Você está na página 1de 12

Departamento de Direito

Mestrado em Ciências Jurídicas

CONHECIMENTOS FORTUITOS NAS ESCUTAS TELEFÓNICAS

Razão de ser dos crimes de catálogo

Trabalho apresentado no âmbito do programa da unidade curricular de

DIREITO PROCESSUAL PENAL.

Mestranda: Mónica Isabel Fonseca Sequeira Lima

Docente: Mestre Manuel Monteiro Guedes Valente

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2011


2

ABREVIATURAS

Ac. – Acórdão
CDFUE – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
CEDH – Convenção Europeia dos Direitos do Homem
CPP – Código de Processo Penal
CRP – Constituição da República Portuguesa
DUDH – Declaração Universal dos Direitos do Homem
PIDCP – Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
RPCC – Revista Portuguesa de Ciência Criminal
StPO – Strafprozessordnung (Código de Processo Penal Alemão)
TRP – Tribunal da Relação do Porto
3

1. Introdução. Escutas telefónicas enquanto meio de obtenção de


prova

Já vários autores se têm pronunciado sobre o potencial e frequentemente


imprevisível impacto devastador deste meio de obtenção de prova, lesante de direitos e
liberdades fundamentais e vida privada das pessoas escutadas, das pessoas para quem
elas falam, e das pessoas que para elas falam, e que demonstram a necessidade de uma
interpretação restritiva do regime jurídico das escutas telefónicas.1 Em particular, Costa
Andrade alertou-nos já para a “danosidade social”, capacidade de devassa de direitos
fundamentais e elevado potencial de ameaça das escutas.2 E, de facto, a sua importância é
tal que se consagrou a proibição de intromissão arbitrária ou ilegal nas comunicações de
uma pessoa em vários diplomas internacionais, nomeadamente nos termos do art. 12.º
DUDH, art.º 17.º, n.º 1 PIDCP, art. 7.º CDFUE, art. 8.º, n.º 1 CEDH, apenas para citar
alguns exemplos,3 que encontram, de certa forma, um paralelismo no n.º 4 do art. 34.º
CRP, que proíbe a prova obtida com intromissão abusiva nas comunicações privadas, e a
sua utilização também nos termos do art. 32.º, n.º 8 CRP.4 Impediu-se assim o legislador
ordinário de deixar em branco os tipos de crimes susceptíveis de investigação para
descoberta da verdade e/ou para prova através das escutas telefónicas, obstando assim a
essa ingerência abusiva nas telecomunicações, defendendo Guedes Valente que a
imposição do catálogo de crimes do n.º 1 do art. 187.º CPP é constitucional.5

A relevância da problemática das escutas telefónicas e, em particular, dos


conhecimentos fortuitos, não se limita a questões dogmáticas. Até porque o seu relevo
pragmático é crescente, face à banalização e multiplicação pelo constante recurso a este
meio de obtenção de prova. O que é grave, não só pelas razões já apontadas. A vocação
das escutas telefónicas não se encontra na “prova dos factos que integram a previsão da
conduta criminosa”, e sim na recolha de informação e compreensão da estrutura de

1 Cf. GONÇALVES, Fernando; ALVES, Manuel João – A Prova do Crime: Meios Legais para a sua
Obtenção. Coimbra: Almedina, 2009. p. 231; ANDRADE, Manuel da Costa – Das Escutas Telefó-
nicas. In VALENTE, Manuel Monteiro Guedes, coord. - I Congresso de Processo Penal: Memórias.
Coimbra: Almedina, 2005. p. 216.
2 Cf. ANDRADE, Manuel da Costa – Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra:
Coimbra Editora, 1992. p. 283, nota 4 e 4a).
3 Considerando sempre que, na maioria dos preceitos citados, o vocábulo “correspondência” é utili-
zado num sentido mais amplo, de forma a abranger também as comunicações (telefónicas). Cf.
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes Valente – Escutas Telefónicas: Da Excepcionalidade à Vulga-
ridade. 2.ª ed. rev. e actual. Coimbra: Almedina, 2008. p. 152.
4 Cf. MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui – Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra:
Coimbra Editora, 2005. Tomo I. p. 373.
5 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76.
4

organizações criminosas.6

2. O Regime Actual dos Conhecimentos Fortuitos nas Escutas


Telefónicas

Henriques Eiras/Guilhermina Fortes7 consideram, em sede de escutas telefónicas e


face ao regime actual, conhecimentos fortuitos como os “factos de que foi tomado
conhecimento na intercepção e gravação de conversações que não respeitam ao crime que
as legitimou”. Por seu turno, Francisco Aguilar8 definiu, anteriormente, conhecimentos
fortuitos como “factos (ou conhecimentos) obtidos através de uma escuta telefónica
legalmente efectuada e que não se reportem, nem ao crime cuja investigação determinou
a realização daquela, nem a qualquer outro delito (pertencente ou não ao carácter legal)
que esteja baseado na mesma situação histórica de vida daquele”. Todavia, existe um
regime mais recente e que podemos encontrar no n.º 7 do art. 187.º Código de Processo
Penal (CPP). Assim, e nos termos daquele normativo, “sem prejuízo do dever de comunicar
ao Ministério Público a notícia do crime obtida nas escutas, a gravação de conversações ou
comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se for
indispensável à prova de crime de catálogo e se resultar de intercepção de meio de
comunicação utilizado por suspeito ou arguido, intermediário ou vítima de crime que
efectiva ou presumidamente consinta.”9 Em suma, o conhecimento fortuito vale como
prova quando resultar de intercepção de meio de comunicação usado por pessoa indicada
no n.º 4 (catálogo de alvos) do art. 187.º e quando se refira a um dos crimes do catálogo
relativamente aos quais a escuta telefónica é legalmente admissível (catálogo de crimes).10
Desta forma, as escutas podem ser utilizadas em relação aos crimes catalogares
investigados não só no processo onde foram efectuadas, como também em outros
processos, “já pendentes ou a instaurar, desde que se verifiquem os pressupostos que as
poderiam autorizar ab initio, quer quanto aos crimes admissíveis, às condições da
autorização e às pessoas susceptíveis de serem escutadas.”11

Assim, a lei consagrou a solução maioritariamente defendida pela doutrina (alemã

6 MATA-MOUROS, Maria de Fátima – Escutas Telefónicas: o que não muda com a reforma. Revista
do CEJ. ISSN 1645-829X. N.º 9 (Jan.-Jun. 2008), p. 241.; Cf. ANDRADE, Sobre as Proibições de
Prova, p. 272.
7 ESCUTAS Telefónicas. In EIRAS, Henriques; FORTES, Guilhermina – Dicionário de Direito Penal e
Processo Penal. 3.ª ed. Lisboa: Quid Juris, 2010, p. 322; EIRAS, Henriques; FORTES, Guilhermi-
na, colab. – Processo Penal Elementar. 8.ª ed. actual. Lisboa: Quid Juris, 2010, p. 175-176.
8 AGUILAR, Francisco – Dos Conhecimentos Fortuitos obtidos através de Escutas Telefónicas: con-
tributo para o seu estudo nos ordenamentos jurídicos alemão e português. Coimbra: Almedina,
2004. p. 18.
9 SANTOS, Manuel Simas; LEAL-HENRIQUES, SANTOS, João Simas – Noções de Processo Penal.
[S.l.]: Rei dos Livros, 2010. p. 258.
10 Cf. GONÇALVES/ALVES, op. cit., p. 239.
11 SANTOS/LEAL-HENRIQUES/SANTOS, Noções de Processo Penal, p. 258.
5

e portuguesa)12 e jurisprudência, de acordo com as quais a utilização de conhecimentos


fortuitos é tão somente de admitir quando se refiram a crimes de catálogo do art. 187.º,
relativamente aos quais a escuta é legalmente admissível.13

3. Os Crimes de Catálogo

O tribunal federal alemão pronunciou-se pela admissibilidade da valoração de


todos os conhecimentos fortuitos, considerando que a valoração só é admissível se e na
medida em que os factos conhecidos no âmbito de uma escuta telefónica conforme o
§100a) StPO, estão em conexão com a suspeita de um crime do catálogo no sentido deste
preceito. Nasceu assim o princípio da proibição de valoração dos conhecimentos fortuitos
que não estejam em conexão com um crime de catálogo.14

A imposição do catálogo de crimes do n.º 1 do art. 187.º é constitucional, nos


termos do art. 34.º, n.º 4, in fine da CRP, para que o legislador ordinário não deixasse em
branco os tipos de crime susceptíveis de investigação para descoberta da verdade e/ou
para prova através da diligência em estudo.15

Segundo Guedes Valente,16 tal tipificação pretende proteger os direitos


fundamentais das pessoas e concretizar os princípios prescritos no n.º 2 do art. 18.º CRP.
Dos crimes tipificados de possível sujeição à diligência, verifica-se que correspondem:

– a crimes designados de criminalidade grave17 ou média – puníveis com


pena de prisão superior no seu máximo a 3 anos de prisão, nos termos da alínea a) do n.º
1 do 187.º CPP. Para Lamas Leite, seria preferível a moldura penal abstracta de cinco anos
de pena de prisão, pois tal reforçaria a ideia de que este meio se deveria reservar para os
ilícitos de maior potencial ofensivo,18 até por uma questão de respeito pelos direitos
fundamentais e para reforço do carácter de ultima ratio deste meio de obtenção de
prova.19

12 Cf. MATA-MOUROS, Maria de Fátima – Sob Escuta: reflexões sob o problema das escutas telefó-
nicas e as funções do juiz de instrução criminal. São João do Estoril, 2003. p. 92.
13 Cf. SILVA, Germando Marques – Curso de Processo Penal. 4.ª ed. rev. e actual. Lisboa: Verbo,
2008. Vol. II, p. 256; GONÇALVES/ALVES, op. cit., p. 240.
14 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 119.
15 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76.
16 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76.
17 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76. Criminalidade de massa, nas palavras deste autor. Cri-
minalidade média na opinião de LEITE, André Lamas – As escutas telefónicas: algumas reflexões
em redor do seu regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação.
Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto . Coimbra: Coimbra Edito-
ra. Ano I, (2004), p. 25.
18 Cf. LEITE, André Lamas – Entre Péricles e Sísifo: o novo regime legal das escutas telefónicas.
Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Coimbra Editora; Instituto de Direito Penal
Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. ISSN 0871-8563.
Ano 17, n.º 4 (Out.-Dez. 2007), p. 626-627.
19 Cf. LEITE, As escutas telefónicas, p. 25.
6

– a crimes de complexa investigação e especialíssima gravidade – tráfico de


estupefacientes, armas, engenhos explosivos, matérias explosivas e análogas, contrabando
20
– alíneas b) c) e d) do nº 1 do art. 187º CPP.

– e crimes de difícil produção de prova e, por conseguinte, de difícil


investigação, apesar de punidos com pena inferior, no máximo, a 3 anos de prisão –
injúria, ameaça, coacção de devassa da vida privada e perturbação da paz e sossego
praticados por telefone fixo e móvel – al. e) do n.º 1 do art. 187º CPP.

A tipificação do n.º 2 do 187.º CPP não contraria a do n.º anterior, já que se


tratam de tipos de crime puníveis, no máximo, superiores a 3 anos de prisão, visando
“questões de urgência e de necessidade ou de questões logísticas e de economia
processual e de competência territorial.”21

4. Princípios fundamentais como razão de ser do catálogo de crimes

A República Portuguesa tem como base a dignidade da pessoa humana (art. 1.º
CRP). Esta concepção faz da pessoa, do homem concreto e individual, fundamento e fim
da sociedade e do Estado.22 Assim sendo, a República portuguesa, enquanto estado de
direito democrático, deve respeitar e garantir a efectivação dos direitos e liberdades
fundamentais (art. 2.º CRP), que vincula os órgãos de soberania por aplicabilidade directa
(art. 18.º, nº 1 CRP).23 Pretende-se, assim, proteger bens jurídicos constitucionalmente
consagrados e fundamentais ao desenvolvimento de pessoas humanas que se querem
livres, dignas, activas e realizadas numa sociedade organizada. Bens esses que podem ser
“ofendidos por actos investigatórios promovidos por serviços e órgãos do Estado
vinculados ao direito”, e restringidos, nos termos do art. 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 4 e 34.º, n.º
4 CRP.24 Assim, nos termos do art. 18.º da CRP, é prescrito o regime da restrição de
direitos:
(A) A restrição deve fundar-se, explícita ou implicitamente, na Constituição (primeira
parte do n.º 2 do art. 18.º CRP).25
(B) A restrição deve salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente
protegido (in fine, n.º 2 do art. 18.º CRP).26 Para Guedes Valente, “a defesa e

20 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 76-77.


21 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 77.
22 Cf. MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. 2.ª ed. rev. e actual. Coimbra: Coimbra
Editora, 1993. Tomo IV. p. 166, 169; MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, anot. – Constituição
Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. Tomo I. p. 53.
23 Cf. CANOTILHO, J. J.; MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada. 4.ª ed.
rev. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. Vol. I. p. 208, 382-383.
24 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 134-135.
25 Cf. MIRANDA, Manual, IV, p. 305; CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 388; VALENTE,
Escutas Telefónicas, p. 136.
26 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 388.
7

protecção dos direitos fundamentais das pessoas e a descoberta da verdade para a


realização da justiça e promoção da paz jurídica individual e comunitária são valores
e interesses de relevância constitucional merecedores da restrição de direitos no
âmbito das escutas telefónicas.”27
(C) A restrição deve ser apta para o efeito e na medida necessária para alcançar o
objectivo visado (segunda parte do n.º 2 do art. 18.º CRP)28 – consiste no princípio
da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso, que tem como corolários
os princípios da adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido restrito.29
a. Princípio da adequação ou da idoneidade – as medidas restritivas
legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução
dos fins visados pela lei, para salvaguarda de outros direitos ou bens
constitucionalmente protegidos;30
b. o princípio da exigibilidade, da necessidade ou da indispensabilidade –
as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias, pois que os
fins pretendidos pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos
onerosos para os direitos, liberdades e garantias;31
c. o princípio da proporcionalidade em sentido restrito – os meios legais
restritivos e os fins obtidos situam-se numa justa medida, impedindo-se a
adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação
aos fins obtidos.32 Como pressuposto de legalidade na autorização ou ordem
judicial para a realização de intercepção e gravação de conversações e
comunicações, impõe-se que aquela se revele de «grande interesse para a
descoberta da verdade ou para a prova», nos termos do n.º1 do art. 187.º
CPP.33

(D) A restrição não pode aniquilar o direito em causa com a diminuição da extensão e do
alcance conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (in fine, n.º 3 do art. 18.º
CRP) – qual será o objecto de protecção da norma: o conteúdo essencial da garantia
geral e abstracta ou o conteúdo essencial da posição jurídica e individual de cada
cidadão? Devemos assim considerar que a expressão «preceitos constitucionais»
parece considerar os direitos fundamentais como bens jurídicos objectivos. E será
que o conteúdo essencial possui natureza absoluta (possui uma substancialidade

27 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 136-137.


28 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 388; MIRANDA, Manual, I, p. 307; VALENTE, Escu-
tas Telefónicas, p. 137.
29 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 137.
30 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 392.
31 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 392-393.
32 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 393; MIRANDA/MEDEIROS, Constituição, I, p. 162;
MIRANDA, Manual, IV, p. 307.
33 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 137-138, 64-65.
8

própria) ou, pelo contrário, relativa (delimita-se perante cada caso concreto,
mediante uma ponderação de bens ou interesses concorrentes)?34 Para Jorge
Miranda, o conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias consignados nos
preceitos constitucionais deve ser entendido com um limite absoluto (contra o abuso
de poder) que corresponde ao valor ou finalidade que justifica o direito, rejeitando
este autor as teses relativas, pois que estas confundem proporcionalidade (art. 18.º,
n.º 2 CRP) com conteúdo essencial (art. 18.º, n.º 3 CRP).35 G. Canotilho e Vital
Moreira defendem uma teoria mista, considerando que a delimitação do conteúdo
essencial se deve articular com a “necessidade de protecção de outros bens ou
direitos constitucionalmente garantidos”, sem se dar uma aniquilação daquele
conteúdo (deve sobrar um resto substancial que assegure a utilidade constitucional
do direito em causa).36 Assim, para Guedes Valente, “o conteúdo essencial do direito
à reserva da intimidade da vida privada não pode ser aniquilado ou nidificado com o
recurso à escuta telefónica sob pena de inutilização da prova por ser proibida.”37

5. Valoração de Conhecimentos Fortuitos

Concluímos assim com os pressupostos de valoração dos conhecimentos fortuitos


em sede de escutas telefónicas. Resulta, desde já, claro, que a valoração, sem restrições,
dos conhecimentos fortuitos, por uma questão de continuidade entre a licitude da
produção de uma prova e legitimidade da sua valoração não prossegue, tal como a
proibição de valoração de todo e qualquer conhecimento fortuito por exigência
constitucional de reserva de lei.38 Assim, “em matéria de escutas é já aceite, como
princípio de observância obrigatória, o da proibição dos conhecimentos fortuitos que não
estejam em conexão com um «crime do catálogo», entendido este como o «numerus
clausus» dos delitos em cuja instrução a lei adjectiva admite a possibilidade de utilização
das escutas.”39

Nos termos do n.º 7 do art. 187.º CPP, a valoração dos conhecimentos fortuitos
encontra-se sujeita, além do critério de indispensabilidade da prova de crime de catálogo
previsto no n.º 1, ao decurso de processo crime40 (“em curso ou a instaurar”), se tiver

34 Cf. CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 394-395.


35 Cf. MIRANDA, Manual, IV, p. 307-308. Também neste sentido: CANOTILHO, J. J. Gomes – Direi-
to Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 460. Para G.
Canotilho, “a garantia do conteúdo essencial é um mais em relação ao princípio da proporciona-
lidade.” CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 395.
36 CANOTILHO/MOREIRA, Constituição, I, p. 395.
37 VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 139-140.
38 SILVA, Curso de Processo Penal, II, p. 254.
39 Ac. TRP de 11-01-1995, proc. n.º 9441000 (n.º convencional JTRP00016793) (Pereira Madeira).
[Em linha]. [Consult. 02 Jan. 2011]. Disponível em URL: http://www.dgsi.pt/.
40 Cf. VALENTE, Escutas Telefónicas, p. 77.
9

resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado contra um elenco taxativo de


pessoas.41 Assim, o juiz, no despacho a que o n.º 1 do art. 187.º CPP alude, terá de
identificar qual ou quais os números de telefone, telemóvel, etc. cujas comunicações
emitidas e recebidas passam a ser interceptadas e gravadas, independentemente da
titularidade dos meios de comunicação utilizados. Desta forma, é ilícito o recurso a este
meio de obtenção de prova quando o inquérito decorra contra incertos.42

Verificámos também que, além dos requisitos exigidos pelo n.º 7, devem verificar-
se igualmente os pressupostos que autorizariam as escutas ab initio, ou seja, os presentes
no n.º 1 do art. 187.º CPP. Desde logo, que as escutas só podem ser autorizadas durante
a fase de inquérito, e que se encontram sujeitas a um princípio de indispensabilidade43
para a descoberta da verdade ou impossibilidade ou imensa dificuldade de obtenção da
prova por outro meio. É igualmente exigido um despacho fundamentado do juiz de
instrução, por requerimento do Ministério Público.

A não interpretação restritiva de normas que restringem direitos, assim como a


não verificação cumulativa dos requisitos referidos deverá gerar uma proibição de
valoração dos conhecimentos fortuitos, por não salvaguardar minimamente os direitos
fundamentais directamente afectados do sujeito processual em causa, em particular se se
referir a crimes não contemplados no catálogo do art. 187.º CPP.44 Tal justifica-se porque
o “princípio da proporcionalidade resultante do Estado de Direito só permite a restrição das
posições respeitantes a direitos fundamentais apenas naquilo que seja absolutamente
necessário à protecção de bens jurídicos constitucionalmente reconhecidos”, devendo
proibir-se a valoração dos conhecimentos fortuitos que não sejam “relevantes para o fim
de protecção da ordem democrática e livre”.45 Afinal, nas palavras de Costa Andrade, “o
estado de direito é posto mais em crise por uma única violação da lei e do direito por parte
daqueles a quem cabe aplicar a lei e o direito, do que por um criminoso que fica sem

41 Cf. LEITE, Entre Péricles e Sísifo, p. 633. Para Guedes Valente, se for referido um terceiro (que
não participa nas comunicações interceptadas e gravadas), este poderá estar a ser arrastado
pelos intervenientes para a investigação a título de manipulação. A não ser que o terceiro seja
cúmplice ou interveniente do crime, aquele conhecimento fortuito deve, por parte do Ministério
Público, originar uma investigação autónoma. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Conhecimen-
tos Fortuitos: A Busca de um Equilíbrio Apuleiano! Coimbra: Almedina, 2006. p. 133.
42 Cf. LEITE, Entre Péricles e Sísifo, p. 631. Neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, anot. –
Comentário do Código Processual Penal à luz da Constituição da República e da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem. 3.ª ed. actual. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2009. p.
509-510.
43 Cf. VALENTE, Conhecimentos Fortuitos, p. 135.
44 Cf. VALENTE, Conhecimentos Fortuitos, p. 131, 133-134.
45 Cf. AGUILAR, Dos Conhecimentos Fortuitos, p. 30-31 apud VALENTE, Conhecimentos Fortuitos,
p. 105. Daqui se retira também uma necessária obediência a um princípio de subsidariedade: se
só se deve recorrer às “escutas telefónicas quando não seja possível a mesma eficácia probató-
ria à custa de meios menos gravosos”, o mesmo se dirá quanto à valoração dos conhecimentos
fortuitos. ANDRADE, Das escutas telefónicas, p. 218.
10

punição.”46

6. Conclusões

As escutas telefónicas possuem um elevado potencial lesante de direitos


fundamentais das pessoas escutadas, mas não só para estas. Devido à sua importância e
danosidade social, este meio de obtenção de prova encontra-se regulado em sede do CPP
e limitado por preceitos constitucionais.

No que se refere aos conhecimentos fortuitos, a sua valoração dependerá de


vários requisitos cumulativos, nomeadamente os presentes nos n.ºs 1 e 7 do art. 187.º
CPP, tendo-nos centrado no quesito do catálogo de crimes. Concluímos que se admite a
utilização de conhecimentos fortuitos quando se refiram aos crimes catalogares do art.
187.º CPP, estabelecendo assim uma proibição de valoração dos conhecimentos fortuitos
que não estejam em conexão com um crime de catálogo. Tal imposição é constitucional e
pretende proteger os direitos fundamentais das pessoas, de que um Estado de Direito,
fundado na dignidade da pessoa humana, não pode abdicar. E pese embora saibamos já
que não existem direitos absolutos, estes devem ser restringidos apenas na medida
necessária e adequada para proteger uma “ordem democrática e livre”.

46 ANDRADE, Das escutas telefónicas, p. 224.


11

7. BIBLIOGRAFIA

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-01-1995, proc. n.º 9441000 (n.º conven-
cional JTRP00016793) (Pereira Madeira) [Em linha]. [Consult. 02 Jan. 2011]. Disponível
em URL: http://www.dgsi.pt/.

AGUILAR, Francisco – Dos Conhecimentos Fortuitos obtidos através de escutas telefónicas:


contributo para o seu estudo nos ordenamentos jurídicos alemão e português. Coimbra:
Almedina, 2004. 117 p. ISBN 972-40-2184-X.

ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, anot. – Comentário do Código Processual Penal à luz da


Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 3.ª ed.
actual. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2009. 1642 p. ISBN 972-54-0228-3.

ANDRADE, Manuel da Costa – Das Escutas Telefónicas. In VALENTE, Manuel Monteiro


Guedes, coord. – I Congresso de Processo Penal: Memórias. 416 p. Coimbra: Almedina,
2005. ISBN 972-40-2390-7.

ANDRADE, Manuel da Costa – Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra:


Coimbra Editora, 1992. 343 p. ISBN 972-32-0613-7.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital, anot. – Constituição da República Portuguesa


Anotada. 4.ª ed. rev. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. Vol. I. 1152 p. ISBN 978-972-32-
1462-8.

CANOTILHO, J. J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coim-


bra: Almedina, 2003. 1522 p. ISBN 978-972-40-2106-5.

CARTA dos Direitos Fundamentais da União Europeia. [Em linha.] actual. 7 Dez. 2000.
[Consult. 28 Dez. 2010]. Disponível em: http://eur-
lex.europa.eu/pt/treaties/dat/32007X1214/htm/C2007303PT.01000101.htm.

CÓDIGO de Processo Penal. 11.ª ed. Coimbra: Almedina, 2009. 903 p. ISBN 978-972-40-
3985-5.

CÓDIGO Penal. 10.ª ed. Coimbra: Almedina, 2008. 751 p. ISBN 978-972-40-2545-1.

CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa (de acordo com a Revisão de 2005). 15.ª ed.
Lisboa: Quid Juris, 2006. 319 p. ISBN 978-972-724-313-6.

EIRAS, Henriques; FORTES, Guilhermina, colab. – Processo Penal Elementar. 8.ª ed.
actual. Lisboa: Quid Juris, 2010. 719 p. ISBN 978-972-724-486-7.

ESCUTAS Telefónicas. In EIRAS, Henriques; FORTES, Guilhermina – Dicionário de Direito


Penal e Processo Penal. 3.ª ed. rev., actual. e aument. Lisboa: Quid Juris, 2010. 799 p.
ISBN 978-972-724-487-4.

GONÇALVES, Fernando; ALVES, Manuel João – A Prova do Crime: Meios Legais para a sua
Obtenção. Coimbra: Almedina, 2009. 261 p. ISBN 978-972-40-3971-8.

LEITE, André Lamas – As escutas telefónicas: algumas reflexões em redor do seu


regime e das consequências processuais derivadas da respectiva violação. Separata
da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Coimbra: Coimbra
Editora. Ano I, (2004), p. 1-58.
12

LEITE, André Lamas – Entre Péricles e Sísifo: o novo regime legal das escutas telefónicas.
Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Instituto de Direito Penal Económico e
Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Coimbra Editora. ISSN
0871-8563. Ano 17, n.º 4 (Out.-Dez. 2007), p. 613-669.

MATA-MOUROS, Maria de Fátima – Escutas telefónicas: o que não muda com a reforma.
Revista do CEJ. ISSN 1645-829X. N.º 9 (Jan.-Jun. 2008), p. 219-242.

MATA-MOUROS, Maria de Fátima – Sob Escuta. Cascais: Principia, 2003. 223 p. ISBN 972-
8818-10-6.

MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. 2.ª ed. rev. e actual. Coimbra: Coim-
bra Editora, 1993. Tomo IV. ISBN 972-32-0480-0.

MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui – Constituição da República Portuguesa Anotada. Coim-


bra: Coimbra Editora, 2005. Tomo I. 753 p. ISBN 972-32-1308-7.

Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. [Em linha.] actual. 16 Dez. 1966.
[Consult. 28 Dez. 2010]. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-
internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh-direitos-civis.html.

SANTOS, Manuel Simas; LEAL-HENRIQUES, Manuel; SANTOS, João Simas – Noções de


Processo Penal. [S.l.]: Rei dos Livros, 2010. 647 p. ISBN 978-989-8305-10-7.

SILVA, Germano Marques – Curso de Processo Penal. 4.ª ed. rev. e actual. Lisboa: Verbo,
2008. 414 p. Vol. II. ISBN 978-972-22-1592-3.

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Escutas Telefónicas: Da Excepcionalidade à Vulgari-


dade. 2.ª ed. rev. e actual. Coimbra: Almedina, 2008. 197 p. ISBN 978-972-40-3583-3.

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Conhecimentos Fortuitos: A Busca de um Equilíbrio


Apuleiano! Coimbra: Almedina, 2006. 152 p. ISBN 972-40-2953-0.

Você também pode gostar