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JAIRO LIMA
Terras potiguares, 2018.
Fábulas de Shoping Center
Jairo Lima
Apresentação
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Fábulas de Shoping Center
Jairo Lima
Sumário
01.Rebelião no Shopping......................................................... 04
03.Parábola Edificante............................................................. 06
08. O Farmacêutico.................................................................. 11
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01 Rebelião no shopping
Logo ume pequena multidão se formou, todos portando lupas alugadas pelo esperto
comerciante, para ver o inusitado espetáculo.
A formiga, como de praxe, fez acrobacias num barbante que figurava um galho de
árvore.
A platéia delirava.
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Grande animal, que podes ver sem inveja até um mall demasiado grande, que seria
dos teus dias se não tivéssemos te acolhido generosamente em nosso bioma? Todos
os dias acercavamo-nos de ti, tomavamos-te o superfluo e te enchiamos de
guloseimas.
E assim, besta e homens, nos divertíamos. Abençoa-me, pois, olho afável e revela ao
meu espírito incansável na busca da mais profunda verdade a fábula em cujo contexto
te inseres. Ao que o doce paquiderme retrucou: Ora, não conheces, por acaso, a fábula
do elefante e da formiga? É a ela que pertenço. Não, respondeu o Intelectual-de-
Shopping, e como estudioso insígne da cultura não posso me contentar com tua
declaração, pois ao espírito perquiridor só a demonstração convence e sacia. Seja,
pois, exclamou o elefante. E, levantando a majestosa pata, esmagou o nosso herói que
se transformou numa poça de sangue e de vísceras que logo foi recolhida e lavada pelo
pessoal da limpeza. E a grande paz retornou ao shopping.
Moral da história: Lê com afinco e vontade para que nenhuma fábula te escape.
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- Vim tocar as partituras de Bach pra violino no shopping para provar que não sou
elitista. E você?
- Vim tocar meu pandeiro no shopping para levar minha arte à elite. Nisso entrou um
intelectual de shopping - entrou na conversa, claro, pois ele já estava no shopping - e
falou, embevecido:
- Fundam-se, fundam-se!
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- Diz-me, jovem ocidental, porque te pões a guardar uma porta fechada?(1) Se ela não
franqueia o acesso a quem quer sair ou entrar, porque te interpões entre ela e os que, como
eu, se avizinham do shopping?
- Esta é uma questão, grande Mestre, sobre a qual não me é dado comentar, pois tenho por
obrigação indeclinável obedecer aos meus superiores.
Neste momento se ouviu enorme estrondo de mãos batendo na porta metálica entre gritos
desesperados de socorro.
Diante disto, o sábio chinês nem se toca, cofia a barba e sorrateiramente se esgueira para
dentro do shopping vazio, sem que o segurança perceba. E lá dentro vive vinte profícuos anos
de meditação e recolhimento (3).
Moral da história: Para o sábio mais vale um Intelectual-de-Shopping com fome do que dois
na praça da alimentação.
(2) Notem que ele não acrescenta “de shopping” , prática, de resto, comum e compreensível
entre os Intelectuais-de-Shopping, sempre em busca de respeito e admiração, embora para o
Segurança, note-se também, isto não faz menor diferença: intelectual é tudo a mesma
merda.
(3) Como ninguém percebeu? O pessoal achava que ele era motoboy do China-in-box.
Corpus da pesquisa:
Cardápio do China-in-Box
Tourist Guide ” Descubra os encantos da China”
“Porta Aberta” de Vicente Celestino, gravação RCA Victor 78 rpm
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Ora, bem ao pé da escada rolante havia uma fonte cujo repuxo, muito alto e esquio, criava
marolinhas na água azul do pequeno lago de paredes de mármore do shopping.
Lá, um impetuoso lobo bebia da água azul e clorada, fazendo com os beiços e a língua aquele
som nauseante que só os lobos e Jack Nicholson sabem produzir porque não tiveram mães
que lhes ensinasse a se comportar à mesa. Nisso, acercou-se uma mansa ovelha que,
guardando distância prudente do temível predador, pôs-se também a beber.
Deu-se o estresse clássico, com o lobo xingando a ovelha de poluidora dos ares, das terras,
das fontes, dos mares.
Ora, respondeu timidamente a ovelha, estou apenas utilizando um recurso natural que está a
disposição de todos os viventes.
Observe, disse o lobo com implacável retórica, que esta é uma fonte artificial de shopping,
não podendo pois ser confundida com um recurso natural.
Tá bom, falou a ovelha, conciliatória, e dirigindo-se à uma mesa, chamou o garçom e pediu
uma água mineral com gás.
A história terminaria aí se o temível predador não se dirigisse à tímida ovina*, exclamando:
Desculpe, querida, mas por uma questão de identidade cultural, postura ideológica e
consistência intelectual, vou ter que devorá-la. Dá licença?
E já ia escancarando a bocarra quando a lanuda pediu-lhe, com um gesto de mão, que
esperasse um pouco e, abrindo o seu notebook wireless escreveu um artigo para o caderno de
cultura do seu jornal.
Clicou no send, sorriu para o lobo, baixou a cabeça e foi devorada sem pressa, como num
ritual.
Moral da história: Como diz a moça da limpeza, Jornalista-Cultural-de-Shopping e
Intelectualde-Shopping bebem na mesma fonte. E a gente é que tem que dar conta da
bagunça.
* A mulher do ovino. Tá certo?
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08) O farmacêutico.
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Ora, um dia no shopping uma formiga falou dessa maneira para o Elefante.
- Chefia, dá para se retirar do recinto? O lugar que você ocupa serviria para uma
colônia de esforçadas formiguinhas.
- Em que tanto vocês se esforçam?
- Ora, a gente procura alimento, leva para o formigueiro que fica num cantinho do
muro do shopping, come, dá comida à Rainha, retira os elefantes da área e phode a
rainha que gera mais formiguinhas. Já você vive de lembranças, pensamentos e mitos,
ocupando o espaço dos mais produtivos. Chega de tirar onda de animal superior,
genial, capacitado a perceber a psique e os surtos comportamentais.
- Tem razão, falou o Elefante. E se retirou tão cabisbaixo e pensativo que, sem sentir,
esmagou cento e vinte e nove formiguinhas, inclusive a que tinha acabado de falar
com ele.
Moral da história: Formigas podem ser predadoras de elefantes. Mas, há sempre o
formicida.
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Numa bela tarde ensolarada de Natal (1) uma bela mocinha de sociedade, usando um belo
chapeuzinho vermelho, adentrou (2) no shopping para comprar preservativos e um livro de
Paulo Coelho.
Após sair da farmácia, dirigia-se à livraria quando avistou uma velha Intelectual-de-Shopping
sentada no chão frio do mall arrodeada de livros.
- Vovó, admirou-se a mocinha, vc deve ser uma intelectual.
- Não se precipite, queridinha, todo ser humano usa o intelecto portanto tenho dúvidas se
existem mesmo intelectuais, ensinou.
A mocinha, ainda mais admirada com tão profunda inteligência, perguntou:
- E como se chama então uma pessoa que vive cercada de livros?
- Isto é relativo. Livros são apenas papeis pintados. Não estou bem certa de que existam livros.
- E shopping, existe?
- Shopping é um comércio e comércio tem também no Alecrim (3) e lá não se chama
shopping. Tudo é relativo.
Aí a mocinha queimou feio (4).
- Ora, porra, e se eu puxasse uma peixeira e lhe cravasse no peito, isto também seria relativo?
- Claro, meu amor, se um jornalista perguntasse ao Tarso Genro, após o meu assassinato, se
estava aumentando a violência no shopping ele diria que não, que está tudo dominado, sendo
o meu passamento um pequeno e normal efeito residual das tensões sociais. E acrescentaria:
vamos abrir um inquérito para apurar se o suposto homicídio ocorreu mesmo no suposto
shopping e foi praticado por uma suposta mocinha com um suposto chapéu vermelho que ia
comprar um suposto livro do suposto escritor Paulo Coelho. Tudo, tudo é relativo. Deixa que
aí a mocinha se emputeceu e puxando uma peixeira afiada (5) cravou-a até o cabo no coração
da velha Intelectual-de-Shopping que estrebuchou, enrijeceu, suspirou e morreu.
Imediatamente chegou o pessoal da limpeza que recolheu o corpo, lavou o sangue, aspergiu
bom-ar e deixou tudo limpo como antes. Aí a Justiça concedeu a nossa heroina o status de
refugiada política, considerando o móvel ideológico do crime. E ela fundou uma ONG que só
no ano passado recebeu 3 bilhões de reais do governo.
Moral da história: Uma coisa é certa: crime é relativo mesmo.
Notas:
1) A cidade, não a festa.
2) Expressão obrigatória na crônica esportiva e policial, como é o caso deste trágico relato.
3) Bairro de Natal.
4) Antigo provérbio potiguar.
5) Não é verossímil que uma mocinha de sociedade saísse de casa armada com uma peixeira,
mas deixa pra lá.
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Pósfácio
“Os seres humanos em várias sociedades, sejam urbanas ou tradicionais, são capazes de
empatia, bondade, até amor, e por vezes podem alcançar notável domínio sobre os desafios
impostos pelo meio ambiente. Mas são capazes também de preservar crenças, valores e
instituições sociais que resultam em crueldade sem sentido, sofrimento desnecessário e
monumental estupidez em suas relações internas, com outras sociedades e com o ambiente
físico onde vivem. As pessoas nem sempre são sábias, e as sociedades e as culturas que elas
criam não são mecanismos de adaptação ideais, perfeitamente projetados para prover
necessidades humanas. É um erro sustentar, como o fazem muitos especialistas, que se uma
população se apega a uma crença ou prática tradicional por muitos anos ela necessariamente
desempenha papel importante em sua vida. As crenças e práticas tradicionais podem ser
úteis, podem até servir como importantes mecanismos de adaptação, mas também podem
ser ineficientes, danosas e até letais.” (antropólogo Robert B. Edgerton)
Na cidade os rumos também se alteram. Ler é crime. O bom é ver televisão e comentar o big
brother. A música é só uma: forró que diga que a mulher é puta e o cabra é corno (ou o
grande comedor). Uma versão para jovens traz o hip hop questionador das periferias de São
Paulo e o funk da foda do Rio de Janeiro. Mas, contra esse tsunami de apatia em relação ao
pensar há quem resista: os intelectuais.
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Intelectual, na acepção comum, é quem faz jus ao adjetivo Homo sapiens sapiens. Ledo
engano. Hoje é um bicho em flagrante e crescente extinção. Os óculos, os livros, as conversas
de conteúdo,... Tudo indo às favas. E por osmose, as livrarias que não vivem de livros didáticos
e de auto-ajuda. Um segmento das livrarias, contudo, vem sobrevivendo nesse mercado
global e banal: as livrarias que estão irmanadas às praças de alimentação de shoppings
centers.
01) Freqüente assiduamente os shoppings, particularmente nos horários de almoço. Isso fará
de você uma pessoa notada. Se tiver e puder, leve o notebook e fique papeando na net. Claro,
sempre fazendo uma cara séria (mesmo que esteja em sites pornográficos) e com aqueles
óculos de leitura que são vendidos na farmácia do shopping e que custam menos de 20 reais.
Não precisa ter grau. Mas tem que estar de óculos.
02) Faça amizade com os vendedores das livrarias locais. É importante que quando você
chegue lá seja recebido com um grande sorriso e um aperto de mão. Isto pode valer muitos
pontos, caso esteja por lá alguém sério querendo comprar um lançamento literário.
03) Trabalhe muito e compre uma camisa pólo da marca Lacoste. Isto é fundamental: o jacaré,
símbolo máximo do glamour, trará olhares pra você. Nem que seja por inveja, alguém irá
notar a sua presença. Depois, caso você não tenha um perfil étnico de freqüentador de
shopping Center isso lhe evitará problemas com vendedoras de classe média decadente e,
evidentemente, com os seguranças.
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04) Compre, preferencialmente em um sebo, um livro de Saramago – isto para dar a idéia de
que este é manuseado. Não se preocupe: você não precisa ler. Nem a orelha. Basta tê-lo
embaixo do braço e fazer as pessoas notarem. Mais fácil: veja o filme recente “Ensaio sobre a
cegueira” (também não precisa ver todo) e com ar blasé diga: _é, eu vi o filme, mas nada que
se compare ao que está escrito. Caso queira pegar pesado, consiga na net o comentário de
alguém, decore uma frase de efeito ou apenas diga: _é uma obra que trata da complexidade
do homem de forma atemporal e única.
05) Por último, nada de ter um look underground ou de comunista dos anos 80. Portanto,
mantenha os cabelos curtos, use perfume e esteja sempre sorridente.
Felicidades antropológicas.
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