o (como en algunos defensores particulares dd sistema
de: Grolmann, por c:jemplo, Rosshirt, Henkt:: y Jarkc:) ai lado subjc:tivo, o bic:n a rlln se: subordi-
nan d lado objetivo o (como c:n KJc:nzc:) subjetivo, no puedt:: mc:diar entre las focc:tas volitiva
y f:ictica, y, :mtes bic:n, riem: que: coordinam: con dias. As{ se llcga, con Binding, a la división
de la teoria dd ddito en d aspecto de b culpabilidad, d aspt::cto dd ht::cho y la imputación".
RADBRUCH, Gusuv. E/ ,o,l(epto de nrdó11... p. 112-3.
21 RADBRUCH, Gust:tv. E/ ro11rtpto dr a,dó11... p. 111-4.

26
Parte da trajetória dogmática indicaria - o desenvolvimento dos sistemas
de Grolmann e Feuerbach -, portanto, como a imputação se estabelece como o
juízo que concilia feito e vontade sob a rubrica (unificadora) da ação;22 isso fre-
quentemente sigrúfica, todavia, a coincidência entre ação e imputação (atribuição
do feito à vontade). Por isso, para Radbruch, por exemplo, a conclusão de que a
ação seria wn componente fático ao qual se relaciona o juízo de imputação, e nele
se esgota, seria uma inversão. 23
Em princípio, seriam dois os componentes no juízo de imputação: a relação
entre querer e fato (o fato como consequência da vontade) e a relação entre foto
e conteúdo da vontade (se o fato concreto corresponde mais ou menos ao con-
teúdo do querer). Por isso, aparentemente, na concepção de imputação proposta
por Feuerbach- a relação entre a determinação da vontade contrária à lei c01no
causa e a ação delitiva como efeito - estaria abordada apenas uma das relações
de imputação. Radbruch, no entanto, sublinha que a outra relação também está
contida, pois já estaria inclusa (na noção de causalidade da vontade para o feito)
a ideia de que a consequência da vontade deve corresponder de alguma forma à
representação, ao seu conteúdo.24
Seria, assim, wn equívoco recorrente a tendência de dissolver o conteúdo da
vontade na causalidade da vontade, tratando os delitos culposos, consequentemen-
te, por meio da seguinte disjuntiva: ou a ausência de vont1de implica a negação
da imputação e consequentemente da ação; ou afirma-se alb>utn tipo de vontade
direcionada ao resultado (deduzido do conceito de culpabilidade da vontade), para
ser possível afirmar a causalidade e, subsequentemente, imput1ção e ação. 25 Essa
22
''Ya antes de csto los sistemas de tendenci:l hrrolmani.10.1 estaban orienttdos h.1ci.1 la acción. Ahorn, con
d conc<.-pto de imputtción, nl\iernn que asimil:ir tambic'.:n d contenido de los dementos de la primem.
Sólo que en ellos tod:wfa no se hizo jusrici.1 ai concepto de :tcción en sí mismo. Sin embargo, pronto
hubo de m:uúfesttrse b necesid:id de rttmplazar por :tlgún otro d concepto de imputtciún. No sin
fund:tmcnto Feuerooch b e.~1lllinó dl-sde d punto de \istt de la aplicación de la Jey. L1 impumción es
un hccho proces:tl, un:t acciún judici.11, nús precisamente, un juicio judici.11; pero la unión de las fuce-
tis volitiva y f.íctica dc:l ddito no ocurre sóJo c::n d proceso, y un juicio judici.11 sobre su existt=nci.1 no
puede ser demento dd supuesto de hecho criminoso. No obstante, r esto lo p:isó por alto Ft=uerbach,
b situación f.icticn constatada medi:mte d juicio judicial pt:rtenece :tl supuesto de hecho en la reocfa de!
delito. Y estt situación f.ktic:i es b ,mü,I'. RADBRUCH, Gusta\~ E/ ro11rrp10 rk aaió11... p. 113-4.
2.l
Ibidem, p. 113-4.
"O sca, fascinados por el indeterminismo, se consideró la libert:td cual elemento conceptual de
la voluntad, pero se creyó necesario exigir que la libert.1d de la \·oluntad no sea desgobernada
por represcntacioncs erróneas y, antes bien, que las represent:tdoncs ofreddas a la ekcción de
la voluntad correspond:m a la realid:id; volunrad libre, lo que sihrnifica voluntad cn general, r 'li-
bre cnusalid:id' de l:i volunttd, es dc:cir, causalidad de la voluntad cn gener:tl, est:ín de :mtcm:ino
:msentes si c:l 9ue obró fue apenas objeth·amente causal respecto dei hecho, y sólo concurren
cuando él, adem:ís, sedio cuc:nt:t de lo que hacfa". lbidcm, p. 114-5.
:?S "Dr /,, propun"dv11 dr q11r lm11bii11 '" mlp" srrit1 mlpabilid,,d dr /,, ru/11n/{l(I, sr drd,gu q11r, ,mi11is111u, ri
rrmlt,,do prud11ridu mlp<Js,1111mfr timr q11r srr dr ,1(~1í11 111udu q11trido, time qur romsp,mdrr ,,/ ru11/r11id<J dr

27
confusão dever-se-ia, dentre outras coisas, ao caráter equívoco do termo vo111t1de - o
9ual, na culpabilidade da vontade, assumiria a acepção de caráter.
Os grandes responsáveis pela 1naterialização do conceito de ação, o 9ual
antes se encontrava dissolvido no sisten1a de Direito Penal, foram os discípulos
26
penalistas de Hegel: Julius F. H. Abegg (uhrb11ch der Strafrechts11lisse11schaft, 1836),
Albert Friedrich Berner (Gn111dli11ie11 der crimi11alisti1che11 bJJp11tatio11slehre, 1843)27 e
28
Christian Reinhold Kõstlin (Syste!JJ des de11fschen Strafrechts: al/ge1JJe.iner Tei/, 1855),
influenciados por Johann Ulrich \X'irth (SJ sfe111 der spek11/ativeJJ Ethik, 1841 ), l(arl
1

Lud\\;g l\1ichelet (De doli et c11lpae i11j11re e1i111i11ali 11otio11ib11s, 1824) e o próprio Hegel
(Rtrhtsphilosophie, 1821).ZCJ

ln tYJhmtnd, por tanto, que incluso en este caso estaria dada la causalidad de la voluntad en d
sentido de esa época y, con c::Uo, imput:ición )' acción". Ibidem, p. 116.
"Por outro fado, Abc::gg trabalha o problema da imputação ressaltando que seus pressupostos são
consciê=nci:i, ,rontnde e extemalização de um result::ido como efdto de um comportamento humano.
O crime não consiste em mera caus:ição, mas em um comporrnmento culpável. (...) a ação é vista
como um dos dt:mt:ntos t1ue compÕt: a imputação, junto da vont:idc do futo e do próprio fato, este
entendido como um objetivo possh·d, conhecido e :tlmej:ido ou como consciência da possibilidade
de c:vit:içào do resultado não e\ritado". LOBATO,José Danilo Tavares. Op. Cit. p. 54.
Z7 "Interessa notar que Bemer pensou o mo\'Ímento como uma externalização da vontade, ou
seja, como um mcio qut: dá \·ida à vontade em um agir, o que poderia ser denominado como
ação. Apesar de sua reft:ri:nci:1 ao movimento, esta é brc::ve. Este concdto de ação não se ocupa
da problemática mecmicisu, mas do problema d:1 vontade, eis que, para Berner, o conceito
de ação estaria englobado no conceito de imputação. Em sua primeira obra, Bt!rner já ddxara
claro que o importante era a concessão de: sentido ao movimento e por isso a liberdade estaria
diretamente ligada à Teoria da Imputação. Dessa forma, Bc:rm:r clistins,ruia os movimentos
humanos daqudes produzidos pda natureza". Ibidem, p. 53-4.
.?I "Kostlin assumiu a representação da ideia de: vontade, que fundamenta a filosofia jurídica de
Hc:gd, como uma sólida base para a formação do conceito de ação criminosa. Entendeu t,m-
bt!m que esta tarefo seria facilitada caso se ligasse à totalidade da Teoria Criminal da Imputação
(...). Dc:ntro da ideia de imputação, Küstlin distinguia a presença de uma imputaç:10 de fato e
uma imputação de direito, mas não perct:bia nenhuma dift:rença, de base, para a questão moral.
No entanto, importa realçar que os probh:mas da vontade: e do arbítrio dominaram as nnáliscs
feitas por Kõstlin sobre o conceito de: ação. Não por outra rnzão, o dolo e a culpa foram traba-
lhados no qut: seria o lado subjt:tÍ\'o da ação". Ibidem, p. 53.
:., RADBRUCH, Gusuv. E/ ro11rc-pto de nrrió11... p. 117. Em st:ntido oposto, afirma LOBATO
(2012, p. 52): "Em realidade, Michdet não formub propriamente um conceito de ação, mas
tc:oriza sobre a imputação da ação criminal. Assim, o faz no c:ipítulo Dr i111p11tntio11e nc/i(J1111111, que
principia a sua tese. Para l\fichc:let, o Ü\•n:-arbítrio é o demento central do crime, uma vez qm: o
crime ~ entendido como uma ação voluntárin lesiva. Dessa forma, parece ser demasiad:imente
excessiv:i a afirmativa de Zaffarorú de qut: Radbruch concedia à Hegel a paternidade do con-
ceito penal de ação, como consequi:ncia da teoria da pc::na hegdiana baseada no pensamento de
que a condut.1 crinúnos:i seria a negação <lo Direito, o que exigiri:1 :i liberdade de ação daquele
que nes,ra o Direito. É certo que:: houve inff ui:ncia de Hegel, mas n:io a ponto de lhe: ser atribuída
a paterrúdadc: em questão".

28
A ideia por trás das concepções hegelianas de ação, como já se men-
cionou, era a de uma identidade entre ação e imputação. Assim, a imputação
não seria um componente externo a ser agregado à conduta, 1nas pertencen-
te à própria conduta, conúdo nela. Nesta tendência teórica, as fronteiras entre
ação e imputação eram idênticas, com a nuança de que a imputação seria o juízo
que torna o feito uma ação. Comungavaf""! de semelhantes concepções autores
como Hugo Halschner (Das pre11Jlische Strafrecht, 1855-9), Carl Georg von \Vaê:hter
(Das ko"i1iglich sdêhsische ,md das thlÍii11gische Strafrechl, 1857), Jodocus D. H. Temme
(Lehrb11ch des Preussischm Strafrechts, 1853), \'v'ilhelm E1nil \Vahlberg (Gr1111dz!ige der
S trajrechtlichm Z11rech11111{P,5lehre, 1857), Hugo i\ilcyer (Lehrb11ch des de11tschen slrajrechts,
1875), I<arl Binding (Die normen 1111d ihre Übertrelmrg, 1877) etc. 30
Há, todavia, uma diferença substancial. Enquanto uns afirmam uma ação
geral, outros afirmam que ação significa ação em sentido jurídico (delito é a ação
que diz respeito aos penalistas). Esses autores de formação hegeliana podem,
então, ser em linhas gerais subdivididos em duas tendências: (a) inclinada a tratar
a imputação como um juízo acerca da relação vontade-resultado e sua respectiva
antijurídicidade (notoriamente Binding), conforme a qual a ação e atribuição de
culpabilidade se sobrepõem; e (b) uma inclinada a relacionar a inculpação (I/ers-
ch11/den) somente ao resultado (Abegg e Temme).31
Na primeira concepção (a), a inculpação (J/ersch11/de11) torna-se elemento da
ação e a antijuridicidade, por ser condição da culpabilidade, também é incorpo-
rada ao conceito de ação. Por fim, a conduta se torna substancialmente sinônimo
de delito, e sua caracterização acaba por se desnaturar. Para dar conta desse pro-
blema, a culpabilidade passa a fazer parte da ação so1nente na medida e1n que se
refere ao resultado (e não à antijurídicidade), ou seja, a ação passa a possuir uma
relação de identidade apenas com a imputação do fato, mas não com a imputação
da culpabilidade, criando-se, assün, al 6l1.llna distinção entre ação e itnputação.
Na segunda concepção (b), a equivalência entre ação e imputação é rompi-
da porque a antijuridicidade é subtraída da conduta, e ela passa a corresponder à
itnputação do resultado. Entretanto, a ação não interpreta qualquer papel relevante
nesta concepção justamente porque fica restrita ao pano de fundo da imputação
do resultado; e assume esse papel coadjuvante porque haveria supostamente um
risco de cindir a inculpação (Versch11/de11) entre imputação do resultado e antijurí-
dicidade, restringindo a ação a apenas um dos lados. Dessa forma, possui alguma
afinidade com o sistema de Grolmann.32
lO Para uma lista mais complt:ta: RADBRUCH, Gust:l\'. E/ ro11crpto de nrritJ11... p. 119-20.
31
Ibidt:m, p. 119-24.
•u Com :t distinção, na obra dt: Abcgg, por exemplo, de que ao sistema bipartido de: Grolmann
(dimensão objetiva t: subjt::tiva) st:: contrnpõc um sistema tripartido, com dimt:nsão objcti,·a,
antijuridicidade e punibilidade. RADBRUCH, Gust.1,·. E/ ro11rrpto de nrritJ,,... p. 125.

29
Até determinado momento do desenvolvimento dogmático, o delito foi
construído sobre componentes (vontade e feito) diferentes e expostos de forma
subsequente (mas apartada), cada qual com sua gama de requisitos, e sem exigir
uma relação direta entre eles, a qual só era auferida mecanicamente por meio da
ideia de imputação. As considerações de Berner marcam o surgimento de um sis-
te1na (usado até hoje) no qual a ação surge como primeiro componente ao qual,
em direta relação, agrega-se a antijurídicidade. A antijuridicidade passa a ser con-
cebida como uma propriedade a ser agregada à ação e, assim, substitui-se uma
relação de contraposição à conduta (sob a antiga rubrica hegeliana de dialética),
por uma de subsunção. Dessa forma, a ação assume a posição de supraconceito
(Oberbegriffi, abrangente da antijuridicidade e da culpabilidade.33
Sem embargo, com a separação entre ação e antijurídicidade, foi preciso rea-
locar a imputação, e ela foi parar na ação. Assim, a inculpação (Versch11/den) se torna
condição da ação: ação é ação culpável34 e delito é ação antijurídica e punível. Há,
no entanto, nuanças quanto ao papel da imputação dentro da ação. Ela pode ser
concebida (a) como wn requisito da dimensão subjetiva do delito, quando o pró-
prio termo imputação passa a designar a combinação entre dimensão subjetiva e
capacidade de ação. Ou (b) pode ser compreendida não como requisito da dimen-
são subjetiva, mas como condição de sua relevância jurídica (como reqwsito à pu-
nibilidade), quando ela se afasta do conceito de ação. É neste segundo sentido que
Radbruch fala sobre surgir uma imputação da ação junto com a imputação à ação.35
Vontade, feito e sua relação (vontade-feito) configuram os elementos, ge-
rnlmente aceitos, da conduta, mas há divergências sobre como se caracterizar essa
relação vontade-feito. Defender que essa relação vontade-feito significa apenas
que o fato em questão deve estar vinculado à vontade, ser atribuível a ela - o que
implica o reconhecimento apenas de um nexo causal - implicaria uma tendência
à equivalênda entre ação e imputação. Por isso, ganha destaque a relação de c11l-
pabilidade, especialmente porque, em diferentes autores (Abegg, Berner, Kõstlin,
Hfilschner), encontra-se uma recusa em separar a culpabilidade do nexo de cau-
salidade, unindo-as como i1J1p11tatio facti. 36
Em um primeiro momento, dessa coincidência entre causalidade e culpa-
bilidade - derivada da necessidade de se traçar o feito de volta à vontade a fim
de possibilitar a imputação, derivando na impossibilidade de se pensar uma con-
sequência da vontade que não fosse querida - resulta a concepção de que só
seria possível imputar resultados dolosamente causados (Hegel). Em seguida, o
" Ibidcm, p. 126-7.
>4 "HabJar de una acción culpablc c:s un pleonasmo; hablar de: una acción inculpablc:, una ro11/ra-
didio in at!Jrrto". Ibidem, p. 128.
n Ibidem, p. 128.
16
Ibidcm, p. 130.

30
campo da imputação foi ampliado para além do dolo (Michelet), mas foi criada
uma contradição com sua origem (de relação vontade-resultado), resultando na
necessidade de se embaçar a distinção entre dolo e culpa.37
Já neste momento, como indica Radbruch, pode-se observar a origem das
formulações dogmáticas pela dupla negativa, quando se tenta avançar a ideia
de uma vontade indireta para os delitos culposos ao conceber o resultado, im-
prudentemente causado, como não não-q11erido (11icht 11ichtgewoll~.38 Também como
resposta aos problemas percebidos, é possível notar considerações, debruçando-
-se sobre a culpabilidade da vontade, apontando a impossibilidade de afirmar-se
como querido todo resultado produzido de maneira culpávd.39
Diante das questões envolvendo a culpabilidade da vontade, determinados
autores abandonaram a tentativa de construir a ação como supraconceito (e como
equivalente da imputação), restringindo-a ao fato querido (August Otto Krug e
Theodor von Gessler). Alternativamente, alguns autores (como Albert Berner)
optaram por abandonar a concepção de ação como fato querido, mantendo-a
como equivalente da imputação."°
O esforço de superação dos antigos dilemas (de ir além da identificação
entre causalidade e culpabilidade) significou o reconhecimento da possibilidade
da causalidade sem a culpabilidade; mas para não romper totahnente com o an-
tigo modelo, Berner as distinguiu sem separá-las por meio da ideia de media;ão
entre vo11tode efeito - a qual sugere, de forma não totalmente clara, um nexo causal
permeado pela culpabilidade:"
Moritz Liepmann e Adolf Merkel, por exemplo, buscaram construir um
vínculo entre vontade e feito, extrapolando o simples nexo causal, e destacaram
a conduta como wna causação adequada do resultado. Analogamente a Binding
- o qual quis afirmar a conduta como ação juridicamente relevante - Liepmann
e Merkel procuram sustentar a causalidade como a relação causal juridicamente
relevante. Especialmente porque a simples causação não seria de forma alguma
imputável ao agente. Não haveria maiores problemas com essa abordagem se o
37
Ibidem, p. 132-3.
lll "El siguitntt: ensaro de comparadón t:s típico de:: los hegdianos: t:imbitn c::n la culpa es qut:rida
una cond.idón dd resultado; ahora bitn, éstt: es asimismo d caso de las consc::cuencias sobre,·e-
nid:is por azar; sin embargo, la condición querida en la culpa funda y:i la posibilid:id dd resul-
tado, y la posibilidad es, para Hegd y su escuda, no un juicio, sino un ht:cho, hecho situado, no
en nuestro pensamiento sobre las cosas, sino en las cosas mismas". Ibidem, p. 133-4.
19
Ibidem, p. 134.
411
"Por consiguiente, Bt:rner reconoct:, antt: todo, qut: d juicio de culpabilid:id no afirma que d
succso fue llut:rido, sino que st:rfa una 'subjttividad objetivada', lo que t:n palabras dt: i\Ic:rkd
significa que d suctso tit:nt: su causa adecuada c:n la confirmación de la indh-idualidad dd autor;
y dt: ahí que caracterict: su voluntad (en tste sc:ntido)". Ibidem, p. 136.
41
Ibidem, p. 137-8.

31
próprio vínculo vontade-feito não implicasse uma disputa sobre as fronteiras
dolo-culpa.42
Entrementes, apresenta-se outra possibilidade para se abordar dog1natica-
mente wna proposição de cisão entre causalidade e culpabilidade, qual seja: em-
preender, primeiro, a análise do delito como ação, para, então, depreender daí que
o resultado (antijurídico) deve poder ser reconduzido a u1n "evento psíquico",
para, em um terceiro momento, analisar o delito como ação culpável e verificar
se esse evento psíquico em questão pode ser compatibilizado com o conceito de
culpabilidade.◄ 3
Essa digressão psíquica na análise da conduta - a qual será examinada, ago-
ra, de forma um pouco mais detalhada - é relevante não só pelo seu aporte de
conhecimentos e pela marca deixada na dog1nática, 1nas ta1nbé1n porque altera
substancialmente a trajetória da forma como se refletia sobre a ação. É essa ma-
triz a responsável por uma parcial reorientação no desenvolvimento das influên-
cias hegelianas analisadas até agora. Os autores que optavam por se desvincular
da concepção hegeliana tendente a considerar como queridas todas as conse-
quências produzidas pela ação se deparavam frequentemente com duas opções:
apresentar co1no querida apenas u1na parte do fato (u1na condição do resultado
e de maior proximidade da vontade: o movimento corporal), ou aceitar que nada
do fato precise ser querido pela vontade, mas apenas causado por ela. 44
Pode se dizer, então, que a trajetória dog1nática do conceito de ação é com-
posta não só pelo esforço em separá-lo do conceito de antijurídicidade, mas
também do conceito de culpabilidade (em seu sentido clássico). A resposta às
concepções Hegelianas veio por Ernst Zitehnann (I"'""' 1md Rechtsgeschiift, 1879),
sob influência da chamada "jurisprudência psicológica", afastando-se da propos-
ta de um dualismo exagerado que afirmava que ou o feito era querido ou não. Na
verdade, diz Zitelmann, cotn a exceção dos movünentos corpóreos, nada mais do
feito poderia ser qucrido45.
Nesse sentido, cria-se uma oposição aberta: de um lado Binding, para quem
o produto da vontade é, de u1na fonna ou de outra, querido; de outro Zitelmann,
para quem os produtos da vontade nunca são queridos. Entre aqueles que es-
colhem posições próximas a de Zitelmann, contudo, há divergências sobre se
~2 "EI último paso consecuente en esta <l.irección, cmpcro, cs cl que <la von Bar cuan<lo postula
para la inculp:ición, a<lem:ís <lei conccpto de rclación causal, la antijuri<lici<lac.l. Si cl conccpto <lc
acción rcquicrc vo1unta<l, hccho y rclación causal entre ambos cn cl sentido que plantca von Bar,
cntonccs se llcga cxactamcntc ai conccpto de acción de Bin<ling''. Ibidem, p. 139.
0 Apesar de Ra<lbruch concluir que se trata de um:i diferença meramente estética, com conse-
quências dogmáticas equh·alcntcs. Ibidem, p. 138-9.
44 Ibidem, p. 157 e ss.
45 Ibidem, p. 142-4.

32
apenas o movimento corporal pode ser querido (Ernst Bekker, Heinrich Lam-
masch, Ludwig Trager, von Llszt, Reinhard Frank, M.E. Mayer,46 Zitelmann, en-
tre outros) ou se apenas ele precisa ser querido (Eduard Hertz, Karl Janka, Ernst
Landsberg, August finger, entre outros).47
Apesar de suas diferenças, os modelos de se pensar a conduta introduzidos
por Binding e Zitelmann apresentam consequências muito semelhantes sobre a
sistemática do delito. Enquanto os hegelianos negavam a possibilidade de uma
ação proveniente de um agente irúmputável, tanto os modelos de Binding quanto
os de Zitelmann reconhecem a possibilidade de ações culpáveis e não culpáveis.
O sistema de delito se forma como em um esquema de círculos concêntricos, do
mais abrangente ao mais restrito: ação, antijurídicidade, culpabilidade e punibili-
dade. Co1no, entretanto, a culpabilidade continha os elementos subjetivos do de-
lito, ela deveria referir-se também à antijurídicidade (à ação contrária ao direito).48
A possibilidade de uma ação culpável (ou não culpável) abre uma gama de
possibilidades de reformulação do sistema de delito. Se, por exemplo, dolo e cul-
pa se apresentavam sempre como espécie da decisão da vontade para a ação, levanta-
-se a possibilidade de haver uma decisão da vontade para a ação ainda na ausência de
dolo e culpa. Isso, contudo, cria uma tensão interna ao conceito de c~pabilidade.
Dado que ele era pensado a partir de sua ramificação dolo-culpa, como abarcar
uma terceira forma de manifestação subjetiva não contida em suas duas concep-
ções originárias? Abre-se outra possibilidade també1n para o tratamento da ten-
tativa, a qual é separada da dimensão fática da ação: se determinada ação é uma
tentativa não se pode dizer observando apenas sua dimensão objetiva (ou mesmo
sua diinensão subjetiva), 1nas pela confrontação entre subjetivo e objetivo.49
Antiguamente, dolo y culpa, por un lado, y consumación, tentativa y anti-
juridicidad, por otro, se enfrentaban como facetas subjetiva y objetiva dcl
delito. Luego vino la división superior dcl sistema, una de sub y supra-
ordenación: a la acción se subordinó la acción antijurídica. Antaiio como
hogano, cmpero, ai interior de la acción dolo y culpa se oponían a consu-
mación y tentativa como la voluntad dei hecho. Ahora la acción culpable
se ha subordinado a la acción antijurídica, que a su vez, se subordina a
fa acción en general; a la acción culpable, por su parte, se subordinan las
acciones dolosas e culposas, y, sin embargo, a la dolosa, las tentadas e con-
sumadas. Esta teoria est.í con la anterior en una rclación, no de antitcsis,
sino de subsunción, y, como último e magro residuo de la vicja construc-
ción antitética, qucdó únicamente su raíz cortada, otrora tan abundante cn
-------
Sua afinidade a Zitclmann se de\·e ao trab:tlho Dir Sdm/dh,9ie Hm,dhmg (1901 ), mas sua posição
•1"

se altera posteriormente. Disso se trataci no tópico sobre o ncok~mtismo.


11
• RADBRUCH, Gustav. HI ,o,urplo dr n,rió11... p. 142-4.
◄ 11 Ibidem, p. 145-6.
.,, "Tentativa y consumación son formas de aparición, no de la acción ni de la culpabilidad, sino
de la acción culpable, dicho con m:is prccisión, de la acción dolosa,,. Ibidem, p. 147.

33
brotes, a saber, la contraposición de resolución volitiva y resultado dentro
dei superior concepto de acción.50
É nesse processo transicional que a ação deixa de ser derivada de seus
requisitos (vontade, feito e sua relação) para tornar-se o componente fundador
de seus elementos. Também nesse modelo enfrentou-se um problema semelhan-
te com as concepções anteriores, entretanto. Nele, a questão do resultado da
atividade querida também se apresentou sob a forma de uma disjuntiva polari-
zadora, na qual esse resultado deveria ser sempre ou nunca objeto da vontade. 51
Tanto Binding quanto Zitelmann empreendem um esboço semelhante da
vontade, pois ressalt'lm-na como pressuposto causal das modificações materiais;
no entanto, como já se indicou, enquanto um relaciona à vontade apenas seu pro-
duto direto (movimento corporal) o outro relaciona todo produto da vontade.52
Adicionalmente aos problemas que já existiam antes, o modelo no qual a
vontade é direcionada apenas para a conduta cria empecilhos para se tratar da
tentativa. Só seria possível relacionar a vontade ao resultado quando o resultado
é representado em razão da conduta realizada (portadora efetiva da vontade).
Assim, se o movimento corporal foi incompleto, não caberia falar em vontade
relacionada ao resultado. Esse modelo, portanto, só permitiria a tentativa quando
se tratasse da tentativa acabada.53
Mesmo para Binding- para quem a manifestação da vontade estaria direciona-
da a quaisquer resultados admissíveis como possibilidade - apresentar-se-iam obstá-
culos semelhantes aos de Zitelmann. Como os dois compreendem a vont'lde por um
modelo apoiado na chave interpretativa causa-consequência, ambos se defrontam
com a impossibilidade de alocar uma vontade onde nada ocorreu (tentativa).54
As implicações das duas concepções de conduta (Binding e Zitelmann) são
surpreendentemente semelhantes, pois os dois acabam se aproximando de forma
mais ou menos explicita do reconhecimento da possibilidade de uma vontade
inconsciente - em Zitelmann, isso se dá em razão de uma concessão teórica.
Em Binding, esse reconhecimento ocorre porque tudo o que se produz precisa
remontar em geral à vontade, em Zitelmann porque ele acaba por reconhecer
que nem tudo que se quer precisa ser represent'ldo. A explicação desse movi-
mento contraditório do modelo de Zitelmann está nas observações de Wilhelm
s,,
Ibidem, p. 147.
SI
RADE::UCH, Gustav. E/ ro11rrpto dr nuiú11... p. 147-8.
sz "L:i ,u1,,rumentación apunt:i a que: sólo d movimic:nto corporal sc:rfa 'puro producto de la vo-
Junt:id' y ha sido ya suficíc:ntt:mc:ntc: refutada por J...offü:r y von Hippd". Ibidem, p. 151-2.
S)
RADBRUCH, Gustav. F../ ro11rrpto dr nrrió11... p. 148-9.
S4
"Los mismo Binding que: Zitdm:mn considc:rnn la volunt:td sólo cual causa; pero como algo
puc:dc: ser causa únicamente: en referencia a cic:rtos c:fectos, rc:sult.'l que:, para ambos nutort:s, nllí
dondr nndn omnió, nndn ln11poro j,lf IJ"erido". Ibidem, p. 152.

34
\Vundt e Ernst Wilhclm Schuppe. Wundt e Schuppe destacam a inconveniente
existência de movimentos os quais, apesar de sua conformidade com o resultado
querido, não são objetos da vontade. O exemplo mais atual disso seriam os atos
automatizados, por exemplo, de troca de marcha para se dirigir um carro e chegar
a algum lugar. 55
De acordo com as ressalvas ancoradas em Wundt e Schuppe, até os 1no-
vimentos corporais que são representados - os quais, em princípio, ofereceriam
menos problemas - são colocados em xeque, porque seriam, assim, possivelmente
co1npostos por outros atos não representados e queridos propriamente ditos. O
modelo de Zitelmann (o qual exige que seja querido apenas o produto direto da
vontade) é tornado, ent-10, assaz problemático. Por isso, Zitelmann e os adeptos de
seu modelo acabam tendo que admitir alguma forma de vontade inconscienteSG.
A caracterização da vontade por meio da chave interpretativa causa-con-
sequência falharia também sob outra perspectiva. Ela recorre à ideia de causa
eficiente, pois, em tese, conforme Zitelmann, o conteúdo de qualquer força seria
determinado pelo conteúdo de seu rendimento. No entanto, se não se define
como querido tudo aquilo que é produzido como rendimento da vontade, restan-
do i1npossibilitada essa lógica afeita à ideia de causa eficiente.57
As teorias psicológicas da vontade, contudo, apresentam grandes obstácu-
los também à concepção de Zitelmann. Especialmente em função da tentativa,
para a qual as concepções psicolôgicas pareciam dar u1na resposta mais adequa-
da, porque recorriam a ideia de um representação querida, mas não obtida. Em
resposta a esses obstáculos, pode-se notar certa inflexão psicologizante: se, em
uma cadência psicolôgica da conduta, designa-se por q11erido o feito que coincide
com a representação, então Zitelmann responde que a coincidência com os mo-
vimentos corporais seriam qualit'ltivamente distintos das coincidências referidas
a outros objetos. ss
Por fim, ao retornarmos à herança hegeliana, aqueles que se distanciaram
gradualmente dessa herança (a qual reput1va como queridas todas as consequên-
cias da ação), se depararam frequentemente com duas opções: (a) considerar
ss "Y es que si, SeJ,rún \X'undt, l:i :icción extt:ma de l:i voluntad surge primitivamente dt: l:i apt:r-
ccpción de una represent:tción motriz, entonces ésca, empt:ro, va desapareciendo en d decurso
de las acciont:s ,·oliti,·as, incluso las más simples, hasta ser por fin absorbida dd todo por la
rcpresentación dd resultado, siendo entonces su aperct:pción la que produce din:ctamt:nte d
movimicnto corpóreo". Ibidem, p. 153.
56 "Asf, Zitdmann y sus partidarios no súlo tienen que conct:der b~sic:unente la posibilid:id de un
querer inconsciente; sino emplt:ar eft:etivamcnte - aunque sólo Bünger lo adnútt: - fa ,·oluntad in-
consciente en la estructur:tción dd conccpto de acción. Por eso, ai combatir a Binding, pronunci:m
contrn su propia teoria la condena de muerte". RADBRUCH, Gust\v. F,/ ro11rrpto dr nrrió11... p. 153-4.
s7 Ibidem, p. 154.
sa Ibidem, p. 155-6.

35
como querida apenas uma parte do fato, uma condição do resultado - na verda-
de, a condição de maior proximidade da vontade: o movimento corporal -; ou
(b) abandonando antigas pretensôes, assu1nir que parte alb>ullla do fato precise
ser querida, mas o fato precisa apenas ser causado pela vontade. 59 Em outras
palavras:
Ligada al episodio psicolôgico de la historia evolutiva dei concepto de
acciôn, esta alternativa, empero, puede expresarse como sibrue: idebemos
postular, en coincidencia con el lmor /item/, mas no con el sentido dei con-
ccpto de acciôn de Zitelmann, que el movüniento corporal es querido, o,
a la inversa, coincidicndo con el 1e11tido de este concepto y el de Binding,
pero sin darnos por satisfechos con su tenor literal, hemos de patroci-
nar que dicho movimiento y, con ello, el resultado son causados por la
voluntad? 60

Segundo Radbruch, a maioria dos autores optou pela interpretação literal


do conceito de Zitelmann, seb,undo a qual apenas o movimento corporal é que-
rido. 61 Em que ponto e medida esse debate, caracterizado até aqui, foi assumido
pelos demais autores (tanto contemporâneos quanto posteriores), pretende-se
explicitar nos próximos capítulos.

S9
1bidc:m, p. 156-7.
"'' Ibidem, p. 157-8.
61
Ao qual R:idbruch contr:ipõe o exemplo dos movimentos dc:s:istrndos (m{e,urhirkle Hru,cgm,gm,
aos quais ch:ima tambt!m de mO\·imcntos corporais :irbitdrios), como um caso no qual se tem
um movimento m111ndo por um querer (2p2rentemt!nte preenchendo o re<.1uisito de Zitdm:inn),
mas esse querer não estava dirigido propriamente à ação realiiada. Existiriam, por outro lado,
delitos tentados e imprudentes nos quais o agente não queria apenas o movimento corporal.
Cf. RADBRUCH, Gustav. E/ {(mrrplu dr nrdó11... p. 158.

36
2 -A TEORIA CAUSAL-NATURALISTA

Superada a inicial vaga hegeliana dos estudos sobre a ação - a qual, como se tentou
inclicar anteriormente, não possui uma data exata de ôbito, e possui ecos até hoje -
ganham crescente destaque as propostas positivistas e as neokantianas. Esse novo
período de propostas dogmáticas, que vai do final do século XIX até meados do
século XX, caracteriza-se inicialmente pela proliferação de abordagens naturalis-
tas, seguidas de abordagens valorativas. Como explicam Zaffaroni e Batista, essa
tendência foi, em grande medida, fruto do conceito de a11t!J111idicidade objetiva de
Rudolf von Ihering. Esse conceito marcou uma inversão e1n relação às propostas
hegelianas, pois retomou a sistemática objetivo-subjetivo (por meio do binômio
antijuridicidade-culpabilidade) a partir de sua focet~ objetiva - muito embora essa
an!,7\llação também já tivesse sido adotada pelos glosadores e práticos62•
Como se pode depreender não só da dogmática penal, mas também de outras
áreas (como a Criminologia), o esforço pela aproximação das ciências exatas mar-
cou profundamente o pensamento da época63. Na verdade, as concepçc1es natura-
listas - assim como todos os demais modelos que serão apresentados aqui - não
se encaixam i11 lo/11111 no molde pretendido. As proposições concretas dos autores
e1n toda sua riqueza e nuanças sempre escapain mais ou menos a qualquer etiqueta.
O mesmo se dá com o representante mais célebre do modelo naturalista (às
vezes referido como positivista) de do!,tmática, Franz von Llszt. Diz ele que a ação
é u1na mudança no inundo exterior (perceptível pelos sentidos), a qual se pode
remeter à vontade humana. O delito seria, assim, composto pelo nfo de tl(}l//nde (mo-
vimento corpóreo voluntário) e pelo res,t!tado - acrescente-se que Llszt também
jnclui co1no necessária a relação entre esses dois ele1nentos ("referência do resultado

62
ZAFFJ\RON1, E.R.; BATISTA, Nilo lt:t al.l, Dirrit" pr11t1I bmnlrirv, vol.11, 1. Rio de Jant:iro:
Re,·an, 201 O. p. 83.
61 "A doutrinn nnturnlista da nção, no fundo, é um produto do posith-ismo filosófico, isto t=, de
uma concepção da rt:alidndt: limitada nos fenômenos st:nsorinlmt:ntt: npret:nsívt:is t: d:1 ciC::ncia
como simples captação dns rdações de sucessão ou semdh:mça dos fatos uns com os outros.
A rc::ilidade humana é (...) reduzida n ft:nômt:nos naturais prc:detc:rminndos, t: as ciências que
ddn st: ocupam (enm: das a ci~ncia do direito), st: n:duzt:m à pesquisa de lt::is que e.xprt:ss:im as
rdaçõt:s de semdhnnçn ou dt: sucessão, conscnntt:s e obrigacórins entre os dados,,. LUISl, Luiz.
O úpo pcnnl t: a teorin finalista <la nç:io. Porto Alegre: Gráfica Editora A Nação, s/a. p. 33. Ain-
da, pnrn L. Luisi: "O tipo de Ernst von Bt:ling, se nprt:st:ntn como const:ct:irio do seu concdto
nnturnl dt: açiio. E por isso é objetivo t: sem conottçõt:s \':llorntiv:is t: subjt:tivas,,. Ibidem, p. 34.

37
ao ato").64 Para von Llszt toda conduta teria um resultado (inclusive as omissivas),
mesmo quando esse res uitado nao - compareça na corrunaçao
• - pena)65 .
A ação positiva (comissão), Liszt descreveu como ca11.ração de ,,n, res11/tado por
11111 movimento vol,mtário, e este movimento como contração muscular efetuada pela
inervação motora, mas determinado pelas ideias e representações. A mencionada
relação entre ação e resultado, nos delitos comissivos, apresenta-se como nexo
causal.66 Além disso, aparece não apenas a vinculação da ação à representação,
mas também a ideia de motivo e resolução como momentos subjetivos que, por
triunfarem sobre os demais, determinam a ação.67
A previsão (representação) do resultado é intitulada dolo, e o desejar ore-
sultado intitulado motivo ou resolução, porque, na perspectiva desse professor aus-
tríaco, a relação da vontade seria com a ação e não com o resultado. Por isso, sua
definição de conduta conta com a ideia de vo/11nlariedade. a vontade direcionada
não ao resultado, mas ao ato físico propriamente dito. 68

64 J..ISZT, Fr.inz von. Tmlndo dt dirrilo pt11al nllt111ào. ,·ol.l. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1899. p. 193;
Acrescent:ll1l Batisci e Zaffuroni: "A tr.idução do Tratado de \'On Llszt por José Hygino, em 1899,
explica a funtísrica influência de t:tl conceito de ação no' clirdto penal brasileiro". ZAFFARONI,
E.R.; BATISTA, Nilo [et ru.J. Dirrilo pmal bmsilriro, vol.ll, 1. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 84.
"Mas a toda acção, por força da idéa mesma, se liga um resultado qualquer apreciavd pdos
sentidos, ainda quando o legislador abstraia apparentemente de um resultado ulterior que na
verdade eUe tem em vista. Isto e: tambc:m verdade dos ddictos de inacção propriamente ditos".
LISZT, Franz ,·on. Op. Cit. p. 195.
66 "D:í-se connexão causal entre o movimento corporeo e o resultado, quando não se póde
suppor suprimido o movimento corporeo sem que devesse deixar de occorrer o resultado
occorrido". J..ISZT, Franz von. Op. Cit. p. 201.
67
"O mO\imento corporeo é o effdto (a resultante) das idéas ou representações que se cruzam,
se contrapõem e se auxiliam. A n:presentação que triumpha chamamos 111otivo. Logo que esse
triumpho e: definiti"o, falamos em rrsoll{rão e consideramos o resultado objetivo como facto
nosso". JJSZT, Franz von. Op. Cit. p. 198-9.
61 "O mdhor e: evitar absolutamente a expressão q11rru o rrmllndo, e empregar o vocabulo q11t-
rrr ou ,_.un,ndt para desi1,rn:ir sómente o acto psycho-physico, pdo qual se opera a tensão dos
músculos. Segundo esta linguagem, querido é pois, sómente, o movimento corporeo, nunca o
resultadoº. LlSZT, Franz von. Op. Cit. p. 200. Not:i 3. Extensa e rica é a ponderação do prof.
Juarez Tav:ires: "Tendo em vista essa característica da vontade ou seu enfoque: como i11p11/so,
e: não como demento psicomental, quer no sentido de um desejo racionnl, quer no sentido de
wna faculdade, pel:i qunl se afirma ou se nega o que e: verdadeiro ou falso (sentido psiconor-
mativo), :il1:,,uns autores, para maior clareza de exposição, fol:im, no caso, não de vontade, mas
sim de voluntariedade, tomada esta no sentido de arbítrio. Pda própria conceituação de von-
ude no sentido psiconormati\'o (como faculdade ou arbítrio), vc:-se, de antemão, que não h:í
uma diferença apreci:í"d entre esse termo e o de voluntariedade. O que ocorre é que, para os
causalistas, a vontade (ou voluntariedade, tanto faz) na ação é tomada conjugadamente em dois
aspectos: um causal-objetivo, outro causal-negati,·o. O primeiro se caracteriza como impulso,
enquanto expressado pdo movimento corpóreo; o outro resulta do juízo acerca da inexistência

38
A omissão, como em tantos autores, é compreendida como a não realização
de ação determinada e esperada. Assim, é requisito da omissão o dever jurídico
de agir (11011 facere q11od debelfacere) - daí conclui Liszt que s6 é relevante para o Di-
reito Penal a "omissão injurídica" (em termos correntes: omissão antijurídica).6 ~
Para os crimes omissivos, também reconhece que a relação entre ação e resultado
não é u1na relação de causalidade.'º
Diante dos contornos das ideias de von Iiszt é possível perceber que sua
concepção, apresentando-se como natural, trazia consigo diversas contradições
internas. A discreta consideração de que o movimento voluntário não era deter-
minado apenas pelas inervações musculares, mas também por representações
- abrindo um espaço para a penetração das relações sociais -, revela seu natura-
lis1no deficiente. Adicionalmente, qualquer pretensão estritamente descritiva cai
por terra assim que ele inaugura suas considerações sobre a omissão (a omissão
sempre como omissão antijurídica). 71
É Ernst von Beling quem compõe com Llszt o sistema clássico de deli-
to (ou sistema Jiszt-Beling7~ e o responsável por um dos últimos fôlegos da
concepção causal-naturalista de conduta ao propor, em um esforço para com-
ple1nentar Liszt, que a omissão seja co1npreendida co1no distensão 11111satlar (pois
a ação seria a tensão muscular).73 Também em Beling, a ação comportaria uma
faceta externa ou objetiva (o movimento corporal) e uma faceta interna ou subje-
de:: coação (sem coação há arbítrio e, port.'Ulto, voluntarit:dadt: ou vont.1dc:)". TAVARES,Ju:m:z.
Termas do drlitrr. ,·ariações t: tt:nd~ncias. São Paulo: RT, 1980. p. 18.
69
Já ndt: c:ncontrnmos o clássico aq.,rumc:nto dt: que: 0111itir é um vc:rbo mmsith·o: "Omitir é um
vc:rbo transiti\'o: não si1,,rnifica dc:ixar de: fazer de: um modo absoluto, mas dcixar dt: fozt:r 11(p_lf111n
'""s,,, c:, na Yc:rdade, o que em c:spc:rndo". I..ISZT, Franz von. Op. Cit. p. 208.
711
"É com o seculo XIX qut: comc:ça a discussão scic:ntifica, a n:spcito da c:1usalidadt: da omissão,
uma das lJUc:stõc:s mais infc:cund:is que: se: tt:m agitado na scic:ncia do dircito pc:n:tl". LISZT, Franz
\'on. Op. Cit. p. 21 O; Ainda: "E, na \'trdadt:, dc:,·emos comir c:m quc:, rigorosamt:ntt: considc:rndo,
o rc:sult:tdo produzido não é c:m caso :tlbrum causado pc:la omissão c:m si, mas s~pn: pdas ÍO[Ç!lS
naturnc:s llue c:xc:rct:m a sua acth'idade colatc:ralmc:ntc: á omissão". ldc:m, 212.
71
ZAFFARONI, E.R.; fü\T!STA, Nilo lc:t ai.}. Dirrilo pmn/ brasilriro, ,·ol.11, 1. Rio de: Janciro:
Rc:v:m, 201 O. p. 84.
72 BÉZE, Patrícia .Mothé Gliocht:. Op. Cit. p. 10-3.
7J
Com uma Jciturn mais nuançada de: Beling, afirma Lobato: "Para Bding, a omissão só adquire
se::ntido quando se: fixa o sc:ntido do contc:xto fático. Esta fixação de: sc:ntido é o qUt: concc:dc:
o critério jurídico para ddinir ~,I.Juilo l.)Ut: se: omite:. Bding pe::rcc:bc:ra que: a omissão é o ato de::
omitir alguma coisa, ou sc:ja, não fazc:r algo dc:tc:rminado. Nno se trntari:t dt: uma •'imobilidade:
voluntária" e: nc:m de:: uma omissão imrnnsith-a, mas de: um "movimento corpornl voluncirio"
que: sc:n•c: como critfrio jurídico de: ddiniç:io do conteúdo da omiss:io. Bc:ling afirmou, inclusi-
ve:, que:: os crimc:s de: omissão não precisariam dc: m:nhuma inatividade: pura e, ainda, pontuou
que: não mais se: devc:ria confundir a tt:oria da ação com a tt:oria da omissão, já que: ambas p:r-
tc:nceriam a âmbitos distintos. (...) Silva Sánchc:z descrt:vt: a omissão bc:lin1-,•fana como a \'ont:idc:
dc:stinada à mt:ra contt:nção dos nen·os motort:s, contudo, :i concc:pção d:i omissão c:m llding

39
tiva (voluntaried;de ou liberdade de inervação muscular).7'' l\'lesmo essa proposta
não teve uma sobrevida muito grande porque não demorou para se perceber
como, mes1no enquanto omitia a ação devida, o indivíduo poderia estar pratican-
do toda sorte de (outras) atividades. Não era necessário, portanto, a estrita inércia
estática do sujeito para que se constituísse a omissão.75
Outro momento doutrinário 1narca Gustav Radbruch. E1n razão de seus
largos estudos sobre Filosofia e Filosofia do Direito, sua posição, que no iní-
cio do século XX era muito mais próxima do causalismo, nos poucos vai se
aproximando em diversos tôpicos de posiçôes neokantianas. Ele, por isso, é por
vezes retratado como representante d a corrente causalista76 e outras vezes como
. 77
neokanuano.
Gustav Radbruch recorre à interpolação da lin!:,7\.lagetn da vida e da fonna
como ação aparece na lei (mesmo que de maneira não perfeitamente técnica) às
suas considerações lógico-sistemáticas, para tentar delinear o conceito de conduta
pertinente ao Direito Penal. Na linguagem da vida fica 1nais ou 1nenos claro que a
ação se estabelece a partir dos elementos (a) vontade, (b) fato (ou feito)-entendido
como um movimento corporal causalmente ligado ao resultado - e (c) relação en-
tre vontade e fato; e das passagens le!:,rais, fica evidente a necessidade de a ação ser
algo capaz de suportar os atributos antijurídico, culpável e punível. Consequente-
mente, a quest~o que Radbruch busca responder é sobre qual relação entre vontade
e fato permitiria sua compatibilidade com os atributos que se busca atribuir a ela.78
Tal consideração de Radbruch acaba operando uma inversão, pois permite
deduzir daquilo que se repute como a correta acepção da antijurídicidade, da
culpabilidade e da punibilidade a justa compreensão do conceito de ação. Torna-
-se possível, assim, garantir a correção do conceito (em linhas gerais, ontológico)
de ação a partir de sua dedução de critérios valorativos.79 Isso se explica, todavia,
pela análise do desenvolvimento do!:,>mático empreendida por esse professor de
Heidelberg.

v:ii muito :ilt:m d:i simplt:s conte::nção muscular, o que:: nos pare::ce:: sc:r uma visão limitad:i do que::
e::fe::tiv:amc:nte:: for:i de::fe::nclido por Bding''. LOBATO,Josc: D:anilo Tavares. Op. Cit. p. 60-1.
74
BELING, Ernst von. F..1q11t111a dr drrrl/Jo pmal Bue::nos Aire::s: El Foro, 2002. p. 42.
75
"Esta conce::pç:io fe::z jus a :alhrumas críticas, dentre:: :as qu:ais me::rc:ce:: destaque: a circunstância de
o re::sult:ado pe::rte::ncc:r à aç~o e: a ine::xisti:ncfa de:: causalidade:: na omissiio". BÉZE, Patrícia Mothc:
Glioche::. Op. Cit. p. 13.
76
SANTOS, Ju.1~ Grino dos. Dirrito pmal - p:irte:: ge::rnl. f'lorianópolis: Conceito c:ditorial, 201 O. p.
82.
77
ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, Nilo le::t al.J. Dirrilo pmal bmsilriro, vol.11, 1. Rio de:: J:ine::iro:
Rc:v:an, 2010. p. 93.
78
RADBRUCH, Gust:iv. F..lto11<tj>lo dr n«ió11... p. 99-106.
" RADBRUCH, Gust:iv. Elro11<tplodra(dón... p. 104-8.

40
Radbruch conclui de seus estudos que, ao contrário das teorias vestibula-
res sobre a conduta, ação e imputação nem sempre coincidem, mas, na verda-
de, quando a ação abrange estritamente o nexo vontade-feito ela é mais ampla
que a imputação, deixando de fora a culpabilidade (como binômio dolo-culpa)8°.
Ainda, em sua concepção, a vontade em conformidade com seu uso corrente
na linguagem apresenta uma resposta melhor às questões da dogmática quando
comparada com as concepções etiológicas da vontade, porque é ao mesmo tem-
po mais restritiva e mais inclusiva.
A caracterização da vontade por meio da chave interpretativa causa-conse-
quência remete à ideia de causa eficiente, a qual concebe o conteúdo de qualquer
força como determinado pelo conteúdo de seu rendimento. Entretanto, não é pos-
sível definir-se como querido tudo aquilo que é produzido como rendimento da
vontade, tornando inviável, então, essa atribuição de um horizonte etiológico à
vontade. 81 Melhor, segundo Radbruch, seria sua compreensão li11g1dstica, a qual cir-
cunscreve o querido à esfera daquilo que foi representado - nesse aspecto, mais
restritiva82 - , mas abrangendo, ao mesmo tempo, não somente o efetivamente ocorri-
do, i.e. as tentativasio - nesse aspecto, mais extensiva.iw Por consequência, o fato só
poderia ser (adjetivado de) querido quando, além de ter concretamente acontecido,
foi representado e ocorre uma coincidência entre fato e representação.85
Em outra trincheira, Ernst Zitelmann defende sua proposta de inclinação
etiológica para a vontade, com algumas concessões às perspectivas de cunho
psicológico, respondendo que, mesmo (em wna perspectiva psicológica) ao se
designar por querido o feito que coincide com a representação, ainda assim, a
coincidência com os movimentos corporais seria qualitativamente distinta da
coincidência referida a outros objetos (os resultados). Radbruch se opõe frontal-
., Ibidem, p. 117-40.
11
Ibidem, p. 154.
82
Como st: aplorou de forma um pouco mais pormenorizada nas considerações introdutórias,
o desenvolvimento da vontidc: pd:i perspectiva causa-consequência gera frequentemc:rm: a
contraditória nect:ssidade de: se vincular à vontade mesmo os resultados não representados t:
não queridos.
u "Por tanto, como un suceso puede ser querido sólo si fut: objt:to de la represent2ción1 así t.-im-
bién lo rcpn:scntado pucdc ser matcria de una \'olición aun cuando no ocurrió, lo que si1-,inifica
que pucde ser querido algo stJ/u nprrsr11/adu". lbidcm, p. 155.
14
Novamente, como se procurou mostrar n:1 introduç5o, a perspectiva da vontade:: como causa
eficiente:: enfo:nti dificuldade para lidar com :i tent2tiv:i, pois se ttat:l de resultados que não
chegaram a acontecer concretamente.
15
RADBRUCH, Gusti,·. E/ ronrrplo dr nrrión... p. 155. Complementn ludbruch que"(...) la objcci-
ón de H:ilschnc:r, de que 'no se comprendt: cómo d est:1do psíquico dd agente; que contempla
inerte d desarrollo dt: la rdación causal que él dc::sencadenó1 puedt: ser llamado un querer', se
resudve en que:: d resultido no precisa en absoluto ser querido hast:1 d momc::nto c:n que so-
bre\'iene". lbidem, p. 155.

41
mente a isso, pois, para ele não há diferenças substanciais entre a apreensão da
representação dos movimentos e as demais representações.116
Contra aqueles que defendem (a) ser efeito da vontade apenas o que era
querido, ou (b) ser (direta ou indiretamente) querido qualquer efeito da vontade
(ou que todos os efeitos se dariam, em maior ou menor grau, por meio da von-
tade), Radbruch aponta de fonna pertinente a possibilidade de algo ser objeto
do querer sem, todavia, ser realizado pela vontade (como em um acontecimento
fortuito), e a possibilidade de ser realizado por meio da vontade sem ser necessa-
riamente querido (co1no e1n casos de delitos culposos).87
Contra os esforços de reinterpretação das concepções etiológicas da von-
tade, G. Radbruch ressalta a possihilidade de ações causadas pela vontade, mas
cujo movimento corporal não era em si querido. Esse seria o caso dos 111ovi111e11tos
duastrados (1111._P,eschickle Ben•e.._P,1111._(eff'~, movimentos causados por um querer (apa-
rentemente de acordo com as ideias de Zitelmann), o qual não estava dirigido à
ação como ela foi realizada. Reforçando suas ressalvas, ganha destaque ta1nbé1n a
possibilidade de, em delitos tentados e imprudentes, o agente não querer apenas
o mo,·imento corpornl. 89
Radbruch assume por posição, logo, u1na concepção ampla de conduta,
cuja delimitação envolve apenas a ca11salidade da vontade para o feito, e reconduz
todas as questões referentes ao conteúdo da vontade para a culpabilidade.90 Para
se constatar a existência de u1na conduta, então, bastaria saber se o sujeito agiu
voluntariamente (tanto comissiva quanto omissivamente), e o conteúdo da von-
tade (aquilo que quis) seria algo pertinente à culpabilidnde.91
116
"L:i apercc:pción de una reprt:sent.1dón motriz no aventaja a la apcrccpción de otras represen-
taciom:s c:n nada apartt: de que l:i asiste la condencia, qut: está en condiciones de producir d
muvimiento". RADBRUCH, Gustav. F../ ,011,tp!o dr t1ffirí11... p. 156.
'" "Llam:imus ubjc:to dd querer sólu a su contcnido. Si lfamamos que;:ridos a sus cfoctos, nos re-
fc:rimos a que c:sos c:foctus correspondt:n al contcnido quc:rido de la represcntación en sentido
proprio. Comu t1lc:s, los c:ft:ctus son sólo causados por la voluntad". Ibidem, p. 157.
11
Tambc:m chamados de movimentos corporais arbitrários.''(...) y c:st.1 fucra de duda que un movi-
miento torpe puede cimentar la culpa cuando quicra que d agente pudo prever)' tenía que cont1r
con su result1do lc:sh·o, y qut; en caso de qut: d dolo c:stuviera dirigido a un resultado criminoso
que no Uegó a prc:sc:nt:use :i causa dd frncaso dd mo\·uniento querido, amadrig:i un 'conúcnzo
de: c:jecución' suficiente para colmar d concc:pto de tentativa. Ahorn bien, si, sin embargo, para d
concepto de: :icción se requic:re que d movinúento corpóreo sc:a querido, entonces tales casos han
de quedar :tl m:irgcn de aqut!ll.1, por t:mto, dd ddito, r quedar unpunes". Ibidem, p. 158.
19
Ibidem, p. 158-9.
.,, São interessantes, neste ponto, as pondcrnçõc:s de Radbruch subrc: o debate rm1s11/id11de psirojisi(t1
x p11ra/rliJ1110 psüojisiro. Cf. RADBRUCH, Gustav. Ff.l ,011rrpto dr n,rirJ11... p. 159. Not1 108.
'' O próprio Radbruch destaca a scmclh:mç:t de sua posição com a de Ernst "º" Bding, e
proclama: "jSólo en este momento se remat.1 consecuentt:mt:ntt: la separnción de las rdadoncs
causal y de culpabilidad, la i111p11tnliu fnrli de la i111p11l11lio imis, rtmont:índost:, no sólo hasta el

42
Essa conceituação, todavia,. pede algumas elucidações quando se trata de
abordar a omissão porque não é possível falar-se em causalidade (a não ser por
uma ampla licença poética) nos delitos omissivos. Da necessidade de prestar con-
tas dos delitos omissivos surgem algumas conclusões que nos parecem precipi-
tadas ou equivocadas - mas se tornaram algumas das mais notórias nos debates
sobre conduta, tal a qualidade de seu propositor. Explica o professor de Heidel-
berg que, assim como nada pode resultar do nada, o nada deve necessariamente
se resolver no nada. A consequência dessa enunciação para os crimes omissivos
é das 1nais contundentes: apela-se não só para a inexistência de um nexo causal
entre ausência de movimento e resultado (algo suficientemente pacífico), mas
para a inexistência de um "nexo causal" entre a vontade de omitir (o movimento
exigido) e a não execução do movitnento corpóreo. 92
Radbruch conclui, com isso, pela inexisténcia de ""' tinc11l0 causal entre vontade
eJeito. Essa ausência de "nexo causar' pode se referir, então, à relação vontade-
-resultado (da omissão) ou vontade-omissão (abstenção de ação). E isso depende
do próprio entendimento do autor sobre o que se pune nos delitos omissivos, se
a omissão em si ou a "causação" (jurídica) do resultado pela omissão. Essa ques-
tão, co1no se verá, se repete muito frequentemente (não só no curso das teorias
neokantianas, mas de toda dogmática).
Naquilo que parece ser um esforço por se afastar das concepções etiológicas
da vontade (em especial a de Zitelmann), Radbruch sustenta que a 01nissão não é
causada pela vontade, muito embora ela possa ser querida, e "tampoco se requiere
en general que exista la voluntad de omitir un movirniento corporal".93 Um tanto
contraditoriamente, Radruch nega centralidade à vontade e1n sua origem, para de-
duzir desse vazio de importância algumas das consequências necessárias para uma
concepção minimamente coerente com um sistema democrático, como a impos-
sibilidade de condutas (sejam 01nissôes ou açôes) inconscientes (ou 1necânicast'.
Diz Radbruch:
Para poder rechazar la tjtcución de un movimiento corporal mediante
decisión volitiva, es imperioso habé~elo representado prirnero. Pero la
representación de poder cmprender el movimiento corporal a fin de im-
pedir el resultado punible tiene que emerger únicamente en el obrar do-
loso. Claro es que en cl obrar culposo pmde surgir la representación dd
movimiento corpóreo, sea para impedir d resultado punible, sea con otro
movjmit:nto corpornl, sino h:1st:1 la \'oluntad!,,. Cf. RJ\DBRUCH, Gust:i,·. F./ ro11r,plu dr arrión..•
p. 160.
92
.. J...'\ caus:ilid:id c:nlaia una moclific:1ción con otrn modificación; por c:ndt:, la no ocurrc:nci:i
de una modificación puc:dc: sc:r c:fc:cto tan poco como un succ:so puc:dc: st:r c:1usal p<Jr clicha no
ocurrt:ncia de: un movimic:nto corpóreo". RADBRUCH, Gus~v. E/ ro11rrplo dr arriú11... p. 161.
9J
Ibidem, p. 161.
94
Ibidt:m, p. 162-3.

43
objetivo - caso en el cual la interrupciôn del movimiento es querida -,
pero no es prrnsa su ocurrencia.'15
Aqui já se pode dizer inaugurada, de forma mais explicita neste livro, a con-
fusão acerca da consciência e vontade permeando uma conduta e a consciência e
vontade dirigidas a determinado resultado. Quando se exclui da ação (ou, parti-
cularmente, das condutas omissivas) a vontade como seu componente, a conduta
inconsciente só perde relevância jurídico-penal ao apelar-se para critérios norma-
tivos. Peculiarmente, não parece ser um exercício muito difícil imaginar alguém
a realizar un1a conduta (mesmo omissiva) com consciência e vontade (dirigidas
à conduta), mas sem a mesma consciência e vontade referentes ao resultado -
pense-se em alguém que não deseja perder tempo realizando a vistoria obriga-
tória em um carro ainda bastante novo e, em função disso, causa um acidente. 96
Sua lógica de negação da necessidade de um querer para a configuração
da omissão, aliás, em muito se relaciona com a impropriedade de se demonstrar
uma vontade distinta (da direcionada para a realização da omissão), já que o traço
caracterizador da omissão não é o não fazer, mas a ideia de ali11d ogere. Traduzido
em termos simples, salienta Radbruch - com alguma razão - a importância redu-
zida de concluir-se que quem não quer nada ou quer algo distinto na omissão não
quer a omissão em si. Trata-se de um equívoco, para ele, querer negar o querer
com o não querer; especialmente porque o não querer (ou querer algo clistinto)
estaria diretamente vinculado ao objeto da negação (não se quer algo), e, assim,
não é infinitamente extensivo a todos os objetos do mundo. Como nin!:,>1.1ém
pode representar todas as alternativas àquilo que faz, então, novamente, sua ne-
gativa se refere a objetos estritamente negados. 97
Aos delitos omissivos, portanto, Radbruch nega qualquer dimensão sub-
jetiva relevante e, com isso, tais delitos adquirem uma natureza qualitativamente
distinta dos delitos comissivos98• Posto de outra maneira, como para a omissão
não concorre qualquer nexo causal entre vontade e resultado, ela não se encaixa
no conceito radbruchiano de ação, ou, de forma mais abrangente, sequer poderia
ser encaixada em qualquer conceito de ação, por lhe faltar vontade e feito'N.

9S
lbidc:m, p. 163.
96
Trattmos disso um pouco mais na conclusão.
97
RADBRUCH, Gustiv. E/ ro11rrpto dr nrdó11... p. 164.
"' "Convc:ngamos lcon Eltzbachc:rJ, put:S, c:n que una participación psíquica dd omitc:ntc::, c:n d
c:spc:ci.11 un quc::rc:r, no es c:sc:ncfal para d concc:pto de: acción. (...) A causa de: estn falta de: toda
focc::tl psicológica en L, omisión, naufrngan aquc::Uas rc:orías que considc::ran que t:st.a, considc:rada
psicológicamc::ntc:, no sc:ría sino la acción (Sihrwart, Haupt, L.,ndsberg, P. Mc:rkd)". lbidc:m, p. 165.
" Ibidem, p. 166-7.

44
Apesar de negar uma dimensão subjetiva, afirma que tampouco possui di-
mensão objetiva (não é um feito) e, por isso, a omissão acaba assumindo contor-
nos peculiares: é um delito que só existe na mente do homem, mas não possui
componente subjetivo - sugerindo a conclusão de que sua existência depende de
um componente "mental" coletivo, ou seja, de uma expectativa social:
Dado que se suele hablar de omisiones a secas, contraponiéndolas a las
acciones, Ia palabra se ha asociado de un modo difícil de separar con la
imagen de la ausencia de movimiento corpóreo, lo cual genera la suposi-
ciôn de que la omisiém también seria un suceso perceptible que ocurre en
el mundo externo, mientras que, empero, posee en verdad una existencia
sólo en el mundo mental dei hombre. 100

Note-se corno é a partir de sua construção da omissão enquanto conceito que


se define pela negação dos componentes negados a 11011/ade, o Jeito e a relação entre
ambos101 - ou seja, todos os componentes da ação -, que Radbruch enuncia sua
mais famosa proposição: a impossibilidade de se subsumir posição e negação (A e
não-A) a um mesmo supraconceito. O argumento de unificação entre A e não-A
não é apresentado de forma tão abstrata como reproduzido nos manuais. Toma-
se, assim, não só mais compreensível e palpável sua proposta, como passível de
ser rejeitada caso se entenda por pertinente ao conceito de omissão a inclusão de
qualquer dos elementos que ele lhe nega (com especial destaque para a vontade).w2
Por fim, além da definição pela negação, cabe indicar também que é um
elemento distintivo da omissão - muito embora, por não ser comum à ação po-
sitiva, não possa ser usado com o intuito de se delimitar um supraconceito - a
pouibilidade de agir. Insista-se que a possibilidade de se punir os crimes omissivos
impróprios, mesmo pelo prisma da causalidade (quando se interpreta matar por
causar a morte, por exemplo), deduz-se não da literalidade da lei, mas de seu
sentido - particularmente porque não há causalidade na omissão imprópria. O
sistema de Radbruch passa todo ele a ser dividido entre ação e omissão, e só as-
sim ele consegue admitir urna função causal à ação (a qual ele direcionou tantas
críticas), quando ela se restringe estritamente à ação positiva. 103

1 1
~ Ibidem, p. 167-8.
101
dr ln t'<Jl1111lnd, ti buho.J
"Por ro11.r1~11imlt, ln 01111'.rió11 110· .ró/o 110 tir11r t11 ro1111í11 ,011 ln n«irJ11 los rnrarlrrrs
ln rn1unlidnd mtn· n111bo1; n1Ilu bim, rlln Jr ngoln prrri.ran1t11/r m 11,gnr/ol'. RADBRUCH, Gustav. E/
ro11r,,pto dr nrrió11... p. 168.
102
"De esto st: sigut: que omitir puede st:r, con arreglo a todos los dt:mentos, la negación dd
obrar y, tent:r en común un sujt:to, ya qut: d sujeto de un verbo no es demento suyo'>. Ibidem,
p. 169. Ainda: "(...) ln11 rirrlo ro1110 q11r 110 n fnrh'blr pu11er m, ro11uploy s11 op11rslo ro11trndirlorio, pon·riv11
y 11ef,nrió11, 'a'y '110-n: bnjQ 1111 ro1111í11 ro11repto s11pt'ri()r, ,uí ln111bié11 ,1rrió11y 0111ifiv11 hr1m1 q11r rstnr 1111n ai
Indo de la olrn, duligndM mi,,, .ri'. Ibidem.
101
Ibidem, p. 169-74.

45
É a concepção sobre as condutas com1ss1vas que torna compreensível
sua vinculação à corrente causal-naturalista; mas suas considerações sobre a
omissão (a1npla nonnativização e insuperável e completa cisão ação-01nissão)
o aproximariam do neokantismo. Essa afinidade neokantiana assumirá ares de
um compromisso mais definitivo em suas formulações dogmáticas (ação como
conceito valorado1°°') e filosc',ficas da década de 1930.1º5

1114
Em seu Z11r SJ•sltn1nlile drr Vervrrdmu!thrt. Cf. ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, Nilo (et al.l. Dirrilo
pt11nl brnnltiro, vol. 11, 1. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 93; JESCHECK, Hans-Hdnrich; \v'EI-
G EN D, Thomas. Tmlado de dtrr<ho pr11al· pnrtr. gmrml s• c::d. G r:mada: Comarc::s, 2002. p. 221 .
tos "A filosofia do direito seria, portanto, a consideração valor:afra do dirdto, a 'doutrina do di-
reito justo' (Stammlc::r). O método dc::ssa nova consideração ,·alorativa do dirdto é, no entanto,
car:ictc::rizado por dois traços c::ssc::nci:ús: dualismo mc::todolój.,rico e rdativismo. (...) Dc::sse modo
recusa-se o positivismo, o historicismo e igualmente o evolucionismo, que deduzem o que deve
ser, respectivamente, àquilo que é, daquilo que foi e daquilo que será". RADBRUCH, Gustav.
Fi!fJsojia do dirrilo. São Pa~lo: .Martins Fontes, 2010. p. 13.

46
3 -AS TENDÊNCIAS NEOKANTIANAS

As décadas anteriores e posteriores à virada do século XVIII para o século XIX


foram 1narcadas pelo famoso duelo entre Escola Clássica106 (Francesco Carrara,
Anselm von Feuerbach, Karl Binding, Karl von Birkmeyer, Johannes Nagler,
Carl Georg von \Vachter, Richard Lõning, Richard Schmidt, entre outros) e
Escola 1noderna107 (Franz von Liszt, Gustav Aschaffenburg, Hans von f-Ientig,
Adolf Merkel, Eduard Kohlrausch, Gustav Radbruch, Carl ivlittermaier, James
Goldschmidt, Berthold Freudenthal, entre outros), esta marcada por sua an-
corage1n no positivis1no criminolc\,rico (com influência do determinismo bio-
lógico de Lombroso, Garofalo e Ferri) e em uma concepção preventivista de
pena, e aquela marcada pelo positivismo histórico-legal e por uma concepção
retributivista de pena. 108
Já o início do século XX marca o aparecimento de novas concepções te-
óricas acerca do Direito Penal. Se antes era possível ver no Direito a marca da
centralidade das Ciências Naturais como modelo para se pensar as demais for-
mas de conhecimento humano - pense-se no empenho por transformar a exe-
cução penal em uma ciência, nos substitutivos penais para as penas privativas de
liberdade de curta duração etc. -, o século XX inau&J'\.lra tendências de não mais
pensar o Direito a partir das Ciências da Natureza, quando surgem, sob a rubrica
de neokantismo, esforços para depurar as particularidades do Direito, distinguin-
do-o das Ciências Naturais e atribuindo-lhe um estatuto autônomo. Buscou-se,
então, fundar uma "nova" ciência (as "Ciências do Espírito").
Se, como bem lembra Patrícia Glioche, a Escola Clássica alemã apoiou suas
considerações nos grandes sistemas filosóficos de Kant e Hegel, o aporte kantia-
no reaparece de forma renovada, mediado pelas derivações filosóficas de autores
que iam muito além de Kant. 109 Essa influência neokantiant1 no Direito Penal,
1116
"Ao tempo da Escola Oássica, pontificar:un duas corn:ntes: uma sob a inff ufncia din:t.'1 do Ilu-
minismo, qut: pretendeu criar um direito punitfro baseado na necessid:ide social; e outr:t, na fase
ddinitivn da Escola, na qu:tl a metafisica jusnatur:ilista im-:idiu a doutrina do Direito Pen:il e acen-
tuou :i exigtnci:i ética d:t rt:tribuiçào da pena, cujos expoentes máximos s:io Francesco Carr:tr:i, na
Itália e Ansdmo Feuerbach, na Alemanha". BÉZE, P:itrícia .Mothé Gliocht:. Op. Cit. p. 08.
1111
Uma excdente síntese da progressão das Escolas no Direito Penal e suas conexões com o
conceito de ação pode ser encontrada em: BÉZE, Patrícia Mothé Glioche. Op. Cit. p. 07-23.
18
" Na verdade, a chamada Escola Clássica era muito di,·ersa entre si e posstúa aportes teóricos
do pensamento itiliano, da filosofia ide:1list1 alemã (notad:imentt: Kant), de direito romano,
etc. Essa Escola tem como grande her:mça, todavia, o apreço pda prest:rvaçào das g:ir:tntias
individuais d.i:mtt: da intervenção do Est:tdo. Cf..MEZGER, Edmund. Tralttdu dr drrahu p,·11t1/,
1. Buenos Aires: Hammurnbi, 2010. p. 81-94.
IO? BÉZE, Patdcia Mothc.! Glioche. Op. Cit. p. 08.

47
a partir da conhecida escola de Badn, ou bICo!a do Sudoeste da Alemanha (Wilhelm
\v'indelband, Heinrich Rickert, Emil Lask e Bruno Bauch),110 denota uma in-
flexão com acento nos valores. A Escola de Baden participou da tendência a
considerar o ato cognitivo como transformador do objeto de conhecimento, o
que, em última análise, implica a admissão de uma função demiúrgica do valor. 111
Essa nova vaga teórica não representa, todavia, u1n sitnples retorno à filo-
sofia kantiana, mas uma apropriação da herança do pensamento legal anterior
com vistas a um novo horizonte filosófico, gerando uma reavaliação crítica do
conhecimento produzido até então e uma nova produção de saber co1n fortes
tendências dogmáticas.112
Se o pensamento clássico anterior possuía fortes tendências a um positi-
vis1no legal, a recém-surgida corrente neokantiana reconhece que não é possível
deduzir apenas das leis todo o conteúdo dos conceitos jurídico-penais. Aliado
a isso, o embate entre (a) as dificuldades em relação à criação de marcos legais

"" Outros nomt:s ap:m:ct:m t:xc:rcc:ndo al1-,1Uma influência, t:mbora não façam parte da Escola do
Sudot:stt:: o filósofo Hcinrich Maier, Gt:org Simmd, Rudolf Stammler (o qual pertenceu à Escola
de Marburgo, mas L'\mbc:m possuía inclinações antipositivistas), Arthur Schopenhauer, entre: ou-
tros. Cf. MEZGER, Edmund. Tratado... p. 92; ~IAYER, .Max Ernst. Derrrho pmnl. parte general.
Monte::,·ide::o: BdeF, 2007. p. 133 e ss; RADBRUCH, Gustav. 'Fi/oJ{)Jin do dirrilo. São Paulo: Martins
Fontes, 2010. p. 0S; JESCHECK, Hans-Hcinrich; \VEIGEND, Thomas. Tmllldo dt drrrcho pmnf.
parte: gc:neral. Sª ed. Granada: Comares, 2002. p. 220, etc.
111 "Partindo dos c:nsinamt:ntos de:: Emm:mud Kant, os filósofos de Baden vt:t:m na realidade um con-
rexto hc:tc:rog~noo e: caótico, t: não algo predeterminado t: organizado (como as concc:pções naturn-
listasj. Cabt: :i cii:ncia, atr:l\'~ das 'formas' do t:u e::mpírico (e nisto se distnncfam os ncok.-tntianos de
Badl.-n do .Mt:strt: de:: K0t:nihrsbt:rg) orga~ar a realidade. Logo, os concdtos enunciados pdo sujdto
empírico não n:produzc:m a rt:alidade objetiva. Não são wna subsunção desta rt:alidadc. Rrpn:smtn111
oproduto de 111110 hmufan11nriio dn rralidadt ol?)elil'r1, q11r Jr efrh·m ntmvis dn1 cnlf/!.orias q11r 1i1lrgrm1111 r.1tml1m1 do
ngr,~o 1iuli1id,"'' r ro11trrtrl' (~áfo nosso). LU ISI, Luiz. Op. Gt. 36. Ou ainda: "O conceito - sc:gundo
os nookantianos da Escola de Baden - não é a reprodução da rt:alidade objeti,-a. O conhecimento
- diz H. Rickt:rt - não é um reproduzir, ou um copiar, mas 'wn processo qut:, mediante o concdto,
transforma o material representativo imediatame::ntt: dado"'. Ibidem, p. 38, nota 15.
112 "Un c:sclarecimic:nto crítico sobre la base de la filosofia neokantiana dt: Stammler rc:presenta
d libro de Graf zu Dohna sobre La antijuridicidad como característica general cn ti tipo de las
acciont:s punible::s (1905). Los Gnmdlagm drs Sh-afrrcht1 (Principios fundamentalcs de dere::cho
pt:nal) de Saucr dcstacan de modo expre::so la peculiaridad dd pcnsamit:nto cientifico-cultural
frente a toda espt:cit: de positivismo. El pe::nsamie::nto 'volitivo' constituye la base de la obra
de Dding: 1Wt1hodile d" Grsrtzy,rbml[!. (l\fotódica de la lehrislación), 1922. Como ya se dijo, espe-
cial c:sómulo debt: tambic:n la cic:ncia dei Derecho penal en la indept:ndización de su propio
pc:nsamie::nto orient1do en d \'alor a la llamada filosofia cultural dei Sudoc:stc de Ale::manfa,
de:: \X'inddband-Rickert, dc:terminante dd pensamie::nto científico-jurídico en I\1.E. Mayer y e::n
R:idbruch, r fundamento básico dt: la Sdmldlrhrr, 1, 1928 (fe::oría de la culpabilidad), de Erik
\X'olf". .MEZGER, Edmund. Trntado... p. 92; "Os argumentos a seguir fundame::nt1m-se nas tt:-
orias filosóficas de \X'indclband, Rickert t: Lask, (...) e que influenciou a dabornção dc:ste livro".
RADBRUCH, Gustav. Filu10Jia... p. OS.

48
para a delimitação do arbítrio judicial e (b) propostas menos restritivas de in-
terpretação, leva diversos autores a pensar as bases metodológicas de formação
conceitu~ jurídico-penal a partir dos contorn(,s do sistema do Direito Penal. 113
É de suas concepções do sistema de Direito Penal que os autores passam,
então, a derivar os elementos pertinentes ao sistema (tratam-se de análises tele-
olôgicas e1n relação ao sistema), os quais, por isso, são especiahnente normati-
vos. 114 Daí sai a forte tendência dogmática dessa corrente de Direito Penal, bem
como sua abertura para considerações de Política Criminal e de Criminologia. 115
É sobre essa base da Filosofia dos Valores (ou Filosofia da Cultura) que se
constrói uma particular acepção do conceito de 01110/ogia (típica das considerações
neokantianas), a qual diverge qualitativamente daquela empregada pelo finalis-
tno. 116 Mezger, por exemplo, afirma que a ontologia do Direito é co1nposta de
três camadas: o ser essencial do Direito (os valores); o ser existencial da realidade;
e o ser normativo das valorações legais (o qual, enquanto dever, vincula-se tanto à
esfera dos valores quanto à da "realidade existencial"). 117

111
l\lEZGER, Edmund. Tratado... p. 91-94.
114
São bast-inte:: re::pre::sentati,-:1s as consider:ições de:: José .Munoz: "A la cie::ncia juádico-pe::n:tl pe::r-
tenecen como objeto, alllt lodo, las 11on11m /rg,alei dd Dere::cho posith·o. (...) Se:: trata de de::scubrir y
t:\'Ít:lr posibles contrndicciones, parn hacer sucgir de:: t:i1 sue::rtc:: d siste::ma de:: la totalidad dd Dc::rc::-
cho. (...). L:is normas son medios de la reali.z!lción dd t.'a!or. Por dJo enr.tllan, en última instancia,
en d reino de: los valores. Y así, tambitn los precc:ptos juádicos dd Dc:rc::cho penal son 1.'a/orari,111r1
hum:m.:is dd lt:gisbdor competente., que d jurista, en su trabajo exq,7t!tico como intérprete de: la
ley, h.-i de desc::nvolvc:r por su pane., :tl obje::to de aplicadas :1 los casos pr:ícticos de:: la vida. También
el jurista c::n su labor cientifica y pr:íctica ha de itz/qrar. Pero los 'juicios v:ilorntivos' no son suscep-
tibles, se1,-rún las p:ilabr:is de:: Radbruch 'dd conocimiento, sino sólo de la convicción'. Así es que
podrfa pensarse que: d jurista, c:n esta su :icti,idad necc:sari:imc:ntc:: valorntiva, por consc:s,ruiente
no sólo lógica, sino to..-ioló!/ra, podr:í sc::r un 'adepto', mas no d gc:nuino rc::presentantc: de la rimria.
Pero tal concc::pción seria demasiado restringid:i; cie::rto es que: todas las 'valor:idonc::s' humanas
son tentativas emocionaes, artificiosamente: confi1-,'llrndas, :tl objc::to de aproximarsc:: a los \ ·:tlorc::s'
absolutos, 'c::n sí' existe::ntes. Dichas mlomnunri comportan sic:mpre, por dlo, un cacictc:r rdativo,
esto c:s, condicionado local y tcmpornlmente. Por cllo t:imbic:n no son c::n sentido riguroso de
índole: 'cientifica', cohinitiva. Pc:ro los mlon•J apriorísticos mismos son accc:sibles a la considc:rnción
cic::ntifica. Así t:tmbi~n d conocimic:nto dr/ valor l.}UC:: dirige:: todo trnbajo c:n la esforn dd Dcrc:cho
y con dlo dd Derecho penal, de:: laj11stiritl'. .MEZGER, Edmund. Tratado... p. 93-4.
115
Me::zgc::r chegou a daborar uma fórmula parn dar conta de conside::r:ições criminolós,ricas: krT=
aeP. ptU. Tal fórmula si1,inifica que o fato criminoso é um produto da personalidade (em si
condicionada por sua disposição e: de::sc:m·olvimento) e: pc:lo ambic:ntc:. l\IEZGER, Edmund.
Afodm1n1 urir11lndo11r1 dr !t1 du.,~111álimj11rídiro-pm11l V:tlc::nci:1: Tiram lo blanch, 2000. p. 15-6.
116
"Pue::s la I..(!y sólo se: conviertc: cn Dert!cho cu:mdo se:: insc:rta c::n un valor en sí existente:: m:ís
alto de: Justicfa. Este: valor considc:rndo como valor espiritual c:s también objeto de: una cic:nda
univc::rsal dd ser (Ontologia) y, c:n última inst.1ncia, c:s d fundamento de: toda Dogmática dd
Derc:cho penal''. MEZG ER, Edmund. Alodrmai... p. 16.
117
l\IEZGER, Edmund. Alodm1ns... p. 17.

49
Paralelamente, algumas das principais vozes a se levantar contra concepções
naturalísticas de ação foram as de Edmund Mezger, \"v'ilhelm Sauer, Max Ernst
. , Alexander zu Dohna, Paul Bockehnann, Adolf Schünke, entre outros. 1111
~-faver
Ao abordarmos aqui as concepções neokantianas em Direito Penal, tratar-se-ão
de forma um pouco mais detida as proposições de certos autores, os quais acredi-
ta1nos serem albruns dos juristas 1nais finos dessa linha, e aqueles que, com 1naior
fôlego, enunciaram e sintetizaram a chamada concepção neokantiana de conduta.
Ao longo da exposição, são agregadas, em camadas, as ideias e autores que
reforça1n a posiç3o neokantiana, cuhninando co1n os escritos de Mezgcr. Não se
pretende, com isso, esgotar o rol de todos os autores passíveis de serem consi-
derados neokantianos. 119 O fio condutor foi, como mencionado, o esforço por
selecionar os autores que tenha1n se destacado co1no os representantes desta
concepção e cujas ideias, embora se sobreponham em muitos pontos, possam se
complementar apresentando o panorama mais abrangente possível.

3.1- A concepção neokantiana de conduta

Há, ade1nais, u1na grande tradição de se considerar a ação co1no wn con-


ceito valorado, desde os hegelianos, ao identificarem ação e imputação, passando
por Binding, zu Dohna, Sauer e 1\,1ezger. Em termos epistemológicos, a opção
neokantiana significou reconhecer que o valor criava o objeto valorado (ou ao
menos o alterava). Em grande medida, mantém-se uma concepção de ação próxi-
ma à enunciada por Liszt (recorrendo-se às representações e à vontade se,n co11te,ído). 12º
1111
Vale a pena salientar as obras pioneiras em sua contraposição :i concepção estritamente descriúva
do tipo pena! proposta por Beting em 1906: "A descoberta dos chamados elementos subjetivos
é atribuída por numerosos autores ao civilista alemão Hans Albrecht Fischer, que, em 1911,
tratando do tema da anti juridicidade no direito privado (in Dit Rrchlm•idri.,~kril 111il beso11dertr Brikksi-
rhfi..~m(v_ du Prirr11rtch11), demonstrou, com base em casos concretos, que esta muitas vezes somente
se configura em face da intenção e propósito presentes como guias no espírito do agente, no
momento de reatizar a conduta.(...) No mesmo ano, em 1911,J. Nagler, polemizando com Bcling
em uma monografia, Drr hml(~t S1a11d der I..Lhre t,'011 der R"hll7lidri.,v_hil, procura mostrar que a deter-
minação da antijurídicidade muitas vezes está condicionada à existência de certos elementos sub-
jeth·os, como ocorre nos casos em que, para a configuração típica, a norma incriminadora exige o
consentimento do ofendido. Ali:ís, J. Nagler (...) tinha enfatizado ser 'a objetividade relevante no
direito penal apenas enquanto representa a forma em que se manifesta a ,·cmtade"'. LUISI, Luiz.
O tipo pena! e a teoria finalista da ação. Pono Alegre: Gráfica Editora A Nação, s/a. p. 13-4.
119
Não é essa a proposta nem deste, nem dos outros capítulos (o que tomaria este livro insustcnta-
vclmente longo e repetitivo). A opção por selecionar apenas alguns autores que reputamos como
os mrus representativos foi repetida (a nosso ,·er, de modo coerente) nos demais capítulos e a..-.swne
wna especial importância metodolc,gica naqueles que se referem a correntes até hoje muito popula-
res, o que inviabilizaria uma exposição exaustiva (no finalismo, na.o; teorias comunicativas, etc.).
12tl
ZAí-PARONI, E.R.; BATlSTA, Nilo [et ai.]. Dirtito pmal brr11ileiro, ,·oi. II, 1. Rio de Janeiro:
Rcvan, 2010. p. 84-5; RADllRUCl-1, Gusca,·. Fi/01ofia... p. 05-24.

50
O conceito de ação nesta teoria é fruto de sua construção a partir do tipo,
resultando frequentemente na própria superação da conduta como elemento re-
levante para a teoria do delito, em razão da prôpria dificuldade em se lidar com
ela. Por maiores ou menores tergiversações, essas teorias acabam redundando na
delimitação da ação como co11d11la realizadora do tipo. Esse conceito de ação realiza-
dora do tipo foi apresentado por Radbruch (Z11r Systemotik der I/erbreche11slehre) no
livro-homenagem a Frank cm 1930, portanto, muito tempo depois da publicação
de sua famosa monografia sobre o conceito de ação (Der Ha11d/1111gsbegriff i11 st'iner
Bede11tmtgftir das S trafrechts.rysle1JJ, 1904).121
(A) Karl Binding não é propriamente um representante do neokantismo,122
mesmo assim é importante separar algumas linhas para ele porque sua obra apre-
senta u1na concepção valorada de ação com enorme impacto doutrinário. Nele
há alguma correspondência com as proposições dos penalistas hegelianos, pois
concorda que ação e imputação coincidem, mas vai além disso ao buscar rela-
cionar a ilnputação não apenas ao resultado, mas também à antijuridicidade. 123
Na concepção de Binding, portanto, só existe ação quando ela é juridicamente
relevante ou, em outras palavras, não existe nada que se possa chamar de ação
alétn do cainpo das ações juridicamente relevantes. Isso porque ele realiza uma
sobreposição entre um conceito jurídico e um conceito geral de ação. 124
Com isso, sua noção de conduta acaba, como em outros autores, dissolven-
do-se na prôpria concepção de imputação. A ação deixa de ser um elemento do
modelo de estruturação do delito e percebe um retomo às concepções clássicas (de
Grolmann e Feuerbach). Sua concepção de culpabilidade da vontade demanda que
qualquer resultado imprudentemente causado precise apresentar al6l1.llna fonna de
vontade por trás de si, e determina que ele substitua o conceito geral de vontade
por um que dê conta também dos delitos culposos - não sem maiores problemas,
porque o vínculo de fundo criado entre vontade e resultado é abrangente o sufi-

121
ZAFFJ\RONI, E.R.; BATISTA, Nilo [et al.J. Dirrilo pmnl braJileiro, ,·oi. 11, 1. Rio de J:mciro:
Revan, 2010. p. 93;JESCHECK, H:ms-Heinrich; \'\'EIGEND, Thomas. Traindo... p. 221.
122
No entanto, por sua concepção valorada de conduta, há quem o considere um neokantiano.
Cf. LUISI, Luis. Op. Cit. p. 35 e ss.
m "Amén de esta argumentación de L, tesis de que únicamcnre d delito cs acdón, Bincling plan-
tca todavfa otrn, que concurrc con la primera en las Non111u y t=l suprimió por completo cn su
Almmnl. Para d jurista c:s acción sólo la acción juriclicamenu: relevante". RADBRUCH, Gustav.
E/ co11aplo dr ncrió11... p. 121.
"Dentre cstc:s, l]Ut:m mais radicalizou cst:1 postura normativo-juriclica foi Karl Bincling, que
chegou a sustcnt:tr que: a ação, para o direito, é somcntt: a realização dc uma conduta juricli-
cmncntc relevante. E mais: que, para o direito, o conceito de ação na lingu:igcm comum nem
sequer existe". LUISI, Luiz. Op. Cit. p. 35; MAYER, Max Ernst. Drrrtho pmal... p. 130; MEZ-
GER, Edmund. Tmtndo... p. 198; RADBRUCH, Gust.w. F./ ro11rrpto dr t1«ió11... p. 121.

51
ciente para abarcar, inclusive, resultados fortuitos. 125 No entanto, por fim, Bind.ing
acaba por reconhecer que existem ações sem qualquer conteúdo jurídico.126
(B) Alexander zu Dohna realiza didatica1nente sua fiunosa distinção entre
objeto da valoração e valoração do objeto, segundo a qual fica claro ser a maneira
como se concebe o objeto (a conduta) e a forma sua valoração os fatores carac-
terizadores dos delitos. Aduz zu Dohna que as características exteriores não são
imprescindíveis para se constatar o delito ou a ação, pense-se nos delitos omis-
sivos (nos quais falt1. a ação em sentido estrito) e nos delitos de mera atividade
(nos quais falta resultado). 1:!7
Se se prescinde de sua manifestação sensível, a conduta é concreção da vonta-
de, e essa vont'lde pode ser orient'l.da para realizar ou furtar-se a um agir positivo do
corpo. Por isso, també1n em zu Dohna a conduta se divide e1n ação e oinissão.128 Se
bem que ele aponta a decisão da vontade, a manifestação (da vontade) e o resultado
como elementos da ação, eles só aparecem conjuntamente nos delitos dolosos de
resultado. As diversas formas de delito se configuram quando da ausência de wn
desses elementos combinado com a presença de outros. Se os crimes culposos
ocorrem quando não há decisão da vont1.de, os omissivos ocorrem quando não há
manifestação dessa vontade e os delitos de mera atividade quando não há resulta-
do. Entretanto, conforme esse professor de Bonn, mesmo quando não se constata
nenhum desses elementos é possível a configuração de um delito:
Si tomamos una omisión culposa sin resultado, no queda ninb,uno de los
elementos dei delito, sin embargo, estamos ante un delito: es el caso dei
vecino que no esparce ceniza sobre la escarcha y ésta se derrite sin que se
haya producido ningún accidente. 129
--------
Destaca Lw7. Luisi: "A critica de llinding à teoria do tipo de lleling, pois, ao contrario das de A.
Ili
Hcgler, w: Saucr, E. Me7.ger e outros, não se limita a demonstrar a inviabilidade de um tipo mera-
mente objetivo e ,l\'alorati\'o, evidenciando a existência, no tipo penal, de elementos normativos e
subjetivos, mas investe contra os fundamentos ontológicos da doutrina de lleling, isto é, contra a
teoria naturnlista da ação. Vale di7.er: procura demonstrar a insuficiência de uma posição que con-
sidera a conduta humana essencialmente como o dado objetivo causado por uma vont.'lde, sem
indagar se a reali?.ação daquele constitui, realmente, o conteúdo da vontade do agente causador.
Ao entender que a vontade do agente, isto é, o realmente querido pelo agente, é que dá vruor ou
desvalor ao acontecimento objetivo causado, K. llinding, fiel à concepção clássica da ação - e
insurgindo-se contra uma concepção mecanicista da conduta humana - preanuncia a renovação
cfa teoria do crime que se iniciara cerca de, mais ou menos, trinta anos depois, com a obrn dos
adeptos da chamada doutrina da ação fin:ilista". LUISI, Luiz. Op. Cit. p. 18.
1211 RADllRUCH, Gustav. HI (otr(tplo dt o(áón... p. 121, 124, 142.
127 DOHNA, AJcxander Graf zu. l..a tJlrHlllfra dt la ltoria dtl delito. Buenos Aires: Abcledo-pcrrot,
1958. p. 13-9.
tza "Queda sicmpre entendido, sin embargo, que tulto una como otra cxpresión suponen que se re-
ali7.a una dccisión de volunmd. En cambio, actividad e inactividad quedan fuern de la idea jurídica
de acción, si no pueden ser atribuídas cn su causa a una voluntad humana". Ibidem, p. 19.
129 Ibidem, p. 20.

52
Sobre as ações negativas, diz zu Dohna que, enquanto os delitos omissivos
próprios violam uma atividade expressamente impost-i pela lei, os delitos omissivos
ilnprúprios são ordens (condicionais) de impedimento da concreceção de determi-
nados cursos causais, e não apenas proibições de causações. Com isso, ele consegue
evitar a problemática do nexo causal nos delitos omissivos impróprios. 130
A desnecessidade de se demonstrar o nexo de causalidade na 01nissão hn-
própria e a impossibilidade de se apontar um vínculo subjetivo entre agente e
resultado nos delitos culposos é o que chama atenção de zu Dohna à faceta
nonnativa desses delitos 131 • Um conceito nal11ralista, portanto, não seria bem
sucedido porque só se poderia falar em delitos culposos e omissivos diante de
uma expectativa de ação (e o ponto comum entre esses delitos seria seu caráter
valorativo decorrente da infração da norma) 132•
Entretanto, mesmo negando a existência de um nexo causal na-
tural nas omissões impróprias, zu Dohna defende a existência de uma
quase-causalidade (o juízo hipotético de realização da ação omitida, ao
qual alguns chamam de causalidade jurídica), bem como uma causalidade
em razão das motivações das condutas (um sujeito pode realizar algo mo-
tivado pela omissão de outrem).133
(C) \Vilhelm Sauer traça as linhas iniciais de sua análise sobre o binômio
liberdade-determinação por trás da conduta e se contrapõe ao indeterminismo
absoluto, 134 reconhecendo a existência de inúmeras determinações. Se1n e1nbar-

Do Ibidem, p. 29-30.
1.ll "En esa tarea se ha pasado por alto que la omisión, cn oposición a la acción positiv:i, no posce
realidad alguna. y con ella sólo se estabelece que una acción - cspcr:tda desde cual9uicr punto
de vista - no se ha reali7.ado". Ibidem, p. 30.
112 "Y como la omisión se agot:t, logicamente, en la neg.ición de la acción y sólo alc.1.rv.a su rele-
vância jurídica con la v:tlomción a la que el orden jurídico sometc ttl comport:unicnto negativo,
así, también, rige, en lo correspondiente, paro la culpa: clla se agota psicológicamente en la falta,
precisamente, de esa relación psíquica, que constituye la csencia dcl dolo, y ella alcan7.a la rcle-
v:mcia jurídica, sin embargo, con la desaprobación de esa ausencia por parte dei orden jurídico".
DOHNA, Alexnnder Grnf ru. Ln ulnffl11m... p. 29 e ss; MEZGER, Edmund. Tratado... p. 196.
m "El hecho de que Teseo omiticrn i1.ar la bandcrn blane:t, motivó la decisión de su padre de
arrojarse desde la roca al mar. Así puede causar.;e, también por omisión, un resultado criminal.
Por tanto, cs siemprc uno cl que omite y otro cl que inmcdiatamentc e:tusa. Así, por ejcmplo,
cn el caso del guardaagujas que omite poner la seii:1.l de vfas ocupadas, induciendo a error ai
maquinistn, que suponiendo via libre, avan?...'l, chocnndo con otro trcn, a cual de los dos de dcbe
imputar c1 resultado, se decide scgún los puntos de vista de la culpabilidad". Ibidem, p. 31.
u., "En definitiva la Criminologia cnsena, por consiguicntc un indeterminismo relativo fuertcmcn-
tc adccuado )' ai mismo tempo un determinismo adecuado (si se quiere dedr aí, ampliado). L'l
culpabilidades posible solamente en cl libre :tlbcdrio, pero d grado de la culpabilidad es diverso
scgún el grado de libcrt.,d, esto es según c1 grado de limitación por las influencias extrnnas a la
personalidade a las cuales pertenccen trunbién las influencias por la disposición y l:t educación...
SAUER, Guillcrmo. Dtrtrho pmal (parlt gmm1/). 13:trcelona: llosch, 1956. p. 83.

53
go, essas determinações seriam como circunstâncias concomitantes, que não in-
terditariam de forma absoluta a liberdade do individuo. Nisso, há elernentos de
surpreendente afinidade com o finalismo. 13s
Essa conclusão, todavia, leva-o a afirmar que alguns grupos de delito con-
formam um especial exercício de liberdade do delinquente (como a fraude, a
falsificação de docuinentos, furto, rufianismo, extorsão, incêndio, etc.), co1n es-
pecial destaque para os "delitos crônicos de lucro"136 - embora, para um olhar
mais crítico, isso pareça um tanto estranho, já que vivemos em uma sociedade
capitalista, na qual as pressões econô1nico-financeiras interpretain tun papel de
destaque.
Sauer, aliás, apresenta alguma inclinação por extrair, de traços biológicos,
consequências para os fundmnentos filosôficos do Direito Penal. Apesar de se
opor a uma análise biologicamente determinista do delito, ele afirma que alguns
caracteres biológicos expandem a capacidade de livre-arbítrio do indivíduo. Tra-
ta-se, portanto, de u1na porta aberta para consideraçc,es perigosas. 137
Ainda segundo o professor de Münster, liberdade é a autodeterminação
direcionada à determinação do futuro. 1J.-1 Surge, assim, uma íntima relação entre
conduta e causalidade, na qual a esfera de relevância da conduta se liinita a se eb
produz um resultado j11ridica111enle releva11le-, e, por isso, reflexivamente, a causalida-
de também só teria pertinência em sua particular manifestação teleológica - e a
causalidade naturalística, em contrapartida, interessaria apenas à Criininologia. 139
us "El hombre vive la libertad y pucde dclante de una acción decidir libremente si quicre rc:tli7.:trla
u omitiria. Puedc contra las tentaciones dcl mal poncr a contribución la necesaria fucr7.:t de
resistência. En este neto tx a11le, con la mirada en cl futuro se :muda la responsabilid:td ética y
juridico-penal". SAUER, Guillcrmo. Derttho pmnl.. p. 81.
il6 Ibidem. p. 82.

m "1.....-i investigación psicológici, caracteriológica y etnológica sugiere ln hipótesis de que hombres,


r:17.as y pucblos acusan a mcnudo una capacidad fundamcnt.tlmente diferente para cl desen-
volvimento de l:i volunt.'ld libre. Los caracteres esqui:1.otímicos y los pueblos nórdicos están
constituídos más indeterminadamente lo cu:tl, posiblcmente, de ningún modo debe hablar jen
favor de la tcorfa de hi disposición!". SAUER, Guillermo. Dtrtcho pm,,l.. p. 84.
131
"/ ..a libtrlad t.1 ln aHlodt1m11i11adó11 prrdo111i11nnlt dt la vo/1111/nd pnm !t, dtltn11i11adó11 ded1iva deifi1!11ro,
es dccir, la tendenáa dei obrar proprio y la previsible consecuencin producidn por él en la vida
social, esto es, dei result:tdo jurídicamente relevante. Esta libertad de voluntad y de clccción cs
1a posibilidad de haccr un csfuca.o para haccr u omitir, contcncrse, o no dcjarse llcvar; por con-
siguicnte se comparte la respons:ibilidad por el result.'ldo en cuanto era preYisible gcncrnlmcnte
y (!) por d autor, por consiguicntc no cuando sucede, por ejcmplo, causalmente, es dccir, de
modo imprevisto e incalculablc". Ibidem, p. 86.
t)9 " (•••) p:trn cUos fa causalidad cs tomada en consideración sólo en su forma especial tclcolôgica.

Como tendcncia al fin, tendcncia ai valor, obrar, producción del resultado. Por eso ncce~it:t ser
cst::tblecida safamente cn rcl:ición (lfamad:i relación causal, o mejor teleológica, final, de objeto)
entre L1 librc dccisión de la voluntad, cl obrar que acompanha y su tcndencia ai resultado, cuyo
ac.1ccimiento real, sin embargo, no necesit.'l ser esperado. A los juristas intcrcsa solamente 1i 1111t1

54
Em um primeiro momento, Sauer caracteriza a conduta humana
como uma tendência objetiva a determinado resultado socialmente da-
noso ou juridicamente desvalorado, mas isso é só o começo. Seu desejo é
o de vincular o próprio conceito de conduta à personalidade e seu efeito
sobre o mundo circundante,1-io por isso chega a intitular este aspecto de
sua análise de "egocêntrico". 141
A conduta humana seria a causação objetivamente responsável do result-ido
jurídico, e essa é uma das portas de entrada do caráter valorativo dessa concep-
ção. O problema passaria a ser, na verdade, uma questão de imputação, bem
como de se reconhecer quais objetos possuiriam relevància jurídica 142 •
Sólo en esta gran conexión [com a personalidade e o mundo] se há de
contestar a la pregunta, de si es realmente para el Derecho Penal un resul-
tado juridicamente no deseado, si es una conducta humana causal, es dccir
objetivamente responsable dei resultado. El problema consiste entonces
en afirmar si ella cn todos sus elementos, dentro de la personalidad dei
autor y cl mundo circundante, scgún una prognosis objetiva, actúa hacia cl
resultado socialmente danoso. 143

Para :rvlezger, por exemplo, a concepção de Sauer não seria naturalistica,


1nas "científico-social"144 (porque, aos critérios valorativos, ele alia considerações
criminológicas). O professor de :t\.iünster admite que a vontade vincula-se à fina-
lidade do agente (e a ação ao resultado), mas ele amplia sobremaneira a gama de
aspectos subjetivos do delito, muito em função de seus estudos criminolôgicos: 145
drdsió11 librr dr la vol1111tad es 111 ,n11sn Ji11 de 1111 rts11ltado sodal11m1/r 1ítil o dmioso, si :i t!l tstí dirigid:t la
ttndtnci:l gem:ral de un querer y un obrar". Ibidem, p. 87.
141'Diz de:: que:: "la ,·oluntad debe:: ser castigada solamente cuando se m:uúfesta en una dirección
correspondie::nte al resultado no des~do; debt: dt:st:tcarst: de la pt:rsonalidad y desarrollar su
decto pdigroso en d mundo exterior. Esta p,·lif.ro1idad es d núclc:o de la rdaciún concreta den-
tro de l:t personalidad y su mundo circundante:; rc:prt:sent:t la rsmdn 111t1lrrial d,· I,, mrunlidad,--. L.1
causalidad es actu:ición fom/(11 dr la 1-'olrmtnd hnria ri rrs11ltt1do, prl(Y;rv 111nll'rial dr rm valor t·ital ro11 la
ind11.rió11 de posiblu dmios "'fl.J'<Jrrl'. Ibidem, p. 140.
141 "Esta acentuación de lo cr~do en d ddincuc:nte, (...) puc:dc: ser caracterizada como la tt:orfa

enc:rgttica o de la cr~ción c:n d Dt:rt:cho pc:n:tl. Un an:ílisis c:goctntrico, neoidc:alisro, neoclási-


co de la criminalidad". Ibidem, p. 88.
142
Ibidem, p. 86-9.
'º SAUER, Guillt:rmo. Drrrrho pr1111/... p. 134.
144 MEZGER, Edmund. Trntado... p. 196-7.

i◄s Ele divide: o fato ddituoso t:m querer e agir (ou omitir), p:ira t:ntão, dividir o querer em: pd-
mdro impulso (desgosto, cólera, interesse:: pessoal, indiferença, etc.); moth-os e contramoti,·os;
móbil (ou Lei/1110/i/l); rc:solução parn o fato ou para a açiio prc;via; ,·ontade de atuaçiio e possi-
bilidade de atuação; influC::ncia da ,·ontadc: (e: da "excitação criminal") sobre as et.1pas da ação.
Nesse: sentido: "El primer impulso no necc:sita todavia tender a la acción c:jecuti\':t; (...) La exic-
tación criminal puc:de :1 mc:nudo drsarrollarrr primc:ramente de modo p,11dati110; frecuc:ntemc:nte
v:1 madurando, ante: todo, en la luch:1 de los moth·os; posteriormente lleg:i a su total fuer.ta,

55
aquilo que ele denomina de "excitação criminal" surgiria nos pri111eiros i111p11lsos,
obteria êxito sobre os demais impulsos na vo11tade de agir e, amadurecendo, preci-
pitar-se-ia em u1n p/0110 para a conduta. 146
\Vilhelm Sauer diz ser a personalidade caracterizada por uma abundância
de tendências de força e de valor, e por isso não pode ser responsabilizada pela
totalidade daquilo que produz, 1nas apenas por al!:,TUns processos específicos (vin-
culados à ação e à vontade do indivíduo). Tais considerações são extrapoladas
para a chamada culpabilidade por conduta de vida (e fórmulas análogas: culpabi-
lidade de caráter, por disposição de ânitno, etc.), pois o caráter seria justainente o
balanço-final do vínculo que se estipula entre conduta e vontade, quando ele (o
vínculo) persiste no tempo e, consequentemente, supostamente permite verificar
detenninadas tendências internas. 147
A conduta, em Sauer, parece se dissolver em critérios de atribuição de res-
ponsabili~ade, diluir-se na causalidade jurídica e em sua capacidade de vincular
(ex posl) detenninado resultado desvalorado (1nodificação sociahnente danosa no
mundo) ao sujeito, consideradas as questões sobre a personalidade. Em etapa
subsequente, acrescenta-se um juízo de responsabilidade subjetiva (imputação
subjetiva). Co1n isso se resolve trunbé1n a questão dos crünes 01nissivos (pois o
nexo de causalidade é jurídico):
Si nosotros com,ervamos en lo sucesivo los dos conceptos causales de-
sarrollados por la doctrina dominante dei Derecho Penal, para poder ex-
plicarnos los actuales puntos litigiosos, ln m11snlidnd específtc{lll/tl/le 1i11idica,
lípiro-11on11ati1'tl o ndemnda se ha de determinar, como supra §12 II 1, como
la tmdmria o la ncltrnrión hnda 1111 der/o res11/tndo, como 1111n co11d11cln, que es e11 .si
(~eneralmente) nprop,iada para prod11rir 1111 res11/tndo de esta 1wl11mlezn, como
una conducta que ~.egún el juicio común de probabilidad, según prognosis
objetiva, permite esperar tal resultado. Si una personalidad con un impulso
libre de la voluntad se mezcla en la corriente dt:l acontecer social e influye
en éste decisivamente, de un modo perjudicial para el bien común, el autor
es objetivamente responsable por d peligro sociál. 148
A causalidade natural, então, influi de maneira lateral nas considerações
sobre Direito Penal (para a determinação do livre-arbítrio e, assim, medir-se a
gravidade da culpabilidade e ajustar-se a isso a pena; e distinção autor-partícipe),
relegando-se sua centralidade à Criminologia (a qual se estrutura a partir de com-
durante d obrar; (...) actúan simultaneamente, :idcmás de las situaciones dd mundo circun-
dante, constantemente cambiantes, las correspondientcs circunstancias psíquicas y físicas de
l:t pcrson:ilid:ide, igu:ilmcnte cambi:intes; por dlo intervicncn adcm:1s de las intcnciom:s y los
fines: disposkión de ânimo, sentimentos, lo consciente, lo inconsciente y lo subconsch:ntc".
SAUER, Guilkrmo. Drrrrho pr11nl... p. 92-3.
1~ lbidcm, p. 91-4.
147
Ibidem, p. 89.
141
SAUER, Guillt:rmo. Drrrrhu pmnl... p. 134.
56
precnsões etiológicas). Seria um contrassenso (ou antijurídico), na opinião de
Sauer, considerar-se que todas as causas têm uma equivalência de valor, tal como
ele entende propor a teoria da eq11ivalê11cia das coudições. 149
O liame de responsabilização de um indivíduo se relaciona com o perigo
que ele cria na sociedade, e esse "princípio do perigo" (ou princípio da periculo-
sidade) supostamente traria consigo um maior objetivis1no. Se1n e1nbargo, esse
"efeito perigoso" sobre o mundo (ou resultado socialmente danoso) pode ser
traçado até a personalidade do agente. Afinal de contas, Sauer afirma explicita-
1nente que a relação entre a personalidade e o mundo exterior (denotninada de
"periculosidade") seria a essência material da causalidade. 15o
Fica claro que a conduta, em Sauer, é um conceito já valorado, pois seria
necessário partir do injusto para se chegar à ação. Ele deixa isso suficientetnente
claro quando esclarece que a esfera do proibido diz respeito às condutas objeti-
vamente adequadas a produzir danos sociais e que, esse juízo de adequação, se dá
por tneio dos tipos penais. 151
Por fim, especificamente quanto aos delitos omissivos, Sauer localiza sua
correta compreensão na antijuridicidade material. Aos princípios derivados daí,
acrescenta-se a causalidade e o resultado para dclitnitnr de forma 1nais estrita a
responsabilidade, quando se tratar de delitos de resultado. Não se estabelecem
maiores diferenças, assim, entre os delitos comissivos e os delitos omissivos im-
próprios (comissivos por 01nissão). 15:?
\V/. Saucr nega, assim, que se possa substituir a causalidade, nos delitos omis-
sivos impróprios, pela violação de um dever de não impedimento (antijurídico)
do resultado 153• A omissão seria causal porque ela gera um perigo social (que se
constata pela conclusão de que a ação esperada teria evitado o perigo). Por isso,
o nexo causal, aqui, não é entre a ação esperada e o resultado (hipoteticamente
evitado), mas entre a omissão particular e o perigo social gerndo. ts.i
Para além das parecenças, o traço distintivo dos delitos omissivos é justa-
mente o dever de agir, 155 com a devida ressalva de se reconhecer, como condição
14
Ibidem, p. 134-5.
'}

isn Ibidem, p. 140.


m "ÉI [o lt:gisladorJ no puede prohibir, rx posl, danos sociales que se n:duzc:m a nctuaciones hu-
manas y estc:n condicionados, si cabe, por acontecimientos exteriores 11:tmados fortuitos (...). El
lrgjslndorpurdr 10l11111rntr prohibir rx n11lr arrio11r1J 0111isio11r1 q11r 11-n,1 ndrmndns oijt1i1·a111mlr pnm prodlfdr
d(IJioJ sorinlri, por consiguiente sólo 111odo1 dr ro11d11rln lipim111mlr prl{(rrJSol'. Ibidem, p. 141.
is.? Ibidem, p. 146-51.
is., SAUER, Guillt:rmo. Drrrrho pmnl.. p. 146-9.
1
~ "Ln causalidad es tambic:n en la omisión, igual que en d ddito de acción, la tendencia, la nctu-
ación, la din:cción de los acontecimientos bacia d rcsultndo". Ibidem, p. 150.
us Neste ponto é interessante obscn·:ir algumas diferenças entre as posições sustentndas por auto-
rcs de uma mesma corrente, como n dh·crgência sobre o dt:\'t:r de agir criado cm r:iz:io da Z!mn

57
para o dever de agir, a possibilidade de agir. E a colocação em curso de um res11l-
tado soriah11e11/e danoso seria o fundamento da ação materialmente antijurídica 156 , na
1nedida e1n que sú seria sociahnente danoso utn resultado antijurídico - por isso
a centralidade da antijuridicidade. Se a questão é a produção de um resultado so-
cialmente danoso, pode se encaixar, então, mesmo os delitos omissivos próprios
(os quais indcpendctn, por princípio, de resultado). 157
(D) l\lax Ernst ~bycr caracteriza a ação como uma atuação da vontade com
a inclusão do seu resultado, embo~a ele tenha optado por excluir o resultado da
ação c1n trabalhos anteriores (Die sch11/dhajie Ha11d!t111g 1111d ihre .rlrle11 i111 S trqf-echt,
1901 ). Para ~Iayer, os elementos que compõem a ação se encadeiam causalmen-
te, desde suas manifestações internas até suas manifestações externas. Assim, os
motivos (ou resolução interna) levatn a sua exteriorização sob a fonna de movi-
mento corporal ou inatividade, os quais são consequência (ou seja, resultado) da
atuaçao- d a venta d e. is11
O autor, no entanto, tenta reduzir a inclusão ou não do resultado no con-
ceito de ação a uma diferença terminológica:
l\luchos rechazan la inclusión dei resultado en la acciún, lo que psico-
lógicamente es más correcto; frente a ello está la circunstancia de que
corresponde al uso dei lenguaje y a las necesidades de la ciencia jurídica
introducir el resultado como un elemento esencial en el concepto de ac-
ción. Con todo, no hny razón para tratar esas diferencias como un objeto
de polémica, ya que es sólo cuestión de establecer con qué palabras se
quiere designar la parte y cun cuales el todo. En lo que a nosotros rtspec-
ta, empleamos la voz actuación de la voluntad si queremos prescindir dei
resultado.1=>"<)

A distinção entre uma ação e um mero movimento corporal (no ato re-
flexo, por exemplo), então, apoia-se no fato de que ao primeiro é central o ato
de vontade (l~ille11sakl). Todavia, é pressuposto de se querer algo, que se possa
representá-lo (''o querido existe primeiro como representação"); nesse sentido,
poder-se-ia dizer que, previamente à resolução (ato de vontade), impõem-se ou-
tros processos cognitivos, como as representações ou os 11,otivos. E representação e

na qual o pt:ri~o se: origina (MEZGER, 2010, p. 290; SAUER, 1956, p. 153).
156
"El autor se:: sin•c:: de: la corric::ntt: pdigrosa, donde:, prc::cisamc::ntc::, sc::gún la c::spc::ranza social, dc::-
bfa habc:rle dado otra dirt:cción. En dlo lo que:: intt:rc::sa c:s mc::ramc:ntc: la conducta socialmc::ntc:
c:spc:rada, no l:i concluem prohibida juridicamc:ntt: (que:: c:s ya un problc:ma d<: la antijuridicidad
y no meramt:ntt: de: l:i causalidad)". SAUER, Guillc:rmo. Derrc/;() prnal.. p. 150.
157
Ibidem, p. 151-8.
na 1'fAYER, ifax Ernst. Drrrtbo pmal.. p. 129.
is, Ibidc:m, p. 129-30.

58
motivo possuiriam um vínculo muito estreito, pois as motivações não passariam
de representações que exercem influência sobre a vontade. 160
Seria insuficiente para compreender totalmente a ação, entretanto, o sim-
ples recurso às ideias de representação e motivo, ou seja, não bastaria recorrer-se
a modelos compreensivos que só se dirigissem à forma pontual de reação de um
indivíduo. Diante da volatjlidade dos motivos, autores co1no von Liszt, Sauer,
Ivfayer e outros. buscam elementos constantes, qualidades mais ou menos per-
sistentes que a vida teria para oferecer às suas análises. Estabelece-se assim certa
dualidade entre elementos da ação e elementos da pessoa (ou da personalidade).
Nomeadamente, o complexo de motivos tornados duradouros se configura em
caráter. 1'' 1
M. E. Mayer apoia-se em Schopenhauer para defender u1na posição dua-
lista, segundo a qual o fundamento do ato de vontade é a articulação motivo-
-caráter. E, por mais que haja uma ruficuldade de se estabelecer os contornos do
caráter - praeterpropter, dificuldade de sua acessibilidade pela experiência direta-,
como ele próprio admite, mesmo apenas os contornos grosseiros que se conse-
gue estabelecer se justificariam por sua eficácia para uma compreensão mais pro-
funda do ato delituoso - explicaria, inclusive, o porquê de se atribuir diferentes
valorações para o mesmo motivo quando se trata de duas pessoas diferentes. 162
Por essa razão, ele é criticado por Binding, que defende o foco exclusiva-
1nente nos 1notivos (uma concepção monista, poder-se-ia dizer). A resposta de
Mayer a essa crítica ajuda-nos a estabelecer com mais clareza a diferença entre as
posições sustentadas por ambos:
(...) Binding rechaza la 'construcción dualista' de Schopenhauer, y prefere
describir el motivo como 'emanaciôn del carácter'. Bien se podrfa admitir
esa concepción, si ella sólo consistiera en remplazar el 'criterio uno junto
a otro' por el de 'uno tra otro', máxime que es un hecho que depende dei
carácter que un estímulo para la acciún se convierta en moti,·o. Pero tan
inocente no es esa doctrina; como lo destaca el proprio Binding (p. 20),
para poder caracterizar el motivo como producto dei carácter, se debe
-------
161
"En vc:rdad no c:s d contenido de la rc:prt::senttción lo que influrc: sobre: la volunt:td, ya que a
'
la representición, :mnque simplt: imagen, no puede atribuirsc: t:n modo alguno c:spont:mdd::ide.
Nuestr:1s representiciones no son puras, sino im:ígenes teiiidas por los sentinúentos. Y los senti-
miemos agradables y des:igr:idables no son concebiblies, en caso alhruno, como carentes de fuerL:t.
De mi modo l]Ut: es d sentimit:nto lig:ido a l:t reprt:sent:tción, lo que hace de dfa una represent:1-
ción que ejerce influencia, esto es, un moth-o". MAYER, ~fax Ernst. Dmrho pmal.. p. 130-1.
161
Aproxim:mdo-se em muitos :ispectos da idda de car:íter encontrada em Sauer (SAUER, 1956,
p. 89). "Así como d carácter es la obr:i de nuestra ,·ida, así l:t ,·ida c:s obrn dd carácter. De ahI
que en d este siempre cuntenido algo de irracional, incomprensiblc: parn los otros, y p:tra nu-
sotros mismos inquietante: d secreto de la persunalidad". MAYER, Max Ernst. Om·rhu prJJ,rl ..
p. 133.
l6.? MAYER, Max Ernst. DrrrrhfJ pmttl.. p. 133-4.

59
prc:scindir 'de las causas exteriores de su surgimiento', adcmás de que se
debe considerar el motivo como la 'entera causa' de la resoluciôn (p. 32).
Por conseguientc:, no se debe seguir el surgimiento de una acción más aliá
del motivo - esto porque, en caso contrario, se estaria poniendo en duda la
libertad de la voluntad (véase p. 37), y así, en cambio, ella estaria de nuevo
a salvo. 163
A finalidade, por outra parte, é pensada, em grande medida, em razão de sua
proximidade com o conceito de motivo. Especificamente no campo psicológico,
finalidade e motivo seriam praticamente a mesma coisa. As diferenças surgiriam
cm uma análise metodologicamente ancorada, na qual a finalidade seria concebi-
da como um objetivo a ser alcançado, visão que, segundo Mayer, foi extraída da
caracterização de Rudolf Stammler de propósito como realizar um objeto, como
causar um objeto (Zwerk ist ei11 ~, bewirke11des Ob.Jek~ .164
A finalidade como objetivação significaria, para Mayer, sua autonomização
da vontade do indivíduo, pois essa finalidade não precisa ser autoimposta, e, sim,
hcterônoma. Essa imposição de finalidade tem especial relevância quando é rea-
lizada por meio de normas o que acaba por atrair, nesse professor de Frankfurt,
idiossincráticas considerações deontológicas nessa categoria cuja essência é emi-
nentemente ontológica. Em outras palavras, a finalidade é parcialmente recondu-
zida do indivíduo para a norma, 165 ou seja, é pela avaliação da medida de adesão
à finalidade imposta pela norma que penetrariam considerações teleológicas no
Direito Penal. 166
Essa finalidade Mayer qualifica como o princípio do j11/ga111e11to, porque é a
medida de adesão à norma, enquanto o motivo, ao contrário, não pode precipi-
tar o julgamento (por se tratar de um aspecto estritamente subjetivo e não uma
objetivação, como a finalidade), mas apenas ser objeto do1illga,ne11/o. 167 Motivo e fi-
nalidade parecem, assim, interconectar-se a partir da dualidade típica da Filosofia
dos Valores: explicação e compreensão.

lc.J MAYER, Max Ernst. Drruho pmal.. p. 133-4. Nota 42.


•~ Ibidem, p. 135. Nesse ponto, a obra referência de Stammler é fr/irtJíbafl tmd &chi nach dtr n,a/t-
nitliJtisfhrn G't1fhid1t1a1iffa11111tY., r1i1r 1o~jolphi/01ophiJfhr U11ltn11fh1111t,· Leipzig : Veit, 1896.
ic.s "En toda orden, en toda norma, esto cs, en cada precepto, se proclama un fin que sus destina-

tarios dcbiernn accptar en su voluntad y que bastante a menudo no aceptan. Exactamente lo


mismo sucede con los fines que se tiene que evitar, es decir, con los prohibidos. De esc modo,
es el fin cl principio dei juzgamicnto; fada 11aloradó11 o ,011ndrrarió11 110111i11aliva dt 11n aco11ltcifllit11lo
fllidr lo q11r há 111rrdido tn rrladó11 n 1111pi,y u por ti/o Hlla ro11ndtradó11 ltlrol~f!,ird'. MAYER, Max Ernst.
Dtrtfho prnal... p. 135. Grifo nosso.
1
"" Ibidem, p. 134-5.
w, Por el contrario, fuera dei alma que actúa, no tiene el motivo lugar alguno; desligado dei querer
11

concreto, no puede ser situado, ni en cl mundo exterior, ni detrás de la acción, es siempre un


:icontccimicnto subjetivo". Ibidem, p. 136.

60
Motivo y fin, ser y deber ser, consideración causal y
teleológica, cxplicación y cnjuicfamiento, cada una de es-
tas relaciones de oposición apunta hacia un contraste que
domina el conjunto de la accividad científica. Si se quiere
representar cse contraste dcl modo más evidente, se puedc
decir, aunque de modo algo exterior: toda consideración
causal supone dos procesos que han acaecido y que están
vinculados, en tanto que toda considcración teleológica
vincula procesos de los cuales uno ha ya acaecido, mientras
el otro tendrá que acaecer primeramente (o no acaecer). 168

De qualquer forma, a exteriorização da resolução se dá por uma atuação


sincrónica com o motivo, bem como essa atuação pode se dar por uma ação (em
sentido estrito) ou por uma omissão (a qual inclui também o resultado, como já
se notou s11pra). 169 É em grande parte correta a tentativa de dar conta dos delitos
omissivos em sua relação com seus aspectos interno (faceta subjetiva) e externo
(expectativas sociais), dada a afirmação de 1'fayer de que o traço distintivo da
omissão - ao contrário da opinião de tantos - não é tanto a expectativa social
(apesar de ser um elemento importante e não se poder prescindir dele), mas a
representação do sujeito dessas expectativas, de maneira que ele possa, nela (a
representação das expectativas), apoiar a sua vontade, e, assim, a omissão se con-
figurar como uma decisão. Caso contrário, toda frustração de conduta esperada
seria omissão e não parece ser esse o caso (dado que a frustração da expectativa
pode se dar em casos de ausência de ação). 170

168
MAYER, Max Ernst. Drrrrho pm,1/... p. 136.
169
Diz Mayer: "(...) a menudo se rt:quire, incluso, !,r.lStar una mayor fuer~a de \'Olunt:id para c::je-
cutar un movimiento (p. ej., quedarse quic::to c::n una operación)". Ibidem, p. 136-7.
1711
"lnactividad y omisión no son conceptos id~nticos; d no hacc::r puc::dc::, c::n c::fc::cro, sc::r rc::fc::rido a
una resolución motirada o a algo no quc::rido; sólo l:i primc::rn clast: de inacth,idad es una omisi-
ón. EUa tienc:: lug:u unicamc::nte cuando habfa una r:izón para hacer alguna cosa; y no c::s de ma-
nem alguna suficic::ntt: que lus dr111ns conozcan esa razón, antes que nada ha dc:: ser ri 111iI1110 i11nrtivo
d que se haya representado la actividad; pues unicamente bajo ese supuesto puedc:: d no hacer
haberse querido. Por dlo, la esencia de la omisión consiste c::n que als,ruien a la reprc::senución
de una actuación le niega la fuer.la motivadora.(...) Resueltamente encontra Kollmann, Z, 29,
p. 385: 'El omitires el juicio de cliscrep:incia entre la conducta real y la conducta rel:tti\'amente
posiblc:: de un portador de voluntad'. l,.'\ ddinición es rebuscada, apan:ce claro que, de acuerdo
com eUa, lo que aparece no es d que omite, sino c:l que juzga la omisión (p. 390/91), adc::m:ís c::s
tlla completamente falsa, en primer lugar, porque según dla a cada expectati,·a frustrada cor-
responde una omisión, c::n segundo lugar porque, de acuerdo com dl:i, muchas activi<la<lcs son
omisiones; p. ej., un ddincuente ha calculado qm: no seáa descubierto, pero lo es; con arrc::glo
a Kollmann, result1 t:l hecho de descubárlo una omisión de la polida". Ibidem, p. 137.

61
Para ~-1. E. ~·layer, portanto, a omissão nega a atividade e não a ação (em sen-
tido amplo), especialmente porque o traço essencial da conduta é a realização da
vontade, e a forma co1no isso se d~í é lateral. 171 A omissão se dá porque alt>rué1n se
nega a cwnprir um dever, e a simples inatividade não é uma omissão porque não se
estabelece sobre uma resolução. Muitas das ressalvas feitas às teorias da ação, por-
tanto, dever-se-iam a mna sobre-extensão do conceito de 01nissão, justmnente por-
que uma inatividade involuntária pode ser considerada formalmente típica, o que
já não ocorre com uma atividade involuntária, a qual, até por questões linguísticas,
não pode corresponder fonnalmente ao tipo (subtrair algo não é, setnanticamente,
o mesmo que furtar; proferir xingamentos não é, semanticamente, o mesmo que
• • •
1n1unar; causar a morte nao , e,, semanticamente,
• • que matar, e t c.)172.
a mesma coisa
São particulannente esclarecedoras alb>u1nas ponderaçôes de i\.1ayer:
E~ta opinión se justifica, tanto más, si se considera que todas las actividadcs
que no dcbieran ser proseguidas contienen omisioncs y dcmuestra con ello
la rclatividad de la contradicción. El participante en una carrera en que se
disputa un pretnio, a quien, ai experimentar palpitaciones, se exhorta a aban-
donar b competencia, pese a lo cual sigue corriendo, lleva a cabo, en pleno
movimiento, una omisión; cl que tuerce la rueda dei timón demasiado hacia
la dcrccha, omite m:mtener su barco adecuadamente por la izquierda. En
vcrdad, se basan semejantes trucqucs de sentido cn una moclificación dcl
punto de vista, pero justamente porque tal cambio no significa tomar una
cosa por otra puedcn haccrse equivalentes la omisión ai haccr y, junto con
éstc, integraria ai concepto de acción. Se debe diferenciar con nitidez de la
omisión, la involuntatia abstcnción de ejecución de una actuación voluntaria
espernda por otros, especialmente la exigida por cl Estado. Alguien se olvida
de cumplir algún dcber. Esa inactividad, puesto que no se funda cn una re-
solución, no es una acción y, por cllo, no cs una acción. 173

Também importa, ademais, a forma como l\fayer concebe o re111/tado. Por


isso, convém dizer que sua compreensão do resultado foge um pouco à conven-
cionalidade semântica. Enquanto o termo H,folg (resultado) conjura, em alemão,
a ideia de êxito, de algo em sintonia com determinada significação, i\.Jayer ten-
ta imprimir-lhe um sentido estritamente lógico, como acontecimento concebido
como consequência da ação. Ele acrescenta, todavia, que nem todo acontcdmen-
171
p:ua l:t acción t:S c::st:ncial una realización de:: la voluntad; contingentt: t:s, e::n cambio, la
''(•••)

tfrnica dt: tal n:alizadón de la voluntad; dd mismo modo que:: es indiferente me::diantt: qut!
músculos alguien hace funcionar su volunt1d en el mundo exterior, así lo mismo da si lo qut:-
rido halla su expresión extt:rior en un movimento corporal o en su ausencia. Se nctún cuando
se:: pom: la firma, pero tambic:n cuando se rehúsa firmar; tanto si al1-,,wen penetra con fuert:n en
una habitación, como cuando nlguien st: nic::ga a abandonaria; cunndo alguien disse algo odioso
y cu:mdo se rt:prirne de:: hacerlo". lbidem, p. 137-8.
172
.MAYER, .Max Ernst. Drrrfbu pmal... p. 138-9.
m lbidt:m, p. 138-9.

62
to (processo de transformação de estados no mundo 174) é um resultado, pois o
resultado só se configuraria quando o julgador reconhecesse um vínculo causal
entre ação e acontecimento, ou seja, por um processo de imputação do aconte-
cimento a uma ação. 175
Tampouco seria possível afirmar, segundo este professor de Frankfurt, que
pertence ao conceito de resultado a noção de que ele precise ser representado ou
querido (pense-se nas consequências inesperadas e indesejadas de tantas ações
do dia a dia). Particularmente porque, ao dissecar as combinações possíveis dos
processos mentais (representação e vontade) em relação ao resultado, ele extrai
conclusões um tanto distintas de Binding.176
As combinações possíveis seriam: representar e querer; representar e não
querer; não representar e não querer; e não representar e querer (a mais proble-
mática). Primeiramente, em relação a um querer inconsciente (a combinação não
representar e querer), Binding afirma que isso pode significar tanto um querer
no qual não se sabe que se quer algo ou um querer no qual não se sabe o que se
quer (o conteúdo da vontade). Trata-se da distinção, realizada por Binding em
razão de sua teoria da culpabilidade, entre a ca11sação por 111eio da vontade e o q11erer
o ca11sado, cujo exemplo mais esclarecedor (por equiparar os dois) é o do quúnico
que mistura duas substâncias desejando ver qual será o resultado (mesmo quando
acaba sendo muito surpreendido). 177
É, portanto, a segunda hipôtese (do querer no qual não se sabe o conteúdo
da vontade) que confronta l\ilayer com a possibilidade de se poder querer algo
não representado. Sua resposta é, nesse ponto, ao mesmo tempo imaginativa e
bem elaborada. Afinna ele que, mesmo quando a causação foi representada e
querida, o resultado em si não é querido; na verdade, o que se passa é que há um
produto da vontade (resultado) que coincide com a representação motivadora do
resultado. Isso significa que a causação de um resultado não representado não
deixa de ser um produto da vontade, mesmo quando esse produto se distingue
do resultado representado - repita-se o exemplo dado pelo autor: alguém quer
174
Mayer distingue entre acontecimento e situação (ou est.'ldo), t:_as situações st:riam os exm:mos
de transição dos acontecimentos. Explicado dt: forma mais simples, a situação seria um dado
("t:stático", na medida em que qualquer dado da realidade pode ser escitico), suscetível à trnns-
formação (processo "dinâmico" c:uacterizado, m:sse caso, por "acontecimento"). Por exemplo,
quando um determinado objeto t:xiste no mundo (situação), alguém pode atear fogo a de e
de deixa de existir (acontecimento); tr:insformou-st: em cinzas (nova situação). MAYER, M:i.x
Ernst. Derrrho pmnl... p. 140.
175
"No todo acontecimiento es un resultado, sino únicamentt: aqud :icontecimit:nto l]Ue d que
juzga concibt: como proct:dentt: de una acruación, esto es, causalmt:nte vinculado con ést:1".
Ibidem, p. 140.
176
Ibidem, p. 141.
m .MAYER, ~fax Ernst. Dn-rrhu pmal... p. 141.

63
entrar em um trem para um local e, por pressa ou distração, entra no trem errado
e acaba em outro lugar. 17d
~-iayer recorrer às ideias de Binding para, então, co1nplementá-las co1n sua
própria teoria dos motivos, a fim de dar uma suficiente explicação para o proble-
ma da possibilidade de uma ''vontade inconsciente". É pelos motivos que ~fayer
consegue, assim, recriar o vínculo entre vontade e resultado, 1nes1no (ou especial-
mente) quando e1e nao ~,e representadn9
o.
Em segundo lugar, sabendo-se que há conduta, o resultado dela pode ser
não representado e não querido. É u1na possibilidade que haja, assim, ação vo-
luntária e resultado, bem como que ambos estejam causalmente ligados, sem que
haja representação e vontade quanto ao resultado. Isso significa que a represen-
tação e a vontade estava1n dirigidos para o 1novimento corporal 1nes1no e, possi-
velmente, a outro resultado. 180
Se a vontade exerce influência imediata sobre o corpo, a influência dela so-
bre os efeitos no inundo é exercida de forma inediada. 1111 Quando, e1n terceiro lu-
gar, o resultado é tanto representado como querido, ~1ayer põe em xeque (como
já se indicou) a própria possibilidade de a vontade se referir a um resultado. Ele
defende, então, que a relação vontade-resultado se consubstancia em u1n processo
p.ríqNiro especial (cujo conceito sintetizador seria o de "intenção" ou finalidade),
apoü1do sobre dois pontos: a coincidência entre resultado e conteúdo do motivo;
a representação do resultado provoca wn ato de vontade apto a produzir o resul-
tado 1112• As intenções (ou finalidades) se revelam, neste marco conceitua!, como
"motivos dirigidos a resultados". 183

111
Jbidt:m, p. 141.
179
"Por t:Uo contit:m: la tt:orfa dt: la motivación, qut: st: trata t:n d Cap. S, la expresión adecuada
par:i la idt:.ia dt: que la concit:nda dd contt:nido de la volunt.1d es inesencial para d qut:rt:r, r
coloca en su lugar, t:nteramt:ntt: d st:ntido afirmado por Binding, la posibilidad dt: presentar
d dt:scwdo como una t:spc:cit: de cuJpabilidad, homóloga, t:n todas sus características a las de
la intt:ncionalidad como otra varit:dad dt: la culpabilidad. Lamt:ntablt:mt:ntt:, es Binding d más
encarnizado opositor dt: tod:is las conct:pciont:s que adhit:rt:n a su doctrina, pt:ro no qwt:rt:n
qut:darst: t:n dia y, por t:Uo, no há hallado t:n la tt:orfa de Jos motivos no mucho m:ís que un
'divt:rtimiento psicológico"'. Ibidt:m, p. 141 ~2. Nota 59.
a1i11, ..(...)y, aunque d sabt:r y d qut:rt:r no st: apfüJut:n a t:se rt:sultado, se dt:bt:, sin t:mbargo, atribuir a
su conexión. Ejt:mplo: al1-,ruit:n t:ntra con una vd:i enct:ndida t:n una habitación en la qut:, desde
hact: horas, se ha dt:jado t:scapar d gas; la t:xplosión t:st:í causalmt:ntt: vinculada con la actuación
voluncirfo, es pues, su const:cut:ncia, aunque no fue represent1da ni qut:rida". Ibidem, p. 142.
111 "(...) es f:ícil l:mzar fa piedra, difícil :ilc:mzar d bl:mco". Jbidt:m, p. 142.

"EI resultado querido es, pues, aquel resultado previamente fonnado en la representación
112

motivadora y hecho rea)idad por Ja actuación". MAYER, Max Ernst. Derecho penal... p. 143.
m "Afiadimos, con fines de aclaración adicional, que la fuerza motriz de la rcprcsentación se
puede agotar en una resolución (es dccir, en un acto interno de voluntad) o exteriorizarse cn
un haccr o en un omitir o, finalmente, realizarse en un resultado". Ibidem, p. 143.

64
Em quarto e último lugar estão os resultados representados, mas não queri-
dos, hipótese na qual se lida com as fronteiras entre dolo e culpa. Nesse caso, diz
Mayer, trata-se de atos de vontade fundados em representações (dos perigos que
envolvem a conduta) sem poder suficiente para se transformar em motivações
(para a dissuasão da realização da ação, para a dissolução do próprio ato de von-
tade), e, por isso, não se transformam em finalidade (ou "intenções"). E o fato
de essas representações se realizarem no resultado é, em princípio, puramente
act·d enta.11114
A concepção de conduta de M. E. Mayer pode ser sintetizada, finalmente,
da seguinte forma: toda ação se compõe de uma conduta voluntária e de um re-
sultado, o qual pode ou não ser exigido pelo tipo. Para se entender as implicações
dessa proposta, importa destacar que Mayer considera os resultados como os
acontecimentos descritos nos tipos, especialmente porque entende haver certa
flexibilidade quanto à sua formulação. O "resultado" seria um conceito relativo
(um 1nesmo fato pode ser causa e resultado),185 podendo ser tanto uma conse-
quência (o resultado propriamente dito) como seu fundamento (a ação voluntá-
ria) - e nisso ele se aproxima, como se verá abaixo, da concepção de Mezger. 186
Co1no há diferenças, para a constatação de um delito, entre a verificação da
existência dos postulados necessários para a imputação do resultado e a cons-
tatação da existência de uma conduta, as ideias de Mayer têm um importante.
efeito: nas descrições dos tipos penais, muito daquilo que se consideraria como
ação passa a ser considerado como resultado. O furto (subtrair coisa alheia...), o
dano (destruir coisa alheia), o incêndio (causar incêndio...), etc. podem todos ser
potencialtnente concebidos como resultados e não condutas, e a questão central
que os envolve é saber se o evento de fato ocorreu. 187

134 "El adultério es, desde el punto de vista dei delincuente, así como dei juez penal (§ 172),
algo producido, un resultado; en el proceso civil, en cambio, aparece como el fundamento
dei divorcio, esto es, como causal; el acidente que há sufrido el obrero de una fábrica como
efecto de la explosión de una caldera, es el resultado que interesa ai procurador público,
pero es la causa de incapacidad para el trabajo que importa ai sindicato profesional". Ibi-
dem, p. 144.
111
!, "(...) un mismo suceso, en la medida en que pueda hallarse en relación con diversos tipos
legales, también desde el punto de vista de los criminalistas se lo debe concebir, ya como
actuación voluntaria, ya como resultado; de acuerdo con su tipicidade, tal acontecimento,
suscita, en efecto, ya este, ya aquel interés, y pone de manifesto, de ese modo, la relatividad
dei concepto de resultado". Ibidem, p. 148-9
1116
lbidc::m, p. 148-9.
117
"Si se quisit:ra concebir d acontt:cimit:nto previsto en la dc:scripción típica, p. ej., la sustrnción
de una cosa (§242) o la apc:rturo de una carta cerrada (§299), no como d rc:sulcdo, sino como
una actuación ,·oluntaria, aparece: la acción bajo un falso punto de vista, al igual como si d juez
de la competencia deportiva ruviern l:l meti por d punto de partida; surgiria, así, la expectativa

65
Aqui novamente ~faycr se aproxima de Binding, que entende o resultado
'verdadeiro' da ação como todo o delito, transferindo o meio de realização do
resultado para o prc>prio resultado - o que é, de certa forma, polêmico por-
que a literatura dogmática contrapõe frequentemente a forma de comissão ao
resultado. Isso se explicaria, contudo, porque todo delito estaria relacionado à
culpabilidade, mas significa ta1nbém que Mayer nega os delitos de mera atividade
(assumindo uma posição um tanto minoritária). É, outrossim, muito convincente
o argumento sobre o traço distintivo dos delitos formais ser apenas o de a con-
duta e o resultado coincidire1n cronologicamente. 188
(E) Já para Edmund l\fezger, tendo em vista a sua particular concepção on-
tológica estratificada (valor-realidade-norma), a supramencionada dimensão da
"realidade existencial" compreenderia os âmbitos corporal (ao qual pertenceria a
causalidade) e anímico (ao qual pertenceria a finalidade). Ele não nega a impor-
tância da finalidade, mas a vincula a essa tríplice relação valor-realidade-norma.
Nesse sentido, tanto a esfera normativa quanto a espiritual seria1n, e1n certo grau,
determinadas pela esfera existencial (e, consequentemente, pela finalidade). 189
Em outras palavras, Mezger em algum momento reconhece um grau de prepon-
derância da realidade.
Para I\fezger, ademais, seriam três as formas de manifestação da conduta:
ação, omissão própria e omissão imprópria. As distinções entre elas, como em
tantos autores, devem-se à relação com as normas deduzidas do tipo: na ação o
sujeito viola uma norma proibitiva, na omissão própria uma norma preceptiva
e na omissão imprópria uma norma preceptiva e uma norma proibitiva, pois
é necessário o advento de um resultado. Além disso, a prôpria distinção entre
ação e omissão se apoiaria com alguma frequência sobre o momento no qual se

falsa de que a la sustracción o apertura dc:biera se1,>uir todavfa algo relevante penalmente".
MAYER, Max Ernst. Drrrrho pmal.. p. 148.
111
"Esa doctrina se basa, c:n parte, en d desconocinúento de: la rdatividad inherente ai concepto
de resuJt.1do; en parte, en que ella pcrmant:ce fijada a fa exterioridad. Como, en eft:cto, en mu-
chos delitos la diferencia temporal entre la acción voluntaria y d resultado no es marcada, se
da la apariencia de que no ha existido resultado. L.1 unidad temporal no dcbe enganar sobre la
dualidad lógica; el an:ílisis lógico revela que d delito consiste en una actuación voluntaria y un
resultado, aunque ambos coincidan temporalmente. Así, en el perjurio se deben separar d que
se expresen las palabras dd hecho de que se escuchen y comprt:ndan por el juez, y justamente
sin ese resultado no há habido perjurio". MAYER, Max Ernst. Deruho pmaL. p. 150-1.
119
"Pero la finalidad determina t.1nto :il sector normativo (b) como al espiritual (a). Por eso debe
matiz:irse en d caso concreto de qut: clase de finalidad se habla. La categoria dd 'valor' se
restringe ai sector espiritu:il (a) y al normativo (b); sin lo esencial no tiene valor lo existencial".
MEZG ER, Edmund. Moder11a1... p. 18.

66
manifesta o elemento subjetivo do agente. Por isso se precisaria do conceito de
omissão, pois, do contrário, acabar-se-ia recorrendo à ideia de dolo .mbseq11ens. 190
O professor de Munique, diante da ação, reafinna as funções de unificação
(o exercício de uma unidade conceituai diante de suas possíveis manifestações),
de delimitação (excluindo antecipadamente objetos alheios a esfera de interesse
do Direito Penal) e de definição (se&rundo a qual a ação serviria de substrato para
ulteriores valorações e, ao chamar a ação de "fundamento estrutural", também de
fundamento no qual se edifica a teoria do delito). 191
Tal conceito de ação é suficientemente abrangente, destaque-se, para con-
ter ações e omissões tanto de indivíduos quanto de corporações. Assim, a ação,
como pedra angular da teoria do delito, consegue dar conta das propostas de
responsabilidade penal da pessoa jurídica - a qual, mesmo com propostas tão
antigas, e raízes ainda mais remotas, ainda hoje é acolhida com exclamações de
novidade. Não é nova essa trajetória de mitigação do brocardo latino societas delin-
qNere no11 potest, já introduzida por Mezger. 192
O conceito de ação de E. Mezger se compõe, em um primeiro momento,
da articulação de três fatores: elemento subjetivo, conduta corporal e resultado
externo. Co1n a peculiaridade de que a co1nbinação de conduta corporal e resul-
tado externo, ele conceitua também como res11/tado. Para lvlezger, o resultado é
a completa realização típica exterior e, assim, abarca tanto a conduta striclo se11s11
quanto seu resultado externo propriamente dito. 193
Realiza-se a distinção entre resultado externo, o qual remete ao resultado
externo da conduta como exigido por tantos tipos penais, e resultado (lato se11s11),
que diz respeito à conjugação entre conduta corporal e resultado externo. Esse
conceito abrangente de resultado (como conjugação de conduta e resultado ex-
terno) está, então, intimamente vinculado ao tipo. Nesse sentido, mesmo para os
tipos penais nos quais não se encontra exigência de um resultado externo, há wn
resultado (a manifestação da vontade). Cumpre ressaltar que a peculiaridade des-
190
Pense-se no exemplo no qual um médico obtém o consentimento de um paciente para :i ope-
ração a fim de dt:ix:ir que sangre: :itc:: a morte na mesa de operações. Este ext:mplo seria subs-
t:mcialmente diferente: daqude, no qual o mesmo médico decide durante: a cirurgia por deixar
o paciente se esvair em sangue para m:itá-lo. No primeiro, a ação stn'rlo sr11s11 da lt:s:io cirúrgica
foi fcita com a finalidade de matar o paciente, j:i no segundo caso, essa .finalidade surgiu após
a lesão cirúrgica, e, por isso, há yucm lev:mtc a possibilidade <lc:: um dolo mbscq11ms caso n:io se
recorra à idc::ia de unúss:iu. Cf. MEZGER, Edmund. Trultld()... p. 179.
191
MEZGER, Edmund. Tmlt1dfJ... p. 182-3. As funções geralmente atribuídas à ação são tri!s,
como proposto originalmente por \'\'erner M:uhoft:r em 1953: Função de Unificação (ou Clas-
sificação); Função de Ddinição (Fundament:1çiio, Enface ou União); e Função de Ddimit:içào
(SOUZA e JAPIASSU, 2012; D'AVILA, 2003; SANTOS, 2010).
192
Ibidem, p. 180-1.
193
Ibidem, p. 183.

67
se conceito parece criar, como ressalta José Muiioz, uma tendência a se confundir
a manifestação de vontade com o r~sultado. 194
O resultado seria constituído, nessa concepção, pela totalidade das consequên-
cias produzidas sobre o mundo exterior pelo ato de vontade, o qual seria a base da
própria ação. Os efeitos sobre o mundo exterior teriam início com a excitação nervo-
sa do sujeito, a qual se manifestaria pdo mo,~1ncnto corporal, perpetuando-se inde-
finidamente até as últimas consequências da cadeia causal criada. Ressalte-se, todavia,
que o encadeamento de efeitos teria um limite muito claro para o Direito Penal, o
litnite estabelecido pelo tipo - que realizaria, aqui, wna f1111ção ol!)etiva li111itadora. 195 No
caso de wn disparo de arma de fogo, o limite da cadeia causal seria a lesão corporal
ou a morte, e os demais efeitos a partir daí não mais teriam relevância penal (como os
itnpactos etnocionais e financeiros sobre a frunília da víti1na).
Observe-se que outros autores também comungam de uma concepção am-
pliada de resultado, como Heinrich B. Gerland (De11/sches R.eichsstrafrecht, 1922) e
Franz von Liszt (Lehrb11ch des De11lschen Strafrechls, 1927).196 Mesmo para aqueles
que defendem a incompatibilidade entre os conceitos de ação e resultado, no sen-
tido de que um não poderia ser subsumido ao outro, Mezger oferece argumentos
com al!:>11.una força persuasória. Ao se conceber resultado apenas co1no resulta-
do externo surgem alguns problemas potenciais justamente porque, mesmo nas
tentativas, podem aparecer (parcialmente) resultados externos e, ao se considerar
como resultado apenas o resultado externo, torna-se mais difícil perceber a ten-
tativa como modificação no mundo exterior a fim de se habilitar sua punição. 197
Essa é uma rica e complexa discussão, que se relaciona com a questão so-
bre se todo delito teria um resultado e transborda para a própria classificação
dos delitos entre formais (de mera atividade) ou materiais, repetidos à exaustão
'" Com c:spc:cial atc:nção à notl de José Arturo Rodríguez ~fuiioz. Cf. MEZGER, Edmund. Tra-
indo... p. 183. Nc:ssc: sentido: "Por ejc:mplo, c:n un delito de homicidio descripto en d §211 dd
Código, comprc:nde d rrs11/lado d apunt:tr y disparar d fusil, d curso de la bala, d toque de ésta
t:n el cuerpo de la vfctima, la lesión y la muerte; d apuntar y disparar d fusil es la cond11rla corporal
dr/ ngrnle; d curso de la bala, d toque en el cuerpo de la víctima, la lesión y la muerte constituyen
c:l rrs11/1ado rxtrmo. Los resultados producidos en la vida anímica de otras personas, como, por
ejc:mplo, la 'sensación de dolor' que experimenta la vfctima de una lesión corporal (§223, Cód.
Pc:nal) o d escândalo a que se refü:rt: t:1 §183 de dicho texto, pertenecen ai 'resultado extc:rno"'.
Ibidem, p. 184.
9
t s MEZGER, Edmund. Tmlndo ... p. 184.
1116
Cf. .MEZG ER, Edmund. Tratndu ... p. 184. Nott 15.
l'17 "IPhilippl Allfdd (...) entc:ndc: que: d rc:sultado no puc:de sc:r parte: integrante: de la acción, porque:

si lo fuern no sc:ría posiblc: considc:rar la tentativa como acción, y seda preciso c:xcluir d delito
mlposo dd concepto de la misma; pero esta opinión de Allfcld se debe por una parte a lJUe dicho
autor concibe d rt:sultado t:n la tt:ntióva unilaternlmentt; sólo como rt:sultado externo (y tnmbién
este resultado puede pnrrin!11m1lr d:irst: en la tent.,tfra); y por otra, a que confunde en cl ddito
mlposo d resultado, con cl rcsultido rt:querido". MEZGER, Edmund. Traindo ... p. 184. Notn 15.

68
nos manuais até hoje. Se os autores, em sua maioria, repetem essa distinção, há
quem assuma honrosas posições dissidentes, como Max Ernst 11ayer (2005),
para que1n há uma dualidade lógica apesar da manifestação concomitante, nos
delitos de mera atividade, entre manifestação de vontade e resultado.
Parn aqueles que tendem a identificar, então, o resultado com a modificação
no inundo exterior decorrente da ação, torna-se necessário o reconheci1nento
dos delitos de mera atividade, porque se não reconhecessem os delitos sem re-
sultado, esses delitos de mera atividade restariam impossibilitados. Mezger argu-
1nenta, e1n contrapartida, que não só o resultado stricto se11s11 realiza modificações
no mundo exterior, mas também o puro movimento corporal. 198
Não há, deve-se dizer, uma completa superposição entre os conceitos clas-
sificatórios "delitos de mera atividade" e "delitos de perigo abstrato", pois este se
refere ao bem jurídico e aquele ao mundo exterior. Assim, os delitos ambientais
são, por exemplo, frequentemente delitos de perigo abstrato e podem envolver
ao mesmo tempo uma modificação sensível no mundo exterior. Tambéin não há
maiores coincidências entre delitos de mera atividade e crimes de mão própria,
mas, ao contrário, há uma completa incompatibilidade entre delitos de mera ati-
vidade e crimes omissivos impróprios. 199
Mezger adota uma concepção abrangente de ação, na qual se incluem quais-
quer manifestações jurídico-penalmente relevantes, que é deduzida da norma
(art.1 do StGB2i. E1n suas obras, a ação se apresenta como u1n elemento emi-
nentemente valorativo - como se mostrará com alguns detalhes adicionais logo
em seguida - e é sobre essa ideia que ele edifica abertamente sua polêmica com
Welzel. Se6>undo o professor de 11unique, compreender a ação apenas co1no uma
abstração da realidade seria ignorar sua verdadeira essência.201
Mezger não pára por aí. Analisando os argumentos que Radbruch arregi-
1nenta para refutar a teoria finalista, com destaque para a iinpossibilidade de se
subsumir sob uma mesma categoria posição e negação (A e não-A), ele destaca

1911 "En cambio, tit:nt: rnzón v. 1-lippd, II, 132, not.1 1, al criticar la desafortunada nomenclatura
'delitos formales' y 'delitos materiales': 'pues es indudable que en ambos casos se trata de
ataques materiales contra intereses juridicamente protegidos". MEZGER, Edmund. Trata-
do ... p. 185. Nota 16.
199 Ibidem, p. 185-6.
:?OI• "Una acdón conminada con reclusión es un crimen. Una acción conminada con prisón o con
multa dt: más de 150 marcos o con mult1 simplt:mentt: es un delito. Una acción conminada con
arresto o con una multa que no exceda dt: 150 marcos cs una foi ta". Ibidem, p. 19.
:?Ili "Es incompn:nsible, pucs, que:: este conccpto de acción haya sido calific:ido como un conccpto
'n:itumlístico' de acción (\'v'dzd, Grdz. 23). El conccpto de acción se:: comprendt: naturalisti-
camentt: cuando se quit:rt: ver en a sólo una 'abstracción de la realidad'; pero cstJ opinión,
representada, por ejemplo, por v. Uszt (Lehrb. 103, nota 9), es insosteniblt: (Kur.l-Lt:hrb. I, 39),
pucs dcsconoce la naturalt:za esencial de la acción". Ibidem, p. 21.

69
que a incompatibilidade entre ação e omissão é apenas aparente, pois ação e
omissão não se referem apenas a um evento externo (quando se mostram contra-
ditôrios), 1nas ta1nbé1n a u1n valor. Ficaria clara a possibilidade de sua confonna-
ção a um conceito unívoco, quando se traz para o primeiro plano o fato de ambas
(ação e omissão) dizerem respeito a condutas humanas valoradas (~u, melhor
dizendo, desvaloradas)w:?.
Além da afirmação da unificação de ação e omissão, contraditando a obje-
ção de Radbruch à possibilidade de uma função classificatória, Mezger também
se contrapc,e às propostas de eleger a "antinormatividade iinputável" co1no con-
ceito central da teoria do delito (zu Dohna) e de subsumir totalmente a ação à
antijuridicidade (Sauer). Entretanto, a ideia de se substituir ação pela realização
do tipo (Radbruch) não encontra maiores resistências e1n sua obra porque ele
acredita (como fica claro nas suas proposições posteriores) que o conceito de
ação deve ser deduzido da totalidade dos tipos penais.203
Para os partidários da ação como conceito-valor (Sauer, zu Dohna, Binding
e outros), Mczger aponta um claro problema: o "valor" informado pelo Direito
Penal pode ser - e ele afirma que, de fato, é - justamente a exigência de uma
concepção avalorativa (natural) da ação. O Direito Penal exigiria, assim, que não
se antecipassem valores (ou propriedades) porque resultaria na interdição da pos-
sibilidade de se vincular- função de enlace - à ação a especificidade dos distintos
ele1nentos que podem compor u1n delito. Portanto, apenas u1n conceito natural
poderia, em tese, servir de pedra angular para a teoria do delito. 204
Considerações tão opostas: uma aposta em um conceito valorativo, articula-
da com a afirmação de u1na impossibilidade de se afastar de u1na concepção na-
turalista, leva alguns autores a destacarem o caráter contraditório do pensamento
de ~-Iezger, neste ponto. Não obstante, há quem esboce uma tentativa de conci-
liação de l\1ezger com ele mesmo. Por isso, a co1npreensão de Mezger se daria a
partir do delineamento de sua diferença em relação aos demais neokantianos; e a
distinção da posição de ~Iezger para os outros se refere à relação ação-valoração,
se ela é uma relação de pritneiro ou se61'\.lndo grau. Especialmente ao se debruçar
sobre os Gnmdriss, destaca José Muiioz:

2'1..? "No se: trata aqw, por consiguic::ntc::, de: simplc:: Posidón (P) y Ncgadón (N), sino de: posidón
(Pc::) y Nq;adón (Nc::), con dc::tc:rminadas propic::d:idc::s, de: suc:rtc que: c::s posiblc:: Ja c::xiste::nci:i de:
un conccpto supc::rior (Oc::), que: c::s pn:cisamc:ntc:: la 11rrirJ11 m smlidfJ 11111plio". lbidc:m, p. 195.
21>) MEZGER, Edmund. Alodrmns... p. 23-4.
204
"De: c::Uo se: dc::ducc:: Ja justificación metódica de: nuc:stro concc::pto de: la acción arriba prt:sc::nta-
do; c::s incorrc::cto, cc::rt:imc::ntc, contc::mplarlo de: antc::m:mo como una imagc::n dc hccho 'natural'.
Pero pre::cisamc::ntc:: porque:: c::n d fondo c:s un conccpto-valor, puc::de:: t.'lmbit!n soportar sobre: sí
los arributos-valorc::s de: la 'anújuridicidad' y dc la 'culpabilidad"'. lbidc:m, p. 197.

70
Diferencia que creo poder expresar ai distinguir una valoración de primer gra-
do o simple y otra de se1:,1\llldo grado o compuesta. Pues si se determina d
concepto de la acción viendo en ella algo más que un simple proceso exterior
dei mundo fisico, y más bien se considera tan sólo aquel suceder animado,
transido de la voluntad humana, enderezado a un fin, se ha atribuído ya un
sentido y a la vez se há realizado un proceso de selecci<>n que nos permite
hablar de un conccpto valorizado que no corresponde ai simple mundo dei
ser. (...) en el Gnmd,iJs, donde, como hemos visto, se parte de un conccpto de
acci<>n valorizada (de primer grado), donde para nada se habla de un concepto
natural de la acción como cabeza del JiJle111a y donde, finahnente, la acción
no obstante ser un concepto valorizado, se distif1!,1\1C con toda claridad de los
205
atributos valores subsi1,1\Úentes [antijuridicidade e culpabilidadel.
Mezger defende uma concepção valorativa porque parece acreditar que
mesmo a proposição de uma concepção pré-típica implicaria uma inevitável má-
cula valorativa, mas não porque ele acredite, como os hegelianos, que toda ação é
necessariamente imputável ou, como alguns neokantianos, que ação é aquilo que
tem necessariamente relevância jurídica.2n6 Em outras palavras, mesmo o esforço
por uma concepção natural ou ontológica implica uma perspectiva valorativa. E
tal conclusão possui uma ressonância tão grande, que se podem ver reflexos atu-
almente nas concepções comunicativas da ação, as quais defendem uma posição
metodológica bastante semelhante nesse sentido.2117
Uma das principais críticas estendidas por Mezger ao finalismo é a de se
considerar como efeitos da ação apenas a estrita esfera do conteúdo da vontade,
o que implicaria o afastamento da possibilidade de se tratar alguns fenômenos
jurídicos, como a responsabilidade penal pelas ações imprudentes e suas conse-
quências não queridas ou mesmo uma responsabilidade penal por consequências
não queridas e sequer culposamente produzidas. Em outras palavras, nos deli-
tos preterdolosos, não havia (à época de Mezger) uma exigência legal de que o
resultado fosse ao menos culposamente produzido para sua pertinência como
qualificador do tipo. Isso tornaria, em principio, muito dificil a adoção do sistema
finalista porque ele se estruturaria ao redor do eixo delito doloso-culposo.21)8
205 MUNOZ,Jrn,é Arruro Rodriguez. ln: MEZGER, Edmund. Tmtodo... p. 199. Nota de rodapé.
2116 Col.'\bora para e.<;sa interpretação a afirmaç:ão de Ma.gcr de que mesmo a teoria ontológica de Wcl-
zel é valorntiva. Melger afirma, inclusive, que o conceito finalista de ação anteciparia conteúdos do
inju.<;to e da cul~tbilidade (especialmente porque a culpabilidade, em Mezger, ainda continha dolo e
culpa). Cf. MEZGER, Edmund. Mo<lu11ns on't11lnrio11es dt ln Dogp,átirajnritlitrrpt11al p. 28-9.
2m É muito simbólico que Me1.ger inaugure seu Modtrnt lP~com a seguinte citação de Goethe: "lm
Anfang war der Sinn" (No princípio era o sentido). Cf. l\fEZGER, Edmund. Modmtos••• p. 07.
• No Brasil a questão é um pouco diferente porque o tema é regido pelo :ut. 19 do CP f'pelo rc-
:mltado que ngrnva especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos
culposamente'). Não obstante, essa parece ser uma discussão superada j:í que, em marcos de
Estado democr:ttico de direito, não se pode conceber responsabilidade penal (mesmo a título
de preterdolo) por um efeito que não seja ao menos culposamente prodU?jdo. Parte do esforço

71
A distinção entre ação e omissão seria também valorativa, com significati-
vas repercussões. A mais importante delas parece ser a exclusão da vontade do
conceito de conduta omissiva - vontade a qual só reaparece na culpabilidade.
Os exemplos reivindicados para respaldar essa posição são os delitos omissivos
culposos, em especial os delitos de esquecimento.209 Exemplos que se repetem
atuahncnte na afirmação de posiç<>cs neovalorativas (das teorias da co1nunica-
ção) para defender que nem toda conduta possui alguma forma de articulação
consciência-vontade (permeada pela finalidade) como propugnam os finalistas.
Sua ressibmificação conte1nporânea seria a negação da vontade co1no ele-
mento essencial da conduta (seja ela direcionada ou não a uma finalidade típica),
para inseri-la, de acordo com a conveniência político-criminal, no tipo penal; não,
todavia, como u1n elemento reconhecido por sua existência objetiva, 1nas co1no
elemento normativo. É representativo que ~1ezger negue qualquer espécie ou
qualidade de relação da omissão culposa com a vontade. 210 O conceito de omis-
são não se caracterizaria, assim, pela vontade, mas pela possibilidade de vo11tade. 211
Já a omissão imprópria caracterizar-se-ia pela ideia de ação exi._~ida (um dever
que se relaciona com a possibilidade da ação de evitar o resultado), que, a despei-
to do que diz Mezger, parece antecipar questões da antijurídicidade - pois, e1n
uma concepção de inclinação normativista, é difícil se falar em dever de agir sem
se antecipar a antijuridicidade.212

do direito penal modcrno «: justamente o de excomung:tr o ,.v•rsari i11 rc iliâ"1. Diz José Munoz:
.. Rcsult:i, pues, que cn cstos c:isos se hace responsable al sujcto por un delito (doloso), y, sin
embargo, un:i parte de la acción, que desde d momento que d delito es doloso debfa neccsada-
mc::ntc:: sc::r dirigida, no lo es y, por c::ndc::, 110 rJ ardó,I'. MEZGER, Edmund. Traindo... p. 212. Nota
de rodapé. Qut: os efeitos não queridos e não produzidos scqut:r a título de culpa não sejam
considerados açõcs, todavia, não dc,·eria ser considerado um problema do sistema fin:ilista,
mas um mérito. No entanto, o tema é levantado porque o finalismo folharia em fornecer uma
suficiente legitimação desse recurso legislath-o.
Pi "Pero en tal hipótesis la exigência dd querer dd sujeto pertenece :t la esfera de la culpabilidad,
no ai concepto de la omisión. Ello apart:ce de modo claro en la omisión culposa, sobre todo en
los llam:idos dditos por oh·ido,,. MEZGER, Edmund. Tratndu... p. 273.
210
"MEZGER censurava a definição de LISZT, mostrando que da não se aplica aos crimes de
esquecimento. Sustentava, por seu turno, que a omissão, conceitualmente, não precisa ser vo-
luntária: a onúss:io pode ser querida, quando é dolosa, mas em tais casos a exig~ncia de quert:r
pertence à esfera da culpabilidade, não ao conceito dt: omissão, o que afirma ser claro na omis-
são culpos:i e nos crimes de c::squc::cimcnto". FRAGOSO, Hdeno Clauclio. Op. Cit. p. 52.
211 ''Pues ello suministra la prueba de que ai concepto de la omisión no pertenece, no sólo nin-

1-,rún h:iccr, sino tan,poro IJltmr nlgmul'. .MEZGER, Edmund. Traindo... p. 273. Grifo nosso; Ou:
"Ahora bien: dd mismo modo que en d hacer acth·o es requisito csencfol dd conccpto de la
:icción d hecho de que ésu haya sido querida, dcbe consecuentemente exigirse en cl fQllr,plo de
la omisión d dcmento de la P"Iibilidad J,, srr q11(11t!d'. Ibidem, p. 274-5.
m MEZGER, Edmund. Tmlado... p. 279-81.

72
Por fim, Mezgcr acaba por reformular em diversos sentidos sua concepção
de ação: exclui dela o nexo de causalidade213 e reavalia o lugar e o conteúdo da
omissão. 214 Mesmo em suas formulaçôes tardias, contudo, ele mantém posturas
profundamente valorativas:
El fundamento filosófico-jurídico de nuestra anterior exposición dei con-
cepto de acción como concepto valorativo se dedujo dei círculo de ideas
de la filosufía cultural sudoccidental alemana de \Vindelband y Rickert
(Lehrb. 39), y comprende nominalmente las consideraciones de la reali-
dad-valor. Sus 'valores' son en verdad \raloracium:s', es decir, ~ctos que
se regulan por una creación cultural de naturaleza positiva. Con el cambio
ontológico dei pensamiento alcanz:m estos valores un profundo sentido.
Ellos son partes de un •ser anímico' esencial y, por tanto, aún más que
antes se sustraen a una consideración 'naturalista' de las cosas.215

Em 1950, 11ezger esboça seu conceito de ação de forma um pouco mais


pormenorizada. Nesse momento, é possível entrever cm suas formulações uma
tentativa de delinear um conceito cujo vínculo com o conteúdo real fosse o mí-
nimo possível, de forma a torná-lo mais plástico às necessidades normativas. O
elemento central de configuração da conduta não seria tanto a finalidade, mas a
,,ontade - importa que se queira algo e não o que se quer.216
Na intitulada esfera existencial, a conduta humana é uma ação ou omis-
são q~1erida. O objeto da vontade (do querer) seria dado, todavia, pela teoria da
213
"En nuestro Tratado hemos incluído cl result.·ulo Je la acción y unido a él la teoria <le la rclación
<lc causalidad en la teoria de la acción. Examinada, estrictamcnte, la teoria de la rclación <lc cau-
sali<lad no pcrtcnece a la acción, sino más bicn a la teoria <ld injusto. (...) Es lícito, por rnzoncs
<lid:kticas, anticipar aqui el estúdio de b rdaciún <lc causali<.bJ (v <le la omisiún) scparán<lola
<le la teoria <lei injusto, ya bastante carg:i<la con otras cucstioncs. Con cllo, ai mismo ticmpo, se
destaca hasta qué punto las cuestiones puramente causales tunbién <lepcn<len <lc las cuestiones
<lei tipo". MEZGER, E<lmunJ. Modmrns... p. 25.
li◄ Já no Tratado Mczgcr aponta que o dttu dr agir pcnence (<lo ponto <le \'ÍSta <lo sistema) ii antiju-
ridici<la<le e que, por razões didáticas, é analisado no tópico sobre conduti. ~lesmo assim, acre-
ditamos que seu tratamento da omissão sofre mudanças qualititivas entre um período e outro.
Antes: "Lo que com·iene a la omisión en vcr<l:i<lcra omisión es k, ,,trión ,1pm1rl,1 que el autor há
omitido realizar. (...) Es erróneo cl rcproche de que la tesis aqui defemfüla confunde la rsmd" de la
omisión con la a11t!J111ididd(/d <le la misma. EI hecho de que una acción sea 'pensada' (esperada) por
cl que juzga, es constitutivo para el concepto y naturaleza escncial <lc la omisión; por cl concrnrio,
la omisión es antijurídica sólo cuando la acción pcns:i<la (esperada) también es 'ex.igi<la' por cl
Derecho. Ambas cos:is pueJen separarse conccptu:ilmcnte, aunque desde cl punto de vist.t pnírtiro
el Derecho penal no tiene interés alguno respccto a acciones esperadas, pero no ex.igi<las, ni en sus
correspondicntes omisioncs". lvlEZGER, Eumun<l. 1i'lt"1do... p. 274; Depois: "En una conside-
rnción cstrictamente sistemática pcnenece también ai injusto la teoria <le la omisión. Sólo razones
'didkticas' aconscj:m su estúdio en la teoria de la acción". MEZGER, Edmund. Modn·n,,s... p. 27.
llS ?\1EZGER, Edmun<l. lvlodtrnnI... p. 21.
216
MEZGER, E<lmun<l. Modemns... p. 22 e ss.

73
culpabilidade ou dos elementos subjetivos do injusto; notadamente porque ele
acreditava que a inserção o conteúdo da vontade já no conceito de ação criaria
toda u1na ga1na de problemas irresolúveis. 217 A voluntariedade co1no parte cen-
tral da conduta possui um vínculo com a finalidade, mas não no mesmo sentido
do finalismo, pois, aqui, a reunião vontade-finalidade é feita de forma estratifica-
da (e1n etapas), pela prôpria teoria do delito - enquanto no finalis1no seria uma
contradição em termos se falar em vontade sem finalidade.
Em outras palavras, a conduta é cindida (vontade e finalidade são separa-
das) para ser reconduzida a sua co1npletude de fonna normativ~1, a fi1n de ser
possível contornar os elementos que se apresentem como problemáticos para
essa recomposição (como a finalidade nos delitos culposos). i\fezger afirma que,
se há características existenciais na conduta, elas sé, pode1n ser unificadas nor-
mativamente.218 Não seria equivocado, assim, dizer que o conceito existencial
(mezgeriano) de conduta é ta111bl111 um conceito final. 219
A proposta de 1-Iezger é, partindo da ideia de ação como "conduta hu1na-
na", tornar o conceito de tal maneira abrangente que possa caber tudo o que
possua relevância jurídico-penal. Por isso sua conceituação beira frequentemente
o tautoló6rico (ação é conduta hu1nana). Ele garante, assi1n, a unidade do siste1na
de Direito Penal, o qual não se divide (como em \Velzel) de início em delitos do-
losos de um lado e culposos do outro.220
Embora sua critica da ideia de finalidade potencial e1n \Velzel seja correta (fi-
nalidade potencial é uma não finalidade) - e tenha sido reproduzida por muitos -,
sua ideia de ação final misturo elementos ontológicos e valorativos, em razão de sua
concepção de estrutura do dclito,:?:?1 tratando a finalidade co1no finalidade antijurídi-
ca.222 Portanto, muito embora sua crítica tenha brotado parcialmente de sua posição

ZP "Ya Germano há hecho notar, com ra1.ôn, las dificuhades que se oponen a una inclusión dcl
contenido de la voluntad cn cJ concepto de acción". Ibidem, p. 29.
1111
"Donde dcsempenan un papel las distinciones existenciales como hacer y omitir, dolo e impru-
dencia, etc., sólo pueden unificarse desde otro lado, es decir, desde cl lado de la norma, de los
valores, etc.". Ibidem, p. 32.
9
zi "Pero cl concepto existencial de acciém es también un concepto •final'. \VcJ1.cl, toma nota de
esta constatación, pero con tono escéptico. Él sólo quiere ver aqui un momento de •voluntaric-
dad', que no tiene nada que ver •con cl concepto ontológico(...) de la finalidad'; No hay n.ingún
querer sin un •fin' ('meta), es decir, sin una dirección •final'". Ibidem, p. 22.
1.21i Ibidem, p. 22-3.

z.zi "Por lo mismo tampoco pucdcn ser tratados conjuntamente cl dolo y la imprudencia en la teoria
de la acción, sino, como dcmuestr:i cl art.59 StGB, en la teoria de la culpabilidad". Ibidem, p. 32.
m "Para la construcciôn de la acción imprudente [W'cl1.cl) se sirve, pues, de la categoria de la
•potcncialidad'. No se comprcn<le, sin embargo, la esencia de esta forma de pcns:tmicnto. Q11,
lt, arn'ón inpmdmlt rxislr11rial 110 ts 'final~ u dtrir, dirigidt1" 1111,1 n1tl,1 i1y11sl,1 (Ji110/ arl/1(1/'), es algo tan
evidente que no pucde ser olvidado tampoco por la 'teoria final de la acción"'. MEZGER,
Edmund. 1\lodtr1101... p. 31. Grifo nosso.

74
equivocada, sua conclusão é logicamente acertada. Mas, justamente por ter esse vício
de origem, não pode ser estendida às reformulações do finalismo feita pelo próprio
\'v'elzcl e seus seb>uidores, quando abandonam a ideia de finalidade potencial.
(f) Incorporam também o conceito valorado de ação em maior ou menor
grau (com sua origem na contribtúção de Radbruch pela definição de ação realizfZ-
dora do tipo) autores como Hcllmuth von Weber,223 Paul Bockelmann224 e Eberhard
Schmidhauser.225 Todas as formulações neokantianas tornam evidente a centralida-
de da função classificatória atribuída ao Direito Penal como uma de suas marcas
distintivas. São concepções do Direito Penal - e consequentemente da conduta
- voltadas a sua instrumentalização para os casos concretos e para a programação
criminalizante coetânea, dificultando, dessa forma, sua crítica pelo confronto com
u1na norma superior - por isso, Zaffarorú e Batista afirmam se tratar de mna teoria
que não levava em consideração o controle de constitucionalidade.226
Além da singela ponderação de que há ação independentemente da existên-
cia do tipo penal227 - um arb,umento levantado contra as teorias negativas, 1nas
que pode facilmente ser encaixado aqui -, duas fontes adicionais de problemas
.zn "EI derecho se dirige a los seres humanos como portadores de ,·oluntad. Por csa ra7.Ón, sólo
puedc ser ddito su conducta Yoluntaria, o sea, depcndientc de la voluntad, influcnciablc por clla,
aunquc no nccesariamente querida o completamente concientc de un fin. (...) La descripción de
la conduct.1 danosa para la comunidad se efcctúa por medio dd lenguajc, euros conceptos indican
cl camino a nucstro pensamiento y est,blccen cstrictos limites a las posibilid:ides de expresión".
\1<'El3ER, Hcllmuth ,·cm. U11ea111ir11los dr/ dmrho pmal alm1,í11. Uucnos Aires: Ediar, 2008. p. 55.
m "O exame das teorias da conduta mostrou que o conceito de conduta não serve como conceito
central ou genérico, a partir do qual seria possí\'el dcdu1.ir a solução para questões sistemáticas
importantes da teoria do crime. Os esforços pela inquirição do lugar que os elementos obje-
tivos e subjetivos do comportamento criminoso ocupam na estrutura do conceito de crime
precisam partir da função da norma. Pertence aos fatores fundamentadores da antijurídicidade
típica de uma conduta tudo - e apenas - aquilo a que se referem aqueles juízos gerais de des-
valor sobre determinados comportamentos humanos, que encontram sua expressão nas tipifi-
cações de ilícitos de cada um dos fatos úpicos. Integra os fatores constiruintes da culpabilidade
aquilo que deve est:u presente no caso concreto para que se possa fa1.er ao agente, com base
no seu ato, uma rcprm·açào que atinja a sua pessoa. A classificação dos elementos objetivos e
subjetivos do crime pressupõe, pois, que se inquira, em primeiro lugar, quais circunstâncias da
conduta já intcgr.tm os objetos dos jufaos gerais de desaprovação expressos nrn; tipos penais.
Esses juí:1.0s, cm sua generalidade, constituem o fato ilícito".UOCKELMANN, Paul; VOJ .K,
Klaus. Direito pmnf. parte geral. Belo Hori1.0nte: Dei Rcy, 2007.p. 61-2.
225
Schmidhauser constrói seu sistema de delito sobre a lesão típica ao bem jurídico: "Se trJ~,
pues, dei hecho puniblc como succso contrario al valor, y no de un concepto superior ai que
se lc van agregar los atributos que fundamcntan cl antivalor''. SCHMIDHAUSER, Ebcrhard.
Sobre la Sislm1,íticn de k, Teoria dei Delito. ln: Nucvo Pensamiento Penal. Ano 4. Nº 5 a 8. Buenos
Aires: Ed. Depalma, 1975. p. 42.
u.. ZAFFARONI, E.R.; 13ATISTt\, Nilo [ct al.J. Din-ilo pr11t1/ brasileiro, yoJ. ll, 1. Rio de Jmciro:
Revan, 201 O. p. 93-4.
w SANT< )S, Ju.1re7. Cirino dos. Dirrito ptnt1/- parte geral. rJorianôpolis: Conceito editorial, 201 O. p. 94.

75
para esta corrente teórica foram: a impossibilidade de se conformar um supra-
conceito porque a omissão não pode ser causa de qualquer resultado típico; e a
alusão ao tipo para a dclilnitação da conduta acaba por criar u1n co11ceito vazio ou
substancillmcnte remissivo, o qual chega a um itnpasse quando o próprio tipo
depende do conceito de conduta para se ver preenchido: 22"
Outro problcm:i sistem.,tico criado por essa posição passa pel:i constata-
ção de que o conceito de ação, no direito penal, não pode ser exclusiva-
mente típico, pois existem tipicidades que dependem de condutas de ter-
ceiros, como os chamados 'concorrentes necessários impróprios'. Nesses
casos, é óbvio que a falta das ações próprias ou concomitantes da vítima,
ou de terceiros, requeridas pelo tipo, porém não proibidas, conjura a tipici-
dade ou transfere a investigação para uma tipicidade diferente. 229

No entanto, é uma das principais funções (se não a principal) do tipo a


redução de poder punitivo. E, diante dessa função, as concepções neokantianas
falham consideravelmente porque, ao partirem de conceitos de ação pensados a
partir do tipo penal (ou do tipo de injusto), abrem ampla possibilidade de se dis-
simular como ação os casos de sua ausência. Ao se estear no tipo para determinar
a conduta, desconsideram totalmente o princípio do 1111//11111 crimen si11e cond11cta. 23º
A opção neokantiana pelo reconhecimento da função demiúrgica do valor
teve como uma de suas repercussões dogmáticas mais claras, portanto, a constru-
ção de um conceito de vontade sem conteúdo (vontade sem finalidade), o t}ual
percebe sua enunciação mais evidente na ideia de von/(lde de tlj)erlar o g(l/i/ho - ao
invés de vontade de atirar em alguém ou de matar alguém, etc. -, re1netendo o
conteúdo da vontade à culpabilidade231 • A vontade é artificialmente cindida em
duas - duas vontades: vontade de apertar o gatilho e vontade de matar. Como se
pôde perceber, em grande medida mantém-se uma concepção de ação próxima à
enunciada por Liszt (recorrendo-se às representações e à vo11tade sellJ conte,ído), mas a
palavra de ordem era 1J11t/e(lbilid{lde.r,2

.u,i ZAE-"fARONl, E.R.; BATISTA, Nilo [c:t aq. Dirri/() pr11al bmsilrir", vol. 11, 1. Rio de: Jandro:
Revan, 201 O. p. 84-5 e: 91 e: ss.
lZ'J lbidc:m, p. 94-5.
2]1, lbidc:m, p. 94.
Com dc:suquc: c:speci:il p:m1 os dc:mc:ntos normativos, as tc:orias m:okantianas dão um passo
2.JI
adiante: no rc:conhc:cimc:nto (ainda que: contingc:ncial) de: um tipo penal não c:stritamc:ntc: objc:-
tivo: "O tipo penal elaborado com b:isc: nesse: conccito-valor de: ação (...) não podc:ria, como
e: ób\'io, sc:r c:xclusi\·amc:ntc: objc:Ú\'O, reprodu:ándo, c:m conceitos, a n:alidadc: fisioló1,.,ric:1 da
:iç~o". LUISI, Luiz. Op. Cit. p. 37.
m ZAFFJ\RONI, E.R.; BATISTA, Nilo jct aq. Dirril" pr11al bmJileir(), vol. 11, 1. Rio de: Jandro:
Rc:\·:m, 2010. p. 84-5.

76
4 - A TEORIA FINALISTA DA AÇÃO

Alguns defensores da Teoria Causal empreenderam um esforço parn colmatar


lacunas, atribuindo a velhos conceitos novas ideias, de maneira ad boc. \Velzel
(2011) lembra, por exemplo, como Nowakowski afirma que a voluntariedade
da ação, para a teoria causal, também significa que esta é dirigida pela vontade,
e co1no apenas se trata de uma direção da ação (pela vontade) independente da
representação dos fins. 233 Dessa forma, tenta-se consertar algo estruturalmente
problemático sem atentar às conclusões eminentemente contraditórias às quais
se chega: uma ação direcionada pela vontade sem representação dos fins. Para-
lelamente, a exclusão da finalidade implica diretamente a incapacidade da teoria
causal de diferenciar entre uma conduta humana e um processo natural, tendo
em vista que ela precisaria recorrer ao próprio elemento que resta excluído de sua
conceituação para fazê-lo, promovendo, consequentemente, a subversão de sua
própria teoria.234
A formulação do conceito finalista de ação por Welzel se deu em resposta
tanto ao causalismo quanto ao neokantismo, e sua separação entre ser e dever ser.235
A teoria naturalística (causal) da ação e, consequentemente, do crime sofreu um
longo processo de corrosão, desde a 'descoberta' de elementos subjetivos do tipo
- maculando o sistema proposto por Beling - às intervenções da Escola de Kiel:
A teoria causal sofreu também grande impacto com as ideias revolucioná-
rias introduzidas pela Escola de Kiel, que acentuava o aspecto subjetivo
do crime, com o Direito Penal da Vontade (l'v"i/lmsslrafrech~, passando a
um plano secundário o sentido clássico de causação de ofensa a um bem
ou interesse jurídico.236

Grandes golpes contra o causalismo foram desferidos por Hellmuth von


• Weber, ao apontar a existência de tipos que não descrevem apenas movimen-
tos causais, 1nas nos quais se leva em consideração a vontade do agente. Assim,
2JJ Muito bt:m caractt:rizada pdo t:Xt:mplo '\•ontidt: dt: apertar o gatilho".
2J4 "A introdução das 'rt:prt:st:ntaçõt:s dos fins' na ação depois, na culpabilidade é t:xtrt:mamt:ntt:

tardia, visto qut: a ação já st: dt:st:nvolvt:u st:m das, dt: modo cego, t: acaba por convt:rtt-los
t:m wn espectador postt:rior dt: um processo causal cego. Essa é, pon:m, a ess~ncia desde o
princípio da doutrina da :iç:io finalista". Cf. \VELZEL, H:ins. O 1101'0 j11rídiro-prnaf. uma
. r i s l m 1 n

introdução à doutrin:i da ação finalista. Tradução de Luiz Regis Prado. 3ª ed. rev. e ampl. São
Paulo: editora Rt:vista dos Tribunais, 2011. p. 49.
~m MAURACH, Rdnhart. O ro11reilo Ji11nlisln nriio d t t rfti/01 iobrr a teoria
s m s d n delito. ln:
u f m l 1 1 r a d o

Revista Brnsildra de Criminologia t: Dirdto Penal. Ano IV, nº 14, jul.-set., 1966. p. 23; CERE-
ZO MIR, José. Oji11nlismo, /Jqjr. ln: Revista Brnsildra de Ciências Criminais, São Paulo: Rt:vist.1
dos Tribunais, n. 12, ano 3, out./dt:z. 1995. p. 39.
2)6 FRAGOSO, Hdt:no Claudio. C(Jll{/11/n P1111í11tl. S:io Paulo: José Bushatsky Editor, 1961. p. 19-20.

77
haveria dois tipos de comportamentos aos quais se comina pena, em um pri-
meiro caso proíbe-se o comportamento que dá causa a um resultado (ka11sale
Tiití'g/eeits111orte)- este seria um conceito positivo de co1nportainento, set,rundo von
\"Veber -, em um segundo caso proíbe-se um con1portamento dirigido a um re-
sultado (/inale Tiitigkeits1vorle), um conceito subjetivo de comportamento. Um seria
um Direito Penal do Resultado enquanto outro seria Direito Penal da Vontade
( JF;l!twsstra.frerhl). 2.17
Já Hellmuth l\fayer questionava as concepções naturalistas em função de
suas 1na.trizes positivistas e destacava o proble1na de se considerar como modelo
do delito a causação de um resultado (que ofenda a bem jurídico) especialmente
diante dos crimes omissivos impróprios. 238
Tendo e1n vista as críticas posicionadas contra a teoria naturalista, Welzel for-
ja uma concepção na qual tanto a causalidade quanto a finalidade assumem uma
posição de dest1que para a configuração do comport1mento humano. Entretanto,
apesar de Hellmuth von \"Veber e Alexander zu Dohna darein passos e1n direção
a uma posição finalista, para ambos a separação conceituai entre delitos dolosos e
culposos era de t-tl forma que impedia a formulação de um conceituação unificada,
criando uma cisão na perspectiva ontolôgica para as espécies de delito, conforme a
qual os delitos culposos eram causais e os dolosos eram finais. Welze~ em contra-
partida, buscou subordinar tudo a uma concepção única de delito, composta pela
finalidade. Com isso, estipulou wn conceito que sofreu diversos ataques, pois no
crime doloso a finalidade seria atual e no culposo apenas potencial.239
As críticas foram, eventualmente, incorporadas pelos autores finalistas (Nie-
se, ;\1aurach e \1<1elzcl), impelindo-os a u1na refonnulação de seu pensamento. A
argumentação elaborada por Niese é que no crime culposo a finalidade é apenas
uma vontade, que remete a um resultado não contido no tipo. Fórmula repetida
em outros termos por Maurach, segundo o qual no delito culposo a vontade é
dirigida a um fim penalmente irrelevante.
De certa maneira, Hellmuth von \"Veber, Alexander zu Dohna e Helmut
Mayer pode1n ser considerados precursores do finalis1no, formulado de fonna
bem acabada por Wclzel e que viria a ganhar adeptos de peso na Alemanha (cada
qual com sua nuança) como Armin I(aufmann, Reinhart lviaurach, Günter Strn-
tenwerth, Hans Joachün Hirsch, Werner Niese etc. 240

w FRAGOSO, Heleno Claudio. Op. Cit. p. 20.


2ll uProcura,·a mostrar os problemas que esta conccpçiio !naturalista] oferece, cm relação aos
crimes comissivos por omissão, mostrando que muitas infrações penais não podem, sem mais,
ser consideradas lesões consumadas de bens jurídicos, pois muitos úpos não são susceúveis de
serem compreendidos como simples processos de causação do resultado". Ibidem, p. 21.
2J9 Ibidem, p. 22.
2
~• MAURJ\Cl·I, Rcinhart. O ro11rei10 ft11nli11n ... p. 22.

78
O traço caracterizador do finalismo, enfim, diz respeito à noção de que o
ser humano, em função de seu saber causal, consegue antecipar (mesmo que não
de forma ilimitada) as consequências de sua conduta.241 Por essa possibilidade
de antecipação, é possível ao indivíduo dirigir a conduta para outras finalidades,
alterando-a substancialmente. Em outras palavras, como é dito de forma plástica
por Welzel:
A atividade final é uma atividade dirigida conscientemente cm razão de
um fim, enquanto o acontecer causal não está dirigido cm razão de um
fim, mas é a resultante causal da constelação de causas existente em cada
momento. A finalidade é, por isso(...) 'vidente', e a causalidade 'cega'. 242

Para Welzel, a pedra angular da ação é a vontade final, pois a conduta se


basearia na capacidade da vontade humana em prever as consequências de sua
intervenção cm determinado curso causal e dirigir esse mesmo curso causal de
acordo com a finalidade imposta por si mesma. Não fosse a direção finalística em
um curso causal específico, este curso causal seria como todos os outros - cego
- e não se distinguiria de meros fenômenos naturais. Essa vontade final pertence
à ação e molda objetivamente a sucessão de eventos reais.243
A ação finalista é composta por uma sucessão de etapas, primeiramente
pela antecipação (ou estabelecimento) de uma finalidade (o objetivo proposto) e
a seleção dos meios necessários ao alcance dessa finalidade antecipada (por um
movimento denominado de retrocesso). Os meios eleitos frequentemente pro-
duzem outras consequências além do fim estritamente proposto (denominadas
de consequências secundárias), as quais são consideradas pelo agente não mais
por um expediente de retrocesso a partir do fim proposto, mas de progresso
(um processo para adiante) a partir dos meios escolhidos. Esses efeitos concomi-
tantes podem levar o agente a eleger outros meios ou a empreb>'á-los de formas

.w Nc:sst: sentido, t:imbém: MAURACH, Reinh:ut. O ro11crilo ft11nliJt,1... p. 26.


2 2
" \X'ELZEL, Hans. O 1101.'Q sislr111n... p. 31-2. Wt:lzd (2011, p. 07-8) afirma que:: sua teoria sur1:,riu por
influência do filósofo Richard Honigswald (Gnmdkt~m drr DmkpJJ·rholf{et<'), dos psicólogos Karl
Bühlc::r, Theodor Erismann, Erich Jaensch, Wilhdm Peters e: dos ft:nomenólogos P. F. linke
e AJcxander Pfünder, entre outros, mas não de: Nicolai Hartmann. Não é claro por que \"('dzd
resolveu renegar uma influi:ncia tiio importante. Todavia, a (suprncit:ida) formulação mais célebre:
do finalismo, e: uma das que: mdhor sintetiza sua ideia fundamental, expõe:: com toda fr:tnqut:'.t:t
a clarn paternidade: "En un mundo semejantt: d hombre puc::de dirigir lo que sin C!l se~l'\.Úrfa
addantc:: en forma ciega. Hacc: c:sto cuando arroja su iniciativa ai platillo de:: la b:tlanza;y lo p11rdr,
porq11rj111/a111r11lr ripromo di1mm 'n tirt,tZJ~ J>11u ri, ri ho111b", tJ vidmlr; su intervc::nción t:s previdente:,
prc::dc::tc::rminantc:". HARTMANN, Nicolai. A11loexposidó111ütm1tihcn. México: UNAM, 1964. p. 62.
Grifo nosso. Com rt:fer~ncias clarns à finalidade em: HART~IANN, N. Op. Cit. p. 45, 47 e 49.
241
\X1ELZEL, Hans. Drrrcho pmnl ,1/r111t11r. parte general. Santiago: Editorial Jurídica dt: Chile:, 1987.
p. 53-4; WELZEJ.., H:ms. O novo sisttma... p. 32.

79
distintas (de maneira mitigada, por exemplo).2'u Por fim, o autor realiza sua ação,
empregando os meios selecionados e obtendo, consequentemente, o resultado
antecipado (be1n co1no as consequências concomitantes).
Superada a etapa tanto cognitiva quanto volitiva e sua objetivação por meio
da conduta, se o curso causal consequente não se realiza conforme o plano,
pode-se caracterizar u1n delito tentado caso o resultado não venha a ocorrer. Wel-
zel argumenta, por outro lado, que apenas as consequências inseridas na direção
finalística da conduta (sejam os efeitos queridos ou aqueles com os quais apenas
se contava co1n a realização) são produzidas finalisticainente e as demais conse-
quências realizar-se-iam de forma meramente causal. Esclarece o autor:
A finalidade não deve ser confundida, por isso, com a mera 'voluntarieda-
de'. A 'voluntariedade' significa que um movimento corporal e suas conse-
quências podem ser conduzidos a algum ato voluntário, sendo indiferentes
quais consequências queria produzir o autor. (...) Para se compreender,
contudo, a ação, para além de sua característica (abstrata) da mera volun-
tariedade, é dizer, de sua forma essencial, concreta, determinada em seu
,o,rlelÍdo, só é possível lográ-lo mediante a referência a um determinado
resultado querido. 245
Dito de outra forma, o fato de uma conduta ser voluntária e finalisticamen-
te orientada a um resultado diverso do obtido, pode ou não significar se tratar de
uma conduta finalisticamente orientada à consequência decorrente de sua reali-
zação. Em princípio, não há maiores problemas em relação a isso, e essa questão
só é levantada porque, se nem toda conduta final é final em relação ao resultado
obtido, \Velzel se vê levado a afirmar que os efeitos não inclusos na finalidade se
realizam de forma estritamente causal. 246
Isso é problemático especialmente quando se pensa nos delitos culposos, os
quais, consequentemente, estariam equiparados a meros eventos naturais incon-
troláveis, fortuitos. Entretanto, não parece ser esse o caso e isso fica um pouco
mais evidente quando se tem cm mente os exemplos suscitados por Wclzcl - a
2"' "A vontade da ação, <lirigi<la à rt{lliz.ação do fiH1, dirige-se aqui também, ao mesmo tempo, a tt•ilar
os efeitos concomitantes. Por outro lado, a consi<leração desses efeitos pode <lar lugar a que o
autor inclua cm sua vontade a realização dos mesmos, seja porque considere seg11ra sua produ-
ção no caso <le utilizar esses meios, seja porque ao menos ,onlt com ela. Em ambos os casos, a
vontade final de realização compreende também os efeitos concomitantes". WELZEL, Hans.
O not'O risltn1a... p. 33.
4
z s \'(lf:J..ZEL, Hans. O not'O si!lt111a... p. 35.
l46 "En contraste con la rclación causal, en la cual todas las consccucncias est:ín determinadas

causalmente, pcrteneccn a la rclación final sólo aquellas que han sido incorporadas a la volun-
tad antecipa<lora <le rcalización. No existe una acción final 'en sí' o 'absoluta', sino solamente
em relación a las consccucncias :mtcpucstas por la voluntad de rcalización". WELZEL, Hans.
Dtruho penal. .. p. 57; WEJ..ZEJ.., Hans. O 11011fJ sislt111a... p. 35.

80
enfermeira que administra uma dose letal de morfina sem saber e o atirador
que mata alguém escondido atrás da árvore sem saber47 - e suas considerações
tendentes a incluir no conceito de atividade final os meios empregados e as con-
sequências secundárias.248
No caso da enfermeira, por exemplo, dependendo do protocolo da insti-
tuição 1nédica, a profissional deve ou não checar as doses de morfina antes de
administrá-las. Se esse cuidado é exigido e não é observado, dificilmente pode-se
equiparar seu efeito deletério a um evento fortuito, ainda que ela não soubesse
que aquela conduta específica causaria a morte do paciente e não tenha querido
isso. Contudo, se os protocolos medicinais anteriores são tidos como suficientes
para evitar tais resultados indesejados e, assim, a enfermeira não checa a injeção
antes de aplicá-la, então, é possível comparar o efeito dessa conduta a um evento
fortuito indesejado.
Em ambos os casos (da enfermeira e do atirador), tanto pela ausência de
vontade (para o resultado) quanto pela ausência de conhecimento das circunstân-
cias factuais envolvendo suas condutas, as ações exemplares não possuem como
finalidade as consequências destacadas, e podem ser abstratamente equiparadas a
eventos fortuitos. Em condutas culposas, contudo, o caractere diferenciador para
ser possível realizar essa equalização da conduta a um evento fortuito (ou não)
não é tanto a ausência de vontade do agente (em relação ao resultado), mas se a
violação da norma de cuidado se insere nessa esfera de vontade (se o sujeito co-
nhecia e queria violar a norma). Se o meio para se atingir a finalidade-tratamento
passa pela violação de algum protocolo médico, então, obviamente, a finalidade
do agente contém a violação do dever de cuidado e não é possível equiparar wn
eventual resultado negativo a um evento fortuito.
Delimitando sua posição, Hans \Velzel afirma não haver, consequentemen-
te, açôes finais em si, mas que as aç<>es só podem ser determinadas como finais
em relação às consequências inseridas na esfera da vontade de realização do in-
divíduo:
A esse respeito é indiferente, para o sentido da ação final, que a consequência
produzida voluntariamente represente, na estrutura total da ação, o fim deseja-
do, o meio utilizado, ou mesmo um mero efeito concomitante, compreendido
pela vontade de realização. Uma ação final de ntatardá-se não apenas quando
a morte seja o fim da conduta voluntária, mas tunbém quando era o meio para
wn fim ulterior (por exemplo, herdar do morto), ou se era um efeito conco-
mitante compreendido pela vontade de realização (...). 249

247
WELZEL, Hans. Derrfho pmal... p. 57; \VELZEL, Hans.O novo sistema... p. 35.
2-ffl "Por dlo, una :tcción final, en rnzón de su rtft:rencia a las diversas consecuencias, dispuesrns \'olun-
ttriamente, puede tt:ner un sentido de acción múltiple". \'X'EI..ZEL, H:ms. Dm·d,o pe11nl... p. 58.
249
\X1ELZEL, Hans. O not'o 1iJJmu1... p. 36; WELZEL, Hans. Derrrho pmnl... p. 57.

81
A estrutura fundamental da conduta humana tem implicações diretas sobre
o ordenamento jurídico, particularmente sobre as normas penais. Proibições e
mandamentos penais sô fazem sentido se a conduta puder ser finalistica1nente
orientada de forma a respeitá-los; não fazendo qualquer sentido, a contrario se,1s11,
construir ordens ou proibições parn cursos causais cegos.
\Velzel (2011) desenvolve as distinçc,es entre as nonnas de acordo com as
ações que almejam conformar. São três grandes grupos em sua opinião: primeiro,
as normas destinadas à consequência mesma da ação do agente (seja pelo fim,
pelo meio ou pelo efeito concomitante), vedando condutas cuja vontade se dirija
a realizar um evento indesejado, ou seja, os delitos conússivos dolosos; segundo,
as normas destinadas à maneira como os meios são aplicados e selecionados
(de fonna relativa1nente independente da finalidade almejada), ünplicando u1na
medida mínima de direção final da conduta no sentido de respeitar os cuidados
necessários na sua realização, proibindo a realização descuidada de ações (cuja
finalidade não é socialmente indesejada), ou seja, delitos culposos; terceiro, as
normas destinadas a exigir a realização de determinadas ações a fim de evitar os
resultados socialmente indesejados, ou seja, referentes aos delitos onússivos.250
Ademais, a teoria finalista da conduta se estabelece também como uma
resposta dogmático-filosófica ao neokantismo em âmbito penal, estabelecendo
limites ontológicos e, por isso, mais restritivos do que se fossem meramente nor-
mativos. Esses litnites muito mais fixos decorrem do reconhecimento de que
a formação da ideia do sujeito cognoscente não modifica, por si só, o objeto
conhecido.251
Explicando o surgimento da teoria naturalista, Welzel assinala que a te-
oria da ação aparece condicionada por longo tempo, por pressupostos
culturais do velho positivismo naturalístico, que procurava reduzir toda a
realidade às relaçôcs externas entre as coi~as, transportando para o campo
das ciências do espírito os critérios e os métodos das ciências naturais.
A teoria naturalística contemplava a ação como simples processo causal,
constituindo uma concepção que :t-.,faurach chama de pré-jurídica e que
remontava à psicologia associacionista (...). (A qual] redU?.ia a atividade do
espírito a uma espécie de mecânica mental, dele fazendo pura receptivi-
dade. A teoria normativa, que se inspirava na filosofia dos valores, foi por
-------
\'('ELZEL, Hans. O 1101'0
2,31I p. 38 .
nilrflln...
.z.si Fábio André GuarJgnj, ao se referir a essa formulação na obrn de Zaffaroni, chama-a de teoria
realista do conhecimento. Na relação sujeito-objeto, ele diferencia runda entre ato de vontade
e ato de conhecimento: "Se, após uma ideia ser lançada em relação a um objeto qualquer, este
se modific:ir, ocorre um alo dt 1'011/adt. Se, ao revés, o objeto mantiver-se em sua forma real,
pré,·ia :i ideia, tratar-se-á de um alo de (onhrrinm1lo. Os aios de fo11hrri111mlo podem limit.1r-se a
descrever os objetos ou, de outro lado, julgá-los, atribuindo-lhes valores positivos ou negativos
(dum/orar é o verbo comum na terminologia jurídico•pcnal para designar esta situação)". Cf.
GUARAGNI, f'ábio André. As teorias dt1 ,011d11tn t111 direito pm"f. um estudo da conduta humana
do pré•causalismo ao fun:ionalismo pós-finalista. São Paulo: RT, 2009. p. 128 e ss.
82
Welzcl considerada puramente um complemento da teoria naturalística,
pois a 'vontade da ação é tratada exclusivamente do ponto de vista causal,
como uma modificação do mundo exterior, enquanto o conteúdo e o sig-
nificado do querer, ou seja, o que é querido, vem separado como perten-
cente exclusivamente à culpabilidade'. Aqui está o ponto básico da teoria
finalista: o conteúdo da vontade integra o conceito de ação. 252

A conduta afirma-se como o objeto sobre o qual se estruturam as formula-


ções legal-valorativas e, consequentemente, mantém-se objetivamente inalterada
pelos subsequentes juízos de valor, representados pelas eventuais constatações
de tipicidade, antijurídicidade e culpabilidade. O legislador deveria respeitar as
estruturas ônticas, "as estruturas U,btico-objetivas não podem ser ignoradas por
valoração ou normaçãu jurídica".253 A ação é o elemento base sobre o qual se
refere o conceito de crime. 254
Uma objeção levantada por Erberhard Schmidt e por Hellmuth Mayer dis-
põe que a teoria finalista desenvolveria um conceito final-subjetivo de ação, por
vincular o conceito de ação à vontade individual do sujeito; enquanto o sentido
da ação deveria ser determinado objetivamente.255 Essa objeção parece correta a
princípio. Entretanto, cabe ressaltar que, como a conduta humana difere essen-
cialmente de um processo causal naturalistico - caso contrário sequer haveria
a necessidade do Direito Penal -, ela é, assim, uma subjetividade objetificada.
Portanto, não estaria completa a análise da ação humana sem a incorporação do
elemento subjetivo, na estrita medida em que ele participe da expressão objetiva
que é analisada. Em outras palavras, o subjetivo (especificamente a vontade e
não qualquer estado subjetivo) é relevante na estrita medida em que ele contribui
fortemente para moldar o objetivo - seja essa manifestação objetiva fisko-social
(como a morte de alguém, que produz tanto repercussões .fisiológicas quanto
sociais) ou apenas social (como, possivelmente, uma injúria, que não muda sensi-
velmente o mundo natural exterior).
Isso fica mais claro no exemplo, trazido à baila por \v'elzel, do sujeito que,
esfaqueando outro em uma briga, acaba por atingir fortuitamente um abscesso
desconhecido, salvando seu desafeto256• Objetivamente se trata de uma interven-
ção salvadora, mas o sentido social da ação do agente diverge consideravelmente
252
FRAGOSO, Hdeno Clnudio. Op. Cit. p. 18.
2 3
s CEREZO MIR,José. O ft11nliJ1JJo, hojr... p. 39.
254
"O crime é, antes dt: tudo, ação ou comport:lmt:nto através do qual o homem se põt: em con-
traste com as exigt:ncins dn ordem jurídico-penal (...). A an:ílise do foto punívd revdn que dt: é,
essencialmente, wna conduta a que se acrescentam os atributos :i que se referem :i tipicidade, :i
antijuriclicidade e a culpabilidade". FRAGOSO, Hdt:no Claudio. Op. Cit. p. 05; MAURACH,
Rdnhart. O ro,urilo Ji11t1lislt1... p. 27.
n~ \X'ELZEL, Hnns. O novo 1islr111n... p. 52.
2S6 Ibidem, p. 52.

83
do sentido manifestado apenas pelo resultado produzido (a manifestação objeti-
va do evento). Assim, só é possível caracterizar a conduta como uma lesão cor-
poral tentada se se leva em conta a vontade (final) do agente, ficando claro como
ela (a vontade) conforma, portanto, de forma ineludível a ação humana. 257 Não
se quer dizer com isso, todavia, que o sentido social da ação seja completamente
determinado pela vontade,25iJ e, siin, que a vontade interpreta uma posição de
destaque nesse sentido. Destaca \"Vdzel:
É assim também no sentido contrário, se a vontade não está dirigida para
o resultado que causa a ação: a operação desafortunada, realizada por um
mc:clico, que tem por consequência a morte do paciente, é tolo coe/o diferen-
te, em seu sentido social, da ação de um 'rufião munido de navalha', ou de
um 'atirador', ainda que o médico tenha cometido um erro profissional.
1\1esmo que a operação fracasse, segue sendo uma ação dirigida à melhora
da saúde, que apenas causa a morte do paciente (art.222), enquanto as
ações daquele que porta a navalha ou do atirador estão dirigidas precisa-
mente a produzir a morte (art.211 e 212). O dolo e a falta de dolo (culpa)
não fundamentam t,io somente diferenças na culpabilidade - isso o fazem
também, mas apenas de modo secundário (vide p. 11 O e ss.) - mas, em
primeiro lugar, fundamentam as estruturas sociais diferentes de ação.259

A ação é um dado objetivo (FRAGOSO, 1961), mas isso não quer dizer que
não haja elementos subjetivos nela. Talvez isso se deva ao caráter aberto da lin-
guagem, mas o termo objetivo não serve, nesse caso, para excomungar qualquer
componente subjetivo da conduta humana; na verdade, serve, sim, para ressaltar
como o comportamento é uma manifestação objetiva e, por isso, mesmo o traço
subjetivo que o compõe adquire uma faceta objetiva dado que passa a possuir
uma manifestação concreta no mundo. Talvez a confusão derive de concepções
filosóficas que atribuem características demiúrgicas à subjetividade - como em
um relativismo extremado -, mas não é esse o caso. Uma postura materialista
pode reconhecer o importante papel interpretado pelas subjetividades, sem cair
na esparrela de anuir à ideia de que há uma primazia da subjetividade na confor-
mação da realidade; e de tal forma, aparentemente paradoxal, quando se reco-
nhece as subjetividades por essa perspectiva materialista, percebe-se como elas
também são um dado concreto - ainda que de outra espécie.

2.P "O dolo e a falta do dolo (culpa) não fundamentam t,io-somente diferenças na culpabilidade -
isso o fazem umb«;m, mas apenas de modo secundário (\·ide p. 11 O e ss.) - mas, cm primeiro
lug:ir, fundamentam as estruturas sociais de ação". WELZEL, H:ms. O 110110 .ti.rlrma... p. 52.
~ "Tudo isso não significa, contudo, de modo algum, que a vontade do autor 'decida' sobre o
sentido social de uma ação - essa interpretação errônea se nota, por exemplo, em Maihofor,
Hm1d/1111g1br,.riff, p. 44 e ss". Cf. WELZEL, Hans. O 11ovo .riJlr111n... p. 53.
ZS9 Ibidem, p. 53.

84
4.1 - Os pressupostos filosófico-teóricos do finalismo: Welzel e seu
indeterminismo relativo

É amplamente aceito que o pensamento aristotélico - e sua repercussão


sobre São Tomás de Aquino - constitui-se como o antecedente teórico do
finalisn10. 2<•° Cabe ressaltar, contudo, que a ideia de enteléquia não necessaria-
mente reflete de forma perfeita o que se entende por finalismo hoje, e nem deve-
ria, pois as formulações teóricas transformam-se, avançam e retrocedem. Entelé-
quia designa o momento de atualização da "alma", em formulações aristotélicas;
e a "alma" não era algo exclusivo ao ser humano.2G1
As interpretações realizadas a partir disso remetem à ideia de um fim intrín-
seco aos objetos, e pode ser entendida de forma ampla, podendo compreender
inclusive a noção metafísica, e um tanto quanto esotérica, de que tudo no mundo
tem um fim (e justamente esse fim modelaria o devir do objeto). Isso repercute
na ideia de que mesmo os processos causais "cegos" estariam dirigidos por um
fim último, o qual, na concepção tomista, seria dado por Deus. Ora, isso difere
substancialmente, apesar de lançar as bases, do pensamento welzeliano de que a
finalidade é um traço distintivo da conduta humana. No entanto, a ideia da rela-
ção entre fins e meios, dentro de uma ação, já está, sim, presente em Aristóteles.2G2
A possibilidade de se responsabilizar o sujeito vincula-se intimamente à sua
possibilidade de clirecionar a própria conduta de forma jurídica, e depara-se com
uma grande questão: é (p1i111a ft1cie) possível uma resolução de vontade distinta
da adotada? Ou, em outras palavras, há livre-arbítrio por parte do sujeito? E a
coerência da teoria finalista depende significativamente de como se responde a
esse questionamento. 263
Pelo menos desde 1892 existe uma tradição de reflexão sobre a relação
entre responsabilidade penal e livre-arbítrio, na qual se reconhece alguma form:t
de detenninação da conduta humana. No final do século XIX, Adolf 1'ferkel
afirmava a possibilidade de se justificar a responsabilidade penal mesmo diante
da constatação de algum grau de determinismo; I<arl Engisch chega à mesn1a
conclusão na década de 1960 com seu ensaio "La Teorfa de la Libertad de la Vo-
luntad en la Actual Doctrina Filosófica dei Derecho Penal".264
A fundamentação do Direito Penal se deu tradicionalmente sobre concep-
ções indeterministas do homem (e de sua conduta). Foram as obras de Ivferkel e,
260
\'<1EJ.ZEJ,, Hans. L, lrorin dr ln nrri,J11 ft11nlisln. Bm:nos Airts: Dtpalma, 1951.
~, HÕFFE, Otfricd. An'sttJM,·s. Porto J\lc:grt: Artmc:d, 2008. p. 125 e ss.
~ Ibidem, p. 177-82.
261
\X1ELZEL, Hans. O 1101'0 sistr111n... p. 117; \VELZEL, H:ins. Dt:rc:cho penal... p. 202 e: ss.
u... ENGISCH, Karl. L, Tr()rit, d,· ln Lihrrlad dr la Voh111tt1d r11 ln Armai Dortri11n Fi/()s,Jjim dr/ Dm·rho
Pmnl. Buenos Aires: B dt E-~ 2006.

85
subsequentemente, a de Engisch que lançaram as bases para um movimento no
sentido oposto - apesar de, na obra de Engisch, haver uma consideração apenas
hipotética de um "determinismo" para se estipular se, mesino assitn, resistiria à
possibilidade de uma responsabilização penal. 265
De forma gemi, a tentativa por dar uma resposta à altura da questão pode
ser divida em três abordagens (Welzel, 2011): antropolc'>gica; caracteriolôgica; e
categorial. A faceta caracteriológica tenta responder se o livre-arbítrio seria uma
consequência de um processo evolutivo natural pelo qual o ser humano passaria.
Nesse sentido, a teoria evolucionista - que apenas teve seu início em Darwin, mas
encontrou manifestações das mais diversas, como o darwinismo social - ressaltaria
sobremaneira a esfera biológica do homem. Especialmente em razão da influência
do pensamento mecanicista, majoritário ao longo de todo o século XIX. Em uma
primeira análise, a inteligência humana seria concebida como uma consequência da
especialização dos instintos animais - estabelecendo-se uma linha evolutiva entre
os dois. Entretanto, autores posteriores defendera1n não ser esse o caso, quando, na
verdade, o ser humano representa de fato uma involução dos instintos arúmais:266
A perda 'da9ueles estados de equilfürio em que se encontram os impulsos,
os movimentos instintivos (...) e os esquemas inatos em qualquer outro
animal' teria sido mortal para a subsistência da espécie humana, se não
'se visse compensada por uma determinada capacidade que, segundo sua
essência, é tão fundamental para nossa espécie como a perturbação das
formas hereditárias de conduta: a do pensamento racional, ordenado ca-
tegoricamente, e sobretudo sua aplicação ao problema categórico, com a
qual o homem revela-se responsável por suas ações, desvinculadas das 're-
gras do jogo' inatas da conduta instintiva' (Lorenz, op. cit., p. 370 e ss.). 267

Traçando wn paralelo com outros animais, o ser humano se distingue por


uma grande retração de sua esfera natural-instintiva, ou seja, caracteriza-se por uma
grande liberdade relativa das formas instintivas de conduta. A contraparte desse
elemento negativo se apresenta positivamente, por meio da direção de sua própria
conduta. A retração dos instintos incumbe ao homem a direção de suas próprias
condutas, habilitando-o a tornar-se responsáveis por elas.268 Explica Welzel:

u.s Nc:ssc: sc:ntido umbc:m: ~ 'ELZEL, H:ins. &jkxio11rs sobrr ti "librt albrdrio ". ln: Anua rio de: Dc:-
rc:cho Pc:nal r Cic:ndas Pc:nalc:s (ADPCP), Tomo 26, Fasc/Mc:s 2, 1973. p. 222.
2f,6 \X'd.zd cit:i Konrnd Lorc:nz, .Max Schdc:r, Erich Rothlckc:r e: Otto Storch.WELZEL, Hans. O
novo nslt111a... p. 117; WELZEJ.., H:ins. Dmrho p,11al. .. p. 202-3.
7
~ \X'ELZEL, Hans. O not'O sistr1110... p. 118.
3r.a "À 'libc:rdadc: existc:ncial e desvinculação do orhr:inico' (Schdc:r) corrc:spond~ como uma
cu2ctc:rístici poritittt e: decisÍ\':l do homem, a ,·incufaçào de: sc:u c:spírito aos critfrios da vc:rdadc:,
d:i finalidade: e do ,-:tlor, s~rundo os quais 1tm de: dirigir por si mesmo sua condut.1 por atos rc:s-
pons:ívcis.". WEíZEL, Hans. O novo rislrn1a... p. 119; \X'EíZEL, Hans. Dm-rho pr11t1l.. p. 202-3.

86
Com jsso, volta a antropologia filosófica (com a moderna psicologia com-
parada) ao antigo conhecimento filosófico, ao que denominou Schiller
classicamente como "graça e dignidade,,: "No animal e na planta a na-
tureza não só indica o destino, como também o realiza ela própria. J\o
homem, todavia, indica apenas o destino e confia-lhe sua realização (...)
Apenas o homem, como pessoa, tem entre todos os seres vivos o privilé-
gjo de romper com sua vontade o anel da necessidade, que é indestrutível
para os meros seres naturais e de dar início por si a uma série completa-
mente nova de fenômenos,,_ 269

Já a faceta caracteriológica270 procura enfrentar a compreensão do livre-arbítrio


a partir de distinções entre as diversas camadas do ser, responsáveis pelos impulsos
que alimentam o sujeito e as formas como des são filtrados, direcionados e ressignifi-
cados. A retração da esfera orgânica teria aberto a possibilidade da responsabilização
do ser humano, e essa mesma retração desvelou o E,,, o centro de referência dess~
responsabilidade, composto por mais de um estrato: (1) estralo profimdo, o qual contém
impulsos instintivos (como a autoconservação) e afetações anímicas (paixões, dese-
jos, interesses, etc.), os quais advêm dos instintos e reverberam sobre o E11, empur-
rando-o para determinadas ações; (2) o E11-cenlro (Ich-Ze11ln1111), um núcleo regulador
de impulsos, dirigindo os impulsos arúmicos do sujeito de acordo com finalidades e
valores, e permitindo condutas fundamentadas na razão;~71 (3) e o caráter-adq11i,ido, um
repositório Qocalizado no semi-inconsciente e no inconsciente) de sínteses de dinâ-
micas pretéritas e significativas entre estrato profundo e E11-ce111ro.T12
Os impulsos são dirigíveis e sua dirigibilidade depende daquilo que repre-
sentam enquanto conteúdo de finalidade e valor. A filtração dos impulsos pelo
E11-ce11tro faz com eles sejam preenchidos de valoração social. A afetação aní-
mica advinda do E,, não se apresent'l ao sujeito apenas por sua faceta emotiva,
mas também por sua finalidade e significação valorativa. Por isso, nesse ponto, a
direção final não tem por objeto imediatamente um processo causal externo, mas
w, \1<1ELZEL, 1-1:ms. O 11ot-o sistrma... p. 119.
2711
\X1ELZEL, Hans. Drrr,ho pmal.. p. 204-6; WELZEL, Hans.O 11ot'O 1islr111a... p. 120-1.
211
'½qui nos encontr:imos com um no\'o conceito, maiJ nslrilo, de \'ontade. Até agora tínhamos
empregado esse termo em um sentido mais a111plo, que compreende todos os impulsos dirigidos
à realização de um fim, inclusive os impulsos instintivos, paixões e aspirações. A direção final
que havíamos analisado até agora referia-se, por isso, exclusivamente, à forma especifica de rta-
liz.ar,io dos fins dos impulsos no mundo exterior (dirrção da ar,io). A esse respeito, era indiferente
a que classe de impulso obedecia a decisão da ação: também as ações instintivas e passionais,
'que seguem imedi:tt.imente o impulso', estão dirigidas a partir do fim antecipado; Ioda ação
'est:í baseada cm um esquema :mtecipado de seu curso e do resultado' (Lcrsch)". \VELZEL,
1-1:lns. O 1101,-0 sislrn✓a... p. 120; WELZEL, Hans. Drncho pmal... p. 204.
272
Já eram rel:irivamente populares à época de \Velzel as descrições analiticas das subjeti,·idades
por estr:itos. De qualquer maneira, essa caracterização welzeliana do sujeito parece se alimentar
da psicanálise e especialmente de Freud (mesmo sem citá-lo). Cf. FREUD, Sigmund. O Eu e o
ld. ln: Obras ron,plrtas, volume 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 14-74.

87
esses impulsos cm discussão. Considerando-se, então, seu conteúdo de finali<ladc
e valor, a afetação anímica pode transformar-se (ou não) em motivos (ponto de
apoio da decisão da vontade).273
O H11-ce11/ro filtra os impulsos de acordo com seu conteúdo valorativo, se-
gundo o qual alguns impulsos serão escolhidos e outros não. Assim, não se trata
apenas de u1na disputa de força entre impulsos - o que se aproxitnaria de uma
representação mais animalesca - mas sim, ln111bé111, de sua seleção a partir de mar-
cos sociais. Essas afetações anímicas (impulsos) são justamente o estofo das con-
dutas humanas dirigidas pela finalidade.274 Considerando isso, aprofunda Welzel:
Também nesse processo são os impulsos de estrato profundo o pressu-
posto material dos atos de direção conforme uma finalidade. Todos os fins
materiais procedem - tanto o bom como o mal- do estrato profundo, são
os fins dos impulsos instintivos, as aspirações, os interesses etc. Apenas
aquilo para que nos incita e arrasta um impulso instintivo, uma aspiração,
um interesse, pode converter-se em fim de uma decisão da ação, tanto se
é adotada de modo instintivo como conforme um fim. 275
É precisamente a direção final da vontade, nesse contexto, o mecanismo
viabilizador de outra configuração da vida humana e suas manifestações,
possibilitando ao ser humano a regulação dos impulsos de acordo com critérios
sociais. Os impulsos têm, assim, válvulas valorativas e de finalidade.276 Entre-
tanto, se o E11-ce11lro tivesse de responder conscientemente a todas as questões
colocadas pelos impulsos, dando conta racionalmente de todos os seus aspectos,
o funcionamento cotidiano do sujeito seria inviabilizado.277.
O semi-inconsciente e o inconsciente servem para dar conta da necessida-
de de o ser humano funcionar cotidianamente, servindo como mecanismo de
replicação de decisões anteriormente realizadas a partir da fixação de padrões e
regras de conduta (decantados dessas decisões anteriores). Desonera-se, assim, o
E11-ce11lro da imposição de realizar decisões fundamentais a cada situação análoga,
permitindo que se concentre nas novas ou atuais questões importantes. Esse dis-
positivo designa-se sob o termo cardter-adq11irido. 27'd Nesse sentido:
171
\'X'ELZEL, H:ms. O not'O .rislr111n... p. 121; \VELZEL, H:ms. Drrrrho pmal... p. 205.
11
' "De outro lado, assim que interv~m os atos de direção, conformt: um fim, do 'Eu-centro' (do
pt'ns:imento e da ,·ont:ide), não se experimentam impulsos tão somente em sua força emotiva,
mas s:io compreendidos em seu conteúdo de finalidadt: e em sua signific:içào valorati\'a para
uma configuração corrt:ta da vida; de acordo com esse conteúdo de finalidade:, con\'ertt:m-st:
em motivos, ao apoiar-se ndc:s a dc:cisão da vontade: como em suas razões objetivas (lógica ou
valorntiv:is)". WELZEJ.., Hans. O n<1t.'O süte111n... p. 121-2; \'X'ELZEL, Hans. Dtrrrho pc11,,/... p. 205.
17s \"('EJ..ZEL, H:ms. O not'O sislrn1n... p. 122.
176
\X'Eí~ZEJ.., Hans. O not'O .rislrn1n... p. 122; \VEJ..ZEJ.., Hans. Drruho pmal... p. 205-6.
zn \'('EJ..ZEL, Hans. O not-'O sislrn1n... p. 131 e ss.
171 \X1ELZEL, H:ins. O 11ovo .rislrn1n... p. 132; \VELZEL, H:ins. Drruho pmal... p. 205-6.

88
Ao inserir-se o homem na vida social, por meio da educação e da própria
experiência, mediante a recepção passiva e a conduta ativa, constrói ele em
si mesmo essa atitude estrutural inconsciente. As decisões fundamentais
da conduta social que ali encontraram acolhida, a direção dos interesses
mais importantes e das aversôes, o incremento da repressão das paixões, a
disposição para realizar tarefas e evitar perigos dirigem já aqui no incons-
ciente, em grande medida, a conduta da pessoa.27'J

O caráter, portanto, é o res11!tt1do das decisões e atitudes anteriores e também


a base para ações futuras. Na vida social, o homem constitui em si mesmo sua
atitude estrutural inconsciente perante as questões com as quais se confrontará.
E é por meio dessa teoria explicativa da vontade e da decisão humana que \Velzel
(2011) concebe a responsabilidade do sujeito como fruto, consequentemente, de
uma conformação defeituosa de determinado estrato da personalidade (em espe-
cial o referente ao caráter adquirido), por se tratar da base da conduta.
Isso explicaria o delinquente habitual (assimilação defeituosa das normas
de conduta), o delinquente passional (pela ausência de filtro das paixões ou pela
sua não inibição) e o delinquente negligente (construiu de forma defeituosa sua
atenção inconsciente aos perigos ou construiu de forma defeituosa o âmbito de
flexibilidade da obediência aos deveres de cuidado). Essa formulação, assumida
por Welzel, se aproxima perigosamente (e de forma mais clara no "delinquente
passional'') de proposições afeitas a um positivismo criminológico.280
Conclui \Velzel:
A direção final da ação pode formar assim centros de gravidade, porque
pode apoiar-se cm sua execução nas rusposiçõcs parn a ação, adquiridas
conscicntcmcncc, mas que funcionam agora no semi-inconsciente e no
inconsciente. Por outro lado, tem de levar cm conta os limites funcionais
das rusposições para a ação utilizadas cm sua execução ou - clito de outro
modo - deve criar um cquilfürio entre a direção consciente da ação e seus
elementos automatizados. (...) Ainda que a correção de nossas ações não
se baseie, cm grande parte, numa direção consciente no caso concreto,
mas cm disposições para a ação adquiridas com anterioridade e automati-
zadas, a incorreção pode ser reprovável ao autor como culpável na medida
cm que, ao empreender sua ação final, não tenha levado cm consideração
os perigos da situação e os limites funcionais de suas rusposições para a
ação, quando podia conhecê-los. 281

279
\X1ELZEL, Hans. O novo sist,11111... p. 132-3.
281
' "Em todos esst:s casos a culpabilidade do fato individual tt:m sua origt:m em um dt:mt:nto
pc:rmant:nte: a t:strutura dt:feituosa do t:stmto da pt:rson:ilidadt:, vale: dizer, c:m um dc:fcito
reprovável do caráter (a chamada 'culpabilidade do autor')'>. Ibidem, p. 133.
.2a, Ibidem, p. 135.

89
Com isso, \X'elzel crê ter respondido de forma suficiente sobre a
existência de um livre-arbítrio. A determinação, para além da sua
estrita constatação, sobre os aspectos envolvendo a própria direção
final da ação, todavia, precisa passar por considerações preliminares
que envolvem o terceiro nível de resposta, a categorial.
Primeiro, a determinação do livre-arbítrio não pode se dar a partir das po-
sições filosóficas, já tradicionais, afirmativas do indeterminismo, porque elas dis-
solve1n o sujeito respons~ivd. E1n outras palavras, se não há qualquer detenni-
nação sobre o ato de vontade (posterior) não se poderia estabelecer qualquer
vínculo com momentos anteriores (de formação da decisão). Isso teria como
implicação a conclusão de que o mesmo sujeito, sub1netido às exatas mesmas
circunstâncias, iria atuar de formas completamente diversas e aleatórias. Em uma
perspectiva indeterminista, os atos de vontade convertem-se em uma série desco-
nexa de hnpulsos isolados no te1npo. Há u1na destruição desse "sujeito idêntico",
que é base da responsabilização humana, desvinculando-se o sujeito "posterior"
de seus momentos anteriores.282
Sehrundo, a correta análise da questão, deveria passar, na opinião de Welzel,
pelo reconhecimento da determinação da conduta humana, sob suas diversas
formas, e da correta diferenciação entre o reconhecimento de determinações
e uma capitulação ao determinis1no. Esse determinis1no tradicional costu1na se
apresentar sob a formulação de haver apenas uma determinação, preenchida ge-
ralmente pela causalidade (monismo causal). Sob essa teoria, torna-se inviável
uma responsabilização do ho1nem (por qualquer decisão) porque sua conduta é
sempre predeterminada, não há como se responsabilizar alguém por algo sobre
o qual ele não tinha poder de alterar.h43
Diante desse problema, duas das respostas 1nais co1nuns são relevantes à
discussão travada pela dogmática: a negação de qualquer determinação (supra); ou
a afirmação da possibilidade de direção das determinações (impulsos anímicos)
pela vontade e finalidade. Aqui, não se trata tanto de uma liberdade de ação, 1nas
de uma liberdade de vontade. Uma simples liberdade de ação seria suficiente para
dar vazão às condutas de um sujeito escravo de seus impulsos anímicos. E não
parece ser isso o que se te1n e1n 1nente quando se trata da esfera da liberdade. Re-
almente, o diferencial é o poder da vontade de, colocando finalidades, determinar
a própria conduta, direcionando os impulsos.™

2IZ "Se: o :ito de \'Ontade do homem não estivesse: determinado por nada, o :ito de: vontade pos-
terior não poderia l-,1'\.1:lrd:ir nenhuma relação com o :interior, nem de modo imediato, nem
por meio de: um sujeito idêntico, posto que de: outro modo j:í estaria determinado por :tlgo ".
\VELZEL, Hans. O 1101-'o siilt11111... p. 123; \VELZEL, H:ms. /Jtrtcho prnal.. p. 206-7.
1
1.11 WELZEL, Hans. O no,,.o sisltn111... p. 123; WELZEL, H:ms. Dtrteho prnal... p. 207.
214
\X1ELZEL, Hans. O no/.'o sislrn1,1... p. 123 e ss; \1<1ELZEL, Hans. Dtrrcho pmal.. p. 207-8.

90
Essa forma de determinação dá-se em todos os atos do conhecimento:
a compreensão da estrutura interna de um objeto não é o resultado de
conexões associativas anteriores ou de outros fatores causais, mas que se
determina ela mesma, de um modo evidente, de acordo com o objeto que
tem em vista. Os elementos do objeto e suas relações objetivas são razões
evidentes nas quais o ato do pensamento apoia seus diversos passos. Não
são as causas cegas, como nas conexões associativas, que determinam os
passos do pensamento, mas este se determina a si mesmo, de acordo com
o conteúdo lógico-objetivo do estado de coisas que tem em vista. 285
Isso significa, em outras palavras, que o objeto de referência impõe restri-
ções ao sujeito cognoscente, as estruturas reais impõem-se como marcos lógico-
-objetivos ao sujeito - seja em um processo de simples descoberta ou também de
ação. Com isso, o fim almejado determina sobremaneira o caminho a ser trilhado
até ele. 286 Isso não implica uma predeterminação das coisas (como no monismo
causal), mas em uma vinculação real das possibilidades abertas para aqueles dese-
josos de atingirem determinadas metas.287
Merece destaque a consideração de que mesmo qualquer ato de conheci-
mento deve ser regido necessariamente pelo objeto de conhecimento. O esforço
pelo conhecimento não depende apenas daquele que o empreende, mas também
do objeto sobre o qual se reflete. Caso contrário, corre-se o risco de um deslize
rumo a um solipsismo.
Há, em Welzel, um reconhecimento das determinações que permeiam a
realidade e o levam a formular uma teoria a qual reconhece determinações sem
ser determinista (nas concepções geralmente associadas ao termo), e reconhece
uma espécie de autodeterminação, sem ser indeterminista:
En la utilización dei argumento dei conocimiento no hemos llegado en
modo alguno a una concepción "indeterminista" de la libertad. Es cierto
que el concepto de la libertad implica que la ejecución de lacto de cono-
cimiento ticne que estar libre de determinantes causales, pero el curso
dd pensamiento t:stá determinado pur las razunes evidentes dei objeto.
El curs~ del pensamiento no. está "i~determinado", s~no cu~~letamente
determinado, no por causas c1egas, smo por razones videntes.-

Essas considerações explicam de forma suficiente, mesmo que não exaus-


tivamente, a determinação do desenvolvimento do processo de conhecimento
pelo objeto, mas deixain em branco uma explicação 1nais convincente sobre o
2as WELZEL, Hans. O 1101-VJ 1istr111t1... p. 124-5; \'(IELZEL, Hans. Drruho pmal.. p. 207-8.
286
WELZEL, Hans. O 1101.VJ 1islr111,1•.• p. 125; WELZEL, 1-fons. Drrrrho prnal.. p. 208.
2A'1 Nas palavras de Wclzel: "não de modo 9uc de (o fiml, por sua \·cz, arr:istc para si cegamente
os diversos atos (...), mas porque: conttm as r:izõc:s c\·idc:ntcs, apoiadas nas quais o pensamento
abre por si mesmo o caminho ate: ele". WELZEL, Hans. O 1101'0 sislm1t1... p. 125; \VELZEL,
Hans. Dtrrrho pt11t1l.. p. 208.
21111
WELZEL, H:ms. H.rjltxiunu... p. 226.
91
porquê da vontade de conhecer. Uma pergunta de fundo. A partir dessa neces-
sidade explicativa, \X1elzel empreende um retorno a Friedrich Nowakowski (e a
sua base filosófica, situada no autor .tvfanfred Danner), o qual retoma concepções
filosóficas hedonistas, explicando a vontade de conhecer como uma disputa en-
tre impulsos anímicos, na qual o impulso mais contundente irá converter-se em
motivo da conduta (explicando essa vontade de conhecer).281J
Esclarece \Vclzel (1973) que, para I\1anfred Danner, não existem distinções
qualitativas entre os impulsos anímicos, mas apenas de grau. Nesse sentido, Dan-
ner se equaliza às proposições hedonistas. Ele recorre a Herman Nohl, Philipp
Lersch e a Franz Brentano para destacar o absurdo de se reduzir impulsos arú-
micos a meros dados quantitativos, recurso que permitiria o estabelecimento de
relações (e formulações de Í!:,,ualdade) inconcebíveis - co1no a "constatação" de
que o prazer de se fumar um charuto multiplicado por 127 vezes seria igual ao
prazer de ouvir uma boa música. 290
A conduta humana se desenvolve, portanto, não só em uma esfera de "dis-
puta" de forças, mas também em uma esfera de significação, na qual os motivos
que regem essa ação conglobam critérios de sentido. Não há, assim, apenas uma
diferença de grau, mas uma diferença de SÍ!,>n.Íhcação.291 Mesmo recorrendo-se
a conteúdos valorativos, a conduta não restaria indeterminada porque estaria
apoiada justamente no conteúdo de sentido dos motivos subjacentes. Sobre isso,
afirma \'X'elzel que:
(...) los contcnidos de sentido de nucstra vida no son ni crcacioncs o in-
vcncioncs 'libres' de nuestra existencia, ni cstán .fijados por 'leyes natura-
lcs' o 'leyes históricas', sino que se basan en proyectos, mediante los que
tratamos de comprender las tareas (vinculantes) de nuestra vida en las
condiciones cambiantes de la situación histórica. Entre cstos proycctos se
cncucntran también las normas de un Derecho histórico.292

9
2.1 "Este origc:n no st ad,·itrte tn Danm:r porque evita con cuidado la palabra 'placer' y en su lugar
habla simplt:smc:ntt de 'carga tmodonal"'. \X'ELZEL, Hans. lvjk>,."'Ío11e1... p. 227.
l9ll "Nohl cita la frast dt Franz Bn:ntano contra d hedonismo, de que es ridículo creer que d
plact:r de fumar un puro, multiplicado por 127, dé como rc:sultado d pfact:r dt: oir una sinfonfa
dt: Bt:t:thovc:n". WELZEL, Hans. lvjlrxio11r1... p. 227.
291
"Si d conocimiento há de sc:r posiblt:, d impulso dd conocimiento no pucdt: quedar unicamen-
te a la merct:d dd juego de los impulsos contraput:stos, que según su intensidad hag:m recaer la
dc:cisión c:n favor o tn contra dd acto de: conocinúc:nto; d conocinútnto, y con él d impulso de
conocer, tic:m:n que poder sc:r comprendidos como una tart:a plena de sentido, que pueda ser
sostenida frente a los impulsos contrapuestos. Con dlo se descubrt: una cfum:nsión complet.'1-
mente diferente yue cs ignornda y conscicntcmtnte enmascarada por las teorias dckrministas
(causalcs)". \'\'EJ..ZEL, Hans. ll..i.jlrxi(J11r1... p. 227-8.
292
\X'ELZEL, Hans. Rrjk:...-iMes... p. 228-9.

92
As considerações sobre o processo de conhecimento como elemento escla-
recedor dos questionamentos acerca do livre-arbítrio envolvem, como se disse, o
reconhecitnento da superação da estrita vinculação da conduta a processos cau-
sais cegos e, consequentemente, o reconhecimento também de que os impulsos
anímicos (incluindo-se o impulso que leva ao ato de conhecimento) são perme-
ados de sentido. Estabelece, assitn, duas relaçc;es distintas de detenninação: de
independência frente às determinações causais cegas e de vinculação às razões
objetivas (conformadas pelo objeto mesmo).293 \Velzel extrapola as conclusões
sobre o ato de conhecimento para as condutas humanas em geral, concluindo
que elas podem, assim, direcionar-se conforme conteúdos de sentido. 294 Cabe a
ressalva:
Sin embargo, en el problema de determinar cuándo sucede una cosa o la
otra, en una persona concreta, en el caso concreto, estoy de acuerdo con
la respuesta que da Engisch, como 'determinista hipotético', de que no lo
sabemos. 'De acuerdo con nuestro punto de partida tenemos que dejar sin
respuesta la preb,unta de si el autor, de acuerdo cem su naturaliza, tal como
se manifestaba en la situación concreta, hubiera podido hacer uso de una
mayor fuerza de voluntad o de una mayor diligencia'?JS

Não se trata, portanto, nem de uma completa independência dos proces-


sos causais, nem de uma completa dependência. O processo causal se estabe-
lece como infraestrutura necessária à conduta humana. Ele não é, portanto,
a forma como se manifestam os atos de pensamento, mas sua pré-condição:
"o pensamento não é determinado segundo causas cegas, mas segundo razôes
evidentes"296 • Mesmo o impulso (de conhecer) que leva ao pensamento não é
totalmente determinado de forma causal (como resultado de uma mera disputa
de forças anímicas), pois, como já foi dito, precisa ser filtrado pelo estrato do E11-
-centro e compreensível sob o signo da finalidade.
Esclarece Welzel:
Liberdade de vontade é a capacidade de poder reger-se conforme fins. É a
liberdade da coação causal, cega, indiferente aos fins, para a autodetermi-
293
"La c:xpresión 'indeterminismo rdath·o' no cs, por dlo, una combinación absurda de palabras.
L:t prc:!,•1.mta de la determinación tiene que plantcarsc sic:mprc: en rdación con un dc:terminado
fator: en relación con las condiciones causales (ciegas) d acto de conocimiento c:s libre, inde-
terminado, pero c:n rdación con las razones objetivas, se determina a si mismo c:n los actos de
compn:nsión y está en este sc:ntido determinado. Se trata de: dos formas difen:ntes de determi-
nación". WELZEL, Hans. Rtfaxio11t1... p. 229. O próprio Nicol:u HARTMANN (1964, p. 15)
considera a pergunta pelo livrc:-arbítrio um falso problt:ma (fruto de uma mc:tafisica idc:alista).
294
"Las decisioncs humanas no rienen que recaer única y necc:sariamcntt sc:gún las rdaciones de
fuer..ta o intensidad de los impulsos en conflito(...)". \X'ELZEL, Hans. Rrflr>.io11u... p. 229.
2'>S \X'ELZEL, Hans. Rtj/r>.io11u... p. 229.
2
% \X'ELZEL, Hans. O novo 1iJtm1a... p. 125; WELZEL, Hans. Drrtrho prual. ..p. 208.

93
nação conforme os fins. Não é- como crê o indeterminismo - a liberdade
de poder an1ar de outro modo (por conse1:,ruinte, também mal ou de um
modo absurdo), mas para poder atuar conforme os fins. A liberdade não
é, consequentemente, a possibilidade de poder escolher arbitrariamente
entre a tinalidade e o absurdo, o valor e o desvalor (assim, por exemplo,
Harnnann, Ethile, p. 714); a admissão de uma liberdade assim, sem funda-
mento, nos conduzi~i~ apen~s~ de novo, ao ca~~nho \i1ivocado do inde-
terminismo e destrwna o suJelto da responsabilidade.-
A liberdade de vontade tem, portanto, um referencial concreto na realidade,
e, nesse sentido, o finalismo se situa em um limiar entre o idealismo normati-
vista (com aportes da Filosofia dos Valores) e o naturalismo determinista (com
aportes das teorias mecanicistas). Por isso, a liberdade de vontade não é um total
desimpedimento de qualquer determinação; e por não se tratar, aqui, de um total
indeterminismo, o sujeito resta limitado pela realidade.298
A afirmação, por Welzel (2011), de a liberdade ser um ato e não um estado,
significa que a liberdade não é o estado de estar desimpedido de pressões causais
(dos impulsos naturais), mas o ato de libertar-se delas por uma autodeterminação.
Essa concepção da liberdade como ato, e não como estado, aproxima-o, deve-se
acrescentar, surpreendentemente de algumas matrizes existencialistas.299-300 É jus-
tamente esse esclarecimento ao qual \Velzel recorre inclusive para reduzir o hiato
existente entre o Direito Penal e a Criminologia, entre o delito como exercício da
liberdade e com produto causal do meio. 301

Nr WEIZEL, Hans. O 1101'0 nslr111a... p. 126; \VELZEL, Hans. Dmrho prnal..p. 209.
291
\X'EJZEL, Hans. O novo nslrma... p. 126; WELZEL, Hans. Dmrho penal.. p. 209.
Z99 ''Na falta desse ato Ide libertação! bast:.ia-se o fenômeno da culpabilidade: a culpabilidade é a
falta de autodeterminação conforme os fins num sujdto que c:ra capaz de determinar-se. Não
é a decisão conforme os fins c:m favor do mal, mas o ficar prc:so e dc:pc:ndente, o deixar-se
:irrastar por impulsos contráàos ao \-aJor''. WELZEL, Hans. O 11ovo nslen1a... p. 127; WELZEL,
Hans. D"rrho pr11nl.. p. 209.
:ilJ• A ideia de rompimento com a seri:ilidade na obra sartriana parece apontar em um sentido pa-
recido. Cf. SARTRE,Je:in-Paul. Criliq11r of Dialuhral J{La1011, v. 1: theory of practical ensembles.
Londres: Verso, 2004. p. 345 e ss.
ll>t "As duas afirmações parecem excluir-se por contradição. A análise da liberdade desrnca aqui
que na re:iLidade não existe uma contradição. A culpabilidade não significa 'livre' decisão c:m
fa\·or do mal, mas ficar preso pda coação causal aos impulsos, sendo o sujt:.ito capaz de au-
todeterminação conforme: os fins. O delito é, por isso, efetiva e inteiramente, um produto dt:
fatores causais, e a suposição e mesmo a indicação da porcentagem com que a 'vontade fü·re
do autor' tenha participado, junto :i disposição e: ao mundo circundante, da gênese do ddito
(Sauer, Kni11i110l01.ir, p. 59 e ss.) é um jogo incerto.". WELZEL, Hans. O 11ovo nslen1a... p. 127-8;
\'<'EIZEJ.., Hans. Drrrrho prual.. p. 210.

94
4.2 - Breves apontamentos sobre suas consequências dogmáticas

Os primeiros esforços dogmáticos de compreensão do conceito de injusto


estruturaram-se a partir da dicotomia objetivo-subjetivo. Os elementos objetivos
pertenciam ao injusto e os subjetivos à culpabilidade.
O fundamento doutrinário dessa concepção era sustentado pela doutrina
da ação causal, que separava taxativamente a ação, como um mero proces-
so causal externo, do conteúdo subjetivo da vontade; desse modo, incluiu-
-se todo "externo" na antijurídicidade e todo o "interno" na culpabilidade.
Essa separação viu-se apoiada dogmaticamente pela confusão existente
cm torno do sentido da "objetividade" da antijuridicidade. Dado que a
antijuridicidadc é, segundo a opinião admitida, um juízo de dcsva.lor "ob-
jetivo" (= geral), era fácil que surgisse a crença equivocada de que o injus-
to (a ação antijurídica) tinha que ser concebido de um modo puramente
objetivo, mas em sentido completamente diferente, de algo que pertence
exclusivamente ao n111ndo t>.1trior.?IJ2

Quando a doutrina, então, vincula a antijurídicidade ao processo causal


(externo), o injusto é tratado como a lesão (ou o perigo) ao bem jurídico e a
culpabilidade como o vínculo subjetivo (interno) entre o autor e o resultado. O
desvelamento de elementos subjetivos do tipo subverte esse conceito tão simé-
trico. Como resposta, tentou-se afirmar que os elementos subjetivos desvelados
eram apenas a exceção à regra, para não se abrir mão das, já tradicionais, noções
de conduta e injusto.303
Welzel afirma a impossibilidade de se distinguir entre o furto e uma lesão
meramente causal ao bem jurídico sem o elemento subjetivo; bem como não se
poderia diferenciar entre uma tentativa de homicídio e wna lesão corporal sem se
recorrer o elemento subjetivo da tentativa. Mezger, por outro lado, refuta a infe-
rência lógica de que, caso se reconheça o elemento subjetivo na tentativa, ele deve
ser reconhecido ta1nbé1n no delito consumado. Seu at!:,1\lffiento para contrapor-se
ao amplo reconhecimento do elemento subjetivo no tipo de injusto é essencial-
mente metodológico, permitindo reconhecer que em alguns tipos há elementos
subjetivos e em outros não - tornando o argumento aparentemente inválido aos
olhos de Welzel, 304 em função de uma aparente contradição - negando apenas
seu reconhecimento como um elemento necessário do tipo de injusto.
Esse argu1nento 1netodológico, como explicita Cerezo Mir, significa apenas
uma afirmação da soberania legiferante (de lege ftrenda) em relação aos elementos
da ação sobre os quais podem incidir o desvalor referente à antijuridicidade. Isso
302
\\:1ELZEL,
H:ms. O not'O .ristm111... p. 83-4.
301
MEZGER, Edmund. Drrtcbo Pen11f. libro de estu<lio. Parte Gcner:il. Buenos Aires: Editorial
Bibliografia Argentina, 1958. p. 78 e ss.; WELZEL, Hans. O not'O siilm1c1... p. 84.
~ Atenção ao comentário da p:ígina 86: WELZEL, H:ms. O not'O .rislm1,1... p. 86-7.

95
significa que, se no delito tentado o desvalor incide sobre o elemento subjetivo
(porque, nesse caso, é um elemento constitutivo do tipo de injusto), no delito
consumado pode incidir apenas sobre os elementos objetivos do injusto: 305
Baseado no mesmo ponto de vista, l\iezger e Lange chegam a afirmar que
grande parte dos elementos subjetivos do injusto admitidos pela doutrina
tradicional são apenas elementos subjetivos do injusto enquanto a ação se
acha cm estado de tentativa, mas não conservam esse caráter quando o
faro passa ao estado de consumação. A maior parte dos elementos subje-
tivos do injusto representa mera antecipação da proteção do Direito, que
fica sem objeto ao consumar-se o foto. Isso acontece, segundo Mezger e
Langc, nos delitos de intenção, por exemplo, no furto. (...) Existem, ao
mesmo tempo, porém, de acordo com Mezger e Lange, elementos subjeti-
vos do injusto "autênticos", vale dizer, que conservam esse caráter mesmo
após a consumação do fato dclitivo. A tendência concupiscentc nos deli-
tos contra os costumes e o ani11111s i11i11randi no delito de injúria do art.185
do Código Penal alemão pertencem a esse grupo. 306

A essa linha argumentativa de Mezger, Cerezo Mir contrapõe um argumento


de coerência: uma vez adotado, pelo legislador, uma determinada concepção de
antijuridicidadc, os elementos essenciais pertencentes a essa concepção deverão
pertencer aos tipos de injusto em geral. Considerando-se que a punição da conduta
como tentativa só faz sentido quando se leva em consideração uma concepção
pessoal de injusto - ou seja, uma concepção que não seja completamente objetiva
-, não haveria qualquer coerência legislativa em eleger um sistema não puramente
objetivo para, então, esvaziar alguns tipos penais de qualquer traço subjetivo.307
Destaca-se a crítica de Welzcl:
A tentativa de salvação realizada por Engisch - ao dizer que no delito con-
sumado "basta" o desvalor do resultado para o juízo de antijurídicidade e
que somente na tentativa é "necessário" um elemento subjetivo do injusto,
por faltar o desvalor do resultado - pressupõe uma abstração positivo-no-
minalista do ro11te,ído material do injusto e uma renúncia a uma concepção
1111ildria, material, do injusto penal. Imediatamente o mesmo Engisch vai
JOS "Esse: critério e: o que sen·c: de base também par:i as argumentações de Engisch para atribuir à
resolução dditiva na tentativa o caráter de um demento subjetivo do injusto e ncg:í-lo, de outro
lado, na consumação". Cf. CEREZO MIR, José. Nota de rodapé nº2. ln: WELZEL, Hans. O
not'O ns/rn/(1... p. 87.

113' CEREZO MIR,José. Nota de: rodapé nº2. ln: WELZEL, Hans. O not'O 1istr111a... p. 87.
J07 ''Não é possívd, por isso, por exemplo, que a n:solução dditiva seja um demento subjetivo do
injusto da tent:itiva, partindo-se de uma concepção objetiva ou subjeti,·a da mesma. A punição
da tentativa só faz sentido, portanto, dentro de uma concepção de antijurídicidade que distinga
o desvalor da ação e: o desvalor do resultado. A punição da tentativa não tem m:nhum sentido
numa concepção puramente objetiva ou despersonalizada do injusto, por exemplo, como mera
lt:são ou perigo de lt:sào :i um bem jurídico protegido". CE REZO MI R, José. Nota de: rodapé
nn2. ln: \'\' ELZEL, H:ins. O ll<Jt.v sist,·111,1... p. 88-9.

96
mais além, e tem de admitir que "a norma correspondente ao tipo objeti-
vo do injusto" - segundo Engisch um mandato objetivo de cuidado - "é
infringida, em realidade, por toda conduta dolosa, tanto se se trata de mera
tentativa como de um delito consumado".3º8

Foi, portanto, uma importante contribuição do finalismo à teoria do de-


lito a alocação do dolo no tipo,309 mas não só dele. As elaborações teóricas de
AJexander zu Dohna contribuíram também no reconhecimento de um tipo sub-
jetivo, embora ele não defenda uma concepção ontológica de ação. Na verdade,
ele entende que há condutas (ações ou omissões) sem vontade, como nos delitos
de esquecimento. A própria distinção proposta pelo autor entre objeto de valo-
ração e valoração do objeto reforçava a ideia de que o dolo (o objeto) deveria
ir para a tipicidade, separado, assim, da consciência da ilicitude (a valoração do
objeto).310
A posição dogmática de inserção do dolo no tipo era sustentada também
pela descoberta de outros elementos subjetivos do injusto e pela punição da ten-
tativa. Essa inserção teve importantes consequências: o avanço da concepção de
errorfacti e error)uns para erro de tipo e de proibição (segundo a qual o erro sobre
elemento normativo do tipo também é considerado erro de tipo); a culpabilidade
normativa e não mais psicológica ou normativo-psicológica; e alterações no sis-
tema de participação, pelo qual não era mais possível participar de um mero pro-
cesso causal, exigindo o atuar doloso do autor (ou domínio finalista do fato). 311
No que toca ao elemento intelectual da reprovabilidade, convém salientar
que a consciência da ilicitude, no sistema finalista, ficou abstraída, sepa-
rada, do dolo e surge como um elemento da culpabilidade. Daí ter Welzel
--------
\X ELZEL, Hans. O
lOI 1 noi'O sislema... p. 89-90.
lO\I "\Vclzel, Armin Kaufmann e Maurach inferiam <la estrutura finalista da ação humana que o
dolo devia ser necessariamente um demento subjetivo do injusto dos delitos dolosos". CERE-
ZO MIR, José. O ftir,1/is1110, hojr... p. 40.
310
GUARAGNI, rábio André. Op. Cit. p. 160 e ss; "Am"pam,, surgia com \X1dzel a ideia de que
a com.luta é uma atirid,,de g11i,1d,1 por 11n1 fi111. Se a conduta é uma ativi<lade final, e o tipo <lescreve
condutas, logo o tipo descreve ath·i<lades tinais (jc1z.ms finais). Se o tipo descreve um fazer final,
a finalidade (o que o agente conhece e quer) cstí situada no tipo, compondo-o como demento
subjetivo. Daí, terem se harmonizado os pensamentos de Wclzd e Graf zu Dohna para que o
dolo, composto só <lc elementos psicológicos (dolo natural) migrasse da culpabilidade para o
tipo". Ibidem, p. 162.
:m "Exemplo: A incita ao míope B a disparar sc,bre um suposto fant:isma, cm realidade sôbrc
C. (...) O tribunal con<lena A por instigação no homicí<lio culposo (...). Servindo-se <la tocira
finalista, logrou-se eliminar este êrro <la judicatura. Pois se o dolo 030 continua sendo elemento
da culpabili<la<le, mas, sim, <lo tipo, o §50 não pode aplicar-se ao exemplo antes ciudo. A ins-
tigação requer como mínimo que a pessoa instigada tenha agido de manrim típira t ant!)urídircl>.
MAURACH, Rcinhart. O ron«ilo finalista ... p. 32 e ss; CEREZO MIR,José. O ftnc1/ismo, bojr... p.
42; GUARAGNI, Fábio An<lré. Op. Cit. p. 163-4; etc.

97
construído a teoria da culpabilidade para o tratamento do erro de proibi-
ção ou sobre a ilicitude da conduta. De acordo com esta teoria, o erro de
proibição não exclui o dolo, mas, sendo vencível, produz uma atenuação
de pena do delito doloso e quando invencível elide a culpabilidade e a
pena. Como é sabido, à teoria da culpabilidade se contrapôe à teoria do
dolo, que era dominante na teoria jurídica do delito tradicional e, pela qual,
o erro de proibição (ou sobre a ilicitude da conduta) elimina o dolo. Se o
erro era vencível dava lugar a wna responsabilidade por culpa e, se era
invencível, eximia a culpabilidade e a pena.312

Esse importante aporte trazido pelo finalismo foi uma implicação do tras-
lado do dolo para o tipo: a transformação da culpabilidade de uma culpabilidade
psicológico-normativa em apenas normativa. A culpabilidade passa a sinalizar a
imputabilidade, o conhecimento potencial da ilicitude e a exigibilidade de condu-
ta conforme o direito. 313
A teoria finalista e seu compromisso ontológico vincularam o conteúdo da
vontade à sua direção, esquivando-se das possíveis consequências normativistas
criadas pelo causalismo.314 A concepção finalista implica também, ao contrário
do que parece defender Cerezo !\fir,315 a rejeição do resultado na elaboração do
conceito de conduta.316 É plenamente imaginável a possibilidade de haver ações
sem resultado naturalistico sensivelmente percepúveP17 - o caso justamente de
algumas omissões.

4.2.1 - Vontade, finalidade e dolo

A vontade é um dos caracteres diferenciadores da teoria finalista, transfor-


mando-se em dolo quando entra no tipo. 3111 A inserção do dolo no tipo é am-

m CEREZO MIR,José. O ft11alis1110, hojt... p. 41-2.


m "A culpabilidade - extraídos o dolo e a inobservância do cuidado objetivamente devido, isto
é, o elemento objetivo da culpa - tem seu conteúdo rcdw.ido à imputabilidade ou capacidade
de culpabilidade e aos elementos de reprov:ibilidade: o elemento intelectual (conhecimento ou
possibilidade de conhecimento da ilicitude da conduta) e o elemento volitivo (a exigibilidade de
obediência ao Direito)". CEREZO ~IIR,José. O ft11aliJn10, hojt... p. 41.
314
HIRSCH, H:ms Joachim. 1:::,/ dna"ollo dt la dogmática pmal dup"iI dt 117tlzel ln: Derecho penal:
obras completas. Tomo 1. Buenos Aires: Rubinal-Cul7.oni, 1999. p. 15; GOSSEL, Karl Hcinz.
Artrra dtl lVon11,1lit·is111o_r rftl Nal"ralis1110 tn la Ttoría dt la Ardó11. ln: Revista de Dcrccho Pcn:tl,
n.1 . Buenos Aires: Instituto de Ciencias Penales, 2007. p. 38.
315
CEREZO MIR, José. O finalismo, hoje. ln: lvtisla Brasileira dt Cii11das Cri111i11,1iJ, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 12, ano 3, out./<le1.. 1995.
316
"(•••) quien integra cl resultado de la acción cn la acción, se contradice por cllo, porque la acción

entendida como conducta arbitraria dcbc producir primcramcntc cl resultado de una modific.1-
ción dei mundo exterior''. GOSSEL, Karl Hcin7.. Op. Cit. p. 38.
317
Ibidem, p. 38.
1111
MAURACH, Rcinhart. O ronrtilo ftnaliita... p. 27.

98
piamente aceita na dogmática contemporânea. E, se a vontade (finalisticamente
orientada) é o trnço distintivo da conduta humana, compreende-se por que \Vel-
zel respondeu a Maihofer que subtrair-se a vontade do comportamento, cria uma
definição sub-humana de conduta.
A vontade, segundo o entendimento dominante, é o conteúdo essencial
do conceito de ação. É o elemento psicológico, subjetivo, que caracteriza
a ação humana e a distingue dos acontecimentos do mundo físico. M.E.
Mayer dizia que o limite da vontade deve ser o limite da ação. Esta conclu-
são, porém, como veremos, não é pacífica, pois muitos autores entendem
que à omissão a vontade não é imprescindível. Recentemente, ~faihofer
procurou destacar a vontade da teoria da ação, para constituir a base da
teoria da participação, definindo a ação como comportamento humano
social. Para o conceito de ação bastaria o operar. 319

Graf zu Dohna aponta um bom parâmetro de determinação da relação


entre comportamento e vontade, qual seja, não há ação quando a atividade ou
inatividade não foi causada pela vontade. É em função disso que não se punem
atos-reflexos e a coação física irresisúvel, porque não há ação - note-se que parte
da doutrina defende haver conduta nas chamadas ações em curto-circuito e nas
ações automáticas (automatização decorrente de extensa repetição no tempo).
Na Alemanha, ainda reivindicam posições finalistas H.J. Hirsch, Günter
Stratenwerth, Armin Kaufmann e Rcinhart Maurach (cuja obra foi alterada du-
rante a atualização por Zipf, aproximando-se de uma teoria social da ação) 320•
Outros autores que se aproximam de uma concepção finalista são Edmund !\1e-
zger, Hellmuth Mayer, Adolf Schõnke, Horst Schrõder e outros, mas a teoria
finalista propriamente dita não é defendida por todos, pois em muitos deles falta
o reconhecimento do dolo como um elemento essencial do tipo. Reinhart Mau-
rach, por exemplo, refere-se a !\fczger como um dos grandes representantes do
causalismo, e também assinala Horst Schrõder como um causalista. Há aqueles
que, embora neguem o finalismo, incorporam sem maiores problemas as con-
clusões derivadas da teoria, como Wilhelm Gallas, Paul Bockelmann e Eberhard
Schmidt.321
É importante ressaltar a ponderação de Fragoso (1961, p. 19):
De notar-se, porém, que o dolo aqui é o que se tem chamado de dolo 11altm1/,
ou seja, a simples direção da vontade, sem qualquer conteúdo de repro-
vação ético-jurídica: a possibilidade de querer não depende da imput:1bi-
lidade. A palavra dolo já envolve a ideia de valoração jurídica da vontade e
é inadequada no caso, sendo empregada à falta de outra. À culpabilidade

119
FRAGOSO, Hdeno Claudio. Op. Cit. p. 28.
l2t1 l\1AURACH, Rdnh:irt. O (011rrito Ji11ali.ftn... p. 22; GUARAGNI, Fábio André. Op. Cit. p. 166.
lZI MAURACH, Reinh:ut. O ro11rrilo Ji11nlis1n... p. 22 e 31.

99
fica reservado apenas o juízo de reprovação e a consciência da ilicitude da
conduta. 322
Também na America Latina há uma significativa concentração de doutrina-
dores que reivindicam posições finalistas, como E.R. Zaffaroni, Heleno Fragoso,
Cezar Roberto Bitencourt, João Mestieri, José Cerezo Mir, Luiz Regis Prado,
Nilo Batista, Luiz Luisi, Cirino dos Santos, Patácia Glioche, entre outros. Isso,
contudo, não impede que, mesmo reconhecendo a posição do dolo no tipo, ne-
gue-se sua fundamentação ontológica:
A presença do dolo no tipo de injusto dos delitos dolosos é hoje aceita
quase unanimemente na Ciência do Direito Penal alemã e pela imensa
maioria dos penalistas espanhóis. No ent'lnto, rechaça-se, cm geral, que a
inserção do dolo no tipo possa ser deduzida de considerações ontológicas,
concretamente, da estrutura finalist.1 da ação humana, como pretendiam
\Velzcl, Armin Kaufmann e Maurach.323

A posição de negação da fact!ta ontológica articulada com a afirmação de


suas consequências dogmáticas é reforçada por Cerezo Mir. A colocação da von-
tade no centro de sua teoria criou problemas para Welzel, em especial quanto aos
crimes culposos. Nesse sentido, Fragoso afirma:
\X1clzcl buscou resolver o problema. afirmando que a finalidade nos cri-
mes dolosos é ª'"ª'' ao passo que nos crimes culposos é potencial, pois
estes podem ser evitados através e atividade finalística. Esta concepção
foi objeto de críticas irresponclíveis. Não é possível conceber a existência
de ação culposa, qualificada pela finalidade como potencialmente evitável,
sem que isto envolva, desde logo, um juízo sobre a culpabilidade. Impõe-
-se de pronto uma valoração que o juízo sobre a evita.bilidade implica, de
modo que nos crimes culposos não é possível separar a culpabilidade da
antijuridiciclacle.324

De acordo com a leitura que CEREZO MIR (1995) faz da obra de \X'elzel,
a finalidade compreenderia, na verdade, as consequências diretas e necessárias
da execução da ação, bem como as consequências previstas e assentidas. Restam
excluídas da finalidade, assim, apenas as consequências não previstas pelo autor
ou as previstas, mas que ele confiou não se produziriam.325

;:u FRAGOSO, Hdc:no Claudio. Op. Cit. p. 19.


m CEREZO MIR,José. O ft1111/is1110, hojr... p. 43.
324
FRAGOSO, Hdc:no Clau<lio. Op. Cit. p. 22.
lZS "Para \X'dzd, fin:ilid:i<lt: t: ,·ont:idt: dt: realização são sinônimos. Por isto, opõe-se: à intt:rprt:tação
t:strit:1 cb finalidade, st:gundo a qual comprt:t:ndcr-st:-i.a unicamente as const:qui:ncfas que consti-
tuíam o fim pt:rst:hiuido pdo autor t: as que: considerava nt:ct:ssariamcntt: unidas à sua rc:ili:tação.
Afast:1 ainda Wdzd a extcn::ão !proposta por Engischl da finalidade a todas as consequi:ncfas
prt:vistas pdo autor como possívcis,,. CEREZO .MIR,José. O Ji11ali111101 hojr... p. 40.

100
A formulação teórica sobre o dolo, como proposta por \Velzel e repetida
por inúmeros manuais, remete à consciência e à vontade de realização dos ele-
mentos objetivos do tipo. 326 Isso permitiu interpretações jndicando que a fina-
lidade referia-se ao próprio tipo, levando Cerezo ~fir a afirmar a incorreção em
falar-se em dolo 11atural, quando se trata da formulação welzeliana:
Por isso, não se pode corretamente falar em dolo natural para se referir ao
conceito de dolo de Welzel, ainda que diferençável, sem dúvida, do dolus
malus da teoria jurídica do delito tradicional lastreada no conceito causal
327
de ação e que compreendia a consciência da ilícitude.

A inserção do dolo no tipo torna possível que se trate da distinção entre cri-
mes dolosos e culposos, precocemente, na categoria da tipjcidade; em oposição
a doutrinas anteriores, nas quais essa diferenciação seria fejta na culpabilidade,
com a confusão que levava ao conceito de do/11s 111a/11s. Assim, o tipo dos delitos
culposos passa a compreender uma conduta finalista violadora do dever objetivo
de cuidado, mas cujo resultado não corresponde àyuilo yue o sujeito yueria ou
consentiu. É justamente por meio dessa formulação teórica que \Vclzel consegue
distinguir entre desvalor da ação e desvalor do resultado como algo relevante, em
especial para os delitos culposos.
O desvalor da ação nos delitos dolosos vem determinado pelo modo, for-
ma ou grau de sua realização; pelo dolo, pelos restantes elementos sub-
jetivos do injusto, quando existentes e pela infração de deveres jurídicos
específicos que obrigam ao autor. Nos delitos culposos, o desvalor da ação
é formado pela inobservância do cuidado objetivamente devido. Por sua
vez, o desvalor do resultado nos delitos dolosos e culposos vem represen-
328
tado pela lesão ou perigo concreto a um bem jurídíco.

Penneando a discussão sobre os distintos tratamentos que devem ser dis-


pensados aos delitos dolosos e culposos está a dinâmica entre desvalor de ação
e de resultado, sua complementariedade e a medida de sua relevância a um con-
ceito finalista de conduta. Há quem defenda que o injusto torna-se completo
(Welzel e Kaufmann) ou exaurido (Zielinski) por um simples desvalor da ação,
e há quem defenda a estrita necessidade de um desvalor do resultado para a sua
plena fonnação (Stratenwerth e Cerezo Mir):'2'J
A partir de seu finalismo .mi generis, Cerezo Mir reconhece que as normas
(e seus juízos valorativos) têm por objeto as ações finais, mas para ele isso não

126 \X'ELZEL, H:ms. Drrr,ho pmal... p. 95; CEREZO MIR, José. Ofinalismo, hoje... p. 40.
lrr CEREZO MIR,José. OJi11ali.r1110, hojr... p. 40-1.
)2I CEREZO MIR, José. OJi11nli.r1110, hojr... p. 41.
129
I bidc:m, p. 41.

i\5~~1i~ BIBLIOTECA 101

CIRCULANTE
implica neressan'a111e11/e a inclusão do dolo no tipo. 33° Com o dolo excluído do tipo
- possibilidade sustentada por Cerezo J\1ir e Bockelmann - seria possível, ainda
nessa linha de pensainento, u1na concepção estritamente objetiva (não pessoal)
do injusto. Parece escapar ao autor apenas que o recurso ao elemento subjetivo
no tipo associado à tentativa se deve não apenas para configurá-la normativa-
mente (sob forma de tipo penal), mas para ser possível diferenciá-la de outras
condutas concretamente existentes. 331 Isso porque a conduta é o subjetivo mani-
festado objetivamente.
Quanto à relação entre finalidade e vontade, diz Cerezo Mir:
A identificação entre a finalidade e vontade de realização, que engendra
\'<'clzcl, é discutível, mas aceitável. Ademais, não se entende como correto
que sendo o dolo entendido como finalidade jurídica penalmente relevan-
te (ou seja, vinculada a um tipo dclitivo), o conceito de finalidade adquira
um conteúdo normativo como supõe Roxin. É tão some?tc o ~~lo i~c
adquire um conteúdo, vez que a finalidade se refere a um npo dcliuvo.

Enquanto, de um lado, ele nega conteúdo normativo à finalidade, de outro,


afirma que as fronteiras do dolo impõem a necessidade de critérios normativos
para serem definidas (especialmente nos casos de erro sobre o objeto e a pessoa,
erro sobre o curso causal e abe"atio icftlS). 333

4.2.2 - A relação entre a conduta e o resultado

São comumente elencados três elementos pertinentes à ação: a vontade,


a manifestação exterior da vontade e o resultado (ou evento). São comuns, en-
~)O •
"E imaginável um código penal cm que :is figuras delitfras estejam redigidas de tal forma que
não seja ncccss:irio apreciar elementos subjetivos do injusto; um código penal em que não
se previsse a tentativa, vale dizer, a realização de ações dirigidas pela vontade do agente em
rroduzir um resultado delitivo. De um código penal desta índole derivaria uma concepção
puramente objetiva, despersonalizada, do injusto". Ibidem, p. 44.
"' Sem o recurso ao instituto da tentativa (e aos elementos subjetivos), uma tentativa de homid-
clio seria tah·ez punida como lesão corporal. Entretanto, tal proposta levaria a um retorno :is
discussões qu:indo da ascensão do finalismo - como nas questões levantadas por von \"v'cber
sobre os elementos subjetivos. Com uma concepção puramente objeti,r:i do injusto continuaria
impossh-el se distingtúr, por exemplo, uma injúria de uma brincadeira ou mesmo uma omissão
de uma ausência de conduta.
112
CEREZO MIR,José. O fi11aliJ1110, hojr... p. 44.
ln "O próprio \X'dzel, para determinar se o desvio do curso causal era essencial e deveria dar lu-
gar a uma exclusão do dolo, utilizava o critério da previsibilidade objetiva. Tal desvio seria
essencial se não era objetivamente previsível, quer dizer, previsível pelo ser humano geral.
Na solução dos problemas gerados pelo erro quanto ao objeto (uma das cujas variedades
é o erro quanto à pessoa) e pelo desvio do golpe (aberratio ictus) emprega-se o critério da
equivalência do objeto ou da pessoa do ponto de vista dos tipos de injusto, critério que, sem
dúvida alguma, é de caráter nonnativo". CEREZO MIR, José. Ofinalismo, hoje... p. 44.

102
tretanto, ressalvas· sobre as ausências de alguns desses elementos, como a ma-
nifestação exterioT (nos crimes omissivos próprios), o resultado (nos crimes de
1nera atividade) e um. resultado sem movimento exterior (nos crimes omissivos
impróprios). 3l4
A necessária discussão sobre a relação entre o conceito de conduta e o nexo
de causalidade e o resultado - se o primeiro contém os últimos ou não - deve-se
em grande parte às implicações da teoria naturalista da conduta. l-.1aurach, por
exemplo, def1ne-a como a teoria segundo a qual a ação é equiparada a um pro-
cesso de causação.335 .
Conforme se pode observar da obra de Welzel, o resultado interpreta um
importante papel na teoria finalista da conduta. Assim, é tanto pela vontade
quanto pelo resultado que se avalia a justa dunensão da conduta, para ser possí-
vel realizar uma correta desvaloração, seja pela tentativa, seja pela consumação.
A forma diz muito sobre o conteúdo e, assim, o fato de o sujeito ter dirigido sua
conduta desta ou daquela maneira, mesmo que a distinção seja sutil, implica re-
sultados diferentes e, possivelmente, em valorações distintas empreendidas pelo
Direito Penal.
Heleno Fragoso ressalta a ünportância da exigência de modificação no
mundo exterior (ou sensível, segundo f jszt) ou talvez uma modificação no mun-
do social exterior (conforme a teoria normativista, ressaltando que a modificação
não precisa ser unicamente física) porque é mn limite à criminalização da simples
cogitação336 . Sabatini, por outro lado, ressaltava que o elemento comum entre a
conduta ativa e omissiva era sua inflexão antijurídica e não a modificação do mun-
do exterior. ~1aurach, Dohna e Binding preferem expressões como "realização
da vontade" ou "atuação da vontade" (ll?i//ensbelii/(~1111._~ ou IJ1/'illensnm'irklich1111!) 331•
O resultado em Direito Penal, contudo, não faz parte, não pertence, à
conduta propriainente dita. Ele não é intrínseco a ela. Fábio André Guaragni faz
uma pertinente observação:
Tome-se, por exemplo, o art.121 do CP (...). O que é pré-jurídico, dentro da
proposta finalista, foi aperfeiçoado nwna tentativa de homicíclio: escolha do fim ma-
tar, nexo de previsibilidade entre meios escolhidos e. fins (plano material) e, final-
mente, a exteriorização de um fazer dirigido a est-i met'l. O resultado morte, que da
conduta deveria se destacar, é que não ocorre, sendo a conduta - de per si - perfeita,

™ FRAGOSO, Heleno Clauclio. Op. Cit. p. 27.


llS '½ção é igual à causação de wn resultado úpico". :V1AURACH, Reinhart. O ronmto ft11ali1ta... p. 23.
lJ6 "É fomosa a regra de Ulpfano, contida no Digesto: ,o,gi1tttio11iIpoman, 11rmo patih1r (D. 48. 19. 18).

Os glosadores formular-Jm a regra: S"1l11lip1111i1111Ifi1r/11n1 ri 11011 a11in111111. Em :tlcmão há um ditado


antigo, que reza: pensamento não paga impôsto (Crtla11kt11 n11tl Zol!frrr)". FRAGOSO, Heleno
Claudio. Op. Cit. p. 30.
m Ibidem, p. 29 e ss.

103
podendo-se dizer tentada somente às vistis das exigências do tipo. Enquanto cate-
goàa pré-jurídica, a conduta se realizou como atividade finalisticamente dirigida. 338
Há conduta, e não tentati~\ de conduta. Dizer que se trata de um ho1nicídio
tentado não é o mesmo que dizer que se trata de uma tentativa de conduta hutna-
na (que envolveria um homicídio), posto que a tentativa de algo ain<la não é esse
algo. Assim, a tentativa de wna conduta (sua quase cristalização, faltando al6ru1n
de seus cle1ncntos) não é propriamente wna conduta, violando-se o princípio do
1111ll11n1 tri111e11 si11e co11d11clan9 •
Em outras palavms, não se pune a tentati,ra de u1na conduta humana, tnas
uma conduta hwnana plenamente formada, mesmo que mal formada sob a pers-
pectiva do próprio agente (para quem urna das consequências desejadas não foi
alcançada). Ele quis determinada consequência que não ocorreu, e não ocorreu
porque sua conduta não estava dirigida da forma correta para que ocorresse.
Como o Direito Penal trata de condutas, deve se desvalorar a conduta como ela é,
mesmo mal plas1nada e1n relação aos próprios objetivos do agente. Se ele tivesse
dirigido melhor sua conduta, ela teria sido completamente bem sucedida, apre-
sentando um resultado ilícito e seria possível uma valoração distinta. Portanto, o
resultado tem uma importante função de apuração sobre o quão be1n dirigida foi
a conduta ao lesionar (ou colocar em perigo) determinado bem jurídico.
Lembre-se que a essência da teoria finalista é a vontade (dirigida a um fim).
Por isso é preciso cuidado para não cair no subjetivis1no. A influência da vontade
só existe enquanto é possível objetivamente. Portanto, se para duas condutas
aparentemente iguais é preciso recorrer ao elemento subjetivo parn se distinguir
entre, por exemplo, uma lesão dolosa e wna tentativa de homicídio; há casos nos
quais existe resultado e conduta (permeada de vontade), mas há també1n linutes
objetivos a manifestação dessa vontade - como na tentativa supersticiosa.
O exemplo recorrente para se advogar uma aproxitnação de um Direito Penal
da vontade remete a duas ações idênticas - disparo de arma de fogo contra alguém,
por exemplo -, cuja consequência (por desenvolvimento fortuito) é a morte de
uma das vítimas e a sobrevivência da outra. 1\-fas essas duas condutas são apenas
isso: aparentemente iguais. Ora, há claras diferenças objetivas na manifestação das
duas. Se, de fato, elas fossem "idênticas" (como defendem subjetivistas) não ha-
veria outra consequência possível se não um resultado idêntico para mnbas. U1na
lógica análoga é estabelecida por muitos defensores de um Direito Penal calcado
em um exclusivo desYalor da ação, em detrimento do desvalor do resultado.

1111
GUARAGNI, F:ibio André. Op. Cit. p. 155.
1
.,., GUARAGNI, F:ibio André. Op. Cit. p. 155.

104
Hans Joachim Hirsch, problematicamente, incorpora o resultado ao pró-
prio conceito de conduta. 340 Isso traz problemas diretos ao se tratar dos crimes
culposos, por exemplo, e1n que o resultado pode não estabelecer qualquer vín-
culo subjetivo com o agente. Como Hirsch é adepto do finalismo, ele insere o
resultado como elemento da conduta para os delitos dolosos e o retira para os
culposos, pois entende não poder vinculá-los ao fim perse&rttido.341 Em um con-
ceito de conduta que inclua o resultado proposto pelo sujeito, não havendo esse
resultado (crimes culposos), não haverá conduta.l'42

4.2.3 - O problema da função de unificação

Cabe ressaltar como mesmo alguns autores finalistas não reivindicmn uma
função de unificação da conduta final, ou seja, entre aqueles que defendem uma
limitação objetiva ao normativismo, passando pelo finalismo, há quem entenda
que 1nes1no assi1n não há como se dispor de um conceito aplicável a delitos tão
diversos como os dolosos, culposos, omissivos e comissivos. Essa é a posição
defendida, por exemplo, por Armin Kaufmann e Cerezo ~Iir:
A omissão não é ação. Entre a ação e a omissão a única nota comwn é a capa-
cidade de ação e est:1 não permite elaborar wn conceito 1:,,enérico de condut:1. O
conceito de ação finalista e o de omissão a ele referido (não reali7.açào de wna
atividade finalism que o sujeito podia reali7.ar na situação concreta) p<}dem cum-
prir a função de elemento básico, ainda que não unitírio do sistema.343

José Cerezo lviir assume uma posição singular entre os finalistas. Ele seria
um finalista não ontológico/44 pois afirma o conceito final de ação negando, ao
mesmo tempo, uma pretensão ontológica e, co11sequenternente, urna pretensão
unificadora da conduta. Ainda ligado à referência da finalidade potencial como
resposta inicial dada por \Velzel a al6TUns problemas que assolavam o finalismo,
não resta outra alternativa a Cerezo 1'Iir a não ser negar a própria possibilidade
de um conceito omnicomprcensivo de ação. Não obstante, para ele, o conceito

.wi 1-IIRSCI-I, Hans Joachim. l ..11 polil11irn m tomo dr la nrrió11 J' ln teoria dei i1yi11to m la rir11ria pmnl
nltn1a11a. Bogotá: Univ. Externado de Colombia, 1993. p. 44 e ss.
141
É válida, nesse sentido, a crítica de Guar:igni, quando afirma que um conceito ontológico, cm
princípio, não pode ser um para os delitos dolosos e outro para os culposos. Cf. GUARAGNI,
Fábio André. Op. Cit. p. 156-7.
142
GUARAGNI, Fábio André. Op. Gt. p. 158-9.
141
CEREZO MJR,José. O ft11(1/iJ11101 hojr... p. 43.
3,« "O Direito deve partir, deste modo, do conceito finalista de ação. Não significa, a rigor, um con-
ceito ontológico, mas torna-se vinculante p-.im o Direito sempre que este tenha como ponto de
partida a concepção do homem como pessoa"; ou aind:1: "Essa função - como demento b-.isilar
- encontra-se satisfeita se o conceito de aç:fo ou omissão permite uma interpretação plau:-frd,
convincente, de todos os tipos de injusto". CEREZO MIR, José. O ft11nliJn10, hojt... p. 42 e 43.

105
finalista de conduta pode cumprir a função de elemento base se permite uma
interpretação coerente de todos os tipos de injusto.>15

4.2.4 - Co11d11tas omissivas

O finalis1no foi 1nuito criticado por sua reivindicada inaplicabilidade aos cri-
mes omissh·os e culposos. Aos crimes omissivos porque há casos onde inexiste
nexo causal e, quando há nexo causal, ele não se deve à conduta do agente (não
é o sal\'a-vidas desatento que afoga o banhista). Como os delitos omissivos não
seriam uma simples inação, mas um não realizar algo mandado, sua determina-
ção estaria Yinculada a uma norma mandamental e impossibilitaria, em tese, sua
estipulação pré-típica (ou pré-nonnativa). Assi1n, a possibilidade de mn conceito
de conduta que englobe também os delitos omissivos é rechaçada por diversos
autores, desde Jescheck até Roxin.346
Existirmn formas distintas de se lidar co1n a propalada dificuldade do fina-
lismo em oferecer uma resposta adequada aos crimes omissivos. Uma das respos-
tas possíveis é que um fazer diverso do mandado (ali11d ag,,re) também compõe
uma conduta hu1nana; ou seja, não é porque a conduta não é juridicainente rele-
vante (ou seja, não está prevista no tipo) que ela não é conduta. 347 Aparentemente
antecipando embrionariamente (guardada a devida proporção) a necessidade de
mn fundamento ontolôgico, certos autores (co1no Hehnuth ~1ayer, infra) aproxi-
mam algumas formas de manifestação da omissão à ação. Isso é especialmente
significativo para aqueles que recorrem à necessidade de a omissão ser uma ma-
nifestação da vontade.
r\ maior parte dos autores defendia a conduta positiva simplesmente como
a atividade corpornl (Kó'rperbe1veg1111g ou facere) que dá vazão à vontade; outros,
poré1n, dcfcndiain que não só dessa forma a conduta positiva se manifesta. ()s

>ts CEREZO MIR,José. O fi11"/is1110, hoje... p. 43; "(...) como GRAP 7.U DOHNA já fi1.cra, \'VEL-
ZEL afirm:i que a caractcristica constituti\'a <la omissão é a <lominação finalista potencial <lo
fato (polmliellr ft11"lt Talhernrh,f!). E, assim, não se exige para a omissiio um ato de Yontadc arual,
bast:mdo um possí\'cl ato da pessoa". PRAGOSO, Heleno (l:tudio. Op. Cit. p. 53-4.
w, GUARAGN l, P:ibio André. Op. Cit. p. H,7.
~., "( )ra, o fato de não interessar ao direito penal cm que com.is te o efeitoJ,,z.er levado a cabo pelo
omitente (exceto par.i simbofür.ar um ali11d ,1g,rrt cm relação à norma) n:io altera cm absoluto o
fato de que, prcteritamente ao direito penal, houve uma conduta humana, segundo o enuncia-
do ftn:ili!õta, ou seja, um fazer fi11t1I. Ao contrário: isto reforça a ideia de que pré-juridic;1mente
há uma ação, sendo-lhe necessário e correspondente um conceito. Note-se que o salva-Yidas
cst:í a praticar uma conduta humana: pré-ngura a morte de um <lado banhist:1 como f1nalidade
sua (...), sol>redctermina mentalmente e pc>c cm marcha meios que o ocupam nestas [outras]
:iti\·i<ladcs e que implicado a não-sah·ação do banhista sujeito a um curso causal já cm dcsen-
w,lvimcnto (...)''. GUARAGNI, Pábio André. Op. Cit. p. 170.

106
autores discordantes distinguem, dentro da conduta positiva, entre uma conduta
(positiva) dinâmica e estática (l'alleggiamenlo di11a111ico e slalico). A primeira seria sua
fonna 1nais comu1n (a 1novimentação corpórea propriamente dita) e a se6>unda
seria estabelecida por um "esforço de permanência", por exemplo, a violação de
domicílio na forma permanecer (art.159 CP). Sobre essa discussão, acrescenta
Heleno Fragoso:
Para Hclmuth Maycr (...) a inatividade corpórea constitui, juridicamente,
um fazer e um comportamento ativo, quando exige a mesma quantidade
de energia volitiva (111/'illmseurr.Rie) contrária ao direito, que a ati\'idade po-
sitiva. A mãe que deixa de alimentar o filho, portanto, não pratica uma
0111isúio, mas uma ação (1i111). Decisivo seria o uso comum da linguagem
(1/(J/iirlirhe Sprar~~ebraurh), que nesse caso afirma que a mulher mata. Asúa
(...) também entende que naquele exemplo não h:í omissão, mas crime
puramente comissivo. E e\'Ídente que concepções como estas levariam à
perda de todo critério objetivo nesta importante matéria.348

Historicamente, a punição da omissão é algo problemático, desde antigas


posições que defendiam que o não fazer não poderia ser punido, passando por
posições modernas afirmando que deveria ser punido de forma mais branda,
chegando às posiçôes que não conhecem distinções de intensidade de punição.
Como esclarece Fragoso (1961, p. 38), a razão por trás da omissão como algo de
menor gravidade se deve à ideia de que a conduta positiva exigiria a resolução e
o ato potencial, enquanto a omissão não.
A causalidade estruturada sobre a omissão começou a se tornar problemáti-
ca com o advento das propostas da teoria da causalidade e a necessidade de uma
imputação física mais rigorosa da ação deütuosa. A discussão sobre a causalidade
da omissão foi alvo de inúmeros debates modernos, mas ela "não era problemática
para Feuerbach e os autores de sua época, bem como para os guc os precederam.
1
Boehmero ahnnava: 0111isrio 11011111i1111s eJJm/11111110.,111111 prod"cit, q11a111 co111111isrio".·1,1•
Conforme delineado primeiramente por Heirich Luden, dividem-se am-
plamente os crimes omissivos cm omissivos próprios e impróprios {comissivos
por omissão): os delitos omissivos próprios violam uma ordem e os impróprios
violam uma proibição ao absterem-se de uma atividade - mas são dependentes
da superveniência do resultado. Acrescente-se que Grispgni entendia existir tam-
bétn crimes de 01nissão de evento, seb>undo os quais a norma ordenaria ao indi-
víduo que realizasse uma específica modificação no mundo exterior. De forma
mais pormenorizada:
lvfanzini, por seu turno, admite a existência de crime omissivo mediante
ação, que Battaglini (...) julga admissível quando a pr<'>pria lei pre,·ê uma
11
~ FRAGOSO, Hdt:no Claudio. Op. Cit. p. 35.
9
M lbidt:m, p. 38.

107
ação como causa da não Yerincaçào de um evento comandado (como na
contravenção do art.702 do Código Rocco: permitir que pessoa menor,
incapaz ou inexperiente, porte ou leve arma). Contra esta concepção,
obsen-a-se que, se o comando se refere ao evento, a norma penal exige a
ação em vista de sua capacidade causal, enquanto sen•e a impedir a super-
,·eniência do e,·ento (GUARNERI, il delitto di on1iJSione di soccorso, 1937, p.
24). Petrocelli assinala também que para o direito só tem relevância, em
tais hipóteses, o não cumprimento dos atos que se devia cumprir (Pri11cipi,
p. 303), e que não existem comandos ou proibiçc,es de eventos, mas, so-
mente, de açôcs (p. 301).350

Essa é uma questão central, pois o Direito Penal deve ter por escopo con-
dutas e não eventos (result:idos). O contrário itnplicaria a ideia - em consonância
com a defesa das funções preventivas da pena- de que ao invés da não realização
de uma conduta, o agente deveria se preocupar com a não realização de um resul-
tado. Isso refletiria em uma expansão dos crimes omissivos, com a consequente
expansão da posição de garante, o problema latente na dogmática construída ao
redor do resultado - a imputação objetiva.
Heleno Fragoso resume a questão de forma clara:
A omissão é uma realidade, um fato externo, perceptível através dos sen-
tidos (concepção naturalística), ou é apenas uma criação da lei e, como
tal, uma irrealidade espacial, 9ue somente surge em face de uma exigência
estabelecida por uma norma (concepção normativa)? O desenvolvimento
doutrinário desta indagação processou-se com o estudo da causalidade
nos crimes comissh·os por omissão, matéria que desde logo preocupou
os autorcs:351

Quem defendia uma abordagem naturalística dos delitos de omissão (Aní-


bal Bruno, José Frederico i\farques, Carnelutti, ~fagbriore e outros) entendia que
a omissão é uma espécie de comportamento que se encontra na natureza e pode
ser constatada pelos sentidos, não haYendo qualquer necessidade de referência às
normas, a qual teria apenas a função de atribuir relevânci.t jurídica a essa 01nissão.
\Xldzcl e Gallas argumentam, em oposição, que a on1issão não existe em si
mesma, mas apenas como a omissão de uma ação específica. Seria indispensável
um ponto de referência nonnativo e, portanto, a 01nissão não existiria co1no re-
alidade em si, mas apenas a partir da imposição normativa, a qual cria uma ação
esperada. Na realidade existiria apenas (em alguns casos) a inércia.
E1n esforço posterior, recorrendo à ideia de conduta biocibernética, \Velzel
tenta responder a essa questão sem abrir mão de uma elaboração omnicompre-
ensiva para a conduta:

FRAGOSO, Hdc:no Claudio. Op. Cit. p. 39.


)Y•

m lbidc:m, p. 39.

108
De maneira sumária, portanto, a primeira das críticas fica rebatida ao per-
ceber-se que na omissão há também uma escolha de um fim e meios res-
pectivos, consistentes não em conduzir um curso causal que leve ao fim,
mas simplesmente em exteriorizar comportamento que leva a resultados
diversos (adrede e concomitantemente considerados), que não intercep-
tem um curso causal - já fluente e não desencadeado pelo agente - capaz
de levar ao fim que de início antecipou biocibecneticamente (morte do
banhista, no exemplo antedito). 352
Não é possível ignorar, assim, que a conduta omissiva também elege um fim
e os meios para atingi-lo, podendo violar uma norma penal na sua execução: o
trabalho de salva-vidas é executado de tal forma que não impede o afogamento
de determinada pessoa. Que ela não possua (não crie) um nexo causal não deve-
ria ser uma novidade e não impede o seu reconhecimento, posto que os delitos de
mera conduta também não têm, em princípio, implicações sobre cursos causais
e nem por isso são questionados. Sua relevância não é delimitada pela criação ou
não de um curso causal - fator mais relevante para os crimes de resultado -, mas
pela lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico.
Heleno Fragoso chama atenção ao seguinte:
Vigorosa corrente procura hoje distinguir, com maior ou menor rigor lógi-
co, a ação e a omissão do fazer ou não fazer. A atividade ou inatividade são
expressões naturalisticas do comportamento, ao passo que ação e omissão
são formas de violação da norma: só em face da norma é possh•el saber se
estamos diante de uma ação ou de uma omissão. O problema projeta-se,
assim, no plano da tipicidade, onde deve ser resolvido. Ação e omissão
constituem valorações jurídicas da conduta.353
De um ponto de vista neokantiano, a omissão é um juízo. Não obstante, é
possível uma apropriação crítica das considerações de tendência neokantiana. O
11011,enj11ris conduta ativa ou omissiva tem relação com a forma co1no a norma se
relaciona com o indivíduo, seja por uma proibição ou por uma ordem - deve-se
ter em mente a consideração de Kelsen de que toda norma com forma proibitiva
e1n sua forma mais sintética se expressa por wna ordem e todo mandamento,
em sua forma mais sintética, reduz-se a uma proibição.354 Assim, se a norma de-
termina que se realize ou não se realize determinada conduta, isso não diz coisa
:m GUi\Ri\.GNl, Fábio Andn:. Op. Cit. p. 172.
-'~' FRAGOSO, Heleno Claudio. Op. Cit. p. 32. Em sua obrn sobre condut3, Hdcno Fragoso
aproxima-se de: uma posição m:okantiana, a '-lual irá, posteriormente, rt:formul:u.
1
~ "Como j:í deixamos cntrc,·cr, a atividade e n inatividade:: não correspondem à ação e à omissno
como formas de conduta punfrd. É csscncial t:St.'lbdeccr esta distinção b:ísicn, pois aqui cst:í
o nervo da qm:stão. (...) Ação ou omissão são as formas pdas quais é transgredido o comando
contido na norma, ou seja, modalidades de conduta com as quais sc dcsatcndc às exigências do
direito". FRAGOSO, Heleno Claudio. Op. Cit. p. 177.

109
alguma sobre a ação humana propriamente dita. A ordem pode dcternunar que
se faça algo e o indivíduo pode não fazê-lo sem que haja, necessariamente, uma
conduta (à qual se apenar). A classificação entre critnes comissivos ou 01nissivos,
então, diz respeito às determinações normativas, delimitando os parâ1netros de
sua violação quando há conduta, e não diz respeito à conduta em si. Por isso
mesmo, os crimes omissivos não precisam ser cmnetidos sempre pda distensão
muscular, a pessoa pode realizar qualquer outra ação ativamente, e os crünes em
princípio comissivos podem ser realizados por um meio omissivo (crimes omis-
sivos impróprios).
faz todo sentido que ação e omissão só possam ser analisadas no próprio
tipo. Consequentemente, para as teorias contemporâneas que excluem a conduta
como etapa necessária à teoria do delito ou mesmo albruns teóricos da itnputação
objetiva que incorporam uma conduta normativizada, perde-se, portanto, um im-
portante filtro, pois trata-se de etapas claramente distintas: conduta de um lado,
ação e omissão do outro.

4.2.5 - Condutas culposas

A dificuldade da teoria finalista para lidar com delitos culposos, segundo Ce-
rezo ~fir, se dá porque o resultado não "pertence" à ação final realizada pelo agen-
te; 3ssim "o resultado fica fora do nexo causal, pois não estava incluído na von-
tade de realização e, em muitos casos (culpa inconsciente), não tinha sido sequer
previsto". Apesar de pertinente, não parece inteiramente justa a consideração de
Cerezo ;\1.ir. Não se pode dizer que, seja quando previsto e não querido (culpa
consciente) e imprevisto e não querido (culpa inconsciente), o resultado fique
fora do nexo causal levado a cabo pelo agente e, portanto, não "pertença" a ele.
\Velzel tenta criar uma articulação entre o papel da vontade e o papel do resultado
(seja ele produzido ou não) para a constatação da conduta como uma obra; essa
articulação entre ação e resultado assume uma fórmula conhecida na obra de
\Vclzel sob os termos dcsvalor de ação e desvalor de resultado, e u1n contínuo
esforço de complementaridade de ambos. 355
A tentativa de composição entre o finalismo e os delitos culposos levou
\Velzel, em determinado momento, a recorrer a uma finalidade potencial que
existiria nas condutas culposas. Cerezo Mir, contudo, nega categoricamente a
utilidade dogmática da finalidade potencial, pois ela representa a conduta culposa
pela ideia de uma causação evitável rnediante uma atividade final, o que acaba por

;;~ "Segundo este último lo rcsult:idul, é possível determinar se, e :ité que ponto, a ação realiza
ou não sua obra: a direção final do acontecer; se urna consequência desejada não se produz, a
ação resta apenas lmtada, cm rebçio a ela; se se produz, acrescenta-se :io valor ou ao dcsvalor
da ação um ,·alor ou des\'alor, ulterior, do resultado". WELZEL, 1-lans. O 11oro si1t,·111a... p. 53.

110
antecipar a valoração da culpabilidade (pois diz respeito à possibilidade de agir de
modo diverso). A inserção do binômio previsibilidade-evitabilidade na conduta,
por 1neio da ideia de mna causação evitável, seria inservível porque:
Não é possível determinar o âmbito do objetivamente previsível e evit:ívcl
no plano 011/0/~~ico. A fixação do nível de conhecimentos que há de servir
de base para determinar a previsibilidade objetiva não é possível sem uma
valornção do que se pode exigir. No plano ontológico cabe determinar
o âmbito do previsível e evitável pelo indivíduo (...), mas não o que é
objetivamente previsível e evitável. A relação entre a ação final e o resul-
tado, nos delitos culposos, não pode ser estabelecida, portanto, mediante
o conceito de ação, mas apenas na esfera t'aloraliva e concretamente nos
tipos de injusto. 356

Como esclarece \X'clzel, contudo, para um tratamento correto dos delitos


culposos também é preciso recorrer a uma ideia da ação humana como uma
obra. Então, a vontade que direciona a ação humana, ao estabelecer uma fina-
lidade, deve escolher os meios para atingir a esses fins, considerando-se outras
conseyuências concomitantes ou alternativas. Os tipos, referentes aos delitos
culposos, são abertos já que o juiz deve completar o tipo por meio da referência
ao dever objetivo de cuidado, pela previsibilidade objetiva (como na causalidade
adequada) e pela "prudência" na conduta (e a referência welzeliana, neste caso,
é ao motorista prudente e consciencioso, aquilo que é socialmente adcquado). 357
Acrescenta \Velzel:
Ayui está a diferença decisiva cm relação à doutrina da ação causal. Dado
yue esta vê no resultado e não na ação o elemento decisivo do injusto,
teve yue relegar a falta de observância do cuidado objetivo ao conceito de
culpabilidade, com as consel{uências que foram expostas (...).358

A produção do resultado, penalmente desvalorndo e que se estabelece rnm-


bé1n co1no ele1nento necessário à caracterização dos crimes culposos, deve resul-
tar especificamente da inobservância do dever objetivo de cuidado, justamente
para fugir da punição de deveres inüteis. Se, no caso concreto, o resultado ter-
-se-ia produzido de qualquer forma, não se pode dizer que ele resulta especifica-
mente da inobservância do cuidado devido.

}5(, CEREZO MIR,José. Nota dt: Rodapé nºS. ln: \X'ELZEL, Hans. O llfJl'O sütr111t1... p. 51.
35
.., "No proct:sso dt: limitação do concdto de cuidado podt:m ser est:ibdccidos também cc:rtos
princípios gc:rais de: car:ítc:r 111nlr1it1/, isto ~, princípios da c:xperii:nci:i sobn: :t vincubç:io de: dc:-
tc:rminados perigos a certas formas dt: conduta, às quais são int:rc:ntt:s, e: sobre: as mc:di<las m:tis
adequadas para e,·itnr esses pt:rigos. Entre os últimos, os mais conhecidos são os da lrx nrtis d:1s
c.livcrs:is profissões. Regras Jc:sse tipo existem cm todos os setores dtais,,. \'\1ELZEL, I bm. O
1/tJl-'tJ .rist,·111,1... p. 99.

\\li \X'ELZEL, H:ms. O 11u1.•u sistmw... p. 103.

111
Se uma objeção comumente levantada contra a teoria finalista foi sua difi-
culdade explicativa ao abordar os crimes culposos, essa suposta dificuldade pare-
ce razoavelmente esclarecida quando se nota como, na direção da ação, os "fins
intermediários"359 têm tanta rclcv:tncia quanto os fins últin1os. Nesse sentido,
esclarece \'(,'elzel:
Aqui se observa, com toda clareza, a diferença existente entre o conceito
causal e o finalista de ~,ção; e essa diferença deriva de haver sustentado,
a doutrina da ação finalista, a função essencial da resolução da vontade
na direção e contibruraçào da ação. O conceito causal de ação só nos diz
que houve ação - por existir uma manifestação de vontade (e no resultado
coincide até aqui com a doutrina da ação finalista), mas não nos diz q11al
ação (nem nos dá informação alguma a respeito de suas características
ou circunstâncias) e tampouco permite deslindar a ação dos processos
puramente naturnis. As consequências 11ào queridas da ação ticam fora do
nexo final e sua produção é um processo meramente natural, ainda que
tenham su:t origem num mm•imento corporal Yoluntário. O conceito cau-
sal de ação não pode - sem negar-se a si próprio - deslindar a ação dos
processos meramente naturais, precisamente por prescindir do co11tnído da
Yontade. Não me parece correta, por isso, a objeção de que a ação causal
coincida com a ação final cm seu valor funcional (vide, por exemplo, nesse
sentido, Rodrí&ruez l\Iuiioz, Ln dorhi11a de la arció11 Ji11alista, p. 132; Arthur
Kaufmann, Dai Srbuldp,i11zip, 1961, p. 173; e Gimbernat, La rnusalid(,d eu
Derrrbo Penal, .r11111atio de Dererho Pma~y Cimrias Pma/es, 1962, p. 550 e ss.).
A inclusão do dolo ou do cuidado objetivamente devido no tipo não pode
se dar, consequentemente, partindo do conceito causal de ação. 3úo

Se é incorreto falar que, nos crimes culposos, o fim {1ltimo é juridicamente


irrelevante - basta recordar os crimes preterdolosos -, como faziam alguns au-
tores, não é de todo errado afirmar que, frequentemente, a finalidade última é
juridicamente irrelevante, como em muitos crimes culposos de trânsito. Como a
m:irca distintiva dos delitos culposos é a dissonnncia entre o resultado e a vontade
do sujeito (quer ele tenha vislumbrado ou não a possibilidade desse resultado in-
desejado), a relação meio-fim da conduta adquire especial capacidade explicativa.

4.3 - Crimes de mera suspeita e a função de delimitação ( o perigo


de um retorno ao norma tivismo)

Há, sem dúvida, um forte retorno contemporâneo ao normativismo, com


a consequente ofuscação da perspectiva ontológica. Apesar da refutação do fina-
lismo, são aceitas em grande meruda as consequências dogmáticas que ele ajudou
m \'X'dzd usa c:sse termo para se referir à antecipação dos diversos atos que precisam ser realiza-
dos para se chc~ar ao fim último. \VELZEL, Hans. O 110110 sisl,·111n... p. 48-9.
lU• \'X'ELZEL, Hans. O 1101VJ n11"'"'··· p. 50-51.

112
a construir. Trata-se de um normativismo, como ressalta Cerezo Mir, "que se
relaciona, de certo modo, com aquele dominante na Ciência do Direito Penal
europeia sob a influência da filosofia jurídica neokantista".361
Nesse sentido:
Pois bem, se o Direito parte da concepção do ser humano como pessoa,
como ser responsávd, tem-se como essencial para a valoração jurídica a
estrutura finalista da ação humana. Só a conduta finalista emerge, então,
como conduta especificamente humana e pode ser objeto de valoração
jurídica. O Direito deve partir, deste modo, do conceito finalista de ação.
Não significa, i rigor, um concc:ito ontológico, mas torna-se vinculante
para o Direito sempre que este tenha como ponto de partida a concepção
do homem como pessoa. Um conceito de ação diverso do finalista seria
não só incongruente, como inútil e fonte de equívocos na construção ou
interpretação dos tipos de injusto. O normativismo encontra aqui um li-
mite insolúvd. 362

Sem o devido respeito à estrutura lógico-objetiva da conduta humana como


base de sucessivas valorações, pode-se perder sua função limitadora, o que teria
por consequência um acréscimo potencial de uma normativização do Direito
Penal, que, por sua vez, representa uma maior exposição do sujeito ao poder
punitivo. Isso se torna mais inteligível ao se recorrer aos óbices propostos por
Mezger ao reconhecimento do dolo como elemento essencial do tipo (um ar!,>u-
mento eminentemente metodológico): estaria plenamente disponível ao legisla-
dor eleger qualquer elemento da conduta - dever-se-ia dizer, "da realidade", já
que, desnaturado o conceito finalista de conduta, perde-se parte do controle que
se poderia exercer sobre o legislador em seu esforço criativo do tipo - a fim de
uma disponibilização ao dcsvalor proposto pelo Direito Penal.
Um conceito eminentemente ôntico, transforma-se em normativo, pois
pode ser determinado pela norma (ampliando-se sua abrangência potencial) -
sendo assim, sua limitação também seria normativa e (por ser normativa e não
ôntica) estaria, portanto, muito mais suscetível à manipulação político-dogmática.
Retomando-se a polêmica Welzel-Mezger, haveria a possibilidade, por exemplo,
nos casos dos crimes culposos, constatando-se o nexo causal entre a conduta
e o resultado desvalorado, de criminalizar-se uma não conduta. Nem todo fe-
nômeno que apresenta a aparência de conduta, constatada a ausência de dolo,
é necessariamente uma conduta culposa; podendo não ser, em absoluto, uma
conduta. Com estabelecimento de critérios estritamente normativos (violação do
dever objetivo de cuidado e incremento do risco) abre-se a possibilidade de uma
inaceitável ampliação de criminalização: como nos casos de atos reflexos durante
l6t CEREZO M(R,José. O fi11t1/iI1110, hojt... p. 42.
362
Ibitlcm, p. 42-3.

113
a condução de veículos automotores. Como no clássico exemplo, se voa um:i
mosca contra os olhos de um motorista, enquanto está em uma velocidade alta,
e ele reage automaticamente, perdendo parcialmente o controle do veículo (so-
1nentc o suficiente para causar lesôes corporais em alguém), a primeira barreira
à interpretação judicial, que seria a ausência de vontade final, resta esvaziada e
deve-se esperar para saber qual ser:í o entendimento do julgador sobre a violação
ou não de um dever objetivo de cuidado.
As espécies de conduta punível que a doutrina contempla são a ação em
sentido estrito e a omissão. Todavia, nem sempre a ação e a omissão têm sido en-
tendidas como as únicas formas do comportamento punível. ~fanzini procurou
introduzir a categoria de crimes de mera suspeita, os quais constituem atuação
positiva ou negativa. Incrimina-se a situação apenas pela suspeita que provoca.
f-atos puníveis desta natureza seriam as contravenções previstas nos artigos 707 e
708 do Código Rocco, os quais punem a posse de chaves alteradas ou falsificadas
e petrechos para arrombamento, bem como a posse suspeita de dinheiro e obje-
tos de valor. Afirma ~fanzini que a posse não é ação nem omissão, mas sil11açiio, e
que a origem ou causa de tal posse não tem eficácia constitutiva.363
A ofuscação da importância da conduta em sua relação com a teoria do deli-
to leva ao perigo de retorno dos crimes de mera suspeita, como outrora procurou
introduzir ~1anzini, ou de propostas análogas. 364 Crimes de mera suspeita seriam
aqueles que se realizariam não por uma conduta positiva ou negativa, 1nas por
uma simples situação - a qual, pe1a suspeita que levanta, seria forte o suficiente
para ser criminalizada. Essa espécie de delito atingiria, por exemplo, a posse de
instrmnentos de fins reconhecidamente delituosos (chaves falsificadas, apetre-
chos para arrombamento de portas, para furto de carros, etc.) e também a posse
de valores de origem suspeita. O penalista brasileiro Benjamin de Moraes associa
os delitos dessa espécie às incriminações de fórmulas como "ter em depôsito" e
"trazer consigo". Pica claro como, ao se jogar a conduta para um segundo pla-
no, abre-se a possibilidade de extensão da incriminação a atos preparatórios ou
condutas neutras, especialmente quando o início da execução para se configurar
a tentaúva em muitos crimes concretamente considerados nem sempre é clara,
mesmo que não sob a rubrica declarada de "crime de mera suspeita".

)(,) FRAGOSO, Hdc:no Clauclio. Op. Cit. p. 33.


364
Os delitos dt: posse desfrut.1m de um gr::mde potencial :mtidemocrático. Elc:s são objeto de
poli:mica até hoje em toda doutrina. H:í qutm considere que sejam instrumentos de redução
do ônus probatório, "crimes de 11t11t,I' (E.-J. L1mpc), criminalizações de c:stados ou situações
(E-C. Schroedcr), uma aproxim:tç:io da punição de maus pens:imc:ntos (O. J...1gudny), c:tc. Uma
ótima c:xposição sobre o tema pode ser encontrnd:i em: LOfü\TO, José Danilo Tavares. Pt111u-
mn1t1 do1 m111u de puur. Rc:\·isc:t Jjberd:idcs, n. 12, j:m./nbr. 2013. p. 104-128.

114
Fragoso faz a seguinte ressalva:
PETROCELLI, mostrando que os exemplos apresentados eram reminis-
cência de antigas leis de polícia mal elaboradas, atirmava que ao Direito
Penal não interessa, nem pode interessar, que surja uma suspeita; somente
pode interessar que se faça existir uma conduta, positiva ou negativa, ca-
paz de fazê-la surgir. Por outro lado, é evidente que não é possíYel conce-
ber sanção onde não haja infração de um comando. Outros autores enten-
dem que a própria posse constitui ação; que a posse pressupõe a ação, ou
que constitui uma presunção de ação. Outros ainda afirmam que aqui a lei,
embora se refira à condição ou situação, incrimina verdadeiramente uma
atividade: a de nela colocar-se ou a de nela permanecer, havendo, assim,
conforme o caso, uma ação ou omissão.365

Se Pctrocclli afirmava que crimes como os de mera suspeita eram heranças


das antigas legislações policiais, tanto ele quanto Bettiol afirmam não ser possível
haver sanção sem infração a um comando. Antolisei entende que a própria posse
já constituiria uma ação. Nelson Hungria e Hellmuth iv!aycr entendem que a ação
é um pressuposto da posse. Bettiol também afirmava que a ação é pressuposto
da posse. Já 11ezger, Grispigni e Jimenez de Asúa defendiam que a etiqueta de
"condição", na verdade, encobre a incriminação de uma atividade: a ação de, nes-
sa situação, se colocar ou de permanecer nela, a primeira como ação e a segunda
como omissão.
Contemporaneamcnte, quando se trata de um retorno ao normativismo, a
forma como isso se dá é, amiúde, por meio de urna reinterpretação da articulação
entre conduta, nexo causal e resultado. Isso é razoavelmente claro em alg11n1as
formulações associadas às chamadas teorias da imputação objetiva:
J\ presença da inobservância do cuidado deYido no tipo de injusto dos
delitos culposos tem precedentes anteriores ao finalismo e é hoje aceita
quase com unanimidade na Ciência Penal alemã e pela maior parte da
doutrina espanhola. A discussão se fukra hoje em saber se o dever de cui-
dado deve ser considerado como um de,·er objetivo, cujo conte{1do seria o
cuidado necessário para o desem•olvimento de uma atividade social deter-
minada, como entende a opinião dominante, ou de uma forma subjetiva,
em que cada pessoa estaria obrigada unicamente a empregar o cuidado
ou a diligência que lhe fosse possível, seb1undo sua capacidade. O avanço
do normativismo se manifestou no desenvolvimento da moderna teoria
da imputação objetiva de resultados. Não basta que exista uma relação de
causalidade entre a ação e o resultado típico, mas ainda é preciso, diz-se,
• imputave
que o resu ltado seJa • , l a, açao
- (ou a• onussao
• - ).366

JGs PRAGOSO, Heleno Clauclio. Op. Cit. p. 33-4.


JG6 CEREZO MIR,José. Oft11aliJ1110, hoj,... p. 45.

115
Esse processo de imputação se dá por meio do cun1pritnento do requisito
que o resultado seja uma realização do perigo (criado ou aumentado) pela condu-
ta do autor, e que seja objetivamente previsível em uma perspectiva ex ante. Essa
é uma contribuição válida na medida em que, por ela, não se abra mão da função
limitadora da conduta finalista. Critérios normativos de imputação deve1n somar-
-se e não substituir os marcos ônticos do finalis1no.
Explique-se: (1) nos crimes comissivos dolosos, os critérios norn1ativos de-
vem servir justamente para limitar o nexo causal, o que pressupõe o seu reconhe-
cimento como u1n fenómeno natural (não nonnativo) de forma a somar-se a ele.
O movimento oposto (de substituição desse critério natural por um normativo)
tem se visto na doutrina recente com os crimes de perigo abstrato, por meio dos
quais ocorre uma crescente flexibilização do nexo causal rumo à sua nonnativi-
zação, causando uma expansão desarrazoada de poder punitivo; (2) nos crimes
omissivos (onde é amplamente aceita pela doutrina a inexistência de nexo causal)
há um risco ainda maior de uma completa normativização, justainente porque
sequer a necessidade do reconhecimento de uma conduta final é um critério
majoritariamente aceito como fundamento e limitador, quando há violação de
um mandamento.

4.4 - Uma ontologia normativa?

A função de limitação da atividade de criminalização primária e a conse-


quente limitação de poder punitivo restariam bastante prejudicadas se se che-
gasse à conclusão de haver, por baixo da estrutura ontológica construída para
abarcar a teoria do delito, um pilar normativista. Há quem afirme que mesmo a
concepção ontológica possui um inalienável traço normativo em sua teoria da
conduta. Essa é a controversa posição defendida por Karl Heinz Güssel:
De un gran número de formas de conductas humanas ella [a teoria fina-
lista) elige nquclla que debe considerarse como penalmente rclevnnte, y
esa clección es hccha con una racionalidad final scgún cl criterio de un
Derecho Penal humannmentc legítimo. (...) Si el ordenamicnto penal con
la formación dei concepto cligc objetos pertenecientcs ai mundo exterior
como penalmente relevantes, cntonces clla no puede pasar por encima de
b cstructura y contenido prcjurídicos de dichos objetos. La formación dcl
concepto sólo puede clegir como ncción penal relevante aquella identifica-
ble como conducta humana, pero cuál de estas formas de conductas hu-
manas deben ser valoradas como penalmente relevantes no se dctcrminaní
mediante la estructura de estas formas de conducta, sino que se regirá por
las cxigcncias pcnalcs.3(,?

7
lc. GÜSSEI.., Karl Hcinz. Op. Cit. p. 39.

116
O argun1cnto erigido por Gossel carece, contudo, de uma base sólida. O
reconhecimento de elementos lógico-objetivos na teoria do delito serve para for-
necer subsídios à construção de um Direito Penal coerente. O que se discute com
isso é a teoria e não a prática, pois o sistema penal é, na esfera prática, um ato de
poder. Empreender uma análise realista do sistema penal e aceitá-lo como um
ato de força não i1nplica, entretanto, o reconheci1ncnto de que qualquer teoria
reivindicável tenha neccssarütmcntc um pressuposto normativista.
A função da teoria do delito, e, nesse caso específico, da teoria da conduta,
é fornecer critérios coerentes e democráticos no esforço de criminalização de
condutas; 1nas se reconhece que, em última análise, qualquer ato de poder não
está vinculado a nada a não ser a si mesmo. Em modelos democráticos de socie-
dade, contudo, referências lógico-objetivas têm a importante função dogmática
e retórica de apontar limites à atuação do legislador, desde que haja respeito à
estrutura legal estabelecida. A título de exemplo, diante de uma possibilidade es-
tendida de tipificação, na qual fosse possível a criminalização do envelhecimento
(ou qualquer outro processo natural), o escopo ampliado de política crimin~I
que pode incluir ou excluir determinados processos naturais (como o envelheci-
1nento, o cair das folhas, etc.) a princípio em nada influencia o próprio processo
natural e sua correta conceituação teórica.
Aden1ais, a partir de uma perspectiva ontológica, não existe qualquer pre-
tensão de apontar-se todas as condutas que devmn ser criminalizadas. Pelo con-
trário, há, na verdade, o intuito de estabelecer fronteiras a partir da proposta
democrática autorreivindicada de não criminalizar aquilo que não for conduta
- estados existenciais, crenças, etc. A diferença que Güssel não percebe é a prô-
pria distinção entre ser e de.1 er-.rer. Apesar de haver vínculo entre os dois, não há
1

uma relação de determinismo entre um e outro, ou seja, não é possível se deduzir


cxaustivfünente do .rera esfera do dn·n'-.re,:
Não parece ser possível, por isso, atribtúr ao finalismo pressupostos nor-
1nativos. Ao menos não segundo as linhas de argumentação desenvolvidas e ex-
trapoladas até agora.

117
5 - AS TEORIAS SOCIAIS
Não há propriamente um único conceito social de ação. Não obstante, as dife-
rentes abordagens, as mais célebres das quais são as propostas por Eberhard Sch-
midt, Hans-Heinrich Jescheck,Johannes Wessels e \Verner Maihofer, 3611 possuem
alguns pontos de convergência. Há quem chegue a esta concepção como uma
cligressão do causalismo (Schmidt369) e quem o faça pelo finalismo (Jescheck) 37º
- tentando superar as dificuldades e objeções que a1nbas as teorias encontraram
à medida que ganharam notoriedade -, mas o principal foco de convergência é o
desenvolvimento de um conceito de ação cujos efeitos sociais sejam seus traços
distintivos. A ação se1npre teria, portanto, wna relevância (ou um sentido) sodal.371
As primeiras pistas sobre essa teoria podem ser encontradas na década de
1930, nos escritos de Eberhard Schmidt, ao definir a ação como um fenômeno
social cujo efeito se dirige à realidade social, em um comentário ao Tratado de
von Liszt e novamente, alguns anos depois, em seu livro sobre o médico no Di-
reito Penal e outros textos. 372
Diz Eberhard Sch1nidt que o foco de preocupação da teoria da ação deve ser
com os comportamentos estimulados pela vontade e que atingem (ou poderiam
atingir) a esfera existencial de outrem. O comportamento humano, por seu caráter
social, receberia u1n SÍ!,1'flÍficado que não pode ser delimitado somente a partir dos
l(,IJ Outros nomes conhecidos são K:irl \'Volff (Das Problm, der Ht111dlm,g im Strefrtrhl, 1968), Anhur
Kaufmann - cuja!- ideias são esboçadas no tópico sobre a teoria pessoal da ação, apesar de sua
concepção ser muito próxima também da concepção social, para que um capítulo não fique mui-
to sobrecarregado cm detrimento de outros - (Dit 011/0/ogisrht Stmkt11r der Handlm,g, 1965); Ernst
\X1olff - também com uma concepção próx.im:i à teoria social, mas apresentado na teoria pessoal
- (Dit uhn l'011 der H,md/111,g, 1970); Thomas \'fürtenberger (Die gei1ligt Jil11C1lio11 der dt11/1dm1 Slra-
fred1lnJ1Üsmsrh,!Ji, 1957). Cf.ZAPFARON (, E.R.; BAT[STA, Nilo [et :il.}. Direito pmal brarileiro, \'oi.
ll, 1. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 91-2;JF..SCHECK, Hans-Heinrich; \'vEIGEND, Thomas.
Trat"do de dencho pe11,1f. parte general. 5. ed. Granada: Comarcs, 2002. p. 2,9.
3<,9 O fato de ser possível considerar uma digressão do causalismo não significa que compartilhe
com o causalismo o papel que este atribui à causalidade. O próprio Schmidt critica essa inter-
pretação. Cf. SCHM(DT, Eberhard. Teoritr da açiio soda/. IJ!-boa: AAFD, 1983. p. 179. Nota 1.
l 7o N:io obstante, algun!- autores consideram esta corrente teórica como uma r:imitic:içiio do

neokantismo. Cf. LU(S[, Lui,:. Op. Cit. p. 34 e ss.


371 7.APPARONl, E .R.; BATlSTA, Nilo [ct ai.}. Dirrilo pr11c1/ brnsiltiro, ,·ol. II, 1. Rio de Janeiro:
Rcvan, 201 O. p. 91-2; \'VESSEJ ..S, Johanncs. Direito pmal (aspectos fundamenta.is). Porto Alegre:
Fabris, 1976. p. 20. Não p~•rece absurdo, então, ver nesta teoria um precursor das teorias comu-
nicativas.
37z Dit 11,ilittiiisrht Strtrji,111111d ihr Tiüer, 1936, p. 22-3; Der A,z! in, Strafrrrht, 1939, p. 78 e ss; Das

Stngrerhtspraktik,1111, 1949, p. OS e ss, etc. Cf. ZAFFARONI, E.R.; BATCSTA, Nilo [ct al.J. Di-
reito penal brasiltiro, Yol. II, 1. Rio de Janeiro: Rev:in, 2010. p. 91; JESCHECK, Hans-Heinrich;
\X1 EI G END, Thom:is. Op. Cit.p. 221; SCHM lDT, Eberhard. E/ 111rdiro t11 ti derrrho pen,1I. l\,ladri:
EC;'\1, 1955. p. 18; SCHMIDT, Ebcrhard. Trori"··· p. 180. Nota 2.

119
patamares do pensar e do querer dos agentes. Em outras palavras, a compreensão
da ação depende de seu sentido estabelecido objetivo-socialmente.173
O exemplo usado por Schmidt é o da irmã menor que, ainda se1n do1ninar
completamente wna língua, obedece às ordens maliciosas de um irmão mais velho e
repete uma frase injuriosa para a professora, pensando tratar-se de uma frase elogiosa.
Nesse caso, haveria wn sentido objetivo que coshm1a ser co1npreendido co1no 1nani-
festação de insulto e, então, independeria da vontade do interlocutor (o que ela queria,
pretendia ou pensava que dizia). O efeito da frase dita e, assim, o sentido social do
comportamento e1n questão teriam independência da vontade do agente. A vontade
só volta a tomar-se relevante pelo tipo penal para ser possível a não criminalização da
irmã que achmrn estar fazendo algo distinto do efetivamente realizado.374
Apesar do enfoque de sua teoria, Sch1nidt não abre mão de reconhecer a
importância do nexo causal - enquanto vínculo entre ação e resultado - para o
significado da ação, quando se trnta especialmente de tipos que exijam uma modi-
ficação no mundo exterior. l\fas mes1no o nexo causal é imbuído de sentido social,
caso contrário não seria possível distinguir-se entre diferentes causações (como na
teoria da equivalência): disparar e fabricar a arma, ambas, são contribuições causais
ao resultado desvalorado, 1nas possue1n significados sociais distintos.375
O ponto de partida para a análise da responsabilidade penal passa a ser o
resultado (ponto de vista que adquire especial relevância nos delitos omissivos
imprôprios)376• É possível entrever, em suas considerações dog1náticas, uma ten-
tativa de se afastar de um "naturalismo datado" e aproximar-se de ideias focadas
no 11alor social. Isso assume wna especial relevância quando ele propõe contrapor-
-se às concepções que buscam estabelecer litnites naturais ao crime de aborto,
querendo recorrer a critério biológicos para estabelecer o fim da condição de feto
e o início da condição de homem (o limite entre aborto e homicídio).377
Da mesma forma, fala sobre o sentido social da intervenção cirúrgica, para
matizar sua análise como uma espécie de lesão corporal permitida pelo paciente
Qesão corporal justificada) e, assim, contextualizá-la;37is sobre a teoria da opor/Jmi-
dade para tratar da contextualização da intervenção médica se1n o consentimento

PJ "P:ira a comunid:1dc: social, as :icçõc:s aprc:sc:ntam-sc:: como unidades de sentido social funcionais,
:i sc:r, antes de: mais, comprec:ndidas da mant:ira como ti:m de: ser intc:rprt:tadas tm função das
concepções, c:xpt:rii:ncias e:: hábitos da existi:ncia social". SCH~UDT, Eberhard. T(orin... p. 182.
174
"Só quando nos aproximamos da valoração jurídico-penal rdativa a est:1 'acção', e: que:: intc:rc:ssa
pondc:rar que: a pc:qut::nita considerou a sua actuaç:io como acto dt gc:ntiltza t: não como algo
de:: injurioso". Ibidem, p. 185.
l'!t lbidtm, p. 186-8.
7
l • SCHMIDT, Eberhard. E/ 111,diro... p. 39-59.
:m Ibidem, p. 15 e:: ss.
71
) lbidc:m, p. 31-2.

120
do pacientc;179 sobre o .u~~nijicado sociológico da relação médico-paciente a fim de
compreender melhor os deveres profissionais em diferentes realidades (e deter-
minar 1nelhor a questão da intervenção médica negligente),3iw etc.
No entanto, significado social da conduta e critérios objetivos por vezes pa-
recem se confundir, pois Schmidt toma por significação social o que frequente-
mente são critérios científicos, médicos, etc., os quais, muito embora sejam práti-
cas sociais, possuem clara ancoragem lógico-objetiva.381 O tratamento médico (a
lesão com finalidade terapêutica), por exemplo, não seria típico pelo significado
social da conduta382 - muito embora o próprio Schmidt reconheça, por exemplo,
a necessidade de critérios objetivos para a correta intervenção médico-cirúrgica
(a chamada /ex artis), a fim de se estabelecer seu "sentido social".383
O 1nesmo raciocínio pode ser estendido aos acidentes de trânsito (como
alguém que atropela sem querer e sem poder evitar uma criança que corre para o
meio da rua), pois a conduta só seria típica em função do significado social (ad-
quirido pela violação das nonnas de trânsito), rejeitando-se a explicação de que
se trata de uma causação típica justificada pela inevitabilidade (Schõnke-Schrõder)
ou pelo ,isco permitido (Baumann).384 E, assim, sucessivamente.
3711
Ibidem, p. 38.
380
SCHI\-IIDT, Ebcrhard. E/ 111rdfro... p. 45, 48.
381
"O sentido social do seu comportamento não é o de um acto de tratamento (...). A ele tam-
bém pertence o intervir de forma medicamente correcta, a espécie de inten·enção cinírgica
objectivamente profo-sional. O acto de um faquista que produz o rebentamento de um abcesso
distingue-se, portanto, da imen·ençào de um médico conducente ao mesmo resultado, não só
pela direcção subjectÍ\•a da vontade (a intenção) mas também e antes de ma.is, pelo método de
execução perigoso, algo que de um ponto de vista objectivo, é inteiramente um método não
médico, .1bsolutamente o último (a ser usado) ainda que afinal tudo corr-.1 bem e 'nada ma.is se
tenha passado"'. SCHMIDT, Eberhard. Teoria... p. 190.
382
"O tratamento médico ligado a um ferimento não é, de acordo com o seu significado social,
uma acção tipica Gustificada pelo consentimento) no sentido do §223 a. A discussão sobre isto
jamais estará encerrada, mas ficará circunscrito ao círculo dos juristas não poder compreender
a atividade médica quanto ao seu significado especifico". Ibidem, p. 191.
383
"Tendo o médico, porém, no caso concreto, observado o dever de w-irante mediante compor-
tamento objectivamente adequado, de,·e afastar-se o resultado danoso ocorrido e não evitado,
para efeitos d.1 determinação do sentido social da sua actuação. A inten·cnçào cirúrgica deter-
minante da morte não tem o sentido de uma 'acção de matar'. Não se tornam aplicáveis os
tipos legais dos §§ 211, ss. Com isto desaparece qualquer necessidade de fazer intcn·ir uma
causa de justificação". Ibidem, p. 194.
.lf.l "Perguntando-se qual o significado social de facto de um automobilista, comportando-se de
forma inteiramente correcta, ter causado danos, só pode haver, de acordo com a natureza
das coisas, uma explicação racional: o automobilista niio consegiúu evitar ferir, ou matar, wn
passageiro que salta do eléctrico p.1rn frente do automó,·el. Conformemente ao seu sentido o
comportamento do automobilista não pode significar ma.is nada. Mas sendo assim, tudo se
resolve ao sabor dos princípios dos crimes omissivos impróprios. Já que o condutor, tal como
resulta do exemplo escolhido, observou o dever de garante, fazendo tudo o que é necessário e

121
Sem embargo, Schmidt também reconhece que frequentemente não é pos-
sível se estabelecer o sentido social das ações sem recorrer-se à vontade, como
em muitos casos de crimes omissivos. De fato, se pensarmos no caso da tentativa,
fica dificil argumentar que há uma distinção visível (no exemplo de um disparo
de arma de fogo, a diferença entre a tentativa de lesão corporal ou de homicídio
e alb,uém que quisesse acertar apenas próximo) que possa ensejar arb,u1nentos de
um sentido objeti\'o-social, ao qual se possa recorrer dispensando a vontade. No
entanto, ele insiste tratar-se ainda de uma questão de significado, mas, dessa vez,
de um significado que às vezes precisa ser traçado até a vontade. 311~
Outros aspectos da teoria geral dos delitos reverberam consideravelmente
as considerações desse professor de Leipzig. Este é o caso do crime continuado,
o qual deve sua possibilidade do!:,ttnática a uma 1111idade de sentido. A mesma pon-
deração caberia à distinção entre unidade e pluralidade de delitos, pois não seria
suficiente recorrer-se ao caráter uno do ato (ao se plantar uma bomba ou enve-
nenar uma fonte de áb,ua é possível realizar diversos delitos ao mesmo tempo),
como no concurso formal de crimes.386
A tese de Schmidt acaba se consolidando em traços um tanto normativos,
pois se torna recorrente o recurso de critérios como a /ex artis e as nonnas de
trânsito para se determinar o sentido da conduta. Está a um passo de distância de
dispensar quaisquer elementos intelectivos (cognição e volição) para se constatar
se há ou não conduta e1n caso de omissão, por exemplo. 31r· De qualquer maneira,
o último bastião de segurança para se determinar o sentido social de algo parece
ser o apelo à sensatez do legislador e do juiz, esse unicórnio que todos perse-
bJUimos no Brasil. 3118 A flexibilidade de um apelo por sensatez é em certa medida

:idc:quado no sc:ntido de: impc:dir a produção do dano, o resultado causado pdo atropdamento
não representa uma :icção de matar, ou forir, cart:cida de justificação". Ibidem, p. 194-6.
llS SCHM!DT, Ebc:rhard. TrQrÍ,1... p. 189.
116
!bidc:m, p. 197-8.
ll'l "(...) o 'significado social' caracteriza como 'acção', quer o caso em que um determinado rtsul-
t:1do é: produzido por um fazer acti,·o, bem como o caso em que a produção de determinado
resuludo é: possibiliuda por não st tc:r c:vit:1do prt:cisamc:ntc: este: resultado. (...) Os problemas
dos.,rmáticos que nascem da dift:rença entre causar activamente o resultado e não impedir o rc:-
sult.1do, não rc:sidc:m portanto no :imbito do probh:ma da 'acção' mas sim na questão de saber
sob que pressupostos o não impedimento do resultado assim como a produção do resultado
mc:diante um fazer :icth·o, é: wna acção juridicamente rdevante, e: uma acção 'úpica'. Que esta
e: uma quc:sriio residente no :imbico da valoração jurídica, e: algo de que: não dc:vc:ria poder
du,·idar-se hoje em dia. Só existe agir 'úpico' quando aqude cujo comportamento se: apn:scnta
como 'não impedir o rt:sultado' não observou o dc:,•c:r jurídico rc:spons:ívd pda não produção
do n:sult.1do, isco é:, o dever de: fazer tudo aquilo que: é: adequadamente: nt:cessário com vista a
impedir o mesmo result.1do (o chamado dever de: garante)". Ibidem, p. 198-9.
• "Na minha opinião, o conceito de: 'natureza das coisas' representa quer para o legislador, quer
par:i o juiz o apdo 'irrt:cus:h-d' de toda a valor:içào jurídica - seja geral, quanto :io lc:gislador,

122
intencional, e se deve em parte à preocupação de Schmidt em não dar azo (como
Welzel e Stratenwerth) a um aprisionamento do legislador e do juiz.3119
Hans-Heinrich Jescheck parte da ad1nissão de que a finalidade é, de fato, o
traço essencial da conduta hwnana, pois ela é a capacidade para dirigir os cursos
causais, fato que delimitaria o lugar do ser humano na natureza. Mas não de qual-
quer conduta hu1nana, e sitn da co11d11ta h11111ana ativa. O problema, portanto, não esci
especificamente no reconhecimento das fronteiras ontológicas da conduta, mas em
que elas se aplicariam aos delitos comissivos. Disso decorre a necessidade de se dar
conta da 01nissão (por seu caráter normativo), e ser a conduta omissiva algo que se
agrega à conduta ativa como uma segunda categoria de comportamentos.3911
Segundo Jescheck, constata-se uma omissão quando -em razão de normas
jurídicas, morais, de costu1ne ou da experiência - se espera uma ação positiva,
e ela não ocorre quando era possível sua execução por meio da realização da
finalidade. A possibilidade de realização da ação omitida é um elemento central
para a otnissão e re1nete à possibilidade de direção da co11d11ta (por isso, mesmo na
omissão a finalidade teria relevância).
Nesse quadro conceituai, de um lado, Jescheck nega a possibilidade de se
criar utna unidade superior para ação e 01nissão, mas, de outro, afinna que a
omissão desvela uma forma de manifestação do comportamento equiparável à
ação positiva. Em outros termos, ele rejeita a possibilidade de se unir ação e
omissão etn u1n nível ontológico porque a omissão não seria uma conduta final
em si (pois a expectativa de uma conduta é exterior à conduta omissiva), mas
acolhe a possibilidade de unir ambas em um nível normativo, a partir de uma
perspectiva valorativa já que materialtnente seria impossível/"
Não se trata tanto de uma união, mas de uma sí11lese que deve deduzir-se da
relação do sujeito com o seu entorno. O adjetivo social na teoria desse professor
de Freiburg designa, portanto, que a ação é um con1portan1e11lo h11n1ano co1JJ tra11s-
ce11déncia sociaf, e por comporla11Je11to ele quer dizer qualquer resposta da pessoa às

seja cspc:cial e: rdati\':t ao caso cuncrt:to, llu:tnto :10 juiz; uma comprt:t:ns:io do st:ntido social
racionalmente corrt:spondt:ntt: à rt::ilid:tdt: social a proct:dt:r o objeto qualificando. Qu:rndu nos
rt:ft::rimos à naturt:za das coisas tt:mos em vista a comprecnsào st:nsata t: corrt:ct:t do significado
social do fonómt:no em causa". lbidt:m, p. 200-1.
ll'1 "É sc::mprt: tão claro o compum:ntt: nt:gativo da funçiio da naturt:za das coisas, ddinidora
do contt:údo jurídico, quando dda rcsulta o lugar comum dt: que: só aquilo qut: e: 'rt:aliávd'
~ que:: pode:: st:r ordt:nado legalmt:nte c entendido, quão cepticamc:nte de\'t: ser julgado o seu
compont:ntt: positivo. Deve: portanto evitar-se vc:r na natureza das coisas uma fórmula m:í!-,rica
profunda t: subjact:ntt: a tudo (...)". Ibidem, p. 201-2.
191
' JESCHECK, H:ms-Ht:inrich; \X'EIGEND, Thomas. Op. Cit.p. 238.
391
Ibidem, p. 239.

123
exigências de uma situação (reconhecida ou reconhecível), por meio da realização
de uma possibilidade de reação que cada uma dessas situações oferece.-192
Para Jescheck, então, seriam três as formas possíveis de 1nanifestação do
comportamento humano: arão ft11af. o efetivo exercício de um agir final; ação i111-
pn1de11lr-. a causação de consequências não desejadas, quando o desenvolvimento
dos acontecimentos podia ser dirigido pelo intennédio da finalidade; ou 0111issão:
quando é possível expressar o comportamento por meio da inatividade diante
de uma expectativa de ação (a qual não precisa ser jurídica), que também exige a
possibilidade de se dirigir a conduta.393
Não se deve tomar, entretanto, a ideia de transcendência social do compor-
tamento como uma subversão do postulado .rodelas delinq11ere no11 potes/ ou como
um ataque à ideia de que a ação não pode ser algo alé1n daquilo que produz
o indivíduo. De fato, seria possível dizer que uma conduta tem transcendência
social quando, além de dizer respeito à relação do sujeito com o seu ambiente,
seus efeitos afeta1n este ambiente. É, assim, justa1nente dessa característica (de
transcendência) que Jescheck deduz a necessidade de manifestação exterior da
conduta (a qual, na omissão, faz surgir a simétrica exigência da ausência dos efei-
tos que teria1n ocorrido co1n a realização da ação).394
A partir dessa concepção de ação, ele imagina dar um conceito suficien-
temente abrangente para se compatibilizar com todas as manifestações de con-
dutas humanas, sem, contudo, realizar concessões à suposta necessidade de se
antecipar juízos normativos cabíveis aos demais estratos do delito - seja o tipo,
a antijuridicidade ou a culpabilidade - realizando também, por conseguinte, a
função negativa da ação. 395
É pela articulação da flmção negatÍl'a com o requisito da possibilidade de direção
que Jescheck revela os casos de ausência de conduta nos atos reflexos, inconsci-
ência, vii ab10/11ta, impossibilidade de ação (co1no no exe1nplo de quem se omite
por estar amarrado), 3% as atividades originadas de grupos de pessoas e aconteci-

l'i.?Ibidem, p. 239.
17
> Ibidem, p. 239-40.
j')4 JESCHECK, Hans-Hdnrich; WEIGEND, Thomas.Op. Cit. p. 239-40.
195
·'Dd concepto social de acción se dtduce negati,·amente d círculo de modalidades de conducta
que dtsde un principio no son ttnidas tn cucnta para la imputación ptnal. Esta función nega-
tiva tS umbi1:n n:conocida por quienes se opontn a un conctpto gem:ral dc acción''. Ibidem,
p. 240.
1" Como j:í se:: mencionou, o concdto de rapnridndr 1,rrnl dr nrào pt:rtcnce de:: antemão ao próprio

concdto de omissão: "La omisión sólo puede ser entendida como rt:alización de la posibilidad
de re:icción que se le presenu a la persona de acuerdo con su naturaleza; si puede ser afirmada
con carácter gc::nc::ral la capacidad para cmprtnder la acción esperada mcdiante la puesu en ac-
ción de la finalidad. Por c::ste moti,·o, la capacidad general de acción ptrtenece ya al concepto
de omisión en t:I sentido de un 'comportamento con trascendencia social,,. lbidc:m, p. 241.

124
mentos puramente internos (opiniões, ideias, sentimentos, etc.). A possibilidade
geral de ação (em contraposição a uma possibilidade individualmente considera-
da), particularmente, diz respeito ao âinbito geral da conduta para a imputação,
por isso a possibilidade de ação deve fundamentar os delitos omissivos.397
Afinal, a função da ação seria a de delimitar substancialmente o âmbito
daquilo que é possível atribuir-se ao sujeito, mas o essencial das categorias do de-
lito (delimitadas pela ação) seria desenvolvido por meio de critérios e princípios
especificamente jurídico-penais.398
Johannes Wcssels também reconhece a conduta como pedra an!,>1.1lar do
Direito Penal e o fato injusto como fundamento da responsabilidade jurídico-
-penal. Assim, o ponto inicial para as investigações em âmbito penal deve partir
de ponderaçôes sobre se um acontecünento específico preenche os elementos
do injusto e se pode ser atribuído ao agente como obra de sua livre vontade. 39'}
Esclarece Wessels que o traço distintivo do homem é que ele leva, em si, uma
imagem do mundo gravada em representações v.tlorntivas. Por meio de sua poten-
cialidade criadora, valendo-se dessas representações, consegue transformar seu meio.
Ele defende, em parte, a correção da teoria finalist'l, mas entende que ela é insuficien-
te, pois a expe1iência nos revelaria toda sorte de condutas as quais não caminhariam
dentro das limitadas margens do modelo finalista. Este seria o caso das manifestações
impulsionados pelo subconsciente e também da maioria das omissões.400
Para esse professor de l\.fünster, ação é toda conduta sociahnente relevante,
dominada ou dominável pela vontade. Com isso, a teoria social da ação supos-
tamente ofereceria uma solução de conciliação entre as posições ontológica e
nonnativa. Em outras palavras, ela conseguiria abarcar (a) a vontade e sua mani-

397
Ibidem, p. 241.
3911
"La función dei concepto de acción se agota en caracterizar y delimitar sustancialmente el
ámbito que generalmente se cuestiona para la imr,utación penal. Ahí reside también su valor
sistemático. Por el contrario, del concepto de acciún social no pueden ser deducidas conse-
cuencias para la estructura de los conceptos de la antijuridicidad y culpabilidad. El marco de
ambos elementos materiales de la cstructura dei delito es en realidad tr.izado por d concepto de
acción en su sentido más amplio, pero su desarrollo emuial se consigue de acuerdo con critérios
específicamente jurídico-penales". Ibidem, p. 242.
m "Esta visão parte da seguinte seqüência de pensamento: pena pressupõe culpa (...). ú,/pdz-r/ só pode
ser wn fato a111!}11rídiro. Sobre sua anújuridicidade ou juridicidade só precisam ser investig.idas ações
típicas, e típicas no sentido de um dctermin:i.do tipo de delito e não pode ser o 9ue ainda não consti-
tua wna aç,io no sentido do Direito Penal. Nesti sequência sistemático-funcional das ,lgreg:i.d:i.s fa.,;es
de valoração, <1ue não devem, em todo caso, ser concebidas corno reais comp-.irtimentos entan9ues,
a arão constitui o elemento relacional, que percorre conjuntamente todos os estágios do raciocínio
jurídico e estabelece a referência para os subordinados processos de valoração (Maihofrr, Der Han-
dlunh~begriff im Verbrechenssystem, 1953, págs. 7 e ss.)". \'<'ESSELS,Johannes. Op. Cit. p. 17.
"'.,. Ibidem, p. 21.
125
fcstação (aspecto ontológico) e (b) fim do agente e expectativa normativa sobre
a conduta (aspecto de sentido social, que contempla as exigências normativas).4 °'
Dessa forma, "socialmente relevante é toda conduta que afeta a relação
do indivíduo para com o seu meio e, segundo suas consequências ambicionadas
ou não desejadas, constitui, no campo social, um elemento de juízo de valor".402
Usar como ponto de partida a relevância social seria usá-la já como uin indício
de ação. Se alguém quebra alguma coisa valiosa, há uma relevância social sobre a
qual restaria inquirir se a ação era dominável. Parece haver a aproximação de uma
aparência de ação pela lesão de bem juridico.403 Isso parece se refletir de al!:,,,.una
forma em sua indicação de que "onde, como na maioria dos casos, não subsiste
qualquer d1í1·ida acerca da 'qualidade de ação' é admissível e indicado associar-se ime-
diatamente a pré-análise do 'atuar' à análise da realização do tipo''404. Por outro lado,
a ideia de rcle\'ância social parece, estranhamente, proporcionar a possibilidade
de se analisar, ainda da etapa da verificação da conduta, se há tipicidade material.
Ressalte-se que, para \X1essels, é possível constatar condutas sem os ele1nentos
cognitivo e volitivo, pois esses elementos não se inserem na conduta até o irúcio
da manifestação exterior da vont1de. Seria assim especialmente porque a omissão
se caracteriza justamente pela não constatação dos efeitos da ação (esperada).4º5 De
resto, os casos de ausência de vontade são os mesmos encontrados no finalismo e no
causalismo, como tis absoluta, ato reflexo, hipnose, etc., porque falta dominabilidade.406
Paralelamente, a capacidade de ação que se pressupõe à própria conduta diz
respeito às "forças naturais da vontade" e, por isso, encontra-se em qualquer pes-
soa natural com relativa independência do estado mental (pessoas com doenças
11
" Jbidcm, p. 22.
"l2 Ibidem, p. 22.
«iJ "A e: B \~1\Jeiam pela exposiç:io anual de produtos. Em frente ao 'stand' do comerciante H, em sc-

qüi.-nci:i a uma troca de pala,·ras, B desfere, repentinamente, wn violento soco no peito de A Este cai
sobre os ,-:isos de cecinúc::1 expostos à ,-end1 por H, dos quais muitos resultam quebrndos. (...) No
Caso Pr:ítico, a ro11d11111 de A é 'socialmente rclc:v:mte', pois afetou o patrimônio do comerciante H e
:issim interesses alheios. Questionávcl é somente se da ern tunbém domin:ível pela ,·ont:ade de N'.
\X'ESSELS,Johanncs. Op. Gt. p. 16 e 22. \'Vcssds, conrudo, apura essa considernção e, ao constatar a
:ausc:nci:i de dorninabilicbde, nega que haja aç:io: ''A quooa de seu corpo não ern nem dominad1 nem
dominável pda ,-ontade de A; este acontecimento não lhe pode, na verdade., ser imputado como 'ação',
nus sim ao prmucador B. Em conseqüi:nci:i da forç:i exterior sobre si, A tomou-se wn 'instrumento'
nas m3os de B; pr:iúCllllcntc ocorreria o mesmo, se B tivesse golpeado nos ,-:1sos de H com qualquer
outro objeto inanim.,do". Ibidem, p. 23. Contra a ideia de apari:nci.1 de aç:io proporcionada pela rele-
,-:inci:i social, poder-se-ia lev:int:ar, ,rm!ade s<.ia elita, o futo de ele indicar - em principio - a superação
de et:tpas anteriores à an:ílisc da rde\':incia soci.11 (a qual é prontuncntc dispensada em caso de "ausên-
ci.1 de Jú,ida" quanto :t c.xistênci.1 de açiio). lbidt.111, p. 24.
~ \'<'ESSELS, Joh:innes. Op. Cit. p. 24.
.,,,, "O pr111,1r e o q11rrtr humanos não preenchem as características do agir, enquanto niio se tenha
iniciado :i manifest:iç:io tXltrior d,1 vo111adl'. Ibidem, p. 23.
..,, Ibidem, p. 23-4.

126
mentais podem agir) e da idade (quem ainda não atingiu a maioridade pode agir).
Por isso, deve ser devidamente discriminada da capacidade de culpa:1º1
Ta1nbé1n para \X'erner Maihofer a ação é compreendida como conduta social-
mente relevante, ou mais especificamente como conduta controlável objetivamente
pelo homem e dirigida a um result'ldo social previsível objetivamente.◄08 Ou, de
fonna mais abrangente, a conduta é uma conexão (ou síntese) entre o agente e o
objeto da ação, uma conexão concreta (e não um "objeto" como consideram o
causalismo e o finalismo). 409 Esta ideia de co11exão, aliás, lembra consideravelmente
as propostas apresentadas nos primeiros passos das teorias da conduta, expostas na
introdução desta monografia, que buscavam equiparar ação e imputação.
No entanto, suas considerações sobre o Direito se destacam por serem
extremainente ricas e profundas em suas referências teórico-filosôficas, quando
comparadas com a maioria dos demais autores (sejam de sua corrente teórica ou
não). Ele reconhece (como Schmidt e tantos outros) cert'l 11al11reza das coisas (a
qual impõe lilnites 1naiores ou menores ao homem), a qual, nele, não se confunde
com a acepção metafísica corrente:110
Contra uma metafísica apoiada no neokantismo e no neotomismo, a qual
aponta wna orde1n de valores objetiva e prefixada, que formula exigências e possui
validez absoluta, Maihofer propõe urna aproximação de perspectivas existmcialislas,
com aportes de Nietzsche, Heidegger e até Sartre. Em sua proposta, o ôntico não
aparece 1nais co1no wna ideia na qual o homem se funda (ou urna essência encarna-
da no homem, como a noção de ima._~o Dei), mas vincula-se à sua existé11cia 110 n111ndo.
O homem seria, então, tanto um produto da "ordem imanente" das circunstâncias
quando de sua própria decisão. Essa margem existencialista da discussão, na qual o
homem se apresenta como essência objetiva no mundo, parece ser um tanto tribu-
tária da herança heideggeriana e seu conceito de Da.sei11. 411
Maihofer, assün, aproxima-se de wna concepção da essência humana en-
quanto conjunto de relações sociais ou a soma das relações nas quais está imerso.
Uma aproximação de um Direito natural "histórico" ou "sociológico", o qual
ele intitula de Direito 11atural exisle11cial. Com isso, o homem passa a ser percebido
◄in lbidt:m, p. 23.
41)11 Ibidem, p. 20.
◄<J'> COSTA, Alvaro .Mayrink da. Troria da nrifo: as grnndc:s objeções ao conceito final de ação. Re-
vista da El\IERJ, v.2, n.5, 1999. p. 200.
•uu MA!HOFER, \X'crncr. EI dcrt:cho n:itur:tl como dcrccho c:xistcncial. ln: A1111nrio dr Fi/01oft1 dr/
D,·n·d1fl LX, 1962. p. 09-15.
411
"Scgún t:sta conccpción dd hombrc como 'scr concn:to', como 'cscnci:1 objctiva' en d mundo
r
qm: t:ncontrnmos a la vez en d existt:ndalismo cn d matc:rialismo actualcs, d hombrt: no cs
un 11gelfl pnn, si, d hu111brr, fn:ntc a un objdo m sí, d 1111111du, sino un sc:r que:, t:mto c:n d ordcn dd
conocimit:nto como en d de: la acción, c:s sin rt:misión y sin sc:paración un slfirlo-objeto, llJ111Jd()-
-ho111bn dt:tt:rminado que está alú, tn estt: su mundo». lbidcm, p. 15.

127
como um ser concreto, sua essência é o ser soria/, e ao mesmo tempo em que é
produto das circunstâncias também é produto de si mesmo. Esse professor de
Saarland chama isso de dialética da 11at11reza das coisas e da 111issào do ho111e111 (ou essên-
cia do homem), ou simplesmente dialética da existência co11cre/a. 412
l\·lais do que isso, l\rfaihofer destaca a estrutura da realidade como intrinseca-
mente contrnditôria, cenário diante do qual o h01nem se vê "johr-ado" no inundo.
Essa é a ineludível nal11reza dt,s roi.sa.r. Uma considerável incorporação do conceito de
derrelicção (Geu,o,fe11hri~ de Heidegger. Este seria o verdadeiro fundamento do Direi-
to: estar e1n wn mundo em constante conflito. Adicionaltnente, o conceito kantiano
de sodabi/id,,de i11.Soriárel - oposição de forças para a socialização e para a individuali-
zaç.10 - supost'lITiente contribuiria parn explicação do antagonismo basilar de toda
sociedade. Para :t\faihofer, todavia, a sociabilidade insociável remonta a situaçc,es su-
perficialmente contrárias (m1lc[f_Ô11icas), as quais podem ser superadas pela busca de wn
denominador comum (unpemtivo categórico), enquanto as situações realmente con-
trnditôrias (a11tinôn1icas) são insupeciveis em razão da própria estrutura do inundo.413
Por isso, o fundamento dos conflitos e do Direito estaria na própria nature-
za do homem. :t\ilas, ao contrário de Kant, rvlaihofer não atribui a graça da nature-
za conflituosa do homem a Deus ou à sociabilidade insociável, tnas à estrutura do
próprio mundo, do qual o homem é um dos reflexos. O caráter insuperavelmente
conflituoso do mundo é o fundamento de todos os conflitos e, assim, do próprio
Direito. No entanto, esse professor de Saarland parece trilhar um caininho bas-
tante tortuoso e filosoficamente rico para chegar à conclusão de que as coisas são
a11i111 porq11e 1õo as1i1JJ Q.e., a vida é conflituosa porque o mundo é conflituoso). 414
Seja ao definir a ação como causação de resultado sociahnente rdevante, como con-
duta (socialmente relevante) dominada ou dominável pela vontade ou como comporta-
mento humano com transcendência social, essas teori.1S padecem do mesmo problema:
a equívocidade de suas conceituaçc1es. As teorias sociais da ação não introduzetn 1naiores
novidades dogmáticas e não conseguem se livrar de certa imprecisão conccitual:ns
412
"Si fa misión del hombre consiste cn producir antes que nada su 'natur~e1.a' a partir de sí
mismo y apoyándosc en una interpretación y dominio comprcnsivos dcl sentido de su exis-
tencia concreta, y 'fijando' de este modo por sí mismo su misión, entonccs lo que hasta aqui
Uam:íbamos Derecho natural adquiere un sentido diferente, cl de un proyecto prcvio de la auto-
-configuración histórica dei hombre". Ibidem, p. 17.
•m MAIHOfER, \'fcrncr. Op. Cit. p. 22-4.
414
"Lo que: hacc ljUe en aquc:Uos casos en que nosotros ayudamos a, o respondemos por, los inte-
rcses ajenos, dcbamos gencralrncntc poner cn jucgo nucstros propios intcrescs y por lo tanto lo
que hacc que se prodw.ca un conAicto entre nucstras incünacioncs socialcs }' las insocialcs, no
es la incap:icidad, la irnpcrfccciém, la 'insociabiüdad' o simplemente la rnaldad dcl hombrc. Este
extrano estado de cosas: q11e ri bim de 11no rea ,gt11eral111r11/e e/ 1110/ ,lel oiro, pnrect lt11er 1111Ji111d,1111mlo t11
la n/mrl11rt1 n1ir111a dei 1111mdo". Ibidem, p. 24. Grifo nosso.
415
Segundo Fritjof Haft essa imprecisão ocorre porque as teorias sociais são uma concepção de
compromisso entre as teorias causal e final da ação. Cf. SANTOS, Juarc1. Cirino dos. Op. Cit.
128
6 - A TEORIA NEGATIVA DA AÇÃO
A teoria negativa da ação foi concebida por Rolf Herzberg, Hans-Joachim Behren-
dt e Harro Otto dentre outros, os quais, em um primeiro momento, caracterizam-
-se pela rejeição das teorias pré-jurídicas de ação (causal ou final). Em geral, essas
teorias vinculam suas formulações ao critério da evilabi/idade (o qual comparece no
código penal alemão416), por isso é possível notar suas linhas iniciais já nas contri-
buições de I-lans Jtfrgen Kahrs (Das Vem1eidbarkeitpri11zjp rmd die co11dido-Ii11e-q11a-
-non-For111el i111 Strafrecht, 1968), quem ressalta a importância do critério da evitabili-
dade, mas dedica menos atenção ao dever de evitar o resultado.'417
As teorias negativas caracterizam a ação, em linhas gerais, como evitável não
evitação do resultado na medida em que o sujeito se encontra na posição de garan-
tidor (Herzberg); como omissão de uma contradireção determinada pela norma
(Behrendt); ou, partindo do tipo penal, como a possibilidade de alteração do
curso causal por meio da conduta regida pela vontade (Otto):us
Hans-Joachim Behrendt revela um aporte psicanalítico,419 e atribui a não-
-evitação evitável do resultado às pulsôes do Id carentes do controle do S11perego,
as quais representariam manifestações da destrutividade humana. Essas apro-
ximações explicativas da ação por meio da psicanálise não se percebem apenas
p. 90-2; ZAFFARONl, E.R.; BATISTA, Nilo [et al.J. Dirrito pmal brtlIÍ/tiro, vol. ll, 1. Rio dt:
Janeiro: Revan, 201 O. p. 91-3; BÉZE, Patrícia Mothé Gliocht:. Op. Cit. p. 19.
416
Em seu §13 o Código Penal alemão dispõt: sobre os crimt:S omissh-os impróprios: Quem não conse-
guir evitar wn evento que pertt!nç:i a um tipo pt:n:tl, só é purú\'d de acordo com t:St:i ld, se for l~-
mt:nre respons:ívd por hrnrantir que o evento não ocorr:i, e se a omissão tqui\-:tle ao premchimento do
tipo por uma ação (No original: If1/rrer rmtrrlajll, d11r11 Erfa(e, abz!m'r11dm, drr Z!'"' Tntbutand riner StreflµrhJs
ge/Jiirl, ist 11ndJ diúe,11 GrJetz.111,r da1111 stmflx,r, ~lfllll rr rtdJtlidJ dnj,rr ai1Zftslr!x1J hnl, dajl dtr Erfalf. 1rirbl ti11tri1t,
1111d 11,r1111 dtt.f U11krlasse11 drr J/rro,jrkJidJm{e, deJ grsrtzfidJtfl Tn1bt.r1tt1uk1 dmrh n11 T,m mlspri,h~.
41
" OITO, Harro. Diagnosis causal e imput:icion dd resultado en derecho penal. ln: NAUCKE,
\'X'olfgang (org.). Ln prohibirió11 de rtg,rrso m derr<ho pmal Bogoti: UEC, 1998. p. 85; SANTOS,
Ju:m:z Cirino dos. Op. Cit. p. 92-3; ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, Nilo [et al.J. Dirrilo pmal
brasileiro, vol. II, 1. Rio de Janeiro: Re\·an, 2010. p. 95.
418
SANTOS,Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 92-3; ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, Nilo (et al.). Di-
reito pmnl brasilriro, vol. 11, 1. Rio de Janeiro: Re,·an, 201 O. p. 95-6; J ESCHECK, Hans-Ht:inrich;
\X1EIGEND, Thomas. Op. Cit.p. 238.
419
Um claro exemplo: "A culpa será psicanaliticamt:ntt: o ponto de comparação de interesse para
nós, qut: pode determinar a realização da conduta proibida como aqude esmdo afeth·o cons-
ciente ou inconsciente, precipit:ido pelo Super-ego como reação a um comportamento especí-
fico do sujt!ito». (No ori!,tinal: "Psychoanalytisch wird m:m die Schuld auf dem uns interessie-
renden Vcrgleichsfdd, dem der Vornahme eint:r verbotenen Handlung, bestimmen konnen als
denjenigen :iffektiven Zustand bewusster oder unbewusster Natur, der durch das Über-ich in
Reaktion auf dn bestimmtes Verh:ilten des Subjekts hen·orgeruft:n wird,,). BEHRENDT, 1-1.J.
j"rislÍJfhr Grmz.m der J>Jyfholhm,pie. ln: STRAU~, Bernhard (org.). Grenzcn psychotherapeuti-
schen Handdns. Gõttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2006. p. 204.

129
nele, são recorrentes ao longo da história recente da dogmática - com Claus
Roxin e Dirk Fabricius entre os mais notórios autores representantes dessa inter-
secção (dobttnática e psicanálise)."20
Rolf Herzberg faz contundentes críticas ao finalismo, afirmando já estar
completamente superado nos espaços de discussão sobre dogmática na Alema-
nha e que não possui maior poder de subtração de condutas ao espaço de re-
levância do Direito Penal quando comparado ao causalismo. Em especial, ele
defende a relevância das condutas involuntárias para o Direito Penal, pois o juízo
de exclusão do delito não deveria se dar a partir da conduta - pois 1nesmo con-
dutas involuntárias podem ter repercussão penal em abstrato, por exemplo, pela
coincidência do resultado com o elemento do tipo421 - , este seria o caso espe-
cialmente quando há possibilidade de influir sobre as consequências dessa "ação
involuntária".422
Herzberg imagina, aqui, o caso de alguém antecipar esse acontecimento
(antecipar uma crise de riso pela proximidade das situaçües que geralmente a
deflagra, ou eventos fisiológicos por aportes ambientais que os precipitam, crises
sonambúlicas, etc.) e poder direcioná-lo, conduzi-lo. Assim, ele concorda com
Stratenwerth que a responsabilidade deve se apoiar na capacidade do indivíduo
de conduzir os resultados.◄n Por isso, também não seria possível falar em um
filtro pré-típico ao delito sem qualquer antecipação valorativa (dado que seria

42
" SANTOS,Juarez Grino dos.Op. Cit p. 94; ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, Nilo (c:t al.]. Dird-
lo pmal bnuilriro, vol. 11, 1. Rio dt: Janeiro: Re,-an, 2010. p. 94-5.
421
"De todos modos, c:s inadmisible la c:xtendida afirmación de: que los procesos corpornles invo-
Junurios carc:cc:n de import:incia para d Dc:rc:cho }' no pueden dar lugar a rc:sponsabilidad. EI
brote: repentino de sangre de la nariz, así como d estímulo de reír ruidos:um:ntc: provocado por
un cónúco, 1101 mrrdm y no c:stán conducidos por la voluntad. Pero d sangrar y el rdr devic:nc:n
pc:nahnc:nte rdc:,·antes coando su consecuencia c:s, por ejc:mplo, la mancha de un sofá ajeno
(§303 CP), o la perturbación de una cc:rc:monia de sepultura (§167ª CP)". HERZBERG, Rolf
Dic:trich. Rdlc:x.iones sobre: la teorfa final de la acción. ln: H.r,tista Elrrtro11i((I de Cimria J>malJ
Cri11ti11olo,.ia (RECPC), Granada, n. 1O, 2008. p. 06.
422
HERZBERG, Rolf Dic:trich. Hrjlrxionrs sobrr... p. 06-7; HERZBERG, Rolf Dietrich. &fo·xio11ts
arrrra dr/ ro11rrplo Jimiliro prnal dr arri<i11 J dr la 11rg,an<i11 dr/ drlito 'prrtipim'. Madrid: McGraw-HiU,
1999. p. 27 e: ss.
m "Cierumentt; Stmlrmnrtb está pensando aquí c:n d autor dd clásico delito de omisión, por
ejt:mplo, en quit:n, pese: a poder hacc:rlo, no impidc que su rujo o su perco dancn un sofá ajeno
o pc:rturben una ceremonia de sc:pultur:i. Pc:ro la consecuencia de c:Uo es clara: quic:n debe res-
ponder juridicamente: c:n rdación con d nino o d pc:rro, t:imbién dc:be hacerlo, y más cbrnmen-
te aún, respecto de las fuc:ntc:s de: pdigro que procc:dc:n de su proprio cuerpo cuando amenazan
con producir d resultado típico, sea medi:mte la rrnliz.nrión df. 11110 ntrió11, o bien a trnvés de oiros
promos rontrolablrs, como sangrar o reír". HERZBERG, Rolf Dietrich. Ivflrxionu sobrt... p. 06-7;
HERZBERG, Rolf Dietrich. lvjlrxio11t1 nrrrrn dtl... p. 27 e ss.

130
necessária ao menos uma análise da lesão de dever de cuidado sobre as circuns-
tâncias nas quais se deram essa condução do evento). 424
Aparente1nente, não chama a atenção do autor o risco em se considerar
ação manifestações nas quais, em princípio, é ausente a vontade, quando soluções
melhores seriam possíveis - como na remissão da responsabilidade a momento
anterior, no qual havia consciência e vontade, ao invés de buscar estender o con-
ceito para os demais períodos.
As formulações de Herzberg transmutam o que seria a exigência de uma
etapa pré-típica (de verificação da ação) em um juízo de imputação. É claro, para
esse professor de Bochum, que grande parte dos problemas em se erigir um
supraconceito de conduta se deu porque sempre se pensou a partir do modelo
da ação positiva, e sua proposta é justamente de romper com isso elegendo a
omissão como modclo:'25
Herzberg deixa claro que o elemento central sobre o qual cabe estruturar a
teoria do delito não deve ser o da ação, muito menos o da ação final. O que fun-
damenta a responsabilidade penal seria sempre uma 0111issão intrínseca a qualquer
ação, pois todo autor de um delito omitiria algo requisitado pelo Direito. Em
termos 1nais exatos, o autor conscientemente não evita o resultado procedente de
uma fonte de perigo de sua competência - seja porque esse perigo se origina de
seu próprio corpo,426 de algo sob sua responsabilidade, como um cachorro, etc.
Haveria u1na expressa generalização da posição de garantidor.427
Em seu conceito de conduta, Herzberg tenta deduzir, dentre outras coisas,
do §11, I, nº 5 do Código Penal alemão ("Fato antijurídico: é apenas aquele que
realizou o tipo de wna lei penal"4~ . Como ele fundamenta a responsabilidade
jurídico-penal, então, na 011Jissão co111 infração do dever de midado ejurídico-pe11a/111enle

.m "Pucde decirsc, por tanto, que la negación dd delito 'preúpica' tan sólo :inúcipa sobre el con-
ccpto de acción Wla valoración interna del tipo y con ello hace cxactamente lo que el postulado
de neutrnlidad prohfüe". HERZBERG, Rolf Dietrich. '&jh.io11t1 actrra dtl.. p. 27.
-42S 1-IERZBERG, Rolf Dietrich. '&j/r'4.io,m aarra dei... p. 30.

◄u. "Pero también es válido, por ejemplo, (YJr:l la ,·iolaciún (§ 177 CP). También su autor deja de
realizar lo que cl Derecho le exige. Debe controlar determinadas fuentes de peligro, espe-
cialmente debe contcner su propia persuna y abstenerse de agresiones, y ahí es donde falia".
HERZBERG, Rolf Dietrich. Rrjltxio11u sobn... p. 07; HERZBERG, Rolf Dietrich. Rtjlr>..io11u
artrra dtl... p. 30 e ss.
•v "Imaginemos que se perturba un funeral con una risa innccesaria y alta (§167ª StGB). Aqui
cualquicra comprende qué cs lo decisivo para l:i responsabilidad del que se de: que él, en primer
lugar, es responsable de la fuente de l:i perturbación (posición de garante) y, en segundo lugar,
podfa evitaria conteniéndose. Frente a ello, es absolutamente irrelevante la cuesúón de si el visi-
tante se de voluntariamente o sólo ha omiúdo reprimir la risa que le provoca. Ambos escin 'en
la misma linea' y la confesión de intencion:ilidad únicamente impedida una rehaja facultativa de
pena (§13 ll StGB)". HERZBERG, Rolf Dictrich. Rtjlexio11rs amra drl.. p. 31 e ss.
421
"rechtswidrigc Tat: nur eine solche, clie den Tatbestand eincs Strafgesetzes verwirklicht".

131
desralorada,429 deixa de fazer parte dessa concepção a conduta típica justificada,
porque ela não é desvalorada por não se encaixar na expressão "fato antijurídico"
e, assim, nunca pode ser elemento constituinte do delito.430
Nota-se, então, como ele articula a posição de ,gara11lidor com a possibilidade de
tt7.laçào do foto desvalorado. E isso também se justifica por achar desnecessária a
exigência de neutralidade da ação e1n razão de sua função de unificação. 431 Res-
tam, assim, unidos os crimes comissivos e omissivos, razão pela qual ele questio-
na, inclusive, a distinção entre proibição e mandamento. 432
Essa fundamentação sobre a omissão se dá até mes1no, é claro, quando se
trata de delitos comissivos. Pois, como a ação é a omissão do (possível) domínio
de si mesmo, quando o agente produz uma não evitação é apenas um detalhe ela
se externar por meio de um fazer433 • Essa concepção ta1nbém pennite, aliás, a
apresentação da lesão ao bem jurídico como ponto de convergência entre delitos
comissivos e omissivos, pois é a partir de sua constatação que se lucubra a pos-
sibilidade da evitação.434
Está embutida, então, nessa visão sobre o fundamento da responsabilida-
de jurídica, a extrapolação dos delitos imprudentes amplamente difundida pelas
teorias da imputação objetiva: a inobsenrância do dever objetivo de cuidado no
tráfego, a qual se manifesta na ideia reversa de risco pen11itido.435 Com a devida
ressalva que, para Herzberg: (a) a ideia do risco permitido não se restringe apenas
aos delitos de resultado consumados, como em algumas teorias da imputação ob-
jetiva, mas também toca os delitos tentados e de mera atividade; e (b) apesar de se
0 HERZBERG, Rolf Dietrich. Rrjlr:>.io1rt1 a,trra drl.. p. 21.
011
Ibidem, p. 36; "Puesto que par:i definir lo común a todos los huhor p,miblu mi precisión con-
ceptual cita, entre otros, la drn'tllorari<Jn jmidico pmt1I, que sólo pucde producirse, naturalmente,
con la realización de un tipo penal". Ibidem, p. 39.
01 "Este juicio es absolutamente jurídico, un juicio de valor jurídico penal. No subsumimos los

hcchos en ningún precepto penal porque :i los animales y los inconscientes no les hacemos
responder penalmente en ningún caso". Ibidem, p. 26.
oi HERZBERG, Rolf Dietrich. Rrjlr.>.io11rs robrr... p. 07-8.
◄n "Naturalmente, no discute que la mayoría de los delitos se cometen por acción. Estos delitos
no se agot:m en una omisión. Pero también ellos queda la omisión como el núcleo propio, por-
que la pérdida de la autorrepresión, la omisión del posible dominio de si mismo fundamenta l:t
responsabilidad, mientr:is la circunstancia de que el autor produzca la no evitación, la expulse
fuera de sí :icti\"amente, tan sólo es relevante en la medición de la pena (§13 II StGB)". HERZ-
BERG, Rolf Dietrich. lvfle:>.iontr arrrra dtl.. p. 30.
0 • HERZBERG, Rolf Dietrich. Reflexiones acerca dei... p. 33; "Quien busca determinar un con-

ccpto de acción uprríjirammlt pmal tiene que darle elementos normativos y definir, consecuen-
temente, c:l conccpto penal de hrrho pmriblr o de huho a11tij11ridüo (...). Ambos conceptos no dej:in
nin1-,•1.ma duda, incluso sin definidos, de que se remiten 'a la totalidad de las normas penales'
y abarcan sólo aquellas :onductas que lcsionan la norma y escin desvaloradas penalmente".
Ibidem, p. 39.
os Ibidem, p. 34-5.

132
aproximar, como Jakobs, da incorporação de requisitos da imprudência, ele não
incorpora a culpabilidade ao seu conceito de conduta. Sua perspectiva contempla
apenas o fato antijurídico Qembre-se da referência ao §11, I, nºS do CPA).436
Essa incorporação da ideia de risco permitido por meio do conceito de
omissão, apesar de tudo, não promove uma lota/ equiparação entre o fundamen-
to da responsabilidade penal e o tipo propriatnente dito (c01no pode gerar a
concepção de ação típica), porque seria possível a constatação de uma conduta
antijurídica que não preencha qualquer tipo penal - como o dano culposo ao
patritnúnio alheio, as contravençc,es, etc.43;
Rolf Herzberg sequer acredita, à mingua das concepções finalistas, em uma
identidade entre a vo11tade que permeia a ação e o dolo, pois, segundo ele, a possibi-
lidade de haver duas condutas idênticas (de subtração de llln livro, por exe1nplo),
nas quais cm uma se constata o dolo e na outra não (em razão, possivelmente,
de um erro em relação ao elemento "alheio" do tipo), indicaria justamente essa
dissonância.
Haveria entre vontade e dolo, dessa forma, wna relação de paralelismo e
correspondência,438 o que parece significar, em última instância, uma aproxima-
ção do papel representado pela vontade no causalis1no: vontade cindida, direcio-
nada à causação (vontade de apertar o gatilho, ao invés de vontade de matar) e
sinalizada pela mera requisição de voluntariedade de todas as condutas. 439
Não obstante, do finalis1no parece ser possível se deduzir wna relação con-
tinente-conteúdo, na qual a vontade seja mais abrangente e contenha o dolo, o
que em princípio parece neutralizar essa crítica.
Ade1nais, Herzberg entende que a tese das chainadas estruturas lôgico-
-objctivas, as quais supostamente limitariam o Direito, apenas encobre o que,
na verdade, é a estrutura da linguagem. Os contornos e fronteiras do essencial
nos ele1nentos de utn delito se dariam pela confi!:,'1.lração da lin!:,'1.lagem e não por
estruturas ontológicas. 440 A apreciação do finalismo, por parte desse professor
◄J(, Ibidem, p. 36 e ss.
1
" ' Ibidem, p. 35.
◄)8 HERZBERG, Rolf Dietrich. Hrjlr>,io11rs sobre... p. 08-9.
19
" "P:un ser autor doloso de un huho p1111iblr debe de querersc la rc:tlizadón dei tipo de ln misma
forma que quien actúa de m11lq11irr fllodu quiere, por lo menos, cl proprio mo,·irniento corporal,
por ejemplo, cunndo l:mza una piedra ai agua o hace una muec:1. 'La ,·oluntad de matar forma
parte de la ncción de matar' como la voluntad de lanzar forma parte de la acción de l:mzar. Pucs
parn apreciar una acción no basta con que alguien pre\'ea un mo,·iiniento de su cuerpo como
unn consccuencia scgurn de su estado fisico - por ejemplo, en los casos de muccas compulsh-as
-, sino que se rcqwere que re:tlice el mo\'imiento corporal rolt1111"rin111r11fr, o se:t, i11tmrio1111dt1111r11-
té'. Ibidem, p. 30.
4411
"Pucs, ai estudiar los textos y los conccptos legalcs êCÓmo pueden aprehenderse los 'fenóme-
nos prévios al Derecho' )' 1:ts 'estructuras' importantes para su corrccta comprcnsión, si no es
cn la forma del 'sentido usu:11' o 'natural' de las palabrns? (...) Con independencia de la utilidad

133
de Bochum, inclina-se a um simplismo, caracterizando-a de tal forma que a te-
oria chega a se incompatibilizar com a ideia de dolo eventual (e, ao que parece,
iinplicitamente poderia tornar problemático inclusive o dolo direto de SC!:,1undo
grau):'"1
Herzberg diz não poder concordar com os finalistas sobre o dolo ser a fi-
nalidade dirigida aos ele1nentos do tipo, quando é possível inserir-se na esfera de
delitos dolosos os crimes cuja relação subjetiva estabelecida com o resultado seja
de mera conformação (dolo eventual) e não de vontade - quiçá, seria possível se
dizer que hj condutas caracterizáveis como dolo eventual nas quais o agente não
queria o rcsultado.°"'2 Aparentemente ele não percebe ao criticar a sobreposição
entre vontade e dolo, em seu afã em desconstruir o finalismo, que o oposto disso
seria a possibilidade de se punir a título de dolo condutas se1n vontade (co1no
seria o caso de sua apreciação do dolo eventual) ou em erro.443
De qualquer forma, para nós a questio de fundo parece ser a problemática
concepção de dolo eventual que Herzberg se permite, se6>1.1ndo a qual é possível
não se querer algo e ao mesmo tempo se considerar a conduta como dolosa.
Sem embargo, paralelamente, Herzberg afirma também que sequer a suposta
contribuição finalista para u1na 1naior delitnitação dos crimes culposos seria uma
genuína contribuição, porque, assim como os delitos culposos, os delitos dolosos

que tc:n~ en d caso concrc:to, nadie discute que en la interprc:tación de la ler dt:bt: tomarse en
considc:r.ición d 'sc:núdo natural de: las palabr.is>, que: tambi~n put:dt: denominarse d senádo
'prc:,·io al Dc:rc:cho"'. lbidc:m, p. 11.
40
"Con l:ts pabbr:is de: lf/rlz.rl. 'El dolo jurídico-pc:nal (...) t:S (...) la volunL1d diri,gida a la realización
dd úpo'. Dicho por IVrid111a111r. 'Sólo es dolosa la finalidad dirigida a la rcalización de un tipo
lc:g:il'. De: aqui dc:ri,~ una clara consccucncia: la rcsponsabilidad dolosa queda exduida respecto
de aquc:Uos autores a los '-}Ut: sólo se puc:de atribuir d dc:nominado do/111 t11ml11nlis. Tambitn en
d caso de: que se tome c:n serio o acc:ptc la producción dd rc:sultado, d autor le falta la finalidad
respc:cto de la re:ilización dd tipo. EI polida, por cjc:mplo, puede haberse 'resignado interna-
mente' con d desc:nl:ice mortal, pc:ro la lf1tlt1 de su actuación no era la muertt:, en cuya ausc:ncia
tenfa puc:st:1 toda su espc:r:inza, sino unas lesiones t: impedir así la fuga". lbidc:m, p. 12. No dolo
direto de se1,1,.10do grau, não se insc:rt: no propósito do agc:ntc: aquilo que se atribui a de como
consc:quêncfa m:cessáru. Em outras palavras, não seria um absurdo rc:tórico argumentnr-st: que
a finalidade dt: algu~m que explode um a\·iào para matar sc:u desaft:to c:stava direcionada estrita-
mc:nte ao avião e :io desafeto (apc:sar de, ao fr:icionarmos co1,,>niçào e volição, ser possívd dizer
que: de: sabia das consequências dc:correntc:s, :i morte: de mais pessoas), e por isso o finalismo
t:imbtm não daria conta do dolo de segundo grau. Não ser absurda essa.linha argumentntivn,
como a outra, não sigrúfica qut: da c:steja corrc:ta.
442
HERZBERG, Rolf Dietrich. lvjlrxi,mes sobrt... p. 14 e ss. Her.lberg d:i o exc:mplo do caçador que
quc:r acc:rt:1r o coelho (e não uma pc:sso:1), mas dispam assumindo o risco de acertar al1-,'llém.
40
"Quien cogt: una cosa ajt:na que crda que: carc:cfa de duc:no y st: la apropia, actúa con 'dolo' de-
lictivo. Con otro ejc:mplo: la fin:ilidad dd disparo, o sc:a, una acción de disparar puedt: constat-trse
antc:s de resoh·c:r la cuestiún sobre d dolo dt: matar, r aqudla constatación no se verá afcctada si
linalmc:nte se niega d dolo y se afirma d carácter imprudente de la muerte". Ibidem, p. 30.

134
também violariam um de1 1er de c11idado. Nesse sentido, para ele, a própria função
da imputação objetiva é a de delimitar uma violação da lesão a um dever de cui-
dado.444
Entretanto, novamente, essa conclusão parece se dever em parte à indistin-
ção entre proibições e mandamentos. Para Herzberg não é possível deduzir, de
qualquer teoria da ação (e, particularmente, do finaUsmo), os requisitos para a
responsabilidade; isso só poderia ser feito normativamente. Ele conclui, a partir
daí, que o delito sempre se realiza por meio da violação de 11111 dever. 445 Isso poderia
não ser de todo imperfei.to, pois é correto dizer-se que o delito só existe diante
de uma norma - a velha formulação de Carrara de delito como ente jurídico. No
entanto, além de ele não estar afirmando apenas isso (mas ampliando a função
dos deveres na teoria da norma), o que está em jogo também é, uma vez reconhe-
cida a necessidade de uma norma penal para a criminalização de um fato, o grau
de discricionariedade sobre o mundo que essa norma possui.
E1n sua concepção, os delitos dolosos se materializam como condutas nas
quais, de forma imprudente (porque não respeita o cuidado necessário em qual-
quer relação), realizam-se dolosamente os elementos do tipo.446 Seria pressuposto
para a itnputação de u1n delito, portanto, se1npre a violação de um dever de cui-
dado, seja para os delitos culposos, seja para os delitos dolosos.
Estranhamente, Herzberg afirma que, se o finalismo posiciona o dolo como
elemento central para a realização do tipo, ausente o dolo, seria forçoso concluir-
-se pela atipicidade da conduta. Na verdade, subjacente aos tipos dolosos haveria
"~ "Sin duda, es cierto que los delitos imprudentes - como delitos de acción - presuponen, ya
en el i1!)11slo, una acción dtsmid,1da. El §276 apartado 2 dei Código Ch·il establcce: 'Actúa im-
prudentemente quien desntiende el cuid:ido exigible en cl tr:ínco'. Y no es sistemáticamente
corrccto plnntcnr la imprudencia a1 examinar la culpabilidad. En tanto que lesión :tl dcbcr de
cuidado, debe ser un presupuesto dcl injusto. Pues sólo quien actúa infringiendo un deber
realiza cl injusto o, a la inversa: quicn cumple con su deber actúa sicmpre correctamente".
Ibidem, p. 19; "Me refiero a la relación de inclusión, o de pl11s-n1in11s que existe entre los delitos
dolosos y imprudentes: todo delito doloso presupone que cl autor no ha rcspefudo el cuidado
exigible en d tr:ínco. 1Tomemos el ejemplo de ln receptación! Quien se dedica a comprar joy:is
robadas y advierte que la alusión a una herencia puede ser falsa, e incluso lo admite, no realiza
cl injusto de una receptación si rupr111 las rrglas, especialmente si prcgunta insistentemente ai
rcspccto y hace comprobaciones en rclación con los elementos sospechosos. (...) Es evidente
que la cucstión valorativa que debe respondcrse aqui cs la dei 'riesgo permitido' y la observ:in-
cia del 'cuidado exigiblc en cl tráfico', o sea, la cuestión de si hay o no i111pn1dmrid'. Ibidem,
p. 21, e uma defesa mais profunda desse ponto pode ser cncontr:ida em: HERZBERG, Rolf.
Grundproblcme der dcliktischen Fahrl:issigkeit im Spicgel dcs Miinchcner Kommentars zum
Strnfgcsetzbuch. ln: Nmr Ztilsrbrifl fiir Strafrrrbl, 2004, p. 593 e Sl-.
"º HERZBERG, Rolf Dietrich. Rrj/r)..io11rs sobre... p. 19. •
""' "Es el paso previo para advertir que todo examen de un deliro doloso debc p:isar por L-i com-
probadón de su carácter imprudente, como elemento que forma parte de aquel examcn".
HERZBERG, Rolf Dietrich. Rrjlrxi1111rs sobrr... p. 21-2.

135
- de forma dissimulada - a exigência de uma violação do dever de cuidado. Por
isso não caberia qualquer fundamentação ontológica. 447 Trnta-se de um argumen-
to estranho porque pMte do princípio que, desconsiderando-se o delito doloso,
o crime culposo se subsume ao mesmo tipo penal, quando o que acontece é uma
reestruturação do tipo (mesmo que se considere essa "reestruturação" um tanto
implícita quando aparece nas fôrmulas "se é culposo").
Parece óbvio não se tratar do mesmo tipo penal - especialmente quando
se lembra que o tipo penal é composto por elementos diversos, dentre eles os
elementos subjetivos - quando se altera um elemento necessário para a sua com-
posição, qualquer wn que seja. Portanto, ausente o dolo não se pode dizer que
o tipo foi preenchido ou poderá ser preenchido por uma modalidade culposa.
Caso contrário, em tipos penais como os de homicídio, seria necessário ler, no
lugar de "matar alguém", "causar a morte de alguém". E, aparentemente, é essa
a interpretação habilitada por esse professor de Bochum.44g
Não são de estranhar totaltnente essas concepções alargadas de responsa-
bilidade penal, quando o mesmo autor considera razoável, a título de tentativa, a
criminalização de eventos estritamente psicológicos. 449 Ele apenas propõe expli-
citamente o que muitas concepç<>es nonnativas trazem iinplicita1nente consigo; e
posições contemporâneas como essa reforçam a importância de wna visão critica
sobre a ação (e sua função negativa) ainda hoje.
Por sua vez, Harro Otto també1n se debruça sobre a questão da itnputação
objetiva, e destaca que o Direito Penal tem por foco de interesse não qualquer mo-
dificação no mundo exterior, mas sim modificações que representem objetivações
de pessoas. Justamente por isso, não deve se restrinbrir apenas às relaçôes causais,
mas a critérios vinculativos entre fenômenos (como conduta e resultado).450
447
..Quien concibe d dolo como 'espina dors:il' o 'componente: esencial' de la acción y, así, entien-
de que d dolo de matares la espina dorsal de la acción homicida, si es cohert:nte deberá m:gar
ya la a«ió11 ápicamt:nte rde,r:inte cuando foltc: d dolo ddictivo". Ibidem, p. 23.
441
'\:Acaso los finalist:1s no podri::m huir hacia ddante r negar ya en d tipo ol?Jetivo la correspon-
clit:nte acción ápica, por faltar la 'espina dorsal'? A mi me parece que esto es incompatible con
la lt:y. Porque, t:n nuestros ejt:mplos, d §16 apartado 1 CP parte de la 'conúsión de un hecho',
o sc:a, se refiere a los auton:s que hayan realizado d 'hecho' de alejarse dei lugar dd accidente,
de yacer con una descencliente, de matar a una pt:rsona, pero que, ai comcterlo, desconocfan
un:i circunstancu dd tipo lc:gal. Por lo tanto, estt: camino (que tampoco los finalistas intentan
transitar) est:1 vedado". Ibidem, p. 24.
449
Esse t: o caso de afirmação da possível punibilidade de um evc:nto estritamc:nte espiritual como
tc:ntati,r:i inidônc:a (aqudc: que:: crc: que as vibrações mt:ntais enviadas inAut:nciam na rt:alidade).
"Así, ~ habitual nc::gar d caráctt:r de acción a los sucesos puramente: psicológicos y, con dlo,
nc::gar la rdevanci:i penal c:n su conjunto y a li111i11e. (...) Que no se puede comt:ter un delito de
este modo bnjo IIÍl{P,IIIIII rimm1l,111rit1 es, sin embargo, una conclusión inductiva problemática".
HERZBERG, Rolf Dietrich. Rrjlrxio11rs arrrra dr/... p. 27.
45
" 01TO, Harro. Op. Cit. p. 68-9.

136
Dessa forma, a ofensa ao bem jurídico como um sinalizador aparente do de-
lito, por exemplo, só adquire interesse na medida em que represente uma posição
do agente c1n relação ao ordenrunento jurídico por meio de sua conduta. AssÍln,
o ordenamento jurídico impõe exigências, em relação às quais o indivíduo se po-
siciona. Essas exigências, contudo, precisam de uma referência concreta porque
todo dever teria co1no requisito a possibilidade de sua realização, caso contrário seria
arbitrariedade. Seria exatamente porque a possibilidade da realização de um dever
tem necessariamente vínculo tanto com a situação concreta quanto com a norma,
que Otto declara a impossibilidade de qualquer conceito pré-típico de ação.451
A conduta, portanto, não se analisa com uma mirada restrita à anteposição
de uma condição (teoria da conditio sine q11a no11), mas se ela realizou uma possibi-
lidade de acordo co1n as circunstâncias reconhecíveis concomitantes ou anterio-
res. Assim, por não se tratar de um mero nexo condicional, mas de um vínculo
mental (um processo hipotético mental), é extensível aos delitos comissivos e
omissivos. 452
Em outras palavras, a questão da realização do tipo não se põe pela simples
constatação da condição - que pode existir das formas mais remotas -, mas é
necessário detenninar se o agente pôde conduzir o evento para um resultado es-
pecífico. E essa possibilidade objetiva de se imputar um resultado a uma conduta
específica (possibilidade de condução do evento) depende de quais são as con-
dições cognoscíveis para o agente: se as condições que se somam à sua conduta
como necessárias para gerar o resultado não são (ou não podem ser) conhecidas
pelo agente, então a imputação resta impossibilitada.453
Se e1n geral os eventos supõem diversos nexos condicionais, dentre essas
condições é possível, para esse professor de Bayreuth, que se eleja apenas um
como co11ditio si11e q11a 11011 - ou uma causa eficiente para outros. Para ser possível
realizar essa eleição, ele aponta dois critérios: a relação de imputação e o funda-
mento da imputação. 454
A relação de i111p11taçào, conforme Otto, já está em grande m.edida antecipada-
mente deli1nitada. Isso porque para grande parte da doutrina, e o mesmo ocorreria
na prática forense, partiria do princípio de que apenas o resultado sobre o qual a
pessoa pôde ter alguma ingerência é atribuível a ela. Portanto, já se limita os objetos
de análise da co11ditio sli1e q11a non em um estágio inicial. Num Se!:,>undo m01nento,
surgem critérios adicionais de delimitação. Nos delitos dolosos, por exemplo, alé~
da anteposição de uma condição, salta aos olhos a imposição do dolo.455
01 Ibidem, p. 70.
◄ Q lbidt:m, p. 70-3.
m Ibidem, p. 70-3.
4
~ Ibidem, p. 75 e ss.
◄ss Ibidem, p. 75-6.

137
No entanto, mesmo para os delitos dolosos a percepção dos traços essen-
ciais do curso causal não seria suficiente, e essa insuficiência fica mais clara na
distinção entre o desejar e o querer. Assim, Otto se vira para a previsibilidade a fi1n
de tentar fechar as lacunas remanescentes, mas ela também se mostra insuficiente
- pode ser também caracterizado como previsível um resultado desejado e per-
Se!:,>Uido pelo agente, 1nas que sô casuahnente tenha se produzido. A pertinência
do critério da previsibilidade se deve, então, ao fato de ser um indicador da diri._~i-
bilidade dos acontecimentos.456
É assitn que Harro ()tto, portanto, propõe resolver algumas controvertidas
questões sobre a inter\'ençào de terceiros no curso causal. Afinal, sua proposta
é a de avançar melhores critérios parn a imputação. Não faz, portanto, qualquer
diferença se o agente originário supôs ou não a intervenção de outrc1n - a
não ser que ele tenha influído sobre a vontade desta outra pessoa-, dado que,
segundo o autor, uma vez intervindo no curso alguém imputável, que assume
conscientemente os riscos e to1na uma decisão livre, jaz por terra a dirigibilidade
daquele agente:'57 Consequentemente, também é equivocada a ideia de que, no
curso causal com interferência de outrem, o agir primitivo só perde importância
quando o resultado teria se produzido apesar dessa conduta (co1n ou se1n ela).458
Em linhas gerais, pode se dizer que, para Harro Otto, a imputação de um
resultado ao sujeito se dá em razão de s11a ob,igação de evitá-lo; e se pode dizer tam-
bém que o resultado era evitável quando a intervenção do agente no curso causal
é o que determina a realização ou não (dirigibilidade). Essa situação só se altera
quando o domínio do agente sobre o curso dos acontecimentos é desfeito, ou
seja, nos casos de iutempçào do 11exo de i111p11tação.
O desvio do curso causal se torna um importante tópico para se abordar as
questões mais relevantes no pensamento desse professor de Bayreuth. Especial-
1nentc quando se busca desenhar co1n maior precisão as fronteiras entre o curso
causal e as impressões subjetivas do agente. Por isso, Otto propõe uma aborda-
gem não a partir do resultado, e sim da dirigibilidade do curso causal pelo sujeito,
a qual, co1no se disse, encontra seu lilnite mais claro na intervenção de tercei-
ros: 459 E o fundamento desse limite não diz respeito a uma questão de alcance de
"iot> Ibidem, p. 76-7.
451
Ibidem, p. 77-9.
-45,1 Ideia a qual ele :itribui a Dietcr Kion (Grmulfr,{~tll der Kmw,/i/iil bri Tô'ltmgsdtliklm, 1967) e K.
Hencl {Comentários :io BG H, Nmr ]11rislisrhr lv'urhmsrhrifl, 51, 1966).
09 "(...) el BG H h:i c:isci1,r:ido por homicídio consumado a1 autor que hidó mon.1lmente a la dctima,
:iunque un terccro le había d:tdo d 'tiro de graci:l' que lo Ue,•ó :i b mucne. (...) En estos casos la
des\'i:ición dei curso causal puede p:ireccr inesc:ncial, cuando se aq.,rument1 solamente :t partir dei
rt-sult.1do, pucs cl autor también habfa anhclado cl rcsult1do producido. Sin embargo, csto cs erró-
neo. No cs cl hc:cho de llUC: cl rcsult1do se ha producido lo que pucde ser decisivo, sino solamente
la manem y medida de la conducibilidad dei curso causal puesto cn marcha por el autor. Pero ést:is
encucntrnn su linúte en la interYcnción dirigid:i a un fin, por parte de terccros que conducen el

138
determinadas normas (sejam proibições ou mandamentos), e sim à constatação ·
de que a simples causação não pode justificar a responsabilidade penal. 460
!-lá, repita-se, outras formas de interrupção desse nexo de imputação para
além da intervenção de terceiros - como o arrependimento no qual a vítima recu-
sa a ação salvadora; a criação de perigos posteriores para o bem jurídico da vítima
(quando, por exemplo, o agente desiste dolosainente de ajudar a vítima em uma
lesão causada culposamente por ele); etc. Assim, o primeiro critério, de relação de
imputação, culmina na elaboração do conceito (seu verso) de i11temtpção da relação
de i1JljJ11taçào.'161
Não existe, entretanto, um dever de evitar todos os resultados possíveis a
um sujeito. Por isso, além da supramencionada dirigibilidade, apresenta-se como
funda1nento da itnputação o dever de evitar 01 resultados. Assim, não basta que seja
possível evitá-lo, mas que haja essa obrigação. Surge, então, a necessidade de se
elencar os casos que fundamentam a criação de um dever de evitar, quais sejain:
(a) pela criação ou pelo au1nento do perigo para o bem jurídico (princípio do
incremento do risco°'62), por meio da qual se desenvolve de forma autônoma o
perigo criado, de modo que a lesão ao bem jurídico seja uma concretização deste
perigo; (b) pelos deveres especiais de garantidor (os quais implicam o domínio de
~
uma fonte de perigo); (c) pela assunção de determinados perigos ou pela vincula-
ção desses perigos ao desempenho de determinados papéis sociais.463
O próprio conceito de perigo, todavia, já adiantaria de certa forma alt,7\.Ull
conteúdo valorativo. Sobre isso, aduz Otto:
A este respecto, hay que prestar atención a que, a1 clegir el concepto 'pe-
ligru', ya se realiza una valoración previa, restringiendo el ámbitu de las
posibles situaciones a partir de las cuales se pueden derivar lesiones a1
bien jurídico. La comprobación de que está creado un peligro para el bien
jurídico ya conciene una expresión sobre la posibilidad y probabilidad de
lesiones al bien jurídico, aun cuando las particularidades dei concepto de
peligru son todavía ampliamente oscuras, a pesar de la significación central
de este concepto para la estructura dei delito.464
Destacam-se como problemáticas, como aponta o próprio autor, não só a
delimitação concreta de uma situação de perigo (cm razão, inclusive, do caráter
equivoco do conceito), mas também a exigência, quando nos deparamos com
acontt:ct:r sobrt: la bast: dt: una dt:cisión ,·oluntaria propia, librt: t:n d st:ntido jurídico, por más qut:
d resultado perst:h1\.Udo st::i d mismo,,. OITO. Harro. Op. Cit. p. 79.
4611
Ibidem, p. 79-80.
461
Ibidem, p. 80-3.
46! Embora um tt:rmo prt:ft:rívd a risco st:ja perigo.
463
OTIO, Harro.Op. Cit. p. 84-5.Essas distinçõt:s retornarão quando abord:umos a tt:oria dt:
Jakobs.
~ OTIO, Hnrro.Op. Cit. p. 85.

139
os casos nos quais se aplica o pri11rípio do i11cre111ento do risro, de que se desenvol-
va de forma autônoma o perigo ao bem jurídico. Isso porque o fundamento
da responsabilidade nos critnes c01nissivos difere substancialmente dos crüncs
omissivos.465
Ao levar-se às últimas consequências o princípio do incremento do risco,
contudo, é possível realizar-se wn giro na abordagem dos crimes comissivos de
resultado, e a fundamentação de sua responsabilidade deixa de ser a deflagração
de um curso causal perigoso (criação consciente do fundamento da responsabi-
lidade). A faceta cob>nitiva nesses delitos não mais precisa, então, alcançar essa
criação de responsabilidade (a qual pode ser, assim, uma criação inconsciente).
Seria suficiente o conhecimento do fundamento da imputação e do teor evitável
do resultado. Aqui, aparece mais uma vez o fenc">meno linguístico co1no u1n arri-
mo adicional, permitindo essa liberalidade na compreensão dos delitos.466
Imediatamente essa perspectiva cria a necessidade de se dar conta daqueles
crimes comissivos de resultado que se manifestam por um evento externo uni-
tário - pense-se cm alguém executado por um tiro na cabeça à queima roupa,
morrendo de imediato-, para os quais a explicação é altamente insuficiente.467 E
é justificável, portanto, al!:_,>tuna estranheza, pois os crimes comissivos não detê1n
uma posição menor na teoria do delito e na Política Criminal. É especialmen-
te difícil acomodar essa teoria quando o lapso temporal (a partir da criação do
fundamento da responsabilidade) para o dever de impedir o resultado é quase
imperceptível, inexistindo qualquer hiato hábil para que se possa tomar conheci-
mento e, assim, decidir-se agir em consonância com ele Qembre-se, novamente,
465
"AI an:tlil!lrse aqui, como consecutncia dd cambio de presupuestos subjetivos, d fundamento de
la responsabilidad y d presupuesto de la responsabilidad de modo sucesi,·o, deviene dara la depen-
dencu funcional entre 'principio de incremento dd riesgo' y 'principio de conducibilidad'. Pero
b problt:JJÚtic:i respt:eto de tod:i n::ilización ddictiva por un hacer positivo es la misma. Sólo la
sobre:icenru:ición irulpropiad:i de la causalid:id como demento dd tipo en d intento de c:xplicar d
delito con mc:toclos de bs ciencias natur:tles pudo conducir ai criterio, en grnn parte tod:l\'fa hoy
indiscutido, de que la re:tlización dolosa dd delito por medio de un hacer positivo presupone la
cre:ición consciente dd fundamento de fa rc:sponsabilidad (desencadt:nar un curso causal pdigroso),
mientr:1s que en los delitos de omisión dolosos la responsabilidad la fundarm:nta d conocimiento de
r
b siruación que fundamtntl d deber la posibilidad de evitar d n:sultido". lbidem, p. 86.
466
lbidem, p. 86-7.
1
" Acrescenta Otto: "Ciertamt:ntc:, con frecuencia coinciden d desencadenamiento dd funda-
mento de la rt:spons:ibilidad y d ejercicio dd dominio sobre d acontecer, restringido n un breve
lapso (A mat:i de un tiro a H). Esto, sin embargo, no deberfa llamar a engano r hacc:r pasar
por alto que d acontecer extc:rnamente unitario se base en la rdación funcional de dementos
diversos. Por lo demás, podrfa ser perfectamente adecuado ai uso lingüístico acusar de haber
m:1t.1do a otro aqud que ha puesto a éste en pdigro parn su vida r, a pesar de tener a su dispo-
sición la posibilidad de evitar d resultado, no impide la realización dd pdigro en la muerte de
la víctima". Ibidem, p. 87.

140
do exemplo do disparo de arma de fogo). A teoria de Otto, aliás, parece entrar
em colapso quando confrontada com os delitos de ímpeto. O que se pode buscar
fazer é artificiosamente antecipar o dever de impedir o resultado para momentos
anteriores, a fim de dilatar o prazo para o seu conhecimento, preenchendo uma
lacuna da teoria - no disparo de arma de fogo, esse dever se estenderia talvez até
o mo1nento no qual se iniciou a manipulação do instrwnento.
l\,lenos problemática parece a aplicação do princípio do incremento do ris-
co para os delitos culposos, nos quais essa aplicação surge como um caminho
alternativo à utilização do princípio da não punição de deveres inúteis. Desta for-
ma, é possível uma solução racional nos notórios casos nos quais a adoção dos
cuidados devidos não resultaria em um resultado menos lesivo ao bem jurídico
do que a conduta concretamente empregada.468
Pode finalmente dizer-se que as teorias negativas cm geral propõem wna
inversão de perspectiva. Se historicamente a abordagem da dogmática para es-
truturar a teoria do delito foi a partir dos crimes comissivos como modelo, nesta
etapa os delitos omissivos são elevados ao patamar de modelo. Como destaca Ci-
rino dos Santos, isso implica também uma inversão metodológica, pois transfere
a discussão que, antes, dava-se em uma esfera pré-jurídica (ou pré-típica) para a
esfera jurídica (ou normativa):'69
Consequentemente, diante de um esforço em tentar racionalizar o amplo
campo da não-evitação, essas teorias acabam por generalizar a posição de garan-
tidor (estendendo-a aos delitos comissivos). Nos delitos cornissivos, a assunção
da posição de garantidor seria uma decorrência da conduta anterior, por meio da
qual o indivíduo atualiza sua ofensa ao bem jurídico. Não obstante, apesar dessa
tentativa omnicompreensiva, uma teoria desta natureza não consegue abranger
os delitos decorrentes de tipos penais que não exigem do sujeito ativo a posição
de garantidor, como é o caso dos crimes omissivos próprios (como também é
problemática sua relação com os delitos de mera atividade):''º
Além de tudo, transparece como crítica simples e contundente a observação
de que há ação independente1nente da existência do tipo penal, e o enclausu-
ramento dos conceitos da psicanálise aos limites da teoria da conduta significa
condená-la à simplificação (ou melhor, ao simplismo) e por vezes ao equívoco.471
I1nporta também a ponderação do professor Cirino dos Santos, para quem o cri-
tério da evitabilidade (o principal fundamento da teoria negativa) "integra todas
as categorias do conceito de crime, constituindo, portanto, um princípio geral
4611
OITO, Harro. Op. Cit. p. 88-9.
469
SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 93.
470
ZAP'P'ARONI, E.R.; BATISTA, Nilo [ct ai.]. Dirtilo pmal bmsiltiro, vol. II, 1. Rio de Janeiro:
Rcvan, 201 O. p. 95.
471
• SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 94.

141
de atribuição que não pode ser apresentado como característica específica do
conceito de ação".472
Em wn nível mais fundamental, a concepção negativa de conduta falha
também por sua incapacidade de cumprir sua proposta, realizar de forma defini-
tiva a redução de ação e omissão a um conceito comum. Foi malsucedida porque
se pam os delitos comissivos o critério da evitação é equiparado à não produção
do resultado, então a não evitação seria a não não produção do resultado. Ora,
uma dupla negativa implica uma afirmação (então, a não evitação seria a produ-
ção). Já nos delitos omissivos a evitação é equiparada à não produção do resul-
tado, e a nào-evitação à sua produção. Como se pode ver, nada mudou: a ação
é a produção de um resultado e a omissão a sua não-produção. Os sinais foram
apenas invertidos.473

472
SANTOS,Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 94.
.cn ZAFFARONJ, E.R.; BATISTA, Nilo (et al.j. Dirrito pmnl brn1ileiro, vol. 11, 1. Rio de J:mciro:
Rcvan, 2010. p. 95; Crítica tambc:m apresentada por Roxin (1997).

142
7 - O MODELO DE JAKOBS
Esclarece Jakobs que, ao se discutir sobre o conceito de ação, discute-se na ver-
dade o conceito de injusto. Diversas foram as discussões empreendidas nas quais
se enfrenta a questão da ação, desde o causalis1no até a imputação objetiva - e,
no caso desta, isso se dá porque a normatização empreendida pela imputação
objetiva tem por objeto também a ação.474
Jakobs diz que não busca o conceito de ação em elementos anteriore~ à
sociedade, mas na própria sociedade. O conceito de ação deve, então, (a) articu-
lar sociedade e Direito Penal; (b) possuir uma unidade conceituai, apontar uma
relação de homogeneidade teórica entre seus elementos (e não um agrupado
incongruente de elementos); (e) ter clara sua relação com a responsabilidade por
culpabilidade.475
Na apresentação da concepção de Günther Jakobs sobre ação no Direito
Penal, reconstruir-se-á, aqui, a forma de apresentação do tema realizada pelo
autor, por meio de abordagens graduais que lançam as bases para uma crescen-
te particularização e detalha1nento. Isso significa partir de uma concepção da
ação como (1) responsabilidade pelo resultado, transitando para sua conceituação
como· (2) causação individualmente evitável de um resultado, como (3) tonar-se
individuahnente evitável razão determinante de um resultado, até (4) violação da
vigência da norma como uma máxima de comportamento por um movimento
físico (ação) ou não (omissão).
A resolução pela incorporação do conceito de ação, e mais especifica1nente
de ação humana, implica a opção (1) por uma responsabilidade por organização
(por ação realizada ou realizável em oposição à responsabilidade por mera exis-
tência) e (2) por uma responsabilidade individual (em oposição a uma responsa-
bilidade tribal ou coletiva).
(1) Jakobs recorre ao senso comum estabelecido para sustentar sua afir-
mação de que a responsabilidade nem sempre pressupôe algo a que possamos
chamar coerentemente de ação. É nesse sentido que ele apresenta o exemplo da
pessoa que cai, por vis abso/11/a (rajada de vento, por exemplo) ou por um desmaio,
derruba outra pessoa consigo e se desmlpa ao levantar. Segundo ele, em um exem-
plo tão direto, torna-se especialmente claro como a ideia vigente de culpabilidade
- como culpabilidade pelo exercício da vontade - possui uma penetração muito
litnitada e condicionada pelo desenvolvitnento histórico.476

474
JAKOBS, Güntht=r. EI conct=pto jurídico-pt=nal dt= acción. ln: F.111,dios dr drrrtbfJ pmnl Madrid:
Civitas/UAM, 1997. p. 101-2.
os JAKOHS, Günther. Elco11repto... p. 102.
• 476
JAKOBS, Günther. E/ ro11cepto... p. 103.

143
Analogamente, seria possível dizer-se que a responsabilidade poderia ad-
vir também da maneira como uma pessoa existe no mundo, e isso também é
possível deduzir do senso comum. Tal forma de responsabilidade possuiria u1n
claro parentesco com a responsabilidade pelo resultado. A pena atribuída a uma
constituição desventurada da existência não pode ser compatibilizada com as
finalidades modernamente atribuídas à pena - c01n qualquer função preventiva,
de manutenção do slal11s q110 ou de limitar deteriorações ulteriores da vigência da
norma-, mas apenas pela ideia de defraudação de expectativas. Não obstante,
t'lnto a finalidade de restituição da vigência da norma (a qual, sehrundo Jakobs,
subjaz ao sistema de justiça) quanto a estrita retribuição não dão conta da ideia
de responsabilidade pelo resultado.477
Há, portanto, um hiato de finalidade da pena que explique de fonna sufi-
ciente determinadas atribuições de responsabilidade. Essa insuficiência se ex-
pressa particularmente quando se tenta fundamentar funções simbólicas da pena,
ou, nas palavras de Jakobs, quando não se busca restabelecer algo (vigência da
norma, sla/11s q110, etc.), mas demonstrar algo - como diante da condenação de
indivíduos de regimes anteriores ultrapassados. O único fundamento comum
possível, portanto, seria a ideia de defraudação de expectativas e, portanto, a exi-
gência ou não de uma ação é um condicionamento meramente histórico, e não
natural ou ontológico.478
Por consiguiente, este objetivo de restablecimiento no necesariamente for-
ma parte ni del concepto de responsabilidad ni del de pena, de manera que
la única diferencia que queda entre la responsabilidad por el destino y la
retribución de un crimen es el carácter de la defrnudación que se articula -
en un caso la defraudaci<>n por la desgracia de la existencia y en el otro por
una voluntad defectuosa -. El que en una sociedad impere uno u otro de
estos modelos, es decir, que se requiera o no la concurrencia de una acción
para poder someter a alguien a una pena, depende del estadio de desar-
rollo de esa sociedad, y no de una pretendida confi1,,uración inmutable de
b naturaleza o del ser humano.479
(2) Um argumento análogo poderia ser levantado a partir da responsabili-
dade por pertencimento a determinado grupo tribal, quando a constatação de
uma ação pode ser decisiva, mas não o é no sentido que entendemos atualmente.
Na verdade, a ação não seria considerada como um ato individual, mas como um
feito realizado por todo o grupo (contra outro grupo). Assim, a ação que funda-
menta a responsabilidade não precisa ser necessariamente individual.480

m Ibidem, p. 104.
~~ lbidt:m, p. 104.
479
Ibidt:m, p. 104.
"" Ibidem, p. 104-5.

144
É cm função dessas considerações que Jakobs propugna a delimitação
de um grau mínimo de ação, para fundamentar a imput'lção de um delito pelo
comporta1nento e não pela simples existência. E essa delimitação se dá inicialmente
a partir do sistema penal erigido soLrc a responsabilidade pelo resultado.481 Nesse
sentido, nem toda responsabilidade baseada em tal concepção será necessariamen-
te penal, especialJnente se se limita a concepção de pena à vontade defeituosa do
agente ou ao restabelecimento da vigência da norma, por exemplo. Ainda assim, o
recurso a uma responsabilidade pelo produto permite o resgate da concepção de
defraudação de expectativas precipitada pela conduta do agente.4112
Jakobs chega à conclusão de que as categorias (e leis) pelas quais se constrói
o mundo institucional (social) são qualitativamente diferentes das que regem o
inundo natural. Portanto, afirma explicitamente, que atuar si!:,>nifica - em sua
concepção de responsabilidade pelo resultado - estar vinculado a um fato
pelo destino. Em outras palavras, a constatação ou não da ação se dá por um
processo de iinputação. Com isso, determinados elementos da conduta (como
voluntariedade ou finalidade) passam a ser considerados elementos de indicação
de uma vinculação do resultado (como "obra do destino").483
Paralelainente, enquanto na responsabilidade pelo resultado, a vinculação
representa o "destino", para os delitos imprudentes a vinculação do resultado
passa pela noção de deficiência do SJgeilo. Para Jakobs, uma consequência poderia
ser evitada se o agente estivesse motivado para tanto, assim, nos critnes culposos,
o indivíduo se comporta de forma indiferente em relação às consequências, sem
se preocupar se irão ou não se realizar. Não levar em consideração determinados
ele1nentos é wna to1nada de postura que significaria a depreciação daquilo que
não se leva em consideração.484
Se, em princípio, poderia parecer mais complicado assumir a mesma pos-
nua para os casos nos quais a pessoa, na conduta imprudente, não leva em con-
sideração as possíveis consequências, Jakobs afirma aí também uma tomada de
4111
"Utilizarc: aquí un concepto estricto de respons:ibilidad por d resultado, esto es, no d de: res-
ponsabilidad por las consc:cuc:ncias de un actu:ir pdigroso o de: un comportamit:nto probablc:-
mente culpable, sino por la mera producción de un rt!sukado". JAKOBS, Günthc:r. E/ ro11rtplo...
p. 105.
4
&.? É nesse sentido que Jakobs resgat:i a história de Alboíno e Rosamunda. Cf. JAKOBS, Günther.
E/ co11ceplo... p. 105-6.
.cu "El que d :tutor llevase a cabo algún acto ,·olunt:irio, que desarollase determin:id:i organización
final, no interessa por d contenido de su voluntad, sino sólo es d principio de su posterior
vinculacion, por obra dei destino, com la desgrncia". Ibidem, p. 106.
.ca.. Como "quien conduciendo un :mtomóvil no se da cuenta de que está superando la velocidad
máxima permitida, porque no )e interesa si la está respetando o no, declara a través de su
comportamiento que la regulación relativa a la velocidad carece de importancia". Ibidem,
p. 110-1.

145
postura que envolve motivação errônea do sujcito.485 Dcstarte, em uma segunda
etapa, propõe uma aproximação_do conceito de ação (a partir de suas ideias sobre
a conduta imprudente), na qual ela é expressão de sentido, 1nas u1na expressão
de sentido que se traduz na ca11sação i11dil'id11a/111e11/e e11itá11el. Ação seria, em outras
palavras, (a) a ca/fsaçào (dolosa ou imprudente) de determinadas consequências,
a qual é (b) evitá1;e/ porque não ocorreria diante da correta motivação do agente
(direcionada à não produção das consequências em questão).4116
Não obstante, esse conceito de ação por si mesmo não seria, atualmen-
te, totalmente satisfatório porque: (a) diz respeito a uma concepção individual
de ação, negligenciando sua inserção social; e (b) não daria conta das tentativas
(ações sem resultado) e dos delitos omissivos (ações sem nexo de causalidade).
A partir dessas considcraçôes pode-se vislwnbrar já em Jakobs certa inclinação a
uma concepção comunicativa de conduta.487 A ideia de subsunção das manifes-
tações individuais a wna configuração social mais ampla, da tomada de posição
indi,..idual (ou de expressão de sentido) ao processo comunicativo, dá alb1\11lla di- ·
mensão da relativização do papel do sujeito na configuração da realidade que ad-
quirira traços mais definidos e melhor fundament1dos nas teorias significativas.
El concepto de causación individualmente evitable de un resultado abarca
al1:,,unas determinantes individuales de la conh1:,1\.l.Cación humana dei mun-
do - a diferencia del mecanicismo del concepto causal de acción -. Pero
una 'toma de postura, o 'expresión de un sentido' sólo puede comprender-
se como proceso comunicativo, en el que no sólo es relevante el horizonte
de quien se expresa, sino también el dei receptor, y éste no dispone dei
esquema de interpretación del sujeto que se expresa o, si el receptor lo

.w Como "(...) un conductor, distraído por un cartd fascinante, no se fija c:n un paso de pc::atones
y lesiona por ello a un pc:atón. (...) Pero en un primt:r momento, esa parecia ser su toma de
postura: aunque lt: era posible configur:ir la reallidad inrh!Jmdo la atención a los peatont:s esco-
gió una confi1-,1\1ración sin tal atc:nción. El sujeto estaba errónt::imente motivado al admitir la
distracción; bien es certo que no h:í convertido d perjuicio del pt::itón em contenido •expreso'
de su comportamiento, pero sí la distracción, y ésta era cognitivamente incompatible con la
protección dc::I pc::atón". Ibidem, p. 111.
486 JAKOBS, Günther. E/ nmrrpto... p. 111.
417
"Pero una 'toma depostura' o 'expresión de un sentido' sólo puede comprenderse como proce-
so comunicativo, en d que no sólo es relevante d horizonte de quien se expresa, sino tnmbién
d dd receptor, y éste no dispone dd esquc:ma de interpretación dd sujeto que se exprc:sa o,
si d rc:ceptor lo conoce, en todo caso ese esquema no tiene por que: ser determinante por d
mero hecho de ser d esquema indi,·idual". Ibidem, p. 1112; Ou "Sólo si la acción se entiende
no como demento natural en d :ímbito de la imputación, sino como concepto que, a su vez, se
h:tlfa determinado por L, irnputación, l:i acción se convertirá en lo que debc ser: una tomada de
postura en el plano de la et)municación, una c:xpresión de sentido comunicativamente rdev:m-
te". l bidcm, p. 113-4

146
conoce, en todo caso ese esquema no tiene Eºr qué ser determinante por
el mero hecho de ser el esquema individual. 8

O esquema de interpretação ao qual essa teoria da conduta de Jakobs faz


referência não é composto pela relação causal ou final, pois não seria possível
atribuir ao indivíduo como sua tomada de postura, nessa concepção, todos os
nexos causais derivados da sua conduta (sejam eles finais ou apenas previsíveis).
Portanto, só seria possível a atribuição de determinada consequência se a conduta
do indivíduo é entendida como condição determinante e não apenas fortuita.
Assim como nas teorias sociais da ação, torna-se necessário selecionar, do
emaranhado de requisitos e condições para um fato delituoso, aquilo que se apre-
senta como delermi11a11te. () que resta é, logicamente, considerado irrelevante para
a produção do resultado independentemente de qualquer vínculo subjetivo- ou,
em outras palavras, não transpõe a esfera do risco permitido (ou, ainda, não gera
um risco desaprovado). É assim no caso dos fabricantes que respeitam as regras
de segurança para a produção de objetos utilizados para causar lesões (desde
facas até carros), ainda que eles, no mais íntimo de seu ser, desejem o mal que se
abata sobre as pessoas. Com isso, Jakobs sublinha a aparente impossibilidade de
o caráter determinante da conduta se conter na finalidade. 489
Afirma Jakobs:
AI contrario de lo que sugiere el finalismo, a la hora de combinar ser
humano y curso causal a través de la imputación para obtcner la acción
humana, ello no puede hacerse utilizando exclusivamente la anticipación
psicológica individual de cursos causales, ni tampoco por e1 mero hecho
de que se conozca generalmente la existencia de tales sucesos psicológicos
individuales se produce tal combinación: esta vinculación sólo se obtiene
aplicando un esquema de interpretación, y la configuración determinante
de este esquema deriva de la constitución de la sociedad, y no de una com-
prensión exclusivamente individual. Esta misma constatación se conoce
en la dogmática jurídico-penal redente bajo la denominación poco expre-
siva de 'imputación objetiva', y el creador de la teoria final de la acción,
\Velzel, realizó los trabajos preparatorios en esta materia con su teoria de
la adecuación social. Sin embargo, y aI contrario de lo que gcneralmente
se supone, la imputación objetiva o inadecuación social no se suma ai
concepto de acción como fundamento complementario de la responsa-
bilidad, sino que, precisamente, 'acción' sólo es la causación ivp11/able; sin
cse factor no~mativo, considerando sólo el proceso bio-psicológico, lo que

"" lbidt.-m, p. 112. Ainda: "Con otras palabras: la representación subjetiva del result:1do sólo es
relevante en d plano de la comunicación si está bas:ida en un esquema de intcrpretación comu-
nicativamente relevante. Por dlo, los esquemas interpretativos de constucción infantil, los que
tienen en consideración fuer.tas sobrenatur:iles y otros similares, no caben en d contexto de las
acciom:s socialmente relevantes". Ibidem.
41
" JAKOBS, Günther. E/ ro,u,:pto... p. 113.

147
acontece pertenece exclusivamente al ámbito de la naturaleza, y ésta como
tal carece de relevancia jurídica.490

A teoria da ação em Jakobs, ao mesmo tempo em que é normativista, também


é uma teoria de cunho comunicativo. A ação é, então, composta tanto de causação
individual (e evitável) quanto por um esquema social (comunicativo) de interpre-
tação dessa ação mesma, que pode qualificá-la ou não como determinante. A ação
é, portanto, um processo de imputação, e é sob a ideia de imputação que Jakobs
dá conta também da omissão. Especialmente quando se tem em mente que quem
omite uma salvação só é responsável se a omissão foi determinante.491
Se o Direito Penal não se apoia (e não pode se apoiar) mais na estrita
responsabilidade pelo resultado ou pela simples existência, Jakobs propõe
explicitamente urna dupla fundamentação: responsabilidade por uma esjera de or-
ga11ização (ver item 7.1, infra) e pela interpretação de determinados papéis, cuja
renúncia produz uma defraudação de expectativas.
?vlesmo diante dessas considerações, a concepção de ação como um conver-
ter-se, de maneira individualmente evitável, na razão determinante de um resultado
traz soluções e problemas. Os problemas derivam-se principalmente da exigência
do resultado, o qual implicaria a exclusão das ações tentadas. Para contornar esse
problema, Jakobs afirma que o sentido da ação não é dado por seu resultado, pela
modificação da realidade por meio da ação, mas pela ruptura da ordem vigente,
pela postura assumida pelo indivíduo diante da vigência da norma.492
Esta concepción, sin embargo, no significa que sólo tenga importância el
desvalor de acción. AI contrario, corno ya he dicho, lo decisivo es que no
se reconoce la vigencia de la norma, y este no-reconocimiento, al ser un
proceso comunicativo, 1im,pre precisa de una objetivació11 dei hecho de que cl
autor subjetivamente no haya tenido en cuenta la norma como máxima de
cornportamiento. Tarnbién el rnovimiento corporal sin resultado delictivo
externo es una objetivación; de no ser así, carecería de interés jurídico-
-penal. Desde esta perspectiva, el resultado externo del delito es una Hlte,ior
objetivación que incrementa cuantitacivarnente el movimiento corporal.493
490
Ibidem, p. 113.
491
Os limites e critérios para se estabdecer quando a omissão é determin:mte se Vt! com um pouco
mais de detilhes nos próximos tópicos.
492
"Cu:mdo sin razón alguna para hacerlo un autor destruye una cosa ajena, d sentido que expresa
no es sol:imente 'prefiero destruir la cosa a dejarla incólume' Qo que prefü:ra d autor, en sí
mismo, carece de interés jurídico-penal), sino tambifo: 'no rt:conozco ninhruna norma que me
vincule Y prohíba l:i destrucción', y c:st:1 sí que es una proposición que pertenece al contexto
jurídico-penal. La expresión de sentido jurídico-penalmente relevante de una acción injus~ no
está en la manifest.1ción dd autor acerca de cómo se imagina la configuración de la reaLidad,
sino en la toma de postura frente a la validez de la norma que aqudla confü:va de mam:ra inse-
parnble (...)". JAKOBS, Günther. E/ to1urplo... p. 116.
491
lbidc:m, p. 117.

148
Ação é, portanto, a objetivação de um não reconhecimento da vigência da
norma e, diante de tal conceito, ofusca-se a fronteira entre conduta e resultado.
É necessária al!:,ru1na forma de objetivação para que se configure uma ação, e isso
implica a possibilidade de se incorporar cada vez mais o resultado à conduta,
na estrita medida em que indique a rejeição da norma como um imperativo de
conduta.494
Jakobs, em sua trajetória de construção de um conceito de ação, aos pou-
cos se livra dos elementos que se apresentam como problemáticos para uma
formulação genérica. Ele se despe do nexo de causalidade para poder abarcar
as condutas omissivas, do resultado para poder abarcar a tentativa, da finalidade
para poder abarcar os delitos imprudentes, sobrando, no final, um pouco mais
do que u1n conceito pura1nente normativista.495 O conceito de ostent'lção de um
papel, aliás, envolve a noção de expectativas sociais, cujo conteúdo é de que a
norma se constitua como motivação dominante, porque a finalidade da pena é a
manutenção da fidelidade ao ordenamento.496
Por isso, assim como nas teorias significativas, apenas um "defeito no au-
tor" (equivalente a uma ausência de capacidade de culpabilidade que, nos termos
desta teoria, seria representada por uma deficiência de capacidade de motivação
conforme a norma) excluiria a responsabilidade penal, e não a um processamen-
to defeituoso dessa motivação (ou simplesmente, uma motivação dissonante).
Particulannente, o dolo e a imprudência são explicados como um déficit
de motivação para o cumprimento da norma; por isso, a evitabilidade não é mais

~94 "Entonces, êhay un resultado que es parte de la acción? Siempre lo es la objctivación dei no
rcconocimiento de ln norma. Y, m:ís all:í, êt:lmbién pcrtenecc: a la acción un resultado externo?
J\Jgún tipo de objeth·ación ncccsariamentc forma parte de l:l acción. El hccho de lt:vant1r
bruscamente un :trm:1 por si mismo ya cs la causación de un resultado. êy los demás rcsult1dos
que derivan de manem evitablc dei movimento corpornl? Incrcmcntan cuantitttivamente la
objc:tivación". Ibidem, p. 118.
~ 9 ~ "Formulo una conclusiôn provisional: acción cs objctiv:ición de la folt.1 de reconocimicnto de
fa vigcnci:t de la norma, csto cs, la cxpresión de sentido de que la norma cn cuestiôn no cs la
máxima rectorn. Exprcsión de sentido es un comportamicnto que: conducc o puede conducir
a un resultado dclictivo externo y evitablc, si este comporumicnto, de acuerdo con un juicio
comunicativamente relevante, cs o podrfa ser determinante dei delito externo. En la secuc:nci:i
Ín\'crsa: se crca de mancra evitable una condición dei resultado (ésta es la acción dei finalismo,
amplfa<la a la imprudencia, aunquc en realidad sólo es 'acci6n' porque.: cicirnmentc se inclup:
algún esquema de interprctaci<>n de sentido); esta condición es la rnz6n determinante dcl re-
sultado, o poderia llegar a sedo, de acucrdo con un juicio comunicativamcnte rdc:vantc (así cs
como hay que precisar cl concc:pto de.: acción después de su desarollo por la teoria de l:l impu-
taciôn objetiva)". Ibidem, p. 118.
96
~ "(...) quicn no pucdc sab<.:r que bs vi:mdas que sirve cscin envenenadas, no comete injusto algu-
no, pero quicn sabe que, de acuerdo con un juicio comunicativamente relevante, podrfan c:srnr
envenenadas, comete una tcnrntiva, aun cuando c:n re:ilidad no lo c:stén,,, JAKOBS, Günther.
El<o,ueplo... p. 120.
149
estimada como um critério subjetivo, mas como um critério objetivo. Dolo e
imprudência são, assim, indícios do déficit de motivação de cumprimento da
norma. 497 Tanto os elementos subjetivos quanto a ação como mn todo apresen-
tam, então, analogamente às teorias significativas, caráter indiciário em relação
ao injusto. 4911 •

Se fosse formulada em termos da nonna que há de ser violada pelo autor,


a concepção de Jakobs prescreveria algo como: não realiza algo que na moldura
das interpretações válidas possa significar lesionar. No entanto, seria possível
levantar a questão se um sujeito que não é culpável poderia realizar u1na tnanifes-
tação que significasse uma lesão. Questão a qual Jakobs, prontamente, responde
que nào. 499
Alguns preceitos da esfera da culpabilidade, afirma o professor de Bonn,
não podem ser trasladados para a norma, em especial porque configuram um
âmbito de metarregras 500• Separa-se, assim, o injusto como vulncrnção da vigên-
cia da norma e seu caráter culpável. E neste ponto, novamente de fonna prôxima
às teorias significativas, recorre-se à noção de metarregras, a qual é problemática
no ramo da Filosofia da Linguagem. Feita a honrosa ressalva de que a metarregra
apresentada por Jakobs parece pennitir um trato e uma instrumentalização muito
mais simples se comparados às atuais teorias significativas.501
Por fim, como o injusto não esgota a responsabilidade, a ideia de ação de
Jakobs - a qual ele propõe que dialo!:,>ue co1n todo o seu siste1na teórico - é re-
formulada para que possa expressar o comportamento que exija a imposição de
uma pena. Portanto, a ação é reavaliada como um converter-se, a si mesmo, em
culpável, ou ainda, como wna ass1111çào mlpável da co"'petê11cia por 111110 v11/11eração da
497
.. Lo subjeti,·o-incfüidual, c:sto c:s, d dolo como hc:cho psíquico,· por tanto no fi111dn111t11/t1 d
injusto, sino que: sólo c:s un indirio de: la existência de: una falta (determinada objc::tivamc::ntc:) de:
moth·ación para cumplir la norma". Ibidem, p. 121.
498
..Tod:1 l:i dirc::cción de la acción unicamente: tic:nc: un si1-,'11Íficado indiciario; indica que falta lo

único que: se:: gar:mtiza por mc::dio dd Dc:rc:cho penal: disposición para cumplir la norma. Por
consi1-,'Uic::ntc::, no es certo que: la dirección dd comportamiento no tc:nga función alguna t:n d
:ímbito de:: lo injusto: se: l:i apreende: por medio de indicios". lbidc::m, p. 121.
479
"(...) por consiguic:ntc:, sc::a cual se ala razón de:: que: en una concepeción moderna la pena prc:-
suponc: culpabilidad, c:n todo caso puedc: decirsc: que: en marco de tal concepción no existe una
lesión de: la ,·igencia de: la norma jurídico-penalmente rdevante sin culpabilidad, t:sto es, que:
la finalidad dc:: la pc::na no cristaliza c::n l:t vulnt!ración de la norma - que puede producirse sin
culpabilidad - como injusto, sino c::n la culpabilidad". Ibidc:m, p. 123.
511
' "AI menos algunos prc::ceptos pc:rtc::nc::cientes al :ímbito de la culp:ibilidad, concrc::t:lmentc: los
que se rdieren ai injusto, no pueden incluirsc: en la norma, sino que constituyen un :imbito de
metareglas,,. Ibidem, p. 123; Ou "Desde: esta perspectiva, formul:índolo como norma, detr:is
de la norma de comportamiento hay otrn norma (ést.1, sin embargo, no tic:nc que ser cognosci-
ble) con d ses,ruic:nte tenor: jno se:1s culpablc::!'>. Ibidem.
5'lt JAKOBS, Günthc:r. F./ ro1ueplo... p. 123.

150
1-i...v,ê11cia da 110r111a. Porém, como o próprio Jakobs chama atenção, um conceito tão
amplo pode ser requisitado para a utilização desde um Direito Penal da culpa-
bilidade, passando por u1n Direito Penal do resultado, até u1n Direito Penal da
simples existência. 502
Ação e atribuição de responsabilidade tornam-se a mesma coisa, e o concei-
to de ação passa a ser extraído do próprio processo de ilnputação. Especiahnente
porque é por meio desse processo de imputação (do quadro social e dogmáti-
co de interpretação) de onde se deduz o que vem a ser uma conduta relevante
(que é o equivalente a uma conduta no binô1nio clássico conduta-ausência de
conduta). 503
Têm razão Batista e Zaffaroni ao afirmarem que, enquanto a clássica con-
cepção negativa de ação se debruçava sobre a omissão como um modelo para se
compreender todas as condutas, em Jakobs ~ modelo se torna a i111pr"dê11cia. Por
isso elege a er1itabi/idade como categoria central para pensar sua teoria do delito
(que cotnparece e1n todas as formulaçc,es de seu conceito de ação). Assiln, é per-
tinente extrapolar as críticas direcionadas às teorias negativas para a concepção
de Jakobs: não é possível equivaler a causação não evitável individualmente de
um resultado (ou da vulneração da vigência da norma) à ação atípica, quando em
grande parte dos casos sequer nos depararíamos com uma ação.50-f

7.1-Algumas repercussões dogmáticas


A configuração da sociedade, para Jakobs, se dá por meio de contextos
nonnativos consolidados, aos quais ele cha1na de instituiçôes, como os contextos
jurídicos e, mais especificamente, o contexto jurídico-penal. Nesse sentido, ele
511:?Jbidt:m, p. 124.
SIJ> "(...) d hecho de que se pueda ejecutar en la propia vivenda la acción jurídico-penal de un
homicidio, pero no la acción jurídico-penal de c:mt:tr canciones popul:m:s, deri\"a de la confih'll-
ración de la sociedad que desaroll:t para lo uno n:glas juriclico-pen:tles de imputnción, mientr:is
que si se establecen paro lo otro n:glas de imput.'\CÍÓn, desde luego no son jurídico-penalt:s. A
diferencia de lo l]Ut: ocurrfa con d concepto de acción de IP'rlzel, qut: por ser ajeno a la sociedad
(...) también abarcaba cualesquiern :tetos finales, en el marco dei conct:pto de acción que aqui
se defende, unicamente son rdev:tntes :tetos que responden a unas determinadas carncterísti-
cas. Desde d punto de vista dei Derecho penal, la acción siempre y em todo ca~o sólo es algo
socialmente inadecuadoº. Ibidem, p. 124.
5'M "Procura Uakobs) assim entroncar-se em Hegd, tmborn evite as consequc:ncias sist~áticas ao
custo de assumir que, para o direito pt:n:tl, as ações não ddituosas não são ações. A ação como
evitnbilidade permite que:: ele separe a ancijuriclicid:tde (1mput:içiio objetivn) da culpabilidade (unpu-
mçno subjetiva): com a primdrn afore-se a c::vitabilidade pelo parâmetro das expt:ct:iti\-as conforme a
pnpds sociais; com a se1-,runda, como evitnbilidade individual. frio Jl(S!fl? 11111a asno dtJ dolo r111 ro111pom·11tr1
rtl)!.llosdti,w, q11eJ><1tr11rr111 no i1y11.rlo, r t'rllititw, q11r pn.rs<1111 à mlp<,bilidadl>. ZAFFARONI, E.R.; BATISTA,
Nilo [t:t al.J. Din·ilo pc11al brasilri,v, vol.11, l. Rio dt: Janciru: Rt:\':lll, 2010. p. 97. Grifo nosso.

151
vislumbra relações muito particulares. Em especial a relação de dois contextos:
um que diz respeito ao direito de liberdade de organização - organização, aqui,
entendida como confib,uração da conduta, por procedimentos e valores internos
a da, de forma a explicitar (cm um fazer ou não fazer) dctcrmina<la orientação5115
- à qual corresponde a um dever de não lesionar a outros (dever negativo); e ou-
tro que diz respeito a um stat"s especial ao qual correspondem deveres (e direitos)
especiais, deveres positivos (de soli<lariedade).506
A ordem social, assim, estaria de tal forma configurada que não se exauriria
nas relaçt,es negativas de não causar lesão a outrem - embora esse seja o pata1nar
mínimo de socialização-, mas incorporaria também relações positivas, as quais
implicam deveres de assistência e solidariedade. O exemplo suscitado por Jakobs
é o da paternidade, a qual implica não só wn dever de se abster de lesionar os
filhos, mas também um dever de tutelá-los positivamente, de fomento de seu
desenvolvimento. Esclarece Jakobs que essa diferença entre dever positivo e ne-
gativo é frequentemente ofuscada porque frequentemente elege-se o direito e sua
violação (e não os deveres) como ponto de partida das análises jurídicas. Tanto
uma violação de dever positivo quanto negativo pode gerar, portanto, violações
mais ou menos indistintas de direitos. 507
O ponto de vista dos deveres, no entanto, ofereceria interpretações mais
nuançadas. Seria possível, por exemplo, distinguir questões de fundamentação
dos deveres ncg:itivos e positivos. Enquanto os deveres negativos apont,un para
circunstâncias nas quais o autor provoca um agravamento da situação (como
uma lesão causada diretamente pelo autor), os deveres positivos apontam para
circunstâncias nas quais o autor deve se contrapor a wna situação já agravada,
ou seja, favorável para o surgimento de uma lesão independentemente de sua
conduta (a ausência do sujeito não se manifesta, como na situação anterior, na
concomitante ausência de lesão). 508
A configuração do mundo não se dá, nesta concepção, por um atuar posi-
tivo irrestrito e incessante, mas por uma organização ordenada. E uma organiza-
ção ordenada se compôe invariavelmente de ação e omissão. Bem cotno se sabe,
os mandatos se violam pela omissão e as proibições pela ação. Ação e on1issão,
afirma Jakobs, são também intercambiáveis e isso indicaria uma equivalência en-
tre ambas as formas de conduta.S<rJ

sa,s Nesse sentido, \'er: JAKOílS, Günther. Aç,io 1' 0111i.uiio 110 Dirrilo Pn1t1I. São Paulo: l.\Innolc, 2003.
p. OS. Nota 4.
50(, JAKOBS, Günther. Ad11,1r.J 0111ilir. ln: Los desafios dei dcrecho pcn:il en cl siglo XXI. Lima:

J\r:i, 2005. p. 159.


sm JAKOBS, Günthcr. Ar,io e 0111iJJtio... p. 02-3.
51111
lbidcm, p. 03-4.
5119
"(•••) cu:indo, circulando d vchículo :1 :1lt:1 vdocid:id, aparece repentinamente un obstkulo, l:t
norma lc 111,111dt1 frenar o esquivar cl obstículo, e incluso cn caso de cst:u dcspcj:id:t fa vfa, lc pro-
152
Essa equiparação fica mais clara nos exemplos suscitados pc1o autor, em
especial o caso do motorista que deixa de frear o carro em velocidade alta para
atropelar al!:,rué1n e aquele que acelera o carro em velocidade baixa para atropelar
alguém. Situações equivalentes, nas quais em uma há ação e na outra omissão. As
diferenças entre ação e omissão se dissolvem aos olhos de Jakobs, e ambas são
percebidas co1no fonnas de orgn11izaçào do a11tor. 510 Resta excluído tainbém, dessa
maneira, o expediente teórico empregado por alguns autores de se estipular a co-
missão como a forma fundamental de responsabilidade penal para, então, tentar
se deduzir daí a responsabilidade por oinissão.511 Pois:
Ciertamentc, cn un sentido externo, prácticamente cualquier empresa há
de comcmrnr con un actuar; primero hay que adquirir y domar a los ani-
malcs, las máquinas primcro han de ser construidas y pucstas cn marcha,
lns instalacioncs industrialcs han de establccersc y activarse antes de que
csns cosas e instalaciones pucdan trabajar para uno, pudiendo omitir actos
propios. Pero desde cl punto de vista jurídico, no es decisivo qué es lo
que fácticamcnte sucle estar al comienzo de una actividad, sino aquello
que mantcnga una rclación de equivalencia funcional, y lo cierto es que
depende dcl estado de la organización de una pcrsona - de un estado que
es casunl - que ésta dcba intcrYcnir actuando o que sólo deba esperar para
configurar una organización que pcrsigue un determinado objctivo. 51
O movimento teórico empreendido por Jakobs é em sentido oposto ao
caminho classicamente trilhado. Ao invés de partir da ação para construir a es-
trutura normativa da itnputaçào, Jakobs parte das situações nas quais é possível
imputar ao sujeito modificações no mundo, realizadas ou toleradas, para se pen-
sar a ação e a omissão. () professor de Bonn esclarece que é por meio da noção
de titularidade de direitos e deveres que se deve conceber a pessoa e, assim, os
limites de sua organização juridicamente possível.
O alcance dos direitos de determinada pessoa estabelece, portanto, sua es-
fera juridicamente garantida de organização. E essa esfera de organização não se
esgota no simples movimento corporal, mas na ampla disposição das coisas sob

híbt acelerar d automó,·il por encima de la vclocid:id máxim:i permitida. En este contexto, en d
caso concreto, a su vez puede depender dd equipamiento tfrnico que:: st: trate de un 11m11dalo o
de un:i prohibido11; así, por ejemplo, si una serial de tráfico ordena una redución a l:t ,·docid:id, Je
está pr()hibido ai conductor acdernr su ,·ehículo; si, sin embargo, t!Stt: cuent.'l con un mec:mismo
autom:hico de mantcnimicnto de una dc.:terminad:i ,·docidad, existir.i d 111t111datu de rc.:ducir d
valor alto indicado prt:\"iamcntc.: al mecanismo de:: concrol de la n:locid:id". JAKOBS, Günther.
Arlttnr... p. 161.
" "Más importante qut: esta distinción entre actuar r omitir es Jo que:: amb:is modalid:ides de
51

conducta tienen en com{m: ambas son una organización dd autor". Ibidem, p. 161.
511
Ibidem, p. 160-1.
m Ibidem, p. 161-2.

153
sua propricdade.5n Assim, os conflitos começariam quando alguém extrapola seu
âmbito de organização e invade o âmbito de organização alheio.

7.1.1 - Deveres negativos e positivos

Os deveres negativos são frutos da articulação entre liberdade de orga11ização


(011 de co111portan1e11lo) e respo11sabilidade pel{1S conseqNê11cias. Corno é o sujeito o respon-

sável pela disposição dos seus direitos (com a exclusão dos demais), ou seja, sua
autoadministração, é ele também o responsável por qualquer ação ou 01nissão
referente a deveres negativos. 514
Nessa concepção teórica, isso significa que o sujeito se tornagarantidormes-
mo nos delitos comissivos. Nos delitos comissivos, torna-se garantidor de que
sua livre organização não se manifeste em desferir tiros contra terceiros, atropelar
alguém, envenenar outra pessoa, etc. A responsabilidade pela comissão se daria,
em outros termos, porque seria uma responsabilidade pela ,,iolação do dever de
a1se.._e.,11ra111mlo, ou dever geral de asseguramento de trânsito (da pessoa em relação
aos seus próprios movimentos corporais). Dever de assegurnmento o qual se
manifesta não só na proibição de execução de condutas lesivas, mas tainbém no
dever de interrupção de uma conduta que, inicialmente inócua, torna-se poste-
riormente lesiva. 515
O mesmo raciocínio se aplica para os delitos omissivos, especiahnente por-
que a esfera de organização não se compõe apenas da pessoa, mas das coisas
de que ela dispõe, como carros, animais, apartamentos, etc. Deve-se evitar, por-
tanto, que essas esferas de organização produza1n algo lesivo, co1no, no caso
dos animais, o dono ordenar a seu cachorro que cesse o ataque, caso invista
sobre alguém. 516 Não obstante, nem toda lesão que possa ser traçada até a esfera
de organização de um indivíduo implica necessariamente sua responsabilidade,
até porque, no caso dos crimes comissivos, por exemplo, não há uma completa

su "(..) por lo tanto., cstt: :imbito es mucho m:is que d mero alcance de la nctivid:td corporal, sino
qut; por d contrario, se exticndc: a todo aqud campo c:n d que: la persona pucdc licitamcntt: ex-
cluir a otras pc:rsonas, c:s dc:cir, que abarca también d conjunto de: la propiedad sobre mucblcs t:
inmuc:blc:s, r dlo incluso au01.1uc: no c:xista un uso actual". !bidc:m, p. 162. Apes:ir de Jakobs usar
o termo propriedade, im:11-,rina-se aqui que a mdhor interpret.1ção de tal teoria implica relações
mais abr:tngentes fundada no dirdto civil, como propric:dade, posse e detenção.
m JAKOílS, Günthc:r. Arno t 0111is1no... p. 08-9;JAKOBS, Günthcr. Ad11nr... p. 163-4.
SIS JAKOBS, Günthcr. Arno t 0111ÍJ1no... p. 08-9;JAKOBS, Günthcr. Arl11nr... p. 163-4.
516 "(...) aqud que no fija de modo adccu:ido las tc:jas de su casa, de modo que los peatoncs ~1uc
pasan ai l:tdo de ésu puedcn sofrir un d:iiio ai caer las tcjas, pas:mdo por la responsabilidnd dd
propietario de animalt:s pdigrosos que no los cncicrra, y llegando hasta la rcsponsnbilidad dei
c:mpres:uio que no impidc la distribución de productos lesivos". JAKOBS, Günther. Ar1t1nr. ••
p. 164-S;JAKOBS, Günther. Ar,io r 0111is1no... p. 10.

154
identificação entre nexo de causalidade e imputação ("nem toda relação causal
é causalidade imputável" 517). Pense-se nos riscos permitidos e na autocolocação
em perigo.518
O dever de asseguramento não se manifesta sempre nos estritos limites
da titularidade da esfera de organização do sujeito, mas pode ser precipitado de
outras 1naneiras - chainadas de comporta111ento de organização -, nas quais o sujeito
atrai para si esse dever. Isso se dá quando o indivíduo contribui para a diminuição
da proteção existente na esfern de organização de outrem, criando-se um dever
de assunção (Übcrnahme), de compensar a proteção diminuída. Esse dever de
assunção, por sua vez, seria gênero das espécies ass11nção vo/1111/ária e i11geré11cia. No
caso da assunção voluntária se trnta de uma diminuição compactuada de prote-
ção e, no caso da ingerência, trata-se de uma diminuição imposta.519
Não interessa, deve-se destacar, a origem da proteção diminuída, se advinha
de um garantidor, de um não garantidor ou de uma situação da natureza. Tam-
bé1n é 1nenor a relevância da fonnalidade da assunção, ou seja, a imposição de
um instrumento contratual civilmente reconhecido. Essa assunção pode ser rea-
lizada informalmente, como pela oferta de ajuda a um cego para atravessar a rua,
a qual implica o dever de não larg.í-lo no meio de uma via 1novimentada; assiin
como esse dever pode ser assumido por alguém que ainda não tenha adquirido a
maioridade civil e está, via de regra, impedido de celebrar contrntos.520
Na verdade, o único eletnento com albrum peso, para J:ikobs, é o da efetivi-
dade da proteção originária. Consequentemente, é preciso que a conduta de com-
pensação deva ser realizada até que se tenha restaurado efetivamente o equilíbrio.
Não bastaria, por .assiin dizer, uma conduta co1no petição de boas intcnçc1cs.
Olhando por outro prisma, o abandono da esfera originária de proteção pela
vítima pode ser atribuído à própria vítima ou a outrem, dependendo dos critérios
evocados, e é de acordo co1n esses critérios que se poderá responsabilizar un1
tcrcciro. 521
Como Jakobs propõe o total paralelismo entre ação e omissão, ele rnmbém
vislu1nbra a possibilidade de violação do dever de assunção por u1na cmnissão,
ou seja, quando o vedado não é a omissão de uma conduta e, sim, a realização
dela. Isso se dá nas situações as quais o sujeito modifica sua esfern de organização
por meio de uma pro1nessa, 1n01nento o qual estabelece o marco de proibiçjo de
realização da conduta para que a esfera de organização alheia continue ilesa. Esse

m JAKOilS, Günther. Art11nr... p. 165.


si~ lbiclcm, p. 164-5.
SI? JAKOns, Güntht:r, Arno t 0111im10... p. 09-11 ;JAKOílS, Günthcr. Arl11nr... P· 164-5.
S?lt JAKOilS, Günther. Arhtnr... p. 165-6.
~• Ibidem, p. 166-7.

155
seria o caso do indivíduo que convida amigos para a sua casa e tranca a porta,
impedindo que saiam.522
Não muito distante do que já se discutiu até agorn está o instituto da inge-
rência. Quem diminui ou elimina uma proteção da esfera de organização de outra
pessoa deve compensar essa diminuição em um nível equivalente. O que se abre
parn discussão são os limites e os critérios de imputabilidade de mna depreciação
da proteção. Um critério bastante difundido é, para a questão da ingerência, que
a antijuridicidade do comportamento anterior cria um dever. 523
Em função do notório caso Lederspra_J•, 524 o critério da ass1111ção de 11n1 n·sco
espetial é alçado a uma posição central. Portanto, paralelamente à responsabilidade
por conduta anterior antijurídica, assume grande importância a responsabilidade
por comportamentos lícitos que implicam um posterior aumento de perigo (ou
lesão) não prcvisfrcl. Em outras palavras, nos casos de um aumento do perigo
"normal" (ou aceito) de qualquer conduta humana, o agente incorpora o dever
de 111i11i111izar as co11seq11ências lesivas de se11 co1J1porta1JJeuto porque cada ação hu1nana
possui em tese wn risco especial. Introduz-se, assim, uma espécie de responsa-
bilidade objetiva, na qual, mesmo quando o comportamento do agente não era a
princípio antijurídico - não haveria como o agente saber do perigo oferecido pela
sua conduta -, ele assume a posição de garantidor porque sua conduta mostrou
posteriormente ser perigosa ou lesiva. 525
Risco especial seria aquele que ameaça extrapolar o limite do sociahnente
aceito de cada conduta humana lícita, e poderia se manifestar a qualquer mo-
mento. O agente assume, com isso, o dever de impedir o resultado, mesmo que
não fosse inicialmente possível saber do caráter perigoso da conduta. Co1no os
perigos derivados da condução cotidiana de automóveis, por mais imprevisíveis
que sejam. Com a ressalva de que o risco especial pode ser suplantado por um

~u Jbidt:m, p. 167.
m JAKOílS, Güntht:r. Arll,nr. .. p. 170-1; JAKOBS, Güntht:r. Açnu r 011Jissno... p. 13-4.
~ O Caso L,:d1·rsprt1J' (F:.11tHhrid1111)!.m drs H1111d,·~S!,<'tich1Jhefi·s i11 Stmfinrhr1r. BGHSt, 35, 106) foi <-1uan-
do o Suprt:mo Tribunal h:dt:ral :1lt:mâo decidiu sobrt: a rt:sponsabilid:tdt: dt: dirigcntt:S dt: uma
t:mprt:s:i qut:, após tomart:m conht:cimt:nto qut: um de:: st:us produtos podt:ria c:1usar danos à
saúdt:, opt:1r:im por não rt:tirá-lo produto dt: circulação.
m "Sin t:mb:irgo, partit:ndo de t:sta fund:1mt:nt:1ción, prácticamt:ntt: cuak1uier comportamicnto
con t:ft:ctos caus:1lt:s (y los dcm:ís c:irt:ct:n desde un principio de interc:s) podrfa dt:sencadcnar
un dcbcr en virtud dt: injt:rt:ncia. En const:cuencia, la única cuestión decisivaes si la conducta
dt:bt: st:r ~juiciada como antijurídica en d momt:nto en d que es realizada en virtude de la
pdigrosidad que mut:stre ya en ese momento. (...) y por dlo tienc: d deber - a pasar de actuar
de modo lícito - de minimizar las consecut:ncias lesi,·as de su comportamiento. 'J\rrogación de
um riesgo t:speci:11' es d concepto decish•o; fa antijuridicidad de:: fa conducta sólo cs un subpucs-
to - :tu0l1ue sea significatÍ\•o". JAKOílS, Günther. Ar1t1nr. .. p. 170; JAKORS, Günthcr. Ariio"
011,imio... p. 13-4.

156
comportamento no qual a vitima se contraponha a determinadas obrigações,
como o bêbado que cai na frente do carro.526
De ello cabe deducir que el ordenamiento jurídico trata (aún) el uso de un
vehículo de motor como riesgo especial. En correspondencia con ello, el
Tribunal Supremo Federal ar1:,,umentó que quien conduce de modo cor-
recto su vehículo en todo caso no adquiere obligaciones derivadas de in-
jerenda frente a quien causó eI accidente negligentemente. La negligencia
pesa más que el riesgo derivado dei vehículo, pero cuando sea este ricsgo
la única causa dei accidente, probablemente la conducción correcta no
excluya la existencia de un deber en virtud de injerencia. Por consiguiente,
en el caso de la rueda que explota, el conductor deberá auxiliar ai peatón
bajo amenaza de la pena correspondiente a la comisión (...). 527

A peleja de Jakobs é contra a ideia de que a responsabilidade se fundamenta


exclusivamente e1n um comportamento anterior antijurídico, e contra isso ele
suscita o exemplo do estado de necessidade justificante.528 Ele, então, chega à
conclusão de que não é só a relação entre conduta e a esfera abstrata de licitu-
de que pode determinar o espaço de imputação de um delito, mas tainbém a
configuração concreta das sociedades.529 Assim, ele estrutura sua análise a partir
dos delitos omissivos e entende revelar a equivalência entre delitos comissivos e
onuss1vos.
Seria possível uma sociedade na qual se estabelecesse apenas o cumprimen-
to de deveres negativos, os quais implicam a abstenção de lesão a outrem. No en-
tanto, Jakobs entende que nas sociedades reais isso não é suficiente e os de\·eres
negativos são apenas a base das sociedades desenvolvidas; base sobre a qual se

su. JAKOBS, Günthcr. Acll1t1r... p. 170-1.


sv JAKOBS, G ünther. Arl11ar... p. 171; "Para efeitos de escl:m:cimento, deve-se indicar de todas as
formas que um risco especial pode, por sua vez, - JÍI mria t'frbo - ser 'sobrepujado' pda 1 íti111a
1

mediante um comportamento contrário a suas obrigações ". JAKOBS, Günther. Arào r On1i.s-
siio... p. 14.
s:z:a "Se há um incêndio em minha casa, posso entrar rapidamente no jardim do vizinho para extrair
água do lúdrante nde situado (...). Obviamente devo fechar o hidrante quando csti,·er extinto
o incêndio; seria certamente um n:sultado singular que, mediante a remissão à conformidade
ao direito do fato de utilizar da água da fonte, cu me eximisse de fechar o hidrnntc depois da
extinção da situação de perigo". JAKOBS, Günther. Arão t' 0111issào... p. 15.
29
s "A modo dt: cjemplo cabe mencionar d problema de la cumplicidad por omisión en un falso
tcstimonio, una cuestión específica de los procesos de divorcio de acurdo con la anterior legis-
lación (...): una partc procesal niega, faltando a la verdad, que haya cometido adultcrio con un
tcrcdro, y no impcde - una ,·ez citado cse tcrcciro n declarnr como testigo - que ~stc cometa
falso testimonio t:n su dcposición. (...)De este modo, la injcrencia revda ser (...) un sismógrafo
de las condiciones de subsistência de la sociedad, sean reales o imaginarias". JAKOBS, Gün-
thcr. Act11nr. •. p. t 72; JAKOBS, Güntht:r. Ação e 0111i.mio... p. 15.

157
desenvolvem os deveres positivos, os quais se nutrem de forma muito mais direta
dos elementos culturais postos. 530
Nos casos dos deveres positivos, assim, o diferencial não é tanto .ª esfera
de organização de um sujeito ou qualquer espécie de assunção autônoma, mas a
configuração das instituições às quais se vinculam as organizações individuais - a
expectativa social se dirigiria à polícia, ao sistema de justiça, ao sistema de saúde
ct~., e apenas em um segundo momento, e por consequência, ao policial, ao jwz,
ao médico etc. 531
Apesar de reconhecer certa flexibilidade cultural na história dos siste1nas
jurídicos, Jakobs ressalta a necessidade de marcos comuns (um 1111111do co11111111) de
referência nos Estados modernos - os quais, por sua importância, precisam estar
apoiados no binômio liberdade de ação-responsabilidade pelas consequências
(mas não se limitam totalmente a ele) -, quais sejam: a paternidade; algumas rela-
ções Estado-cidadão que se apresentem como tarefas fundamentais do governo;
e demais hipóteses de especial co11jia11ça, em quem detém um detenninado papel
social, de que, em função do papel desempenhado, esse sujeito não frustrará a
expectativa.532 São inúmeros os possíveis exemplos.533

(...) com efeito, não só se exige de uma pessoa isolada que se sacrifique
por outra ou acaso por uma coletividade, mas se trata de evitar que se
abandone a dcstcmpo aquela configuração mediante a qual a sociedade
se apresenta sempre a si mesma, de igual modo que tampouco pode ser
alterado a destempo o equilfürio da relação - também institucional - entre
534
liberdade de comportamento e responsabilidade pelas consequências.

Consequentemente, se da não prestação de um serviço público tido como


essencial se produz um dano, então, os representantes públicos seriam puníveis

53" "En todos estos casos -y dlo rc:sulu dt::cisivo -, las pn:staciones dt:bt:n ejecutarse con indepen-
di:ncia de cuál se:i d :ímbito de or1-,ranilación dd que proven1-,ra d curso pdigroso, o que c:stt:: sea
de origen natural. Y es que se trata de dt::bt:res positivos; la norma no (sólo) disse 'controla tu
organización', sino (t:tmbit:n) 'st= solidário'. (...) êDt:: qut= deberes se trata? Como se há dicho, la
respuesta depende en gran medida de la cultura en cuc:stión (...)". JAKOBS, Günthcr. A<111nr•••
p. 174.
m JAKOBS, Güntht:r. Ariio t 0111iuão... p. 19-20.
m Jakobs usa a expressão "confianza especial hacia d titul:u de un determinado rol". JAKOBS,
Günthc:r. Ad11nr. .. p. 174 e: ss;JAKOBS, Günther. Ariio t Omissão... p. 17 e ss.
m "Portanto, os funcion:írios públicos do Estado que ti:m de levar a cabo suas obrigações têm
tambt:m, evidc:ntemc:ntt:, de ser garantidores (1) da subsisti:ncia mínima, (2) da segurança in-
terior e exterior e (3) dos princípios fundamentais do Est.'ldo de Direito". JAKOBS, Günther.
Arno t 0111issão... p. 22.
514
JAKOBS, Günthc:r. Arão t 0111is1iio... p. 20.

158
por um crime omissivo impróprio.535 Isso se torna mais claro quando se estabe-
lece uma referência às atividades públicas que possuem intrinsecamente posições
de garantia, como policiais, bombeiros, médicos públicos, etc., e que não podem
·ficar impassíveis diante de uma lesão ou de um perigo para o bem jurídico. Mas
também servidores da justiça possuiriam um vínculo com esse dever positivo,
como os promotores de justiça (os quais possuiriam um dever de persecução
criminal). 536
A relação de paternidade possui uma clara. base social, que possui reflexos
normativos, e os deveres e1n questão estruturam seus limites no mundo comum
compartilhado entre pai e filho. Ou seja, há um dever de cuidado físico, mental,
financeiro, educacional etc.,537 o qual vai se reduzindo em sintonia com a maturi-
dade do filho, até desaparecer quando ele atinge a maioridade. 531J
As relações conjugais em geral (e não mais apenas o matrimônio stricto sen-
s11) geram uma relação especial de confiança a partir do momento em que os sujeitos
aceitam interpretar esses papéis sociais, e com isso também geram um mútuo
dever positivo de cuidados. A interpretação de dado papel social depende menos
de sua verbalização ou notificação do que de seu concreto exercício, e, em tese, o
sujeito não poderia recusá-lo em "1nomento inadequado".539 Ademais, enquanto
m "Tal concepción se basa en una tradución (ai menos también) de Estado social, r por ello no
pucde ser trasladada sin más a todos los Est:idos del mundo". JAK0BS, Günther. Arfllar. .. p. 175.
"" JAKOBS, Günther. Arão t 0111iúão... p. 17 e ss; "Um policial está positivamente obrigado, o
que quer dizer, à guisa de exemplo, que ele é o autor (delito de infração de dever) de um delito
de lesões quando não impede que várias pessoas agridam outra, vítima delas, quando poderia
fazê-lo e não th-esse de cumprir outros deveres prioritários". Ibidem, p. 22.
SJ7 "Dicho con un ejemplo: si los padres inviertcn d patrimonio de su rujo de modo especulativo
en vez de en valores seguros y se producc un dano, rcsponden por cl delito de administración
desleal". JAKOBS, Günther. A,11,nr. .. p. 176.
Slll "Também os delitos comuns podem ser cometidos por pessoas que se encontram obrigadas

positivamente no sentido descrito, e então, o delito comum com·erte-se em delito de infmção


de dever. Assim, por exemplo, os pais se encontram positivamente obrigados com relação aos
filhos. Se não tentam impedir que um assassino mate seu filho, ou mesmo lhe prestam auxílio,
ou se o pai não impede que a mãe mate o filho, não se trata somente, por exemplo, de partici-
pação - ·por .omissão ou por ação - nos atos de organização do homiddio, mas além de uma
lesão independente do dever, isto se configura autoria". JAK0BS, Günther. Arão t On1issào... p.
18;JAKOBS, Günther. Art11ar. .. p. 176.
SJ9 "Quem se uniu, pois, a outro numa comunid:ide de risco (...) ou aquele que a11/t1 da nrrutidatlt

aceitou proteger a outra pessoa para o caso de necessidade~ pode ser obrigado pelo direito a
permanecer nessa função 11a si1t1arão dr 11rrusid11dr". JAK0BS, Günther. Arão r On1is1ão... p. 24;
"(...) la especial confianza que aparece cuando una persona acepta desempenar un papel que
determina la forma neccsaria de·la sociedad: si bien puede renunciar lícitamente a esse rol, no
pucde haccrlo ·e n un momento inadecuado. La doctrina dominante :irgumcntaría que cl deber
positivo en el matrimonio o en el vínculo no matrimonial surge de la estrecha comunidad de
vida, pero esta ubicación ticne su base en una confusión entre intimidad y juridicidade. Lo
único decisivo es si hay personas que de modo imputable (representable) se han introducido en

159
as relações de assunção nos deveres negativos se baseiam no agravamento da si-
tuação de outrem, as relações de especial confiança dispensam esse agravamento
para serem estabelecidas.S4o
A teoria jakobsiana não fundamenta a responsabilidade penal sobre ação e
omissão, libertando-se, assim, da necessidade de maiores diferenciações entre as
duas. Em última an~ilise, portanto, não se baseia em uma lesão ou colocação e1n
perigo de bens juódicos, mas sobre a ideia de criação e manutenção de institui-
ções com vigência funcional. 541

wn rol de Clúdar de otro; en cambio, es indiferente que la comunidad sea estrccha o no. Basta
con que (...) no sólo anuncien sus respectivos roles, sino que los ejerzan realmente, sin que
tal empresa tenga por qué conducir a una comunidad de vida de certa intensidad". JAKOBS,
Günther. Actuar... p. 177.
S40 JAKOBS, Günther. Arão t Omiuão... p. 24 e ss. Ainda: "Las relaciones de auxilio constitutivas

de la confianza especial no necesariamente son sinalagmáticas a corto prazo. Todo el campo


de los deberes positivos podrfa denominarse ámbito de confianza especial; entonces, en los
deberes ya tratados dei Estado }' en los de la paternidad aparecen relaciones unilatcrales, ai
menos mientras no se levante la vista más aliá de una perspectiva corta de tempo (porque a
largo plazo, se rechazará aqudlo que no aporte ,·entajas para todos). Lo único relevante es cl
car.ícter generalmente irrenunciable de la institución, este está orientada a um auxilio unilateral
o recíproco. (...) La aulorrrprue11larió11 de las prno11asJúr sodalnmrlt a,eptada, lurgo vinmld'. JJ\KODS,
Günther. Actuar... p. 178.
so "Espero ter mostrado que o Direito Penal moderno não toma como ponto de referência mo-
vimentos corporais de indivíduos ou a ausência deles, mas o sigrúficado do comportamento
das pessoas (...). A configuração da sociedade, para cuja manutenção deve contribuir o Direito
Penal, não se cristaliza em naturalismos como a diferenciação entre comissão e ação, mas em
instituições(...)". JAKOBS, Günther. Ação t Omissão... p. 131-2; JAKOBS, Günthcr. Ad11ar. .. p.
179-80.

160
8 -A TEORIA PESSOAL DA AÇÃO

Claus Roxin relaciona a importância da ação à complementar importância de um


sistema de Direito Penal teleologica1nente orientado. Assim, as categorias funda-
mentais dos tradicionais modelos de delito devem ser pensadas como instrumen-
tos para a coerente realização de um sistema teleologicamente orientado. Essas
categorias são, então, instrumentos de valoração político-criminal. 542
Nesse sentido, a afirmação da existência de uma conduta se deve a wna
valoração constituída pelo juízo de imputação de um feito (ação ou omissão) a
alb>ué1n, como conduta sua. Tampouco a unidade dos conceitos de ação é, para
ele, algo pré-jurídico, mas sim valorativo - apesar de ainda não se tratar de uma
valoração negativa. Não obstante infirmar qualquer pretensão pré-jurídica, Roxin
afirma não sô a função de unificação, mas também a função de delimitação.543
Claus Roxin define a ação como 111a11!festação da personalidade. Ação é, nesse con-
ceito, (a) aquilo que se pode atóbuir ao sujeito como centro anímico-espiritual da
conduta e (b) wna manifestação. Conforme essa definição, diz ele, a maioria dos
casos clássicos de ausência de ação (vi.J abJo/11ta, ato reflexo, etc.) restariam, então, ex-
cluídos do conceito de condut'l, pois não est'lriam submetidos ao controle do Ego, ou
seja, não serirun do1ninados ou dmnináveis pela articulação consciência-vontade. E,
portanto, não poderiam ser considerados manifestações da personalidade. Por outro
lado, os casos restantes de ausência de conduta, como os meros pensamento e im-
pulsos derivados da vontade, também não poderiam ser considerados ações porque
estão nos estritos limites da esfera interna do sujeito e, como não podem ser vincula-
dos a feitos externos, não podem ser considerados manifestações. 54-4
Entender la acciôn como 'marufestación de la personalidad' no es algo
nuevo en la medida que supone una caracterizaci6n con conrenido po-
sitivo de aquello que resulta como característica cuando se ha exduido
todo lo que, se1:,rún consenso general, no aparece como acción. Pero, sin
embargo, ese fenómeno t:m claro de la 'manifestaciôn de la pcrsonalidad'
es deformado en la mayoría de las teorias de la acciôn reduciéndolo a
detalles naturalísticos (como 'voluntariedad' o 'corporalidad') y a formas

S4lROXIN, Claus. Drrrd.Jo Penal, parte general. Tomo I. Madrid: Civitas, 1997. p. 217-8
~> "Por ronto, la unidad de la ncción no cs definida por un algo empíricamente preexistente (ya se ala
c:ms:ilidnd, la conducta volunt-iria o l:i finalid:id) y que estaria por igu.11 cn la base de tod:is las ma-
nifcstacioncs de conducta puniblc, sino sólu por la identidade dd aspecto v:tlurJtivo: Un humbrc
habci acnindo si determinados efcctos procedentes o no del mismo se le pucden atribuir a él como
pcr.;ona, o sea como centro espiritu:il de acciún, por lo que se pucde h:ibbr de un 'hacer' o 'dejar de
haccr' y com cllo de uma 'manifestaciún de la pcrsonalicbd"'. ROXlN, Claus. 0p. GL p. 218.
~ Ibidem, p. 252.

161
de aparición especialmente marcadas ('finalidad'), o sobrecargándolo con
545
valoraciones anticipadas (como 'social' o 'no evitaciôn evitable').

Nessa feita, Roxin esclarece que, em sua opinião, Arthur Kaufmann, Hans-Jo-
achim Rudolplú, Ernst Amadeus Wolff, Enrique Gimbernat Ordeig, Joadúm Hrus-
chka, Urs Kindhauser e outros se aproximariam de um conceito pessoal de ação.S4G
Arthur Kaufmanns-47 define ação como a conformação responsável e signi-
ficativa da realidade, com resultados (lato 1ens11) domináveis pela vontade. A defi-
nição de Kaufmann vincula o conceito de ação à responsabilidade (excluindo os
doentes mentais como possíveis fontes de ação), à liberdade e às consequências
causais, motivo pelo qual Roxin suscita discordâncias. H.J. Rudolphi 548 se refere à
condução consciente da ação, ou de sua dominabilidade. Ernst Wolff549 caracte-

s,u Ibidem, p. 253.


s,u, De forma mais pormenorizada sobre as concepções que reputa parecidas, ver: R0XIN, Claus.
0p. Cit.p. 253-5. Aquelas não citadas aqui (Schmidhauser, Alwart e Kargl): ibidem, p. 254-5;
Jescheck também reputa como semelhantes Roxin, Rudolphi e Arthur Kaufmann, cf. JES-
CHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. 0p. Cit. p. 238.
7
!.4 "A pre,·isào legal descreve de forma tipificada uma situação da vida. A ela estão subjacentes factos
juri<licos (por exemplo, a compra duma coisa, o assassínio duma pessoa), isto é, aqueles aconte-
cimentos reais e acções humanas, que têm significado dum ponto de vista jurídico (não portanto
puros factos empíricos). Os f-actos jurídicos são a matéria do direito, as realida<les <lo lcgisla<lor- O
seu número é ilimitado. O facto juridico mais importante é a acção cm senti<lo jurídico. Podemos
defini-la como 'responsável e significati\'a conformação da realidade com resultados (no sentido
mais amplo) domináveis pela vontade (e por isso imputáveis ao agente)'º. KAUFMANN, Arthur.
h/01ojic1 do dirrilo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2010. pp. 151-2.
S4I "La pena, como me<lio preventi\'o general y preventivo-especial, sólo es apropiada para evitar
o propiciar aquellas accioncs corporales que le son posibles ai autor indi\'i<lual, sobre la base de
su capaci<laJ de con<lucir su comport2miento externo. Por tanto, desde el principio sólo pue-
den ser objeto de las normas pcnales de conduct:a aquellos procesos humanos de reacción que
resultan accesibles a una conducción consciente". RUD0LPHI, Hans-Joachim. E/jin dtl dtrubo
prnal dr/ tJ/ado.J lasJormt11 de imp11/anónj11rídko-penal. Buenos Aires: BdeF, 2012. p. 91-2; "[a impu-
tação pessoal] requierc que el autor, sobre la base de sus capacidades individuales, corporales e
intclectuales, tuvicra la posibili<la<l de conducir - esto es, evitar o producir - conscientemente
aqucllas acciones corporales que. respectivamente, han provocadola puesta en pcligro dei bien
juri<lico protegido, o habrian genera<lo una posibilidad de salvación,,. Ibidem, p. 92-3.
S49 W0LFF, Ernst Amadeus. Dit Lrhrt ,,.on d" Hand/Jmg. AcP 170 (1970). pp. 181-229. Espcci-
ncamentc: "l\1erkmalc dcs Begriffs H:indlung sin<l nach dcn bisherigen Ausführungcn: cine
kõrperliche o<lcr geistige Tãtigkcit eines Menschen, cin <liese T:itigkeit bewirkcn<lcs Wollcn
und ein dieses Wollen bcwirkender Entschluíl. Merkmale des Begriffs Han<llung sin<l also Ta-
tigkeit, Wollen un<l Entschlufl. Eine Handlung ist danach eine <lurch Wollen entsprcchcnd ci-
nem Entschluíl bcwirkte Tatigkcit.Merkmale des Begriffs Handlung simJ also T:itigkcit, Wollcn
und Entschluíl. Eine Handlung ist <lanach cinc durch Wollen cntsprechend einem Entschluíl
bcwirkte Tãtigkcit". Ibidem, p. 214-5; Ou "Handlung und Untcrl:issung sim.l <lamit ais Tatig-
keiten cines Mcnschcn bestimmt, dic eincn Entschluíl zum Inhalt habcn. ( ...) Entschluílhaftc
T:itigkeit ist <ler Gattungsbcgriff zu dcn Begriffen Handlung un<l Untcrlassung. Ein Mcnsch
untcrscheidet sich von am.leren Lcbenwescn <lurch <lie Anlagc zur Entschlieílungsfahigkcit.
162
riza a ação como a realização de uma possibilidade posta ao indivíduo, de forma
livre e dotada de sentido, pois as condutas seriam decisões.
G. Ordeig550 caracteriza a ação como a forma c01no o sujeito se relaciona com
o mundo exterior, a qual implicaria a necessidade de consciência e a possibilidade
fisica de agir de outra forma. J. Hruschka551 relaciona a ação ao seguir regras e à
liberdade ctn relação a impulsos, como co1nbinação de aspectos negativo e positi-
vo. Kindhauser552 estabelece uma concepção intencional de ação, que diz respeito
à ideia de decisão (sobre agir ou não) e remete ao binômio capacidade de ação-
-capacidade de 1notivação, bem como recebe aportes de Filosofia da Linguagem.
Se, de um lado, Roxin admite a proximidade de sua teoria a todas essas con-
cepções, de outro, ele afirma que elas são excessivamente restritas:
Si un omitente no es consciente en absoluto de la llamada de la norma, su
concluem frecuentcmente no se podci interpretar como 'respuesta', del mismo
Ais Lc:benwesen mit der Anl:ige zur Entschlicílungsfiihigkcit ist er Person.Eine entschluílhafte
Tatigkcit cntspdcht dieser AnJage, ist also eine personhafte Tatigkeit". Ibidem, p. 222.
150
"El hombre no es un mero ser inteligente que dispone de un apar:uo psíquico, csto es: no es un
mero ser espiritual, sino uno que se relaciona con eJ mundo exteáor mediante eJ comportamiemo".
ORDEIG, Enrique Gimbernat. Sobrt los ro11rrplos dt omisiô11J· dt ro11IJ>Orlammlo. In: Anuario de derecho
penal y ciencfas pen:ilt:s. Tomo 40, nº 3, 1987. p. 583. Ainda: "Sin embargo, y naturalmente, para que
exista una relación de la persona como ser espiritual frente a1 mundo exterior es preciso: en pàrner
lu1,,rar, que esté consciente; y, en se1-,rundo lugar, que, adernas de estar consciente, sea fisicamente
posible una actitud (hacer o no bater) distint:i de l:i que en concreto se adopto". Ibidem, p. 584.
sst "Ciertamente, si atendemos rt:almente a un proceso como acción--em d sentido actwl de la p:ifa-
bra-, no es e1 aspecto final lo que m:ís imporei de la acción hwn:ina. Las acciones son consideradas
tales, más que a través del nexus finalis, a través de L'l libertad del que actúa --como lo e.xpresó
iJ.,'t.mlmente Platner-. L:i libertad, sehl\Ín él, se h:tlla en contr:1posición con l:i necesidad de la natu-
raleza. (...) libertad es la independencii de un proceso -de una acción- respecto de la suma de
condiciones iniciales precedentes, esto cs, la indepcndencfa dd que actú:1 respccto de los impulsos
que le dcterminan". H RUSCH KA, Joachim. Prvhibiáó11 de &gn,10y ÚJ11n'plo dt !JJd11mon: Co11stmt11ritJ.S.
ln: Re,ist:1 de: dt:rccho penal y criminologia. Nº 5, 2000. p. 192; "Éste es el aspecto neh,atfro de la
libcrtad. El aspecto positivo --dei que :tllUÍ no se tratar:í- consiste en que: la conduct:1 libre se
aprecia a través dei se1-,ruimiento de regias por parte dei que :ictúa". Ibidem, p. 192. Not:1 8.
m "EI elemento esencial que dcbc contener la dcscripción de uma acción es la intencionalidade.
Un movimiento "indeseado" no es una acción. L'l intencion:ilidad debe estar contcnida de
manem exprcsa o tácita en la dcscripción de la acción". KINDHAUSER, Urs. Art'rrn dd ro11ft'plo
j11rídit-o pmal de ,1rdrJ11. ln: Cuadernos de Derecho Penal: Uni\'ersidad Scrgio Arboleda. Nº7,
julho de 20 l 2. p. 15. "Pero incluso si no se tienc a l:i acción como cl concepto base dd hccho
punible sino a la conducta, la que solo mediante la imputación de los dementos conceptuales
dcl delito obticne la cu:ilidad de acción definida, aun así se presenta el problema adicional de si
cl resultado de dicha imputación puedc verse siemprc como acción. L'l respuesta resulta inequí-
vocamente negath·a (...)". Ibidem, p. 31; "En lo que :u método concicrnc, la difcrenciación en
cl modelo analítico de intenciones escalonadas entre capacidad de acción y capacidad de moti-
vación ofrcce, en este contexto, no solo una posibilidad r:izonablc par:i cl análisis cstructural de
la conducta conforme a la norma, sino que, m:is import:mtc aún, tambic'.:n concede un marco
semántico para la avcriguación de l:is contr:ivcncioncs culpables a la norma". Ibidem, p. 36.

163
modo que por regia h,eneral falta la 'libcrtad' como mínimo en los hechos no
culpables, que sin embargo también son acciones. En cambio, cont<,nne a b
opinión aqui mantenida no supone nin!,,una dif-icultad concebir p. ~ - cJ olvido
como manifestación de la personalidad y por tanto como accic,n. 55

Se todas essas outras teorias que se aproximam da concepção pessoal de Roxin


encontram fortes obstáculos, a concepção pessoal propriamente já se firmaria em
uma análise pré-jurídica, quando se percebe possívd atribuir wn determinado evento
a alguém, como obra sua. Se por doença mental há feitos que não se podem dizer
livres e responsáveis, poder-se-ia dizer que são marúfest,ções da personalidade.

8.1 - A teoria pessoal e algumas nuanças

A teoria pessoal de ação se configura como wna concepção muito particular de Claus
Roxin, segundo a qual mesmo os exemplos apontados pelo próprio autor possuem
substanciais e profundas diferenças. É just1mente em função dessas diferenças - por
não ser um conceito t.ão restrito, nas palavras do próprio autor - que essa concepção
consegue cumprir sem maiores problemas as funções comumente atribuídas à ação.
Serve, em primeiro lugar, de elemento-base. Consegue subsumir sem maio-
res percalços todas as formas de manifestações de conduta e dar conta do feito
de forma total e não apenas parcial, podendo, assim, remeter seja a aspectos
sociais ou jurídicos, ou a quaisquer circunstâncias necessárias à configuração da
ação, como causalidade, finalidade, etc. Cumpre, em segundo lugar, a função
de urúficação, pois consegue abarcar mesmo diferentes formas de conceber a
ação, desde as pré-jurídicas (que servem de substrato para ulteriores valorações
jurídico-penais) até as valorativas. Em seu mérito, Rox.in reconhece que, se são as
expectativas que transformam a ausência de ação em omissão, essas expectativas
são via de regra sociais e, portanto, podem ser separadas da esfera da valoração
jurídica.ss.. Cumpriria também, em terceiro lugar, a função de delimitação. Segun-
do Roxin, a ideia de manifestação da personalidade oferece o critério definitivo
p:ira a concreta delimitação entre ação e falta de ação. 555
m ROXlN, Cl:ius. Op. Cit. p. 253.
s~ "Por conseguiente, para d concepto de acdón aquí defendido tambifo resulta que cn parte dt:
las omisioncs no son sep:irablt:s :icción y tipo, de tal modo que la comprobación de l::i acción
há de adentrarse en d úpo. Pero eUo no priva de valor ai critc.:rio dt: la 'm:mifostacion de la
personalidad' en su función de demento dt: enlace, put:s un concepto de acción materialmen-
te adecuado no dt:be ocultar, sino pont:r dt: manifiesto los datos )' circunstancias reales, y lo
que st: ajusta a la realidad dt: la existi:ncia humana es que no son sólo dt:mentos corporalcs }'
psíquicos, sino tambifo múltiples catcgorías valorntivas, prh·adas, soci:tlcs, t:ticas, pero tnmbién
r
jurídicas, quicnes codt:terminan t:n su sentido l:is manift:staciont:s dt: l:i personalidad a veces
las constituyen por vez primer:i". ROX1N, Claus. Op. Cit.p. 257.
m Ibidem, p. 255-60.

164
Importa para a concepção de Roxin não só a ideia de personalidade. A
concepção pessoal de ação não se degeneraria, em sua opinião, em um Direito
Penal da vontade porque às atitudes internas faltaria o ele1nento de 111a11ife1taçào
(da personalidade). O elemento manifestação, contudo, não implica efeitos exter-
nos tangíveis, pois, do contrário, não seria possível dar conta da omissão. Assim,
para se aferir se há ou não uma 111anife1taçào é suficiente que o evento desvalorado
possa ser imputado à pessoa em questão. 556
Não se pode encontrar t'lmbém wna mruufestnção da personalidade nos casos os
quais o corpo se apresenta apenas como massa mecânica, se1n qualquer vínculo com
a consciência ou a vontade. O mesmo se pode dizer de muitos dos casos clássicos de
ausência de condut-i, como sonambulismo, epilepsia, narcose etc. - excetuados, obvia-
1nente, os casos deno1ninados pela doutrina de actio libera i11 ca111a. E e1n linhas 6rerais isso
se aplica mesmo às condutas omissivas (mesmo não contendo nexo causal).557
Desde a perspectiva de Roxin, seu conceito apresentaria uma zona limite,
na qual al!:,T\.lns casos chissicos restantes precisariam ser problematizados, como
os atos reflexos, os movimentos automatizados ou frutos de impulsos e a "em-
briaguez sem sentido". Nos atos reflexos, por exemplo, só não há ação quando a
1nanifestação física não se dá por qualquer influência psíquica (por mais subter-
rânea que seja), e sim quando há uma ligação direta (pelo centro sensorial) entre
o estímulo recebido e o movimento corporal. Como nas descargas elétricas.5SII
Enquanto, para o finalismo, não haveria ação no exemplo do motorista que
responde espontânea e instintivamente a uma mosca que voou contra seu olho
enquanto dirigia e, por isso, perdeu o controle do veículo, causando um acidente.
Para a concepção pessoal de ação seria possível apontar a existência de uma ação,
de uma manifestação da personalidade (mesmo que não por uma reflexão com-
pletamente consciente) - muito embora seja possível a exclusão da culpabilidade
ou da punibilidade e1n etapas posteriores. ss9
Também os casos de ações automatizadas, ou seja, ações transformadas em ações
mecânicas (desprovidas de reflexão consciente) por meio da repetiç.~o, pode se dizer
sere1n 1nanifestaçc1es da personalidade. Porque a confi!:,rur.1ção pré,~a da açio, as dispo-
sições para agir assimiladas, e, portanto, a deflagração da ação pertenceriam à estrutura
da personalidade, independentemente se o result'ldo é ou não desvalorado. Os atos pas-
sion,ús - acarretados por itnpulsos e1notivos - são resoh~dos na esfem da culpabilidade.

SS6 Afirma Roxin: "Parn admitir que hay una 'm:mifostación' b:tstn con que: un suceso dd mundo
exterior - nunque solnmt:ntt: se :ila defrnud:ición de un:i expec~ti\':l dt: acción, como sucede: c:n
la tent:ttivn dt: omisión - le pued:i ser imput:tdo a una determinada pt:rsona... Ibidem, p. 260.
7
S!t ROXIN, Claus. Op. Cit.p. 261.
s~ Ibidem, p. 262.
S\'> Ibidem, p. 262.

165
O mesmo pode se dizer da embriaguez ordinária, há ação e as questões daí decorrentes
seriam resolvidas na culpabiLidade.sc.c, Distinta parece ser a questão da hipnose:
Sin embargo, cs cierto que la causaciún psíquica por sí sola, como p. ej. los
movimientos causados por suenos de al!,ruien ,1ue duermc, aún no da lugar
a una acciún; (...) Por otr.1 parte, en los estados hipnóticos o posthipnóticos,
coincidicndo con la opiniún actualmente dominante, habrá que atirmar la
cu:ilidad de acción en los mismos, pues los hcchos cometidos en esos esta-
d os son transm1u• •d os ps1qwcamente
• • y adaptados a1 mun do c1rcun
• d ante. 561

A partir de seu ponto de vista, Roxin propõe aliviar um pouco do peso


sobre o conceito de ação, retirando dele as questões sobre casos de embriaguez,
atos passionais, atos automatizados e atos espontâneos. Questões as quais seriam
rcsoh·idas na esfera da imputação, apesar de a distinção entre aquilo que deve ou
não ser resolvido na esfera da ação não seja p1in1a fade totalmente.5<'1
Portanto, ao contrário do yue se possa pensar, a distinção entre ação e não
ação não seria discernível à primeira vista. Não haveria uma fronteira estanque,
especialmente porque o fruto da psique pode ser tão insignificante que sequer se
poderia chamá-lo de manifestação. De forma wn tanto problemática, essas zonas
limítrofes destacam a importância do recurso à valoração. 563 Destaque-se, contudo,
que Rox.in remete a questão da ação, em última análise, à critérios normativos, es-
clarecendo yue a relevância do critério ôntico depende de sua instrumentalização
normativa. Diz ele se tratar de um conceito normativo, mas não normativista. 564
A afirmação de um supraconceito de ação - manifestação da personalida-
de -, por isso, é mais nominal do yue substancial. Não indica qualquer caráter
comum a todas as condutas dclituosas que não a possibilidade de sua imputação
subjetiva, corno diz expressamente Roxin. 565

5Ul "Como reswm:n, rcspecto de csos ru:uro hrrupos de casos cabe decir que no se acomodan a ellos criterios
como 'vulunt1àtd.1d', 'fin.ilid,d', pLmificación o configuración, si se los vincula con demcntos como
libert:td o consciencia cbra. St lrul<I 111,í.r lit11 dt dirmiú11
l t , Ji11ali11ltmu, o
d e l t , i11ro111dmte~ (...) L1 perso-
'ft1111/idad

n.ilidad no se dtja reducir a L, esft-r:1 de la consciencia d1r.1 como cl día". lbidem, p. 264. Grifo nosso.
561
Idem,p. 264.
562
ROXIN, Cl:tus. Op. Cil. p. 265.
563
"En Ja zona fronteriz:t Ja delimitación no se puede cfectu:tr sin una decisión de valoración jurídica
sobre si 'd momento de L, adapt:ición regulativa ya se destac:i ran claramente que en la valornción
jurídicopen:tl ya no puede ser descuidado como tot:ilmentc irrelevante"'. Idem,p. 264.
564
"Es normativo porque el criterio de la manifcstación de Ja personalidad designa de :intcmano
cl aspecto valorativo decisivo, que es cl que cucnta jurí<licamente para el examcn de la acción.
T:tmbic:n es normativo en la mcdid:i en 9ue los terrenos fronterizos atende a una decisión jurí-
dica currespondicntc a csa pcrspccti\'a valorati,·a. Pero no es normativista, ya que acogc cn su
campo visual la rcali<la<l <lc la vida lo más cxactamcnte posiblc y cs capaz <lc considerar cn to<lo
momento los úlúmos conocimientos de la im·estigación empírica". ldem,p. 265.
S6s "Las formas de aparición de la manifestación de la personalidad son muy diversas }' sólo en-
cuentr:in su elemento común en <.]Ue se pueden imputar a la esfera arumico-espiritu:11 dd ser
humano, a su pcrson:ilidad". Idem,p. 265.

166
8.2 - Considerações finais

A concepção de ação como manifestação da personalidade não se apresenta


sem problemas. A personalidade não pode ser reduzida ao Ego, o qual é apenas uma
das instâncias de sua composição. Mais preocupante, contudo, é a tendência de se
considerar que todas as marúfestações da personalidade estejam sob controle do Ego.
São especialmente pertinentes as considerações de Juarez Cirino dos San-
tos, pois permitem sublinhar como a qualidade difusa do conceito de personali-
dade impede que se caracterize os fenômenos dela derivados como sob controle
(controlados ou controláveis) do Ego. Especialmente porque faz parte justamente
do debate em psicanálise a possibilidade de que o Id possa investir contra o Ego,
manifestando-se sob a forma de obsessões, fobias e atos falhos ou sintomáticos,
de forma incontrolável ao Ego. De forma breve e contundente, portanto, resta
conclusivamente refutada a teoria pessoal da ação, por Cirino dos Santos.566
Torna-se ainda mais difícil ignorar o caráter profundamente problemático
do conceito de personalidade quando se analisa sua manifestação na aplicação da
pena, como se depreende da arguta análise dos profs. Amilton Bueno de Carva-
lho e Salo de Carvalho. Como destacam os dois autores, o conceito de personali-
dade é controverso, de difícil (quiçá impossível) determinação, de verificabilidade
duvidosa, polissêmico, etc. Sequer há um consenso sobre o conteúdo desse con-
ceito nas áreas de conhecimento especializadas (seja na psicologia, na psiquiatria
ou na psicanálise). No campo do Direito, esse conceito já equívoco adquire uma
especial ane11/Ía signijicatiua pela forma como é utilizado pelos juristas, sendo fre-
quentemente reduzido a juízos moralistas sobre o réu e sua vida pregressa.567

S66 SANTOS,J uarez Cirino dos. Op. Cit. p. 94-6. Há wnbém quem critique Roxin pela equiparação
entre "manifestações do centro anímico-espiritual" e "manifest::tções da personalidade", que
dil:muiam demasiadamente o conceito de marúfestações da personalidade (D'AVILA, 2003).
S6? CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Saio de.Aplicarãodaptnat1,aranlimro. Tedição.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 53-61. Nesse sentido também: CARVALHO, Saio de.
Pma.r t Gar,mlifls. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lwnen Juris, 2003. p. 184-191; VIANNA, Túlio;
l\fATIOS, Geovana Tavares de. A inrrmsh/uaonalidadt da ro11dHla soda/ t ptnonalidad, do tJ...~flllt romo
mlirios dt Jixar,io d,1 pm,1. ln: Anuario de Dcrecho Constitucional Latinoamericano, ,,. 14, 2008,
p. 305-323; Rodrigo Roig dcstnca que a compreensão dn personalidade na esfcrn penal se sub-
mete ao positivismo etiológico, além de ser um "conceito fh.údico" instrumentalizado por mdo
de expressões vngas (como "personnlidade deturpada'1, criwdas de juízos subjetivos, servindo
parn infirmar o contraditório e a :unpla defosa. Cf. ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Aplimçiio da
Pma. Limites, Princípios e Novos Parâmetros. 1. ed. São Paulo: Saraiv:i, 2013. p. 162-171.
167
9 - QUADRO TEÓRICO DOS MODELOS DE AÇAO
FUNDADOS NA FILOSOFIA DA LINGUAGEM
9.1- Pressupostos para a compreensão de Habermas

Habermas, ao tratar da Antropologia filosófica, em K.J,r111r ,md Kritik, ressalta o


traço histórico da natureza humana, incorporando e criticando Arnold Gehlen
(defensor de u1na Antropologia Biolôgica),568 e da mesma fonna, incorporan-
do criticamente alguns elementos de Heidegger. Nessa crítica absorvedora já é
possível entrever alhTUns pontos que comparecem de forma mais aprofundada e
consequente em Lukács, etn especial porque, em Habermas - sob a influência de
Heidegger -,5M a técnica assume a posição central devida ao trabalho.
Ao contrário de LulL-ícs, portanto, não é o trabalho o responsável pelo me-
tabolismo ho1ne1n-natureza, mas a técnica. E isso tetn repercussões itnportan-
tíssimas para o desenvolvimento e as conclusões dissonantes entre Habermas e
Lukács. 570 Uma clara consequência dessa diferença pode ser vista, por exemplo,
na afinnação de u1n crescente domínio da racionalidade técnica (sobre as demais
racionalidades) - posteriormente reformulado como um crescimento de uma
tecnocracia - e suas repercussões na esfera cultural. Para Habermas, assim, a téc-
nica seria o fator explicativo central da alienação dos homens, e não as relações
socioeconômicas (à guisa de uma explicação marxista).571
"Por outro lado, :1 tese de Gehlcn, segundo a qual o ser humano seria 'por natureza não es-
',(,li

pecializado', é importante para Habermas, j:í que isso signific:1 que o homem constrôi, ele
mesmo, 'seu mundo e seu ser-no-mundo' - uma idd:1 que Haberm:ts liga :t analítica existencial
de Heidegger. A humanidade, portanto, pode garantir sua sobrt\'i\'t:nci:i 'somente por meio
da manipulação tecnicamente eficaz da natureza"'. PINZANI, Aless:mdro. Habrn11,u. Pono
Alegre: Artmed, 2009. p. 39.
9
sc. Com Jean-François Lyotard aprendemos que a palavra trnb:ilho (Arbeil) cst:í ausente de "Ser e
Tempo". Cf. LYOTARD, Jean-François. Hridr_v._e,rr, os Judr,11, trnd. E.EAh-cs. Petrópolis: Vozes,
1994. p. 83 - agradeço ao prof. Nilo Baàsta por tr:izcr à minha atenção essa informação.
sm Essas diferenças, cm rnz:io de: uma apreensão e9uivoc:1da da categoria tmb,1/ho, se perpetuam
(com contornos distintos) até as obrns posteriores de Habermas (pós-\'irnda linguística): "M:iis
concretamente, o respectivo plano de acção tcm por base uma interpret:tção da situação, na
qual a finalidade da acção é determinada: (:i) independentemente dos meios inter\'enicntes; (b)
como um estado a ser produzido de modo causal, e (e) no mundo objecti\'o". HABERMAS,
Jürgen. Acçôcs, :tetos de fala, interncçôes mediadas pela linhruagcm e: mundo d:1 vida. ln: rim-
d,1111mt,1r,iu U1{e,11fslir,1 d,, Soriolu._e,i,,. Jjsboa: Ediçôes 70, 2010. p. 173.
571
Isso mais tarde seria reformulado de: modo a cnorar as esferas do poder e: do dinheiro como
formas autonomizadas de r:tcionalidade orientada a fins, como mdos de: comunirnção "dcs-
vcrbali~ado~". cf. HABERMJ\S, Jürgcn. Esclarecimentos sobre o conceito de acção comuni-
cativa. ln: ri111d,1111entaç,10 U11_~1ds1im d,, Soâul,wi,. J..isbon: Ediçôcs 70, 2010. p. 167; PINZANI,
Alcss:mdro. Op. Cit. p. 36. Um pouco sobre :t dicotomia rncion:1lid:1de orientad:1 :t fins e :m
entendimento cncontrn-se cm: HABE~\-IAS, Jürgcn. Aqvu, ,,rios dr fi,lt,...p. 178.
169
Em seus estudos sobre a esfera pública, Habermas observa uma preocu-
pante sobreposição entre o público e o privado, segundo a qual o parlamento se
transformaria gradualmente no local de chancela das dccis<>es (tomadas externa-
mente) de grupos de interesse particulares. Isso seria visível na crescente autono-
mização dos partidos políticos (em relação ao parlamento), por exemplo. O par-
lamento se esvazia cada vez 1nais em seu papel de espaço qualificado da política.
Como o próprio Habermas observa, contudo, a esfera pública, desde as ori-
gens das democracias modernas, se vê marcada pelos interesses de grupos par-
ticulares, no1neadamente a buq,ruesia. Já é possível notar, todavia, co1no mesmo
em suas formulações iniciais, a ideia de esfera pública é deveras problemática.572
Apesar de observar um traço fortemente privado na gênese da esfera pú-
blica, Habcrmas confia na possibilidade de sua abertura plena (e antiprivatística)
também pela natureza de sua gênese: (a) por supostamente ter se formado, em
grande parte, em meio aos consumidores burgueses da literatura, pois nos inú-
meros espaços de debate sobre a arte - como os cafés - os interlocutores veriam
uns aos outros como indivíduos privados (Pn"11atleute), destituídos de stal11s social;
e (b) porque as obras de arte seriam supostamente produzidas para um público
mais amplo, quando co1nparadas com a arte predecessora pré-capitalista. Espe-
ciahnentc por adquirir o stat11s de mercadoria, a arte ter-se-ia tornado muito mais
acessível. ~7 -l
Não só os recentes acontecitnentos sociais apontam para u1na improprie-
dade de uma esfera pública, tal como propõe Habermas. Especialmente quando
se dá a devida atenção ao importante papel interpretado na crise de 2007 pelas
re!:,rulamentações do mercado financeiro, favoráveis a grupos de interesses parti-
culares, e suas consequentes repercussões de pauperização na Europa. Mesmo o
continente que em tese mais se aproxima das experiências de esfera pública itna-
ginada por Habermas, ou 1nelhor, especialmente neste continente, os interesses
privados interpretaram um papel central.
Essa crítica, de que a proposição habermasiana seria uma petição de valores
aparentemente se1n um 1naior substrato real, pode ser ainda reforçada quando
se recorre às formulações de Lukács sobre o drama moderno. Isso derrubaria
mesmo a fundamentação da expansão da esfera pública sobre o caráter mais am-
plo da arte no Capitalis1no. O próprio Marx já ressalta o caráter proble1nático de
algumas atividades humanas nas sociedades modernas, em especial a arte. 574 Para
Lukács, essa formulação marxiana sobre a arte em geral tem especial relevância
para o drama. O drama moderno poderia ser cotnpreendido, assitn, por u1na

fü PINZANI, Aless:indro. Op. Cit. p. 42-3; importantes considerações sobre o tema cm: MARX,
Karl. A ldrul<J,.v,ia A/rn,à. São Paulo: Martins Fomes, 2001. p. 55-72.
sn Ibidem, p. 42-3.
57
~ MARX, Karl. O rarálrrdts((11al do drm1volvin1mlo hiJtúriro t 01 probltn1a1 da arlt. p. 127-9.

170
bifurcação que leva tendencialmente a um crescente elitismo (o expressionismo
seria, possivelmente, um exemplo disso) ou uma crescente degradação (a ideia de
indústria cultural interpreta aqui um importante papel).575
Ao mesmo tempo em que reconhece uma contradição na esfera pública
moderna em razão de sua restrição concreta aos estratos superiores, Habermas
não abre 1não de afinnar sua abertura e1n princípio:
Essa esfera pública literária oferece um modelo para a esfera política. O
objeto do debate crítico não são, agora, obras de arte, mas a ação dos
poderes públicos. A esfera pública burguesa pretende ser a única fonte
legítima de leis gerais e abstratas que correspondem aos mandamentos
universais da razão e servem ao bem geral. Habermas aponta para uma
certa atnbivalência incrente à esfera pública: No debate literário, pessoas
privadas se entendem 'enquanto seres humanos sobre experiências de sua
subjetividade'; mas no discurso político eles se entendem enquanto pro-
prietários 'sobre a regulamentação de sua esfera privada'. 576
Já durante as polêmicas com o estabelecimento das Ciências Naturais como
o critério central para as Ciências Sociais, como proposto por Popper - também
conhecida como a polêmica sobre o positivismo nas Ciências Sociais - pode-se
assinalar alguns pontos que mais tiveram destaque, como: (a) o questionamento
da possibilidade da ciência de assumir uma postura de indiferença yuanto aos
objetos sociais; (b) a afirmação de outras possibilidades de aquisição de conheci-
mento, por meio de critérios distintos das Ciências Naturais, que contribuiriam
na construção do conhecimento humano; (c) mesmo nas Ciências Naturais não
predominaria somente uma racionalidade técnica, já que os critérios mesmos da
pesquisa cientifica dar-se-iam em moldes de uma autojustificação reflexiva (uma
racionalidade comunicativa) no cerne da comunidade científica; (d) a afirmação
de um direcionamento por interesses também nas ciências exatas, mais especi-
ficamente pelo interesse cognitivo técnico que implica a possibilidade de dispor
dos processos sociais como se naturais fossem, ignorando yue a sociedade é um
todo e não um agrupado de partes estanques.577
Para Habermas, as ciências exatas não são neutras perante os valores, e
isso se dá porque seu patamar de fundamentação é pré-científico. Haveria, sim,
interesses cognitivos que permeiam as ciências exatas - apesar de os autores mais
afeitos ao positivismo negarem isso - e eles surgiriam em razão da ação instru-

~7 ~ LU KÁCS, Gt:orgt:. Tb,· .foriolo..l!J· of kfodrm Tht: Tufam: Dmma Rc:vit:w. Vol. 9, No. 4,
Dra111t1.
1965. p. 146-170. Hnbt:rmas part:ct: confundir a mt:rcantilização da cultura com sua maior
act:ssibiLidadt:, ou st:ja, disponibilidade: t:conômica com act:ssibilidadt: social.
16
s PINZJ\Nl, Alt:ssnndro. Op. Cit. p. 43.
m lbidt:m, p. 50-3.

171
mental, da necessidade de modificar a natureza com o trabalho, o~ em outras
, · S711
palavras, d a tecn1ca.
A ação técnica, todavia, não aparece sozinha, mas aco1npanhada da ação
comunicativa. Enquanto a técnica diria respeito à reprodução material da vida,
a comunicação diria respeito à manutenção da identidade dos sujeitos em socie-
dade. A técnica estaria na orige1n das ciências exatas, e a coinunicação na orige1n
das ciências interpretativas.s79
Sua crítica sobre a estruturação das Ciências Sociais a partir de modelos
positivistas foi influenciada pela oposição Ciências Naturais-Ciências do Espíri-
to, como aparece em Dilthcy, tendo em vista que as Ciências Sociais não teriam
um papel estritamente descritivo, mas buscariam compreender os significados
dos fenômenos sociais. Em função da ideia de uma busca pela co1npreensão dos
sentidos, Habermas resgata algumas contribuições da fenomenologia de Husserl,
da teoria linguística de \X'ittgenstein e da hermenêutica de Gadamer. Contudo,
aquilo que 1nais !:,tanha destaque nas análises de Habermas são os aportes linguís-
ticos influenciados por \Vittgenstein.5110
Esse aporte linguístico destaca a ideia de a compreensão do mundo social
por parte do suicito sô tornar-se possível por 1neio da lin1:,ruage1n, e isso itnpli-
caria, em tese, a renúncia a pretensões objetivistas, calcadas no positivismo e
afirmadoras de uma perspectiva de observador externo imparcial.51u
A hermenêutica, e1n terceiro lugar, surge como um contraponto, diante do
diagnóstico de que as teorias fenomenológicas e lingtústicas ainda assumem pers-
pectivas objetivistas. Apenas com a hermenêutica est'lria aberta, verdadeiramente,
a possibilidade de abandono da ideia de wn observador ünparcial. A hennenêutica
entra, então, para colmatar as lacunas da fenomenologia e da teoria linguística.
Habermas também retoma algumas proposições hegelianas. Ele recupera,
a partir dos Je11aer Sy1te111e11hvii,fe, uma dialética entre trabalho, lin!,>uage1n e reco-
nhecimento (amor e família) que estava presente em Hegel, mas teria se perdido
no ulterior desenvolvimento de seu sistema.s112 Habermas recupera Hegel para
7
s • lbid<:m, p. 53. A ideia de ação instrumental reaparece nas obras posteriores de 1-fobcrmas. Cf.
HARERMAS,Jürgen. Prrlurõu p,,m 11111,1fi111d,1111mt11ç,1ll lirwtÍstim d,, sociolo._f!,i,,. Lisboa: Ediç<1es 70,
2010. p. 113.
79
s PINZANI, Alcssandro. Op. Cit. p. 53.
sai Essa influência se mantém ao longo de sua e\'olução tec'>rica: "Por outro lado, posso, ao menos,

report:tr-me à teoria do desempenho de papéis de ~Icad e :i teoria dos jogos de linguagem de


Wittgcnstcin; é que nelas j:í se encontra prefigurada aquela prngm~tica universal que considem
um fundamento adequ.,do da teoria soci.11 e cujos traços fundament.'lis quero desenvolver'.
HARERMAS,Jürgen. Prrltffõrr...p. 46; PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 55.
581
HARERMAS,Jürgen. Esdarui111mtos...p. 163; PlNZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 55.
saz LIMA, Eric C. O l-rtlf,11/rlllo 22 dor Jmatr Sytr11m1lwii,fr. (1803/1804): apresentação e: tradução.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos. Ano 5, n"S,Junho-2008. p. 76; PINZANI, Alessandro.
Op. Cit. p. 57.
172
esboçar uma critica a Kant, segundo a qual a constituição do Eu não deriva de
uma reflexão autônoma, mas de um processo de comunicação. Não é uma auto-
concepção espontânea, mas um devir fundado na intersubjetividade. 5113
A experiência da autoconsciência já não figura mais como originária. Para
Hegel, resulta antes da experiência da interacção, cm que Eu aprendo a
ver-me com os olhos do outro sujeito. A consciência de mim mesmo de-
riva de um entrelaçamento das perspectivas. Só com base no reconheci-
mento recíproco se forma a autoconsciência, que se deve fixar no reflexo
de mim mesmo na consciência de outro sujeito. 5,w

Também em função de suas considerações sobre a linguagem, torna-se pos-


sível delinear um pouco mais as importantes diferenças entre as concepções de
Habermas e Lukács. Como é possível depreender das considerações cm Técnica
e Ciência como Ideologia, há uma inversão em relação à concepção lukacsiana.
Em Habermas é a /ing11agenJ (na concepção hegeliana), no sentido de nomea-
ção das coisas, a responsável pela separação sujeito-objeto na consciência, e é essa
linguagem que serve de modelo para analisar-se o trabalho (nele considerado em
sua forma mais estreita: a técnica), quando este realiza analogamente a separação
sujeito-objeto. O papel originário interpretado pelos símbolos nessa separação
(promovida pela linguagem), no trabalho seria assumido pelos instrumentos, os
quais se interporiam entre sujeito e natureza para a satisfação das necessidades.5115
S&l HABER.MAS, Jürgt:n. Timirn r dr11d,1 ,01110 idtologitt. J..isbo:i: Ediçõt:s 70, 1997. p. 23 t: ss.; MAR-
CONDES, Danilo. Filosojin, ÍÍl{e,1111gp11 r ,0111111/imriio. São Paulo: Cortc:z, 2012. p. 114; DUTRA,
Ddamar Jost! Volpato. Razão r Co11sr11su: uma introdução ao pt:ns:imc:nto dt: Habc:rmas. Pdotas:
UFPEL, 1993. p. 151; P1NZAN1, Alt:ssandro. Op. Cit. p. 56-7.
s."" HABERi\fAS, Jürgt:n. Trmira r rirnrin... p. 15.
!oi\., Ibidem, p. 57. Diz 1-fabt:rmas: "Como tradição cultur.11, a lingungt:m c:ntra na ação comunicaú-

va: pois, só as significações intt:rsubjt:ti\':unt:ntt: ,·ilidas e const'lntt:s, que se: obtc:m da tradição,
facultam orit:ntaçõt:s com n:ciprocidadc:, isto é, c:xpt:ctativas complc:mc:nt:irc:s de: comporta-
mc:nto. Assim, a intt:rnção dt:pt:ndc: das comunicaçõt:s linguísticas que st: tornam famili:ut:s. E
também a acção instrumental, logo qut: como tmbalho social aparc:ct: sob a catt:goria do t:spíri-
to real, está inst:rida num:i n:dt: dt: intc:racçõc:s e dt:pt:ndt:, portanto, por st:u lado, das condições
marginais comunicativas de: toda a cooperação possível. Abstraindo do trabalho social,já o nrto
soli!tírio do 11.ro dt 11111 i11slm111ml" tsln rrfrrido ti 11tiliZJ1r,io dr JÍ111bolos, pois 11 i111tdintidndr da 1ntisfarão
1111i11111I dos i111p11lsoJ uno ; i11lerro111pidt1 sr,11 11111 dislt111dn111mlo dn ro11srir11rin q11r dá 110nm, rrlntirnn1tnlt
nos obj,·rlrJJ idmtijirávris. Por tudo isso, a ação instrumt:nt:tl é também sc:mpre, t:nqu:into solitária,
uma ação monológica". HABE~\IAS,Jürgt:n. Timim r df11rin... p. 30-1. Grifo nosso. Ou ainda:
"O qut: vale para a consciência moral t: técnica vale analogamente: para a teorética. A di:iléctica
da rc:prt:st:nt:ição mc:diante os símbolos linguísticos dirigt:-St: contra o conceito k:mti:ino das
realizações sintéticas de: uma consciência transcendt:ntal em gt:r:il, subtrnída a todo o processo
dt: formação. Com t:ft:ito, a crítica abstrata do conht:cimento concebe :i rd:ição d:is c:1tegorias t:
das formas de: intuição com o matt:rial da t:xperic:nci:i, como mostram as t:xprc:ssõt:s, segundo
o modelo introdu:ádo já por Aristótdes da atividade artesan:il, em que o sujeito, ao trabalhar,
dá forma a uma matéria. Por<!m, st: a síntese do múltiplo não ocorre por meio d:i imposição de

173
As formulações habcrmasianas, em determinado momento, estruturam-se
sobre o binômio agir comunicativo e agir instrumental. Ele destaca a importância
do agir instrumental, mas, exatamente por sua perspectiva enviesada do traba-
lho, não o percebe como forma fundante. Na verdade, já na década de sessenta,
aproxima-se mais de considerar o agir comunicativo como o modelo fundante
de compreensão da sociedade, ao qual se submeteria, inclusive, o trabalho. Isso
reflete, novamente, em algumas de suas conclusões.5116
Em Lukács, a relação se estabelece de forma oposta: não é a linguagem que
serve de modelo fundante, mas o trabalho. É justamente em função dessa apro-
priação da herança hegeliana que Habermas erige o sustentáculo de sua crítica
ao pensamento de ~larx: a "desconsideração" da linguagem. Habermas acusa
l\farx de, recorrendo ao rótulo vago de práxis, reduzir a ação comunicativa à ação
instrumental. Para ele, as categorias sociais se dissolveriam no automovimento
da produção - quando, na verdade, o trabalho tem uma função fundante e não
esgotadora, mas isso sô fica inevitavelmente 1nais claro na ontologia de Lukács. 587
Habermas critica Marx por sua pretensa intenção de construir um saber de
caráter positivista, pois, fundado sobre o modelo do trabalho, seria em última
análise uma espécie de saber (técnico) a fün de dispor do objeto5118• Essa crítica
deixa transparecer o conhecimento comparativamente menos aprofundado da
ideia de práxis por Habermas, em relação a Lukács. Com efeito, além das óbvias
form:1s catt:gori:1is, mas já t:sci primariamt:ntt: \i.nculada à função rt:prt:st:nt:itiva dos símbolos
autogt:rados, t:ntão, a idc:ntid:1dt: do c:u não pode: já pressupor-se aos processos dc: conhecimen-
to t: t:imbc:m não aos processos dt: trabalho e: da interacçào, dos quais provém a conscic;ncia
astuta e: rt:conht:cida. A identidade: da conscic::ncia cohrnoscentt:, como t:m igual medida a objec-
th·idadt: dos objetos conhecidos, só se:: constitui com a linguagem, na qual apenas é possívd a
síntt:st: dos momentos separados do c:u t: da naturt:za como mundo do t:u". Ibidt:m, p. 28.
Sli6 "Remetendo aos estudos :1ntropolúJ.,ricos sobre a técnica dt: Gt:hlen, Habermas aponta para a

impossibilidade de rc:nunciar ':i tc:cnica, isto é, à nossa tt!cnica, subsrituindo-:i por um:1 qualitati\'a-
mcntt: distinta'. Ele \'t: a alternativa à tfcnica atual t:m uma estruturn dt: ação qut: não st:ja racional
tdeológica, mas consist1 cm uma internçào mediada simbolicamt:ntc. Dessa mant:ira é colocada a
primcirn pedra parn uma tt:oria do agir comunicath·o". PINZANI, Alcssandro. Op. Cit. p. 59.
w HABERMAS, Jürgen. Timim r ái11rin... p. 41-2; "Ao agir instrwnt:ntal, dt: !Habermasl contrn-
põt: o agir comunicati\·o, que t:ntendt: como 'uma intt:ração simbolicamc:ntt: mediada' que se
orienta sc:gundo normas sociais 'que definem as expt:ctativas rt:cíprocas de comport.1mento
e:: que tc::m dt: st:r t:ntt:ndid:1s e rt:conht:cidas, pdo mt:nos, por dois sujt:itos agentt:s'. O agir
instrumt:ntal st: b:1scia em regras e: estratégias técnicas cuja validadt: 'dcpt:ndt: de t:nundados
c::mpiric:1mcntt: verdadeiros ou analiticamt:nte corrt:tos'; a v:1lid:1dt: dt: norm:1s sociais, pdo con-
trário, 'só se:: funda na intt:rsubjt:rividadt: do acordo act:rca das intt:nçõt:s e:: só é asst:gurada pelo
rt:conht:cimt:nto geral das obrigações'. Se n:gras tfrnicas ou t:stratégicas corretas são violadas,
podt:-sc: falar de: um comportamento incompc:tt:ntt: que: 'est:í condenado pc:r se ao fracasso' pc:-
rnntc :i realidadt:; qu:mdo são ,·ioladas normas vigc:ntt:s, t:stamos pcrantt: um comportamento
dt:sviado que pro\·oca sanções vinculadas às normas". PINZANI, Alt:ssandro. Op. Cit. p. 58.
saa PINZANI, Alt:ssandro. Op. Cit. p. 63.

174
distinções do materialismo-dialético a qualquer pensamento positivista, a mera
menção de que se trataria de um saber com fins a dispor dos objetos - além
de equivocado por sua estreiteza - é, em si, insuficiente, porque mesmo o pen-
samento místico pode ter essa pretensão. E, como já se mencionou, a própria
restrição do trabalho como concepção fundante a uma ideia de técnica também
é equivocada.
Em sua adoção de algumas formulações do pragmatismo, em especial de
Charles Sanders Peirce, Habermas reafirma uma concepção comunicativa da ci-
ência, cujo processo de pesquisa seria um e1npreendimento colaborativo e comu-
nicacional, a fim de resolver questões comuns. Conforme Pinzani, "a diferença
entre ciências naturais e do espírito corresponde, então, à diferença entre agir ins-
tru1nental e agir coinunicativo".589 A pesquisa envolveria a estabilização de opini-
ões, a eliminação de incertezas e a obtenção de convicções não problemáticas.590
Habermas não deseja cair na esparrela positivista de partir de fatos pre-
sumidamente objetivos. Não obstante, se por um lado não se pode pensar em
fatos não interpretados, por outro, para rejeitar a possibilidade de um idealismo,
Habermas se apega à ideia de que os fotos interpretados não existem somente
nas interpretações. A assunção do caráter necessariamente maculado pela inter-
pretação na relação sujeito-objeto e sua articulação com o processo comunicativo
de formação de consenso é a forma encontrada para se escapar ao "objetivismo"
positivista, se1n cair e1n um idealismo.
Isso não oferece maiores problemas para interpretações que podem pos-
suir alguma repercussão técnica e, assim, serem confrontadas diretamente com
a realidade.591 Para diversas áreas e proposições das Ciências Sociais não se trata
de algo tão simples, pois sua confrontação com a realidade não pode ser dada de
forma tão direta - quanto na técnica -, e por isso está muito mais aberta a des-
vios interpretativos e falsificações da realidade. A ideologia, que não comparece
~" Ibidem, p. (,5.
S?I• "Husscrl leva-nos a consi<lernr que Kant a<lopt:i um:i abonbgem ingc:nua <la área tem:ícica <la

fisica sem ver que teorias científicas desta índole são pro<luzi<los apenas numa comuni<la<le <lc
comunicação de investigadores (Peirce) que, afinal, têm de pressupor como evi<lcntc, por seu
lado, a valida<le fáctica do seu mundo <la vi<la quotidiano". HABERMAS, Jürgen. Prdfcçõu...p.
52; PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 64.
591
PINZAN I, Alessan<lro. Op. Cit. p. 64. Ain<la: "Na sua análise da posiç30 de Dilthey, Haber-
mas retoma considerações que ele tinh:i formula<lo no âmbito <lo debate sobre o positivismo:
as ciências hermenêuticas e as ciências empírico-analíticas se deixam conduzir por interesses
cognitivos; mas, enquanto estas últimas visam o domínio técnico <le processos naturais, as
primeiras 'procuram assegurar a intcrsubjeti'"i<la<le <la compreensão n:is formas correntes <la
comunicação e garantir uma ação sob normas que sejam universais'. O interesse cognitivo
prático das ciências do espírito consiste cm gar3ntir 'a possibilidade de um acor<lo sem coação
e de um reconhecimento mútuo sem violência"'. Ibidem, p. 65.

175
adequadamente nos estudos habcrmasianos, pode interpretar um papel impor-
tante nesse caso. Esses desvios interpretativos e falsificações da realidade podem
manifestar-se por meio da identificação de fenômenos sociais inexistentes, os
quais, ao intérprete, podem aparecer como fatos. 592
A apropriação de \'Vilhelm Dilthey, por Habermas, se dá em uma proposta
de complementaridade ao seu pragmatismo afeito à Pcirce. Habermas recorre a
Dilthey, mediado pela leitura de Gadamer, para estabelecer com mais clareza os
caracteres distintivos das ciências humanas. 593 Em outro aspecto, em meio a uma
polêmica com Niklas Luhmann, a quem ele considerava, em certa medida, co1no
herdeiro do positivismo, ele recorre ao conceito de dismrso. Esse conceito apre-
senta-se como um momento de suspensão das instituições tecnocráticas e das
coaç<>es rclacion:iveis aos imperativos funcionais (o que Luhmann representava
teoricamente para Habermas). Seria um espaço de fuga da esfera do agir, no qual
o foco se volta apenas aos sentidos das normas que regem as ações humanas,
cuja resposta seria em termos de justificação (ou não) discursiva da pretensão de
validade dessas normas.5'>-4
Caberia aqui uma crítica, extensível inclusive para Rawls,595 de que dificil-
mente seria possível falar-se em ideolo!:,>"Ía se, por um mero expediente racional,
fosse possível suspender o grosso das relações sociais de tal forma que suas coa-
ções e instituições parassem de exercer influência. Falta notar que a identificação
do ôbice ideolôgico tanto como ôbice quanto como ideologia é parte necessária
das consequências de sua superação, e colocá-la como pressuposto coletivamente
9
~ .! A insuficiência de trat.'lmento do tcm:i não significa a inexistt'!ncia. Habermas chega a tratar do
tema da ideologia (que de trnrn, por exemplo, como pretensões - amplamente aceitas - cuja
legitimidade nunca foi problt:matizada ou cliscursi,•amente fundamentada). Cf. HABERJ.\{AS,
Jürgen. Prrlururs...p. 64 e ss, 125.
m "Desse ponto de vista, a dimensão linguística se torna centrnl: 'a linguagem é o fundamento
da objetfridadc sobre o qual cada pessoa deve apoiar-se antes de poder objt:tfrar-se em sua
primcirn manifost1çiio \'ital - seja cst.'l cm palavras, em :ttitudcs ou cm nçõcs'. E a hermenêu-
tica como método se coloca cm primeiro pl:tno como apropriação dos 'conteúdos semânticos
legados por tradição', dirigida a expressões verb:ús, a ações e a expressões vivenciais. Estas três
classes dc 'manifost.'lÇÕes ,·it:iis' antecipam os três tipos dc pretensões de validade que desem-
penharão um papd central na teoria discursiva de Habermas, a saber: pretensões de verdade de
cnunci:tdos, pretensões de validade de normas e pretensões de verossimilhança de expressões
dramáticas". PlNZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 65.
5
9' PINZANI, Aless:mdro. Op. Cit. p. 68. Ainda: "O discurso não serve para trocar informações,

para fazer c:xpc:riênci:is ou p:ira direcionar ou pratic:ir ações, mas para procurar aq.,rumcntos e
oft:recer justificações. Nesse sentido, de representa um:i saída moment:in~ da dimensão do
:tl,rir. Os que participam ddt: se preocupam exclusivamente em esclarecer o sentido de expres-
sões ou norm:is que de\'eriam dcternúnar o seu agir. A busca de um sentido é contrapost'\ ayui
à busca de procc:ssos decisórios eficientes, funcionais e racionalizados". Ibidem.
m RA\X'LS,John. A lhrory of j111titt. Cambridge: Bclknap Press, 1999. pp. 03-46.

176
alcançável pela simples "boa vontade'' da razão é inverter a ordem das coisas.
Essa crítica, todavia, pesa mais sobre Habermas porque, dos dois (Habermas e
Ra,vls), é ele que1n carrega consigo a 1naior bagage1n critica a qual deveria trazer
à tona as implicações das discussões sobre ideologia.
Apesar de sua crítica a Luhmann, Habermas não deixa de aproveitar alguns
pontos da teoria sistê1nica, especialtnente para propor uma releitura do conceito
de formação social. 596 Posteriormente, recorrendo aos escritos de Lawrence Ko-
hlberg (psicólogo, grandemente influenciado por Jean Piaget) sobre as etapas do
desenvolvitnento da consciência tnoral e da identidade do Eu, I-Iabermas tenta
aproximar-se de uma teoria da evolução social, de forma a explicitar a possibili-
dade de transição das sociedades convencionais (capitalistas e tardo-capitalistas)
às pós-convencionais, a fi1n de apontar o potencial transformador das sociedades
modernas. 597 Em seus escritos posteriores ainda é possível achar traços dessa
ideia, como na fundamentação de uma racionalidade universal. 598

S'J6 PlNZANl, Alt:ss:mdro. Op. Cit. p. 69. Ainda: "Habt:rmas rt:toma, então, a crítica a .Marx
:l\'ançada c:m Cii:ncia t: tt:cnica como 'ideologia', mas introduz um conceito que perpassa como
um fio condutor todos os ensaios de Para a reconstrução do materialismo histórico: o con-
ceito dt: evolução. (...) Sistemas sociais podem, pois, ser comprt:t:ndidos como um 'tecido de
ações comunicativas', enqu:mto as estruturas da pt:rsonalidade podem ser 'considt:r:idas sob
o 3Specto da capacidade de linguagem e de ação'. Instituições sociais e compet~ncias de ação
individuais aprest:ntam as mesmas estruturas dt: consciência. Isso se torna particularmente:
evidt:nte, sc:gundo Habermas, naquelas instituições que impedem qut:, c:m casos de: conffito,
a dimensão intersubjc:tiva seja ameaçada, a saber: a moral e o direito. Quando o consc:nso de
fundo que: regt: a nossa vida cotidi:tna se pt:rdc:, o seu lugar é tomado pda rt:1,rulamentaçào
consensual dos conflitos por mcio das instituições do direito e da mornl. Habermas pensa que:
a evolução social das concepções do direito e: da moral acontece segundo os mesmos padrões.
Esses são descritos no nívd ontogt:nético, isto é, no rúvel da idc:ntidadt: do Eu, em geral pda
psicologia do desenvolvimento coi,rnitivo de: Piaget, que teoriza a existência de: diferentes nívcis
de de::senvoh·imc:nto da consciência.". Idem, 72-3.
s77 PlNZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 71-4.
s99 "A posição universalista não precisa nt:gar o pluralismo t: incompatibilidadt: das marcas histó-
ricas da 'condição cultural própria ao sc:r humano', mas pt:rcebc: que essa multiplicidade das
formas de vida est:í restrita aos contt:údos culturais e afirma que toda cultura, se: fosse: o caso
dt: alcançar um cc:rto grau de 'consdt:ntização' ou 'sublimação', teria de compartilhar cenas
qualidades formais da compreensão do mundo moderno". HABE&\iAS, Jurgt:n. Trono do
A1.ir Co1111111üntivo, 1. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 326. Neste ponto é perceptfrd a he-
rança kantiana, à qual é possívd rt:spondt:r: "E não poderíamos acrescentar qut: no fundo esse
mundo jamais perdeu intdramente um certo odor de: san1-,ruc: e tortura? (Nem mesmo no velho
Kant: o impc:r:itivo categórico cheira a crueldade...)". NIET.LSCHE, Friedrich. Genealogia da
moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 50.

177
Aparentemente Habermas ter-se-ia baseado em uma concepção marxista da
história como evolução social,599 entret'lllto, essa não parece ser a melhor inteligên-
cia dos escritos marxianos, ou sequer aproxima-se das interpretaçües mais profi-
cuas feitas nessa tradição (como em Benjamin, Bloch, Lukács, entre outros).60I, A
ideia de desenvoh-imento desigual, que já comparece em Marx, parece inviabilizar
de saída as interpretações etapistas. Bloch ressalta a história como ruptura e con-
tinuidade. Além disso, há de se concordar com Lukács, é um erro idealista querer
estabelecer a priori, a partir da lógica, o desenvolvimento social concreto (real e de
base ontológica), que sô pode ser plenamente apreendido postfes/11111. Uma ideia de
consequências análogas comparece em Benjamin sob a rubrica de ]e!Zfzeit.
Destaque-se a questão extremamente problemática que envolve a orien-
tação de aplicação contemporânea, no âmbito do Direito Penal (inclusive), de
wna proposta de sociedade que não pertence a este tempo (mas a um estágio
mais aperfeiçoado). Diversos autores que se apropriam, no Direito Penal, das
formulações habermasianas não pesam com maior cuidado as consequências de
se reivindicar, para as instituições contemporâneas, horizontes normativos de-
mocrática e discursivamente construídos. Uma tal proposta pode ter o condão
de dar aparência de frutos de wna democracia substancial àquilo que se pode
definir apenas como os frutos de uma democracia formal. Em outras palavras,
o consenso resultante de um viés ideológico punitivista coletivo - seja por um
senso comum punitivo já tão familiar aos autores críticos ou, sua frequente face
político-criminal, o populismo punitivo601 - é uma concreta possibilidade resul-
tante do esforço de alguns autores em encaixar nesta sociedade aquilo que não
pertence a ela - um anacronismo teórico habilitado pela teoria habermasiana -
um consenso democrática e discursivamente construído despido de quaisquer
relações ideológicas e de coação. Pois, como já foi dito, isso não é req11is-ito para a
n111dança social, n1as 111a conseq11ê11cia.

s99 "Com base em tais considerações ligadas a uma teorui (sócio) evolutiva, a história pode 'ser
interprctad:i como evolução, isto é, como processo doudo de uma direção>. (...) Uma sociedade
pode - exatamente como um incfü·íduo - p:issar por um processo de aprendizagem que leva a
nfreis sempre superiores de evolução. No fim desse processo, uma sociedade deveria alcançar
um nívd pós-convencional no qual: 1. o agir indi,·idual se orienu por uma moral discursiva; 2.
os conflitos são regul:imenudos por meio do recurso a um direito formal gerado democratica-
mente; e 3. as instituições políticas são justific:idas por pretensões de legitimidade fundamenta-
d:is discursivamente" .PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 76.
600
Nesse sentido: BENJAMIN, Walter. Mnt/n t lrmirn, nrtr t polílirtr. ensaios sobre literatura e his-
tória da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.pp. 222-232; SCHWARCZ, Lília Moritz. Por 1111111
hirtorioirnftn dn rrftrxão. pp. 07-12; LUK.ÁCS, Gerog. Hi.rlórin r ronsrir11ria dt daJse. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. pp. 63-104.
El>t ZAFFARONI, Eugc:nio Rnúl. O i11i111Íf,o 110 dirrilu pmt1I. Rio dt:: J:tm:iro: Revan, 2007. p. 13 e ss.

178
Em Habermas, há um empenho por uma retomada do projeto iluminista.
Ele constrói uma teoria de reabilitação da razão como instrumento de emancipa-
ção. As formulações de Adorno e Horkheimer - dos quais Habermas é herdeiro
- sobre o papel da razão instrumental no capitalismo são resignificadas na obra
do autor de Düsseldorf, e a razão instrumental passa a ser compreendida como
uma degeneração histórica da razão.602
Habermas acredita ser possível uma emancipação social fundada sobre as
próprias instituições, e vê um indício do potencial emancipatório das instituições
já na obra de Marx. É possível deduzir, sem dúvida, um potencial progressista
das instituições burguesas na obra de Marx, especialmente quando nota que é
já no seio das antigas sociedades que surgem as contradições que dão origem
ao novo. Não é possível, todavia, afirmar que a emancipação social se dará por
meio das instituições. Isso é uma extrapolação em profunda contradição com o
pensamento marxiano.
Dizer que a emancipação social - ou, em termos marxistas, a revolução -
envolverá, de alguma forma, aspectos institucionais - seja em sua gestação ou no
seu desenvolvimento - definitivamente não é o mesmo que dizer que ela se dará
por meio (e nas fronteiras) dessas instituições.603 Esse raciocínio é um 11011 seq11it11r,
especialmente quando se tem em vista que o papel interpretado pelas institui-
ções pode ser um de autonegação e superação dialéticas. A democracia burguesa
pode dar o espaço (institucional) necessário para a sua própria superação. Então,
mesmo as ações em estritos limites institucionais adquirem uma característica
bem específica, a de tática. E nesse sentido, aparentemente, faltou em Habermas
desenvolver uma teoria das instituições (no capitalismo) ligadas à ideia de tática-
-estratégia, como aparece em outros autores marxistas. 604
A hermenêutica na obra habermasiana, de outra feita, diz respeito não só
à interpretação de conteúdos, mas também à tomada de posição em rdação ao
conteúdo. Um dos motes críticos que permeiam a teoria do agir comunicativo
W2 "Enquanto os dois antigos frnnkfurtianos (Adorno e Horkhcimer] viram as instiruições poli-
ticas e sociais, assim como a práxis cotidiana como sendo 'completamente esvaziadas de q~-
quer vesúgio da razão', Habermas acredita poder mostrar, recorrendo ao conceito de razão
comunicativa, como esta última ainda pode deixar ouvir sua voz naqueles componentes da so-
ciedade (instituições, processos e práticas sociais) que, aparentemente, cederam sem esperança
aos imperativos da razão instrumental. Isso se mostrn claro justamente nas instituições políticas
e no sistema jurídico burguês que Adorno e 1-lorkheimer observavam com tanto ceticismo:
eles incorporam, pois, prindpios que contêm um potencial emancipatório que, contudo, não é
realizado pelas próprias instituições - uma ideia que, segundo 1-labermas, se cncontrari:l já em
Marx". PINZJ\Nl, Alessandro. Op. Cit. p. 77-8.
60.l Há algumas importantes reflexões nesse sentido em: PACHUKANIS, E.B. Ttoria grral do dirrilo

to n1,1n.·is1110. São Paulo: Acadêmica, 1988. pp. 15-28.


wc LENIN, Vladimir llitch. O Estado ta rtt-0111,-ii<r. o que ensina o marxismo sobre o Estado e o
papel do proletariado na revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007. pp. 104-109.

179
tem a ver com um suposto potencial crítico em razão dessa tomada de posição.
A compreensão significaria a tomada potencial de uma posição crítica, pois po-
deria abrir espaço para um questionamento das pretensôes de validade da ação
comunicativa em questão. Consequentemente, de forma positiva, para o triunfo
dessas pretensões de validade da ação comunicativa seria necessário sua devida
fundatnentação.ws Apesar de tudo, parece um tanto precipitado atribuir um po-
tencial crítico a uma necessidade de posicionamento; ele existiria, em princípio:.
na mesma medida em que wn potencial conservador.
Se, na Filosofia da Consciência, a verdade de um determinado juízo pode-
ria ser vinculada à certeza do sujeito de uma relação de correspondência entre
representação e objeto, em termos de teoria do agir comunicativo, essa verdade
pode ser estabelecida sobre o comum reconhecimento comunicacional. É nesse
sentido também que Habermas faz uma leitura crítica de \"Vilhelm von Hum-
boldt, no qual aparece em germe a ideia de língua como um sistema de regras e
de quem Habermas retira a ideia de um ft111 de 1nútua compreensão na esfera da
comunicação linguística.6(16

9.1.1 -A virada linguística de Habermas

Apesar de ser necessária a crítica de algumas das proposições iniciais de


Habermas porque elas repercutem nas concepções tardias e também na própria
forma como Habermas é absorvido pela doutrina penal, não se pode deixar pas-
sar a oportunidade de esboçar breves considerações sobre alguns de seus argu-
mentos posteriores mais popularmente utilizados. Para essa finalidade, recorre-se
às Chmtian Ga11ss LJcfl(res, as quais marcam claramente a reorientação teórica de
Habermas e seu afastamento do marxismo.607
A partir das Christian Ga11s1 Leá11res, Habermas renuncia à sua anterior con-
cepção de história, berri como desenvolve com mais propriedade uma funda-
mentação linguística das relações sociais. O autor de Düsseldorf passa, então,
a defender a teoria social como uma teoria interpretativa, ou seja, wna teoria
centrada no sentido. Ao se debruçar sobre o agir humano (o qual é caracterizado

60S PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 81.


n "O papel que no antigo par:1cli1-,rma era atribuído :i consciência passa, no novo p:iracligm:i, a uma
comunic:iç5o mediada por ar1-,'1.Ullentos 'entre aqudes que, par:i se entenderem conjunumcntc
sobre algo existente no mundo, exigem uns dos outros expliCtções. O lu1,,ar d:i subjetividade
assume a práxis de wn entendimento intersubjetivo"'. PINZANI, Alcssandro. Op. Cit. p. 82;
DUTRJ\, Ddamar José Volpato. Op. Cit. p. 71-86.
tm "As Cbrislitm Ga11ss l.1rl11ru, que profeó na uni\'ersidade de Princcton cm 1971, consútucm
wn ponto de viragem no desenvolvimento das minhas reflexões filosóficas". HJ\BER.MAS,
Jürgen. F1111da111mtarão I.i11g11istira da Soriologi". Lisboa: Edições 70, 2010. p. 11; PINZJ\NI, Ales-
s:mdro. Op. Cit. p. 82.

180
como um comportamento norteado por regras) ele conclui pela insuficiência
de uma ciência estritamente observacional; as Ciências Sociais deveriam, assim,
preocupar-se e1n co1npreender o sentido dos atos.w11
O sentido (111ea11i11._e) estabelece-se como conceito fundante da teoria haber-
masiana. Isso afasta, por exemplo, a possibilidade de considerar-se a existência de
intençôes "puras" ou "prévias", elas deveriam assumir se1npre a forma simbólica.
O sentido tem necessariamente uma expressão simbólica, a qual pode ser dada
por uma língua natural, derivada (linguagem de sinais) ou extraverbal (ações ou
expressões físicas). E o sentido é tido como sentido lin!:,JUÍstico - de palavras e
frases. A partir de Searle, Habermas supõe que "tudo o que se pode significar
pode ser dito". 6" 9
O sentido, co1no concepção fundante para a ciência social, tem implicações
contundentes. Primeiramente, como uma compreensão específica da distinção
entre ação (actio11) e comportamento (behaviory, por meio da distinção entre com-
portamentos que podc1n ser interpretados como "intencionais" e aqueles que
não. Intencionais seriam os comportamentos que se orientam por regras (HA-
BERMAS, 201 O). Sobressalta, aqui, a definição um tanto circular, segundo a qual
são intencionais os co1nportmnentos que se orientam por regras e as regras são
aplicadas em razão do reconhecimento intersubjetivo de um significado. As re-
gras devem ser compreendidas, reivindicam validade, e podem ser aceitas ou não.
Habennas distin6rue tainbém entre agi.r (atividades simples, não linhJUÍsticas
e orientadas a fins) e falar (atos de fala), ambos os quais se subsumem ao concei-
to de ação, mais amplo. Enquanto o agir estaria constantemente permeado pela
necessidade de ulteriores esclarecimentos, os atos de fala seriam autorreferentes,

U>1 HABERl\fAS, Jürgen. A r ç õ r . . s , p. 201-10; "Sc:1-,rundo Habermas, é possívd fundar


a r / o s d r f a l a. . .

uma teoria da sociedade sobre o conceito central de sentido, isto é, conceber tal teoria como
ciência interprc:tath-a. Como tal, da tem como seu objeto n:io o mero comportamento, mas o
agir. O agir é um comportamento intencional, isto e; •um comportamento dirigido por normas
ou orientado por n:grns'. Normas e regras possuem um sentido que é preciso interpretar ou
entender. A ciência em questão não pode, portanto, contentar-se com a mc:rn obser\'açào de
comportamentos, mas de,•e tentar compreender o sentido das :ições e das normas e regras
que as determinam. lsso tem importantes consequ~ncias metodológic:is, já que as observações
podem ser controladas por certos procecfum:ntos reduzívc:is a mc:nsurações fisic:is, enquanto
a interpretação do sentido de ações e normas depende de uma compreensão linguística pn:-
-científica. O fato de tal interpret:iç:io ser adequ:id:i (ou não) pode: ser verificado 'somente fazer
reforé:ncia ao saber do sujdto', já que se parte do pressuposto de que um sujeito capaz de: folar
e de agir possui um saber implícito acerca de regras, visto que domina :is normas lin1-,ruístic:is
e de aç:io. Esse saber implícito 'oferece a base experimental sobre a <-1u:u devem fundar-se :is
teorias do agir, enquanto teorias estritamente cientificas do comportamento podem referir-se
exclusi\'amcnte a dados observ:ívcis"'. PINZANl, AJess:indro. Op. Cit. p. 83. •
t m HABERMAS,Jürgt!n. 30-1.
P n l r q õ r s. . . p .

181
conteriam em si sua própria intelecção - o componente ilocucionário é o que
determina, por exemplo, o sentido do enunciado.610
Destaque-se como, neste e em alguns outros momentos, Habermas admi-
te uma forma originária das ações no agir teleológico, muito embora, com o
desenvolvimento da sua teoria, o agir orientado a fins adquira traços cada vez
mais subordinados à ação direcionada ao entendimento e comunicativa - apesar
de ele realizar periódicas afirmações em contrário.611 Essa transição acontece a
partir do momento no qual ele foca em elaborar uma teoria social - afastando-
-se da estrita perspectiva do indivíduo. Nas inter-relações sociais, co1no servem
de modelo fundante para a interpretação dos fenômenos sociais em geral, o agir
comunicativo e direcionado ao entendimento ganham proeminência. Por outro
lado, é imediatamente problemático que Habermas deduza, da silnples necessi-
dade de execução de um plano que exija a coordenação com outra(s) pessoa(s),
a superação da ação teleológica (como modelo) e a imperiosidade de se instituir
como arquétipo fundante de uma nova teoria social o modelo de u1n agir media-
do pela linguagem.612
Comparece em J. Habermas também a distinção entre observação e com-
preensão (de sentido), conforme a qual a primeira diz respeito aos comporta-
mentos e a segunda às ações, posto que é o sentido que os distingue. 613 Afirma
610
"Os :ictos de fala não só se distinguem das atividades não lin1-,ruísticas simples pdo seu caráter
reflexivo, em \'irtude do qual se interpretam a si mesmos, mas, al~m disso, pelo género de ob-
jeti\·os que podem ser almejados e pelo tipo de i:xitos que podem ser alc:mçados pelo falar. É
certo que, a um nível geral, Iodas as acções, sejam das linguísticas ou não linguísticas, podem ser
compreendidas como atividades orientadas para fins. M:is logo que queiramos diferenciar entre
agir gt:r:idor de entendimento e :itivid:ide orient:id:i para fins, em que actorc:s perseguem fins,
têm êxitos e produzem result:idos com as suas acções, :idquin: outro sentido na teoria linguísti-
ca que: não tinha na teori:i da acção - os mesmos conceitos fundamentais são interpretados dc:
forma dift:rentc:". HABER.MAS, Jürgen. Aqves1 ados de fnla...p. 173.
611
''Sob esta premissa encaro a :ictividade orientada para fins e :i acção de entendimc:nco como
tipos de: :icção elemc:nt:irt:s, nenhum dos qu:iis pode ser reduzido ao outro". HABERMAS,
Jürgen. Aqvr1, ados dr fi1/n ...p. 176.
612
"Utilizo o 'agir soci:il' ou 'interação' como um conceito complexo que pode ser analis:ido com
recurso aos conceitos dement.1res do :igir e do falar. Nas inter:icções mediad:is pela linguagem
(is quais doravante: nos dedicaremos em exclusivo), ambos os tipos de acção se encontram
interlig:idos. Aprc:sent:im-se, porém, em constelações diferentes, conso:inte as forças ilocutó-
rias dos actos de: fala assum:im uma posição coordenadora d:i :icção ou os actos de fala sejam,
por sc:u lado, subordinados :i dinâmica extra-linguístic:i da inf-Iu~ncia de actores que agem uns
sobre: os outros na persecução dos seus fins, c:iso em que :is energias vinculativas específicas da
linguagem permanecem desaprovt:it:idas". HABERMAS,Jürgen. AffÕrJ, aflos dr/11/11...p. 176.
m "É que: não posso observ:ir :icções exclusiv:imentc: como um comportamento porque tenho
de referir características comport:imentais :is regr:is que lhes estão subjacentes e tenho de
compreendc:r o sentido dessas regras se quiser dc:scre,·er um dc:ternúnado comport.1mento
como acção".HABER.MAS, Jürgen. Prrlrqõrs...p. 32.

182
Habermas (201 O), com alguma razão, que é preciso um conhecimento das regras
para tornar-se possível o reconhecimento das características de uma ação. Além
disso, o reconhecitnento de coisas deve ser referido ao "1nodo da experiência"
(que guardaria uma referência metodológica com a medição física), enquanto as
ações não são redutíveis dessa maneira, justamente porque podem ser represen-
tadas linguisticamente.614
A teoria da ação, por apoiar-se sobre a base da experiência, distingue-se
substancialmente das teorias cientificas (que se debruçam sobre objetos e com-
portamentos). Isso porque a correta descrição de um fenô1neno dotado de sen-
tido só seria possível recorrendo-se ao saber que o produziu, as normas que
. zaram a cond uta. 61S
bali
Habermas (201 O) distin6rue a abordagem essencialista, das teorias sociais
fundadas na linguagem, do método das ciências exatas. Este se direcionaria a
enunciados nomológicos verificáveis, referentes a uma realidade objetiva e pau-
tados por um saber contraintuitivo; enquanto as teorias do sentido estariam di-
recionadas a uma realidade não objetiva (porque dizem respeito às estruturas
alocadas no saber implícito de cada indivíduo) e pautadas por um saber intuitivo
e essencialista.
Não parece de todo correta essa formulação habermasiana quando se ob-
serva que as normas comuns de interação podem, sim, ser consideradas estru-
turas objetivas. São frutos de relações sociais que se reproduzem por 1neio das
subjetividades, mas que, caso se confinassem ao estrito limite da subjetividade,
6
"Até à <lata, a medição de sentido simboHza<lo tem de recorrer a processos c1d ho, que, cm última
'~

instância, permanecem dependentes de uma compreensão <la linguagem pré-científica. quando


muito <lisciplina<la cm termos hermenêuticos. Qualquer pessoa que domine uma língua natural
pode, cm virtude <la competência comunicativa, em princípio compreender quaisquer expres-
sões. <les<lc que façam algum sentido, e torná-las comprcensh-cis a outros. isto é, interpretá-
-las". HABElU\fAS. Jürgen. Prrlrcçõu... p. 34.
61
s "Ain<la assim, qualquer locutor suficientemente socializado dispõe de um k,1ou•-hou• suficiente
para <listinguir expressões fonéticas <le meros ruídos e frases formadas <le uma forma correcta
cm termos sintáticos e que fazem sentido cm termos semânticos <le frases truncadas, bem
como para saber catalog:í-las comparativamente <le acordo com o grau <lo seu <les\'io. Este
conhecimento das regras. disponível <le forma intuitiva, mas passível <le ser precisado com
os mcios <la maiêutica, <los sujeitos que falam e agem com competência, constitui a base de
experiência cm que têm de se apoiar as teorias <la acção, ao passo que as teorias cienúficas e
rigorosas <lo comportamento contam unicamente com <lados provenientes <la obser\'açào".
HABER~iAS, Jürgen. Prrlurõu...p. 35. Ainda: "a formação de teorias visa a reconstrução <los
sistemas de regras segundo os quais são produzidas as configurações cstrutura<las <le uma for-
ma <lotada de sentido. frases e acções. Estas regras generati\'aS não têm <le Jecorrer de mo<lo
evidente <las estruturas <le superficie <las expressões. (...) O objetivo é a reconstrução hipotética
de sistemas <le regras com que desvendamos a lógica jntcrna <la geração oricnta<la por regras
de estruturas <le supcrficie compreensíveis". Ibidem, p. 35-6.

183
não existiriam como manifestação no mundo. Não parece tratar-se de um fenô-
meno essencialmente subjetivo, mas de um fenômeno que se realiza por meio das
subjetividades, como tantos outros em Ciências Sociais. Se esse fosse u1n critério
suficiente para subsumir as relações sociais a perspectivas fundadas no sentido, as
Ciências Sociais como um todo seriam vinculadas a esse critério. Como, de fato,
parece acontecer com Habermas (e outros autores)."16
O autor de Düsscldof realiza, então, uma divisão entre abordagens subjeti-
vistas (ou leo,ia.r gmeratiras dt1 sociedade), fundadas no sentido, e objetivistas, como
aquelas fundadas no modelo explicativo nomolôgico. Assim, e1n uma tacada,
ele divide as Ciências Sociais entre correntes de explicação fundada no sentido
e aquelas que, implícita ou explicitamente, corroborariam uma subsunção das
Ciências Sociais às Ciências Exatas. Parece, todavia, um tanto leviano tainanha
simplificação, especialmente quando há tantas teorias que buscam estabelecer a
especificidade das relações sociais frente aos fenômenos naturais, sem necessa-
riamente recorrer a teorias de sentido.
Sua opção teórica reflete-se especialmente em seu conceito de ação. Ao
caracterizar a ação orientada para fins, Habermas aponta-a como uma ação ins-
trumental ou estratégica. A ação instrumental destaca os meios apropriados para
uma manipulação da realidade, a estratégica deduz dos valores as melhores alter-
nativas de ação. Parece, portanto, tratar-se de uma combinação entre as concep-
ções weberianas e heideggerianas, entre técnica e ação estratégica, que não leva
em consideração todas as implicações da ação-final fundada na práxis.
Já a ação comunicativa, para Habermas, serve para caracterizar as inter-
-relaçc,es mediadas simbolicamente.617 Além de serem aceitas pelos sujeitos, as
normas extraídas daí, por possuírem um caráter vinculante, criariam uma expec-
tativa de comportamento.''º1 Como foi mencionado, a concepção comunicativa é

"'" "(...) encontro-me em condições de delimitar provisoriamente as abordagens objectivistas <la


formação <le teorias <las abordagens subjectivistas. Vou designar por subjectivista um programa
teórico que concebe a socie<la<le como um contexto de vida estruturado <le uma forma dotada
de sentido; e, mais concretamente, como um contexto de expressões e estruturas simbólicas
que está a ser pro<lu7j<lo <le forma continua com base em regras abstractas e subjacentes àque-
le" . HABERMAS, Jürgen. P,1/rqõrs...p. 37.
"'" "A teoria da comunicação <la sociedade, cujo <lesem·olvimento advogo, encara o processo <lc
vida <la socie<la<le como um processo generativo mediado por atos <le fala". HABERMAS,
Jürgen. Prrlrqõts... p. 116.
611
"Ao passo que a eficácia <lc regras técnicas e estrntégicas depende <la validade de frases empiri-
camente ver<la<lciras ou correctas no plano analítico, a validade de normas sociais é assegurn<la
por um reconhecimento intersubjeti\'o assente num consenso de valores ou no entendimento
mútuo". HABERMAS, Jürgen. Prrlrqõu...p. 39.

184
fundante e, consequentemente, mesmo a ação orientada a fins é pensada a partir
dela - uma clara inversão da perspectiva rnarxista.(, 19
( )s tipos de intcracçào distinh,uem-se, em primeiro lugar, em função do me-
canis1no de coordenação de acçôes e, em particular, consoante a linh,uagem
natural seja utilizada apenas como 111edi11111 para a transmissão de informa-
ção ou, também, como fonte de integração social. No primeiro caso, falo
de acção estratégica, no se1::,,undo, de acção comunicativa. Se neste último
a força estabelecedora de consenso do entendimento lin1::,,uístico, isto é, as
energias vinculativas da própria linguagem actuam em prol da coordenação
das acçôcs, no primeiro o efeito coordenador permanece dependente de
uma influência, levada a cabo por intermédio de atividades não li~,uísticas,
dos actores sobre a situação da acção ou sobre seus semelhantes.6

Ademais, Habcrmas também se depara metodologicamente com a neces-


sidade de escolher entre uma abordagem elen1e11tarisla ou holística. A primeira,
apoiada sobre o individualismo metodológico, afirma o(s) jndivíduo(s) como
componente(s) último(s) do mundo social (ou seja, os fenômenos sociais podem
ser decompostos à forma de enunciados sobre ações individuais), e que esses
sujeitos são as forças por trás das tendências sociais. A segunda, representada
pela teoria dos sistemas (Parsons, Luhmann e outros), afirma que o contexto
das nonnas não se limita ao sentidc, atribuído pelos sujeitos e, assim, os sistemas
possuem uma relativa autonomia dos indivíduos.(121
São quatro os modelos possíveis de desenvolvimento e elucidação de uma
teoria fundada sobre o sentido (ou teorias generativas da sociedade). O primeiro
modelo recorre ao sujeito cognoscente (de Kant e Husserl, chegando a Alfred
Schütz). É designado de leonas da co11slil11iç{io porque entende o processo genera-
tivo da sociedade como a geração da imagem segundo a qual os sujeitos usam
para se orientar no mundo. () segundo e o terceiro modelos (teorias sislê111icas)
entendem esse processo generativo como sistemas de regras sem sujeito (desde
a Antropologia Estruturalista até a teoria dos sistemas). Essas duas conformam-
-se no fejtio de fantasmagorias, nas quais as estruturas "subjacentes" à sociedade
adquirem autonomia em relação ao sujeito. O quarto modelo (teonas da co1111m1ca-

6111
"A acção estratégica pode ser encarada como caso-limite <la acção comunicati\'a que se \'Crifica
quando entre os parcciros fracassa a comunicação em linguagem coloqufal como meio <lc ga-
r:mtir consensos e cada um assume uma atitude objccti\'antc rcl:nh-amcntc ao outro. f: que à
acção estratégica subja7.em regras <lc uma escolha <lc meios r:tcionalmcnte oricnta<la para f-ins
que cm princípio cada actor faci por si. As m:í,umas <lc comport:mtcnto são <lctcrmina<las por
jmcrcsses no sentido de. no âmhito <lc uma competição, maximizar os ganhos ou minimi7.:tr
perdas". HABERMAS. Jiirgcn. Prrlerrou...p. 40.
t.b• HABERMAS, Jürgcn. A,çõu, "'/01 dtft,l,1... p. 177.
621
HABERMAS,Jürgcn. Prrlrqàt-1...p. 42 e ss.

185
ção), mais afeito a Habcrmas· (rccorrendo a G.H. ~1ead622 e Wittgenstein), é o da
comunicação em linguagem coloquial, o qual remete ao mútuo entendimento.
Há uma tentativa de afastar-se da autonomizaçôes dos sistemas etn relação ao
sujeito e, nesse quarto moddo, os sistemas precisam referir-se também à geração
de contextos de sentido no plano intersubjetivo (que os modelos dois e três não
explicava1n) e aos atos de fala individuahnente considerados. Ou seja, é wna ten-
tativa de reconciliar as teorias sistêmicas com o sujcito.623
A posterior diferenciação entre Ciências Naturais e Sociais, entre natureza e
sociedad~ é recuperada de Kant e Sitnmel, seh>undo os quais a unidade da natureza
se daria por meio do sujeito cognoscente, enquanto a unidade da sociedade está
posta de forma anterior, por ser composta de sujeitos nos processos constitutivos
da própria sociedade. É nesse sentido, ainpla e superficialmente explicitado, que se
funda o dualismo metodológico entre Ciências da Natureza e da Cultura - como se
encontrn em Kant, Dilchey, Rickert, Husserl, Wittgenstein etc.624
As Ciências Naturais encarregar-se-iam de transformar, e1n ciência, as in-
formações coletadas de forma pré-cienúfica na experiência, no mundo da vida.
Já as Ciências Sociais se diferenciariam não apenas por sintetizar a pluralidade de
sentidos dos sujeitos, mas ta1nbém porque essas experiências se manifesta1n em
intervenções práticas, afetos e intenções. Em um primeiro plano, em H usserl,
uma teoria do conhecimento da natureza vem após uma teoria da constituição
do mundo da vida; 1nas sua teoria da constituição do inundo da vida ta1nbé1n tetn
um acento marcadamente descritivo. Esse traço descritivo se dá porque ele não

622 "lc:m Meadl os sujt:itos individuais são vistos como imersos em uma rede: clfalógica de: rdaçõt:s
t: intc:raçõc:s intersubjetivas. Os indi\·íduos certamente têm raízes biolóhricas que os singulari-
z:im de alJ..,ruma forma, m:is suas identid:ides são formadas por meio dt: c:xperii:ncias sociais
com os outros. A formação da personalid:ide humana deve ser entendida com base: no pro-
cesso soci:il que configura cada pessoa por mt:io da interação comunicativa com os demais,
sq,rundo uma matriz social significativa". MASCARENHAS JUNIOR, Waltt:r Arnaud. F..11.raio
mhro sobrr n arão. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2009. p. 26.
621
Ibidem, p. 43 e: ss.
w Ibidem, p. 47 e ss. Ainda: "Tal como Husserl, Kant analisou a constituição de um mundo de
experiências possÍ\·ds, mas ao fazê-lo, contrariamente a Husserl, teve em atc:nção a objectivida-
de, ou seja, as condições subjcctivas m:cess:írias do conhecimento possh'd da n:itureza. É qut:
Kant era da opini:io de que, com a validade dos enunciados legais mais significativos (isto é,
dos teoremas da fisica Sll:l contemporânea), podem sc:r ao mt:smo tempo esclart:cidos os fun-
damentos transccndc:ntais da expc:riência no sc:u todo. Husscrl põe t:SL'l e,·idência em causa no
seu cfkbrt: tratado sobre 'Crist: das cié:ncias europeias'. Não encara a área tt:mática das ciências
mturais como a infra-estrutura dos objectos de experiência possível no st:u todo, mas como
um artefacto derivado cuja gc:nese apenas pode: sc:r suficic:mt:mentt: clarificada se pusermos a
descobc:rto o fundamento de sentido olvidado do mundo da vida quotidiano". Ibidem, p. 51.

186
busca reconstruir a "objetivação" dos objetos para o sujeito (como em Kant),
mas analisar como esses objetos se apresentam (em suas diversas formas).'125
Esclarece Habennas: "Husserl conta com uma pluralidade de Eus transcenden-
tais que, independentemente da prioridade do conhecimento da subjectividade pró-
pria, só na sua relação mútua constituem o mundo da vida social".626 É nesse ponto
que comparece o conceito de intencionalidade para as fonnulações fundadas em Hus-
serl. As '~vências" intencionais são direcionadas (e por isso têm consciência) a algo,
ou seja, seu traço distintivo é o s,. .ntido atribuído pelos atos de consciência aos obje-
tos. Inúmeras intençôes podem conver6rir sobre um objeto, cotn isso emerge das vi-
vências um conteúdo real comwn (mesmo com diferentes conteúdos intencionais).6Z7
Complement'lrmente, a "doação" (ou autodoação) do objeto pode se dar de for-
ma mediata ou não intuitiva. A doação mediata caracteriza-se pela ausência C'presença
virtual") do objeto e do consequente preenchimento da "posição" desse objeto virtual,
o preenchimento da intenção nesse objeto. Trnta-se de wn uso da linguagem de forma
"independente", ou seja, representa-se linguisticamente objetos ausentes. Com efeito, a
doação, portanto, pode se dar de forma intuitiva (direta) ou não intuitiva, mas o preen-
chimento do objeto est.'Í adjudicado à pretensão de que ele concretamente se apresen-
taria dessa forma (pretensão de validade). E essa pretensão pode ser legítima ou não.628
As posições ligam-se, em princípio, a atos "dóxicos" (ligados a fatos). En-
tretanto, os atos de vontade (ou ânimo) também implicam posições, mas posições
potenciais (ou téticas) e fundadas (cotn referência a valores). Apresentam assim
uma semelhança com as posições primeiras, mas possuem também um substra-
to próprio> constituem um novo sentido, caracterizado pelo valor dos objetos.
Também nesse caso verificatn-se pretensües de validade que podem cwnprir-se

m "Quase que podemos 'ver' o sentido e o ser de qualquer objeto que, na transformação dos modos
de consciência, registamos como idêntico a constituir-se no Como da sua doação por intermé-
dio das nossas realizações sintéticas. Embora também Husserl suponha uma subjectivid:ide uni-
versalmente realizadora, esta prod\17. wn horizonte abtrlo de objectos possíveis que admite uma
plurnlidadc de vários tipos de objectualidade que apenas pode ser abarcada de forma descritiva".
HAUERMAS, Jürgen. Preleqves... p. 53; Essa ideia dialog:i com a proposta de redução fenome-
nológica de Husscrl. Há uma boa símcse e importantes pistas sobre o assunto cm: CÂMARA,
Jorge Luis Portes Pinheiro d:i. A hütória e,, hütóri,, do direito pmnf. a fenomenologia como elemento
critico. Revista DataYeni:i, v. 01, p. 02, 2009. Com especial atenção para a nota nu33.
62/, HA13ER~1AS, Jürgen. l'reltffÕu... p. 54.
ur Ibidem, p. 55.
621 "Antes fl-Iusscrij interpretn a diferença entre a doação medi:ita e dirccta de possíveis objectos como

diferença entre a doação não intuitiva e doação prcenclúda de forma intuitiva. O sentido de um
objecto intencional exige, então, sempre a possibilidade de uma presença intuitivamente imediata
do objecto. A plenitude intuitiva de wn objccto que, por seu lado, está doado numa evidênci:i pode,
por isso, ser entendida como o preenchimento de uma intenção objectiva de igual sentido. Os graus
de preenchimento remetem, em termos idea.is, para um objectivo em que a intenção tenha chcg:ido
a ser, toda ela, preenchida. A presença intuitiva plena no objecto, por assim dizer, não deixa para tcis
ncnhwn resquício de intenção por preencher''. HAUERMAS, Jürgen. Prrk((Ões...p. 56.
187
ou nào. 629 A ideia de uma situação ideal de fala, aliás, parece ter sido bastante in-
fluenciada pela ideia husserliana de uma autorresponsabilidade absoluta. 630
O conceito de 'autodoação' de um objeto apoia-se na suposição de que
na experiência sensível temos um acesso intuitivo a um dado imediato
e evidente. Essa tese (...) não é muito defensável. Em cada intuição, por
muito origjnária que seja, influem determinaçôes categoriais; cada percep-
ção pré-predicativa comporta um excedente que não pode ser reintegrado
pelo dado actu:tl. A experiência paradigmática que 1-lusserl poderá ter ide-
ali1.ado com o seu conceito da evidência da verdade dincilmcnte pode ser
encontrada em vivências de evidências sensíveis, mas, quando muito, em
experiências de construçào.631

Habermas pondera que a intuição imediatamente considerada possui, mes-


mo que n3o completamente, uma dependência categorial, ou, em outras palavras,
condiciona-se a um viés interpretativo. E, diante da impossibilidade de recorrer
à experiência como evidência, torna-se claro que não seria possível socorrer-se
de uma validação intuitiva, pois tratar-se-ia da mesma validação, realizada e1n
um segundo registro. () único recurso restante, identificado por Habermas, é a
validação discursiva.<•32
Parn Habermas (201 O), as teorias da comunicação seriam superiores porque
partiriam da concepção de relações intersubjetivas, enyuanto as teorias consti-
tutivas procurariam deduzir tais relações da consciência individual (herança da
Filosofia tradicional). É a partir dessas considerações que Habermas desenvolve
uma teoria comunicativa da sociedade. Para a construção de tal teoria, ele recor-
re a \"1/'ittgenstein (e marginalmente a \"Vilfrid Sellars), e esse aporte da teoria da
linguagem transforma a questão fenomenológica (como é possível o auto-ofere-
cimento do objeto em vivências intencionais) em uma questão linguística (como
um significado pode ser simbolicamente expresso por um signo linguístico).633
Segundo a concepção de \"Vittgenstein, não é possível uma identidade de sig-
nificados fundamentada no domínio (monológico) dos critérios de autoavaliação do
comportamento linguístico, como as regras de avaliação em Scllars. Em \Vittgcnstcin

i...">Por isso, afirma Habc:rmas: "A aplicação univc:rsal do concc:ito de: intc:nçào passívd de: sc:r
prc:c:nchida de: forma intuitiva assc:gurn a lodn.t as configuraçõc:s c:struturadas com sc:ntido, quc:r
tc:nham um sc:ntido co1-,'11Íti\'O ou um sc:ntido primaáamc:ntc: c:mocional e: voliú\'o, uma 'capa-
cid:idc: de: \'c:rd:idc:'. Por isso, Hussc:rl pode: :ipropriar-sc: do uso da linJ.,ruagc:m de: Dc:scartc:s:
dc:signa todos os objc:tos intc:nciomús, indc:pc:ndc:ntc:mc:ntc: de: a eles se: c:ncontrarc:m associadas
qualidade: de: posição dúxic:is ou não dúxicas, por ro,/lnld'. lbidc:m, p. 59-60.
6.ll• lbidc:m, p. 60.
6 1
J lbidc:m, p. 62.
•~ lbidc:m, p. 64.
6JJ lbidc:m, p. 74 e: ss.

188
as regras só podem ser pensadas quando associadas à possibilidade de desvios e erros
e de suas críticas por outrem. Por isso não podem ser pensadas privadamente.6 3,4
Confonne se apreende de Wittgenstein, na lin&,uagem, intenção e cumpri-
mento se tocam, pois fazem parte da gramática da frase. Se, por um lado, as re-_
presentações linguísticas indicam expectativas, a significação das palavras indica
a satisfação dessas expectativas. Os sentidos das intenções implica1n, assitn, uma
perscrutação necessária do sentido das frases, as quais, por sua vez, só existem
em uma linguagem. Em outros termos, compreender uma intenção implica com-
preender o papel de u1na frase dentro do sistema lin&,uístico. E o conceito witt-
gensteiniano de sistema linguístico é o da linguagem como jogo.635
A crítica de Habermas a Wittgenstein estrutura-se no sentido de explicitar
que, embora fecundo, seu 1nodelo interpretativo cüz respeito às relaçôes media-
das pela linguagem, não levando em consideração a constituição linguística das
regras mesmas - aquilo que permite a comunicação dos sujeitos. Ele ressalta
como duas coisas distintas a gr.unática de u1n jogo de linguage1n e da própria lin-
guagem. É essa "gramática" da linguagem, não elaborada por Wittgenstein, que
Habermas complementa, recorrendo a uma pragmática universal. 636
"(...) As formas de acção que os homens têm em comum são o sistema
de referência por meio do qual interpretamos uma lín1:,,ua como nossa".
Como parte integrante da acção comunicativa, também as expressões lin-
1:,,uísticas têm caráter de acções. Ao reali?.ar actos de fala como ordens,
per1;,,untas, descrições ou avisos não me retiro apenas a modos de agir
complementares, mas participo numa 'forma de acção que os homens têm
em comum'.637
Em Wittgenstein também comparecem as ideias de competência (o domínio
da regra enquanto domínio de uma técnica), de aplicação da regra como momento
criativo (em razão das "infinitas" possibilidades de exemplificação a partir da regra)
e de consenso entre os sujeitos Gogadores) em relação às regras. As regras grama-
ticais são explicitadas como constitutivas, e isso se dá em razão da constatação de
que o fim de um jogo pode ser apenas ele mesmo - o jogo de linguagem, portanto,
não precisaria ter por fim o entendimento, por exemplo. Um bom exemplo é o da
distinção entre as regras da culinária e do xadrez: se eu fujo das regras da culinária,

6.l4 Ibidem, p. 80. Ainda: "Um uso monolôgico da linguagem pode ser pensado, como j:í o indica
a palavra monolúgico, unicamente como caso-limite do uso comunicativo da linguagem, mas
não como seu possível fundamento". Jbidem, p. 82.
6Js Ibidem, p. 82 e ss.
6l6 "(...) de LWittgcnstcin] nunca encarou a análise gramatical de jogos de linguagem como um
empreendimento tcúdco, mas sempre como um mero processo ad hoc que se scr\'c de comuni-
caçôcs indiretas (...). A gramática de um jogo de linguagem (...) - esta gramática 111oslr,1-1t, não
pode ser exposta pon11enoriz.ada111t11/t no sentido de um:i apresentação teórica". Ibidem, p. 83.
17
'- Ibidem, p. 85-6.
189
cozinho mal (porque se trata de uma atividade orientada ao fim de cozinhar), en-
quanto, se fujo das regras do xadrez, jogo um jogo diferente.63"
Habermas (201 O) ressalta, entretanto, al!,runs aspectos nos quais não é pos-
sível realizar-se uma equivalência completa entre a ideia de jogo e linguagem. De
início, os jogos estratégicos permanecem exteriores aos jogadores, enquanto a
Linguagem penetraria na própria personalidade dos sujeitos. As regras (conven-
cionadas) de um jogo não poderiam ser modificadas enquanto ele é jogado e seus
jogadores seriam os mesmos. As personalidades dos indivíduos, apesar de um
elemento importante no jogo, não são alteradas como consequência necessária
dcle.639 Depois, os jogos e a linguagem possuem restrições externas qualitativa-
mente diferentes e as regras da linguagem não podem ser invalidadas por frases
empíricas.
O autor alemão argumenta também que a gramática da linguagem não de-
pende das leis naturais, mas também antecede a experiência. Essa anterioridade
à experiência, contudo, não se dá da mesma forma como ocorre com os jo-
gos. Nestes, a ação só adquire significado dentro do jogo, enquanto a linguagem
possui uma referência oniextensiva, refere-se ao mundo. Os jogos não podem
representar coisas, como as frases. Em conta dessa diferença, a caracterização
da linguagem como constitutiva assume um significado diferente. É constitutiva
porque institui a possibilidade da experiência.640
É pelas limitaçôes da análise por um modelo fundado na ideia de jogo que
Habermas propõe ir além de Wittgenstein ao destacar a relação intersubjetiva
entre indivíduos e a referência do discurso a algo no mundo. Wittgenstein funda-
mentou o significado no reconhecimento intersubjetivo de regras, mas não ana-
lisou (afirma Habermas) o fundamento daquilo que permitira esse entendimento
mútuo original (de onde surgem as regras). Para Habermas, a intersubjetividade

6J8 ''As regras gramaticais são constitutiYas, tal como as regras de um jogo, porque não se aplicam em
maior ou menor grau à regulação <le um comportUnento que já existia independentemente deJas,
mas, antes <lc mais, geram uma nova categoria <le comportamentos. Assim, não podemos conceber
a linguagem como uma instituição que sirva um fim determinado, por exemplo, o entendimento; é
que no conceito de entendimento já se encontra o conceito <la linguagem". Ibidem, p. 87.
639 "A gramática dos jogos de linguagem altera-se no decurso da transmissão cultural, os locuto-
res formam-se no decurso da sua socialização, em ambos estes processos desenrolam-se no
n1tdiff111 <la própria linguagem. Como as regras gramaticais não assentam em convenções como

as regras estratégicas, podem continuamente vir a ser objecto de um entendimento metaco-


municativo. (...) O modelo <lo jogo facilmente ilude a circunstâncias de que <la estrutura da
comunicação linguística não pode ser dissociada a personaJi<la<le dos falantes, profundamente
estruturada <le forma simbólica". Ibidem, p. 88.
6411
"Este problema apenas se coloca com regras que não constituem, tal como as regras <lo jogo,
um mero contexto de senti<lo que se basta a si próprio, mas o sentido os objetos da experiência
possh·cl". Ibidem, p. 89.

190
da validade das regras se apoia sobre uma "mútua credibilidade", a qual pressu-
põe a exp11clati11a de comportamento - e não, necessariamente, a reciprocidade
concreta de comportamento. São essas expectativas que ele chama de intenrões.
Acrescente-se que essas expectativas nunca podem existir unilateralmente, mas
são sempre expectativas reciprocamente reflexivas.641
Há na relação lin1;,>uística uma articulação entre identidade e não identidade.
As supramencionadas expectativas reflexivas, por seu turno, exigiriam um reco-
nhecimento recíproco dos sujeitos. Em função disso> eles teriam de se perceber
como idênticos, pois todos assu1niriam a posição de interlocutores. Concomitan-
temente, o reconhecimento recíproco pressupõe também a não identidade, pois
a total identidade significaria a indistinção e a dissolução da subjetividade. Essa
relação intersubjetiva se manifestaria (gramaticalmente) já na unidade elementar
do discurso: o ato de fala. 642
Pelos vistos, a paradoxal relação da intersubjectividade é exercida linguisti-
camen te com o sistema dos pronomes pessoais, para o que Humboldt, em
especial, chamou a atenção. A reflexividade recíproca da expectativa com
que se constroem significados idênticos exige, como também viu Husserl,
que ambos os sujeitos possam identificar e esperar uma e~ectativa simul-
taneamente a partir da sua própria posição e da do outro. 3
O discurso como uma forma de referência a algo no mundo, por seu lado,
sofreu alterações substanciais com o avanço das considerações de Wittgenstein.
Em um primeiro momento, ele centra sua análise na linguagem que retrata fatos>
mas, após deparar-se com o aspecto pragmático dos atos de fala, empreende uma
reformulação da função de constatação, equiparando-a a outras funções do dis-
curso. A função cognitiva da linguagem perde, assim, sua posição de destaque.644
As formulações tardias de Wittgenstein negligenciariam a devida importân-
cia ao duplo aspecto da linguagem, sua intersubjetividade reflexiva e sua referên-
cia no mundo. Um ato de fala não se compõe apenas por seu conteúdo proposi-
cional (sua referência ao conteúdo comunicado), mas também por seu conteúdo
ilocutório, o qual também estabelece o parâmetro de validade da expressão. Em
seu conteúdo proposicional, a pretensão de validade adquire o caráter de verdade
641
Ibidem, p. 90.
642
Formulações semelhantes encontram-se na obra ''Técnica e ciência como ideologia". Lisboa:
edições 70, 1997.
60
HABERMAS, Jürgen. Preleirões...p. 91.
644
"Esta dupla estrutura do acto de fala reflete a estrutura do discurso cm termos gerais; wn en-
tendimento não é conseguido se ambos os parceiros não actuarem em simultâneo em ambos os
planos - (a) o plano da intcrsubjectividade, em que os locutores/ ouvintes falam 11ns com os 011/ros
e (b) o plano dos objectos ou estados de coisas sobrt os quais se põem de acordo. Em cada acto
de fala, os falantes põem-se de acordo sobre objcctos no mundo, sobre coisas e acontecimen-
tos, sobre pessoas e as suas expressões, etc.". Ibidem, p. 93.

191
(cm um vínculo referencial, o sentido é que o objeto seja de uma tal maneira).
Os demais conteúdos dos atos de fala (alétn de fazer referência a um objeto)
implicam uma pretensão de validade. Segundo Habermas, os fundatnentos das
relações sociais (a facricidade dos fatos sociais) são justamente essas pretensões
de validade contidas nos atos de fala. 645
A significação de um acto de fala compõe-se do seu conteúdo proposi-
cional 'p, (expresso na frase dependente da forma-padrão) e do sentido
do modo 'l\I' do entendimento almejado (expresso na frase performativa
da forma-padrão). Este elemento ilocutório do significado também es-
tabelece o sentido da validade que reivindicamos para uma expressão. O
padrão destas pretensôes de validade implícitas no sentido do uso em que
são aplicadas é a realidade da verdade (ou aquilo que Husserl chamou de
posição dóxica). O sentido de uma afirmação é que o estado .de coisas
afirmado é realmente o caso. Para além desta, existem outras classes l k
pretensões de validade (ou posições não dóxicas). Assim, o sentido ~k
uma promessa enquanto promessa é que o locutor queira cumprir um
compromisso assumido. 646
Habermas diferencia, então, entre quatro tipos de pretensões de validade:
compreensibilidade; verdade; sinceridade; e correção.647 A compreensibilidade diz
respeito à pretensão do entendimento da expressão simbólica usada. A pretensão
de verdade (ou uso cognitivo da linguagem) surge da finalidade se connmicar algo
sobre um objeto, como nas constatações e afirmações. A pretensão de sinceridade
diz respeito às manifestações expressivas, de desejos, sentimentos, etc. Por fim, a
pretensão de correção concerne a expressões normativas, como promessas e or-
dens.<>4S A teoria consensual da verdade diz respeito às pretensões de verdade e cor-
reção, enquanto as pretensões de sinceridade precisam ser revalidadas por ações, e
as de compreensibilidade, quando não são aceitas, desfazem-se.649 Atente-se:

64
s Ibidem, p. 94.
646
Ibidem, p. 94.
647
"As quatro pretensões de v:ilid:idc: reforidas são fundamentais no sentido em que não podem
ser n:conduzidas :i :iJgo que Jhes seja comum. O sentido da compreensibilidade, da correcção
e da sinceridade não pode ser reconduzido ao sentido da verd:ide". Ibidem, p. 122.
641
Acrescente-se: "(...) a correção coincide com a verdade em que ambas estas pretensões apenas
podem ser revalidadas pda via d:i aq,'Umentaçào e da consecução de um consenso r:izo:ívd.
No entanto, um consenso possivelmente conse1-,'Uido não significa o mesmo em ambos estes
casos. A ,·erdade de enunciados afere-se pda possibilidade de uma ,,prowçno universal dr uma
concepção, ao passo que a correcção de uma recomendação e/ou de um aviso e: medida pela
possibilidade da ro11rord,í11ri11 universal r111 uma concepção". Ibidem, p. 124.
649
''Todas as expressões de orientação normativa implicam uma pretensão de correcç:io. Esta
não tem razão de existir, se :is normas válidas que subjazem às expressões não puderem ser
justificadas. A este uso da lins,ruagem chamo comunic:itivo. No st:u :imbito, mencionamos algo
num mundo p:tra est:tbdecermos determinadas relações interpessoais. O uso comunic:ith-o da

192
Um jogo de linb'l.lagem funcional, em que ocorre a coordenação e permuta
de actos de fala, é acompanhado por um 'consenso de fundo'. Este consen-
so baseia-se no reconhecimento recíproco de pelo menos quatro pretensões
de validade que locutores competentes têm de fazer valer mutuamente com
cada um dos seus actos de fala. Reivindica-se a compreensfüilidade da locu-
ção, a verdade da sua parte proposicional, a correção da sua parte pcrforma-
tiva e a sinceridade da intenção expressa pelo locutor.650
Além disso, quando discute sua pragmáúca urúversal fundada em Chomsky,
também procura distin6>uir-se dele. Afirma o autor de Düsseldorf que o objeto
da teoria gramaúcal é a linguagem e não os processos de fala. Nele, a fala é pen-
sada em função da linguagem (sistema de regras). 651 Aquilo que se quer fazer é
pensado em função de como se deve fazê-lo.
É compreensível que isso aconteça, especialmente em razão do caráter cons-
titutivo das regras de linguagem, pois produziriam (em parte) a própria situação que
regem. Em outros termos, elas regem algo que, em princípio, sequer existiria :,em
elas. Entretanto, aquilo que você quer fazer determina também, e profundamente,
o como você precisa fazê-lo - isso aparece claramente na análise sobre a ação hu-
mana em Lukács. E como, claramente em sua gênese (a qual serve de modelo para
uma análise holística) e ainda amplamente hoje, não se pode pensar as funções da
linguagem sem uma referência à realidade, ela dificilmente adquire a função q/(asi-
-demiúrgica (fundante da própria realidade) que tantos atribuem a ela.652
Aliás, é diante de uma possível objeção à ideia de uma linguagem inata, por
meio da evocação de variações potenciais na competência linguística, que Ha-
bermas (201 O) realiza a disúnção entre competência pragmática e competência
gramatical (ou linguística). A competência gramatical pode sofrer interferências
externas limitadoras e gerar, com isso, um domínio deficitário da linguagem. Ele
deduz, assim, a existência de uma linguagem natural da própria inexistência de
um dos seus pressupostos no mundo concreto.
É em um encadeamento lógico semelhante que ele também propõe a
abstração sociolinguística e pragmático-urúversal como duas de três etapas (que
ainda incluem a abstração linguística) para subtrair as particularidades linguísticas

linguagem pressupõe de igual forma o uso cognith-o da linguagem, através do qual dispomos
dt: conteúdos proposicionais (...)". Ibidem, p. 95 e 121 e ss.
650
lbidt:m, p. 121.
st
' Ibidem, p. 96 e ss.
6S.? H:i momentos, diga-se, que Habermas dt= foto st= realiza aproximações mais re:ilistas. "Ora,
cu afirmo <-1ue as rdações pragmáticas entre os enunciados t: a realidade cstabdecidas no uso
cognitfro da linguagem dependem de uma constituição prévia dos objectos de uma expt:riência
possível. Na pragmática <lo uso cognitivo d:t linguagem podt: demonstr-Jr-st= que a respectiva
:irca temática e! estruturada por uma determinada corrdaçiio entre a linguagem, a cognição t: a
acção". Ibidem, p. 109-10.

193
e conseguir elaborar um conceito de competência comunicativa sem maiores
problemas.6s3
As clássicas questc1es da Filosofia, como as relaçôes entre essência-aparên-
cia e ser-dever, passam a ser resolvidas pelas teorias da linguagem. As respostas
oferecidas, todavia, são insuficientes.6s4
Para Habermas o consenso razoável é alcançado por discursos, e discursos,
para ele, são procedimentos com a finalidade de fundamentar expressões cogniti-
vas.6ss A respeito das críticas que podem ser erigidas contra as formulações haber-
masianas, não parece ser suficiente o esforço do autor e1n distin!:,ruir entre wn con-
senso formado de maneira razoável e wn consenso apenas contingente. Habermas
cria uma estrutura de confirmação de criação de um consenso razoável que remete
inúmeras vezes para validações em níveis distintos, o que, eventualtnente, torna
desnecessário que seus conceitos centrais se sustentem por si próprios, porque
dividem o peso da justificação da própria formulação teórica do autor.
Há uma situação ideal de fala, a qual precisa levar a um consenso razoável,
o qual é alcançado por discursos6S6 e por sua consideração por um avaliador com-
petente. Em princípio, o consenso deveria passar por um crivo de compreensi-
bilidade, verdade, sinceridade e correção; e os avaliadores competentes deveriam
ser capazes de realizar uma "verificação adequada". A expressão "verificação
adequada" designa que os avaliadores deveriam ser conhecedores do assunto,
mas, por fim, a verificação considerada adequada e os avaliadores considerados

6>> Ibidem, p. 104-5.


•~ "O emprego dos :ictos de fala constativos permite distinguir um mundo público de concepções
reconhecidas no plano intersubjectivo de um mundo privati,·o de meras opiniões (ser e pare-
cer). O emprego dos actos de fala representativos permite distinguir entre o ser individuado
cujo reconhecimento os sujeitos dotados de capacidade de fala e de acção reivindicam mutua-
mente e :is enunciações, expressões e acções linguísticas em que o sujeito se manifesta (essência
e aparência). O emprego dos actos de fala regulativos permite distinguir entre as regularidades
empíricas que podem ser observadas e as regras em vigor que podem ser cumpridas ou in-
fringidas (ser e dever). E1101 /ris disli11çõrs)"nlas, porfi111, pemliltn1 a disli11çào m1lral mlrt 11n1 ,0111mso
'i'trdadtiro' (na/) t 11m ron1mso Ja/Jo' (tl{~a1101of'. Ibidem, p. 115. Grifo nosso.
655 "Elementos cognitivos como interpretações, afirmações, explicações e justificações são com-

p<mentes normais da pr:íúc:i da vida quotidiana. Eles preenchem lacunas de informação. (...)
As interpretações, afirmações, explicações e justificações, de início ingenuamente aceites na sua
pretensão e cm seguida problematizadas, são transformadas por fundamentações consegui-
das de forma discursiva: interpretações casuísticas são inseridas em contextos interpretativos,
afirmações singulares são articuladas com frases teóricas, explicaçcies são fundamentadas com
referência a leis naturais ou normas, justificaçôcs singulares de acçôes são deduzidas de justiti-
caç<;es gerais das normas que subjazem às acçôes''. Ibidem, p. 125.
6sc. Os discursos dividem-se em três: hermenêuticos (ocorre quando há interpretações contro-

versas), teórico-empíricos (quando se quer verificar a validade de afirmações com conteúdo


empírico e explicativo) e práticos (quando se quer verificar a validade de recomendações sobre
padrões). Cf. HADER~lAS,Jürg(n. Pr,ltcçõn...p. 126.

194
competentes são assim caracterizados por meio de discursos. Forma-se, então,
uma construção deveras circular.657 Afirma Habermas:
Em caso de dúvida, a distinção entre o verdadeiro e o falso consenso tem
de ser decidida pelo discurso. Mas o desfecho do discurso é, por seu lado,
dependente da consecução de um consenso sólido. A teoria consensual
da verdade torna-nos cientes de que a verdade de enunciados não se pode
decidir sem referência à competência de possíveis avaliadores, e sobre a
competência destes não se pode decidir sem avaliar a sinceridade das suas
locuçc1es e a correcção das suas acções. A ideia do verdadeiro consenso
exige dos participantes de um discurso a capacidade de distinguir de uma
forma tiável entre ser e parecer, essência e aparência, e ser e dever a fim
de poderem avaliar de forma competente a verdade dos enunciados, a sin-
ceridade de expressões e a correção de acções. No entanto, em nenhuma
destas três dimensões conseguimos referir um critério que permita urna
avaliação independente da competência de possíveis avaliadores ou peri-
tos. Antes, a avaliação da competência de avaliação teria de se legitimar por
seu lado com base num consenso do mesmo tipo, para cuja avaliação se
tratava justamente de encontrar critérios.658

Também quando fala da relação entre os atos de fala ilocucionários e perlo-


cucionários, Habermas destaca uma hierarquização inclinada em detrimento do
agir teleológico. 659 Além da subordinação da ação teleológica à ação comunicativa
e orientada para o entendimento, Habermas parece conceber o estofo comum de
uma sociedade apenas recorrendo à ideia de formação de consenso por meio da

6 7
s lbidt:m, p. 126-7. Ainda: "Afinal não basta que uma pt:ssoa faça dt: conta que efectua wna ob-
st:n-açào ou que procede a uma inquirição. Esperamos que, digamos, domim: os seus sc:ntidos
e: que tenha discernimento. Tem de vi,·er no mundo público de uma comunidade: linguística e
não pode ser 'idiota', ou seja, incapaz de: distinguir entre ser e: parecer. No entanto, apenas nos
aperct:bemos do estado dt: razoabilidade de alguém, se pudermos falar com de e contar com
elt: em contextos de acçÕt:s". Ibidem.
651
lbidt:m, p. 128.
659
"Ora, é evidente que: nem toda a interação me&ida pda linguagem comporta um t!Xt:mplo de
uma acção oric:nt'lda para o entendimento. O acto de fala dementar só pode servir de moddo
a uma formação de consenso que, por seu lado, não pode: ser atribuída a uma acção oric:ntada
para o i:xito (ação teleológica! se: o uso da fala diri1-,rido pam o entendimento puder ser c:iracte-
rizado como o modo origin:il do uso da lin1-,,uagem em sentido lato, em rdaç:io ao qual o uso
da linguagem qut: se oric:nta pelas consequências e a comunicação indireta (o d:ir-a-emc:ndc:r)
se comportam de: um modo parasitário. (...) Se o ouvinte não comprt:t:ndesse o que o locutor
diz, mesmo um locutor a1-,rindo tdc:ologicamc:ntc:, n:io poderia levar o ouvinte por intermt:dio
de: actos comunicati,·os a comportar-se: da forma dc:sejad:i. Nc:ssa medida, o uso da lin1-,1Uagem
qut: st: orienta pelas consequt!ncias não é um uso da linguagem originário, mas sim a subsunção
de actos de fala ao sen·iço de fins ilocutórios, nas condições de uma acção orientada para o
êxito". HABERMAS, Jürgen. Eidnrrri1111·11luI... p. 160. Nesse: sentido tamb~m: HABERMAS,
Jürgen. Tr:on·n do n,girto11111111rnlivo, 1. São Paulo: Martins Fontes, 2012. pp. 473-581.

195
linguagcm.660 Tal posição, se entendida corretamente, implica a obnubilação da
história por trás da formação das univocidades culturais, dos processos de con-
quista, colonização e submissão que muito pouco tem de consenso direcionado
ao entcndimento.661
Afirma Habermas que
(...) a apropriação de tradições, a renovação de solidariedades, a sociali-
zação de indi,íduos necessitam da hermenêutica natural da comunicação
quotidiana e, assim sendo, do meio da formação de consensos com re-
curso à lin!,11.1agem. Uma interacção, em que alguém trata outrem como
objecto de influência, passa ao lado desta dimensão de intersubjectividade
construída com recurso à linh11.1agem; no âmbito da influência mútua, os
conteúdos culturais não podem ser transmitidos, os grupos sociais não
podem ser integrados, os adolescentes não podem ser socializados.662

Isso contradiz frontalmente as análises históricas sobre as relações familia-


res e a noção de paterfa1J1ilia1, a qual contribui para a melhor compreensão das
sociedades atuais - inclusive com repercussões institucionais.<i63 Lembre-se, por
exemplo, que Jean Bodin fundamenta a ideia de soberania do Estado, da qual
ele é pioneiro, sobre uma extrapolação da relação de poder do pai sobre o cír-
culo familiar. Pois bem, mesmo as teorias psicanalíticas teriam muito a dizer em
desfavor de uma fundamentação da ideia de que a socialização só pode ocorrer
em âmbitos horizontalizados.664 Nesse sentido, é profundamente problemática
6611
"Na acção comunicativa, os participantes de uma interacçiio executam os seus planos de acção
sob a condição de um acordo alcançado de modo comunicativo, ao passo que os próprios actos
coordenados mantêm o caráter de atividades orientadas para fins. A ath-idade orient:1da para
fins constitui um componente tanto da acção orientada para o entendimtnto como da acção
orientada para o êxito; em ambos os casos, os actos implicam intervenções no mundo objec-
tivo. Consoante o fim da acção, podem incluir mesmo actos instrumentais, isto e;, alterações
manipul:ith·as de objectos fisicos. Acções instrumentais podem, assim, surgir como compo-
nentes em acções sociais de ambos os tipos. Na reprodução material do mundo da vida que se
processa atrn,·~s do mcio da atividade orientada para fins estão implicadas tanto acções est.ratc:-
gicas como acções comunicativas. A reprodução simbólica do mundo da vida, pdo contcirio,
depende unicamente da acção orientada para o entendimento. Evidentemente, a preservação
do substrato material constitui uma condição necessária à preservação das estruturas simbó-
licas de um mundo da vida. Mas a apropriação dt: tradiçàt:s, a reno,·ação dt: solidariedades, a
socialização de indivíduos necessitam da hermenêutica natural da comunicação quotidiana e,
assim sendo, do mcio da formação de consensos com recurso à linj.,ruagem". HABERMAS,
Jürgen. EJ(/11rui11mJl01...p. 166. .
661
O imperativo catc:górico chcira a crueldade, diria Nietzsche (2009).
G6.? HABERMAS,Jürgcn. E1dnrrri111mlo1... p. 166.
1
"" BATJSTA, Nilo. A ld como pai. ln: Rrt•i.rtn fotm,adoual dr /-lislúrin J>o/íticn r C11/t11m J11rídim, Rio
de Janciro: vol. 2, nº.3, janeiro 2010, p. 20-38.
""" Bl&vlAN, Jod. Gmenlogin loft111i11i110 r d,1 pntrmidndr r111 psirml(í/isr. Nat. hum. 2006, vol.8, n.1, pp.
163-180.

196
a eleição do conceito de entendimento como pedra angular para a reprodução
simbólica do mundo da vida.665

9.1.2 - Repercussões possíveis no Direito Penal

Os atos lin,guísticos, para Habermas, seriain enunciados performativos e


proposicionais. Ele, contudo, não se limita à incorporação das teorias linguísticas
como formuladas por Austin e depois aprofundadas por Searle, na divisão dos
atos de fala e1n Iocucionários, ilocucionários e perlocucionários, mas recorre à
ideia de uma gramática universal em Chomsky para ir além da linguística tradicio-
nal e propor uma pragmática universal (universal porque fundada na ideia de uma
linguage1n natural). 666 Chaina-se con1petê11da con11111icotiva, a propósito, justamente
o domínio do sistema de regras de comunicação o qual essa pragmática tenta
reconstruir. 667
Essas proposiçôes não parecem acolher sem maiores problemas as condu-
tas ilícitas. A partir da teoria da linguagem, poder-se-ia analisar uma conduta ilíci-
ta sob três pontos de vista: (a) a partir da relação locutor-ouvinte (quem comete
o delito sendo o locutor de wn enunciado com pretensão de validade extracon-
scnsual); (b) a partir das relações que se estabelecem no processo penal (no qual
a busca pelo convencimento do juiz seria uma forma específica de manifestação
jurisdicional da ideia de consenso); (e) a partir da relação sujeito-nonna (na qual
a violação de uma norma consensualmente estabelecida habilitaria a punição do
indivíduo); ou (d) como manifestação de uma convicção monológica (ou modelo
de influência unilateral).
66
s "Enquanto para a reprodução matt:ri:u do munda da ,·ida«; imporronte o nspt!cto dn·atividade
orientnda para fins da acção soci:tl, o aspecto do entendimento é impormnte parn a reprodução
simbólica do mundo da vida. Daí decorre a associação propost-i c:ntrt! tipos dt! rt!produção e ti-
pos dt! acção. Uma associação inequívoca e Ct!\'t!rsh-d existe unicamente entrt! o mundo da ,·id:i
simbolicamente reproduzido e a acção comunicati\'-a". HABERMAS,Jürgt!n. Esdnn·ni11e11/(JJ...p.
166.
666
HABERMAS,Jürgt!n. Prdrqõr.s...p. 96 t! ss. Ainda: "A criança n:io precisn de construir a gramá-
tica da sua língua materna apenas pela aprendizagem com base no matcrial linguístico posto
à sua disposição, antes pode:, guiada pelo saber apriorístico inato da construção abstr:icta de
lingungens naturais em geral, por assim dizer depreend~-la do material linguístico ruclimt!ntar
que encontra no St!U meio c:nvolvt!nte pda via da verificação do programa dt! hipótt!Ses incor-
porado". lbidt!m, p. 100.
"""' Não se dcvt! confundir, contudo, compett:ncia comunicativa e competfncia gramatical. Para
uma distinção mais pormenorizada: HABERMAS, Jürgcn. l'n·lrrrors...p. 104-5. Ainda: "O que
uma rcgrn tem de específico expressa-se, mais do 1..JUt! numa descrição, na competência daquele
que as domina. Compreendermos um jogo significa entendermo-nos com algo, 'sabermos
fozt!r' algo. Compreender significa dominar uma tt:cnica". Ibidem, p. 84; \'er tb: DUTR.A,
Ddamar José Volpato. Op. Cit. p. 105-30; PINZANl, Alt:ssandro. Op. Cit. p. 84-5.

197
A conduta de desferir um tiro e matar alguém não traz consigo necessa-
riamente uma pretensão de reconhecimento de ordem de verdade, justeza, ve-
racidade ou co1npreensibilidade. Não é de todo inviável argumentar-se que, e1n
um nível macrossocial, seria possível atribuir, externamente, uma pretensão de
validade de justeza ou de compreensibilidade ao ato ilícito de um indivíduo qual-
quer. l\fa.s isso só é possível se se abstrai o papel do sujeito que cria o prôprio
"enunciado", ou seja, se essa validade é analisada por outras pessoas, pois o su-
jeito-agente, propriamente dito, pode não ter qualquer pretensão de validade,
mas si1n de realização material (dar fim à vida de albruém) independente de uma
validade comunicativa propriamente dita. Em outras palavras: o tiro foi desferido
causando uma morte, e isso de forma independente de uma validade positiva ou
negativa em iunbito comunicativo. Ou seja, o que é u1n agir comunicativo não é
a conduta dclituosa, mas o procedimento (processo penal) de etiquetação dessa
conduta como delituosa.
Não seria de todo absurdo arbrumentar-se tainbém, em contestação, que, em
tais casos, apresenta-se sempre uma validade comunicacional positiva pela "for-
ça" da enunciação. Esse é, todavia, um argumento ad hoc, porque não é possível
falar e1n proposiçôes com pretensües de validade se: (1) há toda uma classe de
proposições que não possuem pretensão de validade, mas uma validade forçosa;
(2) nessas classes de proposição (fundadas também na ideia de comunicação), sua
validade depende apenas do sujeito que a "enuncia".
A exclamação 'mãos ao ar!' do assaltante de banco que, de pistola cm riste,
exige do c:iixa a entrega do dinheiro, demonstra de forma drástica que,
nesta situação, as condiçõe~ de validade normativa foram substituídas por
condições sancionatórias. As condições de aceitabilidade de um impera-
tivo destituído de qualquer cobertura normativa têm de ser acrescentadas
condições sancionatórias de semelhante índolc.668
Peculiarmente, em diversas manifestações mais problemáticas - como no
caso do cometimento de delitos - nas qurus estariam suspensas as condições
de um entendimento, Habermas entende não ser possível identificar uma ação
comunicativa, mas sim uma ação estratégica (a qual possui uma proximidade
maior com a ação orientada a fins). Essa é uma conclusão recorrente quando,
frequentemente, ele se depara com as condutas que não cumprem em abstrato
os requisitos para o entendimento.669
Também é discutível a proposta de recorrer à relação sujeito-norma (con-
sensual e democraticamente estabelecida). Como o destaque, aqui, é para a nor-
ma como um enunciado que pode causar determinados efeitos sobre os indiví-

,u;HAliEIU,lAS,Jürgcn. .l"'krõn, ,1r/01dr.Jê1fc1... p. 181.


w, Ibidem, p. 181.

198
duos, essa orientação parece abrir as portas para todas as teorias preventivistas
já amplamente (e justificadamente) desacreditadas pelas correntes críticas no Di-
rei to Penal.
Em quarto lugar, mostra-se a possibilidade de considerar a conduta deli-
tuosa uma manifestação do modelo de influência unilateral - o oposto da ideia
de acordo 1nútuo que envolve o conceito de discurso. Trata-se da interferência
(provocação causal) bem sucedida sobre os demais, fora da esfera da qualidade
do argumento (recorrendo-se a dinheiro, violência, etc.). O problema dessa con-
cepção é que ela assuine um lugar marginal na teoria da sociedade de Habermas.
Este constrói sua teoria a partir das ideias de discurso e comunicação, e a unila-
teralidade das ações só comparece para exemplificar aquilo que existe fora de sua
proposição e deveria ser expurgado de uma sociedade idealmente construída. As
ações unilaterais (e de caráter conflituoso), todavia, precisam necessariamente ser
o ponto de partida (e o eixo central) das formulações teóricas sobre o delito.670
A teoria habermasiana enfrenta sérios problemas quando se depara com
as questões do Direito Penal, nas quais é preciso pensar o conflito (e não o con-
senso) a partir de uma ação individual (e não coletiva).671 É claro que, em tese,
a teoria talvez pudesse ser emendada para lidar co1n essas questões de maneira
mais satisfatória, mas seriam ainda assim proposições ad hoc.
Diz Habermas:
A realidade social daí resultante assenta na facticidade das pretensões de
validade implícitas em connh>'\liações simbólicas como frases, acções, ges-
tos, tradiçôes, instituições, imagens do mundo, etc. A violência, em última
análise física, de influência estratégica e a violência material de constran-
gimentos funcionais, que tanto se oculta por detrás da facticidade ágil do
sentido que reivindica wlidade como também se articula ne]a, apenas
pode ser perpetuada no meio das interpretações reconhecidas.6 ' 2
Aquilo que, antes, aparecia em forma de germe, a partir da virada linguística
assume contornos cada vez mais sólidos: o agir comunicativo apresenta-se, nas
formulações habermasianas da década de 1970 em diante, como o modelo fun-
dante das demais formas de agir social.673
A pragmática universal de Habermas, sob influência de Karl-Otto Apel, in-
dica alguns elementos de uma base universal de validade do discurso: a compre-

"'" HABERMAS,Jürgcn. Esdarrnn1rnlo1... p. 140.


71
" '½ Teoria da Ação Comunicaúva ostenta seu caráter consen"':ldor ao vdar o caráter belicoso do
Direito. Sob a ideologia da busca do consenso, legitima-se o poder político e: o Estado como
instrumento de dominação e de manutenção do 1/11/111 q110-'. VlANNA, Tulio Lima. Cática da
razão comunicati,·a: o direito entre: o consenso e o conflito. ln: ~,ilia dt i1ifom1a1-ão legiJ/atfra, , •.
45, n. 180, p. 31-45, out./dez. 2008. p. 42.
672
HABERMAS, Jürgen. Prrltqõu...p. 116.
"n PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 85.

199
ensibilidadc da expressão; a intenção de comunicar algo verdadeiro; a enunciação
da intenção de veracidade; a opção pelo correto enunciado de acordo com as
normas vigentes. Esses requisitos dizem respeito a pretensües de, respectiva1nen-
te, compreensibilidade, verdade, veracidade e justeza. As pretensões de validade,
que pressupõem essa base, deixam de ser apenas pretensões quando o sujeito
fundamenta de forma suficiente o enunciado e, complementannente, seu enun-
ciado é aceito pdos dcmais.<•74
Seu envoh·imento com a linguística se dá de tal forma que reflete em suas
concepç<>es epistemol<'>gicas, quando desenvolve uma teoria discursiva da ver-
dade.675 Há, em grande medida, uma desconstrução das teorias ontológicas da
verdade (verdade como correspondência), desde Aristóteles até hoje, e da teoria da
evidência da verdade (Husserl), para afinnar-se uma teoria consensual da verdade.""'
Isso reaparece em suas obras posteriores, na afirmação de que as sociedades inter-
pretadas a partir da ideia de mundo da vida possuem uma relação imanente com a
verdade, ou seja, a realidade de suas estruturas de sentido se apoia sobre pretensões
de validade (as quais, nem por isso, estão livres de problematização).''77

74
" lbidc::m, p. 86-7. Ainda: "0 <-1uc:: importa não«; a actit.1ç:io factual (c::m caso contrário, Habc::rmas
não se:: distinguiria daqudc::s que:: admitc::m ou att: dc::fc::ndc::m um uso manipulador ou rc::tórico da
lin1,.'Ua~c::m), mas o foto de:: as prc::tc::nsões de:: validade serem dignas de rc::conhc::cimc::nto. Elas são
considc::radas justificadas quando for possívd mc::ncionar razões para tal reconhc::cimc::nto - e
essas razões são rncionais". Ibidem, p. 87-8.
67
s "(...) a verdade:: que:: reh·indicamos para c::nunciados ao afirmá-los depc::ndc:: de:: duas condiçõc::s:
Tem de (a) c::star fundamc::ntada na c::xpc::rii:ncia, isto é, o enunciado niio dc::ve c::sbarr:ir com ex-
perii:ncias disson:mtc::s, e:: tc::m de:: (b) ser passívd dc:: rc::validação discursiva, isto é, o enunciado
tc::m de:: n:sistir a t:\'c::ntu:ús ar1-,rumc::ntos c::m contrário e:: sc::r capaz de:: contar com a aprO\·ação
dc:: todos os potc::nci:tis participantes de um discurso". HABERMAS, Jürgc::n. J>rt'lrrçõrs...p. 120;
OUTRA, Dclamar Josc: Volpato. Op. Cit. p. 71 -86.
676
"As tc::orias ontológicas da vc::rdadc:: tc::ntam cm vão sair da área lóhrico-linguística que é a única
em que a prc::tensão de \·alidade de:: actos de:: fola pode ser cbrificad:i. Dc:: facto, o sentido da
vc::rdadc:: não rc::sidc:: no método de:: a encontrnrmos; no entanto, o sc::ntido de uma prc::tc::nsào
de:: validade:: também não pode:: ser dc::tc::rminado sc::m rc::curso :i pussibilidndt de:: a n:validarmos,,.
HABERMAS,Jürgen. Prrlrrrõrs...p. 118-9.
,n "De:: acordo com est:t concepção !consensual da vc::rdadc::J, «;-me:: lícito atribuir um pn:dicado
a um objc::cto única e:: c::xclusi\':tmc::nte se mmbém qualquer outra pessoa que pudesse entrar
numa al'J.,rumcnt:tção comigo atribuísse no mc::smo objc::cto o mesmo predicado. Para distinguir
enunciados vc::rdadeiros dc:: falsos rdiro-me à avaliação de:: outros - nomc::adamente à de:: todos
os outros com que:: alguma vez pudesse c::nm1r numa argumc::ntação (sc::ndo que, de modo con-
trafactual, incluo todos os parceiros de diálogo que podc::ria c::ncontrar se:: a minha história de
vida fosse coc::xtc::nsiva com a história do mundo humano). A condição da verdade:: de:: c::nun-
ciados é a aprovação potencial de todos os outrosº. HABER~IAS, Jürgc::n. Prtlrqüu...p. 120-1.
"De 'verdade::' podemos aqui falar dc::certo somente num sentido muito lato, precisamente no
sentido de:: lc::gitimidade de uma prc::tc::nsào que pode sc::r cumprida ou frustrada". Ibidem, p. 54
e ss; PlNZANl, Alc::ssandro. Op. Cit. p. 89.

200
Também é pertinente a diferenciação, feita pelo pensador alemão, entre dis-
cursos e ações, bem como entre fatos e objetos. Se os discursos caracterizam-se
pela aq,11.11nentação e pela discussão sobre a legitimidade de pretensc1es tornadas
problemáticas, as ações são o "âmbito comunicativo" no qual se movimentam
as pretensões de validade, para a troca de informações. O primeiro diz respeito
à troca de argu1nentos e o sebrundo à troca de informaçôes. E, sem dúvida, os
discursos pressupõem a suspensão das motivações e obrigações, bem como a
ampla abertura em se considerar a existência e a legitimidade de fatos e normas.
Os fatos, por sua vez, são aquilo que as proposições representain, e os objetos
são aquilo sobre o que fazemos afirmações e construímos experiência. Dessa
maneira, Habermas ressalta ser possível afirmar fatos e não objetos.67g
A terceira questão preliminar concerne à diferença entre fatos e acon-
tecimentos e diz respeito a um pressuposto de fundo da teoria da ver-
dade como correspondência. 'Um fato é o que torna verdadeira urna
proposição; por isso, dizemos que as proposições refletem, descrevem,
expressam, etc. fatos. Coisas e acontecimentos, pessoas e manifestações
de pessoas, isto é, objetos da experiência são, pelo contrário, aquilo sobre
o qual fazemos afirrnaçôes e do qual declaramos algo: o que afirmamos de
objetos é, se a afirmação for le6ritima, um fato. [...] Dos objetos eu tenho
experiência, os fatos, afirmo-os; não posso experimentar fatos e não posso
afirmar objetos (ou experiência com objetos)', ainda que, ao afirmar fatos,
possa referir-me a objetos. Ora, a teoria da verdade como correspondência
afirma que às proposiçôes verdadeiras devem corresponder fatos no senti-
do de que 'o correlato das proposiçôes represente algo de real do tipo dos
objetos da nossa experiência'. Porém, os fatos não possuem, justamente,
o stat11s de tais objetos. Apesar disso, a teoria da correspondência se apoia
em uma observação correta: Se as proposiçôes devem reproduzir e não
meramente simular fatos, então estes últimos devem dar-se cm um certo
sentido, exatamente corno se dão os objetos da expcriência.6 ' 9
Nesse sentido, uma conduta (delituosa) não poderia ser considerada um
fato, mas um objeto. Talvez isso salve a aplicabilidade da teoria habermasiana
ao Direito Penal. Mas mesmo essa ponderação torna clificil a compatibilização
necessária porque os objetos só nos seriam acessíveis por meio da linguagem,
portanto, não existe um objeto estritamente considerado, mas algo como a
apreensão (lingwsticamente mediada) que fazemos desse objeto.680 Entretanto,
considerando o acontecimento sobre o qual paira o juízo criminal um objeto, se-
ria possível defender-se a ideia do sistema pe~al como um sistema habilitador
de discursos, dentro do qual, respeitadas determinadas regras (possivelmente, a
671
PINZANI, Alcssan<lro. Op. Gt. p. 90.
67'1 lbi<lcm, p. 90.
t.lO HABERMAS, Jürgcn. H1darrri111mlo1...p. 163.

201
articulação entre a legislação pátria e a teoria do delito), poder-se-ia chegar a um
consenso sobre a pretensão de veracidade dos fatos apoiados sobre o objeto em
questão. Em outras palavrns, a verificação da pretensão de validade sobre a adje-
tivação "delituoso" sobre um determinado acontecimento analisado.
Talvez o maior problema ligado a essa perspectiva seja o de possuir refe-
renciais essencialmente normativos e poder, em princípio, ser a1nplatnente fle-
xibilizada e instrun1cntalizada. Além disso, uma proposição nesses modelos diz
respeito não à conduta supostamente ilícita (que, ao ser tratada como objeto,
pode refugir à sua delimitação como uma ação comunicativa ou discursiva e1n
si), mas aos critérios de asserção de sua ilicitude; e por isso não tem implicações
diretas sobre o objeto mesmo - e consequentemente sobre qualquer caractere
ontolúgico dele - 1nas, apenas, o que se afinna dele. Isso, contudo, culmina e1n
um impasse porque, muito embora um caractere qualquer do objeto independa
de sua afirmação e consequente reconhecimento, esse caractere só pode inter-
pretar um papel no sistema penal por meio do reconhecimento de sua validade
mediante sua enunciação.681
Ademais, parece uma dedução sem maiores lastros a comparação do pro-
cesso penal a wn processo discursivo democrático almejando o livre convenci-
mento recíproco. Na verdade, o processo penal aproxima-se mais de uma disputa
entre duas partes específicas, na qual qualquer pretensão de "verdade real" dos
fatos (referentes ao objeto analisado) tem uma repercussão deletéria ao modelo
processual acusatório, e busca-se o convencimento (unilateral, pois se dá apenas
do sentido parte-juiz) de uma das partes e não o mútuo convencimento. As re-
gras que envolvem esse siste1na dize1n respeito à validade de uma enunciação -
ou seja, se ela pode ser aceita ou não no processo, por exemplo - mas nada dizem
sobre a aceitação de sua pretensão de veracidade, o que passa a ser amplamente
influenciada pelos preconceitos e subjetivismo do(s) julgador(es), frequente1nen-
te com reduzido peso dado ao argumento propriamente dito.
6111 "De: acordo com c::ssa concc:pçào, posso atribuir um prc:dicado :i um objc:to (p. c:x., di~er. 'Estc:
J:ípis é vc:rmdho), 'se: qu:iJquc:r outra pc:ssoa que: pudc:sse iniciar um diálogo comigo atribuíssc: o
mc:smo prc:dic:ido ao mesmo objc:to'. A condição de: vc:rd:ide de: proposições é, pommto, o con-
sc:nso potencial de: todos os possívc:is participantes dc: um di:ílogo. Ao afirmar algo, c:stou av:m-
ç:mdo um:i pretc:nsiio de: ,·c:rd:idc: e:, com isso, a prc:tc:ns:io de: poder convc:ncer todos os outros da
vc:rd::idc: da minh::i afirm::ição. Pretendo que: todos concordc:m comigo. Portanto, Habc:rm:is pode
c:qwp:irnr :t ,·c:rd:idc: de: uma prc:tc:nsiio com :1 promessa 'de: alcançar um consenso r::icional sobre
o que: foi dito"'. PlNZANl, Alc:ssandro. Op. Cit. p. 91. "0 sentido dos fatos só pode: sc:r c:scl:m:-
cido recorrc:ndo-sc: a discursos. Isso significa llUC: uma pn:tc:ns:io de: verdade: pode: sc:r fundamc:n-
t:tda somente: por mt:io de argumc:ntos, n:io se: :ipdando p::irn ::i c::xpc:ric:nci:l: ':1 quc:stào se: certos
fotos se: dão ou n:io se: dão c:fc:ti,·amc:ntc: é rc:sulvida não pc:la c:vidtncia d:is ·c:xpc:rii!ncias, mas pda
c:idc:ia de: aq,'U1Tlcnt:1çcks'. Port:into, :t vc:rd::idc: é uma propric:d:idc: de: proposiçõc:s: 'Ch::imamos de:
vc:rd::ideirns :is proposições que: conseguimos fundamc:nt1r'". lbidc:m, p. 90-1.

202
9.1.3 - A situação ideal de fala e outras elaborações problemáticas

Ao estabelecer que a justificação de pretensões de verdade ou de legitimida-


de deva realizar-se por "boas razões", Habermas fica preso entre um relativismo
cultural e uma razão universal (da tradicional Filosofia da Consciência). Nesse
sentido, é muito percuciente a crítica de Alessandro Pinzarú (2009). Para sim-
ples1nente poder determinar o que seria uma "boa razão", ele precisa recorrer
ao conceito de racio11a/idade e, assim, à determinação do que seriam boas razões
impõe-se uma definição de segunda ordem: boas razões seriam motivos ou ra-
zões racionais (11er11ii11ftige Grii11de).
Consequentemente, cai-se em uma esparrela: ou são racionais as razões
(Gn111de) consensualmente defendidas, assumindo-se uma posição de relativis-
mo cultural - pois um motivo racional de uma comunidade pode ser inaceitável
para outra; ou essas razões racionais são unívocas a todos os homens. Habermas
chega a afirmar, em resposta a Richard Rorty, que a verdade independeria de con-
texto. É por esse 1notivo que ele recorre a uma prag1nática universal, o elemento
universal é apontado na estrutura pragmática da língua. Apesar de engenhosa,
essa formulação tem por consequência escamotear para um segundo nível cate-
gorial a ideia de uma racionalidade universal presente na Filosofia da Consciên-
cia. Pois, em última análise, o que define se uma razão deve ser reconhecida é sua
racionalidade e não o simples consenso.682
Complementarmente à ideia de discurso, aparece a ideia de ação comuni-
cativa. A ação comunicativa envolve as três espécies de locução - ações, frases
e expressões - e se dá em jogos de linguagem estipulados e validados na esfera
nonnativa, ou seja, essas locuções se formam de acordo com as regras normati-
vamente estipuladas. E essa mesma ação comunicativa envolve uma pressuposi-
ção de competência, chamada pelo autor de imputabilidade.<>RJ
6112
•~ rnz:io IYernunft), por conseguinte, parece ser não somente uma instância intersubjetiva, mas
também uma instância impessoal e supersubjctiva, que, afinal de contas, depende das particula-
ridades dos idiomas p:irticulares (e das sociedades particulares): o consenso fundamentado do
qual fola Habermas é aquele que pode ser alcançado sempre e cm todo lugar, quando enrr:unos
cm um discur.;o. A diferença em relação ao p:m1digma da tradicional filosofia da consciência
consiste somente no fato de que o sujeito particular não possui acesso direto :i raz:io, mas pode
assegurar-se de que suas razões são, de fato, racionais somente em um processo de entendi-
mento inter.;ubjet.ivo. É verdade que essa é uma diferença importante, mas não é decish·a cm
relação à 'essência' da razão, que - como já foi dito - continua sendo uma instância univer.;al
no sentido de Kant.". Ibidem, p. 92-3.
Nll H.ABERMAS, Jürgcn. Prrltqvrs... p. 132 e ss. Ainda: "Se q11i!rm1os de todo assumir uma atitude
que o trate como um sujeito, nós Irmos dt partir do princípio de que o nosso parceiro fHJdtria
dizer-nos por que razão numa dada situação se comporta deste modo e n:io de outro qualquer.
Procedemos, portanto, a uma idea.liz:ição que também nos atinge a nós, uma Yez que Ycmos
o outro sujeito com os mesmo olhos com que nos contemplamos a nós próprios; supomos

203
A ação comunicativa envolve também a pressuposição ingênua da validade
das expressões para a troca de informações - o discurso implica a superação da
situação criada pelas pretensües de validade assumidas na ação co1nunicativa. Essa
ação comunicativa envolve wna a11teripação, que supõe wna expectativa de intencio-
nalidade (espera-se que os sujeitos sigam intencionalmente as normas e supõe-se
que as expressôes extr.iverbais poderiam ser tmnsfibruradas em verbais) e u1na ex-
pectativa de legitimidade (espera-se que os sujeitos sigam somente as normas que
pareçam justificadas). Essas expectativas remetem ao entendimento que se pode al-
cançar no discurso pr-.ítico e à afirmação dos agentes como sujeitos "ünputáveis,,.684
Em determinado momento, a teoria de Habermas se acorre à sit11arão ideal de
fala, composta por um requisito de simetria geral: a igualdade nas oportunidades
de praticar os atos de fala e de apresentar seus pontos de vista (e pretensôes de
validade), bem como pela limitação de admissão aos sujeitos com iguais chances
de enunciar atos de fala consratativos e regulativos. Essa situação ideal afastaria
as distorçües da comunicação.<.,115 Garante Habennas que:
Essa simetria entre legitimidades e compromissos [entre os sujeitos] pode
ser garantida por um emprego dos actos de foln regulativos que se paute
pela igualdade de oportunidades, isto é, pela distribuição equitativa das
oportunidades de dar ordens e de se opor, de permitir e de proibir, de
fazer promcss:is e de as aceitar, de dar e de pedir contas, etc. Juntamcntc
com a utilização cm condições de igualdade de oportunidades dos actos
de fala comunicativos, tal asscgurn simultaneamente a possibilidade de cm
qualquer altura sair de contextos de intcracção e entrar em discursos que
tematizem pretensões de validade.686

9ue o outro, se lhe: perguntarmos, poderá reforir moth·os da sua acção, da mesma forma como
estamos com·c:ncidos de: sermos capazes de: pn:st:trmos comas a nús mesmos sobre a nossa
acção, se outro sujdto nos perguntasse:". lbidc:m, p. 133.
6M "As duas expectativas confractuais rderidas, que: c:stào contidas na idealização, inc::vitávd para

os agentes, da imputabilidade mutuamente imputada, remetem para um entendimento que


em princípio pode ser alcançado em discursos práticos. O sentido da prc:tensão dt: ,·alidadt:
de normas de acção tamb~m consiste na pc:rspecth·a de 9ut: o comportamento orientado por
normas facticamc:nte convencionado possa sc:r encarado como a acção respons:ivd de sujeitos
imput:ivcis". HARER~IAS, Jürien. Prdrtrurs... p. 134.
68
s "Por ideal dc:si1-,'llamos, no que: diz respeito à distinção do consenso verdadeiro do falso consenso,
urna situação de: fala em 9uc: a comunicação não só não e: obstruída por inten·enções externas
contingentes, mas i1-,rualmente não o e: por constrangimentos decorrentes da própria estrutura da
comunicação. A situação de fala idt:al exclui uma distorção sistem:itica da comunicação. Apenas
encio vigorn em c:xdush·o o constr.mgimc:nto peculiarmc:nte isento de coacçào do mdhor :ir-
!,l'\llllento que, com conhecimento de: causa, permite: que a \'erificaçào metódica de afirmações
cumpra o seu papd, t: que pode: motivar rncionalmente as decisões sobre questões práticasº.
HARERMAS,Jürgen. Prrlrtçues... p. 130 e ss; P1NZAN1, Alc:ssandro. Op. Cit. p. 94 e ss.
686
HABERMAS,Jürgen. Prrlrqõrs...p. 131.

204
Aqui, além da óbvia crítica de que o estabelecimento de tais condições vai
muito além do reconhecimento de sua necessidade, caberia lembrar como tal
situação parece ser mais consequência de um processo de real democratização
do que seu requisito, como se disse antes. Para tentar sanar esse problema, Ha-
bermas propõe uma a11tecipação da situação ideal de fala para que, nas sociedades
atuais, vigore o 1nelhor argumento.G87 Isso, contudo, não parece suficiente. Ou se
dá uma situação ideal de fala na qual vigora o melhor argumento, ou, como nas
sociedades concretas de hoje, as decisões estão abertas para diversos fluxos de
forças, alé1n da do ar!:,1Utnento.G88
Habermas flexibiliza um pouco suas proposições, em especial a aplicabili-
dade da ideia de uma situação ideal de fala. Ele mantém o vínculo entre verdade
e justificação, mas torna-o mais dúctil, pois se afasta de wna absolutização da
racionalidade dos argumentos quando não foi alcançada em uma situação ideal
de fala. 689 Habermas enuncia sua tese:
As condições da argumentação que ocorrem na realidade visivelmente não
são idênticas às da situação de fala ideal, em todo caso não o são frequen-
temente ou na maior parte dos casos. Ainda assim é próprio da estrutura
da fala possível que, na execução dos atos de fala (e das acções), façamos
de conta, de forma contrafactual, que a situação de fala ideal (ou o modelo
da acção comunicativa pura) não é apenas fictícia, mas sim real - é preci-
samente a isso que chamamos uma suposição.GW
Em seu op11s JJJagmm, (feoria do Agir Comunicativo), Habermas procede ao
desenvolvimento de uma teoria da sociedade com base em uma racionalidade
comunicativa. Essa racionalidade comunicativa desvelaria os níveis nos quais os
687 HABERMAS,Jürgen. Prtleqõts... p. 132 e ss. Ainda: "Sabemos que em regra as acções instiru-
cionaliz:idas niio correspondem a este fllodrlo da tlffciO ro111m1imtfra p11ra, embora não possamos
evitar fazer de conta, contrafactu~ente e uma e outra vez, que este modelo se encontra rc-
aliz:ido. Nesta ficção inevitável assenta a humanidade do trato entre seres humanos que ainda
o são, ou seja, que n:is suas :iuto-objectiv:ições aind:1 niio se alienaram completamente de si
enquanto sujeitos". Ibidem, p. 135.
c.n ''A concepção de Direito como instrumento de consenso só se justificaria em sociedades de
indivíduos absolutamente iguais, nas quais as relações humanas não fossem Íne\·it-.ivdmente
marcadas por relações de poder". VIANNA, Tulio Lima. Crítica da razão comunicativa: o
direito entre o consenso e o conflito. ln: Rtt'ista de i,,fam/(lrão !tgisllltÍl'a, v. 45, n. 180, p. 31-45,
out./ dez. 2008. p. 42.
689 PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 95-6.

690 HABERMAS, Jürgen. Prelurõu... p. 135. Ainda: "!importante! A situação de fab ideal define-se

pelo facto de qualquer consenso que possa ser alcançado nas suas condições pode ser consi-
dcrndo um consenso razoável. A minha tese é a seguinte: apmas a a11teripação de 11n,a nluaçào tk
fala ideal dá a g:irantia de podermos lig:ir a um consenso facticamentc alcançado a pretensão de
um consenso razoável; ao mesmo tempo, est:1 antecipação é um critério crítico com recurso ao
qual qualquer consenso facticamcnte alcançado também pode ser posto em causa e ex:iminado
quanto a ser ou não um indicador suficiente de um entendimento Yerdadeiro.". Ibidem, p. 129.

205
processos comunicativos podem acontecer, quais sejam: na relação sujeito cog-
noscente-mundo; na relação de um sujeito prático com outros sujeitos; na relação
sujeito-subjetividade. Esses níveis comunicativos indicam um "inundo da vida"
por trás dos processos de comunicação, e esse mundo da vida é o que representa
o contexto real em que se encontram os sujeitos.691
A ideia de mundo da vida tem explicitado seu caráter transcendental pelo
próprio autor. Ela é composta pelos valores dentro dos quais se movimenta cada
sujeito e suas ações. É no mundo da vida que os sujeitos apresentam suas preten-
sôes de compatibilidade entre expressôes linguísticas e mundo, e tmnbé1n é e1n
função dessa formulação onicompreensiva que fica interditada ao sujeito a pos-
sibilidade de agir de forma "extramundana" ou "extralinguística" (em processos
de entendimento).(,1)2
Habermas assenta as formulações dessa obra sobre a questão da rario11a/ida-
de, em nível metateórico, metodológico e empírico. Ele realiza a distinção entre
racionalidade comunicativa e instrumental, às quais corresponde1n o agir comu-
nicativo e instrumental. O agir comunicativo é aquele que se caracteriza por visar
o entendimento e o uso da linguagem como meio para esse entendimento. Nesse
ponto, Habennas apresenta a racionalidade como mna disposição de sujeitos que
se manifesta em comportamentos, os quais podem ser avaliados em sua preten-
são de validade. 693
Recuperando fonnulaçc1es de Karl Popper, Habermas empreende u1na di-
ferenciação entre quatro tipos de ação, de acordo com as justificações de pre-
tensões de validade (verdade, correção e sinceridade): a ação teleológica; o agir
normativo; e o agir dratnatúrgico. 694 No inundo objetivo, destaca-se o agir te-
leológico e a respectiva decisão entre alternativas. No mundo das relações so-
ciais regidas por normas, fala-se em justificação de pretensões de legitimidade
por meio de discursos práticos; destaca-se, então, o agir orientado por nonnas
compartilhadas. Na constituição de uma a11toencenação - uma interação na qual os
sujeitos formam o público uns para os outros - há a possibilidade de justificar-se
objetivamente as pretensôes de veracidade do agir dramatúrgico, daquilo que o
sujeito expressa como sendo sua vívência.b'JS

91
" HABERMAS,Jürgen. Esdt1rrd111tnlos...p. 153 e ss; PJNZANI, Aless:mdro. Op. Cit. p. 98-9.
92
c. "Ele [o mundo d:i \'ida) é um lugar transcendental na medida cm que h:í uma relação interna
entre estruturas do mundo da vida e estruturas da cosmovisão linguística de um grupo social;
seus elementos constitutivos são a linguagem e a cultura, que não são simples 'objetos' no
mundo, mas possuem 'um papel de certo modo tr:tnsccndental', j:í que permitem os processos
comunicati\'os em gernl". PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 109; HABERMAS, Jürgcn. A ( -
(Õts, ,,dos de fi1lt1...p. 175; DUTRA, Dela mar José Volpato. Op. Cit. p. 158.
693
PlNZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 100-1.
m Mais sobre isso cm: HAílERMAS,Jürgcn. Esd,1reri111mlos... pp. 137-169.
m HABERMAS,Jürgen. EJ(lt1rrd111entos... p. 150 e ss; PINZANI, Alessandro. Op. Cit. p. 101-2.
206
Com vistas à proposta kantiana - de três atividades da razão e sua unidade
- Habermas acrescenta um quarto modelo de ação, a fim de que possa se realizar
uma unidade da razão. O agir co1nunicativo, o quarto modelo, diz respeito à inter-
-relação de sujeitos que buscam um entendimento mútuo com o intuito de coorde-
nar conjuntamente suas ações. Em principio, Habermas não abre mão dos outros
tipos de ação (inclusive a teleológica), mas acaba por submeter, e1n última análise,
as demais ações ao agir comunicativo - chegando a cancelar a efetividade das de-
mais em determinadas situações.696 A ação teleológica comparece de forma um
pouco mais relevante quando se trata da reprodução material do mundo da vida.697
Resgatando Durkheim, Habermas ressalta como a autoridade místico-re-
ligiosa, com o passar do tempo e a dinâmica social, transforma-se nas formas
modernas de autoridade, as quais teriam um cunho de fundamentação coinuni-
cativa.698 Ele parece preterir, com isso, explicações mais consequentes, que desta-
cam o papel da tradição ou de relações de força que, nessas metamorfoses sociais,
estabelecem, posterionnente, uma autojustificação. É possível encontrar isso em
análises metodologicamente dialéticas, mas não só (pense-se em Weber). A noção
de um consenso constituinte, nesse caso, parece rejeitar a ideia de um consenso
construído-constituído (sob as 1nais diversas relações de poder).
Ao optar por uma fundamentação em Parsons e outros cientistas sociais
análogos, aliando-os a uma linguística, Habermas tenta oferecer uma abordagem
co1npleta das relaçôes sociais, sociedade e indivíduo-falante. A ideia de mundo
da vida, por exemplo, é composta pela cultura, pela sociedade e pela pessoa.69(J
O que ele consegue, contudo, é articular duas correntes insuficientes em si e que
não suprem suas insuficiências reciprocamente. A articulação de duas perspecti-
696 "Mas o 111edi11111 da linguagem só pode: cumprir a sua função de: interligação st: i11lt'TTD111pcr
os planos de acção controlados pdo cc:spc:ctivo ~xito próprio e: se: :iltc:rar tc:mporariamt:nte
o modo dt: acção". HABERMAS, Jürgen. Arrfit1, ador dr fala ...p. 180; HABERMAS, Jürgc:n.
Esrlnrrd111r11tu.r... p. 151 e: ss; PlNZANI, Alc:ssandro. Op. Cit. p. 103.
6
.,., HABERMAS,Jürgc:n. Esrla1Yd111r11to1...p. 159.
691 "Mc:ad se interessa pdo padrão comum dessas tendi:ncias e: pda domin:incia gr:idual de: es-
truturas do a1,•1r comunicativo, ou mdhor - como afirmamos ao fal:ir dt: Durkhcim -, de: st:
intert:ssa pela 'linguistificação' do sagrado. E com isso entendo a tr:msposição da reprodução
cultural, da integr:içào social e: da socialização, as quais passam das bases do sagrado parn a co-
municação linguística e: para o agir orientado pdo c:ntendimc:nto". HABERMAS,Jurgc:n. Trorin
do Agir Co1111111icatfro, 2. São Paulo: .Martins Fontes, 20121. p. 196.
699 "Chamo mltura ao rt:positório de: conhc:cimc:nto de: onde: se: abastecem de intc:rprc:taçõc:s os
participantt:s de: uma comunicação, na medida c:m que se põem dt: acordo sobrt: algo num
mundo. Por sorirdndc designo as ordens lt:gítimas através das quais os participantes da comu-
nicação regulam a sua pt:rtença a grupos sociais e, assim, asseguram solidariedade. Por perso-
nalidade lf>cncii1/irbkl'ilj entendo as competi:ncias que: dotam um sujdto de capacidade de fala
e: de:: acção, ou seja, capacitam-no para participar em processos de: entendimento e:, ao mesmo
tempo, afirmar a sua própria identidade". HABERMAS,Jürgen. T-isdan·d111mtus••• p. 159.

207
vas - indivíduo e sociedade - por si mesn1a não garante o objetivo de uma apro-
ximação da totalidade. É necessário, sim, recorrer-se a uma formulação teórica
que articule ambos de forma fundante, coerente e reciprocamente explicativa. E
isso se vê justamente na ideia, apresentada por Lukács (e retirada de Hegel), de
determinações de reflexão.
Sob a insí!,111ia do agir comunicativo, corre-se o risco de retroceder-se consi-
deravelmente no pensamento crítico acerca do fenômeno do delito. Isso porque,
ao elencar a integração social como um dos elementos do mundo da vida, abre-
-se a possibilidade de interrogar as consequências de sua perturbação. E essas,
para Habcrmas, seriam a anomia,700 ou seja, um retorno às concepções normali-
zadoras (social-ortopédicas) na análise das condutas delituosas. As proposições
habermasianas cristalizam, assim, uma teoria do consenso, da estabilização e da
integração social.
Há uma modificação também, deve-se sublinhar, em sua concepção de evo-
lução social, referindo-se a mna disjunção entre sistema e inundo da vida. As
sociedades menos distantes no tempo não se diferenciam apenas por sua maior
complexidade, mas também por complexos de instituições que ligam eventuais
novos mecanismos de diferenciação dentro de wn sistema ao mundo da vida.
Habermas encara o papel deletério que a economia capitalista e a burocracia in-
terpretam nas sociedades modernas como uma degeneração, um desvio de uma
estrutura social outrora de1nocrática. O mundo da vida se degradaria e1n 1nais
um, entre muitos, subsistemas, e os mecanismos sistêmicos se descolariam dos
processos sociais de integração, passando a imperar o agir teleológico (típico da
economia e da burocracia)."º1
';'\)li PINZJ\Nl, AJessandro. Op. Cit. p. 109.
71lt "Evidentemente existe uma classe de mecanismos sistémicos que não são compatíveis domes-
mo modo com ambos os tipos de acção: mcios de regulação como o dinhciro e o poder. Estes
mcios de comunicação desverbalizados regulam um relacionamento social em grande medida
desligado da formação de consensos com recurso à lin1-,,1.1:1gem em sentido lato - sobretu-
do nesst:s subsistemas da acção económica e administrativa, movidos por uma racionalidade
·orienuda para fins que se autonomizaram rdativamente a contextos do mundo da vida... HA-
BERMAS, Jürgen. F..sdnrt'ri111mlos... p. 167; HABERMAS, Jürgen. Teon'n do n..eir co111m11cnti110, 2.
São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 301 e ss.; "Um papd central nesse último aspecto é desem-
penh:ido peb moral e pdo direito, que s:io especializados 'em conter os conflitos abertos de
m:mcir:i que o fundamento do agir orientido pelo entendimento e, com de, a integração social
do mundo da vida não desmoronem'. Eles garantem um consenso ao qual 'se pode n:correr
quando os mecanismos de entendimento no contexto da comunicação cotidiana regrada por
normas fracassam (...J e se toma atual a alternativa de uma confrontação violenta'. Aqui, 1-fo-
bermas retoma :i teoria- kohlbergfana da passagem da moral com·encional à pós-convencional,
para mostrar que a diferenciação sist(:mica coincide com a racionalização do mundo da vida.
A n:núncia à orientição por valores tradicionais pode ser vista como um processo de: racio-
nalização por mtio do qual o agir comunicati,·o se distancia de padrões de comportamento

208
9.1.4 Considerações finais

Não se pode deixar de concordar com :rviészáros (2005) quando afirma


que, e1n u1n extremo, a proposta de uma situação ideal de fala é, na melhor das
hipóteses, ingênua, e, em outro extremo, apresenta-se como uma formulação
apologética, composta por um superecletismo, o qual consegue acomodar desde
o estrutural-funcionalismo, passando pela teoria dos sistemas, pela Filosofia da
Linguagem, até uma Antropologia de carjz apriorístico. Mesmo a influência que
Lukács teria exercido foi diluída na medida em que diluída também foi a substân-
cia de suas categorias, como a ideia de ideologia, a qual passa a dizer respeito à
falsa interpretação das necessidades dos membros da sociedade.
Since no specific social determinacions were indicated by 1-Iabermas, and
since the obvious ones - namely the exiscing class-determinacions - were
spirited away without trace, it remained a dense mystery, what on earth
could and would turn those 'members of a social system' into a coherent
'collective' force, capable of 'bindingly interpreting their needs', unless it was
their 'adequate knowledge' - i.e. their blind acceptince - of the 'limicing
conditions and functional irnperatives' of their society. And, of course,
the limiting condicions and functional irnperatives of society apply, by de-
702
finition, to ai/ members of societv. ,

Nesse sentido, Habermas, por wn expediente de suposições circulares, con-


clui que as condições limitadoras das relações sociais (e seus imperativos funcio-
nais) são premissas necessárias das interpretações das necessidades dos indivíduos.
Se, e1n Lukács, as condições objetivas (por exemplo, as diferenças de classe) apre-
sentam-se também como elementos potenciais para sua superação, em Habermas
apresentam-se como equivalentes às condições restritivas e imperativos funcionais;
interditando, portanto, a possibilidade de desafiar tais condições e imperntivos.;03
Having scvcrcd in tlús way :tl1 links with a historically identifü1ble social
agency of cmancipation, all that rcm:iincd to H:ibermas werc the arbitraf}·
assumptions of a transcendental pseudo-:inthropology, from a fictitious
'primordial urge to self-rcff ection' to explaining soci:il devclopmcnt as
such in tcrms of 'an automatic inability not to learn'. To this, he addcd
a circular and convoluted deduction about 'agreemcnt' and 'conscnsus'
(cven 'contra-factual consensus',) guarantecd by 'communicativc compc-
tcncy', concluding his discoursc on thc significance of thc 'ideal speaking
situation' in thc 'ideal communication community' with the :ixiomatically
self-reassuring but singul:irly unilluminating assertion that: 'Always, when

transmitidos, fazendo com que a intcgr-.ição social aconteça j:í. n:io por meio de um consenso
com base religiosa, mas por intermédio de processos linguísticos de formação de consenso.".
PINZANI, Alcssandro. Op. Cit. p. 110-1.
702
MÉSZÁROS, lst,.•:í.n. Thr po,nr of ideolog;·. Londres: ZED Books, 2005. p. 130.
701
Ibidem, p. 130.

209
we bcgin a discourse and carry it on long enough, a ronsms11s would have to
result which would be per st a lme ro11senS111.704
Não obstante as criticas já levantadas, deve-se chamar atenção também ao
germe de uma concepção profundamente elitista de sociedade nos momentos em
que Habermas recorre à noção de especialistas para socorrer sua proposição de
uma situação ideal de fala. Muito embora, para lvlészáros, esse caráter elitista apre-
senta-se já desenvolvido e não apenas em germe. Deve chamar-se atenção também
ao fato de que o campo social no qual a concepção de uma comunicação ideal
poderia funcionar implica uma ausência de conflito que, por isso, tornaria redun-
dante o papel dos locutores ideais.705 Consequentemente, l\fészáros não consegue
encontrar outra explicação para a teoria habermasiana se não em razão de um
caráter apologético, mascarando a persistência dos antagonismos no capitalismo e
preenchendo as conclamadas distorções comunicacionais por expedientes de co-
municação ideal autoantecipatórios e autossuncientes (11ÉSZÁR()S, 2005).
lndccd, Habcrma's main theoreticru concem was to show that 'modem so-
cictics' - thc socictics of 'organiztd, advanctd capitalisnl - have successfully
rcsolvcd thcir structuml problems through a 'growing interdependcnce of
research and technology, which has turned the sciences into the ltttdi,{t,Pro-
d11ctirr farrt ... thcrcby climinating the conditions relevant for the application
of political economy in thc version correctly formulated by Marx for liberal
rapitalisn1. Having thus paid to Marx a le&-handcd compliment, giving him a
pat on thc back that simultancously relegated rum to thc irretrievably bygo-
ne age of 'libcrnl capitalism', Habcrmas procccdcd to jettison ali of Marx's
fundament.11 tencts in the name of bringing Marxism 'up to date'.706

7
°' Ibidem, p. 130.
7flS MÉSZÁROS, Iscván. Op. Cit. p. 130-1. Ainda: "For if the social ant.1gonisms themsdvc:s per-
sisted in tht: rt::tl world, beyond the artificial walls of the 'ideal communications community', in
that cise no mattt:r how long our competent communicitors w·ent on arguing among themsdn:s,
tht:y were not likdy to achieve anything whatsoevec, other than grnphically dispfay thc:.ir own ,;,,_
potmr,. On tht: other hand, of the objecti,·e contradictions of society no longer existt:d, the role
of those (rt:dundant) idt:al interlocutors had to be confined to rejoicing over the already instituted
fundamental consensus, advertising-in the spirit of 'communication' treated as a public rd:ttions
exercise - its virtues and ideal potentialities". Ibidem, p. 131. Ou ainda: "Habermas precisa ne-
gligenciar o fato desconcert.'mte de que as sólidas relações de poder socioeconômicas e políticas
no interior das quais ocorreria seu 'diálogo' idealizado, nas sociedades de classe, ridiculariz:un
todas as pretensões de considerar esta modalidade de comunicação tão fortemente condicionada
como genuíno di:ílogo. Tendo em vista que as respectÍ\'as margens de ação dos membros das
cfasses que participam desse moddo - incluindo as margens de sua 'ação comunicath·a• -
são estruturalmente prc:concebidas em favor da ordem dominante:, o rc:sultado prová\'cl dos
intercâmbios comunicativos de todos os indivíduos não pode estar sujc:.ito ao mesmo moddo e
reduzido a um denominador comum apriorisóco,,. MÉSZAROS, István. O Podrr da ldrolog/t1. São
Paulo: Boitempo, 2004. p. 83 apud VIANNA, Tulio Lima. Crítirt1 dt1 mzft() ro1111111imti1Y1... p. 42-3.
706
lbidtm, p. 131.

210
Habermas se livra assim de qualquer resquício, que não meramente nomi-
nal, das contribuições marxianas, livrando-se da teoria do valor-trabalho por ela-
boraçc1es teóricas que beiram a incompreensão da economia política marxiana,707
e passando em revista de forma totalmente acrítica o complexo industrial-militar.
Assume, em última análise, uma postura idealista,70!l calcada em um suposto poder
consensual da linguagem (e, consequentemente, do Direito).709 Talvez essa malver-
sação possa ser traçada, em sua origem, à incompreensão da categoria do trabalho
em suas dimensões mais importantes. De qualquer forma, mais do que de qualquer
outro ponto referencial das formulações marxíanas, o afastamento habermasiano
da crítica da economia política tem graves repercussões sobre sua teoria:
More recent socialist theories (like Habermas's] are no longer formula-
ted in terms of the social praxis of the labour movement (and hence,
they are no longer really revisionist). They present themselves prirnarily as
socio-political theories relegating the analysis of the 'econom}r' to econo-
mic theories. f rom the latter, they lift out those statements fie with thdr
concepcion. Habermas thus relies on Joan Robinson for the 'refutacion'
of Marx's theory of value, (...) and ali of them on the Keynesian varie-
ty of bourgeois economics. They no longer understand that to postulate
as absolute the particular segments of the totality of the capitalist mode
of production is already implicit in the particular sciences and in their
clivision of labour with respect to theory construccion. Gluing together
statements ín the various segments cannot result in a concepcion of thc
whole. Sínce Bernstein, however, ali revísionists share the posicion that
7117
'Thus technology and science bccome a leading producti\'e force, rendering inoperative the
conditions for Marx's labour theory of value". HABERMAS, Jürgen. Ttrhnology and Srimrt and
'ldtology', 1988, p. 190 apud MÉSZÁROS, István.Op. Cit. p. 132.
708
"Parafraseando a famosa anedita de Paul Samuelson ((200-?]), as posturas epistemológicas de
Foucault e Habcrmas podem ser assim provocativamente sinteti,:adas: Foucault e Habermas
foram abandonados em uma ilha deserta. Famintos, só havia sopas enlatadas como alimento,
mas não dispunham de um abridor de latas. Foucault pensou cm tentar abri-las com uma pedra,
mas Habcrmas sugeriu: 'Vamos imaginar que tivéssemos um abridor de latas!"'. VIANNA,
Tulio Lima. Crítica da razão comunicativa... p. 44.
709
"As posições de Habermas e Foucault cm relação ao Direito se contrapõem. Habermas postula
o Direito como um instrumento ~ujo 11/os é o consenso. Foucault, por outro lado, concebe o
Direito como uma maneira regulamentada de fazer a guerra. O uso da linguagem pressupõe
uma relação entre indi\'íduos. Como não há indivíduos exatamente iguais, dessas diferenças
surgem inevita,·elmente relações de poder que são exercidas ora conscientemente, ora incons-
cientemente. O consenso visado por ações comunicativas não passa da imposição de uma
verdade cm detrimento de outras. A palavra é arma da modernidade e o discurso é um campo
de batalha". VIANNA, Tulio Lima. Critica da ra,:ão comunicativa... p. 41; ou ainda: "Habcrmas
an•orou-sc de paladino da modernidade e, como tal, atém-se à defesa da ra,:ão. 'Ao im·estigar o
fundamento do direito no conteúdo ilocucionário da comunicação, Habcrmas tenta construir
uma teoria racional de fundamentação do direito e afastar a ideia segundo a qual o direito seria,
pura e simplesmente, uma forma de agir estratégico' (GALUPPO, 2002, p. 114)". Ibidem, p. 43.

211
the production proccss - even where it is expLicitly discussed - cannot be
seen as the contradictory unity of labour and capital realization. Rather, it
appears as a mere labour process which is still identitiablc as capitalist only
because of its specific legal and organizational forms. Luxemburg already
criticized Bernstein because 'by "capitalist" [hc] does not mean a catcgory
of production but of property rights; not an economic unit but a fiscal
unit... By transferring the concept of 'capitalist' from the real of produc-
tion to property relations. .. he moves the question of socialism from the
realm of production into the realm of relations of fortune [or, in more
rccent terrns, the '\vell off" and thc "underprivilegcd'1 - from the rcla-
tion betwecn capital and labour to the relation between rich and poor'. 71 º
Compete razão a 1-Iészáros (2005) quando diz que a afirmação haberma-
siana, na qual apoia seu adeus à teoria do valor-trnpalho, sobre como a força
produtiva motriz do capitalismo seria, agora, uma articulação entre ciência e
tecnologia, não só é incorreta (e incorreta, consequentemente, é sua avaliação
de 1farx) como mistificadora. Trata-se de uma mistificação no mínimo porque
Habermas aceita, sem qualquer esforço de problematização, o que, na verdade, é
uma tendência contraditória do Capital de crescimento de sua composição orgâ-
nica, ou, nas palavras de i\fanc, uma tautologia - da qual, novamente, Habermas
apropria-se de forma acrítica - na análise da esfera da produção, segundo a qual o
desenvolvimento das forças produtivas implicaria (tendencialmente) o incremen-
to relativo do trabalho objetificado em relação ao trabalho vivo.711 Acrescente-se:
This is whcre we can clc:u-ly see why Habermas must jcttison the l\farxian
categories of 'force and relations of production' and rcplacc them by what
he calls thc more abstract O.e. practically meaningless, Parsonian-type) pair
of 'work and interaction'. For the plausibility of his conscnsus-orientcd
approach depcnds on the elimination of not only 'nincteenth-ccntury
contradictions' (likc 'old-fashioned class strugglcs') from the picture, but
also from the likelihood of new ones arising out of the clash between the
neceuarib• conJh"f1i11ing requirernents of self-expanding exchange value and
the inner dynamics of productive developmcnt. Hencc the latter must be
- irnaginarily - extricated from its capitalistic integument by dcnying the
existence of the relationship itsclf (...).712
Descolando a ciência e a tecnologia das relações de produção, afastam-
-se delas as contradições estruturais que permeiain essas relações. Co1n efeito,
afastam-se não só as contradições estruturais (da ciência), como essas contra-
dições como um todo são esbatidas, ao ponto de Habermas negar algumas das

710
MULLER, Wolfgang; NEUSÜSS, Christd. The il/11sion of slntr sodnlis111 ,md the ro11lrndictio11 brtwem
111t11/ lnbor t111d rnpitnl.Tdos, 25. pp. 3-4 apud MÉSZÁROS, lstv:ín. Op. Cit. p. 132.
111
MÉSZAROS, lstv:ín. Op. Cit. p. 133.
112
1bidt:m, p. 135.

212
principais categorias marxistas como ideologia, luta de classes, exploração etc.713
E mais incrivelmente, 1-Iabermas insinua a aplicabilidade de tal teoria crítica, pro-
positahncnte despojada de categorias como exploração e opressão, à realidade do
''terceiro mundo". 714
A equivocada concepção habermasiana sobre tecnologia, aliás, também
deve 1nuito à vinculação que ele estabelece entre tecnolo!,>1a e ação instrumental.
O desenvolvimento tecnológico, então, liga-se à lógica da própria ação racional e,
consequentemente, à própria natureza humana. Assim, a realização da tecnologia
- e, portanto, de um modelo de sociedade - como está posta não deixa de ser a
realização da natureza humana.715
Por fim, com o clássico revisionismo reducionista, as questões e contracli-
ções estrun1rais de exploração e opressão foram reelaboradas para apresentarem-
-se como uma questão de (mecanismos de) distribuição de renda, ou seja, reti-
rando essas questões centrais da esfera da produção e inserindo-as na esfera da
política estatal (incluída a distribuição de participação política formal) - talvez
aqui seja um bom momento para trazer à lembrança os protestos que cortaram
toda a Europa depois da crise. Analogamente, com as atuais autorreivinclicadas
'renovaçc1es tec'>ricas', à !,>uÍSa do que ocorria com o revisionismo clássico, parece
que as questões centrais foram deslocadas para um problema de distribuição de
palavra, de oportunidades comunicacionais.

9.2- Introdução e considerações gerais sobre Wittgenstein

A análise de Wittgenstein aqui realizada é, pela proposta geral do trabalho, muito


limitada e necessariamente breve. Será possível apenas destacar alguns pontos
relevantes do Traclat11s e das Investigações Filosóficas - e essas são as únicas duas
711 "Ncc<llcss to say, proofs wcrc ncvcr offcrc<l, onl}' <logmatic asscrtions an<l circular <lc<luctions.
\X1c wcrc simply tol<l that 'statc rcgulatc<l capitaLism, which emcrgcd from rcaction ag:unst thc
dangcrs to thc systcm pro<lucc<l by opcn class antagorusm, IlfijJmd1 da11 (011/lid and that 'in
a<lvanccd capitalist socict)' dcprh·c<l an<l privilcgc<l groups no longcr confmnt cach othcr as
sociocconomic classes. Habermas should have tricd somctimc to con\'ince of his 'ad\'ancc<l
capitalist wisdom' thc British mincrs who cndurcd thc extreme har<lship of a one:Jwr-/011g slrik.t,
jn <lircct confrontacion with the capit:alist state. an<l stubbornly continue<l to conceptualize
thcir prcdicament in antiquatc<l 'liberal capitaList' class terms". Ibidem, p. 136-7.
m "ln Habermas's 'up-to-datc' categorical framcwork thc Third \'Vorl<l', too, could only makc thc
bricfcst possiblc appc:irancc, in appcmbgc to thc pcrspcctivc cxprcssc<l in thc l:ist two quotes
abovc. Accor<lingly, wc wcre assurc<l that 'this mo<lel secms :ipplic:ible e\'cn to thc rclations
bctwcen thc in<lustrially a<lvanced nations and the formcrly colorual arcas of thc 'Thinl W'orl<l'.
Hcrc, too, growing <lisparitics lcad to , 1 . f ô m , oJ that in the future
H 1 1 d r r p 1 1 i i l t g t 111rr!J· w i / 1 b t l t 1 1

,011,prthm.riblt 1hro11gh ínlrgon'ts of t.xploiltltiotl'. Ibidem, p. 137.


71 s Ibidem, p. 138-9.

213
obras para as quais se direcionam os comentários, em toda a sua brevidade, por-
que, além de serem reputadas as mais importantes, são frequentemente as únicas
que recebem al!:,ruma atenção pelos autores de Direito Penal.
Em suas questões iniciais (CHILD, 2013), as proposições de Wittgenstein
possuem uma relação com o diálogo estabelecido com Bertrand Russel. É no-
tável o esforço do filósofo em aproximar-se de wn entendi1nento das condições
de compreensão das proposições e, a contrário senso, quando se pode dizer que
uma proposição não faz sentido e, por isso, não se pode estabelecer uma relação
de verdade a partir dela. Essa questão acaba por subdividir-se em outras indaga-
ções sobre linguagem e sentido.
As formulações de \X'ittgenstein são uma resposta às ideias de Russel so-
bre a relação entre proposiçôes e as situações que elas comunicain, as quais ele
considerava insatisfatórias. O autor austríaco defendia uma teoria pictórica (ou
figurativa) da linguagem, cujas proposições principais (no Tractat11s) são apresen-
tadas em tüpicos (nos quais a prc',pria obra é dividida), quais seja1n: 1. O mundo
é tudo o que é o caso. 2. O que é o caso, o fato, é o existir de realidades. 3. A
imagem lógica dos fatos é o pensamento. 4. O pensamento é a proposição com
sentido. 5. A proposição é wna função de verdade das proposições ele1nen tares.
(A proposição elementar é uma função de verdade de si mesma). 6. A forma geral
de uma função de verdade é: [p, x, N(x)]. Esta é a forma geral da proposição. 7.
Sobre o que não se pode falar, deve-se calar.
O Traclal11s parece estabelecer uma teoria da representação, na qual a lin-
guagem, assim como o pensamento, apresenta determinado estado de coisas.
Portanto, ao se compreender o sentido de wna proposição determinada, é possí-
vel se estipular que, se essa proposição for verdadeira, sabe-se que essa situação
existe no mundo. Resta estabelecida, então, uma ligação entre o sentido das pro-
posições e a possibilidade de suas condiçôes de verdade. É só ao ser intelib>ivel o
sentido de uma proposição que se torna possível cotejá-la com a realidade para
determinar se há uma correspondência de verdade.
Sentido e relação de verdade são, assim, coisas distintas. É por isso que
há proposições que, apesar de falsas, fazem sentido. Caso contrário, tudo que
faz sentido seria, necessariamente, verdade. Mas isso não é tudo, as figurações
apresentam uma estrutura prôpria, nomes (e a nomeação) não têtn uma relação
de equivalência com as proposições. A função de comunicação das proposições
seria relacionada à combinação dos elementos que compõe essa proposição, e
não ao fato de ela "estar por objetos" ('sta,rdfar objectl, como os no1nes).
A imagem é um modelo da realidade. Aos objetos correspondem na ima-
gem os elementos da imagem. Os elementos da imagem são mandatários

214
dos objectos na imagem. O que constitui uma imagem é os seus elementos
relacionarem-se entre si de modo e maneira precisos. 716
Dessa forma, uma figuração é a apresentação de ligações entre seus ele-
mentos (enquanto representação dos objetos e da ligação entre os objetos) de tal
forma que possa vir a se verificar na realidade. Essa relação de denotação com
os objetos da realidade é designada corno afti11radora (MARQUES, 2005). Em
outros tennos, as possibilidades de relações entre os objetos deve se refletir nas
possibilidades de relações entre os elementos da figuração. É por se tratar de urna
coerência representativa formal e não material que se torna possível a estipulação
de relações de af-ib>uração cuja verificação na realidade venha a ser infirmada.
Portanto, o fator determinante é ajomNJ de afig11ração.
Está implícito nessas considerações que as partes diferem do todo, apesar de
não ser de todo mal sua explicitação: a figuração realizada pelos elementos indivi-
dualmente considerados difere qualitativamente da figuração realizada pelo conjun-
to dele (e a relação interna que se estabelece ai). Wittgenstein defende ser possível,
na verdade necessário, que as proposições complexas possam ser decompostas em
proposições elementares (as quais, por definição, não contêm outras proposições),
e estas decompostas em signos simples (ou nomes). Cria-se, então, uma necessária
distinção: os objetos são nomeados e não descritos, enquanto as situações são des-
critas por proposições (CHILD, 2013; MARQUES, 2005).
A representação de dada situação pela relação de elementos em uma figu-
ração é possível porque o mundo, que contém os objetos a que se faz referência,
não é cotnposto por objetos isolados, mas por objetos em relação uns com os
outros: os fatos. Seriam esses fatos o ponto de partida para a construção do
mundo (e não os objetos). As possibilidades de lib~ção são o caractere distintivo
do próprio objeto, são internas a esse objeto; e, analogamente, o mesmo pode
se dizer das ligações entre signos simples, pois é dentro das possibilidades de
ligações - que se realizam a partir de seu uso em proposições - que se determina
um signo simples. Portanto, assim como não são os objetos que determinam o
mundo (mas a relação entre objetos), não são os nomes que determinam as pro-
posições (mas o contrário). Para Wittgenstein, então, conhecer um objeto é co-
nhecer todas as suas possibilidades lógicas de ligação, e, analogamente, as regras
de emprego dos signos simples delimitam o campo de elaboração de proposições
com significado (CHILD, 2013; :t\'fARQUES, 2005).
Por outro lado, o Tractal11s não prescinde da ideia de que, para haver repre-
sentações, é preciso um sujeito, e um sujeito com acento metafísico (que se apro-
xima de um sujeito transcendental kantiano). Isso se explica porque o sujeito é o
116 WJTIGENSTEIN, Ludwig. Trntt1d(J Ugiro-J--"ilo.sújiro. Lisboa: Fundação Caloustt: Gulbc:nkfon,
2011. p. 35 (§2.12-2.14).

215
litnite do mundo, pois é por meio dele que o mundo se revela. Esse sujeito não
seria apenas um sujeito cognitivo, mas também um sujeito volitivo (ivlARQUES,
2005). Assitn, Wittgenstein constrói um sujeito que não apenas é capaz de repre-
sentar e reconhecer as questões éticas, mas se determinar de acordo com elas.
O caráter contingencial das ligações entre os objetos (e, portanto, das pro-
posiçôes) interdita a formulação de proposições éticas, as quais e1n tese preci-
sam ter uma transcendência às questões contingenciais. Os valores, então, não
poderiam ser ditos por meio da linguagem, bem como não poderiam pertencer
ao mundo (como todas as outras coisas contingentes e passíveis de sere1n repre-
sentadas linguísticamente). Para \Vittgenstein, diante do caráter contingencial e
casual da realidade, destaque-se, somente as relações lógicas são uma necessida-
de - o nexo causal seria uma ilusão - o que inviabiliza qualquer vínculo entre
a vontade e o desdobramento de quaisquer eventos no mundo (CHILD, 2013;
l\fARQUES, 2005).
De maneira nenhuma se pode inferir da existência de uma situação qual-
quer a existência de uma outra situação, totalmente diferente da primeira.
Não existe um nexo causal que justifique tal inferência. Não podemos inferir
os acontecimentos futuros dos acontecimentos presentes. A crença no
nexo causal é a superstiçào. 717

Não se pode deixar de notar como, no Traclttl11s, encontram-se ideias que,


se apropriadas pelo Direito Penal, têm o potencial de se aproximar muito de um
Direito Penal da vontade, como o foco central do elemento volitivo e consequen-
te ofuscação das modificações concretas perpetradas pelo sujeito na realidade.
H:í, aparentemente, um potencial perigoso no chamado "primeiro Wittgenstein"
para a doutrina penal.
Wittgenstein, contudo, realiza profundas transformações em suas concep-
ções posteriores. Ele notou, por exemplo, que uma teoria figurativa se relaciona-
va com proposições verdadeiras ou falsas, quando a linguagem tem um campo de
uso maior do que esse, como ele veio a concluir depois. Notou também não ser
possível sustentar que as proposições elementares seriam logicamente indepen-
dentes entre si. Como forma de apontar os traços centrais da linguagem: afastou-
-se de um foco sobre as proposições elementares (abandonando a perspectiva
essencialista) para a questão das proposições ordinárias em uso; distanciou-se de
717
\X'lITGENSTElN, Ludwig. Trnladv Ló,irv-J-rlv1,Jjiru. Iisboa: Fundação C:tloustc: Gulbenkian,
2011. p. 85. Ainda: "Se: apc:nas os vínculos Jó1-,ricos são nc:cc:ss:írios, c:ntão as conse(.1uências de:
uma ação niio dc:vc:m tc:r nenhuma import:incia para a dc:tc:rminaçiio do valor <!tico dc:ssa ação,
pois <! mc:ramc:ntc: casual que: das se: sigam dda. A única coisa que: conta é a vontade associada a
c:ssa ação, pois até mesmo a r~liz:içiio <la ação envolve fatores qut: trnnscc:ndem a possibilidade
de: controle do sujeito". MARQUES, Edgar. IY/it1,?.m1lri11 & o Trnrlnlt1s. Rio de Janeiro: Jorge:
Zahar Ed., 2005. p. 48.

216
uma concepção rcfercncialista; e encampou a proposta de comparar diferentes
formas de representação (aqui entra a ideia de jogos-de-linguagem71 ") (CHILD,
2012; WITIGENSTEIN, 201 la). 719
Se para Wittgenstein os problemas filosóficos se dissolveriam, em grande
parte, pelo entendimento reflexivo da linguagem, nas formulações posteriores
ele sugere o recurso ao uso real da linguage1n e das palavras cmno forma de en-
frentar os problemas nascidos de uma indistinção entre a gramática de superfície
(Obe,f/àche11gra111111atik) e a gramática profunda (Tiefe11grafl/111atik). Em sua faina de
esclarecitnento sobre as questôes centrais da linguagem, destaca-se o ilustrativo
recurso a ideia de jogo e, contiguamente, a ideia de semelhanças de familia. Nas
l11vestigações rrlosóftcas, então, ele estabelece um claro vínculo entre significado e
uso (CHILD, 2013; WIITGESNTEIN, 201 la).
No Traclat11s já aparece a questão do uso das proposições, mas de forma
acessória à perspectiva verocondicional do significado, própria da obra. Depois
de passar por u1n breve período verificacionista quanto ao significado, \1<1ittgens-
tein já chega ao período das Investigações com um acento pragmático. Não obs-
tante o seu abandono de uma perspectiva verificacionistn, ele não relega com-
pletmnente de sua teoria a ideia de haver um vínculo entre o significado e as
formas de sua verificação. A ideia de verificação passa a responder por um traço
do significado da proposição, e não por seu determinante único (CHILD, 2013).
Nas Investigaçôes Filosóficas, \Vittgenstein se afasta da perspectiva vero-
condicional e da distinção dicotômica entre aspectos semânticos e pragmáticos
das proposições. Se, por um lado, ele esbate essa diferença, por outro, ele tam-
bé1n não opta por u1na c01npleta adesão à perspectiva pragmática, no sentido de
que ela possa dar uma resposta unívoca e sistemática à questão do sentido das
proposições. Na verdade, a ideia de uso relaciona-se com o papel que determi-
nada proposição exerce na prática inteira da linsruagem, e por isso inviabiliza sua
formulação em termos reducionistas, essencialistas e sistematizantes (CHILD,
2013; \VITIGENSTEIN, 201 la).
Qual é a diferença entre o relato ou a asserção 'cinco lajes' e a ordem 'cinco
lajes!'? - Bem, é o papel desempenhado pelo acto de pronunciar est:is palavras
no jogo de lin!,'l.lagem. l\fas t~unbém será o tom em que estas palavras s~o
pronuncindas que ser.í diterente, e a expressão facial e muitas outrJs coisas. ·lU

711
"A expn:ssiiojo._e,o de linguagem deve :u.1ui realçar o facto de <.JUe falar uma língua é uma parte de
uma atividade ou de uma forma de vida". \X'lITGENSTEIN, Ludwig. /111-rsl{l!,tT[UrJ J-il(JsújicaJ.
J_jsboa: Fundação Calouste G ulbcnkian, 2011 a. p. 189.
719
Não se deve perder de vista <.1ue, apesar de: significnth-as e: profundas mudanças, h:í alguns fios
condutores '-lue mantêm pontos de: continuidades nessa trnnsição :i um Witt~enstcin tardio.
7211
\X'lTIGENSTEIN, Ludwig. lmutignrõrs J-'i/01<Íjira1. Lisboa: Fund~tção Caloustc: Gulbt:nki:tn,
2011:t. p. 186-7.

217
Quando se volta para a questão da "intencionalidade,, e da rrlle-fo/l01lling,
\"Vittgenstein assume posições bem peculiares. Quanto à intencionalidade, rejeita
ideias imagistas e causais. A pritncira porque a referência a uma image1n 1nental para
o estabelecimento do significado implica uma relação prévia de entendimento ou
aplicação (da imagem de referência). A segunda porque estabelece uma indevida
relação entre o si!:,rnificado e os efeitos das palavras e imagens, porque a relação
entre efeito e significado não é uma relação necessária, bem como diz respeito a
juízos hipotéticos que não se verificariam em relações cotidianas (Cl-lILD, 2013).
As rcfutaçôes de \v'ittgenstein à época, contudo, não podem ser estendidas
às teorias contemporâneas, como algumas teorias causais, e optar pelas ideias
wittgensteinianas é optar por trazer para o Direito Penal um campo de estudos
ainda bastante disputado e ainda contempornneainente refonnulado em pontos
essenciais.
\v'ittgenstein rejeita as teorias mencionadas porque entende o significado
como algo que emerge do "caminho" da proposição - o qual envolve circuns-
tâncias pretéritas, futuras ou presentes, uma contextualização física, institucional
ou convencional, etc. Novamente, a proposição de \Vittgenstein não assume con-
tornos reducionistas, e1n especial porque sua referência a determinadas circuns-
tâncias não implica uma decomposição em elementos mais simples e, sim, uma
remissão a outros pontos permeados também de intencionalidade. Não adquire
também contornos generalistas, porque as circunstâncias às quais ele remete a
compreensão da proposição são particulares aos casos em questão, e não seria
possível determinar de antemão (CHILD, 2013).
Quanto ao ndefol/01vi11g, encontrain-se implícitas questües sobre a constitui-
ção de regras e sobre a apreensão das regras pelo sujeito. A primeira envolve, para
\"Vittgenstein, a rejeição de uma posição platonista sobre as regras, mas isso não
acarreta na assunção imediata de u1n construtivismo, há divergências. Willimn
Child (2013) ressalta como, na tradição de estudos sobre Wittgenstein, há quem
defenda tanto a existência de uma posição construtivista quanto uma posição
deflacionista.
Para Wittgenstein, há muitas formas de se usar a palavra descritiva, não
existiria uma maneira correta ou natural de utilizá-la. Com isso, torna-se inviável
justificar uma maneira específica de se usar a palavra em detriinento de outras.
Não obstante, ainda há na Filosofia contemporânea pensadores que conhecem
os argumentos "anciplatorústas" de \"Vittgenstein e, mesmo assim, problematizam
sua correção e constroe1n suas teorias e1n franca oposição a ele. 721

121
LE\'VlS, David. Paprn i11 111rtapl!J Sia 1111tl rpislm10/ogy. Cambridgt:: Cambridge University Pn:ss,
1

1999. pp. 08-56; CHILD, William. lf'/ilff.r11stri11. Porto Alt:gre: Penso, 2013. p. 138.

218
A interpretação construtivista de \Vittgenstcin, por seu turno, traz uma série
de problemas ao Direito Penal. Nela, a interpretação correta de uma regra emer-
ge do juízo nortnahnente realizado. Isso coloca alguns ôbices i1nportantes para o
Direito. O mais óbvio dentre eles é a consideração de que, por definição, o Direi-
to em geral é a aplicação de regras já conhecidas a casos novos, e não a chancela
de regras já aplicadas pela força do próprio uso (como sugere essa perspectiva).
Se o padrão para a asserção daquilo que se pode determinar como a correta
aplicação de regras não pode ir além da capacidade humana de aplicar tal regra -
estabelecendo-se que essa avaliação sobre a capacidade humana se dá a partir do
momento da avaliação, pois é algo mutável -, então, sua extensão para o Direito
resta profundamente afetada, considerando que se trata de um campo no qual as
regras são elaboradas para incidir 1ncs1no sobre os casos presentemente impre-
vistos ou imprevisíveis. Até mesmo as relações de verdade-falsidade são afetadas
e não mais associadas ao confronto das sentenças com o mundo objetivo, mas
co1n os julgamentos realizados sobre o objeto em questão. Radicahnente, é real
aquilo sobre o qual se constrói concordância (CHILD, 2013).
Enquanto o construtivismo tenta erigir fatos normativos a partir de fatos
não nonnativos, a posição deflacionista restringe-se 1nais e1n afirmar uma leitura
negativa, antiplatonista, de \Vittgenstein. As perspectivas platonistas e constru-
tivistas recorrem a um ponto de referência externo parn delimitar a aplicação
correta das regras - se há uma aplicação natural ou convencional -, enquanto as
deflacionistas não tentam reduzir a aplicação das regras a qualquer outra coisa,
mas tentam encontrar a correta aplicação dentro da própria regra. Para a posição
deflacionista, então, Se!:,>uir regras seria u1n traço básico das práticas, do jogo-de-
-linguagem.722
O pensamento de \Vittgenstein é, em si, multifacetado, e permite encontrar o
aporte de diferentes correntes teôricas, ~\s vezes conflitantes. Apesar disso, pode-se
afirn1ar com alguma segurança que, para ele, não existe algo como interpretações
que determinam por si mesmas seus próprios significados, esvaziando qualquer
possibilidade de consideraçües distintas: "(...) cada interpretação está, juntainente
com o que é interpretado, suspensa no ar e não pode servir-lhe de apoio. As inter-
pretações por si não determinam o sentido" (\XIITIGENSTEIN, 201 la, p. 319).

7
2? "Contudo, não e: cl:uo <.1ue tudo que \X'ittgcnstt:.in diz sobre n:grns e: consistente com :i ,·isào
deflacionista. Em p:trticul:tr, alguns dos seus pronunci:1mcntos sobre:: ,·c:rdade matemática são
decididamente: construti,·istas em espírito. Considere, por exemplo, o qut: de diz sobre :i con-
jetura de Goldbach: a proposição de que todo número par e: a soma de dois números primos.
( ...) Se da é vcrdaddrn ou falsa, de sugert:, é uma questiio da nossa 'construção do caminho' de:
uma maneira ou de outra; do nosso produzir alguma coisa que as pessoas aceitam como uma
pro,-n da sua verdadt: ou falsidade. E que: envolve uma ,·isào fortemente construtivista de regrns
mntem:hicas". CHILD, \Villiam. l~il(~m1ki11. Porto Altgre: Pt:nso, 2013. p. 145.

219
No bojo de sua discussão sobre seguir regras (mlefollowi11._e), Wittgenstein
recorre a um anti-intelectualismo e afirma que seguir uma regra não se dá por
uma compreensão mais correta, mas pela prática, composta pelo uso da regra,
bem como pela regularidade e repetição723. Seguir uma regra e agir de forma re-
gular não são, mencione-se, a mesma coisa, embora este seja elemento daquele.
Alh1\.lém pode agir rehrularmente cm conformidade incidental co1n algo co1n o
qual de nunca tomou conhecimento, algo qualitativamente distinto de se seguir
uma regra. Uma regrn só é uma regra quando as pessoas incorporam-na em sua
prática. 1\'iais uma vez, a proposta wittgensteiniana não é reducionista, generalista
(CHILD, 2013; \VIITGENSTEIN, 201 la).
Também sobre o conteúdo da determinação do mlefollowtiig como uma prá-
tica é algo disputado entre os intérpretes de \v'ittgenstein, debate-se sobre se seria
preciso que toda uma comunidade incorporasse as regras à sua prática ou apenas
um indivíduo. Em um caso, a ideia de o padrão de aplicação de uma regra ser
comunitariamente fundado sofre de uma forte inclinação construtivista; noutro,
aproxima-se da hipostasia da possibilidade de um sujeito seguir regras linguísticas
estritamente pessoais. Por fim, deve-se atentar ao fato de que, quando se trata da
ideia de formulação de uma linguagem da sensação privada, as ideias de \X'itt-
genstein desenvolvem-se em traços distintos.
\v'illiam Child (2013) destaca como, após algumas formulações interme-
diárias, Wittgenstein teoriza a ideia de uina linguagem das sensações privadas,
contrapondo-a a uma perspectiva cartesiana e à ideia de uma linguagem das
sensações estritamente privada. 724 O autor austríaco constrói sua concepção de
lin!:,1\.lage1n sobre a noção fundante de um co1nportamento natural (expressões
naturais ou pré-linguísticas), e com isso consegue compor uma concepção de sig-
nificado que articula a perspectiva de primeira pessoa com a de terceira pessoa -
e são esses os princípios que ele aplica ao conceito de "intenção", por exeinplo.725

n.1 W1ITGENSTE1N, Ludwig. lm·rslÍJ!,nrurs r''ilosójfrn1. Jisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


2011:t. p. 319 e ss; CH1LD, William. l~ilff.mslri,,. Porto Alegre:: Penso, 2013. p. 149.
12
.. P:ira o autor austríaco, não sr.:ria possívd: (a) :mibuir signHicado a proposições sobre sensações
pri\·adas caso das se apoiassem apenas c:m introspecções e não em algum tipo de circunstincias
externas (como o comportamento de outros); (b) afirmar que a atribuição de sensações priva-
das a outros seria uma extrapolação da t:Xpcrit:ncia particular dessas sensações; e (e) afirmar-se
a impossibilidade de saber se a sensaç:io prh·ada de outro f o mesmo tipo de estado que o meu.
"ZS Wittgenstein (2011 a) teoriza o fundamento natural da intenção c:m uma analo!,ria com o olhar
do gato sobre sua presa.

220
9.2.1 - Considerações finais (pertinentes ao Di.reito Penal)

Aos autores de Direito Penal que optam por uma fundamentação em Witt-
genstein está colocado o desafio de fundamentarem suas teorias de forma muito
mais pormenorizada. Dificilmente se poderia dizer que está bem tratada a ne-
cessidade de se fundamentar os aspectos subjetivos da conduta - e sua com-
patibilização co1n a teoria do critne - diante da incompletude e das disputas de
interpretações sobre o espólio \Vittgcnstein.
No limite, um acento neopositivista de Wittgenstein, que culrrúnaria em um
irracionalismo (como acusa Lukács), pode també1n ser apontado em suas ideias tar-
clias, em razão de desconsiderar qualquer função dissimulatória da linguagem. Além
clisso, aquilo que, em sua opinião, fugia às outras correntes filosóficas, abre-se fran-
camente a ele em razão da análise da linguagem; aquilo que a linguagem ofusca aos
outros ramos da Filosofia, ela esclarece quando se restringe a se debruçar sobre ela.
Wittgenstein parece, por vezes, tratar de forma indistinta a busca por um
núcleo essencial da linguagem com a busca por um núcleo comum para (toda)
a aplicação das palavras726 • A impossibilidade desta é, inclusive, umas das razões
que, aparentemente, levam-no a negar aquela. Quando ele tenta apontar os ele-
mentos componentes da linguagem, apresenta uma mescla de ideias - cuja costu-
ra principal é, frequentemente, a crítica a outras teorias (como contra a teoria de
introspecção) - que tentam suprir, em termos gerais, uma a deficiência da outra,
mas que, por fim, recorrem à noção de comportamento natural e pré-lin!:,7\.Úst:ico.
Para o Direito Penal, a concepção geral de comentadores de que as Inves-
tigações têm um caráter eminentemente negativo (com a ausência de proposição
de u1na teoria) é extremamente problemática porque inviabiliza qualquer autocrí-
tica. Não há traços mais fortes sobre os quais se possa apoiar para yuestionar e
problematizar as aplicações concretas das percepções wittgensteinianas, dentro
do Direito Penal, quando se trata das (críticas de) significações atribuídas a con-
dutas concretas em relação com o sistema de justiça.
As regras do jogo de linguagem delimitam o 'campo' no qual serão criadas
enunciações. As enunciações que respeitem as regras têm sentido - quer sejam
verdadeiras ou falsas. As que não respeitam estão fora do mundo (se essas re-
gras específicas dizem respeito ao Direito Penal, por exemplo, elas estão fora do
"mundo do Direito Penal" e, por isso, são u1n no11-se11se para esse mundo). Logo,
a constatação de que o Direito Penal é um jogo-de-linguagem não serve, por
si mesma, como instrumento para se estabelecer quando uma enunciação está
certa ou errada, porque apenas delimita as "regras do jogo". Caberia aqui, inclu-
sive, a lembrança de que, para \Vittgenstein (2011a), sobre a correta aplicação de

-,u, É t:m função disso que p:m:ce surgir a idda de semdhança de família.

221
uma regra não é possível se determinar uma suprarrcgra, que aponte a correção
interpretativa. Pois, assim como as regras de um jogo, sempre haverá lacunas e
ausências que deverão ser preenchidas na prática.
Há quem defenda, portanto, ser possível criar instrumentos, por meio da
ideia de jogos-de-linguagem, para decidir a correta aplicação das regras (id esl,
saber se determinado fenômeno é ou não u1na conduta ou 1nesmo se é ou não
um delito). Todavia, isso não é plausível porque a própria aplicação correta da
regra implica a possibilidade de se constatar que algo é ou não uma conduta (ou
um delito) - a correção não implica apenas u1na resposta. As regras delimitaria1n
apenas o campo no qual as afirmações, no Direito Penal, fariam 'sentido' (esta-
riam no mundo do Direito Penal, afinal).

9.2.2 - Considerações finais (pertinentes a uma crítica ontológica)

Wittgenstein, e, em sentido análogo, outros filósofos da linguagem, tratam


o fenômeno da linguagem de forma bastante abrangente. A forma como a lin-
guagem é tratada torna difícil inclusive se pensar qualquer questão filosófica -
por menor ou maior que seja - fora desse escopo. Tudo passa a ser linguagem
porque é ela o meio de manifestação do sujeito e de sua compreensão do mundo.
Na verdade, parece ter se dado uma transformação das delimitações entre os
campos da Filosofia, e aquilo que frequentemente era designado (e analisado)
como mente e pensamento passa a ser designado (ou subsumido) por linguagem.
É por isso que se torna dificil compreender qualquer manifestação do sujeito e
entender sua compreensão do mundo sem ela.
Talvez alguns dos problemas que surjam da Filosofia da linguagem sejam jus-
tamente em função dessa superposição terminológico-conceitual,727 a qual passou a
apresentar os problemas como essencialmente linguísticos: assim a extensão do ma-
peamento, da compreensão, do aprofundamento e da resolução das questões sociais
se daria nos estritos limites da linguagem (com as consequências mais diversas)7211•

717
De fato, não se trata simplesmente <le urna substituição terminológica quando novas questões
surgiram e antigos problemas foram resolvidos a partir dessa "virada linguística".' Mas em-
pregamos aqui a expressão "substituição terminológica" porque há uma parcial sobreposição
entre alguns temas tratados antes e depois (dessa virada linguística), a qual parece apontar a
supramencionada interpenetração entre linguagem e consciência enquanto conceitos.
128
"Whcn the illusions had melted away, which was largely duc to Wittgcnstcin's profound and
sevcre criticism, more rcalistic conccptions erncrgc<l. Thc analytic:il philosophcrs following
Wittgcnstcin acccptcd and cxamincd languagc in its real naturc, in its normal an<l or<linary use.
Evcn if thcy abandone<l reforming languagc, this lofty drcam of a logically transparcnt and
crystal-clear ideal languagc, thcy did not ccasc to rcgar<l philosophy as thcrapcutic: the analysis
of words was to becomc the only mcthod of discussing thc tra<litional problcms of philosophr
an<l thcir only forrn of solution was sought in rcducing thosc problcms to rulcs of the use of
222
Em um nível mais fundamental, entretanto, uma perspectiva crítica da socie-
dade não vai de encontro a essas Filosofias da Linguagem em muitos de seus pon-
tos mais iinportantes. Não é tão estranha, às formulações marxistas, por exemplo,
a ideia desenvolvida em Wittgenstein, por meio de seus conceitos próprios, de que
a linguagem é um fenômeno público, culminando em sua famosa afirmação sobre
a itnpossibilidade de uma lin6ruagem privada. Colocado em outros termos, poder-
-se-ia afirmar analogamente que a consciência individual não se forma como algo
apartado da realidade e da sociedade, mas antes como algo determinado729 por elas.
(...) A linhT\lagem é a consciência real prática, que existe também para ou-
tros homens, portanto, existente também para mim mesmo e, como a
consciência, a linbT\lagem nasce apenas da necessidade, do imperativo das
relações com outros homens. Onde existe uma relação, lá existe ela [a
lin!:,1\lagcm] para mim (...). 730

Assim, a defesa de uma perspectiva crítica e de uma crítica à ideologia deve


trazer consigo a desmistificação da linguagem fundada sobre o desvelamento
dos vínculos entre linguagem e ideologia. Em Lukács, por exemplo, há uma cla-
ra concepção de linguagem de marcado acento sócio-histórico, especialmente
quando trata da estética. Lukács ressalta particularmente a inter-relação entre
linguagem e trabalho no desenvolvimento histórico do homem.731
É justamente no destaque da importância de uma análise "genética" da
linguagem que Lukács aponta como uma de suas características centrais a
possibilidade de superação da imediaticidade por meio da generalização (em uma
clara relação com a práxis). Ressalta Kelemen: "ln this respect language is not
only a system of signs, an externai mediator of internai psychic contents but is
the category of practice in a definite sense".732

words,,. KELEMEN, Jinos. Lukác's ldeas on Languuge. ln: KIEf-ER, í-'crcnc (ed.). H1mgarü111
Gmeral 1.i,iglfÍJIÍCJ. Amsterdrun: John llenjamins Publishing Company, 1982. p. 245.
" 29 Determinação aqui tem umu concepção bem específica, como empregada por Lukics (2013),
e não tem relação com a ideia de determinismo.
nu Cf. trnduç.io do Prof.. Juara. Grino dos Santos. No original: "(...) dic Sprache ist das praktischc,
auch für andere Menschen existierende, also auch für mich sdbst erst cxistierendc wirklichc Be-
wuíltsein, und die Sprache entsteht, wic das llcwul3tsein, erst aus dcm Bcdürfnj!i, der Notdurft des
Verkehr.. mit andem Menschen. \X'o ein Vcrhfiltnis existiert, da existicrt es für mich (...)".Vertam-
bém: KELEl'vfEN,J:ínos. Lukác's Ideas on Lmguagc. ln: KIEf-ER, Perene (cd.). H1mgtHia11 Gmrml
I .i11g11istic.r. Amstcrdam: John llcnjamins Publishing Company, 1982. p. 248.
n, "Howcvcr, when cxplaining thc naturc of thcse phenomena it must bc t.'lken into account th.it
they are thc intcriori7.ations of the specific human activity that constitutes thcir basis both in a
historic-genetic andina structural scnse". KELEMEN,János. Lukác's Idcas on Language. ln:
KIEFER, Perene (ed.). H111,goria11 Ge11cml Ii11guistia. Amsterdam: John llcnjamins Publishing
Company, 1982. p. 253.
"" Ibidem, p. 263.

223
Apesar de conter problemas próprios - como a ideia de um pensamento
primitivo mais figurativo que se transformaria em mais abstrato nas sociedades
não primitivas -,733 a contribuição proposta pela chave de leitura lukacsiana de
~,fane parece oferecer importantes subsídios para um esforço de superação das
aporias teóricas - a partir de uma perspectiva mais historicizante - contidas em
Wittgenstein e Filosofias da Linguagem setnelhantes.734
Quando Lukács trata da estética, pode se ver surgir algumas considerações
pertinentes e importantes, em especial as que se desdobram de ponderações so-
bre o pensamento ordinário, as quais apontam a contradição entre linb~agem
como propriedade substancial da mente e o desenvolvimento inconsciente de
suas estruturas. Assim, a complexificação da sociedade seria acompanhada por
sua simplificação traduzida na conduta e linguagens humanas 735 (1nesmo levan-
do-se em consideração que a linguagem é algo crescentemente complexo). Re-
lacionado a isso, destacar-se-ia os seguintes desdobramentos: (a) as estruturas
da linguagem determinariam a própria cognição; (b) a contraposição entre (as
tendências de) rigidez e plasticidade. É justamente a compreensão dessas tendên-
cias que se pode dar conta tanto da linguagem ordinária quanto dos sistemas de
objetivações mais elevadas (co1no a arte). 736
Como se pode perceber, então, o ponto central de distinção de análises
marxistas sobre a linguagem das demais teorias da linguagem está no papel atri-
buído à práxis. Essa tradição vai além da definição clássica de lint>T\.lagem co1no
instrumento do pensamento e da comunicação, destacando seu caráter de órgão
e n1edtim1 do ser social em sua existência perpetuamente realizada. Ou seja, desta-
ca-se ta1nbém seu aspecto de relação c01n as necessidades sociais historicamen-
te surgidas. Colocado ainda em outros termos, a estrutura da linguagem (e seu
vínculo com as relações sociais) está engastada na estrutura do trabalho (como
modelo da práxis).737

m Apesar de al1,'WTlas de suas considerações mais problemáticas sobre a lin!,1Uagem serem mitigadas
quando de passa da análise estética par:i a dabor:ição de sua grande ontologia: ''Thus not even
Lukács claims that this concept [ef pri111t1ry sig11a/ .ry.rlr11~ describes some kind of psychic reality,
rather he holds it to be the name of a problem, a met:iphoric:tl circumlocution of a set of phe-
nomena". Cf. KELEMEN,J:inos. Lukác's ldeas on I..an1,1\lage. ln: K.lEFER, Ferenc (ed.). H,mgnr-
ian Gmrml Ü11f,11i.rtia. Arnsterdam: John Benjamins Publishlng Company, 1982. p. 261.
7
J4 Ibidem, p. 258-9.
7
Js "lt is here that the source of the further aspects of the dialectical contrndiction stressed by

Lulcics lies: it is the sponmneous 1naturalness' of languagc that m:ikes a,·ailable all that is not
immedi:itdy given to us, :md the very sarne spontancous availability hampers the 'unbiassed
take-in' of the world". ibidem, p. 260.
716
Ibidem, p. 260.
m Ibidem, p. 265.

224
Note in this connection Lukács' remark that the tendency towards 'specics
being' ('Gattungswesen'), which objectively emerges from the structure
of labour, 'develops further' in lanb,uage. That is, since 'the most ordi-
nary words express the generality of the object, the genus or the species,
and not the individual instance, [...1 the objective intention of language
is directed ab ovo to the reb,ularity of the subject, to the objectivity of the
object designated by it'. Incidentally, it is worth noticing that contrary to
some of his earlier remarks Lukács regards the striving for generality and
the objectivity of the object as an ab ovo tendency of language. That 'it is
linb,uisticaUy impossible to find a word that defines unambiguously the in-
dividuality of some object' is tantamount to saying that it is a logical prcf-
73
erty of lanbruage independent of factual and h.istorical circumstances.

Essa relação trabalho-linguagem não significa, como adverte Kelemen, um


isomorfismo entre trabalho e linguagem, uma redução da linguagem ao trabalho.
Na verdade, ela deve ser pensada, inclusive, como precipitando a autonomia da
linguagem, a qual possui claras diferenças do trabalho individualmente considera-
do. Enquanto o trabalho possui uma tendência ao ser genérico (Gatt1mgnvese11), a
linguagem possuí tanto uma tendência à individualização quanto à generalização.
Por outro lado, a generalidade da linguagem tem por base o trabalho como um
processo objetivo de generalização em si mesmo. Como tantas outras questões,
essa relação de vínculo e autonomia entre trabalho e linguagem pode ser melhor
compreendida com referência à teleologia do trabalho. 739
A contribuição central da perspectiva crítica evocada por Lukács (na estei-
ra de Marx), portanto, é a compreensão da linguagem como uma categoria da
existência antes de uma categoria da consciência individual ou social. E é essa
perspectiva que deve se manter, mesmo que algumas das conclusões tiradas dela
por Marx e Lukács mostrem-se datadas em desenvolvimentos posteriores dos
estudos sobre a linguagem.'4(1

na Ibidem, p. 265.
,.,., KELEMEN, János. Lukác's ldeas on Language. ln: KIEFER, Fcrenc (ed.). Hrmgarian Gen-
eral linguistics. Amsterdam: John Bcnjamins Publishing Company, 1982. p. 266. Ainda: ..Ali
that is at stake here is merely that objective teleological structure inherent in labour, which is
also the basis of all subjcctive teleology, creates the 'comrnunicative content' for man. Justas
labour and the division oflabour are a priori simultaneous ( ... ), so are the creation of ali real
tcleological relations and the articulation of the global objective of the total activity simul-
taneous [viz. language]. ( ... ) The articulation of the objectives entails the attainability ofthe
ultimate and global objective of collective interaction of people. That is what the following
dcfinition means: 'Originally language is a means to effcct certain teleological suppositions
('telcologische Sctzungcn') whose aim is to induce other people to make ccrtain teleological
suppositions'. Rccall that it does not follow from Lukács' thesis that teleology becomes abso-
lute, or its significance exaggerated in an idealist manner".lbidem, p. 268.
7411
Ibidem, p. 268.

225
10 - OS MODELOS ORIENTADOS PELA FILOSOFIA
DA LINGUAGEM
10.1 - O conceito dogmático de ação

Em suas formulações sobre conduta, Juarez Tavares propõe uma nova relação
entre ação e tipicidade, na qual ambas estariam subordinadas a uma determinada
perspectiva Qünitadora) da norma incriminadora. A sua perspectiva ele chama
de conceito dog1JJático de ação. Ele propõe um modelo de conduta ajustável a uma
função delimit'ldora da norma penal e que, por isso, seja capaz de funcionar
co1no ele1nento negativo de verificação de lesão do bem jurídico, be1n como de
estimação de sua intensidade. Assim, em princípio, estaria estancado o perigo de
uma concepção normativista de conduta.741
J. Tavares busca, assitn, uma concepção de conduta que não seja nem ex-
trapenal nem normativista, mas algo como um meio-termo. Ao mesmo tempo
em que não se reivindica extrapenal, tampouco quer se desvincular do estabeleci-
mento de componentes e1npíricos, porque são eles que possibilitariam o questio-
namento da legitimidade das normas. Seu conceito de ação, então, deve cumprir
tanto a função de possibilitar a avaliação negativa da legitimidade das normas
quanto possuir u1n vínculo com wn sistema nonnativo de garantias.742 Ele deve
ser um misto de traços empíricos e normativos. Afirma Tavares:
Nessa relação dialética entre conduta e natureza da norma não se pode
deixar de atentar para o fato de que, aqui, não se está tratando de uma
conduta em geral, mas de um comportamento penalmente relevante. Nes-
te diapasão, se afiguram como corretas as propostas funciona.is de vincular
toda análise desses delitos às características do sistema no qual eles se
desenvolvem, tomando-se em consideração que a conduta não pode ser
vista como expressão isolada de um indivíduo abstrato, mas dentro de
uma pessoa concretizávd em um processo de comunicação normaci,·a. 743
741
TAVARES, Juarcz. Ttoria do Cni11t C11lpo10. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 198 e ss; TA-
VARES,Juarcz.Apofll,1n1mlo11obrt o ro11rtilo de ar,io. S:io Paulo: RT, 2007. p. 139 e ss.
" (•••) principalmente quando o conceito de ação se veja situado como instrumento idôneo a
741

possibilitar uma necessária avaliação reflexiva da norma no senúdo de verificar, negati,·arncnte,


se o seu processo de construção traça com nitidez as zonas do lícito e do ilícito e é capaz de pôr
à prova a regularidade do processo de imputação da conduta ao seu autor''. TA\'ARES,Juarez.
./Jpo111a111mloJ... p. 139; TAVt\RES,Juarcz. Troria do Cri/1/t C11lpo10... p. 198 e ss.
741
TAVARES, Juarcz. Teoria tio Cri/1/t Clflpo10... p. 199; TAVARES, Juarez. ]"tona do1 Cri111u 0111iJJi-
i-01. São Paulo: !'\farcial Pons, 2012. p. 51-2. Ainda: "O entrelaçamento dos aspectos norm~1ti,·os
com os dados relativos à sua natureza e :is rn7.Ões de sua criminalização conduz a dcrnr a dis-
cussão sobre n estrutura da omissão cm três planos: a) da edificação dos pressupostos de seus
elementos; b) da limitação desses elementos pelos pressupostos constitucionais; e) da inserção
dos pressupostos de garantia. Estes parecem constituir os aspectos essenciais :\ serem traudos

227
Não parece ser possível wna vinculação não hierarquizante entre os traços
empíricos e normativos e, por isso, um eventualmente submete o outro. Pelos
traços gerais esboçados da concepção de Tavares, fica claro que, por se tratar de
um conceito de co111porla111mto pena/111e11te relevante, em última análise, o traço nor-
mativo se sobressai para submeter o resto. Nwn louvável esforço em reunir o que
há de melhor nas teorias postas até o 1nomento, a proposta de Tavares acaba por
mascarar seu caráter normativo último. 744
Aparentemente, parte da questão é que o traço normativista da teoria não é
problematizado em razão de sua suposta vinculação a uma perspectiva critica.745
Essa vinculação, todavia, está apoiada na ideia de se tratar - o sistema jurídico -
de um processo de comunicação normativa. 746 Consequentemente, toda a teoria
está posta sobre bases pouco sólidas e, no mínüno, idealistas - conforme se
mostrou oportunamente nas considerações sobre Habermas. Não parece haver
outra alternativa se não encarar a reivindicada perspectiva crítica norteadora das
normas incriminadoras como uma petição de princípio que dificilmente irá se
sustentar diante dos ventos punitivos contemporâneos.
Embora a concepção de TAVARES (2009) afiance a importância de um
componente empírico, ele afirma que o comportamento humano prescinde de
qualquer formulação ontológica. Em sua obra sobre crimes culposos, o autor
confirma a fecunda capacidade crítica de opções "empíricas" da conduta, para,
então, dispensá-las sob o argumento de que tal concepção traz consigo estímulos
a uma perpétua concorrência e renovação de teorias, as quais deveriam servir de
pela dogmática dos delitos omissiYos e devem informar todas as elaborações doutrinárias que
pretendam trabalhar sobre as condições de sua validade e legitimidade". Ibidem, p. 72.
.,_.. "Ademais., essa matéria fática est.í condicionada às delimitações que a própria norma traça, me-
diante wn procedimento crítico cm face dos preceitos de garantia, os quais possibilitam, por sua
vez, que do confronto entre a norma e os elementos empíricos comunicativos se processa a uma
revisão <la norma, como instrumento de defesa da pessoa humana e de sua liber<la<le". TAVA-
Rf.:S, Juarez. 1'toria dos Cri111u 0111i11ii·os... p. 51; "A elaboração de tal modelo <le ação, na doutrina
<le Juarcz Tavares, tem caráter normativo (...). To<la,•ia, embora nor,11(1/it'O, a proposição desse sis-
tema não é 1101111atfrisla (...)". SOUZA, Artur de Brito Guciros. A teoria da ação na doutrina de ]11arez.
Tat'tlrtr. a construção de um direito penal de garantia. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 295.
m "À Yista disso, são acolhidos também os incenth-os de uma teoria crítica que forneça ao normativo
os elementos de sua própria contestação". TAVARF..S,Juarez. Troria dos Cri111es On,iJJit'OJ... p. 51;
"Uma vez que o conceito de conduta decorre <las próprias perspectivas da dogmática penal, que
estão subordinadas ao objetivo comum <le impedir que o legislador possa caracterizar como <lcli-
tuosa qualquer con<luta, a teoria <la ação não pode estar <lesvinculada <los próprios pressupostos
de legitimidade da incriminação". TAVARES,Juarez. Aponltlmm/01... p. 139.
746
"Como estamos tratando ele um processo <lc comunicação normativa, o conceito <lc conduta
não po<le ser extraído, sem mais, de uma elaboração abstrata singular e <lescomprometi<la, mas
sim como um produto de reflexões sistemáticas, a partir <la crítica à proibição ou determina-
ção". TAVARES,Juarez. Ttoria do Crime C11!po10... p. 199.

228
fundamentação à norma. Ora, não há porque isso ser encarado necessariamente
como uma deficiência; a própria teoria do delito é algo que está constantemente
se renovando. Não há maiores problemas se esta constante renovação estiver nos
limites de um Direito Penal de garantias e pautado por um princípio de liberdade.
Em sentido análogo:
Se ao jurista o que realmente importa é fundar um estado de garantia da
pessoa humana, que não pode ser transformado simplesmente em ele-
mento da natureza, ou cm objeto de uma construção social, ou ainda em
condição neutra de uma instituição, o conceito de conduta deve estar su-
bordinado a duas séries de perspectivas: a) uma perspectiva garantista,
com hase 11or111ativa e co1111111icntiva; b) uma perspectiva dogmática, como sua
realização concreta nos respectivos tipos de delito. A conjugação de ambas
us perspectivas conduz a eliminar-se uma subordinação do direito a um
dctenninado enfoque naturalista, ontológico ou sociológico, como condi-
747
ção necessária e imprescindível à sua construção.

Acontece que uma concepção finalista não transforma a necessária pers-


pectiva de garantia em elemento da natureza, mas, na verdade, infere alguns mar-
cos do reconhecimento da existência de elementos ontológicos, os quais, por se
coadunarem com a perspectiva de garantias, têm seu caráter de garantia reconhe-
cido em si mesmos. O esclarecimento dessa inversão traz à tona, inclusive, mais
um traço problemático da concepção normativo-comunicativa, porque ela pare-
ce puxar-se pelos próprios cabelos, ou seja, sustenta-se apenas em suas intenções
de garantia (e não em algo concreto).
Diz Tavares que a teoria da ação deve estar ligada, então, aos pressupostos
de legitimação das incriminações, o que a impeliria a ser formulada como um
elemento capaz de exercer uma função de verificação crítica da proibição. Chega-
-se, assim, a uma elaboração um tanto circular, segundo a qual uma teoria da ação
exerceria um papel crítico quando fundada na afirmação de princípios críticos.748
Isso não invalida, ab initio, tais ponderações, apenas reforça seus traços idealistas.
()ra, se a concepção de conduta é uma manifestação de um sistema nor-
mativo crítico, caberia ao próprio sistema (teórico) o papel de autocolocaçào cm
cheque (dentro de seus limites), ou autoproblematização - caso contrário, seria
dispensável uma teoria crítica. Isso se manifesta ou como uma impossibilidade
(aliada ao reconhecimento de que boa parte dos sistemas precisa de aportes ex-
ternos para sua crítica) ou como uma perene reformulação (o que se aproximaria
exatamente daquilo que Juarez Tavares diz querer evitar no finalismo). 7°'9

,.., TAVARES, Juarez. Ttoria do Cni11t Cidposo... p. 201.


"" Ibidem, p. 202.
w 1 "Desse modo, o método se complement.i de duas formas: de um momento de introjeção dos
elementos configurados no mundo vital e comunicativo à concepção teórica formubda, e de
mn momento de avaliação crítica daqueles elementos, vindo, novamente, a recair essa avaliação

229
Apesar de todas as críticas opostas à ideia de um conceito geral de ação,
presente atualmente e em sua maioria em autores finalistas, aquilo que há de mais
avançado na dogmática conte1nporânea - como as formulaçôcs de J. Tavares -
frequentemente incorpora essa noção, não obstante as pontuais rcssalvas. 750
Uma das ideias por trás de suas elaborações é de que o Direito deve supos-
tamente seguir a tendência da ciência 1noderna de crescente dcsprenditnento,
em suas formulações, de termos aléticos. Isso parece ser um esforço de trazer
algumas conclusões mais recentes das ciências exatas, em especial a Física, para o
Direito - esse esforço também aparece e1n -outros autores quando muitos deles
tentam repercutir as conclusões da Física Quântica para o Direito Penal.751 Essas
transposições não são, frequentemente, de todo corretas; e a apropriação adequa-
da das teorias evocadas depende de wn domínio da 1natéria que a 1naior parte dos
autores de Direito não tem.
Entretanto, a desvinculação aos termos aléticos se dá para, subsequente-
mente, resgatar o conceito de ação, agora rein.serido no sistema estrita1nente e1n
razão de sua funcionalidade teórica a ele. 752 De substantivo, a ação transforma-se
em predicado, como as demais categorias da teoria do delito.
Tavares apresenta, assim, al!:,1'\.lns pressupostos para o seu conceito de ação,
quais sejam: o conceito de ação deve estar inserido em um sistema jurídico garan-
tist'l e. vinculado ao conceito de pessoa.753 O primeiro pressuposto, por emanar
das relaçôes sociais, deveria compor-se de elementos que possa1n ser objetiva-
mente demonstrados ou refutados, aproximando-se (mesmo que não intencio-
nalmente 754) das formulações popperianas.755
De antemão, também caberia inquirir à teoria em questão se o siste1na ga-
rantista como pressuposto seria o de um garantismo formal ou material. Essa
indagação importa, pois, como nos mostra Zaffaroni,756 dentro de todo sistema
punitivo moderno real existem frequentemente duas tendências e1n disputa, uma

crítica sobre si mesma e, consequentemente, proporcionando uma constante revisão da con-


cepção teórica". TJ\VARES,Juarez. Teoria dos Cni11es 0111i.ui11os... p. 51.
7511
TAVARES,Juarez. Trori<1 do Cri111r C11lposo... p. 202.
,si Por exemplo: BOITlNl, Pierpaolo Cruz. Cri111es de Peri,go Abstraio. São Paulo: RT, 201 O.
7
S2 "Assim, apesar de se descartar um conceito pré-jurídico de aç:io, que devesse subordinar ao
seu enunciado toda a produção normativa, é possível, para viabilizar o enquadramento dog-
m:ítico dos respectivos tipos de delito, partir-se de alguns pressupostos que, embora não sejam
propriamente jurídicos, estão vinculados intrinsecamente à elaboração normativa". TAVARES,
Juarez. Tron,1 do Cri111e Crt!poso... p. 203.
3
'S TAVARES, Juarez. Teoria do Cri111e Culposo... p. 203 e ss; TAVARES, Juarcz. Apo11lt1111mlus... p.
140.
.,s.. Não ficam complct:uncntc claros no texto todos os aportes <-1ue compõem essa concepção.
~~~ SOUZA, Artur de Brito Guciros. ,,11eoria... p. 295; POPPER, Karl R. A l~~i((J da pesq11üa át'llli-
jirtJ. São Paulo: Cultrix, 2008. p. 88 e ss.
156
ZAFFARONl, Eugenio Raúl. O 1i11ill((O 110 dirrilo pmt1I. Rio de J:mciro: Revan, 2007. p. 09-27.
230
autoritária e uma democrática. Nesse sentido, se o pressuposto é meramente for-
mal, então, sua imposição perde substancialmente sua força; e se o pressuposto
é material, então, a aplicação do conceito dogmático de ação resta prorrogada
indefinidamente, até que se possa dizer ter atingido verdadeiramente tal sistema
de garantias - o que claramente não se realizou ainda no Brasil (bem como na
rnaioria dos países com sistemas operativos semelhantes ao nosso, nem parece
que irá se realizar em um futuro próximo).
J. Tavares também sugere que o ponto de partida para as condições deva-
lidade para o conceito de ação seja análogo ao proposto por Jürgen Habermas.
Seriam essas condições: a subordinação a um mundo objetivo, a racionalidade à
qual o sujeito se submete e a pretensão de validade incondicional dos atos em
relação aos interlocutores.757 Acontece que a construção conceitua! de Habermas
é de tal forma problemática que repercute no próprio conceito de ação, como se
buscou apontar s1tpra (item 9). Enquanto um conceito de tal forma fundado pre-
cisa buscar, por expedientes de validação, sua vinculação com o mundo objetivo,
na perspectiva ontológica esta vinculação já está dada geneticamente.758
A conduta estar subordinada à realidade objetiva significa que necessaria-
mente deve incorporar os ele1nentos que dizem respeito aos caracteres distintivos
da pessoa no mundo objetivo, ou seja, levar em consideração sua sociabilidade
marcada pela inflexão do agir comunicativo.759 Assim, supostamente, afastar-se-ia
da ideia de conduta como algo originariamente espiritual e, portanto, passível de
refutação. Especialmente quando se leva em conta que sesse elemento se estabe-
lece como condição de validade.
A ideia de refutabilidade avançada por ele parece 1nuito próxima da de fal-
seabilidade. Deve-se atentar ao fato de que a ideia de falseabilidade (e, em certa

,s7 TAVARES, Juarcz . .t'lpo11t,1111mlos... p. 141; TAVARES,Juarez. 1"toria do Cri111e C11!poso... p. 205 e ss.
7
~ "Se o conceito de conduta está subordinado a uma realidade objetiva, jsto significa que sua
construção deve levar cm conta os elementos que lhe servem de subst!3to, ou seja, as caracte-
rísticas da pessoa humana dentro de um mundo objetivo. Como o mundo objcti,·o da pessoa
humana é aquele no qual ela mesma se afirma como pessoa cm função de outrem e não em
função de objetos, toda conduta está subordin:tda a uma característica de sociabilidade. Esta
característica da sociabilidade comtitui o primeiro pressuposto daquilo que Habcrmas propõe
como 'mundo objetivo'. Isto quer dizer que a ação não pode ser tomada, cm sua origem, ex-
clusivamente, como elaboração espiritual ou subjetiva, mas uma construção apta a submeter-se
a wn processo objetivo de refutação. Com isso, descarta-se, na sua conceituação, a assertiva
hegeliana, que a subordina, cm primeiro plano, ao mundo das ideias». TAVARES,Juarez. Troria
do Cri111e C"lpo10... p. 205-6.
1
" "Se o ser humano, que é o sujeito da ordem jurídica, está comprometido com sua própria
característica de Jtr 1ocial e (01111111i(([fit'O, o direito, como forma de realização da estrutura estau.l,
organizada para servi-lo, não poderá desvincular-se da realidade humana e das conJiçõcs as-
sentes nessa estrutura p:ira a cbboraçào de suas normas e adoç:io de seus conceitos básicos e
genéricos". TAVARES,Juarez. Apo11t,1111mlo1... p. 142.

231
medida, mesmo havendo algumas diferenças pontuais, aparentemente também a
de refutabilidade) diz respeito a teorias que pretendem dizer algo sobre a realida-
de. Portanto, nem tudo da esfera normativa deve passar por esse crivo, e1n espe-
cial alguns exemplos de proposições performativas. Tavares, mesmo ao erigir um
conceito de ação normativo em sua essência, deseja atribuir a ele a predicação de
científico - e, trunbém por isso, precisa vinculá-lo de algwna fonna à realidade.
Esclarece J. Tavares:
Toda metodologia centr~da nas ciências naturais ou em função de um pro-
jeto ontológico, como fundamento da elaboração da atividade humana,
fracassa por9ue desconsidera que esta não se reduz, respectivamente, nem
à causalidade física, nem aos instintos e impulsos da atividade animal, nem
a uma finalidade meramente abstrata, fixada à conduta como seu substrato
ôntico. Caso se estabeleça, por exemplo, que a investigação deve conter
um mínimo de objetividade, isto significa que ela deve estar apta a sofrer
refutações a partir das relações entre o conceito proposto e a realidade
humana, tomada a partir da realidade social. 760

Aquilo que escapa à percepção de J. Tavares (e a outros autores com posi-


ções semelhantes) é como a mera transposição - sem maiores mediações - dos
pressupostos de uma teoria científica (criada nos moldes das ciências exatas) dis-
solve a singularidade das Ciências Sociais. Não cabem aqui maiores digressões
sobre como teorias como a de Popper precisam ser melhor adaptadas para as
Ciências Sociais, porque isso implicaria uma obra à parte sobre Filosofia e Epis-
temologia. Mas é pertinente a lembrança de como a questão da experimentação,
tão importante nas ciências exatas, é algo que dificilmente comparece nas Ciên-
cias Sociais (sendo, frequentemente, substituída pelas problemáticas propostas
de experimentos imaginários761).
Talvez por isso Tavares apresse-se em relativizar qualquer aporte hegeliano
à sua teoria,762 porque tornaria mais clara a dificuldade de extensão das ciên-
cias exatas (cujo foco nas transposições às teorias sociais é a Física) às Ciências
Sociais o esclarecimento do todo (como propõem tantas teorias cm Ciências
Sociais) pela análise fragmentária de seus elementos componentes. Em outras
palavras, se frequente e fecundamente as teorias nas ciências duras conseguem
explicar satisfatoriamente um sistema pela análise fragmentária de alguns de seus
componentes, para depois reconstruí-lo como um sistema então compreendido,
1 1
'- TAVARES, Juarez. Troria do Crin1t Gi,lposo... p. 204. Também: "Compreender-se a omissão
como categoria do str implica falsear wna das proposições fundamentais da ciência da moder-
nidade, que é a de possibilitar que essa concepção seja submetida :i prova de sua veracidade".
TAVARES,Juarez. Ttoria dos Cri111t1 011,issitYJs... p. 60.
161
Expcàmcntos imaginários também são usados nas ciências exatas, mas de forma menos arbi-
trária. POPPER, Karl R.A /~~ira dt1 pnq11út1 âmlíjit-a. São Paulo: Cuhrix, 2008. p. 504 e ss.
762
TAVARES,Ju:ircz. Tron,1 do Crin,r Cidposo... p. 202.

232
isso se torna muito mais difícil para as Ciências Sociais. Em especial porque a
concepção de que das macrorrelações não surge algo qualitativamente novo em
relação à compilação das 1nicrorrelaçôes é algo difícil de sustentar.
Deve-se atentar, igualmente, para o fato de que a reclamação por objetivida-
de não equivale a uma reclamação por tangibilidade sensível. As relações sociais
são vínculos intangíveis e isso não as torna menos objetivas. O mes1no poderia
argumentar-se em favor da consciência. Por isso, dizer que as formulações onto-
lógicas não possuem traços de objetividade, relegando-as a lugares subjetivistas
ou idealistas, é u1na grande subestimação dessa teoria - como se tentou 1nostrar
no tópico sobre a fundamentação filosófica do finalismo.
Apesar dessas considerações, uma fundamentação ontológica ainda parece
ser a melhor vinculação entre indivíduo e inundo, sujeito e sociedade. Particu-
larmente quando se tem em mente os momentos nos quais J. Tavares parece se
distanciar de uma justa avaliação critica da matriz teórica finalista. Ele vê, por
exe1nplo, uma ligação entre \"Velzel e Heidegger,763 a qual, aprofundando-se a
análise sobre os fundamentos teóricos do finalismo, torna-se irrelevante para a
própria teoria finalista. Se a afirmação fosse, por outro lado, de uma irrevogável
ligação entre Heidegger e a 1natriz teórica finalista (para além de \X'elzel), então,
poder-se-ia considerá-la equivocada.764
Não obstante, é na constatação dessa afinidade \X'elzel-Heidegger (e suas
supostas consequências dog1náticas) que se fundamenta a crítica de uma subje-
tivação da conduta no finalismo. 765 Parte da crítica justifica-se porque destaca a
impropriedade do conceito de "finalidade potencial"766 (para os crimes culpo-
61
• "A postura de Wd7.el, como se poderá ver, se aproxima bast.-inte daquela articulada por Heide-
gger. Com efeito, ao tratar dos elementos da conduta, Heidegger d:í a entender 9ue se o str é
wn ser no mundo e se o espaço é a distância &1s coisas entre si e parn mim, toda ação deve ser
compreendida no seu sentido subjetivo, como uma projeção de meu próprio desejo". TAVA-
RES, Juare7.. Teori" dos Cri111u 0111i.ui1·os... p. 59.
7
t.t Sobre a incompatibilidade entre Heidegger e a matri7. teórica do finalismo, ver a nou de rodapé
nº 559.
65
" "Para \'(,'el7.el, enquanto a ação se orienta, materialmente, no sentido do alcance do fim, a omis-
são se reduz ao domínio potencial dessa finalidade. Esse rnciocínio, como não poderia deixar
de acontecer, conduz a uma subjetivação da conduta, tal como ocorria com Heidegger, a ponto
de perder os respectivos parâmetros objetivos do dolo, o qual se resume na consciência e não
da vontade do ato". TAVARES, Juarc7.. Teoria dos Cn"111es 011111Ji1'0s... p. 59-60.
7
M Na ,·erdade, dos argumentos lev:mtados par.i uma recusa ao finalismo, a impropriedade da "finali-
dade potencial" é o mais forte e, por isso, um dos mais frequentemente suscitados. Cf.TAVARES,
Juarez. Teori,1 dos Cri111es 0111i.uit'OJ... p. 55, 60, 82, 84, 85, etc. Por todos: "No plano ontolôgico, ou a
finalidade constitui um elemento do mundo do ser e, assim, condição essencial de sua apreensão
- como tal, deve ser real, pois, caso contrário, não seria essencial - ou se suhtr.ii ao mundo do ser
e, então, não é essencial. No plano ontológico, em 9ue o relev-Jnte não é a rcl:içio de possfüilidade
ou impossibilidade, mas o que é essencial ou não essencial, a finalidade não pode ser potencial,
()ão pode ser tomada como simples expectativa". Ibidem, p. 84.
233
sos), contudo, essa proposição foi posteriormente abandonada e criticada pelo
próprio \Xlelzel, destacando-se sua desnecessidade parn a construção de uma teo-
ria do delito coerente. Há uma chlra inco1npreensão dos completos pressupostos
teóricos do finalismo, 767 talvez porque mesmo em \Vclzel não se possa ver uma
conformação acabada da teoria com vistas à dogmática.
A racionalidade como condição de validade, por sua vez, diz respeito a
três dimensões (as quais ele retira de Newton da Costa, afastando-se um pouco
de Habermas, para tentar afastar-se especificamente de sua matriz kantiana): da
logicidade dedutiva básica; do recurso a proceditnentos indutivos de verificação;
da permanente e radical crítica.768 É em função dessa condição de validade que
Tavares descarta o conceito finalista de ação, valendo-se de um argumento já
clássico: a finalidade seria empiricamente inde1nonstrável e, portanto, insub1nis-
sível a um procedimento de refutação.769
Se, de fato, não se trata aqui de uma confusão entre existência real e tangibili-
dade sensível, a questão parece perder relevância. Ora, se as consequências de nos-
sas ações não são recebidas por nós sempre e a todo momento com uma atitude
subjetiva de surpresa e assombro, como pode dizer-se que a finalidade é indemons-
trável? Pelo contrário, o nosso movimento no dia a dia se dá por wn se1n nú.incro
de condutas para as quais os resultados se dão no enquadramento do esperado, e
só realizamos essas ações justamente porque a sua maioria se dá nos limites do que
é esperado. E, se assim não fosse, a vida cotidiana tornar-se-ia insustentável.
A não ser que se anule por completo as implicações do nexo de causalidade
para o mundo, a finalidade como um vínculo entre consequência e decisão parece
sustentar-se no geral. Justamente por isso, tantos autores tentmn recorrer a ideias
de Física Quântica como forma de dissolver o nexo de causalidade e, consequen-
temente, invalidar uma concepção finalística de ação. 770 Deve-se ressaltar, contu-
do, que a transportação de ideias da Física Quântica para o Direito, nesse sentido,
é geralmente equivocada. O próprio Karl Popper já chamou atenção (recorrendo
767
"Como as características ontológicas derivam do puro processo de cognição subjt!tiva, o siste-
ma ptrmice que qualqutr conduta possa comportar uma modalidade omissiva, bastando qut!
se im·trtam as b:ises de sua concdtuação, ao assinalar-lhe uma finalidade potencial t!ffi lugar dt!
uma fin:ilidadt real". TAVARES, Juarez. Tro1in dos Cri111u 0111iuivos... p. 60.
1611
TAVARES,Juarez. Tro1in do Cri111r Culposo... p. 206; TAVARES,Juarez. Apo11la1J1r11loJ..• p. 141.
1 9
'• TAVARES,Juarez. Teona do Cri111e Culposo... p. 206; TAVARES,Juarez. Apo11lf1111mlos... p. 141;
TAVARES,Juart:z. TrrHin dos C1i11ll·s 0111issiros... p. 85.
7711
"A rncionalidade implica a conclusão de que as próprias lds da causalidade, ainda que subsis-
tam autonomamente t: stjam extraídas da experiência, se tdificam segundo crit<!rios lógicos
que, uma ,·ez comprov:idos, se estendem a tod:is as su:is form:is t: só valem na medida t:m l}Ut:
ltvcm tm cunsidtr:tç:io as car-Jctt:rísticas de suas partes intcgr:mtcs e possam submeter-se a um
procedimento deduti,·o, ou stj:i, :i causalidade só vale <.1u:mdo subordinada a uma teoria l]Ut: a
possa explicar''. TAVARES,Juarcz. Tt.·oria do C1i111,• C11lposo... p. 206.

234
ao experimento de Einstein, Podolski e Rosen para criticar a concepção de Bohr),
por exemplo, ao fato de que a ideia de indeterminação, que nas Ciências Sociais é
abusada, não tem uma característica tão expansiva quanto se poderia acreditar.771
Complementarmente, Juarez Tavares oferece uma substancial síntese que
informa sua teoria:
Normalmente, entende-se a realidade empírica como um dado objetivo,
apreensível pelos sentidos e independente do observador. Ocorre, porém,
que essa reali<la<le, na medida em que é apreensível scnsorialmente, não
poderá deixar de sujeitar-se aos próprios condicionamentos do observa-
dor, ou seja, na medida em que a expressão da realidade se faça por meio
da linguagem, subsiste sempre um estado de tensão entre o que se percebe
como objetivo e o que se representa lin!:,ruisticamente como tal. Daí dizer
Dallmeycr que o problema está em harmonizar a descrição do mundo, que
existe independentemente dessa descrição e é idêntico para todos os ob-
servadores, com a compreensão linguística, de modo a se obter wn acesso
direto à realidade por meio da linhruagem.772

No mesmo sentido, J. Tavares reforça que sua concepção depende, então,


do desenvolvimento do conceito de pessoa como algo fundamentado sobre seu
caráter eminentemente social.773 Tudo isso, todavia, leva-o a afirmar que a capaci-
dade da pessoa cm propor a si mesma objetivos eleva-a acima das outras entida-
des do inundo natural, e os limites desses objetivos situar-se-iam nas "regras" que
jndicam seu contorno.774 Um conceito de ação fundado não em uma perspectiva
ontológica (conforme estaria geneticamente vinculado à realidade), mas em cri-
térios de validade (de proposições), significa uma invers:lo, na qual a norma pode
determinar os ljmites da realidade, e não o contrário.775
711
POPPER, Karl R.A /~e/m dn pmp1i.rt1 dmtíjira. São Paulo: CuJtri.x, 2008. p. 504 e ss.
772
TAVARES,Juarez. Tt•onn do C,i111r Culposo... p. 207.
• 77)
"O conceito de conduta, portanto, deve tomar o indivíduo dentro do contexto e não como
pessoa abstrata ou isolada do mundo". TAVJ\RES,Juarez. Tt·orin dos Cri111r10111issirQ.t... p. 51.
77
• "Em fact: desse pn:ssuposto, pode-se p:trtir de que a pessoa é dotada de condições de propor
a si mesma determinados objetivos, o que a sitw por cima de todas as demais entidades do
mundo natural. Apesar disso, porém, e independentemente do conceito de uma finalidade que
seria inerente a qualquer de suas atividades, a limitação desses objeti\"OS deve sc:r fixada em
regras qm:, nitidamente, indiquem seus contornos e sua extensão". TAVARES,Juart:z. Trorin do
C11i11r C,,lposo. .. p. 207.
77
s "Assim, se, em certa medida, se poderá dizer que os delitos culposos, especificamentt; 'consti-
tuem uma espe!cie da categoria de comportamento desYiante, que, por sua \·ez, integra a c:itegori:tl
gernl do comportamento social do homem', se de\·t:ci agregar que c:ss:i assertiva só tem validade
se ,·ista dentro de um sistema de regras pdas quais se ddinam, pre,·iamente, :is caractcristic:is
do comport'lmento des,·iante e os dementos catcgori:ús do comportamento social do homem".
TAVARES,Ju:m::z. Tcona do C11i111• C11/p()JfJ..• p. 207; "O conccito de conJut:1, portanto, dc,·c tomar
o incfü·íduo dentro do contt:xto e niio como pessoa abstrat:1 ou isolad:i de seu mundo. Igualmen-
te, o mundo contextual só pode ser al1udc cm l}Ut: o indivíduo atua como entidade produtiva e

235
O conceito de pessoa e os elementos indicadores do comportamento hu-
mano são extraídos de sua inserção em um mundo objetivo e social, conforme
o qual o homem insere-se como entidade sin!:,rularmente comunicativa. Isso se
estende ao conceito de ação, o qual posstú, assim, uma dialética bem peculiar: a
norma limita o conceito de condut1. (de acordo com uma sistemática garantista)
e a conduta, informada adicionahncnte pela concepção de sociabilidade e comu-
nicação, limita a norma. 776 Cria-se, então, critérios normativos de justificação e
autolimitação que, em última análise, estão respaldados na ideia de agir comuni-
cativo (tal qual presente em Habermas).
Paralelamente, a caracterização de sociedade que Tavares faz comparecer para
integrar sua teoria parece um tanto insuficiente. Seria a partir da relação indivíduo-
-meio que surgiria a conduta, como atividade organizada que liga a1nbos (indivíduo
e meio) em unidade. O elemento organizativo como caractere distintivo da conduta
humana permite que se estabeleça, nest1. teoria, uma vinculação entre norma e rea-
lidade (que não se esgotaria nas "normas naturais" como a causalidade). Fica claro
como a atividade organizadam é o modelo fundante dessa tcoria.778
Para além disso, delineia-se uma conceituação de atividade humana como
articulação entre prática social pré-consciente e atividade consciente do indivíduo
(que engloba sua relação com o meio), as quais não possuiriam qualquer sequên-
cia cronológica entre si (as duas teriam nascido simultaneamente).779
Parte da insuficiência dessa concepção de sociedade deve-se aparente1nen-
te a uma incompreensão da dimensão do papel interpretado pelo conceito de
rcpro<luti\':t, o qual lhe assinala os objetos <le orientação empírica e o scnti<lo normativo que lhe
correspon<le. Esse senti<lo normativo confere, por seu turno, às proposições jurídicas os limites
de sua extensão". TAVARES, J uarez. Teori,, dos Cri111ts O111is.ri1•'0S... p. 51.
m, "Nesse senti<lo, o conceito <le conduta preenche ainda outra finali<la<le: a de condicionar diale-
ticamente a norma, ou seja, a nom,a nssi11ak1 os limites q11e dtnlll ser i111postos t1 11111 conceito de cond11ta
para q11, sirra n 11n1 propósito ,g,m111tistt1 e, "º 111un10 ltn1po, n,io pode re dmi11mlt1r dr que esse <Ollft'ilo de
co11d11ta dm1 srr 1-isto t111.Ji111rfio d,, pessoa h11111,m,1t111111,1 soât1hi!idadl'. TAVARES, Juarcz. Aponta-
mentos... p. 142; TAVARES,Juarez. Tto1i,1 do C1i111e Culposo... p. 208; SOUZA, ArtUI <lc Brito
Gueiros. A le01i,1... p. 296.
m A i<lcia de organização, como j:í se mostrou, não transmitiria apenas a sociabili<la<lc, mas sofre
um forte aporte habermasiano.
771
"Ademais, se considerarmos que a ath·ida<le organiza<la é a primeira e mais primitiva forma
de con<luta, ela mesma não esgota to<las as características de uma con<luta capaz <le servir de
objeto <lc investigação dogmática". TAVARES, Juarcz. Apo11lmm11tos... p. 142; SOUZA, Artur
de Brito Guciros. A teoria... p. 295.
779
"Como a própria ativi<la<le cognosciti"a do homem surge e se cstratif-ica como fator e aspecto
de sua ativi<la<le prática, antes <lc ser trata<la como atividade consciente, o conceito <lc conduta
hum:ma de,·e ser estruturado sob a característica <lc constituir ath·idadc social e não, exclusiva
e tão somente, uma conduta individual". TAVARES, Juarez. Teori,1 do Cri111e Clflposo... p. 208;
TAVARES,Juarez. Apo11la11m1los... p. 142-3.

236
práxis para dimensionar-se apropriadamente as atividades humanas (provocada
por uma mescla das concepções de Sergey L. Rubinstein e Adolfo Sánchez Vás-
quez 7ij°) - quando parece muito mais fecunda e correta a relação sociedade-indi-
víduo tal qual apresentada pela apropriação lukacsiana das categorias hegelianas
(em especial a ideia de relações de determinação). Por consequência, a atividade
consciente é també1n concebida e1n sua relação c01n o meio (e seus traços con-
tingentes) e em sua orientação dentro da prática social.7141
Com efeito, a teoria proposta por Tavares apresenta uma compreensão mais
refinada e qualitativa1ncntc superior da relação indivíduo-sociedade quando com-
parada com a maioria dos outros doutrinadores, inclusive aqueles que optam por
uma posição finalista. Disso não se conclui, entretanto, a completa correção de
sua abordage1n. U1n exe1nplo da limitação dessa concepção mostra-se no seguin-
te trecho, pois decerto a relação sujeito-objeto pensada de forma tão unilateral
não encerra a riqueza da ação humana:
Uma vez que se reconheça a influência do sujeito sobre o objeto, pode-se
assumi-lo como pessoa humana, a partir de sua atividade como prática 1odal
e extrair sua relevância do poder de que dispõe para atuar diretamente
sobre os objetos que cria e persej._1'\.le, bem como influir sobre os demais
homens e com eles relacionar-se.7"8'2

Possui uma função central na concepção dogmática de conduta a ideia de a


atividade se configurar também como um processo de comunicação. A caracte-
rização da dirigibilidade 11a prática social com1micati1:o da conduta como seu elemento
preponderante resolveria, na opinião do autor, as questões aparentemente inso-
lúveis referentes à determinação da relevância social da conduta. 7113
A relação entre ação e realização de uma finalidade é subsumida, então, a
uma função de orientação, conforme a qual a produção de um resultado aparece
corno um elemento do contexto da prática social, e não mais supostamente ape-
nas como exaurimento do fim proposto. 784 Uma função de orientação pautada
76
" TAVARES, Juarcz. Ap()11/n111mtos... p. 141-2; TAVARES,Ju:m:z. Tt()rit1 do Cri11Jt Clflp()so... p. 209.
711
TAVARES, Juart:z. Tt·orin d() Cri11Jr C11lposo... p. 21 O.
7
a2 Ibidem, p. 21 O.
10
"Tendo em vista que o sentido da :tth-idade é assinalado cm face do poder de rdaçào do sujdto,
a prática social implica que toda ação se insira cm um processo de comunicação, pdo qual uma
pessoa transmite informações a outra pessoa, de modo que constituam dcmcntos rdcvantcs
para o seu agir. A ação individual, portanto, não se des\'incufa das pcrspcctiYas de ação de ou-
trem. Por seu turno, se não visa a um determinado resultado um:diato, toma-o cm consideração
no ato de reconhecimento de fazer valer as informações fornecidas e orientá-las". Ibidem, p.
211; TAVARES,Ju:m:z. Apo11tn11m1tos... p. 144.
7
6-1 "Se a ação cumpre, cm um primeiro momento, uma funç:io de orientação, isco significa que
a produção de um n:sultado não lhe é incorporada, diretamt:ntt:, como o exaurimento de um
fim prcviamt:ntc proposto, mas como demento de um contexto de prática social, no t1ual da

237
na prática social, no agir comunicativo manifestado nas atividades organizadas.
Nesse sentido, a ação individual aparece como ação performativa, pois, mesmo
se não visa um resultado imediato, incorpora-o sob a fonna de contexto no qual
a ação se desenvolve.
Contudo, se não há um abandono por completo do elemento resultado em
face da concepção comunicativa da ação, não parece precipitado asseverar-se
que há a submissão do binômio finalidade-resultado à ideia reitora de ação co-
municativa (de conduta como uma enunciação).785 As consequências da conduta
passam a ser pensadas em referência à perfonnatividade da ação, a partir da sua
consideração da ação como um ato perlocucionário. 7116
Vê-se que toda ação, ao desenrolar-se em um processo de comunicação,
tem como seus elementos essenciais uma manifestação exterior e objetos
de referência pelos quais se orienta, agregando a isso a ddimitação que a
pn:sença do outro impõe à sua atuação. Sem esses dados essenciais, não
há ação. 787

Contudo, ao contrário do que poderia parecer na análise de J. Tavares, a


ideia de ato perlocucionário não traz consigo, em sua essência, a necessária apli-
cação mais critica da dogmática. O perfazimento do caráter perlocucionário de
um ato não está dado na natureza, mas pode ser humanamente estabelecido, e,
por isso, ressignificado para melhor ou pior. Em momento posterior, pode ser
que a interpretação corrente venha a estabelecer, por exemplo, a lesão ao bem
jurídico imediatamente após a subtração788 - limitando consideravelmente seu

se desenvolve e que tem como protagonistas, também, todos os outros sujeitos,,. TAVARES,
Jwrcz. Teoria do Crime Culposo... p. 212; TAVARES,Juarez. Apo11lt1111enlu1... p. 144.
785
"Se a ação se expressa como uma forma de comunicação, na qual se sedimentam elementos
capazes de dar à norma penal as condições para que da mesma possa ser avaliada criticamen-
te na regulação dessa atividade, os atos intcrlocutórios devem ser vistos sempre como atos
pcrformativos, ou seja, atos que se desenvolvem no sentido de obter de outrem determinado
comportamtnto. Sr o rrmlt,,do, ,u1i111, niio i11lrf!.rt1 direlt1111mlr ,1 oç,io, rsltÍ elr dmtro do r1mlrxlo 110 q11t1I
st dmnvoll!r o ,110 pe,for111t1fi1'U. Desta forma, o conceito de ação que tenha por base elementos
comunicati,·os e não apenas causais deve ser sempre tomado cm consideração com vistas à sua
regulação (...)". TAVARES, Juarez. Teon,1 do C,i111e C11lpo10... p. 212. Grifo nosso; TAVARES,
Juarcz. Aponlo1mnlo1... p. 144; SOUZA, Artur de Brito Gueiros. A leolic1... p. 296.
7116
TAVARES,Juarcz. Trori,, do C,i,m C11lpo10... p. 212; TAVARES,Juarcz. Aponlt1111enlos... p. 144.
717
TAVARES,Juarez. Aponlc1111m/01... p. 144-5.
781
"Em termos pr:iticos, cm face das consequências de um conceito de ação fundado na pcrfor-
matividade do ato de comunicação, e não na causalidade, importa, para afirmar a qualidade da
ação de subtrair no furto, a demonstração de que o agente tenha alcançado a posse da coisa.
A posse da coisa, que constitui o descnl:tcc final de sua ação, é relevante para caracterizar sua
tipicidade, ou seja, para indicar que se tratou da pr:ítica de atividade lesiva ao bem jurídico, o
que delimita sua substância. Para se diz\.:r que a ação de subtrair atende aos elementos da reali-
dade, como pr:ítica social, não é suficiente que o ladrão tenha realizado a subtração, orientando
sua ati\'idade cm face daquilo que quer subtrair (coisas alheias) ou de seus titulares, mas que
238
potencial cr1uco. É por isso que há uma insistência em vincular o conceito de
conduta a uma sistemática garantista.
À medida que se afasta do finalismo, Tavares distancia-se gradualmente
também dos marcos concretos de determinação da ação, substituindo-os por
critérios normativistas. A ideia de caracterizar-se a ação por sua orientação para a
produção do resultado é normatizada e a ação passa a ser definida cada vez mais
de acordo com o bem jurídico, e não em seus contornos reais:
Dialeticamente, torna-se impossível conceber uma atuação volitiva sem
uma regra que lhe corresponda, porque, na prática social, os comporta-
mentos não se orientam segundo a produção de um resultado, mas segun-
do sua avaliação normativa, ou seja, no direito penal, segundo a lesão ou o
perigo de lesão a bens jurídicos.7 9
Diante do afã de inserir as originais e recentes ideias da Filosofia da Lin-
guagem, vê-se a cristalização de uma posição tendendo ao idealismo. Em sua
maioria, as condutas associadas a delitos são profundamente unilaterais. Trazer
uma teoria da comunicação para pensar o delito, assim, é trazer uma teoria cujo
esforço central é pensar formas consensuais e superiormente democráticas de
comunicação, e que apenas marginalmente preocupa-se com esses atos unilate-
rais s11i generis. Por conseyuência, tal teoria é obrigada a ver por trás de cada um
desses atos unilaterais uma tentativa de comunicação abortada, uma semente de
compreensão bilateral (ou multilateral).790

10.1.1 - A vontade e sua relação com a conduta

Ocorre yue, por um lado,). Tavares nega qualquer possibilidade de uma con-
cepção não normativa de conduta, cujas consequências implicam, dentre outras, a
rejeição de uma função de unificação. Essa rejeição, contudo, perde bastante subs-
tância quando, afastando as formulações de Alberto Dall'Ora e Leopold Zimmerl,
afirma que urna concepção de conduta como manifestação de vontade é equivoca-
da porque, ainda assim, ação e omissão possuiriam objetos de refer€11cia diferentes.791

incorpore, nesse plano, a lesão ao bem jurídico, porque só com isso é que se aperfeiçoa o ato
perlocucion:írio".TAVARES,Juarez. Troria do Cri111e C11lposo... p. 212-3.
"T&C) TAVJ\ RES, Juarez. Tt·orit1 do Cri111r Ci1!pu1u... p. 215.
79
" "Est:\ claro <.1ue a ação de subtração só se efeth·a porque o processo de comunicação desencade-
ado entre o ladrão e sua vítima não é suficientemente persuasivo em termos de discurso. Caso
fosse possível ao ladrão obter a coisa apenas na com·ersa, sua ação poderia se reswnir a wn dis-
curso persuasivo, que satisfaria por inteiro sua objetividade. Caso contrário, o l:tddo poderá agir
diretamente,'º"'º dr fi,to orollr, para fazer valer sua pretensão inicial". Ibidem, p. 213. Grifo nosso.
191
"Tanto cm um, tanto em outro caso, niio h:í possibilidade de se reconhecer unidade d:i omissão à
ação, como já demonstrado quando da análise da categoria empírica e dos :iq,,umemos racionais.

239
Superada a estranheza de se desqualificar uma teoria recorrendo a formu-
lações conceituais consideravelmente particulares (autorreferenciadas) e longe de
serem runplamente aceitas (como o conceito de objetos de referência e agir comu-
nicativo), dificilmente poder-se-ia aceitar essa refutação como plenamente sustentá-
vel. Primeiramente, porque a vontade só reflexivamente direciona-se à causalidade,
e na medida em que a finalidade itnpõe. Dizer que a vontade direciona-se à causali-
dade provoca um grande esvaziamento teórico -imagine-se alguém afirmando que
produzir uma faca é o mesmo que produzir modificações em metal dispensando-se
a finalidade; ora, bastaria o desferimento indistinto de golpes contra o metal, se1n
maiores preocupações quanto à forma necessária ao seu uso.
Em segundo lugar, Lukács já demonstrou suficientemente como a matriz
dos valores possui wn vínculo originário com a matriz teleológica da conduta
humana, e nesse desdobrar social dos valores pode se incluir os deveres (e, con-
sequentemente, suas violações).
Em terceiro lugar, dificilmente pode-se argwnentar que a relação de refe-
rência qualitativamente diferente que se estabelece com a vontade é suficiente
para invalidar teorias apoiadas (mesmo que não unicamente, como se propõe
aqui) sobre a vontade. Caso contrário, pareceria totalmente absurda a proposição
de uma teoria unitária, assentada sobre a vontade, para a relação do sujeito com
objetos tanto materiais quanto imateriais, ou então para a relação com objetos
naturais e com outras pessoas (as quais Lukács mostra també1n co1no estabele-
cem vínculos qualitativamente diferentes). J\.1esmo que seja o caso de se dispensar
uma teoria referenciada na vontade, a diferença quanto a objetos de referência
não parece ser o aq,>u1nento definitivo de refutação para tanto.
Como, eliminando uma concepção ontológica, é o normativismo que resta
como teoria que responde com maior facilidade à necessidade de se articular
coerentemente ação e 01nissão, Tavares se vê obrigado a afinnar a necessidade de
uma unidade teórica entre ação e omissão, a qual ele propõe que se deduza de um
sistema garantista de Direito Penal. Essa necessidade se impõe porque, afirmada
a exigência dob>mática de unidade,792 também o normativis1no (na perspectiva
A vontade na ação n:io pode ser a mesma p:ira a omissão porque seus objetos de reforfncia são
diversos. Na ação, a vontade tem como fundamento o domínio sobre a c:iusalidade; na omissão, o
ponto de reft:ri:ncia é o descumprimento de um dever de agir. Só isso j:í bastaria parn desprestigiá-
-la como demento unificador". TAVARES,Juare-.t. Tt·ona dos C,i11m 0111is1i1101... p. 87.
792
A qual em Tav:m~s se apresenta como articulação entre unidade, equip:uação e correspondên-
cia, de forma a estabdecer rdaçõcs de similitudt e equivalência (orgânicn ou :irtificialment~
cri:id:i). Nesse sentido: "O canúnho agora proposto será, então, o de preparar ns bases para es-
ses pressupostos delinút.1ti,·os, ex:iminando a forma de tratamento da omissão, conforme sua
e,·oluç:io doutrinárin: como ação ou como entidade ,·q11ipnmda ou rom·sprmdl'lltr :i ação. Ainda que,
:maliticamente, se possam diferenciar essas tri!s formas de tratamento da omissão, no fundo
todas das se equivalem se contrnstadas com os respecÚ\'OS modelos de imputação. Tom:tr-se

240
de Tavares) enfrentaria problemas porque possuiria, de início, o vício de fundar
ambos os tipos de conduta (ação e omissão) sobre deveres, quando claramente a
ação se funda1nenta sobre proibições.793
Apesar de apresentar a conduta como atividade dirigida à comunicação, Ta-
vares não abre mão totalmente de algumas implicações do finalismo. Como já se
viu, ele não sc, não abre 1não de wn conceito geral de conduta, como também a
entende como uma atividade implicitamente volitiva. Com isso, o autor constrói
um conceito de conduta que insere por via oblíqua algumas implicações da con-
cepção finalista, 1nas se1n precisar prestar contas da totalidade dessa concepção.
Como resultado, encontra-se uma conduta cujo pilar é o processo de comunica-
ção, mas que, para melhor servir à dogmática, tem inserida em si o elemento da
vontade, a qual se estabelece como uma vontade sem finalidade. 79•
Com a elaboração de uma vontade sem finalidade, Tavares consegue evitar
as polêmicas envolvidas em alguns crimes omissivos culposos (nos quais o agente
não prevê o resultado) e nos atos automatizados.795 Ele abre mão do finalismo,
a omissão como forma equiparada de ação implica tratá-b como se constituísse uma ação; do
mesmo modo, ao buscar-se uma com:spondt:ncia da omissão à ação se estar:í sedimentando
sua equiparação. A diforença entre essas categorias t! muito sutil. Pode-se admitir que a omissão
ser:í tratada em unidade com a ação, quando :unhas não apresentem divergências; possuam,
portanto, um ponto de apoio comum que as caracterize de modo uniforme. A omissão será
equiparnda :i ação quando dda se diferencie, mas essa diferença possa ser contornada por ou-
tros dementos comuns que justifiquem sua unidade. Por fim, conforme os critfrios adotados
na equiparação, chega-se à fórmula simbólica de correspondência. Isso ocorre quando a fór-
mula de equ..ip:uaçào prescinda da an:íl.ise de elt:mentos comuns e resulte de outros dementos
que lhe sejam agregados". TAVARES,Juarcz. Tt:(Jria dos Cri1111·s 0111i.ui1w... p. 77-8.
791
Vale;: a pena rc:ssaltar que, nos crimes omissivos, estão proibidas todas as condutas distintas daque-
la requisitada peb situação típica. "O pcoblema da unidade t:unht!m não seci resolvido adequa-
damente com as propostas de: se f.izer tanto da omissão quanto da ação um objeto subordinado
a dt:verc:s. Se, por wn lado, se pode superar, dogmática e normativamente, a questão dos critfrios
da .identificação entre ação e: omissão, por outro fado, implica uma in,•ersão nas pautas de política
criminal, que se compocio, daí para frente, de questões relativas a normas mandamentais e não
mais a normas de proibição". TAVARES,Juan2. Troria dos Cni,m 0111issiros... p. 88.
79
' ..Dizer, pois, que a ação se materi:úiza como expressão da pcitica humano-social si.!,>nifica ain-

da que a vontade só se torna objc:tiv:ívd e, portanto, empiricamente: apreensh-d, a partir do


momento em que;: se estabdece como relação entre o motivo do a1,11r e o objeto do agir, espe-
cificamente, como fator determinante e condicionante: da escolha, emprego e manipulação dos
meios causais disponíveis à integração dessa ação à ati,·idade global do sujeito". TAVARES,
Juarez. Apo11lmm11los... p. 154.
79s "A característica de ser a conduta humana atividade ,·olitiva tem assento, inclusive, na própria
narurt:za social dessa atividade:, em oposição aos atos instintivos e impulsivos. l1-,1U:tlmente, se: a
conduta humana ~ c:ssc:ncialmente conduta voliti,-a, afis.,ruram-se absolut:tmente irrelevantes as
pretensões empíricas de salientar a ex.ist~ncia de determinados fotos sem finalidade, como, por
exemplo, certos crimes omissivos culposos, em que o agente nem ha,•ia pensado na r~:tção de
algum resultado, ou nos chamados atos automatizados, que tanta preocupaç:io trouxt!r.un a Jako-

241
mas não abre mão de usar a articulação consciência-vontade como elemento de-
limitador da existência da conduta (eliminando assim os exemplos mais clássicos
de ausência de ação apresentados pela doutrina). 796
Além de parecer wna inserção wn tanto artificial (a colocação da vontade
na conduta por conveniência dogmática), ao negar-se uma concepção finalista, a
contradição de wna fonnulação que aceita a vontade e nega a finalidade aclara-se
na estranha aproximação da antiga dogmática causalista que decorre daí - quan-
do a ideia de uma vontade sem finalidade expressava-se em exemplos como a
vontade de apertar o gatilho (e não de matar), para ser possível relegar o dolo à
culpabilidade.
Obviamente, não se trata do mesmo caso,797 mas as consequências para o
conceito de ação são notáveis. O que acontecerá se, como é comum para tantas
teorias novas em suas épocas, outros autores decidirem por acolher o conceito
de conduta, mas rejeit1.r o sistema? É possível que, de todas as formulações, se
abandone as conclusões criticas e se cristalize as premissas inovadoras (porém
dúcteis). Não é suficiente, para evitar sua instrumentalização para a expansão de
poder punitivo, o aviso de que os dois (conceito e sistema) devem andar juntos.
Após livrar-se da finalidade - aquilo cuja determinação aponta o substrato
empírico da ação - e em uma tentativa de driblar as contradições decorrentes,
Tavares procura vincular a vontade também a critérios mais normativos.798 As-
sim, seria possível evitar a associação desse conceito às problemáticas causalistas.
No entanto, sua dialética indivíduo-sociedade dá um peso maior à urúversalidade,
quando o todo deveria ser dialeticamente construido pela relação entre as catego-
rias universalidade, singularidade e particularidade.

bs e a partir dos quais passou a construir seu sistema sob o critério normativo da c:vitabilidadc:".
TAVARES,Juarez. Teoria do Crime C11lposo... p. 214; TAVARES,Juarez. Apo11fnn1mlos... p. 145.
796
TAVARES,Juarez. Trorin do Cri11lf C11lposo... p. 216.
,,,., Tavares deixa claro que entende sua concepção como totalmente diferente: da causalista: "Evi-
dentemente, na determinação da conduta como ação, importante é apenas salientar que: aqui
não se trata de mera voluntariedade, termo por demais ambíb,uo e incerto, mas de vontade,
derivada como demento da relação da execução causal dos propósitos do agente, dirigida à
consecução material de seus objetivos e orientada conforme os parâmetros de rc:feri!ncia cm
um processo de comunicação". TAVARES,Juarez. Trorin do Cri111e C11lpo10... p. 225. No entanto,
a não ser que se entenda os objetivos da ação como a própria comunicação - entendimento
que levaria, de qualquer forma, a uma definição vazia de conduta como um processo de: comu-
nicação cujo objetivo é a comunicação - torna-se difícil vislumbrar um conceito de ação, em
sua rdação com a vontade, que possa ser preenchido em sua substância sem recorrer à ideia de:
finalidade.
791
"Uma vontade sem fundamento empírico constitui absurdo lógico. Mas, o significado da von-
t1dc: não decorre tão só desse fu_1damcnto empírico. Também lhe está agregada a regra que
determina sua manift:staçiio no m indo exterior, como forma de comunicação". Ibidem, p. 215.

242
Novamente, assegura Tavares:
(...) para a caracterização da conduta, não é relevante a descoberta da fi-
nalidade, como pretendiam os partidários do finalismo. Relevante é que
a ação só pode ser caracterizada como conduta humana quando se insi-
ra conscientemente em uma prática social, quer dizer, quando se vincule
conscientemente a um objeto de referência dentro de um processo de
comunicação, ou seja, que se subordine a deterrrúnadas regras.799

As nuanças de suas ideias têm consequências consideráveis. Mesmo diante


das críticas levantadas, apresenta-se como uma teoria muito bem formulada (tal-
vez a mais brilhante de sua época). Não obstante, é de se destacar que sua funcio-
nalidade é especialmente construída para as condutas regidas cotidianamente por
normas de direito. No entanto, ou a norma possui um papel ativo na determina-
ção do que é ou não conduta800 - hipótese na qual parece clara a possibilidade de
uma inclinação normativista - e/ou ela é levada em consjderação como objeto
de referência de marúfcstação da própria conduta.
No primeiro e no segundo casos, uma porta de entrada em potencial para
o normativismo é a necessidade de que a atividade esteja vinculada a uma pre-
tensão de validade (por parte dos interlocutores).801 Além disso, dificilmente seria
possível dizer que há total coerência em uma teoria da comunicação direcionada
a manifestações sociais unilaterais, como já se mencionou. No segundo caso,
torna-se um tanto mais difícil a utilização dessa teoria quando o sujeito não tem
consciência da norma penal, mas da norma social. Trata-se de uma distinção
pouco controversa (pense-se no conceito de valoração paralela na esfera do pro-
fano) que, ao trazer-se para esta teoria da comunicação, enevoa suas considera-
ções principais. O relacionamento dos indivíduos frequentemente não é com
normas, mas com valores (que as representam).
Lembre-se que, corno J. Tavares recusa sua teoria como pré-jurídica, então
suas limitações são jurídicas, mesmo quando normativamente fazem referência a
elementos extranormativos. Portanto, seus vínculos normativos sempre correm
o risco de se sobrepor, porque o próprio elemento afiançador da perspectiva
crítica é normativamente delimitado.
É recorrente o exemplo do motorista que dirige em lugar ermo,802 o qual
esclarece que se não se estabelece uma relação entre o motorista e um objeto
"'"'} Ibidem, p. 214.
800 Mesmo que se busque critérios de limitação que, cm última an:ilísc, são norm:ith·os.
901 "Mesmo na realização de uma condut3 contrária às expectativas do interlocutor, a pretensão

do agente é de que esse interlocutor aceite, de qualquer modo, sua conduta como válida, por
persuasão ou outro meio, inclusive pela força, como normalmente ocorre nas atividades proi-
bidas". TAVARES,Juarez. Aponlm11e11/0J... p. 147.
w TAVARES,Juarez. Teoria do Crime C11lpo10... p. 216; TAVAR.ES,Juarcz. Aponla111mloJ... p. 146.

243
de comunicação, não se estabelece também wn processo de comunicação e, as-
sim, não há conduta humana. Acabam se confundindo irrelevância da conduta
para a norma e ausência de conduta. Aqui, torna-se ainda 1nais claro o acento
normativo da teoria. Nela, o social só apresentar-se-ia mediante processos de
comunicação, como se fosse possível apartar o indivíduo da sociedade. É claro
que só é possível pensar wn a partir do outro, e os exe1nplos e1n contrário vão
ao encontro daquilo que Marx chamava de 'robinsonadas'.803 Salienta-se, assim,
a impropriedade de tais exemplos, chamando atenção ao fato de que, mesmo
dirigindo em lugar ermo (fora de grupos sociais), o indivíduo leva consigo todo
o seu processo de· socialização.
A pretensão de delimitação por isolamento social só se cumpre se é abstra-
ída essa questão fundamental. E sua utilidade torna-se bastante questionável ao
lembrar-se de como, no mundo globalizado e altamente regulado que vivemos
hoje, são praticamente inexistentes os espaços nos quais há possibilidades de ma-
nifestações que não se relacionem com outras pessoas ou normas (ou seja, sem
qualquer objeto de comunicação). Aliás, o único argumento que a teoria .parece
fazer, nesse ponto, é o de que onde não haja regras ou pessoas, tudo pode ser
feito (porque não haveria ação no que concerne o Direito Penal). No entanto, a
utilidade restritiva disso é bastante duvidosa.
As inúmeras questões que se apresentam diante de uma vontade sem finali-
dade levam-no a, quando relaciona conduta e vontade, reconstruir os contornos
concretos de forma quase a reconduzir eufemisticamente ao conceito finalista:
Dizer-se, pois, que a ação se materializa como expressão da prática huma-
no-social significa ainda que a vontade só se torna objetivável e, portanto,
empiricamente apreensível, a partir do momento em que se estabelece
como relação entre o motivo do agir e o objeto do agir, especificamente,
como fato determinante e condicionante da escolha, emprego e manipu-
lação dos meios causais disponíveis à integração dessa ação à atividade
global do sujeito.804

Da mesma forma que o finalismo, trata a conduta como urna objetivação


que envolve a finalidade (apresentada em Tavares pela relação motivo-objeto do
agir), a qual condiciona o modo como ela será atingida (escolhas e manipulação
dos meios causais). Ficam destacados em sua importância, assim como na con-
cepção ontológica, a finalidade e o meio empregado para a plena compreensão
da conduta.

803
DUAYER, Mário. Marx, t'trdnd, e dimmo. p. 02.
9>4 TAVARES, Ju:m:z. Tronn do Cri111r C1tlpo10... p. 232.

244
10.1.2 - Parâmetros demarcadores da ação comunicativa

Para melhor resolver os problemas exsurgidos do conceito de ação, Tavares


propõe que esse conceito seja delimitado por critérios normativos e empíricos.
Esses critérios ambivalcntcs, Tavares chama de of?jelos de referê11cia (ou parâmetros
de referência). 805 Como toda ação está vinculada a normas, isso significa dizer
que uma atividade só se consubstancia como conduta humana se puder exercer
influência sobre outrem. Assim, é conduta quando a atividade impõe-se com
prele11são de validade.
O conceito de pretensão de validade de Tavares difere do de Habermas,
como o próprio autor sublinha. Se em Habermas a ideia de pretensão de valida-
de relaciona-se com a possibilidade de criar-se um consenso sobre determinado
argumento, em Tavares a ideia relaciona-se à atribuição de sentido às ações de
acordo com a sintonia que ela apresente com o sistema normativo ao qual es-
tão vinculadas. Portanto, não seria possível uma ação sem que ela fosse assim
reconhecida, porque, quer seja para acatar ou para violar a norma, estabelece-se
necessariamente uma relação.1Kl6
Entretanto, há aqui um risco de uma configuração lacunar da ação, posto
que conduta humana é, nessa teoria, aquilo que acata ou viola a norma. Em ou-
tras palavras, tudo é potencialmente uma ação humana. Qualquer fenômeno, por
mais inexpressivo que seja, pode ser considerado uma conduta humana porque
não violou nonna alguma. Em um primeiro momento, toda inação torna-se uma
ação em potencial, especialmente quando se dispensa a finalidade. Uma aborda-
gem onicompreensiva como essa consegue abarcar sem maiores problemas as
diversas formas de conduta, mas abarca também todo o resto da vida humana
indistintamente.
Não há uma completa identidade com a tese normatiYista, de que a conduta
relevante é apenas aquela expressada na norma (no tipo penal), porque nesse
caso tornar-se-ia impossível sua análise crítica. A posição normativista é ape-
.,s "Neles se: incorporam fatores empíricos e normativos, corno os objt:th·os perseguidos pdo
agc:ntt: (A quer matar B), a não realização de certos atos (A dt:ixa dt: saudar B), o descwnpri-
mc:nto dt: dc:tt:rminados valores (A dcixa de socorrer B), ou a acdtiçào ou não de ordens, man-
damentos ou normas (A realiza urna condut:1 cuidadosa, ou dirige em excesso de: vdocidadc:r.
TAVARES, Juarc:z. Tnmi, d() Cri111r CulposQ... p. 216; TAVARES,Ju:m:z. Ap()11/,1111r11tQs••• p. 146.
11116 "A pretensão c.lt: validade si~nifica, assim, orientar a ati,·idade de: tal forma que incorpore, em

sc:u sc:ntido, todas as normas que a regularnc:ntem, quer para acat:í-las, l1uc=r para infringi-1:ts e
ainda obter a concordância dos interlocutores ou vc:ncc:r-lhes a resistência. Isto se torna mais
claro, ao vt:r-st: que: a conduta do homc=m, como atividade insc=rida na prática social, ou, dito de:
outro modo, no processo social de produção e: comunicação, não pode des,·incular-se da con-
sideração das normas de convivência, ainda que sc:ja para não as observar''. TAVARES,Juarez.
Teoria do Criflle C11lposo... p. 217.

245
nas parcialmente correta para Tavares, porque, além da expressão da conduta na
norma, deve haver elementos comuns nas ações típicas que apontam os pressu-
postos para que algo seja considerado uma conduta. Esses elementos co1nuns,
analisados em sua faceta de práxis social, indicariam as particularidades da con-
duta humana.
Tavares se vale inclusive da proposição siste1nático-heurística de Habennas,
dividindo os modelos de ação em: ação instrwnental, estratégica, subordinada a
regras e comunicativa; dentre as quais, assim como Habermas, trata as concep-
ções teleológicas da ação indistintamente como ações instrwnentais.807 Funda sua
concepção sobre a já mencionada ideia de agir comunicativo, a qual fornece para
ele, por exemplo, os subsídios necessários não só parn os elementos de equipa-
ração, mas para uma distinção entre delitos comissivos e 01nissivos, recorrendo-
-se à contextualização fático-normativa da conduta, por meio dos conceitos de
relações vitais, sit11ação, t11111atizaçào e co11texlo.808 •

A influência de Habermas e da Filosofia da Linguage1n fica patente quando,


dentre outras coisas, classifica a conduta omissiva como um ato perlocucionário
(ou, recorrendo a nomenclatura distinta, como ato performático), a norma man-
damental como wn ato de fala de e1nissor anônimo e, de forma 1nais abrangente,
as normas incriminadoras como atos ilocucionários. A utilidade da atribuição de
um caráter ilocucionário à norma, destaque-se, se dá porque torna possível que se
explique a dependência da confi6,uração da conduta omissiva para co1n a norma:
a norma penal coloca-se diante de seus destinatários como um objeto de referên-
cia.809 Já o caráter perlocucionário da conduta omissiva se dá porque se orientaria
para a lesão ou periclitação do be1n jurídico. 810
Merecem destaque, contudo, os pontos nos quais Tavares critica e busca ir
além das ideias habermasianas:

,m Buscou-se: apontar o c:qufroco dessa posição no .tópico sobre: Habc:rmas, quando sc: mc:ncio-
nou a influência c:xc:rcida por Hc:idc:ggc:r. Sobre: a incorporação das classificações habc:rmasia-
nas, cf. TAVARES,Juarc:z. Teorin do1 Cri111n 0111iui1w... p. 181 t: ss.
n lbidc:m, p. 196 e ss.
s.19 lbidc:m, p. 264 e: ss; "A norma mandamenul, que sustenta t:mto os crimc:s omissivos próprios
quanto os crimc:s omissh·os impróprios, é, primordialmc:nte, um ato dt: fala com c:missor anô-
nimo. Uma vez que a norma mandamc:ntal é um ato dt: fala, será possívd compor-se o conceito
de: omissão como conduta perlocucionária, st:gundo a qual o omitt:ntt: toma da norma os dc:-
mentos de comunicação nda contidos e: os insere no contc:xto de sua conduta como objc:tos de:
sua orientação. A.inda que: na omissão não exista uma manifestação exterior da vontade:, pois a
inatividade: nada indica, senão a própria omissão, sua característica depende do ato de fala ex-
presso na norma. A norma penal incriminadora, por seu turno, constitui um ato ilocucionário,
pois não se: limita a descrc:ver um fonômt:no, mas a compor uma proibição ou um comando e:
:1 exigir dt: seus destinatários uma conduta que lhe: sc:ja adec..1uad:1". Ibidem, p. 266.
1111
Ibidem, p. 269.

246
Mesmo na realização de uma conduta contrária às expectativas do interlo-
cutor, a pretensão do agente é de que esse interlocutor aceite, de qualquer
modo, sua conduta como válida, ou através de persuasão ou por outro
meio, inclusive pela força, como normalmente ocorre nas atividades proi-
bidas. Nesse particular, parece equivocada a pretensão da teoria do agir co-
municativo, principalmente aquela proposta por Habermas, de sedimentar
o conceito de ação exclusivamente no discurso, com vistas a um processo,
sem levar em conta que o processo de comunicação não se resume a esse
discurso e deve pressupor, inclusive, o próprio dissenso. A con11111icação m-
110/ve 11ão apenas""' alo de per111a1ão, 111111 q11olq11erfom1a de 111011l{utação da vontade.
O ponto nodal do processo de comunicação reside na orientação do agen-
te em função de parâmetros (objetos) de referência, de modo a fazer com
que sua pretensão venha a ser tomada como válida, ou pelo consenso, 011
co1110 expre11ào do disse1110. 811
Como já se mencionou, surgem diversos problemas da tentativa de se cons-
truir uma teoria que pensa o dissenso a partir de formulações estruturadas sobre
o
a ideia de consenso (como é caso de Habermas). Em primeiro lugar, isso leva a
se reconhecer como processos de comunicação mesmo os processos unilaterais
(de violência) - porque teriam uma relação com os objetos de referência. Pare-
ce promover uma desnaturação da concepção de uma teoria da comunicação a
proposição de uma flexibilização tal do conceito de comunicação que mesmo o
seu exato oposto possa ser considerado como comunicação; pois a ação comuni-
cativa seria aquilo que possui uma pretensão de validade e, portanto, deve trazer
consigo a possibilidade de ser aceita ou refutada por outrem - razão pela qual
parece impossível incluir na definição atos de violência.
Trata-se de extrapolação um tanto imprópria - fruto de se tentar encaixar
uma teoria onde ela não cabe - considerar-se que uma ação violenta e unilateral
tem uma "pretensão de validade" no mesmo sentido que outros atos de comuni-
cação, pois só é possível classificá-los (disputas argumentativas na esfera pública
e atos de violência unilateral) sobre essa mesma rubrica se o conteúdo semântico
da expressão "pretensão de validade" fosse de tal forma relativizado que signifi-
casse coisas substancialmente distintas para cada um. E é isso que parece acon-
tecer no conceito em questão, e é por isso que Habermas não os encaixa sob a
mesma categoria. Como Habermas quer elaborar uma teoria republicana capaz
de pensar as propostas da modernidade nos marcos das democracias existentes,
ele opta adequadamente (para as suas propostas) por uma concepção definida de
ação comunicativa - a qual, ao contrário de Tavares, claramente não inclui o que
ele chama de ação instrumental.
Em segundo lugar, repita-se que dificilmente se trata de uma definição res-
tritiva já que toda existência humana está continuamente estabelecendo relações
111 TAVJ\RES,Juar~z. Tnnit1 d() Cri111r C11lposo... p. 218. Grifo nosso.

247
(de acordo com o critério de Tavares) com esses objetos de referência (sejam
pessoas ou normas81 2), o que implica a necessidade do recurso à vontade como
elemento delimitador.
Essa concepção por demais abrangente de ação comunicativa (e "pretensão
de validade") só se torna menos problemática quando se recorre aos elementos
delimitadores da conduta (instrumentalizados nos casos de ausência de ação). Se
uma concepção mais restrita de ação comunicativa (que não incluísse o binômio
consciência-vontade) excluiria a ausência de ação porque não são atos ato que
possuem a pretensão de sere1n aceitos ou rejeitados por outre1n, ela enfrentaria
alguma dificuldade en1 distinguir a ausência de ação de outros atos não comu-
nicativos. Na análise abrangente de Tavares, a questão é resolvida pela ausência
de consciência ou vontade, que seria1n os ele1nentos indicadores de ausência do
processo de comwúcação.'m
Notável como, mesmo nas questões mais básicas, como a ausência de ação,
essa teoria fundada na ideia de comunicação não recorre à concepção de co-
municação propriamente dita, mas à ideia de vontade (a qual ele usa para deli-
mitar a esfera comunicativa e fundar apenas nominalmente a conduta sobre a
comunicação).814 A ausência de ação não é, e1n última análise, detenninada pelo
fato de comunicar algo ou não, de possuir ou não a pretensão ou possibilidade de
aceitação ou, quiçá, pela inexistência da possibilidade de um consenso potencial,
mas (em sua centralidade) pela articulação consciência-vontade. A pretensão de
validade é, por fim, descaracterizada pela ausência de consciência ou vontade.

''(...) a edificação da vontade sobre: a base: concreta da execução de uma tarefa permite a cons-
trução do conccito do próprio sujeito, como sujcito atuantt:, no st:ntido de: fixar, no processo
de comurúcaçào, como objt:tos de reft:rfncia, os dt:mais indh·íduos e: com dc:s inte;:rngirem
de: conformidade com as normas sociais de convh·i:ncia". TAVARES, Juart:z. Tcona do Cri111r
C11lpo10... p. 223-4.
au "Nesst: st:mido, poder-se-:í dizer que: o que: esci em jogo nas hipóteses de ausi!ncia de ação e:
um pressuposto de an:ílise da própria conduta típica, em função dos p:mimetros de: rt:fon:ncfa
por da admitidos. Assim, a exclusão da ação, nesses casos, não constitui a conclusão amparada
sobre um dado puramente natur:tlístico, como se costuma dizer, mas uma conclusão decorn:n-
tt: da impossibilidade de se c:stabdecc:r um processo de comunicação. Haverá ausência de: ação
toda \'ez que o agc:ntt: não puder complementar seu processo de comunic:1çào, sr}n purqur 11ào
nlrtn ro111rimlr 011 t·oltii1.'fl111mlr, seja pon.1ue sua submissão a uma coação externa descaracteriza
sua pretensão de \'alidade". TAVARES, Ju:m:z. Tt'fJlin do Cti111e C11lpo10... p. 226. Grifo nosso;
TAVARES,Juart:z. Apo11ln111r11101... p. 147.
114
Novamente: "Ao omitir-se de uma ativid:tdt: devida, o sujeito orienta sua inatividade;: em senti-
do im·erso aos objetos de referência t:stabdecidos pda norma, '-]Ut:r re:tlizando conduta di\'ersa,
quer nada fazendo. Isso, porém, não basta para assinalar à omissão a qualidade de: :no perlo-
cucion:írio. É prc:ciso, além disso, que o sujeito, ao omitir-se, tc:nha consciência e;: \'Ontade;: de:
descumprir o dc:ver nos exatos limites da referência normativa". TAVARES,Juarez. TrfJna dos
Cri111r1 0111iJ1iw1... p. 268.

248
Apesar de todas as críticas ao finalismo, Juarez Tavares, um dos mais argu-
tos autores de Direito Penal da contemporaneidade, também chega à conclusão
que as condutas culposas (seja1n conscientes ou inconscientes) e omissivas são
igualmente condutas volitivas.1415 Nada menos do que uma consequente incorpo-
ração da doutrina finalista deveria afirmar.

10.1.3 - Enquadramento final

A concepção apresentada por Juarez Tavares quanto ao conceito de ação


difere substancialmente da maioria das teorias surgidas até agora, sejam finalistas,
sociais, funcionalisras, etc. Entretanto, seu inegável traço normativista fica cla-
ro não sô por sua veemente negação de um conceito pre-juridico de ação, mas
também porque a própria delimitação do que se pode atribuir ao sujeito é feita
normativamente a partir de discussões (com um enfoque comunicativo) sobre o
que se pode considerar como "elementos materiais" da ação.816
Esclarece Tavares:
Pur outro lado, esses elementos (comunicativos], ainda que sejam apre-
ciados sub o enfoque de uma prática social, portanto, como expressão du
sujeito em uma comunidade comunicativa, só valem na medida em que
possam servir, normativamente, como fatores limitativos da incriminação.
Isto significa que todos os elementos comunicativos, que caracterizam a
ação como prática social e, portanto, a vinculam a um sujeito, não têm,
por si mesmos, o menor significado como redutores da incriminação, quer
dizer, como objetos aptos a fundamentarem urna dogmática crítica do
delito.817

No entanto, definir já é limitar. () próprio fato de se definir algo, em si mes-


mo, já implica exclusões. Portanto, só pelo fato de não abarcar toda a realidade,
qualquer concepção desses elementos materiais da conduta é apta a participar
dessa teoria. Mas isso nada diz sobre o poder maior ou menor dessa teoria de
reduzir poder punitivo. Considerando-se, todavia, sua maleabilidade, não seria
absurdo dizer que ela possui um poder menor de contenção de poder punitivo
que a teoria finalista.

111 !1 TAVARES, Juarcz. Tt·u1i,1 du Cn'111r C11lpuw... p. 219 e ss; TAVARES, Juarcz. Apu11/n1111'11/uJ... p.
147; SOUZA, Artur de Brito Gut:irus. A t,·u,ia... p. 297.
1116
"A discussão cm torno dos dcmcntos materiais da ação, :i partir de um enfoque comunicari,·o,
é rdevante como recurso metodológico para proporcionar uma delimitação normari\'n daquilo
que se poderia atribuir :io sujeito, de modo a f:m:r com qut: sua descrição como ação típica dt:,·a
ser submetida, const;intementc, a um procedimento de prova de sua legitimidade.". TAVARES,
Juarcz. Tc·01ú1 do C1i111r C11/p0Ju... p. 231; T/\YARES,Ju:ircz. Apu11ln11m1/uJ... p. 154.
" 17 TAVARES,Juarcz. Tt•una d<J Cri111r C11lp0Jo... p. 231.

249
Se o grande passo adiante da concepção dogmática de ação é (1) a incor-
poração de objetos de referência como expediente para que, na consideração da
conduta hwnana, seja possível incluir referências sociais (co1no regras de trânsi-
to) e não meramente referências concretas (como atirar em alguém), como uma
interpretação superficial do finalismo poderia sugerir, e (2) a sugestão de uma
dogmática crítica. Então ela é, e1n princípio, redundante, pois não apresenta nada
que o finalismo articulado com a já clássica proposta de uma dogmática funcio-
nal teleológica redutora t1mbém não apresente - com exceção de alguns novos
problemas de fundamentação. Se não for essa a inovação do conceito doginático
de ação, então, resta, como opção mais racional, uma maior abertura para nor-
mativização.
Torna-se, inclusive, difícil pensar em uma conduta que se dirige levando e1n
consideração objetos de referência, ao se prescindir da noção de teleologia e suas
consequências, ou seja, se o indivíduo não estabelece sua finalidade ou considera
e conforma os meios - considerando també1n, portanto, os chamados objetos de
referência aos quais deve adequar sua conduta-para atingi-la. Na verdade, a ideia
de objetos de referência parece em muitos momentos coincidir com um conceito
teleológico de conduta, cmno elemento conformador da conduta.818
Por mais que o autor se esforce em ressaltar que não se trata de um conceito
puramente normativo de ação," 19 é forçosa a conclusão, em nosso ponto de vista,
de que essa teoria se apóia, em últi1na análise, sobre uma base normativa. Não é
possível elaborar um conceito relacional de ação, como quer Tavares, sem se hie-
rarquizar a relação entre aspectos materiais e normativos. Esse é o fardo não só
das teorias da ação, mas da maioria das teorias sociais em geral; o que não é uma
surpresa, pois a teoria da ação é uma das ligações possíveis entre as concepções
de sociedade e as teorias do delito.
Se é difícil ima!:,rinar u1na ação designada por delituosa co1no wna fonna de
comunicação, é também consideravelmente difícil, por outro lado, imaginar as
normas (em geral, mas em especial também as normas penais) como um recorte
(normativo) de um momento de comunicação. A ideia de co1nunicação, 1nes1no
a partir de uma fonte escrita, envolve uma relação qualitativamente diferente com
seu destinatário (mais dinâmica), na qual ele possui um papel muito menos passi-
vo. Entretanto, a nonna penal possui, e1n tese, mna força de autoimposição que

m ''Vontade sem objeto de referência constitui absurdo lógico. Se, na prática, é observado um
comportamento singular, em que niio st: possa cscl:trcccr acerca da existência real desse objeto
(ou objttit-o) ou de qualquer objeto (ou objetiro) que esteja vinculado à conduta, se desnatura a
conduta humana \'olitiva como tal, \'Índo a tratar-se de conduta meramente impulsiva (...)".
TAVARES,Juarez. Apo11ta111mlo1... p. 145. Grifo nosso.
119
"A ligação entre a conduta e as normas de cunvi\'ência não induz à conclusão de que se trate de um
conceito puramente normaúvo de ação(...)". TAVARES,Juarcz. Teoria do C:ni11e Cidposo... p. 232.

250
a maioria dos teóricos deduz ou das funções preventivistas ou, uma vez violada,
da força do próprio Estado.
E não se pode dizer que há utna relação remotamente análoga na tradicional
dinâmica entre mensagem e intérprete, quando este, em última análise, possui
considerável liberdade interpretativa e pode, até mesmo, chegar a uma incorre-
ta interpretação da mensagem oribrinalmente intentada, sem maiores problemas.
Pelo contrário, há inúmeros autores que celebram a reinterpretação e a atribuição
de significados não originalmente incutidos no texto como um dos sustentáculos
da riqueza da arte, por exemplo.
Seria possível dar outro aspecto à apresentação da relação norma-cidadão,
caso se tratasse de uma relação mais bilateral. :t-.fas este sequer é o caso. Não só
no Brasil, co1no na maioria dos países, dificilinente se pode dizer que as normas
são frutos de uma situação ideal de fala ou qualquer coisa parecida. As tentativas •
de fundar um caráter comunicativo numa suposta relação bilateral entre normas
e cidadãos leva apenas à aparente construção de um alicerçamento democrático,
que, inexistente, em última análise, reivindica-se apenas para justificar as normas.

10.2 - A concepção significativa de Vives Antón820

A concepção significativa da ação de Tomás S. Vives Antón é explicitamente


influenciada por Wittgenstein e por Habermas,821 e por isso al6JUmas das críticas
realizadas anteriormente a esses autores aplicam-se aqui. Não obstante, a análise
dessa teoria se impõe pela importância que adquiriu com os anos e porque possui
características e nuanças próprias, as quais não podem ser totalmente subsumidas
a uma análise genérica de seus fundamentos filosóficos.
Nos escritos de Vives Antón se percebe a tendência por configuração social
do sentido da conduta, assitn, a finalidade subjetiva, ou o sentido que subjetiva-
mente se atribui a algo, perderia seu papel determinante. Desse modo, seria impe-
rativo livrarmo-nos das concepções substanciais da mente (fundadas no dualismo
mente-corpo e na Filosofia Cartesiana), da compreensão da ação pelo recurso a

1121
' Não foi possívd suprimir os termos "intenção" e "imcncionalidade", mesmo sabendo yue,
para boa parte d:i doutrina, a ,i,tmrào sinaliza um demento subjetivo especial (SOUZA e JA-
PIASSÚ, 2012). Isso porque, nestas teorias, des possuem j:í uma forte carga teórica (em grande
parte em função da herança da filosofia da linguagem) e alter:í-los seria, possivelmente, alterar
também seus conteúdos. Rt:sta, então, deixar este :t\'iso.
821
ANTÓN, Tomás S. Vives. J-i111dn111r11los dei sistm,n pmal. Valc:ncia: tirant lo blanch, 1996. p. 143
e ss; PÉREZ, Carlos Martínez-Buján. A co11rrprno s~f!.11iftmlim da nrno de TS. Vi11rs r mt1 rorn·1pr)ll-
df11ria s-Üle111,íhá1 CQIII ar ro11r,'/'(õr1 le/r()/óf/rof,111áo11ni.s do drlilo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.
10; MASCARENHAS JUNIOR, \Valter Arnaud. Op. Cit. p. 26-9 e 43 e ss.

251
crenças e desejos e do binômio n1eio-fim.K22 Uma clássica crítica ao finalismo é
repetida nessa obra espanhola, a de que a teoria finalista só explicaria as ações
finais, mas não conse!:,JUiria explicar as açc1es nas quais a finalidade é irrelevante.823
Após abandonar as perspectivas clássicas, Vives Antón oferece sua con-
cepção de ação não como um substrato suscetível de se atribuir um sentido, mas
como sentido que se pode conferir a al!:,>"\.lns comportamentos humanos, de acor-
do com um sistema específico de normas. Em outras palavras, fatos acontecem
e ações significam (têm sentido), fatos são descritos e ações entendidas, fatos se
explicam por leis naturais e açc1es por regras gramaticais.11~4
!vias, para o Direito Penal, isso não coloca o problema em um segundo
nível? Se é um sentido que se pode atribuir a algumas condutas, como se deter-
minar quais condutas são passíveis de se atribuir esse sentido? A concepção witt-
gensteiniana determina as regras de atribuição de sentido, não uma regra da cor-
reta atribuição de sentido ou da correta aferição de sentido. As regras de sentido,
em \X'ittgenstein, precisa1n ser determinadas na prática, o que torna impossível
uma metarregra (uma norma determinando a correta aplicação de outra norma).
Essa é uma indagação especialmente relevante para o Direito Penal porque a
regrn gramatical possui wn ínti1no vínculo com a lin!:,1\.iagem em uso, na concepção
wittgensteiniana. Contudo, sabe-se que, na história do poder punitivo, foi uma prática
instituída o uso expansivo (por critérios atuais) da atribuição de significado de ação
humana para aquilo que, depois, seria considerado um simples fato. Se é ação aquilo
que o uso chancela como tal, então, perde-se muito (senão todo) marco para wna
crítica interna, ou seja, para uma crítica daquilo que se conforma ao uso chancelado -
pois só wna distinção entre conceito e uso torna possível a crítica deste.

w ANTÚN, Tomás S. Vives. Op. Cit. p. 203-205; MASCARENHAS JUNIOR, \'Valter Arnaud.
Op. Cit. p. 30-1.
w lbi<lem,p. 215. Cabe ressaltar que essa é uma crítica falha, pois a irrelevância jurídica <la finalj-
<la<le não po<le (nem <le\'e) ser equali?.a<la à ausênci:i <le finali<la<le.
w "Se opera, así, un giro ,operni(t/no en la teorfa de la :icción: ra no cs cl 111b1h'tllo dt ,m smtido; sino,
a la inversa, cl 1rntido de 11n s111/ralo .(...) los hechos acaeccn, las acciones tiencn sentido (esto cs,
significan); los hechos se explican mc<li:inte leycs físicas, químicas, biológicas, etc.; las acciones
se interpretan mediante regias gramaticales". ANTÓN, Tomás S. Vives. Op. Cit. p. 205; "Pero
ni las figuras <le delito son enú<la<les objetivas, ni las acciones se <lefinen por sustratos ónticos
que transmitan cl sentido. Hemos visto que las accioncs consisten cn esos sentidos - irrc<lucti-
blemente diversos - que atribuímos a la con<lucta y que, justamente por eso, las distinguimos <le
los simples hechos, que son (...) objetivos. Desde esa perspectiva, la supuesta vcr<lad analítica se
<lerrurnba: cl tipo de acción no se halla precedido <le la acción to<lavía-no-tipica, sino que cs cl
dato prin,ário, pues no hay na<la parecido a una t1{(ió11 tn general sino que, a la luz <lc diversas regias
sociales de interpretación Qurí<lico-penalcs o ele cualquier otra índole) surgen diversos tipos <lc
accioncs". lbi<lcm, p. 2(10; Ver também: rf.:REZ, Carlos Martínez-Buján. Op. Cit. pp. 09-13;
MASCARENHAS JUNIOR. Walter Arnau<l. Op. Cit. p. 29-30.

252
Vives Antón ressalta como, em sua perspectiva, a busca por um ente real
para se relacionar a um substrato de sentido é equivocada porque leva a uma
confusão entre a capacidade de ação e a ação em si. A capacidade de ação é
identificável já na esfera biológica (que seria justamente aquilo que diferencia
o homem dos outros animais), mas também caracterizada por sua articulação
co1n elementos sociais co1no a lin6ruage1n. Assi1n, se a inquirição da capacidade
de ação pode se apoiar sobre um substrato (biológico e social), o mesmo não se
pode dizer da ação em si mesma.825
E1n u1n prüneiro momento, Vives Antón apresenta uma recusa de concep-
ções de semântica intencional (nas quais o sigrúficado se vincula à pretensão do
enunciador). Ele compartilha a concepção de um segundo \Vittgenstein, no qual
critica a concepção pictórica do Tractat11s (implicando também a recusa da semân-
tica formal), recorrendo à ideia de linguagem como uso. 826 No entanto, o autor
espanhol articula explicitamente, para caracterizar sua concepção de linguagem
em uso, as atitudes intencionais do enunciador com o contexto nas quais elas se
realizam. 827
Nega-se, então, a possibilidade de um supraconceito de ação, recorrendo-se
à ideia de se111elba11ça de família como instrumento explicativo para a atribuição da
qualidade "ação" a coisas tão distintas entre si. A razão de ser dessa semelhança
de família seria, por sua vez, porque se vincula a expressões de forma de vida hu-
mana, nas quais os ho1nens se inserem e que fornecem o instrumental necessário
para manifestarem suas ações:
Y ese parentesco trae su causa de que en todas ellas se expresa - de modus
muy diferentes una forma de vida - la foml(1 de 1ida h11111a11a en la que los
hombres se hallan, 11a//1ra/111e11le, instalados y que les confiere, asimismo,
una capacidad natural para formular y captar códigos prelinguísticos, me-

w "~l:ís bien parece que esa capacidad - que requiere ciertos caracteres innatos (b mano y el
cerebro) - se adquicre, con el len!,1Uaje, en d curso de la vida social. Al hallarse coordinad:i e
interpret:ida por medio del lcnguaje, la acción humana cobra una climensión significatiV:1 de la
que carecen las conductas animales que, por eso, no son ,,rrioms en e1 sentido juáclico-penal
ni en el uso común del término". ANTÓN, Tomás S. Vives. Op. Cit. p. 207; PÉREZ, Carlos
.Martínez-Buj:ín. Op. Cit. p. 12.
126 "Sin tcner em cuenta las actitudes intendonales de los habl:mtes, expressadas en el contexto de
acción de que se trate, no se puede entender lo que dicen: la 'pintura' que evocan sus palavras
cs insuficiente para captar el significado". ANTÓN, Tom:ís S. Vives. Op. Cit. p. 21 O.
77
L "Para colmar csa insuficiencia de la scm:íntica formal, en la teoria dei Iig11ijimdo ron10 11so acción y
lenguaje se fundcn en la idea de 'juego de lenh1Uaje': en eUa, d énfasis recae 't:tnto o m:ís sobre las
accioncs en cuyo entrnmado ocurre el uso de l:is pafabr:is que sobre las :icciones que se pucden
r<..·alizar a1 usar ciertns palnbras'. De modo que lenguajc y :icción se h:ubn 'entrejidos', forman un
conjunto gobernado por regias - un 'juego' - dei que e1 sihPflÍfic:ido dimana. Y el signific:ido no
cs sino cl subproducto de la intcrprettción y aplicación de las regias de esse 'juego"'. ANTÓN,
Tomás S. Vives. Op. Cit. p. 210-1; MJ\SC/\RENH/\S JUNIOR, Walter /\rnaud. Op. Gt. p. 66.

253
diante los cuales expresan y atribuyen las actin1des intencionalcs de las que
. .i:ucad o.:i,~
d e pen de el s11:,rn1 -

Portanto, a ideia de ação não indica um gênero ao qual pertencem as espé-


cies de ação, mas a fronteira onde começa a vida humana e termina a natureza.
Como h:.í uma forma de vida compartilhada torna-se possível reconhecer o que
é ação, por sua aparência de ação, mesmo que isso não exclua, nesta teoria, uma
necessidade posterior de interpretação. Para Vives Antón, apenas em wn primei-
ro momento é necessário se apegar à apar€11da de ação, pois, cm seguida, devem-se
excluir os casos nos quais não há uma observli11da a11télltica dt,s regras. 829
Entretanto, corno se afirmar se algo seguiu as regras de forma autêntica se
esse ''algo" não existe, mas é apenas um sentido? Subsequentemente, as regras
às quais Vives Antón está se referindo não deveriam dizer respeito a um parâ-
metro de avaliação da correta interpretação do fenômeno, mas a um parâmetro
de compreensão dos sentidos possíveis do fenômeno. A própria distinção entre
aparência de conduta e conduta em-si é algo herdado das concepções metafísicas
dos fenômenos, conforme as quais é plenamente coerente se formular uma dis-
tinção entre aparência e essência. Torna-se inviável, pela concepção significativa
da ação, distinguir entre aparência de conduta e a conduta em si. A aparência de
conduta é a conduta,1130 porque a aparência é dada pela força de semelhança ao
uso. Lembre-se que o próprio Wittgenstein afastou a possibilidade de uma me-
tarregra que diga respeito à correta aplicação das regras.
As regras estabelecem a moldura geral dos jogos de linguagem conforme se
manifestam as formas de vida. Servem não só para informar a ação, mas também
para tornar possível sua interpretação.831 São regras estabelecidas pelo uso e, por
isso, afirma esta teoria, pouco importa a regra que o sujeito tentava infringir, mas
sim as regras socialmente relevantes para se determinar o tipo de ação realizada.
Com isso, percebe-se como, em determinados momentos de sua obra, de forma
mais coerente com a fundamentação filosófica pela qual optou, o aspecto subje-
tivo da conduta perde sua relevância.
O aspecto subjetivo só comparece com alguma importância na "capacidade
de ação", mas, para a configuração da ação propriamente dita, importa pouco o
IIU ANTÓN, Tomás S. Vives. Op. Cit. p. 212.
1129
Ibidem, p. 212-3.
llll "La pertinência a un tipo de acción determina la aparencia de acción que es, según hemos visto
el punto de partirda para determinar, cn la mayorfa de los casos, si, cn efccto, estamos o no ante
una acción de la clase de que se m1te o, incluso, si podemos o no hablar de acción - cualquicra
que sea la clase de acción en que pensemos - ". Ibidem, p. 260.
llt "'La relación entre ,ma n._~la determinada y 1111 ar/o que está de acuerdo con ella u i11lema o gra-
matical', y lo mismo cabe afirmar cuando el acto no se ajusta a una regia determinada: dccimos
que cl acto es el que es porque lo entendemos conforme a la regia en cuestón, ora sea conforme
o disconforme con ell:i". Ibidem, p. 213.

254
aspecto subjetivo, e sim o sigrúficado social atribuído ao feíto. 832 Assim, a própria
finalidade não possuiria a relevância na constituição do significado atribuída por
\Velzel. Vives Antón esclarece que a "atribuição de uma intenção" se dá de acor-
do com as regras e é constitutiva do significado, podendo se dar, inclusive, em
franca oposição ao próprio propósito perseguido pelo sujeito.
Ele dá o exe1nplo de u1n jogo de futebol no qual, ao contrário do desejado,
ao tentar defender e retirar a bola da área, o jogador acaba marcando um gol con-
tra. Diz-se que ele marcou um gol contra e não que ele defendeu a bola porque,
em tese, compreendendo-se as regras do jogo, este é o caso (assim como seriam
tantos outros) de se atribuir um sentido a uma ação mesmo que ele se oponha a
"intenção" do agente.H33 Mas e se o zagueiro estivesse "comprado" quando fez o
gol contra, seria a mesma solução?

10.2.1 - Intenção, intendonalidade e dolo

É pertinente se ressaltar, dentre os argumentos iniciais apresentados


pelo autor:, que sua concepção se afasta da concepção tradicional segundo a
qual as atitudes intencionais são como processos que transmitem sentido :i.os
movimentos corporais. De modo que as atitudes intencionais não são objetos ~o

uz "Di~,ámoslo dt! otro modo: para qut! pueda hablarse de: acción c:s prc:ciso qt:c: !os s,.:=:::ws :-- :-....::.
la capacidad de: formar y c:xpn:sar intc:nciom:s; pt!ro, las accionc:s que: rc::ifu:m :10 .:e?:::.::~ .::~
las intencionc:s que: prc:tenden exprc:ssar, sino dd sibrruficado que: sociahnc:n:c: se: :l...,.;:-:.::,i.:. :._)
que hagan,,. Idc:m,p. 214.
UJ Ele:, inclusive, cita Hanna Fenichd: "El :isunto dt:pt:nde en buena mc:d.ià:i. de: :..i C:.:s.: =: .:.:-.::.-

ón que tomemos como ejemplo; algunas (de: las que ordinariamc:ntc: dc!'lo:r..:.r.i::::s· .::=.:::~
dcpcndc:n mucho más de: las intc:nciones y conct:ptios dd autor que: Ot:'""...S. .¼:.. :;-.,:-..:.::.:.=,_·:5-
est:ir de acuerdo en que uno no put!dc: promc:tc:r si no tient: la intc:nción dt: px=.::~:- _.:..:::...:::..:-:
podáamos argumc:ntar t'lmbi~n sobre este: punto). Pero équi~n quc:rri.:i m.1.--::t=::.::- -::.:.: ::.:.: ~-·
puedc: ofender sin proponersc: ofender?. éQut: uno no puc:dc: dc:cc:pcio:1:ir s:r. :e~-=-=:... :_-:~.::::e.
de dc:ct!pcionar?. Se puc:de tt!ner la intención de: mc:ntir con d finde: rr.cn:ir. :.::--.:, ::: s.: :::•.:-;~.:.:.
proponersc: enganar para enganar. Con las acciont:s ocorre: como con !L'$ cr-.:..7..:.::~$ e.:-. ..:~~=-:
sistc:ma legal: algunas son contingentes respccto a la intc:nción rdc:,·.m tt. :r..:~~:::-.:$ -=.-~ ,· =-~
dc:pc:ndt!n de las consc::cuc:ncias objc:tivas". lbidc:m, p. 215. No c:nom0. :-.ó·.:-.:· .1:·..:..:~ :~-::·:-:-.:.: .:.::
importante papd intc:rprc:t.ido pdos delitos de injúria na rcformubç:io J.1 •~'::.: ..:,' .:, ..::·. ="~
fato, t: possívd atribuir a palavrões uma função cxclamati\'a (rcnsc-$c.- r.~:n :,;, ,:,· =-~:~.:. --~~
acalorado, por exc:mplo), bem como é possívd atribuir um:1 funçlo t'fl'::::;,·.;.. (' : ' .::-,· : : .:,·.::...
de distinção é a finalidade: do sujeito, c:specialmc:ntt: se o contexto nü$ J...,,:$ ...·.:$,'·S :···:'-' :.. ::.,·.-~ ::
diforc:ntt! (e não se: pode: servir deles, como parece ser :i re~post:\ dcss.1 tl.','n., s:;.-.::=.,·.::-.,.::· . ,_.
mais, :i confusão entre: ações l}UC teoricamente <lcpcndcri:1m nuis üu mt·::,':- ~.: :=..-..: ..,:..:.:.... -~--
su1·cito p:ircce se dar muito cm função <l:1 textura aberta th lint!ll,\t!,·m. ,•,:,: :".:: ,-,· .:~ ,· .: .. ~- : ::.~--
, ' 4 ..

de mancir;1 análoga (porl]UC são termos abrangentes e ;1lurr.1m n:.1::,:.:,:,:- ....:.-..::.::.:., : ::, : :\
distintas) fatos direcionáveis ou não pelo indivíduo (fatos e Íl'ih,s\
mundo e, por isso, não se relacionam com seus objetos da mesma maneira como
objetos se relacionam uns com os outros.834
Não parece completamente equivocada a consideração de que a "intenção"
possui vínculos com as instituições humanas, bem como se refira a regras, técni-
cas e práticas.835 Uma concepção teleológica da ação parece também poder dar
conta de uma conduta que se relacione orientada por valores, assitn co1no a teoria
significativa em seu ponto mais proveitoso.
Em suas considerações, a pouca importância da finalidade do sujeito trans-
parece novamente e1n outro exemplo, quando surge como totaltnente coerente
traduzir como um jogo de xadrez a situação na qual duas pessoas, que nunca
antes tiveram qualquer contato ou informação sobre o jogo, esbarram com um
tabuleiro e interage1n com ele de tal 1nodo que seus movimentos se encaixam nas
regras, apesar de a finalidade de ambos não ser a de jogar. Nesse caso, a interpre-
tação apropriada seria dizer que ambos jogam xadrez.1136
Nesse exemplo, co1no em tantos outros, salta aos olhos a facilidade co1n
a qual sujeitos conseguem se moldar a complexas regras - no caso do xadrez,
regras de um jogo, mas o mesmo poderia ser dito sobre enunciar algo: é possível
emitir um som sem que sua finalidade seja co1nunicar, e essa e1nissão (nessa con-
cepção) seria compreendida como uma comunicação de qualquer forma - por
pura casualidade. Chama atenção o fato de como o indivíduo, nestas situações
hipotéticas, conse!,rue se moldar a complexas regras sociais sem direcionar fi-
nalisticamente sua conduta para isso. E essa dissonância entre amoldamento a
regras complexas e conduta aleatória gera justamente isso, exemplos esdrúxulos
com puro valor rupotético. Afinal de contas, por mais que se possa argumentar,
dificilmente se poderia dizer que um jogo de xadrez é algo que duas pessoas po-
dem participar sem o seu conhecimento ou contra a sua vontade (como parece
sugerir o exemplo).
Afirma Vives Antón:
Si ello es aí, la acción intencional no puede carncterizarse, ai modo en que
há venido haciéndose tradicionalmente, como un movimento corporal
a1 que precede un determinado contenido psicológico pues, ni los movi-
miemos corporales son, por sí mismos, acciones, con indepc:ndencia de las

~ "La concxión entre una adit11d i11tmdonal cualquiern, cI objrto de dicha actitud y la lmdmria a
satisfacerfa es i11ltrna o grant,1/ira/, de modo que no puede describirsc como una rclación externa
entre elementos o estados de cosas indcpendientes". Ibidem, p. 16.
m "AI h:illarsc vinculada a la acción, la intención está 'encaj:tda cn la situación, las costumbres
e instituciones humanas. Si no existiera la técnica dei jucgo dei ajedrc1. yo no podría tcncr b
intención de jugar una partida de ajedrc1.. En la medida cn que <lc antemano tcngo la imcnciôn
de 6 forma de la oración, esto está posibilitado por cl hccho de que pucdo hablar (el idioma de
que se trate)". Ibidem, p. 218.
1136
Ibidem, p. 218-9.

256
regias que los interpretan como tales, ni cabe hablar de la intención antes
de que esa interpretación tenga lugar: la intención, cuando se da, se halla
inscrita en la acción (en la conduta interpretad~ _y no fimt la virt11alidad de
dt1er1JJi11ar e/ 1entido de acció11 de 1111 con,portan1itnlo.83

Está correto o ator quando diz que a "intenção" está inscrita na própria
conduta. Isso porque, quando os valores e as regras servem de objetos de refe-
rência para a conduta, a marufestação humana se expressa já carregada de "in-
tenção". Assim, é correto que, realizada a conduta, ela não é algo a que o sujeito
possa se referir e, mediante sua exclusiva atribuição de sentido, afirmar o que ela
significa. O que não implica que o aspecto subjetivo do agente seja tão insigni-
ficante quanto se faz parecer nessa teoria significativa, já que ele importa exa-
tamente na própria manifestação significante. O cuidado que se deve ter é para
diferenciar como os sentidos da conduta se relacionam com as regras, se "antes"
ou "depois" de manifestação da ação.
Por antes da manifestação se quer dizer que o ser humano leva em consi-
deração os usos (regras, valores, etc.) para o balizamento de suas condutas e, por
isso, elas necessariamente estão crivadas de valor. Por depois da manifestação se
quer dizer que os sentidos possíveis de serem atribuídos a partir das regras são
verificáveis por um terceiro avaliador imaginário (hipotético), que não o sujeito,
caracterizado pelo donúnio das regras em seu uso corrente. A primeira hipótese
é totalmente compatível com o finalismo, como já se buscou demonstrar, en-
quanto a segunda hipótese (mais próxima daquilo que parece oferecer esta teoria
significativa da ação) oferece uma teoria com tendências demiúrgicas e contra-
-factuais (não obstante essa segunda opção tenha uma afinidade potencial maior
com o processo penal).838
Outro importante exemplo trazido pelo autor é o de um alpinista ligado a
outro839. Neste caso, dois alpinistas sobem uma montanha e um deles, pensando
em cortar a corda e matar o colega, vibra de emoção com a ideia, momento no
qual, em razão disso, a corda se solta e o colega morre. O exemplo em questão
seria uma prova de que, mesmo havendo "intenção", não se pode dizer que há
ação, pelo contrário, só se pode inquirir por "intenção" porque se pode falar que
há ação. Novamente, outro exemplo problemático porque o aspecto subjetivo
tem uma ligação meramente tangencial com o resultado.
A relação seria a mesma se, vibrando ao saber que ganhou na loteria, a cor-
da se soltasse matando o outro alpinista, ou diante de qualquer outra impostação
an lbidt:m, p. 219. Grifo nosso.
iu4 "En otras palabrns: los movimit:ntos corpomles no se trnnsforman en acciont:s que podamos
identificar como tales por d hecho de que sean 'caus:idos' por la intcnción o conformt: la in-
tcnción". Ibidem, p. 219.
IJ9 Ibidem, p. 220.

257
peculiar, mas só tangencialmente (em seu aspecto subjetivo) ligada ao resultado.
O exemplo trazido pelo autor não demonstra a dispensabilidade do aspecto sub-
jetivo quando não se leva em consideração as regras, mas apenas a necessidade
(nesses casos) de que a manifestação objetiva seja um reflexo direto do aspecto
subjetivo (e não um mero reflexo fortuito), para que se possa considerar a possi-
bilidade de responsabilização.
Vives Antón critica, por exemplo, as ideias de Urs Kindhauser, que estipu-
lam os conceitos de vontade e causalidade como definidores da conduta. Sequer
a exib>-ência de Kindhauser de que a conduta se revista de "intencionalidade"
mitigaria as deficiências dessa concepção, porque, segundo o autor espanhol, só
depois que é compreendido como conduta, um movimento corporal pode assu-
mir o invólucro da "intencionalidade".840 Com isso, pode-se perceber de forma
mais nítida como os elementos concretos da conduta todos se subordinam ao
significado. 841
Parte do problema para Vives Antón é que se entenda a ação como uma
manifestação da vontade. Diz ele que não são elementos da ação, mas formas de
entender a conduta como ação.
Seria possível, em sentido oposto, afirmar-se que para ser preciso uma con-
duta a qual se atribua determinado sentido, para que se perceba uma ação, não se
realizou uma real cisão da necessidade de um substrato, ela foi apenas mascarada.
Ademais, Vives Antón parece inferir algumas conclusões das contribuições filo-
sóficas de Wittgenstein que não se impõem como as conclusões necessárias das
considerações do autor. Afirma Vives Antón que a "intencionalidade" das ações
é social e histórica, no sentido de que depende da atribuição de "intenções" ao
sujeito e não de sua proposição de intenções. Acontece que parece ser uma inter-
pretação plenamente compatível com as proposições de Wittgenstein que a ação
seja em grande parte determinada pelo sujeito, mas que a intenção que parte do
indivíduo seja social e historicamente condicionada. No sentido de as condições
rustóricas e sociais se refletem na própria forma como o indivíduo se ·manifesta
e não que essas condições sejam wna força absoluta de modelamento dos even-
tos ex post facto, anulando completamente o papel do indivíduo (pois não faria
diferença o que ele faz, mas a significação usual do que ele faz, posteriormente
a tê-lo feito).

MO Ibidem, p. 221.
141
"El papel básico que jucgan, t:into la idea de ,·oluntaried:id, como las atribuciones de intención
que dependen de dia, es conjurar una im:igen, por ejemplo, la de que nuestros movimic:ntos
coinciden con nuestros descos de forma contingente y milagrosa. La voluntariedad - y las :itri-
buciom:s de intcnción - rcsult:m de un contexto y dcpcndcn de: la rclación de: la conducta con
las paut:is que gobiernan nuestras vidas: 110 1011 tlr111m/01 dr la arriú11, .ri110fortlla.J o 111odos dt r11/(1Jder
la cod11da ro,no ª"ió,I'. Ibidem, p. 221. Grifo nosso.

258
Por outro lado, parte do problema da completa subscrição a tal concepção
filosófica é crer que se mover em um mundo mediado por significados equivale a
se mover em um mundo no qual esses significados mediadores de nossas relações
(como quer que eles se estruturem, quer se subscreve a uma semântica intencio-
nal, formal, etc.) não possuem qualquer relação com a realidade objetiva, ou que
esses significados sejatn a totalidade da própria realidade objetiva. Isso significa
que, mesmo afastando as conclusões centrais do Tracla/111, de que os nomes utão por
alg11111a coisa, isso não implica necessariamente a conclusão oposta - à qual muitos
chegam por eliminação - de que os nomes não estão por coisa alguma.
Talvez a linguagem faça parte de nossa relação com o mundo sem que ela
precise circunscrever todo o mundo (isso talvez ajude a compreender a ideia de
"indizível"). Assim, pode-se compreender uma mudança na linguagem não ape-
nas como uma mudança no uso - a qual é uma boa explicação, mas que não dá
conta das mudanças no uso que se dão frequentemente de forma contraintuíciva
(como nas ciências duras), relativamente independente de ideologias e como decor-
rência de exercícios de refutabilidade. A própria ideia de refutabilidade só pode se
sustentar se for possível dissociar-se .re11tido de realidade, pois se a realidade fosse
idêntica ao sentido, o exercício de refutabilidade seria um eterno exercício retó-
rico, sem qualquer vínculo necessário com a realidade. Pois a ideia de mudança
apenas como mudança no uso implica sua consideração como algo contingente,
quando, na verdade, parece ser frequentemente fruto de um confronto com a
realidade.
Sobre a relação entre sentido e "intenção", afirma o autor:
La gramática de 'intención' aboca a una aparente paradoja, sehrún se des-
prende de lo clicho hasta ahora: las regias, que determinan el significa-
do y, por ende, Ia acción, comportan la atribución de intenciones y, sin
embargo, no cuentan (...) entre los presupuestos de su aplicación, con Ia
intención correspondiente. Es posible, v.g., creer que se sigue una regla y,
sin embargo, ínfrigirla. En tales casos, la determinación dei sentido - esto
es, de la acción que se realiza - no depende de la intención que pudiera
atribuirse al sujeito, pues el 'ser-sobre-objetos' de su acción - su 1i1tmrio11a-
lidad - constituye subjetivamente, sino de modo oijetivo, en virtude de las
convenciones - costumbres, hábitos o normas - a1 i!,tUal que la de las pa-
labras - es contextual, social e histórica: presupone la intención subjeàYa
o, quizás sería mejor decir, la posibilidad de atribución de intenciones al
sujeto; pero no se atiene a sus contenidos.8°' 2

Como se pode observar, Vives Antón deduz a ofuscação do sujeito da dis-


sociação que pode existir entre seguir uma regra subjetivamente e objetivamente.
Ou seja, pode-se acreditar intimamente que se segue uma regra, sem de fato
142
IbiJcm, p. 223.

259
fazê-lo. Da forma como expõe sua concepção, Vives Antón dá a entender que
existe uma "intenàonalidade" subjetiva, mas que ela não repercute objetivamen-
te; ou melhor, só repercute objetivamente quando há regras que objetivainente
convocam-na para tanto. 843
Vives Antón diferenàa, então, entre wna "intencionalidade" objetiva e uma
"intenção" subjetiva844• Em wna detalhada digressão sobre as nuanças subjetivas
dos homens, ele passa a distinguir entre (a) "propósito", "intenção" e "desejo", e
(b) "voluntariedade" e "intenção". Primeiramente, a fim de afirmar que as prefe-
rências subjetivas do indivíduo (desejos) não tê1n (ou não deveriam ter) qualquer
repercussão significativa sobre a responsabilidade. Utiliza-se dessa "constatação"
inclusive para mitigar a importância entre o dolo direto de primeiro grau e o de
segundo grau, diferença esta que supostamente repousaria sobre essa unpostação
subjetiva do agente.s.as
Por "propósito", Vives Antón entende a finalidade subjetiva que tem o po-
tmrial de se cristalizar como "intenção", ou seja, que pode repercutir ou não na
direção da ação. 846 Ele cria, como se pode notar, distinções e formulações muito
peculiares e próprias. Como a distinção entre "intenção" subjetiva (um "pro-
pósito" concretamente incorporado na ação) e "intencionalidade" objetiva (o
significado atribuído em razão das regras), a qual, em si, recorre à distinção entre
"intenção", "desejo" e "propósito".
Con ello queda delimitado el papel de la i11lenció11 .mlyetiva que tanto se
asemeja ai propósito: pues, aunque no todo propósito se transforma, sin
más, en intención, cuando alguien inicia un curso de acción, tiene, subje-
tivamente, - ai menos por regia general - la intención de hacer lo que se
há propuesto. A menudo hablamos de si hay o no intención para deslindar
1143
"Sin embargo, hay ocasiones en que las proprias regias comportan referencias a la actitud que
quepa atribuir ai sujeto: son los •derechos de la intención' que encuentran, en c:l seno dc:l siste-
ma penal un amplio reconocimiento". Ibidem, p. 223.
1144
Ibidem, p. 224.
1145
"En Derecho Penal, la existcncia o inexistencia de deseo fundamentaria una diferencia - que,
por cierto, no es generalmente admiúda - entre dolo directo de primer grado )' dolo dirccto de
segundo grado; pero, aún si se admite, esa es una diferencia fOllf,Pl11al que, en Derecho penal
continental, carece de cualquier repcrcusión sustantiva sobre la responsabilidnd. Es, pues, la
intención - no el deseo - lo que determina la atribución de responsabilidad 'prima facic"'.
Ibidem, p. 228.
iw,, "Esa finalidad pucdc no plasmarsc cn la intención, esto es, no dar lugar a ningún curso de ac-
ción dirigido ai resultado (recuérdcse que la finalidad, según Habermas, no era relevante cn el
plano definitorio, pero si en cl causal, pese a lo que muchos propósitos se pierden cn el vado) o
situarse más aliá de la intención - cuando v.g. se roba parn haccr obras de caridad -; pero, tam-
bién puede confundirse con clla cn los casos en que el 'seguir la regia' que constituye la acción
de que se trate implica el propósito de seguiria - como v.g., gencralmente, cn cl prometer o cn
cl mentir-". Ibidem, p. 228.

260
el problema s11sta116vo de la atribución de responsabilidad y, cuando lo ha-
ccmos, el problema concep1t1t1I (el de determinar si estamos ante una acción
y, en su caso, ante qué acción estamos) há sido ya resuelto en el plano dei
signiticado (i11te11do11alidade objetiva) en virtude de la aplicación de las perti-
nentes regias sociales.847
Em segundo lugar, trata de estabelecer a diferença entre "voluntariedade" e
"intenção". Estabelece suas discordâncias de Gilbert Ryle, que formula sua concep-
ção baseado grandemente no uso comum do termo "voluntário", e de John Austin,
que tenta ir além do uso comum do termo. Ele afirma uma concepção própria, a
qual trata a voluntariedade como um pressuposto geral das ações e da responsa-
bilização. A "voluntariedade,, seria o caractere diferenciador entre ações e simples
eventos, podendo também ser caracterizada como "atribuibilidade subjetiva".848
Enquanto, de um lado, a "voluntariedade,, se baseia nos movimentos cor-
porais, se apoia no movimento como algo externo a si, a "intenção" diz respeito
ao sentido da ação, estabelecendo uma relação interna com a ação, que se expres-
sa na forma de um "compromisso" de realizar a ação (sem o qual não se poderia
atribuir "intenção" ao sujeito).1149
Diz Vives Antón que o critério do "compromisso" serve para a substituição
dos "inverificáveis processos mentais". Como se o esforço por estabelecer um vín-
culo lógico (fundado em um dever-ser) entre "intenção" e ação (o denominado
comprorrússo) fosse algo mais inspecionável, especialmente quando se tem em
mente que a outra face dessa "intenção" verificável é a voluntariedade da ação,
a qual, por mais que se deseje flexibilizar, não pode deixar de ser um processo
mental. Um compromisso fundado sobre as (não explícitas e frequentemente não
explicitáveis) regras que regem a atribuição de significado a uma ação e as relações
entre o autor e seu ato deveria, então, possuir uma explícita verificabilidade, a qual
não se revela de forma clara, mesmo com uma análise mais pormenorizada.851>

IM" Ibidem, p. 229.


IMII "Nuestrn convicción de que h:iy movimicntos voluntarios y ottos que no lo son nos caracteriza
- a nosotros mismos y a los dem:ís - como seres que actú:m, que reruizan acciones humanas.
Al fin y ai cabo, los movimientos corpomlcs - rcspccto de los que se predica la ,·olumaricd:td
- son lo único que h:tcemos 6· esto significa: no que constituran nucstras acciones, nique sem
nuestras 'acciones básicas'; sino que representan todo :iquello de lo que podemos v.tlernos
para actuar). De modo que,~ calific:u :tlgunos de cllos como volunt.1rios, estamos abriendo la
posibilidad de enjuiciar como acción d cornportunicnto resultante, mientr:is que ai hablar de
otros como involuntarios cermrnos, sirnplcmentc, esa posibiLidad.". Ibidem, p. 231.
IM'# Ibidem, p. 232.
11.5'• "Ese compromiso no es sino el trnsunto de la rebción que une la intcnción a su objeto (b ::acción)
con 'la durc7.a del dcber ser lógico'. De este modo, L'l intcnción, inasequible como pmceso psicoló-
gico, se muestra en una doble dimensión norrn:ttiv:i. En primer término, en las regbs que b idenú-
ficm y la hacen posible y cognoscible; y, cn segundo lugar, cn b rebción entre el autor)' b acción:
a través dcl significado de sus :ictos, de bs cornpetencias que c1be :itribuirlc y dei cntr.un1do de los

261
É da concepção de que não se pode tratar a "intenção" como categoria
descritiva de processos psicológicos que Vives Antón retira sua conclusão de que
o dolo deve ser tratado de forma diferente no Direito Penal.851 Ele questiona tanto
as teorias unitárias (como as que relacionam o elemento volitivo a uma decisão
contrária ao bem juádico) quanto as pluralistas (as quais reconhecem diversos
tipos de dolo) porque não seria possível achar u1na base co1num entre os elemen-
tos volitivos das diversas formas de dolo. Recorrer-se ao elemento intelectual
como critério distintivo do dolo, como segunda opção, também lhe parece insu-
ficiente na medida em que esse tern10 possui uma ampla ga1na de sentidos; e sua
formulação (como articulação dos elementos representação, previsão e cálculo)
tampouco lhe parece satisfatória para dar conta de alguns casos limites. 852

est::idos intencionales que se plasm:m en su vida, imputamos - o no - una determinada intenáón


:li autor''. ANTÓN, Tomás S. Vhi:s. Op. Cit. p. 233; "E neste senódo, parn determinar se existiu
esse compromisso de execut::ir wna determinada figura dditiva teci que t:Xaminar antes de tudo as
n=gr:is (sociais e jurídicas) que ddinem :i a~o como uma ação típica e rdacion:i-las com a bagagem
de conheámentos ou a competência do autor (ou seja, as técnicas que este dominava), de tal modo
que seja possívd afirmar que o autor sabia que estava levando a cnbo a decisão contrária ao bem
jurídico". PÉREZ, Carlos M:irónez-Buj:ín. Op. Cit. p. 50-1 e 60-1.
sst "Por no habt:rlo entt:ndido así, la doctrina penal se ha mo\'ido, a1 tratar de la intención (dd dolo),
entre lo que pudi«!r:imos denominar errvro mlt'}!.orif1ler. d más rt:ciente, :il qut: ya se ha :iludido en
reiteradas ocasiones, es el que consiste en atribuir a la intención subjetiva un papd ro11rrplua/,
ddinitorio de la acción - sin reparar en que la dt:tt:rminación de la intención entra a menudo en
juego desp111J de qut: la :icción se h:illt: definida y sirve a1 intert:s substnnóvo de enjuicfarla -; d m:ís
antibruo, que se perpetúa de sistema en sistema, consiste t:n considerar al dolo como un pro«10
p1irolúgiro, como ro11ori111imlo y/o t'Olrmtntl'. ANTÓN, Tomás S. Vi\'eS. Op. Cit. p. 233.
m "No sé como podrfamos saber si en cl :Ílumo dd autor han ocurrido todas esas cosas. Puede
que: a lo diga y decidamos creerlt: (r, aun t:n ese caso, subsistt: la diferencia entre creer y sabt:r);
pero, puede (r es más probable) que lo niegue; que diga, por ejemplo: no me lo representé rú
por un momento, no calcule!, no lo esperaba de ningún_modo, tenfa la seguridad de que no
ocurrirfa. Pensemos t:n d que juega a la rult:ta rus:i: t-tl vez, emocionado por d juego y seguro
de su sut:rte, ni pensó en la posibilidad de que d resultado se produjera; pero c:nt:garfamos, por
eUo, su responsabilid:id?". Ibidem, p. 236. Apesar de parte dt: sua crítica st:r pertinente, parece
que Vives Antón se :ipoia sobre :i indeterminação semântic:i de algumas palavras para realizar
uma refutação teórica, o que, para aquilo que de se propõe:, não e: todo correto. Dificilmente:
se poderia dizt:r, por exemplo, que um sujdto que pratiqut: roleta russa não rt:presemou a
possibilidade do resultado em razão da emoção que o próprio jogo causou, se: n emoção do
jogo de roleta russa se apoia jusumente na possibilidade de um resultado nefasto. É wna in-
congrui:ncia lógica qut: só st:rve para desautorizar a concepção corrente que se tem do dolo
quando se força os sentidos cotidi:inos dos termos colhidos para explicar as relações mentais
(como pt:nsar, saber, qut:rer, representar, prever, etc.) até o limite, para que des digam o que
se deseja quedes digam. O que é sempn: possh-d j:í que, ah:m de aplicaçÕt:s "cit:ntíficas", dc:s
t:imbt:m possuem enorme aplicação cotidiana (de: senso-comum), e as duas fn:qut:ntemcnte se
entrecruzam.

262
Restaria apenas a opção de se recorrer ao critério do conpromi.uo, caracteri-
zada da seguinte forma:
Para determinar si ha habido un compromiso (una intención) concreta,
v.g., el de matar a outro, habcmos de examinar las regias de toda índole
(sociales e jurídicas) que definen su acción como una acción de matar y
ponerlas en relaciém con las competencias del autor - con las técnicas que
domina -. De este modo, y no a través de la indagación de inasequibles
y poco significativos procesos mentales, podremos determinar lo que el
autor sabía. Pues 'la gramática de la palavra saber está evidentemente em-
parentada de cerca con la gramática de las palabras poder, ser rapaz.. Pero
también está entrcchamente emparentada con la de la palabra tnlmdtr('do-
minar' una técnica)'. 853
Completa-se assim a total circularidade do pensamento de Vives Antón:
a "intenção" não é um elemento subjetivo que se possa inspecionar no sujeito,
mas na ação. Por isso, não é uma substância, mas um sentido (que se percebe na
ação); porque, ao contrário do indivíduo (sobre quem se poderia alegar haver
uma faceta subjetiva analisável), o fenômeno da ação (ou da omissão), como
objeto de análise, não possui uma faceta subjetiva própria, mas é no má.~mo a
manifestação mesma de uma subjetividade. Por isso a necessidade de se abando-
nar a ideia de substância e substituí-la pela de sentido. Essa mudança teórica im-
plica o abandono da "intenção" como elemento subjetivo e sua substituição por
critérios normativos, expressos na ideia de compromisso. Em outras palavras, a
ação é um sentido que se atribui, o qual se apoia em um co1J,pro111isso, que, por sua
vez, se expressa por meio da própria ação - constata-se porque há ação. Trata-
-se de uma formulação teórica tautológica expressa por circunlóquios. A ação (e
seus "elementos") se fundamenta na constatação da própria ação, ou melhor, na
percepção de que há ação.
Livrando-se da ideia de represe11tação como um dos critérios distintivos do
dolo, Vives Antón se apoia em elementos que apontem o grau de contradição
entre a ação e a determinação contida na norma para poder determinar o dolo.
Apesar disso, para a correta apreensão do dolo eventual, por exemplo, ele pro-
põe a incorporação das antigas fórmulas de Reinhard Frank, nada de novo (e
ISJ Ibidem, p. 237. Ou ainda: "Lo que el autor 111bt no es, pues, lo que se há representado, lo que há
cakula<lo, lo que há previsto: para conoccr si esos procesos han ocurrido en su mente habria-
mos <le tcner un acceso a clla <ld que no disponemos. Sólo p<><lcmos analizar manifcst:icioncs
externas; pero, a tr.n-és de esas manifcstaciones externas podemos averiguar d b:igaje de conoci-
mientos dei autor Qas técnicas que dominaba, lo que podia y lo que no podia prever o calcular)
y entender, así, aJ menos parcialmente, sus intenciones expresadas cn la acción. Parcialmente,
pucs, lo que cl autor sabt, asi determinado, se une ai fJ""" que t:ambién se cxpresa em la acción.
(...) Entonccs 'cl querer, si 110 u ,ma tspicit dtl dumr, debe ser ti arfHar nti.11110'. FJ querer reside cn la
acción. En cl]a se expresa un ro111pron1iso de actuar- una intención -". Ibidem, p. 237.

263
que outras teorias também não tenham incorporado) - talvez a única diferença
seja sua expressa exigência de que seja deduzida da simples ação e não da análise
do indivíduo a constatação de que haveria uma decisão de agir 1nes1no diante da
produção do resultado.8s.
Não obstante, com o intuito de delimitar ainda mais as fórmulas de Frank,
Vives Antón propõe também que, para se ter mais clareza sobre a decisão hipo-
tética que teria sido tomada, recorra-se ainda à ideia de co111petência (como domínio
de urna técnica). Assim, o sujeito que conhece as regras que regem aquilo que
se propôs fazer (seja jogar um jogo de azar, dirigir, etc.) possui um compro1ne-
timento com as regras em questão e, portanto, as possibilidades daí decorrentes
fariam parte de sua "intenção,, (como a possibilidade de perder, de atropelar al-
!,ruém, etc.).855 No entanto, não nos parece ser outra a conclusão do autor se não
a de que, constatada determinada ação (regida por regras sociais ou jurídicas), por
ela ser regida por regras, incorpora-se a priori (pelo critério de comprometimento
com as regras) o dolo. Algo como uma presunção relativa do dolo. Isso parece
indicar, inclusive, uma tendência de supercondução ao dolo eventual.856
Surpreendentemente, diante da constatação de que o critério da co11,petê11cia
(do1nínio de mna técnica) não é suficiente para dar contornos de co1npletude à
sua teoria, Vives Antón remete a um vago critério nomu1tivo a fim de colmatar even-
tuais problemas. Portanto, a distinção entre dolo e culpa (mais especificamente
dolo eventual e culpa consciente) resolve-se em última análise por uma (arbitrá-
ria) valoração, fundada no lado público da conduta.857

ª>' ANTÓN, Tomás S. Vin:s. Op. Cit. p. 239. Emborn tal análise seja aparentemente mais afoita
:a um Direito Penal do fato (e não do autor) t:, por isso, deva sc:r loU\·ada, dificilmente se pode
imaginar como seria possívd n:cort.:ir um momc:nto específico no qual se subtraia a análise
sobre: o que: o agente pensa - sobrando pouco mais que sc:us movimc:ntos fisicos -, e concluir
d:ú a afirmação que: a condut:1 tc:ria sido idc:ntic:i ou cliferc:nte c:m situaçõc:s hipotéticas. Espe-
culmc:nte porque:, quando se: diz que a conduta teria sido idc=ntic:i ou não, na \'erdade se diz que
a decisão (do sujeito) teria sido idf:ntica ou não.
ISS Ibidc:m, p. 240.
156
"Todo dolo - y toda culpa - pasan, en certo modo, a situarse 'i11 rr ipsd,,. Ibidem, p. 247.
as, "Pues d compromiso, en que la intención consiste, comporta un componente 11on11ntivo, que: en
d c:iso dei mt!dico (que: dirige r:ípido para atender um paciente em estado gra,·e e acaba causan-
do um acidentei, desde luc:go, 110 concurre. Por consiJ.,ruiente, la distinción entre dolo eventual
y culpa, reside, en última inst:mcia, en una vnlornrió11, que sitúa los casos difíciles en una u otr:i
categoria, conforme a una pr:íctica que: ha de atender a sus características públicas,,. Ibidem,
p. 241 . Ou: "Acabamos de ver como la fiJ.,,ura dd proceso interno há sembr:ido la confusión
conceptual sobre d dolo y como, des,·am:cido ese fantasma, situados ante las competencias dd
autor r las carnctt:rísticas públicas de su acción - no frente a rcprcsentaciones, creenci:1s o ,·o-
liciom:s acaecidas en algún opaco lugar de su mente - comen:laban a desaparecer las brumas".
Ibidem, p. 252-3.

264
As formulações apresentadas pelo professor da universidade de Valencia le-
vam, como ele mesmo expõe, a uma profunda normatização da conduta,"58 sejam
comissivas, 01nissivas, dolosas ou culposas. A omissão depende da perspectiva
normativa adotada, e a normatização do dolo (cuja referência é a previamente
estabelecida normatização da culpa, tendo por referência a culpa inconsciente)
restabelece a sünetria conceituai entre dolo e culpa.859
O dolo passa a ser entendido como compromisso com a ação antinorma-
tiva, e a culpa passa a ser entendida como uma a11sência dupla de compromisso -
compromisso com o resultado típico e compromisso (exigido normativa1nente)
com a evitação da lesão.ll60 As ações se objetivariam como as palavras, as quais
possuem um significado objetivo que independe da ''intenção" do agente.861 As
palavras são wn bmn exemplo porque permitem uma interpretação contrária,
pois, se seu significado já está posto objetivamente, o homem colhe esse signifi-
cado como referência quando reproduz essas palavras para que possa alcançar a
comunicação que deseja (o fim almejado), limitando, assim, as possíveis atribui-
ções de significado sobre aquilo que enunciou, de acordo com os significados
que já tinham sido atribuídos.

11
sa "A dogmática não é, pois, uma cit:ncia, mas somt:ntt: uma forma dt: argumc::ntar t:m torno de::
alguns tópicos (um conjunto ordt:nado dt: tópicos), que:: c::m nosso caso vc:m rc::prc::st:ntados por
uma ação t: por uma norma jurídica e pdo processo t:m virtude:: do qual podt:mos julgar aqudt:
dt:sdt: t:sta t: desde os valores que a norma jurídica tr.tnsmitt:". PÉREZ, Carlos Martinez-Buj:ín.
Op. Cit. p. 15.
859
ANTÓN, Tomás S. Vives. Op. Cit. p. 244; "Observe-se; pois, qut: no ~1ut: se rt:fore ao debatido
problema da constat.1ção dos dt:mt:ntos subjetivos do ddito, VIVES adota uma decidida postura
::i favor da 'normativização', sobre a b:ise de uma reorient:içào do subjt:tivo ancorada nas prt:mis-
sas de sua conct:pçào da :ição (...)". PÉREZ, Carlos .Martínt:z-Buján. Op. Cit. p. 37-8.
11611
"El tema de la imprudencia no es - no put:dt: st:r, como no puedc: sc:r d dd dolo - d dt: si hubo
o no representación (...); sino, m:is bit:n, d de dt:tt:rminar b gr:in:dad dt: la infracción dd dt:ber
de cuidado comt:tida por d :iutor, para lo que result:ir:í decisivo dt:termin:ir sus competi:ncias
teóricas y pr:icticas y sus capacidadt:s de autoclirección y autocontrol". ANTÓN, Tomás S. Vi-
ves. Op. Cit. p. 244. Como se: dc:terminar sua capacidade dt: autoclireç:io com o intuito de evitar
um resultado não dt:sejado sem se apdar para a idda dt: uma conduta dirigida conforme: uma
finalidade t: ainda um enigma, ou um:i forma de se obscurt:ct:r um problema teórico. Torn:i-se
um pouco prt:ocupantt: também que a culpa st:ja definida pela gr:l\·idade de: violação dt: um
dever de ctúdado. "Por conseguintt: (...), do qut: antt:ct:dt: niio se dt:prt:t:ndt: que a identificação
da imprudt':nda não pode reconduzir-st: (...) à idda dt: st: houvt: ou não urna reprt:sent:içào na
mt:nte do autor(...), 11111.r ao dado da 1,rnvid,,de da i,,fmriio do drrrr de midado ro111dida pr:lo 1111/or (...)".
PÉREZ, Carlos Martinez-Buj:in. Op. Cit. p. 52. Grifo nosso.
161
ANTÓN, Tom:is S. Vives. Op. Cit. p. 245.

265
10.2.2 - Considerações finais

É acertada a ideia professada por Vives Antón de que o mero recurso ao


processo mental é, em si, insuficiente. No entanto, ele acaba por não repelir
completamente os processos mentais - apesar de suas amplas e significativas
ressalvas filosóficas -, os quais apenas possuem uma necessária referência em
critérios "externos".862 !\Ias dificihnente seria possível se deparar com uma teoria
republicana que propugnasse qualquer coisa muito diferente disso, já que vige
um Direito Penal do fato e, por isso, é a conduta que deve servir de porta de
acesso ao aspecto subjetivo do delito. Caso contrário, restaria apenas a defesa de
uma análise da psique do indivíduo aos moldes de um injustificável positivismo
criminológico.
De acordo com a concepção exposta, os chamados elementos subjetivos
deveriam ser entendidos como componentes do sentido que se atribui e, só por
isso, componentes da ação. 863 Vives Antón constrói, então, toda a sua teoria do
delito sobre sua concepção de tipo de ação - a qual se opõe às ideias de Leitbild,
Tatbesta11d e tipo de ação correntes.
Neste ponto, as considerações sobre a ação recebem a necessária comple-
mentação. O tipo de ação oferece a base para se construir a teoria do delito,
mas incorpora somente os elementos mínimos necessários e, por isso, não inclui
necessariamente os elementos subjetivos. Assim, fica mais fácil contornar os pro-
blemas causados pelos delitos culposos.
Contudo, como se poderia prever, tensionada ao limite, a teoria de Vives
Antón manifesta aporias aparentemente insolúveis quando se depara com a ques-
tão do erro no Direito Penal. E a forma como ele encontra para lidar com isso é
um retorno sub-reptício à ideia expressamente refutada dos elementos subjetivos
como processos mentais. O elemento subjetivo não é fruto de uma faceta subje-
tiva da ação, mas da atribuição de uma "intenção" à ação, por sua determinação
pelo tipo. ()ra, o que é isso se não uma solução de compromisso? Não há
qualquer razão para se atribuir alguma coisa a algo se esta coisa não pertence a
ele. A "resposta significativa" a essa indagação é que assim se faz por respeito às
"regras", mas com isso se pode justificar a atribuição de qualquer coisa.
Cabría, no obstante, objetar que, sin el recurso ai estado mental, no po-
drfamos distinguir la mentira (en la cual el sujeto conoce la convención
hnbitual, pero usa otra) dei error, la ignornncia o la confusión (en los que
el sujeto quiere usar la convención habitual, pero no acierta a hacerlo). Sin
embargo, lo cierto es que el recurso a un estado mental que es, de suyo,
inaccesible, no puede ayudarnos en absoluto a llevar a cabo esa distinción.
-------
162
Ibidem, p. 252.
161
Ibidem, p. 261 e ss.

266
De modo que, para efcctuarla, habremos de acudir a los 'criterios exter-
nos' mediante los que usualmente determinamos si se conoce cl sentido
de las palabras, esto es, ai uso y a la conducta.864

Assim, não é que não se recorre a processos mentais, mas que eles não es-
tão mais no sujeito a partir do momento em que a ação é realizada e só caberia
analisá-los em sua manifestação exterior. 865 Complementarmente, por fundarmo-
-nos em um Direito Penal do fato, não caberia perquirir o sujeito (ex post facto)
pelo elemento subjetivo, mas a ação mesma (o que para muitos autores implica,
coerentemente, indagar - hipoteticamente - o sujeito no momento de realização
da ação, quando indivíduo e ação são um só866). Ora, como já se indicou anterior-
mente, tais conclusões não são (e não precisam ser) exclusividades de uma teoria
significativa da ação.
Essa normatização da ação aponta para uma diluição do papel do indiví-
duo. Pois, o que é a conduta para o Direito Penal se não uma manifestação do
indivíduo? Se ela não puder ser assim considerada - o que implica que ele tenha
algum controle prévio sobre as suas possíveis consequências (dentre elas os pos-
síveis significados atribuídos) - deixa de ser ação e passa a ser um evento. Se o
sujeito não pode ter controle prévio (o que implica uma representação subjetiva)
das possíveis consequências de sua conduta, mas apenas está vulnerável a uma
irrestrita atribuição de significado, como justificar uma responsabilização?1167 Em
outras palavras, correr-se-ia o risco de que o legislador tenha irrestrita liberda-
de de esboçar tipos,868 os quais criam (irrestritamente) as próprias condutas que

86-1 Ibidem, p. 275.


116s "(...) os aludidos demt!lltos subjetivos da ação (que são rstados eprrxwos 111mtais) não podem ser equi-
parados aos estados e processos fisicos, d:ido qut; ao tratar-se de estados e processos que se acham
situados na mente de outrn pessoa, unicamente se poderão ,·erificar por obst:n-ação suas manifes-
tações externas. Daí que tais dt:memos subjeth-os de,-:un ser configurados e entendidos não como
processos internos semdhantes aos fisicos, mas como momentos da :içào, ou sej:t, como compo-
nentes dt: um sentido exteriorizado". PÉREZ, Carlos Martínez-Buján. Op. Cit. p. 37.
w Mas a ação estabelece os limites claros sobre o que se pode deduzir do indivíduo por aspecto
subjetivo.
167
Vives Antón tangencia essa consideração: "Frente a este úJtimo ponto de vista, VIVES parte
da premissa de que a liberdade não f fundamento da culpabilidade, mas pressuposto da ação
mesma, ou seja, da imagem do mundo desde a perspectiva d:i :ição. (...) Assim, com·fm ressalt:ir
que, segundo este enfoque, a alternativa pan:ce clara: ou se concebe o mundo desde a liberdade
(entendida desde a ação, como capacidade de autodeterminar-se por razões) ou não se pode
conceber em absoluto". PÉREZ, Carlos M:irtínez-Buján. Op. Cit. p. 24.
11611
"A respt:ito disso, convém reiterar que, uma vez que se descartou a idda de situar a ação na
base do sistema, o d:ido primário aparece representado por pertencer a um ápo de ação, que
determina a sua vez a 'aparência de ação', no sentido de que represent:t o ponto de partida para
fix:tr a maioria dos c:isos, se efetivamente estamos ou não ante um:1 ação da cbsse de que se
trate ou ainda se podemos ou não falar de uma :ição. É :i primdr:t c:itegori:i b:ísic:i do sistema,

267
buscam "valorar" (valoração que, para o autor, vai desde atribuir "intenções" até
uma concepção de ação penalmente relevante).1169
Com esse risco lançando wna sombra sobre sua teoria, Vives Antón pro-
cura dissipar preocupações afirmando laconicamente que existem costumes e
usos estáveis que tornam rígidos os sentidos das regras - e, consequentemente,
das ações -, os quais não só não estão abertos a interpretação, como servem de
referência para as interpretações (as quais, do contrário, segundo o próprio au-
tor, ficariam em suspensão).1170 Assim, a segurança de todo seu sistema depende
dessas regras sociais fixas que serve1n de ponto de apoio para as atribuições de
significado, as quais, de outra forma, poderiam ser exercidas irrestritamente.
Espera-se apenas que tais regras sejam claras e possuam tal poder de con-
vencimento que possam agregar todos os julgadores e le6risladores ao seu redor,
pois, conforme se percebe do próprio Wittgenstein, não há regra sobre a qual se
pode determinar uma metarregra que diga respeito à correta aplicação daquela -
o que aparentemente Vives Antón tenta realizar sob outra no1nenclatura (outro
"nomen juris"): ao invés de metarregras (ou regra da regra), uma regra-base (que
estabelece os critérios para a correta atribuição de sentido).
Os problemas que se buscou explicitar aqui adquire1n ditnensões preocu-
pantes quando se recorda que sob os componentes de uma teoria do delito jaz
a articulação entre o princípio norteador (para todo o sistema) da justiça (a qual
contém os princípios de utilidade e eficácia871) e a atribuição de uma f1111ção 1110-
livadora à pena (que nada mais é do que uma variação da função de prevenção

que está chamaJa a cumprir o papel conceituai (mctoJológico) Je delimitar o objeto ao qual
hão <le referir-se as valorações substantivas que toJa norma penal pressupõe". Ibi<lcm, p. 31-2.
86
"' "Procede rcconJar que se há rechazado totalmente cl esquema de Bcling: c1 tipo <le acción no
cs uma figura sobre cl que se proyecten la cjecución y e1 querer, sino un mo<lclo <lc la acción
misma, que contiene sus rasgos csencialcs. Y no hay ninguna clase de extrnvío en que los rasgos
esenciales <le la acción Qos que <leterminan que sea, precisamente, csa acción y no otra) puc-
<lan ser utilizados primero para definiria y <lcspués para valoraria,,. ANTÓN, Tomás S. Vh·cs.
Op. Cit. p. 275-6; "Sin embargo, <le una parte los tipos de acción se incorporan a la ley penal
precisamente en base a csa lcsi\·iJa<lc y, <lc otra, el potencial lesivo <le los actos rcaliza<los juega
un papel d,ji11iton·o, esto es, <letermina se cabe entender los actos realizados como acciones pe-
nalmente relevantes: así, ,·.g., e/ peligro inirrilo en e/ <0111po11t1111imto t1/ q11e JÍf,llt 1111 rnultado dt nmtrft
dettn111i1cmí (...) JÍ podm101 derir qur h,í hi1bido 1111t1 acrión de 111t1ft1I'. lbi<lem, p. 279. Grifo nosso;
"Em segundo lugar, a antes cita<la pretensão <le relevância (Jo tipo de ação] <leve ser concebida
como uma pretensão <le ofcnsivi<la<le, que comporta acrc<litar que a ação <lo sujeito reveste o
caráter perigoso ou danoso que induziu o legisla<lor a sancioná-lo com penas criminais". PÉ-
REZ, Carlos ~fartínez-Buján. Op. Cit. p. 34 e ss.
m ANTÓN, Tomás S. Vives. Op. Cit. p. 278.
871
PÉREZ, Carlos Martinez-Buján. Op. Cit. p. 74.

268
geral ncgativa). 1172 A combinação entre a ideia abstrata de justiça com uma função
motivadora da pena pode ter consequências nefastas sobre a teoria do delito. Em
decorrência disso, um outro problema de coerência interna em Vives Antón, vale
a pena mencionar, é a dificuldade em se imaginar como a ameaça de sanção penal
pode ter um caráter dissuasório (ou "motivador'') se não há um processo mental
interno1173 ao sujeito sobre o qual influir.
Por fim, ou as regras servem de objetos de referência para uma autode-
terminação da conduta - aos moldes de um refinamento do finalismo que dê
lugar à acomodação das justas contribuições da Filosofia da Lin!,'1.lagem - ou as
condutas são plenamente determinadas por uma interpretação de acordo com
essas regras - situação na qual restam esvaziados maiores fundamentos para a
responsabilização penal.

10.3 - A teoria intersocial de George Fletcher

George Fletcher também faz a opção por urna concepção comunicativa de ação.
As considerações sobre a ação humana são derivadas já de suas concepções sobre
a pena e seus fundamentos, os quais implicam uma determinada relação sujeito-
-objeto. Ivluitas das concepções clássicas de sujeito partem, em sua definição, da
distinção sujeito-objeto: o sujeito é quem atua, o objeto é sobre o que se atua
(FLETCHER, 1997, 2008). Isso pode, em tese, ser visto tanto nas ideias kantia-
nas (o ser humano como um fim em si mesmo e não como meio, ou seja, como
sujeito e não objeto) como nas limitações de alguns sistemas penais à criminali-
zação de ações, a qual implicaria o reconhecimento da condição de sujeito ao ser
humano.874
Fletcher (2008) realiza, todavia, uma crítica dessa concepção da relação su-
jeito-objeto porque se funda1nentaria, em última análise, nas relações de Direito
Civil (entre pessoa e coisa). Acaba não concordando com a cisão do mundo entre
pessoas e coisas. Os animais, por exemplo, não são simples autômatos. É em
meio a esse esforço de se traçar os caracteres distintivos do ser humano que mui-
tos assinalam a importância da ação, com destacada centralidade para a vontade.
Consequentemente, poder-se-ia flertar com a ideia (1) de que a ação é com-
posta també1n por movünento corporal, 1nas também essa ideia se dissipa quan-

1172 Ibidem ,p. 15-6, 25-6. Um pouco do potencial ddet~rio t! arrefecido por de trazer à pauta
considerações de justiça distributiva, sob a nomenclatura de princípios garantist:is.
173 "(...) denunciando os 'erros categoriais' em que, a seu juízo, vcio incorrendo a doutrina majo-

ritária. Desses erros corresponde analisar agora o referente à confib'Urnção do dolo como um
processo psicológico». Ibidem, p. 49-50.
174 MASCARENHAS JUNIOR, \V:uter Amaud. Ensaio crítico sobre a ação. Porto Alegre: Núria
Fabris Ed., 2009. p. 56.

269
do vem à tona as discussões sobre a omissão; ou (2) de que a ação é composta
pelo binômio movimento-vontade, o qual também é rapidamente dispensado
por ele em razão de sua suposta inde1nonstrabilidade (a vontade não se "vê",
mas apenas se extrai da ação já realizada, ao nos debruçarmos sobre ela com o
intuito de explicá-la), bem como pela dificuldade para tratar também dos crimes
omissivos.87s
Há quem recorra à ideia de liberdade como caractere identificador do ser
humano. Aquilo que o distinguiria de um autômato. Do conflito entre teorias
indeterministas e deterministas, surge, na obra de Fletcher, uma clara inclinação
pela recusa do determinismo; especialmente porque ele demonstra uma clara
afeição pela tese de Chomsky (e suas consequências) do potencial infinito da
linguagem, derivado não apenas das inferências sintáticas, 1nas semânticas e de
vocabulário.876 Não é, então, a noção de vontade que dá a devida dimensão da
ação humana em toda a sua riqueza - dando conta da questão da liberdade, da
criatividade e de seus aspectos normativos - tnas a noção de lin&>uagem.877
Partindo da premissa de que a linguagem é o elemento distintivo da pessoa,
para Fletcher as "profundas" raízes da liberdade na fala reforçam sua contun-
dência co1no elemento para se co1npreender a responsabilidade. Ele lembra a
gênesis bíblica e a relação de nomeação de Adão com as demais criaturas, e o
mesmo se poderia dizer do incidente do pecado original, bem como do incidente
envolvendo Caim e Abel. 878 Nesse sentido confi6ruram-se ideias que conformam
a responsabilidade (e seus elementos) como um ato de resposta ao delito.

175
FLETCHER, George P. Co11crpl<Js ba.riros dr drrttbo pmal. Valencia: tirnnt lo blanch, 1997. p. 78-9.
176
"Incluso aunque el uso dd linguaje fuera determinado por algoritmos en e1 cérebro, y cad:i vez
que c:scucháramos un conjunto de palabras o recibiéramos ciertos c:stímulos, respondiéramos con
ciertas palabras, no es claro que entendiéramos lo que estuvil!ramos diciendo. El famoso 'ejemplo
de la habitación china' de JOHN SEARLE puede ilustrar lo que se acaba de decir''. FLETCHER,
George P. Gm,ntitirtt dr/ drrrrho pr11al 1ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2008. p. 370.
rn "La noción de habla y de significado comunicativo dd habla nos ofrece, pues, una toma adecu-
ada de la teoria de la acción. Aunque estamos inclinados a tomar en serio la posibilidad de que
un robot pueda comportarse como un ser humano movendo su cuerpo, y, portanto, podemos
im:11,>inar que estamos también programados para actuar en la forma en que lo hacemos, es m:ís
difícil imaginar un computador que escriba adecuadamente poesfa, cuente chistes, invente nue-
vas palabras y comprenda nuevas formas dt: comunicación. Si combinamos, pues, d habla con
otras formas de acción, podemos estar seguros de que estamos en d :ímbito de una variación
infinita r de respuestas no programadas". FLETCHER, George P. Gm111tilicn... p. 371.
171
"Despuc:s de que Ad:ín y Eva hubieran comido la fruta prohibida, Dios les pidió qm: dieran
cuenta. Queria una explicación y una respuesta (...). Independientementc de que tuvieran o no
mejores aq,,umentos a su disposición, el punto decisivo es que d primer acto de desobediencia
c:n d mito de la cultura de Occidentt: dcsencadena una conversación. (...) L.1 misma interacción
se repite de forma ilustrativa después de que Caín matara Abel". lbidt:m, p. 372.

270
A ideia de comunicação apresentada pela linguagem apresentaria a possibi-
lidade de uma abordagem humanista do conceito de ação. Isso se manifestaria,
por exemplo, na expectativa ao redor de quem cometeu o delito de que ele possa
explicar por que o fez, e que ele supostamente possa co111preender a punição não
apenas como uma indesejável infüção de dor, mas como um "ato de justiça".879
Não se trata, deve-se ressaltar, de qualquer forma de comunicação:
Pero para excluir mcdios más primitivos de comunicación, como por
ejemplo los chillidos e de las ballenas, tcnemos que matizar esta tesis y
anadir que se trata de un linguaje con sintaxis complicada y marcado por
las convenciones de culturas particulares. Estos son los caracteres dei lcn-
guaje humano (no dei animal). Independiencemcme de las diferencias gra-
macicalcs o de si existe o no una gramática universal, el len~uajc humano
cs ensciiado y aprendido en comunidades autosuficiences.88

A apropriação da Filosofia da Linguagem realizada por Fletcher remete a


William Dilthey e à distinção realizada por ele entre compreensão e explicação.
Consequentemente, como afirma o próprio autor, o ponto de partida precisa ser
necessariamente a maneira como os observadores compreendem o movimento
ou a inércia, se como ação ou não - afastando-se da referência à "intenção". 881
Diz o autor que as ações, assim como as palavras, não têm um significado abs-
tratamente considerado, mas apenas dentro do contexto da interação humana. 882
Não obstante, o juízo que se faz mediante essa mirada superficial pode ser
revisado quando as pessoas são confrontadas por novas informações. Há quem,
por outro lado, rechace tal modelo co11pree11sivo, optando por uma perspectiva
explicativa, o que significa em última análise o desvelamento de um liame causal.883
179
Ibidem, p. 373.
11110 Ibidem, p. 373.
881
Não foi possível suprimir os termos "intenção" e "intencionalid:ide", mesmo sabendo que,
para boa parte da doutrina, a intmção sinaliza um demento subjetivo especi:tl (SOUZA e JA-
PIASSÚ, 2012). Sobre isso, ver nota de rodapé nu 810.
182
"La clave para una aproximación humanista nu es l:i t>..pliració11 de la acción como producto de
las fuerzas caus:tles, sino la co11,pm11ió11 de cómo los seres hum:inos actú:m cuando efectivamen-
te lo hacen. Esta difcrenciaciún procede de la Filosofia a.leman:i de principios dcl siglo XX y
concretamente dcl filósofo alemin Dilthey que distinguió entre t'tnlthm (comprender) y trkliirtn
(explicar). La ideia es que la conducta humana- como algo opuesto a los fenómenos naturales
- sólo puede ser cumprendida y no explicada en términos cienúficos". FLETCHER, George
P. Co11,epto1... p. 90-1 ; FLETCHER, George P. Gran,átira... p. 373 e ss; .MASCAREJ."\JHAS JU-
NIOR, Walter Arnaud. Op. Cit. p. 53-9.
881
"Para él (Michael Moore], la única explicación es si la acción es una clase de fenómeno que
ticnde en sí mismo a una explicacion causal. El esfuerzo por imponer una explicación donde
no es pertinente puedc generar grandes distorciones. No entendemos un lengu:ije const:itando
como las voca.les producen un sonido o como la ,·oluntad de decir :tlgo nos permite dccirlo.
Este modelo explicativo ignora lo principal o termina siendo tautológico". FLETCHER, Ge-
orge P. Gra111âtica... p. 375.

271
No entanto, Fletcher (2008) deixa clara sua posição, quando afirma que frequen-
temente sequer se precisa interpelar o propósito ou o significado do ato, mas
apenas o contexto mesmo:
Cada vez que cruzamos la calle juzgamos implicitamente que los con-
ductores p:iracin para dejarnos pasar. Si uno de ellos siguc su marcha o
no frena, sentimos cl peligro inmcdiatamcnte. l..o mismo podemos dccir
cu:indo tenemos un cont:icto corporal con alguien. Podemos intuir si cse
cont:icto físico con una pcrsona es un saludo amistoso, un acto sexual o
884
un ataque.

Não se pode deixar passar sem maiores comentários que o fato de um


carro não parar para nos deixar passar tem implicações concretas e não apenas
''comunicativas". O acesso ao mundo se dá em grande parte (ou, diriam alguns
filósofos, em sua totalidade) pela linguagem, mas, mesmo que se quisesse, nesse
caso (como um exemplo limite), atribuir um significado distinto daquele do de
uma colisão automóvel-pedestre, a realidade mesmo assim se imporia. É claro
que, em muitos dos exemplos trazidos à baila, o cerne da própria conduta é pro-
duzir um significado - como no caso da injúria-, e quanto a isso não se discute
a importância do aporte de uma Filosofia da Linguagem. No entanto, sempre
haverá, por mais residual que seja, a necessidade de se respeitar os limites da rea-
lidade - mesmo nos casos de injúria é preciso que haja uma manifestação externa
verbal, escrita, etc. (caso contrário a ofensa permanece apenas na esfera interna).
Além disso, cabe lembrar que a análise do contexto ou mesmo da ação
pode dar ensejo a conclusões comunicativamente ambíguas885 - nesse caso, uma
das soluções possíveis seria interrogar o aspecto subjetivo da ação (a qual, reco-
nhecida a difícil verificabilidade, poderia ser constatada por uma confissão, por
exemplo886). Afirma Fletcher (2008) que as aparências às vezes enganam e podem
nos levar ao erro: uma conduta que parecia dclituosa pode não ser, e uma con-
duta que em um primeiro momento não era delituosa pode se apresentar como

~ Ibidem, p. 375-6.
aas Como reconhece o próprio autor: "Sin embargo, existen limites en los que la simplc observaci-
ón no nos dijo lo que necesitamos saber. (...) Esta situación es una de esas en las que d aspecto
comunicativo de las palabr:is como de la conducta permanece ambíguo". FLETCHER, Geor-
ge P. Gmn11itica... p. 376; "En estos casos alternativos, la aparencia de la acción cs deceptoria.
EI 'movimiento corporal' es más parecido a un frnómeno natural que a una \'erdaddra acdón
humana".FLETCHER, George P. Concrptos... p. 87.
116
Não se defende aqui a idda, já ultrapassada, de confissão como rainha das provas. Propõe-se
:ipenas que ela possa ser um bom indício d:iquilo que se passa\'a na mente do sujeito no mo-
mento do ato - muito embora, mesmo isso possa ser relativizado, caso se parta do princípio de
que o sujeito estava mentindo, por quaisquer razões.

272
sendo. Por isso é preciso, segundo ele, buscar a melhor forma de circunscrever as
possibilidades de definição da esfera do ilicito.887
Em meio ao esforço de se delinear os elementos centrais para a responsabi-
lidade penal, há quem aponte a voluntariedade da ação. Isso, todavia, suscita toda
uma discussão sobre a perspectiva hegeliana da ação, para a qual somente os impu-
táveis realizariam ações. Voluntariedade e culpabilidade tendem, sob esse ponto de
vista, a confundirem-se. Apesar de se poder traçar essa imbricação até datas remo-
tas - como a distinção aristotélica entre hekounos e ako11Iios, a qual dizia respeito à
distinção entre ações voluntárias e involuntárias, mas com conteúdos distintos dos
atuais - ou mesmo a datas próximas - como o fato de alguns ordenamentos jurídi-
cos qualificarem o honúcídio culposo como homicídio involuntário -, Fletcher não
despega da ideia de que a ação não precisa ser voluntária para existir.888
A ideia de ação voluntária, então, é trasladada para o conceito de 111e11s rea
da co111mon /a,P, o qual conta com o seu devido complemento no conceito de ac/11.r
re11s. A apresentação desses dois conceitos não deve ofuscar a equivocidade de
ambos 889• Quando se apresenta as diversas possibilidades de análise do par con-
ceitual acf11s reuse mens rea surge a necessidade de refletir se, com eles, impõe-se a
necessidade de perquirir sobre o estado mental do sujeito e até que ponto. Nesse
ponto, a adesão teórica de Fletcher - de forma análoga a Vives Antón - a uma
teoria comunicativa da ação se dá também por urna rejeição da tradição cartesia-
na do dualismo filosófico, da cisão entre mente e corpo.890
Para Fletcher, há um constante flerte das teorias da ação com a culpabilida-
de, o que apontaria para uma tendência de antecipar elementos da culpabilidade
na teoria da ação. O erro de Welzel e seus se,guidores teria sido, por exemplo,
confundir a "intenção" ínsita à ação com a "intenção" ínsita ao delito, em outras
palavras, atirar voluntariamente e acertar alguém não é o mesmo que atirar para
acertar alguém. O finalismo, argumenta Fletcher, promove necessariamente um
giro subjetivista no Direito Penal.891
187
FLETCHER, George P. Gm111ótira... p. 377.
1111
Ibidt::m, p. 380-1.
189
"El par dt:: conct::ptos arha rms y mr,u rra puede reforirst:: a cu:tlquiera dt:: las siguientt:s combina-
ciont:s: 1. Acción en gem:ral m:ís d n:querido estado menu! (dt:scriptivo); 2. Acción en gem:ral
m:ís d juicio de culp:ibilidad (normath'o); 3. Acto específico requerido para d ddito m:ís esudo
mental (descriptivo); 4. Acto específico requerido para el delito m:ís juicio de culpabilidad (nor-
mativo)". Ibidem, p. 382.
89
" Ibidem, p. 382-3.
891
Assim, os elementos subjetivos confundem-se crescentemente com a fundamentação da n:s-
ponsabilidade penal, propiciando uma exp:msão subjetivista: "Hay otro problema en la 'teoria
final' de la acción que no podemos ignorar. Uno dt: los errores m:ís seductores que se comett:n
em todo el Derecho pen:il es identificar demasiado fácilmente los estados mentales subjeti,·os,
particularmente la intención, con d aspecto mor:il de la responsabilidad penal". Ibidem, p. 384.

273
Parece haver, por trás das formulações de Fletcher, a nobre intenção de
propugnar por um afastamento de correntes subjetivistas no Direito Penal. Esse
esforço louvável, todavia, parece confundir perspectivas subjetivistas sobre a res-
ponsabilidade penal com o reconhecimento de aspectos subjetivos na conduta.8n
No primeiro caso, a impostação subjetiva é o paradigma por meio do qual se in-
terpreta a conduta delituosa, ou seja, trata-se do delito de tal forma que o aspecto
objetivo acaba se modelando de acordo com o aspecto subjetivo. A exemplifica-
ção desse caso são as teorias cuja referência central jaz no modelo da tentativa
(conforme o qual há quem defenda a punição da tentativa inidônea).893
No segundo caso, há também claras referências a limites objetivos, mas eles
não se apresentam sozinhos (objetivo e subjetivo juntos) ou, apresentando o ar-
gumento de forma mais sofisticada, poder-se-ia dizer que é possível reconhecer a
ação como uma manifestação objetiva permeada por um aspecto subjetivo, mas
que as possibilidades de manifestação desse aspecto subjetivo são delimitadas
pela própria objetividade.
Não obstante, trata-se de uma justa preocupação porque (1) a subjetiva-
ção do Direito Penal (e consequente expansão do poder punitivo) nos países de
Common Law se deu aparente1nente a partir do crescente foco no aspecto sub-
jetivo do crime em detrimento dos elementos objetivos;894 e (2) particularmente,
a extrapolação feita para o finalismo também é justa, em princípio, porque o pró-
prio Welzel moldou sua teoria de tal forma que ela orbitava ao redor do desvalor
da conduta, justificando inclusive a punição da tentativa inidônea. O problema
"'2 ..The critical question that unites them [the two <loctrincs of attempt] is thc clcmcntary issuc
whcther the act of attcmpting is a distinct and <liscernible demcnt of the crime of attempting.
To say that the act is a disónct clement is to require that the act conform to objective critcria
<lenne<l in a<lvance. The act must C\'Í<lence attributcs subject to <letermination in<lependcntly
of the actor's intcnt. ( ...)Though thc term "objcctive" may havc a <lifferent connotation in
some contcxts, wc shaU use the tcrm to mean a legal standard for assessing conduct that does
not prcsuppose a prior detcrminaóon of the actor's intenr'. FLETCHER, George P_- Rrlhink-
inJ!. Criminal Liw. Ncw York: Oxford Uni\'ersity Prcss, 2000. p. 138. •
IYJ "This mcans that objectiYists tend to <lraw the linc of liability as dose as possible to conswn-
marion of thc offensc and tend, furthcr, to be sympathcric to claims of impossibility as a bar to
liability (...). Subjcctivists, in contrast, te·nd to push back thc thrcshold of attempting an<l reject
the rclcv:incc of impossibility- a stancc that }iclJs a maximalist nct of liability". Ibi<lcm, p. t 39.
4
"' "From thc outset thcrc was a strong inclination to think of attcmpts by analogy to the cmcrg-
ing theory of subjective criminality in Jarccny. The intcnt to commit thc offcnse-in-chief would
bc the core of the offense, an<l thc function of thc act of partia) exccution wouJd bc to <lcmon-
strate thc firmness of the actor's resolve and perhaps to prm·i<lc cvi<lcnce of his intcnt. Even
thc opinion in Srojirld contains the commcnt: 'Thc inlml may makc an act, innocent in itsclf,
criminal...'(...).Thc emphasis on the actor's intcnt as thc core of thc offcnsc stands in conflict
with the cmphasis on objcctivc criteria as a con<lition for Jiability. Thcse tcnsions have bccn
playe<l out, as we shall scc, in two intcrrclatcd <loctrinal disputes". Ibi<lcm, p. 135.

274
dessa extrapolação é que a formulação de Welzel particular a este tópico não
pode ser estendida a todos os teóricos adeptos do finalismo, em outras palavras,
não tem um vínculo de necessidade com o núcleo duro do finalismo (com o qual
teria uma força inelutável de aderência à própria teoria, como se deu a enten-
der). Mais recentemente, deve-se sublinhar, tomou-se um tanto mais claro que
a postura finalista não implica necessariamente a adoção do modelo welzeliano
do desvalor da ação como pedra anguJar da valoração da conduta; quando, pelo
contrário, recepcionar o aporte mais recente que se pôde trazer ao finalismo deve
implicar um profundo compromisso (materialista) com a realidade - que, em
termos hegelianos, poderia ser expresso como reconcilia;ão com a realidade.
Por tudo isso, Fletcher busca se afastar daquilo que entende serem pontos
de vista subjetivistas, o que o leva a tentar identificar os caracteres diferenciado-
res da ação que possam dispensar a análise de qualquer aspecto subjetivo: ''To
say that the act is a distinct element is to require that the act conform to objective
criteria defined in advance. The act must evidence attributes subject to determi-
nation independently of the actor's intent''. É por essa razão que tanto Fletcher
como Vives Antón comungam de um critério comum para traçar o âmbito das
condutas de fonna independente da esfera subjetiva: a ideia de con,pro111isso por
trás da realização da conduta.895
A crítica a uma concepção mais objetivist'l da conduta (que na doutrina
continental seria representada pela teoria causalista da ação) ajuda a esclarecer
melhor a chamada teoria comunicativa. Já se mencionou brevemente que Fle-
tcher identifica as teorias objetivistas como posturas minimalistas e as subjeti-
vistas como posturas maximalistas, em especial quando se analisa o instituto da
tentativa, pelo potencial expansivo de poder punitivo que cada wna teria. Uma
análise minimalista implicaria, de forma problemática, analisar apenas as mani-
festações físicas da ação (apertar o gatilho, tensionar os músculos etc.). Enquanto
a teoria comunicativa levaria em conta inúmeros elementos relevantes, os quais
minimalistamente seriam deixados de lado:
Pero una teoria de la acción concontextualizada obscurece los limites entre
conducta, resultado y circunstancias. La presencia de la ,ríctima, el que se
dispare a la víctima, las expectativas de que la bala alcance a la víctima, o cl
que ésta no lleve un chaleco antibalas, son factores que forman parte de la
conducta que nos permite ver el hecho de disparar como una acción y un
evento potencialmente delictivo. Una teoria contextualizada, comunicati-

avs "Thc opposing school is appropriately c:illc<l 'subjcctivis~• foril diJpnms D'ilb 1hr objuti,., mima
of atfrmpli11g. The act of cxecution is import:mt so far as it vcrifics the firmness of the intent.
No act of spccific contours is ncccssary to constitute thc attcmpt,for any act will sufficc to
<lcmonstrate thc actor's ron1n1ih11rnl to carry out h.is criminal planº. Ibidem, p. 138. Grifo nosso.

275
va, de la acción plantea, pues, un verdadero reto ai criterio de que tencmos
que delimitar la conducta dei resultado y de sus circunstancias.896

Uma das consequências da adoção de tal postura comunicativa é que re-


solveria um grande dilema de Fletcher (2000; 2008): o de ter de se fundamentar
teoricamente o desvalor do resultado e fugir dos problemas da teoria causal, mas
sem recair em um subjetivismo. A resposta dele, como se vê, é tentar ofuscar as
fronteiras entre conduta e resultado. Ele incorpora ao próprio conceito de ação
não só os elementos contextuais, mas também algumas consequências.897 Ressus-
cita uma discussão há muito tida como superada para o Direito Penal continental
- o pertencirnento do resultado ao conceito de ação ou não.
Com a adoção dessa teoria comunicativa, resolver-se-iam as aporias aparentes
quando se trata dos crimes omissivos.898 Adicionalmente, para afastar qualquer pro-
blema de fundamentação dos crimes omissivos ou culposos, nega-se a necessidade,
nesse quadro teórico, de se resolver o velho dilema radbruchiano (unificação entre
A e não-A), minimizando-se a importância de uma definição de ação e apontando
que ação e omissão sequer estão conectadas entre si.899 Fletcher consegue, portan-
to, erigir uma teoria na qual ele consegue recortar de acordo com seu interesse as
partes mais relevantes de diversas teorias do delito - muitas incompatíveis entre
si - para encaixá-las em secções diversas do sistema de justiça.

10.4 -A concepção significativa de Paulo César Busato

Paulo César Busato fundamenta sua opção por uma concepção significativa do
delito em vários pontos, alguns dos quais se buscará explicitar aqui. Em primeiro
lugar, representa a opção de uma renovação da base teórico-filosófica da ação no

196
FLETCHER, George P. Gramáhºcn... p. 386.
m "Si nuestr:1 comprensión de la acción se contextualiza adecuadamente, tenemos que empez:ir 3
pensar en las consecuencias y en las circunstancias como parte de la acción. Ello puede que no
sci correcto en rdación con las consecuencias remotas y con todas las circunstancias circun-
dantes, pero puede sedo en rdación con los elementos circundantes que nos permiten percibir
que la :icción está ocurriendo". Ibidem, p. 387.
"ª "Lo que s~ omitir prestar ayud:i depende, por tantom de foctores contextuales que con\'ierten
la prestación de ayuda en algo esperado y normal". FLETCHER, George P. Co11rrptos... p. 80-1.
199
"Adem:ís, si entendemos la omisión como un problema de acción 'negativa' o como lo con-
tr:írio a b acción, damos demasiada impotancia a la definición dt: acción. El error consiste en
assumir que ambas están conceptualmente conectadas". Ibidem, p. 81; "Tht:re is no re:ason
to accept the premise that only one theory of wrongdoing accounts for the entire criminal
law. The personal theory may be tht: only acceptable explanation of wrongdoing in cases of
impossible attempts, but it does not follow that the sarne thcory carries O\'t:r to the analysis
of homicide.Thc objecti\'t: theory is plausible in homicide, but it obviously cannot account for
criml's in the pattern of subjccávc criminality". FLETCHER, George P. R,:thi11ki11g... p. 481.

'2.16
Direito Penal, que se apoia, então, sobre a interpretação (e não mais a manifesta-
ção física, a finalidade ou qualquer outra coisa).900
Ele ressalta também a necessidade de se atualizar a prôpria concepção de
sociedade que informa o sistema de justiça e a teoria do delito, pois já se teria pas-
sado de uma sociedade fundada em lutas de classes para uma sociedade fundada
no co1u111110 e na co11111nicação.901 Essa "nova" concepção de sociedade é fundamen-
tada tanto pela leitura de Zygmunt Bauman quanto de Habermas, mas não só.902
Como os demais autores dessa nova leva de teorias fundamentadas em Filosofia
da Linguage1n, sua concepção filosófica geral, outrossim, recorre a Wittgenstein
- em especial no "segundo" Wittgenstein.903 A ideia de jogos de linguagem, a
título de exemplo, remeteria à necessidade de se recorrer ao contexto (ou circuns-
tâncias do caso) para se compreender o discurso jurídico (assim co1no qualquer
outro), e para se identificar a ação.904
É a partir dessa moldura teórica que Busato incorpora a necessidade de as
normas sere1n legítimas, ou seja, que passem por um processo de problematização
e justificação. As normas são assim entendidas como expressão de comunicação
direcionada a determinado grupo. Isso se reflete na teoria do delito em um
afastainento de concepções ontológ1cas, com a consequente aproximação
das concepções normativas - muito embora, deve-se dizer, ele desaprove
explicitamente exageros normativistas corno o de Jakobs.905

91" BUSATO, Paulo Ct!sar. Dirrito pt11nl t nçào .rigpijirnlim. Rio de: Janeiro: Lumt:n Juris, 2010. p. 143-8.
901 "Desse modo, o papd dt: crítica à viol~ncia do controle soci.-tl da violt:ncia sc:guc: pertt:ncc:ndo
à Criminologia, mas da deve dar-se conta de que o mundo já ultrapassou a etapa marxista da
divisão t:nm: capital e trnbalho e das cfasses cfüididas entre industriais e trabalhadores, passando
para o mundo da exct:di:ncia, qut: divide as pt:ssoas basicamente t:ntn: os que consomem e os que
não consomem. A di11n111ica do ro111111110 i a di11á111irn do nn1bolo, da rrprrsr11l,1(ào, dn 1-'t:l«idadr r foridrz.
º"
das rrlnçoc'.1, qm po11ro 11ndn '"" n 11rr rom n rrlnçiio rsl,frrl r n.-ploratúrin do trabalho. A exploração se dá
por outro marco, o marco da inclusão/exclusão pdo conswno". BUSATO, Paulo Cc:sar. Dirrito
Pmnf. parte geral. São Paulo: Atlas, 2013. p. 249. Grifo nosso; "Uma vez reconhc:cida a inAut:nci.'l
político-criminal na dogmática, resta a busca de um moddo que corresponda à estrutur.1 política
de um Estado social e democrático de Direito, e as soluções de corte marxista e inclusive, em al-
J,'l.llllas construções abolicionistas, parecem não gozar de wn suporte consequente e nem mesmo
ajustndo à realidade social presente". BUSATO, Paulo Ct:sar. Dirrito pmnl r nrão... p. 161-2.
91 1.? BUSATO, Paulo Ctsar. Dirri/() pt11nl r ,,rno... p. 143 e ss, 166 e ss. Em espt:cial: "{Habermasl reco-
nhece que atrnvc:s do movimt:nto corporal o agt:nte muda algo no mundo, mas entende possh-d
'distinguir os movimt:ntos com que um sujeito intervt:m no mundo (atua instrwm:nt.'llmente)
dos movimentos com que um sujeito c:ncama um sihrnificado (se: t:Xpressa comunicati,·amt:nte)"'.
Ibidem, p. 153. Pode-se ,·er que a concepção si1-,rnificariva da ação incorpora o equívoco habc:rma-
si:tno de e(.1uivalt:r a concepção tdeológica da ação a uma concepção instrumt:ntal.
90l BUSATO, Paulo Ct!sar. Dirrito prnnf. parte gt:ral... p. 249-52.
904 lhidt:m, p. 188-9.
90S BUSATO, Paulo Ct!sar. Dirrito prnaf. parte geral... p. 249-50.

277
Paulo César Busato pretende estabelecer teoricamente uma relação total-
mente horizontalizada entre as pulsões ônticas e normativas do sistema de res-
ponsabilidade penal906. Nesse ponto, lembra consideravehnente a proposta de
J. Tavares. Ele crê, assim, que consegue construir uma verdadeira solução de
compromisso. Especialmente porque vê uma longa linhagem do Direito com
acento linguístico desde a Antiguidade. Socorre-se de Frijtof Haft para afirmar
que, desde a época clássica, o jurista é o homem que traz ordem ao mundo por
meios linguísticos.907
A existência do Direito, então, depende do processo ar!,rumentativo de va-
lidação envolto na sua própria aplicação. Não existiria, segundo ele, uma corre-
ção a priori do Direito, mas apenas quando confrontado com o caso concreto.
Somente o consenso em relação à dimensão de sentido da nonna resulta em sua
validação (a po.rlerion). Esse seria o caso do art.49 da Lei 9605/98, que não encon-
trou acolhida prática no sistema de justiça.
Essas considerações naturalmente levantam preocupações sobre a esvazia-
da possibilidade de crítica normativa que permite.908 A validação normativa se dá
a partir do consenso construído ao redor da norma: se ela foi acolhida, bom, se
não, segue-se adiante. Isso abre a possibilidade de que diversas nonnas pennane-
çam oferecendo um perigo latente ao sistema jurídico, esperando apenas a hora
de serem revalidadas. E, considerando a natureza volúvel dos desenvolvimentos
conjunturais envolvendo questões de Política Criminal, trata-se de um perigo que
paira constantemente sobre as resistências democráticas ao sistema penal.

906
"É óbvio que não é possívd desprezar o componente ontológico completamente, porque este
interfere de modo necess:írio no próprio sentido de aplicabilidade da norma, bem assim, é
igualmente ób\'io que esse condicionamento é também bilateral, posto que a norma interfere
no sentido da realidade. Não h:í, em verdade, uma subordinação, que os dois pontos de vistas
prett!nderam, do ontológico ao axiológico ou ,•ice-versa". BUSATO, Paulo César. Dirrilo prnaf.
parte geral ... p. 250; BUSATO, Paulo César. Dimlo pmal, nrno... p. 151 e ss.
9177
BUSATO, Paulo César. Dirrilo prnaf. parte geral... p. 251 .
9111
''A razio [do não acolhimento do art.49) é elementar. Não há nmlm11111 posribilidnde de ro11unso
p1111itivo-pmm1lório em face da conduta representada pela norma em quest:io, derivando daí a
completa ausência de dimensão de sentido da fiJ,,urn de um crime. Ou seja, não é que o fato
descrito pelo tipo não ocorra, é que simplesmente não tem sentido de rde,·ância social". BU-
SATO, Paulo César. Dirrilo pmaf. p:irte geral... p. 251-2. Grifo nosso. Parece ing~nua, contudo,
a posição adotada por Busato. Se a histórui mostra algo, é que o exercício de poder puniti\'O
conta com uma indeterminada capacidade de arregimentar apoio, especialmente quando é ins-
trumentalizado para controle da população ou articulado (como vem acontecendo ao longo
dos séculos XX e ~'CI) com os grandes meios de comunicação. São recorrt:ntes, apenas a título
dt: c:xemplo, as narrath-as dt: criminalização de furto famélico, não reconhecimento do princí-
pio da bagatela, dentre outras tanas práticas. O sistema juádico não representa consenso, mas
contr:idição.

278
Paulo César Busato comunga da opinião de que a ação estaria passando por
um processo de desgaste ou esgotamento por sua proximidade da perspectiva
ontológica, razão pela qual propc1e sua mitigação normativa. Mais do que isso,
a crise do Direito Penal seria na verdade uma crise do Direito Penal de modelo
ilustrado o qual seria um reflexo da crise do modelo liberal de Estado capitalista.
Assim, a teoria significativa seria a resposta necessária à crise na dog1nática da
mesma forma como, em sentido mais amplo, o Estado capitalista de corte so-
cial seria a resposta para a crise do modelo liberal.909 Ele, então, manifesta uma
ampla adesão às formulaçc1es de Vives Antón, corroborando da construção de
um sistema penal pensado a partir da ação como jogos de linguagem e das nor-
mas como um processo de discurso pragmático da linguagem, consensualmente
orientado.910
Chega, inclusive, a repetir a mesma fórmula do doutrinador espanhol sobre
a ação não ser o substrato de um sentido, mas o sentido de um substrato, sem,
assitn como o doutrinador espanhol, problematizar de forma mais detida co1no
é possível delimitar a atribuição desse sentido sem cair na completa discriciona-
riedade, na eleição de critérios regida ao sabor da política criminal da vez. A ação
parece se dissolver aos poucos em critérios normativos de imputação.911 Não
obstante, essa recuperação conceituai das proposições de Vives Antón que mais
se impregnaram sobre as atuais concepções doutrinais tem a função didática de
lembrar suas raízes neokantianas, na Filosofia dos Valores.
Afirma Busato:
Isto é, um conceito de ação baseado no significado não se estrutura a
partir da perspectiva subjetiva de uma impressão que se tem da realidade,
nem mesmo de um ponto de vista objetivo, do objeto observado, mas
ma111é111 como J11b1tmlo a co1111111icaçào q11e proziim da relação 11yt'ito-ol!}elo, quer dizer,

909
BUSATO, Paulo Cc:sar. Dirrito pmnl r arào... p. 163 t: ss. "Não se: trnta de: tent:ir inserir um no,·o
moddo de Esudo, mas dt: rc:visar as propostas do próprio moddo iluminista". lbidc:m, p. 166.
Aqui se: ,·e:: uma clarn inff ui:ncia de Habc:rmas.
910
BUSATO, Paulo César. Dirrito pmnf. parte: geral... p. 252-3; BUSATO, Paulo César. Dirrito pr11al
e a;ào... p. 145 t: ss.
911
"Por outro lado, o sentido de t:lis ações é clitado por rc:gras que: as regem. Tais regras, porém,
são reconhecidas como tais na mc:dida t:m qut: tenham seu uso estabdecido, pois só assim
podem determinar o sentido de uma conduta. Ou seja, o reconhecimento da ação deri\'a da
expressão de sentido que uma ação possui. A exprc:ssão de sc:ntido, contudo, não deri,·a das
intenções que os sujdtos que: atuam prc:tc:ndam c:xpn:ssar, mas do 'significado que socialmente
se atribua ao que: fazem'. Assim, não é o ft111 mas o significado que: determina a classe: das ações,
logo, não é algo em tc:rmos ontoló1-,ricos, mas normativos". BUSATO, Paulo César. Dirrito prnai.
parte geral... p. 253-4. Ver cb: BUSATO, Paulo César. Dirrilo peJJa! t ar,io... p. 148 e ss.

279
da mmst1_vp11 qlft ro11111111rt1 a t1llft1fàO do sr!}úto ao relado11ar-se co111 as drc1111stJ11das
ºº 1Jlrl0.9'í?-
J •

1\1uito embora essa não seja a única concepção possível de comunicação


a partir das condutas dos sujeitos, em princípio permanecem válidas, aqui, as
críticas gerais realizadas no tópico sobre Habermas e \Vittgenstein. Ainda assim,
cabe lembrar que a "mensagem" que comunica a atuação do sujeito e sua relação
com o meio (caracterizada também como relação sujeito-objeto) pode sofrer
profundas distorções a partir das relações estabelecidas com outros sujeitos e
instituições (imediatas ou mediatas). Mesmo que as apropriações de dogmática
penal esforcem-se para transmitir uma aparência de ampla assepsia e neutralidade
(refletida no conceito amplo e manipulável de "justiça"913). Esse é um passivo que
as teorias comunicativas dificilmente conseguem quitar, pois, como se pretendeu
mostrar, está engastado no âmago da teoria.
Antes de se passar ao próximo tópico, cabe destacar certa confusão realiza-
da por Busato. Ele confunde naturalização do delito (ou o que se poderia chamar
em sentido lato de concepção ontológica do fenômeno do delito e do "crimino-
so") com a concepção teleológica da conduta. Esta diz respeito à ação que pode
ou não ser considerada delituosa, e se isso vai acontecer depende da política
criminal e dos esforços legiferantes. Já uma concepção biologizante do binômio
crime-criminoso remete ao que há de pior no pensamento criminológico (em
especial Lombroso, Garofalo e Ferri).9 14 Portanto, reconhecer que uma conduta
humana é uma realidade no mundo não é o mesmo que reconhecer que o crime
é uma realidade objetiva no mundo.
912
BUSATO, Paulo Ct:sar. Direi/o pmnf. parte geral... p. 276. Grifo nosso; "A comunicação t: 0
resuludo da inter-rdaçào entre o sujeito e o objeto que produz uma perct:pçào. A pt:rcepção
não é algo que possa ser traduzido em uma realidade ou concretizado em algo qut: •e, nt:m
tampouco se traduz meramente uma ,·aloração. A percepção é tão-somente um sentido". BU-
SATO, Paulo César. Dirrilo pmal, nrão... p. 148.
m Afinal, quem em sã consciincia fundament:iria qualqut:r sistt:ma jurídico sobre a "injustiça"?
Isso se refft:te na função de proteção de bc::ns jurídicos do Direito Penal como fundamento
da intervenção c::st:ital. É essa relação entre justiça e proteção de bens jurídicos que, segundo
Busato, torna seu sistema mais sehruro e vinculado a garantias que os demais. Sobre a rdaçào
entre justiça e proteçiio de:: bens jurídicos, cf. BUSATO, Paulo César. Dirrilo pmal r nrão... p. 174.
914
"Nc::sse sentido, a rc::for~ncia de Vives Antón de que 'o delito não t: um objeto real, e, por con-
seguinte, à estrutura do sistema não corresponde: m:nhuma t:struturn objetiva. E a dogmática
não é nenhuma classe de Cii:ncia, mas somente um modo de argumentar'. É importante per-
ceber que este reconhecimento - de que não h:í nenhuma rtalidmle no delito - é exatamente
o que restou afirmado pelos estudos de criminologia crítica ou radical. Ou st:ja, o fenômeno
crime não é um dado ontológico, mas sim uma valoração social. Como tal, não corresponde a
estrutura objetiva algurn:i. Certamente o conhecimento dos processos de criminalização obriga
:io distanciamento dos condicionantes ontológicos que aspirava \Vdzd". BUSATO, Paulo
Ct:sar. Dir,ilo pmal, nrão... p. 174.

280
10.4.1 - Ação, intenção e significado') 15

Outra crítica esboçada ao finalismo diz respeito à impossibilidade de dar


conta de mna conceituação da conduta porque nem todas seriam "intencionais".916
A "intenção", assim, parece ficar relegada à mera validação das regras sociais
que atribuem o significado à ação, pois a "intenção" só comparece diante da
necessidade de se afirmar que o sebru.imento de regras é "intencional". Lembra,
de certa maneira, o expediente lógico usado pelo causalismo para justificar sua
teoria: o que antes era um movimento corporal permeado por uma vontade sem
finalidade (uma vontade vazia de conteúdo, como muitos criticaram), agora é um
sigruficado informado por uma intenção que se limita à anuição das regras, sem a
possibilidade de fazer com que o sujeito possa dispor de si mesmo para modelar
a consequência que deseja - caso contrário, teria de se reconhecer um papel cen-
tral à finalidade e limitar-se-ia muito a capacidade de sigrúficação.917
A "intenção", em vista disso, passa a ser considerada como uma expressão
de sentido normativamente determinada, qualificada nos delitos dolosos como
um co111promisso com a produção do resultado típico, assim como em Vives Antón
(1996) e em Fletcher (2000).
Deve-se salientar como em ocasiões, tratando, por exemplo, da ausência
de ação por hipótese de inconsciência, há recaídas não significativas. Como o
recurso ao termo "nível de controle sobre a expressão de sentido",918 o qual
parece indicar justamente o contrário do que tanto Busato quanto Vives Antón
se esforçam por defender, ou seja, que o sujeito pode controlar sua ação e, por
meio dela, controlar em determinados limites a impressão que ela faz no mundo
objetivo e o significado daí decorrente.
Ademais, a opção pela aproximação de uma concepção normativa do dolo
mostra precisamente o quão próxima a concepção significativa está da neokantis-
ta. 919 Ambas se fundam, de forma mais ou menos abrangente, sobre a distinção

91s Não foi possívd suprinúr os termos "intenção" e "intencionalidade". Sobre isso ,·er nota nº 810.
96
1 Em seu extenso li\'ro sobre a parte geral do Dircito Penal, esse é um dos a~>umentos que se
apresenta como aparentemente o mais forte. Diz de, por exemplo, que nem todos que falam
urn:i ofensa têm a "intenção" de ofender (BUSATO, 2013, p. 255). Entret:into, tal afirmação
parece ignorar que :i pesso:1 que fala algo possui algum grau de concepção pré,·ia sobre aquilo
que desejava falar - o lJU:tl pode não ter saído da forma 'dm.1uemt:' como <lesej~wa (a forma
desajt:.itada de sua expressão pode ser em parte n:sponsávd pda forma corno o sujeito foi
compreendido)- e não se trata de sons aleatórios e impredsh-t:is que irrompem de sua boca de
tt:rnpos em tempos, de forma impn:visfrd e incontrol:h·d.
91
' BUSATO, Paulo Cc;s:ir. Dirri/Q pr1wf. parte geral... p. 254-5.
9 111 Ibidem, p. 288.
99
1 Afirma Busato sobre o dolo normativo: "Ou seja, o dolo não é algo que existe, l]Ue seja cons-
tatável, mas sim o resultado de uma avaliação a respeito dos fatos que foz com que se impute

281
entre explicação e compreensão,920 refletindo na aproximação das propostas cen-
trais da Filosofia dos Valores, com uma consequente normatização das principais
categorias dogmáticas. E1n George Fletcher (1997), utn dos grandes defensores
do giro linguístico do Direito Penal, por exemplo, encontra-se a explícita defesa
dà ideia de dolo normativo (a qual ele trata sob a nomenclatura de teoria moral
da responsabilidade penal) e não apenas mna "aproxiinação".921
A aproximação de wn viés normativista se dá, em sentido explícito, por
uma incorporação de algumas das formulações de Hassemer, nomeadamente sua
proposta de uma abordage1n deontológica (ao invés de ontol<'>gica) do dolo pela
estipulação de critérios normativos para a atribuição de responsabilidade dolosa
e sugestão de uma abordagem valorativa dos elementos objetivos do injusto. É
na teoria dos indicadores externos dos ele1nentos subjetivos, de Hassemer, que
Busato já vê uma ligação com a ideia de transmissão de significado.922
Não parece inteiramente correta, todavia, a conclusão de Hassemer (incor-
porada por Busato) de que uma estipulação normativa (diga-se, dogtnática, juris-
prudencial ou legal) dos limites da categoria seja o equivalente à normatização
da categoria - essa estipulação normativa poder-se-ia chamar de reconhecimento
ou deferência normativa aos lünites da realidade, por exemplo. Isso porque foz
todo sentido que, sendo o dolo um "processo interno", só seriam coerentes as
responsabilizações penais na medida em que se pudesse aferir suas manifestações

a responsabilidade penal. (...)Ou seja, se não é possível afirmar mais que a possibilidade de
existência real do dolo, o dolo será sempre, ao menos em parte, produto de uma valoração.
Obviamente, esta perspectiva encontra receptividade nas propostas teóricas que defendem a
separação entre as ciências naturais e as ciências sociais. Na perspectiva h/.rmi""ª de uma ciên-
cia referida a ,ralores, fica sem sentido tentar buscar nas ciências naturais conceitos jurídicos.
Por isso, sustentou Kelsen que raltgorias ,01110 a vo11ladt 011 i111mrào, por pertencere111 ao tipo de i1yi1110
não podem 1er 1on1ada1 romo rralidodu a urem den1011stradas, mas 1i111plm11mle como fatores q11e i11mmbem
aojmz. rrro11huer ron1 o objeh·vo de utabeluer a.r rt1po111abilidadu pmaiJ co"upo11drntd'. B U SATO, Paulo
César. Dow e Ji..~niftcodo. ln: Modernas tendências sobre o dolo em direito penal. Rio de Janeiro:
Lwnen Juris, 2008. p. 105. Grifo nosso.
9lD BUSATO, Paulo César. Direi/o penal e ação... p. 170.
921 Apesar de Busato se desvincular formalmente da concepção de dolo normativo. Cf. BUSATO,

Paulo CésaL Dolo... p. 107 e ss.


9
zz "Em rcswno, Hassemer entende que o dolo é uma 'decisão a favor do injusto', mas entende
também que o dolo é uma instância interna não observável, com o que:, sua atribuição se reduz
à investigação de elementos externos que possam servir de indicadores e justificar sua atribui-
ção. (...) Hassemer atribui, ao combinar os indicadores externos e os critédos (valorativos) de
delimitação do dolo, a identificação deste à possibilidade de sua atribuição(...)". Bl!SATO, Pau-
lo César. Do/Q... p. 108-112. Ou ainda: "Não resta, pois, nenhuma dúvida de que a identificação
do dolo não pode vir da descrição de um processo psicológico, mas somente da identiticaç:io
do que Hassemcr qualifica de 'indicadores externos'. O dolo, definitivamente, não 'é' um fato,
m:as uma atribuição, ou seja, a exata atribuição de wna decisão contrária ao bem jurídico, n:i
qual se expressam simultaneamente conhecimento e vontade.". Ibidem, p. 112-3.

282
externas - excluindo-se normativamente, por exemplo, os esforços por uma in-
vestigação da subjetividade incompatível com o Estado democrático de direito.
O dolo, portanto, pode ser conclusivamente conceituado como uma atribui-
ção para a teoria significativa da conduta.923 Ele passa a ser tido como "intenção"
de realização do fato antijurídico, bem como passa a ser alocado na pretensão de
ilicitude - sobre a qual se falará 1nelhor (infra, item 10.4.3.2), mas, antecipando a
discussão, equivaleria a uma antijurídicidade formal. 924
Entre as distintas formas possíveis de configuração do dolo, Busato (se-
guindo Vives Antón) afirma que o ponto comwn entre elas é a decisão contra o
bem jurídico, a qual se manifesta no compromisso de lesionar ou periclitar esse
bem. A validade dessa ideia de compromisso depende, por outro lado, da relação
entre as regras sociais que definem a ação como pertinente ao Direito Penal e as
competências do autor. A isso, o autor paranaense chama de um procedimento
925
p11r11111e11fe axiológico. Isso não implica, lembre-se, a exclusão total da consciência
926
e da vontade.
Por fim, a própria ideia de sentido utilizada por Busato e por Vives Antón
tem profunda ancoragem nas formulações de Habermas, e com isso traz consigo
todos os problemas típicos dessa posição:
Mas, o sentido de qualquer mensagem dependerá sempre da presença da
identificação da tripla dimensão referida por Habermas, ou seja, a referên-
cia ao mundo subjetivo, ao mundo objetivo e ao mundo social, ou seja,
ao mundo de inter-relação, de regras compartidas. Isso fica demonstrado
claramente quando Vives expõe a proposta de Habermas, referente à ação
comunicativa de um sentido, dizendo que ela 'se constitui, não só cm vir-
9 2.l Em síntese::: "(...) a 'intenção subjetiva' corresponde à atribuição concreta de intc::nçõc::s ao sujei-
to e não ddint:, por si mesma, a ação, mas sim a imputação. Ou st:ja, a identificação da intenção
subjetiva cumpre a tan:fa de:: possibilit:ir a atribuição ao agt:nte de um compromisso com a ação
oft:nsiva re:ililada, mas não foz parte da própria ação, no que n:fc::re à sua definição". lbidc:m,
p. 117-8.
'™ "Quando se separa, de um lado, o dolo e :1 imprudência na pretc:nsiio de ilicitude::, e de outro, os
elementos do tipo e a própria ação na pretensão de rdedncia, fica clara a mescla que as con-
cepções finalistas fizeram entre os planos conceituai e substantivo de análise. (...). A ação - seja
comissão ou omissão - tem seu aspecto conceitua! ou de:: definição analisado no tipo de ação
que é ,onde se lhe identificam critc:rios de sentido. O dolo e a imprudência, por outro lado, são
instâncias de imputação da normatividade, vinculadas ao plano substantivo e não conceitua! da
atribuição da conduta ao sujt:ito". Ibidem, p. 117.
9 zs "Afinal, abandon:i-se compktamente a ideia, errônea, de pretender descrever quando há

dolo e:: se substitui pdo intento de compreensão sobre o nível de gravidade refletido na
contradição entre a ação realizada e a norma, que é, sem qualquer dúvida, a tarefa de adscrição
do dolo". BUSATO, Paulo César. Dolo... p. 120.
926
"Para de [Vives AntónJ o 'dolo como compromisso supõe a necessidade de conhecimento, de
sabrr, mas também um grau de vontade: a intenção que podem entender-se como um querrr,
não narurnlistico, mas normativo". Ibidem, p. 120.

283
tude de planos de ação mais complexos que (o agente) tenha efetivamente
tido, mas também em virtude de inte,prelações que um terceiro faz e .rob tl.f
qlfais (o agente) pode,ia ler realizddo Jlfa açJo'. Essas interprctaçôes são obvia-
mente os elementos que se tem em conta para a atribuição do qualificativo
'doloso' a uma determinada conduta.927

Além de resgatados, com essa proposta, todos os problemas idealistas que


acompanham a teoria habermasiana, fica claro também, em nível dobrmático, que se
trata de um proposta de "imputação objetiva", pois o sistema em questão se propõe
a aferir se uma conduta é au-ibuível ao indivíduo a partir de critérios normativos."28

10.4.2 -Ação, liberdade e significado

Na proposta significativa, o conceito de liberdade representa a superfície


de contato entre teoria da ação e teoria da norma. Reconhecer a existência de
regras, bem como seguir regras, pressuporia uma esfera de liberdade. Paulo César
Busato reconhece (como Vives Antón) que a atribuição de sentido (ação) pres-
supõe uma esfera de liberdade. Mas não qualquer liberdade e, sim, uma liberdade
tida como a ferramenta conceituai a habilitar que se identifique uma ação como
obra de uma pessoa e não do acaso. Em outras palavras, o reconhecimento da
liberdade se torna apenas o mecanismo necessário para se habilüar a imputação
de um delito ao sujeito, pois, acredita Busato (e também Vives Antón), isso não
seria possível a partir de uma postura determinista.929
Como Busato parte do princípio de que a liberdade de ação não pode ser
comprovada e sabe que precisa afirmá-la para tornar possível uma atribuição

9
v lbidt:m, p. 124-5; Nt:sst: st:ntido também: BUSATO, Paulo César. Direito penal e ariio... p. 148 e
ss; Ainda: "Assim é com a intt:ncionalidadt:, qut: não se constitui subjt:tivamente, mas através
de convt:nções, assim como as palavras, ou st:ja, a intt:ncionalidadt: é resultado de um processo
dt: atribuição que corn:sponde :i mt:nsagc::m que a ação do sujeito produz". Ibidem, p. t 25.
921
Ibidem, p. 173.
929
De foto, Busato chehra a dizt:r que o reconht:cimento da libt:rdade inviabiliza a assunção da
perspectiva da criminologia critica se ela reconhece a ação como determinada. Segundo elt:,
o afastamento da conct:pção de liberdade (de Vives Antón) implicaria o reconhecimento de
wn dett:rminismo absoluto sobre as ações humanas e, consequentt:mt:nte, na inviabilização dt:
wn sistema dt: imput:içào pt:ssoal de rt:sponsabilidade penal. O determinismo absoluto, para
Busato, implicaria a nect:ssidade de uma perspectiva anarquista e não só abolicionista. Aqui
parece se manifestar os limites de uma concepção que carece dt: algumas das categorias centrais
fornecidas por uma leitura de Hegel (rel:1ti,·as :i relação indivíduo-socit:dade), assim como t:m
Vi-.·es Antón. Por outro lado, essa é uma forma equivocada de st: vt:r a rdação dett:rminação-
-indt:tt:rminação porque st:quer d:í couta da concepção dt: uma das teorias mais recorrentes
da do1-,rmática, o finalismo, com uma proposta qut: afirma um determinismo, mas dcfendt: a
liberdadt: de ação. BUSATO, Paulo César. Direito pmal. parte geral... p. 256.

284
pessoal de responsabilidade penal,930 a liberdade se torna um a priori necessário
da ação. 931 Assim, de forma um tanto tautológica, se há a ação, há liberdade.
Co1n isso, é possível entender melhor porque sua concepção de liberdade está
estritamente vinculada ao âmbito de validade das regras referentes à atribuição
de sentido de ação. 932 No entanto, a depender <la forma como isso se reflita na
apropriação doutrinária, seria possível dizer-se que não sobra 1nuito espaço para
uma liberdade concreta, mas apenas nominal.
Busato, acrescente-se, contrapõe necessidade e liberdade - como mais um
desdobramento da distinção entre ciências exatas e humanas, e entre explicação
e compreensão - como forma de compreensão da especificidade dos fenômenos
sociais.933 Cria-se, assim, uma dívida considerável com a correta concepção de
que necessidade e liberdade não são ideias excludentes, pelo contrário. Nesse
sentido, apesar dos problemas das formulações de \Velzel, ele se aproxima com-
parativamente mais de uma relação simbiótica entre necessidade e liberdade. O
reconhecimento dessa não exclusão (encontrado em Lulcics) é imperativo por-
930
"Ao contrário, ao reconhecer a ausência de tal libcr<ladc, exaure-se o próprio sentido de ação e não
é possível pretender a aplicação <lc nenhwna classe <le regulamentação juriwca". Ibidem, p. 256-7.
9
Jt Desta forma, a concepção de liberdade que informa as teorias de Busato e Vives Antón servem

apenas como pressuposto dessas teorias, e não a<lquirc um estatuto teórico próprio. Talvez por
isso tanto um quanto o outro enfrentem de forma tão bre,·e o tema. "Resulta que, para Vh·es,
a ideia <le liberdade de ação que, situa<la na culpabilida<lc, provocou um intenso e aporético
debate entre o determinismo e o livre-arbítrio, a nada conduz. Assim, propõe algo completa-
mente distinto: que a liberdade de ação não fundamenta a culpabilidade, mas a ação. A liber-
dade de ação há de ser o pressuposto da imagem de mundo que <lá sentido à própria açãoº.
BUSATO, Paulo César. Direito prnttf. parte geral... p. 256; BUSATO, Paulo César. Direito penal e
ação••• p. 199; ou "Certamente, pode pro<luzir rechace a ideia de que se castiga sobre a base de
uma indemonstrável pressuposição de liber<la<lc <le vontade. Mas, castigar não é uma opção
teórica, mas uma opção prática. 011 se prem,põe q11e o honi,n1 i livrr, e sr lhe c,11hgc1 prlt11 infraçõrs dc1s
nom1a1 qNe livremmlr. con,ele, 011 Jt prusNpõt qNt niio o i, t rnléio é nuusJrio rrromr a uq11en1a1 ca111,iis
(11âo non11,1fivos) para dirigir 111c1 condNfc1. Por insatisfatório que pareça castigar sobre a base de uma
pressuposição, mais insatisfatório resultaria governar a sociedade humana como se se tratasse
de um mecanismo. O homem poderia então ser tr.lt.'l<lo como um puro fenômeno natural. Os
po<lercs <lo Estado sobre o in<liví<luo não tropeçariam com o limite representado pela <ligni-
<ladc humana(...)". COBO DEI.. ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Derrrho
2
Ptnaf. parte general. 5 cd. Valencia: tirant lo blanch, 1999. p. 542-3 ap11dBUSATO, Paulo César.
Dirr.ilo pmaf. parte geral... p. 257. Nota 169.
9
Jz "A ideia de liberdade de ação aqui proposta [nele e cm Vives Antón] se refere à ação enquan-
to expressão de um sentido comunicativo, ou seja, enquanto forma de linguagem, enquanto
forma de transmissão <le um significado. on<le a própria Yali<ladc <las regras utiliza<las cm sua
interpretação determina o contexto <le liberdade". BUSATO. Paulo César. Dirrilo pmaf. parte
geral... p. 256. Nota 167.
93
J ".F-: justamente esta diferença entre o que é uma ação e as coisas que simplesmente acoflll'rm,
que fazem a diferença entre quem é agente - que age, portanto - e <lo que é p:iciente, objeto,
que sofre a ação. Nas palavras <le Carbonell l\[atcu, 'os fenômenos fisicos obc<lecem rcgr.is <lc
nectJJid,,de e as ações, regras <le librrrladl'. BUS ATO, Paulo César. Dirrilo pr,1,11 t ,,ç,10... p. 200.
285
que o mundo social, apesar de diferenciado do mundo natural, pertence Qunta-
mente com o mundo natural) a uma esfera mais abrangente de totalidade (mundo
objetivo, enquanto articulação do social, objetivo-natural e subjetivo).
Essa combinação entre Filosofia da Linguagem, Filosofia dos Valores e
dogmática penal acaba por produzir categorias que entram em contradição entre
si ou apontam para uma contradição irresolúvel entre as categorias mesmas e a
realidade. De forma coerente com as formulações precursoras - como em Vives
Antón e Fletcher -, Busato, por exemplo, caracteriza a liberdade de ação como
um atuar incondicionado pelo meio:
(...) se reprova juridicamente ao autor a realização de um ato ilícito, em
situação em que lhe era exigível que se comportasse de acordo com o
direito, porém, não aqui no sentido do livre-arbítrio, senão no sentido de
que a ação i fimda111mlal111mle a e>-.preuào de 11111 all1ar ti1co11dido11ado pelo 111eio,
pois do contrário não transmite esse sentido, senão o mero sentido de um
acontecimento.934

Tal concepção de liberdade de ação é coerente com suas fundamentações


teóricas e mostra especial coerência com algumas interpretações da Filosofia dos
Valores, e justamente por isso teria muito a ganhar em recepcionar a ideia hege-
liana de reconciliação com a realidade. 935

10.4.3 - Reflexos dogmáticos (as pretensões de relevânda, ilicitude e


reprovação)

Como se pode notar dos apontamentos feitos até agora, a teoria significa-
tiva da ação é uma forma (não a única) de se apreender a ação a partir do con-
texto ou das circunstâncias nas quais ela se dá. Algo semelhante acontece com
a ideia de Tavares de objetos de referência. Não se pode deixar de sublinhar como,
ao contrário do que afirmam os autores adeptos dessa teoria, o finalismo possui
um vínculo com os valores postos no mundo. Dentro de um marco finalista, por
exemplo, não se poderia pensar em uma injúria se o autor não dispusesse dos
códigos sociais e linguísticos de forma a orientar sua conduta a conseguir ofender
9
.J.4 Bl.JSATO, Paulo Ct!sar. Dirrilo pmaf. parte geral... p. 260-1.
915
O amplo espaço para a flexibilização de concdtos a partir da negação da realidade se pode no-
t:ir em alguns trechos no quais exerce com intensidadt: sua ,·erve relativista: "A comunicação ou
percepção do significado não provc:m de wna realidade do sujcito (interna) nem tampouco do
objeto (externa), mas da inter-relação entre des. A comunicação e; o resultado da inter-relação
entre o sujcito e o objeto que produz uma percepção. A prr(t'PÇ,io 11iio I nlgo q11e po11n srr trnd,,z.ido
em 1,n1n rrnlidnde 011 (Olltrtlndo rnJ nlgo q11t 1~ 1w11 la111po11(0 1e lmd11z. 111rm111mlr e111 m11n vnlomrno. A
prrrrpção i Ião 1oll1t11/r 11111 untido". BUSATO, Paulo cc;sar. Dirrilo pma/: parte geral... p. 273. Grifo
nosso. Agora, como o sujdto consegue se movimentar com sucesso no mundo a partir de
percepções sem maiores ,·ínculos com a realidade permanece um mistfaio.

286
alguém. A relação entre ontologia e deontologia é intrínseca à própria concepção
teleológica de conduta, algo que a maioria dos doutrinadores falhou em perceber.
Ta1nbém por essa incorreta avaliação dos fundamentos do finalismo, ainda
hoje se busca uma concepção teórica que dê conta da relação sujeito e meio (ou
sujeito-objeto) - novamente, aqui, a concepção significativa936 - , quando essa
proposta está na própria origem do finalismo.
Dito isso, as novas proposições teóricas da teoria significativa se manifes-
tam dogmaticamente a partir da reorgarúzação de alguns institutos, como a tipi-
cidade (objetiva e subjetiva), a antijurídicidade e a culpabilidade.

10.4.3.1 - Pretensão de relevância

A pretensão de validade que compõe a norma decanta-se em diferentes


graus para, em Busato e Vives Antón, estruturar-se como categoria do delito.
Em primeiro lugar, isso significa livrar-se da ação como filtro inicial anterior ao
sistema tradicional de delito. Em lugar da ação, usa-se o tipo de ação como um
primeiro grau de atribuição de responsabilidade, como forma de se identificar se
aquilo que se analisa deve ser considerado ou não como relevante ao Direito Pe-
nal: denominado pretensão de relevância (VIVES ANTÓN, 1996; BUSATO, 2010,
2013; PÉREZ, 2007).937
Com o crescimento de popularidade das teorias normativas do delito, cres-
ceram também as opções por modelos de delito não mais ancorados na ação, mas
no tipo. A concepção significativa é em certo grau herdeira disso, e propõe uma
inter-relação entre ação e tipo que, em princípio, recusa ambas como base teórica,
elegendo o tipo de ação. Esse tipo de ação representa precisamente a pretensão de
relevância. 938
Essa pretensão de relevância é composta de wna compreensão adequada
do tipo (um juízo sobre a tipicidade formal) e uma pretensão de ofensividade (a
qual corresponderia à tipicidade ou à antijuridicidade material, dependendo do
modelo teórico adotado). Como é o tipo que, agora, se estrutura como um dos
elementos centrais da teoria do delito, abre-se caminho para wna ampla norma-
tização do sistema: como a ação em geral, o nexo de causalidade, relação ação-
-omissão etc.:939
936
BUSATO, Paulo César. Dirl'ilo pt'llal t arno... p. 189.
9 7
J Também Fletcher (1997, p. 205 e ss) propõe um tipo de ação com algumas nu:inças próprias.
9
JK "(•..) tipo de ação, que rc:presc:nta uma pn:tens:io de rde\'ância, ou seja, que pretende :i identi-

ficação da situação concreta rdt:\'ante para o Dirt:.ito Pt:n:il, ou seja, de que :i ação ou omissão
realizada seja uma daqud:is que pertencem ao âmbito de interesse do Direito Penal,,. BUSA-
TO, Paulo César. Dirrito pr1111f. parte geral... p. 268.
9 9
l Ibidem, p. 258-9.

287
Dentro da ideia de tipo de ação, evidentemente, restam compreendidos ele-
mentos do tipo conh!:,7Urados normativamente e não ontologicamente. É
que se o tipo de ação é o reconhecimento de um SÍ!:,inif-icado, é certo que sua
conti!:,l'l.tr-.ação somente pode ser normativa. Porém, a aferição dos elementos
subjetivos do tipo de ação não responde ao questionamento a respeito de
processos psicológicos por que passa o agente, mas sim à observação de
suas manifestaçôes externas, que não compôe o tipo desde um ponto de vis-
ta conceirual, mas sim substantivo. O problema da ação ou omissão torna-se
então meramente aparente, na medida em que se trata de idenhftcar, cirm11s-
ta11rialn1e11ft, a e.'1.1Jfê11ritl de tl(tio 011 omiuiio tipicammte relevante. Assim também a
relação de causalidade, pois a identif1cação do sentido de causa só é possível
a partir de 'práticas, interpretações e novas práticas'.940

Tanto Busato quanto Antón não reconhecem em suas concepções maiores


riscos dos tipos penais extrapolarem a esfera limitadora da conduta porque haveria
um compromisso principiológico do sistema de justiça com a ideia de um Direito
Penal do fato (afastando em tese a possibilidade de criação normativa a partir de
concepções de um Direito Penal do autor).941 Assim, a pretensão de relevância diria
respeito a um esforço de justaposição entre norma e conduta (o qual deve dar con-
ta da função de delimitação) aliado a uma pretensão de ofensividade.
No entanto, é um pouco nebuloso como se poderá comparar algo que não
possui substância. É algo problemática uma formulação dogmática que pretende
a comparação entre conduta e norma, quando a primeira é apenas um signi-
ficado. Em abstrato, qualquer significação pode ser acomodada a uma norma,
especialmente uma cuja referência não esteja na realidade mas no uso. Isso, no
entanto, invalida a própria função negativa a que ele se propõe. Especialmente
porque o sentido de ação é constituído por meio das acepções usuais, as quais,
então, informam o próprio conteúdo do tipo.942
É essa relação entre sentido usual geral e sentido do tipo que deve cristalizar-
se como inteligível ou não, e como delimitador e coerente, ou não. Consequência
9411
BUSATO, Paulo Ct:sar. Dirrilo prnnf. parte geral... p. 259. Grifo nosso.
941
"Pode-se dizer, assim, que para a confi1,,uraçào do primeiro item da teoria do ddito, qual seja,
do tipo de ação, é neccss:írio, em primeiro lugar, que o tipo cm questão corn:sponda a uma
ação ou omissão, porq11m1/o aí r1ltí rrpresmlnda n gara11lin dr""' Dirrilo pmnl do fato e 11iio do a11lor''.
Ibidem, p. 271. Grifo nosso; BUSATO, Paulo Cc:sar. Direito pmnl e ariio... p. 160 e ss.
94
.? "A aç:io rdcv:mte desde um ponto de ,·ista juridico-penal resulta intdigívd em função do reco-
nhecimento de pr:íticas sociais que se expressam nos tipos. Essa razão conduz a escolher o 'tipo
de ação' cm substituição à 'ação típica' como expressão inicial da teoria do delito. Nesse sentido
é o comentário de Vives Antón quando reforc: 'As ações não resultam, pois, ininteligíveis, por
reforc:ncia a estrururas objetivas (físicas ou lógicas) siruadas fora ddas, mas sobre a base de que se
entrdaçam em pr:íticas, cm plexos rebrularcs de interação que determinam o sentido. Com base
no papd que jogam esses plexos, podemos falar de diferences tipos de nrno, e tais hpos dr arào - que
não são senão expressão de diforentt!S funções sociais - constiruem o dndo pni1Níno de nosso co-
nhecirm:nto da ação"'. BUSATO, Paulo C~sar. Direito pmnf. parte geral... p. 270.

288
das dificuldades forenses de se apurar os elementos subjetivos do injusto (como
apontam as contestações de Busato e Vives Antón), a concepção significativa
parece celebrar a elevação do senso comum ao posto de categoria teórica
(conquanto refinada e intrincada).943 Por isso, acaba construindo uma dogmática
a partir da funcionalização forense, um utilitarismo construído a partir das conse-
quências judiciais. Em outras palavras, facilita-se a fundamentação dogmática da
decisão judicial que mais se adapta ao senso de justiça do julgador.944
Não se deve ignorar, todavia, que a ideia de se cotejar significado e norma
parece um tanto excêntrica, pois para isso teria de se comparar a correta interpre-
tação sobre o que é ou não conduta (caso contrário, aceitar-se-ia prima fade qual-
quer interpretação) e a correta interpretação do que deveria se entender como a
conduta (proibida ou determinada) pela norma. Ora, além de uma latente contra-
dição sobre a questão da metarregra (como já se mencionou supra, item 9.2), seria
preciso estabelecer critérios hermenêuticos claros sobre os quais se deve erigir
essa comparação, pois, quanto mais abertos os critérios, maior o espaço para a
discricionariedade do julgador.
Consequentemente, parece se abrir um espaço para a flexibilização do con-
ceito de ação - assitn co1no o nexo de causalidade é atualmente flexibilizado até
o absurdo, para incorporar a criminalização de alguns crimes de perigo abstrato,
o que de outra forma seria inviável - em bases interpretativas que fossem estri-
tamente vinculadas à norma, poderiam ser excomungadas como analogia em
111ala111 partem (mas isso não acontece porque se vincula à ação). Tornam-se espe-
~l Em alguns casos trata-se <la consofülação do senso comum forense. O fato de algo ser pratica-
c.lo não é argumento suficiente para continuar praticando, como <lão a entender Vi\'eS Antón e
Busato. A chancela <lo sistema judicial tal como ele é praticado ·esú longe de ser um argumento
robusto: "Segunc.lo Vives Antón, a prática forense costuma fazer a distinção e.lo caso concreto
justamente a partir <la identificação <lo tipo <le ação e não <la existência ou não de uma ação, ou
seja, ao buscarmos cm um processo ou um inquérito policial a identificação c.le um crime, não
partimos e.la análise de se houve ou não ação ou omissão, mas sim de um tipo penal, ao qual
deve corresponder, como expressão de senti<lo, a ação ou omissão eYentualmente presente no
feito". BUSATO, Paulo César. Dirrilo prnt1f. parte geral ... p. 276.
""" "Ora, Luzón percebe a justiça e.la decisão, mas entende que da esci mal func.lamenta<la. É que o
global da ação realizada pelo sujeito, o apanhar de um selo enquanto cone.luz o carro, reflete uma
conduta cujo incremente <lo risco e.la condução se trac.luz cm perigo ao bem juri<lico a ponto de
gerar um interesse juric.lico cm seu controle social por parte <lo est.1Jo, justiti~m.lo a presença
e.la rcsponsabili<latle penal, mesmo que tle mo<lo leve. De outro h<lo, se é que, como Luzón, se
parte <le um conceito meramente ontológico Jc aç:io, os atos reflexos cm nenhum caso po<lcm
ser gcrac.los <le rcsponsabili<la<le penal, posto que excluem Jrfllprr a aç:io,.. lbi<lcm, p. 285. Como
se poc.le perceber, a justificatiYa central para a afirmação da existência de ação não se Já pda tcori:t
<la ação propriamente dita, mas por uma consideração sobre o perigo ao bem juriJico. Além c.le
fone.lamentar indiretamente a responsabilização penal de atos reflexos, Busato direciona sua tcori:t
<le forma a legitimar a c.lecisão que melhor se encaixa ao senso Jc justiça de quem analisa.

289
cialmente explícitas, assim, as contradições derivadas do 'significado pelo uso'.
Os significados possuem uma tendência inesgotável de transformação, e isso
só seria satisfatoriamente inserido no Direito Penal se houvesse uma tendência
imanente de sempre conjugar os dois (interpretação da conduta e interpretação
da norma) da forma mais restritiva possível, e não parece ser esse o caso. Essa
perene abertura para a ressignificação afirma um contínuo potencial violador do
princípio da máxima taxatividade.
O conteúdo da pretensão geral de relevância ou tipo de ação é formado por
duas subpretensões, quais sejam, uma pretensão ,011ceilual de relevância e
uma pretensão de ofensividade. A pretensão co11ceilual de relevá11da refere-se
à comprovação de que uma determinada conduta corresponde a um tipo,
ou seja, é relevante para o Direito penal. Isso acontece quando se identifi-
ca na conduta um sentido correspondente àquele que é descrito por uma
norma incriminadora, como o roubo, o furto, o homicídio, etc. Assim, o
que se estuda aqui é a conjugação da previsão legal (tipicidade formal) e
as modalidades de conduta (ação e omissão), além da relação da ação com
o resultado e os elementos de união entre um e outro, sejam ontológicos
(nexo causal) ou axiológicos (critérios de imputação objetiva). 945

É nesse sentido que troca-se o marco da explicação pela compreensão da


ação, não se abordando mais o que busca quem age, mas a ideia que o significado
(conduta) transmite. 946 Substitui-se a definição pela interpretação. Apesar disso,
Busato sustenta que, na concepção significativa, a ação ainda exerce uma função
ncgativa,947 particularmente porque quando não há conduta, não há transmissão
de sentido (de um ato dirigido pela vontade).948
Essa parece ser uma presunção que permeia em geral as concepções sig-
nificativas, mas que se mostra também muito problemática em razão da própria
história do poder punitivo. A história do exercício de poder punitivo mostra que
o exercício interpretativo e linguístico - cujos processos de significação se afas-
tavam das ciências e se aproximavam da superstição - têm um amplo potencial
criador: pense-se nas atribuições subjetivas de responsabilidade por eventos na-
turais em diversos períodos históricos pré-modernos (desde pragas de colheitas
até desastres naturais).949 Portanto, dizer que situações nas quais não há conduta
90
BUSATO, Paulo Ct=sar. Direito pmnf. parte geral... p. 270. Ainda: "Evidentemente, trata-se de
uma corn:spondência, ou seja, de que a situação concretamente analisada seja uma ação ou
omissão que transmite o sentido correspondente à descrição de um tipo". Ibidem, p. 270.
946
"Mais que 'ddinir o que stja a ação no campo do Dircito Penal, dcn:-se 'interpretar' seu signi-
ficado". Ibidem, p. 274.
947
Ibidem, p. 269.
941
Ibidem, p. 278.
949
Importantes pist1s sobre o assunto e uma ric:i bibliografia podem ser encontradas em: BATIS-
TA, Nilo. Prtilirns pmais 110 direito indígmn. ln: Revista de Dircito Penal. nº 31, jan.-jun., 1981. Rio
de Janeiro: Forense. p. 75-86.

290
não produzem um significado de ato dirigido pela vontade nos parece claramente
um equívoco.
A teoria significativa da ação parece modelada para uma maior duccibilidade
forense e também por isso destaca uma suposta insustentabilidade das categorias
referidas a uma concepção ontológica. A teoria significativa recusa os aportes on-
tolôgicos co1n uma mão para, então, recuperá-los com a outra. Percebe-se como,
em última análise, ocorre uma reinserção disfarçada dos aportes que ela pretende
recusar. Assim, ação, elementos subjetivos, dirigibilidade da conduta, nexo causal
etc. são excomungados para, então, serem recuperados a título de aparência de
ação, aparência de vontade etc. Que grande giro copernicano é esse que propõe
coisas tão semelhantes, mas desprovidas de claros limites e apoiadas em uma
base tendendo ao idealis1no e ao relativis1no?
Para além disso, os posicionamentos dogmáticos referentes às causas de au-
sência de ação são sempre os mesmos das correntes doutrinárias majoritárias, no-
meadainente: coação física irresistível, atos reflexos e hipóteses de inconsciência.
É curioso notar também que, mesmo afirmando a impossibilidade de se tratar a
vontade como um processo psicológico interno, Busato recorre a uma concepção
parecida para tratar da coação física irresistível. Pois tal coação deve ter origem ex-
terna e não interna (ao contrário dos "impulsos irresistíveis de caráter interno").950
Os atos reflexos não tornariam possível a identificação ou interpretação
que leve ao reconheciinento de um "ato intencional" (concepção contra a qual
se levantou aqui o processo histórico do poder punitivo anterior à modernida-
de). Aqui também comparece, contraditoriamente, a ideia de dirigibilidade da
conduta. É pertinente pensar-se nos casos de reações fisiolôgicas, quando essas
teorias negam a existência de ação, mas não se percebem de como elas mesmas
abrem a possibilidade de resultados opostos. No caso de um riso deflagrado por
uma situação de profundo estresse ou de descontrole, em geral, sobre o corpo
(tremedeira, tensão generalizada, incontinência etc.) poderia se vislumbrar uma
tipificação por desacato, para a qual a teoria significativa não ofereceria maiores
resistências, caso houvesse aparência de ação. 951

9511
'
"(•••)os impulsos irresisúvcis de caráter interno, como o arrebato ou qualquer outra manifesta-
ção intensa passional, não são caracterizadores da coação irresisúvel". BUSATO, Paulo César.
Direito pm,,f. parte geral... p. 281 .
9st
É o que se deduz, por exemplo, do seguinte trecho: "Ora, Luzón percebe a justiça da decisão,
mas entende que ela está mal fundamentada. (...) De outro lado, se é que, como Luzón, se parte
de um conceito meramente ontológico de ação, os atos reflexos em nenhum caso podem ser
geradores de responsabilidade pena.l, posto que excluem 1rn,prr a ação". Ibidem, p. 285; "üs
jornais noticiavam que, durante uma audiência judicial, no interior de São Paulo, ao lhe serem
indeferidas perguntas pelo juiz, o ad\'ogado sorriu. E, por causa deste riso, foi ele preso em
flagrante pela prática do crime de desacato" e "O riso espontaneamente produzido, como
resposta incoercível a determin:idos estímulos sócio-cultura.is, não pode de forma al!,1\lma ser

291
A ideia de uma ação significativa exige verificar tão somente o plano da
comunicação, ou seja, que significado tem a atitude do sujeito em termos
da expressão externa, sem qualquer tipo de cogitação a respeito do que o
autor sabe ou representou ou calculou, pois estes são processos internos
não alcançáveis.9 =>2

Sem romper com a doutrina majoritária, Busato não inova senão na funda-
mentação filosófica da ausência de ação nos casos de inconsciência, como hipno-
se, narcose, sonambulismo etc.

10.4.3.2 - Outros patamares de pretensão

Além da pretensão de relevância, estipula-se, como segunda etapa rumo


à pretensão geral da norma, a prete11sào de ilicitHde. Essa pretensão de ilicitude
comporta (1) a antijuridicidade formal, composta por causas de justificação (cha-
madas de permissões fortes) e causas de exclusão da responsabilidade (chama-
das de permissões fracas); (2) a "intenção subjetiva" (equivalente aos elementos
subjetivos do tipo), a qual revelaria o compromisso de violação do bem jurídico,
a qual não mais remete à ação e, sim, à possibilidade de imputação do delito. Essa
"intenção subjetiva" se manifesta como dolo ou culpa: no dolo, como compro-
misso de atuar, e na culpa, como (dupla) ausência de compromisso (em relação
ao resultado e ao dever de cuidado). Assim, além de normatizar os elementos
subjetivos do tipo, dá-se um matiz estranhamente subjetivo à culpa (por trat1-la
como "intenção subjetiva").953
Em um terceiro rúvel, observa-se a pretensiío de reprovação (equivalente a um
juízo de culpabilidade), quando, se era exigível uma conduta conforme o Direito,
torna-se possível um juízo de reprovação diante da realização de um ilícito. A
pretensão de reprovação divide-se em (1) imputabilidade ou capacidade de ser
objeto reprovação e (2) consciência da ilicitude, a qual serve para dar conta dos
casos de erro de proibição.954

típico com respeito a qualquer ddito, porque não constitui ação". JURISPRUDÊNCIA. Re\'is-
t:i de Direito Penal. nº 19/20, jul.-dez., 1975. Rio de Janeiro: ICP. p. 111 e 112.
9
s.2 BUSATO, Paulo Ct:sar. Dirt'ilo prnaf. parte geral... p. 286. Ainda: ".Mas tampouco parece ad-
missívd que a vont.1de consciente apont:ida pdo finalismo seja o fator diferenciador entre a
ausl!ncia e a presença de ação nas hipóteses de reações automatizadas". Ibidem.
9Sl "O que se ,·erifica :iqui t: :i intenção a que alude o sentido da ação, t: dizer, se a :ição realizada ma-
nifosta o compromisso de atuar por parte do autor, caso em que haverá dolo, ou se há uma dupla
aus~ncia de compromisso: com o resultado típico e com a possibilidade de evit-í-lo, caso em <.]Ue
está pn:sente a falta de dever de cuidado que c:iracteriza a imprudência, isso sim, an:ilisada aqui
desde um ponto de vist:i eminentemente subjetivo, j:í que a análise de violação do dever objeti,·o
já Ílb1Ur:t na pretensão de rdev:incia". BUSATO, Paulo César. Dirri/(J p('JJnl. parte geral... p. 260.
9
>4 Ibidem, p. 260-1.

292
É adotada também, enfim, uma pretensão de necessidade de pena como
um requisito adicional do delito. Isso suscita igualmente certo retorno às antigas
discussões sobre se os requisitos de punibilidade do delito deveriam constar
como componentes na teoria do delito, ao lado da tipicidade, da antijurídicidade
e da culpabilidade.955

10.4.4 - Considerações finais

O co1nponente valorativo da ação pode ser determinado de forma prévia


aos critérios normativos propriamente ditos.956 Em princípio, apenas a concep-
ção funcionalista parte imediatamente do tipo como elemento base. Como se
viu, no entanto, essa distinção é um tanto nebulosa quando se perde critérios
objetivos de delimitação da ação (trabalhando-se com critérios de aparência) e o
tipo de ação passa a ser um elemento teórico central. Em especial quando se nota
que, como é o contexto social que informa a significação normativa, o significado
social de conduta coincidirá com o sigrúficado dogmático 957 - pelo que se aludiu
a um "senso comum" e a uma facilitação da flexibilização do conceito.
Não é o tipo que condiciona a ação nem vice-versa. É o interesse social
na tipificação de uma determinada conduta (ação ou omissão) expresso na
recepção comunicativa da norma, que identifica e determina seu significa-
do ou sentido. (...) Assim, a verificação de se existe ou não 'ação relevante
para o Direito penal deve começar pela verificação de se tal ação pertence

a aJbrum d os tipos - defi~ ru"d os na le1• penal' .958
de açao

Também se faz sentir a herança habermasiana, quando se trata da teoria


da norma. Isso acontece porque Busato segue Vives Antón em fundamentar a
norma não sobre a antiga discussão valoração-determinação, mas sobre as pre-
tensões que as normas perseguem. E a pretensão principal deve ser a de justiça.
E, assim, recupera-se a ideia de um abandono de pretensões de verdade (que
caracterizariam as antigas Ciências Sociais e os antigos modelos de delito) para
9
;s Apesar de essa última pretensão se diferenciar um pouco <la purubili<la<lc: "Aqui já não se trata
tão só <la análise de condições objcti,·as <le punibiliJa<lc ou de causas pessoais de exclusão <la
pena, senão que se inserem também as causas pessoais de anulação ou suspensão da pena,
graça, anistia e to<los os <lemais institutos que afastam a possibilidade de aplicação da pena no
caso concreto, quer derivadas ou não <la lei". Ibidem, p. 261.
956
"Assim, a ação não é o sentido <le um substr:>.to típico, mas o sentido <le um substrato social".
BUSATO, Paulo César. Direito pm,1/ t ,1çtio... p. 193.
9 7
s "A mesma 1configurnção social' que estabelece o 'sentido da ação' determina também a escolha
normativa <los tipos de ilícito. Logo, é forçoso admitir que o significado da ação relevante para
o Direito Penal <leve ser coincidente com o significado <lo estabelecimento Jos tipos penais''.
BUSATO, Paulo César. Dirtilo ptn"I e 11;,io... p. 192.
9
sa Ibidem, p. 193-4.

293
se optar por pretensões de validade e legitimidade (dos modelos compreensivos
de Ciências Sociais e de dogmática penal).959 Com isso, recupera-se a questão da
justificação procedimental das normas e transparece mais um traço da inclinação
idealista da herança habermasiana. 960
É confirmada a ideia (de Habermas) de ser, a norma, um instrumento
de comunicação entre sociedade e indivíduo, fundado sobre valores comuns e
exigências recíprocas.961 No entanto, essa concepção incorpora também o olhar
idealista de Habermas sobre a sociedade e o Estado, segundo o qual os valores
não se contrapõem e os postulados de uma democracia procedimental são res-
peitados, tornando possível caracterizar-se uma relação de reciprocidade entre
Estado e cidadão.

959
lbidc:m, p. 194-6.
9611
"A prc:tensào de: lc:gitimidadc: da norma se: c:xprc:ssa através de um fundamento rncional, tra-
duzido na obc:cfü:ncia aos direitos e: garantias fundamc:ntais d:is pessoas enquanto tais. (...) Por
outro lado, a prc:tc:nsão de: v:ilidade, deve ser resolvida mediante: a c:labornção dogmática, ou
sc:ja, a norma sc:r:í v:ílida quando obc:dc:cer a uma sc::rie de: afirmações parciais dc:sta em face: da
:iç:io aprt:ciada, compondo pc:rguntas, a respdto da relevância, da ilicitude:, da rc:provabilidadc:
e da necessidade de: pena". Ibidem, p. 197.
961
Jbidc:m, p. 197.

294
11- UM NOVO HORIZONTE TEÓRICO
PARA O FINALISMO

Lukács atribui um papel de destaque ao trabalho na gênese do ser social porque


as outras categorias já teriam, para ele, um caráter puramente social. Suas mani-
festações pressupõem que o salto de ser orgânico para ser social já ocorreu; e,
assim, suas propriedades e seu modo de operar só se manifestam quando o ser
social já se constituiu. Apenas o trabalho, enquanto inter-relação entre sociedade
e natureza (orgânica e inorgânica), possui essencialmente o caráter transicional
entre ser biológico e ser social.962
No entanto, é preciso ter claro que com essa consideração isola.da do tra-
balho aqui presumido se está efetuando uma abstração; é claro que a socia-
lidade, a primeira divisão do trabalho, a linguagem etc. surgem do trabalho,
mas não numa sucessão temporal claramente identificável, e sim, quanto à
sua essência, simultaneamente.963

Sob um prisma específico, a linguagem é uma ferramenta indispensável - e


pressuposto - para o processo de trabalho de incontáveis atividades. Mas não
se pode dizer isso sob uma perspectiva ontológica, quando o trabalho assume
a posição de pressuposto. É em seu metabolismo com a natureza por meio do
trabalho que, através da proposição de finalidades, o ser humano consegue de-
senvolver o pensamento abstrato necessário para desenvolver a fala. 964
O problema não é tanto o reconhecimento do caráter ontológico do tra-
balho, porque diversos pensadores com profundos vínculos com a existência
social, como Aristóteles e Hegel, perceberam-no. O problema, na verdade, é que
muitos deles estenderam a categoria da teleologia para além do trabalho ou da
práxis humana, utilizando-a para compreender o mundo orgânico, a história etc.
A teleologia foi, assim, alçada por muitos ao patamar de categoria cosmológica
compreensiva.965
Marx não reconhece qualquer teleologia fora do trabalho, da práxis huma-
na. A perscrutação de uma teleologia no trabalho, em Marx, distingue-se subs-
962
LUKACS, Gyõrgy. J>nrn 11111n ontologin do Srr Sorinl II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 44.
963
LUKACS, Gyõrgy. Op. Cit p. 44. Ainda: "É claro que jamais se de\,: esquecer que qualquer escigio
do ser, no seu conjunto e nos seus dettlhes, tt:m cmíter de complexo, isto ~ que as SU!lS c:iregorias,
até mesmo :is mais centrais e determinantes, só podt:m ser compreendid:is adequadamente no inre-
rior e a partir d:i constituição global do rúvd de ser de que se tr.u:i. E mesmo um olhar muito super-
ficial ao ser social mostra a inextrincivd imbric:iç:io em que se encontram SU!lS categori:is deàsiv-:is,
como o trnbalho, :1 lin1-,1U:1gem, a coopt!rnção e :i divisiio do trabalho, e mostra que aí su.rgc:m novas
R:J,t'\.U:tções da conscii:nci:i com a rt::\lidadt: e; por isso, consigo mt:Sma etc.". Ibidem, p. 41.
w... LUKÁCS, Gyõrgy. Op. Cit. p. 47.
965
Nesse sentido, ,·er t.1mb(:m: HARTMANN, Nicolai. Op. Gt. p. 15.

295
tancialmente da de seus antecessores (como Aristóteles e Hegel) porque ele não
a afirma como uma entre diversas teleologias em inúmeras formas fenomênicas,
mas como a única teleologia em exercício na realidade e ontologicainente de-
monstrável. Desse ponto de partida, nota-se que a teleologia só se torna parte da
realidade enquanto pôr e sua fundamentação (no trabalho) explica-se pela impos-
sibilidade do processo de trabalho se não pressupusesse esse pôr teleológico.966
A delimitação da teleologia ao trabalho (entendido como modelo da práxis)
e sua ausência em outros modos do ser não implica uma limitação do seu signi-
ficado. Há, sim, a correta percepção dos significados, pois, como o ser social se
fundamenta sobre a vida orgânica, só pode constituir-se como modo específico
do se~. porque há um pôr teleológico real em sua base.9(,7
A construção de um sistema co1nposto tanto pela causalidade q1ianto pela
teleologia tem consequências realmente inovadoras. A tradição filosófica geral é
um grande exemplo das disputas teóricas travadas entre concepções fundadas
na causalidade ou na teleologia. Mesmo Kant é mn exemplo do cunho aparente-
mente incompaúvel entre essas duas perspectivas.968
As concepções de cunho teleológico precisavam reconhecer uma hierarquia
na qual a teleologia situava-se acima da causalidade, 1nesmo quando sünples-
mente reconhecia a Deus o papel de força original de um processo que segue
por conta própria e de forma causal, para poder criar um sistema minimamente
harmônico. O materialismo pré-marxista, por sua vez, em um esforço pordes-
construir e se contrapor às concepções transcendentes de mundo, acabava por
esvaziar qualquer possibilidade de teleologia. Somente em Marx é possível vis-
lumbrar de forma inovadora wna tentativa de articular causalidade e teleologia. 969
A investigação dos meios para se atingir determinados fins traz consigo a
necessidade do conhecimento causal-objetivo dos processos que podem levar
a essa finalidade previamente colocada. Por isso a decantação e1n duas etapas
independentes do nóesis aristotélico por Hartmann - pôr de fins e a investigação
de meios - foi tão importante, pois só assim revelou-se a interligação entre cau-
salidade e teleologia.~170

"" LUKACS, Gyõrgy. Op. Cit. p. 51.


967
"Essa mancira de ser do trabalho sem dú\·ida tambfm foi claramente compreendida por Aris-
tóteles e Hegel; mas, na medida em que tentaram interpretar de maneira i1-,rualmente teleológica
o mundo orgânico e o curso da história, viram-se obrigados a presença, ndes, de um sujeito
responsávd por esse pôr necessário (em Hegel, o espírito universal), resultando disso que a
realidade acaba,·a por transformar-se inevitavelmente num mito". Ibidem, p. 51-2.
961
Ibidem, p. 52.
969
Ibidem, p. 53.
9711
Ibidem, p. 53-4.

296
A relação fim-meio, em si, não produz nada novo se a realidade (em pri-
meira análise natural, mas em nível aprofundado também a social) permanece
inalterada, se as legalidades dos complexos que compõe1n a realidade opera1n de
forma a ignorar as ideias dos sujeitos. A investigação, portanto, tem um duplo
papel: desvelar as conexões que regem os objetos analisados e revelar novas co-
nexc1es, com outras possibjlidades de realização do fim proposto.
O processo de trabalho e o papel da finalidade parecem ter sido profunda-
mente compreendidos por Hegel. Ele entende que algo de novo surge da mani-
pulação das forças da natureza sem que haja uma mudança interna. Em outras
palavras, o ser humano pode, a partir do trabalho, extrair consequências e usos
inteiramente novos, a partir de articulações inéditas entre as propriedades da
natureza e suas leis gerais, imprünindo funções e instrumentalidades també1n
inéclitas.971
O confronto entre natureza e trabalho heterogêneos, assim como entre
meios e fins heterogêneos, produz um pôr (teleolôgico) algo unitárjo e homogê-
neo. Mas essa homogeneização enfrenta alguns limites, como (a) a correta com-
preensão dos nexos causais, que pode transformar um potencial pôr teleológico
e1n mera aspiração natünorta; e (b) sua capacidade de mascarar a importância
da investigação dos meios para o sucesso do pôr, que pode ser ofuscada pela
subordinação dos meios aos fins. O pôr teleológico nasce de uma necessidade
social, mas só se torna verdadeiramente o pôr de um fim quando a investigação
dos meios - ou seja, o conhecimento da natureza - aúnge um nível adequado.
Caso contrário, é apenas uma pretensão sem qualquer efeito sobre a realidade. 972
Os processos e os objetos naturais possue1n inúmeras propriedades e inter-
-relações com o mundo, mas apenas um número restrito deles é funcionalizado
no sentido do pôr teleológico; e, ao serem pensados em razão de uma impor-
tância positiva ou negativa, são homogeneizados. Isso implica a desnecessidade
de uma reprodução cognitiva das infinitas propriedades dos processos e objetos
naturais sobre os quais se debruça o trabalho, nem sequer de forma aproxima-
tiva. Caso contrário, o trabalho teria sido concretamente inviabilizado e1n seus
momentos mais primitivos, o que não foi o caso.
É possível reconhecer-se uma dialética entre a correção estrita na esfera do
pôr teleolôgico e a correção quanto ao ser em-si da natureza como um todo, porque
o primeiro é relativamente independente do segundo. Em outros termos, a correta
apreensão das conexões causais necessárias para a finalidade proposta por um
pôr específico pode ocorrer 1nesmo quando ele - ainda que bem sucedido - seja

971
lbidt:m, p. 54-5.
972
lbidt:m, p. 55-6. Como a tentativa supersticiosa para o dircito penal.

297
permeado por incongruentes representações gerais dos processos e dos objetos
naturais no que diz respeito ao conhecimento da natureza em sua totalidade.973
Hegel també1n, e1n sua ciência da ló6rica, acentua a importância dos meios
em relação aos fins, pois, para ele, assim como é o termo médio do silogismo que
permite a realização da conclusão final, os meios de realização das necessidades
seriam superiores aos fins almejados, os quais seriam sempre efêineros. Ele res-
salta também o papel dos meios no domínio sobre a natureza exterior, contra-
pondo (em um esforço dialético) que, pelo fim, o homem se sujeita à natureza.
Por tais conclusões, Hegel se aproxima muito de uma correta percepção acerca
das relações entre meio e fim. 974
Individualmente considerado, o meio frequentemente tem uma longevida-
de maior que as necessidades a serem satisfeitas, mas esse contraste perde brilho
quando se leva em consideração o conjunto das necessidades em um quadro
social amplo. Apesar da satisfação das necessidades imediatas individuais serem
superadas ou esquecidas, a satisfação das necessidades em nível social persiste
por muito mais tempo.975
Se é verdade, como se alega aqui, em acordo com as afirmações de ~1arx,
que a humanidade só se propc>e questões a que pode responder, ou seja, que
suas finalidades postas são socialmente limitadas, então, tampouco é inteiramente
correta a constatação hegeliana de uma submissão, pelos fins, do homem à natu-
reza externa. A grande limitação às finalidades apoia-se principalmente sobre o
desenvolvimento social.976
O desvelamento de determinadas conexões causais nesse sentido, sua apli-
cação e a experiência que se forma disso representam, no trabalho, o meio para
um fim específico e único. Isso, contudo, possui a importante propriedade de ser
objetivamente aplicável a outras finalidades, ainda que sejam bastante destoantes
entre si. Se por um longo decurso temporal houve apenas uma consciência prá-
tica das coisas - das finalidades e das realizações dessas finalidades -, basta que
tenha havido apenas uma utilização bem sucedida em uma esfera heterogênea
da originalmente intentada para que se possa constatar a inauguração de uma
abstração. Trata-se de um correto pensar abstrato que possui, já na sua estrutura,
elementos centrais do pensamento científico.977
Se, como fazem as doutrinas idealistas, a teleolo!,tÍa típica do trabalho hu-
mano é estendida para todo o mundo, nos moldes de uma concepção mística
da realidade, a distinção entre sociedade e natureza perde todo o seu substrato.
971
lbidt:m, p. 56.
974
lbidt:m, p. 57-8.
97
~ lbidc:m, p. 58.
976
lbidt:m, p. 58-60.
m lbidt:m, p. 60.

298
Quando, então, as correntes idealistas tentam recuperar uma distinção entre ho-
mem e natureza, fazem-no recorrendo a uma contraposição entre espírito (fre-
quentemente representado pela consciência humana) e matéria. Consequente-
mente, o metabolismo homem-natureza, de onde surge seu traço distintivo, é
crescentemente apagado nessas concepções.978
Com a e1nersão do trabalho, enquanto realização do pôr de wn resultado
ideado e adequado e enquanto realização conúnua do novo (habilitado e habi-
litando o pensamento abstrato), a consciência humana, segundo Lukács (2013),
deixa de ser um mero epifenômeno, deixa de ser estrita1nente subordinada à
existência biológica.
A manifestação da consciência compõe-se, como já foi indicado, de dois mo-
mentos: do mais aproximado espelhamento possível da realidade circundante; e
(seu desdobramento) o pôr das conexões causais necessárias à finalidade. São es-
ses dois atos heterogêneos, indispensavelmente complementares na composição
do complexo do trabalho, que formam a base da especificidade ontológica do ser
social. A separação entre sujeito e objeto é uma consequência do processo de tra-
balho. No espelhamento da realidade como requisito para a realização do trabalho,
co1no pre1nissa para o fim e os meios do trabalho, o sujeito termina por se distan-
ciar do objeto que ele quer modificar. Sujeito e ambiente, então, diferenciam-se.979
Também é no espelhamento da realidade que se pode perceber a ideação
da realidade destacando-se dela própria. Essa ideação cristaliza-se formando uma
"realidade" s11i ge11eris, que se diferencia da realidade propriamente dita, uma pro-
torrealidade se preferir, pertencente à consciência. Justamente por ser uma repro-
dução da realidade, essa realidade-ideada diferencia-se da realidade mesma, uma
não é a outra. Por ser algo qualitativamente distinto, sua reprodução não pode
ser de mesmo tipo ou natureza daquilo que reproduz. Tampouco pode reprodu-
zir, consequentemente, a realidade de forma idêntica. O ser social pode, assim,
ser ontologicamente decomposto em dois momentos heterogêneos, o ser e seu
espelhamento na consciência?io
Esse distanciamento entre ser e espelhamento não se dissipa com o refi-
namento do conhecimento e com construções auxiliares, como a Matemática.
Sempre há a possibilidade de algum desvio, algum defeito nesse espelhamento
do ser, mesmo que al!,>umas possibilidades simples ou primitivas de erro estejam
excluídas, outras mais complexas surgem no lugar. Se, de um lado, os proces-
sos de objetivação e distanciamento resultam na impossibilidade de reproduções
idênticas da realidade, de outro, essas reproduções são sempre determinadas pelo
78
" Ibidem, p. 61-2.
Y7'' Ibidem, pa$sim.
98fl Hartmann defende algo similar com sua distinção entre sujeito, objeto e ser em $i. Cf. HART-
:MANN, Nicolai. Op. Cit. p. 31 e si..

299
pôr de finalidades. O espelhamento é, em outras palavras, determinado pela re-
produção social da vida. 9111
É justamente essa detenninação do espelhamento pelo pôr de finalidades
o responsável, nos dizeres de Lukács (2013), pela tendência sempre renovada de
descoberta do novo. O espelhamento da realidade tem uma natureza necessaria-
mente contraditôria, pois, ao mesmo tempo em que é o oposto de qualquer ser
reproduzido (por ser espelhamento não é ser), é o veículo para novas objetivida-
des, as quais, por sua vez, podem reproduzir o ser social nos mesmos moldes ou
não. A tendência do pôr teleoló,gico pelo novo, todavia, é corribrida pela própria
objetivação.
A consciência, portanto, ao espelhar a realidade, adquire também o caráter
de possibilidade ou dj11an1is (õuvcxµtç). Não se deve confundir - como faz Hart-
mann ao tratar da evolução de seres orgârúcos - possibilidade e propriedade. A
possibilidade pode ser expressa em termos de propriedade, de organismos se
adaptarem a ambientes modificados, por exemplo. Uma coisa não se encerra
necessariamente na outra, dado que o termo propriedade é usado predominante-
mente para designar um caractere já manifesto. Nem tudo que não se manifesta,
aliás, é wna itnpossibilidade, mas, por não se manifestar, é frequentemente incog-
noscível. No entanto, a existência por vezes independe de sua cognoscibilidadc.982
As relações entre potência e essência não podem ser esclarecidas recorren-
do-se estritamente a artifícios lógicos, co1no faz Aristóteles, pois não se trata de
uma questão lógica, mas ontológica. O correto enquadramento dessa relação
implica o correto enquadramento do trabalho enquanto complexo, de maneira
a formular, o 1nais corretamente possível, as abstraç<>es categoriais necessárias a
sua melhor compreensão. A própria ideia de labilidade, usada por J--Iartmann, dá
conta de uma faceta, mais geral e biológica, da possibilidade contida no ser so-
cial. Não se pode dar conta das formas mais desenvolvidas de possibilidades do
ser social, todavia, recorrendo-se apenas à base da labilidade orgânica. É preciso
reconhecer um hiato, que somente é preenchido pelo pôr teleológico típico da
atividade hmnana. 983
As conexões causais naturais se desenrolam por si mesmas, bastando a ve-
rificação de suas condições. Já no trabalho, finalidade e causalidade são postas
teleologicamente. Ao considerar-se, por exemplo, os meios de trabalho e o objeto
do trabalho, eles são em si coisas naturais sujeitas, em princípio, a causalidades

" 1 LUKÁCS, Gyorgy. Op. Cit. p. 67.


982 Ibidem, p. 69.
913 Hartmann defende uma posição st:mdhantt: quando analisa o st:r t:m estratos. "L.'l considt:r.ici-
ón ont0lú~ca ha de cont'lr con la ht:tt:rogenc:idad dt: los t:strntos dd ser, que cit:rtamt:ntt: están
en com:xiún, pero que no coincidt:n ni en cuanto a al contenido ni t:n cuanto a la legalidad".
HART~IANN, Nicolai. Op. Cir. p. 42.

300
naturais. É a práxis que atribui a eles um pôr social. Ademais, é preciso que, ao
longo de todo o processo do trabalho, haja uma constante reafirmação do cará-
ter alternativo do pôr diante de cada processo de elaboração dos instrumentos,
porque a melhor elaboração depende do correto espelhamento da realidade. O
processo de elaboração deve também ser corretamente orientado pela finalidade
já proposta e o 1neio de trabalho depende ÍbtUalmente da correta manipulação
pelo sujeito. A constituição ontológica do processo de trabalho como modelo, e
do pôr teleológico como um todo, faz dele um encadeamento de alternativas.9K4
Ao mesmo tempo em que é um ato de consciência, a alternativa é também
a categoria mediadora que torna possível ao espelhamento tornar-se o veículo
do pôr de ente. O ente posto, lembre-se, nunca pode inteiramente prescindir de
um funda1nento natural (mesmo com o recuo da barreira natural). Isso se torna
claro quando a propriedade do objeto se contrapõe ao pôr, como na deterioração
daquilo que foi construído. Em razão disso, o caráter alternativo do trabalho (da
práxis) continua a se manifestar em seu desenvolvimento - como reparo, super-
visão etc. - de forma constantemente nova.985
As determinações do ser advêm, então, das determinações universais em
concreto exercício na própria esfera do ser. Lulcics vê no trabalho o elemento
central que possibilitou a superação da esfera animal e da condição, da consci-
ência, de epifenômeno. Há uma superação para o ser social na qual as outras
formas de ser não foram suprimidas, e constituem, inclusive, a base material do
ser social.~86
O desenvolvimento mesmo da técnica nas sociedades aponta para projetos
(ou modelos concebidos) resultantes de diversas alternativas inter-relacionadas
(como na implantação de uma fábrica). A técnica em si, contudo, jamais será o
fundamento único dessa decisão. O desenvolvimento técnico se combina e se rela-
ciona com o desenvolvimento de outras esferas do ser social, como a economia.987
Se técnica e economia, por exemplo, têm uma necessária inter-relação, ela
não se dá de forma homogênea. Em termos mais gerais, as etapas intelectuais
do processo de trabalho são importantes, mas elas também sofrem uma deter-
minação da necessidade que sua realização (ou produto) pretende satisfazer. O
momento da decisão sobre alternativas não se dá, como querem alguns, nos con-
tornos de uma liberdade abstrata não maculada por qualquer elemento externo.

9 1
~ LUKACS, Gyõrgy. Op. Cit. p. 72.
9115
Ibidem, p. 73.
Y11<, De forma parecida: "Bien conocid:i es esta rd:ición en b superposición de la naturale1.a or-
g~ínica e inorg.ínica: la misma matéri~1 junto con sus legalidades cst:i formada superiormente,
supra formada cn las formas de lo vivente. Pero la supraformación misma es autónoma, y no se
pucdc entender mediante bs lcycs inorg.ínicas''. HARTMANN, Nicolai. Op. Cit. p. 42.
Ylf7 LUKÁCS, Gyõrgy. Op. Cit. p. 74.

301
Além do mais, a ideia de um projeto não realizado dá a justa dimensão da
ideia de potência em Aristóteles, pois um projeto ignorado - ainda que ele seja
rico, be1n estruturado e fundado em um espelhamento correto da realidade -
permanece um não ente. E, está em sincronia, a afirmação marxiana de que o ins-
trumento de trabalho (por mais simples que seja), no trabalho, de possibilidade se
transforma em realidade. É necessário, então, que a alternativa seja realizada por
meio do processo de trabalho para a potência transformar-se em ente. 9118
Não há, como aparece em tantos autores, um antagonismo absoluto entre
alternativa e predeterminação, mesmo que se reconheça que a primeira se baseia
na liberdade de decisão. A alternativa é uma alternativa concreta, para se realizar
uma finalidade concreta, e estas foram produzidas pelo ser social (dentro do qual
está o sujeito que tomará a decisão). Tanto possibilidades de objetos (de finalida-
de) como as decisões que se tomam sobre as possibilidades sofrem determina-
ções da esfera mais ampla do ser socia.l.9119
As condiçües estabelecidas nas quais estão imersas as açôes hu1nanas con-
cretas nunca podem dar conta completamente dessas ações, ou seja, não se pode
deduzir anteriormente em termos de necessidade os atos humanos das condições
sociais rn1s quais ele se encontra. Contudo, analisados em conjunto, esses atos
formam tendências, padrões, tipos etc., que matizam sua própria singularidade.
As proporções de atos divergentes e convergentes, esboçando tendências e pa-
drões, ajudam a delinear melhor essa realidade contraditória.990
Superada a breve digressão sobre a relação entre possibilidade, liberdade e re-
alidade, torna-se necessário focar de forma mais estrita no trabalho para explicitar
o porquê de ele servir como modelo de toda práxis. Lukács (2013) letnbra, com
razão, que no formato originário do trabalho, a "intencionalidade" deste estava
orientada aos objetos naturais, apesar de despertada por necessidades sociais.
Não é difícil considerar-se que o pôr teleológico é detenninado sociahnen-
te, mas a questão não se encerra aí. As tendências precisam realizar-se por meio
dos atos individuais, por isso, não é possível prescindir do momento da alternati-
va. É nesse sentido que, para uma melhor compreensão da categoria do trabalho,
Lukács (2013) concebe a explicitação do papel da liberdade no pôr teleológico
por sua vinculação à discussão sobre a alternativa.
Analisando em seu formato originário, é possível entrever os ele1nentos
essenciais da práxis, os quais, hoje, em função do desenvolvimento e da comple-
xidade das instituições, nem sempre são tão visíveis. O trabalho, assim, pode ser
subdividido em duas partes: o pôr teleolc'>gico do sujeito como pressuposto para

'J6I lbidt:m, p. 75.


919
Ibidem, p. 76.
9')(I lbidt:m, p. 76-7.

302
qualquer práxis; e a inter-relação homem-natureza como momento preponde-
rante.
Desenvolveu-se ta1nbém uma }jnha ar!,1\.llllentativa conforme a qual a alterna-
tiva seria wna categoria que habilitaria a passagem da possibilidade para a realidade.
Apesar de, como foi dito, a alternativa ser desencadeada por necessidades sociais, a
satisfação de necessidade é wn traço comwn de diversas formas animais. Uma maior
distinção do ser humano para outras formas de vida orgânica advém quando, entre
o binômio necessidade-satisfação, se insere o trabalho como wna mediação. A in-
terposição do trabalho entre necessidade e satisfação marca, concomitantemente ao
primeiro impulso para o trabalho, sua constituição essencialmente cognitiva, uma vez
que assinala a superação consciente da estri~'l espon~weidade biológica.991
Apenas u1n correto espelhamento da realidade pode transformar a causa-
lidade natural e indiferente à consciência, submetendo-a enquanto causalidade
posta. Nesse processo surgem alternativas concretas que determinam tanto a
finalidade co1no o meio pelo qual ela será perseguida. É dessa maneira que a
potência é transformada em realidade. A outra face desse processo é a transfor-
mação do sujeito, ou como o sujeito, ao transformar o mundo, acaba por trans-
fonnar ta1nbétn a si 1nes1no.9'J2
A necessidade de subjugar a causalidade natural (com o correto espelha-
mento da realidade) indica a conquista do instinto pela consciência, a qual é
reiterada a cada nova alternativa frente a cada novo proble1na no processo de
trabalho - quando a consciência novamente se sobrepõe ao instinto.993
Pensando-se a partir do sujeito, como o pôr teleológico pressupõe um dis-
tancia1nento, aquilo que poderia ser satisfeito imediatamente pelo instinto passa
a ser satisfeito de forma mediada pela consciência. Se, na maior parte dos traba-
lhos realizados, a maioria dos atos parece possuir uma essência não consciente
(ou instintiva), não se deve deixar enganar pela aparência, porque isso se deu e1n
função de um condicionamento prévio consciente desses atos tornados automá-
ticos. Por isso, mesmo tais reflexos condicionados pela experiência são passíveis
de sere1n cancelados tatnbém por outras experiências, porque se originam desse
pôr, que, ao criar uma distância, estabdece fins e meios, bem como supervisiona
e corrige a execução dos fins postos. 994 •
E com a autocriação do homem pelo homem, porque foge à sua mera
existência biológica (resultante do desenvolvimento natural), surge um ser quali-
tativamente novo, o ser social.

Ibidem, p. 78.
992
lbid(:m, p. 79.
991
Ibidem, p. 80.
194
' 1 bidcm, p. 81.

303
11.1-Trabalho, práxis e valor

Até agora se buscou evidenciar como, no trabalho, já se pode vislumbrar, em


traços gerais, diversas questões que ressurgem repetidamente de formas mais
refinadas. Originariamente, o trabalho diz respeito ao metabolismo homem-na-
tureza e os atos individuais orientam-se no sentido da transformação de objetos
naturais. A práxis social, em suas formas mais desenvolvidas e complexas, coloca
em primeiro plano a ação sobre outros seres humanos, a qual apenas em última
análise pode ser relacionada com a produção de valores de uso. Esse estágio ulte-
rior de desenvolvimento também é constituído pelo pôr teleológico de causalida-
des, mas a essência desse pôr se constitui pela tentativa de arregimentar outrem a
realizar, por si mesmo, o pôr teleológico em questão. 995
Como foi exposto, o pôr teleológico provoca um distanciamento em fun-
ção do espelhamento, um distanciamento entre ser e espelhamento. É em razão
desse espelhamento que emerge, já tão estudada em Filosofia, a relação sujeito-
-objeto. A articulação do pôr teleológico e do distanciamento, enquanto relação
sujeito-objeto, provoca complementarmente o surgimento tanto da apreensão
conceituai da realidade quanto sua manifestação pela linguagem.996
O estudo do trabalho como 111atriz ontológica do ser social colabora tam-
bém no esclarecimento da relação entre linguagem e pensamento conceituai,
uma antiga questão em Filosofia. De acordo com o raciocínio estabelecido até
agora, como o trabalho apresenta exigências para a sua execução, que implicam a
conversão das habilidades e possibilidades psicofísicas em termos de linguagem
e pensamento conceitua!, torna-se possível derivar a linguagem e o pensamento
conceitua! do trabalho. Passa, assim, a ser uma tarefa extremamente dificulto-
sa compreender linguagem e pensamento conceitua! prescindindo de elementos
surgidos a partir do trabalho e, consequentemente, como condições pressupostas
para o surgimento do trabalho.997
A simples causalidade pode ser posta ou não, enquanto a teleologia só fun-
ciona enquanto teleologia posta. Por isso, para caracterizar corretamente um pro-
cesso teleológico é preciso também uma correta avaliação - ontologicamente
fundamentada - do sujeito que põe o processo. Algumas escolas filosóficas per-

99
s LUKÁCS, 2013, passim.
996
LUKÁCS, 2013, passim.
..,.,, "É obviamcntt: indiscuúvd qut:, tcndo a linguagem t: o pt:nsamcnto conceituai surgido para
as neccssidadt:s do trabalho, seu dest:nvolvimt:nto se apresenta como uma ininterrupta e
indiminávd ação recíproca, e o fato de que o trabalho continue a ser o momento predominante
não só não suprime a permanência dessas interações, mas, ao contrário, as reforça e intensifica.
Disso se ses,rue necessariamente que no intcrior desse complexo o trabalho influi continuamente
sobre a linguagem e o pensamento concc::itual e \'ice-versa". LUKÁCS, Gyõrgy. Op. Cit. p. 85.

304
dem isso de vista quando abrumam as distinções entre os pores causais apenas
cognitivos e os reais, como acontece no hegelianismo. Não se trata de minimizar
a relevância do pôr estritamente CO!,Tflitivo - pressuposto para o pôr real -, mas
de esclarecer que, enquanto permanece apenas no campo cognitivo, ele é apenas
uma possibilidade (djna,ni.r). 998
E1nbora o pôr teleológico real pressuponha o pôr cognitivo, a transforma-
ção daquilo que é potencial (djna111is) em real implica a necessidade de um ato, o
qual se dá sob a insígnia de uma decisão sobre alternativas. A partir dessa relação
de pressuposição, pode-se dizer que há entre os dois - pôr cognitivo e pôr real -
uma relação de alteridade heterogênea. 999
O espelhamento não é um elemento envolvido na gênese do trabalho, mas
fruto dela. O esforço de generalizações de tipo científico envolve problemas que
possuem implicações também sobre uma ontologia geral. É certo que o em-si da
natureza é neutro em relação à sociedade, mas a apropriação pela consciência da
ontologia (mesmo uma ontologia geral) não consegue ser neutra diante da práxis.
As formas concretas da práxis sofrem, em razão dessa ligação entre teoria e prá-
xis, amplas interferências das representações ontológicas da natureza. 1000
Analisadas as novas categorias e os novos complexos que elas compõe1n,
quando do surgimento do ser social, é instigante pensar sobre quais mudanças
precipitariam a transição de um ser biológico para um ser social. Após o devido
destaque dado à teleologia e à causalidade posta, torna-se mais claro que a de-
cisão - por seu caráter alternativo - é o pôr teleológico e sua realização. Uma
melhor compreensão desses atos (teleológicos), então, passa pelo delineamento
categorial da práxis caracterizada pelo dever-ser.
Há, assim, uma inversão básica entre o ser biológico e o ser social: o primei-
ro sofre determinações do passado (no presente) em razão de uma determinada
herança genética, combinada, talvez, com uma mudança no ambiente; no segun-
do, a conduta é direcionada pelo futuro (a finalidade proposta), determinando
o desdobramento do presente. Frequentemente, mesmo quando se está diante
de utn mero processo causal-natural, não se trata de algo espontâneo, mas tele-
ologicamente direcionado, distinguindo-os essencialmente de simples fatos da
natureza. Isso ocorre com o emprego de forças naturais ou no tempo de espera
da fermentação que dá no vinho. 1001
O desenvolvimento do ser social, enquanto uma nova forma de ser, envolve
não apenas grandes lapsos cronológicos, mas também um desenvolvimento gradual
em direção ao predomínio das categorias específicas do novo ser. No caso do ser

CJ<Ja Ibidem, p. 90.


9')9 Ibidem, p. 90.
10
111) Ibidem, p. 92.
10111
Ibidem, p. 98.

305
social, isso se caracteriza por uma crescente sobreposição do social sobre o natural
(com a já mencionada ressalva da impossibilidade de sua completa supressão).
No pensamento idealista, em especial no pensa1nento kantiano, os impe-
rativos morais, os quais dizem respeito ao dever-ser nas relações humanas, são
transcendentalizados. Seu estofo é composto tanto por uma regra com força
objetiva em relação à ação, quanto pelo ser, cuja vontade não se fundamenta
exclusivamente na razão. Por isso, quando as considerações ontológicas são
convidadas à discussão, isso é feito apenas para representar uma manifestação
particular brotada da regra universalmente válida.1002
Em seu esforço de superar a concepção kantiana equivocada de dever-ser
transcendente, Hegel trata o dever-ser como um modo fenomênico da morali-
dade, que só pode chegar a ser moralidade completa quando está em completo
acordo com a comunidade. Em outros termos, o dever-ser é uma manifestação
de algo que só se poderia alcançar plenamente no campo da eticidade, com a
superação do próprio dever-ser (da moralidade) pela eticidade. 1003
Considerando-se o trabalho em sua forma originária como modelo da prá-
xis, o dever-ser no trabalho determina não apenas a conduta do sujeito em rela-
ção ao processo de trabalho, mas conduta enquanto sujeito do processo de traba-
lho. Em sua forma originária (de metabolismo homem-natureza), a composição
dos fins, meios, objetos, etc. determina concomitantemente a própria essência do
comportamento subjetivo. 1004
Acontece que o dever-ser do trabalho pode interpelar a subjetividade, re-
correndo a alguns traços internos particulares, e isso se dá de tal forma que
mudanças no interior do sujeito possibilitam um metabolismo homem-natureza
mais apurado. O grande exemplo disso é o autodomínio do homem, ou o cres-
cente controle sobre os impulsos e instintos biológicos. Quando se trata, porém,
de influir sobre a atividade de outrem, a subjetividade de quem realiza a atividade
(o pôr teleológico) assume um papel qualitativamente diferente quando compa-
rada com um simples objeto natural; consequentemente, a própria autotransfor-
mação do sujeito vira objeto de pores teleológicos. 1005
. Não obstante as pesadas diferenças que separam .um pôr teleológico sobre
um objeto natural e outro sobre sujeitos - os quais também produzem pores tele-
ológicos-, ambos têm wn significativo ponto comum: são relaçôes estabelecidas a
partir do dever-ser e, assim, as condutas do presente são regidas não pelo passado,
pois o princípio determinante dessas ações é o pôr teleológico, com seu olhar vol-

10112
Ibidem, p. 101.
tOOl HEGEL, G.\V.F. Phmonm,olog;· oJ spirit. Oxford: Oxford Univcrsity Prcss, 1977. p. 263-294;

LUKÁCS, Gyürgy. Op. Cit. p. 102-3.


100.- LUKÁCS, Gyürgy. Op. Cit. p. 1()4.
100
~ Ibidem, p. 104-5.

306
tado para o futuro. Isso explicita os problemas do materialismo vulgar em seu es-
forço por deduzir os fenômenos mais complexos diretamente dos mais simples. 1006
A questão do dever-ser traz consigo, também, indagações sobre a categoria
do valor. E a relação que se estabelece entre ambos é de interdependência: tanto o
dever-ser depende do valor (porque só consegue cumprir sua função de deternú-
nar a práxis subjetiva se aquilo que objetiva é valioso para os homens), quanto o
valor depende do dever-ser, porque ele não existiria na realidade se não pudesse
colocar o dever-ser de sua realização como princípio norteador da práxis. 1ocn
Faz parte do valor a caracterização do produto de um processo de trabalho
como valioso ou não. Mas esse valor atribuído seria uma qualidade objetiva de
alguma coisa (que apenas se vê reconhecida por um ato valorativo do sujeito) ou
fruto dos próprios atos de valoração? Essa caracterização, assim, pode ser abor-
dada como objetiva ou subjetiva, dependendo da inclinação filosófica.
A resposta a esse questionamento envolve o reconhecimento de que o valor
não pode ser extraído das propriedades naturais do objeto - tanto nas formas
mais alterosas e espiritualizadas de valor (como os valores estéticos), quanto nas
mais triviais (como é o caso do valor de uso na economia política de Marx). Os
valores de uso são, em Marx, produtos do trabalho, frutos da transformação de
objetos naturais.1008
Os valores de uso são objetividades. São formas (objetivas) de objetividades
sociais, traduze1n objetiva1nente o metabolism~ homem-natureza e, por isso, não
estão sujeitos, em sua universalidade, a mudanças históricas- apesar de sofrerem
transformações em suas formas fenomênicas. Deve-se notar que a utilidade só
existe enquanto para um fim específico. Já. no período inicial do trabalho é possí-
vel assinalar a utilidade particular que torna um objeto qualquer em um valor de
uso para o ser humano. 1009
O caso de possuir a utilidade wn claro cunho teleológico não implica, po-
rém, a adnússão de uma natureza subjetivista. Dito de outra forma, não se pode
dizer que o valor de uso surge meramente como um fruto de atos subjetivos de
avaliação ou valoração. Na verdade, esses atos avaliativos/valorativos subjetivos
desvelam - trazem à consciência - wna utilidade objetiva do valor de uso, que é
comprovada ou não pela composição objetiva do próprio valor de uso. Confor-
me Lukács, "é a constituição objetiva do valor de uso que demonstra a correção
ou incorreção deles [os atos valorativos] e não o inverso". toto

ªºº" Ib.d
1 em, p. 105.
007
ª A interdependência entre de,·er-ser e v:ilor n.io devt! ser confundida com identidade (LUKÁCS, 2013).
sor. Ibidem, p. 107.
009
' Ibidem, p. 108.
'º º Ibidem, p. 108.
1

307
Diante de todo o exposto até agora, pode-se vincular a gênese do valor, em
termos ontológicos, à questão da utilidade, porque, na produção de valores de
uso, a satisfação das necessidades se dá por meio de alternativas entre o que é
útil ou não. Ajuda a uma melhor compreensão, no contexto das discussões sobre
a objetividade dos valores, lembrar que o pôr teleológico representa a concreta
realização do valor, quando perseguido de forma correta.
A correta dimensão da concretude do valor importa, aliás, por conta de sua
supervalorização abstrata pelo idealismo, por meio de uma sobrecarga da ratio.
Quando se analisa o valor també1n se deve destacar seu caráter não de raciona-
lidade absoluta, mas de nexo concreto (se... então). Determinados instrumentos
têm valor quando cumpridos alguns requisitos, e não de forma abstrata e indis-
tinta. E a generalização dos pressupostos para esse nexo concreto não levam a
uma esfera abstrata e absoluta, mas a uma abstração dirigida para a legalidade. 1011
Quando se analisa a partir do metabolismo originário homem-natureza, o
panorama geral sobre o dever-ser é mais claro e simples do que com a futu-
ra complexificação social, quando extrapola essa estrita inter-relação homem-
-natureza. É apenas com o posterior desenvolvimento da sociedade que surgem
mediaçôes e realizaçôes, as quais pressupõem esse fundamento originário. 1012
Para se avaliar de forma correta a relação entre valor econômico e os demais
valores da práxis é preciso não se deixar levar por algumas posições recorrente-
mente equivocadas, co1no os logidsmos e o materialismo vulgar. O materialis1no
vulgar concebe as categorias mais complexas como resultados mecânicos das
mais fundamentais, dissolvendo, consequentemente, a peculiaridade das catego-
rias fundantes e criando uma falsa hierarquia entre umas e outras.
Já os logicismos entendem ser possível realizar deduções (de forma lógico-
-ontológica) a partir do conceito geral abstraído da estrutura e disposição das ca-
tegorias. Com isso, cria-se (a) uma equivocada hierarquia lógico-siste1nática entre
conceitos - dentro de determinadas formações e vínculos, cuja peculiaridade se
deve, na verdade, a seu engendramento histórico e a seu posterior desenvolvimen-
to; (b) wna dissonância entre o conceito logicamente determinante e o ser original,
levando a uma equivocada fixação da essência e das relações das categorias. 1013
O complexo do processo de reprodução é inseparável da aceitação ou re-
jeição de um valor, uma vez que é co1nposto de pores teleológicos. Percebe-
-se, assim, como os genuínos valores são momentos importantes na práxis. Em
cada pôr concreto, um valor é intencionalmente colocado e, por isso, poder-se-
-ia concluir erroneamente, a partir disso, que os valores são única e so1nente as
sínteses desses pores. Entretanto, a gênese dos valores não se deve aos pores
1 11
º Ibidem, p. 111.
1 12
º Ibidem, p. 112.
iou Ibidem, p. 117.

308
propriamente ditos, os quais funcionam como um pré-requisito para a realização
dos valores, mas, sim, à contínua transformação estrutural do ser social, ao seu
contínuo desenvolvimento que apresenta concretamente as alternativas. O valor
se encontra nessas alternativas, mesmo quando elas não se manifestam de forma
totalmente consciente.1º14

11.2 - A relação sujeito-objeto e a questão da liberdade do indivíduo

Um importante fenô1neno relacionado intimamente com o trabalho é o da relação


sujeito-objeto. Conforme as concepções apresentadas até aqui, é em função do tra-
balho que surge o distanciamento entre sujeito e objeto, e este, consequentemente,
criaria (a possibilidade da) linguagem. A distância entre sujeito-objeto no trabalho e
na linguagem faz parte de um contínuo processo de diferenciação. 1015
Não se pode esquecer que as satisfações de necessidades realizadas por
meio do trabalho são necessariamente mediadas, pense-se na relação meio-fim
que se estabelece. Complementarmente, os produtos do trabalho adquirem uma
nova imediaticidade (Unmittelbarkei~, de cunho social. O desenvolvimento do tra-
balho é marcado pela produção de mediações entre os homens e as finalidades
perseguidas, e é então que surge a distinção entre finalidades imediatas e me-
diatas. A constatação de uma práxis como verdadeiramente social depende de
a relação dessa conduta com a realidade tornar-se generalizada socialmente. 1016
A partir da relação sujeito-objeto distanciada, a linguagem surge como meio
possível para representar intelectualmente aquilo que se oferece como um dis-
tanciamento real. Em outros termos, o distanciamento criado pela lin&,uagem
torna possível a comunicação de um distanciamento realmente existente, surgido
a partir do trabalho:

i•u• A 1.d t:Ja


• d e que as alternativas siio apresentadas pdo desem·o 1vunento
• da soc1e• dade, m:is sao
-
r~spondidas pdo homem, tem uma formulação coerente em linhas marxianas quando t: clito
que o homem faz a sua históri:i, mas niio nas circunscincias c:m que escolheu. Cf. MAR}C,
Karl. O Drzoilo Bm111tirio dt L,,iz. Bo11aparlt. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 25. "A objetividade
dos valores se fund:i, pois, no foto de que todos esst:s são componentes movc:ntc:s e movidos
do conjunto do dt:senvolvimc:nto sociaJ. Sua contraclitoric:dade, o foto incontestívd de que,
muitas vezes, dc:s se encontr:im t:m oposição aberta com a própria base econômica e att: entre
si, não leva por isso a uma concepção rd:itivist:1 dos valores, como pensa Max \X'eber, e muito
menos leva nessa direção o foto de ser impossívd orden:í-Jos em um sistema hierárquico, em
uma tabda". LUKACS, Gyõrgy. Op. Cit. p. 124.
tOIS ld .
em, pass1m.
1016
Ibidem, p. 127-8.

309
Assim, só o distanciamento intelectual dos objetos por meio da linbJ'\lagcm
é capaz de fazer com que o distanciamento real que surgiu no trabalho
seja comunicável e fixado como patrimônio comum de uma sociedade. 1 17 º
O trabalho não modifica apenas a realidade externa, mas transforma signifi-
cativamente o próprio homem. A partir da necessidade do indivíduo de controlar
a si mesmo para realizar as finalidades estabelecidas em determinado processo
de trabalho, a consciência humana adquire controle sobre os elementos que a
tornavam um epifenômeno, como instintos, hábitos, impulsos etc. Essa nova
constituição da consciência se dá em termos ontológicos, mas a consciência em
si - assim como o ser humano - permanece assentada sobre uma base natural; o
afastamento da barreira natural não implica a sua supressão.
É também do caráter fundante do trabalho que Lukács (2013) deriva uma
solução possível para a questão da liberdade. A dificuldade de se discutir o tema
da liberdade, conservada de certa forma até hoje, está diretamente ligada com
seu caráter multifacetado. Há liberdade no sentido jurídico, ético, político, re-
ligioso, dentre outros. Muitas esferas do ser social, ao desenvolverem legalida-
des próprias, criaram também uma concepção própria de liberdade. Isso tornou
extremamente clificil uma formulação unitária e sistemática da liberdade pelas
doutrinas idealistas. 11118
Ao contrário do que algumas correntes filosóficas poderiam dar a entender,
especialmente em função de inspirações teológicas, a liberdade é um fenômeno
em princípio estranho à natureza. De fato, a origem ontológica da liberdade pode
ser traçada até o caráter alternativo da práxis, e esta, enquanto pôr teleológico de
uma causalidade, não existe na simples natureza. 1º19
Lukács (2013) considera que a liberdade é o exercício concreto de uma de-
cisão diante de possibilidades concretas - e não uma simples especulação abstrata
-, uma vontade direcionada à transformação da realidade. Nesse sentido se con-
segue justificar, teórico-filosoficamente, uma restrição do conceito de liberdade
excludente das reflexões, paixões, afinidades, projetos etc.
A discussão sobre a liberdade se torna um tanto mais problemática quando
se traz para o debate questionamentos sobre em que proporção uma inflexão de
determinação (interna ou externa) - a "determinidade" (Deter11Ji11iertheil) - sobre a
decisão do homem pode ser apropriada como parâmetro da liberdade. A maioria
das Filosofias estabelece uma relação excludente, de oposição, entre determini-
dade e liberdade, justamente o que traz o caráter problemático para a discussão.

11117
Ibidem, p. 128.
1 11
1) lbid~m, p. 137.
1 19
1) lbidt:m, p. 138.

310
O dilema só é resolvido quando se percebe que não pode jamais se tratar
de uma relação de exclusão, pois o homem que vive em sociedade não pode, em
mo1nento albrum, encontrar-se sem qualquer determinação. A ideia de um sujeito
sem qualquer detcrminidade interna ou externa só pode se realizar em uma figura
divina, razão pela qual esse critério é comumente propugnado por filosofias de
marcante acento teológico - pense-se na ideia de i111ago dei. 1020
É importante, além disso, realizar duas ponderações. Primeiro, as decisões
frequentemente se acham sobre encruzilhadas, nas quais as escolhas ficam
bastante interditadas, quando não impossibilitadas. Frequentemente, para se
atingir o fim desejado, não há mais do que uma possibilidade de ação. Segundo,
não é acessível ao homem a totalidade das consequências de suas ações, ou
1nes1no grande parte delas. É característico da vida que decisôes sejam tomadas
sem se ter conhecimento das consequências, elementos e contexto, em sua maior
parte. Especialmente em seu aspecto mais corriqueiro, quando as decisões devem
ser to1nadas com mais rapidez.
Ainda diante disso, não se pode dizer que está suprimida a liberdade, pois,
também quando o número de opções é reduzido e o conhecimento sobre elas é
diminuto, não se trata de um fenômeno natural - cujo limite é a mera causalidade
natural- mas sim de uma alternativa (e uma decisão). Uma importante diferença
qualitativa. Quando reduzida à sua estrutura essencial - a partir do modelo origi-
nário de trabalho -, pode-se perceber que a liberdade é determinada não sô pelas
necessidades humanas, como também pelo conhecimento objetivo das determi-
nações da matéria, dos processos e eventos. As duas, determinação e liberdade
são, assitn, os co1nponentes do complexo social, cuja pedra anbru.lar é a decisão
em seu caráter alternativo. 1021
Mesmo diante do distanciamento do trabalho (como ocorreu de fato) do
seu 1nodelo originário, esse roteiro fenomênico da liberdade se mantém. Com o
tempo e a complexificação social, o liame direto entre as generalizações das ex-
periências de trabalho com um pôr concreto mingua, especialmente em função
da runpliação do papel da ciência. Deve-se atentar, todavia, ao fato de que, persis-
tindo a possibilidade do uso dessas generalizações no trabalho como verificação
derradeira, reafirma-se, em última análise, a dinâmica originá.ria do trabalho. Seja
porque aponta a intenção enraizada de transformar nexos constatados em pores
teleológicos, seja porque aponta a reafirmação da forma fenomênica da liberdade
, • do tra b alho. 1º22
t1p1ca

p. 138.
1•1!11 lbidc:m,
1021
lbidc:m, p. 140.
1022
lbidc:m, p. 141.

311
Se a liberdade pode ser abordada como o livre movimento na matéria, con-
forme o trabalho se afasta de seu modelo originário, o objeto sobre o qual o tra-
balho se debruça, e se movimenta com liberdade, deixa de ser apenas a natureza
e passa a incorporar também a inter-relação sociedade-natureza e o processo do
ser social. Outra consequência perceptível desse distanciamento é que mesmo o
trabalho direto ocorre por inúmeras 1nediações.
De fato, ao tentar traçar formulações sobre os caracteres distintivos do ho-
mem, as filosofias idealistas atribuem aquilo que há de qualitativamente novo no
homem à liberdade, contrapondo-a à necessidade. Essa relação antitética que as
filosofias idealistas atribuem à relação entre liberdade e determinação se deve,
em parte, à equalização entre determinação e necessidade, a qual ignora o cará-
ter de i11plicaçào que a necessidade possui em parâmetros ontológicos. A correta
apreensão da liberdade, enquanto decisão fundada em um caráter alternativo e
teleológico, dilui-se ainda mais quando se alia a essa concepção de generalização
racionalista da ideia de determinação o projeto idealista de extrapolação da tele-
ologia para a história ou para a natureza.1023
O homem, ao se debruçar sobre o objeto de trabalho, precisa saber que
alhr,.unas de suas qualidades são apropriadas à sua finalidade. Essas propriedades
do objeto são, ao mesmo tempo, objetivas e latentes porque têm um fundamento
narural, mas, sem o homem, jamais viriam à tona. São, portanto, meras possibili-
dades. A própria transformação subjetiva (o despertar de habilidades) do sujeito
que realiza o trabalho permanece em latência, como possibilidade, até que ele o
realize. 1024
Ao contrário do que poderia dar a entender, por exemplo, u1na estrita in-
terpretação das formulações de Engels,1025 a liberdade não pode ser delineada
apenas e estritamente como necessidade conhecida. Uma aproximação mais es-
correita da conceituação de liberdade, por fim, diz respeito ao "movimento li-
vre na matéria", conforme propõe Lukács (2013). E esse movimento livre só é
tornado possível mediante o conhecimento adequado da realidade por meio de
suas categorias modais, e sua subsequente transposição bem-sucedida em práxis.

º" Ibidem, p. 142.


1

,oi• ldc::m, passim.


io?S "A liberdade não reside, pois, numa sonhada independência em relação às lds naturais, mas na

conscitncia dessas lds e na correspondente possibilidade de projc::t:í-1:is racionalmente para


determinados fins. Isto t:. verdade não somente para as lds da natureza exterior, mas tambc:m
para as lds que presidem a existc:ncia corpornl e espiritual do homem: duas espécies de leis
que podemos distinguir, quando muito, em nosso pensamento, mas que, na realidade, são
abso)ut.1mente inseparávds. O livre-arbítrio não e:, portanto, de:: acôrdo com o que acabamos
de dizer, senão a capacidade de decisão com conhecimento de causa,,. ENGELS, Friedrich.
A11ti-Diihring. Rio de Jandro: Paz e:: Tc::rrn, 1990. 95-6. Citado tambc:m em Luk:ics (2013).

312
O desenvolvimento social produz um afastamento da estrutura original do
trabalho, e o pôr teleológico, que contava apenas com a natureza como objeto,
passa a contar co1n outros homens. As fonnas gerais e a essência, assitn como
o modo fenomênico, produziram-se historicamente. Essa complexificação dos
pores se deu em razão do desenvolvimento social e, portanto, não pode ser sim-
plesmente inferida logica1nente de sua matriz originária.
Pode-se afirmar, sim, sem maiores problemas, que algumas das determina-
ções decisivas dos pores teleológicos surgem já em sua estrutura originária. As
diferenças entre uns e outros, entre o pôr teleológico em suas manifestações mais
complexificadas e sua estrutura originária, emergem em razão do tornar-se cada
vez mais social dos objetos e meios do pôr. 1026
Os processos sociais, agora, não mais referentes apenas pelo metabolismo
homem-natureza, precisam colocar em movimento uma cadeia causal relativa-
mente independente da vontade por trás do pôr de seu ser. Uma independência
relativa porque conforme a sua própria legalidade. É em função desse cenário a
afirmação lukacsiana de que a sociedade se torna uma espécie de segunda natu-
reza, pois o homem deve agir, quando estiver diante dela, guardadas as devidas
proporções, como se estivesse diante da natureza propriamente dita. Colocando
de outra forma, para transformar esse novo objeto de acordo com sua vontade,
o homem deve conhecer adequadamente sua essência para, então, transformar o
devir do objeto e1n algo posto por ele. w27
Há, deve-se chamar a atenção, uma diferença substancial entre uma alter-
nativa cujo conteúdo pode ser pensado em termos de maior ou menor correção
cobrnitiva e aquelas alternativas cuja finalidade é, em si, resultante de alternativas
sociais pretéritas. Com a complexificação social, sequer se pode dizer que há
soluções unívocas para as questões, variando a resposta correta de acordo com a
posição de que1n interpela a realidade. 1º28
As consequências da práxis, contudo, são bem mais graves, pois, em meio
a tudo isso, o homem produz a si mesmo como membro do gênero humano
e, consequentemente, o gênero humano mesmo. O momento de superação da
esfera estritamente orgânica - daquilo que Lukács chama de "a mudez orgânica
do gênero"-, o abandono do gênero estritamente natural para um gênero social,
produzido pela atividade do prôprio homem, é, assim, o mesmo momento da
emergência da liberdade. 102"

"' e~.,}, e; yorgy.


- r•ut·A·
,,,,b •• o p. e·1t. p. 150.
111
zr lbidtm, p. 151.
111211
lbidtm, p. 152.
,,m lbidt:m, p. 155-6.

313
12 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. A fim de dar ares de remate - muito embora o tema não permita isso em ab-
soluto - pretende-se nestas considerações finais retornar, ainda que brevemente,
a alguns pontos considerados fulcrais para a ideia condutora do livro. Nesse
sentido, parece pertinente levantar algumas suspeitas de afinidade entre catego-
rias extrínsecas ao Direito e categorias dogmáticas, por exemplo. Assim será o
esforço em apontar pistas para a reflexão (por um ângulo diferente) acerca das
ojfendic1lla, os crimes omissivos (com breves indicações sobre os delitos culposos)
e questões da antijuridicidade.
Pelo tema se interconectar com tantas questões e categorias da teoria do
delito, nos vimos obrigados a realizar uma análise demasiadamente simples. Sob
o risco, do contrário, de estendê-la indevidamente (sem o necessário tempo de
maturação das ideias) e querer vaticinar onde inúmeras monografias e tratados já
se debruçaram, com mais tempo e mais qualidade.
2. A capacidade das dimensões do valor de se transformarem, incrementa-
rem e conservarem por meio do trabalho - a herança hegeliana, aqui, é clara - é
o caminho que permite nos apropriarmos da crítica da economia política a fim de
instrwnentalizá-la em uma analogia entre a ideia de trabalho morto e al!:,Ttins institu-
tos do Direito Penal (como as ojfeudir11la). A ideia de trabalho morto, aliás, remete
às diferentes funções dos meios de produção e da força de trabalho no proces-
so produtivo, quando entendido sob uma luz específica. Essa ideia de trabalho
morto apresentada aqui - essa luz que lançamos sobre o processo produtivo - é,
assim, autorizada não só pela obra do próprio 1-Iarx (2006), mas também por
alguns de seus intérpretes mais qualificados (ROSDOLSKY, 2001).
É sabida a possibilidade à predisposição mecânica de ofensas, condicionada
à ação de um agressor (offe11dicJ1la); desde cacos de vidro e cercas elétricas nos
muros até a preparação de mecanismos mais complexos (de armas de fogo a
bombas). 1030 Analogamente, nos delitos informáticos, são muitos os casos nos
quais a ofensa realizada jaz dormente à espera de uma interação por parte do
sujeito passivo do delito para ser ativada - geralmente inexistindo qualquer pré-
-condicionamento a alguma agressão prévia nesses casos -, como se dá nos casos
de e-mails com vírus etc. É nesses casos que se busca alguma convergência.
A permissão do paralelo entre o.ffeudimla e crimes infonnáticos é dada pelo
caráter mediado destes. De fato, a informática não é uma finalidade em si mesma,
mas uma novíssima ferramenta com a qual as pessoas podem contar para realizar

º ZAFFARONI, E.R.; BATISTA, Nilo [c:t al.J. Dirrito Pmal Bmsilriro, volume 11, 2. Rio de Janeiro:
1" 1

Rcvan. No prdo.

315
suas finalidades. Percebe-se, assim, como nos delitos informáticos é frequente-
mente o caso de tratar-se de antigos delitos - a coleta não autorizada de infor-
mações como em uma violação de correspondência (cujo paralelo óbvio seria o
art.154-A do CP11131), o estelionato etc. - realizados de novas formas, apesar de
sua aparência de originalidade e urgência - como se pôde depreender da rapidez
na tra1nitação da lei global 12.737 /12.
:tv!erece destaque, apesar de breve, uma especial diferença entre as offendi-
c11/a e os delitos informáticos: estes (por definição) são uma ofensa antijurídica
e aquelas, em princípio, não o são (a não ser em casos particulares, como na
desproporcionalidade em relação à agressão futura). Com isso, no caso das offen-
dic,,la, quando se faz saber do perigo e se toma os devidos cuidados para que
esse mecanismo de defesa não atinja um não agressor (como o uso de avisos),
e também quando há proporcionalidade do meio defensivo, a questão pode se
resoh·er pela tipicidade sistemática (autolesão atípica) ou pela tipicidade conglo-
bante (consenti1nento informado aliado à autoexposiçào a perigo). 1032
Não iremos, no entanto, discorrer aqui sobre as ojfendic11/a e suas possibili-
dades de extrapolação (seja pela falta de advertência, prudência contra outrem
ou proporcionalidade), as quais levam a considerações sobre a antijurídicidade
(como na possível constatação da legítima-defesa) e a culpabilidade (nos casos de
excesso escusável). Esse não é o objetivo do texto. Apenas vale a pena mencio-
nar, todavia, como a prôpria predisposição de obstáculos para turbação de posse
(como fechaduras e alarmes) possui um grau de parentesco com o ofje11dictll111111033•
Encerrn-se, então, o paralelo traçado aqui com o destaque para o potencial
frutífero em se relacionar determinadas manifestaçc1es de conduta como traba-
lho morto. Como se viu, nesses casos, a ação é empregada de forma a que seu
potencial ofensivo paire (em tese) indefinidamente, esperando ser acionado; ao
contrário, as açc1es comuns são geralmente atuais, e precisam deflagrar desde
logo sua ofensa (pois, sem lesão ou perigo, não há delito). Essa espécie de con-
duta se caracteriza, então, pela cristalização (objetivação) da ação, a qual implica
sua autonomização do sujeito ativo, bem como no condiciona1nento de seu des-
dobramento potencial (ofensividade) a evento futuro (a interação de outrem),
11131
De$taque-se que há quem chame o delito do art.154-A do CP de um delito dt il(/Õmuíticn p"ro
(Cf. GRECO, Rogério. Co111mlário 1obre os crimes de invasão de dispo1itivo i1ifôm1,íliro). "Invasão de
di$positivo informático - Art. 154-A. Invadir disposiúvo informático alheio, conectado ou não
à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim
de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autori7.aç:io expressa ou tácita do
tirular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades parn obter \'antagcm ilícita: Pena - detenção,
de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa".
ton ZAf-í-ARONI, E.R.; BATISTA, Nilo [et ai.}. Dirrilo Pmal Brasileiro, volume II, 2. Rio de Janeiro:
Revan. No prelo.
Ml Idem.

316
podendo gerar consequências muito díspares entre si. Nesse sentido, o conceito
de trabalho morto parece ajudar a esclarecer o caráter geral dessas e de outras
condutas semelhantes, com especial relevância para o Direito Penal.
3. Quanto à omissão, uma das perguntas fundamentais é se existe ou não
fora da legislação. Em outras palavras, se se trata ou não de um fenômeno estri-
tamente jurídico. Essa questão é respondida de diversas fonnas, mas as tentativas
de reposta também envolvem algum grau de confusão. São, em tese, possíveis
três explicações: omissão como um fenômeno próprio do Ser; como fruto da
relação indivíduo-sociedade; ou como estrito fenô1neno normativo. 1034 Se ela só
existir enquanto fenômeno jurídico, então seria plenamente possível caracterizá-
-la como totalmente normativa. Caso contrário, não.
O cuidado que se deve ter é o de discriminar o ontológico do não-ontológi-
co. Uma postura finalista delimita a matriz ontológica da conduta humana e isso
significa que é possível traçar as condutas até modelos fundantes originários, e
11ão que toda manifestação fenomênica de conduta humana (com todas as suas
nuanças e todos os elementos agregados) possui ou comunga necessariamente de
uma "exclusividade ôntica".
Portanto, perguntar se a omissão é algo prôprio do seré em si uma perbrunta
viciada porque possui incutida nela mesma um viés que induz a interpretações
equivocadas. Como se pôde deduzir das ideias de Lukács, a matriz ontológica é
uma matriz social. É um equívoco, então, contrapor co1no dicotômicas as expli-
cações ontológicas e sociais da omissão.
Talvez parte do problema seja a incompreensão de que tanto a ação quanto
a omissão são 1nanifestações concretas de um 1nodelo de conduta ontologica-
mente fundado - o qual, aqui, chama-se de co11d11ta para evitar confusão. São
manifestações concretas de algo que existe por meio delas, e é no confronto
dinâmico de ambas que se pode, em detenninados mo1nentos, vislumbrar sua
essência. Assim, não se trata também de reduzir a omissão à ação (ou considerá-
-la uma espécie da ação), mas de tornar clara a matriz comum de ambas.
É por isso trunbém que a questão do desvelamento dessa matriz comum
coloca em xeque a ideia corrente sobre a função de unificação da ação. Porque,
se a formulação exposta aqui for correta, a apresentação de uma matriz comum
não confi6rura (e nem precisa) uma delitnitação rica o suficiente para abarcar
ação e omissão em todas as suas manifestações mais peculiares e idiossincráticas.
Portanto, essa unificação seria feita não pela exposição da matriz teleológica, mas
sitn 110111i11aln1e11te, pelo recurso a wna tenninologia convencionada que cumprisse
ioJ.C " Uma vez que se diga que a omissão tem existência fora do direito, então se dt:\'C! esclarecer
se da t! própria do ur, de elementos gerais que caracterizam tudo o que C!xiste, independentC!-
mcnte das respecti\'as entidadc.:s, ou se da decorre da inserção do homem no mundo social e
organizado". TAVARES,Ju:irez. Tt.•cmi, dos Cni11,·s 0111i.uil'o1... p. 49.

317
de forma suficiente o papel classificatório. Por isso a teoria finalista parecia en-
frentar problemas quando se deparava com a necessidade de resolver a questão
da função de unificação.
A distinção entre o denominador comum (ou substrato mínimo) e a com-
pleta representação do conjunto de fenômenos analisáveis se dá pela diferencia-
ção entre a matriz teleológica e a total compreensão de suas manifestações. São
interdependentes, porém distintas. A terminologia em questão pode ser conduta
(para que se possa diferenciá-la, como já é feito por alguns autores, da ação em
sentido estrito), tanto como qualquer outra.
4. É amplamente difundido - de forma a ser possível afirmar tratar-se de
uma das poucas unanimidades no Direito Penal- que o fundamento da omissão
não é simples não fazer, mas o não fazer algo, ou seja, a abstenção de uma ação
esperada. E é esse caráter dos crimes omissivos o principal ponto de apoio para
todos aqueles que os apontam como condutas totalmente normativas.
Não se pode negar a importância central que a ação esperada te1n na confi-
guração dos delitos omissivos. Entretanto, essa expectativa de ação não é, com o
perdão da vagueza do termo, apenas externa, mas também possui um importante
caráter interno. Em outros termos, não se pode dizer configurada wna conduta
onússiva quando há apenas uma expectativa social externa sem qualquer reflexo
subjetivo no agente (se isso for possível em casos que nno meramente hipoté-
ticos). Se o agente não tem conhecimento de que é esperado dele detenninado
comportamento, não se pode dizer que sua inércia é uma conduta, por exemplo.
É nesse sentido que (1) mesmo a omissão possui um inalienável vínculo
com a matriz teleológica da conduta, pois também ela impõe como necessários
os marcos ontológicos que tornam essa frustração de uma ação esperada uma
manifestação de uma decisão do indivíduo (na qual é possível observar consciên-
cia e vontade direcionadas a determinada finalidade); e (2) desfruta de alguma ra-
zão o argumento exposto por M. E. Mayer de que inatividade e omissão se distin-
guem especialmente (mas não somente) em razão da faceta subjetiva da omissão:
quando havia wna razão para fazer algo e essa razão era não apenas socialmente
estabelecida, mas representada pelo indivíduo, pois somente assim ela pode ser
ou não querida 1035 - apesar de muitos definirem a omissão a partir do juízo de
dissonância entre a conduta esperada e a conduta realizada, isso substitui (como
soH Apesar de claramente não se concordar, aqui, com todos os aspectos, vale a transcrição: "lnac-
tividad }' omisión no son conceptos idénticos; el no hacer puede, en cfccto, ser referido a una
resolución motivada o a algo no querido; sólo la primcra clase de inactividad es una omisión.
Ella ticne lugar únicamente cuando había una razón para hacer algun:i cosa; y no es de manera
alguna suficiente que /01 dtn1áJ conozcan esa razón, antes que nada ha de ser ri 111is1110 i11arlit.'O cl
que se haya representado la actividad; pues únicamente bajo ese supuesto pucdc el no hacer
haberse querido. Por ello, la esencia de la omisión consiste en que alguicn a la represent:ición
de una actuación lc niega la fuerza moti\'adora". MJ\YER, Max Ernst. Dererho pr11t1I. .. p. 137.

318
ponto central da omissão) o omitente pelo julgador e indica que toda expectativa
frustrada é uma omissão (quando, se não envolve qualquer processo cogrútivo, é
uma mera inatividade). 1036 A referência a Mayer, aqui, é especialmente pertinente
para mostrar que não se trata de negar o aspecto valorativo da omissão.
A expectativa de ação seria internalizada sob a forma de um valor, o qual servi-
ria de referência para a manifestação da conduta. É nesse sentido que se pode enten-
der como há omissões atípicas (fundadas apenas na moral social) 1037 e como podem
ocorrer erros de proibição, quando o valor internalizado é qualitativamente diferente
da expectativa social cristalizada na norma penal. Torna-se muito mais dificil pensar
nos casos de erro em geral e especificamente nos erros de proibição quando se consi-
dera a conduta uma pura atribuição de valor ou de significado desde o exterior.
A matriz teleológica da conduta não nega à conduta humana relações com
os valores, como poderia parecer numa leitura superficial. Desde seu início, in-
clusive, há um reconhecimento tácito ou expresso da relação ação-valor. Quando
alguns autores se debruçavam sobre os crimes contra a honra para destacar a
necessidade da finalidade da conduta como elemento central para se determinar
de que tipo de conduta se trata, por exemplo, em uma leitura arguta é possível
constatar, já aqui, um reconhecimento das relações conduta-valor. Ora, não seria
possível a alguém atacar a honra de outrem se ele não dominasse (mesmo que da
maneira mais básica possível) os códigos sociais e linguísticos necessários para
proferir as palavras co1npatíveis (específicas a cada sociedade particular) com sua
finalidade de ofensa. Pode-se afirmar com algum conforto, diante disso, que há
um reconhecimento implícito da importância dos elementos valorativos para a
conduta; mas isso co1nparece, na concepção teleológica da conduta, por meio da
necessária subordinação da esfera valorativa à esfera ôntica quando necessário -
ou seja, pelo reconhecimento de um princípio da realidade.

1036 Novamente, mesmo sem se precisar concor<lar cm todos os aspectos: "Resucltamentc en contra
Kollmann, Z, 29, p. 385: 'El omitires e1 juicio de discrepancia entre la con<lucta real y la con-
ducta relativamente posiblc de un portador de ,•oluntad'. L'l definición cs rebuscada, aparece
claro que, de acuerdo con clla, lo que aparece no es el 9ue omite, sino el que ju1.ga la omisión
(p. 390/91), adcmás cs ella completamente falsa, en primer lugar, porque scgún ella a cada
expectativa frustrada corresponde una omisión, cn segundo lugar porque, de acuerdo con clla,
muchas actividades son omisiones; p. ej., un delincuentc ha calculado que no seria descubierto,
pero lo es; con arreglo a Kollmann, resulta d hecho de descubrirlo una omisión de la polida".
MAYER, Max Ernst. Derrcho pe11al.. p. 137, Nota 51.
1037 Heleno Fragoso parece aproximar-se dessa ideia cm seu Cond11la P1111í1,er. "A omissão é, porém,

uma rr,did{l(/t socit1/, e não apenas um juízo: é realidade social, como a ação, constatada atra,·és
de um juízo objetivo. Pode-se falar cm omissão também fóra do campo do direito, tendo cm
vista a valoração social do comportamento, sempre que haja abstenção de atividade de,·ida ou
esperada, em face de qualquer espécie de norma" (grifo nosso). p. 183.

319
Aqui também é esclarecedor o paralelo com a noção de trabalho. É ilustra-
tivo o exemplo do processo de fermentação do vinho, quando ele fica apenas
"descansando" e1n toneis. Mesmo não passando, nesse mo1nento específico, por
nenhum processo ativo de trabalho, esse simples estar do objeto se vincula a um
processo de trabalho e, ma.is especificamente, a uma decisão sobre um determi-
nado curso causal. Não se trata, parece óbvio, de u1n curso causal natural que aci-
dentalmente levou àquilo. Por outro lado, as frutas que caem e fermentam sobre
o chão (pense-se na Marula, a qual possui um rápido processo de fermentação),
fora da esfera de alcance e controle do homem, não possue1n qualquer caráter de
manifestação da conduta humana (que pode atribuir-lhes um particular vínculo
social); são simples processos naturais. Afinal, o que nos permite (mesmo que
parcial1nente) caracterizar um como manifestação hwnana e o outro não, se são
ambos aparentemente processos naturais (de fermentação)?
É possível afirmar algo análogo sobre a omissão em matéria penal. Ela deve
ser de tal forma que, mes1no que não possa ser ligada a wn curso causal anterior-
mente criado pelo agente, a conduta omissiva expresse uma decisão por parte do
indivíduo. Ao se reconhecer isso, abre-se a porta para se reconhecer também os
marcos ontológicos mesmos para os delitos omissivos. Assim co1no no exe1nplo
da fermentação, os delitos omissivos só adquirem uma plena significação social
(como parte de uma conduta humana) quando há uma subordinação à finali-
dade. Ou ainda, a constatação de uma omissão não é u1na atribuição de valor
sobre o nada como se poderia depreender de algumas concepções valorativas da
conduta. É, sim, a disposição do mundo de acordo com a finalidade do sujeito,
cujo meio adequado é a não realização de uma conduta esperada, ou ainda, a mo-
vimentação do sujeito, no mundo, de acordo com balizas valorativas, de forma
mais ou menos conveniente para atingir sua meta.
Por tudo isso, os exemplos mais comumente empregados para retratar au-
sência de conduta nos casos dos crimes omissivos dizem respeito não a critérios
valorativos, mas a pressupostos fisiológicos da articulação consciência-vontade.
Casos como o de privação de sentidos, inconsciência etc. Mesmo diante de todo
o refinamento e rebuscamento das teorias comunicativas, veem-se mantidos os
clássicos casos de ausência de conduta, todos fundamentados quando não sobre
esferas fisiológicas, sobre esferas objetivas, que habilitam considerações ontológi-
cas (um episódio médico que causa a ausência de consciência e por isso o sujeito
não pode se manifestar; o indivíduo está amarrado e não pode se manifestar etc.).
É pela confusão entre elementos ônticos e normativos que as concepçôes
valorativas e neovalorativas frequentemente confundem também conduta e an-
tijuridicidade. 10.lK Se a omissão é criada pela atribuição de um valor - habilitada
1
"}6 Cf. MEZGER, Edmund. Trntndo... p. 274.

320
pela norma que cria uma expectativa de ação -, como distinguir entre omissão e
antijuridicidade? Ou se a omissão surge estritamente da norma, como distinguir
entre 01nissão e tipo? A resposta dada atualmente é a desintegração da conduta
como objeto. Algumas posições clássicas mais antigas (como a de Mezger) não
chegam a tanto, e passam por grandes dificuldades para explicar a ideia de fn,stra-
ção da ação esperada (omissão) se essa frustração não é antijurídica (omissão diante
de uma causa de exclusão da ilicitude). 1º39
Se nas concepções de inclinação normativista é difícil falar em dever de
agir sem se antecipar a antijurídicidade, em concepções ontológicas isso se torna
possível ao se tratar do marco valorativo que permite a configuração da omissão
não pela norma, mas pelo valor social (que serve de balizamento para a conduta),
que a reflete. Ajuda-nos a pensar essa relação entre valor-norma a ideia, incorpo-
rada ao Direito Penal pelo prof. Nilo Batista, de circularidade cultural. O ponto
de referência da conduta não é a norma, mas o valor que a representa (de forma
1nais ou menos difundida) nas relações sociais.
Outro grande obstáculo para se reconhecer a afinidade dos delitos omissi-
vos à concepção finalista tem sido a polêmica em relação à causalidade. Como
no 1nodelo para se pensar os restantes dos delitos (os crimes comissivos dolosos)
o nexo causal é importantíssimo e serve de vínculo entre o sujeito e o resultado,
necessário à responsabilização penal, buscou-se por muito tempo apontar o equi-
valente simétrico nos delitos omissivos impróprios.
Surgiram aí as mais diversas teorias e fundamentações. Desde aquelas que
vinculavam a omissão a uma ação ativa contemporânea (Heinrich Luden) e a uma
ação ativa anterior (Adolf Merkel) até as teorias da interferência (Ernst Lands-
berg, Maximilian voo Buri, Karl Binding, entre outros), com alguma diversidade
entre si, geralmente entendem que por uma ação prévia o sujeito assumiu para
si u1na posição de garantia, ou, em linhas 1nais abstratas, o sujeito se contrapõe

11139
:Mczger, por exemplo, diz que h:í ações que sio rsprradas, mas nio rx(efdas. Ora, mas que direito
tem a legislação crinúnal de esperar algo que não pode exigir? Isso parece se aproximar mais de
considerações mora.is do que de direito penal. Ainda: •~bas las cosas (expectativa e exigência)
pueden separarse conceptualmente, aunque desde el punto de vista prádifo cl Derccho penal no
tiene interés alguno respecto a acciones esperadas, pero no exigidas, ni en sus correspondientes
omisiones. Si, por ejcmplo, una vez comprobada la existencia de las caracteásticis tipica.s de §139
concurriera en favor dd omitente una causa de exclusión dd injusto (...), vcrbigracia, un derecho
profesiunal (secreto de confesión o algo anilogo), resultaria que la denuncia del crimen seria, en
verdad, 'esperada', pero no 'exigida'; existida, por tanto, una omisión, pero no seria antijurídica".
MEZGER, Edmund. 'frnlado... p. 274; Ainda: "(...) pero sabemos que prádirammlt toda acción
'exigida' t.imbién es 'esperada', y que una acción 'esperada', pero no 'exigida', no posec ulterior
interés para el Dcrecho penal. Por eUo, y en virtud de ro1uidrracio11tJ ft11alislaJ ronscimlts, estudiamos
ya aqui un fragmento de la teoria de la antijuridicidad". lbidem, p. 279.

321
Aqui também é esclarecedor o paralelo com a noção de trabalho. É ilustra-
tivo o exemplo do processo de fermentação do vinho, quando ele fica apenas
"descansando" e1n toneis. Mesmo não passando, nesse mo1nento específico, por
nenhum processo ativo de trabalho, esse simples estar do objeto se vincula a um
processo de trabalho e, mais especificamente, a uma decisão sobre um determi-
nado curso causal. Não se trata, parece ôbvio, de u1n curso causal natural que aci-
dentalmente levou àquilo. Por outro lado, as frutas que caem e fermentam sobre
o chão (pense-se na Marula, a qual possui um rápido processo de fermentação),
fora da esfera de alcance e controle do homem, não possuem qualquer caráter de
manifestação da conduta humana (que pode atribuir-lhes um particular vínculo
social); são simples processos naturais. Afinal, o que nos permite (mesmo que
parcialmente) caracterizar mn como manifestação humana e o outro não, se são
ambos aparentemente processos naturais (de fermentação)?
É possível afirmar algo análogo sobre a omissão em matéria penal. Ela deve
ser de tal forma que, mesmo que não possa ser ligada a wn curso causal anterior-
mente criado pelo agente, a conduta omissiva expresse uma decisão por parte do
indivíduo. Ao se reconhecer isso, abre-se a porta para se reconhecer também os
marcos ontológicos mes1nos para os delitos omissivos. Assiin co1no no exe1nplo
da fermentação, os delitos omissivos só adquirem uma plena significação social
(como parte de uma conduta humana) quando há uma subordinação à finali-
dade. ()u ainda, a constatação de wna omissão não é wna atribuição de valor
sobre o nada como se poderia depreender de algumas concepções valorativas da
conduta. É, sim, a disposição do mundo de acordo com a finalidade do sujeito,
cujo meio adequado é a não realização de uma conduta esperada, ou ainda, a 1no-
vimentação do sujeito, no mundo, de acordo com balizas valorativas, de forma
mais ou menos conveniente para atingir sua meta.
Por tudo isso, os exemplos mais comumente empregados para retratar au-
sência de conduta nos casos dos crimes omissivos dizem respeito não a critérios
valorativos, mas a pressupostos fisiológicos da articulação consciência-vontade.
Casos como o de privação de sentidos, inconsciência etc. Mesmo diante de todo
o refinamento e rebuscamento das teorias comunicativas, veem-se mantidos os
clássicos casos de ausência de conduta, todos fundamentados quando não sobre
esferas fisiolôgicas, sobre esferas objetivas, que habilitam considerações ontoló6ri-
cas (um episódio médico que causa a ausência de consciência e por isso o sujeito
não pode se manifestar; o indivíduo está amarrado e não pode se manifestar etc.).
É pela confusão entre elementos ônticos e normativos que as concepçôes
valorativas e neovalorativas frequentemente confundem também conduta e an-
tijuridicidade. 10•1K Se a omissão é criada pela atribuição de um valor - habilitada
10
}8 Cf. MEZGER, Edmund. Traindo... p. 274.

320
pela norma que cria uma expectativa de ação -, como distinguir entre omissão e
antijurídicidade? Ou se a omissão surge estritamente da norma, como distinguir
entre 01nissão e tipo? A resposta dada atualmente é a desintegração da conduta
como objeto. Algumas posições clássicas mais antigas (como a de Mezger) não
chegam a tanto, e passam por grandes dificuldades para explicar a ideia de fnl!lra-
fÕO da ação esperada (01nissão) se essa frustração não é antijurídica (omissão diante
de uma causa de exclusão da ilicitude). 1º39
Se nas concepções de inclinação normativista é difícil falar em dever de
agir sem se antecipar a antijurídicidade, em concepções ontológicas isso se torna
possível ao se tratar do marco valorativo que permite a configuração da omissão
não pela norma, mas pelo valor social (que serve de balizamento para a conduta),
que a reflete. Ajuda-nos a pensar essa relação entre valor-norma a ideia, incorpo-
rada ao Direito Penal pelo prof. Nilo Batista, de circularidade cultural. O ponto
de referência da conduta não é a norma, mas o valor que a representa (de forma
1nais ou menos difundida) nas relações sociais.
Outro grande obstáculo para se reconhecer a afinidade dos delitos omissi-
vos à concepção finalista tem sido a polêmica em relação à causalidade. Como
no modelo para se pensar os restantes dos delitos (os crimes comissivos dolosos)
o nexo causal é importantíssimo e serve de vínculo entre o sujeito e o resultado,
necessário à responsabilização penal, buscou-se por muito tempo apontar o equi-
valente simétrico nos delitos omissivos impróprios.
Surgiram aí as mais diversas teorias e fundamentações. Desde aquelas que
vinculavam a omissão a uma ação ativa contemporânea (Heinrich Luden) e a uma
ação ativa anterior (Adolf Merkel) até as teorias da interferência (Ernst Lands-
berg, Maximilian von Buri, Karl Bincling, entre outros), com alguma diversidade
entre si, geralmente entendem que por uma ação prévia o sujeito assumiu para
si uma posição de garantia, ou, em linhas 1nais abstratas, o sujeito se contrapõe

1039 l\fczger, por exemplo, diz que há ações que são rspmult1J, mas não t>-~efdas. Or.i, mas que direito
tem a legislação criminal de esperar algo que não pode exigir? Isso parece se aproximar mais de
considemções morais do que de direito penal. Ainda: c½mbas las cosas (expectativa e exigência)
pueden separ:irse conceptualmente, aunquc desde el punto de vista pnMiro el Derecho penru no
tiene interés alguno respecto a acciones espemdas, pero no exigidas, ni en sus correspondientes
omisiones. Si, por ejemplo, una vez comprobada la existencia de las caracteósticas úpicas de §139
concurriem en favor del omitente una causa de exclusión del injusto (...), vcrbigracia, un derecho
profcsional (secreto de confesión o algo análogo), rcsult:ufa que la denuncia del crimen seria, en
vcrdad, 'csper:ida', pero no 'exigida'; exisúrfa, por tanto, una omisión, peru no seria antijurídica".
MEZGER, Edmund. Tmlado ... p. 274; Ainda:"( ...) pero sabemos que prádira11m1lt toda acción
'exigida' también es 'esperada',}' que una acción 'espernda', pero no 'exigida', no poscc ulterior
interés parn el Dcrccho penal. Por cllo, y en virtud de rrmsidrraciouts ft11aliflas ronsa'r11lt1, estudiamos
ya aquí un fr:igmento de la teoria de la anújuridicidad". Ibidem, p. 279.

321
àquilo que o impele a agir. Todas tentando dar ares mais ativos à omissão, em
especial à omissão imprópria. 1040
Uma das ideias que conseguiu lançar suas bases com mais sucesso declara
haver, nos delitos omissivos impróprios, uma causalidade jurídica (Robert von
Hippel, Ernst von Beling, entre outros), o que, striclo se11s11, não é causalidade. As-
sim como há quem ne!:,1\.le uma causalidade natural, afirmando-a co1no conexão
lógico-gnosiológica para mais facilmente estendê-la aos delitos omissivos impró-
prios (Franz von Llszt, ?\fax Ernst Mayer, Wilhelm Sauer, entre outros), há quem
assuma posições mais abertamente normativas (Horst Kolhnann). 1041
Parte da advogada semelhança entre delitos comissivos e omissivos impró-
prios se deve ao expediente da supressão mental. Tanto em um quanto em outro,
essa é uma ferramenta intelectiva utilizada para estabelecer wn vínculo entre con-
duta e resultado, analogamente em ambos os casos. Na conduta conússiva para
se afirmar o nexo causal (que não existe se, suprimida a conduta, o resultado se
mantém) e na omissão imprópria para se afirmar uma causalidade jurídica (se a
ação tivesse sido realizada o resultado desvalorado não teria ocorrido). Mas, além
da semelhança, existem também profundas diferenças.
Na verdade, não se pode dizer que há uma causalidade jurídica - pois seria
verdadeira não-causalidade. O que há é um expediente lógico-racional para se
verificar a relevância de uma reprovação penal. A busca por simetria (entre deli-
tos comissivos e omissivos) ofuscou que esse vínculo (chamado de causalidade
jurídica) parece ser deduzido da impropriedade de se punir deveres inúteis. A não
criminalização de deveres inúteis (11/tra posse. ne1110 obligal11ry, portanto, é requisito e
não consequência no nexo de responsabilidade dos delitos omissivos impróprios.
Trata-se, na verdade, de um requisito de imputação de responsabilidade dedutível
do próprio sistema penal fundado em princípios democráticos. Não obstante, a
conduta omissiva se mantém vinculada a uma matriz teleolóhrica, porque ela com-
puta os valores sociais os quais precisa levar em consideração para se movimentar
no mundo, realizar uma decisão.
Por fim, é pertinente à questão dos delitos omissivos a série de questiona-
mentos que surgem de maneira mais explicita, aqui, quando se tratou das teorias
neokantianas da conduta, e mais especificamente das contribuições dadas por
Gustav Radbruch. Em especial porque possui al!:,1\.lffi grau de importância para se
negar ou afirmar o modelo finalista de conduta. Lembremos: Radbruch defende
a li1e..,isté11da de 11m ví11c11/o ta1,sa/ e11lre. vontade efeito 110s delitos omissivos, porque se nada
pode resultar do nada, o nada deve necessariamente se resolver no 11ada. Afirmar
isso pode ser um tanto problemático. Especialmente porque é possível deduzir

1 1
1)41 Ibidem, p. 276-8.
,rwi Ibidem.

322
disso a inexistência de "nexo causal" entre a vontade de omitir (o movimento exi-
gido) e a não exec11ção do movimento em questão.
A ausência de "nexo causal" pode referir-se à relação vontade-resultado
(da omissão) ou vontade-omissão (abstenção de ação). Como se pode notar das
considerações introdutórias, grande parte da trajetória dogmática sobre a ação se
deu ao redor do empreenditnento de imputar um resultado a uma vontade. O ju-
ízo que se deve fazer sobre a negação de um vínculo causal na omissão depende,
portanto, do próprio entendimento sobre o que se pune nos delitos omissivos: se
a omissão em si ou a "causação" do resultado pela omissão. Parte da resposta já
se oferece pela simples proposição clara da questão. Se fosse possível afirmar um
vínculo causal entre omissão e resultado, não se recorreria à ideia de causalidade
jurídica, a qual coincide apenas nominalmente com a causalidade física, como se
sabe.
Assim, as formulações de Radbruch direcionam-se à negação do nexo cau-
sal vontade-resultado (da omissão),1042 mas transbordam em parte para o nexo
vontade-conduta omissiva. Ele nega que a omissão seja causada pela vontade,
apesar de a om1ssao• ~ po d er ser quen'da. 1043 Sem em bargo, mesmo que se optasse
por wna interpretação generosa de Radbruch, relativizando suas ponderações
sobre o nexo vontade-conduta - apontando-os, possivelmente, como contra-
posições de forma, mas não de conteúdo, ou seja, defendendo que ele não ne-
gue um vínculo de pressuposição e de determinação entre vontade e conduta
ornissiva, mas apenas que esse vínculo não se assemelharia em qualidade àqueles
encontrados na natureza, ao qual se chama de causalidade -; mesmo assim, al-
!,Ttllnas ponderações sobre o nexo vontade-omissão são importantes, se não por
Radbruch, por outros autores que podem derivar conclusões espúrias de suas
- 1044
observaçoes.
Essa questão, como já se mencionou, depende do próprio entendimento do
autor sobre o que se pune nos delitos omissivos, se a omissão em si ou a "cau-
sação" Guridica) do resultado pela omissão. Como o nosso Direito Penal é um
Direito Penal do fato - ou, seria melhor dizer, wn Direito Penal do feito - parece
ser o melhor entendimento que a punição seja direcionada à omissão e não ore-
sultado. E, nesse sentido, haveria, sim, ao contrário do que (aparentemente) afir-
ma Radbruch, utn claro vínculo entre vontade e feito (a omissão de uma conduta
deve ser conhecida e querida, mesmo quando seus resultados não o sejam). São
sem fim, os exemplos possíveis de não realização de algo fruto de uma vontade:

1042 RADBRUCH, Gustav. E/ ro11rtplo dt a(dó11... p. 162.


11MJ "Por consiguientc, si bien una omisión (aunquc no sea cnusada por la voluntad) p11tdt ser queri-

da, por otrn parte, empero, no precisa sedo como necesidad conceptual". Ibidem.
11M4 Muito emborn, ele diga explicitamente que "trunpoco se requicre en general que exista la vo-

luntad de omitir un movimicnto corporal". RADBRUCH, Gusta,·. E/ ro11repto dt arrió11... p. 161.

323
desde uma pessoa teimosa, que não realiza algo para não "dar o braço a torcer";
passando pela criança manhosa que não quer comer verduras por pirraça ou para
chamar atenção; pela greve de paralisação; pelo contendedor que deixa de realizar
algo (para mostrar que era ou não causa eficiente para o resultado) e provar que
estava certo etc.
Mais difícil é, no entanto, responder qual o papel do resultado na teoria
dos delitos omissivos. Seria ele apenas um elemento do tipo (com função de
sinalizar objetivamente quando a conduta atingiu a esfera da responsabilidade)?
Ou seria ele apenas u1n ele1nento objetivo do tipo que pennanece ainda quando
da passagem de delito comissivo para omissivo, a fim de fazer a ponte entre
manifestação concreta do delito e tipicidade material (o resultado seria o elemen-
to objetivo que pennite aferir a maior ou menor violação do bem jurídico, de
especial importância quando a conduta não possui manifestações objetivas no
mundo)? Seria ele um elemento necessário ao tipo omissivo (impróprio) decor-
rente do supra1nencionado princípio fundante da não punição de deveres inúteis?
etc. Estamos, aqui, inclinados por um misto entre a primeira e a terceira opções.
Mas não parece que o reconhecimento da existência desse vínculo vontade-feito
mude (e possa ser negado) de acordo co1n as respostas dadas a essas indagações.
E111 síntese-. De resto, como 0111itir é um verbo transitivo, segundo a antiga
fórmula de von Liszt, há necessariamente uma remissão ao complemento. Ou
seja, quem omite, omite algo e esse algo, no Direito Penal, encontrar-se-ia no
tipo. No entanto, argumenta-se aqui que, na verdade, esse complemento quando
da realização da conduta é o reflexo em nível de senso-comum que se tem da
nonna penal (e não a norma penal propria1nente dita). E, por isso, a omissão
não seria totalmente normativa, abrindo-se um espaço para considerações onto-
lógicas. Caso contrário, a dirigibilidade da conduta seria um critério totalmente
normativo (e não faria sentido que dependesse da capacidade do sujeito de diri6>'"Ír
sua conduta, dado que ela não tem nada de normativa, e sim concreta). A possi-
bilidade de se dirigir a conduta como critério típico (ou de imputação) está inti-
mamente vinculada a consideraçües ônticas - por isso Jescheck (2002) a deduz
da finalidade (flertando com uma finalidade potencial) - e ela frequentemente se
disfarça como um critério lógico-objetivo nas teorias da imputação objetiva. No
entanto, parece claro que as limitaçc1es lógico-objetivas do indivíduo e1n dirigir
sua conduta desta ou daquela forma se vinculam substancialmente às finalidades
que ele se põe e como propõe alcançá-las.
Daí ta1nbé1n deriva a possibilidade de se configurar omissões mesmo diante
de deveres normativos estabelecidos de forma pouco detalhada (ou seja, am-
plos), muito embora isso deva ser limitado ao máximo. Esse parece ser o caso na
referência de Eberhard Schmidt à desintegração da Ale1nanha e à pulverização

324
da legislação penal no pós-guerra, quando seria possível recorrer ao conceito de
ética profissional (desenvolvido desde Hipócrates) para se delimitar com mais
cuidado os deveres da relação médico-paciente - acrescentaríamos que isso só
seria aceitável com fins de delimitação da intervenção punitiva, a fim de se ga-
rantir que não se puna meras condutas imorais. 1045 A própria situação de perigo,
como pressuposto da omissão de socorro (art.135 CP), carrega consigo algwn
grau de vagueza.
5. A ação continua sendo uma ação voluntária direcionada a um fim, mes-
mo na conduta culposa. Pois, a relação de culpa implica apenas a ausência da
vontade direcionada ao resultado que se quer atribuir ao sujeito. A conduta não
pode, nem deve, ser reputada como inconsciente ou sem vontade em termos
gerais. Ao contrário, as condutas culposas são frequentemente conscientes, por
exemplo, dos riscos em abstrato que envolvem determinadas atividades (apesar
de ser possível acreditar profundamente na não ocorrência do resultado): alguém
que dirija tem consciência que o tráfego urbano envolve os mais diversos riscos
e não se pode dizer que ele não direcionava sua vontade a atividade de dirigir.
Quem dirige acima do limite de velocidade, em outro exemplo, sabe que
viola uma norma de trânsito. Pode-se discutir se ele prevê os riscos específicos
que sua conduta implica e se ele chega a prever como possível qualquer resultado
que sobrevenha. Ao decidir por chegar rápido em algum lugar, o modo como o
agente procura realizar sua finalidade Qícita nesse caso) viola normas de trânsito.
Ele sabe também que está violando o cuidado devido na direção (estabelecido
conforme as normas de trânsito), mesmo que não tenha perfeitamente delineado
e1n sua mente o enunciado normativo e1n seus mínünos detalhes. Nesse sentido,
há uma ação, com consciência, vontade e finalidade. 1046
1045
SCHMIDT, Eberhard. E/ n1tdiro...p. 01.
1046
A impropriedade da objeção ao finalismo em r:izão da finalidade: não visar um fato ilícito lem-
bra, em parte, as objeções ao finalismo em r:iz:io do dolo eventual: "Espc:cificamente, com
rdaçào ao dolo eventual, se vêm levantando críticas :i concepção do tipo, bast:ada na doutrina
finalista da ação. Tem-se afirmado que, sendo a ação sustenuda pdo conteúdo do querer, e,
portanto, ontologicamente, ,·isando um fim, possh-d não e: se incluir no seu contexto e, como
decorrência, no contexto do tipo, o que e: apenas previsto, mas não t: querido pdo agente. A
objeção, a rigor, desconhece o que os finalistas c:ntendem por ação, isto é, que o momento
interno da ação não t: constituído somente pda escolha do fim e por integrar este fim, o con-
teúdo do querer do agente. Como repc:tidamente ensina Hans \X'dzd, no conteúdo da ação
finalista, em suas vivências psíquicas, al(:m da escolha e do querer o fim ddto, est:io incluídas
a escolha dos meios, bem como a pre,·isão e a anuência relativamente :is conseqü~nci:ts cert:is
e possíveis, que podem ser consect:írios da escolha de tais meios. (...) Em verdade, a crítica
contestada é produto de um entendimento meramente: nominalisu da concc:pç:io wdzeliana da
ação...". LUISI, Luiz. Op. Cit. p. 75-6. A configuração da culpa c:stritamente como tipicid:ide
normativa, como parecem sugerir alguns autores (MARCARENHAS Jr, 2009, p. 40) impos-
sibilitaria a cogitaçào de um erro sobre o dever de cuidado ou a justificação de um aspecto

325
Ademais, as representações de senso comum (ou circularidade cultural das
proibições) não se identificam totalmente com as normas penais, pois, caso con-
trário, não seria possível o erro de proibição. Esses são os marcos de referência
com o quais o sujeito deve estabelecer uma vinculação para pautar sua condu-
ta - os quais servem, melhor do que a norma, para se determinar se há ou não
conduta humana, especialtnente nos casos de omissão. Isso, a concepção dog-
mática de ação não leva em consideração quando quer conceituar os "objetos de
referência". 1047
Já com relação à teoria das normas, cada espécie de delito apresenta sua
nuança. Nos crimes omissivos, a realização de atividade distinta da comandada
é proibida, portanto, aparentemente subsistem proibição e determinação em um
mesmo contexto. Já nos delitos comissivos, é possível vislmnbrar-se a plena reali-
zação de uma proibição sem se recorrer para comandos (determinações), porque
a conduta proibida pode se realizar de inúmeras formas. Nos crimes dolosos é
possível a imediata identificação da proibição 011 do comando, porque há uma
identidade entre proibição 011 comando e realização 011 não realização. Finalmen-
te, nos crimes culposos, proibição e comando não são expressos na definição da
conduta incriminada porque são muitas as possibilidades de combinações entre
as duas. 1°"8
Portanto, a principal questão acerca dos delitos imprudentes está relaciona-
da àfarn,a como a conduta é realizada,1049 e não é possível pensar, tanto abstrata
quanto concretamente, a forma como a conduta deve ser realizada sem a sua
finalidade. O sujeito só pode pensar na forma como ele deve realizar algo quando
ele se propõe a realizá-lo (quando se coloca essa finalidade).

cogniti\·o para a pre\·isibilidadc:: (ou previsão na cuJpa consciente::) - a própria distinção entre
culpa consciente e inconsciente:: perderia o sentido.
100
"Gilbc::rt Rylc:: j:í demonstrou que:: não h:í urna vontade estranha à ação, na forma de um impulso
espiritual. Aplic:ívd c::ssa assertiva ao direito, pode-se:: dizer que a vontade:: só pode ser caracte-
rizada, no sentido de um fato delituoso, se for tomada como uma ação direcionada em função
de um objeto de:: referi:ncia, ou seja, em função da lesão ou perigo de lesão ao bc::m jurídico".
TAVARES,Juarez. Trorin do Cri1J1r C,,!poso... p. 223.
HMa TAVARES, Juarc::z. Trorin do Crimt C11lposo... p. 243; WELZEL, Hans. Culpa e dditos de circu-

lação: sôbre a dogmática dos crimes culposos. ln: Rtvistn df. Dirrito Pmal. Nº3, jul.-set./1971.
Rio de:: Janeiro: Borsoi. p. 23. Ainda: "Isto deriva do fato de que, aqui, o agente tanto pode ter
tido atividade:: não-proibida e com isso haver acarretado urna consequt:ncfa proibida, quanto
umbt:m pode haver realizado atividade proibida e com isso produzido um resultado proibido,
ou ainda não realizado uma atividade:: mandada e com isso produzido um resultado proibido,
ou, em casos raro, só encontráveis na legislação especial, haver infringido uma dctc::rnúnação
normativa, independentc::mc::ntc:: do resultado. Pode tambt:m haver realizado uma atividade:: proi-
bida e não ha\·c::r causado resultado proibido". TAVARES,Ju:irez. Ibidem.
1049
.Mesmo entre os não finalistas isso t: algo ampla:nc::nte accito. Por todos: TAVARES, Juarez.
Ttorin do Crintr C11lposo...p. 248.

326
Cabe ressaltar que uma proposta finalista não propugna por um cuidado
ôntico,1050 porque ôntica é a estrutura da conduta. E é justamente essa estrutura
que permite pensar a relação do indivíduo, quando molda a maneira de realizar
sua conduta, com quaisquer elementos (sejam valores, normas etc.). É por isso
que se consegue pensar, por exemplo, em uma omissão ou uma falta e cuidado
para os quais a referência seja um valor social e que não existam enquanto im-
posição normativa - pois nem todo valor social se cristaliza em norma jurídica.
Nesse sentido, pode pensar-se em deterrrúnações estipuladas por convenções so-
ciais, tradições etc., e modos de se agir de forma cuidadosa da mesma maneira. 1051
Se alguém é mais ou menos cuidadoso quando manipula um objeto seu dentro de
sua própria casa (ou omite os cuidados devidos na manutenção desse objeto), só
excepcionalmente isso terá relevância para o Direito Penal. 1º52
Na verdade só se pode falar em omissão de ação devida ou em uma ação
descuidada porque é possível falar nisso para além do Direito Penal. A normal
penal não criou algo substancialmente novo, mas determinou os limites de uma
forma específica de responsabilização para fenômenos os quais, antes, eram bas-
tante heterogêneos. Quando os autores dizem que ausente a norma não se pode
caracterizar wna omissão de conduta ou wna conduta descuidada, às vezes se
cria uma confusão. O fato de não haver uma norma jurídica responsabilizando
garçons por não limparem as mesas do seu setor ou por derrubarem copos des-
cuidadamente não significa que, fora da esfera penal, há o vazio. Existiu, assim,
uma conduta descuidada ou uma omissão de conduta esperada.

,oso "Na medida em que se vincula a formação do delito culposo a uma determinação normativa,
se desnatura tambt!m a concepção que quer retrntlr o cuidado t:m sentido ôntico. Não existe
um cuidado t:m si mesmo, senão associado a uma conduti normativamente dctt:rminada,,_
Ibidem, p. 248.
10st "A omiss:io em si int:xiste. Ela t! wna qualificaç:io normati\'a dt: uma ação r~l, de uma ativida-

de finalisti. É uma referência à mesma. Por não ser a atividade finalista a ação esperada pda
ordem jurídica, t! que se diz ocorrente a omissão. St:m atividade finalistl não h:í, pois, como
enunciar-se existente uma omiss:io punível,,. LUISI, Luiz. Op. Cit. p.111. A base efetiva para
o juízo de des\'alor deve ser a conduta realizada {tt:ndo por refni11cin o de\·er-ser, no ciso da
omissão) e não apenas o que deveria ter sido ft:ito (a norma como demento único e criador
da conduti), porque o dirt:ito penal não pode julgar ações potenciais ou quase ações (criaçõt:s
normativas que não ti,·er::im estcio na realidad~ como real manift:stição do sujt:ito), mas ape-
nas reais - caso contr:írio, realiza projeçõt:s condicionais :i partir de sua percepção c:nvic:sada
sobre a (personalidade d:1) pc:ssoa.
,osi "Com isso, o que se afirma é que a culpa, tomada no st:ntido de negligência, não possui uma
existência natural, assim como ocorre, por exc:mplo, com a vontade: que: vc:m a fundamentar o
dolo". TAVARES,Juarez. Teoria do Crin1e Clflposo...p. 251. Esse problema desvanece em grande
parte quando se percebe que uma correta acepção do finalismo não implica transformar a
culpa em um elemento naturnl.

327
É claro que, suspensa a norma penal, nem sempre restará uma expectativa
de conduta socialmente existente. Isso porque tanto os valores sociais (materia-
lizados em normas) quanto as nonnas materializadas em valores sociais podem
servir de elementos para o indivíduo incorporar em sua conduta. Assim, em
algumas situações, revogadas detenninadas normas penais, extingue-se também
o valor social objetivamente existente. Se, por exe1nplo, existe wn dever não
cumprido de manutenção (em função da profissão) sobre uma máquina que pode
gerar perigo para outras pessoas, mas essa máquina é substituída por um modelo
mais novo, que dispensa essa 1nanutenção específica, a representação individual
do dever de manutenção se extingue (em tese) junto com a norma.1t153 Portanto,
existem representações valorativas que estão vinculadas de forma muito próxima
às normas jurídicas.
Em síntese, a relação cognitiva que o sujeito estabelece com o resultado
é de natureza qualitativamente distinta da que ele estabelece com as normas de
cuidado objetivo (com as quais ele possui uma relação apoiada na noção de circu-
laridade cultural, como mencionado). Por isso, é possível ao agente realizar com
consciência e vontade uma conduta sem, contudo, dirigir a mesma consciência e
vontade ao resultado.
Daí serem compreensíveis algumas teorias - fundadas na Filosofia dos
Valores - as quais afirmam que, sem esses valores de referência, nada existiria.
No entanto, como se pôde observar da apresentação dos fundamentos do pôr
teleológico, mesmo os valores podem ser traçados em sua origem até a práxis.
Reafirma-se, assim, a inafastabilidade do quadro teórico do pôr teleológico. O
recorrente retorno a critérios finalistas se impõe mesmo para aqueles que negam
essa teoria da conduta. 1054
De tal forma, para diversos contendores do finalismo, a conduta culposa,
por exemplo, configura-se como u1na atividade consciente, voluntária e que leva
em consideração os meios empregados para a sua execução. 1055 Todo o contar-

lllH Não tratararemos, aqui, da possibilidade de n:presentaçào valorativa datada, ou seja, das nor-
mas que deixaram de existir, mas ainda produzem ruídos no senso comum.
IOS4 Por exemplo, diz Tavares sobre os crimes culposos: "Trata-se de delito de conteúdo omissivo,
porque a norma proibitiva que assinala seu injusto só adquire relevância quando associada a
uma norma mandamental que lhe serve de base para regular a execução concreta da condut:i,
conforme os limites do risco autoriiado, traçado1 prla fom,n co1110 drvn111 Jr.r e111pregndo1 01 111rio1
para a exm1rão dusa nrão. A norma proibitiva e:, assim, configurada sob a não-realh~ação de uma
conduta cuidadosa, a partir da realização de uma atividade que, concretamente, se ponha em
rdaçào direta para com a lesão do bem jurídico". Ibidem, p. 250-1. Grifo nosso.
lf)SS "Ao invc:s, a diferença assinala que a dirigibilidade consciente e voluntária dos mdos causais
pode, às vezes, não se1,l'\.Úr o curso desejado pelo agente, mas essa defasagem entre o objetivo
proposto e o que efetivamente acontece se inclui no conceito de conduta consciente e volun-
tária',_ Ibidem, p. 253.

328
no da explicação finalista da conduta culposa, mas fugindo da problemática da
nomenclatura. Não surpreende muito, então, quando os não-finalistas usam as-
swnidamente o modelo finalista para pensar os delitos dolosos. 1056 Em diversos
autores, essa recusa do finalismo é arrefecida pelo recurso à ideia de dirigibili-
dade, a qual faz entrar pela porta dos fundos as formulações teóricas típicas da
concepção teleolôgica da conduta.
Diante de tudo isso, percebe-se que o finalismo está apto a tratar de ma-
neira adequada também os delitos culposos e omissivos. É verdade que isso não
era totalmente claro em um primeiro momento - afinal, trata-se de uma teoria
em evolução -, especialmente pela tendência (historicamente justificada) de se
pensar os delitos culposos e omissivos a partir do modelo dos crimes comissivos
dolosos (e1n função de sua maior ünportincia político-crüninal até meados do
século XX, até por simples questões quantitativas). Isso se refletia da seguinte
forma: o resultado era o elemento central para se pensar os delitos culposos,
de fonna a fünitar a responsabilidade penal; e o esforço por determinar alguma
forma de causalidade era central para os delitos omissivos impróprios. No caso
dos delitos culposos, isso levou Welzel a formular a malfadada ideia de fi11alidade
potencial - a qual foi talvez o principal pivô de críticas ao finalismo. tu 57
Superada essa equivocada apreciação inicial, \Velzel se aproxima da correta
compreensão dos delitos culposos ao aventar a tardia proposição de co11ceilo bio-
cibernético de ação. Conceito o qual apresenta alterações estéticas ao finalismo, ou
melhor, representa urna mudança de foco nos crimes culposos, buscando apenas
ressaltar a importância dos meios empregados e sua relação com a finalidade

1056
"Na realidade, a conduta dolosa importa t:unb«!m uma repartição da rdação \'olitiv:1 do agen-
te: com seu objeto de rderência. Adotando-se, analogicamente, o esquema metodológico da
tc:oria finalista, que e: adequado à determinação do dolo, podemos admitir trt:s cspc:cies dessa
rdaçiio: a) o objeto de referência e: tomado como objeti\'o final; b) o objeto de refer~ncia se
constitui como objetivo típico, vinculado a outro objeth·o final, épico ou extratípico; c) o
objt:to de referência está vinculado às consequências concomitantes ou paraldas da conduta,
resultantes do emprego dos mcios ou da própria ati\·idade perigosa. Nessa sequência, unto se
pode verificar o dolo direto quanto o dolo eventual, dependendo da qualidade da \'Ínculaç:io
voliti\·a com a direção objetiva dos fatores causais. Esta \'incubção voliti\·a se estrutura, aqui,
atendendo, portanto, a certa gradação na dirigibilidade da conduta, ou seja, à forma e ao modo
dt: sua execução". Ibidem, p. 255.
7
ios "A dogmática penal tradicional se orientava, quase exclusivamente, sôbre o modêlo das in-
frações intencionais. A partir ddas se desenvolveu a teoria do tipo e da antijurídicidade. A
negligência não intervinha, neste sistema, a não ser como 'forma de culpa', e só era tratada na
inten·enção da 'culpa'. A idda que serve de premissa a essa maneira de ver e: a de que, desde
que: um ato voluntário tenha prO\·ocado lesão a um bcm juridicamente protegido, c:sse ato t!
constitutivo da conduta puní"d, deduzindo-se 'por indício' sua antijuridicidadc". \'X' ELZEL,
Hans. C11lpn... p. 15.

329
(relacionando a imprudência à forma de execução da conduta). 1058 A concepção
biocibernética de conduta não está totalmente isenta de ajustes adicionais, pois,
embora correto o foco, nos crimes culposos, na forma de execução da conduta
(deduzido da relação meio-fim da caracterização ontológica de conduta), isso não
se alia necessariamente - como parece sugerir \'v'elzel - à irrelevância jurídica da
finalidade (pense-se nos crimes preterdolosos).
6. Como se pôde perceber até aqui, as obras habermasianas tiveram um
profundo efeito sobre a dogmática penal. Habermas não alterou apenas as teo-
rias de fundo usadas como plataforma para se desenvolver a do!:,ttnática, porque,
como é muito comum, essas alterações basilares repercutem grandemente sobre
a sistematização. Nesse caso, a própria teoria do delito se viu profundamente
alterada e1n sua estrutura.
Nas teorias comunicativas foi possível notar a ampla recepção de uma nova
perspectiva sobre as normas, segundo a qual elas se afastam do antigo binômio
interpretativo valoração-detenninação para se apoiarem sobre o pata1nar das pre-
tensões. Isso porque as formulações habermasianas apontam para uma transição
das concepções que caracterizam os antigos modelos de Ciências Sociais (preten-
sões de verdade) para "novos" modelos co1npreensivos (pretensões de validade e
legitimidade). No caso da teoria do delito, a principal pretensão a ser perseguida é
a de justiça, a qual irá desdobrar-se e fundamentar as demais pretensões (criando
um modelo um tanto hierarquizado).
É por esse caminho que penetra, na teoria do delito, a noção de justificação
procedimental das normas (presente em Habermas) e se absorve a ideia da
norma como elemento de comunicação sociedade-indivíduo (apoiada sobre
valores comuns e exigências recíprocas). Repita-se que, dessa forma, é adotada
uma perspectiva idealista sobre a relação sociedade-Estado-indivíduo, na qual
seria possível caracterizar-se wna relação de reciprocidade, porque os valores não
se contrapõem entre si e são plenamente respeitados os postulados da democra-
cia procedimental.
Essa reconfiguração da teoria do delito, a partir da ideia de pretensões de
validade e legitimidade, implica a restruturação da tipicidade, da antijuridicidade e
da culpabilidade. Em primeiro lugar, aparece a pretensão de relevância, a qual signifi-

iosa ''A direção para o objetivo refere-se ao caso mais importante de uma ação, mas não é o único: o
objetivo po<le ser totalmente irrclC'\·ante (no aspecto jurídico), enquanto o que é juridicamente rele-
vante é a própria direção e encaminhamento, se se realiza de modo improcedente e não cuidadoso:
na ação culposa. Assim, haveria sido melhor- talve?. - que eu tivesse falado não de ação 'finalista',
mas 'cibernética', ou seja, da ação como acontecimento dirigido e orientado pela vontade. (...) Não
obstante, sinto-me irubido para adotar uma expressão idiomática já estabelecida (...) e quero me
conformar com a antiga designação 'Finaliüt'". WELZEL, Hans. A dogmática no direito penal. ln:
&tista dt Dirrilo Pmt1L Nº13/14, jan.-jun./1974. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais. p. 12.

330
ca substituir a ação pelo tipo de ação como filtro inicial, como instrumento para se
identificar o que pode ou não ser percebido como relevante para o Direito Penal.
O tipo de ação é uma articulação entre tipicidade formal (pretensão conceituai de
relevância) e (pretensão de) ofchsividade.
Não obstante, as teorias significativas da conduta recusam a perspectiva
ontológica para, depois, resgatar furtivamente esse aporte rejeitado, só que, en-
tão, mais flexibilizado. É o que parece acontecer com ação, elementos subjetivos,
dirigibilidade da conduta, nexo causal, etc., os quais saem por uma porta, para
entrar por outra sob a forma de aparência de ação aparência de vontade etc. Pois,
que giro copernicano é esse, que propõe coisas tão semelhantes, mas desprovidas
de limites claros e tendentes ao relativismo e ao idealismo?
Justamente por isso, diante de toda essa complexa fundamentação norma-
tiva, as causas de ausência de ação se mantêm sempre as mesmas! Não parece
causar estranheza aos autores da corrente significativa elaborar um conceito emi-
nentemente valorativo de ação, mas precisar recorrer a hipóteses de negação da
ação essencialmente "naturais". Assim, mesmo afirmando a impossibilidade de
se conceituar a vontade como um processo psicológico interno, é preciso recor-
rer a essa concepção quando se pretende distin!:,>uir entre a existência ou não de
conduta nos momentos em que sua aparência é a mesma (como pode acontecer).
Por isso, os casos de coação física irresistível, atos reflexos e hipóteses de incons-
ciência se mantêm com wna fundatnentação clássica ''psicológica", apesar de
todo o esforço em contrário.
Em segundo lugar, aparece a pretensão de ilicit11de, a qual engloba (1) a an-
ti juridicidade formal (composta por permissões fortes-. as causas de justificação, e
pern,issõesfracas: as escusas ou causas de exclusão da responsabilidade) e (2) a "in-
tenção subjetiva" (elementos subjetivos do tipo), que revelaria um compromisso
de violação do bem jurídico e se manifesta como dolo ou culpa.
Em terceiro lugar, aparece a pretensão de reproJJação, a qual é semelhante a
um juízo de culpabilidade porque diz respeito a quando seria possível se dizer
exi!:,>Ível uma conduta conforme o direito. Essa pretensão é composta por (1) im-
putabilidade ou capacidade de reprovação e (2) consciência da ilicitude (na qual
se resolvem os casos de erro de proibição). De resto, Busato e Antón adotam
ta1nbém uma pretensão de necessidade da pena.
Causa alguma estranheza a reformulação da teoria do delito em camadas
de pretensões. Especialmente quando ela é confrontada com a teoria da norma.
A teoria significativa (Ant<'>n, Busato e em certa medida Fletcher) indica que as
pernJissões fortes efracas compõem a anti juridicidade. Ora, das leis se pode deduzir
normas proibitivas, pre.rcritÍl'as ou pen,Jissivas, todas as quais precisam ser harmoni-
zadas entre si. Quando se analisa 1nais detidamente os preceitos permissivos, não

331
se pode resistir em admitir a esterilização da velha proposição de que tudo o que
está permitido, não está proibido. 1059
Afinnam Zaffaroni e Batista:
Os preceitos permissivos s:io frutos do reconhecimento inevitável de que
seria irracional exercer poder punitivo sobre um agente que realizou a ação
antinormativa juridicamente autorizado, ou seja, no gozo de sua liberdade.
A abstração esquemática do tipo legal enseja que o pragma (tipo fiítico)
possa assumir todas as formas imagináveis cujas particularidades não in-
teressam à matéria proibida; entretanto, quando tais particularidades sina-
lizarem que a ação típica configura para o s'tleito uma faculdade de agir,
estaremos perante um preceito permissivo. 10

Parece-nos, por isso, um equívoco encaixar as hipóteses de exclusão da res-


ponsabilidade na antijuridicidade. E essa problemática apropriação da antijuricidade
é claramente demonstrada pela própria categorização empregada: permissões fracas;
quando claramente não se trata nem de urna questão para um juízo de antijurídi-
cidade nem de algo que possa se atribuir à ideia de normas permissivas, porque o
componente da exclusão da responsabilidade é por excelência a inexigibilidade de
conduta conforme o direito. Assim, não há, nesse caso, por uma impossibilidade
lógica e conceituai, wn exercício autorizado de uma faculdade de agir.
Além disso, a concepção apresentada pelas teorias comunicativas, mencio-
nadas aqui, parecem ancorar sua reformulação (da teoria do delito em preten-
sões) na ideia de que a relação tipo-antijuridicidade é de natureza regra-exceção.
Outro equívoco, mas muitos autores não percebem a dívida da concepção regra-
-exceção para com a teoria normativa e política imperativista e, assim, para com
a própria deterioração do pensamento político liberal. O preceito permissivo,
ao garantir um espaço geral de liberdade, na verdade confirma uma regra, e isso
se exprime perfeitamente na ideia de dialética tipo-antijuridicidade. Tampouco,
mencione-se, trata-se de uma relação universal-particular. 1061
A confusão teórica de fundo parece semelhante àquela envolvendo as teo-
rias do tipo de injusto e dos elementos negativos do tipo. Não percebem, esses
autores, que a ordem lógica das valorações que envolvem os componentes do
injusto diz respeito a uma questão metodológica, pois a ação em si não se consi-
dera proibida até a conclusão do juízo de antijuridicidade. Não se trata, portanto,

1 9
os ZAí-PARONI, E.R.; BATISTA, Nilo [ct al.]. Direito Penal Bra.rtftiro, volume II, 2. Rio de Janeiro;
Revan. No prelo. §40, p. 05-07.
1060
Ibidem, p. 06. Grifo nosso.
1061
"Isto não significa que a norma coloca uma proibição que o preceito permissivo destrói, mas
sim que a :mtijuridicidade da ação típica é a síntese da presença da norma e da ausência do
preceito permissivo, enquanto a justificação da ação típica é a síntese da norma e da presença
do preceito permissivo". Ibidem, p. 08.

332
da realização de um recorte sobre a proibição ou mesmo de derrogá-la pontual-
mente. 1062
Isso se reflete também, e1n outro aspecto, sobre a concepção de injusto. Se
a antijuridicidade é um predicado que resulta de um juízo de valor negativo sobre
a conduta, o injusto é a conduta desvalorada, a ação proibida pela lei penal e que
nenhu1na outra lei reconhece como exercício de direito. Mas, ao se abrir mão do
conceito de ação e da relação substantivo-predicado, determinados autores pos-
suem uma maior dificuldade em perceber quando antecipam categorias, gerando
contradiçôes.
A antijurídicidade, por exemplo, passa a ser um juízo de valor exercido so-
bre um juízo de atribuição de significado (a ação): a expressão "conduta antiju-
rídica" passa a indicar u1n máximo de abstração porque se refere, assim, a wn
significado de um significado. Ademais, sequer se poderia dizer tratar-se de um
juízo de antijurídicidade, porque essa inserção de outro elemento estende para
alétn da conduta um juízo que, em princípio, deveria se ater a ela. Como a análise
da exigibilidade de conduta conforme o direito exige uma extrapolação da mera
adstrição à conduta - e requer às vezes análises sobre circunstâncias externas e
sobre o próprio agente -, sua inserção na antijuridicidade faz com que ela traga
consigo toda essa bagagem. Consequentemente, o juízo de antijuridicidade deixa
de ser um juízo somente sobre a conduta e passa a incorporar um juízo sobre
o agente (1nesmo que de forma dissimulada). Torna-se possível, assim, declarar
uma pessoa como antijurídica!
Tudo isso, talvez, sequer venha a ser contemplado como um problema para
as teorias co1nunicativas porque faz parte de sua plataforma principal a proposi-
ção de que a conduta deixe de ser um substantivo - e, imagina-se, não se abrirá
mão da teoria por sua previsível consequência sobre o injusto (o qual também
perde seu caráter de substantivo). Sem embargo, aceitando-se a proposta da dis-
solução da ação como objeto de valoração, perde-se, por imposição lógica, wn
dos maiores ganhos do Direito Penal moderno, a fiança de um Direito Penal do
fato (ou, seria melhor dizer-se, do feito 1063). Não será possível falar-se em um
Direito Penal do feito (ou do fato) se este não existe, mas, quando muito, é uma
abstração mais ou menos convencionada socialmente. Todas as garantias que
derivam daí ou aí se sustentam (parcial ou completamente) restam desabrigadas
e vulneráveis às concepções de Direito Penal da estação - sejam as novas, que
desejam dar conta dos perigos criados por recentes formas societárias (perigos
industriais, ambientais, nucleares, médico-farmacêuticos etc.) criminalizando
11162 "Não se trota a9ui de uma anilise na qual se ponha e se tire, ou na qual se ateste e se recorte, e
sim de uma dialética onde se afirma, se nega e se sintetiza". Ibidem, p. 09.
tcl6l Aqui acatamos a sugestão do prof. Nilo Batista. Cf. BATISTA, Nilo. Imput.'lçào pam principian-
tes (brasileiros). ln: Rtviila ]Hshr,1 r Sislm1a CniJ1i11al v.2, n. 1, jan./jun.201 O. Curitiba: f AE. p. 91.

333
"riscos" individuais, ou as antigas, que desejam dar conta dos conflitos sociais
neutralizando quem consideram perigosos.
Acrescente-se, ainda, que a inclusão das "intençôes subjetivas" sob a rubri-
ca de pretensão de ilicit11de, sugere um adicional eqwvoco porque remete aos debates
sobre antijuridicidade objetiva e suas implicações (bipartição da teoria do delito
em polos objetivo e subjetivo, co1no antes de se "descobrir" elementos subjetivos
no tipo); e aponta uma concepção pronta para acolher a ideia da necessidade de
ele111e11los s11bjetivos para aj11stiftcação. 1064
Lembre-se, todavia, que a anuência a um conceito complexo de injusto
não implica a aceitação de elementos subjetivos da justificação. Principalmente,
depois que se esclarece a estrutura eminentemente objetiva da antijurídicidade.
Nova1nente, essa concepção subjetivista é, em parte, fruto do esforço por se
deduzir as permissões das proibições (aporte imperativista), ou, quiçá, de um
maior ou menor amalgamento entre tipo e antijuridicidade (resquício dos mode-
los bipartidos). 1065
Como é sabido, esse debate sobre justificação traz consigo a separação en-
tre elementos objetivos e subjetivos. Quando, malgrado a existência de elemen-
tos objetivos para a justificação, afirma-se a exigência de ele1nentos subjetivos
concomitantes, afirma-se também (e em razão disso) a necessidade de o Estado
interceder sobre atividades subjetivas indignas (à míngua da própria concepção
liberal de Direito Penal). Para não se mencionar os de1nais proble1nas que o re-
conhecimento de elementos subjetivos para a justificação causa para as questões
de acessoriedade da participação e para os delitos imprudentes. Por isso, tal con-
cepção subjetivista só se justifica diante de mn Direito Penal da desobediência.1066
Cabe, finalmente, um breve comentário. Significados são frequentemente
atribuídos a algo (e não deixados pairando no ar). Isso é especialmente rele-
vante se, mesmo reconhecendo-se que as categorias que usamos determina1n
nosso conhecimento dos objetos, for possível reconhecer também que (mesmo
minimamente) os objetos determinam reflexivamente a forma como se pode
conhecê-los. Paralelainente, não ficam totalmente claros os critérios que preci-
sam preencher esse algo (para que se possa aventar uma análise de merecimento
do significado de conduta). Provavelmente porque o desenvolvimento de tal ideia
implicaria o retorno à ideia de substrato que se buscou negar de início. Trata-se,
todavia, de uma parcial reedição de ~ntigas questões epistemológicas, nas quais
se quer saber o quanto o objeto determina seu próprio conhecimento. E, se ele
não modela em nada seu conhecimento (e estamos total e absoluta1nente vulne-
tf)(,4 ZAFFARON J, E.R.; BATISTA, Nilo (tt al.J. Dirrito Pmal Brn1iln'ro, volumt II, 2. Rio d~ Jandro:
Revan. No prdo. §40, p. 26 e ss.
tll6S lbidc:m, p. 26 e ss.
trx.6 Ibidem, p. 26 e ss.

334
ráveis a quaisquer jogos linguísticos de atribuição de significado), reconheça-se
a correção das teorias comunicativas (com todos os problemas de propor crimi-
nalizaçües de condutas as quais não se pode ter wna conte1nplação li1nitadora ex
ante); mas se há ao menos um reduzido traço de determinação pelo objeto, então
se abrem as portas para o cotejamento (entre significado e substância) e, assim,
para a necessidade de algum substrato.
Essa alquimia na qual o material se transforma em significado é justamente
a porta de entrada do normativismo. Se a conduta perde sua ancoragem material
torna-se inviável falar em antijurídicidade objetiva, por exemplo. Especiahnente
porque ela se apoia em um juízo fático e não valorativo - o juízo valorativo seria
realizado pela lei e o juízo objetivo (composto primordialmente por considera-
ções factuais) seria realizado pelo julgador. Tudo passa a se tornar juízo valora-
tivo.1061

1061
Ibidem, p. 27-8.

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te. Pois, como lembra o autor,
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oria do delito (como em ques-
tões envolvendo o tipo penal, a
culpabilidade e o concurso de
agentes).

. Trata-se, portanto, de um
livro essencial a quem busca
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do delito.

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