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MARCOS NOBRE TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR,

Diretoria JUDITH MARTINS COSTA JOSÉ REINALDO LIMA LOPES


FGV CARLOS IVAN SIMONSEN LEAL - Presidente da FGV CARLOS ARI SUNDFELD RONALDO PORTO MACEDO )R,
FRANCISCO OSWALDO NEVES DORNELLES - Vice-Presidente SÉRGIO ADORNO THEODOMIRO DIAS NETO
MANOEL FERNANDO T HOMPSON MOITA - Vice-Presidente OscAR VILHENA V1EIRA CASSIO SCARPINELLA BUENO
PERSIO ARIDA PAULA FORGIONI
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE - Vice­
Presidente CALIXTO SALOMÃO FILHO
JOSÉ AFFONSO BARBOSA - Diretor G eral

EDESP ARY OSWALDO MATTOS FILHO - Diretor da FGV-EDESP


ANTONIO ANGARITA - Vice-diretor da FGV-EDESP
PAULO CLARINDO GOLOSCHMIUI" - Vice-diretor Administrativo da
FGV-EDESP JEAN PAULVEIGA DA ROCHA - Coordenador de
Metodologia de Ensino FGV-EDESP
JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ - Coordenador de Pesquisas e
Publicações O QUE E PESQUISA EM DIREITO?
ESDRAS BORGES COSTA - Assessor da Diretoria - FGV-EDESP

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer melo
ou processo, especialmente por sistemas gr.lflcos, mlcrofllmlcos. fotográficos, reprográficos.
fonográficos, vldeogr.lflcos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem Editora Quartier Latin do Brasil
como a Inclusão de qualquer pane desta obra em qualquer sistema de processamento de dados.
Essas proibições apllcam-se também às características gr.lflcas da obra e à sua editoração. A São Paulo, verão de 2005
violação dos direitos autorais é punível como crime (arr. 181 e parágrafos do Código Penal), quartierlatin@quartier la tin. art. br
com pena de prlslo e multa, busca e apreenslo e Indenizações diversas (ares. 101 a 110 da Lei
9,610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
Editora Quartier Latln do Brasil
Rua Santo Amaro, 349 - Centro - São Paulo

Editor: Vinicius Vieira


Formado em Admlnlstraç/lo de Empresas pela Fundaçllo Getú//o Vargas - FGV-SP

Editora de Texto: Prlsclla Tanaca


Mestranda em Direito na PLJC-SP

Produção Editorial: Mônica A, Guedes SUMÁRIO


Formada em Letras pela FFLCH-LJSP

Arte: Wlldlney DI Masl


Nota de Abertura ....................................................... 7
Designer Gráfico pela Fac. Oswnldo Cmz
Prefácio ................................................................... 13
Elaboração das Notas: Ana Mara Machado
�apítulo I
O que é pesquisa em Direito? .................................. 21
Nobre, Marcos et a/li. O que é
pesquisa em Direito? - São Paulo: Quartler Parte I
Latln, 2005. Marcos Nobre ... : ........................................ 23
Parte 1.1
1. Metodologia Jurídica - Brasil 1. Judith Martins Costa ................................... 38
Título
Parte 1.2
Carlos Ari Sundfeld ..................................... 46
Índice para catálogo sistemático:
Capítulo li
1. Brasil: Metodologia Jurídica A relação entre dogmática Jurídica e pesquisa ........ 71
Parte 2
Tércio Sampaio Ferraz Jr. ............................ 73
Parte 2.1
José Reinaldo Lima Lopes ............................ 80
www.quartlerlatln.art.br Parte 2.2
Ronaldo Porto Macedo Jr. ............................ 86
Capítulo Ili
Direito e Ciências Humanas .................................. 107
Parte 3
Sérgio Adorno ............................................ 109
Parte 3. 1
Oscar Vilhena Vieira ................................. 119

Capítulo IV NOTA DE ABERTURA


Direito e Economia ................................................ 139
Parte 4
Persio Arida ............................................... 141
Parte 4.1
Calixto Salomão Filho ................................ 151

Capítulo V
As áreas do Direito e especificidades em
matéria de pesquisa ............................................... 1 73
Parte 5
Theodomiro Dias Neto ............................... 1 75
Parte 5.1
Cassio Scarplnella Bueno ........................... 180
Parte 5.2
Paula Forglonl ........................................... J 86
O que é pesquisa em Direito 7 9

O evento "O que é pesquisa em direito?" realizado


em 2002 marcou a trajetória de Escola de Direito de São
Paulo da Fundação Getúlio Vargas. A experiência do
Simpósio, agora publicado sob a forma de livro, foi crudal
para orientar as grandes linhas que pautam a atuação da
Coordenadoria de Pesquisas e Publicações. A agudeza e a
profundidade dos debates ocorridos na ocasião fez nas­
cer na Diretoria da Escola a convicção de que tais ativi­
dades devem caracterizar-se pela crítica sem concessões
exercitada em tempo integral por um grupo de profissio­
nais voltado exclusivamente para a pesquisa e para a
docência.
A adoção de tal regime de trabalho tem como objeti­
vo proporcionar aos nossos professores tempo e disposi­
ção para a pesquisa de todas as fontes relevantes para as
questões de que tratam, especialmente a jurisprudência,
muitas vezes negligenciada pela Doutrina nacional e dei­
xada de lado no ensino do Direito. Além disso, estes pro­
fissionais terão a disponibilidade de meios e o tempo hábil
para o envolvimento em debates interdisciplinares.
A Escola de Direito da FGV não tem medido esforços
para formar um quadro de pesquisadores de qualidade,
dotado de condições materiais para o desenvolvimento de
seus projetos de pesquisa num ambiente de crítica aberta.
10 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 11

Tais esforços começam a mostrar seus primeiros resulta­ téria que estudam conforme um determinado modo de re­
dos, que certamente se multiplicarão em curto prazo. presentar os problemas. Este modo de representar tende a
Estamos convictos de que a exposição pública de se perpetuar. Os princípios metodológicos são transforma­
nossas atividades em um ambiente de crítica é o melhor dos em um fim em si mesmo, deixando-se de controlar o
caminho para o desenvolvimento de um trabalho científi­ válor cognitivo do aparelho conceituai estabelecido.
co de alto nível. Por este motivo, todas as reuniões em que
são discutidos produtos de nossa atividade acadêmica têm "Mas um dia o significado dos pontos de vista
contado com a participação de convid�dos externos à adotados Irrefletidamente se torna Incerto e o
Escola, entre professores, estudantes e profissionais do caminho se perde no crepúsculo. A luz dos gran­
mercado. des problemas culturais desloca-se para além.
Além disso, a Escola desenvolve uma política voltada Então, a ciência também muda seu cenário e o
para a publicação de sua produção expondo-se ao crivo seu aparelho conceituai e fita o fluxo do devir
da comunidade acadêmica brasileira por meio dos Cader­ das alturas do pensamento. Segue a rota dos
nos Direito GV e uma coletânea de teses, dissertações e astros que unicamente pode dar sentido e rumo
trabalhos monográficos. Num futuro próximo, será lançada ao seu trabalho:
nossa revista de Direito e uma linha de livros didáticos
que incorporarão as metodologias de ensino que utiliza­ '(... ) 'desperta o novo impulso;
mos no curso de graduação. lanço-me para sorver sua luz eterna;
A divergência de opiniões é central para que a Escola diante de mim o dia, atrás a noite,
de Direito de São Paulo não desenvolva maneirismos que Acima de mim o céu, abaixo as ondas."'
limitem a capacidade de crítica e autocrítica de seus pro­ (Fausto, de Goethe)
fissionais. A pluralidade de pontos de vista e abordagens
teóricas presentes no ambiente de nossa Escola têm con­
tribuído para o bom nível do trabalho intelectual que co­ São Paulo, 10 de novembro de 2004.
meçamos a realizar. Aguardamos com ansiedade os
comentários e críticas de nossos eventuais leitores com a José Rodrigo Rodriguez
certeza de que serão material precioso para o prossegui­ Coordenador de Pesquisas e Publicações da
mento de nossas atividades. Escola de Direito da Fundação Getúllo Vargas
A pesquisa é um trabalho sem fim. Como nos explicou
Max Weber, as ciências da cultura se orientam para a ma-
o que é pesquisa em Direito l IS

No início de 2002, Roberto Mangabeira Unger (Di­


reito/Harvard) escreveu para Fundação Getúlio Vargas o
ensaio: "Uma Nova Faculdade de Direito no Brasi/" 1• Era o
início do projeto de criação da Escola de Direito do Rio de
Janeiro e da Escola de Direito de São Paulo da FGV. Esse
texto, que circulou nas mesas de discussão das equipes
convidadas para elaborar os projetos acadêmicos dessas
escolas propunha uma revisão não só do ensino do direi­
to, mas uma crítica à noção de "ciência do direito" que
estaria na base da formação de gerações e gerações de
juristas no Brasil. Nesse texto, Unger aponta uma con­
tradição e um paradoxo.
A contradição: o "formalismo doutrinário" sempre "res­
surgiria das cinzas, como fênix"; ou na forma do "estudo
das idéias jurídicas como um sistema que se pudesse ana­
lisar por métodos quase dedutivos e a exposição do con­
teúdo do direito positivo: o direito tal como construído por
legisladores e juízes" (''antigo formalismo"); ou na forma
da "concepção de que as normas devem ser analisadas com
vistas aos valores, aos interesses, às políticas públicas
subjacentes, concedendo ao jurista a tarefa de melhorar o

h ttp://www.law.harvard.edu/facu I ty /u nger /po rtuguese/


proje.php
16 Escola de Direito da Fundação Getú/lo Vargas O que é pesquisa em Direito l 17

direito ao interpretá-lo, reportando-o a Interesses mais do formalismo Jurídico. Esse sentido crítico esteve na base
gerais e diminuindo a influência das concessões aos das reflexões acadêmicas no processo de constituição da
'iobbies'" ("novo formalismo"). área de pesquisa da Escola de Direito de São Paulo da Fun­
Entre o antigo e o novo formalismo, o ensino Jurídico dação Getúlio Vargas (FGV-EDESP).
continuaria, afirmava Unger, distante tanto de um pensa­ Nesse contexto, em dezembro de 2002 a FGV-EDESP
mento verdadeiramente teórico quanto de uma utilidade organizou em parceria com o Núcleo Direito e Democracia
profissional imediata. "Sem servir nem à teoria nem à prá­ do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) o
tica, resvala na tentativa de casar um amontoado de re­ seminário "O que é pesquisa em Direito?". Marcos Nobre (Fi­
gras - conteúdo do direito positivo - com um sistema losofia/UNICAMP) escreveu um texto especialmente para
fossilizado de conceitos doutrinários". o evento, publicado posteriormente na revista Novos Estu­
O paradoxo: em países onde a orientação dos alunos dos do CEBRAP: "Apontamentos sobre a Pesquisa em Direito no
seria menos dirigida para a profissionalização, o conteú­ Bras//"2• Esse texto teve uma função estratégica no proces­
do do ensino seria mais técnico. E nos Estados Unidos, so de tentativa de criação de algo novo em matéria de re­
onde a orientação do aluno é claramente dirigida para a flexão sobre pesquisa Jurídica no Brasil, tendo a FGV-EDESP
profissionalização, as faculdades de direito mais influen­ como "laboratório" a ser institucionalizado.
tes teriam o ensino menos técnico e mais aberto do mun­ Contudo, para além do sentido estratégico do seminá­
do a outras áreas do conhecimento. O Brasil, segundo rio, Marcos Nobre parece ter escolhido tocar, de forma di­
Unger, pareceria ser uma exceção: "parece combinar hoje reta, porém sutil, dado o propósito do texto em questão,
a base relativamente estreita - a maioria dos alunos a nas tensões que estão presentes na base do debate sobre o
caminho de carreiras de direito - e o conteúdo relativa­ formalismo Jurídico. Escolheu, dialogando com o Tércio
mente estreito, em transição do formalismo à antiga para Sampaio Ferraz (Direito/LISP), enfrentar a distinção entre
o neoformalismo, a discussão estilizada de políticas pú­ "técnica Jurídica" e "ciência do direito" diretamente relacio­
blicas com base para a interpretação do direito". nada à distinção entre "doutrina" e "dogmática". Fez a críti­
Não cabe apontar aqui a "receita" proposta em segui-. ca ao conceito de "decidibilidade" que Sampaio Ferraz
da por Unger ou no que teriam se tornado os projetos das utilizaria para caracterizar a especificidade do direito en­
duas "Novas Escolas". Contudo, a crítica ao formalismo ju­ quanto ciência. O "estatuto tecnológico" do direito na ar­
rídico e a crítica ao ensino com objetivos profissionalizantes gumentação de Sampaio Ferraz poderia ter como
com sentido meramente "técnico" parece ter na base uma
crítica à noção de "ciência do direito" ou uma crítica à noção 2 Marcos Nobre, uApontamentos sobre a pesquisa em Direito no
de "ciência do direito" tal como concebida pelas "vertentes" Brasil" in Novos Estudos, n º 66, Jufüo de 2003. pp. 145-155.
18 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vatgas O que é pesquisa em Direito ? 19

conseqüência - assumindo a "decidibilidade" como critério Proporcionou a discussão pública do projeto de criação
distintivo - uma perspectiva de produção "científica" de uma nova escola de Direito no Brasil.
("dogmática" enquanto sistematização da "doutrina") li­ Como o leitor poderá verificar, as apresentações e
gada à idéia de pesquisa e ensino com objetivos meramen­ debates permitem ampla discussão e reflexão sobre o
te "profissionalizantes". formalismo Jurídico, o sentido do ensino com objetivos
A relação entre pesquisa e ensino esteve, desde o iní­ meramente profissionalizantes, a pesquisa Jurídica limi­
cio, ao meu ver, no cerne da preocupação do projeto de tada exclusivamente a aspectos de decidibilidade, o senti­
criação da FGV-EDESP. Seja na forma da criação de uma do de uma carreira de novo tipo no regime integral de
área de metodologia de ensino, seja na forma da criação dedicação ao ensino e à pesquisa, a abertura e inter-rela­
de um núcleo de pesquisa jurídica inovadora, a FGV-EDESP ção da pesquisa jurídica com outras áreas do conheci­
parece ter procurado lançar uma escola de direito na qual mento, a função social da dogmática jurídica e a
pesquisa e ensino não estão dissociadas, seguindo o pa­ especificidade do Direito em relação a outras áreas das
drão Internacional de excelência acadêmica que deu certo ciências sociais, e a abertura da pesquisa jurídica na com­
nas outras áreas das ciências sociais. preensão do funcionamento das instituições (políticas,
Nesse contexto, a Inovação na forma e no conteúdo econômicas, etc).
da pesquisa e do ensino em Direito no Brasil foi tematizada Como o leitor poderá avaliar, o tratamento da
no seminário "O que é pesquisa em Direito?", agora acessí­ "dogmática Jurídica" em matéria de pesquisa é discutido.
vel por meio dessa publicação que contém a transcrição Mas "dogmática" para além dos "formalismos jurídicos";
das apresentações que foram feitas por diferentes intelec­ uma concepção alargada de "dogmática" ligada a cor­
tuais representantes do pensamento jurídico e político­ rentes de pensamento teórico com pretensão de "expli­
soclal brasileiro, bem como dos debates ocorridos durante car" ou "compreender" o funcionamento do sistema
o evento. jurídico e das Instituições e das formas e relações sociais
A relação de textos e dos debates transcritos segue enquanto fenômenos jurídicos.
exatamente a estrutura do seminário. O leitor poderá A realização desse evento não teria sido possível sem
acompanhar reflexões que dizem respeito aos problemas o apolo e entusiasmo permanentes dos professores Ary
em matéria de pesquisa Jurídica no plano teórico, mas, Oswaldo Mattos Filho, Antonio Angarita e Esdras Borges.
acima de tudo, reflexões sobre o que poderia significar Mar�os Nobre, Ricardo Terra e os colegas do Núcleo Di­
um novo modelo de pesquisa Jurídica e de ensino do di­ reito e Democracia do CEBRAP, muitos deles hoje pesqui­
reito. Assim, no horizonte, esse seminário proporcionou, sadores e professores da FGV-EDESP, marcaram as
ao meu ver, mais do que um discussão sobre pesquisa. discussões acadêmicas que precederam à realização do
� .....
20 Escola de Direito da F11ndaçao Getú//o Vargas

evento. Tiago Cortez e Jean Paul Rocha organizaram o


evento juntamente comigo, sendo figuras fundamentais
para que o evento pudesse ocorrer. Os participantes reu­
nidos no evento produziram trabalhos e participaram ln­
tensamen te dos debates, marcando o sentido e o
momento histórico de sua realização . No entanto, o re­
sultado do evento ora publicado na forma de livro só foi
possível pelo empenho e senslbllldade de José Rodrigo. CAPÍTULO I
Rodriguez, atual coordenador da área de pesquisas e
publicações da FGV-EDESP, a quem agradeço pelo con­ O QUE É PESQUISA EM DIREITO?
vite para escrever este prefácio.

São Paulo, 31 de outubro de 2004

Paulo Mattos
o que é pesquisa em Direito l 23

PARTE I
MARCOS NOBRE
Professor de Filosofia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de Campinas
Pesquisador do CEBRAP

A pergunta que tomarei como ponto de partida e como


fio condutor da minha exposição é a seguinte: o que per­
mite explicar que o Direito, como disciplina acadêmica,
não tenha acompanhado o vertiginoso crescimento quali­
tativo da pesquisa em Ciências Humanas no Brasil, nos
últimos 30 anos? Essa pergunta tem, basicamente, dois
pressupostos. Em primeiro lugar, a pesquisa científica em
Ciências Humanas, no País, atingiu patamares compará­
veis aos Internacionais em· muitas disciplinas, e isto se
deve à bem-sucedida implantação de um sistema de pós­
graduação no Brasil. Não demonstrarei este pressupos­
to, porque acho evidente o salto que deu nosso País,
principalmente nas três últimas décadas, mesmo em com­
paração com a China e a Índia - reconhecidos pela alta
produção científica. Em segundo lugar, pressuponho que
o Direito não conta entre essas disciplinas em que a pes-
"-•;
24 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas · O que é pesquisa em Direito 7 25
h

quisa atingiu patamares de excelência Internacionais, tado será que sem o Direito não conseguiremos entender
embora acredite que ele acompanhou quantitativamente o Brasil e, por conseguinte, haverá uma ausência marcante
esse crescimento e, em segundo lugar, houve, claro, pro­ no que chamo de consórcio das Ciências Humanas.
gressos qualitativos. Dei-me o trabalho de acompanhar Passo, então, ao exame do primeiro dos fatores, que
manuais de alguns ramos do Direito de 20 ou 40 anos é a relação do Direito com as outras dlsclpllnas das Ciên­
atrás. É espantoso como melhorou, mas não tanto quanto cias Humanas. Esse isolamento que apontei, em relação a
nas outras dlsclplinas das Ciências Humanas. Tentarei outras matérias nos últimos 30 anos, se deve a dois ele­
explicar por que há essa relativa Indigência do Direito mentos principais. O Direito é mais antigo que as outras
brasileiro quando comparado a outras matérias. disciplinas, não só no Brasil, e este princípio de antigüi­
A minha hipótese é que esse atraso está ligado a dois dade fez com que estivesse diretamente ligado ao poder
fatores fundamentais. Em primeiro lugar, o Isolamento em político do País, no século XIX, podendo se arrogar a con­
relação a outras disciplinas das Ciências Humanas e uma dição de "disciplina-rainha" das Ciências Humanas - até
peculiar confusão entre prática profissional e pesquisa aca­ 1980, condição da Sociologia.
dêmica. É da combinação destes dois fatores que irá re­ Hoje, temos uma situação bastante diferenciada em re­
sultar uma relação extremamente precária com as lação às ciências e, se pudéssemos falar de alguma
disciplinas das Ciências Humanas, como na concepção de hegemonia, falaríamos em uma hegemonia da Economia. Mas
o que é o objeto da Ciência do Direito. Esses dois fatores, passamos a ver que o Direito desempenha um papel lnterna­
que discutirei a partir de agora, me levarão a analisar clonalmente fundamental na organização da pauta das Ci­
qual é a natureza e o objeto de investigação do Direito, ências Humanas. Infelizmente, estamos ficando para trás no
tal qual os vejo. Mas esta é uma exposição para lançar Brasil e, se não fizermos um movimento rápido, deixaremos
problemas, para que possamos ver se esse diagnóstico de alcançar esse novo arranjo mundial das Ciências Huma­
que apresento agora é plausível ou não. nas. Acho Importante destacar o fato de a Universidade Na­
Digo, Já de saída, que tenho dois nortes nesse exame cional Desenvolvimentlsta - verdadeira Universidade
dos dois fatores - que Julgo fundamentais. Primeiramente, Temporã - ser Implantada contra o Direito, como se ele
acho que desse diagnóstico tiramos que o modelo de cur­ condensasse todos os defeitos a serem superados. Não me
so de Direito, tal como em vigor no Brasil até hoje, está importa se Isto é real ou não, mas, somente, reconstituir
fadado à obsolescência (ou ultrapassado). Ou os cursos como era entendido por seus atores. Quais eram os obstá­
de Direito se reformam - e isto só será possível se houver culos a serem vencidos? A falta de rigor científico, um
uma concepção de pesquisa nova e renovada no Direito-, ecletismo teórico e uma Inadmissível falta de Independência
ou se tornarão irrelevantes. Neste segundo caso, o resul em relação à moral e à política - o dado elementar da univer-
O que é pesquisa em Direito l 27
26 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

o Direito não representa mais um "perigo". O bacharelismo


sidade em seu projeto moderno. Essa situação levou, então,
não consegue mais contaminar as Ciências Humanas, que
a um entrincheiramento mútuo; criou-se um fosso entre o
Já estão vacinadas. Há, também, a experiência da Consti­
Direito e as demais disciplinas humanas no Brasil. Tanto que
tuição de 1 988. Esses fatores, conjugados, são suficientes
vimos, durante décadas, os projetos interdisciplinares das
para chamar a atenção dos teóricos das Ciências Sociais
Ciências Humanas não contando com teóricos do Direito em
quanto à ausência do Direito em suas reflexões, durante
seus quadros. Do outro lado, o Direito só considerava as
décadas, formando uma lacuna a ser_ suprimida. Assim, a
Ciências Humanas na medida em que traziam algum ele­
partir da década de 90, cientistas sociais, filósofos e his­
mento para reflexão propriamente Jurídica. Não havia um
toriadores passam a se interessar de uma maneira acen­
diálogo efetivo. Os dois lados perderam com esse isolamen­
tuada pelo Direito. Mas este interesse não alterou a
to, mas, realizando um balanço, parece que o Direito perdeu
situação, e continuamos a ter um fosso. Quando os teóri­
mais em termos de avanço e de pesquisa.
cos do Direito são chamados para um consórcio
Há um exemplo que parece cabal do fracasso em inte­
interdisciplinar, eles vêm mais como consultores, para
grar o Direito às demais Ciências Humanas - experiência
dizer qual o ponto de vista do Direito, que propriamente
do CEPED' e esforço do professor David Trubek, uma figu­
visando construir um diálogo, como ocorreu com outras
ra de referência nos atuais debates europeus e americanos.
disciplinas das Ciências Humanas. Existem especialida­
Acredito que essa situação de bloqueio objetivo, ou muro
des, a perspectiva antropológica é diferente da sociológi­
entre o Direito e as outras ciências, começa a se modifi­
ca, e ainda assim criou-se u m clima de debate
car na década de 90 por duas razões. Primeiro, porque o
Interdisciplinar que não conseguimos reproduzir no Di­
sistema universitário brasileiro Já está implantado e, logo,
reito. Penso que no caso dos teóricos do Direito, mantém­
Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito - Criado se a perspectiva da Sociologia, da Antropologia, da
em 1966, o CEPED é um órgão da Universidade Estadual do História e da Economia como merecedoras de Importân­
Rio de Janeiro. Foi criado com a finalidade de aperfeiçoar o
cia apenas quando tangem a reflexão propriamente Jurl­
ensino jurídico e a realizar pesquisas e estudos especializados
no campo do Direito. Dirigido desde a sua fundação pelo dlca. Mas é claro que, aí, há problemas de tradução,
Professor Calo Tácito de Sá Viana Pereira de Vasconcelos, Justamente porque a universidade brasileira foi bem-su­
professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito
da Universidade do Estado da Guanabara, o CEPED reuniu cedida em sua implantação.
um grupo de professores brasileiros Insatisfeitos com o es­ O problema maior é definir o padrão de pesquisa das
tado do ensino e da pesquisa em Direito no Brasil. A figura
Ciências Sociais e o padrão de pesquisa em Direito, e como os
central nas atividades do CEPED foi o então Consultor Jurídi­
co da Agência do Desenvolvimento Internacional do Governo dois estão Institucionalizados quanto a ensino e pesquisa.
dos Estados Unidos do Brasil (USAID), Professor David Trubek, Esse relativo Isolamento do Direito não pcide ser separa-
hoje na Universidade de Wlsconsln.
28 Escola de Direito da FundaçtJo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 29

do do que chamo de uma peculiar confusão entre prática e respeitador da autoridade da Jurisprudência". Ao colo­
profissional e elaboração teórica. Acho que explica esse car-se a favor da nomeação do Bork à Suprema Corte, ele
isolamento, além das características fundamentais da Im­ se coloca contra a renovação de seu contrato em Yale. Quan­
plantação da universidade brasileira e dos elementos his­ do Bork se torna Juiz moderado, ele não pode mais ser pro­
tóricos, um bloqueio objetivo existente para que não se fessor, porque, nesse momento, ele atrapalhou seu
Implante no Direito uma concepção nova de pesquisa. julgamento acadêmico. Essa maneira de raciocinar do ma-
O que bloqueia esta concepção é a confusão, que começo glstrado atrapalha a boa produção acadêmica. Era claro
a expor agora. que o Priest sabia o efeito de suas palavras - a maioria dos
Inicio esta explicação contando uma história, atra­ teóricos do Direito enxerga uma distância entre a prática
vés de um teórico americano chamado David Luban2 • No Jurídica e a elaboração teórica, e procuram justamente su­ �
Início de seu livro, chamado "Legal Modernlsm" 3, ele re­ primir esta lacuna entre os dois, exaltando, desta forma,
lata a Indicação do juiz Robert Bork para a Suprema Cor­ esta distinção. Felizmente, a produção acadêmica difere da
te Americana. Ao relatar isto, o que Importa a Luban é o produção do magistrado e da prática Jurídica em geral.
testemunho de um conhecido professor de Yale, George Com esse exemplo, gostaria de ressaltar que, no caso
Priest, favorável a Bork, então conhecido por suas críti­ brasllelro, vivenciamos uma confusão entre prática Jurí­
cas virulentas ao direito de privacidade e toda a legisla­ dica, teoria Jurídica e ensino Jurídico. Particularmente, e
ção que diz respeito aos direitos civis. Houve, então, uma considerando as minhas experiências em docência de pri­
campanha pública intensa contra a Indicação do juiz, e meiro ano - recolhidas no Núcleo de Direito e Democra­
Prlest depôs a seu favor. cia -, acredito que se costuma ensinar aos alunos que o
Seu depoimento Ilustra multo bem o ponto que pre­ mundo se regula pelos manuais de Direito, e não o con­
tendo ressaltar aqui. Disse ele: "de fato, os trabalhos de trário. Dificilmente o aluno Iniciará aceitando esta condi­
Bork na área acadêmica revelam posições extremadas, ção; entretanto, no segundo ano Já achará natural que o
mas não têm nenhuma Importância ao cargo para o qual mundo se regule pelos manuais.
foi apontado porque, como magistrado, deve ser moderado Bem, meu assunto·não será o ensino- a não ser multo
Indiretamente. Eu me �oncentrarel na pesquisa, através do
mercado de trabalho no Direito. Aqueles que criticaram as
2 Professor de Direito da Universidade de Maryland e pesqui­
sador do lnstltute for Phllosophy and Publlc Pollcy. Publicou
escolas de Direito do Brasll por não prepararem o aluno
Lawyers and Justice: An Ethlcal Study. Prlnceton Unlverslty Press, para o mercado de trabalho andaram equivocados. Acredi­
1988. to que, sim, as melhores escolas preparavam os alunos para
3 LUBAN, David. Legal Modernlsm. Estados Unidos: Unlverslty
of Michigan Press, 1994. que enfrentassem o mercado e desempenhassem as fun-
30 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 31

ções do Judiciário. O problema é que o mercado do Direito produção acadêmica na área de Direito - que penso estar
nunca teve padrões muito exigentes. E isso gerou a crise da na base da maioria dos trabalhos universitários, atualmen­
década de 90, porque Isto se torna um problema real quan­ te. O modelo padrão do parecer goza desse papel de desta­
do o País abre sua economia: estabeleceram,-se novos pa­ que porque supostamente se distanciaria da atividade
drões de competência e novas exigências, a níveis advocatícia mais Imediata, embora eu Imagine que, na ver­
Internacionais - o que explica o boom de LLMs. A abertura dade, reforça a sua produção. Quando um advogado ou
levou a uma exigência de qualificação cada vez maior. Acho estagiário de Direito faz uma sistematização da doutrina
que não tínhamos um mercado exigente porque, em boa da jurisprudência e da legislação existentes, ele seleciona
medida, as escolas de Direito são as responsáveis pelo ní­ os argumentos que lhe pareçam mais úteis, de acordo com
vel do mercado de trabalho. Se esse modelo de curso de a estratégia advocatfcla definida, à construção da tese ju­
Direito se mostra lnsatlsfatórlo na década de 90, a abertu­ rídica ou para a elaboração de um contrato complexo para
ra deverá impor mudanças radicais no mercado de traba­ uma possível solução de caso.
lho, por mais estatal que seja. Por isso, acho que as escolas Quando se trata de um parecer, temos a impressão
não estão preparadas para fornecer profissionais à altura. de que esta lógica advocatícia está afastada. Neste caso,
Como no final do século XIX, a elite estudará no exterior; o Jurista se posicionaria como defensor de uma tese sem
mas em vez de Coimbra, as universidades serão as dos qualquer Interesse ou Influência da esiratégla advocatícia
Estados Unidos. definida. Deste modo, a escolha dos argumentos cons­
As origens históricas desse amálgama de prática jurí­ tantes da doutrina Já existente e da Jurisprudência, com­
dica, teoria e ensino Jurídico são complexas, e não preten­ binados à Interpretação da legislação, seria feita por
do analisar mais profundamente. Fiz essa pequena convicção. Mesmo que ó ânimo do parecerista seja diver­
Introdução somente para tornar um pouco mais claro o que so, a lógica que preside a construção da peça é a mesma,
direi. Há um ponto fundamental para o entendimento de ou seja, o parecer recolhe o material doutrinário,
como esse amálgama se dá. O padrão de o que é pesquisa Jurlsprudenclal e os devidos títulos legais unicamente em
em Direito no Brasil passou a ser o parecer, que se tornou função da tese a ser defendida. Não recolhe todo o mate'"
o modelo de pesquisa. Dizer que o parecer desempenha o rlal disponível, mas tão-só a porção do material que vem
papel de modelo e que é decisivo na produção desse ao encontro da tese a ser defendida; não procura no con­
amálgama de prática, teoria e ensino Jurídicos, significa junto do material um padrão de racionalidade e
dizer que o parecer não é tomado aqui como uma peça ju­ lnteleglbilidade, para depois formular uma tese explicativa
rídica entre outras, mas como um formato padronizado de - o que é, para mim, o padrão de um trabalho acadêmico
argumentação, que hoje passa por um quase sinônimo de em Direito. Então, no caso paradigmático modelar do pa-
32 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 33

recer, a resposta Já está dada de antemão. É um tipo de Temos, então, de nos perguntar o que é dogmática.
investigação científica que Já possui uma resposta antes Agora, como conectarei Isso com a história do Juiz Bork ou
de perguntar ao material. Este é o problema. Eu não con­ com o amálgama entre prática e teoria Jurídica que tentei
seguirei avançar na pesquisa em Direito enquanto Já sou­ apontar anteriormente? Utilizarei um texto do professor
ber a resposta antes de fazer a pergunta ao material, Já Terclo Sampaio Ferraz, que considero ter a mais poderosa
que, quando tenho a resposta, eu só seleciono do material reflexão sobre a· dogmática que dispomos no Brasil.
o que importa para defender o que eu Já sei. Sem romper Um trecho da conclusão de A Ciência do Direito:
essa lógica, não teremos pesquisa em Direito no Brasil.
Para tentar esclarecer um pouco mais esse ponto, que "A mera técnica Jurídica que, é verdade, alguns
é o que significa ter a resposta antes da formulação da costumam confundir com a Ciência do Direito, e
própria pergunta, acho necessário discutir qual é o objeto que corresponde à atividade Jurisdicional no sen­
da Investigação científica e acadêmica no âmbito do Di­ tido amplo - o trabalho dos advogados, Juízes,
reito. Tentarei defender a idéia de dogmático, um pouco promotores, legisladores, parecerlstas e outros
mais ampla que a por mim dominada atualmente. -. é um dado Importante, mas não é a própria .
Bem, a dogmática é um núcleo da investigação cien­ ciência. Esta se constitui corno urna arquitetônica
tífica no âmbito do Direito. A informação não é original, de modelos, no sentido aristotélico do termo, ou
não pretendo originalidade, tampouco não pretendo que seja, corno uma atividade que os subordina entre
ela seja consensual. Para evitar qualquer tipo de mal-en­ si tendo em vista o problema da decidibllldade (e
tendido, quero dizer que não acho que a Investigação ci­ não de urna decisão concreta). Como, porém, a
entífica no âmbito do Direito significa submeter a disciplina decidibilidade é um problema e não uma solução,
à perspectiva da Sociologia ou da Economia. Acredito que uma questão aberta e não um critério fechado,
existe um objeto específico de Investigação no âmbito do dominada que está por aporias como as da Justi­
Direito. E não precisa possuir toda a pureza que a teoria ça, da utilidade, da certeza, da legitimidade, da
advoga (pelo contrário, um pouco de Impureza é sempre eficiência, da legalidade etc., a arquitetônica Jurí­
bom), mas há de fato um objeto e é preciso trabalhar so­ dica (combinatória de modelos) depende do modo
bre ele. Mesmo no caso da Sociologia Jurídica, quero di­ como colocamos os problemas. Corno os proble­
zer que a investigação dogmática é um ponto central, mas mas se caracterizam como ausência de uma so-
tem um objetivo diverso do de urna reconstrução em al­ I ução, abertura para diversas alternativas
guns dos ramos do Direito. possíveis, a ciência Jurídica se nos depara como
um espectro de teorias, às vezes até mesmo ln-
34 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargns O que é pesquisa em Direito 7 35

compatíveis, que guardam sua unidade no ponto Bem, esse texto é riquíssimo e tem vários aspectos
problemática de sua partida. Corno essas teorias extremamente complexos que não vêm ao caso desenvol­
têm uma função social e uma natureza ver, Mas queria simplesmente, através dele, retornar mi­
tecnológica, elas não constituem meras explica­ nha argumentação até aqui. Em primeiro lugar, ressaltar
ções dos fenômenos, mas se tornam, na prática, a distância entre o que o professor Tercio chama de mera
doutrina, Isto é, elas ensinam e dizem corno deve técnica Jurídica e a Ciência do Direito, que é um ponto
ser feito. O agrupamento de doutrinas em corpos essencial. Para Terclo, "a mera técnica Jurídica corresponde
mais ou menos homogêneos é que transforma, por à atividade Jurisdicional no sentido amplo - o trabalho
fim, a Ciência do Direito em Dogmática Jurídica. dos advogados, Juízes, promotores, legisladores,
Dogmática é, nesse sentido, um corpo de dou­ pareceristas e outros", que é o ponto de vista que defendo
trinas, de teorias que têm sua função básica em aqui. Agora, tenho uma dificuldade peculiar com esse tex­
um " docere" (ensinar). Ora, é justamente este to. Se o que distingue a Ciência do Direito da técnica Jurí­
"docere" que delimita as possibilidades abertas dica é a decidibilidade em relação a uma decisão concreta,
pela questão da decidibilidade, proporcionando a decidibilidade seria a marca distintiva da Ciência do
certo "fechamento" no critério de combinação Direito quando comparada a outras disciplinas das c,fên­
dos modelos. A arquitetônica Jurídica depende, clas Humanas. Ela exprimiria isso que o professor chama
assim, do modo corno colocamos os problemas, de estatuto tecnológico, que faria da Ciência do Direito
mas esse modo está adstrito ao "docere". A Ci­ uma doutrina dogmática. E é nesse ponto que tenho difi­
ência Jurídica coloca problemas para ensinar. culdade para acompanhar a argumentação de Tercio, Já
Isso a diferencia de outras formas de aborda­ que, dada a seqüência argumentativa, teríamos um movi­
gem do fenômeno Jurídico, corno a Sociologia, a mento de tecnicização da ciência, o que tornaria a
Psicologia, a História, a Antropologia etc., que embaralhar os elementos técnica e ciência do Direito. En­
colocam problemas e constituem modelos cuja tão, mesmo não tendo clareza quanto à posição do pro­
Intenção é multo mais explicativa. Enquanto o fessor, acho que os termos nos permitem avançar
cientista do Direito se sente vinculado, na colo­ teoricamente na definição do objeto, e particularmente no
cação dos problemas, a urna proposta de solu­ que diz respeito às diferenças do Direito em relação a
ção, possível e viável, os demais podem Inclusive outras disciplinas das Ciências Humanas.
suspender o seu Juízo, colocando questões para . Se o Direito tem uma especificidade - e acho que tem
deixá-las em aberto." -, não vejo por que ela deveria impedir que a Ciência do
Direito possa ser explicativa. Não vejo por que essa
36 Escola de Direito da Fundaçao Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7 37 ·�
especificidade do Direito deva Impedir que ela seja Para que haja a possibilidade de o Juiz Bork ficar na Su­
explicativa, desde que mantenhamos com vigor a distinção prema Corte enquanto George Priest é mantido como pro­
entre técnica e ciência. Igualmente não compreendo por que fessor de Yale 4 , para que haja esta distância, essa
ela está direcionada unicamente às propostas de solução. dedicação precisa de um suporte financeiro adequado -
Acho, então, que é possível realizar reconstruções não só salarial, como também para recursos de pesquisa.
dogmáticas que não tenham compromisso com soluções e Dou o exemplo mencionado pelo professor Trubek, que
com a decidibilidade, mas que procurem unicamente com­ mostra as comparações entre a Alemanha e Estados Uni­
preender o estatuto de determinado instituto na prática dos. "Como na Europa toda, a grande parte dos estudan­
jurisprudencial, que iria para primeiro plano. tes de Direito alemães não deixa de ter experiências nas
Nesse sentido, a doutrina seria considerada como uma ricas faculdades de Direito norte-americanas. No caso
sistematização d� prática Jurídica e estaria a ela vinculada alemão, os estudantes mais brilhantes que vão aos Esta­
de maneira lnextrlncável, tal como defendeu o professor dos Unidos fazer seus LLMs retornam ao País não para
Tercio. Como disse ele, acho que doutrina está ligada à prá­ integrar os escritórios americanos Instalados na Alema­
tica, mas não acho que a dogmática deva se limitar a siste­ nha, mas para darem continuidade às suas pesquisas in­
matizar a doutrina; pelo contrário, acho que Insistir na gressando na carreira acadêmica. Em contraste com os
distância entre técnica jurídica e Ciência do Direito só pode franceses, que vão Justamente para os escritórios norte­
ser garantida se distinguir entre dogmática e doutrina. americanos que dominam a advocacia francesa". Assim,
Nesse caso, e guardadas as especificidades, poder­ comparando os modelos alemão e francês, Trubek conclui
se-ia distinguir basicamente entre ciência básica e deta­ que a realidade dos altos Investimentos em pesquisa na
lhada no Direito. Pelo diagnóstico que apresentei hoje aqui, Alemanha vem permitindo uma assimilação mais crítica
falta Justamente pesquisa básica em Direito e, se nós não do arcabouço teórico norte-americano pelos alemães, e
distinguirmos ambas, não vamos conseguir o salto quali­ vem gerando uma produção acadêmica de maior qualida­
tativo da pesquisa em Direito que necessitamos urgente­ de que a francesa.
mente no Brasil. No caso francês, as pressões por mudanças no
Diante desse exposto, quero apresentar algumas su­ formalismo do ensino do Direito não teriam grande êxito
gestões e propostas que se originam disso. Em primeiro uma vez que os alunos franceses mais brilhantes estariam
lugar, se quisermos Implantar um modelo novo de pesqui­ voltando de seus LLMs para ocupar cargos bem-remune­
sa, a primeira coisa que devemos fazer é exigir un:ia dedi­ rados nos escritórios norte-americanos que dominaram o
cação integral à pesquisa, ao ensino e à extensão de uma
parte substancial dos docentes de um curso de Direito. 4 Yale Law School
38 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas
O que é pesquisa em Direito l 39

mercado de advocacia francês. E, em segundo lugar, não


a disciplina é tecida cotidianamente pela experiência e pelo
haveria na França estímulos suficientes à pesquisa acadê­
amálgama entre teoria e prática.
mica por meio de financiamento de centros acadêmicos de
A experiência normativa do Direito, que constitui na­
excelência descolados do mercado de advocacia.
turalmente um dos modos da experimentação social, é
Nós nos tornaremos a Alemanha ou a França? Este é
cultural, axiológica e não pode ser vista ao modo formal,
o momento de escolher. Por último, é preciso romper de
mas como devendo ser permanentemente tecida pela ofi­
fato esse muro com as outras disciplinas das Ciências
cina da prática e pelo laboratório da teoria, que traduzem
Humanas. O Direito é uma referência essencial sem a qual
essa experiência por meio da linguagem. E na nossa ex­
é impossível construir a Imagem do País ..
periência ocidental, essa experimentação normativa por
meio de conceitos que são signos de significação. Usa­
mos diarlamente nomes como "crime, contrato, boa-fé";
são conceitos absolutamente significativos que atuam
PARTE 1.1 sobre as relações sociais em um processo muito comple­
xo de interação entre faticidade e normatividade. Essa
JUDITH MARTINS COSTA
experiência significativa da pensão da realidade é confir­
Professora da Faculdade de Direito da
mada por meio de modelos jurídicos produzidos por fon­
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
tes jurídicas - aquilo que detém a autoridade de prescrever
condutas. Mas esse poder de prescritividade é atribuído a
Passando ao largo das muitas concordâncias que te­
quatro fontes, que seriam a Lei, a jurisdição, a prática e a
mos, passo a enfocar minhas discordâncias. E há uma
autonomia privada.
discordância de base epistemológica: discordamos sobre o
Assim, a modelagem da experiência jurídica é um pro­
que é o Direito. E isso nos leva a pensar em como o Direito
cesso muito complexo, que agrega a oficina da prática e o
é feito, e como deve ser a pesquisa nesse campo. Eu come­
laboratório do teórico, e que deve estar em contato direto
ço lembrando Sartre, para quem "o conhecimento é o modo
com as razões sociais. Mas, diferentemente do sociólogo
de ser, mas na perspectiva materialista não se pode pensar
que descreve e explica as relações sociais, o jurista - seja
em reduzir o ser ao conhecido". Com essa frase, o escritor
o da prática ou o teórico - opera mediante normas que
introduz o problema da processualidade do conhecimento,
não são causais ou motivacionais, e sim com normas pro­
que se dá à vista de uma totalização sempre em curso. Gosto
duzidas segundo processos correspondentes a cada um
muito da passagem, porque ela me parece absolutamente
dos tipos de fontes - processos legislativo, jurisdicional,
descritiva da concepção de como o Direito é feito. Para mim,
do uso ou da autonomia privada. Deste modo, eles têm
"º Escola de Direito da Fundaçito Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7 11

retrospectlvldades e prospectlvldades, o que é multo Inte­ mas, para isto, precisaríamos de uma outra oficina de tra­
ressante no Direito. Há uma Interação entre as fontes, que balhos para discutir teorias Jurídicas. Canarls6, que tem
são estáticas_. e os modelos, dinâmicos, resultando em um livro muito interessante sobre isso, diz que a função da
positlvação. teoria na Ciência do Direito é tornar as normas mais com­
Se a minha concepção sobre o Direito aqui sintetiza­ preensíveis; porém, reconhece que a teoria contém um ele­
da é essa, creio que a pesquisa Jurídica tem, entre suas mento produtivo, que seria o jurista que utiliza teorias para
funções, o "produzir doutrina". Digo no plural "entre as formulação de novas regras, e daí o seu caráter antecipante
suas funções", porque não creio que haja somente um de soluções. Tenho absoluta convicção que, por uma série
modelo, ou método de pesquisa. Creio que a resposta à de razões históricas e sociológicas, esse elemento produti­
pergunta I mplíclta dessa oficina de trabalho é necessari­ vo da doutrina tem, no Brasil, um peso cultural muito espe­ �

amente plural. Mas, antes de falar em doutrina, devo ex­ cífico e denso. O praxismo teve um lado vicioso e outro
plicar um pouco o que é doutrina. Nós, brasileiros, temos virtuoso. Este, chamo em alguns textos de bartollsmo. Sig­
uma tradição praxista fortíssima, que é a tradução dos nifica o hábito de a Jurisdição tomar a doutrina - Inclusive
repert�rios de jurisprudência, dos órgãos de mera con­ a estrangeira - como fundamento; portanto, há uma aber­
sulta e dos manuais que infestam o ambiente acadêmico. tura multo Imediata daquela doutrina. Dou aqui o exemplo
E a essa tradição, que persiste desde o início dos nossos do que ocorreu comigo em um seminário de mestrado, onde
cursos Jurídicos como um pecado original; soma-se a dava uma aula sobre o princípio do venlre contra factum
!egolatria, que é também uma marca cultural multo forte proprfum exemplificado no Direito Administrativo. Entre os
e que nos vem da influência francesa. Isso é o que o Cas­ meus alunos estava um Juiz que deixou a aula às IOh, foi
tanheira Neves5 chama de "doutrina confirmatória", por para seu gabinete e, horas mais tarde, decidiu uma questão
contraposição à doutrina antecipante que cito aqui. de professores na relação com o Estado - aquele princípio
Quanto à doutrina antecipante, sua missão é formular antes nunca usado no Direito Administrativo brasileiro, tor­
teorias Jurídicas que estejam aptas a resolver os proble­ nou-se Direito Positivo. Eu estava falando como atuava o
mas do,presente e a morder o futuro promovendo a recons­ venfrle contra factum proprlum na Alemanha.
trução dos conceitos. Essa reconstrução deve servir como Essa é uma característica multo Importante porque a
marco para a solução de problemas práticos e concretos; doutrina, entre nós, tem um caráter quase prescritivo. Se

6 Claus - Wllhelm Canarls, Professor da Cátedra Karl Larenz


5 António Castanheira Neves, Professor da Universidade de na Universidade de Munique, autor de Pensamento Sistemático
Coimbra. autor de Metodologia Jurídica: problemas fundamen­ e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Fundação Calouste
tais, Coimbra Editora, 1993. Gulbenkian, 1996.
42 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas o que é pesquisa em Direito 7 43

fizermos uma comparação entre as técnicas sentenciais que ele se refere ao caráter legendário com que o Direito é
brasileira e francesa, nos daremos conta dessa imensa estudado e onde explica por que se ensina o direito legendário.
abertura que confirma mentalidades diferentes. Ele toca em um ponto que quero trazer para nossa discus­
Esse elemento construtivo ou produtivo contido em cada são. Segundo Barcellona, a doutrina abriu um fosso entre a
teoria é o que Justifica, em meu entender, a pesquisa que visa teoria e a prática, e na medida que a doutrina abre esse fos­
a explicitação de uma teoria Jurídica. Agora vamos sair do so, perde o contato com os Juristas práticos.
plano das idealidades e vamos ver o que temos. Não temos Marcados esses pontos, sinto que já posso explicar
faculdades de Direito, mas sim os "auláreos" da expressão as razões de minha discordância com Marcos Nobre,
de Juan Capella7 • Temos espaços com instalações absolu­ quando ele afirma haver uma peculiar confusão entre a
tamente inadequadas, sem bibliotecas, sem salas de semi­ prática profissional e a pesquisa acadêmica, e que o pro­
nários, salas reservadas para os professores. Temos, sim, blema que vem sendo sistematicamente identificado nos
espaço onde multidões de alunos consomem aulas, que são trabalhos sobre a crise do ensino do Direito é o fato de o
um monólogo repartido entre centenas de consumidores que ensino jurídico estar fundamentalmente baseado na trans­
buscam diplomas de bacharel em Direito, em vez da função missão do resultado da prática Jurídica de advogados,
essencial de ensinar. É claro que uma pesquisa voltada à juízes, ·procuradores e promotores, e não na produção
produção de uma doutrina antecipante pode funcionar como acadêmica desenvolvida segundo critérios de pesquisa
um antídoto - ainda que parcial - contra essa reprodução científica. Creio eu que a confusão entre prática profissio­
derivada dos nossos "auláreos". Acho que é uma experiência nal e pesquisa acadêmica não é peculiar, mas sim, peculi­
plural essa inconsistência e falácia do nosso ensino jurídico, aridade. Ela deriva do fato de o fenômeno jurídico
gerada, no meu entender, pela reprodução em aula da dou­ constituir essa experiência normada que se processa em
trina confirmatória. Isso é analisado de uma maneira muito uma espécie de espiral entre teoria e prática. Pelo menos
interessante em um texto antigo do Pletro Barcellona8 , em é assim nos direitos da família continental, no qual exis­
tem categorias prévias generalizantes cujo conteúdo é pre­
7 Juan Ramón Capella Hernandez, Catedrático de Fllosofía do
Direito da Universidade de Barcelona. Autor de Fruta Proibido enchido pela prática. Por Isso se diz que o Direito é atado
- uma aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do Es­ à razão prática - e é ela que polariza a pesquisa.
tado, Livraria do Advogado, 2002.
Retornando à questão do parecer: Marcos Nobre diz
8 Docente na Universidade de Catania (Itália), membro do
Conslglio superlote della Magistratura, Deputado e membro que o parecer jurídico não contém a lógica advocatícia
da Comissão de Justiça da Câmara. Dirigiu a r evista que é a de ter a resposta e, depois, sair buscando argumen­
"Democrazla e Dlrltto" e presidiu o Centro di Rlforma dello
Stato. Autor de Dai/o Stato social ai stato lmmaglnarlo. Crítica tos que reforçarão esta resposta que Já tem. Acho que um
dei/a razlone funzlona//sta , Bollattl Boring�lerl Editore, 1994. parecer pode ser uma peça produtora de uma verdadeira
44 Escola de Direito da Fundaçao Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 45 ��

doutrina antecipante. Por quê? O parecer possui dois mo­ Por fim, a minha discordância quanto à terapêutica,
mentos, incluindo um momento prévio que não foi consi­ que me parece urna tendência multo clara à americaniza­
derado por Nobre. E é neste momento que o jurista ção do Direito. Há urna espécie de elogio à americaniza­
examina se pode ou não dar o parecer, que ele faz urna ção nas referências à experiência do CEPED e à crítica à
pesquisa exaustiva do universo para saber se ele pode ou pesquisa no ensino que não são orientadas pelo padrão
não formar sua convicção. Esse é o momento de urna ver­ norte-americano. Bem, me parece que não se pode Igno­
dadeira pesquisa científica. A partir daí, ele forma sua rar a forte Influência do Direito americano especialmente
convicção, decide que pode dar o parecer, e arrola doutri­ em áreas corno o Econômico, na concorrência, nos con­
nas e Jurisprudências corno um argumento de autoridade. tratos, e até o Penal. É um processo muito semelhante ao
Também questiono a expressão "segundo critérios de ocorrido no século XIX com Napoleão, que detinha urna
pesquisa científica referentes à transmissão da prática Ju­ força expansionista multo grande. A ciência cornparatlsta
rídica". Ora, critérios de pesquisa científica no Direito de­ admite que a mutação dos modelos Jurídicos está Inscrita
vem levar em conta necessariamente o resultado da prática essencialmente em urna dinâmica de Imitação cuja força
Jurídica de advogados, Juízes, promotores e procuradores. motriz é o prestígio. Este termo é tornado pelos
E esse "levar em conta" é que está no cerne de urna questão cornparatlstas de empréstimo à soclologla, mas tem, no
que angustia, que é o amalgamar entre teoria e prática. âmbito cornparatista, um valor próprio e certos limites
Corno disse anteriormente, ternos urna concordância no di­ em relação à sua validade explicativa. O prestígio que
agnóstico e urna discordância na terapêutica. Acho que aqui move a circulação dos modelos Jurídicos não deriva de
ternos de fazer o corte do modelo que queremos seguir, as má qualidade Intrínseca do modelo copiado; é um fenô­
diferenças entre as diversas lógicas que regem teoria e prá­ meno absolutamente reversível e normal, porque diz res­
tica no Direito norte-americano e no continental. peito a um sistema percebido corno passível de responder
A prática e a teoria devem estar amalgamadas, por­ de modo mais adequado aos objetivos mais valorizados
que sua relação não é circular, mas sim espiralada, sem­ pela comunidade Jurídica em um determinado momento.
pre com um elemento novo que acresce. Não conheço E evidentemente, esse prestígio do Direito norte-america­
ninguém que invente mais e crie mais que um advogado, no está ligado à força expansionista de sua cultura, essa
assim corno também o teórico não pode estar em urna "rncdonaldização" de grande parte do mundo, e ao fato
torre de marfim. E é por isso que penso que a composição de a racionalidade do Direito no País responder mais ade­
dos professores de urna faculdade de Direito necessita de quadamente às necessidades da americanização econô­
pessoas envolvidas com a prática. Se não ternos essa mica, o que é um eufemismo para globalização. Acho óbvio
imersão na realidade, não se faz urna boa teoria. que não podemos aceitar essa Influência.
46 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 47

No Direito norte-americano a racionalidade está fun­ e pesquisa para saber se aceita ou não o caso. Cerca de
damentada em um sistema de pensamento muito próximo 10% das consultas que me vêm resultam em trabalho. A
do fato, encontrando neste toda a força da sua legitimida­ grande dificuldade deste método de produção científica é
de. Portanto, creio que, para que se conceba uma teoria que a parte mais rica do trabalho morre com o parecerista
como a acadêmica, não pode haver contaminação pelo fato por ele não poder relatar aquela experiência. Mas creio que
ao qual ela está proximamente ligada. Nosso Instrumento o professor Nobre também tenha razão quando diz que o
e nossa forma de ver o Direito não estão fundamentados trabalho do parecerlsta acaba reproduzindo naquilo que
em um sistema de pensamento próximo ao fato, mas em se publica a mesma lógica do trabalho do advogado.
um sistema de pensamento abstrato, conceituai, e no qual d primeiro problema, quando pensamos em discutir o
a solução é pré-determinada por um raciocínio dedutivo. A que é pesquisa em Direito, é tentar discutir o que é o Direi­
forma de justificação não está no fato - está no conceito. E to. Nenhum de nós faz muita idéia do que seja, por ser uma
é por isso que a prática não é o fator de legitimação no questão-primária. Temos, entretanto, definições muito prá­
caso brasileiro, ao contrário do americano. ticas que usamos para poder viver. Quando pensamos em
Parece-me que se quisermos pensar em um modelo Direito, ligamos diretamente certa categoria de profissio­
brasileiro de como fazer pesquisa em Direito, temos de nais. Assim, supõe-se que a pesquisa em Direito deva ter
pensar nessa lógica que preside a nossa forma mental. alguma vinculação com a atividade destes profissionais.
Talvez alguns dos problemas que temos com a concepção
do Direito, tal como é ensinada, seja o fato de desconsiderar
a existência de uma ampla categoria de profissionais do
PARTE 1.2 Direito que não cabe naquele modelo tradicional. Quando
pensamos nestes profissionais, ligamos os advogados,
CARLOS ARI SUNDFELD juízes, promotores ou procuradores de Justiça, mas esque­
Professor da Faculdade de Direito da cemos que há uma série de outros profissionais que fazem
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da o trabalho de produção de normas. Uma faculdade de Di­
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas reito se preocupa pouco com o produtor de normas, pensa­
se: "um produtor envolve a dimensão da política, e não do
Concordo com a professora Judith, quando diz haver Direito. Logo, não devemos nos preocupar em fornecer aqui
no trabalho do parecerlsta uma grande quantidade de ela­ elementos de reflexão para esses produtores de normas".
boração científica na medida em que, para aceitar ou não Talvez um dos problemas de nossas escolas de Di­
um parecer, ele precisa fazer um grande trabalho de reflexão reito seja a incapacidade de identificar qual o perfil do
48 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 49 .. · ...

profissional do Direito moderno. Há, certamente, outros Uma das características que certamente foram con­
profissionais que não correspondem a este perfil do Juiz­ sideradas relevantes na hora de elaborar o programa da
advogado e há, entre aqueles que se denominam advoga­ Escola da FGV, é expansão do profissional do Direito para
dos, gente fazendo atividades muito diferentes daquilo que outros campos de atuação. Ele deve se tornar um pouco
está em nossa cabeça quando pensamos em sua profis­ economista, um pouco administrador, e ampliar seus ho­
são. Para nós, o advogado é o sujeito que vai ao fórum e rizontes. É claro que Isso nos angustia um pouco, já que
peticiona, argumenta e recorre, fazendo um trabalho muito devemos manter nossa identidade e especificidade. Mas
ligado à atividade Jurisdicional. Talvez devêssemos refle­ não vejo a importância de se abrir a perspectiva para ou­
tir se a expressão "advogado" não tem matizações muito tros campos profissionais contrariando minha visão de
importantes que deveríamos considerar quando pensamos Direito, já que sinto as questões profissionais práticas mais
em formar pessoas para isso. Quando penso no trabalho mescladas que no passado.
dos profissionais do Direito, não deixo de co�siderar que Uma das características que certamente foram con­
devemos ampliar um pouco a nossa visão sobre o que é o sideradas relevantes na hora de elaborar o programa da
profissf onal em Df reito. Escola da FGV, é expansão do profissional do Direito para
. Diria, então, que a pesquisa em Direito deve ter al­ outros campos de atuação. Ele deve se tornar um pouco
guma conexão com a prática Jurídica. É claro que há uma economista, um pouco administrador, e ampliar seus ho­
grande dificuldade em distinguir o que serve ou tem algu­ rizontes. É claro que isso nos angustia um pouco, Já que
ma ligação com a prática Jurídica, e acho que isso seria devemos manter nossa Identidade e especificidade. Mas
uma questão importante a ser debatida no conselho de não vejo a importância de se abrir a perspectiva para ou­
pesquisa de uma faculdade de Direito para se saber onde tros campos profissionais contrariando minha visão de
aplicar as verbas. Não é uma questão tão difícil saber onde Direito, já que sinto as questões profissionais práticas mais
termina o Jurídico e começa a pura Sociologia que está mescladas que no passado.
tomando o Direito em consideração; não sei se essa dis­ Como evoluir? Para mim, o grande problema não está
tinção é muito Importante a não ser para essa questão na confusão entre prática e teoria, mas sim na perspecti­
prática de saber o que uma faculdade de Direito financia e va em que o prático se põe quando vai produzir a teoria.
uma escola de outra ordem financia. Precisamos reconhe­ Não vejo mal algum na confusão entre as duas coisas,
cer a necessidade dos profissionais do Direito de Interagir Justamente porque a definição Intuitiva do Direito está
com os teóricos e práticos da disciplina. E na medida em muito ligada à atividade profissional. O problema é a pos­
que essa interação se amplia, teremos cada vez mais difi­ tura que os indivíduos adotam quando vão produzir aqui­
culdade em distinguir um profissional do Direito. lo que chamamos de teoria. Creio que se fizer uma descrição,
50 Escola de Direito da Fundação Getúflo Vargas O que é pesquisa em Direito 7 51

possivelmente muitos se identificarão ou identificarão seus externas - entre estas, as influências de outras áreas do
inimigos. O que um professor de Direito almeja? Ser um Direito. Se ele reconhece que para fazer uma reflexão so­
Jurista. Este não é exatamente um pesquisador, mas um bre Direito Administrativo tem de conhecer Direito do Con­
sujeito de opinião; o que o caracteriza e entrava nosso pro­ sumidor, ele perde prestígio. É um problema que acaba
gresso enquanto formuladores de teorias é o fato de ter­ tendo reflexos práticos bastante importantes. O sujeito
mos um Direito de opinião. O que importa é alguém se defende o seu Bastião porque defende a si mesmo, como
transformar em um detentor de opiniões relevantes e, neste quem possui opinião sobre um mundo em que ele é o má­
sentido, a menção ao exemplo do parecerista é muito feliz, ximo e tem de defender até à morte a especificidade de um
já que ele é um sujeito de opinião valorizada. No fundo, os Direito de não-sei-o-quê, o obrigando a ignorar a Econo­
pareceristas são buscados não por sua capacidade de re­ mia, a Política e outras ciências.
censear com rapidez, qualidade e método, mas por possu­ Acabei de identificar-me com essa descrição. Meu
írem um belíssimo nome e opinião respeitada. Normalmente grande sonho, depois de me formar, era tornar-me um ju­
o parecerista de sucesso é o que tem um aspecto respeitá­ rista, uma pessoa de opinião e mais tarde produzir um
vel e sério. 11:ianual de Direito Administrativo. Imaginava que este era
O jurista não gosta de se apresentar como pesquisa­ o modelo adequado. Quando isso mudou para mim? Quan­
dor. Sua produção se coloca mais como fruto de uma re­ do comecei a trabalhar em grupo e as lógicas do jurista e
flexão pessoal que como um levantamento de dados da opinião foram completamente destruídas. As transfor­
sistematizado que levou a uma conclusão. Acho que esta mações nas cabeças dos juristas começam a ocorrer quan­
é uma característica Importante, e mostra que nosso Di­ do participam de trabalhos em conjunto, porque aí a lógica
reito é de opinião e não de fato; não há uma grande preo­ da opinião não funciona mais. Com três pessoas e opini­
cupação em se conferir os fatos. E o que nos causa um ões diferentes, não se pode ficar no nível da pura opinião;
grande problema é que o Jurista considera sua opinião provavelmente brigarão, e posteriormente encontrarão um
tão importante que acaba se descolando da própria or­ método de pesquisa.
dem Jurídica, gerando uma revolta destes profissionais A maior interação teórica que já tive na minha vida
contra a ordem. Estes juristas não concordam com as mo­ profissional, com colegas do departamento de Direito Pú­
dificações constitucionais, não as discutem e acabam por blico da PUC, foi com o professor Márcio Camarosan, com
afirmar que vigora um Direito que já foi revogado. quem convivi há muitos anos e tive a oportunidade de
Creio que o que nos entrava no progresso é justamente fazer debates jurídicos - mais tarde nos envolvemos na
essa figura do Jurista, que é um sujeito de opinião que tra­ produção da Lei Geral de Telecomunicações. Passamos
balha sozinho e precisa ser "Impermeável" às influências quatro meses trabalhando em grupo para produzir a Lei
52 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7 53 ;""I

que criaria a Anatel9 , etc. Foi um trabalho de comparação opinião, Incorporando a postura de advogado. As teses
no qual buscamos elementos que Importavam para a or­ que estão surgindo têm multas características de advo­
ganização do serviço. gado: o sujeito tem uma certa opinião, quer referendá-la e
Para concluir, essa confusão entre prática e teoria inicia uma busca de elementos de acordo com aquele sis­
não é exatamente um problema - apesar de um dado Im­ tema tradicional. A Jurisprudência, por exemplo, não é
portante-, desde que sejamos capazes de entender que a objeto de análise e reflexão, o que se cita é a Jurisprudên­
produção da teoria exige uma metodologia diferente de cia a título de ilustração. Tenho insistido muito com meus
trabalho. Acho que isso não é distinto do que a professora orientandos quanto à necessidade de se fazer trabalhos
Judith falou. Creio que a separação entre os teóricos e prá­ sobre Jurisprudência, mas sempre que chegam à primeira
ticos é uma tática bastante Importante, mas deve ser feita minuta, argumentam que o Supremo não vem fazendo uma
com certo cuidado porque se nós não eliminarmos a lógi­ boa doutrina, tem uma opinião irrelevante. Veja, então,
ca da opinião teremos criado monstros. Se hoje temos Ju­ que a boa e respeitada opinião é mais valorizada. Como
ristas como pessoas que criam suas opiniões e não as os alunos acham que o Supremo não tem uma opinião
modificam, apesar de trabalharem na prática, Imagine o Interessante, eles não se Interessam por Identificar a po­
que acontecerá se permitirmos que esse Jurista se sição do órgão. Se nós pudéssemos tomar uma delibera­
desvincule da prática. Ele vai se desvincular do mundo 1. ção, como um conselho, proporia a destruição do Jurista.
real, o que é um perigo. Assim como Mário de Andrade, no movimento modernis­
Acredito que, se formos bem sucedidos na função de ta, se voltava contra o burguês, proporia a adaptação do
criar grupos de pesquisa, não correremos o risco de se­ movimento para destruir o Jurista. Só espero que eu não
parar o prático do teórico, porque se supõe que a pesqui­ morra neste caminho ...
sa vai se voltar à prática, permitindo um certo
distanciamento. Assim, o sujeito que pesquisa não o fará
para defender uma dada solução. É pernicioso iniciar a DEBATES
pesquisa com o desejo de chegar a uma dada conclusão
pré-fixada. Creio que esse elemento continua presente • Marcos Nobre
nas dissertações e teses de doutoramento, fazendo sua Qero só colocar um problema para ser discutido, prin­
péssima qualidade média. Os sujeitos começam a pro­ cipalmente porque acho que minha posição não ficou clara.
duzir uma tese ou dissertação para defender uma dada Meu modelo não é o norte-americano, mas claramente
alemão. Isto não exclui de nenhuma maneira a enorme
9 Agência Nacional de Telecomunicações. importância da Jurisprudência. Prt,fessor é criador de ilu ..-

54 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7 55

são necessária, já que deve mostrar que o mundo funcio- Isso é uma pesquisa de Jurisprudência, de construção do
na conforme o manual e a aula, pouco importando se o Direito e da tendência. A professora Judith coloca com
,,
Supremo diz o contrárlol">Cltei o exemplo do Priest para muita coragem intelectual essa questão da nossa guina­
mostrar um que é oposto a mim; na verdade queria ser da para o Direito americano, que não se faz por simples
neutro com o exemplo. vontade, mas por uma contingência. Então, se vou pesquisar
E, particularmente, quero insistir com uma distinção a Jurisprudência não mais como objeto de pesquisa, mas
que propus sobre ciência básica e aplicada. De maneira os próprios pareceres, terei uma tendência do pensamento
alguma quero dizer que doutrina não é pesquisa, mas sim Jurídico brasileiro. Sobretudo se os grandes Juristas nacio­
que deve haver uma distinção entre as pesquisas básica e nais ou estrangeiros trazidos pelo texto de Marcos Nobre
aplicada.: Como só temos a aplicada, ela fica hipertrofiada coincidem com os da professora Judith e de outros tantos
de tal modo que não avançaf por isso a previsão de 70% Juristas. O pesquisador pode começar fazendo Inferências,
dos professores em tempo integral não é de 100%. Seria tabelas e assim por diante. Acho que esse modo de não nos
importante fazer essa distinção entre básica e aplicada, aproximarmos da metodologia excessivamente empírica
senão o problema da Inovação fica perdido1- das Ciências Humanas, mas também não fazermos traba­
Dada a proposta da distinção, o que significa a rela­ lhos-de monges cercados em nossos gabinetes, é uma ten­
ção entre prática e teoria? Segundo a professora Judith, tativa de avançar com pesquisa.•,
se não há imersão na prática não há teoria. É claro que a
professora está radicalizando sua opinião, mas acho que + Oscar Vilhena Vieira
todo o problema foi formulado pelo professor Ari, para (Direito - PUC-SP, Direito GV)
quem devemos avançar nessa extirpação da opinião. Se As Ciências SoclaJs foram dominadas por uma forma
não extirparmos a opinião, dificilmente vamos avançar. de pensamento estruturalista ou marxista, para o qual o
Direito tem relevância mínima.,·Ainda que você não seja
+ Antonio Angarita um'marxlsta de partido, o fato de se pensar marxistamente
(Vice-Diretor, Direito GV) torna o Direito um organizador secundário das relações
Não sei se, com efeito, a Jurisprudência precisa ser sociais/Agora, um segundo ponto para complicar a ques­
pesquisada não para fazer Inventários dela e sustentar tão da teoria e prática - não fazendo uma defesa do Di­
opinião, mas para fazer Indagações que revelem o que reito americano: lembro que grande parte dos professores
quer dizer aquela Jurisprudência. Se eu Imaginasse três americanos é de práticos que, depois de 40 ou 50 anos, vão
ou quatro grandes questões sociais neste País, ficaria pre­ às universidades fazer teoria. A vantagem deles é se senti­
ocupado em saber como as cortes decidem sobre elas. rem independentes para emitir suas próprias opiniões, já que
56 Escola de Direito da Fundaçito Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7 57

não estão sendo pagos para Isso. Então, precisamos ter a É curioso o impasse que se viu, depois de algum tem­
clareza de que o fato de um professor ser fu/1-tlme não po, com os próprios criticai legal studies, que radicalizaram
significa que ele foi fu/1-time professor. Estes foram, em, a ênfase na idéia de crítica e pesquisa na interdisciplina­
primeiro lugar, assessores de um Juiz da Suprema Corte. ridade até chegarem a afirmar que o Direito havia perdido
Só para terminar, a questão que mais me preocupa sua especificidade como uma ciência autônoma e que, por­
no Brasllt é a forma como se produz doutrina sem a me­ tanto, o objeto de ensino nas universidades deveria ser Jus­
nor atenção à prátfcaFLembro-me de um Jurista que dizia tamente esse enfoque Interdisciplinar. Hoje, o que se vê de
não mais ter o trabalho de citar pessoas porque todos só uma maneira muito Intensa no debate americano é a idéia
queriam saber de sua opinião. E esse Infame Jurista tinha de alguns pensadores que, certamente, nada teriam a ver
razão, Já que quase 80% dos Juízes do 1rlbunal de Alçada com a faculdade de Direito brasileira. Penso, por exemplo,
de São Paulo o citam como referência. Isto mostra como na contratação de uma pessoa como Charles SabeJ Iº para
uma doutrina que parte da idealização absolutamente de-· dar aula na Columbia Law School, ou então a integração dos
sapegada à prática se transforma em uma fonte de cons­ debates do Joshua Cohen" com o pessoal de Direito, ou
trução para ela. ·isso me aflige. seja, a idéia da discussão de modelos alternativos
Institucionais como forma de fazer Direito. Temos um mo­
• Ronaldo Porto Macedo Jr. delo de parecer, e hoje, cada vez mais acentuadamente, um
(Direito - LISP, Direito GV) tipo de análise que b,usca pensar modelos alternativos e ;.
Considero Interessantes as posições divergentes dos afastar o próprio objeto do Direito que deve ser pesquisado .,,,
palestrantes. Divergentes, mas nem tanto, Já que trazem e ensinado daquilo que seria o modelo do bom parecer e da , 1•
distinções do tipo típico-ideal. Em primeiro lugar, em re­ boa doutrina. Não deveríamos nos restringir, mas atentar­
lação a esses modelos de parecer, me chama a atenção - mos para queOireito não se torne apenas isso. Há um tipo
e aqui recorrendo a algo que aconteceu na universidade de função intelectual mais ampla, participante do debate .,
americana acerca da crítica a este modelo de pesquisa nacional, que formula e cria novas instituições.
jurídica - a experiência dos cr/tlcal lega/ studles. A partir de
1 970, estes estudos passaram a produzir uma dura críti­
10 Charles F. Sabei, Professor de Direito e Ciência Social na
ca ao modelo de Ciência Jurídica produzido pela universi­ Columbla Law School. Autor de Can We Put an End to
dade. Basicamente, criticavam o pensamento Jurídico Sweatshops? wlth A rchon Fung and Dara O'Rourke. Beacon
Press, 2001 e Work and Po/ftfcs: The Dlvlslon of Labor ln lndustry.
pautado na análise de como ponderar políticas e princípios Cambridge Unlverslty Press, 1982.
Jurídicos - o grande norte da boa construção de um pa­ 11 Professor do MIT Department of Polltlcal Sclence, editor da
revista Boston Revlew. Autor de Soverelgnty and So/idar/ty: EU
recer.
and us. Oxford Unlverslty Press, 2003.
58 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 59

Um outro ponto que confesso que ainda não me sa­ recortacla de opiniões com pouca reconstrução teórica. De
tisfez, no que se refere ao texto de Marcos Nobre, é o da uma maneira simples e direta, o professor Carlos Arl nos
relação existente entre pesquisa básica e aplicada. A dis­ dá um antídot9· multo Interessante, que é do trabalho em
tinção é intuitiva, clara, mas a pergunta que faço é a se­ grupo, colo'1aii,d.Q,p,osições em confronto'. Todos nós somos
guinte: não haveria uma especificidade na relação que se acostumados a elogiar os amigos e criticar os inimigos;
pode imaginar entre pesquisa básica e aplicada no Direi- �. poucos são os foros nos quais há um debate acadêmico
to? l'.onge de mim recusar esta distinção, mas me parece efetivor,E alguns daqueles mais diretamente responsáveis
que há, sim, uma peculiaridade nesta integração. Com pelo espírito de crítica são apenas aqueles que se legiti­
relação à professora Judith, me chamaram a atenção duas mam na condição de "mandarins" - pessoas que se jul­
questões. Tenho uma certa dificuldade em acompanhá-la gam acima do bem e do mal -, porque boa parte das
no sentido de imaginar que há uma racionalidade distinta resenhas é laudatória. Ou seja, não tem debate, crítica.
entre o Direito americano e o Direito continental. Lembro Ao meu ver, esse é um dos pontos de estrangulamento efe­
um autor americano, o Guldo Calabresi 12 , que tem um li­ tivo. Se alguém produz um livro fraco, os críticos e os.
vro chamado Common Law para um Direito na Era das Leis 13 • lnhrllgos silenciam e, muitas vezes, até se esquecem de
O que parece haver, dentro das universidades america­ debatê-lGJ.' Parece-me, então, que essa recomendação de
nas, é um cosmopolitismo multo grande; ou Seja, elas não Nobre tem um poder revolucionário im�nso, que é o de
refletem necessariamente o mainstream da produção dos instituir efetivo debate, crítica e censura.
tribunais americanos. E, nesse sentido, o modelo de pes­
quisa e ensino jurídico tende a ser cosmopolita em grau + Caio Rodriguez (Direito Rio - FGV)
que os Estados Unidos não são na maioria de suas ativi­ Darei uma ênfase maior a alguns pontos. Por que se­
dades. Assim, não sei se essa distinção ou polarização ria necessário justificar a melhoria da pesquisa Jurídica a
continental versus ângulo saxão resiste. Tendo a ver o pa­ partir de critérios de clentificidade? Basicamente, tenho a
drão de pesquisa americano como bem mais cosmopolita dizer que essa questão, se a pesquisa em Direito é cientí­
do que a experiência jurídica prática. fica ou não é, tornou-se obsoleta e irrelevante, mas conti­
Com relação à posição de Carlos Ari, de fato boa parte nuamos a persegul-la.lObviamente concordamos que a
de nossa produção na forma de parecer é uma coleção pesquisa jurídica no Brasil é muito pobre - é pobre, mas
não científica ou acientífica. A minha hipótese ou provo­
cação é que o Direito se distanciou das Ciências Sociais
12 Professor da Yale Law School não porque ele deixou de ser científico, mas porque ele
IJ Calabresl, Guldo. A Common Law for the age. Estados Unidos:
Harvard Unlverslty Press, 1982. continua preso ao paradigma "o que é científico ou não".
60 Escola de Direito da Fundaçao Getú/Io Vargas O que é pesquisa em Direito ? 61

Também quero fazer uma proposta sobre o que seria dos manuais surgidos há 30 anos - aliás, vejo que os de
uma pesquisa em Direito mais Interessante e livre das hoje são piores e mais rasos, por serem uma cópia dos
questões de objetividade e clentlficldade. Se fôssemos to­ antigos. Mas o problema não se restringe aos manuais; há
mar o exemplo dos Estados Unidos, essa pesquisa não uma contaminação dos manuais para pesquisa. SãG>
reconheceria seu destinatário no Juiz, mas no cidadão. As­ monografias baseadas em manuais, quando deveria ser o
sim, o Jurista teria como tarefa pensar e mapear a cultura:s, contrário: Já vi vários trabalhos que conseguem a proeza
jurídica a partir de como os interesses e Ideais da prática. de estender duas páginas de um manual para 250 páginas de
jurídica se institucionalizam, fazendo a crítica dessa crrs­ monografia. E não é porque o aluno achou a Idéia contida
talização e propondo alternativas de reformas Institucio­ no trecho Interessante, mas simplesmente destrinchou as
nais.. Então, em vez de ficarmos presos sobre o que é ou duas páginas e não pesquisou nada mais. A monografia é.
não objetivo, adotaríamos uma perspectiva multo mais no Brasil, uma expansão dos manualis.
radical, afirmando a necessidade de tornar como destina­ Minha última consideração diz respeito às palavras da
tário do discurso Jurídico o cidadão; e não o Juiz. Adotam­ professora Judith. Foi dito que não há possibilidade de se'";·
do como prática do Direito a Imaginação de possibilidades fazer boa teoria sem uma interação com a prátlcar. Pergunto­
novas e institucionais para o grupo.,.. me: como se explica que todos os professores estrangeiros,,
que costumamos idolatrar se dedicam exclusivamente à,,
• Luis Virgílio Afonso da Silva pesquisa? ·,
(pesquisador Direito GV)
Com relação às questões da dogmática Jurídica e da • Judith Martins Costa
decidibilidade, creio que não necessariamente a dogmática Quando digo que o teórico tem de mergulhar na prá­
está relacionada diretamente com o problema da decisão. tica,, não afirmo que ele tem de ser um promotor ou advo­
Acredito que este está ligado a um âmbito normativo da gado. Quero dizer, sim, que o objeto da sua reflexão deve
dogmática jurídica - há outras dimensões, como a analí­ ser a prática,: E nesse sentido sou radical, acho que o ob­
tico-conceituai ou empírica, que não necessariamente es­ jeto da reflexão do teórico é a prática - não com caráter
tão relacionadas com a decidibilidade. reprodutivo.
O meu ponto principal. na verdade, é a questão dopa­ Em outro ponto, gostaria de dizer que adorei o que o
recer. Penso que essa concepção parecerística do Direito Carlos Ari falou sobre opinião, mas não entrei nesse assunto
não é o problema mais sério;.que fica por conta da concep­ porque acreditei que esse seminário era sobre pesquisa. Para
ção manualesca,,. Sou um pouco pessimista com relação a · mim, a opinião é a não-pesquisa.,Bem, quanto ao problema
isso. Já que acho que os manuais de hoje em dia não diferem das racionalidades do Direito norte-americano e o nosso, é
62 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 63

lógico que existem contatos muito grandes, mas são queria comprovar a hipótese que a diferença conceituai
racionalidades diversas que se contaminam. E, por fim, gos­ entre autonomia privada e autonomia da vontade pos­
tei muito da observação do Ronaldo sobre a crítica, "não se sui diferenças quanto à eficácia. Foi comprovada a hi­
fazem críticas dentro da Academia e mesmo fora". pótese e posso, a partir daí, fazer uma doutrina.

+ José Rodrigo Rodriguez + Esdras Borges Costa


(Núcleo Direito e Democracia­ (Assessor da Diretoria, Direito GV)
CEBRAP) Como sociólogo de formação, não posso fugir da per-
Tenho só uma questão pontual, direcionada à pro­ gunta que vocês estão fazendo: afinal de contas, a minha
fessora Judith. Quando a senhora fala que o papel da pesquisa sociológica e antropológica é ou não científica? É
pesquisa também é fazer doutrina, fico me perguntando uma questão que há muito tempo vem sendo discutida no
o que é o "não fazer doutrina" que a pesquisa faz. Eu, campo, ocupando profissionais e pesquisadores de fato que
como aluno de pós-gradução, tive multa dificuldade em perguntam: o que há de científico no que estou fazendo? Até
achar uma forma de dissertação que se diferenciasse dos que ponto é uma crônica, um testemunho ou uma preferên­
trabalhos tradicionalmente realizados. Como se articu­ cia política e ideológica 7 Com isso, queria me referir a uma
la um texto que expresse a idéia: "vou sair para a pes­ Imagem que tem de ser corrigida. Uma das imagens erra­
quisa como se fosse Colombo e n ão sei o que vou das é que o sociólogo é um escravo dos dados. Digo isto
encontrar?" Quais são as formas de uma nova disserta­ porque nesta nossa discussão sinto freqüentemente um certo
ção e de um novo doutorado? "conceito residual" , uma idéia de que a contribuição socio­
lógica é a aquela que nos trará a capacidade de entrar em
+ Judith Martins Costa contato com os dados.
Penso em alguém que resolva recolher todos os Na pesquisa social, o sociólogo está tão sedento de
acórdãos sobre determinado objeto para saber deter­ teoria e doutrina, que tem sido objeto de multas discus­
minada tendência. Ele não está exatamente fazendo dou­ sões. Foi feita por americanos, na época da ditadura, uma
trina. Por exemplo, nessa pesquisa que orientei no Rio pesquisa sobre o Chile e, na zona Oeste dos Estados Uni­
Grande do Sul, eu e meus alunos recolhemos todos os dos, ficou a polêmica se a pesquisa não seria encomenda­
acórdãos possíveis no Tribunal do Estado e no STJ, para da, o que a daria um caráter ideológico, e não científico.
saber o que os tribunais entendem por autonomia da Bem, era uma parte do esforço do governo americano de
vontade e quais eram as tendências. Fizemos uma com­ apoiar a ditadura.
paração com o Supremo Tribunal de Portugal, porque
Escola de Direito da Fundaçifo Get1Wo Vargas O que é pesquisa em Direito 7 65
64

Assim, não sinto nenh uma diferença nessas conver­ o q u e é Direito. Tenho várias perspectivas de Direito.
sas com me us amigos j uristas, nessa preoc u pação com Estamos diante de uma série de propostas interdisci­
as informações, a crítica conceit uai, a crítica à do u trina plinares. Posso pesq uisar, por exemplo, a Infl u ência da
anterior e com a doutrina. Tendo em vista Isso, acho q ue Economia no Direito; é uma pesquisa relevantíssima para
os "soldados" da pe sq uisa social na área J u rídica e social se entender a disciplina. Na proposta de estar aproxi­
têm de safios seme lhantes. Não vou propor nenh uma con­ mando teoria de prática, n u nca conseg u irei u ma teoria
que esgote completamente a prática, mas conseg u irei te­
vergência fácil aqui, mas acho que temos algumas tarefas
orias q u e expliq u em cada vez mais o objeto através de
comuns. Te mos, por exe mplo, a missão de de cifrar os fe ­
um s u porte fátlco.
nômenos e torná-los alguma coisa útil para a orientação
Diante disso, em uma o utra refle xão sobre o Direito,
filosófica, moral, política e assim por diante.
Marcos Nobre ressalto u a Importância da reconstrução
da dogmática. Concordo plenamente, mas penso q u e te­
+ (não identificado)
o q ue mos de reconstruir u ma dogmática verdadeira. Deve ser
É preciso definir o q ue é essa clentlflcidade..,('\ch
, eu quero uma dogmática séria, que define seus objetos, pretensão,
é uma espécie de lealdade ao discurso; ou seja
onder sobre o b u sca explicar o Direito e q ue, multas vezes, diante da
fazer Ciência? Tudo bem, mas tenho de resp
de aproxima­ amblgüldade das palavras, diz q ue não tem resposta.
que estou falando, sobre meu objeto, forma
dade dentro Sobre a questão teoria e prática, acho que mais uma
ção e qual o meu conce ito de verdade ou falsi
rolar aque­ vez trata-se de objeto. Para mim, existem duas te orias
de meu discurso. A partir dai, tenho como cont
não tenho o diversas. Uma é a teoria convencional, que delimita como
la Informação. Sem o controle da Informação,
u ma forma de
objeto o conj u nto de textos normativos, a Jurispr udência
debate em gr upo. Para mim, a Ciência é
e atos administrativos: a outra é a q ue parte da prática
inters ubjetividade do conhecimento.
Acho dos fatos de aplicação dessas leis, Jurisprudência e reg u­
A proposta do debate é pesq uisa em Direito.
o quê1 Em Di­ lamentos nos casos concretos. Enq u anto uma tem por
que é uma estr utura reveladora. Pesquisar
acordo com a ç,bjeto u m corpo lingüístico definido, a outra tem por ob­
reito fica u m pouco vaga esta questão. De
rmino e de­ jeto fatos de aplicação desse corpo lingüístico interpreta­
Ciência e com o objeto q u e delimitarei, dete
irão as Infor­ do por dados operadores do Direito. São objetos distintos.
marco um conjunto de dados q u e constit u
u isa. Qu ando
Devemos est udar prática como uma teoria, e est udar essa
mações q u e articularei a partir dessa pesq
demarcan­ teoria como uma o utra forma de fazer teoria. São propos­
demarco os dados q ue pesq uisarei, Já esto u
já afasta tas q ue se aproximam.
do a minha Ciência. Assim, de certa forma. isso
responder
a importância da segunda perg unta, q ue deve
66 Escola de Direito da Fundação Gcrúllo Vnrgns O que é pesquisa em Direito l :,7

Nesse sentido acho muito importante essa recons­ tão de "só teoria". No caso da Pedagogia, era muito pro
trução da dogmática, até para poder criticá-la. blemático, porque os pedagogos elaboravam doutrinas
mirabolantes que aqueles que lidarão com alunos da rede
• (não identificado) de ensino não conseguiriam aplicar jamais. A�redito que
Farei algumas colocações quanto ao que foi dito com se o Direito possuísse somente profissionais pesquisado­
relação à defasagem do Direito frente às Ciências Huma­ res hav�ria os mesmos problemas da Pedagogia, com o
nas. Contarei minha experiência. mesmo distanciamento.
Sou formada tanto em História quanto em Direito. Quan­ A outra colocação é a questão do distanciamento com
do falei para os meus pais que cursaria História, sentimos as outras disciplinas de Ciências Humanas. Quando ter­
uma incompreensão muito grande. Então, senti que as pes­ m i nel História, na década de 80, Já existia essa
soas das faculdades de Sociologia, Filosofia, História e Ciên­ interdisciplinaridade multo rica. Depois de passado o de­
cias Sociais vão para lá por paixão. Dentro destas unidades, safio do vestibular, tínhamos de estipular o objeto de pes­
percebi que o corpo docente tinha a função de transformar quisa. Chega um momento que os limites intelectuais
essa paixão em uma pesquisa com método. Assim, é muito esgotam esse objeto. Existe um momento do conhecimen­
mais comum na área d.�,Humanas a pessoa entrar na facul­ to e da pesquisa em que aquele objeto se esgota.
dade Já pensando no amor ao objeto que éscolheu;aenquanto
que em meus colegas da faculdade de Dlreito,.,percebl a bus-,,. • (não identificado)
ca por uma posição no mercado de trabalho. .J'or que a pes­ Dentro do tema "O que é pesquisa em Direito", o pro­
soa fazia essa opção? Simplesmente porque é a área que fessor Marcos Nobre destacou duas premissas sobre o
tem o maior número de concursos públicos e que lhe possi­ isolamento da Ciência do Direito das demais Ciência So­
bilita fazer parte de uma sociedade afluente. Acho que isso ciais. O principal ponto de discussão é o seguri'do, sobre a
determina muito a questão da defasagem na pesquisa. A pes­ confusão entre a prática e a teoria.
soa entra na faculdade, que a princípio selecionará uma par­ Para mim, são três os objetos da Ciência do Direito:
te dos seus alunos para a pesquisa, e já sofre esse deficit. A. a Le�. a doutrina (ou dogmática) e a Jurisprudência. E esse
maioria dos que estão ali não pensa em pesquisa, mas em se tripé deveria ser utilizado como ferramenta de trabalho
encaixar no mercado de trabalho. da história do Direito. Não para produzir capítulos ou
Aqui entra uma outra questão. Também fiquei dividi­ volumes de dissertação. Qualquer ponto da pesquisa do
da quando o assunto era teoria e pesquisa, porque acho Direito deve pressupor um trabalho histórico para saber­
multo complicado só a prática ou só a teoria. Senti na mos se a História, naquele ponto particular, traz ou não
faculdade de História um certo distanciamento nessa ques- alguma contribuição. Penso que existe uma profunda
68 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7 69

interação entre esses três pés. Imaginei dois exemplos. + Marcos Nobre
O tema particular da união estável teve origem na Juris­ Acredito que a grande maioria dos estudantes de Direi­
prudência, e não na Lei nem na doutrina. É o contato direto to quer melhorar sua posição no mercado por uma razão
com uma realidade dramática social, posteriormente sen­ elementar: não lhes é dada uma oportunidade na carreira
do recepcionado na Constituição e Código Clvll Brasileiro. acadêmica. Se a remuneração fosse compatível e houves­
Mas o contrário também ocorre. Toda a doutrina que foi se possibilidade de pesquisa, muitos alunos optariam pela
base no Código de Defesa do Consumidor foi importada do carreira acadêmica.
exterior, não sofrendo maturação na comunidade acadê­ O professor Vilhena levantou um problema impor­
mica. Assim, não sei se a prática e a teoria devem sempre tante da relação entre teoria e prática. Um manual cria a
interagir na Pesquisa em Direito. ilusão da realidade funcionando de acordo com ele - e o
Ocorreu-me também, enquanto assistia à apresen­ maravilhoso é que de fato funciona como o manual. Por
tação, que, grosso modo, o Direito é romano. A primeira­ isso, é urna ilusão necessária, O problema é se nós quere­
fase foi legislativa; a fase principal teve características mos manter esse modelo, ou se ele é mesmo sustentável.
jurlsprudenclals e, com a decadência do Império roma­ Um exemplo sobre teoria e prática, com o modelo de ilu­
no, houve um momento de registro histórico e docu­ são necessária: quem diz qual é a melhor doutrina? Quem
mentação que ficou esquecido na História e só foi aponta qual é a corrente interpretativa majoritária? Ado­
recuperado com a renovação dos estudos de Direito nas raria compreender isso, mas como? É quantitativo? Corno
universidades européias. Criou-se urna escola dogmá­ fazer para mudar isso? O que a professora Judith descre�
tica que se desenvolveu de tal forma que esse "dogmatl­ veu como a pesquisa que faz, é exatamente o que chamo
cismo" terminou exagerado e hipertrofiado, gerando de pesquisa básica. Na pesquisa aplicada, ternos o empe­
todo um movimento contra o excesso de racionalismo. cilho de retirar a opiniãc,. Não precisamos ter uma dou�
Enfim, tudo Isso me ocorreu para colocar aqui como trina necessariamente opiniática.•
ponto de debate o isolamento que existe entre a facul­ Aproveitaria para passar à observação de Virgílio,
dade e a vida prátlca,;•Quando um aluno se forma em que diz "a dogmática não está necessariamente ligada à
Direito conta apenas com a formação manualístlca, sem decidibilidade". Foi exatamente o que eu disse. Se o manu­
o contato com o Direito vivo e atual:A recíproca é ver­ al é mais importante que o modelo do parecer, acho que
dadeira, porque como não se produz muito na univer­ não fui claro o suficiente. O que digo é que o manual, opi­
sidade, os juízes passam a repetir, em suas decisões, niático do Jeito que é, segue o. modelo do parecer. O ma-,
citações dos manuais mais vendidos. nual é conseqüência necessária de urna determinada
concepção da produção em pesquisa aplicada ao Direito.
.
70 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

Passando para o problema da distinção entre Ciência


básica e aplicada: sei que falar nelas em Direito é diferen­
te de anallsá-las em outras disciplinas. O que estamos
buscando é qual é a especificidade do Direito. Nesse sen­
tido, seria muito bom se tivéssemos criticai legal studies
aqui. Não quero que o Direito perca a sua especificidade.
Todas as vezes que eu vi consórcio interdisciplinar e uma
das disciplinas perdeu sua especificidade, o consórcio aca­
bou. O trabalho interdisciplinar é feito para fortalecer a
CAPÍTULO II
especificidade, e não o contrário. A RELAÇÃO ENTRE
Chegamos ao critério da científicidade, abordado pelos
professores Esdras e Caio. Esta é uma questão impossível de DOGMÁTICA JURÍDICA E PESQUISA
se resolver aqui. Sustento que existe uma diferença entre
explicar e . c.ompraende.C; Quando se faz uma distinção entre
explicar e compreender, quem é "soft" é quem explica, e nós
é que somos "hard", porque compreendemos.
Não acho que o critério de cientificidade seja irrele­
vante. Se não tivermos esse critério, não dá para dizer
que a produção científica brasileira é pobre ou rica.'
Finalizando, nessa discussão entre teoria e prática
estamos esbarrando em questões institucionais muito cla­
ras. Há um momento em que temos uma discussão teóri­
ca sobre o que é dogmática e o que é doutrina-eu insisto
que é preciso distinguir as duas e não esquecer que a si­
tuação atual é de confusão-, apesar da existência de cri­
térios institucionais. Se esta escola de Direito em formação
quer romper com o modelo atual, quais serão seus requi­
sitos institucionais?
O que é pesquisa em Direito 7 73

PARTE 2
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
Professor Titular da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

É Importante fixar alguns conceitos históricos do tema


proposto, sem o que corremos o risco de discutir apenas
propostas e delineamentos modelares com formalidade.
Como a proposta aqui é de debate, até para ativar a pes­
quisa, é importante olharmos o que aconteceu e o porquê.
A idéia de uma d.ogmática surgiu na Idade Média junto
com a Teologia. Apesar de a dogmática ter aparecido em
outras ciências, hoje resta somente no Direito e na Teolo- ·
gla.. Esse nascimento de uma dogmática na Alta Idade
Média, com os glosadores, originou-se do princípio de um
saber que gozaria de autoridade e ficava de fora.,
Um acidente histórico foi a criação da Universidade
de Bolonha - não tão acidental assim - pois o cenário já
era preparado pela admiração dos digestos, como uma
expressão Importante do Direito. Era uma expressão ex­
terior, porque a cultura romana foi sobreposta pelos bár­
baros. Historiadores mostram que o Direito teria surgido
74 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargns O que é pesquisa em Direito 7 75

como dogma a partir da união entre a idéia da autoridade a formas racionais. O Direito, produzido espontaneamente,
romana com a autoridade cristã. Aquele repertório toma tinha mais a ver com movimentos de vontade que com
uma característica forte de algo externo, que deveria ser movimentos racionais. A autoridade estaria confirmada
respeitado. Ocorreu com este repertório o que se fez com após se submeter à racionalidade, o que, portanto, é dife­
a Bíblia. Foi atribuída ao Direito essa dupla condição de rente do conúblo que havia entre as duas na Idade Média.
racionalidade e autoridade, Quando autoridade e racionalidade se separaram, ficou
Atualmente é difícil compreender, porque isso desa­ claro que o trabalho da Ciência do Direito era reconstruir
pareceu parcialmente com a crítica ao dogmatismo dos o produto da razão. Tentou-se corrigir a noção de pro­
séculos XVII e XVIII. Podemos dizer que os glosadores cesso voluntário; o Direito passou a ser percebido como
exercitavam um raciocínio Jurídico não para esclarecer algoproduziçlo.
os textos romanos ou comentá-los, no sentido de expli­ O Jusnaturalismo, que mais tarde desembocou no
car; era a idéia da confirmação, a vontade de certificar a Iluminismo, foi responsável pelos grandes códigos daquele
racionalidade daquele texto que gozava de autoridade. Foi tempo, em especial o de Napoleão. Este movimento culti­
exatamente o que o antidogmatismo veio combater e foi vou uma forma de saber jurídico que chegou ao século
quando a palavra dogma ganhou um sentido pejorativo. XIX, mas acabou desaparecendo. Um saber jurídico de
O saber dogmático Jurídico medieval procurava, na dis­ "fazer legislação", que foi enfraquecendo. No lugar dele,
persão dos textos, montar uma visão coordenada e har­ entrou a noção do Direito por ato e vontade, ou seja, como
mônica, que não existiu na Roma antiga - havia vários algo produzido, um fenômeno social e, basicamente, um
Direitos, e até as opiniões pessoais dos jurisconsultos. O fruto da Hlstória.,Para a Ciência Jurídica, o nascimento da
Direito Justiniano, por exemplo, foi mais uma compilação História se deu no século XIX, porém, foi de caráter
que a tentativa de compor algo harmônico. efêmero. Curiosamente, a Escola Histórica éllemã é res­
Quando a Idéia de sistema entra na ciência Jurídica, ponsável pelo fortalecimento de uma Ciência do Direito
as coisas mudam cabalmente. A dogmática não chega a em que os fundamentos são pesquisados como fenôme­
desaparecer e, no Renascimento, aparece a idéia de siste­ nos históricos, embora se renda à dogmática Jurídica.
ma que se efetiva no século XVII. A idéia de sistema que Quando chegamos ao século XX",possuíamos uma
permanece até hoje na cabeça dos juristas é a de subjunção, forma de saber Jurídico dogmático altamente ligado à pre­
que "casava" muito bem com o dogma da idade Média. missa das asserções que são postas por vontade e à idéia
O jusnaturalismo, na sua forma racionalista, trouxe um de que o sistema trabalha de maneira dedutiva. Passamos
outro elemento Importante na formação do pensamento a uma Ciência do Direito em que a pesquisa dos funda­
dogmático: uma espécie de voluntarismo separado/aliado mentos do fenômeno se tornou secundária. A produção
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76 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7
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do Direito é relegada a algo espontâneo, sobre o qual não Talvez seja Interessante ler um trabalho de Oswald
temos controle direto, e a teoria da legislação se torna Spengler 14 , um historiador que lecionava em escola se­
secundária-; mas em lugar disso entra. uma preocupação cundária, que escreveu no Início do século XX sobre a
hermenêutica, dentro de um modelo judicial de aplicaçãa decadência do Direito Incluindo um largo capítulo abor­
do Direito. Acredito que essas são as linhas mestras de dando o Direito. Deve-se ler este capítulo do ponto de vis­
um saber dogmático no campo Jurídico. Isto vale para a ta histórico, porque ele empreende uma curiosíssima crítica
Europa e a América Latina, não para o mundo anglo-saxão do saber Jurídico em que diz "é Incrível que os nossos
- onde a formação é diferente, a simbiose autoridade-ra­ Juristas, ainda hoje (à época), acreditem naquilo que eles
zão tomou outro rumo e a pesquisa se desenvolveu mais constroem como se isso fosse a realidade jurídica; não
ligada aos princípios. O motivo das dificuldades que te­ consigo entender como tomam uma palavra como Direito
mos em trazer os modelos anglo-saxões para o Brasil, subjetivo e acreditam que tem uma realidade, trabalhan­
talvez esteja no olhar para o saber dogmático focado nos do em cima desta realldad�" Isto foi o que disse um histo­
Estados Unidos. Esta dificuldade aparece, por exemplo, riador daquela época, mas, evidentemente, no campo
quando avaliamos currículos e cursos realizados fora para Jurídico a repercussão foi mínima. A verdade é que o ou ,.,.
certificá-los aqui. tro aspecto do saber dogmático que se forma é este, uma
O saber dogmático, apartado, que toma o aspecto so­ construção que assume o caráter de realidade •. E o traba:­
cial da formação como secundário, que nele vê uma produ­ lho do jurista torna-se reconstruir o Direito produzido,
ção espontânea; voluntarista, e uma sistemática em além de conhecer as suas próprias construções� A pre-.
reconstrução onde a subjunção é forte, gerou um modo de. sença do fenômeno Jurídico como um fenômeno social.
pensar o Direito que é um Instrumento para percebê-lo, histórico, fica à parte e repercute com o desaparecimento
mas termina assumindo como real as suas próprias cons-· da teoria da legislação e a restrição dos trabalhos Jurídi­
truções. Isto apareceu no século XIX. Quais são os elemen­ cos a essas grandes construções.•
tos que nós temos? Todo aquele cabedal do estudo do Direito As construções possuem algumas características que
que começa com seus conceitos básicos: Direito objetivo, devemos abordar, mesmo que rapidamente. O trabalho da
Direito subjetivo, norma, Lei, Interesse privado, Interesse dogmática se volta a um modelo Jurlsprudenclal, enxergan­
público, obrigação, dever, contrato. É uma terminologia que do seu objetivo na criação de condições de aplicabilidade e
surge no século XIX como um Instrumental para recons­ decidibilidade. O trabalho dogmático do Jurista, nt1s suas.
truir o Direito, tomando, depois, vida própria - com o ad­
vento dos primeiros trabalhos críticos, no século retrasado,
14 Fiiósofo e matemático alemão do final do séc. XIX e começo
não conseguimos nos desligar da construção. do séc. XX, autor de O D,:c/fnlo do Oc/d,:nt,: de 1918.
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construções, é criar condições para que os conflitos sejam a tomada de decisão. Não é o aplicador do Direito que se
solucionáveis. Neste momento, somos capazes de traçar abre para o fenômeno, mas a exigência de se confirmar a
algumas diferenças entre dogmática e técnica jurídica. À sabedoria da Lei, que abarca tudo, que regula até o
técnica corresponde o trabalho imediato do aplicador (o irregulável, é que força a trazer para a dogmática a espe­
juiz). Ela foi precedida da elaboração que nasce da culação que, de secundária, olhando-se a finalidade, se
harmonização medieval, passa pela sistematização torna relevante.
Jusnaturalista e culmina na preocupação em criar condi­ Quando a pesquisa se abre, temos a possibilidade de
ções para que os conflitos sejam resolvidos. Visando isto, promover mudanças em velhos conceitos. A idéia de con­
de um lado temos a elaboração conceituai, e do outro a trato relacional é um belo exemplo de como i,sto pode ser
busca de fundamentos, onde as disciplinas tidas por se­ feito. A dogmática não precisa ser repetidora! a questão é
cundárias, como Economia, Filosofia e História apare­ se, com esse enfoque, podemos ampliá-la e superar esse
cem. Como é um saber voltado a criar condições para a tipo de trabalho. Ao discutir a possibilidade de uma Ciência
decisão, é eminentemente doutrinário. Embora também do Direito, há vinte anos, eu dizia que quando acabásse­
se use "teoria Jurídica", uma expressão que ganha foro mos com os dogmas (o que é muito complicado) talvez fos­
no final do século XX, a palavra forte é doutrina, assim se possível superar o pensamento que se originou na idade
como na Teologia. 'w:ata-se da luz ideológica que o ter­ Média. Há principies dogmáticos, quase teológicos, como
mo traz: doutrinação, com origem no saber medieval que o da legalidade - em que a Lei prevê uma administração
servia para confirmar a razão e a autoridade dos textos. "incrível", no que ela pode· e até no que ela supõem que
A dogmática Juridica que nós temos hoje não perde isso, pode fazer-, que não nos dão espaço. Ao tentarmos reunir
é uma ciência para confirmar, que recebe os textos e pro- dogmática e pesquisa, aparece um aspecto inquiridor dos
cura racionalmente torná-los utilizáveis, gozadores de fundamentos como meio de alargamento das condições de
autoridade e fundamento. ,,,. decidibilidade. A dogmática termina absorvendo a pesqui­
Essa Idéia de doutrinação, na prática, gera o risco de sa, utilizando-a para fins próprios.Assim, a pesquisa jurí­
um imenso fechamento ..No Brasil, comumente noto o au­ dica é fradlclonalmente limitada. Às vezes percebemos
tor reproduzindo um saber.,Muitas vezes compramos um trabalhos que rompem esse estreitamento mas, no Brasil,
livro com 40% de reprodução de texto legal, e o resto em eu diria que 90% têm essa enorme limitação, com uma
reprodução parafrásica - esta é a representação mais forte absorção pela dogmática. Acho que é o suficiente para
desesperada dessa dogmática. ,Existe ainda um outro tra­ começarmos.
balho em que se realiza uma efetiva confirmação, com pes­
quisa fundamental apenas para a criação de condições para
80 Escola de Direito da Fundaçao Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7
81

PARTE 2.1 em Direito , extremamente imp o rtante, p o rque é o que


marca o Início da separação entre saber Jurídic o e ciên­
·JOSÉ REINALDO LIMA LOPES cia m o derna. A ciência moderna propõe a supressão da
Professor da Faculdade de Direito da finalidade, o que me lembra Francis Bacon 15: para as
Universidade de São Paulo e da coisas humanas talvez, Interessem os fins, mas para co­
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. nhecerm o s o funcionamento da natureza, nã o é neces­
sária. O pro fess o r Tercl o reitero u de diversas maneiras
O professor Terclo lembrou a história da do gmática que o pr o blema da finalidade c o nstantem ent e se col o ca
Jurídica,_ por meio da qual pudemos Imaginar as condi­ para o pensamento Jurídico . Mesm o que Juízes e Juristas
ções de sua transformação . Mostrou-nos que o pensa­ Ignorem ou disfarcem, a sua ativi dade é flnalística. Re­
mento dogmático assume distintos pressupostos e fo rmas to mando , aqui, uma linguagem tradicional do pensamento
ao l ongo da história. Farei alguns comentários a resp eito fllosóflco , é isto que faz a diferenciação entre razã o prá­
disso e, depois, so bre a fala final do professor Terclo. tica e especulativa. A pretensão dos Juristas não é ape­
Em primeiro lugar, essa cronologia tem de ser locada nas especular - no século XIX h ouve, sim, esta pretensão
paralelamente às fo rmas institucio nais do po der e ao que de fazer uma ciência que de t erminasse verdades
eu cham,aria de recursos de reso lução de conflitos. Muda a especulativas, emb o ra terminasse sempre produzindo um
abo rdagem do s juristas à medida que mudam os recursos saber aplicativo e finalístico.
instit4cionals de resolução dos conflitos. Evidentemente, o Ao final, o professo r Tércl o n o s lembra a dificuldade
saber medieval Ignorava o Estado como nós o conhecemos. de a dogmática se livrar dos d o gmas. Eu diria que, h o je,
Naquela épo ca, o poder político era Jurisdicional, e não le­ cada vez mais temos claro que fazer uma Ciência do Di­
gislador, e grande produçã o era de decisões para os confli­ reit o é problemático , po rque é um saber práticorUm sa­
to s. Ao l o ngo d o processo histórico, transformações nesse ber prático que não co rresponde à técnica, mas a um saber
tipo de recurso repercutiram na do gmática. É verdade que fazer.·Eu gostaria, portanto, de introduzir alguns pontos
estamos passando por uma mo dificação institucional que interessantes para o caso de, efetivamente, pro duzirmos
nos permitirá uma mudança no pensamento dogmático ? É pesquisa em Direito. Segundo o professor Tercio, a pes­
possível. se considerarmos os atuais recursos e formas de quisa se faz nas disciplinas auxiliares, paralelas ao Di­
organização do poder político. reito, se c o nsideram o s a d o gmática c o mo um núcleo
O professor Tercio insiste no caráter do saber dogmá­ "duro" que é, como um saber sobre os dogmas. Acredito
tico e em sua finalidade - que é criar as condições de
decidibilidade. Parece-me. do ponto de vista da pesquisa 15 Fiiósofo e ensaísta britânico do século XVI, 1561-1626.
82 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 83

que há uma possibilidade de pesquisa em dogmática jurídi­ reza precisam Investigar a natureza. Talvez por isto o
ca desde que reconheçamos seus limites e características. professor Terclo afirme que na dogmática não se faz in­
Para o professor Terclo Sampaio, é possível uma pes­ vestigação da natureza de que falo, dada pela História,
quisa criativa; eu diria que muitas vezes ela se torna pos­ pelas Ciências Sociais, e pela Filosofia. Acredito que o pro­
sível e necessária nos momentos de transição, de grandes blema deve ser colocado como de pesquisa em Direito se
mudanças - ocasião que nos propicia uma visão diversa as formulações da questão e da resposta se dão em ter­
dos instrumentos. Ouvimos acerca dos contratos mos jurídicos (normativos). Eventualmente, no curso da
relacionais e, inclusive, é a tese do professor Ronaldo que pesquisa e mesmo da prática jurídica, precisamos inven­
traz para o Brasil esta questão. Tomando-os como exem­ tar estes termos. São criações de realidades. Como o pro­
plo, o que acontece na teoria dos contratos? Se voltarmos fessor também afirma, a linguagem jurídica cria seus
aos séculos XIII e XIV, a teoria pressupunha uma nature­ próprios objetos.
za dos contratos. Mas a natureza dos contratos, para o Isto significa que há problemas jurídicos por serem
medieval, não era a mesma da pensada por um alemão do idenUficados, Investigados. Algo curioso que fazemos com
século XIX. Eles reconheciam dois problemas na estrutu­ um aluno que nos chega com um trabalho em dogmática é
ra çlos contratos: eram instrumentos de distribuição e perguntar: qual é o seu problema? t,. maioria não tem pro-
'"': .. . ..

comutação, e percebiam que os contratos eram instru­ blema, apenas quer abordar o assunto como em uma dis-
mentos de relação, mas havia diferentes tipos de relação. sertação,. Assim é muito fácil cairmos nas citações de
Eles poderiam ser cooperativos (chamados contratos outros que já escreveram sobre o assunto; Deve-se criar
comunicatórios). como um contrato de casamento; ou um problema jurídico, mesmo que ele já tenha solução,
separatórios. Os medievais analisavam a natureza dos porque a iniciação científica será uma oportunidade para
contratos através de suas relações e, a partir daí, traça­ compreendê-lo melhor, o que é extremamente válido.
vam seus conceitos dogmáticos. Acompanhando o que fazem as outras disciplinas, é
Isto nos chama a atenção para um primeiro proble­ necessária a consciência do objeto de pesquisa. Nós ju­
ma: é possível fazer uma reflexão, usando o instrumental ristas devemos confessar que o nosso objeto está em
da dogmática, com a perspectiva de conceber uma solu­ conceitos prescrltlvos-normativos, sem a vergonha de
ção para os conflitos? ,Essa investigação pressupõe afirmar que o nosso saber é uma discussão sobre as re­
problematizarmos o mundo. tfemos de separar os proble­ gras. O professor Tercio usava em suas obras a expres­
mas jurídicos dos lingüísticos. Há um problema lingüístico são "caráter cripto-normativo do Direito". O que é um
muito comum entre os juristas, que é fazer exegeses dos Direito subjetivo? Os autores do século XIII jamais falaram
textos e Ignorar que por trás deles há conflitos cuja natu- nisto. Os do século XV III só falam em Direito subjetivo.
84 Escola de Direito da Fundaçdo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 85

Nos séculos XVI e XVII misturam, falam dos diversos con­ diziam que as decisões dos tribunais valiam quando eram,
ceitos. Agora Já temos estipulados os conceitos, que se­ por um longo tempo e em número suficiente, as mesmas,
rão os objetos Jurídicos. adquirindo, assim, condição de Igualdade frente aos cos­
É importante a distinção, como as outras ciências tumes ou à Constituição do Príncipe. Como quantificar as
fazem, dos métodos e procedimentos. Outra vez, deve­ decisões dos tribunais? Quais tribunais são comparáveis?
mos confessar o caráter do método Jurídico - o método Se quisermos comparar o Tribunal de Justiça de São Paulo
filosófico, dialético. Em Direito não é possível aplicar as com o do Rio Grande do Sul, ou o de Minas Gerais, qual é
demonstrações, no entanto, não só é possível, como,àp.li-líf' a justificativa? Os resultados serão quantitativos e quali­
camos,a todo instante, as refutaçõe5',É uma maneira de tativos. Confesso que, certa vez, eu me engajei em uma
proceder própria dos juristas. Refutamos boas e más ra­ pesquisa dessas com os meus alunos. Pesquisávamos qual
zões, testamos a universalidade de determinados concei­ era a direção majoritária das decisões do tribunal em de­
tos, soluções e regras. E o fazemos como na Fiiosofia. O terminado assunto, e quais argumentos eram utilizados.
método é, portanto, argumentatiyo.Q.uando argumenta­ Constatamos, muitas vezes, inclina ções ideológicas
mos desse modo estamos fazendo dogmática jurídica, e desacompanhadas de argumentos. Um colega nosso, anos
boa dogmática jurídica. Eu vejo que nos momentos de gran­ atrás, fez uma pesquisa na UNS 16 sobre as tendências do
de modificação histórica essa argumentaçãQ cresce; não Supremo Tribunal Federal. Depois de quantificar e sepa­
apenas porque eu quero vencer o meu adversário, mas rar as matérias (em tributária, criminal, etc.), ele consta­
porque eu quero mostrar que o seu ponto de vista é insus­ tou que o senso-comum, a respeito de o que pensa o STF,
tentável. Evidentemente, eu o faço com certos pontos de é equivocado. Decisões utilizadas como paradigmáticas
partida. No século XIII os pontos de partida eram uns: eram episódicas.
não se'!conslderava a sociedade um artefato contratual, Outra maneira de pesquisar.é nos surpreendermos e
não era artificial e sim natural. Então, argumentava-se a não nos conformarmos com certas f ormas de decidir.. No­
partir disto. No século XVIII o pensamento crítico sus­ vamente devemos confessar: o Direito é dependente. Re­
pende a idéia das sociedades naturais - e o ponto de par­ centemente lia os comentários de Bártolo, às instituições
tida para a argumentação passou a ser outro. de Justiniano, em que havia uma grande discussão, bem
Os nossos procedimentos giram em torno das nor­ ao modelo aristotélico: qual seria a causa formal do Di­
mas..Como podemos realizar pesquisas? 1.1.á alguns exem­ reito? Qual a causa eficiente? Ele dizia: "Concluo que a
plos de o que pesquisar, além de Investigações conceituais. nossa disciplina está submetido (sub-posto) à ética. o
Podemos investigar qual é a orientação de um tribunal. e
saber se ele sempre decide da mesma formai Os antigos 16 Universidade de Brasília
86 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vrvgas O qu� é pesquisa em Direito 7 )\"?

Direito é algo dependente disso". Acho que nós juristas só topológica. Apresentarei também um argumento acerca
nos damos conta dos problemas, e os colocamos como do tema "o que é pesquisa em Direito" e, ao final, mostra­
normativos e Jurídicos, quando, em última instâricia, perce­ rei o que podemos visualizar como uma pesquisa no cam­
bemos que há questões éticas a serem resolvidas. Exemplos po dogmático.
atuais são as questões de distribuição de poder, de recursos, Já foi salientado, e eu aceito essa definição, que
e da reforma do Estado, que estão condicionadas a uma dis­ dogma- é uma opinião estabelecida e não questionada.
cussão ética. Penso que há a possibilidade destes acordos Acho que a dogmática é uma espécie de opinião Jurídica
mínimos. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte admite, nem racionalizada com base em determinados dogmas. Nes­
sempre acertadamente, que está discutindo questões éticas se sentido, a dogmática se reporta a esse processo de
importantes para a manutenção do Estado. racionalização que visa tornar as opiniões estáveis, fi­
Assim, há a possibilidade de construirmos problemas, xas, ensináveis, transmissíveis e coordenadas (através
objetos, métodos e procedimentos para uma pesquisa de sentenças, acórdãos, leis); implicando em um alto grau
prescritivo-normativa (dogmática) em Direito. Acredito que de obrigatoriedade.
essa é a forma de racionalidade com que trabalhamos, e A técnica se reporta mais à maneira pela qual, por
reconhecer isso ajudaria muito a pesquisa dogmática, exemplo, um Juiz opera determinadas categorias, ao pas­
porque as discussões sobre os problemas em Direito se­ so que a dogmática é uma tecnologia, uma doutrina, uma
riam mais honestas. sistematização das técnicas para a realização de uma
dada atividade. Nesse sentido, é importante �hamar des­
de Já a atenção, a dogmática é um procedimento teórico,
doutrinário, não apenas técnico ..Eu quero insistir nesse
PARTE 2.2 ponto porque, me parece, uma parte significativa do que
se produz na academia não ultrapassa esse limite - não é
RONALDO PORTO MACEDO JR. mais que uma exposição de técnicas, um repertório um
Professor da Faculdade de Direito da pouco ilustrado, que não constitui uma reflexão teórica,
Universidade de São Paulo e da racionalizante, sobre como os dogmas podem ser opera­
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas dostAlgumas dessas obras técnicas, dizia um amigo meu
da promotoria, são boas e úteis muletas que não pode­
Abordarei aqui a filosofia do Direito, retomando os mos dispensar.
conceitos do professor Terclo, não de uma perspectiva his­ Qual é o papel da teoria do Direito? Qual é o seu lugar
tórica, mas de uma perspectiva analítica, ou quase em relação à dogmática Jurídica? Parece-me que a função
88 . Escola de Direito da Fundaçílo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 89

da Teoria do Direito é unificar determinados dogmas fun­ rídlca, torna-se um obJeto,,Cada vez mais, é isto que trans­
damentais, ou seja, coordenar a maneira pela qual são forma a relação histórica da Fllosofla com a Teoria do
embasados e estruturados, Esse foi o esquema básico para Direito. Enquanto a dogmática Jurídica se autonomiza, a
a articulação entre a teoria do Direito e a dogmática Jurídi­ tripartição teorla-fllosofla-dogmátlca de alguma forma
ca a partir da Idade Média. À mesma época, um espaço começa a se reembaralhar - a Teoria do Direito torna-se
funcional começava a se delinear. Existiam trabalhos de mais filosófica, mas com novas preocupações e definições
filósofos delimitando o que, mais tarde, seria a Filosofia do quanto ao que é Filosofia.
Direito (uma especulação quanto aos fundamentos da Jus­ Paralelamente à modificação do papel e da natureza
tiça). Dentro desta concepção, o papel da Fiiosofia em re­ da discussão dos objetos da Filosofia contemporânea, a
lação à Teoria seria duplo. A Filosofia do Direito participa experiência jurídica e o Estado moderno modificam-se com
da concepção da Teoria na medida em que, historicamente, maior intensidade. O tempo para a Incorporação de mé­
esta pressupõe Idéias e experimentos conceituais ofereci­ todos e categorias teóricas também tende a encurtar-se.
dos pela primeira. Um segundo papel estaria relacionado Uma indicação prática para o que estou dizendo foi a ve­
ao fato de que a Filosofia, ao emprestar essa parafernália locidade com que o Direito Antltruste chegou no Brasil
conceituai, não se limita a Isso; sua dimensão crítica ques­ informado por categorias, princípios de análise, métodos
tiona as próprias categorias emprestadas à Teoria. de compreensão hermenêuticos e uma dogmática com­
É releva·nte observar que a experiência moderna de pletamente alheia, extravagante; claramente choca-se com
positivação do Direito é uma relação que, no século XX, 1 a dogmática tradicional brasileira (analítica versus
passa a ser distinta entre teoria e dogmática. A Teoria do finalística) e gera problemas pela inconsistência da lin­
Direito ganha um caráter descritivo e se assenta em pres­ guagem.
supostos epistemológicos céticos, ou mais próximos da Feita esta topologia das categorias, acho relevante
reflexão da ciência moderna. A meu ver, do ponto de vista pensarmos no espaço que existe atualmente para a pes­
metódológlco, a relação muda: a Teoria do Direito deixa quisa no campo dogmático. A teoria seria um setor privi­
de ser aquele campo do conhecimento que oferecia um legiado. Se quisermos, por exemplo, compreender como
núcleo sólido para a construção da dogmática, caminhan­ se constitui a dogmática no campo antitruste seria multo
do, paulatinamente, na direção de se tornar uma dlsclpll­ importante identificar a Influência de categorias e concei­
na independente que visa analisar. e não fundamentar. Para tos da análise econômica para a aplicação no Direito. O
o jurista, o mundo conceituai conquista autonomia sem que s� percebe é a necessidade da utilização de outros
depender de uma fundamentação metafísica para a sua repertórios teóricos para redefinir a questão da dogmática
existência. Essa parafernália conceituai, a dogmática Ju- jurídica.
O que é pesquisa em Direito ? 91
90 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

A dogmática jurídica é uma tautologia imperfeita. A to. Um dos campos em dogmática, citado pelo professor
imperfeição não decorre apenas das falhas de racionaliza­ Reinaldo, que seria dos mais férteis, é o da Jurisprudên­
ção, mas também das dogmáticas analíticas mal feitas. Ima­ cia.lo próprio professor José Reinaldo, em uma das pes­
gino que a escolha da subsunção adequada de uma norma quisas de Jurisprudência que fez no Tribunal de Justiça de
ou de um problema em relação a um sistema jurídico seria São Paulo, especificamente quanto aos planos de saúde,
um enfoque privilegiado para faculdades. Verificamos o for­ constatou que em boa parcela das sentenças pró-consu­
talecimento da importância de outros modelos de análise midor não havia sequer referência ao Código de Defesa
dogmática, notadamente o empírico e o hermenêutico. A ra­ do Consumidor. Um raciocínio possível seria que
zão para isto é a existência de dogmáticas já estabelecidas desembargadores ignoravam o Código; mas uma possibi­
em determinadas áreas e raramente postas em xeque. Mas lidade mais interessante seria analisar que mesmo sem
há outros campos em que este xeque (imperfeição tauto­ invocar o fundamento normativo do Código de Defesa do
lógica) é verificado com maior intensidade - são exatamente Consumidor, os resultados eram semelhantes. Esse é um
os que mereceriam prioridade, um maior esforço de pes­ dos aspectos essenciais para entendernios como a
quisa. Por que certas categorias dogmáticas não funcio­ dogmática está mudando, sem o reconhecim'ento explíci­
nam em determinados campos? to de outro registro normativo. Acho que o campo do Di 7,
O professor Carlos Ari Sundfeld, chama a atenção para reito.Comparadoié igualmente privilegiado para a análise
o fato de muitos orientadores de conduta (agências regu­ dogmática. Quais seriam as teorias adequadas? E os pro­
ladoras), em Direito Administrativo, serem ignorados por blemas de tradução quando se comparam dogmáticas dis­
boa parte da doutrina administrativista, o que revela a tintas? É um campo muito pobre no Brasil, em que as
necessidade de pesquisas dogmáticas na área. Quando pesquisas trazem históricos e trechos de uma página so­
temos uma doutrina que diz que o que existe não existe, bre o Direito em outros países como em um esforço de
que as agências reguladoras são uma excrescência cons­ erudição sem Justificativa ou efetivo acréscimo. A análise
titucional, devemos compreendê-la em seu funcionamen­ econômica.também é um campo que merece mais análise.
to para definir quais categorias e racionalizações seriam Com isso, não estou afirmando qualquer preferência
mais adequadas. Vivemos um momento de crise ímpar em metodológica e sim reconhecendo que a utilização destes
algumas categorias dogmáticas, quando, no entanto, para instrumentos, na intersecção de Direito com Economia,
outras há estabilidade - a de registros públicos é um bom criaria uma dogmática mais crítica, moderna e adequada
exemplo. às necessidades de operação do sistema jurídico.
Finalizando, abordarei agora o que seriam pesqui­ Em diversos campos - como o Direito Antitruste, o
sas relevantes no âmbito de uma nova faculdade de Direi- Ambiental, o do Comércio Internacional - encontramos uma
Escola de Direito da Fundaçifo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 93
92

dogmática desatualizada e Inaplicável às disciplinas. Im­ Mas, porque as pessoas se preocupam com Filosofia do
põe-se um trabalho de pesquisa ao Jurista brasileiro. por­ Direito, epistemologia, semiótica e lógica Jurídica em Di­
que precisamos operaclonallzar uma nova dinâmica Jurídica. reito Tributário? Porque "dá dinheiro" e, sendo assim, se
dedicam ao que for necessário. É incrível, porque eu acom­
panho os avanços nesta área, leio teses, e vejo questio­
DEBATES namentos acerca dos dogmas o tempo Inteiro. Dentro da
nossa área, fá se rompeu há multo tempo a idéia de que
+ Eurico Oiniz de Santi (Direito GV) interpretar é buscar o verdadeiro sentido da regra. Temos
Minha Intenção é dirigir uma exposição ao professor plena consciência de que a Interpretação é uma construção
Terclo, para submetê-la à análise. Acho que a FGV está de sentido. A forma de romper com essa Interpretação e de
Inaugurando uma visão diferenciada do estudo do Direi­ controlá-la é ajustando o discurso científico, construindo
to. A questão central é a dogmática, e as exposições fo­ uma teoria, uma epistemologia, um discurso rigoroso para
ram maravilhosas. O professor Terclo teceu uma história ser submetido à crítica, à dialética. Novamente, falamos
do termo dogmática, o professor Reinaldo retrabalhou esta de uma dogmática crítica.
questão e propôs um objeto e o Ronaldo sintetizou novas No Direito Tributário, fizeram aproximações com a
propostas. Tomando o mote do Ronaldo, para reenquadrar semiótica do texto e, através desta sistemática, busca­
a dogmática, foi dito que os dogmas não são questiona­ ram as marcas da enunciação no momento histórico de
dos e há uma tautologiá imperfeita. produção da Lei, visando compreendê-la. Assim, foi res­
Tenho uma notícia sobre a dogmática, talvez gatado um método histórico rigoroso, permitindo à pes­
canhestra, com a qual trabalho há dez anos. A peculiari­ quisa Identificar o que motivou a criação da Lei, e dando
dade do Direito Tributário é que está voltado ao empresa­ impulso a uma forma bastante Interessante de compreen­
riado e, antes de uma Justiça Ideal - que a meu ver não são do Direito.
existe -, busca uma justiça formal que dê segurança ao A dogmática é essencial para revelar o que a Lei quer
empresário. Parece que atende ao desígnio da Getúlio transmitir. Houve uma crítica de Oscar Vilhena nesse sen­
Vargas, ·que é formar consultores. Quanto a esse Direito, tido, contudo, eu não concordo. Multas vezes, a dogmática
temos de definir o objeto para proporcionar segurança se fecha e não aceita a Lei que mudou. Volto à questão
aos destinatários das regras. sobre a eventual necessidade de uma dogmática rigorosa
Ne$Se sentido, o fruto do Direito tem brotado com como referencial para a pesquisa para nos enquadrarmos
força no campo tributário. Por que no Direito lrlbutárlo? Pri­ às Instituições positivadas do País. De certa forma, a lega­
meiro, porque é um ramo aplicado, com casos concretos. lidade é uma representação democrática do nosso Direito.
94 Escola de Direito da Fundação Getr.íl/o Vargas o que é pesquisa em Direito 7 95

Temos de eleger um referencial. Se a Lei muda, se o con­ ção filosófica ou sociológica. Posso analisar conceitos e
ceito muda, criando uma nova realidade, eu preciso me mesmo a Jurisprudência empiricamente, ou ser crítico fren­
submeter a ela. te à decidibilidade sem deixar a dogmática. Na minha
Parece-me que o principal é estabelecer uma dogmática. opinião é isso que, comumente, se pede na iniciação cien­
Podemos demarcar vários objetos que são quase uma ciên­ tífica, quando muitos entram em pânico ao ter de preen­
cia específica, mas o central é encontrar critérios objetivos cher o Item "qual é o seu método de trabalho". Alguns
para descrever o Direito com todo o rigor possível, através pensam que é ler e escrever, quando a resposta deveria
de um discurso permeável, intersubjetivo, ao qual todos remeter à aproximação com o objeto.
acessem e que possa ser criticado dentro de uma dialética Isso fica patente no caso da análise de jurisprudên­
sem abandonar as Instituições. cia: os juízes pensam "isso não é um trabalho jurídico".
Como o professor Reinaldo afirma, podemos demonstrar
+ Luís Virgílio como o tribunal decide em um trabalho de estagiário ou,
Acredito que o problema preliminar, quando se fala em um caso mais extenso, em um trabalho de cientista
em dogmática jurídica, é compreender o sentido do termo político. O trabalho pode ser dogmático e revelar qual é a
- muitas vezes as interpretações não são uniformes. Como análise de um tribunal em determinado período. Seria
o professor Terclo afirma, na Alemanha fala-se em notadamente crítico. Acredito, portanto, que':no Brasil há
dogmática Jurídica simplesmente como a Ciência do Di­ uma confusão de dogmática com falta de crítica. Essa
reito. O que me deixa perplexo é a impressão de impossi­ hipertrofia do dogma como algo não passível de crítica é
bilidade da pesquisa coexistindo com a dogmática, porque um equívoco. A dogmática é um método jurídico por exce­
neste caso, supostamente, não haveria crítica. Meu racio­ lência que pressupõe a crítica. A produção científica em
cínio parece raso e exagerado, mas é a impressão que outros países é, essencialmente, dogmática e crítica. Pen­
tenho quando converso com as pessoas. Ao afirmar para so que uma coisa não exclui a outra. Não sei se a posição
alguém que o seu trabalho é dogmático, logo ouço como do professor Terclo é esta... Acredito que a dogmática não
resposta: "de maneira alguma". Permanece uma idéia de serve apenas aos trabalhos básicos e de decldlbllldade.
um trabalho sem crítica, que apenas reproduziria outras
opiniões. + Marcos Nobre
Acho possível fazer dogmática com crítica. Eu enten­ Ontem, o centro de minha apresentação era a confu­
do a dogmática como um método jurídico por excelência. são entre a Ciência do Direito e a Dogmática. O texto que
Um trabalho pode ser dogmático somente por não utili­ apresentei levantou uma dúvida, que aproveitarei para ti­
zar um método das ciências auxiliares, uma aproxima- rar agora. Na minha opinião, discutir o que é pesquisa em
Escola de Direito da Fundaçao Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 97
96

Direito significa dizer que pesquisa só se faz em ciência, çar, porque não sei qual é a área de investigação própria
portanto, o que está em causa é o que é a Ciência do Dl­ do Direito. No passo seguinte, temos uma tal tecnlzação
reit9. Sendo esta a discussão, há duas conseqüências: te­ da ciência que, para mim, é a Ciência do Direito. Isso fica
mos de limitar o objeto e determinar qual será o critério particularmente difícil com a proposta do professor José
de clentlflcldade. Reinaldo. Ele e o professor Terclo concordam em grande
Quando eu fazia a longa citação de conclusão, esta­ parte e, então, o professor Reinaldo estabelece uma agen­
va preocupado com a distinção entre dogmática e Ciência da de pesquisa. Inicia com a pesquisa de jurisprudência,
do Direito. No final das contas, depois de ler atentamente que seria básica e ainda não fazemos.
o texto, concluí que não conseguia distinguir multo bem, Outro ponto levantado pelos professores foi o doca­
que Ciência do Direito e dogmática eram sinônimos. Ha­ ráter estlpulatlvo e construtivo da dogmática em vez de
via alguns "exercícios de perfumaria", como disse o pro­ só reconstrutivo. O professor Terclo afirmou que no sécu­
fessor Tercio na entrevista que me deu 17 , mas Ciência do lo XIX existia somente o caráter reconstrutivo que, paula­
Direito é dogmática, e presa à questão da decidibilidade e tinamente, assumiu um caráter também construtivo
a um objeto muito claro. Sendo assim, temos a mera téc­ (atribuído como "estipulativo" pelo professor José
nica ou a dogmática que é uma sistematização da doutri­ Reinaldo). Traduzindo para a nossa prática jurídica, o que
na. O'i'a, pensando na idéia do professor Terclo de estatu!o tentei dizer ontem foi que a função do manual é afirmar
tecnológico do Direito, a conclusão é que estamos diante que o mundo funciona como descreve. A conseqüência é
de uma "técnica de segundo grau" e não uma ciência. Não que, formando todos os operadores do Direito com esta
consigo enxergar bem essa dfferença entre ciência e téc­ premissa, logo o mundo começa a funcionar segundo o
nica no Direito. Acho que a questão da decidibilidade não manual. A questão é se queremos e podemos continuar
é suficiente, é um momento reflexivo da própria técnica. presos a esse tipo de paradigma. Penso, quanto à delimi­
O professor Reinaldo falou com todas as letras que o tação do objeto, em o que é e o que não é Direito. Estudar
Direito se separou da ciência moderna. Eu concluo que Jurisprudência é assunto da Ciência do Direito ou não?
ele se torna técnica. O professor Reinaldo diz que não é Mais uma vez chegamos às disciplinas auxiliares. Quan­
bem assim, é um "saber prático". Fiquei atrapalhado, por­ do ouço "disciplinas auxiliares" eu nem sei o que fazer.
que �ara mim um saber prático está ligado à prudência e Quanto ao estudo da jurisprudência, porque eu não posso
coisas muito antigas. Sem distinguir, não consigo avan- chamar de dogmática? Elaborando um projeto de pesqui­
sa sobre a distância entre o manual e a realidade dos tri­
bunais, porque eu não poderia chamá-lo de Direito? A
17 NOBRE, Marcos, Conversas com Filósofos Brasileiros, São Pau­
lo, Ed. 34 Letras, 2000. minha dificuldade é como essa distinção entre técnica e
98 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 99

ciência não acaba "manchando" as outras coisas, e como começa e quando termina o primeiro ano de faculdade eu
não guarda uma certa pureza para a dogmática sem que J
digo aos alunos: "passar ?e ano e exercer profissão é
haja uma razão para tal - eu teria de excluir o estudo da muito fácil, mas fazer Ciência do Direito é co111plícadíssi­
jurisprudência, porque eu perderia o critério da mo; vocês acabarão a sua vida e não entenderão a com­
decidibilidade. No fundo, o que estamos discutindo aqui é plexidade de tudo isso".
se o Direito serve ou não para compreendermos o mundo. Por que a distinção entre ciência e técnica, na forma
Eu acho que serve, mas não sei se a concepção de como o direito se apresenta hoje? São diferenças conceituais
dogmática que temos hoje nos permite entender o Direito sem qualquer pretensão de descrever estritamente uma re­
como um instrumento para compreender o mundo - se alidade - por isto podem ser contestadas com facilidade.
não serve, é uma mera técnica. De uma forma Intuitiva, é possível buscarmos exemplos em
outras ciências onde isso também aparece. Semana passa­
• Tércio Sampaio Ferraz da eu via uma pesquisa da .LISP sobre um modo de obturar
Acho que podemos juntar as questões. O Eurico fala sem desgastar o dente. Houve uma pesquisa técnica capaz
do aproveitamento de outras formas de conhecimento de construir um aparelho que não causa dor e, mais do que
como a Semiótica provocando uma expansão diferente da isso, dizia o comentador, elimina o ruído. Foi exigido um
dogmática tributária. O Virgílio encara a possibilidade de desenvolvimento que eu colocaria no campo tecnológico.
uma dogmática crítica. E perguntamos se estamos falan­ Depois, realmente será necessário o treinamento de técni­
do em técr:ilca ou ciência. Eu acho que podemos juntar as cos para lidar com isto, o que é uma outra etapa. Provavel­
perguntas. mente, para realizar essa pesquisa tecnológica, é
Começando pela terceira, acho importante dizer que indispensável lidar com teoria pura (Anatomia, etc.), para
não estou fazendo uma identificação reducionista do sa­ preparar esse saber e lidar com ele. É verdade que as coi­
ber jurídico à dogmática. A dogmática é um pedaço que sas se misturam; mas essa tecnologia é algo da era moder­
desde o século XIX tomou conta das faculdades de tal na, do século XX. No começo da era modera, havia um saber
maneira, que passou a existir ela e "o resto". Não pode­ prático, voltado para a prudência, a justiça, a !=Onfirmação
mos reduzir tudo à dogmática; o Direito é muito mais com­ do certo. Esse lado técnicq do Direito trata mais de fazer
plexo. O estudo do Direito abarca uma idéia de saber que que de discutir. A idéia de 'separar as três noções tinha o
torna esse estudo muito complicado. Evidentemente, quan­ objetivo de mostrar onde se encaixa o saber dogmático (eu
do reduzimos à dogmática, por comodidade, fica mais fá­ acho que entra no saber tecnológico).
cil lidar com tudo Isto. Em razão disto, 98% dos estudantes l_sto não significa que o saber dogmático seja acrítico,
terminam fazendo só dogmática pelo resto da vida. Quando como foi apontado. Não é crítico como a Filosofia, por
100 Escola de Direito da Fundaçao Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ?
101

exemplo. A Filosofia não se prende a pressupostos, o ser objetivo. Isto acabou com a prudência e Introduziu a
que resulta em um saber critico exacerbado. A dogmá­ necessidade de tecnologia. Tornou-se necessário produ­
tica não é uma forma "tapada" de olhar o dogma. Entro zir uma decisão em que a subjetividade não se Imiscuísse.
agora na questão do Eurico. Há uma expressão Interes­ Nesse momento, a ciência prática e a subjetividade termi­
sante sobre Isso: "o saber dogmático parte de dogmas, naram em favor da objetividade.
mas não é uma repetição de dogmas". Partir do dogma
significa que eu não posso colocá-lo para fora - eu não + Ronaldo Porto Macedo Jr.
posso esquecer que existe a Lei, por exemplo. Aí entra Com relação a essa distinção entre filosofia, teoria e
um princípio chamado legalidade, que não me deixa fa­ dogmática, eu tendo a achar que ela tem uma função di­
zer diferente. dática muito importante, porque delimita de maneira efi­
O pesquisador dogmático tem a capacidade de am­ caz qual deve ser o campo de pesquisa privilegiado em
pliar as certezas de um modo controlado. Ele nunca per­ uma faculdade de Direito. Nesta articulação entre a teo­
de de vista que precisa criar condições para que decisões ria do Direito e a dogmática deve estar o campo privilegi­
sejam .tomadas. Quando o Direito Tributário absorve a ado dos esforços, do investimento institucional e das
Semiótica, isto ocorre controladamente. A dogmática tra­ preocupações.
balhou, nos últimos 200 anos, a construção conceituai Sobre a tomada de decisão, me parece que este tema
(dogmática analítica). Simultaneamente houve um tra­ tem sido dos mais negligenciados. Freqüentemente, no
balho pela busca de sentido, e a hermenêutica se desen­ CADE 18 , as decisões são tomadas com base em informa­
volveu bastante. Curiosamente, a tomada de decisão foi ções Imperfeitas, gerando resistência de ordem cultural
a que menos se desenvolveu - quase não houve teoria da mais forte entre os economistas que entre os juristas. Os
decisão no século XIX, dado o dogma da subjunção. A economistas têm uma imensa dificuldade de decidir com
teoria da decisão, no Direi_to, é um campo de pesquisa informações imperfeitas, embora analisem com mais cla­
em aberto. reza. Qual é o conceito de evidência forte para a decisão?
Resumindo, e voltando à pergunta, eu acho que no Quando se inverte o ônus da prova? São questões muito
passado houve uma fórmula fácil de se perceber o Direito complicadas e não resolvidas, porque o repertório de so­
como uma ciência prática. A palavra prática ainda pos­ luções dogmáticas é pobre.
suía toda a tradição da Antigüidade, em que prática era,
práxis e estava ligada à ação, ao agir com justiça e, por­
tanto, a idéia de prudência era muito forte. A partir do
18 Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão do Mi­
século XVIII, o juiz não tem de ser imparcial. ele tem de nistério da Justiça.
103
102 Escola de Direito da Fundação GetlÍ/io Vargas O que é pesquisa em Direito l

é
+ (não identificado) Nas suas obras o prof. Tercio diz que o dogma
o
Eu represento as disciplinas auxiliares e queria re­ inescapável para o jurista, e que isso tem a ver com
ação.
gistrar que essa angústia epistemológica e metodológica conhecimento jurídico ser um saber voltado para a
ori­
existe sempre. O sociólogo não tem a pressão de decidir e Se eu não estou enganado, o senhor afirma que para
as
julgar, mas constantemente está envolvido em situações entar a sociedade são necessários dogmas. Sem os dogm
vel
políticas. A questão metodológica na Sociologia tem pa­ haveria uma paralisia da ação. Por quê? Seria possí
ralelos com o que vocês estão fazendo. Por exemplo, será uma forma de conhecimento jurídico que orientasse a ação
oe
que a experiência humana não é sempre decisória? sem os dogmas? Que relação o senhor vê entre ensin
A segunda observação é com referência à Teologia. pesquisa? '.
,
Tive contato com o meio e acho que aquela relação entre A última: partindo do } eu diagnóstico sobre a deca-
dogmática e Teologia tem de ser revista. Nos meios do dência da legislação, no séc lo XIX, em favor d� dogmática,
pensamento teológico, durante o pós-guerra, a ênfase qual seria a locallzação da retomada de certas questões
no
deixou de estar na dogmática e passou à profecia. A ma­ zetéticas acontecida no s�culo XX, como aparece
nipulação das massas e a aplicação ética da doutrina são Habermas 19 ou no Rawls? i
pontos importantes porque, vez por outra, algum movi­
mento fundamentalista retoma princípios pouco práticos. + (não identificado)
Eu gostaria de ouvi-lo sobre Isso. É possível identificarmos se a boa pesquisa em Direi­
to é aquela que busca a4 respostas certas ou aquela
+ Carlos Eduardo Batalha procedlmentalmente bem feita?
(Núcleo Direito Democracia-CEBRAP)
O prof. Tercio diz que há um campo aberto em rela­ + Tércio Sampaio Ferraz
ção à decisão, e que seria um campo de estudo bastante A expressão disciplinas auxiliares tem um sentido pe­
interessante, a pergunta que me vem é por que não tem jorativo na medida em que, no ensino do Direito, a
sido feito. É uma negligência da dogmática ou uma limita­ dogmática toma conta. Então, tudo aquilo que não tem o
ção dela? Neste último caso, para a elaboração de uma objetivo de criar condições para o aprendizado ou para
teoria da decisão seria preciso a superação da dogmática tomar decisões, é secundário. É perfeitamente possível
e a abertura para alguma outra forma de estudo do Direi­ percebermos a incerteza com que se trata o assunto (no
to. Já que essa é uma área aberta, qual seria o estatuto
para a realização dessa pesquisa? Eu gostaria de abrir
19 Jilrgen Habermas, filósofo alemão, autor de Direito e demo­
esta pergunta em três. cracia: entre factlcldade e validade, Tempo Brasileiro,
i 997.
J
104 Escola de Direito da F11ndaçao Getll//o Vargas O que é pesquisa em Direito ? 105

CNPq2º , na CAPES21 ), visível quando lemos classificações Quanto à Teologia, quando eu comecei a exposição
como "Ciências Sociais Aplicadas". Dlsclpllnas se estava me referindo à da Idade Média. Assim como existe
Interpenetram mas precisam ser classificadas separada­ uma dogmática diferente da Medieval, o mesmo ocorre
mente. O Direito, ao ser pesquisado, sempre caía na defi­ com a Teologia. Por que não existe uma teoria dogmática
nição Ciências Sociais Aplicadas. Eu Implicava um pouco da decisão? Existe; O que eu quis dizer é que foi pouco
com Isso, embora pensássemos a dogmática como o es­ desenvolvida, especialmente se compararmos com a
tudo do Direito - que não é só Isto. Era tentador, certas dogmática analítica ou a hermenêutica. Ela não se desen­
vezes, classificar a pesquisa proposta em Direito na Soclo­ volveu tanto porque, no fundo, quando um Juiz decide, a
log!a, Por que não? subjunção ainda está presente no inconsciente. Eu quis
: No final da década de 60 houve uma distinção entre dizer que estamos vivendo uma situação de mudança so­
do�mática e zetética, aquele pensamento que não questi­ cial de altíssima complexidade na tomada de decisões, e
onamos e aquele que o deveria ser. Dava-se a entender que não conseguiremos mais resolver com esse estereóti­
que a Idéia seria aplicável em qualquer ciência, não ne­ po. Foi possível levar com a subjunção por multo tempo,
ces.sarlamente em Humanas. É claro que a palavra dogma mas agora não dá mais e os exemplos se multiplicam.
tem vários sentidos, e deles estamos utilizando o da con­ Acerca de ensino e pesquisa, a pergunta é muito anti­
dição (premissa) da ação. Não estou me referindo, neces­ ga. No campo da dogmática Jurídica, acredito que pode­
sariamente, à noção de dogma da Idade Média. Se nós mos conciliar os dois e é até fecundo e louvável. Não sei
começarmos a questionar o sentido de cada palavra que como colocar em prática - talvez a Escola da FGV resolva
usarmos aqui. chegaremos a uma impossibilidade de co­ isto. Sem dúvida, aliar os dois é necessário, no entanto,
municação. Portanto, o modo de pensar zetétlco está em sei que no ensino de massas que temos é difícil fazer com
qualquer disciplina ,e, no Direito, é secundário. Uma que todos os alunos pesquisem. Acho que devemos multi­
dogmática econômiêa, ou uma dogmática sociológica, plicar as formas de contato do aluno com a realidade.
seguramente tem pressupostos diferentes da Jurídica. Muitas vezes o aluno está pesquisando para elaborar um
A prisão para o jurista é mais forte. Por exemplo, há a parecer e, de repente, se entusiasma. Temos de chamá­
premissa da legalidade estrita. A dogmática cria Incerte­ lo de lado para dizer que, por trás da pesquisa, há outras
za; mas de uma forma controlada. Nesse sentido, as dis­ coisas. Pesquisa para um parecer é diferente, porque se
ciplinas mais zetéticas são realmente mais livres. entrarmos em determinados questionamentos o invia­
bilizamos. É cínico, mas é a realidade. Essa é a relação
entre retórica e ética, da qual Aristóteles já falava. A relação
20 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e TecnológJco
21 Conselho de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior entre ensino e pesquisa deveria ser mais íntima, porque é ela
106 Escola de Direito da Fundação Getúlio v,,,gas

que "abre" a cabeça do aluno para a realidade e a possi­


bilidade de uma dogmática mais Inteligente.
Ainda em relação aos procedimentos da formação de
decisão e à recuperação da teoria da legislação, o curioso
é que foram citados dois filósofos. Os Juristas que tra­
balharam a teoria da legislação, o fizeram dogmaticamente
- quase como um desenvolvimento do Direito Constitucio­
nal. A teoria da legislação que apareceu lá atrás com o CAPÍTULO III
Bentham22 , e não prosseguiu, deveria ser recuperada.
Finalmente, é possível eleger um método de pesqui­ DIREITO E CIÊNCIAS HUMANAS
sa? Lamentavelmente, os manuais mais usados ensinam a
adotar o método de citação de opiniões, de repetição, de
omissão de uma opinião própria. Este é um mau procedi­
mento. O que o estudante tem de perceber são as incerte­
zas nos dispositivos que regulam as situações. O método
para fazer isto é utlllzar as secundárias, porque elas Ini­
ciarão mostrando uma visão externa.

22 Jert'my Bentham ( 1 748-1832). filósofo e jurista Inglês.


O que é pesquisa em Direito l 109

PARTE 3
SÉRGIO ADORNO
Professor de Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.

É uma grande satisfação poder expor um pouco da


minha experiência na interface entre o Direito e a socie­
dade.
Primeiramente, quero falar um pouco sobre a minha
relação com o objeto para depois ampliar um pouco mais
esta reflexão. Venho trabalhando com essa Interface há um
certo tempo e, na verdade, meu interesse começou no final de
meu curso de graduação em Ciências Sociais na LISP. Na­
quela época, em 1975, estávamos no auge da discussão acer­
ca do fim da ditadura militar e da passagem para uma
sociedade democrática. Discutia-se muito a questão do re­
torno ao Estado de Direito. Lembro-me que a minha geração
debateu muito o que havia ocorrido na sociedade brasileira
sob o ponto de vista Intelectual. A discussão abordava o con­
flito entre autoritarismo e liberalismo. Nossa herança
escravista e profundamente autoritária, de alguma forma,
110 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 111

limitava as possibilidades da construção de uma socieda e, sobretudo, da pesquisa na imprensa acadêmica. Esta
de democrática no Brasil. Discutiam-se muito os princí me revelou que havia uma vida extra-acadêmica muito
pios fundamentais da democracia, mas pouco a questão rica e viva; a formação não se devia à sala de aula ou ao
das instituições e da reconstrução de uma nova normali­ ensino formal, mas sim à vida extra-acadêmica e aos
dade democrática. Talvez não enxergássemos com multa debates. Os bacharéis eram estudantes de uma tradição
clareza este sentido. de amplo debate público e de discussão das questões da
Resolvi estudar um pouco essa mística do Direito no sociedade.
Brasil. O Interesse era, também, pessoal, já que venho de Encerrei convencido que o problema colocado, a re
uma família de funcionários públicos, escreventes de car­ lação entre liberalismo e autoritarismo era, na verdade,
tórios, e amantes da burocracia. Cresci vendo, aos do­ um falsó problema. A questão seria o liberalismo versus a
mingos, a família discutindo questões de escritura; sempre democracia. Os liberais brasileiros eram conservadores e
achei estas normas e regulamentos multo misteriosos. autoritários - o problema era por que não chegaram a ser
Elaborei um estudo histórico sobre a formação dos ba­ democráticos ou por que não conseguiram ultrapassar as
charéis no Brasil, procurando entender como havia se pro­ determinações da liberdade individual e pensar a questão
cessado a tal formação e como ela se enraizou na cultura da igu�ldade.
política brasileira. Foi um estudo exploratório, levantei a Todo esse resumo é para dizer que, desde aquele
biografia de cerca de dez ex-estudantes de Direito que se momento, me Interessei muito por compreender o lugar
notabilizaram na vida pública brasileira do século XIX, do Direito na sociedade, como as normas são produzi­
como Rui Barbosa, a família Mesquita, Joaquim Nabuco, das, circulam, se transformam em instrumentos de domi­
Prudente de Morais e outros. O mais interessante é que nação, e como elas constituíam espaços de significação
todos, de uma maneira geral, se identificaram herdeiros de da vida social. Continuo muito Interessado nessas ques­
uma tradição liberal e, ao mesmo tempo, foram os homens tões, que acho muito tangentes e merecem mais investi­
que construíram o chamado Estado autoritário. A minha gações que as existentes hoje na bibliografia brasileira.
pergunta era: como essa formação liberal propiciou a es­ Antes de terminar minha tese, Já estava trabalhando
tes homens, como políticos profissionais, o trânsito do no banco do Estado as questões da violência. O tema no­
liberalismo para o autoritarismo? vamente colocou em evidência a temática da regulamen­
Resolvi fazer um estudo sobre a formação dos bacha­ tação da vida social, o problema da eficácia das leis, do
réis da faculdade de Direito. Um estudo que ficou concen­ acesso à justiça e da relação entre a ordem e sua eficácia.
trado no âmbito da formação - analisei o que se lia, o que Venho pesquisando o tema da violência desde 1970, e digo
se estudava, e me beneficiando das memórias acadêmicas que é muito complexo porque não se resume ao tema do
112 Escola de Direito da Funda,;tJo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 113

crime, mas às violações dos Direitos Humanos e à violên­ cresceram, e que transitamos de uma criminalidade Indi­
cia acirrada nas relações Intra-subjetivas - brigas entre vidual para uma organizada sob formas hierarquizadas -
vizinhos, de casais, entre adolescentes, etc. que, sobretudo, vltimiza os jovens do sexo masculino na
Trabalhando com esse tema, me preocupei com a evo­ faixa dos 15 aos 29 anos. Os crimes mudaram, a violên­
lução dos crimes, da violência e de seus traços; mas uma cia mudou de qualidade, e o sistema de Justiça continuou
questão que sempre apareceu com multa força foi o papel operando como há 10, 30 ou 40 anos. Aumentou o gap
do Estado na contenção e repressão da violência. Nos últi­ entre o perfil dessa violência e a capacidade de o Estado
mos 20 anos, a bibliografia sobre vlolêncla, Direitos Hu­ conter essa violência responsabilizando seus autores. Esse
manos e crime cresceu acentuadamente no campo das tema envolve, portanto, a problemática das leis, das Insti­
Ciências Sociais. Só para terem uma Idéia, fiz uma revisão tuições e da organização da polícia e dos sistemas Judici­
de literatura dos estudos dlsponfvels no campo das Ciências ário e penitenciário. Assim, pensar um pouco essa questão
Soclais;no início dos anos 90, e localizei, na época, cerca de do ponto de vista da interface entre Direito e soeiedade,
60 trabalhos. Hoje, duas recentes revisões - uma feita pela pela perspectiva da violência e do crime, é pensar de algu­
professora Alba Zaluar, da UFRJ, e outra feita pelo antro­ ma maneira qual é a capacidade que o Estado tem de con­
pólogo Roberto Kant de Lima23 - apontaram a existência ter essa violência com eficácia. Em outras palavras, o
de mais de 300 trabalhos sobre violência. Isso não quer problema que aparece para nós é como articular a prote­
dizer que todos os trabalhos sejam da mesma qualidade, ção dos direitos fundamentais dos cidadãos com a apli­
mesmo que traduzam uma série de questões. Um dos pon­ cação da Lei e da ordem. Na questão dos Direitos Humanos
tos que essa literatura trabalha é a crise do sistema de constatamos que a população já reconhece que envolvem
Justiça. Quando se debate a violência no Brasil, sempre há proteção dos direitos da pessoa e dos direitos sociais,
aqueles que enfatizam mais as questões macro-estruturais embora ainda seja muito resistente a Isso. Mas as pessoas
como a concentração de renda. Alba Zaluar Insiste muito não fazem qualquer ligação entre Direitos Humanos e Lei e
na desorganização que a emergência do tráfico de drogas ordem.
- este pensado da perspectiva da Internacionalização dos Para trabalhar esse tema estou fazendo uma pesqui­
mercados e do contexto da volatilidade dos capitais - pro­ sa razoavelmente grande sobre a questão da Impunidade
vocou na sociedade brasileira. em São Paulo, e digo que essa discussão da relação entre
O outro bloco de questões diz respeito ao sistema de Direitos Humanos e Lei e ordem me levou a uma reflexão
Justiça, Parte da constatação que os crimes e a violência em três direções. Eu me referirei a duas e detalharei mais
a terceira. A primeira delas é justamente a problemática
23 Antropólogo, Professor da Universidade Federal Fluminense. da relação entre Lei e ordem, nos termos que coloquei
O que é pesquisa em Direito ?
115
114 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

anteriormente. Para se ter uma idéia, faço uma avaliação estabelecer um consenso mínimo quanto à aplicação e
da política na área de Segurança do governo Fernando ao respeito às leis.
Henrique Cardoso, nos últimos oito anos, e reconheço que O terceiro ponto tem a ver com o tema do monopó­
houve avanço no domínio dos Direitos Humanos. Por ou­ lio estatal da violência física legítima, que é extrema­
tro lado, toda a área de Segurança padeceu das dificulda­ mente importante - alguns pesquisadores brasileiros
des de Implementação e de convencimento da sociedade suspeitam que nós jamais logramos conquistar o mono­
acerca dos novos planos necessários - que não poderiam pólio estatal da violência física legítima. O tema do mo­
se divorciar da proteção aos Direitos Humanos. No fun­ nopólio não é, evidentemente, novo. É uma discussão
do, a pergunta básica é: qual é a legalidade e a estrutura clássica: como conciliar a Idéia de Lei, de contenção da
Jurídica compatível com a democracia e com os Direitos violência e de liberdade? Este é um tema que de alguma
Humanos, eficaz do ponto de vista da proteção ao forma mobilizou uma parte da reflexão política contem­
patrimônio e à vida dos cidadãos? porânea, porque se consideramos que qualquer limita­
A segunda questão é a problemática da legitimida­ ção é uma violência, qualquer lei será, em princípio,
de das instituições encarregadas de implementar leis e violen.ta. Toda essa reflexão um pouco contemporânea
exercer o controle social. Assistimos, nos últimos anos, serve para elaborar um pensamento que mostre a possi­
a uma profunda descrença dos cidadãos, nas mais di­ bilidade de contenção da violência através de regras pac­
versas escalas sociais, com relação às instituições en­ tuadas e consensuais na sociedade; e que, deste pacto,
carregadas de implementar a ordem social - refiro-me resulte a liberdade.
aqui à polícia, ao Judiciário e ao sistema prisional. Le­ O resultado é algo Já tradicional da Sociologia Políti­
vantamentos recentes mostram que os cidadãos brasi­ ca, que vê essa relação entre Lei, ordem, e monopólio es­
leiros não confiam no funcionamento das suas instituições. tatal da violência como requisito fundamental do Estado
Vivemos uma profunda deslegitimação das instituições, Moderno e -como princípio de sua liberdade. Aqui, o meu
o que faz os cidadãos se sentirem desprotegidos e, so­ marco de referência é Weber 24• Há várias passagens em
bretudo, procurarem mecanismos privados de resolução referência a Isso. Valeria a pena me reportar um pouco ao
e proteção. Temos, hoje, um mercado de segurança pú­ que Weber diz, porque é extremamente significativo. "Por
blica altamente profissionalizado, embora nos bairros Estado deve entender-se um Instituto político de atividade
periféricos a segurança seja apoiada por traficantes e contínua quando e na medida em que seu quadro admi­
justiceiros locais. O perigo é que há o comprometimento de nistrativo mantenha, com êxito, a pretensão ao monopólio
um princípio básico da democracia, a crença na capacida­
de das instituições públicas para Intermediar conflitos e 24 Max Weber ( 1864-1920).
116 Escola de Direito da Fundação Getúllo Vargas O que é pesquisa em Direito 7
117

legítimo da coação física para manutenção da ordem vi­ col nclde com sua legalidade. A terceira Idéia que me parece
gente". Em um ensaio chamado "Política como Vocação", Importante é a noção de território. Lembro que a Antropo­
escrito entre 1918 e 1919, Weber continuou nos seguintes logia foi a área das Ciências Sociais que mais explorou o
termos: "Em nossa época, no entanto, devemos conceber o tema do território - ao lado da Sociologia Política, quando
Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, estuda a questão da guerra. Mas não é um tema, de fato, de
dentro dos limites de determinado território, reivindica o peso sob o ponto de vista das implicações com o Direito,
monopólio do uso legítimo da violência física. É, com efeito, com a ordem normativa e, sobretudo, com a representação
próprio de nossa época não reconhecer, em relação a qual­ simbólica do uso do espaço e do território.
quer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer o uso O problema todo é que, quando recorremos à litera­
da violência a não ser que o Estado tolere. O Estado se tura que fala sobre o monopólio da violência, lemos que o
transforma na fonte de direito à violência. O Estado consis­ monopólio não é mais uma questão do Estado contempo­
te em uma relação de dominação do homem sobre o ho­ râneo, porque a noção de território que era a base da so­
mem. fundada no instrumento da vlolêncla legítima e, nesta berania clássica desapareceu. Surgem o que chamamos
circunstância, o Estado só pode existir sob a condição que de obituários da soberania do Estado e do monopólio es­
os homens dominados se submetam à autoridade continu­ tatal da violência. Citarei dois autores; um deles chamado
amente reivindicada pelos dominadores". David Garland25 , que produziu estudos comprovando a
Quero chamar a atenção, nesta definição do Weber, profunda erosão na idéia de soberania e a indefinição dos
para três aspectos que me parecem importantes. O pri­ limites do território como espaço de realização do mono­
meiro deles é a idéia do monopólio da violência. Quando o pólio da violência. O Garland insiste em dois aspectos fun­
Weber se refere a esse monopólio, quer dizer "apenas o damentais: um deles é a ampla difusão das chamadas
Estado tem essa prerrogativa de recorrer à violência". políticas de policiamento comunitário que, segundo ele,
Todos os demais grupos que recorram à violência para a longe de ser um processo de aperfeiçoamento do policia­
resolução de questões privadas são caracterizados pela mento, é uma transferência da responsabilidade do Esta­
ilegitimidade. O segundo aspect9 é que, quando o Weber do para a comunidade; a segunda questão é que. com a
reivindica para o Estado o monopólio da violência, não Internacionalização do crime, cada vez mais a polícia In­
significa que este pode utilizar a violência de qualquer ternacional diminui a Importância da polícia local.
modo. mas somente para se defender de uma agressão
externa ou para garantir a unidade Interna de uma socie­
dade fracionada. Assim mesmo. diz Weber, em circuns­ 25 David W. Garland, professor da New York Unlversity School
of Law, autor de The Culture of Contrai: Crime and Soe/a/ Order
tâncias regulamentadas; porque a legitimidade do ato in Contemporary Society. Unlverslty of Chicago Press, 2001
118 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em D/retro 7 119

Esse debate quer colocar em evidência que a questão PARTE 3.1


do monopólio estatal da violência física legítima não se
refere mais ao Estado contemporâneo. Insistir em refor­ ÜSCAR VILHENA VIEIRA
mas na Justiça e na legalidade, que retomem o problema Professor d" Faculdade de Direito d"
do monopólio, diria Garland, é voltar atrás. Quanto a isto, Pontifícia Universidade CatólicQ de São PQulo e da
um outro analista chamado Herbert contesta Garland. Ele Escola de Direito de São PQulo da Fundação Getúlio Vargas
argumenta que apesar da difusão da polícia comunitária,
do rápido crescimento do mercado de segurança privada, Voltarei um pouco para fazer uma colocação bem
e da internacionalização dos controles policiais, nada é mais genérica que a do professor Sérgio, expondo outras
suficiente para romper com o modelo estatal do Estado conexões possíveis entre as Ciências Humanas,e o Direito.
Moderno. A crítica dele é o não-funcionamento efetivo da Contarei alguns detalhes de minha vida para exemplificar
polícia comunitária, que apesar da privatização da segu­ aquilo que estou dizendo.
rança não significa o enfraquecimento da soberania do Lembro-me que, em 1983, estava a caminho da sede
País, já que toda a iniciativa policial continua nas mãos do CNPQpara protocolar meu pedido de bolsa de inicia­
da polícia local. O argumento de Herbert é que o monopó­ ção clen.tfflca na área do Direito, quando duas moças no
lio permanece no horizonte dessa literatura sobre violên­ balcão àflrmaram que não havia a área. Mostrei a elas
cia e controle da violência. que também se chamava Ciências Humanas Ap'llcadas, ao
Concluo que, nesse campo que envolve violência e que responderam "engraçado, nunca apareceu ninguém
Direitos Humanos, temos um programa de investigação aqui". Não sei se era verdade ou se as moças estavam
bastante provocativo pela frente. De certo modo ele está trabalhando lá há pouco tempo, mas demonstra como era
pautado por questões tradicionais como legitimidade e pouco usual que os alunos de Direito fizessem pesquisa
ordem, mas precisamos pensar estas questões sob a pers­ neste sentido lnstltuclonalizado. Lembro-me que, na fa­
pectiva de o que é a sociedade contemporânea e, sobretu­ culdade de Direito, as pessoas me olhavam com um certo
do, do estatuto da regulamentação em uma sociedade na preconceito, como se eu estivesse levando alguma vanta­
qual os limites das fronteiras estão em fase de transfor­ gem sobre os alunos, Já que eu iria ganhar para fazer aqui­
mação. lo que muitos faziam sem receber. isso demarca um pouco
como o mundo do Direito nunca explorou as possibilida­
des de realização da pesquisa. As pessoas sempre viram
muito mais as lnstândas de fomento à pesquisa como ins­
tâncias de subsídio financeiro para se fazer. uma pesquisa
120 Escola de Direito da Pundaçao Getú/lo Vargas D que é pesquisa em Direito 7 121

Individual, e nunca no sentido da Institucionalização. Tanto do Direito é absolutamente Idiossincrática e focada em


que dos centros de pesquisa que surgiram nos anos 80 e norma e Inimizades pessoais. Isso é o que tem sido pro­
90, pouqufsslmos tiveram como foco a questão do Direi­ duzido ao longo das últimas décadas - estou retirando
to; os que enfocaram o Direito foram criados fora das uni­ destas décadas os nomes dos grandes Juristas que foram
versidades. capazes de pensar o Brasil e Influenciar nosso pensamen­
Por que houve essa prática? Porque Isso nem sempre to, Independentemente de concordarmos ou não com eles.
foi verdade no Brasil. Grande parte do que pensamos so­ Esse é, a meu ver, o momento em que a Ciência do Direito
bre o País foi produzido por juristas. Tomo como exemplo perdeu a oportunidade de se construir enquanto uma ci­
Oliveira Vlanna 26 , que foi um dos grandes sociólogos e ência fundamental, e optou por uma saída técnica mais
antropólogos brasileiros. O fato é que passamos a reco­ limitada onde passou a ser Instrumentalizada pelas de­
nhecer as necessidades e os remédios a serem aplicados mais ordens de demanda e ciências.
no País por mãos de pessoas que vieram do universo Jurí­ Um segundo ponto, deixando agora a Ciência do Di­
dico. Em que medida esse Direito abarcador de todas as reito e partindo para as outras ciências. Analisando o Di­
outras Ciências Humanas abandona essa sua tarefa e se reito, gostaria de saber o quanto elas se preocuparam com
concentra apenas na produção da análise da norma? Essa a disciplina. Houve um certo distanciamento, a partir dos
necessidade de se purificar das outras ciências faz com anos 60, dessa discussão sobre o Direito. Em primeiro
que haja um engajamento de grande parte de nossos ju­ lugar, porque uma parte dos cientistas sociais passou a
ristas na discussão pura da norma. analisar as Ciências sob uma perspectiva marxista. E, nesta
De certa forma, os manualistas - citados várias ve­ perspectiva, sabemos que a Importância do Direito é bas­
zes - buscam descrever as melhores interpretações para tante secundária. Por outro lado, não havia um grande
essas normas. A Ciência do Direito se volta quase que interesse nesse tipo de pesquisa, porque durante o regime
exclusivamente para esse tipo de prática acadêmica, cha­ militar o Direito tinha pouca importância. Lembrarei aqui
mada opinativa. Acho que realmente é uma boa definição, só mais uma passagem biográfica: um grande historiador
porque são opiniões sem o menor fundamento, seja em brasileiro, quando estava na minha banca de qualifica­
análise sociológica ou em filosófica. São simples escolhas ção, analisando como as cláusulas superconstitucionais
pessoais que levam a pessoa a resolver um problema jurí­ poderiam Inviabilizar qualquer golpe, virou-se e disse:
dico de uma maneira especial. A meu ver, a nossa Ciência "golpe se dá. Ninguém vai olhar em um livro para ver se
pode ou não pode dar". Deu as costas para a análise que
26 Autor de Instituições Políticas Bras//elras, Itatiaia Editora, 1987
as Ciências Sociais poderiam fazer sobre o Direito. O pou­
e Populações Meridionais do Bras/1, Itatiaia Editora, 1987. co de Ciência Social acerca do Direito, ainda no final do
122 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas 123
O que é pcsqlllsa em Direito 7

regime militar, era sobre a questão eleitoral. Acho que aí gresso Brasileiro, leia um trabalho de Ciência Política so­
temos um ponto de mudança extremamente importante, bre o Congresso. Se alguém quiser entender o Supremo
que é o início do processo de democratização e da Cons­ Tribunal Federal, não recorra a um manual de Direito Cons­
tituição de 1988. As pessoas começam a se dar conta que titucional que diz "O Supremo Tribunal Federal é o guardião
existe uma nova normatividade, e que dentro de um regi­ da Constituição", e etc., mas procurem algum trabalho de
me constitucional e democrático as instituições do Direi­ Ciências Sociais que analise como o STF decide.
to devem ter um papel importante. Logo, seria curioso Sinto que estamos vivendo um momento riquíssimo. O
sabermos qual o impacto dessa nova normatividade so­ Direito está passando por um olhar interdisciplinar da Eco­
bre a realidade social. nomia, da Política, Sociologia e da Antropologia. Assim, o
Surgiram diversos trabalhos na área das Ciências desafio é saber como Incorporaremos estes outros olhares
Humanas buscando compreender o Direito. O professor ao nosso olhar do Direito. O que falta sobre o Direito é o
Sérgio Adorno é um exemplo disto. Começamos a dispor olhar do jurista, porque ele enxerga apenas a norma. Há
de pesquisas extremamente relevantes na área da Socio­ um grande cardápio de áreas em que nós, juristas, poderí­
logia, voltadas à questão da Lei e da Ordem, do monopó­ amos nos envolver levando em consideração as diversas
lio e do poder estatal. Do ponto de vista da Ciência Política, disciplinas que se colocam na fronteira das Ciências Hu­
há pesquisas sobre o Judiciário - eu mesmo fiz um traba­ manas com o Direito. Acho que existe um grande campo de
lho sobre o Judiciário dentro da Escola de Ciência Política, trabalho, reaberto pelo finado professor John Rawls27 , na
porque na Faculdade de Direito não havia espaço para se área da discussão sobre os fundamentos do Direito. O que
discutir o Supremo Tribunal Federal na perspectiva do seu era quase um sacrilégio - fazer uma pesquisa sobre os fun­
papel institucional na democracia que estava se forman­ damentos do Direito nos anos 50, 60 e 70 no Brasil - pas­
do no Brasil. Hoje, ao contrário, abriu-se um campo de sou a ser uma oportunidade devida à filosofia anglo-saxã
trabalho sobre a instituição Poder Judiciário, enquanto a Impulsionada pelo professor Rawls. Penso que também há
Ciência Política também abre um campo sobre as institui­ um campo aberto aos juristas na área do estudo das insti­
ções de produção do Direito. Ampliamos o leque de pes­ tuições. O Direito Público abandonou este papel de tentar
quisadores de fora do Direito, que olham para dentro do compreender o impacto das instituições. Parece-me que
Direito - Instituição e conseqüência. Isto me parece um o experimentalismo institucional brasileiro é fabuloso:
avanço extremamente importante. Hoje recomendo aos
meus alunos que querem aprender Direito que não leiam
27 John Rawls ( 1921-2002), filósofo norte-americano, autor de
livros da disciplina, mas leiam livros que estejam sendo
Uma Teoria da Justiça, Martins Fontes, 2002 e Justiça como
produzidos por fora. Se você quiser compreender o Con- Equidade, Martins Fontes, 2003.
124 Escola de Direito da Fundação Getúllo Vargas O que é pesquisa em Direito l 125

Inventamos Instituições sem levar em consideração quais de ser as de um mero técnico e passam a ser as de um
Impactos elas podem ter sobre a realidade. E falando em arquiteto dessas formas de evolução Institucional pela qual
realidade, há um campo enorme de trabalho Junto à Socio­ estamos passando.
logia, principalmente voltado ao entendimento das práti­
cas sociais do Direito, ou seja, de como o Direito produzido
é efetivamente aplicado na micro-cena. Corno a polícia aplica DEBATES
o Direito? Corno ela distingue quem parar ou não na rua?
Que relação isto tem com o princípio de igualdade da Cons­ + Carlos Ari Sundfeld
tituição? Corno o Judiciário aplica? Esta é a nossa questão central: como podemos utilizar
Isso também pode ser incorporado pelo Direito. A toda essa experiência de pesquisa com método, de levanta­
questão das normas é continuar com a doutrina, que é mentos produzidos e de produção científica fora da área do
importantíssima; a visão das normas deve estar, no en­ Direito para produzir a nossa própria experiência? Corno o
tanto, acoplada àquilo que também é Direito e à Jurispru­ professor de Direito pode contribuir usando essas reflexões?
dência. Acredito que o modo que se trata da Jurisprudência Vamos ouvir agora o professor Sérgio, em sua defesa.
no Brasil é totalmente relapso e negligente, servindo so­
mente para legitimar posições. Deveríamos saber como + Sérgio Adorno
decidem os nossos tribunais, o que eles decidem e quais Talvez eu possa reagir a duas ou três questões colo­
as conseqüências. cadas por Oscar Vilhena que considero importantes. Acre­
Por fim, acredito que também há um trabalho a ser dito que tenha razão quando mostra que as duas tradições
feito junto dos economistas e filósofos, que é a discussão - a que vem das Ciências Sociais e a que vem do Direito -
sobre os efeitos do Direito, sejam eles sobre os princípios têm raízes e histórias diferentes. Logo que terminei meu
de justiça ou em relação à eficiência que este Direito deve curso de Ciências Sociais, comecei a freqüentar o grupo de
promover. Ternos, sim, urna agenda possível de análise trabalho chamado Direito e Sociedade, da ANPOCS28 • Lem­
interdisciplinar que nos permite pensar e compreender o bro-me que os juristas que também participavam do gru­
Direito de urna maneira mais ampla do que vem sendo po, que eram da PUC do Rio de Janeiro, estavam lá para
feito no Brasil. Se não formos capazes de Incorporar es:­ sair do Direito normativo. Assim, quero dizer que o forte
sas novas dimensões, nos tornamos simplesmente Instru­ na tradição das Ciências Sociais brasileiras é a pesquisa
mentais no Jogo institucional e Intelectual brasileiro; se
formos capazes de dar um passo adiante e incorporarmos 28 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciên­
as outras percepções, certamente as nossas posições deixam cias Sociais.
O que é pesquisa em Direito l 127
126 Escola de Direito da Fundação Gettí/io Vargas

empírica. De alguma maneira, o aprendizado das idéias e Acho interessante ter um campo programático e as
modelos de pensamento dos sociólogos e cientistas sociais linhas de pesquisa abordadas por Oscar, mas não sei se
é embasado na construção do objeto científico. Acho que seria uma estratégia deixar este campo amadurecer um
essa tradição ainda não é forte no campo do Direito. pouco e investir em pesquisa empírica. Como sociólogo,
De fato, quero dizer que não se desenvolveu, efetiva­ acredito que é preciso acumular observações e conheci­
mente, uma Sociologia Jurídica brasileira porque talvez mento sobre os campos que ainda não estão frutificados.
outras áreas estivessem pouco desenvolvidas também. Nos É uma questão de estratégia. Talvez seja possível poster­
anos 60 e 70, desenvolveu-se aqui uma Sociologia do de­ gar um pouco esse programa por um mais amplo de
senvolvimento que pensava a vida social atrelada à ques­ acúmulo de informações. Mas este é um debate...
tão do desenvolvimento; não tinha propriamente uma
Sociologia da política. Acho que a Sociologia Jurídica é + Marcos Nobre
retardada, começando aqui no Brasil a partir dos anos Pergunto ao professor Sérgio Adorno o seguinte: po­
70. Certamente Já havia um enorme prenúncio dessa pes­ demos fazer esse campo comum, abrindo a pauta de inves­
quisa a partir dos anos 60, com o livro sobre Antropolo­ tigações e deixar livre para depois sistematizar. Mas, e se
gia Jurídica de Robert Shirley29 , com o livro da Maria Sylvia não houver esse padrão de investigação no Direito? Posso
de Carvalho Franco, "Os Homens Livres na Ordem constituir esse campo nas Ciências Sociais sem nenhum
Escravocrata" e o de Vítor Nunes Lea1 3° . Havia um pre­ problema porque, quando houver algum ponto discordan­
núncio na época, e não um campo. te, chamarei um consultor, anexarei o seu relatório ao meu
e assim irá. Como farei isto de verdade e de modo que o
29 Professor da Universidade de Toronto (Canadá), Professor ad­ Direito entre como um elemento real de um diálogo
junto da Universidade Estadual de Campinas, Membro do Núcleo interdisciplinar? Aproveito minha pergunta para questio­
de Estudos da Violência da Universidade cje São Paulo. Autor
de Antropologia Jurídica, Editora Saraiva, São Paulo, 1987.
nar o professor sobre sua experiência no Núcleo de Estu­
30 Primeiro presidente do Instituto de Ciências Sociais, criado dos da Violência. Vamos tomar o exemplo do monopólio
em 1959 e depois transformado no Instituto de Filosofia e estatal da violência: temos pesquisa básica em Direito su­
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), nomeado em 1960 para o cargo de Ministro do Su­ ficie�te para discutir uma soberania que seja adequada, ou
premo Tribunal Federal (STF). Integrou o grupo de professo­ estamos repetindo há 30 anos manuais de 50 anos atrás? É
res e cientistas que formulou e Implementou o projeto da
Universidade de Brasília em 1962, tornando-se, em seguida, possível fazer Isso sem que você constitua no Direito um
regente da cadeira de ciência política e, mais tarde, da cadei­ padrão de Investigação novo? Atrelar o Direito às outras
ra de direito constitucional dessa Instituição. Em 1966 foi
disciplinas é fácil, mas fazer com que o Direito, como disci­
designado para compor o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Autor de Coronellsmo, Enxada e Voto, Nova Fronteira, 1997. plina autônoma, participe de um diálogo, é mais difícil.
128 Escola de Direito da Fundaçdo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 129

+ Judith Martins Costa viu nas faculdades de Direito foi a tentativa de superar esse
Não podemos discutir pesquisa quando há uma coisa modelo do parecer através da produção de um esforço he­
mais forte que é a não-pesquisa - o que chamamos de opi­ róico de se fazer uma filosofia do Direito na faculdade.
nião. Como incorporar esses outros olhares sobre o Direi­ Isto está relacionado ao enclausuramento da facul­
to? Todas as análises que nos explicam o Direito vêm de dade de Direito e à falta de definição da especificidade
pesquisas de outras áreas das Ciências Humanas. Isso do Jurista. Acho que uma das características do olhar do
mostra um problema na organização do ensino do Direito. jurista é ser capaz de pensar as instituições no seu de­
Quanto às colocações do professor Adorno, nessa talhe - sejam elas burocráticas ou do aparato decisório
relação entre Direito e sociedade, será que nós conhece­ judicial. Ele deve saber operar com uma série de regras
m'os realmente qual sociedade está sendo analisada? No que freqüentemente o economista e o filósofo não conhe­
Direito, não conhecemos essa sociedade. Não conheço e cem. Não se trata apenas da interdisciplinaridade, mas
não tenho como saber através do que se formou o Direito da falta de foco. Freqüentemente, esses esforços herói­
no Brasil. Quero saber qual é essa sociedade à qual o Di­ cos foram multo mal enfocados, colocando talentos para
reito se dirige e como esta sociedade interage com o Di­ produzir uma pesquisa no lugar errado, com os
reito. É uma relação que não entendo. Sei que é uma falha interlocutores errados.
da organização do ensino. Em outro aspecto, o professor Adorno chama muito a
atenção para a análise sociológica empírica. Curiosamen­
+ Ronaldo Porto Macedo Jr. te, o tipo de ensino de Sociologia Jurídica na faculdade de
De fato, não só o Direito renasce como preocupação Direito não é nada empírico, ou seja, vivemos uma certa
teórica, mas também a Sociologia, a Antropologia e a Fi­ euforia funclonallsta no ensino Jurídico paulistano. Isto se
tosofia. Há dez anos, não havia quem se Importasse com reporta a um aspecto que a teoria distingue, entre Socio­
d tema Filosofia do Direito na faculdade de Filosofia da logia do Direito e Jurídica, ou seja, o Direito como objeto
LISP. Pensar nesta dlsclplina era pensar em Kant e Hegel. da reflexão sociológica e os modelos sociológicos de aná­
Hoje, ao contrário, há uma preocupação do Direito como lise da disciplina. Assim, gostaria de ouvir o professor em
objeto da Ciência Política - os trabalhos do professor Sér­ relação a esse cenário que vemos e em relação a essa
gio Adorno são exemplo disso. reflexão de modelos sociológicos e análise jurídicas.
Concordo com o pensamento de Oscar, para quem, ao Outra pergunta: como o professor Adorno vê essa
se ensinar aos alunos o que faz o Supremo, deveria se Indi­ questão tão comum de uma espécie de colonização da So­
car uma rica bibliografia paralela ao invés de pedir para ler
••• ciologia pela Economia? Aproveito a mesma questão para
os manuais de Direito. Durante um bóm tempo, o que se o professor Oscar, perguntando como vê essa questão do
·t
130 Escola de Direito da Fundação Gelliiio \largas O que é pesquisa em Oirelio ? t.: \

ponto de vista da Ciência Política. Como lidar com essa + Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer
questão dos empréstimos metodológicos? Como Incorporar esses olhares externos ao Direito a
um curso de Direito? Sugiro, aqui, alguns pontos para
+ Esdras Costa pensarmos, em função da minha experiência de docente
Faço agora duas observações. Uma delas refere-se à nestes cursos - embora minhas graduações sejam em Ci­
sugestão do professor Sérgio, sobre a necessidade de se au­ ências Sociais e em Direito, e o mestrado e o doutorado
mentar os estudos empíricos até que seja possível estruturar em Antropologia.
melhor o campo do Direito no estudo sociológico. Minha pri­ Há uma tendência, muito sutil, até nos cursos de Di-
meira reação é muito favorável, mas tenho dúvidas sobre reito mais-tradicionais, de abrir uma brecha na disciplina
com quais perguntas nos dirigiremos à pesquisa empírica. Metodologia da Pesquisa Jurídica. Eu, pelo menos, nunca
Isto é um pouco mais complicado quando há uma tendência fui tão requisitada para lecionar metodologia em cursos
de se insistir na ground theo,y, ou seja, na possibilidade de se de Direito quanto nos últimos anos. Especialr'nente por­
descobrir teoria na própria prática da pesquisa empírica. que as monografias de conclusão de curso têm se tornado
Nesta experiência, a questão da decifração dos fenômenos uma obrigação. E é surpreendente como os alunos - às
levanta para o sociólogo um grande desafio teórico, vezes, infelizmente, já no quinto ano - se interessam por
conceituai e matemático. Então, acho que sua sugestão é pesquisa empírica e documental; eles têm a noção que um
muito valiosa mas tem, no entanto, algumas dificuldades parecer não é pesquisa e que os manuais repetem as mes­
práticas que também encontramos na Sociologia. mas coisas há trinta anos.
O outro ponto é que, imagino, a discussão acerca do Deve se investir multo no pensar metodologia de pes­
lugar do Direito na Sociologia ocorre com uma visão mais quisa - seja ela voltada à pesquisa doutrinária, empírica
recente. Gostaria, no entanto, de lembrar que os nossos ou jurisprudenclal -, que acompanhará o aluno nos vários
grandes pais fundadores eram grandes juristas e suas anos de graduação. Não vejo outra maneira de se fazer
experiências não·só influíram por terem descoberto pro­ Isto senão colocando o conhecimento das Ciências Soci­
blemas como também por criticarem o Direito. ais como instrumental do Direito, e vice-versa. E aí tem
Acredito que estou precisando reler Weber a partir de haver uma humildade recíproca, porque ninguém é dono
da inspiração que ele foi para os Juristas e da maneira da verdade nesse assunto.
que estes têm aproveitado o estudioso. Precisamos voltar Nós, cientistas sociais, dominamos algumas técnicas
a formular essa preocupação de saber quais são as ba­ que nenhum aluno de Direito aprenderá em um ano. E nós,
ses, dentro da própria experiência do Direito, para fazer que somos das Ciências Sociais e não temos um profundo
pesquisa. conhecimento das várias áreas do Direito, não podemos
132 Escola de Direito da F11ndaçífo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ?
133

nos meter a tratar dessas q u estões com as minúcias q u e olhares. Mesmo as tentativas de reforma do ensino J u rídico
q u ef!1 é da área tem condições. Acho, realmente, q u e essa feitas há alg u m tempo, fr u straram-me bastante, à medida
composição de professores em uma mesma disciplina pode que m u damos a grade curric u lar do c u rso b u scando dar
ser Interessante. urna formação diferenciada ao nosso profissional mas, por
Eu, por exemplo, leciono metodologia para os cursos conta do despreparo dos docentes, fica a Impressão que o
de especialização em Direito Público e Processual Clvll da est u do do Direito só começa no terceiro ano da faculdade.
Escola S u perior de Advocacia da OAB. São áreas q u e não E os al u nos nos cobram isso, perg u ntando: "Quando va­
domino tecnicamente, embora formada em Direito. Assim. mos começar a estudar Direito?".
falei aos al u nos que poderia ajudá-los no q u e diz respeito Entramos, então, nessa questão da problemática do
a coino pensar um projeto de pesq u isa o u u m referencial ensino j u rídico em si, que é u m mero reprodutor dessa
teórico, embora não pudesse a u xiliá-los q u anto ao con­ ciência j u rídica através de seus manuais, no q u al o pro­
teúdo das q u estões de Direito Process u al Civil, q u e não fessor ensina o Direito conforme aprendeu. Assim, te­
domino. Eles aceitaram o fato de haver uma d u pla orien­ mos manuais que chegam à trigésima sexta edição sem
tação. Orientarei os alunos metodologicamente, enq u an­ u rna vírg u la modificada. Com isso, o aluno sai sem a

to o u tro professor orientará sobre o tema q u e cada al u no mínima noção de realidade da vida social. Tenho convic­
escolher para a s u a monografia. ção q u e existe u rna limitação epistemológica, q u e é a
Acho que tem de haver uma combinação corno essa concepção do Direito enq u anto norma jurídica e que es­
desde o primeiro ano de c u rso, e não no último. t u dar o Direito é estudar a norma.
O Direito at u al está completamente afastado da rea­
+ (não identificado) lidade social e não serve mais para resolver os problemas
Não sei se o qu e colocarei aq u i é exatamente urna per­ que a modernidade nos coloca. Hoje, somos cerca de 605
g u nta o u urna tentativa de contrib u ição à reflexão de u m c u rsos no Brasil - mais da metade, da última década - e
curso de Direito q u e pretende começar de u ma forma dife­ todos dentro dessa formatação. As notas do Provão reve­
renciada. Essa perg u nta tema do nosso workshop lernbrou­ lam que o ensino não tem q u alidade.
rne uma perg u nta q u e o Roberto Lira fazia já na década de Parece-me q u e esse momento é de r u pt u ra de
80: pesq u isa em qu al Direito? Ele já denunciava o problema paradigmas e q u e precisamos de todos esses o u tros olha­
de urna ciência q u e trabalha com u m objeto pré-determi­ res para buscar u ma ciência diferente dessa forjada no
nado e dogmatizado, qu e é a nossa ciência j u rídica. século XVIII e com a q u al contin u amos trabalhando como
,Parece-me qu e esse paradigma condiciona a nossa ci­ se fosse nova.
ência a ponto de não nos deixar desenvolvê-la sob outros
134 Escola de 0/rello da Fundação Getúlio Vargns O que é pesquisa em Direito ? � '· 5

+ (não identificado) maior do que isso. As práticas institucionais é que me p a ­


Serei breve em minha questão. Quando o professor recem problemáticas. Precisamos, também, indagar se so­
Oscar falou sobre as agendas de pesquisa possíveis, para mos aplicadores do Direito na condição de validade daquele
abrir o Direito às outras Ciências Sociais, abordou os fun­ Direito sobre um ponto de vista teórico e filosófico.
damentos e efeitos do Direito, além da doutrina. Minha Ao meu ver, o nosso foco é o Direito, não devendo se
pergunta é: será que o modo como o Direito se abriria transformar em outras coisas. Temos de ter um pouco de
para as Ciências Sociais seria somente por meio da "com­ humildade para saber que existem outros olhares sobre o
pra" de uma agenda que já faz parte das outras ciências, Direito. Se pudermos aprender um pouco destas outras
ou pode-se, também, inserir elementos dessas ciências na gramáticas já é muito bom. O ideal é que o nosso aluno
análise da doutrina jurídica? Esta tem de ser sempre auto­ seja submetido tanto à nossa visão do Direito quanto à de
referenciada para o próprio sistema normativo ou pode outras pessoas, e que descubra que talvez não tenhamos
se valer de elementos de outras disciplinas como Econo­ mais salvação. Temos de viabilizar essa embocadura nova
mia, Sociologia e Ciências Políticas, visando enriquecer a para o aluno.
análise do próprio Direito? Como não incorrer no perigo de colonização? Acredito
que esse risco não é tão levado a sério hoje mas, nos Esta­
+ Oscar Vilhena
dos Unidos, já acharam que o Direito se transformaria em
Acho que todas as indagações levam ao mesmo pon­ um instrumento de maximização de utilidade. Parece-me
to. Quando coloquei que existem diversos outros olhares que isso se dará a partir de uma montagem do nosso uni­
sobre o Direito, que evoluíram muito na última década, e versq de pesquisa; e, discordando um pouco de Sérgio Ador­
que nos fazem compreender a disciplina de uma maneira no, não temos de nos transformar em uma escola de
diferente, não significa que a faculdade de Direito tem de pesquisa em Sociologia para montar um grande campo
se tornar uma faculdade de multi-disciplinas que olham empírico, mas temos de dialogar com quem já faz isso. Esse
para o Direito. Não seremos bons sociólogos ou filósofos é o nosso papel. Acho, então, que o nosso foco deve ser a
e, se o formos, certamente não seremos bons advogados solução dos problemas jurídicos que se colocam à nossa
- e Isso é um problema para quem sai com um diploma de frente. Na questão das privatizações: como resolveremos
Direito. isto Incorporando a lógica econômica e a Justiça social?
Não há dúvida nenhuma que o nosso objeto principal Não podemos abandonar o olhar do Direito e de como
seja aquilo que vincula e impõe as condutas. Mas parece se vinculam condutas e'm uma determinada sociedade.
haver uma confusão simplista disto com a norma escrita
Temos que incorporar outras formas de percepção sobre
no código. O que nos vincula e nos é Imposto é algo muito
esse mesmo tema.
136 Escola de Direito da Fundaçifo Gettíllo Vargàs O que é pesquisa em Direito ? 137

+ Sérgio Adorno da sociedade para o Direito. Nós, sociólogos, temos mui­


Quero começar a responder as questões pela Inda­ ta dificuldade em entender o Direito como ciência; consi­
gação do professor Esdras. É claro que não defendo aqui go pensar que a disciplina é uma dimensão da vida social
a empirla pela emplrla, ou um olhar cego pelo social. Eu, como a cultura ou o Estado.
que venho de uma tradição em que o fundamental é a cons­ Isso me leva a pensar que temos de fazer o caminho
trução de um problema, acredito ser um bom sociólogo Inverso, olhando para o social. Acontece que muitas ve­
aquele que sabe perguntar bem para ter as respostas ade­ zes olhamos com uma certa cisão; uma coisa é o que fala
quadas. Quais são os problemas relevantes? De onde vêm o Direito e outra é o que fala a sociedade. E aí os cursos
as inquietações? Estas são as perguntas fundamentais. falham, porque, na verdade, tornam-se multidisciplinares
Aprendi, com meus professores e com Florestan e não permitem ao aluno uma síntese. Temos de nos es­
Fern�ndes, que o primeiró olhar de um sociólogo é forçar no olhar, e fundar uma perspectiva científica.
problematizar a sociedade tal como ela é vista pelo senso Com isso, já respondo à outra questão do Ronaldo.
comum. O segundo é a transformação de um problema Para mim, uma coisa é pensar quais são os modelos socio­
social em um problema de Investigação sociológica. Acho, lógicos de se refletir o Direito, e outra é saber quais são os
então, que o ponto de partida é, no fundo, saber quais são modelos científicos de que se dispõem para pensar o Di­
os pontos relevantes. reito em relação à sociedade. Se pensarmos quais são os
Insistirei em Durkhelm31, pois, como estou dando modelos, constataríamos que nossa tradição sociológica
curso e, portanto, relendo seus livros, acabo pegando seus pensou em vários. Um pensa o Direito como, por excelên­
exemplos. Ele, dado um certo momento, estava preocupa­ cia, um ponto da unidade social; um outro pensou a disci­
do com o problema da crise moral da sociedade moderna plina no campo da regulamentação e ainda há aquele que
e acreditava que não bastava reordenar a Justiça social pensa o Direito como expressão e lugar de decifração. Eu,
sem ter outros princípios orientadores de convivência so­ por exemplo, quando estudo questões de violência, estou
cial e solidariedade. mais preocupado em entender o que esse conflito diz a
Acho que devemos refletir quais são as questões que respeito da nossa sociedade do que em resolver um pro­
mobilizam um programa de investigações. Quando insis­ blema de patologia social. Acho que temos versões sobre
to na observação dos estudos empíricos, quero dizer que a sociedade brasileira; o problema é a decifração da
devemos abrir o olhar do pesquisador do campo do Direito contemporaneidade. Uma coisa é o olhar sobre o passado
para a sociedade abrangente. Nós, ao contrário, olhamos - que podemos constituir sobre diferentes pontos de vista
- outra é tentar decifrar o momento presente, da
31 Emile Durkheim ( 1858-1917). contemporaneidade.
138 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

Concordo com o que disse, que temos um treinamen­


to técnico que nos diferencia dos juristas e outros profis­
sionais da área. Mas acho que a questão não é técnica, e
sim metodológica. Trata-se de instituir um olhar diferente
na relação sujeito-objeto, que pode ser até uma relação
de ruptura. Esta relação precisa ser construída no campo
do Direito, e ainda não a vejo claramente. Acho, então,
que o Direito deve continuar fazendo o que faz de melhor: CAPÍTULO IV
os ensaios sobre a sua fundamentação teórica. Penso que
devemos nos aproximar mais de uma epistemologia no , DIREITO E ECONOMIA
campo científico.
Por fim, comento um pouco sobre a fala de Marcos.
Acho que se vocês querem fundamentar o Direito na pes­
quisa, devo perguntar em qual modelo de pesquisa vocês
estão pensando. Vocês só precisam apontar por que es­
tão negando o método de pesquisa anterior e a razão de
quererem uma nova. Acho que por mais que as grandes
tradições tenham sido alteradas, questões clássicas do
tipo experimentação e das regras de observação empírica
têm de ser enfrentadas.
Finalmente, acredito que há um forte renascimento
do neofuncionalismo na Sociologia, mas não é verdade
que isso seja tão hegemônico. Acho que esse modelo é
muito mais um exercício de observação do que um mode­
lo de explicação, que tem de ser exercitado na imagina­
ção científica.
O que é pesquisa em Direito 7 141

PARTE 4
PERSIO ARIDA
Professor da Faculdade de Economia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Depois de várias tratativas combinamos que eu fala­


ria sobre uma perspectiva diferente, porém complemen­
tar: como a pesquisa em Economia pensa o Direito. Tentarei
transmitir como a norma legal é pensada nos est�dos de
teoria econômica. A teoria econômica à qual estarei me
referindo aqui é a dominante hoje em dia, ou neoclássica,
não mencionando teorias marxistas ou alternativas.
Minha idéia aqui é tentar fazer uma taxonomia dos
tipos de modelos usados em Economia para pensar ques­
tões jurídicas. Para isso, abordarei quatro tipos de mode­
los usados em economia. O primeiro deles pensa a norma
legal como distorção ao sistema de mercado, ou seja. é um
modelo no qual o economista pensa que o mercado está
funcionando bem no ponto de vista de alocação eficiente de
recursos mas, no entanto, alguma norma impede esse mer­
cado de funcionar, gerando conseqüências econômicas.
Essa primeira classe pensa a norma como distorção.
O que é pesquisa em Direito ? 143
142 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

A segunda classe de modelos pensa a norma jurídica O que acontece quando a Lei determina que esses estabe­
como necessária para corrigir o funcionamento Ineficiente lecimentos devem ter uma margem de lucro fixa por re­
do mercado. Já pela terceira classe, me referirei a fenôme­ médio vendido? Tende-se a ter mais farmácias - já que ela
nos intrinsecamente normativos e responder, dada a sua tende a ser mais lucrativa. Mas, como a demanda é a
característica, que norma melhor se coaduna com a mesma, a venda por farmácias diminui. Assim, você terá
alocação eficiente de recursos. Por último, darei um exem­ mais farmácias e maior ganho por remédio, mas o retor­
plo particular da última classe de modelos, que pensa a no sobre o capital é o mesmo. Ou seja, o consumidor paga
questão do aprendizado conjunto, ou seja, da evolução um preço mais alto, mas terá de andar menos até chegar
legal e da evolução da vida econômica. a uma farmácia em caso de necessidade.
O primeiro exemplo para o modelo que pensa a nor­ O terceiro exemplo será Ilustrado com um paper fa­
ma como uma distorção do mercado, ocorreu em Nova moso em Economia, que mostra o que acontec.e quando
York com os vários congelamentos de aluguel residencial. se desregula o mercado de táxi. Quando se perr,;ite a livre
O que acontece quando, por algum motivo, alguma nor­ negociação entre taxistae passageiro, cria-se um merca­
ma bloqueia o reajuste de aluguéis? Surge um novo mer­ do dual em que o cidadão da cidade sabe o preço médio
cado de aluguéis, os novos imóveis são locados a preços que lhe será cobrado. Mas e o turista incauto que chega
astronomicamente altos, os velhos a preços muito des­ ao aeroporto? Este paga qualquer preço.
valorizados, e cria-se toda uma sorte de arranjos infor­ Isso me dá o "gancho" para a segunda classe de
mais - o proprietário prefere alugar a um amigo, por modelos, através da qual o mercado é visto pelo econo­
exemplo, que aceitaria deixar o imóvel assim que solici­ mista como gerador de uma alocação indesejável e
tado. Continuando o exemplo, sabemos que certas regi­ ineficiente de recursos. Pergunto: qual é a norma que me­
ões das cidades se degradam e uma proporção muito lhor corrige essa distorção? Os campos de excelência desta
grande de imóveis para alocação permanece vazia, ge­ discussão são truste take over. Economias de escala origi­
rando uma redução no investimento em imóveis. O exem­ nam, com freqüência, conglomerados que violam a Lei
plo mostra que o mercado funcionaria bem caso não básica de concorrência. Não está claro se isto é bom ou
houvesse a norma, que acabou distorcendo a alocação ruim porque, dependendo do caso, os ganhos para o con­
de recursos como um todo. O volume de atividades eco­ sumidor podem ser melhores em oligopólio que em con­
nômicas dedicadas a esse setor diminui por conta da corrências. Mas em alguns casos, não. E, nos casos em
presença da norma. que seria preferível ter uma alocação concorrencial, você
No segundo exemplo, temos a seguinte pergunta: ás tem obrigatoriedade de impor, via norma, a quebra do trust;
farmácias devem ter margens fixas de revenda ou não? algo que limite ou force a competição no setor.
144 Escola de Direito da Fundaçao Getúlio Varg11s O que é pesquisa em Direito 7 145

Há exemplos mais ricos dessa segunda classe de fica. Aos poucos, por efeito da norma legal. os bancos es­
modelos. O caso da regulamentação financeira é particu­ tão usando mais capital do que precisariam. E como os
larmente Interessante nesse aspecto. A teoria econômica economistas pensam isso? Para eles, como os bancos es­
sugere que é contra bancos com 100% de reservas com­ tão usando mais capital do que deveriam usar, acabam
pulsórias, e permite que eles façam alavancagem. É assim emprestando menos do que poderiam emprestar e, conse­
no mundo Inteiro. O total de ativos e passivos do banco qüentemente, cobram uma taxa de Juros mais alta. Mes­
excede, o capital. Quando você faz com que os requeri­ mo assim, prefiro essa norma legal a um mercado
mentos compulsórios sejam menores que 100%, o banco funcionando livre, leve e solto, podendo gerar uma crise
pode quebrar afetando, conseqüentemente, terceiros. Sur­ bancária.
ge aí a questão da chamada crise bancária que, segundo Há um terceiro exemplo que pode atender a essa se­
a teoria econômica, é um mal que deve ser evitado. gunda classe de modelos: a questão da proibição em se
Como se evita uma crise bancária? Evidentemente usar moeda estrangeira para quitar obrigações contraí­
impondo normas prudenciais. Os bancos centrais do mun­ das no país. Um economista poderia pensar que essa é
do todo evoluíram em duas direções. Uma, impondo es­ uma limitação na liberdade dos agentes, que não é ótima
sas normas - hoje cristalizadas nos acordos da Basiléia do ponto de vista da alocação de recursos. E por que a
-, e a outra, incentivando a regulamentação via fundos - norma legal existe e a maior parte dos economistas gosta
porque os fundos de investimento são uma maneira de dela? O fato é que, se os Estados Unidos impõem paga­
Intermediação financeira sem o uso do balanço do banco mentos em dólar e eu deixo livre, parte do meu ganho e do
e, portanto, com menor risco de crise. Desde a década de ágio vai para lá, sem que eu ganhe algo em troca. Este
80 houve estímulo dos bancos centrais para desenvolver economista pensa: só faz sentido abrir mão da
a indústria de fundos e forçar requerimentos de capital obrigatoriedade de quitar pagamentos feitos no Brasil em
uniforme de todo o mundo. A sorte é que o mundo, há Reais se os outros países fizerem o mesmo em seus res­
trinta anos, não tinha esta quantidade de fundos de inves­ pectivos mercados. Como eles não estão dispostos a abrir
timento que existe hoje - e multo menos a uniformidade mão de seus ganhos, tampouco eu estou disposto.
de critérios prudenciais. Trata-se de uma situação na qual o equilíbrio como
Quando esses critérios são uniformes, evidentemen­ um todo é pior do que deveria existir, mas que, sendo o
te há uh, excesso de capital no mundo bancário. Se a nor­ mundo "dado" para nós, é melhor introduzir a norma que
ma legal exigir mais capital que o necessário, é inflexível; deixar o livre mercado funcionar.
se exigir menos capital que o caso, o Banco Central tem o Bem, mostrei aqui três exemplos - casos antltruste, de
poder de exigir mais capital para aquela alocação especí- legislação bancária prudencial e de restrição no pagamento
O que é pesquisa em Direito l
147
146 Escola de Dlrdto da Fundação Gerúlio \!,,rgas

de obrigações com moeda estrangeira - de como os eco­ privilegiado têm interesse em uma gestão com mais risco,
nomistas pensam situações nas quais a norma é uma gerando mais retorno; ao contrário, os credores que têm
maneira de se evitar a alocação que de outra forma seria direito a urna maior fatia, preferirão uma gestão mais con­
ruim e gerada pelo próprio mercado. servadora. A pergunta é: qual norma legal é mais apro­
Há uma terceira classe de modelos onde as questões priada à vida econômica?
a serem pensadas são intrinsecamente normativas. Ou Uma segunda questão dessa natureza, próxima ao
seja, eu examino algo que tem de ser regulado por Lei e mundo jurídico, é o voto. Corno todos sabem,, os econo­
me pergunto qual a forma de regulamentação legal mais mistas têm uma longa tradição associada ao' voto, que
apropriada à vida econômica. Um exemplo disso são os vem diretamente da Microeconornia. Não é à toa que as
vários estudos sobre a Lei de Falências feitos nos Estados teorias de voto desenvolveram a Economia. Esse assunto
Unidos recentemente, nos quais se compara a legislação voltou à baila, por exemplo, no contexto da União Euro­
nos diversos estados americanos. Observa-se que, quan­ péia. Será que o princípio de "um homem, um voto" ou,
to mais fácil e exemplificada é a execução de garantias, neste caso, um país equfvalendo a um voto, deve valer
maior é o volume de crédito e menor a taxa de juros. para cada eleição? Seria um homem, um voto, para cada
Um outro exemplo também nessa área aparece in­ eleição ou grupo de eleições? Quero dizer, um país pode­
trinsecamente na legislação americana - e, em alguns ria optar por não votar determinada pauta, e se reservar
casos também na inglesa -, quando se permite que os cre­ o direito de ter voto dobrado em uma questão que, para
dores assumam o controle da companhia, mantendo-a em ele, seja relevante? Será que o sistema em que posso "guar­
funcionamento, mas diluindo o valor das ações dos acio­ dar" o meu voto não é melhor que aquele em que sou obri
nistas anteriores a quase zero. A princípio, esta é uma gado a votar em cada eleição?
ação boa, porque se preserva o emprego, possibilita-se a Com a Comunidade Européia, a discussão sobre o
saída do empresário ineficiente e os credores rateiam os desenho Ideal para o sistema de voto tornou a ser Impor­
créditos entre si. Esta situação é boa, supondo que os cre­ tante. Há um conjunto de questões que interessam mais a
dores sejam todos Iguais; já quando as leis permitem di­ determinados países, e não tanto a outros. Portanto, o
ferenciação entre crédito júnior e sênior, tem-se a debate quanto à cumulatividade do voto passou a ser no­
possibilidade de equacionar urna estratégia entre tipos de vamente importante. O interesse pelo voto negativo tam­
credores fazendo com que a Lei não funcione bem. bém foi renovado. Há urna série de teorias na área
Na verdade, há correntes que defendem que a Lei fun­ econômica que afirmam que votar em dois turnos
cionará bem quando os credores forem do mesmo ranking explicitaria melhor a vontade da maioria. No primeiro, o
de Importância. Isto porque os credores com crédito menos voto seria "sincero", e no segundo, seria o mal� adequado
148 Escola de Direito da F11ndaçao Getúlio Vargas O q11e é pesquisa em Direito ? 149

em dada circunstância. Estudos recentes mostram que Outra área Intrinsecamente normativa que está sen­
esta sinceridade seria relativa porque nem sempre seria do pesquisada sob a ótica econômica é a de direitos Inte­
conveniente expor a vontade, na esperança de se evitar lectuais e patentes. Existe o reconhecimento do aspecto
um mal maior. Estes casos seriam propícios para o voto· positivo de estímulo à pesquisa que, entretanto, por sua
negativo, ou seja, eu não voto a favor de algo, mas contra, vez estimula o oligopólio. A Lei de patentes leva a Indús­
derrubando, então, um voto a favor. Estou dando o exem­ tria farmacêutica a investir grandes volumes de recursos
plo do voto negativo para chegar a uma área Intrinseca­ no desenvolvimento; porém, quem quiser entrar neste se­
mente normativa, e que influi muito na vida econômica. tor terá de arcar com custos extremamente altos com pro­
O terceiro exemplo de pesquisa nessa área está rela­ duto e criação de marca. Isto pode ser corrigido através
cionado a mandatos políticos. Em um regime parlamen­ da regulamentação do oligopólio; ou seria melhor não ter
tarista o mandato não é exatamente fixo porque o Lei de patentes, custear com Impostos a pesquisa desen­
parlamento pode ser dissolvido. Os contratos econômi­ volvida em universidades e tornar a Indústria farmacêuti­
cos têm várias otimalidades quando o tempo não é pen­ ca mais competitiva? É uma pergunta típica do setor
sado cronologicamente: cláusula de rescisão, e outras nas econômico, que traz complicações do ponto de vista
quais o tempo de exercício pode ser ajustado de acordo normativo.
com eventos externos que modifiquem as condições Um último exemplo dessa terceira classe de mode­
estabelecidas em contrato. Há pesquisas em Economia los, nas quais se pensa o melhor equilíbrio econômico di­
pleiteando se não deveria ser assim. Se com o Banco Cen­ ante de normas que de qualquer forma precisam existir, é
tral independente, por exemplo, a inflação excedesse um o de doações em campanhas eleitorais. Há uma evidência
certo valor, o Congresso estaria apto a eventualmente ele­ clara nos Estados Unidos da relação entre as doações e a
ger uma nova direção. Seria um arranjo normativo de in­ eleição do candidato. Onde o número de candidatos é muito
dependência condicionado a um evento econômico. expressivo, naturalmente a propaganda faz a diferença.
A discussão sobre Civil Law ou Common Law como Também há uma relação entre as doações e o atendimen­
melhor base para o funcionamento da vida econômica to de interesses específicos. Deputados que, nos Estados
também ganha foro. Trata-se de um mundo extrema­ Unidos, recebem doações muito expressivas tendem a
mente complexo, onde há duas vertentes. Os economis­ votar de acordo com os interesses do doador - o que não
tas tendem a preferir Common Law porque a sacralidade necessariamente é ruim, se o interesse do doador coinci­
do contrato fica mais preservada enquanto, por outro dir com o público. O problema é: o interesse público é
lado, há a preocupação em se compreender um processo alcançado com esta vinculação entre Economia e política?
em evolução. Não existe, ainda, orientação quanto a·o uso de recursos
151
O que é pesquisa cm Direito ?
150 Escola r:le Direito r:la Fundação Getúlio \largas

no fundo, terminamos sem um ordenamento jurídico com


próprios. Sem definições quanto a isto, os economistas
a ordenação que seria de se esperar.
pensam que o tempo obrigatório, como se faz aqui no Bra­
Basicamente, o entendimento dos economistas é que
sil, deve existir para minimizar o peso dos doadores. A
o melhor é aplicar estritamente o que diz a Constituição,
questão é o custo social que esta medida traz durante o
desde que haja procedimentos de correção rápidos para o
processo eleitoral.
caso de acontecerem graves distorções na vida econômi­
O problema do sistema eleitoral me dá o gancho para
ca. O drama é que alterar leis não é fácil, assim como leis
a última classe de modelos, que é a do aprendizado con­
complementares e, pior ainda, se forem normas constitu­
junto (da Economia com o Direito). Um exemplo que eu
cionais. O pensamento que se alastra na Economia é que
acho relevante no nosso caso é o da limitação do juro a
quanto mais rapidamente executável for a norma, melhor.
12 % , pela Constituição. Por entendimento do Supremo,
Deve-se corrigir a norma, e não torná-la cada vez mais
julgou-se que Isto não é auto-aplicável e, portanto, a nor­
vaga, ou driblável, porque isto gera uma incerteza quanto
ma constitucional ficou suspensa. O que aconteceu de
ao ordenamento jurídico que é prejudicial à vida econô­
fato? Na constituinte de 88 houve um enorme lobby de
mica. Concluo aqui meus trinta minutos.
economistas dizendo que aquilo provocaria o caos no
País. O argumento era que este juro seria artificialmente
baixo, o que levaria a uma instabilidade monetária e a
um custo social altíssimo. Quando se faz algo assim,
cria-se a percepção que algo está na Constituição, mas
PARTE 4.1
não vale - e que esta Constituição estaria errada. Por
CALIXTO SALOMÃO FILHO
meios não-constitucionais, busca-se "corrigir", de ma­
Professor da Faculdade de Direito da
neira que são gerados vícios no processo jurídico. Por­
Universidade de São Paulo.
tanto, o arcabouço jurídico base da vida econômica tem
problemas. Não seria melhor cumprir o que a Constitui­
Começo dizendo que nem tudo o que não é Economia
ção estabelece e, se decorresse algum problema, apren­
neoclássica necessariamente contesta todos os pressu­
deríamos que mais benéfico seria votarmos uma nova
postos de mercado. O grande elemento econômico destes
Constituição em vez de efetivarmos a "gambiarra" para
anos é o reavivar de uma teoria que se encontrava morta
quando algo não convier? A tentativa de driblar a Cons­
há 50 anos e que, por sua vez, originou-se da teoria da
tituição, embora economicamente fundamentada, traz
escolha social. Ao nos perguntarmos o que é Economia,
resultados ruins Inclusive para a própria lógica econô­
eu colocaria, ao lado da neoclássica, as preocupações com
mica. Pode-se driblar em um caso mas não em outro e,
152 Escola de Direito da Fundaçifo Getúllo Vargas O que é pesquisa em Direito 7
153

a �eoria da escolha social. Eu pretendo, depois, explicar nível de aluguéis controlado pode levar a uma retração de
por que esta preocupação com a teoria da escolha social demanda neste mercado. É necessário que o legislador
é Importante para o Direito. Admitindo a concepção tenha ciência disso ao fazer a norma, assim como todo
neoclássica, do ponto de vista do Direito me parece que advogado ou Juiz ao aplicá-la. Dessa análise de resulta­
existem multas contribuições a serem dadas - e, também, dos não devemos passar a uma determinação de resulta­
alguns malefícios. A primeira contribuição genérica é a dos. A análise econômica do Direito sofreu esta crítica
questão relativa ao porquê das normas. Apegados à nos­ durante muitos anos. Alguns dos possíveis modelos iden­
sa tradição dogmática, freqüentemente não perguntamos tificados pelo professor Pérsio, revelavam isto: foi, sem
o porquê das normas. Um exemplo: a norma que prevê a dúvida, o que ocorreu com a teoria neoclássica. A Econo­
aquisição de propriedade de boa-fé existe para o título de mia preocupava-se em dizer "o mercado, tal como por
crédito, mas outros bens não. Por quê? Ela existe, neste nós Imaginado, deve funcionar assim", portanto, se o re­
caso; porque é necessário Justificar a qualquer preço a sultado não era bom para o mercado, a norma é que de­
circulação de títulos de crédito. Nos outros, não querem veria ser modificada.
estimular o "direito dos ladrões", ou seJa, fulano é o pro­ Corro o risco de cair no óbvio, mas devo dizer que é
priet�rio até que se prove o contrário. A Economia nos possível a existência de valores que se sobreponham ao
o
traz questionamento do porquê das normas e da sua mercado. Por exemplo, suponhamos que em uma deter­
importância para estimular o comportamento de boa-fé. minada região da cidade busquem o aluguel apenas pes­
A segunda contribuição é analítica. A Economia con­ soas desprovidas de recursos. Em um primeiro momento,
tribui para a análise de situações nas quais o Direito será pode ser necessário limitar o valor do aluguel, e em um
aplicado. Um exemplo desta Idéia é quando, na tese .do segundo momento, o Estado pode Intervir proporcionando
Direito antltruste, o Instrumental neoclássico nos aJuda a a essas pessoas o equilíbrio. É uma decisão valorativa
compreender qual é o mercado relevante. Precisamos sa­ da sociedade. Não é comum em nossas escolas de Direi­
ber de qual mercado, de quais consumidores se está fa­ to, mas é necessário questionarmos os porquês, quais
lando para depois aplicarmos a norma. Mais complexo é são os resultados da norma - e a Economia chega até
o segundo efeito analítico da Economia: os resultados. aqui. A partir deste ponto, cabe ao Direito discutir o sen­
Uma grande contribuição de vertentes como a análise eco­ tido do v.alor. Como Isto é feito? Trata-se de uma discus­
nômica do Direito, foi olhar as normas enxergando, tam­ são longa...
bém, os efeitos econômicos que as acompanha. Para Isto, Faz-se necessário lembrar que o Direito lança mão
podemos tomar o exemplo dos aluguéis. O problema fun­ de diversos métodos para descobrir esses valores. Pri­
damental está exatamente no depois. Eventualmente, o meiramente, o método histórico é fundamental para nos
154 Escola de Direito da Fundação Get1iiio Va;gas O que é pesquisa em Direito 7 155

revelar a evolução da sociedade quanto a um determina­ que, por sua vez, são fundamentais no Direito para o es­
do grupo de valores. Em segundo lugar, as normas tabelecimento de valores. O estudo histórico de idéias e
procedimentais são também essenciais para a descober­ valores, e da aplicação do campo jurídico na �conomia é
ta deles - hoje, vemos normas de concorrência definindo muito importante.
o valor assim como definindo um procedimento no campo O Direito, visto sob a perspectiva da Economia, é
econômico. Procedimento este, que leva o consumidor a, antes uma técnica de estruturação dos valores econômi­
comparando, descobrir a alternativa mais eficaz. Logo, o cos que uma busca destes. Busca-se o advogado para es­
Direito conta com muitos instrumentos que não a mera crever a lei após o economista ter idealizado um modelo
imposição, diminuindo, neste caso, a utilidade da Econo­ de mercado, enquanto para o Direito, ao pensarmos e dis­
mia. Não cabe a ele impor um valor à sociedade, é um cutirmos a lei, trazemos também o valor. isto nos invade
princípio democrático. de tal forma que, para citar um exemplo próximo a todos
Atingimos os problemas da relação entre Direito e nós, o Direito participou da criação dos modelos de tele­
Economia. A análise neoclássica tradicional tende a ver o comunicações e energia apenas para resolver as exigên­
Direito como forma de corrigir, através de normas, as fa­ cias técnicas econômicas, quando poderia contribuir com
lhas do mercado, visando atingir o funcionamento proje­ princípios gerais através do Direito Administrativo e dos
tado como ótimo. Não há discussão de objetivos; o objetivo sistemas regulatórios. É muito discutível que seja um passo
é este e o Direito deve conformar-se com ele. Ora, é um adiante, porque quando o Direito somente segue as exi­
consenso que o estudo do Direito não se resume a isso. gências econômicas estamos deixando de lado os valo­
Não deve incorporar esses princípios, a menos que os ins­ res. E� gostaria de fazer uma advertência veemente: nós,
trumentos democráticos de captação de valores na socie­ geralmente, tendemos a essa mentalidade sem perceber­
dade apontem nesse sentido. mos - toda a prática destes últimos dez anos nos leva a
Um segundo problema da relação entre Direito e Eco­ ela. Setores privatizados, desregulamentados e tratados
nomia é o método. O método econômico tradicional tende como sistemas em si, como se não houvesse princípio
a dar um pequeno valor à História; quanto mais pende-se regulatório que devesse ser discutido em telecomunica­
ao pensamento neoclássico, menos relevante torna-se a ções, energia ou saneamento. Aos meus olhos, isto causa
História. Tanto é verdade, que o momento em que a Histó­ preocupação e deve ser matéria de reflexão.
ria Econômica ganhou mais importância, no Brasil, foi Afirmados os valores filosóficos e analíticos da Eco­
quando do pensamento estruturalista. O crescimento e a nomia, penso, talvez pretensiosamente, se a questão não
hegemonia do pensamento neoclássico na tradição eco­ seria como o Direito pode ajudar a Economia,'e não mais
nômica brasileira deixou de lado preocupações históricas o inverso. Acho que esta é uma grande linha de pesquisa.
156 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 157

Sendo tão Importante para a compreensão do Direito, não reavivar as teorias da escolha social - que só podem ser
poderia deixar de mencionar a Economia como disciplina canalizadas com a discussão de valores.
anexa à pesquisa em Direito. Em palavras superficiais, o
que esta linha propõe é uma outra preocupação - não ne­
cessariamente recusando o pensamento neoclássico. DEBATES
Em meados do século passado afirmaram que teoria
da escolha social estava morta, porque seria impossível o • Carlos Ari Sundfeld
conjunto chegar a um modelo econômico em consenso. Temos de fazer uma ligação entre este palnel e o tema
Entretanto, é possível transportar a idéia de votação po­ central, "o que é pesquisa em Direito". Quando elabora­
pular do sistema político para o econômico, comparando mos o programa desta Escola, introduzimos !3 pesquisa
os valores atribuídos aos bens. Esta tese simples, junto a em Direito corno algo fundamental para a produção de
estudos sobre a pobreza, valeu o Prêmio Nobel de Econo­ um novo conhecimento jurídico e a formação dos alunos.
mia a um indiano. Mas a preocupação dele se encerra aí, Com o modelo quase aprovado e tudo certo para come­
onde termina o trabalho do economista. O valor é Impor­ çarmos a funcionar, nos questionamos acerca de o que
tante para se definir a opção por um tipo de sociedade. seria esta pesquisa. Agora estamos aqui aflitos para defi­
Então, como o Direito pode ajudar a Economia e como o nir seu papel. já que é tão importante.
valor entraria neste sistema? Será que o ótimo de Pareto é Discutimos com o professor Sérgio Adorno a
o ideal para uma sociedade? Será que esta é a escolha? especificidade do Direito. Abordamos corno o conhecimen­
A questão central é como inserir o valor na Econo­ to produzido através da pesquisa em Direito pode ser uti­
mia para que discutamos a teoria da escolha social. Exis­ lizado em outras áreas, e como estas podem contribuir
tem algumas idéias. Uma delas é: o valor penetrará no com a sua metodologia. Não estamos bem desenvolvidos,
mundo econômico na mesma proporção em que for afinal não temos tradição de pesquisa em nossas escolas.
proced\mental, na mesma proporção do número de es­ Começamos, pela manhã, criticando as nossas práticas e
colhas que permitir ao mundo econômico. Idéias que per­ até a ausência delas. Tratadas as metodologias que seriam
mitam às pessoas e empresas comparar e optar. Enfim, incorporadas, permaneceu a questão sobre a contribuição
a Economia pode contribuir multo na esfera analítica e que a pesquisa das escolas de Direito traria.
na concepção fllosóflca (os porquês do Direito). Traz Gostaria de "provocar" o Calixto, embora já tenha
problemas relacionados ao método, com os quais deve­ demonstrado o que espera de uma pesquisa e, principalmen­
mos ter cuidado. E, certamente, há um extenso campo de te, o Pérsio. O professor Arida não é de uma escola de Direito
pesquisa que relaciona Direito e Economia e que promete e, naturalmente, não apresentará essa crítica interna. Mas
158 Escola de Direito da Fundação Getúlio \largas O que é pesquisa em Direito ? 159

há, notadamente, uma crítica externa. Relatou a contri­ sam o mercado, mas não o_'que historicamente o levou
buição, extremamente relevante, que a Economia foi ca­ àquela situação. Sendo ahistóricos, ignoram· também o
paz de fornecer para o estudo do Direrto - e se nós que se processará dali para a.diante. Se observarmos qual­
utilizarmos estes resultados, seremos capazes de fazer quer mercado, constataremos que são sempre fundados
melhor. Eu lhe pergunto: por qual omissão nós das esco­ em contratos (normas). A questão crítica que se coloca,
las de Direito somos responsáveis? Na ótica de um pes­ mesmo no âmbito da economia neoclássica, é: como a
quisador da Economia, qual é a especificidade da pesquisa norma evolui? O economista tende a pensar que ela evolui
em Direito? para acomodar pressões econômicas. A norma evoluindo
para responder às exigências econômicas. Nãp funciona,
• Persio Arida necessariamente, desta maneira. É mais provável que seja
Esta é uma questão instigante. Farei algumas obser­ o contrário: a vida econômica, a ordem, é fundada em tor­
vações. Ao centrar a minha exposição nos vários modelos no da norma. O caso das concessões públicas é, um exem­
do que se chama Economia Neoclássica, não estou suge­ plo em que a norma é fundadora. o que é este mercado? É
rindo que é a melhor maneira de se pensar a Economia. um mercado fundado pela norma.
Os dois Journals mais influentes hoje em dia - o Law & Então, se eu puder responder em que dire,,;ão a pes­
Econom/cs e o European Journaf of Law & Economics - são quisa faz mais sentido, eu diria que é na da historicidade
basicamente neoclássicos em sua orientação. Nesta ver­ da norma, como ela evolui. É uma pesquisa intrínseca do
tente, o que acontece com a pesquisa é que o economista Direit0, apesar dos olhos postos na Economia, que a meu
vê o mercado Independentemente da norma. Este merca­ ver traria conseqüências extremamente interessantes para
do pode funcionar bem, ou funcionar mal. Se funcionar a evolução dos mercados inclusive na perspectiva
bem, a norma é distorcida e produz efeitos indesejáveis. neoclássica . Na perspectiva chamada escolha social, a
Se funcionar mal, trata-se de saber qual norma assegura área de Interação é evidentemente maior, e como ela se
um funcionamento melhor. O economista neoclássico pen­ desdobrará ainda é algo desconhecido. No paradigma vi­
sa Isto do ponto de vista da alocação de recursos, 11ão gente, eu diria que a historicidade da norma e como Isto
dos valores. O argumento é: "os valores são extra-econô­ funda o mercado são as questões relevantes.
micos", ou seja, quando são introduzidos deixa de tratar­
se de uma discussão econômica. Portanto, não se Interessa • Calixto Salomão Filho
por valores - e sim pela eficiência do mercado. Eu complementaria dizendo que do ponto de vista do
No fundo, onde a pesquisa se faz necessária? Esses Direito Econômico, as pesquisas mais interessantes, além
modelos da Economia Neoclássica são ahistórfcos, pen- das históricas, são as que envolvem os efeitos das nor-
160 Escola de Direito da Fundaçi,o Getúllo Vargas O que é pesquisa em Direito ? 161

mas procedimentais econômicas - aquelas que não defi­ seus fundamentos epistemológicos e, portanto, eu gosta­
nem uma linha, não adotam uma tese como a neoclássica,· ria de ouvir se há uma afinidade entre estas questões e a
não incorporam um valor. Como se dissessem: será cria­ lnafastável retórica do Direito.
da uma limitação de poder que permita à sociedade
acessar a esfera econômica realizando a melhor escolha + Perslo Arlda
social, estabelecendo o que é o seu ótimo. Eu escrevi sobre essas questões há quase vinte anos,
Tanto uma norma de concorrência quanto uma nor­ mas, surpreendentemente, ainda penso de forma pareci­
ma reequilibradora, que Inclui participantes no mercado, da. Meu argumento, na época, era que a Economia como
aumentam a escolha, aumentam o número dos que estão soft sc/ence tem uma visão errada de si mesma. Os econo­
votando na escolha social - se fosse possível equacionar mistas gostam de pensar que elaboram teorias e as tes­
o voto econômico desta maneira. Eu acho Interessantíssi­ tam como nas hard sclences, usando econometrias com
mo pesquisar o efeito das normas procedimentais na so­ graus razoáveis de sofisticação, quando, na verdade, ao
ciedé)de, aliás, tanto acho que pretendo fazê�lo. se tratar uma questão realmente importante em teoria
econô�ica, a relevância da evidência empírica quanto às
t Ronaldo Porto Macedo Jr. teorias predominantes é multo menor que o Imaginado
O estado de arte do uso de Instrumentos econômicos pelos economistas. Os economistas figuram uma prática
na análise Jurídica brasileira ainda é elementar e, embora que não corresponde ao que fazem e, portanto, têm uma
haja'alguns poucos trabalhos de ponta, atualizados, é certo visão epistemológica pobre de sua disciplina.
que somente agora o assunto ganha espaço nas escolàs O segundo argumento é que as grandes controvérsi­
de Direito. A minha pergunta, particularmente ao Pérsio, as da Economia foram superadas por uma variedade de
é algo distante do nosso problema imediato; mas eu não expedientes, embora nunca houvesse testes empíricos para
gostaria de perder a oportunidade de questionar o pro­ a resolução quanto à visão a ser aplicada. Decorre a dú­
fessor Arlda, até porque já escreveu sobre o assunto. No vida: a Economia não possui qualquer cientiflcldade, por­
painel da manhã discutimos acerca do padrão de ciência que, certamente, ela não tem a cientlficldade das Ciências
que devemos adotar para analisarmos a pesquisa em Di­ Exatas? Meu argumento é que a cientlflcidade na Econo­
reito, qual será o viés epistemológico para se pensar uma mia deve ser pensada de outra maneira. Se olharmos al­
ciência jurídica. O professor Adorno até afirmou a sua per­ gumas das controvérsias que pontificaram o pensamento
plexidade, pois percebia o Direito como objeto, e uma certa econômico, verificaremos que foram resolvidas não atra­
dificuldade em pensar uma ciência. O professor Arida pos­ vés das evidências empíricas, mas porque existia um con­
sui trabalhos sobre a questão da retórica da Economia, junto de regras retóricas aceito por todos os participantes.
i6J
162 Escola de Direito da Fundação Gettíllo Vargas O que é pesquisa em Direito ?

Seria como se e u explicasse um fenômeno de maneira mais em seus próprios termos, general idade, enfim, um con­
simples q ue a apresentada por o utro professor; a minh a j unto de regras q u e proporciona vantagem retórica.
seria mais razoável. Se a minha explica ção a b arcar uma Neste caso, não tenho competência para a firmar como
rela ção de fenômenos maior que a dele, a minha será a isso poderia ser aplicado no m undo do Direito o u q ual
mais razoável. É um conj unto de regras retóricas que nas seria a s ua validade.
diversas controvérsias se provaram eficazes.
A conjectura que lancei há vinte anos é q ue o núcleo + Calixto Salomão Filho
rtante é,
de cientiflcldade não está no recurso ao empirismo, e sim A mim sempre Impressionou o quão Impo
da comunidade
na adesão a um conjunto de regras retóricas uniforme. para a com unidade econômica, a opinião
ente científico
Seria como se os participantes dissessem "não s a bemos científica para que considere algo efetivam
afastado".
resolver" e, por adotar um grupo comum de regra� retóri­ - "isto é malnstream, aquil o não é e deve ser
r sistemas
cas, chegassem a uma decisão - o que demonstra a exis­ Na relativa retórica do Direito, o fato de have
de uma opi­
tência de uma cientificidade que não é a das hard sciences, diferentes não leva à excessiva dependência
ctos positi­
nem por isto deixando de ser cientificidade. Apesar de não nião da comunidade científica. Nisto há aspe
omia é
recorrermos à evidência empírica, a teoria econômica evo­ vos e negativos. O consenso científico na Econ
as tra z o
l uiu extraordinariamente: a infla ção, na maior parte do inte ress ante, mas em dete rmina da s époc
, a Economia
mundo, acabou. Em nosso país ainda falta um pouco mas, unilateralismo. Ao perceber isto, entretanto
e a aplicá­
basicamente, terminou. As graves recessões, como a da passa a agregar elementos de outra retórica
História e dos
década de 30, também não existem mais. É outro mundo, los. Como exemplos, temos as questões da
com outro entendimento do potencial uso dos instrumen­ valores.
r im-
tos econômicos. São exemplos do ganho de conhecimento . Talvez, para o Direito, seja relevante dar maio
mais os prin­
q ue há, entretanto, não à maneira da epistemologia das portância ao consenso científico, observando
mos visando
Ciências Exatas. cípios e a doutrina - ainda mais se esta
interpre­
Não me sinto capaz de afirmar o quanto isto seria ciência. A doutrina era apenas uma forma de se
em Direito
útil em uma Ciência do Direito. No m undo econômico a tar o que dizia a Jurisprudência; no entanto,
os trinta
reflexão apontou que a epistemologia das Ciências Exa­ Econômico, as mudanças legislativas dos últim
igo do
tas não seria tão útil, e nem por isto deixo u -se de avan­ anos são efeitos de movimentos do utrinários (Cód
rina e o
çar. A conjectura é pensar a cientificidade a partir de Consumidor, Direito Ambiental). Reavivar a dout
um núcleo comum de regras de retórica, em que h a j a consenso científico talvez sej a interessante.
simplicidade, capacidade de assumir teses adversárias
164 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 165

+ Rabib Ali Nasser + Persio Arida


(pesquisador Direito GV) Espaço para a atuação proposltlva, evidentemente,
Eu gostaria de incluir a dimensão Internacional nes­ sempre há. Se quisermos nos ater ao mundo neoclássico,
sa discussão dos modelos possíveis, através dos quais a quando da proposição de um valor afirmarão "não temos
Economia enxerga a norma jurídica. Penso que há dois nada a dizer", mas quando algo na norma for pertinente
processos de globalização em curso: a econômica (a cres­ ao mercado, pensarão apenas se ela o distorce ou corrige
cente interdependência e o aumento das operações entre seu mau funcionamento. Por outro lado, se na pesquisa
agentes de diferentes países) e a Jurídica (a elaboração de em Direito concluirmos que as normas evoluem de uma
normas em tratados que visam regular as relações eco­ maneira mais complexa, em sua relação com mercado, o
nômicas internacionais). As normas são elaboradas de economista será obrigado a pensar seu modelo em con­
acordo com valores considerados adequados em deter­ formidade com a norma que o funda. Mas para convencê­
mina?ª etapa histórica. Verificamos que os valores que lo a pensar de um modo mais amplo, ele precisará deixar
regem os tratados internacionais estão baseados na teo­ de enxergar a norma como algo que está lá para ser mo­
ria neoclássica. dificado em conformidade com os objetivos de seu mode­
Também sabemos que a composição dessas normas lo. Compreendendo a origem daquela norma, ele concluirá
se dáem um ambiente de assimetria de poder, este de­ que talvez seja«:> caso de deixar o mercado relativamente
terminando os valores levados em conta e o conteúdo Ineficiente.
final. Acho que o Brasil é uma vítima deste processo. Per­ Se um economista, por exemplo, partir de um mer­
cebemos que o ordenamento jurídico brasileiro está con­ cado regulado que, ele crê, seria mais eficiente
dicionado ao que os investidores estrangeiros esperam desregulado. Ele deve ter em mente que a modificação
e aos compromissos assumidos em acordos Internacio­ das normas trará conseqüências, que por sua vez se­
nais. Gostaria de saber, neste contexto de surgimento de rão corrigidas com outras normas que talvez provo­
um curso que se pretende Inovador, se na pesquisa em quem um funcionamento ainda pior do mercado. Se a
Direito o exame histórico das normas seria suficiente, se historicidade da norma convencer o economista pela
nos restringiremos a isto, ou há espaço para a elabora­ não-desregulamentação do mercado, talvez o ótimo de
ção de proposições quanto a políticas públicas possíveis Pareto 32 seja deixado de lado. Ele precisa entender essa
de maneira que a pesquisa oriente a composição da nor­ dinâmica quase endógena da norma e sua relação com
ma. Há espaço para uma atuação propositlva da pesqui­ a vida econômica. Enquanto o economista neoclássico
sa em Direito?
32 Vllfredo Pareto ( 1848-1923), economista Italiano.
1 (, 7
166 Escola de Direito da Fundação Getúlio Va1gas O que é pesquisa em D/relia l

pensar a norma como exogenamente dada, ele dirá "a nor­ das provisórias. Não sei se também pensou nisto ... Na
ma é distorciva" ou "a norma é boa" e, quando muito, minha opinião, e considerando a doutrina com a qual eu
dará uma sugestão de boa norma que, quem sabe, alguém concordo, as medidas provisórias vêm sendo aplicadas
do mundo jurídico se encarregaria de implementar. Eu ten­ de maneira frontalmente contrária à disposição constitu­
do a achar que a maneira mais eficaz de convencer um cional. Isto macula o sistema, exatamente corno o senhor
economista neoclássico a Introduzir o Direito, efetivamen­ disse que não deveria ocorrer.
te, em suas considerações, é através de um melhor enten­
dimento da historicidade da norma. • Persio Arida
ma
A primeira, sobre o STJ, causou uma grande celeu
urna
• (não identificado) no merc ado. Pens ando como econ omis ta, há
s; já
Eu gostaria de citar um exemplo brasileiro para que raci-onalidade, mesm o à luz de princípios conflitante
muito
o senhor analise segundo a sua visão econômica e encai­ do ponto de vista do banco, a garantia real era
xe em um dos modelos anteriormente expostos: menos real do que se Imaginava. Corno nos ' exemplos
cia
Houve a falência de uma grande incorporadora, como que citei, em uma comparação com as leis' de Falên
for
todos sabem, e ao discutirem os créditos no STJ, chegou­ dos Estados Unidos, no Estado em que a garantia
Histó ­
se a um acórdão que privilegiou o crédito de natureza menor o crédito também será reduzido. À luz da
crédito
pessoal em detrimento de garantias hipotecárias de direi­ ria e dos estudos, a tendência é um volume de
nor­
to real (contradizendo a Lei de Falências), em função de menor na área habitacional corno conseqüência da
um pacto social que existiria se a decisão tomasse outro ma legal.
rumo. Parece-me que esta decisão, contrariando disposi­ Na segunda questão, eu não tinha em mente as Me­
de
ções legais, geraria o impacto econômico da diminuição didas Provisórias. O economista neoclássico gostaria
um
no crédito para financiamento de incorporações, haja vis­ uma Constituição mínima, realmente reduzida, com
di­
ta que o banco, detendo uma garantia real, foi prejudica­ capítulo sobre ordem financeira afirmando apenas o
do em favor do promissárlo que tinha uma garantia reito à propriedade. Claro que é um exemplo extremo. Uma
. A
pessoal. Dado o risco, o precedente, talvez o banco desis­ Constituição mínima e nenhuma Medida Provisória
ta de investir nesse segmento. Gostaria de ouvir o seu co­ medida provisória cria Incerteza; mesmo que não possa
o
mentário sobre Isso. aherar Lei Complementar, passa a agir imediatamente,
E quando afirmou, no final da sua exposição, a ne­ que retira a eficácia da Lei como balizadora da atividade
cessidade de uma norma para mais agilmente atender as econômica.
mudanças do mercado, Imediatamente pensei nas medi-
O que é pesquisa em Direito 7 169 I,:"·
168 Escola de Direito da Fundaçao Getú//o Vargas !

+ Jean Paul Veiga da Rocha o significado da decisão da corte no capitalismo e no com­

(Coordenador de Metodologia de plexo mercado financeiro nacional?


Fora a sugestão do professor Pérsio Arida, de se In­
Ensino, Direito GV)
vestigar a historicidade da norma (o que é um grande
Especialmente na área de regulação do mercado é
avanço nesse tradicionalismo, no entrave para a refor­
multo desapontador para os professores a maneira como
ma do sistema financeiro), chega a ser tragicômico que
os alunos lidam com a relação entre Direito e Economia.
na pauta da transição, em uma situação de ameaça de
A confusão entre a prática profissional e a reflexão acadê­
inflação, todo o debate sobre um novo desenho para o
mica, e o isolamento do Direito frente às outras ciências,
sistema financeiro nacional esteja bloqueado porque uma
particularmente a Economia, impedem que o aluno e o pro­
tese jurídica dominante prega que não se pode reformar,
fessor avancem na construção da melhor solução, da me­
ou regulamentar o Artigo 192 com uma única Lei Com­
lhor doutrina para um caso concreto. Há casos extremante
plementar. Se uma Lei Específica conceder independên­
complexos na área do mercado financeiro que compro­
cia ao Banco Central ela será inconstitucional; o
vam isto ;... o professor Pérsio Arida citou o caso da limita­
Congresso tem de aprovar uma emenda constitucional
ção do juro pelo STF. Nas mais de 150 páginas da decisão
que troque a expressão pela mágica "leis complementa­
há um debate rlqufssimo em que os ministros do Supremo
res". Essa é a pobreza do debate Jurídico sobre o siste­
tentam responder como lidar com o estudo do Banco Cen­
ma financeiro. Para além da questão da eficiência
tral que demonstra, com detalhes, que a aplicabilidade
econômica: nós não temos, no melo acadêmico, a dis-:­
imediata do teto de juros seria catastrófica. Ora, é claro
cussão da legitimidade da regulação do mercado finan­
que não podemos exigir que um ministro do Supremo aja
ceiro - um debate clássico que começa com Weber sobre
de maneira diferente. Ele é um ator jurídico que, portanto,
o agigantamento das burocracias, o que foi uma respos­
constrói um discurso correspondente ao seu papel.
ta à complexificação do mercado. A necessidade de uma
É frustrante que aqueles que analisam e refletem so­
burocracia corresponde ao cuidado técnico e Imparcial
bre a decisão em aula ou trabalho cientifico não procu­
da moeda e do crédito. Daí vem a questão lntertemporal,
rem compreender o sentido daquela decisão. Outro
a necessidade de um Banco Central Independente e com
exemplo é a proibição do anatoclsmo pelo STJ. entendi­
mandato, enquanto, paralelamente, há uma discussão
mento da alta corte do País que não se pode cobrar Juro
riquíssima por ocorrer acerca da legitimidade desta bu­
sobre juro. Como ir além dos debates, das querelas
rocracia imparcial que garante a eficiência do mercado.
hermenêuticas tradicionais, e pensar o que significa um
A minha questão é se, além da discussão de eficiência do
tribunal afirmar que não se pode capitalizar juro? Qual é
mercado, da adequação da norma à necessidade e dos
Ii1
170· Escola ele Direito ela F1111dação Getú/in Vc:irgas O que é pesquisa em Direito ?

efeitos adversos, também não poderíamos acrescentar antes, interessa aos economistas em geral. Este é um caso
essa pauta sofisticada da relação Direito e Economia. urgente,_ de carência de reflexão, em que os economistas
não podem ajudar porque apenas comparam sob o pris­
+ Persio Arida ma do funcionamento de mercado. Certamente é uma óti
De fato, o debate no Brasil sobre o Banco Central ca interessante, porém desenraizada juri�icamente
Independente é extremamente pobre e, curiosamente, mais quando a questão é normativa por definição.
desenvolvido no mundo dos economistas que no jurídico.
Eu digo curiosamente porque no mundo dos economistas + Calixto Salomão Filho
ele é relativamente simples, e no mundo jurídico muito Também estava aqui pensando em como responder
intrincado. O que significa um Bance> Central independen­ por que acontecem essas coisas. É difícil. Um hábito ar­
te? Qual é o projeto? Claramente há uma pobreza de de­ raigado em Direito é pesquísar apenas a história da nor­
bate impressionante. A questão crítica, a meu ver, é que o ma quando se fala em pesquisa histórica. É difícil
que se debate no mundo jurídico está aquém do necessá­ pesquisar a evolução das idéias. Em matéria �egulatória,
rio. Por favor não me levem a mal. Todo o debate, suges­ com freqüência é catastrófico. Prova disto é uni outro pro­
tões, vêm de economistas. Os vários projetos, inclusive blema, além da pesquisa histórica um pouco:desfocada:
esse que o Banco Central trabalhou, foram pensados por quase não se faz a pesquis� empírica, o que é fundamen­
economistas. A pergunta é se esta é a melhor ótica. Ne­ tal para analisarmos o efejto de uma norma. Acho que
cessária sim, mas talvez não a melhor. Imagino que com­ existe um tripé importante formado por pesquisa históri­
plementar à ótica Jurídica. ca, empírica e de fundamentos valorativos - freqüentemente
Corremos o risco de implementar um Banco Central imaginamos que a Lei é Igual aos valores aceitos pela so­
em que questões normativas não foram muito pensadas ciedade. Às vezes, a questão não é tão compléxa, trata-se
pelos economistas. A independência serve para regular o de ab_andonar o formalismo e buscar o valor. Um dos ter­
mercado, mas do ponto de vista de alguma interação com mos mais relevantes na história do Direito'Econômico bra­
o poder político - do contrário, não precisaria ser inde­ sileiro foi a discussão social da empresa (porque buscaram
pendente. Trata-se de algo intrinsecamente do plano o valor atrás da norma). Precisamos de mais atenção à
normativo, por isto a reflexão dos economistas é impor­ pesquisa, mais tempo despendido e outros métodos.
tante e certamente insuficiente para caracterizar uma boa
legislação a respeito. É preciso trabalhar o que é uma boa
pesquisa em Direito, que efetivamente evolua para o posi­
tivo. É evidente que a historicidade da norma, que abordei
·---------- CAPÍTULO V
As ÁREAS DO DIREITO E ESPECIFICIDADES

EM MATÉRIA DE PESQUISA
O que é pesquisa em Direito 7 175

PARTE 5
THEODOMIRO DIAS NETO
Professor da Escola de Direito de São Paulo da
Fundação Getúlio Vargas

Pretendo discutir como a pesquisa pode contribuir


para que o Direito Penal possa cumprir o seu papel na
solução de conflitos de maneira mais justa e eficaz.
Concordo com o diagnóstico aqui apresentado quan­
to ao atraso da pesquisa em Direito em relação a outros
campos das ciências humanas. É possível detectar um
aumento quantitativo da pesquisa na área penal, que eu
atribuo também ao crescimento �a pós-graduação. Mas
a quantidade é superior à qualidade. Grande parte dos
trabalhos apenas confirma a autoridade da doutrina.
Também é válido para o Direito Penal o diagnóstico de
isolamento em relação às demais disciplinas das ciências
humanas. A elaboração teórica está basicamente voltada a
servir os profissionais em suas atuações nos tribunais. A
escolha dos temas de pesquisa é, com freqüência determi­
nada pelo interesse do advogado, do promotor e do Juiz em
buscar soluções para seus casos concretos.
176 Escola de Direito da Fundação Oet1Wo Vargas O que é pesquisa em Direito ? 177

Há, portanto, um enorme campo a ser explorado na vendem ilusão de segurança em troca de votos. A despeito
pesquisa em ciências criminais. Pretendo colocar algu­ deste processo de Inflação legislativa, o sistema penal não
mas vertentes que, na minha opinião, precisam ser tem sido avaliado socialmente no plano de sua eficácia. Pelo
aprofundadas para que o sistema penal possa ser um ins­ contrário, a ausência de resultados positivos na solução de
trumento mais eficaz de solução de conflitos e de controle conflitos somente revigora a Insistência na demanda re­
do poder punitivo estatal. pressiva. É como se o problema estivesse na dose do remé­
o
Uma vertente seria conhecimento do processo de dio e não no remédio em si. A hegemonia cultural da ótica
produção legislativa. Nunca se legislou tanto em Direito penal de compreensão dos conflitos sociais bloqueia a libe­
Penal. O Direito Penal converteu-se no grande curinga da ração da Imaginação para outros tratamentos. Alessandro
política contemporânea, um instrumento sempre a mão · Baratta33 explicava que o atual movimento do "eflcientismo
para a busca de consensos partidários e articulação de penal", tendência de se valorizar os aspectos da eficiência
respostas simbólicas aos conflitos. Diante desse quadro, em detrimento das garantias, constitui um círculo vicioso
algumas questões merecem investigação. Como tem se de resposta via pena à desilusão causada pela ineficiência
dado o processo decisório legislativo na área penal? Como da mesma pena no confronto de determinados problemas.
nascem as leis penais? Quais são os seus trâmites dentro Segundo Baratta, o eficlentismo não responde cognitiva­
do Congresso Nacional? Quais são os autores que Inter­ mente, mas normativamente; ou seja, se nega a aprender e,
vém no processo legislativo? em vez de buscar respostas mais eficazes, trata de tornar
N? final de 1990, por exemplo, duas leis Importantes mais efetiva a resposta penal aumentando a sua lntenslda,­
leis penais foram aprovadas: a 8.13 7 /90 prevendo crimes de ainda que a custo da Justiça.
tributários, de abuso de poder econômico e contra o con­ Neste sentido, além de conhecer o processo legislativo,
sumidqr e a 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor. a pesquisa deve preocupar-se também em conhecer os efei­
Inexplicavelmente, condutas muito semelhantes relacio­ tos das leis penais sobre os problemas. Como o processo­
nados à propaganda enganosa são tipificadas nas duas criminal se desenvolve na prática? Como tem sido o filtro
leis com penas totalmente distintas. A constatação é que policial? Quantos casos chegam ao Judiciário? Qual tem
as comissões que redigiram os projetos das duas leis não sido o Impacto da regulação penal em áreas como dro­
conversaram entre si. O resultado é o caos legislativo. gas, aborto, melo-ambiente, abuso do poder econômico?
Exemplos como este surgem a cada ano.
Uma das grandes características do Direito Penal atual, 33 Alessandro Baratta, Jurista Italiano, é diretor do lnstltut für
Rechtsund Soclalphllosophle da Universidade do Saarland,
não somente no Brasil, está em seu caráter altamente sim­ Alemanha. Autor de Criminologia crítica e crítica do direito penal,
bólico. Na chamada "política como espetáculo", os políticos Editora Renavan - Instituto Carioca de· Criminologia, 2002.
178 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito l 179

Há outros meios mais eficazes para a regulamentação Na mesma linha, o Instituto Brasileiro de Ciências
desses problemas7 Criminais (IBCCRIM 31 ) tem pesquisado a atuação dos CICs,
Enfatizo aqui a Importância do estudo interdisciplinar. os Centros de Integração da Cidadania, enquanto política
É necessário discutir em que medida o Direito Penal tem de solução de conflitos e prevenção criminal nos bairros
se mostrado um Instrumento adequado no tratamento de periféricos da cidade de São Paulo.
problemas ou se, pelo contrário, converteu-se em parte É necessário ainda lembrar a importância do estu­
essencial do problema. Se comprovada a sua ineficácia do da dogmática penal. Dogmática penal, de acordo com
no confronto de determinada situação problemática, de­ definição já ap�esentada, seria uma tecnologia para as­
vemos renunciar ao uso do Direito Penal. Se diante de um segurar a capacidade decisória do Direito, enquanto con­
conflito não houver alternativa melhor à pena, e esta junto de regras generalizáveis. O professor Tercio tr.ata
tampouco se mostrar útil, é preferível não fazer nada a da importância da dogmática para a confirmar a razão
sofrer os custos sociais da Intervenção penal. e a autoridade dos textos na Idade Média. A dogmática
Em alguns casos, os problemas não derivam das leis, converteu-se em instrumento de resgate de razão dos
mas da aplicação inadequada das mesmas. A lei dos textos legais. Com Isso, o espaço da dogmática e da te­
Juizados Especiais Criminais prevê, por exemplo, para de­ oria geral do delito é o de busca de racionalidade e recu­
terminados crimes de pequeno ou médio potencial ofensi­ peração do papel original do Direito Penal, qual seja
vo, a possibilidade de transação penal e suspensão garant.lr que o poder punitivo seja exercido em confor­
condicional do processo através da imposição ao acusa­ midade com as regras da Constituição. Precisamos re­
do de determinadas condições, como prestação de servi­ solver as antinomias entre o Código Penal e a legislação
ços, reparação do dano, restrição de direitos, etc. Em regra, especial, resgatar a dogmática penal como delimitadora
contudo, salvo importantes exceções, essa lei converteu­ da pena, e, por fim, agregar uma análise interdisciplinar
se em instrumento de Impunidade e descrença no Judiciá­ dos conflitos. A Integração do Direito com as faculdades
rio através da aplicação burocrática de cestas básicas de Econ9mia e Administração Pública podem ser muito
pelos juízes. A esposa agredida procura o Judiciário para producentes.
denunciar uma lesão corporal, o marido concorda em pa­
gar uma cesta básica para se ver livre do processo e, logo
após a audiência, em tom de sarcasmo ainda obriga a
impotente vítima a arcar com as suas "despesas" proces­
suais. Este tipo de diagnóstico somente é possível pela
pesquisa. 34 Instituto Brasllelro de Ciências Criminais.
180 Escola dt Dlrtlto da Fundaçifo Gtt1Ulo Vargas O qut i pesquisa em D/rt/to ? 181

PARTE 5.1 semi-automática. Nós aprendemos que a idéia do código,


cientificamente falando, é de Inteireza do Direito. Quando
CASSIO SCARPINELLA BUENO falo especificamente em processo civil e ponho em minha
Professor da Faculdade de Direito da frente os códigos dos professores Theotonio Negrão e
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Nelson Nery Junior, tenho mais que a Inteireza Jurídica;
tenho tudo do Direito Processual Civil. Podemos, sem exa­
É fácll descrever o que é a pesquisa em Direito Proces­ gero, sobretudo para quem está na prática, afirmar que
sual, mas é bem diferente afirmar o que deve ser ou o que se não está neles, é porque não precisa estar. Uma coisa é
eu gostaria que fosse. Acho que o mais Importante deste certa: o juiz lê o código, e se ele tiver um é destes. Neste
encontro é discutirmos o que pode ser, concretamente, a sentido , a pesquisa processual civil poderia se limitar a
linha de pesquisa. Eu, particularmente, venho totalmente saber se o Theotonio fez alguma anotação. Quanto a isso
desarmado no que diz respeito a definir o que é Direito. tive uma experiência como professor, em que dei uma prova
Não discutirei o que é Direito ou o método que me parece com consulta ao livro do professor Nelson Nery Junior e,
mais relevante. Falarei sobre como está funcionando, onde retirando aqueles vinte do "gargarejo" que normalmente
vejo problemas e quais soluções me parecem melhores. vão bem, os outros cento e trinta foram mal. Perguntei­
Concordo com o que foi dito pelo Theodomlro quanto me: nem com o código do Nery eles vão bem 7 Descobri
ao complemento que se faz necessário ao processo. O In­ que havia um claro problema de pesquisa. Eles sequer
teressante no processo é que se confunde com a prática abriram o código e, portanto, não sabiam da ferramenta
Judiciária e há mais de uma corrente filosófica, dizendo de pesquisa que era o índice. Pensaram: "eu não conse­
que o Direito se limita a ser a experiência Judiciária. Não guirei ler tudo Isto na hora da prova". Diante do resultado
fui eu que Inventei e o fato de eu concordar ou não com da prova, naquele dia limitei-me a dar uma aula de
isto e quais são as minhas convicções filosóficas são com­ metodologia de pesquisa no código do Nery.
pletamente impertinentes agora. Existe este agravante na De qualquer forma, o Direito não se resume ao códi­
pesquisa do Direito Processual. Também há mais de uma go. Juizados Especial, Cível e Federal estão fora do códi­
corrente filosófica que defende: "Direito é o que o Juiz diz". go, embora na livraria compremos tudo Junto. Pior: o atual
Se o Direito é o que o Juiz diz, af sim a nossa pesquisa do estágio do Código de Processo Civil não está no Código .
processo se confunde com a pesquisa do que é Direito - e. São leis mais recentes que entram no código e, com as
o resto é mera opinião. letras a, b e c misturam tudo - no caso do Processo Civil,
Eu diria que a pesquisa tende a ser multo mal pensa­ Inverte a lógica do próprio Direito Processual. Então, per­
da no Direito Processual, quase desprezada, porque é gunto: qual é o critério ou o que é a pesquisa no Direito
'.BJ
182 Escola de Direito da Fundação Get:i/io Vurgas O que é pesquisa em Direiro ?

Processual? Continua sendo identificar a Lei vigente, este­ embora custosa e pouco realizada, é saber qual é a Lei
ja dentro ou fora do Código, o que já é um grande desafio. vigente. Existe uma tarefa muito próxima do que
Antes, quando as medidas provisórias podiam alterar o Theodomiro coloca: nós temos de identificar o que preci­
Código, era mais difícil. Há correntes que simplesmente sa ser mudado. Fala-se que o processo deve ser mais rá­
se recusam a olhar o novo. O jurista tem duas opções pido, mais eficiente e cogitam-se modificações legislativas.
diante de uma medida provisória (ou lei): ele a aceita e O que falta nas novas leis, que geralmente saem da aca­
estuda ou Juridicamente a recusa afirmando que é demia, é pesquisa empírica. Será que podemos dar mais
inconstitucional e que não passa no teste de validade, não força ao juiz de primeiro grau? Será que ele é confiável?
podendo pertencer ao ordenamento jurídico. Se não nos Não existe pesquisa sobre isto. O processo é demorado,
debruçarmos sobre a identificação do objeto, não sabere­ dizem os jornais, mas em média quanto tempo demora
mos qual é o Direito vigente e teremos sérios problemas. um processo civil? O juiz é ruim para as multinacionais.
Não só é importante, como já é um grande desafio para então vamos apoiar as mediações e arbitragens. Mas o
todos nós que nos debruçamos sobre o Direito Processual. nosso advogado sabe arbitrar, transacionar ou mediar?
A razão é simples: não existe, hoje, no mercado, Código Ou será que o advogado sai das faculdades como um "galo
Processual Civil atualizado. Houve uma radical reforma de briga", formado para o litígio? Também há o problema
no final de 2001, com duas leis, e os códigos saíram em de mercado, do advogado que recebe por tempo e segura
março. Em maio houve uma terceira lei modificadora e as o processo na Justiça. Portanto, falta a pesquisa desses
editoras não tiveram fôlego e dinheiro para reeditar códi­ dados que, muitas vezes, alavancarão oportunas mas pon­
gos. Hoje, quando as editoras estão mandando para as tuais mudanças no Código Processual Civil - sem contar
gráficas seus novos códigos, sai nos jornais outro projeto que as reformas certamente serão mais eficazes.
de lei que rapidamente estará nas mãos do presidente, Existe um outro método de pesquisa, que ocorre com
modificando dois estatutos da tutela antecipada. mais freqüência e que até motivou uma modificação no
É importante tentar definir o que é Direito Processual? Código. Podemos ser jocosos ou até criticá-lo, mas ele
Sim. Para verificarmos que ele não se esgota nos códigos. tem a sua importância. Escritórios grandes comumente
Aqui eu sou multo técnico, porque não me preocupam ago­ destacam um estagiário para Ir, por exemplo, ao Fórum
ra quaisquer conotações filosóficas sobre como encarar o da Fazenda Pública e verificar como os juízes estão de­
processo - isso é o dever ser, que ficará para o final. Es­ cidindo sobre um determinado tributo (se a tese está fun­
sas reformas do Código, ou o que estou chamando de cionando). Isto é uma excrescência, é abominável, no
indefinição do objeto a ser pesquisado, têm um grande entanto acontece. Este levantamento é um dado de pes­
problema que quero evidenciar. A tarefa mais simples, quisa útil, uma jurisprudência de primeiro grau. O aluno
184 Escola de Direito da Fundaçno Getú//o Vargas O que é pesquisa em Direito ? 185

confunde com a maior tranqüilidade Jurisprudência com Vejo apenas uma vantagem no que chamo de sincretismo
qualquer "Julgadinho", por mais temerário ou menorzinho metodológico: a pesquisa pode equivaler à necessidade
que seja, de preferência se for ementa curta e estiver no de fundamentação.
Theotonlo, certamente será Jurisprudência. "Eu citei doze Não sou kelsenlano - e estou ciente das críticas do
Jurisprudências". Puxa, doze Jurisprudências? É mais do Eurico quanto a se afirmar sem sê-lo - mas me agrada
que o Código Civil dá . .Trata-se de doze Julgados, catalo-· multo a figura da moldura Interpretativa. Em suma,
gados, que foram pinçados por conveniência. Um Julgado Kelsen35 fala, fala, fala e, quando se cansa, diz: "quer
não é relevante para o Direito até que se transforme em saber de uma coisa ... a norma do Direito pode ser qual­
jurisprudência. Temos de saber o que é jurisprudência quer coisa, vale tudo, Inclusive aquilo que não se con­
porque é norma de Direito positivo, equivale à possibili­ segue colocar na moldura". Se o juiz for um louco e fizer
dade de os tribunais decidirem monocratlcamente. O bom unl-duni-tê para escolher a norma, rigorosamente fa-:
consultor deve saber o que é jurisprudência porque ela !ando, será aquela. Com todas as licenças poéticas do
autoriza um corte de procedimento. É fundamental distln­ mundo: acho que a pesquisa é capaz de lidar com isto,
gu irmos para que estabeleçamos as premissas desde que com ciência do material desconexo e da ne­
metodológicas do que é a análise da Jurisprudência. cessidade de sistematizá-lo e catalogá-lo para, então,
O grande problema que vejo em o q'ue é pesquisa pro­ decidir o que serve e o que pertence a cada escola. É
cessual, é um absoluto sincretismo metodológico. É por importante definirmos como pesquisa todo o material
isto que o Julgado vira jurisprudência. Qualquer argumento que possa ser útil, pelo menos a título de premissa, para
vale. Não há na doutrina ou na jurisprudência o menor embasar conclusões.
pudor em argumentos, p'rincipalmente no parcial traba­ Gostaria de definir que tipo de escola - e eu gosto da
lho do advogado. Não há pudores filosóficos em citar au­ ênfase no nome escola -, que moral, que ética, que finali­
tores de movimentos completamente distintos dade teremos na EDESP. Seremos concretistas, finalistas,
simplesmente porque uma vírgula é comum aos dois. Se­ abstracionistas, jusnaturallstas, positivistas? Vamos de­
ria como querer explicar a técnica de pintura moderna finir Isto, porque a partir de então estaremos mais tran­
através da barroca. Não se explica, são linguagens que qüilos para a realização de pesquisas de campo ou
não se misturam. Deve-se definir qual será a proposta, a legislação. Até compartilharemos premissas, e com isto
escola e a ideologia para então utilizar com alguma tran­ facilitaremos a vida dos nossos pesquisadores.
qüilidade métodos coerentes entre si. Existe a pena de não
se produzir algo doutrinário, mas o caos, a tentativa de 35 Hans Kelsen ( 1881 - 1973), jurista alemão, autor de Teoria
organizar o caos, ou pior, sistematizá-lo sem entendê-lo. pura do Direito, Martins Fontes, 1987.
186 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas 187
O que é pesquisa em Direito 7

não. Por outro lado, é possível pesquisar sem estudar, pois


PARTE 5.2 muitas vezes alguém já fez a pesquisa por você. Temos o
grande dever e a oportunidade de transmitir o fruto das
PAULA fORGIONI nossas pesquisas para os alunos. Relatarei al;gumas ex­
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo periências feitas com estudantes que foram obrigados a
se dedicar com afinco à investigação e chegar a suas pró­
Raramente se aborda a pesquisa jurídica. É um tema prias conclusões. Tem se mostrado útil fazer com que os
que precisamos discutir, sistematizar e trocar experiências. estudantes se lancem às pesquisas - e não a fiquem ape­
Percebo que todos os que encaram o ensino do direito de nas esperando que alguém (i.e., o professor) conte-lhes
forma responsável e séria estão, de alguma forma, traba­ como é a realidade. O aluno, mesmo de graduação, há de
lhando com essa questão. Entretanto, cada um desenvolve conciliar estudo e pesquisa - não é nossa função ensiná­
metodologias próprias e não é hábito na academia brasi­ lo a usar índices e ler leis em aula.
leira o intercâmbio de conhecimento sobre formas de ensi­ Está na moda falar mal dos manuais. E, se vocês me
no do direito. Talvez não por vontade de ocultar os permitem, já que estamos entre amigos, isso causa profun­
progressos que, às vezes, logramos obter, mas por falta de da revolta. A origem dessa prática é uma idolatria à doutri­
oportunidades, de arenas adequadas à discussão do tema. na e ao material estrangeiros, enquanto se despreza a nossa
Buscando trazer minha colaboração para o debate - tradição, bastante respeitável em Direito Empresarial e
apaixonante, por certo - acredito ser importante darmos Comercial. Possuímos um bom material, porém
destaque a alguns pontos que ainda não foram abordados. desatualizado. No passado; fiz a experiência de conduzir
Antes de tudo, quero defender Kelsen, apesar de não cursos de graduação sem a indicação de qualquer manual,
ser "kelseniana", no sentido pejorativo que essa expres­ e a minha conclusão foi que o aluno precisa de um "corri­
são hoje assumiu [aliás, geralmente fala mal de Kelsen mão" para, pelo menos, um primeiro contato com a maté­
quem não o entendeu]. ria. Na área de Direito Comercial temos manuais de
Não possuo base teórica sobre didática em qualidade, embora desatualizados, como disse. A obra de
metodologia de pesquisa, embora seja ampla minha ex­ Rubens Requião, por exemplo, é preciosa, porém o que não
periência prática propiciada pela FGV e pela LISP. Com podemos esquecer - e embasar nossas críticas nessa visão
base nessa prática, colocarei algumas inquietações e con­ distorcida - é que se trata de um manual, "para ter à mão",
clusões pessoais. e n�o de um tratado. Não é por isso, todavia', que vamos
Inicialmente, eu separaria o estudo da pesquisa. Con­ jogá-la no lixo e dizer que não serve para nada. Serve sim,
tudo, é possível estudar sem pesquisar? A resposta ideal é e por que não os atualizar? Duvido que, se profissionais
188 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito ? 189

experientes e de notório saber lançarem-se à atualização Talvez, para algumas disciplinas, como Filosofia do Di­
dessas obras, não tenhamos um resultado favorável. reito e Direito Romano, não haja a necessidade da vivência
Coincldentemente, fiz esta mesma pergunta aos alu­ prática do docente. Mas não consigo vislumbrar como al­
nos da São Franclsco36 quais professores eles realmente guém pode poreJar a racionalidade dos agentes econômi­
respeitavam. São Juristas bastante conhecidos, com larga cos, que é a mola do Direito Comercial, sem trabalhar.
experiência docente e profissional. Todos eles utilizam ma­ Não há como entender essa racionalidade típica sem man­
nuais {geralmente, mais de um), complementando-os em ter contato com os agentes econômicos movidos por esta
sala de aula e indicando bibliografia extra. Não podemos racionalidade.
ignorar que o aluno vai ter de encontram em algum texto Um exemplo é a Lei das S/A. Consulto esta Lei prati­
uma primeira explicação sobre "o que é ação preferencial". camente todos os dias e, ainda assim, encontro vírgulas
o fato "de indicar tais obras, contudo, não exime o pro­ que não havia notado antes - o que acontece somente quan­
fessor de trazer textos complementares e Instigar o racio­ do vivenciamos um caso concreto. Mesmo a pesquisa aca­
cínio dos estudantes. Devemos usar bons manuais, da dêmica não é - e nem pode ser - dissociada da prática.
tradição brasileira. Ouvi uma palestra de colegas do Rio de Quanto a pesquisa com fins profissionais, esta se
Janeiro que, nesse sentido, me encheu de alegria. Vamos apresenta ligada ao embasamento de ações judiciais, con­
estudar Direito Comparado, que é um dos mais poderosos sultas e pareceres.
instrumentos que temos para a compreensão de nosso sis­ O primeiro tipo é alvo de preconceito, pois, realmen­
tema, mas também vamos estudar a nossa boa tradição, te, os advogados acabam transformando-se. em
principalmente a que temos em Direito Comercial. "buscadores de citações". Pedem ao estagiário que encon­
Feita essa introdução, para que serve a pesquisa? tre alguém que afirme o que ele precisa. Quando comecei
Para podermos enfrentar essa questão, é preciso ter a estagiar lembro que um advogado me disse: "toda peti­
'1 ção precisa de doutrina e Jurisprudência". Então que se
em m�te1.
que há, basicamente, dois tipos de pesquisa Ju-
rídica: aquela com fins acadêmicos e outra ligada ao exer- distorça, corte, mas se deve encontrar "alguma coisa para
cício da atividade profissional dos chamados operadores citar". No entanto, há outro modo de pesquisa para ação
do direito: que é muito mais instigante: estudar o caso, verificar as
Quanto à pesquisa de Direito Comercial com fins aca­ possibilidades e construir a linha a ser defendida.
dêmicos, basta ler qualquer clássico para concluir que tam­ Para a pesquisa relacionada à consultoria, vale o
bém não há academia nesta área sem experiência prática. mesmo pressuposto. No entanto, ela necessariamente é
mais "honesta" , uma vez que o agente econômico está
36 Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. questionando ao "pesquisador" se pode ou como pode
Escola de Direito da Fundação Getr.illo Vinsas O que é pesquisa cm Direito 7
190 191

diminuir o seu risco. Se o empresário, em sua racionalidade que analisa a política p ú blica por ela implementada. Na
peculiar, busca aumentar o grau de segurança e primei ra, estamos em meio a um cipoal, buscando o texto
previsibilidade do ambiente em que atua, é função do con­ normativo vigente e que, eventualmente, Incida sobre o
sultor Indicar o caminho em que as chances de sucesso caso. A segunda, por outro lado, visa a identificar a
são maiores. A pesquisa para consultoria é algo em que implementação de polftlca econômica por Intermédio do
se deveria Investir na Escola, especialmente a boa Direito (e de sua aplicação).
consultoria, neutra, que diz aquilo que o cliente não gos­ Um exemplo: para analisarmos a Lei das S/A é Indis-
taria ouvir. Essa pesquisa traz uma grande responsabili­ pensável identificar o que está por trás dela, ou seja, qual é
dade para o consultor, que diminui Incertezas utilizando a política econômica por ela concretizada. Sob esse p ris­
probabilidades (considerando que, no direito, ao contrá­ ma, podemos perguntar: por que foi retirada a oferta p úbli ­
rio do que querem muitos, há a possibilidade de mais de ca da Lei das S/A, à época das privatizações? Por que se
uma resposta "correta" para o caso concreto). implementava uma política fiscalista e, manti�a a oferta
A terceira forma é a pesquisa para o parecer pro pública, seria mais difícil (e cara) e venda do controle? Por
veritate. Não há outro caminho senão estudar multo para, que, após das privatizações, a lei foi mais uma vez altera­
primeiro, decidir se é possível proferir opinião favorável à da, incluindo-se, novamente, a previsão da ofer�a pública?
posição do consulente. Ouvi comentários aqui que não Quanto à pesquisa doutrinária, peço licença para fa­
entendo justos. Depois que o parecerista realiza profun­ zer uma pergunta: depois de O Poder de Controle, de Fá
do estudo sobre o tema, elabora o texto, o fato de o juiz bio Comparato37, qual seria um grande livro de Direito
concordar ou não concordar com a opinião ali exposta Comercial? Temos os pareceres, não vendidos, mas certa
não é o que deve orientar nossa visão sobre o assunto. mente comprados. Isto faz com que a doutrina existente
O parecer, naturalmente, deve ser consistente para penda para um lado: o dos agentes econômicos. Note-se
embasar a argumentação do advogado, e Isto só se con­ bem: não que os juristas que proferiram parl;!ceres não
segue com uma pesquisa profunda. Confesso que busco acreditem no que escrevem, muito ao contrário. No en­
remover um pouco desse preconceito, porque acredito que tanto, esses trabalhos são encomendados por agentes eco
essas pesquisas podem contribuir para o ensino e apren­ nômicos, ou seja, a matéria pesquisada não é "escolhida"
dizado sobre a matéria. Particularmente, aprendo e aprendi pelo professor, mas sim pelo cliente.
muito pesquisando durante minhas atividades profissio­
nais não acadêmicas. 37 Fablo Konder Comparato, Professor Titular da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, autor de Afirmação His­
Antes de falar da pesquisa Jurisprudencial, porém, é tórica dos Diretros Humanos, Saraiva, 2002 e O Poder·de Contro­
preciso apartar a mera pesquisa "de legislação" daquela le na Sociedade Anônima, Forense, 1983.
192 Escola de Direito dei Fundeiçilo Qetl1/lo Veirgeis O que é pesquisa em Direito 7 193

Para dar um exemplo de doutrina em Direito Empre­ é, na verdade, um sistema baseado em senhas duplas).
sarial, há alguns anos o Prof. Carvalhosa38 , grande Juris­ Verificamos como os tribunais analisavam senhas comuns,
ta. defendeu em parecer que acordo entre acionistas com e descobrimos que as entendiam como uma assinatura.
prazo longo, maior que dez anos, poderia ser denunciado Pesquisamos, então, a função da assinatura desde a Rota
a qualquer tempo. Essa Idéia disseminou-se de tal forma de Gênova. Nosso foco passou a ser a função do docu­
que a mâioria dos advogados receava prever prazo de vi­ mento e da assinatura. Assim, pudemos estudar e Indicar
gência superior a dez anos em acordos de acionistas. qual poderia ser a compreensão dos tribunais em face do
Resta-nos a análise Jurlsprudenclal. Entendo, concor­ novo problema. Tempo passado, acho que nossas previ­
do e temo as críticas que escutei aqui. Vamos apenas re­ sões se concretizaram.
petir Jurl�prudência? Não pode ser. O enfoque coreto é Ainda mais um exemplo: pesquisamos a S/A, com
que a análise Jurlsprudencial deve ser realizada porque patrocínio da FGV, levantando todos os acórdãos dos úl­
está relacionada à busca de segurança e prevlslbllldade, timos vinte anos. Formamos uma equipe de estudantes
além de possibilitar a compreensão do sistema, do direito para reunir os acórdãos e os organizamos por grupos de
vivo. Isso, obviamente, não transforma nosso sistema em principais pontos de conflito das SIA nos tribunais. Em
Common Law, mas por intermédio da pesquisa sistemática cada grupo de decisão fizemos uma análise profunda e
de jurisprudência é possível ver o direito comercial como sistemática da jurisprudência, tendo sido possível perce­
ele é, en�endê-lo para poder formular críticas de forma ber certas tendências. Identificamos uma linha principal e
consistente e responsável. afirmar para onde se direciona.
Peço licença para trazer outro exemplo: quando a O estudo da Jurisprudência não deve ser visto como
Internet.ainda não fazia parte de nosso quotidiano, o di­ algo limitador, ultrapassado e fora de moda, mas como
retor de um banco nos procurou perguntando sobre os um movimento de evolução.
riscos que assumiria ao adotar uma forma de contratação Outro ponto que causa profunda revolta liga-se à
ainda não regulamentada em texto normativo e tampouco constante referência ao "risco Brasil" que derivaria do
analisada pelos tribunais. A preocupação principal liga­ direito brasileiro. Dizem que o sistema Jurídico brasileiro
va-se à assinatura eletrônica. Levantamos tudo o que ha­ "não funciona". Concordo em parte. mas muito desse ris­
via sobre senhas (considerando que a assinatura eletrônica co é atribuído por quem aqui chega para operar e desco­
nhece o nosso sistema. Por exemplo, cláusulas que foram
recortadas de contratos talhados no sistema americano e
38 Modesto Carvalhosa, advogado especlallzado em Direito coladas nos contratos brasileiros. Se uma dessas cláusu­
Societário. autor de Comentários à Lei das Sociedades Anônimas.
4 vols, Saraiva .. las for julgada abusiva, dir-se-á: "o B-rasil está atrasado".
O que é pesquisa em Direito 7 195
194 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargns

Mas quem assim alega, conhece o nos�o sistema 7 Por que o número um da RT, analisarem a evolução jurisprudencial
atrasado? Estamos atrasados porque não aceitamos a clá­ da matéria. Os trabalhos foram de excelente nível. Por exem­
usula americana? Por que temos outros valores para pro­ plo, a evolução do conceito de justa causa para a exclusão
teger? Por que a maioria das sociedades brasileiras é do sócio: penhora de cotas, dissolução parcial. .. Com base
limitada? Somos atrasados porque não aceitamos a nisso, conseguimos entender a dissolução parcirl em S/A,
abusividade da cláusula estrangeira? um dos temas mais atuais. Assistimos aos mesmos argu­
Tomemos o curioso caso julgado pelo ST] 39 sobre mentos das décadas de 40 e 50 brotando agora.
contenda envolvendo a venda do Jogador de futebol Juninho Enfim, a pesquisa jurisprudencial faz com que enten­
Paulista que, à época, estava no ltuano. Esse time de fute­ damos melhor o nosso sistema, a nossa realidade.
bol fez um acordo para que o São Paulo vendesse o passe
do jogador, nos seguintes termos: se este clube vendesse
o Juninho Paulista até o dia tal, o ltuano ganharia um de­ DEBATES
terminado valor. O que fez o São Paulo? Esperou o escoa­
mento do prazo e vendeu o passe posteriormente, sem + Carlos Ari Sundfeld
pagar comissão ao ltuano. A questão foi apreciada pelo Poderíamos perguntar ao professor Theodomiro se
STJ e gravitou em torno da discussão sobre ser ou não ele montaria um curso de Direito Penal com tantas an­
essa cláusula potestativa. Se o STJ dissesse que a cláusu­ gústias e se uma forma não seria usar a pesquisa como
la não era potestativa, mas sim que o São Paulo havia técnica didática. Estamos naquele conflito sobre o que é o
abusado do direito que lhe havia sido assegurado, estar­ Direito; se é uma teoria, uma prática, uma didática.
se-ia diante de reinterpretação de cláusula contratual e o
Recurso Especial não poderia ser admitido. O que se fez? + Eurico de Santi Diniz
Decidiu-se que a cláusula era potestativa. Como ignorar A minha proposta é analisar o que foi dito. Podemos
os efeitos desse precedente sobre a validade de cláusulas aplicar um instrumento de Hans Kelsen que foi desenvolvi­
semelhantes? do por um professor de Pernambuco, chamado Lourival
Voltando a questão do incentivo dos alunos de gradu­ Vilanova40 : o processo de causalidade do Direito, que ca­
ação à pesquisa, tenho Interessante experiência a relatar. sou com os argumentos apresentados pelos três. O Lourlval
Propus que estudantes do 2 ° ano de direito escolhessem partiu de Kelsen, entendendo que a proposta não era de
qualquer tema da teoria do Direito Comercial para, desde
40 Filósofo do direito, Professor na Universidade Federal do Re­
cife, autor de As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positi­
39 Superior Tribunal de Justiça. vo, Max Llmonad, 1997.
196 Escola de Direito da Fundaçllo Getúlio Vargas O que é pesqitlsa em Direito 7 197

uma dogmática, mas de uma teoria formal do Direito que, definirmos o objeto da dogmática em sentido estrito) e a ter­
portanto, era vazia e sem conteúdo específico. É uma teo­ ceira doutrinária (analisar os fatos de interpretação para
ria que monta as estruturas e não dá as respostas - não adi­ suporte legislativo, as teorias Jurídicas e os preenchimentos
anta ter angústia com Kelsen, porque ele delimita, delimita, de sentido feitos pela doutrina em face destes fatos de pro­
sem resolver. A teoria pura é tão delimitada que oferece dução normativa). O suporte factual é multo Importante, afi­
pouco, quase nada: um quase nada que não é condição su­ nal, o Direito incide sobre o fato e, por sua vez, o Direito
ficiente mas é condição necessária para tudo. Retomando, subjetivo depende deste para nascer. Muitas vezes nos res­
esse professor reestruturou Kelsen, seus atos e aplicações tringimos ao Direito, que é delimitado, por ser mais fácil
das normas, e compôs o processo de causalidade do Direi­ acessar a legislação sem compreender o mundo em seu en­
to que está no livro. torno - as operações econômicas, as falências, a contabili­
Há vários momentos que se encaixam no processo dade para trabalhar com Direito Tributário. Olhando somente
de causalidade. A produção legislativa oferece dois as­ a Lei, não é possível aplicá-la adequadamente porque não
pectos: o de análise pré-factual, que determina as condi­ se conhece o fato. Este é o grande campo da interdiscipli­
ções de produção daquela lei, e o de análise pós-factual. naridade que Jean Paul e Paulo Mattos buscam. O quarto
que é o produto daquela lei. A partir da Lei, a doutrina fato orientaria a pesquisa jurisprudencial, revelando a
interpreta e tenta preencher aquelas molduras vazias de prática do Direito e as tendências dos tribunais - possibi­
Kelsen com conceitos. Primeiro fato: produzo a Lei. Se­ litando o aconselhamento dos clientes e o direcionamento
gundo fato: interpreto a Lei. Terceiro fato: a Lei busca incidir de outras pesquisas. Por fim, Theodomiro colocou o as­
sobre uma ação (subsunção). O Tercio menciona e eu não pecto da eficácia da norma, não em sentido estrito (o fato
consigo Imaginar Direito sem subsunção, porque sem ela produzindo as relações jurídicas), mas de sua efetividade,
não há controle. Há um quarto fato, que é o ato de dos efeitos produzidos pela Lei na sociedade. Em suma,
subsunção jurídica das autoridades, ou seja, é a aplica­ aplicando um pouco do "saco vazio" de Hans Kelsen para
ção do Direito ao caso concreto. Reiteradas as decisões, entendermos essa estrutura, temos cinco grandes objetos
serão formadas jurisprudências administrativas e Judici­ de pesquisa. A minha proposta é essa.
ais. Um último fato, é como a sociedade reage àqueles
atos de subsunção jurídica. + Paulo Mattos
Quanto à pesquisa em Direito, temos nestes cinco fatos Eu gostaria de fazer comentários, com algumas ob­
momentos relevantes para a investigação: a primeira seria servações pontuais para cada um. Paula, a única diver­
histórica (em que condições a Lei foi produzida), a segunda gência que temos é com relação ao enfoque - que não é
legislativa (descobrir quais normas estão em vigor; até para claro para mim e, com o que o evento demonstrou, para
198 Escola de Direito da Fundação Getúlio Varsas O que é pesquisa cm Direito ? 199

nenhum de nós. As concordâncias fundamentais estão idéia generalizada quanto a não-utilidade dos traba­
principalmente ligadas às questões dos manuais, dos tipos lhos desenvolvidos no âmbito da Common Law, uma re­
de pesquisa elaborados nos escritórios e da carência de cusa em se adaptar algo de outra realidade. Eu torno
investigações que atualizem os manuais e abranjam áre­ ao problema das medidas provisórias. Vão atrás das
as ainda não abordadas. Acredito que as críticas que ocor­ discussões italianas e francesas, esquecendo que aque­
reram, por exemplo quanto aos manuais, seguiam a sua les sistemas são parlamentaristas, em vez de aprovei­
linha quando os mostrava como referências únicas mes­ tar a experiência semelhante do presidencialismo
mo que pobres em atualização. Faltam trabalhos "de fô­ norte-americano. É claro que não se trata de importar
lego", corno o do professor Cornparato, que interpretam uma realidade diferente; entretanto, imagino que isto
e, com isto, reconstroem a dogmática. Há novos traba­ atravanca a nossa evolução. Quando eu estava na fa­
lhos surgindo, corno o do Munhoz, que traz um pouco de culdade me diziam para não perder tempo estudando
doutrina em Direito Concorrencial para analisar o poder inglês, que não seria útil, e que me concentrasse no fran­
de controle, e o artigo do professor Calixto em Direito cês e no italiano.
Societário. Portanto, ficamos dependentes dos manuais Estou escrevendo um artigo sobre o tema abordado
exatamente por não contarmos com trabalhos como estes. por Cássio; aliás, o título é exatamente sincretismo
O Marcos dizia, e houve um debate interessante em metodológico. Fiquei contente por saber que não sou o
função disto, que o manual forja uma realidade jurídica. único a pensar assim, e triste porque pensei que fui origi­
Não há pesquisa de jurisprudência e, se houvesse, prova­ nal na escolha do tema. Esse é um problema do processo,
velmente elas terminariam comprovando tendências dife­ bem como do Direito Constitucional. Quando se fala em
rentes das que constam no manual. Com isso, novamente métodos, em um inventário crítico escrito por um alemão
entramos na questão da importância de um trabalho de há 25 anos, constatamos que a maioria deles é inaplicável,
atualização. Penso que a crítica aos manuais foi nesse excludente, seja separadamente ou conjuntamente.
sentido. Se pensarmos em doutrinas estrangeiras, temos Um último problema, também comentado pelo
de fazê-lo criticamente, utilizando o Direito Comparado, Ronaldo, é a questão do manual e do parecer. Ontem me
adaptando-as à nossa realidade. manifestei contra os dois, mesmo porque convivo há mui­
to tempo com alguém que utiliza manuais para elaborar
+ Luiz Virgílio pareceres (e os faz de graça), e mantenho que como obras
(Pesquisador Direito GV) de excelência são uma miséria, o desastre da pesquisa
Para começar, é mais fácil compreender o Direito Jurídica no Brasil. Está na hora de percebermos que não
nestes fóruns que na faculdade. Acredito que há uma se deve contar com o manual como base de pesquisa. Boa
Escola de Direito da Fundaçdo Getúlio Vargas O que é pesquisa em Direito 7 201
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parte da péssima produção acadêmica nacional é respon­ pesquisa é, com honrosas exceções, ingênua. Imagino que
sabilidade da hipertrofia do manual e/ou do parecer. nisto as Ciências Sociais são capazes de contribuir.
Em Direito Penal acho que a tendência é pensarmos no
• Ana Lúcia Pastore que não está nos autos, no que está no mundo e Interessa ao
Quero fazer duas colocações, a primeira delas con­ Direito: ou seja, extrapolar as normas - a periferia, por exem­
frontando o que a professora Paula expôs. Acredito que plo, não funciona com leis, vive do narcotráfico. O IBCCRIM
respondeu perfeitamente ao que é o tema deste workshop. é uma associação importante, exatamente porque está In­
Infelizmente, pesquisa em Direito é esse "saco de gatos" vestindo nisto. Algo muito interessante aconteceu no Núcleo
(tudo é pesquisa). Abrimos um jornal para saber quais de Estudos da Violência, há cerca de 4 anos: fizemos uma
filmes estão nos cinemas, e já estamos fazendo pesquisa. pesquisa, com recursos da Comunidade Econômica Euro­
Na minha opinião, é a mesma coisa entrar na Internet para péia, sobre a administração das instituições Jurídicas (Poder
saber qual Lei está em vigor. Você tem uma pergunta e Judiciário, Polícia Militar e Polícia Civil) e suas
através de uma fonte obtém a resposta. Pesquisa acadê­ hierarquizações, sobre como este autoritarismo está aquém
mica é muitíssimo mais que Isso. da Lei. Concluímos pela necessidade de espaço para admi­
O que é pesquisa acadêmica? É uma pergunta nistradores nessas instituições, mesmo que ligados aos qua­
empiricamente, teoricamente embasada por outras pes­ dros do Judiciário. As instituições jurídicas padecem de um
quisas. É bma metodologia crítica que toma as fontes para problema de gerenciamento. O CEBEPEJ1 1 , coordenado pelo
desconstruí-las, pensá-las - porque nenhuma delas é neu­ professor Kazuo Watanabe, foi um núcleo que surgiu exata­
tra. Nós sabemos que a própria jurisprudência, que cha­ mente por conta desta pesquisa do Núcleo de Violência. Cha­
mamos de brasileira, é do sul-sudeste. A Revista dos mamos alguns desembargadores para discutirem essa
Tribunais faz uma triagem, o que cita é pinçado de milha­ questão e, a partir disto, repetiram-se as reuniões iniciadas
res de julgados que, em sua maioria, Ignoramos. Foi bem com o workshop e foi fundado o Núcleo. É fantástico que uma
dito que no Tribunal de Justiça de São Paulo 10% são ca­ pesquisa de Ciências Sociais tenha interagido com o Judiciá­
talogados. rio e que disto tenha se originado um centro de estudos.
Além disso, quando se chega à resposta na pesquisa Há espaço para que estas questões ganhem corpo
acadêmica, inicia-se um feedback com as outras e, com nas faculdades de Direito. À EDESP cabe uma comunica­
as questões que surgirão, os pesquisadores serão provo­ ção mais eficaz entre administradores, professores de Di­
cados para novas pesquisas. É uma grande criação cole­ reito e profissionais das Ciências Sociais. A pesquisa lato
tiva. Acho que o salto qualitativo necessário à pesquisa
41 Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.
em Direito está na metodologia. Quanto a Isto. a nossa
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sensu também pode ser o objetivo de uma faculdade de Investigar com neutralidade - aliás, dedicaram-se real­
Direito; ou seja, formar profissionais que pesquisem en- mente a mostrar a importância de sua cultura e de sua
quanto advogados ou pareceristas. Pesquisa acadêmica sistemática metodológica. A minha intervenção é pela in­
não se confunde com opinião. Devemos entender douto­ sistência no diálogo com as ciências auxiliares.
rado como um título acadêmico para quem quer continu­
ar se dedicando, de preferência integralmente, à pesquisa + (não identificado)
- porque pesquisar demanda tempo, e para isto é preciso A questão da metodologia, que é fundamentai e pre­
dinheiro. Na minha opinião, esta atuação é incompatível cisaremos desenvolver, na minha área (comércio) está em
com uma forte presença no mercado. Manter a excelência aberto, porque eu não consigo sequer identificar como fi­
nas duas atividades é muito difícil. zeram Theodomlro, a Paula ou o Carlos Ari. Não há
metodologia no Brasil para estudar comércio internacio­
+ Esdras Borges Costa nal. Se em Direito Empresarial quem "chuta faz doutri­
Na década de 60, espalhava-se pelos Estados Uni­ na", em comércio Internacional quem abre a boca faz
dos a discussão metodológica questionando, por exem­ Lei. Também senti, desde o começo da minha pesquisa,
plo, qual seria o valor da estatística. Havia um movimento uma preocupação com teoria e prática. Há uma falta de
para revigorar o pensamento teórico. Estou trazendo algo diálogo com os professores no sentido de se fazer uma
específico da minha vivência, que cabe nesta discussão reserva de mercado para a prática. Concordo com a Ana
porque se aborda aqui, também, qual seria a autoridade, Lúcia. quanto ao problema do vínculo total, porque al­
a contribuição que uma pesquisa pode dar - em contra­ guns professores pensam que se difundirem conhecimen­
posição com a teoria. Certa vez criticaram o Parsons, ape­ to eventualmente perderá um potencial mercado de
sar de tudo o que ele trouxe, porque havia feito pouca pareceres, consultas ou clientes.
pesquisa empírica. Esta crítica acabou ajudando toda a Devemos trazer o debate sério para dentro deste nú­
renovação teórica que veio a seguir na Sociologia. Queria cleo de pesquisas, fomentá-las e expor as propostas (mes­
apresentar Isso, porque acho que a questão surgirá mo que estejam em um paper de cinco páginas elaborado
freqüentemente. por um aluno) ao debate.
Quanto à fonte neutra, também foi um enorme pro­
blema na Sociologia. Eia reflete a ingenuidade de muitos + Oscar Vilhena
pesquisadores que pensavam fazer uma pesquisa com Eu parto de perguntas básicas: o que nos trouxe aqui?
grande objetividade filosófica, até que descobriram que O que pretendemos com esta instituição? Desde o início,
mesmo os fundadores da ciência nunca pretenderam o grupo que trabalha com a idéia de constltulr·a faculda-
204 Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargns O que é pesquisa em Direito l 205

de de Direito da FGV têm consciência que é necessário lógicas da ideologia, das razões que motivam aquilo. Não
fornecer instrumental para capacitar profissionais que é um "samba do crioulo doido", como a argumentação
colaborem por uma sociedade mais Justa. Sinto que as Jurídica brasileira: o argumento do Zé das Couves vale
faculdades de Direito nas quais nos formamos e leciona­ tanto quanto o do Kelsen porque, naquele momento, é a
mos não são capazes disto. visão que mais interessa. Isto é ótimo para a advocacia,
Quando discutimos pesquisa, o fazemos porque esta mas não para o professor de Direito.
fundação possui um projeto político maior, de transfor­ Depois deste debate, acho que está claro para todos
mar e propiciar ao mundo do Direito uma parcela de con­ que a aproximação com as outras ciências é importante;
tribuição na reconstrução deste país, na consolidação do no entanto, precisamos reinventar o específico, a pesqui­
que prezamos nele. Esta é a razão: sentimos um descon­ sa em Direito, a ordenação do caos. Parece-me, apesar do
forto. A faculdade de Direito da LISP, que no século XIX Kelsen, que abandonamos uma dimensão essencial: a de
tinha um projeto, formou este país com o qual estamos avaliar o que estamos fazendo aqui. Falta pensar, dos
todos desconfortáveis. Este legado de bacharelismo foi a pontos de vista utilitário e ético, se este Direito é bom, se
contribuição dada por aquela faculdade. Estamos baten­ vale a pena e se está correto. Acho que ninguém aqui pre­
do nessa tecla da pesquisa porque as instituições de hoje tende um unitarismo metodológico; não queremos o
não sâo capazes de posicionar o Direito com destaque na sincretismo, e sim o pluralismo. Cada um deve desenvol­
construção da sociedade que nós almejamos. ver a sua metodologia, embora no caso da elaboração do
Qual é o projeto acadêmico? O que conseguimos ex­ material didático, que começará em janeiro, seja neces­
trair deste workshop? Em primeiro lugar, que o velho mé­ sária clareza e concordância quanto aos objetivos.
todo de se debrnçar sobre as normas jurídicas é
insatisfatório. Precisamos nos relacionar com outras dis­ + Paula Forgioni
ciplinas, conhecer melhor a nossa sociedade, as nossas Quanto ao manual, trata-se de um material didático
Instituições e o impacto que o Direito provoca na socie­ que não é o único ou o mais Importante, porém que
dade. Tudo isto nos abre um campo de pesquisa viabiliza o início do estudo da matéria. Acredito que neste
interdisciplinar, onde se agregam, em especial, a Sociolo­ início de desenvolvimento do material didático temos de
gia e a Ciência Política. A partir de então, nos preocupare­ dar atenção aos manuais, ao que complemente e ao que
mos com o que é específico do Direito. Enquanto algumas instigue à pesquisa. Aqui se falou em incitar a pesquisa, o
pessoas vêem com repugnância os case books americanos, que eu considero central. Mas acho, também, que pode­
eu vejo de maneira oposta: aquilo é uma ordenação do mos conjugar isto com manuais revisados, sem deixar de
caos. Parte-se d.i Jurisprudência traçando-se as linhas lado o que produzimos até agora.
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Não sei como é nas outras áreas, mas em Direito Quando se fala em Kelsen, acho que o mais impor­
Empresarial não vejo onde estaria a solução em se tante é definirmos a "cara" da nossa pesquisa. Métodos
pesquisar em tempo integral. Quem diz isso é vlvante, por­ há vários. Vejo que todos lêem Kelsen mas ninguém apli­
que pesquisar sem conhecimento prático possivelmente ca. Se optarmos, conscientemente, por sermos kelsenianos,
leva a algo estéril. Digo Isto com embasamento histórico, devemos vestir a camisa e nos assumir como tal. A nossa
inclusive de Direito Comparado. Todos os grandes dogmática cria dificuldades para que entendamos outras
comercialistas que tivemos foram grandes advogados. .filosofias� e acho que não basta termos notícia do que é,
Quando eu falo da análise de Julgados, obviamente por exemplo, Sociologia; temos de saber aplicá-la.
estou me referindo a um dos métodos. Também me referi à Sobre a discussão do sincretismo metodológico, o que
análise da política econômica, ou pública. O mito da neu­ achei maravilhosa foi a proposta de pesquisa em tempo
tralidade caiu há muito tempo; por isto, devemos acompa­ integral - só espero que não seja utopia. Não que isto,
nhar as políticas que estão sendo implementadas. A análise somente, baste. O contato com a prática é indispensável.
seria, portanto, um ponto de partida - o que não impede, O professor Esdras falou em estatísticas, e os
em hipótese alguma, uma abordagem crítica; desde que se processualistas, hoje, reclamam da falta delas para
reconheça a não-neutralidade da fonte e a política por trás direcionar certas mudanças. Acontece que todos criticam
das ações. Não devemos pensar que este tipo de pesquisa e as mudanças ocorrem sem as estatísticas, de acordo
clássica, e não ingênua, nos coloca dentro de uma gaiola. com o pensamento individual ou a doutrina. Faz-se com
Conhecer bem o objeto é o primeiro passo para uma crítica base em leituras, ignorando o empirismo. Devemos bus­
fundamentada. Talvez eu tenha transmitido uma impres­ car elementos distantes do Direito para alimentar, com
são de sufocamento do método, mas não é assim.. maior se�urança, um projeto amplo de mudança na inter­
pretação e na sistematização do caos jurídico, Inclusive
+ Cassio Scarpinella Bueno para melhor direcioná-lo.
Eu gostaria de fazer _um fechamento ligado a essa
questão da cultura do manual. Os meios alternativos de + Theodomiro Dias Neto
conflitos, ADRs, por exemplo, estão fora do Código mas Acreâlto que um projeto de pesquisa envolve, também,
não do objeto de processo. Se pegarmos os manuais, es­ a formação de uma comunidade que se torna amiga e que
tarão fora - porque é algo novo, de origem norte-ameri­ dedica o seu tempo nisto. O que nos une aqui é a idéia de
cana. Precisamos de pesquisa sobre isto, e não de fazer melhor, dedicando mais tempo e debatendo mais.
processo, a auxiliadas por outras ciências no desenvolvi­ Falta sabermos como, na minha área, o processo pe­
mento das técnicas. nal está acontecendo na prática. Será ótimo se a FGV for
208 Escola de Direito da Fundaçao Getúllo Vargas

um espaço de percepção, de discussão sobre qual é a re­


alidade das políticas criminais, e para que serve o Direito
Penal como Instrumento da sociedade, sem perder a liga­
ção com a realidade. Trabalhar às cegas, com "achismos",
traz o risco de se utilizar premissas falsas. Acho que o
cruzamento do Direito com uma faculdade de Adminis­
tração Pública pode ser multo útil para nós.

EST E LIVRO FOI COMPOSTO EM TIEPOLO


BOOK 11,5/16 E IMPRESSO EM PAPEL PÓLEN
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