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Caso L-42/21
Estado da Ruritânia
(Demandado)
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Lista de Fontes
1) Jurisprudência:
a. Nottebohm Case (second phase), Judgment of April 6th, 1955, I.C.J. Reports 1955;
b. Processo C-221/17 (Tribunal de Justiça da União Europeia, março, 12, 2019);
c. Processo C-89/17 (Tribunal de Justiça da União Europeia, julho, 12, 2018);
d. Processo C-208/09 (Tribunal de Justiça da União Europeia, dezembro, 22, 2010);
e. Processo C-135/08 (Tribunal de Justiça da União Europeia, março, 2, 2010);
f. Processo C-200/02 (Tribunal de Justiça da União Europeia, outubro, 19, 2004);
g. Processo C-148/02 (Tribunal de Justiça da União Europeia, outubro, 2, 2003);
h. Processo C-524/06 (Tribunal de Justiça da União Europeia, dezembro, 16, 2008);
i. Processo C-413/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia, setembro, 2, 2002);
j. Processo C-369/90 (Tribunal de Justiça da União Europeia, julho, 7, 1992);
k. Processo C-192/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia, fevereiro, 20, 2001);
l. Processo C-179/98 (Tribunal de Justiça da União Europeia, novembro, 11, 1999);
m. Processo C-184/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia, setembro, 20, 2001);
n. Processo C-64/96 (Tribunal de Justiça da União Europeia, Junho, 5, 1997);
o. Processo C-149,79 (Tribunal de Justiça da União Europeia, dezembro, 17, 1980);
p. Processo C-135/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia, novembro, 23, 2000);
q. Processo C-120/95 (Tribunal de Justiça da União Europeia, abril, 28, 1998);
r. CASE OF VON HANOVER v. GERMANY, Application no.40660/08 and
60641/08 (European Court of Human Rights, February 7th, 2012);
s. Processo C-165/14 (Tribunal de Justiça da União Europeia, setembro, 13, 2016);
t. Processo C-182/15 (Tribunal de Justiça da União Europeia, setembro, 6, 2016);
u. Processo C-89/17 (Tribunal de Justiça da União Europeia, julho, 12, 2018);
v. Processo C-222/84 (Tribunal de Justiça da União Europeia, maio, 15, 1986);
w. Processo C-15/95 (Tribunal de Justiça da União Europeia, abril, 17, 1997);
x. CASE OF BUGHARTZ v. SWITZERLAND, Application no. 16213/90 (European
Court of Human Rights, Frebruary 22nd, 1994)
y. Processo C-353/06 (Tribunal de Justiça da União Europeia, outubro, 14, 2008);
z. Processo C-33/07 (Tribunal de Justiça da União Europeia, julho, 10, 2008);
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aa. Processo C-406/04 (Tribunal de Justiça da União Europeia, julho, 18, 2006);
bb. Processo C-544/07 (Tribunal de Justiça da União Europeia, abril, 23, 2009);
cc. Processo C-36/02 (Tribunal de Justiça da União Europeia, outubro, 14, 2004);
dd. Processo C-391/09 (Tribunal de Justiça da União Europeia, maio, 12, 2011);
ee. Processo C-41/74 (Tribunal de Justiça da União Europeia, dezembro, 4, 1974);
ff. Processo C-30/77 (Tribunal de Justiça da União Europeia, outubro, 27, 1977);
gg. Processo C-54/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia, março, 14, 2000);
hh. Processo C-36/75 (Tribunal de Justiça da União Europeia, outubro, 28, 1975);
ii. Processo C-348/96 (Tribunal de Justiça da União Europeia, janeiro, 19, 1999).
3) Revistas/Jornais online:
a. https://expresso.pt/internacional/2021-04-22-Malta-vendeu-nacionalidade-a-pessoas-
que-passaram-menos-de-tres-semanas-no-pais-ou-que-apenas-alugaram-um-iate-
fd9d36de consultado a 15/10/2021
b. https://apnews.com/article/europe-immigration-malta-
c0acd6b8f505d2493aa4cdc62413f066 consultado a 15/10/2021
c. https://www.transparency.org/en/press/golden-passports-visas-eu-commission-
shows-teeth-advances-legal-action-cyprus-malta# consultado a 17/10/2021
d. https://www.publico.pt/2021/10/07/mundo/noticia/tribunal-constitucional-polaco-lei-
nacional-acima-leis-europeias-1980240 consultado 14/10/2021
e. Deprivation of citizenship, European Court of Human Rights, December 2020,
disponível online em:
https://echr.coe.int/Documents/FS_Citizenship_Deprivation_ENG.pdf (consultado a
1/11/2021)
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4) Livros:
5) Artigos Cientificos:
6) Legislação Europeia:
a. Direito Primário:
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i. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
ii. Tratado da União Europeia
iii. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
iv. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (Versão Compilada de
1997) Tratado de Lisboa.
b. Direito Derivado:
7) Opiniões de Advogado-Geral:
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Lista de abreviaturas, siglas e acrónimos
1. Abreviaturas:
Art.º – artigo
Arts. – artigos
Al. – alínea
Para. – parágrafo
P. – página
Pp. – páginas
N.º – número
Ss. – seguintes
2. Siglas e Acrónimos:
UE – União Europeia
7
EM – Estado-Membro
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Enquadramento factual
De 1974 a 2017, Miguel da Sildávia residiu nos Estados Unidos da América com a sua
família. Desde 1974 que a família viajou com passaportes emitidos pelo Estado da Ruritânia, em
nome de “Miguel, antigo rei da Ruritânia”, conforme indicação do Ministério dos Negócios
Estrangeiros da Ruritânia, que afirmou que os membros da antiga família real mantinham a
nacionalidade ruritana.
A Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho, introduziu novos requisitos para atribuição da cidadania
ruritana a anteriores membros da família real, tornando inválidos os passaportes utilizados pela
família até então. Desta feita, a antiga família real adquiriu passaportes diplomáticos emitidos pelo
Reino da Sildávia.
Desde 2017 que a família reside, de forma permanente, na Ruritânia. Nesse mesmo ano,
Miguel da Sildávia procurou registar-se como empregador junto do Sistema Nacional de Segurança
Social, tendo-lhe sido recusado o pedido. Em 2018, os membros da família requisitaram a
atribuição de passaportes na Ruritânia, tendo-lhes sido, novamente, recusado o requerimento.
Paralelamente, a família adquiriu a cidadania do Reino de Otokar, através de um programa de
captação de investimento, legalmente previsto no ponto n.º 1 do art.º 7.º da Lei da Nacionalidade de
Otokar. Volvidos três meses, a família viu rejeitada pelo Estado da Ruritânia a sua tentativa de
formalizar o direito de residência no país, nos termos do art.º 14.º da Lei n.º 18/2006, de 1 de
março, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2004/38/CE (segundo a qual os
membros da família real preenchem os requisitos para formalizar tal direito).
Assim, conjugando os artigos 4.º, 7.º, 20.º e 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia com o art.º 21.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, os membros
da família real recorreram ao Supremo Tribunal Administrativo da Ruritânia, contestando a decisão
de rejeição dos seus pedidos pelo Estado da Ruritânia. Por sua vez, o Estado da Ruritânia rejeitou
todas as alegações da antiga família real.
9
O STA da Ruritânia considerou que existiam dúvidas de interpretação do Direito da União
Europeia quanto às questões levantadas, tendo submetido um pedido de decisão a título prejudicial
ao TJUE, nos termos do art.º 267.º do TFUE.
Sumário
No caso em questão, os membros da AFR vêm os seus direitos limitados pelo Estado da
Ruritânia, no que toca à obtenção de documentos de identificação, nomeadamente passaportes,
devido aos apelidos que utilizam, aquando da entrada em vigor da Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho.
Deste modo, os membros da AFR viram-se forçados a recorrer a passaportes diplomáticos do Reino
da Sildávia. Todavia, devido ao modo como esta lei nacional entrou em vigor, verificamos que
desrespeita os princípios gerais do direito da União Europeia. Assim sendo, não pode servir de
justificação para impedir o exercício do direito fundamental de livre circulação e residência no
território dos Estados-Membros, protegido pelo art.º 21 do Tratado sobre o Funcionamento da
União Europeia.
A AFR sempre reconheceu a República da Ruritânia, não constituindo uma ameaça à ordem
pública do país. Deste modo, é injustificável que a Ruritânia lhes negue os direitos de cidadania da
União por motivos de ordem pública. Regra geral, as normas relativas à atribuição de cidadania são
da competência dos Estados-Membros. Contudo, no exercício dessa competência, estes devem
respeitar o direito da União. Ora, a Ruritânia, através de leis individuais e concretas, não pode
rejeitar os pedidos de emissão dos passaportes da AFR, pois tal situação contraria o direito primário
da União (concretamente, o art.º 21 do TFUE, conjugado com os artigos 4.º, 7.º, 20.º e 47.º da
CDFUE).
10
existência de um “vínculo genuíno” dos mesmos com o Estado de Otokar, na aceção do acórdão
Nottebohm do Tribunal Internacional de Justiça.
Entende-se, por um lado, que a definição das condições para a atribuição da cidadania
nacional é exclusiva dos Estados, no respeito pelo Direito da União Europeia. Ora, tendo em conta
estes preceitos, e verificando-se que o art.º 7.º, n.º 7 da Lei n.º 1/2016, de 1 de março não constitui
violação dos Tratados nem do Direito da União Europeia, só podemos concluir que a atribuição, por
parte do Estado de Otokar, da cidadania, nos termos da supramencionada lei, é compatível com os
Tratados.
11
Competência
12
Mérito
a) O Estado da Ruritânia não pode restringir a adoção de apelidos por parte da antiga família
real e, por conseguinte, impedir o exercício do direito protegido pelo art.º 21.º TFUE.
Constata-se que, durante um longo período, Miguel da Sildávia e a sua família utilizaram, de
forma contínua, o apelido constante nos passaportes emitidos pelo Estado da Ruritânia. Importa
salientar que muitos atos da vida quotidiana exigem a prova de identidade, que normalmente é feita
com o passaporte. Evidentemente que, ao longo de 20 anos, várias foram as marcas causadas nas
suas esferas jurídicas.
Ainda que as regras que regulam os apelidos dos cidadãos sejam da competência de cada
Estado-Membro, estes devem respeitar o direito da União1. Posto isto, se tivermos em consideração
1
Acórdão de 14 de outubro de 2008, Grunkin e Paul, processo C-353/06 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 16; vide, no
mesmo sentido, Acórdão de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello, processo C-148/02 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para.
13
que a AFR se baseou na designação dos passaportes emitidos pela Ruritânia durante 20 anos, para
exercer o seu direito de livre circulação e permanência na UE 2, protegido pelo art.º 21.º TFUE,
constatamos que é de extrema relevância que o direito da União seja respeitado.
Assim sendo, verificamos que as normas nacionais da Ruritânia fazem com que a parte
determinante do nome dos membros da AFR seja eliminada, o que não só representa um desrespeito
pela sua vida privada, como causaria confusão quanto à sua identidade e teria implicações na sua
esfera jurídica pública e privada, podendo mesmo provocar um entrave ao exercício do direito
decorrente do art.º 21.º TFUE. É importante notar que medidas restritivas de uma liberdade
fundamental só podem ser justificadas por razões ligadas à ordem pública 5 e devem respeitar o
princípio da proporcionalidade6.
25
2
Vide, por analogia, CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL E. SHARPSTON, apresentadas a 14 de outubro de 2010, sobre o
acórdão Sayn-Wittgenstein, processo C-208/09 (Tribunal de Justiça da União Europeia), considerando 36 – “Isso implica que,
mesmo que o direito nacional de um Estado-Membro seja o único aplicável à determinação do nome de um dos seus cidadãos, deve
respeitar o direito da UE ao aplicar tal direito nacional para alterar ou rectificar uma inscrição no registo civil quando o cidadão em
questão se tiver baseado em tal inscrição para exercer os seus direitos de livre circulação e de permanência no território dos
Estados-Membros, na qualidade de cidadão da União.”
3
ANOTAÇÕES RELATIVAS À CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, anotação ad artigo 7º - “este direito tem um sentido
e um âmbito iguais aos do artigo correspondente da CEDH.”
4
CASE OF BURGHARTZ v. SWITZERLAND, Application no. 16213/90 (European Court of Human Rights, February 22 nd, 1994),
para. 24 – “As a means of personal identification and of linking to a family, a person’s name none the less concerns his or her private
and family life”; CASE OF STJERNA v. FINLAND, Application no. 18131/91 (European Court of Human Rights, November 25 th,
1994), para. 37 – “Nonetheless, since it constitutes a means of personal identification and a link to a family, an individual’s name
does concern his or her private and family life.”
5
Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Sayn-Wittgenstein, processo C-208/09 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 90
6
Acórdão de 10 de julho de 2008, Jipa, processo C-33/07 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 29; Acórdão de 17 de
setembro de 2002, Baumbast, processo C-413/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 91; Acórdão de 10 de julho de 2006,
De Cuyper, processo C-406/04 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 40
14
A jurisprudência do Tribunal de Justiça já garantiu que um Estado-Membro não pode, de
modo unilateral e sem fiscalização pelas instituições da UE, determinar o alcance do conceito de
ordem pública para justificar a supressão de um direito fundamental 7 como aquele que consta no
art.º 21.º do TFUE. Daqui resulta que a ordem pública só pode ser invocada em caso de ameaça
suficientemente grave8.
Ora, uma vez que a família reconheceu a República da Ruritânia e a Constituição de 1975,
nunca tendo requerido qualquer título ou privilégio que lhes era atribuído pela monarquia
constitucional, não é sustentável argumentar que constitui uma ameaça à ordem pública do Estado
da Ruritânia. Além disso, é de salientar que a monarquia constitucional não foi abolida por qualquer
ato violento (como, por exemplo, uma revolução), mas sim por referendo, pelo que a utilização, por
parte da AFR, de apelidos com títulos nobiliárquicos dificilmente causaria instabilidade no Estado
da Ruritânia, ameaçando seriamente a sua ordem pública.
Além disso, nos termos do art.º 27.º, n.º 2 da Diretiva 2004/38/CE, que facilita o exercício
do direito consagrado no art.º 21.º TFUE9, as medidas tomadas por razões de ordem pública não
podem ser baseadas em motivos de prevenção geral, pelo que não há qualquer justificação para o
impedimento do direito de livre circulação e permanência no território dos Estados-Membros,
concluindo-se que a medida da Ruritânia não é legítima, muito menos proporcionada.
b) O art.º 21.º do TFUE e os artigos da CDFUE proíbem que o Estado da Ruritânia rejeite a
emissão dos passaportes, opondo-se às normas constantes na Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho.
7
Acórdão de 10 de julho de 2008, Jipa, processo C-33/07 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 23; Acórdão de 14 de
outubro de 2004, Omega, processo C-36/02 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 30; Acórdão de 27 de outubro de 1977,
Bouchereau, processo C-30/77 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 33
8
Processo C-208/09 (Tribunal de Justiça da União Europeia, 22 de dezembro de 2010), para. 86; Acórdão de 14 de outubro de 2004,
Omega, processo C-36/02 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 30; Acórdão de 10 de julho de 2008, Jipa, processo C-33/07
(Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 24
9
Acórdão de 12 de março de 2014, Asiel, processo C-456/12 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 35
15
O artigo 21.º do TFUE, como já vimos, consagra o direito que os cidadãos da União
possuem de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros. Este artigo entra
em contradição com a lei nacional da Ruritânia, respeitante à expropriação do património da antiga
família real (Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho), que introduz condicionantes à atribuição de
cidadania ruritana a anterior membro da família real. Primeiramente, a lei referida viola os direitos
de cidadania da União garantidos pelo art.º 21.º TFUE, ao prejudicar o direito de livre circulação e
de permanência na UE, uma vez que se impede a AFR de adquirir a identificação necessária para
viajar e residir livremente nos Estados-Membros, obrigando a que esta recorra a passaportes
diplomáticos emitidos pela Sildávia.
Acresce que a Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho, desrespeita vários artigos da CDFUE. Por
um lado, viola o art.º 7.º, na medida em que interfere com a vida privada e familiar da AFR –
impede o direito de ação perante os tribunais ruritanos, quando são utilizadas designações reais,
mesmo que contenham os prefixos “antigo” ou “anterior” (art.º 6.º, n.º 4) e exige a adoção de um
apelido como requisito para o reconhecimento da nacionalidade ruritana e, consequentemente, para
a emissão dos passaportes (art.º 6.º, n.º 5, al. c).
O art.º 7.º da CDFUE, conjugado com o art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, deve ser interpretado no sentido em que o Estado não pode intervir indevidamente no
exercício do direito por si consagrado, excetuando-se as situações em que tal intromissão não só
esteja prevista na lei, como constitua uma providência necessária para a defesa da ordem pública 10.
Como já foi previamente referido, não é razoável considerar que a AFR constitui uma ameaça à
ordem pública da Ruritânia, pelo que não lhes deve ser negado o direito reconhecido pelo art.º 7.º
da Carta.
Importa também ressalvar que, além do desrespeito pela vida privada e familiar, o art.º 6.º,
n.º 4 da Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho, viola o direito reconhecido pelo art.º 47.º da CDFUE. O
princípio do direito a uma tutela jurisdicional efetiva é um dos princípios gerais do direito da
10
ANOTAÇÕES RELATIVAS À CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, anotação ad artigo 7º - “Não pode haver ingerência
da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que,
numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do
país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das
liberdades de terceiros.”
16
União11, estando também presente na Convenção Europeia dos Direitos do Homem 12. Ora, ao
declarar como inadmissível qualquer ação judicial em que o requerente se identifique com
designações de antigos títulos reais, o Estado da Ruritânia viola claramente o art.º 47.º da Carta, não
sendo legítima a norma apresentada no art.º 6, n.º 4 desta lei nacional.
Neste contexto, importa fazer referência ao princípio da igualdade, outro dos princípios
fundamentais do direito da UE13 que, consequentemente, está inscrito nas Constituições de todos os
Estados-Membros. Este princípio está consagrado no art.º 20.º da CDFUE e no art.º 2.º da
Constituição da Ruritânia, sendo, no entanto, violado pelo art.º 6.º da Lei n.º 2215/1994, de 2 de
julho.
Ademais, o art.º 6.º contém disposições discriminatórias, ofendendo não só o art.º 20.º, mas
também o art.º 21.º da Carta, que diz respeito à não-discriminação. É certo que as normas do art.º
6.º da Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho, se aplicam exclusivamente à AFR, sendo que mais nenhum
cidadão da Ruritânia terá que cumprir tais critérios para que lhe seja atribuída a cidadania. Além
disso, tendo a família, como já foi referido, reconhecido o resultado do referendo que aboliu a
monarquia constitucional, os requisitos em causa cometem uma discriminação em razão da origem
11
Acórdão de 15 de maio de 1986, Jonhston, processo C-222/84 (Tribunal de Justiça da União Europeia), parágrafo 18: “princípio
geral de direito que está na base das tradições constitucionais comuns dos Estados-Membros. Este princípio foi igualmente
consagrado pelos artigos 6º e 13º da convenção europeia para a protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais
(…).”
12
Art.º 6, nº1: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um
tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (…).”
Art.º 13: “Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a
recurso perante uma instância nacional (…).”
13
Acórdão de 17 de abril de 1997, Earl, processo C-15/95 (Tribunal de Justiça da União Europeia), parágrafo 35: “princípio geral da
igualdade, que faz parte dos princípios fundamentais do direito comunitário”
17
social e da pertença a uma minoria nacional, proibida pelo art.º 21.º da CDFUE. A consideração
conjunta de todos estes aspetos constitui um tratamento degradante e injustificável, sendo uma
violação do art.º 4.º da CDFUE, para além de todos os supramencionados.
A aquisição de cidadania nacional não cai no âmbito, até à presente data, da competência da UE
e da sua hard law, continuando, consequentemente, a existir enquanto uma prerrogativa exclusiva
dos Estados15.
Apesar disso, a argumentação utilizada pelo Estado da Ruritânia para sustentar a tese de que
esta aquisição de cidadania, pelos membros da AFR, é incompatível com os Tratados, baseada na
interpretação da cidadania enquanto resultado de um “vínculo genuíno” entre o cidadão e o Estado
(na aceção do acórdão Nottebohm do Tribunal Internacional de Justiça) revela-se incipiente. Isto
não é, necessariamente, um problema: não se deve julgar um Estado por oferecer a sua cidadania de
14
Acórdão de 9 de março de 1978, Simmenthal, processo C-106/77 (Tribunal de Justiça da União Europeia), parágrafo 17: “Além do
mais, por força do princípio do primado do direito comunitário, as disposições do Tratado e os actos das instituições directamente
aplicáveis têm por efeito, nas suas relações com o direito interno dos Estados-membros, não apenas tornar inaplicável de pleno
direito, desde o momento da sua entrada em vigor, qualquer norma de direito interno que lhes seja contrária, mas também — e dado
que tais disposições e actos integram, com posição de precedência, a ordem jurídica aplicável no território de cada um dos Estados-
membros — impedir a formação válida de novos actos legislativos nacionais, na medida em que seriam incompatíveis com normas
do direito comunitário”
15
Scherrer, A., Thirion, E. (2018). Citizenship by investment (CBI) and residency by investment (RBI) schemes in the EU. State of
play, issues and impacts. Retirado de
https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2018/627128/EPRS_STU(2018)627128_EN.pdf , p. 22, para. 1
18
uma forma completamente transparente e legal, como Otokar, independentemente da forma através
da qual essa mesma aquisição se concretiza. 16 De facto, a aquisição de cidadania via programas de
captação de investimento tem uma implicação prática muito reduzida para os outros Estados-
Membros, não implicando muito mais que a obtenção de cidadania da União e dos direitos e
deveres que dela advêm.17
Temos, para efeitos da tese que pretendemos vir a demonstrar, que “cidadania” é,
primeiramente, definida enquanto o “vínculo legal entre um indivíduo e um Estado”, como definido
pelo próprio Serviço de Pesquisa do Parlamento Europeu, sendo que o poder para regular a
cidadania é um atributo essencial e exclusivo, parte da soberania dos Estados-Nação. 20 Adquirida de
16
Kochenov, D. (2018). Citizenship for Real: Its Hypocrisy, Its Randomness, Its Price. Retirado de
https://www.researchgate.net/publication/327598294_Citizenship_for_Real_Its_Hypocrisy_Its_Randomness_Its_Price , p. 3: “…all
these people can become Europeans, however random the rules. But the critique focuses on those countries that offer citizenship for
sale in a perfectly transparent way. This approach is wrong. It is wrong to pretend that any other principle than outright randomness
is at the core of the assignment of citizenship statuses in today’s world.”
18
Veja-se, a título de exemplo: Carrera, S. (2014). How much does EU citizenship cost? The Maltese citizenship-for-sale affair: A
breakthrough for sincere cooperation in citizenship of the union? Retirado de https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?
abstract_id=2430117 , p. 27, para. 2 (atentando nas respetivas notas de rodapé): “On the other hand, by supporting the Nottebohm
standard the European institutions may be in fact fuelling nationalistic misuses by member states of the genuine link as a way to
justify restrictive domestic policies on the acquisition of nationality – such as those driven by so-called ‘social ties’ or
integration/assimilation tests – whose compatibility with other EU general principles (such as that of non-discrimination, diversity
and fundamental rights) remains at stake.”
19
Artigo 18.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia: “No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas
disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade”.
20
M Mentzelopoulou, M., Dumbrava, C. (2018). Acquisition and loss of citizenship in EU Member States. Key trends and issues.
Retirado de https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2018/625116/EPRS_BRI(2018)625116_EN.pdf , p. 2, para. 2:
“Firstly, citizenship describes a legal bond between a person and a state. The power to regulate citizenship is an essential and
exclusive attribute of state sovereignty, and international law imposes only a few limitations to the right of states to regulate
19
acordo com a Lei n.º 1/2016, de 1 de março (Lei da Nacionalidade) de Otokar, de forma totalmente
legal, pelos membros da AFR, a cidadania de Otokar compreende, em si, a cidadania da UE. Não
extravasa os contornos da definição: é um simples vínculo legal entre um indivíduo e um Estado.
Só podemos depreender, como consequência lógica deste corolário, que é evidente ser o
Estado totalmente livre de “desenhar os contornos dessa comunidade”, determinando com certa
discricionariedade quem são ou não os seus nacionais. Desta forma (e como, já “tradicionalmente”,
nos dita o direito internacional), reforça-se a ideia de que está no âmbito do Estado a determinação
dos seus nacionais,21 solução da qual a União Europeia não se afasta: a definição discricionária das
condições de atribuição de cidadania consta da declaração relativa à nacionalidade de um Estado-
Membro, anexa à Ata Final da conferência intergovernamental que aprovou o Tratado de
Maastricht, que confirmou que, nos Tratados, onde se fizerem referências a nacionais de Estados-
Membros, a questão de saber se uma pessoa é nacional de um determinado EM é da soberana e
exclusiva competência desse Estado-Membro nos termos do seu direito interno. 22 Ainda nestes
termos, e apesar de ser sabido que estas declarações, anexas aos tratados, não têm o mesmo valor
jurídico dos mesmos, é um facto que a jurisprudência lhes pode conferir o valor interpretativo que
necessitamos para, a partir da interpretação dos Tratados, confirmar a coerência que a Lei da
Nacionalidade de Otokar tem para com as disposições dos mesmos.23
Para além do exposto anteriormente, resulta também da jurisprudência europeia que, apesar
da matéria relativa à atribuição de cidadania de um EM estar na exclusiva competência do mesmo,
24
esta não deve ser totalmente discricionária, devendo procurar respeitar o direito da União.
Fazemos esta menção para ressalvar que o Reino de Otokar, ao definir as condições de atribuição da
citizenship, in particular with regard to the prohibition of statelessness and the arbitrary deprivation of citizenship.”
21
Vide CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL M. POIARES MADURO, apresentadas a 30 de setembro 2009, sobre o acórdão
Rottman, Processo C-135/08 (Tribunal de Justiça da União Europeia), considerandos 17 e 18.
22
Tratado da União Europeia – declaration on nationality of a Member State, Official Journal C 191, 29/07/1992 P. 0098
23
Vide CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL M. POIARES MADURO, apresentadas a 30 de setembro 2009, sobre o acórdão
Rottman, Processo C-135/08 (Tribunal de Justiça da União Europeia), considerando 19: “É o que resulta expressamente da
Declaração n.o 2, relativa à nacionalidade de um Estado-Membro, aditada pelos Estados-Membros à Acta Final do Tratado da União
Europeia, não podendo objectar-se validamente que as declarações anexas aos Tratados, ao contrário dos protocolos, não têm o
mesmo valor jurídico que os Tratados. Com efeito, a jurisprudência comunitária reconhece-lhes, pelo menos, valor interpretativo.” e,
no mesmo sentido, CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL M. POIARES MADURO, apresentadas a 18 de julho de 2007, sobre
o Processo C-64/05 (Tribunal de Justiça da União Europeia, 18 de dezembro de 2007), considerando 34.
24
Acórdão de 7 de julho de 1992, Micheletti, Processo C-369/90 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 10; ver, no mesmo
sentido, acórdão de 20 de fevereiro de 2001, Kaur, Processo C-192/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 19, assim como
CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL M. POIARES MADURO, apresentadas a 30 de setembro 2009, sobre o acórdão
Rottman, Processo C-135/08 (Tribunal de Justiça da União Europeia), considerando 20.
20
sua cidadania, não vai contra estes pressupostos: a cidadania da União, amplamente entendida como
o estatuto fundamental dos nacionais dos EM´s (consequência direta do art.º 20.º, n.º 1 do TFUE) 25,
em conexão com a nacionalidade de um EM per se, são duas noções que convivem numa espécie de
relação simbiótica e simultaneamente autónoma, na medida em que a cidadania da União decorre da
cidadania do EM, mas compreende um conceito muito mais amplo (e autónomo) jurídica e
politicamente, pois o vínculo aqui pressuposto é entre os cidadãos europeus e não necessariamente
entre indivíduos e um povo.26 Por constituir a pertença a um espaço político comum, com direitos e
deveres inerentes para os cidadãos europeus, esta “cidadania europeia” distingue-se da cidadania
nacional na medida exata em que não exige a existência de um vínculo de pertença a um povo,
abrindo espaço à interpretação de que a lei da Nacionalidade de Otokar é, assim, conforme ao que
são os princípios da nacionalidade europeia e respeita o Direito da União.
Nestes termos, julgamos certa a conclusão de que, nos termos e para os efeitos dos Tratados,
é competência exclusiva dos Estados-Membros a matéria relativa à aquisição da sua cidadania,
sendo consequentemente compatível com os Tratados a Lei da Nacionalidade de Otokar. 27
25
Neste sentido: acórdão de 2 de março de 2010, Rottman, processo C-135/08 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 43 e
acórdão de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk, Processo C-184/99, para. 31.
26
CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL M. POIARES MADURO, apresentadas a 30 de setembro 2009, sobre o acórdão
Rottman, Processo C-135/08 (Tribunal de Justiça da União Europeia), considerando 23, para melhor compreender esta ideia.
27
R O Tching, M. (2012). O Papel dos Tribunais na Construção do Padrão de Jusfundamentalidade da União Europeia e do Estatuto
de Cidadania Europeia. Retirado de https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/20568/1/RosaTching_Dissertacao-Abril
%2712.pdf , p. 78.
21
nacional do Estado de Otokar que permita a prossecução ativa de fins da Convenção Europeia da
Nacionalidade.
Neste sentido, essa (suposta) lei habilitante gera um conflito de interesses entre dois
Estados-Membros, por repercussão do ato administrativo adotado pelo Estado da Ruritânia no caso
concreto, ao imiscuir-se nos assuntos internos de outro EM da UE. Se há um princípio de boa-fé na
relação entre EM’s, não faz sentido que o ato administrativo da Ruritânia recuse a formalização da
atribuição da residência a cidadãos da UE com base na avaliação que faz da incorreção “da
atribuição de cidadania europeia” por parte de outro Estado-Membro (Otokar), muito menos quando
ainda não há qualquer hard law europeia concreta sobre o assunto para sustentar tal fundamentação.
29
Acórdão de 7 de julho de 1992, Micheletti, Processo C-369/90 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 10; ver, no mesmo
sentido, acórdão de 20 de fevereiro de 2001, Kaur, Processo C-192/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 19.
22
temos, no Acórdão Micheletti, de 7 de julho de 1992, que segundo o entendimento do TJUE, “as
disposições do direito comunitário em matéria de liberdade de estabelecimento não permitem que
um Estado-Membro recuse o benefício dessa liberdade a um cidadão de outro Estado-membro, que
possua simultaneamente a nacionalidade de um Estado terceiro, pelo facto de a legislação do Estado
de acolhimento o considerar nacional de Estado terceiro”, cuja interpretação por analogia só reforça
a tese de que a autoridade administrativa do Estado da Ruritânia não se pode simplesmente recusar
a reconhecer direitos de cidadania da União.30
Tomando como referência o conceito de cidadania da União, é importante ter em mente que
este estatuto prevê as liberdades de circulação e residência. 31 Estes direitos não dependem já de
qualquer condicionante para lá da que é preenchida pelo estatuto de cidadão da União, não podendo
ser por isso negado tal exercício de forma discricionária pela administração dos EM’s.
Se a Diretiva 2004/38/CE foi, de facto, bem transposta para o ordenamento jurídico nacional
(ou seja, se a lei nacional prossegue os objetivos previstos pela mesma), a autoridade administrativa
da Ruritânia, segundo a diretiva mencionada supra, só pode restringir a livre circulação e residência
de cidadãos da União “por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública”.
Ora, não nos parece que o caso de aquisição de cidadania, legalmente, num outro Estado-Membro
da União, que em nada ameaça a soberania ou a ordem, a segurança e a saúde públicas do Estado-
Membro de acolhimento constitua algum dos casos, mesmo através da mais extensiva das
interpretações, que vêm previstos na Diretiva enquanto casos de hipotética possibilidade de
restrição ao exercício destes mesmos direitos de cidadania. Deste modo, parece-nos inviável, ipso
jure, que a justificação de um indeferimento com a aceção de cidadania resultante do Acórdão
Nottebohm no âmbito da “proteção da cidadania europeia” e da defesa do Direito da União esteja na
competência da entidade administrativa que rejeitou o pedido de registo da AFR. Isto faz com que,
ao atuar no sentido de restringir direitos de cidadania da União desta forma, a entidade
administrativa nacional viole o princípio da competência.32
30
Acórdão de 7 de julho de 1992, Micheletti, Processo C-369/90 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 15
31
Acórdão de 17 de setembro de 2002, Baumbast, Processo C-413/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 80 e ss.
32
DIRECTIVA 2004/38/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 29 de Abril de 2004, considerando 22 em
articulação com o art.º 27.º, n.º 1:
23
De qualquer modo, consideremos a hipótese de um motivo de ordem pública ser a
justificação para a restrição imposta aos membros da AFR. Neste contexto, através da interpretação
conjunta dos considerandos 23 e 24 da Diretiva n.º 2004/38/CE, assim como dos artigos 27.º, n.º 1,
28.º, n.º 1, do mesmo documento, facilmente percebemos que o caso da AFR neles se pode
enquadrar. Realizando uma interpretação extensiva, é com certa autoridade que podemos afirmar
que, apesar da longa estadia da AFR nos EUA, releva para a União Europeia, acima de tudo,
naquilo que é a ratio legis por detrás desta diretiva, a verdadeira integração no Estado de
acolhimento (que, neste contexto, é o Estado da Ruritânia, do qual os membros da AFR já não são
cidadãos em virtude da Lei n.º 2215/1994, de 2 de julho) dos cidadãos da União que lá pretendem
fixar a sua residência. Desta forma (e tendo em conta que a diretiva foi, efetivamente, bem
transposta) não poderia o Estado da Ruritânia, através de entidade administrativa (neste caso, as
autoridades municipais de Gaza), em virtude do princípio da cooperação leal (art.º 4.º, n.º 3 TUE) e
do caráter vinculativo do Direito da União, vir a negar reconhecer direitos de cidadania dos
membros da AFR, que nasceram, cresceram e viveram na Ruritânia até à abolição da Monarquia
Constitucional, com laços estreitos com o território de onde são oriundos, numa clara violação do
princípio da proporcionalidade naquilo que é a própria justificação oferecida, visto que um acórdão
do Tribunal Internacional de Justiça nem sequer tem caráter vinculativo próprio para o Estado
Ruritano o usar enquanto fundamentação do indeferimento do pedido.33
Para além disto, e aliás, como anteriormente mencionado, é por demais evidente em
jurisprudência anterior do TJUE que, no contexto comunitário, a utilização do conceito de “ordem
pública” enquanto justificativa de restrição ao exercício de um direito fundamental está
condicionada ao sentido mais estrito do termo, o que tem como consequência a impossibilidade de
definição por um EM, unilateralmente, do alcance do mesmo, sem fiscalização pelas Instituições da
União.34 No mesmo sentido, jurisprudência anterior do TJUE já fixou que um entrave à livre
33
DIRECTIVA 2004/38/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 29 de Abril de 2004, considerandos 23 e 24:
“Assim, há que limitar o alcance de tais medidas em conformidade com o princípio da proporcionalidade, a fim de ter em conta o
grau de integração das pessoas em causa, a duração da sua residência no Estado-Membro de acolhimento, a idade, o estado de saúde
e a situação económica e familiar, bem como os laços com o país de origem.” e “Assim sendo, quanto maior for a integração dos
cidadãos da União e dos membros das suas famílias no Estado-Membro de acolhimento, maior deverá ser a protecção contra o
afastamento. Só em circunstâncias excepcionais, quando existam razões imperativas de segurança pública, poderá ser aplicada uma
medida de afastamento a cidadãos da União que tenham residido durante muitos anos no território do Estado-Membro de
acolhimento, especialmente se aí tiverem nascido e residido ao longo da vida”, respetivamente.
34
Vide, por todos: acórdão de 22 de setembro de 2010, Sayn-Wittgenstein, processo C-208/09 (Tribunal de Justiça da União
Europeia), para. 86; acórdão de 27 de outubro de 1977, Bouchereau, Processo 30-77 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para.
33 e 35; acórdão de 14 de março de 2000, Eglise de scientologie, Processo C-54/99 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para.
17; e, ainda: acórdão de 19 de janeiro de 1999, Calfa, Processo C- 348/96, para. 21.
24
circulação de pessoas apenas encontrará justificação plausível se a mesma tiver por base
“considerações objectivas e se for proporcionado ao objectivo legitimamente prosseguido pelo
direito nacional”.35 Aplicando o entendimento dado pelo TJUE no acórdão Sayn-Wittgenstein
através de uma analogia juris, entendemos que o mesmo entendimento deverá ser dado à questão
relativa ao entrave ao exercício do direito de residência criado pela entidade administrativa do
Estado da Ruritânia, pelo que não entendemos como poderá a justificação empregue pela mesma ser
objetiva e, muito menos, proporcional em relação a qualquer objetivo prosseguido pelo direito
nacional, uma vez que se baseia somente na avaliação que uma autoridade administrativa de um EM
faz em relação ao Direito Interno de outro EM, não tendo sido suscitada, enquanto fundamentação
do ato, qualquer motivo lógico.
Lembremos, ainda, que a transição do regime monárquico para o regime republicano, neste
caso concreto, se fez por votação popular (referendo) e não por ato de deposição violento (golpe de
Estado, revolução ou outro), razão pela qual a permanência da AFR na Ruritânia dificilmente
geraria qualquer tipo de instabilidade social no país.
Por último, mas não menos importante, pretendemos assinalar a falta de sentido latente da
justificação do ato administrativo que recusa o pedido de registo: fundar-se, não numa norma legal
habilitante ou que justificasse o indeferimento, mas sim numa decisão do Tribunal Internacional de
Justiça, quando esta decisão se encontra adstrita às partes envolvidas no litígio concreto e não
possui força vinculativa própria para outros litígios futuros 36, para recusar uma pretensão legítima
de cidadãos da UE, naturais de outro EM, parece-nos extremamente desvirtuado daquilo que é o
conceito uma justificação bem fundamentada, aos olhos dos princípios gerais da atividade
administrativa.
Tudo isto resulta numa violação clara dos direitos de cidadania da União dos membros da
AFR, nomeadamente o de permanência no território dos Estados-Membros [art. 20.º, n.º 2, al. a),
TFUE], concretizada através de uma imiscuição de um EM nos poderes soberanos e discricionários
de outro EM no tocante à definição das condições de atribuição da sua cidadania, em clara violação
do princípio da cooperação leal entre Estados (art.º 4.º, n.º 3, do TUE).
35
Acórdão de 22 de setembro de 2010, Sayn-Wittgenstein, processo C-208/09 (Tribunal de Justiça da União Europeia), para. 81:
“Em conformidade com jurisprudência assente, um entrave à livre circulação de pessoas só pode ser justificado se se basear em
considerações objectivas e se for proporcionado ao objectivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional.”
36
Vide, para este efeito, ESTATUTO DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, retirado de
https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/estatuto_do_tribunal_internacional_de_justica.pdf ,
artigo 59.º: A decisão do Tribunal (*) só será obrigatória para as partes litigantes e a respeito do caso em questão.
25
Pedido
A Antiga Família Real da Ruritânia pede, respeitosamente, ao Tribunal para julgar o presente caso e
declarar que:
1. O direito da União, nomeadamente o art.º 21.º do TFUE, conjugado com os artigos 4.º, 7.º,
20.º e 47.º da CDFUE, se opõe às normas nacionais do Estado da Ruritânia que condicionam
a atribuição de documentos de identificação a membros de uma antiga família real ao
reconhecimento da forma de Estado republicana e à renúncia à adoção de apelidos livres de
quaisquer títulos reais ou nobiliárquicos;
2. Um programa de captação de investimento que prevê a atribuição da nacionalidade de um
Estado-Membro a cidadãos estrangeiros não-residentes como contrapartida pela aquisição
de imóveis é compatível com os Tratados e que, assim sendo, uma autoridade administrativa
nacional não pode, nestas circunstâncias, recusar-se a reconhecer os direitos de cidadania da
União.
26