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ACORDÃO Nº 610/96
Proc. nº 236/94
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. A, B, C e D, com os sinais dos autos, arguidos em processo crime pela prática
de um crime de dano agravado, requereram a abertura de instrução, tendo sido pronunciados
pela prática do crime de que vinham acusados.
2. Inconformado, o primeiro arguido recorreu do despacho de pronúncia para o
Tribunal da Relação de Coimbra, invocando, para além do mais, a inconstitucionalidade da
norma contida no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, por violação dos artigos
13º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição.
Por despacho de 21 de Janeiro de 1994 foi recusada a admissão do recurso, com
fundamento nos artigos 310º, nº 1, e 400º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal.
Deste despacho reclamou o recorrente, tendo a reclamação sido julgada
improcedente por despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 8 de Março
de 1994. Neste despacho, concluiuse que "... o segmento da norma do artigo 310º, nº 1, a que
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se acolheu o despacho reclamado, não está ferido do vício de inconstitucionalidade material,
devendo pois ser aplicado".
3. É deste despacho que vem interposto o presente recurso ao abrigo do disposto
nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional.
Admitido o recurso, foram apresentadas alegações, no Tribunal Constitucional,
pelo recorrente D e pelo Ministério Público.
O recorrente formulou, na parte que interessa ao presente recurso, a seguinte
conclusão:
"1º. O artigo 310º, nº 1, do CPP é inconstitucional, por violar os
artigos 13º, nº 1 e 32º, nº 1 da C.R.P. e os princípios constitucionais nele ínsitos,
da igualdade dos Cidadãos perante a lei e garantia da defesa no processo crime,
corolário dos princípios da igualdade de armas entre a defesa e a acusação e da
dupla apreciação e da jurisdição de mérito, não havendo nenhuma
proporcionalidade entre o resultado que se pretende atingir com tal restrição do
direito de recorrer: aumentar a celeridade processual, e o resultado obtido:
limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. (...)"
Por seu turno, o Ministério Público concluiu as suas contraalegações do seguinte
modo:
"1º. A norma constante do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo
Penal, ao vedar ao arguido o direito de recorrer da decisão instrutória que o haja
pronunciado, assegurando, deste modo, o prosseguimento do processo para
julgamento, não viola o princípio da igualdade de armas, as garantias de defesa do
arguido ou qualquer outro preceito ou princípio constitucional.
(...)"
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Fundamentação
A
O objecto do recurso e a jurisprudência
do Tribunal Constitucional
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então fundamentada na violação do princípio da igualdade e das garantias de defesa o
Tribunal Constitucional julgou não inconstitucional a norma por entender, em síntese, que não
há paridade entre os despachos de pronúncia e de não pronúncia e que o direito de recurso em
processo penal não abarca, necessariamente, o despacho de pronúncia.
7. Anteriormente, na vigência do Código de Processo Penal de 1929, já o Tribunal
Constitucional apreciara questão idêntica, decidindo no mesmo sentido, ao julgar não
inconstitucional o artigo 390º, nº 2 (na redacção dada pelo DecretoLei nº 377/77, de 6 de
Setembro), através dos Acórdãos nºs 31/87, 118/90, 332/91 e 189/92 (o primeiro publicado
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em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p. 463, o segundo publicado no D.R., II
Série, de 4 de Setembro de 1990, e no B.M.J. nº 369, p. 123, e os dois últimos inéditos).
Na verdade, a referida norma só admitia recurso para o Tribunal da Relação do
despacho de designação de dia para julgamento em processo correccional, quando estivesse
em causa crime doloso e o Ministério Público não houvesse deduzido acusação. Ora, esta
solução normativa não foi considerada violadora dos artigos 13º, nº 1, e 32º, nº 1, da
Constituição.
B
A alegada violação do princípio da igualdade
pelo artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal
8. No Código de Processo Penal de 1987, a instrução constitui uma fase
facultativa do processo. A sua abertura depende, conforme os casos, de requerimento do
arguido ou do assistente, nos termos do nº 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal.
Além disso, no âmbito do processo sumário, nem sequer pode haver instrução (artigo 381º e
ss. do Código de Processo Penal).
Deste modo, o processo (comum) pode ser remetido para julgamento sem ter
havido instrução, desde que tenha sido deduzida, no fim do inquérito, acusação pelo
Ministério Público ou, tratandose de crime particular, pelo assistente (cf. artigos 283º, 285º
e 311º do Código de Processo Penal). Assim, na perspectiva das garantias de defesa e no
plano do direito infraconstitucional, a abertura da instrução corresponde ao exercício de uma
faculdade, tendente a obter uma averiguação jurisdicional sobre a existência de indícios
suficientes para promover o julgamento (indícios de que resulte uma possibilidade razoável
de ao arguido ser aplicada pena ou medida de segurança), que fundamentam o despacho de
acusação, nos termos do artigo 283º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).
A atribuição da referida faculdade processual ao arguido pressupõe, por seu turno,
que se tutela um interesse em não se ser submetido a julgamento. E, ainda que se recuse a
visão do processo como "cerimónia de degradação" ou método de "etiquetagem social" (cf. H.
Garfinkel, "Successful Degradation Cerimonies in America", Journal of Criminology, 1956,
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p. 420; K. T. Erikson, "Notes on the Sociology of Deviance", Social Problems, 1962, p.
388), é forçoso concluir que a necessidade de tutelar o interesse em não se ser submetido a
julgamento resulta, desde logo, da persistência das medidas de coacção durante a fase do
julgamento (artigo 214º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Todavia, se a protecção do interesse em não ser submetido a julgamento é a
função última da própria fase instrutória, a confirmação pelo juiz de instrução dos termos de
acusação do Ministério Público não deixa prevalecer (em abstracto) esse interesse sobre a
necessidade de valorar a existência (já controlada pelo juiz de instrução) de fortes indícios de
que resulta uma razoável possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada pena ou medida de
segurança.
9. De todo o modo, a doutrina tem reconhecido que a não obrigatoriedade de uma
fase instrutória é legitimada, constitucionalmente, por um desígnio de celeridade que surge
associado ao próprio princípio de presunção de inocência do arguido (cf. Figueiredo Dias, "A
revisão constitucional e o processo penal", A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os
Tribunais, 1981, p. 53). Na verdade, apesar de beneficiar da referida presunção, o arguido
tem interesse na rápida conclusão do processo (sem prejuízo das garantias de defesa), até
porque durante a sua pendência pode ser submetido a medidas cautelares e de polícia e de
coacção e garantia patrimonial (cf. artigo 60º do Código de Processo Penal). Por outro lado, a
celeridade é instrumental da obtenção da verdade e da justa decisão da causa: as hipóteses de
erro judiciário aumentam, naturalmente, com o diferimento temporal da audiência de
julgamento em relação ao momento da eventual prática do crime.
Ora, o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que é
consagrado constitucionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas decisões instrutórias:
justamente os despachos de pronúncia que não alteram os factos constantes da acusação do
Ministério Público. E a resposta a essa questão indica que a celeridade não só é compatível
com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é
instrumental dos valores últimos do processo penal a descoberta da verdade e a justa decisão
da causa , próprios de um Estado democrático de direito.
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10. O argumento de igualdade invocado pelo recorrente pressupõe a paridade dos
despachos de pronúncia e de não pronúncia e a "igualdade de armas" entre defesa e acusação.
A verdade, porém, é que existe uma diferença essencial entre aqueles despachos, que torna
justificável racionalmente a diferença de regimes. Com efeito, a decisão instrutória de não
pronúncia, uma vez transitada em julgado, põe termo ao processo, afectando
irremediavelmente os respectivos sujeitos. Diferentemente, a decisão instrutória de pronúncia
opera a remessa do processo para uma fase ulterior: o julgamento.
Não se pode concluir, por conseguinte, que o regime consagrado no nº 1 do artigo
310º do Código de Processo Penal viole o princípio da igualdade (artigo 13º, nº 1, da
Constituição), mesmo que se sustente que a "igualdade de armas" já tem uma incidência
mitigada na fase preparatória cf., neste sentido, Procédures Pénales d'Europe, ob.col. dir.
por Mireille DelmasMarty, 1995, p. 30). A diferenciação entre os despachos de pronúncia e
de não pronúncia não é arbitrária, visto que assenta numa justificação razoável, de acordo
com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes (cf. Gomes Canotilho e
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 127).
C
A alegada violação das garantias de defesa
pelo artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal
11. Mas violará a norma em crise o artigo 32º, nº 1, da Constituição, na medida
em que as garantias de defesa em processo penal incluem o direito de recurso ou a um duplo
grau de jurisdição?
Importa observar, desde logo, que o despacho de pronúncia é passível de recurso
em três situações: quando a instrução não foi precedida de acusação e ocorreu na sequência
de requerimento do assistente após o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público
[artigos 277º, nºs 1 e 2, e 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal]; quando a
instrução foi precedida apenas de acusação particular e a sua abertura foi requerida pelo
próprio arguido [artigos 285º, nº 1, e 287º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal]; e
quando, finalmente, a instrução foi precedida de acusação do Ministério Público mas a
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decisão instrutória pronunciou o arguido por factos diversos dos constantes daquela acusação,
mas descritos no requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente [artigos
287º, nº 1, alínea b), e 309º, nº 1, do Código de Processo Penal].
Além disso, o despacho que indeferir a arguição de nulidade do despacho de
pronúncia por promover uma alteração substancial de factos em relação à acusação ou ao
requerimento para abertura da instrução também é passível de recurso (artigo 310º, nº 2, do
Código de Processo Penal).
12. Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
Ora, este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência
de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério
Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o Ministério Público é configurado
constitucionalmente como uma magistratura autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição),
sendo concebido, no processo penal, como um sujeito isento e objectivo, que pode,
nomeadamente, determinar o arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena,
propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão
condenatória em exclusivo benefício do arguido [artigos 280º, nº 1 e 53º, nº 2, alínea d), do
Código de Processo Penal; cf. Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no novo
Código de Processo Penal", O Novo Código de Processo Penal, ob.col., 1988, pp. 22 e ss. e
31].
13. Como se afirmou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 265/94 (cit.),
"não se duvida que o legislador pudesse admitir a regra de recorribilidade da decisão
instrutória que pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério
Público (como sucedia, quanto ao processo de querela, com o artigo 371º do Código
antecedente)". Porém, tal como se concluiu nesse mesmo aresto, a irrecorribilidade do
despacho de pronúncia nas situações previstas no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo
Penal não ofende as garantias de defesa, se englobada no regime em que estejam
salvaguardadas as garantias de defesa nas fases de inquérito e de instrução, nomeadamente
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através da possibilidade de requerer diligências probatórias e de recorrer de um eventual
indeferimento.
Sendo certo que o nº 1 do artigo 32º da Constituição impõe que se consagre o
direito de recorrer de decisões condenatórias e de actos judiciais que, durante o processo,
tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais
do arguido, é admissível que o legislador determine a irrecorribilidade de outros actos
judiciais desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa (cf. Acórdãos nºs
8/87, 31/87 e 177/88 o primeiro já citado e os restantes publicados em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 9º vol., pp. 4679, e 12º vol., p. 596 e ss., respectivamente) e a
limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal.
Consequentemente, também não se pode concluir que o regime consagrado no nº
1 do artigo 310º do Código de Processo Penal viole as garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da
Constituição) e, especificamente, o direito de recurso ou a um duplo grau de jurisdição.
III
Decisão
14. Ante o exposto, decidese julgar não inconstitucional a norma do artigo 310º,
nº 1, do Código de Processo Penal, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão
recorrida, na parte respeitante à questão de constitucionalidade suscitada.
Lisboa, 17 de Abril de 1996
Maria Fernanda Palma
Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa
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