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…nunca houve humano sem o sentido, não apenas de seu corpo, mas de sua
individualidade ao mesmo tempo espiritual e corpórea1
Meu corpo é contradição 2
Um corpo ausente?
Na história das práticas educativas, o lugar reservado ao corpo foi e continua sendo
marcado por uma incontornável ambiguidade: sendo o primeiro e mais imediato fiador
da presença, ele é aquele que, desde o início, está destinado a desaparecer. Pois sua
“ausência” marca, na maior parte do tempo, o sucesso da empreitada formativa, cujo
objetivo central, no que lhe diz respeito, é, como sabemos pelo menos desde Foucault, o
disciplinamento e o controle3. E, sobretudo no trato com os recém-chegados, a
turbulenta imediatez deve ser neutralizada, de forma que, ali onde estava o ímpeto
corpóreo seja, agora, a atenção e a disposição mental para a aquisição de novos hábitos
e conhecimentos.
Assim, é forte a tentação de caracterizar o corpo como o grande ausente, mas talvez a
metáfora do silêncio lhe conviesse melhor: no percurso escolar, é preciso que os
sentidos progressivamente se calem, para que se possa instalar a potência da cognição.
E, isso, já que, como diz a teoria largamente adotada no campo da educação, uma bem-
sucedida exploração do período sensório-motor deverá conduzir a uma nova etapa, em
que as operações mentais poderão enfim se realizar livremente. Até lá, porém, será
preciso cuidar para que o ponto de apoio da aprendizagem não se transforme em
empecilho: e, em nome da socialização, ergue-se a necessidade de acostumar o corpo a
habitar o espaço comum de acordo com as regras preestabelecidas de convivência e de
disciplina.
Mas é claro que este retrato idealizado diz mais sobre intenções e expectativas que se
enraízam na tradição moderna e que se mantêm até aqui razoavelmente íntegras, do que
sobre as enormes e sempre crescentes dificuldades que lhes opõe o cotidiano de nossas
escolas: mas é não exatamente dessa distância que convém, finalmente, falar?
Falar, por exemplo, do que podemos chamar de «sujeito isolado», esse tipo
antropológico central da Modernidade e típico da escola que, nesse momento, se
1
Marcel Mauss, Uma categoria do espírito humano : a noção de pessoa, a de “eu”, in Sociologia e antropologia. São Paulo, Ubu,
2017, p. 371.
2
Paul Valéry, «Tel Quel», in Œuvres, p. 519.
3
Michel Foucault, Vigiar e punir. Petrópolis : Vozes : 1984.
instituiu; e, para tanto, denunciar as clivagens que cimentaram e continuam a cimentar,
no campo das imagens de que se servem as práticas formativas: corpo x alma, interior x
exterior, razão x experiência, pensamento (consciência) x atividade (movimento), eu
(individuação) x outro (socialização)… denunciar, assim, o abandono das dimensões da
sensibilidade, dos afetos e do enraizamento social e histórico. Ora, essas clivagens têm,
todas elas, como ponto de origem e de confluência a oposição corpo x alma que, desde a
Antiguidade, se forjou como marca absoluta do pensamento ocidental.
No entanto, o corpo está por toda parte: ele é aquele que «está irreparavelmente aqui»
onde estou, eu que não «posso me deslocar sem ele»4; ele é, porém, ou exatamente por
isso, aquele que tantas utopias desde Platão inutilmente tentaram superar. E eis que,
mais recentemente, o sonho de libertação dessa materialidade limitadora que assombrou
a busca do saber, desse corpo-prisão-do-aqui-e-agora já parece possível em um mundo
tornado, pela tecnologia, virtual: novos tempos são anunciados, nos quais as distâncias e
as imposições temporais já não vigem. Contudo, mais profundamente, a cibercultura nos
recoloca diante da velha questão do corpo e do sentido que ele tem para a vida comum e
para a formação humana. Os discursos mais entusiasmados pretendem que estaríamos
mesmo diante de uma nova humanidade, caracterizada pela coletivização da inteligência
virtual, pelo livre acesso e produção do conhecimento, pela cooperação ilimitada, pela
multiplicação dos contatos e das trocas. No entanto, no mundo real em que vivemos,
esta parusia digital é luxo reservado a poucos, é ainda em seus corpos e no espaço de
suas moradas que uma parte não desprezível da humanidade sofre da escassez dos
recursos, da fúria climática, dos horrores das guerras engendrando os fenômenos
migratórios que só fazem se multiplicar, ampliando não a democracia anunciada, mas
novas fronteiras de xenofobia, de racismo e de fechamento. Nas cidades, a violência
disseminada também tem como consequência a transformação do espaço urbano, um
corpo agora desmembrado, cujos órgãos buscam preservação fechando-se sobre si
mesmos, na falsa proteção dos condomínios, das grades, dos muros.5
Mas o corpo é também o grande presente nas práticas sociais que quebram hoje a apatia
política generalizada, nos movimentos negro, feministas e LGBTQIA+, antirracismo,
ecológicos, nas lutas dos sem-terra e dos sem-teto… Assim, parafraseando Jacques
Derrida, somos obrigadas a convir que, ao menos no que diz respeito a nosso aqui e
agora, nada há que não se passe com o corpo e não passe pelo corpo». 6 Talvez por isso
mesmo, mais do que multiplicidade, o corpo é, para nós, radical ambivalência.
Na escola, na vida individual e na cidade, as experiências de corpo se encontram, assim,
misteriosamente «suspensas entre um ter e um ser», entre conhecimento íntimo e total
estranheza, entre silenciamento e exaltação, entre confinamento e a abertura, entre
conforto e a dor. O humano é um ser encarnado: pelo corpo ele está ligado à
materialidade do mundo, ao mundo das sensações e à sua precariedade, que antecipa os
perigos e os limites de sua existência. «Nosso corpo, diz Michela Marzano, magnifica a
vida e suas possibilidades, mas proclama igualmente nossa morte futura e nossa
4
Michel Foucault, O Corpo utópico, as heterotopias. São Paulo : N-1, 2013.
(https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2019/10/foucault-michel-o-corpo-utopico-as-heterotopias-pdf.pdf )
5
Cf. Christian L. Dunker, A lógica do condomínio. Piseagrama, número 11 / 2017, p. 102 - 109.
6
Cf. Jacques Derrida, Le retrait de la métaphore in Psyché. Inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1998, p. 65.
finitude»7. Porém é ainda ele que nos abre à experiência da alteridade, que é a uma só
vez o encontro com o amor, ratificação da vida em nós, e possibilidade de novas
experiências de si, encontro com a liberdade da autoalteração. Por isso mesmo, como
sublinha a autora, o corpo é lugar de interrogação existencial, relativa não somente ao
nosso ser individual, mas à própria existência da sociedade. Como sequer pensar em
uma educação que não o tenha em lugar central?
De pluralidade e ambivalência
«Eu sou corpo e alma» – assim fala a criança. E por que não se há de falar
como as crianças?
Mas aquele que está desperto e consciente, diz : «Eu sou inteiramente
corpo, e nada mais ; a alma não é senão um nome para uma parte do
corpo. O corpo é um grande sistema de razão, uma multiplicidade com
um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento de teu corpo, tal é também tua pequena razão, a que chamas
de espírito, meu irmão; pequeno instrumento e pequeno brinquedo de tua
grande razão…»9
Mas esta forma de conceber o corpo, como unidade insecável, de que modo ela pode
corresponder à experiência que dele fazemos? É finalmente em Foucault que a questão
do corpo aparece com toda a ambiguidade que lhe é própria, e que as teses filosóficas
17
No pensamento aristotélico, a crítica tanto às concepções materialistas da alma quanto ao idealismo platônico esboça-se numa
teoria em que sensibilidade e intelecção vêm sempre juntas: pois o acesso às realidades sensíveis não se dá sem que se construa um
sentido, um conceito, que se forneça uma forma à experiência, assim como o pensamento, o acesso às realidades ditas «inteligíveis»
não se faz sem a sensibilidade.
18
Platão, Sofista, 247 e.
19
Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, passim.
nem sempre dão a ver. O corpo como problema, como questão, permanentemente
colocada, sem que uma solução para o enigma que ele introduz venha a obliterar a
interrogação aberta. Corpo como recusa, como sofrimento, limite, gravidade e prisão;
mas também – e por que não? – como utopia.
O texto a que fazemos referência resulta de uma bela conferência radiofônica realizada
em 1966, pelo canal France-Culture20, comovente pelo tom intimista, autobiográfico e
francamente poético que Foucault assume.
Ali, faz-se enfim o relato de um corpo que não é da filosofia, mas do filósofo e o
testemunho pessoal retraça as agruras vividas pelo autor: surpreendentemente, o corpo é
de saída apresentado como impasse, como estorvo, como o que lhe permite o
deslocamento, mas impede o movimento mais substancial:
não que eu esteja por ele pregado no chão – já que eu posso não somente
mover-me e mexer-me, mas mexê-lo, movê-lo, mudá-lo de lugar; no
entanto, eis que não posso me deslocar sem ele, não posso deixá-lo lá
onde está e ir-me embora, eu, para outro lugar. 21
Esse primeiro instantâneo do percurso vagaroso que nos propõe Foucault é, pois, do
corpo que é o exato oposto de uma utopia: um «lugar absoluto», topos inescapável,
«impiedosa topia», diz ele. É de estranhamento e de rejeição que nos fala o filósofo, de
uma ferida, desse «rosto magro, ombros arqueados, olhar míope, já sem cabelos,
realmente nada bonito» que se apresenta ao espelho como Paul-Michel de Foucault –
ou, ao menos, como se vê ao espelho Paul-Michel de Foucault. 22 Corpo, mal-estar,
«jaula que eu não amo», lugar de condenação.
O relato estritamente confessional dessa experiência de ser projetado no que mais se
parece uma casca, uma cadeia, uma armadura que dificilmente se carrega, pesada,
embaraçosa e inconveniente, leva-nos para nossa própria realidade, mais ou menos
assemelhada; mas, em seguida, transporta-nos ainda mais longe, nos faz imaginar a
experiência sem memória do recém-nascido que fomos, voltar às marcas da
adolescência que deixamos para trás, vislumbrar o declínio que nos aguarda.
Experiência que se instala nas entranhas da história, no âmago de um sonho que
somente à condição de humanidade é dado sonhar:
Imagino, em suma, que é contra ele e para suprimi-lo que se fizeram
nascer todas as utopias. O prestígio da utopia, a beleza, o maravilhamento
da utopia, a que são devidos? A utopia é um lugar fora de todos os
lugares, mas um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será
belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência,
infinito em sua duração, liberto, invisível, protegido, sempre
transfigurado. E é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a
mais inerradicável no coração dos homens seja precisamente a utopia de
um corpo incorpóreo.23
Eis que nos vemos subitamente diante da imortalidade prometida aos heróis e suas
20
https://tinyurl.com/ybkmmoza; posteriormente publicado em Michel Foucault, Le corps utopique. Les hétérotopies. Paris: Ed.
Lignes, 2009. [Michel Foucault, O Corpo utópico, as heterotopias. São Paulo : N-1, 2013.]
21
Id.
22
Ibid.
23
Id.
pátrias, anunciada pelas religiões, cobiçada pelo projeto político dos impérios: um corpo
glorioso, transfigurado, capaz de vencer o tempo e a morte. É assim que Foucault se
refere às múmias, às tumbas antigas, mas também às pinturas e esculturas medievais –
«prolongando na imobilidade uma juventude que não passará jamais», «almejando uma
eternidade propriamente divina».24
Chega-se por este trajeto tortuoso à «mais obstinada, mais poderosa das utopias pelas
quais nós suprimimos a triste topologia do corpo»: trata-se dessa alma longamente
concebida na história ocidental que é capaz de transportar para além da opaca
materialidade das coisas – de uma alma que «escapa quando durmo, sobrevive quando
morro»25.
Contudo, o corpo resiste a estas utopias que pretendem fazê-lo desaparecer, diz-nos
Foucault.
Mas meu corpo, na verdade, não se deixa reduzir assim tão facilmente.
Afinal, ele tem seus recursos próprios e fantásticos; possui, ele também,
lugares sem lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a
alma, que o túmulo, que o encanto dos mágicos. Ele tem seus porões e
seus sótãos, ambientes obscuros, espaços luminosos.26
Corpo e alma: mais do que superar a dualidade, talvez seja o caso de entender o que de
fato podem significar estas expressões, estas metáforas, se ao menos decidirmos
desenraizá-las do terreno em que estiveram até aqui solidamente ancoradas. A
superação da dualidade, se possível, implicaria na definição de uma nova unidade ideal;
e, talvez a partir disso, a formulação de uma «pedagogia do corpo»? Nada mais distante
de nossos objetivos!
30
Id., p. 5.
31
Id., p. 6
32
Umberto Galimberti, Les raisons du corps. Paris: Grasset/Mollat, 1998, p. 9.
Por isto, o grande desafio talvez seja poder prosseguir sem um conceito unificador:
«reconquistar a ambivalência do corpo», como sugeriu Galimberti, que não implica nem
numa recusa obscurantista da racionalidade nem, muito menos, na subserviência a um
modelo de razão que já mostrou seus limites.
Sabemos hoje que a verdade não está no combate entre o verdadeiro e o
falso, mas na emergência de um universo de sentido que tem na
ambivalência da realidade corpórea o lugar de nascimento de todos os
saberes científicos.33
33
Op. cit., p. 14.
34
L. do Valle. Para além do sujeito isolado
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/HJqZhDx8ytbz75tqgJgNTWC/?format=pdf&lang=ptop.
35
Reinstalar o corpo talvez implique em liberá-lo do ostracismo a que foi reduzido, no campo de esportes, e trazê-lo para o centro
da prática educativa, onde permanecia ignorado. Que outra maneira de reintegrar as dimensões estética e ética com ele expulsas das
escolas e Universidades?
36
Michela Marzano, La philosophie du corps, op. cit., 121-122.