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CONSEIL COUNCIL

DE L’EUROPE OF EUROPE

COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME


EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS

2ª. SECÇÃO

CASO CAMPOS DÂMASO c. PORTUGAL

(Queixa n.o 17107/05)

SENTENÇA

ESTRASBURGO

24 de Abril de 2008

DEFINITIVA
24/07/2008

Esta sentença é definitiva nas condições previstas no n.º 2 do artigo


44.º da Convenção. Pode ser objecto de alterações formais.
SENTENÇA CAMPOS DÂMASO c. PORTUGAL 1

No caso Campos Dâmaso c. Portugal,


O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (2ª. Secção), reunindo em
formação constituída por:
Fançoise Tulkens, Presidente,
Antonella Mularoni,
Ireneu Cabral Barreto,
Rıza Türmen,
Vladimiro Zagrebelsky,
Dragoljub Popović,
András Sajó, juízes,
e por Sally Dollé, escrivã de secção,
Depois de ter deliberado em conferência a 27 de Março de 2008,
Profere a presente sentença, adoptada nesta data:

PROCESSO
1. Na origem do caso está a queixa (n.o 17107/05) apresentada contra a
República Portuguesa por um cidadão deste Estado, Eduardo José Campos
Dâmaso («o requerente»), a 4 de Maio de 2005, nos termos do artigo 34.º da
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais («a Convenção»).

2. O requerente é representado por F. Teixeira da Mota, advogado em


Lisboa. O Governo Português («o Governo») é representado pelo seu
Agente, J. Miguel, Procurador-Geral Adjunto.

3. O requerente alega, em particular, que a condenação que lhe foi


imposta por violação do segredo de justiça viola o artigo 10.º da Convenção.

4. Em 24 de Novembro de 2006, o Tribunal decidiu comunicar a


queixa ao Governo. Valendo-se do disposto no artigo 29.º, n.º 3, decidiu que
a admissibilidade e o mérito do caso seriam examinados em simultâneo.

OS FACTOS
I. AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO

5. O requerente nasceu em 1962 e reside em Lisboa. À data dos factos


era jornalista do quotidiano de grande tiragem Público.

6. Nas edições do Público de 26, 27 e 28 de Janeiro de 1995, o


requerente assinou, com dois outros jornalistas do mesmo jornal, vários
artigos visando uma personalidade política, N.D., então vice-presidente do
Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata (PSD) à época no poder.
N.D. era suspeito de ter implementado, através de uma sociedade X. na
2 SENTENÇA CAMPOS DÂMASO c. PORTUGAL

qual, de acordo com esses escritos, era suspeito de ser o principal accionista
num sistema de facturas falsas a fim de não pagar ao Tesouro Público
determinadas quantias normalmente devidas a título de IVA e de
subvenções no Quadro do PEDIP, um programa de modernização da
indústria portuguesa financiado pelas Comunidades Europeias. Por último,
N.D. teria beneficiado de um tratamento de favor aquando da compra do
terreno onde fora construída a sua vivenda.

7. Após a publicação desses artigos, o Gabinete do Procurador-Geral da


República anunciou a instauração de um inquérito contra N.D. Este, por
outro lado, renunciou a todas as funções que exercia no PSD.

8. Na edição de 4 de Novembro de 1998, o Público anunciou na 1ª


página «N.D. acusado de burla e fraude fiscal». Este título reenviava a um
artigo, assinado pelo requerente, no qual indicava que o Ministério Público
junto do Tribunal de Esposende tinha deduzido acusação contra N.D.

9. Na edição do Público de 5 de Novembro de 1998, o requerente


assinou, com outro jornalista, um novo artigo voltando a tratar mais em
detalhe os factos imputados a N.D. O artigo continha nomeadamente partes
integrantes da acusação do Ministério Público e precisava que a notificação
já lhe tinha sido dirigida.

10. Em data não precisa, o Ministério Público de Esposende instaurou


um inquérito contra o requerente e dois outros jornalistas. Na sequência, foi
deduzida acusação contra o requerente por violação de segredo de justiça
(noção próxima da correntemente designada pela expressão «secret de
l’instruction»).

11. Por sentença de 25 de Maio de 2004, o Tribunal de Esposende


condenou o requerente pela infracção em causa, na pena de 25 dias de
multa, no montante total de 1.750 euros, e no pagamento das custas. O
Tribunal absolveu os dois outros jornalistas por não terem tido participação
relevante na preparação dos artigos em causa nem agido com dolo. O
Tribunal sublinhou que só o artigo publicado no dia 5 de Novembro de 1998
suscitava problema, na medida em que o requerente nele descrevia, por
vezes reproduzindo, o conteúdo da acusação. Para o Tribunal, mesmo que
não tivesse sido possível estabelecer as circunstâncias exactas em que o
requerente tivera acesso ao auto processual em causa, resultava
necessariamente da prova produzida que ele tinha tido acesso à acusação
num momento em que o processo ainda se encontrava em segredo de
justiça. Contudo, o Tribunal reconhecia que a publicação do artigo não tinha
prejudicado o inquérito, o que justificava a leveza da sanção.

12. O requerente interpôs recurso da sentença, alegando designadamente


violação do artigo 10.º da Convenção.

13. Por acórdão de 24 de Janeiro de 2005, o Tribunal da Relação de


Guimarães julgou improcedente o recurso. Tratando-se em particular do
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artigo 10.º da Convenção, bem como das disposições equivalentes da


Constituição Portuguesa, o Tribunal da Relação sublinhou que a ingerência
na liberdade de comunicar informações do arguido não era
desproporcionada: não estando o teor da acusação submetido a segredo de
justiça senão por certo período, o requerente podia ter esperado pelo
princípio da fase pública do processo. Para o Tribunal da Relação, mesmo a
dimensão pública da pessoa acusada não justificava a violação do segredo
de justiça. O Tribunal da Relação concluiu, por isso, pela não violação desta
disposição convencional.

II. O DIREITO E A PRÁTICA PERTINENTES

A. O direito e a prática internos

14. Preliminarmente convém relembrar que no direito processual


português, o termo «instrução» designa especificamente a fase contraditória
que ocorre após o inquérito, nalguns casos.
Nos termos do artigo 86.º do Código de Processo Penal, aplicável ao
tempo dos factos, o processo não é público senão a partir da «decisão
instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não
pode ser requerida» (artigo 86.º, n.º 1). Até lá, aplica-se o segredo de justiça,
ao qual ficam submetidos todos os participantes processuais, bem como as
pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e
conhecimento de elementos a ele pertencentes (artigo 86.º, n.º 4).

15. Este sistema foi substancialmente modificado pela Lei no 48/2007,


de 29 de Agosto de 2007, entrada em vigor em 15 de Setembro seguinte,
que introduziu alterações no processo penal. Doravante, o segredo de justiça
não mais se aplicará de modo automático, mas apenas por decisão expressa
do Ministério Público, sujeita a validação do juiz de instrução, ou do
próprio juiz instrução.

16. O artigo 371.º do Código Penal punia, então como hoje, a violação
do segredo de justiça com pena de prisão até dois anos ou com pena de
multa até 240 dias.

B. Os textos do Conselho da Europa


17. A Recomendação Rec(2003)13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa
aos Estados membros, sobre a difusão pelos meios de comunicação social de
informações relativas a processos penais, lê-se como segue:
« (...)
Lembrando que os meios de comunicação social têm o direito de informar o público
e este o direito de receber informações, inclusive sobre questões de interesse do
público, nos termos do artigo 10.º da Convenção, e que aqueles têm o dever
profissional de o fazer;
Lembrando que o direito à presunção de inocência, a um processo equitativo e ao
respeito da vida privada e familiar, garantidos pelos artigos 6.º e 8.º da Convenção,
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constituem exigências fundamentais que devem ser respeitadas em toda a sociedade


democrática;
Sublinhando a importância das reportagens realizadas pelos meios de comunicação
social sobre processos penais para informar o público, que tornam visível a função
dissuasora do direito penal e permitem ao público exercer um direito de controlo
(droit de regard) sobre o funcionamento do sistema judicial penal;
Considerando os interesses eventualmente conflituantes protegidos pelos artigos 6.º,
8.º e 10.º da Convenção e a necessidade de assegurar um equilíbrio entre eles em face
das circunstâncias de cada caso, tendo devidamente em conta o papel do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem de garante do respeito pelos compromissos
contratados no âmbito da Convenção;
(...)
Desejoso de promover um debate esclarecido sobre a protecção dos direitos e
interesses em jogo no quadro das reportagens efectuadas pelos meios de comunicação
social sobre processos penais, assim como favorecer as boas práticas através da
Europa, assegurando-se o acesso dos meios de comunicação social aos processos
penais;
(...)

Recomenda, reconhecendo a diversidade de sistemas jurídicos nacionais no que


respeita ao processo penal, aos governos dos Estados membros:
1. que adoptem ou reforcem, conforme os casos, todas as medidas que considerem
necessárias para pôr em prática os princípios anexos à presente recomendação, nos
limites das respectivas disposições constitucionais,
2. que difundam amplamente esta recomendação e os princípios anexos, fazendo-os
acompanhar de tradução, se for caso disso, e
3. que os transmitam, nomeadamente á atenção das autoridades judiciárias e dos
serviços de polícia, e os coloquem à disposição das organizações representativas dos
aplicadores do direito e de profissionais dos meios de comunicação social.

Anexo à Recomendação Rec(2003)13 - Princípios sobre a difusão pelos meios de


comunicação social de informações relativas a processos penais

Princípio 1 – Informação do público pelos meios de comunicação social


O público deve poder receber informações sobre a actividade das autoridades
judiciárias e dos serviços de polícia através dos meios de comunicação social. Os
jornalistas devem, em consequência, poder livremente efectuar reportagens e fazer
comentários sobre o funcionamento do sistema judiciário penal, ressalvadas as
limitações previstas nos princípios seguintes.

Princípio 2 – Presunção de inocência


O respeito pelo princípio da presunção de inocência faz parte integrante do direito a
um processo equitativo.
Por conseguinte, as opiniões e informações relativas a processos penais em curso,
não devem ser comunicadas ou difundidas através dos meios de comunicação social,
senão quando isso não cause prejuízo à presunção de inocência do suspeito ou
acusado.
(...)
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Princípio 6 – Informação regular durante os processos penais


No quadro de processos penais de interesse público ou de outros processos penais
que suscitem particularmente a atenção do público, as autoridades judiciárias e os
serviços de polícia devem informar os meios de comunicação social dos seus actos
essenciais, sob reserva que isso não prejudique o segredo de justiça e as investigações
e que isso não atrase ou dificulte os resultados dos processos. No caso de processos
penais que se prolonguem durante um longo período, a informação deve ser fornecida
regularmente.
(...)»

O DIREITO

I. SOBRE A ALEGADA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 10.º DA


CONVENÇÃO

18. O requerente alega que a condenação imposta atentou contra o seu


direito à liberdade de expressão, previsto pelo artigo 10.º da Convenção,
assim redigido nas partes pertinentes:
«1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a
liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais
sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem
considerações de fronteiras. (…)
2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades,
pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas
pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática (...)
(...) à protecção da reputação ou dos direitos de outrem (...) ou para garantir a
autoridade e a imparcialidade do poder judiciário» (...).»

19. O Governo contesta esta tese.

A. Sobre a admissibilidade

20. O Tribunal nota que esta questão não é manifestamente infundada


nos termos do artigo 35.º, n.º 3, da Convenção. O Tribunal verifica, aliás,
que não ocorre nenhum outro motivo de inadmissibilidade, pelo que a
declara admissível.

B. Sobre o mérito

1. Argumentação das partes

21. O requerente alega ter sofrido uma ingerência no seu direito à


liberdade de comunicar informações, que não era necessária numa sociedade
democrática.

22. O requerente sustenta, em primeiro lugar, que a sua condenação não


se inseria no quadro da protecção do inquérito criminal, por já estar
6 SENTENÇA CAMPOS DÂMASO c. PORTUGAL

concluído no momento da publicação do artigo. Ele relembra, a este


propósito, que o processo só foi instaurado em razão dos artigos publicados
em Janeiro de 1995 (cfr. supra n.os 6-7). Em segundo lugar, a condenação
em causa não se destinaria a garantir a autoridade e a imparcialidade do
poder judicial, porquanto o processo seria julgado por magistrados
profissionais, necessariamente chamados a tomar conhecimento da acusação
do Ministério Público no quadro do desenvolvimento normal do processo
penal em causa. Por último, a protecção dos direitos de outrem também não
estava em causa no âmbito desse processo, por a pessoa visada ter já
apresentado queixa contra o requerente, por difamação, que, segundo ele,
estaria pendente.

23. O Governo admite que a condenação do requerente constituiu uma


ingerência nos direitos deste na perspectiva do artigo 10.º, mas considera
que a mesma se justificava face ao n.º 2 da mesma disposição, atendendo
aos fins legítimos de proteger a reputação e os direitos de outrem, bem
como a autoridade e a imparcialidade do poder judicial. Para o Governo,
tanto o sistema português em matéria de segredo de justiça ao tempo em
vigor, como o modo como foi aplicado ao caso respeitam integralmente o
artigo 10.º da Convenção.

24. A regulamentação em causa visaria, desde logo, proteger o bom


desenrolar do inquérito. No caso em apreço, a investigação ainda não estava
concluída à data da publicação do artigo, dispondo os arguidos da
possibilidade de requerer a abertura de instrução, no decurso da qual podem
ser recolhidas novas provas. A condenação justificar-se-ia pela preocupação
de proteger o direito à presunção de inocência do arguido, que seria
substancialmente reduzido se os meios de comunicação social pudessem
exercer sem qualquer controlo uma influência exterior susceptível de
perturbar o bom desenrolar das fases ulteriores do processo. Por último, o
Governo sublinha que os jornalistas não estão impedidos de modo absoluto
de divulgar qualquer informação relativa a um processo judicial, mas apenas
durante o período de vigência do segredo de justiça; uma vez expirado esse
período, os jornalistas têm liberdade de acesso a todos os elementos do
processo.

2. Apreciação do Tribunal

25. No presente caso, a condenação litigiosa insere-se claramente numa


«ingerência» no direito à liberdade de expressão, no que as partes convêm.
Tal intromissão infringe a Convenção no caso de não estarem reunidas as
condições do n.º 2 do artigo 10.º, isto é «prevista na lei», inspirada pelo ou
pelos fins legítimos do aludido número, e «necessária, numa sociedade
democrática», para os alcançar. Estando as partes de acordo em reconhecer
que a primeira condição – «prevista na lei» – se mostra presente no caso, o
mesmo não ocorre quanto às outras duas.
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a) Fim legítimo

26. Para o requerente, os fins legítimos indicados pelo Governo –


protecção dos direitos de outrem e garantia da autoridade e imparcialidade
do poder judicial – não podiam ser aqui invocados.

27. O Tribunal considera que os motivos invocados pelas jurisdições


internas harmonizam-se com o fim legítimo de proteger o direito de N.D. a
um processo equitativo no respeito da presunção de inocência e da sua vida
privada. A ingerência tinha sem dúvida, por finalidade, uma boa
administração da justiça, evitando qualquer influência exterior sobre aquela.
Tais fins inscrevem-se no quadro da protecção da «reputação e dos direitos
de outrem» e da garantia da «autoridade e [da] imparcialidade do poder
judicial», na medida em que esta última garantia foi interpretada como
englobando os direitos de que gozam os indivíduos a título de queixosos em
geral (Dupuis e outros c. França, n.o 1914/02, § 32, 7 de Junho de 2007,
TEDH de 2007 - ...; Tourancheau e July c. França, no 53886/00, § 63, 24 de
Novembro 2005).

b) «Necessária numa sociedade democrática»

28. Resta indagar se a ingerência em causa era «necessária numa


sociedade democrática».

29. O Tribunal relembra a este propósito que a liberdade de expressão


constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e
que as garantias a conceder à imprensa revestem-se pois de uma importância
particular (ver, entre outros, as sentenças Worm c. Áustria, de 29 de Agosto
de 1997, Recueil des arrêts et décisions 1997-V, págs. 550-1551, § 47;
Fressoz e Roire c. França [GC], n.o 29183/95, § 45, TEDH 1999-I).

30. A imprensa desempenha um papel eminente numa sociedade


democrática: se ela não deve ultrapassar certos limites tendentes
nomeadamente à protecção da reputação e dos direitos de outrem bem como
à necessidade de impedir a divulgação de informações confidenciais,
incumbe-lhe, todavia, comunicar, no respeito dos seus deveres e
responsabilidades, informações e ideias sobre qualquer questão de interesse
geral (Tourancheau e July, supra, § 65).

31. Em particular, não seria de pensar que as questões de que os


tribunais se ocupam não pudessem, antes ou simultaneamente, dar lugar a
discussão noutro local, seja em revistas especializadas, na grande imprensa
ou no público em geral. À função dos meios de comunicação social de
comunicar informações e ideias acresce o direito, para o público, de as
receber. Todavia, importa ter presente o direito de cada um beneficiar de um
processo equitativo, como é garantido pelo n.º 1 do artigo 6.º da Convenção,
o que compreende, em matéria penal, o direito a um tribunal imparcial
(Tourancheau e July, supra, § 66). Como o Tribunal já sublinhou, «os
jornalistas, quando se pronunciem sobre processos penais pendentes, devem
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ter presente que os limites do comentário admissível podem não abranger


declarações que, intencionalmente ou não, possam por em risco o direito de
uma pessoa beneficiar de um processo equitativo ou de minar a confiança
do público no papel dos tribunais na administração da justiça penal»
(ibidem; Worm, supra, § 50).

32. Ao Tribunal compete determinar se a ingerência litigiosa


correspondia a uma «necessidade social imperiosa», era proporcional aos
fins legítimos prosseguidos e se os motivos invocados pelas autoridades
nacionais para a justificar se configuram como «pertinentes e suficientes».
No exercício do seu poder de controlo e no balanceamento dos interesses
concorrentes que o Tribunal deve observar, este deve ter igualmente em
conta o direito reconhecido pelo n.º 2 do artigo 6.º da Convenção de que os
indivíduos devem presumir-se inocentes até que a sua culpa seja legalmente
estabelecida (Dupuis e outros, supra, § 37).

33. Sobre as circunstâncias do caso em apreço, o Tribunal sublinha,


desde logo, que o tema do artigo que determinou a condenação do
requerente respeitava sem dúvida uma questão de interesse geral. A
imprensa deve, com efeito, informar o público sobre os processos relativos a
eventuais infracções, de natureza fiscal ou de desvio de fundos públicos,
imputados a políticos. A este papel da imprensa acresce o direito, para o
público, de receber este tipo de informações (Worm, supra, § 50), sobretudo
quando estão em causa políticos. O Tribunal recorda, a este propósito, que
estes, diversamente dos cidadãos em geral, estão expostos inevitável e
conscientemente a um controlo atento dos seus factos e feitos tanto pelos
jornalistas como pelos cidadãos (Dupuis e outros, supra, § 40).

34. O Comité de Ministros do Conselho da Europa adoptou a


Recomendação Rec(2003)13 relativa à difusão de informações pelos meios
de comunicação social em matéria de processos criminais; este relembra
justamente que os meios de comunicação social têm o dever de informar o
público, tendo em vista o seu direito de receber informações e sublinha a
importância de reportagens realizadas sobre processos criminais para
informar o público e para permitir a este o exercício de “un droit de regard”
sobre o funcionamento do sistema de justiça penal. No anexo a esta
recomendação consagra-se, nomeadamente, o direito do público a receber
dos meios de comunicação social informações sobre as actividades das
autoridades judiciárias e dos serviços de polícia, do que decorre, para os
jornalistas o direito de poder prestar contas livremente do funcionamento do
sistema de justiça penal (Dupuis e outros, supra, § 42).

35. Por certo, quem, incluindo os jornalistas, exerce a sua liberdade de


expressão assume «deveres e responsabilidades» cujos limites dependem da
situação concreta (Dupuis e outros, supra, § 43). Importa apurar se, nas
circunstâncias específicas do caso, o valor de informar o público se
sobrepunha aos «deveres e responsabilidades», nomeadamente se se
impunha ao requerente o de respeitar a presunção de inocência da pessoa
visada. A este propósito, o Tribunal constata que se é verdade que o artigo
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em questão foi publicado num momento crucial do processo criminal – o da


dedução de acusação – quando o respeito da presunção de inocência do
arguido reveste uma relevância acrescida, não é menos certo que tal
publicação se seguia a outros artigos do mesmo autor sobre idêntico
assunto, publicados quase quatro anos antes, que tinham originado a
instauração de inquérito contra o visado. Contrariamente aos factos em
causa no caso Worm (supra, §§ 51-52), o artigo na origem do presente caso
não tomava posição sobre a eventual culpabilidade de N.D., limitando-se a
descrever o conteúdo da acusação do Ministério Público. Por último,
nenhum magistrado não profissional podia ser chamado a apreciar o caso, o
que reduzia igualmente os riscos de que artigos tais como os do caso em
apreciação afectem o resultado do processo judicial.

36. Quanto ao interesse legítimo da protecção do inquérito a correr


termos destacado pelo Governo, o Tribunal sublinha que o próprio Tribunal
de Esposende reconheceu que a publicação do artigo litigioso não causou
prejuízo à investigação (ver supra n.º 11). Quanto ao Tribunal da Relação de
Guimarães, este limitou-se a notar, em termos gerais, que a fase de
investigação pode estender-se para lá da dedução da acusação pelo
Ministério Público, para aqueles casos em que o assistente ou o arguido
requer a abertura da instrução. Além disso, o Governo não explicou como as
investigações em causa poderiam ser afectadas pela publicação do artigo
litigioso. Nestas condições, o Tribunal conclui que o fim legítimo de
protecção do inquérito não poderia, nas circunstâncias do caso, primar sobre
o direito do requerente a prestar informação sobre o processo criminal.

37. Na medida em que o Governo invoca a natureza limitada no tempo


do segredo de justiça, realçada igualmente pelas jurisdições internas, o
Tribunal sublinha que o papel dos jornalistas de investigação é,
precisamente, o de informar e de alertar o público quanto a fenómenos tais
como os visados pelo artigo litigioso. Não se lhes poderia impedir de
publicar tais artigos logo após ter ficado em poder das informações
(Cumpănă e Mazăre c. Roménia, sentença de 17 de Dezembro de 2004
[GC], n.º 33348/96, § 96, TEDH 2004-XI). Com efeito, a publicação
litigiosa, nomeadamente a parte em que descreve os factos reportados a
N.D. representava não só o objecto como também a credibilidade das
informações comunicadas, confirmando a sua exactidão e autenticidade
(Dupuis e outros, supra, § 46).

38. Tendo em conta os elementos mencionados, o Tribunal concluiu que


o interesse da publicação litigiosa prevalecia, no caso, sobre o fim, também
legítimo, de preservar o segredo de justiça.

39. Por último, relativamente à natureza e gravidade da pena imposta,


que constituem elementos a tomar em conta quando se trata de aferir a
proporcionalidade da ingerência, o Tribunal considera que o montante da
multa, por moderada que tenha sido no caso, não afecta em nada o efeito
dissuasor da condenação quanto ao exercício da liberdade de expressão,
10 SENTENÇA CAMPOS DÂMASO c. PORTUGAL

considerando a gravidade da sanção imposta (cfr. supra n.º 16; ver, mutatis
mutandis, Cumpănă e Mazăre, cit., § 114).

40. Em conclusão, o Tribunal considera que a condenação do requerente


não correspondia a uma «necessidade social imperiosa», constituindo uma
ingerência desproporcionada no seu direito à liberdade de expressão. Houve,
por conseguinte, violação do artigo 10.º da Convenção.

II. SOBRE A ALEGADA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 6.º DA


CONVENÇÃO

41. O requerente invoca também o artigo 6.º, n.º 1, da Convenção, em


apoio às suas alegações,

42. O Tribunal considera, no entanto, em face da resposta relativa ao


artigo 10.º (supra n.º 40), que não se impõe examinar, no caso, se houve
violação desta disposição.

III. SOBRE A APLICAÇÃO DO ARTIGO 41.º DA CONVENÇÃO

43. Nos termos do artigo 41.º da Convenção,


«Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus Protocolos,
se o direito interno da Alta Autoridade Contratante não permitir senão
imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte,
lesada, uma reparação razoável, se for necessário.»

A. Danos

44. O requerente solicita a título de danos materiais o reembolso da


importância da multa paga devido à condenação, ou seja 1.750 euros.
Considera, por outro lado, que o seu prejuízo moral seria suficientemente
reparado com a constatação da violação da Convenção.

45. O Governo remete-se à prudência do Tribunal.

46. O Tribunal considera que a importância paga pelo requerente em


consequência da condenação representa o resultado directo da violação do
seu direito à liberdade de expressão. Por isso, concede-lhe o solicitado
reembolso. O Tribunal considera, por outro lado, que a verificação da
violação que consta da presente sentença constitui por si uma reparação
razoável suficiente quanto aos danos morais sofridos pelo requerente.

B. Custas e Despesas

47. O requerente solicita também, com suporte justificativo, o


pagamento da importância relativa a despesas e honorários do seu
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advogado, mas deixa ao critério do Tribunal a determinação do seu


montante.

48. O Governo remete-se, também, à prudência do Tribunal, invocando


a prática deste em casos similares.

49. O Tribunal, tendo em conta a natureza e a complexidade do caso,


julga razoável atribuir aos requerentes a esse título, a importância de 7.500
euros.

C. Juros de mora

50. O Tribunal considera adequado calcular a taxa de juros de mora com


base na taxa de juros da facilidade de empréstimo marginal do Banco
Central Europeu acrescida de três pontos percentuais.

POR ESTES MOTIVOS, O TRIBUNAL, POR


UNANIMIDADE,

1. Declara a queixa admissível;

2. Decide que houve violação do artigo 10.º da Convenção;

3. Decide que não há lugar a apreciar o pedido fundado no artigo 6.º da


Convenção;

4. Decide
a) que o Estado requerido deve pagar, nos três meses posteriores a
contar da data em que a sentença se tornou definitiva, nos termos do
artigo 44.º, n.º 2, do Convenção, 1.750 euros (mil setecentos e
cinquenta euros) por danos materiais e 7.500 euros (sete mil quinhentos
euros) a título de custas e despesas;
b) que a contar do termo deste prazo até ao pagamento, as importâncias
serão acrescidas de um juro simples a uma taxa anual equivalente à taxa
de juro simples e uma taxa anual equivalente à taxa de facilidade de
empréstimo marginal do Banco Central Europeu aplicado durante este
período, acrescido de três pontos percentuais;

Redigido em francês, enviado por escrito em 24 de Abril de 2008, nos


termos do artigo 77.º, n.os 2 e 3, do Regulamento.

Sally Dollé Françoise Tulkens


Escrivã Presidente

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