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FÁBULAS DE SHOPPING CENTER

JAIRO LIMA
Terras potiguares, 2018.
Fábulas de Shoping Center
Jairo Lima

Apresentação

Em conversas regadas a vinho e óperas falar de poesia e literatura era parte da


vibe que acontecia com muita frequência. Quem conhece Jairo Lima sabe de sua
sede conhecimento. Por isso, sabedoria e talento criativo não lhe faltavam...
mesmo que pra coisas (aparentemente ) simples e engraçadas.

Numa dessas conversas falámos da edição de uma brochura risível e, ao menos,


reflexiva à vida. A filosofia sempre entranhada em discursos e atitudes.

As fábulas de Shopping Center são, na realidade, o acervo de contos de Jairo


Lima publicados em seu site INFÂMIA, que agregava poetas e amigos e suas
publicações. A ideia de colocar como posfácio o resultado de uma discussão
(acalorada e etílica) sobre antropologia do consumo, publicidade, mediocridade
e liquidez humana partiu do próprio Jairo Lima – o que somente me envaideceu.

Na realidade é uma coletânea de fábulas saudáveis, irônicas e INFAMES – bem


ao estilo do Poeta.

Viva Jairo Lima!

Geraldo Barboza de Oliveira Junior

Natal, Setembro de 2018.

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Sumário

01.Rebelião no Shopping......................................................... 04

02.Pequena Fábula Exemplar à Maneira do Zaratustra de


Friedrich Nietzsche............................................................. 05

03.Parábola Edificante............................................................. 06

04.O Velho Sábio Chinês.......................................................... 07

05. O Sanduba Neoliberal........................................................ 08

06. O Lobo e a Ovelha.............................................................. 09

07. O Filho Pródigo – Revisitada ............................................. 10

08. O Farmacêutico.................................................................. 11

09. O Elefantinho e a Formigona............................................. 12

10. Duchamp e as Moscas........................................................ 13

11. A Raposa e o Shopping....................................................... 14

12. Chapeuzinho Vermelho...................................................... 15

Posfácio: Brevíssimo Manual para se tornar um intelectual de Shopping


Center.............................................................................................................
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01 Rebelião no shopping

Encontraram-se no mall de um grande shopping center uma cigarra, uma formiga e um


Intelectual-de-Shopping . Por ali se apresentava também, numa banca colorida, um
domador com o seu circo de pulgas.

Ora, ao ver o minúsculo trio os olhos do domador brilharam de cobiça.

E ele resolveu incorporar a cigarra a formiga e o Intelectual-de-Shopping ao seu


liliputiano show.

Logo ume pequena multidão se formou, todos portando lupas alugadas pelo esperto
comerciante, para ver o inusitado espetáculo.

As pulgas, como de praxe, saltaram.

A cigarra, como de praxe, cantou.

A formiga, como de praxe, fez acrobacias num barbante que figurava um galho de
árvore.

A platéia delirava.

Até que o Intelectual-de-Shopping, como de praxe, declamou o seu novo poema.

Então a multidão, enfurecida e entediada, rompeu em altos brados: dá-nos, Domador,


as pulgas, as cigarras e as formigas. Mas afasta este outro ser minúsculo e desprezível
do nosso show.

Moral da história: Shopping não é lugar para intelectual.

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02) Pequena fábula exemplar à maneira do Zaratustra


de Friedrich Nietzsche
Um dia um elefante afastou-se do seu circo, e do picadeiro do seu circo, e foi-se para o
shopping center. Lá desfrutou de restos de lanche e pipocas sem se cansar durante
largos anos. Variaram, porém, seus sentimentos e um dia contemplando os corredores
apinhados de gente veio-lhe a saudade da pátria e de suas savanas e desejou de novo
a ampla e silenciosa solidão dos descampados.

Foi então que dele se aproximou um Intelectual-de-Shopping e falou-lhe mais ou


menos desta maneira.

Grande animal, que podes ver sem inveja até um mall demasiado grande, que seria
dos teus dias se não tivéssemos te acolhido generosamente em nosso bioma? Todos
os dias acercavamo-nos de ti, tomavamos-te o superfluo e te enchiamos de
guloseimas.

E assim, besta e homens, nos divertíamos. Abençoa-me, pois, olho afável e revela ao
meu espírito incansável na busca da mais profunda verdade a fábula em cujo contexto
te inseres. Ao que o doce paquiderme retrucou: Ora, não conheces, por acaso, a fábula
do elefante e da formiga? É a ela que pertenço. Não, respondeu o Intelectual-de-
Shopping, e como estudioso insígne da cultura não posso me contentar com tua
declaração, pois ao espírito perquiridor só a demonstração convence e sacia. Seja,
pois, exclamou o elefante. E, levantando a majestosa pata, esmagou o nosso herói que
se transformou numa poça de sangue e de vísceras que logo foi recolhida e lavada pelo
pessoal da limpeza. E a grande paz retornou ao shopping.

Moral da história: Lê com afinco e vontade para que nenhuma fábula te escape.

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03) Parábola edificante.

Dois músicos se encontraram na praça de eventos de um shopping. O primeiro tocava


violino e o segundo pandeiro.

-Que é que você veio fazer aqui?

- Vim tocar as partituras de Bach pra violino no shopping para provar que não sou
elitista. E você?

- Vim tocar meu pandeiro no shopping para levar minha arte à elite. Nisso entrou um
intelectual de shopping - entrou na conversa, claro, pois ele já estava no shopping - e
falou, embevecido:

- Fundam-se, fundam-se!

Aí o segurança, que era um homem do povo, pegou os três e os expulsou do


shoppping.

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04) O velho sábio chinês


Certo dia, quase à hora de abrirem-se as portas do shopping, apresentou-se ao segurança um
velho sábio chinês que lhe falou deste modo:

- Diz-me, jovem ocidental, porque te pões a guardar uma porta fechada?(1) Se ela não
franqueia o acesso a quem quer sair ou entrar, porque te interpões entre ela e os que, como
eu, se avizinham do shopping?

- Esta é uma questão, grande Mestre, sobre a qual não me é dado comentar, pois tenho por
obrigação indeclinável obedecer aos meus superiores.

A estas palavras o velho sábio se inclinou profundamente diante do segurança, juntou as


mãos sob a barbicha que lhe adornava o queixo e rezou antigas orações.

Neste momento se ouviu enorme estrondo de mãos batendo na porta metálica entre gritos
desesperados de socorro.

-Abram, sou um intelectual(2), passei a noite trancado no shopping e estou morrendo de


fome.

O segurança mais que depressa levanta a ruidosa porta e um Intelectual-de-Shopping,


exânime e ensangüentado, lança-se nos seus braços e desfalece.

Diante disto, o sábio chinês nem se toca, cofia a barba e sorrateiramente se esgueira para
dentro do shopping vazio, sem que o segurança perceba. E lá dentro vive vinte profícuos anos
de meditação e recolhimento (3).

Moral da história: Para o sábio mais vale um Intelectual-de-Shopping com fome do que dois
na praça da alimentação.

Notas: (1) Vejam só a onda do malandro.

(2) Notem que ele não acrescenta “de shopping” , prática, de resto, comum e compreensível
entre os Intelectuais-de-Shopping, sempre em busca de respeito e admiração, embora para o
Segurança, note-se também, isto não faz menor diferença: intelectual é tudo a mesma
merda.
(3) Como ninguém percebeu? O pessoal achava que ele era motoboy do China-in-box.
Corpus da pesquisa:
Cardápio do China-in-Box
Tourist Guide ” Descubra os encantos da China”
“Porta Aberta” de Vicente Celestino, gravação RCA Victor 78 rpm

Press release da Globo sobre a nova novela (sic) Caminhos da China.


Best-seller “Construa o seu mundo em qualquer parte do mundo” de Edmund O'Brien.

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05) O sanduba neoliberal

Na praça da alimentação um Intelectual-de-Shopping examinava o seu X-Tudo, antes de


devorá-lo, quando notou uma formiguinha passeando sobre o alface em direção ao queijo.
Indignado com o que lhe parecia mais um sacanagem do capitalismo consumista e neoliberal,
emputeceu-se com o sanduba, com a cobertura da Globo à eleição americana, com a
politização do STF, com a Veja, com o bloqueio à Cuba, com a farsa do mensalão e pensou em
mandar um e-mail pro Mino Carta, quando lhe ocorreu adotar uma atitude mais pragmática e
radical.
E assim, armou-se de indignação e dirigiu-se ao Segurança , falando-lhe deste modo:
Diga aí, companheiro, tá certo uma coisa dessa?
O Segurança tomou-lhe delicadamente o sanduba, deu uma cheiradinha e devorou-o com
apetite, limpando a boca com o dorso das mãos. Fez uma pausa pra abafar um arroto, lambeu
discretamente os beiços e produziu a seguinte reflexão:
Faltou mostarda, um nadinha. O doutor tem razão.
Moral da história: Você nem notou, mas quem se phodeu neste debate ideológico foi a
formiguinha

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06) O Lobo e a Ovelha

Ora, bem ao pé da escada rolante havia uma fonte cujo repuxo, muito alto e esquio, criava
marolinhas na água azul do pequeno lago de paredes de mármore do shopping.
Lá, um impetuoso lobo bebia da água azul e clorada, fazendo com os beiços e a língua aquele
som nauseante que só os lobos e Jack Nicholson sabem produzir porque não tiveram mães
que lhes ensinasse a se comportar à mesa. Nisso, acercou-se uma mansa ovelha que,
guardando distância prudente do temível predador, pôs-se também a beber.
Deu-se o estresse clássico, com o lobo xingando a ovelha de poluidora dos ares, das terras,
das fontes, dos mares.
Ora, respondeu timidamente a ovelha, estou apenas utilizando um recurso natural que está a
disposição de todos os viventes.
Observe, disse o lobo com implacável retórica, que esta é uma fonte artificial de shopping,
não podendo pois ser confundida com um recurso natural.
Tá bom, falou a ovelha, conciliatória, e dirigindo-se à uma mesa, chamou o garçom e pediu
uma água mineral com gás.
A história terminaria aí se o temível predador não se dirigisse à tímida ovina*, exclamando:
Desculpe, querida, mas por uma questão de identidade cultural, postura ideológica e
consistência intelectual, vou ter que devorá-la. Dá licença?
E já ia escancarando a bocarra quando a lanuda pediu-lhe, com um gesto de mão, que
esperasse um pouco e, abrindo o seu notebook wireless escreveu um artigo para o caderno de
cultura do seu jornal.
Clicou no send, sorriu para o lobo, baixou a cabeça e foi devorada sem pressa, como num
ritual.
Moral da história: Como diz a moça da limpeza, Jornalista-Cultural-de-Shopping e
Intelectualde-Shopping bebem na mesma fonte. E a gente é que tem que dar conta da
bagunça.
* A mulher do ovino. Tá certo?

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07) O Filho Pródigo - Revisitada.

Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai:


-Pai, dá-me a parte da herança que me cabe.
E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus
haveres, o filho mais jovem partiu para um shopping e ali dissipou sua herança em
lanchonetes, butiques, jogos, cinemas, lan-houses, self-services, livrarias e outras
devassidões.
Um dia, saudoso, foi ao encontro de seu pai. Ele estava ainda longe, quando o seu pai
o viu, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de
beijos. O filho, então, disse-lhe:
- Pai, torrei a grana e estou na pior. Já não sou digno de tua consideração.
Mas o pai disse: - Que nada, você arrasou na Ana Maria Braga, filho, e estou muito
muito satisfeito com a bufunfa que investi em você.
Disse então aos servos:
- Ide depressa ao shopping e trazei o melhor hamburger, roupas das melhores
etiquetas, bebidas, mulheres e sapatos de marca. Pois este meu filho vivia anônimo e
se tornou celebridade; estava perdido e pela mídia foi encontrado!
E começaram a festa. Seu filho mais velho estava na biblioteca. Quando voltava ouviu
músicas e danças. Chamando um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este
lhe disse:
- É teu irmão que voltou e teu pai organizou a maior farra.
Então ele ficou com muita raiva e não queria entrar. Seu pai saiu para suplicar-lhe. Ele
porém, respondeu a seu pai:
- Há tantos anos eu te sirvo, sou estudioso, sério, culto e nunca me deste um Logan
para festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que se tornou um
Intelectual-deShopping, devorou teus bens frequentando encontros de escritores,
vernissages de dondocas, blogs de futilidades culturais e se tornando curador de
bienais, e para ele fazes esta festa!
Mas o pai lhe disse:
- Filho, tu és esforçado e sério, tens quinze livros escritos, doutorado, currículos de
duzentas páginas, os cambau, mas não és famoso nem apadrinhado. Mas teu irmão,
que mal sabe ler, vai ser entrevistado no Jô Soares e aparecer no BBB. Então, fica na
tua, Mané. E vê se não me torra o saco!
Moral da história: Em terra de shopping quem tem Lacoste é rei.

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08) O farmacêutico.

Quis o destino, que tudo comanda e dispõe, que um Farmacêutico e um Intelectual-


deShopping se encontrassem no mall de um grande shopping center. Logo que avistou
o Farmacêutico, o Intelectual-de-Shopping dele se aproximou exclamando:
- Agradeço aos deuses que te puseram no meu caminho, ó homem sensato. Aqui está
o meu último poema experimental para que o leias.
O Farmacêutico desdobrou respeitosamente o papel que lhe apresentavam e leu o
poema sem proferir palavra. Em seguida, enrolou a xerox como se fora um manuscrito
do mar morto e o devolveu ao Intelectual-de-Shopping dizendo:
- Agora que li o teu poema experimental, ó iluminado, prova do meu remédio
experimental. E entregou-lhe um pequeno frasco com uma poção esverdeada.
O Intelectual-de-Shopping bebeu a droga, caiu morto e foi retirado do mall pelos
funcionários da limpeza.
Moral da história: Quem com experimentalismo fere, com experimentalismo será
ferido.

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09) O elefantinho e a formigona

Ora, um dia no shopping uma formiga falou dessa maneira para o Elefante.
- Chefia, dá para se retirar do recinto? O lugar que você ocupa serviria para uma
colônia de esforçadas formiguinhas.
- Em que tanto vocês se esforçam?
- Ora, a gente procura alimento, leva para o formigueiro que fica num cantinho do
muro do shopping, come, dá comida à Rainha, retira os elefantes da área e phode a
rainha que gera mais formiguinhas. Já você vive de lembranças, pensamentos e mitos,
ocupando o espaço dos mais produtivos. Chega de tirar onda de animal superior,
genial, capacitado a perceber a psique e os surtos comportamentais.
- Tem razão, falou o Elefante. E se retirou tão cabisbaixo e pensativo que, sem sentir,
esmagou cento e vinte e nove formiguinhas, inclusive a que tinha acabado de falar
com ele.
Moral da história: Formigas podem ser predadoras de elefantes. Mas, há sempre o
formicida.

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10) Duchamp e as moscas

Ao fim de penosa labuta a Moça da Limpeza preparava-se para verter o conteúdo do


enorme saco preto do lixo no depósito principal do shopping, quando ouviu um
pavoroso clamor que se aproximava.
- Pare em nome de Duchamp!
A Moça, muito assustada voltou-se tão abruptamente que despejou todo o conteúdo
do saco no chão imaculado e brilhante.
- Deixe como está, deixe como está, berrava o Intelectual-de-Shopping . Você acabou
de criar uma instalação. Isso que jaz aos seus pés é pura arte, não se mexa, não se
coce, não se atreva.
- ???
- Usar lixo na arte tem um significado estético e ético. Você criou uma grande obra
num momento específico.
A Moça foi na onda do ready made, deixou o lixo onde estava, a carniça tomou conta,
moscas sorriam e voavam e aí o administrador, vendo aquela milacria, mandou botar o
lixo no lixo e a Moça no olho da rua.
Moral da história: shopping não é bienal e quem disso não cuida acaba mal.

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11) A raposa e o shopping

Passeando (deambulando) pelo shopping, um intelectual-de-shopping viu uma uva


verde sobre uma frondosa raposa, num dos cantos mais afastados, longe das praças de
evento e de alimentação.
- O que faz esta uva fora da praça de alimentação?, perguntou o intectual -de-
shopping, com ar severo, para a raposa.
- Ora, respondeu a Astuciosa, não seria mais estranho encontrar uma raposa num
shopping?
- Tudo normal, tudo dominado, falou o intelectual de shopping, e retirou-se
preocupado, triste, deprimido, exclamando:
- Uvas fora da praça de alimentação! Onde é que este shopping vai parar?
Moral da história: multiculturalismo serve para raposas, mas não para uvas.

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12) Chapeuzinho Vermelho

Numa bela tarde ensolarada de Natal (1) uma bela mocinha de sociedade, usando um belo
chapeuzinho vermelho, adentrou (2) no shopping para comprar preservativos e um livro de
Paulo Coelho.
Após sair da farmácia, dirigia-se à livraria quando avistou uma velha Intelectual-de-Shopping
sentada no chão frio do mall arrodeada de livros.
- Vovó, admirou-se a mocinha, vc deve ser uma intelectual.
- Não se precipite, queridinha, todo ser humano usa o intelecto portanto tenho dúvidas se
existem mesmo intelectuais, ensinou.
A mocinha, ainda mais admirada com tão profunda inteligência, perguntou:
- E como se chama então uma pessoa que vive cercada de livros?
- Isto é relativo. Livros são apenas papeis pintados. Não estou bem certa de que existam livros.
- E shopping, existe?
- Shopping é um comércio e comércio tem também no Alecrim (3) e lá não se chama
shopping. Tudo é relativo.
Aí a mocinha queimou feio (4).
- Ora, porra, e se eu puxasse uma peixeira e lhe cravasse no peito, isto também seria relativo?
- Claro, meu amor, se um jornalista perguntasse ao Tarso Genro, após o meu assassinato, se
estava aumentando a violência no shopping ele diria que não, que está tudo dominado, sendo
o meu passamento um pequeno e normal efeito residual das tensões sociais. E acrescentaria:
vamos abrir um inquérito para apurar se o suposto homicídio ocorreu mesmo no suposto
shopping e foi praticado por uma suposta mocinha com um suposto chapéu vermelho que ia
comprar um suposto livro do suposto escritor Paulo Coelho. Tudo, tudo é relativo. Deixa que
aí a mocinha se emputeceu e puxando uma peixeira afiada (5) cravou-a até o cabo no coração
da velha Intelectual-de-Shopping que estrebuchou, enrijeceu, suspirou e morreu.
Imediatamente chegou o pessoal da limpeza que recolheu o corpo, lavou o sangue, aspergiu
bom-ar e deixou tudo limpo como antes. Aí a Justiça concedeu a nossa heroina o status de
refugiada política, considerando o móvel ideológico do crime. E ela fundou uma ONG que só
no ano passado recebeu 3 bilhões de reais do governo.
Moral da história: Uma coisa é certa: crime é relativo mesmo.
Notas:
1) A cidade, não a festa.
2) Expressão obrigatória na crônica esportiva e policial, como é o caso deste trágico relato.
3) Bairro de Natal.
4) Antigo provérbio potiguar.
5) Não é verossímil que uma mocinha de sociedade saísse de casa armada com uma peixeira,
mas deixa pra lá.

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Pósfácio

Brevíssimo Manual para se tornar um intelectual de Shopping Center


Geraldo Barboza de Oliveira Junior

“Os seres humanos em várias sociedades, sejam urbanas ou tradicionais, são capazes de
empatia, bondade, até amor, e por vezes podem alcançar notável domínio sobre os desafios
impostos pelo meio ambiente. Mas são capazes também de preservar crenças, valores e
instituições sociais que resultam em crueldade sem sentido, sofrimento desnecessário e
monumental estupidez em suas relações internas, com outras sociedades e com o ambiente
físico onde vivem. As pessoas nem sempre são sábias, e as sociedades e as culturas que elas
criam não são mecanismos de adaptação ideais, perfeitamente projetados para prover
necessidades humanas. É um erro sustentar, como o fazem muitos especialistas, que se uma
população se apega a uma crença ou prática tradicional por muitos anos ela necessariamente
desempenha papel importante em sua vida. As crenças e práticas tradicionais podem ser
úteis, podem até servir como importantes mecanismos de adaptação, mas também podem
ser ineficientes, danosas e até letais.” (antropólogo Robert B. Edgerton)

A Antropologia em uma de suas divisões, a antropologia urbana, busca entender os


fenômenos que ocorrem como resultantes do convívio do homo sapiens sapiens em
ambientes que se caracterizam por uma dicotomia em relação ao ambiente rural.
A urbanização crescente criou uma nova categoria em termos de ocupação social e cultural
dos territórios: o ambiente ru-urbano. Uma junção de categorias relacionadas ao viver urbano
e rural. É a tal da globalização chegando à roça. As famílias da zona rural vão à feira semanal:
os pais vão vender sua produção agropecuária; os filhos vão à lan house; os homens vão
tomar cachaça; e, as mulheres vão comprar um edredom ou uma capa para o sofá. E por aí
vai.

Na cidade os rumos também se alteram. Ler é crime. O bom é ver televisão e comentar o big
brother. A música é só uma: forró que diga que a mulher é puta e o cabra é corno (ou o
grande comedor). Uma versão para jovens traz o hip hop questionador das periferias de São
Paulo e o funk da foda do Rio de Janeiro. Mas, contra esse tsunami de apatia em relação ao
pensar há quem resista: os intelectuais.

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Intelectual, na acepção comum, é quem faz jus ao adjetivo Homo sapiens sapiens. Ledo
engano. Hoje é um bicho em flagrante e crescente extinção. Os óculos, os livros, as conversas
de conteúdo,... Tudo indo às favas. E por osmose, as livrarias que não vivem de livros didáticos
e de auto-ajuda. Um segmento das livrarias, contudo, vem sobrevivendo nesse mercado
global e banal: as livrarias que estão irmanadas às praças de alimentação de shoppings
centers.

Essa junção literogastronômica em um lugar comum vem subsidiada por atitudes


comportamentais próprias. Atitudes estas que pretendem configurar um novo personagem: o
intelectual de shopping. Ele vai comer porcarias em um fast food, e fingir que ler em uma
library. Neste último, também acontecem eventos de lançamentos de livros de auto-ajuda e
correlatos. Lança-se uma moda que implica em uma nova postura para ser notado, agora,
como um intelectual nessa nova configuração social.

Na condição de antropólogo, bisbilhoteiro desse novo modus vivendi, e querendo contribuir


para a felicidade geral dessa nova geração de micróbios humanos, venho expor a solução
antropológica para se tornar um legítimo Intelectual de Shopping Center. Assim, basta seguir
as regras abaixo:

01) Freqüente assiduamente os shoppings, particularmente nos horários de almoço. Isso fará
de você uma pessoa notada. Se tiver e puder, leve o notebook e fique papeando na net. Claro,
sempre fazendo uma cara séria (mesmo que esteja em sites pornográficos) e com aqueles
óculos de leitura que são vendidos na farmácia do shopping e que custam menos de 20 reais.
Não precisa ter grau. Mas tem que estar de óculos.

02) Faça amizade com os vendedores das livrarias locais. É importante que quando você
chegue lá seja recebido com um grande sorriso e um aperto de mão. Isto pode valer muitos
pontos, caso esteja por lá alguém sério querendo comprar um lançamento literário.

03) Trabalhe muito e compre uma camisa pólo da marca Lacoste. Isto é fundamental: o jacaré,
símbolo máximo do glamour, trará olhares pra você. Nem que seja por inveja, alguém irá
notar a sua presença. Depois, caso você não tenha um perfil étnico de freqüentador de
shopping Center isso lhe evitará problemas com vendedoras de classe média decadente e,
evidentemente, com os seguranças.

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04) Compre, preferencialmente em um sebo, um livro de Saramago – isto para dar a idéia de
que este é manuseado. Não se preocupe: você não precisa ler. Nem a orelha. Basta tê-lo
embaixo do braço e fazer as pessoas notarem. Mais fácil: veja o filme recente “Ensaio sobre a
cegueira” (também não precisa ver todo) e com ar blasé diga: _é, eu vi o filme, mas nada que
se compare ao que está escrito. Caso queira pegar pesado, consiga na net o comentário de
alguém, decore uma frase de efeito ou apenas diga: _é uma obra que trata da complexidade
do homem de forma atemporal e única.

05) Por último, nada de ter um look underground ou de comunista dos anos 80. Portanto,
mantenha os cabelos curtos, use perfume e esteja sempre sorridente.

Felicidades antropológicas.

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