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Onde aterrar? — Como se orientar politicamente no Antropoceno TRADUCAO Marcela Vieira POSFACIO E REVISAO TECNICA Alyne Costa Bruno Latour 4- Este ensaio tem por objetivo aproveitar a ocasiao da eleigao de Donald Trump, em 8 de novembro de 2016, para aproximar trés fendmenos que os comentaristas politicos jé identificaram, ainda que nem sempre notem a relagdo entre os trés, deixan- do por isso de perceber a imensa energie politica que poderia ser extraida dessa aproximagao. No inicio dos anos 1990, logo apds a “vitéria contra © comunismo" simbo‘izada pela queda do muro de Berlim, no exato momento em que alguns pensaram que a historia havia conclufdo seu curso,? ums outra historia se iniciava sub-repticiamente. Bla se caracteriza, antes de mais nada, por squilo que chamamos de “desregulamentagao’, e que confere um senti- do cada vez mais pejorativo & palavra “globalizagio’. Mas ela marea também 0 infeio, de forma simulténea em todo o mun- do, de uma violenta explostio das desigualdades. Por fim ~e isso nio ¢ destacado com frequéncia ~, é nessa época que se inicia a sistemética opzracio para ancgagio da existéncia da, mutagao5 climatica. (‘Clima’, aqui, ¢ tomado no sentido ge- 2 Francis Fukuyama. The End of History and the Last tan, Nova York: Froe Press, 1992. 5 No primeira capitue do lvro Face & Gola (Diante de Gol), Bruno La~ ‘our justtica sua preferéncia pela expressdo “mutagio climatice” argu ‘mentando que tratara sitvagio atual come uma crise (como na expres io “crise ecoldgica’ seria uma tentativa de nos convencermos de que © problema vai passa, de que “a crise em breve sora coisa do passado", "Quem dara fosse apanas uma crise! ..] Segundo o& espectaistas, > 9 — Onde aterrar? ral das relagdes dos humanos com suas condicoes materiais de existéncia,) Este ensaio propde abordar esses trés fenémenos como sintomas de uma mesma situagao histériea: tudo ocorre como Se uma parte importante das classes dirigentes (que hoje, de modo um tanto vago, chamamos de “elites") tivesse chegado A conclusto de que nao hé mais lugar suficiente na terra para elas e para o resto de seus habitantes. Em consequéncia, decidiram que era indtil fingir que a historia continuaria conduzindo a um horizonte comum, em ue “toclos os homens” poderiam prosperar igualmente, Desde Os anos 1980, as classes dirigentes nao pretendem mais liderar, mas se refugiar fora do mundo. Dessa fuga, da qual Donald ‘Trump ¢ apenas um simbolo entre outros, somos nés que so fremos todas a consequencias. A auséncia de um mundo comum 2 compartilhar esta nos enlouquecendo. A hipotese ¢ que nao entenderemos nada dos posicio- namentos politicos dos ultimos cinquenta anos, se nao reser= varmos um luger centrai & questo do clims e & sua denega- so. Sem a conseiéncia de que entramos em um Novo Regime Climatico,5 nao podemos compreender nem a explosao das > deveriamos falar mais propriamante de *mutagko": estavamos acostumados & um mundo; agora estamos passando, transmutands {em um Tew" (2018, p. 16) (NAAT) 4 O texto segue a convengio segundo a aval “tarra" (com mindscula) corresponds so quadre tradicional a ago humana (os humarios na nex tureza), enquanto “Ter " com maliscula, correspond a uma poténcia de agir na qual reconhecemos, ainda que de mansira nio plenamente Instituida, ums eepécie de funda politica 5 Aespresedo "Novo Regime Ciimético”é apresentada om Bruno Latour ‘em Face 4 Gola. Hult contérences sur fe Nouvear Régime Climatique, Les Empécheors Ge panser en rons, Pars: La Découverte, 2015 Edigae brasileira Diants ce Gala, SA0 Paulo: Vou, 2020. 10 — Bruno Latour desigualdades, nem a amplitude das desregulamentagdes, nem a critica da globalizacao e nem, sobretudo, o desejo de- sesperado de regressar as velhas protegdes do Estado nacio- nal ~o que se costume chamar, um tante erroneamente, de “ascensao do populismo”. Para resistir a essa perde de orientagdo comum, serd preciso aterrar® em algum lugar. Daj a importaneia de saber como seorientar, ¢ para isso tragar uma espécie de mapa das po- sigdes ditadas por essa nova paisagem na qual sio redefinidos nfo apenas os aézosda vida piblica, mas também as suas bases. As reflexdes que se seguem, escritas em estilo proposi talmente brusco, buscam explorar a possibilidade de canalizar certas emogdes politicas na direeto de novos objetos, © autor, néo sendo nenhuma autoridade em ciéncias politivas, s6 pode oferecer aos leitores a oportunidade de re- futar essa hipétese e procurar outras melhores. g- ‘Temos que agradecer aos apoiadores de Donald Trump por hos terem ajudado aesclarecer essas questdes quando o pres- sionaram a anunciar, em 1° de junho de 2417, que os Estados Unidos sairiam do acordo de Paris sobre o clima. ‘Trump conseguiu fazer o quenem amilitancia de mithoes de ecologistas, nem os alertas de milhdes de cientistas, nem a 6 Optus pe ator! Atego aarss orate ra oranda presage ho note ebro sind na sentido da atorrissagem, a escelha de Tom Jobim per aterrar om so cleo “Saba do vt! Deemed, quan refers for over, tsaremos atorar; mas quando setratar do substantive, ompregarem ‘aterissagem; por sar de uso mais corrent® ques oped “atorragem: (NE) 11 — Onde aterrar? eee gto de centenzs de empresérios das induistrias conseguiram, algo para o qual nem mesmo o papa Francisco foi capaz de chamar a atengo:” agora todos sahem que a questo climét: ca esta no centro de todos os problemas geopoliticas e que est diretamente ligada a questdo das injustigas ¢ desigualdades.® Ao se retirar do acordo, Trump acabou desencadean- do, se niio uma guerra mundial, 20 menos uma guerra pela defini¢io do teatro das operacdes:® “Nos, os americanos, nao Pertencemos & mesma terra que voces, A de voces pode estar ameacada, mas a nossa nunce estar, ‘Com isso, ficam explicitadas as consequéncias politicas, licares ¢ existenciais daquilo que George Bush (0 pai) previu em 1992, no Rio de Janeiro:*° “Our way oflife is not negotiable?” Pronto, 20 menos as coisas esto as claras: nao existe mais o ideal de munda compartilhado por aquilo que até ento cha- mavamos de “Ocidente” Primeiro acontecimento hist6rico: o Brexit. O pats que havia inventado o espago ilimitado do mereado tanto no mar Quanto na terra, ¢ que havia pressionado a Unido Europela a se transforma em um enorme sbopping center, éo mesmo pais ue, diante da chegada de dezenas de milhares de refugiados, decide de uma hora para outra nao mais jogar o jogo da glo- balizacdo. Em busca de um império hd muito tempo extinto, 7 Os catélicos fzeram de tudo para ignorar a relagao entre pobreza @ \desastre ecoldgico claramanto articulada, no entanto, na encicica do ‘papa Francisco, Loudote Si, Vaticane: Santa $4, 2015, 'S Até presidente Macron que ¢ insferonta nessa questes, vu-se obrigado ‘adelas se apropriar chegando alancaro slogan #¥akeOurPlanetGreatAgain, 9 No jaro militar, teatro de oneragées" 6 a local ondo acorrem as Operacdes tticas ¢logisticas de uma guerea. (NAAT) 10 Oautorse rofere aqui Conferéncia das Nagées Unidas sobre 0 Meio ‘Ambiente @ © Desenvolvimento, mais conhecida como £0-92. (NAT) 12 ~ Bruno Latour o Reino Unido tenta se desvineular da Europa (pagando o pre- 0 de dificuldades cada vez mais complexas).t! ‘Segundo acontecimento historico: a eleigao de Trump, © pais que havia imposto violentamente 20 mundo sua glo- balizagao tao particular e que havia definido a si mesmo por meio da emigragao, eliminando seus primeiros habitantes, 66 ‘mesmo pais que confia seu destin aquele que promete isolé-lo numa fortaleza, impedir a entrada de refugiados, negar socor- ros qualquer causa que nao se dé em solo proprio, H tudo isso ‘a0 mesmo tempo em que continua intervindo em toda parte com a costumeira inconveniéneia displicente, Essa nova atrag&o pelas fronteiras por parte dos que ‘outrora haviam pregado seu sistemético desmantelamento ja serve como indicativo do fim de um certo tipo de globalizagio. Dois dos maiores pafses do antigo “mundo livre” declaram aos ‘demais: “Nossa historia no tem mais nada a ver eom a de vo- és; vao para o inferno!”, ‘Terceiro acontecimento hist6rico: a retomada, a exten- sd, a amplificag¢do das migragOes. No exato momento em que todos os paises enfrentam as iniimeras ameagas da glo- balizaggo, muitos precisam se organizar para acolher em seu solo os milhoes de pessoas —alguns falam em dezenas de mi- Ihdes!!2 do desenvolvimento econémico e das mudangas climaticas iro atirar em buses de um territdric habitavel para eles ¢ pata seus filhos. Talvez se diga que o problema é antigo. Mas no, pois ‘esses trés fendmenos nfo passam de aspectos diferentes de que a ago acumulada das guerras, dos fracassos 11 A sais do Reino Unido da Unio Europeia fol efetivada no dia 31 ce Janeiro de 2020, (N.E) 12 Dina fonesco, Daria Mochnacheva ¢ Frangcis Gemenne, Atlos dos ‘migrations environnementoles, Paris: Presses de Sclences Po, 2016. 13 — Onde aterrar? uma tnica e mesma metamorfose: a propria nogio de solo estd mudando. © solo tho sonhado da globalizagao esta desapare- cendo. Bessa anovidade daquilo que, um tanto timidamente, chamamos de “crise migratoria’. Se a angiistia é tio profunda, € porque cada um de nbs ‘comega a sentir o solo ruindo sob os pés. Descobrimos, mais ou menos confusamente, que estamos todos migrando rumo a territdrios serem redescobertos e reocupados. [isso devido @ um quarto acontecimenta histérico, 0 mais importante e o menos filado de todos: 0 dia 12 de dezem- rode 2015, em Paris, no momento em que o acordo sobre o cli- ‘ma foi frmado, 20 fim da conféréncia conhecida come COP21 O que interessa para dimensionar o verdadeiro impacto deste episédio nao ¢ aquilo que os representantes dos paises decidiram; tampovco que esse acordo seja ou nto aplicado (os negacionistas farao de tudo para eviscers-lo). O importante é que, nesse dia, todos os paises signatarios, 90 mesmo tempo em que aplaudiam o sacesso do improvivel acorde, davamrse conta, horrorizados, de que se todos avangassem conforme as previsoes de seus respectivos planos de modernizagao, nao existiria planeta compativel com suas expectativasde desenvol- vimento.'5 friam precisar de varios planetas, ¢ eles sé tém um. Ora, senao ha planeta, terra, solo, territério onde alojar 0 Globo da globalizagio em diregao ao qual todos os paises se dirigiam, entéo ninguém mais possui, como se costuma dizer, uma terra para chamar de sua. Cada um de nés se encontra, entdo, diante da seguinte qquestdo: “Devemos continua alimentando grandes sonhos de 13 As Contribuigdes Nacionalmente Determinadas NDC, na sigin em Ingl8s) preparadas para a COP21 apresentam os planos de cada pals. Vor .lltimo acesso em jun 2020. 14 — Bruno Latour — evasto ou comegamos a buscar um rersiv6rie gue sejs habits vel para nds e nossos filhos?”. ‘Ou hem negamos a existéneia do problems ou entao ren- tamos aterrar. A partir: de agora, é isso que nos divide, muita ansis do que saber se somos de diveica ou de esquerda. isso vale tanto para os antigos babitantes dos paises ri ‘cos quanto para seus ficures habitantes, OS primeiros, porque saivem que nfo existe planeta compativel coma globalizaga0, & {que precisario mudar radiealmente seus mods de vida; 08 Se gundos, porque tiveram que deixar seu antigo solo devastadoe sprender,elestambéma masdar par aorapleto seus madlos de vida Em outras palavras, a crise migratoria se generalizou, ‘Aos migrantes Vindos de fora, que eruzam as fronteiras correndo o risco de enormes tragédias para deixar seus pat- ses, untam-se, a partir de agora, os migrantes de dentro, qu sinda que permenegam no mesmo lugar, vivem 0 drame de se verem abandonados por seus pafses. © gue vorna.a atise migra Orla tia dificil de entender é que ela é o sintoma, em maior ‘ou menor grau de aflicao, de uma provagio comum & todos: @ de se deseobrir privados de terra. Poi é esea provagso que explica a relativa indiferenc® diante da urgéncia da situagio. € também 0 fato de sermos t0- dos climato-quietistas,* j@ que esperamos que “rado aeabe s¢ resvivendo no final..” sem nada fazermos para isso. B impos- sivel no nos preocuparmos com os ‘efeitos que tém sobre nos- soestado mental as noticias que ouvimos todos os dias weerc® 14 Wolo Face B Gola (op. elt), Latour trata como cmoto-qulelsme a "wodalviade” de negcionismo na qual seus adeptos $0 rant i” asses dante das noticias do colpso clmstica, encontrande cone a eoparanca de nBo sort grave assin ou de que algume soluese vpagia ir aparece. O autor explice que owermo “guatsmo” s° s6 39 aaae refexbncia atradicBo religiosa na qual 0s fide confiavam a Deus ° ‘cuidedo com sua salvagHo"(p. 20) (NAT) 45 — Onde aterrar? eeeeenen tas do estado do planeta, Como nao nos sentirmos internamente deyastados pela ansiedade de nto sabermos responder a isso? Essa inquietude aomesmo tempo pessoal e coletiva que mostra a importéncia da eleigéo de Trump_—episédio que,em outras circunstaneias, s6 seria concebivel no roteiro de uma série de televisio bastante medfoere. Os Estados Unidos tinham duas opgoes: ao perceber & dimensto da mutacao e @ imensidao de sua responsabilidade, poderiam enfim tornar-se realistas e conduzir 0 “mundo livre” para fora do abismo, ou poderiam mergulhar na negagio. Aque- les que se escondem atrés de Trump decidiram iludir a Améri- ca por mais alguns anos ¢ retardar sua aterrissagem, empur- rando os outros paises para o abismo ~talvez definitivamente, 3- ‘Atépouco tempo atrés, a questio da aterrissagem niio se coloca- va aos povos que haviam decidido “modernizar’ o planeta. Ela 86 se impunha, ede modo muito doloroso, aqueles que, quatro rulos atnis, sofferam o impacto das “grandes descobertas’, dos impérios, da modernizagio, do desenvolvimento e, finalmente, da globalizagio. Bles sim sabem perfeitamente o que quer dizer estar privado de sua terra. Mais que isso, eles sabem muito bem ‘que significa ser expulso de sua terra, Com o tempo, nio tive ram outra escolha a nao ser se tornarem especialistas na tarefa de sobreviver a conquista, & exterminagao, ao roubo de seu solo. A grande novidade para os povos modernizadores de outrora é que a questio de aterrar agora se dirige ales tanto quanto aos outros. Talvez de modo menos sangrento, menos brutal, menos nftido, mas também para eles se trata de um ata- que extremamente violento para retiraro territério daqueles que, 16 — Bruno Latour até entiio, possufam um solo —ainda que no raro tal solo tenha sido tomado de outros povos por meio de guerras de conquista. ‘Temosai um sentidoimprevisto para otermo “pés-colonial, como se houvesse uma semelhanga familiar entre dois senti- mentos de perda: “Vocés perderam seu territério? Nés 0 to- mamos de vocés? Pois saibam que agora nés é que estamos em vias de perder 0 nosso...”. H ent&o, estranhamente, no lu- gar de um senso de fraternidade que soaria indecente, surge uma espécie de novo vineulo que desloca o conflito classic “Como voces fizeram para resistir e sobreviver? Também seria legal aprender isso com vocés”.1® A resposta imediata a essas perguntas, irdnica, é dita em voz baixa: “Welcome to the club”. Em outras palavras, a impressio de vertigem, quase de panico, que atraves a0 fato de que 0 solo desaba sob os pés de todo mundo ao emos atacados por todos s2 toda a politica contemporanea dev mesmo tempo, como se nos senti (08 lados em nossos habitos e bens. Voce j reparou que nto sto as mesmas emogdes desper- tadas quando se ¢ instado a defender a natureza— vocé boce)a de tédio — ou a defender seu territério ~ voce imediatamente se sente mobilizado? Sea natureza se transformou em territério, nfo faz mais sentido falar em “crise ecoldgica’, em “problemas de meio am- biente’, em questo de “biosfera"a ser recuperada, salva, prote- gida. O desafio é muito mais vital, mais existencial-e também 15 Aespresso “aprendera vivernas ruinas” vem do importantissin tivo ‘do Anna Lawenhaupt Teing, The Mushroom of the End of the World: On the Possibility of Lie in Capitlist Ruins, Princeton: Princeton Universi= ty Prass, 2015, Esse argumento fol rotomado w desenvolvido com base ‘om outros examples em Anna Lowenhaupt Tsing, Nils Subandt, Elaine Ganet, Heather Anne Swanson (di), Arts of Living on a Damaged Pro et: Ghosts and Monsters ofthe Anthopocene, Minneapolis: Unversity ‘of Minnosota Press, 2017 17 — Onde aterrar? muito mais compreensivel, pois muito mais direto. Quando o tapete é titado debaixo dos seus pés, voce entende num segun- do que tera de se preocupar como assoalho.. ‘Oque esté sendo tirado de nds diz respeito a nossos vineulos, nosso modo de vida; é uma questao de solo, da pro- Pricdade que desaba sob nossos pasos, ¢ essa preocupagao atinge todos da mesma forma, tanto os antigos cotonizado- res quanto os antigos eolonizados. Na verdade, no, ela apa- Vora muito mais os antigos colonizadores, menos habituados ‘ essa situagio que os antigos colonizados. A tiniea certeza é que todos estao diante de uma caréncia universal de espago.a compartilhar e de terra habitavel. Mas de onde vem tanto pinico? Do mesmo profundo sen- ‘timento de injustiga experimentado por agueles que se viram privados de suas terras &época das conquistas, depois durante a colonizacao e, por fim, durante a era do “desenvolvimento”: uma forga vinda de fora o despoja de sew cerritério evoeé no pode deté-le, Se ¢ isto a globalizagéo, entdo compreendemos retrospectivamente por que resistir sempre foi a tinica solucao, or que 0s colonizados sempre tiveram razio em se defender. Esse ¢ o novo modo de perceber a condigao humane uni- versal —uma universalidade completamente perversa (a wicked universality). é verdade, mas a Unica da qual dispomos, uma vez que 2 precedente, a da globalizagao, parece desaparecer do horizonte. A nova universalidade consiste em sentir que o solo esté em vias de ceder, sto ja ndo deveria bastar para entrarmos num acordo ¢ pre- venirmos as futuras guerras pela apropriagio do espago? Prova- velmente no, mas nossa inica safia estd em descobrirmos juntos qual tertitério ¢ habitavel ¢ com quem podemos compartilhs-o. Aalternativa seria fingirmos que nadaesté acontecendo e, brotegendo-nos atris de uma muralha, prolongarmos o sonho 18 — Bruno Latour intransponiveis e impegamos a invasao! Go American way of life, do qual sabemos que, muito em breve, nove ou dez bilhdes de humanos nio poderio mais usufrui MigragGes, explostio de desigualdades ¢ Novo Regime Climatico: trata-se da mesma ameaca. B por mais que a maior parte de nossos concidadaos subestime ou mesmo negue 0 ‘que est acontecendo com a terra, eles compreendem perfei- tamente que a questo dos imigrantes ameaca seus sonhos de uma identidade garantida, Até o momento, tendo sido bem mobilizados e orien- tados pelos partidos ditos “populistas’, eles compreenderam ‘amutacdo ecolégica em apenas uma de suas dimensées: ela ‘obriga pessoas que nao stio consideradas hem-vindas a cruza- rem as fronteiras, e por isso a resposta: “Ergamos fronteiras Maséeoutra dimensao dessa mesma mutago que eles ainda ndo compreenderam muito bem: o Novo Regime Cli- _ miético vem hé tempos varrendo todas as fronceiras e nos ex- ~ pondo aos quatro ventos, sem que haja meio de construirmos muros contra os invasores. Se queremos defender o territorio a que pertencemos, precisamos idenrificar também essas migragdes sem forma e ‘Sem nac&o que chamamos de elima, erosdo, poluigao, esgota- mento de recursos, destruigao dos habitats. Mesmo bloquean- do as fronteiras aos refugiados humanos, nunca ser possivel ‘mpedir a passagem desses outros. “Entao quer dizer que mais ninguém esta em sus pro- Bria casa?” Exatamente, Nem a soberania dos Estados nem o blo- ueio das fronteiras podem mais se fazer passar por politica. "Mas se tudo esta aberto, precisaremos entao viver do lado de fora, sem nenhuma protegio, & mercé de todos os ven- _ t0s, misturados a toda a gente, brigando por qualquer motivo, 49 — Onde aterrar? sem mais garantia alguma, deslocando-nos permanentemen- ‘te, perdendo toda identidade, todo conforto? Quem consegue viver assim?" Ninguém, é verdade. Nem um passaro, nem uma eélu- ‘4, nem um imigrante, nem um capitalista. Mesmo Diégenes tem direito a um barril; um némade, & sua barraca; um refue giado, a seu asilo. Nem por um segundo acredite naqueles que defendem a exploragao da imensidao dos mares,'® assumindo riseos, aban- donando todas as protegdes, e que seguem apontando para o horizonte infinito da modernizagao para todos. Esses “bons samaritanos" s6 correriio riseas, se 0 seu proprio conforto es- iver garantido, Em vez.de ouvir o que falam da boca para fora, Perceba 0 que eles trazem nas costas: voee verd reluzir o pa- Taquedas dourado, cuidadosamente dobrado, que os provege contra todos os perigos da exiseéncia, O direito mais elementar é o de sentir-se seguro ¢ pro- ‘tegido, sobretudo num momento em que as antigas protegdes esto desaparecendo, Eesseo sentido da hiseéria que deve ser descoberto: de que modo reconstituir as bordas, os invélucro como encontrar uma base sdlida, considerando, ao mesmo tempo, o fim da globalizagio, a amplitude das migragdes e 03 limites impostos & soberania dos Hstados a partir de agora confiontados com as mudangas climaticas? as protegdes; 46 Acxprossio “io grand large significa “mar aberto: Possivelmente Lae tour a utiliza tendo como referencia a tradugo para o francés da pece Vida de Galleu’ de Sertola Brecht, na qual oprotagonieta compara a \Sescaberta do universo infnito que ‘ua cigncia inaugurara com a ex: Ploragio dos mares permitida pelas grandes navegacbes, Cf. “Lavie de ‘Gaulées trad. Eloi Recoing (Paris, LArcne éditeur, 1990). Para dar mais centralidade 20 especto da amplitude que a expresso carmega, optamos or traduzi-la por “imensieie dos mares! (NAT), 20 — Bruno Latour tases ‘Mais que isso: como tranquilizar os que nao veem outra , Para uma llustragao Impressionante da cons ‘rugdo dease mundo offshore, veros Paradise Papers publicados pelo In- ternational Consortium for Investigetive Journalism em 2017: . Acesso.em {jun 2020. 30 — Bruno Latour cadeia, motivada pela reagio da Terra &s nossas investidas. Fomtos nds que comegamos ~ nés, 0 antigo Ocidente, e, mais precisamente, a Europa. Nao hé nada mais a fazer seniio apren- der a viver com as consequéncias daquilo que deseneadeamos. ‘20 podemos compreender o crescimento vertiginoso das desigualdades, « “onda de populismo” ¢ nem a “crise mi- gratoria’, se nfo entendermos que estas sio trés respostas ~ ‘em larga medida compreensivels, ainda. que no sejam efica- zes—A Teaco colossal de um solo aquilo que a globalizacao 0 fez softer. Uma vez diante da ameaga, decisio parece ter sido nao enfrenté-la, mas fugir. Alguns buscaram abrigo no exi- lio dourado do 1% ~ “Os super-ricos devem ser protegidos em primeiro lugar!” ~; outros esconderam-se atras de fronteiras seguras ~ “Por piedade, garanta-nos ao menos uma identida- de estivel” ~; por fim, outros, 08 mais miscraveis, tomaram 0 caminho do exilio. No fim das contas, todos séo, de um modo ou de outro, 08 “abandonados pela globelizacao” (-menos), que comega perder seu poder de atragao. 6— Segundo a hipotese levantada aqui, as elites obscurantistas te- ‘iam levado a ames¢s a serio. Blas teriam entendido que sua dominancia estava ameagada e decidido desmantelar a ideoto- gia de um plancta comum a todos. Teriam também compreen- dido que um abandono como esse nfo poderia de modo algum ser explicitado; por isso, seria preciso obliterar seeretamente todo o conhecimento cientifico sobre a ameaga. Tudo isso a0 Jongo dos tilcimos trinta ow quarenta anos. 31 — Onde aterrar? Tee ee A hipétese parece inverossimil: a ideia de denegagao se ‘assemelha demais st uma interpretagio psicanalitica oua uma teoria da conspiragéo.2” Contudo, ela se torna mais plaustvel se fizermos a su- posigao bastante razoiivel de que as pessoas rapidamente des- confiam quando se esconde alguma coisa delas, e se prepara para agir em resposta a isso. Ainda que nao haja um flagrante da traigto, os efeitos da desconfianga sio bem visiveis. No momento, o mais evidente deles ¢ o delirio epistemolégico que se apoderou da cena pi- blica desde « eleigao de Trump. A negagdio nao é uma situagio confortavel. Negar émen- tit friamente e, depois, esquecer que mentiu~mas constante- mente lembrando-se da mentira, apesar de tudo. Bextenuante, Podemos nos perguntar o que tal confuséo provoca &s pessoas que caem nessa armadilha. Isso as deixa loueas, Tratemos primeiro desse “povo" que os comentaristas politicos autorizados parecem estar descobrindo de repente. Os jornalistas abragaram a ideia de que 0 povao se tornou par- tidario dos “econtecimentos alternativos”, a ponto de esquecer qualquer forma de racionalidade. Passaram entao a acusar exsa boa gente de se com- prazer com suas visdes estreitas, seus medos, sua congénita desconfianga em relago as elites, sua deplordvel indiferen- a pela propria ideia de verdade e, prineipalmente, com sua paixdo pela identidade, pelo folclore, pelo areaismo e pelas 27 0 problema das teorlas da conspiracii, come bem cbserveu Luc Boltanskl, & que elas as vezes sBo o que ha de mais real (Luc BoftansW, Enigmes et Complote. Une enquete 6 propés denquétes, Paris: Gallimard, 2012). Um lvro bem convincente sobre isss 6. de Naney Maclean, Da- ‘mocracy in Chains: The Deep History of the Radical Right's Stealth Plon for America, Londres: Penguin Randon House, 2017 82 — Bruno Latour — fronteiras ~ sem esquecer de sua condendvel indiferenca pelos fatos. Disso decorre 0 sucesso da expressilo “realidade alter- native’, No entanto, acredicar nisso € esquecer que esse “povo” ‘foi friamente trafdo por aqueles que abandonaram a ideia de evar a cabo a modernizagao do planeta com tado mundo, jt que estes souberam, antes de qualquer um, que aquele mun- do era impossivel, precisamente por falta de planeta vasto 0 suficiente para estender a todos seus sonhos de crescimento, ‘Antes de acusot 0 “povo" de nio mais acreditar em nada nem ninguém, é preciso considerar o efeito dessa imensa trai- io de confianga: ele foi abandonado num deseampado. Nenhum conhecimento comprovado, como bem sabe- mos, sustenta-se sozinho. Os fatos s6 ganham corpo quando, para sustenté-los, existe uma cultura comum, instituigoes nas quais se pode confiar, uma vide publica relativamente decente, uma imprensa confiavel na medida do possivel. a Eno entanto, se esperava das pessoas @ quem nunea fora anunciado abertamente (ainda que elas pudessem pressenti- Jo) que todos 08 esforgos de modernizacao empreendidos a0 longo de dots séculos corriam o risco de serem abandonados, que viam todos 0s idenis de solidariedade serem jogados a0 ‘mar por aqucles que as lideravam ~ se esperava dessas pessoas ‘que tivessem nos fatos cientificos a mesma confianga de um Louis Pasteur ou de uma Marie Curie! Mas o desastre epistemologico ¢igualmente grande en- tre os responsiiveis por essa tremenda traigio, 28 Dominique Pestre, Introduction aux Science Studies, Paris: La Dé= ‘ouverte, 2006, para uma apresentagSo; para um resume pedagogio, ‘bruno Latour, Cogitamus, Sir lettres sur Tes humanités scientifiques, Pris: La Découverte, 2010. 33 — Onde aterrar? Para.se convencer disso, basta acompanhar diariamen- te 0 caos que reinana Casa Branca desde a chegada de Trump. Como respeitar os fatos mais estabelecidos, quando se deve negara magnitude da ameaga e travar, ainda que sem aiunciar, uma guerramundial contra todos os outros? E como conviver com um ‘elefante na sala’, como diz:a expresso popular, oucom orinoceronte de Ionesco, Nada pode ser mais desconfortavel. Bsses imensos animais roncam, evacuam, rugem, te esmagam. e impedem de coneatenar qualquer pensamento. O Salo Oval se tornou un verdadetro zoolégico, O fato € que a negacio intoxica tanto os que colocam em pritica esse descaso quanto aqueles supostamente enga~ nados por ela (examinaremos a trapaga particular do “trum- pismo” mais & frente). A tiniea diferenga, e ela é enorme, é que os super-ricos, dos quais Trumo é apenas um atravessador, adicionam & sua fuga um outro crime imperdoavel: a negacdo compulsiva das eién- cias do clima, Isso faz. com que as demais pessoas tenham que se virar em meioa um nevoeiro de desinformagao, sem que nin- guém nunealhes diga em momento algum que a modernizagio foi encerrada e que uma mudanga de regime se tornou inevitavel, Se é verdade que as pessoas comuns jé tendiam a descon- fiar de tudo, elas foram levadas, gragas 20s bilhdes de délares investidos ra desinformagio, a desconfiar de um fato muitis- smo s6lido: a mutagao do clima.29 A questao € que, para en- frentar esseproblema a tempo, seria preciso confiar desde logo cedo na soliiez desse fato, de modo a pressionar os politicos a ‘agit antes que fosse tarde demais. No momento em que ainda era possivel encontrar uma saida de seguranga, os céticos do 29 James Hoggan, Climate Cover-Up. The Crusade to Deny Global War- ming, Vancouver: Greystone Books, 2009. 34 — Bruno Latour clima se colocaram na frente dela para barrar 0 acesso do pui- blico. Quando chegar a hora do julgamento, é desse crime que eles terdo de ser acusados.5° As pessoas néo se do conta propriamente de que a ques- ‘to do negacionismo climético organiza toda a politica do tempo presente.* B, portanto, uma abordagem superficial chamar o proble~ ma deuma politica da “pés-verdade’, como fazem os jornalistas. Bles nfo enfatizam 0 motivo por que alguns decidiram conti- nuar fazendo politica abandonando voluntartamente 0 vineulo ‘com a verdade que os aterrorizava (nto sem raziio). Tampouco discutem o porqué de as pessoas comuns terem resolvido aqui ‘também nao sem razo ~ nfo acredicar em mais nada, Depois, de todos os sapos que tentaram fazé-las engolir, dé para enten- der que desconfiem de tudo e que nso queiram ouvir azuis nada, A reagito da imprensa a0 negacionismo prova que a si- ‘tuagao infelizmente nao ¢ melhor entre agueles que se van- gloriam por se acharem 0s “esp{titos racionais’, que se indig- nam com a indiferenga aos fatos demonstrada pelo Ubu Rei ou que denunciam a estupidez das massas ignorantes. Aque- les que o fazem continuam aereditando que os fatos se sus- tentam sozinhos, sem precisar de um mundo compartilhado, de instituigdes e de uma vida publica, e que bastaria simples- ‘mente reunir as pessoas comuns numa boa sala de aula como 30 Ver ocurto@ desconcertante livre de Erik M. Conway @ Naomi Ores- es, The Collopse of Western Civilization: A View from the Future, Nova ‘ork: Columbia University Press, 2014 31 O que nie quer dizar que os comentaristas astejam conscientes dls 0, Em um livro-maniesto publicado om doze linguas que ratine © que 0s intelectuals tem a dizer sobre a "grande regressio” ~ entencerse, a ssurpresa quo elas santem diante do “aumento do populismo” ~, apenas um capitulo, 0 meu, aborda essa questo: Heinrich Geisolborger (or), ‘The Groot Regression, London: Polity, 201% 35 — Onde aterrar? antes, com quadro negro ¢ ligdes a estudar, para que a tazio enfim triunfasse. ‘Mas esses tipos “racionais” também esto presos nas ar- madilhas da desinformagio. Nao entendem que de nada serve se indignar porque as pessoas “acreditam em fatos alterna- tives", quando eles préprios vivem de verdade em um mundo alternativo — um mundo no qual a mutagao elimatics existe, © que nao acontece no mundo de seus oponentes. A questio, portanto, nao é saber como eorrigir as fa- Ihas do pensamento, mas sim como partilhar a mesma cultu- 1a, enfrentar os mesmos desafios e vislumbrar um panorama que possamos explorar conjuntamente. A primeira atitude demonstra ovieio habitual da epistemologia, que consiste em atribuira supostos déficits intelectunis algo que é meramente um déficit de pratiea comum. 7A Se a chave para compreender a situagio atual nao se encon- trana falta de inteligéncia, € preciso procur’-la na forma dos tertitdrios nos quais essa inteligéncia se manifesta. Ora, € jus- tamente af que reside o problema: existem, hoje, varios terri- térios incompativeis uns com os outros. Para simplificar, suponhamos que, até agora, cada um dos que aceitavam se curvar 20 projeto da modernizagio podia encontrar sett lugar nele gragas a um vetor que, grosso modo, ia do local em diregao a0 global. Eraem diregio a0 Globo, com um G maiisculo, que tudo caminhava; aquele Globo que projetava o horizonte a0 mesmo tempo cientifico, econdmico, moral, o Globo da globalizagao- -mais. Tratava-se de um marco ao mesmo tempo espacial ~ 36 — Bruno Latour a cartografia -€ temporal ~2 flecha do tempo langada em di- regiio ao fururo. Esse Globo, que arrebatou geragdes por ser sindnimo de rigneza, de emancipagio, de conhecimento e de ‘acesso a uma vida confortavel, trazia com ele uma certa defi- nigdo universal do humano. ‘Aimensido dos mares, finalmente! Enfim, deixar olar! O universo infinito, afinal! Raros foram os que nao ouviram esse chamado. Podemos imaginar o entusiasmo que isso ¢au- sou entre os que puderam se beneficiar ~ ainda que nao nos surpreenda horror que a globalizasio suscitou junto aqueles que cla foi destruindo pelo caminho. (© que era preciso abandonar para se modernizer era. 0 Local. Também com maiiiscula, para no ser confundido com ‘algum habitat primordial especifico, com alguma terra ances- tral, algum solo de onde autéctones tenham surgido. Néo ha nada de aborigene, nada de nativo, nada de primitivo nesse terroir reinventado depois que a soderaizagio extinguiu as antigas pertengas. E um Local por contraste, Um anti-Global. Uma vez identificados esses dois polos, ¢ possivel tragur «um frone de modernizagio pioneiro. Hle se caracterizava pela injungio a modernizar, demandando-nos estar preparados pare ‘todos os sacrificios: deixar nossa provineia natal, abandonar nossas tradigdes ¢ mudar nossos hdbitos, caso quiséssemos “avangar’, participar do movimento geval de desenvolvimento ¢,enfim, desfrucar do mundo, Decerto, estévamos divididos entre duas ordens con- raditétlas—avangar rumo 20 ideal de progresso ou recuar em diregto as certezas antigas -, mas essa hesitacdo, esse impas- se, no fim das contas nos vinhe a ealhar. Assim como os pari- sienses sabem se orientar no curso do Rio Sena acompanban- do a sequéneia dos nlimeros pares e impares de suas tuas, nds sab{amos nos situar no curso da historia. 37 — Onde aterrar? eee

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