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;.

Que o leitor tenha cuidado!


O evangelho de Marcos e os cristianismos
originais da Síria-Palestina

/ RESUMO: Neste artigo procura-se situar o evangelho de Marcos dentro da histólia dos válios cristianismos
o1igináiios - ou seja, os judaismos plimitivos - silfaco-palestinos da segunda metade do século 1 dC. O

l1 evangelho de Marcos foi escrito pouco antes ou pouco depois do ano 70 dC. Propõe-se que tenha sido na
' zona fronteiliça orienraJ da Galiléia, ralvez na cidade de Péla{�_!!m.�ogl]glento @81Jte palêmic4, �
_espéc:ie-de..a.utocriti�_P-.� - diante da realidade que foi a recente e fracassada .inswreição judia
; contra Roma. No evangelho de Marcos rejeita-se o projeto, encabeçadopelos swnos sacerdotes e seupessoal,
·-:'
1
j do segundo templo; opõe-se ao "tradicionalismo· dos fariseus e dos escribas; e �e repropõe o clistianismo
'i primJtiVo enfocado nwn Jesus<ios-milagres, bem como outro cristianismo piimitiVo que se concentrava no..

·l elis.iíiariienufríé jesus, mais o evanÍlelh o "radicalizado.. galileu do documento q. Também se acaba rejeitando
os primeiros "doze" disclpulos e os famfilares de Jesus, ou seja, aliderança tradicional da primeira comunidade
, Clist.s em Jerusalém. O mecanismo narrativo pelo qual o evangelista procurou subordinar todos os demais
l
(\_
cristianismos sirfaco-palestinenses é seu relato-mais ''paulino" que o do próprio Paulo-da paixão e da morte
deJesus. O resultado é wn texto apocaliptico que, afinal de contas, não oferece wnprograma de vida "normal"
para todos os dias, mas representa wn esforço para chegar. apesar de tudo, à próxima etapa da história. Há
um apêndice sobre o Reino de Deus no evangelho de Marcos.

ln this article is made an effort to locate the Gospel of Mark within the history of the valious early
Cluistianities - Le., earJy Judaisms - of Syria-Palestine dllling the second half of the lirst centwy A.D. The
GospeJ of Mark was Wlitten around 70 A.D. It is proposed that the place of composition was near the eastem

-
border of Galilea, perhaps .in the city of PeHa. It is an extremeJy polemical document - a soct of ear1y Chiistian
"sell-critique" written in the aftennath of the recen� failed Jewish .inswrection against Rome. The project of
the second temple, led by the high priests and their people, is rejected. Opposed are the "traditionalism" of
the Phadsees and the scribes. An attempt is made to redirect the focus of many early Christians on Jesus as
a miracle-worker, as weH as another toem of early Cluistianity that was mainly .interested .in Jesus' thinking,
plus the ''radical" Galilean gospel of the document O. 77le group of "twelveff disciples and the family of Jesus,
Le., the traditional leadership of the lirst Christian community .in Jerusalem is also rejected. The nanative
mechanmn by means of which the evangelist has sought to subordinate these other forms of early Chdstianity
.in Syiia-Palestine is his story-more "Pauline" than .in Paul himself- of the suffering and death of Jesus. The
result is an apocalyptic text that tinaIJy does not provide a program for "nonnal" evezyday Jife, but registers
.instead the effort to gain acress. in spite of everything, to the next stage of history. There is an appendix that
treats the topic of Kingdom ot God in the Gospel of Mark.

O evangelho de Marcos não foi escrito como parte dos acontecimentos que
o próprio texto relata. Também não foi escrito como memória coletiva da primeira

11
II

i
1
1
:
1. Este Calar de um narrador confiável ou não confiável é uma expressão tomada da critica literária narrativa
geral Não tem a ver com a Bíblia aista em particular. Ponanto, dizer que não contamos com um narrador confiável 1

no evangelho de Marcos não quer dizer nada sobre a verdade canônica ou o valor teológico que ess e escrito terá ·

dentto da Biblia cristã. Trata-se, antes, de como o evangelista não procurou apresentar as coisas "tal como foram H.
mas de modo que se
us' leitores se dess em conta de algo e mudem de rumo.

2. Dever-se-ia antecipar que não se refietirá, pelo menos sem aaéscimo e/ou distorção. a realidade histórica
dos aistianismos primitivos siríaco-palestinos no evangelho de Marcos. Esta realidade deve ter deixado vestfgios no
próprio escrito. Precisamente como intervenção ideológica no processo dos cristianismos primitivos siríaco-palestinos,
o evangelho de Marcos não podia simplesmente ignorar suas conttaPartes. procurando redelineá-las.

12 13
crítica do raciocínio tradicional pelo qual situara-se o evangelho de Marcos em Roma.

1.
lembra a Jesus que "Todos andam à tua procura" (1,37) - supõe-se que venham de
Em segundo lugar, para onde foi escrito o evangelho de Marcos vale o mesmo "toda a região em redor [pe.dchoron] da Galiléia" em que se acaba de saber dele {1.28)
argumento que para quando. Embora seja verdade que o que acontecera em -, Jesus responde a Simão: "Vamos aos povoados próximos [tas echomenas komopoleis),
f Jerusalém por ocasião da primeira insurreição contra Roma fosse conhecido por todo
o mundo antigo judeu e fosse importante para ele, não significou para todos o mesmo
para pregar também por lá; pois é para isso que vim" (1,38), e se repete que "Jesus
andava por toda a Galiléia [eis holen ten Galilaian] pregando em suas sinagogas e
· I1
··1 trauma social que certamente foi - e que o evangelho de Marcos também sugere - expulsando os demônios"(1,39). A linguagem grega destes versículos nos põe- parece
i para os que viviam na região mais próxima desta cidade. 8 que por vontade de Jesus - no limite da região política da Galiléia no século I dC.
1
A importância que, evidentemente, tem a região da Galiléia para o evange­ No capítulo seguinte do evangelho de Marcos Jesus sai de novo de Cafar­
lista foi motivo para se propor que a Galiléia fosse precisamente o lugar onde o naum e vai "de novo para a beira do lago ... Quando ia passando, viu Levi, filho de
evangelho foi escrito. Jesus sai da Galiléia para se fazer batizar por João (1.9), mas Alfeu, sentado à mesa de arrecadador de impostos para Roma" {2,13-14}, ou seja,
volta, e quase imediatamente ("depois de João ter sido preso"), à Galiléia para .•!,�
tinha o posto de controle tributário fronteiriço. Note-se que este Levi não aparece na
anunciar "o evangelho de Deus" (1,14). Aí adquire fama ("e sua fama se espalhou lista dos doze discípulos escolhidos em 3,13-19, aos quais o evangelista acaba
logo por toda parte em todas as regiões da Galiléia": 1,28) e encontra certo eco("... desclassificando por completo como aptos para representar o discipulado cristão. De
seguido por uma grande multidão vinda da Galiléia... da Judéia, de Jerusalém, da modo diferente deles, portanto, Levi permanece discípulo exemplar.
Iduméia, da Transjordânia e dos arredores de Tiro e Sidônia": 3,7-8). Na véspera de
sua prisão e morte, Jesus promete que "depois de ressuscitar, irei à Galiléia antes de Em 5,1-20 relata-se o caso do endemoninhado de Gérasa, quando "chegaram
vocês"(14,28), e o jovem vestido de branco e sentado na sepultura diz às três mulheres à outra margem(oriental} do mar, ao território de Gérasa"(5, 1)- uma cidade da Decápole
que se assustaram ao vê-lo: "não tenhais medo ... Ide dizer aos discípulos e a Pedro ao sudeste do Lago de Genesaré. Jesus cura o endemoninhado, ainda que a certo custo
que ele vos precede na Galiléia. Lá o vereis como vos disse"(16,6-7). Estas são as - a perda de cerca de dois mil porcos-, e nem todas as pessoas do lugar ficam contentes
mulheres que "tinham servido" a Jesus "quando estava na Galiléia" e que o com ele- sem dúvida, entre eles, os donos dos porcos {ver 5,14: "os que cuidavam dos
acompanham de longe enquanto pende da cruz(15,41). porcos... foram contar na cidade e pelos campos o sucedido"). De fato, "começaram a
rogar-lhe {a Jesus) que se afastasse de suas terras" {5,17}.
É preciso mais exatidão. Pois pode ser que o nome Galiléia sirva no evangelho
de Marcos mais como símbolo teológico contraposto ao de Jerusalém do que como Mas, diferente do que costuma acontecer no evangelho de Marcos depois
indicação geográfica de sua origem.9 Além disso, nem tudo vai bem para Jesus na de alguém ser curado por Jesus - Jesus admoesta o curado a não dizer nada a
Galiléia. Em seu povoado natal de Nazaré, por exemplo, "não queriam acreditar nele... ninguém -, neste caso Jesus diz ao homem que estivera endemoninhado: "Vai para
E ali não pôde fazer(quase) nenhum milagre... E se admirava da incredulidade deles" casa, para junto dos teus, e lhes conta tudo o que o Senhor fez por ti e como se
(6,4-6; ver 3,20-21). Na Galiléia, Jesus teve de enfrentar os inimigos do mesmo modo compadeceu de ti. O homem foi e começou a propagar na Decápole o que Jesus lhe
que em Jerusalém(ver, por exemplo, 2,6; 3,6.22). Na Galiléia, os primeiros discípulos fizera; e todos se admiravam" (5, 19-20). O ex-endemoninhado toma-se o primeiro
de Jesus já revelam sua incapacidade para entendê-lo. A morte de João, que prefigura missionário no evangelho de Marcos, explicitamente autorizado por Jesus, e o único
1
o destino de Jesus, ocorre na Galiléia, "quando Herodes, por ocasião de seu cujo trabalho terá trajetória. 1
aniversário, ofereceu um banquete aos grandes de sua corte, aos comandantes e aos Em 7,24 Jesus dirige-se "à região de Tiro". Ali se encontra com uma mulher
príncipes çla Galiléia" (6,21). "grega, de origem siro-fenícia" (7,26} com quem, primeiramente, não quer tratar -
Chama a atenção que seja na zona de fronteira - ou além da fronteira - da parece que ele chegara muito cansado à casa onde estava e não queria ver ninguém
Galiléia, e particularmente ao este-sudeste do Lago de Genesaré, que, no evangelho {7,24). Mas a mulher insiste, e consegue o que buscava.
de Marcos, o projeto de Jesus é semeado de modo surpreendentemente prornissor. 1º O mais interessante deste relato, como notou F. Gerald Downing, é que aqui
Logo depois de lançado o ministério de Jesus em Cafarnaum, quando Simão(Pedro) Jesus termina "conquistado" pela mulher. Embora Jesus sempre saiba se defender e
imp.or seu critério nos debates que trava no evangelho de Marcos(ver, por exemplo,

8. Ver Marcus, op. cit., 448.


11. Jesus envia os doze discípulos depois (em 6,6b-7), os quais têm êxito no momento. Mas é um sucesso
9. Esta é a critica mais comum contra a proposta da Galiléia como lugar de origem para o evangelho de pouca duração. Em 9, 14s, os mesmos discípulos - menos três - parecem ter se esquecido ou perdido toda a sua
de Marcos. capacidade anterior para curar os enfermos e expulsar os espiritos maus. São como a terra pedregosa, na qual a
10. Ver também o papel que desempenha "o mar· (he thalassa) na primeira metade do evangelho de Marcos semente brota rapidamente, mas não tem raiz e logo seca (cf. 4,5-6), ao passo que o endemoninhado corresponde à
(1,16; 2,13; 3,7; 4,1.39.41; 5,1.13.21; 6,47-49; 7,31); e também o lugar do "deserto" (eremos topos)(l,35.45; 6,31.32.35; semente semeada em terra boa, dando boa colheita (cf. 4,8). Em 5,34 Jesus diz à mulher com hemorragia: Fqha a
tua fé te salvou. Vai em
" ,

também 1,3.4.12.13). paz e fica curada desse sofrimento•. Assim como Levi, ela também é uma discípula exemplar
no evangelho de Marcos, mas Jesus não manda que ela conte nada a ninguém, mas também não a prolbe de falar.

14 15
2,6s.18s.24s; 3,2s; 12,13s.18s.28s), esta senhora mestiça, que de repente aparece na do texto como parte do relato da paixão e da morte de Jesus.16 Segundo o evangelho
zona periférica da Galiléia, sabe se impor a Jesus, e mais ainda, falando seu próprio de Marcos, foram eles que promoveram e, finalmente, causaram esta morte. Assim
discurso, ou seja, o discurso do próprio Jesus. Jesus tem que se render a ela, e lhe
é sublinhado o contraste absoluto que o evangelista quer pôr entre o projeto do
diz sem outro comentário: "Falaste bem; vai; o demônio saiu de tua filha" (7,29). 11
segundo templo e o cristianismo marcano.
São casos particulares e isolados, ou seja, distribuídos pela primeira metade
do evangelho de Marcos. Mas concordam em assinalar o território ao este-sudeste Quando Jesus entra em Jerusalém pela primeira vez no evangelho de Marcos
do Lago de Genesaré como um espaço onde Jesus já encontrara certo eco. Ali já se (11,11), dirige-se diretamente ao templo e volta imediatamente no dia seguinte, sem
sabia avaliar o que chegava com Jesus. Assim se interpola, no começo do evangelho, ter feito outra coisa - salvo amaldiçoar a figueira sem fruto-para "purificá-lo" (11, 12s).
num texto tão-marcado·pela decepção-e pelo-fracasso, a memória-de·outra-história � Na hora-em-que Jesus morre na cruz�a-cortina do templo se rasga-(-15,38), quer dizer,
e de outra possibilidade.12 já não serve para proteger o santuário, o qual também terá deixado de servir, segundo
o evangelho de Marcos, para proteger seus usuários como antes. São profecias de
·/ Segundo Eusébio_(Histó1ia__daJgreja_3..5..3Le_Epifânio_{Eanazi�9J_'ZJ_::8;.
destrmçao as que-são citadas no cap1mtcr13-p-ara-explicar como e que logo nao �ficar =
±a-
______

30.2.7; [Tratado dos pesos e medidas! 15), antes do cerco de Jerusalém pelo exército ___

romano, os cristãos judeus, avisados por um oráculo divino, refugiaram-se na cidade "pedra sobre pedra" deste edifício (13,2).
de Péla -uma cidade que fica no sopé da ·montanha pelo lado oriental do rio Jordão,
Para o cristianismo marcano não ficou nada a resgatar do projeto do segundo
menos de uma hora de automóvel ao sul do Lago de Genesaré.13 Esta tradição pode
ser comparada com a sugestão em 13,14: "então os que estiverem na Judéia fujam templo. Era preciso começar de novo, a partir do nada. Para os que não acreditam
para os montes".14 Vale a pena considerar - e não só para descartá-la - a fantasia que do nada pode brotar uma nova criação, esta visão tem de causar espanto.18
historiográfica de· que o evangelho de Marcos tenha sido escrito nesse mesmo lugar
- a cidade de Péla -, por um cristão da Judéia recentemente refugiado aí, certamente No evangelho de Marcos são os fariseus que andam preocupados em
queimado por toda a derrota ao seu redor e desconfiado completamente das pretensas observar os costumes tipicamente judeus - pureza à mesa (2,16; 7,1-5}, o jejum (2,18),
autoridades e farto de crer em qualquer promessa de mudança iminente - a não ser o descanso do sábado (2,24; 3,1-6). São "tradicionalistas".19 Sua zona de ação
que fosse apocalíptica e dura. 15 restringe-se quase exclusivamente à região da Galiléia, quer dizer, aparecem quase
exclusivamente na primeira metade do evangelho (2.i6.18.24; 3,6; 7,1.3.5; 8,1�.15;

Houve vários judaísmos na Síria-Palestina durante o século I dC. É de 16. Ver hiereus: 1,44; 2,26; archiereus: 2,26; 8,31; 10,33; 11,18.27; 14,1 e passim; 15,1.2.10; saddoukaios:
12,18. Outras autoridades que aparecem no evangelho de Marcos vinculadas com o projeto do templo são os
conhecimento comum que os judeus que se identificavam particularmente com o presbíteros: 7,3.5; 8,31; 11.27; 14,43.53; 15, l.
projeto do templo em Jerusalém eram os (sumos) sacerdotes e os saduceus. Estes 17. Dentro do mundo judeu de seu tempo não era só o cristianismo marcano que se opunha ao projeto do
são mencionados no evangelho de Marcos quase exclusivamente na segunda metade segundo templo. A comunidade de Qumran levantou uma critica muito dura contra esta instituição. Diferentemente
do evangelho de Marcos, porém, que acaba rejeitando completamente o projeto do templo, a comunidade de Qumran
se fixou no problema de sua atual liderança falsa. Os que se congregavam no litoral do Mar Morto não estavam de
aoordo com a linha sacerdotal que encabeçava o templo em Jerusalém. Exceto outro sumo sacerdote - que seria o
12. Há mais dois casos de discipulado aprovado por Jesus, ou seja, pelo evangelista, os quais são o da Mestre de Justiça da comunidade de Qumran -. não havia nenhum problema em Jerusalém para os de Oumran. Sua
mulher anônima de Betânia em 14,3-9, que derrama perfume sobre Jesus "antecipando a unção para a sepultura• discrepância, portanto, não tinha a ver com o projeto do segundo templo em si. A critica do evangelho de Marcos,
(14,8). e o de José de Arimatéia "que também esperava o reino de Deus e se atreveu a enttar onde estava Pilatos e ao invés, vai muito mais longe.
pedir-lhe o corpo de Jesus· (15,43). Veja-se também o caso do cego Bartimeu de Jericó (10,46-52, particularmente o
18. Quando Jesus morre, no evangelho de Marcos, também é anulada a validade do templo, o qual já não
tem remédio, de modo diferente de Jesus, que, em 16,7, sai vingado da humilhação na cruz. O relato da paixão e da
último verslculo 10,52; cf. 8,22-26).
13. Sobre a defesa desta tradição e a questão de sua historicidade ver C. Koester, "The Origin and the morte de Jesus no evangelho de Marcos tem como meta principal tirar o chão de todos os que terão buscado em sua
Significance o! the Flight to Pella Tradition". Catholic Biblical Quarter/y 51 (1989) 90-106; e contra: J. Verheyden, "The relação prévia com o templo a base de uma autoridade ainda vigente. Segundo o evangelista, este projeto já não vale,
Flight of the Chrlstians to Pella", ETL 66 (1990) 368-384; também Jorge Pixley, "Tiago e a igreja de Jerusalém", RIBLA do mesmo modo que seus porta-vozes já não têm causa.
22 (1996) 137, nota 12, que se refere a S.G.F. Brandon, Jesus and Che Zealots, Manchester University Press, 1967, p.
208-217. Depois da destruição de Jerusalém, os judeus que chegaram a se chamar "rabinos" assumiram o projeto do
, segundo templo de outra forma, reinscrevendo os requisitos anteriores para sacrificar e os tnputàs a pagar em códigos de
14. Cf. O. Pfieiderer; "Über die Composition der eschatologischen Reden Matt. 24,4ff', Jahrbuch für ética (pureza) pessoal e de identidade étnica. Representavam, assim, uma espécie de reivindicação, ou seja, ressignificação
Deutsche Theologie 13 (1868) 141: R. Pesch, Das Mal1rusevangeliurn, 2 vol., HTKNT 2. Freiburg, Herder, 1976, 2295-96. do segundo templo. Diferente da literatura rabínica, no evangelho de Marcxs não se ressignifica nada desse projeto, mas
15. Sobre a situação em geral da região da Slria-Palestina no século I aC e dC, ver Néstor O. Míguez, simplesmente se nega ao templo qualquer sentido a partir de agora. Fica entregue ao esquecimento. Ironicamente, esta
negação do templo por parte do evangelista serve para mantê-lovivo na memória do texto, ao se gloI1ar de sua aniquilação.
1

"Contexto sociocultural da Palestina", RIBLA 22 (1996) 22-33.


19. Duas ou ttês vezes os fariseus aparecem vinculados com os de Herodes. Ver 3,6; 12, 13 e também 8, 15.

16 17

10,2; 12,13),20 e, definitamente, n�o fazem parte �o re to da paixão e da morte de "admiravam-se da sua doutrina, pois ele os ensinava como quem possui autoridade
Jesus. 21 Não são, portanto, os mais malvados do filme. e não como os escribas". De novo, em 2,6, são os escribas que questionam Jesus quando
ele cura um paralítico dizendo-lhe: "Filho, teus pecados estão perdoados". Em 3,22 são
No evangelho de Marcos, os fariseus representam a preocupação com a
os escribas - agora especificados como os "que haviam descido de Jerusalém" - que
,.1 . identidade "étnica"; são os que terão vist? n? .modo "tradicional': de ser judeu o acusam Jesus de estar expulsando os demônios pelo poder de Belzebu, o próprio chefe
caminho a seguir. Também esta postura e re1e1tada pe�o evangelis�. Em 2,1-3,6
dos demônios. Em 9,11.14 e 12,28.32.35.38 os escribas sobressaem, ou seja, Jesus se
Jesus procura enfrentar esse preconceito, provocando escandalo e �mnflito para poder
refere a eles como autoridades legais - os mais doutos em interpretação das escrituras
questionar todos estes valores dominantes. É um enfrentamento ta.o dese1ado e uma
sagradas - colocando-os, porém, rapidamente no seu devido lugar.
rejeição tão forte de práticas tão tipicamente judias que fica fácil encontr� neste ,
aspecto do discurso do evangelho de Marcos uma das primeiras expressoes do � Chama a atenção que é a um escriba que Jesus diz: "Não estás longe do
antijudaísmo cristão tão repugnante.23 r eino de Deus" (12,34), e que pouco depois é contra os mesmos escribas que Jesus
Não resta dúvida que o evangelho de Marcos, assim como Paulo o "apóstolo adverte: "Guardai-vos dos escribas, que gostam de andar com roupas compridas, de
para as [demais] nações" (Rm 11,13), n�o viu nas �tifl:� pr�ti?� rituais e sociais ser cumprimentados nas praças públicas; gostam de se�tar-se nas primeiras cadeiras
do povo judeu um elemento imprescindível par� � fe crts?. P��tiva. M � de_modo das sinagogas e nos primeiros lugares dos banquetes. Devoram as casas das viúvas
diferente de Paulo, que não pôs em questão o direito e ate msistiu na obngaçao d�� � e simulam longas orações. Eles terão sentença mais severa" (12,38-40).
.
que se tinham criado e que ainda se apresentavam como Judeus de observar a .. lei Nenhum outro grupo de liderança judeu recebe, no evangelho de Marcos,
- ou seja, os costumes tradicionais - deste povo,24 o evangelho de M�cos parece·� este mesmo reconhecimento de seu valor e, ao mesmo tempo, uma crítica tão direta
muito menos "ecumênico", chegando a zombar dessas crenças, de�rumdo a base i por parte de Jesus. Como se fosse este grupo - o grêmio dos escribas - que estava
exegética e de raciocinio teológico sobre a qual se fundamentavam. � mais próximo do evangelista. em cujo meio ele ainda espera encontrar ressonância, ·

ainda que se visse obrigado a tomar clara distância deles.


Até aqui 0 cristianismo marcano seria um movimento siríaco-palestino antitem- �
plo e antitradição. Seria uma espécie de judaísmo prinútivo muito crítico de seu ambiente 1
cultural original. Fazia parte de um mundo judeu sacudido e revolto pelo tumulto e pelo ; IV
fracasso iminente da primeira insurreição sem limites contra Roma.·
, Não basta notar no evangelho de Marcos sua polêmica contra os vários
É interessante que os escribas são as únicas autoridades judias que aparecem : judaísmos do seu tempo. Afinal de contas, isto não é o mais significativo no evangelho
ao longo do evangelho de Marcos. Algum� vezes estão com os fariseus (ver 7; 1.5; ; de Marcos, apesar de sua importância indiscutível. Porque no mesmo escrito dá-se
cf. 2,16; 9,11). Com maior freqüência juhtam-se com os sumos sacer?ote� (e com .os '·
também outra polêmica muito mais extensa, sutil e aguda contra vários cristianismos
presbíteros: ver 8,31; 10,33; 11,18 .27; 14,1.43.53; 15.1.31). Mas tambem sao menc10- primitivos. Finalmente, os judeus "inimigos" de Jesus são menos problemáticos para

1
nados sozinhos, e não casualmente. o evangelista que seus "amigos" cristãos, ou seja, seguidores "equivocados".
os escribas são os primeiros a afrontar-se com Jesus no evangelho de .l
Na primeira metade do evangelho de Marcos (1,16-8,26} Jesus aparece como
Marcos. Em 1,22, depois da estréia de Jesus como mestre na sinagoga de Cafamaum, . curandeiro
itinerante. Faz muitos milagres por toda parte e a qualquer hora. Desde
o primeiro ato de cura por Jesus em 1,23-27 - em cujo relato está presente não
.
l
20. Em 10,2 e 12,13 devem oonstar para completar o leque de "escolas· ou "seitas• judias oom as quais Jesus
se defronta sucessivamente e vence a todas elas.
sua capacidade de fazer milagres, ou seja, expulsar os demônios, mas também
questão cristológica, a afirmação de um poder excepcional e o reconhecimento

a
! de
21. Ver 3,6; cf. Mateus Tl,62.
. . ·1 um ensinamento novo -, Jesus não pára de solucionar todo
tipo de problema
22. Diferente do documento a. cuja apresentação dos fariseus oorresponde mais ou menos ao oonhecunento sociocorporal. Mas trabalha assim só na primeira metade do evangelho de Marcos.
histórico que atualmente temos sobre a atividade do grupo farisaioo durante o século I dC, no �gelho de Marcos não Depois da confissão central de Pedro (8,27-30)- junto com o correspondente primeiro
se nota nenhum traço do trabalho tributário para o templo em Jerusalém, o qual provavelmente f?l o emprego ooncreto esclarecimento sobre o caminho da cruz (8,31-9,1) e a subida ao monte da transfi­
dos fariseus no oontexto galilaico antes da primeira insurreição judia oontra Roma É uma "��o- notável, porque
facilmente ter-se-ia integrado na polêmica jâ oomentada do evangelho de Marcos contra esta ínStllllçã l o. guração (9,2-8) - já não há mais milagre no evangelho de Marcos - exceto o caso do
rapaz endemoninhado em 9,14-29, a quem os discípulos que tinham ficado no sopé
23. Ver também 7,1-23.
do monte da transfiguração não podiam curar, e o caso do cego Bartimeu em 10,46-52,
24. Ver Gl 2,7.
o qual parece mais um texto alegórico a ser comparado com a parábola
. 25. Por que esta discrepância tão forte com os costumi:s �a�cionais jude� n� �vangelho de Mar�? s.� dos maus
lavradores em 12,1-12. Em suma, Jesus começa como curandeiro itinerante mas
porque, diferente de Paulo, que sempre ia para outros lugares, o criSt�o �c::ano �lstta em sua posição paulina não
por um lugar fixo, onde, sem dúvida, também ficava como uma postura mmontâria? AsslID, enquanto Paulo costumava termina assim no evangelho de Marcos. O evangelista reconhece que Jesus
fazia
sair para buscar novos irmãos, o evangelho de Marcos levantava a voz. milagres, mas não quer dar nenhuma importância soteriológica a esta atividade
.

18
19
O chamado "segredo messiânico" no evangelho de Marcos é parte desta todos milagres.28 Mas todos os textos de milagres que se encontram nesta seção serão .
mesma polêmica contra a imagem de um Jesus curandeiro, ou seja, um "Jesus dos dessa(s) "cadeia(s) de milagres".
milagres". O segredo messiânico refere-se à proibição reiterada por Jesus na primeira.
Brevemente, são dez milagres que podem ser divididos em dois grupos, cada
metade do evangelho de Marcos que os curados por ele não tomem conhecido o quef­
acabam de experimentar (ver 1,34.44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,26). grupo de cinco milagres.

1. 4,35-41 Jesus acalma o vento e as ondas
O texto clássico do "segredo messiânico", que serviu de ponto de partida .
5,1-20 Jesus cura o endemoninhado de Gérasa
para a discussão científica moderna da questão, está em 9,9-10, depois do relato da,­ 5,21-23.35-43 Jesus cura a filha de Jairo
transfiguração. Quando os três discípulos e Jesus desciam do monte após essa�
eXpertência�roibiu-lhes Jesus contar a quem-quer qlié fosse o·que-ttiiliam visto 1 5,25-34 -
Ô,34-44
Jesl!S cura a mulher COII!Jluxo de sangue
Jesus dá de comer a 5.000 homens
antes de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. E guardaram o segredo entre\ II. 6,45-51 Jesus caminha sobre a água
eles,indagando_entre_sio_que__significariaJessuscitar dos mortos". Preocupados com· ·-�-B�.22�-""26�- Jesus cura o cego-de-Betsaida--
o problema do Jesus histórico-e com o pensamento cristológico ortodoxo da igreja;
j
-·-- ----­

7,24b-30 Jesus cura a filha da siro-fenícia


ocidental, os estudiosos cost�mar� ver neste texto do evangelho de Marcos um 7,32-37 Jesus cura um surdo-mudo
.
artifício literário que o evangelista cnou para salvaguardar a profundidade complexa, 8,1-10 Jesus dá de comer a 4.000 pessoas
- paradoxal - da confissão cristã primitiva do Iesous kyzios - Jesus é o Senhor I o!­
Senhor é Jesus -, ou seja, que no crucificado se tinha feito presente e manifesto o�
Os dois grupos são mais ou menos paralelos. De cada grupo, o primeiro
Deus de Israel. ? milagre é marítimo: em 4,35-51 Jesus acalma o vento e as ondas; em 6,45-51, caminha
O problema principal que tem esta interpretação do segredo messiânico no - sobre a água. No último (quinto) milagre de cada grupo, Jesus dá de comer a uma
evangelho de Marcos é que não sabe apreciar suficientemente o atrativo desta,· multidão: em 6,34-44, a 5.000 homens; em 8,1-10, a 4.000 pessoas.29 Os três milagres
imagem de um Jesus curandeiro para os primeiros cristãos e a extrema novidade da . que se interpõem são todos de cura.30 Cada seqüência representaria uma releitura da
epopéia fundante de Israel, e, mais especificamente, das figuras proféticas de Moisés
insistência do evangelho de Marcos em que os milagres de Jesus foram o aspecto
e de Elias (+ Eliseu).31
menos importante de sua pessoa_ e de sua ação, inclusive sem importância alguma
para a verdadeira fé crista. Sabemos agora, pela arqueologia, que esta imagem de : O importante desta hipótese para nosso tema é que acentua o interesse muito
um "Jesus dos milagres" era a mais comum e querida entre os primeiros cristãos até sério de outros cristãos primitivos pelo ministério milagroso de Jesu$. A releitura que
o final do século m.26 Os milagres que Jesus faz na primeira metade do evangelho de se faz dos mitos constituintes do povo judeu através desta atividade não representa
Marcos terão sido a base principal de esperança para outras comunidades cristãs j um interesse inculto, ligeiro e oportunista, mas outro modo original de viver a fé
siriaco-palestinas. 1 cristã. De fato, repito, foi a forma mais típica de refletir o cristianismo primitivo durante
os primeiros séculos dC. 32
Esta probabilidade se toma mais acertada à medida que não são só alguns
milagres soltos que Jesus faz na p ��eira metade do evangelho d� M�cos. mas houve
uma(s) "cadeia(s) de milagres" previa(s) a Marcos que o evangelista mtegrou em seu
-11
relato·na hora de escrevê-lo. Esta hipótese de "cadeia(s) de milagres" é fruto de uma i 28. Há dois blocos de textos que não são relatos de milagre, os quais estão em 6,1·33 (entre o quano e o
quinto milagres da primeira cadeia) e em 7,1·23 (entre o primeiro e segundo milagres da segunda cadeia). Segundo
análise feita primeiro por Paul Achtemeier sobre o conjunto de milagres que se 1
i
Achtemeier, o.e.• p. 266-274, registram o trabalho redacional do evangelista.
27
encontra em 4,35-8,26. Os textos que integram esta seção do evangelho não são 29. O Ú!lico caso de "deslocamento" redacional por parte do evangelista será o do cego de Betsaida (8,22-26),
1 .
cuia atual localização no evangelho de Marcos depois de Jesus dar de comer a 4 mil pessoas (8, 1·10) se deve claramente
ao cóntraste geral que o evangelista busca enfatizar entre os que olham mas não vêem (cf. 4, 12, os quais incluem o
grupo dos doze discfpulos) e os que não olham mas entendem (8,22·26: logo antes da conhecida conf1Ssão de Pedro '
26. Ver Graydon F. Snyder, Ante Pacem: ArchaeologicaJEvidence ofChurch Ufe Before Constantine, Macon. que diz a verdade 18,29) mas não a capta fS,32·33); ver também 10,46-52; 16,7).
GA, Mercer University Press, 1985, p. 56. Ainda representa um aspecto muito importante da fé cristã latino-americana
popular. Em sua tese de doutorado, The Markan Sea Miracles: Their History, Formation and Function in the Literazy ! 30. No terceiro milagre de cada grupo trata-se do caso de uma mulher.
Context of Greco-Roman Antiquity, University of St. Michael's College, 1991, Wendy Cotter procurou mostrar que os 1 31. Os milagres marítimos (4,35-41; 6,45·51) e de abundante comida em lugares desertos (6,34-44; 8, 1·10)
dois milagres marítimos no evangelho de Marcos (4,35·41; 6,45·52) refletem muitos aspectos da cultura popular - e fazem lembrar Moisés ao atravessar o Mar Vermelho em axooo 14 e o maná caindo do céu em Ex 16. Vários dos
da propaganda imperial - helenfstico·romana. milagres de cura - particularmente os da mulher siro·fenicia e da filha de Jairo - lembram a história de Elias (+ Eliseu).
·

27. Paul J. Achtemeier. "Toward the Isolation o!Pre-Markan Miracle Catenae·, Journal ofBiblical Literature Ver Achtemeier, o.e.• p. 202-205; Burton L. Mack, A Myth of Innocence: Mark and Christian Origins, Philadelphia,
89 (1970) 265-291; "The Origin and Function of the Pre-Markan Miracle Catenae", Joumal of Biblical Literature 91 Fortress, 1989, p. 215-224.
(1972) 198·221. 32. Merece um estudo próprio e mais profundo esta questão da imagem de Jesus-dos-milagres na fé cristã
primitiva desde a ótica latino-americana popular.

20
21
Freqüentemente se diz no evangelho de Marcos que Jesus ensinava. 33 Mas.
evangelhos de Mateus e Lucas, mas numa forma bastante distinta do texto de Marcos.
desse ensino não se apresenta quase nada. Parece que ao evangelista interessava
Sem falar de um possível uso de O por parte do evangelho de Marcos, o contraste
mais o conceito do poder do ensino de Jesus que seu conteúdo particular (ver 1,22).
entre os respectivos textos de O e de Marcos chama a atenção e corresponde ao
A única vez em que Jesus se senta, no evangelho de Marcos, para ensinar e se dá
estilo ideológico do evangelista.
um resumo do discurso, se diz que "lhes ensinava muitas coisas em parábolas" (4,2),
esclarecendo depois que "por meio de muitas parábolas como estas ensinava-lhes Um dos textos mais importantes destas "superposições" é o discurso "mis­
de modo que não pudessem entender. Sem parábolas não lhes falava, mas a sós sionário" em 6,7-13 (cf. Mt 9,37-38; 10,7-16.40-42; 11,21-23; Lc 10,2-16). Diferente
explicava tudo a seus discípulos" (4,33-34).34 Quer dizer, ensina, mas não dá o do mandamento semelhante em O, que não deixa os enviados levar nem fazer nada
conteúdo particular - o sentido preciso - deste ensinamento. no caminho- "Não leveis dinheiro, nem bolsa, nem sandálias, nem bastão; a ninguém
saudeis" (10,4) - o evangelho de Marcos admite exceções: "Ordenou-lhes que não
Por quê?
levassem nada para o caminho, a não ser só um bastão ... Podiam usar sandálias, mas
O evangelho de Marcos opõe-se de novo a outra visão cristã primitiva do não levar duas túnicas" (6,8-9). Do trabalho próprio e dos direitos correspondentes
significado da memória de Jesus. Para este cristianismo originário valiam mais os dos enviados em O (10,2.5-9) não se fala no evangelho de Marcos. Só se diz que aos
pronunciamentos de Jesus, seus Jogai. No evangelho de Tomé, por exemplo, que doze discípulos - note-se que em O {10,2.3) o grupo dos enviados não fica limitado
provavelmente provém da mesma região siríaco-palestina e que agrupa 114 ditos de assim - foi dada "autoridade sobre os espíritos impuros" (6,7; ver também 6,13).
Jesus sem maior vínculo de lógica discursiva ou de marco narrativo entre eles, o Mesmo assim, no evangelho de Marcos não se dá aos doze discípulos a mesma
primeiro versículo do texto diz claramente: "Quem conseguir entender estas palavras autoridade que em O se enfatiza para os "operários": "Quem vos recebe, recebe a
não conhecerá a morte" (EvT 1). Para este cristianismo era o discurso de Jesus e sua mim. e quem me recebe, recebe a quem me enviou" (10,16). Tampouco se nota no
interpretação adequada que levava à vida plena. 35 evangelho de Marcos, como parte da missão dos doze discípulos, o mesmo perigo e
sentido de juízo iminente que são elementos importantes do envio paralelo em Q
O evangelho de Marcos não pôde passar por alto ou descartar sem mais esta
(10,3.12-15). Resulta, pois, que o discurso "missionário" de Marcos é um texto muito
forma de lembrar Jesus porque - supõe-se - era uma perspectiva bastante genera­
., mais banal que o de Q e para o evangelista quase sem importância. Como se tivesse
lizada no ambiente siríaco-palestino. O evangelista tira com a mão direita o que dá
querido tirar toda a sua carga.
com a esquerda. Se se diz que Jesus ensinava e até se oferece uma mostra deste
ensino em 4, 1-34, pela forma como.é apresentado se tira desse ensinamento qualquer O mesmo ocorre com a parábola da semente de mostarda em 4,30-32 (cf. Mt
peso didático ou capacidade de orientar concretamente. Em vez de fazer o que o 13,31-32.33; Lc 13,18-19.20-21). Brilha por sua ausência no evangelho de Marcos a
ensinamento costuma fazer - instruir os adeptos e aprofundar o conhecimento-, o outra parábola, a do fermento, tão paralela à da semente de mostarda, em Q
ensinamento de Jesus no evangelho de Marcos serve mais para confundir e agudizar (13,18-19.20-21). Diferente de Q, que toma explicito que "um homem pegou e lançou"
o estado atônito que, em todo caso, Jesus sempre suscita neste escrito. a semente de mostarda (13,19) e que "uma mulher pegou e escondeu" o fermento
-

(13,21)-, no evangelho de Marcos não há nenhum reconhecimento parecido de ação


Dada a hipótese das duas fontes como melhor solução para o chamado
humana neste processo. Ao invés, o evangelista reprimiu-o.37 Ao mesmo tempo, o
problema sinótico, fica o fenômeno que foi chamado de "superposição" ou imbricação
fruto muito "incorreto" da semente de mostarda em Q, a qual "cresceu e tomou-se
entre o evangelho de Marcos e o documento O. lS Refere-se aos textos - tipicamente
uma árvore", é corrigido no evangelho de Marcos (4,32) como "arbusto" (lachanon)
um dito . ou um breve relato - no evangelho de Marcos que têm também os dois
dos maiores. De novo, nota-se urna tendência de frear ou baixar no evangelho de
Marcos o discurso sempre mais "exagerado" de Q.38
33. Ver, por exemplo, 1,21-22; 2,13; 4,1-2; 6,2.6.30.34; 7,7; 8,31; 9,31; 10,1; 11,17; 12,14.35; 14.49.
Ainda nã� há consenso entre os estudiosos sobre a natureza sociopolítica do
34. A tradução da última írase em 4,33 por Dios Habla Hoy: •y hasta donde podian entender· é uma
grupo cristão primitivo que o documento Q atesta.39 Mas com freqüência afirma-se
tradução equivocada.
sua posição "radical". Fundamenta-se uma tentativa - galiléia - de assumir o projeto
35. Outros textos revelam também a mesma ótica cristã primitiva. O documento a. que sem dúvida foi
escrito na Galiléia. é um texto didático em que Jesus dá orientações para viver melhor o dia-a-dia. inclusive o quefazer de Jesus como programa de vida alternativo ao nível mais básico da sociedade. -Assim
cristão, e critica outros pontos de vista. Como o evangelho de Tomé, tampouco se refere à mone e/ou ressurreição
de Jesus em a. Foi o ensinamento de Jesus - seu programa de vida - e não sua mone na cruz o centro do evangelho
37. Ver o verbo passivo spare isolado na frase hotan spare epi ces ges em 4,31. Cf. também a áase automate
he ge karpoforei em 4,28. Os dois textos (4,26-29 e 4,30-32) se interpretam mutuamente no evangelho de Marcos.
para estes cristianismos originários.
36. É o que se chama "Mark-O overlaps·. A referida hipótese das duas fontes conclui que o evangelho de
Marcos foi escrito antes dos dois evangelhos de Mateus e Lucas. os quais usaram o evangelho de Marcos - n�a
38. A mesma tendência pode ser comprovada também em outros textos de "superposição·. Ver: Harcy T.
Fledde�ann with an assese sm nt by F. Neirynck, Mark and O: A Study oi the Overlap T�. Leuven, Peeters/Leuven
ou noutra versão - como fonte literária mais outro texto como fonte, que será o documento a. Ver Leü E. Vaage, "O
Univers1ty Press , 1995.
cristianismo gaWeu e o evangelho radical de a·, RIBLA 22 (1996) 88-90.
39. Cf. Vaage, art. cit., p. 99-103.

22
23
se propõe em Q outro fundamento ("modelo") econômico, outro modo de manejar a Se os sumos sacerdotes e seus cúmplices são diretamente os responsáveis pela ·

incerteza e a violência social, criticam-se os costumes e os valores mais típicos e morte de Jesus no evangelho de Marcos, os indiretamente responsáveis - os traidores,
arraigados, promete-se um ousado bem-estar - o Reino de Deus - ao alcance de os que acham que Jesus está louco e têm pouca fé nele, os que supostamente eram os
todos. o evangelho de Marcos se mostra desconfiado diante de tanta expectativa e seus. mas acabam deixando-o sozinho. os que, finalmente, não souberam acompanhá-lo
tanto "entusiasmo". Pelo menos, muito mais cauteloso. "nem sequer uma hora" (14,37). os que "não diziam nada a ninguém" - são os discípulos
e os familiares. O evangelista devia ter algum motivo para tanto ressentimento.
Finalmente, existe a polêmica no evangelho de Marcos contra os primeiros
discípulos_ 0 grupo dos "doze" - e a familia de Jesus. Dos "doze" o "primeiro entre O resultado desta análise é a percepção de que a narrativa do evangelho de
p�es" é, sem _Q_úvida, a figura de Pedro. Da familia de Jesus é sua Mãe Maria a figura Marcos agrupa, para encobrir, uma variedade de cristianismos originários siriaco-pa-
mais proeminente no evangelho de Marcos�emlfüra se saiba que o irmão Tiagocnegou lestinos. O evangelista recopilou-tradiGões-distintas�-as-quais, na crítica redacional---
a ser considerado como líder principal da primeira comunidade cristã de Jerusalém.
(Redaktio nsgeschichte) dos evangelhos são qualificadas como suas fontes - não para
conservá-las ou para atualizá-las, mas para sujeitá-las e para se apoderar delas.
Todos-estes-=-os-primeiros-diseípules-e-os-familiares-de-Jesus;----illõtl>-LJa�J--"R---
O evangelista não pôde simplesmente descartar estas tradições. As distintas
lixo no evangelho de Marcos. Afinal de contas, deles ninguém serve, para o evangelista,
c omunidades às quais correspondem ainda estavam presentes - salvo, talvez, a de
como modelo de discipulado cristão. São todos um fracasso.
Jerusalém. Por isso o evangelista via-se obrigado a assumir seu discurso, incorpo-
Houve muitos estudos sobre este tema da apresentação dos discípulos no rando-o, para assim pô-las em seu lugar.
evangelho de Marcos.40 Afinal, a maioria deles sempre procura resgatar os discípulos
O evangelho de Marcos não é, pois, um conjunto de memórias soltas da(s)
- parece que, menos, os familiares de Jesus - de sua evidente desonra e falta de primeira(s) geração/ões cristã(s), ligeiramente revisadas e amigavelmente ordenadas
realização.41 A mim, porém, não _me convencem. pelo evangelista, e menos ainda um manifesto ecumênico. É uma tentativa partidária
Uma vez que "todos (os discípulos) fugiram abandonando" Jesus em 14,50 - parece ser da escola paulina - para, juntando, redelinear os diversos cristianismos
e. pouco depois, em 14,66-72. o único deles que não desapareceu, Pedro, jura primitivos siríaco-palestinos, agora sob urna só luz: a sombra da cruz.
negando três vezes que conhecesse Jesus, na história que Marcos conta em seu Evidentemente, a perspectiva que o evangelho de Marcos representa não era
evangelho já nenhum deles tem lugar. Embora seja verdade que estes discípulos "e ainda a mais típica entre os diversos cristianismos siríaco-palestinos. O mecanismo
Pedro" recebam do jovem vestido de branco e sentado na tumba uma última narrativo pelo qual o evangelista procura subordinar os demais discursos cristãos
oportunidade para renovar o seu andar atrás de Jesus, fazendo-os recordar através primitivos é seu relato da paixão e morte de Jesus. Ao fazer com que "o evangelho
das três mulheres o mesmo que Jesusjá lhes tinha dito em 14,28, que "Ele irá à de Jesus Cristo filho de Deus" (1,1) aponte desde o começo para a morte do
Galiléia antes de vós. Lá o vereis como vos disse" (16,7), no entanto, os discípulos protagonista,43 a imagem de Jesus que o evangelho de Marcos oferece torna-se uma
não recebem esta mensagem porque as três mulheres - entre elas a mãe de Tiago ,l1 visão extremamente paulina, mais paulina que a do próprio Paulo.
(15,40; 16, 1} e de José (15,40.47), que são irmãos de Jesus (ver 5.4). ou seja, ªprópria l O tema do relato da paixão e da morte de Jesus no evangelho de Marcos é,
mãe de Jesus - "não disseram nada a ninguém, porque estavam com medo" (l6,8).
Estão todos desqualificados.
·j obviamente, um tema complicado e carregado de interesse, e não só de interesse

A polêmica do evangelho de Marcos contra o grupo dos "doze" e a família


j
i
exegético. Para muitos trata-se da verdade do evangelho cristão, ou seja, do
verdadeiro evangelho cristão. Se o ato fundante - "histórico" - do cristianismo não
de Jesus é uma polêmica - sutil. aguda, forte e sem piedade - contra a liderança
tradicional da primeira comunidade cristã em Jerusalém.42 O evangelho de Marcos
não vê em sua forma de entender - e ter levado adiante - o projeto de Jesus um
!
'
1 está nesta memória da última semana da vida de Jesus, o que mais nos resta? A
mensagem cristã de esperança baseada na ressurreição de Jesus não depende
logicamente de tal lembrança primordial de sua vida dolorosa e da crucifixão?

seguimento adequado ao caminho assinalado. O evangelista não quer deixar lugar a i Aqui não pretendo terminar este debate. Quero dar mais um empurrão e,
este grupo, pintando os discípulos e os familiares de Jesus como covardes e incapazes
de captar o que estava em jogo com Jesus. l
1
talvez, para alguns leitores, um ponto de partida para participar. Porque, ao meu ver,
o ato fundante desse cristianismo - o "nosso" ortodoxo ocidental - que viu na via
dolorosa de Jesus e em sua cruz a chave teológica do evangelho cristão, não se deu

40. Podem-se enconttar nestes escudos os pormenores do caso. j no dia em que se realizou o extermínio mais ou menos "rotineiro" de um tal Jesus

41. Ver, por exemplo, Jack Dean Kingsbwy, Conflit in Marie Jesus, Authotities, Disciples, Minneapolis,
Fortress, 1989, p. 112-115. 43. O relato do batismo de Jesus em 1,9-11 é uma prefiguração "heróica" de sua mone. Cf. 10,38. Ver meu
artigo "Bird-Watching at the Baptism of Jesus: Early Christian Mythmaking in Mark 1 :9-11", em Elizabeth A. Castelli
42. A vida e breve história desta igreja foi resumida por Jorge Pixley, "Tiago e a igreja de Jerusalém". RIBLA
e Ha1 Taussig (eds.), Reimagining Christian Oiigins: A CoHoquium· Honocing Burton L. Mack, Valley Forge,
22 (1995) 127-146. Sobre a polêmica do evangelho de Marcos contra a famflia de Jesus ver John Dominic Crossan,
Pennsylvania, Trinity Press Intemational, 1996, p. 280-294.
"Mark and the Relativas of Jesus", Novum Testamentum 15 (1973) 81-113.

24 25
quando se
de Nazaré por parte das forças armadas romanas, mas 40 anos depois, Que o narrador [do evangelho de Marcos] quer criar este sentido de urgência
o de Marcos seu relato da paixão e da morte de Jesus.
deu a conhecer no evangelh em sua história por ter formulado assim as primeiras palavras de Jesus [em
foi, pelo menos, a base textual sobre a qual foi levantad o o aparelho
Este relato 1 . 1 5) fica confirmado pelo ritmo da narrativa seguinte. Tudo se passa "de
litúrgico - eucarístico - e eclesiástico-teológico qu� continua insistindo
que sem �s :a uma vez" no evangelho, porque euthys ("de uma vez") é uma das palavras
pos1çao
..1 ,
base não há cristianismo fiel à memória de Jesus. Se1a qual for a verdade desta preferidas de Marcos - aparece mais de 40 vezes em sua história, mais que
represent a uma visão completa nem correta da história dos primeiros
i atualmente, não o dobro das vezes que aparece em qualquer outro evangelho. O mesmo
r cristianismos siríaco-palestinos .44 sentido paratático que se dá pelo uso de kai, especialmente quando juntado
Embora seja verdade que Paulo fala da cruz de Cristo e sublinha cada vez com a preferência de Marcos pelo uso do particípio, impele a narrativa sem
mais a importância soteriológica deste fato para ele, ainda assim o menor dos a deixar descansar, como se os acontecimentos passassem tão rápido que
apóstolos não mostra o menor interesse em contar a história desta morte. 45 Só em ninguém tivesse tempo para formular orações completas, mas estivesse
1Cor 1 1 23s se encontra um discurso mais ou menos narrativo que talvez fizesse parte obrigado a deixar cada frase cair em cima das outras. Outro elemento típico

de um r lato primitivo da paixão e da morte de Jesus. Dever-se-ia perguntar, porém, de Marcos, que não se nota na maioria das traduções, também cria veloci­
se isto nos parece assim porque agora lemos este texto sempre pensando nos - ou dade e presença na narrativa: o uso do presente histórico. Embora o narrador
seja, ampliando-o com os - relatos canônicos da paixão e da morte de Jesus nos relate a história do evangelho de Marcos na perspectiva de certo tempo
evangelhos. Porque, em si, o texto de 1Cor 1 1 ,23s não pressupõe nem requer um depois de terem ocorrido os eventos do mundo fictício e por isso os dê a
maior relato da paixão e da morte de Jesus para ser entendido, mas registra a forma conhecer principalmente no passado, com freqüência, e particularmente
na qual se explicava um determinado rito - a ceia dominical (kyriakon deipnon, 1Cor quando há diálogo, o passado é substituído pelo presente e assim se cria o
1 1 , 21) - que se praticava nas várias comunidades cristãs paulinas. efeito de um modo de contar dramático e direto [ver, por exemplo, 2, 14) . . .
Todos estes elementos estilísticos ajudam a criar uma narrativa marcada por

O evangelho de Marco é que fez desta "lenda .cultua!" uma crônica trágica certa velocidade e que não fala por rodeios, mas ainda mais importante é o
na qual profecias antigas das sagradas escrituras judaicas cumprem-se e a morte de fato de que eles enfatizam a nível formal a urgência da mensagem de Jesus
Jesus não só serve como ponto de partida para a nova comunidade cristã mas também e quão tarde é a hora, como já foi visto na introdução ao primeiro bloco maior
- e talvez mais importante para o evangelista - acarreta a destruição inevitável do em Marcos: 1 , 14-15.47
templo em Jerusalém e a autocondenação de todas 8.:3 autori a es judias junto c?m��
todos os primeiros líderes cristãos siríaco-palestinos. E uma cromca que deve ser lida Outros elementos da mesma ótica "apocalíptica" no evangelho de Marcos
pelo menos com certo cuidado, se não c?m ..t�mor. são a figura do "filho do homem" e o uso do verbo dei. Seja qual for a origem do nome
. "filho do homem" e as suas várias acepções, inclusive o possível uso deste apodo
pelo Jesus histórico, a expressão "filho do homem" funciona dentro do discurso do
V
l evangelho de Marcos como título cristológico contraposto à expressão semelhante:
"filho de Deus" . Particularmente na segunda metade do texto, a frase "filho do
o evangelho de Marcos é um texto "apocalíptico"." O espaço narrativo por
onde o leitor tem que ir construindo o mundo imaginário do texto toma-se sempre
;]1.: homem" serve para qualificar Jesus de eleito e consciente de seu próprio destino. Do
contrário, pareceria um suicida que por teimosia buscou ser condenado à morte
menor. A nível estilístico, Mary Ann Tolbert fez as seguintes observações:
·j! punitiva e desgraçada da cruz.

O fundo apocalíptico deste uso do título "filho do homem" toma-se inegável


44. A longa e densa discussão cientifica moderna sobre a natureza de um presumido relato pré-marcano em 14, 62 . Ao sumo sacerdote do conselho supremo, que pergunta a Jesus se ele é
criticamente examinado. Por
da paixão e da morte de Jesus baseia-se no próprio pressuposto nunca questionado ou ou não é "o Messias, o filho do Deus bendito" , Jesus diz: "Eu sou (egô eimi), e vós
de descobrir outra realidade
Isso entrar em tal discussão já é ter-se perdido - ou seja, perde-se a possibilidade
o único apoio "externo" para este pressuposto seria o testemunho das cartas paulinas "autênticas". as
vereis o filho do homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vir nas nuvens do céu"
O
hist rica.
quais foram escritas antes do evangelho de Marcos. No entanto, fica claro que
a leitura destas cartas tampouco (14,62). Aqui se refere ao livro de Daniel e particularmente à figura de "um como um
escapou da influência do mencionado aparelho onodoxo ocidental. filho de homem" em Dn 7, 13. Em ambos os casos - o livro de Daniel e o evangelho
45. Mesmo assim não creio que a cruz de Cristo tenha sempre sido o enfoque principal do pensamento de Marcos -, a frase "filho de homem" serve para identificar o ser humano, que
soteriológico paulino, mas o tomou-se à medida que a própria vida de Paulo o obrigava
a integrar mais ou menos em
j .

i desempenhará um papel determinante no futuro juízo de Deus.


sua representação do evangelho cristão a experiência do fracasso e de
1 sua própria mone. Para o argumento
! em Paulo. Notas para uma
correspondente, ver meu artigo ·Redenção e violência: o sentido da morte de Cristo
releitura", R1BLA 18 (1994) 112-130.

46. Mas não o é por seu gênero literário nem por sua postura ideológica tão critica, porém acima de tudo 47. Mary Ann Tolbert. Sowing the Gospel: Mark's Wodd in Licerary·Histolical Perspective. Minneapolis,
um
por seu hotizonte temporal apenado. O gênero literário do evangelho de Marcos obviamente não é o de Fortress, 1989, p. 117-118.
"apocalipse" como tal.

26 27
O uso do verbo dei no evangelho de Marcos {8,31 ; 9, 1 1 ; 13,7. 10; cf. 13, 14;· VI
14,31) também reflete a convicção típica de uma ótica "apocalíptica" de que há certo

)
processo que tem de acontecer antes de poder entrar na ordem nova antecipada. O evangelho de Marcos não é um paradigma da existência cristã para
Foi particularmente o uso do verbo dei em 8,31 - a primeira predição de sua qualque momento e lugar e muito menos um reflexo da fé cristã primitiva em sentido
r
.1 global. Ao invés, representa uma intervenção ideológica muito particular no processo
paixão e morte por Jesus - que mais chamou a atenção dos estudiosos. O debate
científico sobre o próprio sentido de 8,31 teve como motivo principal a questão dos vários judaísmos primitivos, inclusive os diferentes cristianismos siríaco-palesti­
nos, o qual teria entrado, fazia pouco tempo, numa crise muito profunda por todas
cristológica {soteriológica) tradicional: por que Jesus, sendo Deus, todavia "teve" de
as conseqüências da primeira (perdida) insurreição judia contra Roma.
morrer para salvar ºª-seres humanos? Este enfoque não se concentra. como devia
' _ _

- 11 - ---- · ;
ter feito, no fato de que não só é o "filho -do horriem" que desefaperiha fü:n papel -Não surpreen-de-.-portanto, que o -evangellio-de Marcos reSilltasse um texto
pré-ordenado no evangelho de Marcos, mas que outros também têm que cumprir tão combativo e severo, para não dizer ressentido. Ao mesmo tempo não abandona \
----e -�--J;s:µe\1---G ver-histórico-sal.vífico_antes_de_poder se manif�tstaco_antecipado fim. Assim -e por isso talvez seja tão combativo e severo - o projeto que o evangelista chama
também Elias teve que vir (9, 1 1) . Os que fazem guerra terão de fazê-la mais uma vez de "o evangelho de Jesus Cristo filho de Deus" (1 , 1).
(13,7). Os que pregam o evangelho devem levá-lo primeiro "a todos os povos" (13, 10). O evangelho de Marcos representa uma espécie de autocrítica dentro dos
O uso do verbo dei em 8 , 3 1 reflete a mesma vivência de um processo sociopolítico, vários cristianismos primitivos siríaco-palestinos. Era preciso repensar muita coisa
aparentemente necessário ou inevitável e certamente convulsivo, pelo qual - e só ao chegar ao ano 70 - e mais ainda depois - na Síria-Palestina, onde nada estava
pelo qual - se espera alcançar. no evangelho de Marcos, outra realidade nova . 48 ficando igual a antes. O ·evangelho de Marcos é fruto desta crise, uma tentativa de
Todos estes elementos - e outros também - ajudam a criar um ambiente responder a ela, e ao mesmo tempo uma testemunha - certamente sem o querer -
dó fato de sua voz não ser a única que falava.
narrativo "apocalíptico" no evangelho de Marcos. Tal · tônica de urgência, de um '
destino próximo e duro, de certa inevitabilidade, serve muito bem como marco geral
e motivo particular para as fortes polêmicas que acabamos de repassar neste escrito. Apêndice - O Reino de Deus no evangelho de Marcos
Numa situação tal como a que o evangelista põe para Jesus - a qual sem dúvida
reflete sua própria situação da primeira insurreição judia, quando tudo ia à deriva, Do mesmo modo que outros textos cristãos primitivos, o evangelho de
marcada por discrepâncias profundas e violentas, cheia de um futuro ainda por se Marcos faz referência ao Reino de Deus como a realidade alternativa que os primeiros
definir - não cabia vacilar nem medir demais as palavras. Tratava-se dum momento cristãos desejavam, da qual se esperava desfrutar logo. Além disso foi comum
-
!
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em que se jogava a vida. pressupor que a própria categoria Reino de Deus seja por excelência, ou origi-
1 nalmente, um conceito apocalíptico. Não resta dúvida, por exemplo, que para Paulo
Houve, e há, de se optar por um modo de andar que tivesse saída, ainda que \ o Reilio de Deus foi outro elemento integral de sua cosmovisão escatológica: nas
fosse ao custo de todo um passado. Em tempos de forte contradição, o evangelho de ·J cartas "autênticas" de Paulo, o conceito do Reino de Deus sempre tem a ver com os
Marcos insiste que "quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a ·, benefícios que nos são prometidos e que estão guardados para os filhos e filhas de
vida por causa de mim e do evangelho, a salvará" (8, 35), ao mesmo tempo em que 1 Deus na nova criação que será a casa do Senhor.50 No entanto, apesar de o evangelho
promete: "Não haverá ninguém que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, : de Marcos estar próximo da tradição paulina e apesar do evidente ambiente
filhos oti campos por minha causa e por causa do evangelho, e não receba ao cêntuplo i apocalíptico de seu mundo narrativo, nota-se, por parte do evangelista, no tocante a
agora, no tempG presente, casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com j esta categoria, certo distanciamento da postura escatológica.51 Pode ser porque este
perseguições, e no mundo futuro a vida eterna" (10,29-30). Não representa um 1 conceito fez parte dos distintos discursos que terão fomentado e apoiado o já
programa de vida "normal" para todos os dias mas uma tentativa para chegar, apesar ! fracassado processo da insurreição contra Roma.
de tudo, à próxima etapa da história.49
1 Segundo o evangelho de Marcos. Jesus lançou seu ministério público na
1 Galiléia pregando "o evangelho de Deus" com o anúncio de que "Cumpriu-se o tempo
!

48. Em sua •escatológica-, este processo se parece muito com a decidida seqüência de selos e trombetas 50. Ver meu artigo "Monarchy, Community, Anarchy: The Kingdom of God in Paul and a-, Toronto Joumal
e taças pela qual se chega a ver o novo céu e a nova terra com a nova Jerusalém no livro do Apocalipse.
ofTheology 811 (1992) 53-60.
49. Esta outra etapa da história chama·se Reino de Deus. Mas. apesar do ambiente apocaliptico que define 51. Esta conclusão é um tanto irônica porque foi particulannente a interpretação de certos ditos sobre o
o quadro narrativo do evangelho de Marcos, aqui se nota certo distanciamento por parte do evangelista de wna Reino de Deus no evangelho de Marcos que levou estUdiosos deste século a falarem sobre o conceito do Reino de
interpretação escatológica deste símbolo. Ver o apêndice deste artigo. Deus como originalmente um discurso apoc:aliptico ou escatológico.

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e o Reino de Deus aproximou-se. Convertei-vos e crede no evangelho" (1, 15). Quas São textos, todos estes, muito discutidos e difíceis de entender, em parte
todos os aspectos desta sumária apresentação da mensagem original de Jesus porque falam com clareza demais. Em 9 , 1 , por exemplo, garante-se que "dentre os
inclusive a expectativa de um reino divino que está por chegar, cabem se que aqui estão - não só entre os doze discípulos, mas também dentro da multidão
comentário dentro da ótica apocalíptica.
(ver 8,34} - alguns não morrerão antes de ver o reino de Deus vindo com poder" . Se
Em 4, 10 se faz referência ao "mistério" do reino de Deus, cuja realidade fo Jesus, isto é, o evangelista simplesmente não se equivocou ao dizer isto, quando
revelada (dedotai) só a alguns, enquanto fica oculta aos demais "de fora" . De nov chega(rá) o reino de Deus com poder no evangelho de Marcos?
é uma perspectiva (epistemologia) muito coerente com a visão apocalíptica (sectária). Será "seis dias depois" (9, 1) pela transfiguração de Jesus? Neste caso foram
Também em 4, 26s e em 4,30s a "semeadura" anônima e o crescimento automátic
só os três discípulos Pedro, Tiago e João que experimentaram o reino de Deus vindo
do reino de Deus refletem a convicção "determinista" apocalíptica.
com poder no evangelho de Marcos. Ainda que dentro de pouco tempo todos os três
No relato da paixão e da morte de Jesus, inclusive a chegada a Jerusalém fiquem totalmente desqualificados de qualquer privilégio, inclusive de um entendi­
os debates no templo, quando se refere ao reino de Deus, o uso desta frase parec mento mais profundo do mistério cristão, pelo evangelista. 54
dar voz mais uma vez à mesma expectativa escatológica.52 Assim, por exemplo, Jesu� Não seriam, talvez, os que conseguem "entrar" no reino de Deus, recebê-lo
diz ao jovem rico que, depois de tudo, "não estás longe do reino de Deus" (12,34). e tê-lo, os que "não morrerão antes de ver o reino de Deus vindo com poder"? Quer
Durante a última ceia com os discípulos, na hora de terminar seu discurso sobre o dizer que o reino de Deus chega com poder, segundo o evangelista. ao assumir em
cálice, Jesus jura a eles que não beberá de novo do vinho "até o dia em que o beber­ corpo e alma o projeto de discipulado cristão que Jesus aprofunda como tema
de novo, no reino de Deus" (14,25). E depois da morte de Jesus, quando seu corpd principal do bloco central do evangelho de Marcos.
tiver sido descido da cruz, o homem reto que se atreve a pedi-lo a Pilatos, José d�
Em 9,47; 10, 14-15 e 10,23-25 trata-se de algumas práticas sociais - prevenir
Arimatéia, é descrito como um "conselheiro decente que também estava esperando
que "um destes pequeninos que crêem em mim" (9,42}, ou seja, a própria pessoa
o reino de Deus" ( 15,43) .
caia em "pecado" ; saber receber as crianças; poder compartilhar a riqueza - que
Mas agora se nota algo interessante. Se no começo do evangelho de Marcos. ' revelam em que medida se está ou não se está andando no caminho do reino de
em 1, 15, o reino de Deus já tinha chegado ou se aproximara, e em 4, 10. 26s.30s se � Deus, se está ou não participando do projeto divino de criar aqui na terra outra
podia refletir sobre o mistério de sua "semeadura" despersonalizada e de seu� realidade menos mortífera, porque mais prazerosa, para todos e todas. São práticas
crescimento automático, o mesmo reino de Deus na última parte do evangelho; bastante simples , mas chaves e ainda muito subdesenvolvidas.
toma-se uma realidade cada vez mais distante. De modo que, em 15,43, José de,
i Acho que nestas práticas o evangelho de Marcos encontrou o único sentido
Arimatéia ainda o está esperando. Como se o reino de Deus, tão próximo em certo
momento, já tivesse se retirado. De qualquer forma, não se adiantou em nada. :.1 duradouro do discurso cristão primitivo sobre o reino de Deus. A questão de tempo
- se já chegou ( 1 , 1 5}, se está por chegar (9, 1 ; 14,25), se ainda e preciso esperar (15,43)

.'I
Assim parece. - não importa, no final das contas, segundo o evangelista. A única coisa impres-
"1
Agora vejamos os textos que tratam do reino de Deus no bloco central do cindível é reconhecer que, em qualquer momento, se dá a possibilidade e a exigência
destas práticas, por isso sempre pertinentes, de solidariedade, de abertura e de revolta
evangelho de Marcos. São os textos (9, 1 .47; 10, 14. 15.23-25) que discutem o tema de
como (não} "entrar" no reino de Deus, como vê-lo, recebê-lo, tê-lo. Nesta seção do - ou seja, volta - econômica, pelo menos enquanto "os pobres sempre os tendes
evangelho de Marcos (8,27-10,52}, o discurso do reino de Deus faz parte de um 1 I
convosco" (14,7). Dentro de um texto - e um contexto - tão marcados pela polêmica
processo de aprendizagem "escolar" por parte dos discípulos, ou seja, do esforço feito 1 feroz, os conflitos não resolvidos e até certos aborrecimentos me parecem uma
por Jesus para prepará-los para assumirem o projeto de discipulado cristão. 53 Aqui o 1
afirmação bastante ousada e ainda muito vigente.

conceito de reino de Deus não se refere a nada que esteja fora do alcance humano, .I
Leif E. Vaage
que devia ser simplesmente esperado. Registra, antes, a realização de um modo de 75 Queen's Park Crescent E.
viver muito concreto e particular. Toronto, Ontarto M55 K:l
Canadá

52. Além dos seguintes ditos (12,34: 14,25; 15,43), cl também 11, 10; 13,8. i
1
53. o bloco cenual do evangelho de Marcos (8,27-10,52) trata do discipulado cristão. Também se aprofunda i
aqui o tema cristológico. Além disso, o tema cristológíco pode ser entendido como o referencial teórico da mesma 1
seção (ver 8,27-33; 9,2·13.30-32; 10,32-34.46-48). Todavia, o tema cristológico não representa o enfoque particular li
desta unidade, mas serve para fundamentar a vida de discipulado que Jesus se empenha em aprofundar. 54. Ver 10,35s; 14,26-31.66-72.

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