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corpo e cidade:

desafios da formação humana frente à precariedade


Lílian do Valle

…nunca houve humano sem o sentido, não apenas de seu corpo, mas de sua
individualidade ao mesmo tempo espiritual e corpórea1
Meu corpo é contradição 2

Um corpo ausente?

Na história das práticas educativas, o lugar reservado ao corpo foi e continua sendo
marcado por uma incontornável ambiguidade: sendo o primeiro e mais imediato fiador
da presença, ele é aquele que, desde o início, está destinado a desaparecer. Pois sua
“ausência” marca, na maior parte do tempo, o sucesso da empreitada formativa, cujo
objetivo central, no que lhe diz respeito, é, como sabemos pelo menos desde Foucault, o
disciplinamento e o controle3. E, sobretudo no trato com os recém-chegados, a
turbulenta imediatez deve ser neutralizada, de forma que, ali onde estava o ímpeto
corpóreo seja, agora, a atenção e a disposição mental para a aquisição de novos hábitos
e conhecimentos.
Assim, é forte a tentação de caracterizar o corpo como o grande ausente, mas talvez a
metáfora do silêncio lhe conviesse melhor: no percurso escolar, é preciso que os
sentidos progressivamente se calem, para que se possa instalar a potência da cognição.
E, isso, já que, como diz a teoria largamente adotada no campo da educação, uma bem-
sucedida exploração do período sensório-motor deverá conduzir a uma nova etapa, em
que as operações mentais poderão enfim se realizar livremente. Até lá, porém, será
preciso cuidar para que o ponto de apoio da aprendizagem não se transforme em
empecilho: e, em nome da socialização, ergue-se a necessidade de acostumar o corpo a
habitar o espaço comum de acordo com as regras preestabelecidas de convivência e de
disciplina.
Mas é claro que este retrato idealizado diz mais sobre intenções e expectativas que se
enraízam na tradição moderna e que se mantêm até aqui razoavelmente íntegras, do que
sobre as enormes e sempre crescentes dificuldades que lhes opõe o cotidiano de nossas
escolas: mas é não exatamente dessa distância que convém, finalmente, falar?
Falar, por exemplo, do que podemos chamar de «sujeito isolado», esse tipo
antropológico central da Modernidade e típico da escola que, nesse momento, se
1
Marcel Mauss, Uma categoria do espírito humano : a noção de pessoa, a de “eu”, in Sociologia e antropologia. São Paulo, Ubu,
2017, p. 371.
2
Paul Valéry, «Tel Quel», in Œuvres, p. 519.
3
Michel Foucault, Vigiar e punir. Petrópolis : Vozes : 1984.
instituiu; e, para tanto, denunciar as clivagens que cimentaram e continuam a cimentar,
no campo das imagens de que se servem as práticas formativas: corpo x alma, interior x
exterior, razão x experiência, pensamento (consciência) x atividade (movimento), eu
(individuação) x outro (socialização)… denunciar, assim, o abandono das dimensões da
sensibilidade, dos afetos e do enraizamento social e histórico. Ora, essas clivagens têm,
todas elas, como ponto de origem e de confluência a oposição corpo x alma que, desde a
Antiguidade, se forjou como marca absoluta do pensamento ocidental.
No entanto, o corpo está por toda parte: ele é aquele que «está irreparavelmente aqui»
onde estou, eu que não «posso me deslocar sem ele»4; ele é, porém, ou exatamente por
isso, aquele que tantas utopias desde Platão inutilmente tentaram superar. E eis que,
mais recentemente, o sonho de libertação dessa materialidade limitadora que assombrou
a busca do saber, desse corpo-prisão-do-aqui-e-agora já parece possível em um mundo
tornado, pela tecnologia, virtual: novos tempos são anunciados, nos quais as distâncias e
as imposições temporais já não vigem. Contudo, mais profundamente, a cibercultura nos
recoloca diante da velha questão do corpo e do sentido que ele tem para a vida comum e
para a formação humana. Os discursos mais entusiasmados pretendem que estaríamos
mesmo diante de uma nova humanidade, caracterizada pela coletivização da inteligência
virtual, pelo livre acesso e produção do conhecimento, pela cooperação ilimitada, pela
multiplicação dos contatos e das trocas. No entanto, no mundo real em que vivemos,
esta parusia digital é luxo reservado a poucos, é ainda em seus corpos e no espaço de
suas moradas que uma parte não desprezível da humanidade sofre da escassez dos
recursos, da fúria climática, dos horrores das guerras engendrando os fenômenos
migratórios que só fazem se multiplicar, ampliando não a democracia anunciada, mas
novas fronteiras de xenofobia, de racismo e de fechamento. Nas cidades, a violência
disseminada também tem como consequência a transformação do espaço urbano, um
corpo agora desmembrado, cujos órgãos buscam preservação fechando-se sobre si
mesmos, na falsa proteção dos condomínios, das grades, dos muros.5
Mas o corpo é também o grande presente nas práticas sociais que quebram hoje a apatia
política generalizada, nos movimentos negro, feministas e LGBTQIA+, antirracismo,
ecológicos, nas lutas dos sem-terra e dos sem-teto… Assim, parafraseando Jacques
Derrida, somos obrigadas a convir que, ao menos no que diz respeito a nosso aqui e
agora, nada há que não se passe com o corpo e não passe pelo corpo». 6 Talvez por isso
mesmo, mais do que multiplicidade, o corpo é, para nós, radical ambivalência.
Na escola, na vida individual e na cidade, as experiências de corpo se encontram, assim,
misteriosamente «suspensas entre um ter e um ser», entre conhecimento íntimo e total
estranheza, entre silenciamento e exaltação, entre confinamento e a abertura, entre
conforto e a dor. O humano é um ser encarnado: pelo corpo ele está ligado à
materialidade do mundo, ao mundo das sensações e à sua precariedade, que antecipa os
perigos e os limites de sua existência. «Nosso corpo, diz Michela Marzano, magnifica a
vida e suas possibilidades, mas proclama igualmente nossa morte futura e nossa
4
Michel Foucault, O Corpo utópico, as heterotopias. São Paulo : N-1, 2013.
(https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2019/10/foucault-michel-o-corpo-utopico-as-heterotopias-pdf.pdf )
5
Cf. Christian L. Dunker, A lógica do condomínio. Piseagrama, número 11 / 2017, p. 102 - 109.
6
Cf. Jacques Derrida, Le retrait de la métaphore in Psyché. Inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1998, p. 65.
finitude»7. Porém é ainda ele que nos abre à experiência da alteridade, que é a uma só
vez o encontro com o amor, ratificação da vida em nós, e possibilidade de novas
experiências de si, encontro com a liberdade da autoalteração. Por isso mesmo, como
sublinha a autora, o corpo é lugar de interrogação existencial, relativa não somente ao
nosso ser individual, mas à própria existência da sociedade. Como sequer pensar em
uma educação que não o tenha em lugar central?

De pluralidade e ambivalência

A única coisa que eu não posso evacuar pelo pensamento é o pensamento.


(…) Eis, em poucas palavras, o argumento: eu não posso inteligivelmente
duvidar de minha própria existência, uma vez que a dúvida é uma forma
de pensamento e que, se penso, eu existo. Em contrapartida, posso
inteligivelmente duvidar que tenha um corpo. Resulta daí que não sou
idêntico a meu corpo. [E resulta dessa nova afirmação] que eu posso
logicamente existir sem corpo.8

«Eu sou corpo e alma» – assim fala a criança. E por que não se há de falar
como as crianças?

Mas aquele que está desperto e consciente, diz : «Eu sou inteiramente
corpo, e nada mais ; a alma não é senão um nome para uma parte do
corpo. O corpo é um grande sistema de razão, uma multiplicidade com
um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento de teu corpo, tal é também tua pequena razão, a que chamas
de espírito, meu irmão; pequeno instrumento e pequeno brinquedo de tua
grande razão…»9

do corpo uno e múltiplo em Aristóteles

O corpo de que falam os filósofos foi, sucessivamente, e conforme os modelos


disponíveis, comparado a uma prisão, um sarcófago, uma jaula, um relógio, um
autômato, uma máquina, um computador… Não há como negar: «os filósofos sempre
preferiram meditar sobre a alma e suas paixões, investigar o entendimento humano ou
ainda criticar a razão pura, ao invés de se debruçarem sobre a realidade do corpo e a
finitude da condição humana.»10; mas, antes disso, foi o prestígio da promessa de uma
plenitude a que apenas o saber poderia dar acesso que justificou a criação do princípio
de separação de sensibilidade e intelecção, de matéria e espírito.
E, de fato, a epopeia desconhecia o conceito de um corpo vivo a opor-se à alma: se há
uma unidade, ela diz respeito à imobilidade do cadáver, do corpo após a morte. A vida,
então, se diz pela «multiplicidade de órgãos com suas variadas e diferenciadas
atividades e funções vitais»: a figura de alguém, cada membros de seu corpo, a pele11…
7
Michela Marzano, Philosophie du corps. Paris: PUF, 2007, p. 8.
8
Arthur C. Danto, «Le corps dans la philosophie et l’art», in: Cités, no 26, 2006/2, p. 138.
9
F. Nietzsche, Assim falava Zaratustra . São Paulo: Martin Claret, 2012, p. 45 [http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/zara.pdf]
10
Michela Marzano, Philosophie du corps, op. cit. p. 3.
11
Giovani Reale, Corpo, alma e saúde. O conceito de homem de Homero a Platão. São Paulo, Paulus, 2002, p. 14 e seg.
O que hoje entendemos como o conceito de corpo deve, pois, sua existência à invenção
da noção de alma, à emergência do conceito de psique. Essa lógica de separação, lógica
disjuntiva se estabiliza e se institui duravelmente na tradição ocidental por influência
platônica, em virtude da qual continuamos a conceber o pensamento como abstrato,
imaterial – a despeito de podermos, desde Aristóteles, entender que, sob essa aparência,
se esconde seu profundo e forçoso enraizamento das ideias na experiência sensível.
Em Descartes, a separação corpo e alma atinge seu ponto máximo: o sensível é lugar de
confusão e obscuridade, somente o cogito fornece acesso à certeza.
Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos
os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens
de coisas corporais, ou, ao menos, uma vez que mal se pode fazê-lo,
reputá-las-ei como vãs e como falsas; e assim, entretendo-me apenas
comigo mesmo e considerando meu interior, empreenderei tornar-me
pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma
coisa que pensa… 12

Mais ainda, na alma repousa, segundo Descartes, a verdadeira identidade do humano,


essa «alma pela qual eu sou inteiramente distinto do corpo…»13
Muitos séculos antes disto, porém, ao opor-se ao dualismo platônico, o texto aristotélico
apresenta-se como uma das primeiras e até hoje mais importantes contribuições para
uma teoria da unidade corpo-alma – e, assim, para que possamos tomar alguma
distância em relação à dualidade que se enraíza na história do pensamento pelos aportes
da espiritualidade cristã e que se renova na Modernidade em virtude de seu culto da
razão: aquela pela qual a «alma» define a incorporeidade própria às essências, por
oposição às armadilhas da experiência própria aos sentidos.
Sem dúvida, foi exatamente a predominância da busca incessante pelo «verdadeiro»
saber, pela experiência segura e não menos direta da razão que, como observa Richard
Bodeüs14, desde sempre instalou o problema da alma, do espírito, do pensamento, da
consciência – enfim, da instância associada à própria identidade humana, por oposição
aos animais e às coisas justamente ditas «inanimadas» – em uma reflexão de ordem
metafísica. Assim, a dualidade corpo-alma nada mais é senão o corolário, o
prolongamento de uma dualidade entre mundo-sujeito – esta mesma dualidade contra a
qual Merleau-Ponty combateu, denominando-a «estrabismo da ontologia ocidental» 15.
Mas como não buscar o outro extremo, desprezando o cuidado com a reflexão e
pensamento? Pode o corpo pensar? Pode a psique se fazer encarnada16?
As questões assim colocadas só fazem ressaltar a novidade da elaboração aristotélica
que afirma que a psique (a anima dos latinos) é o princípio interno comum a todos os
viventes naturais, isto é, a todos os seres que podem ser ditos físicos: animais e vegetais,
que conhecem nascimento, crescimento e morte, que se mantêm em vida e se
reproduzem. Psique, anima é, pois, princípio de vida que os humanos compartilham
12
Descartes, Meditações Metafísicas, Terceira Meditação. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 47.
13
Descartes, op. cit., Quarta Meditação.
14
Richard Bodeüs, Présentation de De l’âme. Paris : Flammarion, 1993.
15
M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 271.
16
A psique é extensão, dizia, em nota póstuma, Freud.
com tudo que é submetido a um movimento que vem da natureza.
De forma que, contrariando frontalmente o pensamento platônico, Aristóteles propõe a
indissociabilidade da matéria, e da forma – da essência, do sentido: ele constrói, pois, a
primeira teoria da unidade do corpo e da alma. E, ao fazê-lo, inaugura uma via para a
reflexão que não foi ainda suficientemente explorada por aqueles que se interessam
pelas coisas humanas.17
Cognição e sensibilidade são faculdades que definem partes diferentes da psique. Mas
isto não significa que se possam pensar estas faculdades ou partes como existindo
autonomamente. Pelo contrário, Aristóteles considera que «a alma nada sofre e nada faz
sem o corpo. Assim, encolerizar-se, transtornar-se, desejar ou, de forma global, sentir.»
Esta unidade entre alma e corpo, antiplatônica e seguramente anticartesiana marca de
maneira especial a crítica à noção de ideias desencarnadas:
Entre os viventes, os animais se distinguem pela faculdade perceptiva, ou sensitiva.
Platão dizia que estar em vida é afetar e se deixar afetar 18, isto é, a vida é definida pela
capacidade de agir sobre qualquer coisa ou de sofrer uma ação; Aristóteles vai também
definir o animal pela «faculdade sensitiva». O próprio da vida animal é a capacidade de
distinguir, de discriminar, no meio em que está, aquilo que, contribuindo para sua
existência, lhe é agradável e aquilo que, ao contrário, lhe é doloroso e deve ser evitado 19.
Alguns animais são, assim, dotados de uma capacidade motora que lhes permite o
simples deslocamento espacial; mas, em muitos casos, produzem-se fenômenos mais
complexos, aos quais se dá mais apropriadamente o nome de desejo, que supera a
simples capacidade de distinguir entre o que é vantajoso ou desvantajoso para sua
sobrevivência. E, para além disto, a capacidade de discriminar o bem e o mal, que faz
ser a ética. Alguns animais – entre os quais, de forma muito especial, o humano –
possuem ainda uma alma noética, a capacidade de pensar, de produzir sentidos.
Mas o composto humano é ainda dotado de imaginação, dita em grego phantasia. O
humano é capaz, graças à imaginação, de dar sentido, de dar forma àquilo que sente; e,
para ele, o pensamento não se dá apesar do corpo, mas como atividade de um ser
encarnado. Assim, o corpo que sente é aquele que, por ser dotado de imaginação, cria
sentido para esta experiência; tampouco o pensamento é atividade de um ser
desencarnado: é graças à imaginação que as ideias, longe de serem entidades de puros
espíritos, são sempre produção de um ser dotado de corpo.

do corpo ambivalente segundo Foucault

Mas esta forma de conceber o corpo, como unidade insecável, de que modo ela pode
corresponder à experiência que dele fazemos? É finalmente em Foucault que a questão
do corpo aparece com toda a ambiguidade que lhe é própria, e que as teses filosóficas
17
No pensamento aristotélico, a crítica tanto às concepções materialistas da alma quanto ao idealismo platônico esboça-se numa
teoria em que sensibilidade e intelecção vêm sempre juntas: pois o acesso às realidades sensíveis não se dá sem que se construa um
sentido, um conceito, que se forneça uma forma à experiência, assim como o pensamento, o acesso às realidades ditas «inteligíveis»
não se faz sem a sensibilidade.
18
Platão, Sofista, 247 e.
19
Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, passim.
nem sempre dão a ver. O corpo como problema, como questão, permanentemente
colocada, sem que uma solução para o enigma que ele introduz venha a obliterar a
interrogação aberta. Corpo como recusa, como sofrimento, limite, gravidade e prisão;
mas também – e por que não? – como utopia.
O texto a que fazemos referência resulta de uma bela conferência radiofônica realizada
em 1966, pelo canal France-Culture20, comovente pelo tom intimista, autobiográfico e
francamente poético que Foucault assume.
Ali, faz-se enfim o relato de um corpo que não é da filosofia, mas do filósofo e o
testemunho pessoal retraça as agruras vividas pelo autor: surpreendentemente, o corpo é
de saída apresentado como impasse, como estorvo, como o que lhe permite o
deslocamento, mas impede o movimento mais substancial:
não que eu esteja por ele pregado no chão – já que eu posso não somente
mover-me e mexer-me, mas mexê-lo, movê-lo, mudá-lo de lugar; no
entanto, eis que não posso me deslocar sem ele, não posso deixá-lo lá
onde está e ir-me embora, eu, para outro lugar. 21

Esse primeiro instantâneo do percurso vagaroso que nos propõe Foucault é, pois, do
corpo que é o exato oposto de uma utopia: um «lugar absoluto», topos inescapável,
«impiedosa topia», diz ele. É de estranhamento e de rejeição que nos fala o filósofo, de
uma ferida, desse «rosto magro, ombros arqueados, olhar míope, já sem cabelos,
realmente nada bonito» que se apresenta ao espelho como Paul-Michel de Foucault –
ou, ao menos, como se vê ao espelho Paul-Michel de Foucault. 22 Corpo, mal-estar,
«jaula que eu não amo», lugar de condenação.
O relato estritamente confessional dessa experiência de ser projetado no que mais se
parece uma casca, uma cadeia, uma armadura que dificilmente se carrega, pesada,
embaraçosa e inconveniente, leva-nos para nossa própria realidade, mais ou menos
assemelhada; mas, em seguida, transporta-nos ainda mais longe, nos faz imaginar a
experiência sem memória do recém-nascido que fomos, voltar às marcas da
adolescência que deixamos para trás, vislumbrar o declínio que nos aguarda.
Experiência que se instala nas entranhas da história, no âmago de um sonho que
somente à condição de humanidade é dado sonhar:
Imagino, em suma, que é contra ele e para suprimi-lo que se fizeram
nascer todas as utopias. O prestígio da utopia, a beleza, o maravilhamento
da utopia, a que são devidos? A utopia é um lugar fora de todos os
lugares, mas um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será
belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência,
infinito em sua duração, liberto, invisível, protegido, sempre
transfigurado. E é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a
mais inerradicável no coração dos homens seja precisamente a utopia de
um corpo incorpóreo.23

Eis que nos vemos subitamente diante da imortalidade prometida aos heróis e suas
20
https://tinyurl.com/ybkmmoza; posteriormente publicado em Michel Foucault, Le corps utopique. Les hétérotopies. Paris: Ed.
Lignes, 2009. [Michel Foucault, O Corpo utópico, as heterotopias. São Paulo : N-1, 2013.]
21
Id.
22
Ibid.
23
Id.
pátrias, anunciada pelas religiões, cobiçada pelo projeto político dos impérios: um corpo
glorioso, transfigurado, capaz de vencer o tempo e a morte. É assim que Foucault se
refere às múmias, às tumbas antigas, mas também às pinturas e esculturas medievais –
«prolongando na imobilidade uma juventude que não passará jamais», «almejando uma
eternidade propriamente divina».24
Chega-se por este trajeto tortuoso à «mais obstinada, mais poderosa das utopias pelas
quais nós suprimimos a triste topologia do corpo»: trata-se dessa alma longamente
concebida na história ocidental que é capaz de transportar para além da opaca
materialidade das coisas – de uma alma que «escapa quando durmo, sobrevive quando
morro»25.
Contudo, o corpo resiste a estas utopias que pretendem fazê-lo desaparecer, diz-nos
Foucault.
Mas meu corpo, na verdade, não se deixa reduzir assim tão facilmente.
Afinal, ele tem seus recursos próprios e fantásticos; possui, ele também,
lugares sem lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a
alma, que o túmulo, que o encanto dos mágicos. Ele tem seus porões e
seus sótãos, ambientes obscuros, espaços luminosos.26

Incompreensível e opaco, o corpo, descobre por fim Foucault, é modelo e origem de


todas as utopias pelas quais se pretendia fugir à corporeidade. Pois todas elas dão
testemunho da experiência corpórea, e mesmo a tentativa de negá-la acaba por se
constituir em sua afirmação. Estonteante reversão, pela qual o texto de Foucault
subitamente parece atualizar, em termos poéticos e muito intimistas, a teoria
hilemorfista do composto humano: «Uma coisa é certa: o corpo humano é o principal
ator de todas as utopias.»27
Não, na verdade não é preciso nem magia nem maravilha, não é preciso
uma alma ou uma morte para que eu seja, a uma só vez, opaco e
transparente, visível e invisível, vida e coisa: para que eu seja utopia,
basta-me ser um corpo. Todas as utopias pelas quais me esquivava de
meu corpo, eles tinham simplesmente por modelo e por primeiro ponto de
aplicação, elas tinham seu lugar de origem em meu próprio corpo. Eu
estava errado quando, há pouco, dizia que as utopias haviam se formado
contra o corpo e destinadas a suprimi-lo: elas nasceram do corpo e talvez
tenham se voltado em seguida contra ele. Em todo caso, uma coisa é
certa, é que meu corpo humano é o ator principal de todas as utopias.28

A tatuagem, a maquiagem, a máscara, as vestimentas rituais, sagradas ou profanas dão


forma sensível às utopias que marcam o corpo. Pois, em sua materialidade, diz o
filósofo, o corpo se faz produto de seus próprios fantasmas: «E, de fato, não seria o
corpo do dançarino um corpo dilatado segundo um espaço que lhe é, ao mesmo tempo,
interior e exterior?» propõe então Foucault.29
Mais: o corpo é como o «ponto zero» do mundo, em torno do qual tudo se dispõe, para
24
Id.
25
Id., p. 3.
26
Id., p. 3.
27
Id., p. 4.
28
Id, p. 3-4.
29
Id.
o qual, e somente para o qual há uma direita e uma esquerda, um acima e um abaixo,
um próximo e um distante, um antes e um depois… O corpo não está em nenhum lugar,
pois ele é «um pequeno núcleo utópico a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino,
percebo as coisas em seu lugar e as nego também, em virtude do indefinido poder das
utopias que imagino.»30
As crianças, observa Foucault, levam muito tempo até tomarem consciência de que têm
um corpo – elas têm orifícios, cavidades, membros que só se organizam em um todo na
imagem do espelho. E os gregos, acrescenta, não tinham uma palavra para dizer a
unidade corpórea, apenas aquela que serve para designar o cadáver. O espelho e o
cadáver impedem que o corpo seja pura utopia, ainda que estejam em um lugar
inacessível, onde jamais estaremos.
Mas o texto não se conclui sobre esta nota trágica, pois Foucault se volta para a
experiência do amor, que fornece ao corpo sua redenção máxima, sua melhor utopia –
que está em finalmente fazer-se magnífica topia, fazendo-nos definitivamente presentes.
…sob os dedos do outro, percorrendo-o, todas as partes invisíveis de
nosso corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os nossos tornam-
se sensíveis, diante dos olhos semicerrados nossa face adquire uma
certeza, há enfim um olhar para ver nossas pálpebras fechadas. O amor,
também ele, como o espelho e como a morte, pacifica a utopia do corpo,
faz-na calar-se, a acalma, a encerra como que em uma caixa, fechada e
selada. Por isso ele está tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da
morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o circundam,
gostamos tanto de fazer amor, é porque no amor o corpo está aqui.»31

Perspectivas para a formação humana

É talvez chegado o tempo de a psicologia começar a se pensar contra ela


própria, para compreender, para além de sua denominação idealista que a
define como «discurso sobre a psique», sobre esta unidade ideal do sujeito
que a cultura grega promoveu sob o termo de psykhè… Mas pensar contra
não significa pensar o contrário, ou permanecendo neste mesmo terreno de
oposição em que o conflito se vê reabsorvido da mesma forma que foi
engendrado. Pensar contra significa pensar profundamente, mergulhar até as
raízes, tocando o fundo onde se implanta esse enraizamento. Esta operação,
que abala a solidez das raízes, extirpa a psicologia do lugar que ela se
atribuiu e, portanto, a des-orienta, a subtrai de seu oriente, de sua origem
histórica.32

Corpo e alma: mais do que superar a dualidade, talvez seja o caso de entender o que de
fato podem significar estas expressões, estas metáforas, se ao menos decidirmos
desenraizá-las do terreno em que estiveram até aqui solidamente ancoradas. A
superação da dualidade, se possível, implicaria na definição de uma nova unidade ideal;
e, talvez a partir disso, a formulação de uma «pedagogia do corpo»? Nada mais distante
de nossos objetivos!
30
Id., p. 5.
31
Id., p. 6
32
Umberto Galimberti, Les raisons du corps. Paris: Grasset/Mollat, 1998, p. 9.
Por isto, o grande desafio talvez seja poder prosseguir sem um conceito unificador:
«reconquistar a ambivalência do corpo», como sugeriu Galimberti, que não implica nem
numa recusa obscurantista da racionalidade nem, muito menos, na subserviência a um
modelo de razão que já mostrou seus limites.
Sabemos hoje que a verdade não está no combate entre o verdadeiro e o
falso, mas na emergência de um universo de sentido que tem na
ambivalência da realidade corpórea o lugar de nascimento de todos os
saberes científicos.33

É, pois, uma tarefa de questionamento profundo das representações herdadas e dos


esquemas mentais que constituem nosso modo de, mais do que pensar, ser corpo.
Fomos, ao longo da história, socializados para uma concepção dualista do humano,
educados para a cognição. Na escola pública, o privilegiamento da cognição responde
não apenas pelo modelo antropológico largamente instituído na civilização ocidental e
enfatizado pela Modernidade; resulta também de exigências próprias à instituição, que
deveria fixar o projeto de formação comum em bases objetivas, facilmente replicáveis,
de forma a garantir uma uniformização de práticas sujeitas a amplo acompanhamento e
estrito controle. Por isso mesmo, a redução cognitivista, insistimos, tornou-se a
verdadeira conditio per quam da institucionalização da educação comum pela escola
pública.34 Antecipando-se às realizações da educação a distância dos tempos atuais, na
pedagogia cognitivista, a abolição do tempo e do espaço não é uma promessa, mas a
primeira realização, simbólica, de seu projeto uniformizador, que acaba por definir
modos de presença e de ação que lhe são próprios. Sob sua égide, a formação humana é
quase inteiramente reduzida à aprendizagem intelectual, em detrimento das dimensões
ética, afetiva e estética que compõem o humano.
Não se trata, assim, de «pensar o contrário da cognição», de propor uma pedagogia do
corpo igualmente marcada pela dicotomia metafísica. Aliás, talvez a palavra “pensar” se
mostre, ela própria, por demais presa a um solo de sentidos de que convém ganhar
alguma distância: no caso da educação, ousaríamos dizer que é preciso constituir, pela
reflexão e pela prática, um novo modo de ser, um novo modo de presença e ação que se
dirija ao humano como composto insecável de corpo e de “alma”, de razão, de
afetividade e de sensibilidade. Projeto vastíssimo, para o qual a filosofia do corpo
contribui, ao anunciar a urgência de se passar, da pedagogia cognitivista a uma
concepção plena de formação humana.35
…a filosofia do corpo não é nada além de uma filosofia que toma como
ponto de partida esse corpo que aí está, que pensa a partir da finitude, que
se interroga sobre o ser-no-mundo de cada indivíduo. É uma filosofia que
busca compreender a ação humana sem jamais esquecer sua dimensão
corpórea. 36

33
Op. cit., p. 14.
34
L. do Valle. Para além do sujeito isolado
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/HJqZhDx8ytbz75tqgJgNTWC/?format=pdf&lang=ptop.
35
Reinstalar o corpo talvez implique em liberá-lo do ostracismo a que foi reduzido, no campo de esportes, e trazê-lo para o centro
da prática educativa, onde permanecia ignorado. Que outra maneira de reintegrar as dimensões estética e ética com ele expulsas das
escolas e Universidades?
36
Michela Marzano, La philosophie du corps, op. cit., 121-122.

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