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Carlos Frederico Bastos Pereira

Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Assessor
no Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo.

Hermes Zaneti Jr.


Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Torino/IT. Doutor em Teoria e
Filosofia do Direito pela Università degli Studi di Roma Tre/IT. Doutor e Mestre em
Direito Processual pela UFRGS. Membro do International Association of Procedural
Law (IAPL), do Instituto Ibero-americano de Direito Processual (IIDP) e do Instituto
Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Professor da Graduação e Pós-Graduação
(Mestrado) da UFES. Promotor de Justiça no Estado do Espírito Santo.

Enunciado 37. Aplica-se aos juizados especiais o disposto nos parágrafos do art.
489 do CPC.

O art. 1º, parágrafo único, da CF/1988 diz que “todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Como os membros do
Judiciário não são eleitos, o poder que lhes é conferido pela Constituição deve ser
legitimado perante a sociedade, o que, no processo jurisdicional, é feito mediante uma
série de garantias fundamentais, sendo a mais relevante delas o dever de fundamentação
das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/1988).
É por meio da fundamentação das decisões judiciais que é possível exercer o
controle racional e intersubjetivo das razões utilizadas por juízes e tribunais para a sua
decisão final, controle esse que é exercido endo e extraprocessualmente1.
A primeira maneira de controlar a decisão é interna ao processo, por isso
denominada endoprocessual. É pela fundamentação que as partes terão conhecimento
das razões empregadas pelo juiz para acolher ou negar o pedido formulado, controlando
a correção dos fundamentos de fato e de direito empregados para justificar a conclusão
da decisão. Sem o conhecimento dessas razões, as partes não poderiam impugnar a
decisão judicial, possibilitando, eventualmente, a sua reforma.
A segunda maneira de controlar a decisão é externa ao processo, por isso
denominada extraprocessual. A fundamentação não só é controlada pelos sujeitos
participantes do processo, mas também por toda a comunidade jurídica e a sociedade
civil como um todo. É justamente a possibilidade de crítica aos argumentos
desenvolvidos na decisão judicial que permite um controle difuso e político sobre a
administração da Justiça, legitimando, assim, a atuação do Poder Judiciário.
1
Assim, cfr. TARUFFO, Michele. La Motivazione della Sentenza Civile. Padova: CEDAM, 1975;
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Motivação das Decisões Judiciais como Garantia Inerente ao
Estado de Direito. In: Temas de Direito Processual: 2ª Série. Rio de Janeiro: Saraiva, 1988, p. 83-95.
O legislador procurou densificar o direito fundamental à fundamentação das
decisões judiciais, encartado no art. 93, IX, da CF/1988, estabelecendo no art. 489, §§
1º e 2º do CPC/2015 uma série de hipóteses pelas quais não se considera fundamentada
qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença (terminativa ou definitiva,
acrescentamos) ou acórdão.
Em primeiro lugar, busca-se impedir decisões abstratas e genéricas, sem a
devida especificação das circunstâncias concretas de cada caso, tal como “defiro a
liminar porque ausentes os requisitos do art. 300 do CPC/2015” (art. 489, § 1º, I,
CPC/2015), “indefiro o pedido do autor porque é contrário à boa-fé” (art. 489, §1 º, II,
CPC/2015) ou tão somente “defiro o pedido” (art. 489, § 1º, III, CPC/2015).
Em segundo lugar, pretende-se evitar decisões que não enfrentam argumentos
das partes com capacidade de alterar a conclusão final (art. 489, § 1º, IV, CPC/2015).
Nesse ponto, há o entrelaçamento com o direito fundamental ao contraditório (art. 5º,
LIV, CF/1988 e arts. 9º e 10 do CPC/2015), mas não é preciso que sejam enfrentados
todos os argumentos desenvolvidos pelas partes, mas somente aqueles que possam
eventualmente direcionar a decisão para um caminho oposto àquele adotado pelo
julgador.
Em terceiro lugar, não são toleradas decisões que aplicam precedentes,
jurisprudência e enunciados de súmula exclusivamente a partir de ementas, sem
identificar os seus fundamentos determinantes e/ou analisar a similaridade entre
circunstâncias fáticas, para que não seja aplicada ao caso em julgamento uma solução
jurídica tomada à luz de um caso concreto absolutamente distinto. (art. 489, § 1º, V e
VI, CPC/2015).
Em quarto lugar, há preocupação também com as decisões que aplicam
princípios jurídicos, utilizando essa espécie normativa como álibis retóricos para
fundamentar a decisão a partir de valores morais ou de normas que não possuem
densidade normativa. Por isso é necessário identificar qual princípio incide no caso,
demonstrar a colisão entre eles e explicitar as razões pelas quais um princípio supera o
outro no caso concreto (art. 489, § 2º, CPC/2015).
A preocupação do legislador é com um salto qualitativo das decisões judiciais
para que a decisão judicial esteja analítica e hermeneuticamente fundamentada2.
Às claras com tais premissas, é preciso dizer: os §§ 1º e 2º do art. 489 do
CPC/2015 se aplicam integralmente aos Juizados Especiais.

2
ZANETI JR., Hermes; PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Teoria da decisão judicial no Código de
Processo Civil: uma ponte entre hermenêutica e analítica?. Revista de Processo, vol. 259, p. 21-53, 2016.
O argumento a favor dessa conclusão é dogmático, tendo em vista o disposto o
art. 1.064 do CPC/2015. Esse dispositivo alterou o caput do art. 48 da Lei nº 9.099/95
para a seguinte redação: “caberão embargos de declaração contra sentença ou acórdão
nos casos previstos no Código de Processo Civil”. Como se sabe, os embargos de
declaração são cabíveis para esclarecer obscuridades, eliminar contradições, suprir
omissões e corrigir erros materiais (art. 1.022 do CPC/2015).
Ocorre, no entanto, que o CPC/2015 trouxe uma novidade no parágrafo único do
dispositivo em questão, dispondo que “considera-se omissa a decisão que: [...] II -
incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1o”. Logo, é inevitável a conclusão
de que o art. 489, § 1º do CPC/2015 se aplica à Lei nº 9.099/95, pois há um
inquestionável diálogo das fontes entre o diploma processual civil e a lei dos juizados
especiais cíveis3.
Por sua vez, o art. 489, § 1º do CPC/2015 também se aplica à Lei n.º
12.153/2009, que dispõe sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos
Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, e à Lei n.º 10.259/2001,
que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal,
tendo em vista a existência de um microssistema dos juizados especiais, amplamente
reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência4.
Em relação à Lei n.º 12.153/2009, o seu art. 27 prevê que “aplica-se
subsidiariamente o disposto nas Leis nos 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de
Processo Civil, 9.099, de 26 de setembro de 1995, e 10.259, de 12 de julho de 2001”; já
quanto à Lei n.º 10.259/2001, logo o seu art. 1 o aduz que “são instituídos os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, aos quais se aplica, no que não
conflitar com esta Lei, o disposto na Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
Com razão, portanto, o Enunciado n.º 309 do FPPC (“O disposto no § 1º do art.
489 do CPC é aplicável no âmbito dos Juizados Especiais”), o que não se pode dizer do
Enunciado n.º 47 da ENFAM (“O art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de
juizados especiais”) e do Enunciado n.º 162 do FONAJE (“Não se aplica ao Sistema
dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão
contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95”).

3
MARQUES, Cláudia Lima. O “diálogo das fontes” como método da nova Teoria Geral do Direito: um
tributo a Erik Jayme. In: Diálogo das Fontes do Conflito à Coordenação de Normas no Direito
Brasileiro. São Paulo: RT, 2012.
4
Sobre a teoria dos microssistemas, cfr. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito
Processual Civil: Processo Coletivo. 11ª ed. Salvador: JusPodvim, 2017, p. 50 e ss.
Em relação ao Enunciado n.º 162 do FONAJE, cabe ainda uma observação. O
art. 38 diz que a “a sentença mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve
resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório”.
Em primeiro lugar, porque é apenas o relatório que dispensável, sendo
obrigatórios ainda os outros dois elementos essenciais da sentença: a fundamentação e o
dispositivo, conforme incisos II e III do art. 489 do CPC/20155.
Em segundo lugar, não é porque o dispositivo fala em “elementos de convicção
do juiz” que a sentença poderá ser genérica e abstrata, sem a devida contextualização do
dispositivo legal com os fatos da causa – exigência do art. 489, § 1º, I a III, do
CPC/2015 – ou aplicar precedentes judiciais sem identificar fundamentos determinantes
e realizar distinções ou superação – exigência do art. 489, § 1º, V e VI, do CPC/2015.
Por fim, não se sustenta o argumento de que o art. 489, §§ 1º e 2º do CPC/2015
seria incompatível com os princípios informadores dos Juizados Especiais, previstos no
art. 2º da Lei nº 9.099/95 (oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual
e celeridade).
A uma, porque o art. 489, §§ 1º e 2º do CPC/2015 densifica o direito
fundamental à fundamentação das decisões judiciais, uma garantia constitucional que
não pode ser relativizada em prol de dispositivos infraconstitucionais. É possível
realizar um controle de constitucionalidade das leis e não um controle de legalidade da
Constituição, essa que é fundamento formal e material de validade de todas as leis.
Caso assim ocorresse, uma série de garantias processuais seriam simplesmente
inobservadas para que o Poder Judiciário pudesse imprimir celeridade aos processos que
julga. A duração razoável do processo é apenas uma das garantias constitucionais do
jurisdicionados e deve ser combinada com as demais para que um processo seja justo.
A duas, porque o art. 489, §§ 1º e 2º do CPC/2015 não exige de juízes e tribunais
uma fundamentação extensa, tampouco impede que sejam proferidas decisões
padronizadas [leia-se: com repetição de fundamentos adotados em decisões anteriores],
hipótese essa muito comum nos Juizados Especiais.
São conhecidas as condições estruturais do Poder Judiciário e o grande número
de demandas ajuizadas perante os Juizados Especiais com circunstâncias fáticas
similares, destoando da realidade judiciária brasileira exigir fundamentações diferentes
para casos com circunstâncias concretas semelhantes, assim compreendidas as sentenças

5
Art. 489.  São elementos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a
identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências
havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de
direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
que utilizam técnicas de estilo variadas e redações distintas sobre os fundamentos
empregados. Inclusive, esse ponto já foi alvo de alerta pelo Superior Tribunal de
Justiça: “À luz dos incisos III e IV do § 1º do art. 489 do CPC/2015, o órgão julgador
não necessita construir textos individuados para cada um dos casos analisados, quando
é possível aferir, sem qualquer esforço, que a fundamentação não é genérica”6.
O que o dispositivo busca coibir são decisões que, por exemplo, digam “a
pretensão deduzida pelo autor não encontra respaldo na prova dos autos, razão pela
qual indefiro o pedido”. Como se percebe, decisões proferidas dessa maneira não
permitem às partes conhecer das razões empregadas para deferir ou indeferir um
determinado pedido, impossibilitando o controle da decisão mediante recursos e, por
conseguinte, desconstituindo o accountability inerente ao exercício da atividade
jurisdicional.
É preciso explicitar, ainda que de maneira sintética, os fatos relevantes da causa
que autorizam ou não a consequência jurídica dada pela norma legal. Afinal, “é
admissível que se padronize o formato da decisão, e até mesmo, parte do seu conteúdo,
mas não se deve admitir sentenças genéricas que se prestariam a justificar qualquer
julgamento”7. Ou seja, a decisão que repete os fundamentos de decisões anteriores não
viola o dever de fundamentação, porque, ao contrário do que se alega, o juiz não deixa
de analisar o caso concreto, pelo contrário, ele analisa o caso concreto e, entendendo
que os fatos são semelhantes a casos anteriores, repete os fundamentos lançados em
decisões passadas.
Conclui-se, então, que a aplicabilidade dos art. 489, §§ 1º e 2º do CPC/2015 aos
Juizados Especiais é um imperativo constitucional e o enunciado ora em comento
garante máxima efetividade do art. 93, IX, da CF/1988.

►CPC. Art. 489. São elementos essenciais da sentença: I – o relatório, que conterá os
nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o
registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – os
fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III – o dispositivo,
em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º Não se
considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou
acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo,

6
STJ, EDcl no REsp 1322791/DF, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 15/12/2016,
DJe 20/02/2017.
7
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Comentários ao art. 489. Breves Comentários ao Novo Código de
Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 1234.
sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos
jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III
– invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não
enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a
conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de
súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob
julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de
distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de
colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação
efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as
premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3º A decisão judicial deve ser
interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com
o princípio da boa-fé.

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