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At 8,26-40 - Comunicar A Fé
At 8,26-40 - Comunicar A Fé
Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana – 2020.2 – Prof. Pe. Claudio Buss,scj
COMUNICAR A FÉ
(At 8,26-40)
SEMÂNTICA DO TEXTO
A colocação desta perícope no livro dos Atos não é causal: a conversão do eunuco assinala uma
nova etapa na difusão do Evangelho, que do judaísmo avança ao mundo pagão. *Os samaritanos, vistos
por Lucas como judeus pagãos, eis aqui na pessoa do eunuco um pagão judaizante. Narrativamente a
narrativa prepara o leitor ao episódio de Cornélio, ou seja, a conversão de um verdadeiro pagão (At
10). Logicamente o narrador deve contar primeiro a conversão de Saulo, o futuro grande evangelizador
das nações (At 9,1-30).
➢ A intenção didática toma o texto: vem descrito em modo paradigmático o caminho de fé que
leva o eunuco a tornar-se cristão: a abertura do homem à verdade, o enfoque guiado pela
Escritura em chave cristológica, o batismo.
v. 26: Abandonando Pedro e João que retornam a Jerusalém (v. 25), o narrador retorna a Filipe depois
da evangelização na Samaria. Em um estilo muito bíblico, a ordem de “levantar-se/ir a um outro lugar”
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vem dado a Filipe por um “anjo do Senhor”. A intervenção do mensageiro celeste indica que o plano
de Deus deve avançar. Destino: Jerusalém a Gaza (80 km – último assentamento judaico antes do
deserto, passagem obrigatória das caravanas que descem ao Egito).
v. 27-28: sublinha-se a docilidade de Filipe à ordem recebida: “E se levantou e partiu…
Antes do encontro o narrador toma tempo para apresentar este personagem:
1) o homem é um etíope;
2) É eunuco;
3) Funcionário da corte da Rainha;
4) Retorna de Jerusalém como peregrino. Retorna ao seu país, lendo o profeta Isaías. De forma breve,
o homem é estrangeiro, eunuco, detêm certo poder, adorador em Jerusalém. Desta abundância de
informações se deduz que o caráter extraordinário do encontro depende da sua identidade.
Por um lado, o eunuco é alguém de prestígio. De outro alguém desprezado. Os autores gregos e latinos
não escondem o seu desprezo por eles. Israel os considera “árvores secas” (Is 56,3), impuros e não são
admitidos nas assembléias. No recinto do Templo não podem ultrapassar o cortil dos gentios.
O ministro etíope ilustra o paradoxo do homem “poderoso e excluído”, presente na obra de Lucas, pelo
qual o narrador nutre uma evidente simpatia: Zaqueu, o rico detestado (Lc 19,1-10), o centurião de
Cafarnaum que implora a cura do seu servo (Lc 7,1-10).
Segundo estupor no evento: o retrato do estatuto religioso do homem não é claro: é judeu, pagão
convertido (prosélito) ou pagão simpatizante (tementes a Deus)? A chave se encontra na fórmula que
enuncia o objetivo da viagem: “viera a Jerusalém para adorar”. O verbo proskune,w utilizado é um dos
verbos da peregrinação escatológica a Jerusalém, quando as nações do mundo e seus reis voltar-se-ão
à cidade santa. Uma profecia de Isaías anunciava a integração dos estrangeiros e dos eunucos no povo
santo (cf. Is 56,3-5). Eunuco e estrangeiro, o etíope é duplamente excluso do Templo. Mas as duas
condições satisfazem amplamente a profecia; o seu estatuto é assimilável ao que Atos dizem dos
tementes a Deus, pagãos admiradores e simpatizantes do judaísmo.
A sua origem geográfica merece atenção: a Etiópia é considerada pelo antigos literatos, como
Sêneca como o limite extremo do Império. A Odisséia de Homero coloca a Etiópia nos confins do
mundo: “Poseidon visitou uma região distante, chamada Etiópia, os últimos homens do mundo...”
Conclusão destes versículos: Pode ser significativo para o autor sagrado o fato de que se trata de
um eunuco (o seu batismo significa que se supera a proibição de pertencer ao povo de Deus: Dt 23,2),
e a sua origem etíope recorda a missão até os confins da terra. Este trata-se provavelmente de um
“temente a Deus” (cf. 10,2) que abraçou a fé monoteísta e continua alimentando-se da sabedoria
contida nas Sagradas Escrituras. O representante da rainha da Etiópia, além de ser o primeiro africano
a abraçar a fé, é também o primeiro que não pertence ao mundo judaico a ser evangelizado; em uma
palavra, é o primeiro gentio a se converter.
v. 29-31: O encontro entre Filipe e o eunuco vem descrito em maneira eficaz, com perguntas e
respostas (vv. 30-31 e vv. 34-35). Importante ter atenção ao v. 29, a “menção do Espírito”, o verdadeiro
artífice do encontro. Já ao início do ministério de Jesus, ele era assinalado pela ação do Espírito (Lc
4,18-19); ao mesmo modo a expansão da Palavra além dos confins de Israel vem sob o impulso do
Espírito de Deus. A mesma coisa acontecerá no encontro entre Pedro e Cornélio e nas viagens de Paulo
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em direção ao Oriente e Ocidente. Nos parece que Lucas quer instruir os seus leitores sobre a
necessidade do Espírito: não pode haver nenhum caminho novo na história e na Igreja sem a ação do
Espírito. É o Espírito que chama, orienta, inspira, move e abre estradas inimagináveis.
A expressão “O Espírito disse a Filipe” do v. 29 está em paralelo com a semelhante do v. 26: “o
anjo do Senhor dirigiu-se a Filipe e lhe disse”. O elemento parece indicar que os dois agentes têm
funções semelhante. Com efeito, tanto o Espírito, como o anjo do Senhor, pertence à categoria dos
mediadores da ação divina e ambos impulsionam Filipe à ação. Porém, pode-se perceber que o anjo
parece ter uma função menos específica que o Espírito. Com efeito, exorta simplesmente Filipe a ir ao
lugar certo, mostrando-lhe em geral a vontade de Deus. É o Espírito que, em seguida, revela ao
missionário o que deve fazer: aproximar-se do carro... O anjo do Senhor, de acordo com a teologia do
Antigo Testamento, é o mensageiro divino que comunica o plano de Deus próximo a se realizar,
enquanto o Espírito, no seu papel de força dos tempos novos, realiza este plano (Casalegno, 197).
O diálogo (v. 30) se abre com a pergunta de Filipe: “entendes o que lês”? ao qual o eunuco
responde com um pedido de ajuda. Colocar uma pergunta significa frequentemente procurar uma
relação e deixar-se interrogar significa aceitar de entrar nesta relação. Temos aqui uma verdadeira
pedagogia da missão, na qual os interlocutores – cada um na sua parte – se abrem à novidade do
outro. O texto de Isaías 53 fala do servo inocente que sofre para expiar os pecados. O servo é conduzido
à morte para expiar as iniquidades do povo. Lucas parece porém, pouco interessado neste aspecto
vicário e à dimensão expiatória da morte de Jesus. É mais interessado em outro aspecto: a humilhação
e a exaltação. O servo humilhado é o servo que vem glorificado e a humilhação é passagem à glória.
Se vê, portanto, como Lucas opera uma cesura, que o permite de orientar a interpretação não em relação
à expiação dos pecados, mas à glorificação daquele que foi humilhado.
*Importante dar-se conta que o texto que o eunuco lê de Is 53 é apenas um pequeno extrato do 4º
Cântico do Servo (Is 53,7b-8c). Evita as duas alusões à morte expiatória do Servo, que precedem
(53,7a) e seguem imediatamente o extrato (53,8d). Lucas não ama a leitura sacrifical da cruz.
Mas poderíamos nos perguntar, qual a perspectiva do texto? Os eunucos são equiparados aos
estrangeiros na participação ao projeto de salvação (cf. Is 56). Na bíblia hebraica os eunucos são
sempre considerados da mesma maneira da categoria dos emarginados e humilhados. No caminho do
Servo de Yhwh, humilhado pelos homens, mas exaltado por Deus, abre ao eunuco um futuro de
esperança na casa de Deus.
Mesmo na sua elevada condição social, o homem com a sua esterilidade, é vítima de afirmações
humilhantes, diante das quais não pode protestar; mesmo se a ele é negada a esperança de uma
descendência terrena pode esperar que Deus o exaltará da sua humilhação.
v. 34-35: Filipe oferece uma chave de compreensão Escriturística a partir de Cristo. A expressão
“partindo da Escritura” faz eco aos peregrinos de Emaús, aos quais o Ressuscitado expôs a
necessidade da paixão “começando a partir de Moisés e de todos os profetas” (Lc 24,27). Na estrada
de Gaza, Filipe toma o lugar do Ressuscitado enquanto intérprete da Escritura. Em Lc 24 a
Escritura faz anamnesi da vida de Jesus, enquanto em At 8 a vida de Jesus faz exegese da Escritura.
Entre o eunuco e a Escritura, Filipe introduz um mediador, Jesus.
v. 36: “Que impede que eu seja batizado?” (eunuco) – Como aos discípulos em Lc 18, Jesus pede
de não criar obstáculo ao acesso das crianças no Reino de Deus, assim também aqui, a Filipe: Deus
removeu todos os obstáculos à salvação de qualquer pessoa. O enviado (Filipe) tem o dever de
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incorporar este “desprezado” na comunidade de fé. Neste sentido, abatendo as barreiras que impediam
a compreensão da Escritura, o evangelho cria condições de acesso à comunidade.
vv. 37-38: Guiado por Filipe, este homem “potente e frágil” pode percorrer um caminho de leitura
que o fez compreender a paixão de Jesus no coração da sua própria humilhação. Desta forma adquire
significado o fato que a sua convicção abra em uma pergunta sobre o batismo, mais do que
simplesmente em uma profissão de fé: este rito de integração na Igreja o retira da situação de
emarginado na qual havia sido condenado duplamente: estrangeiro e mutilado.
vv. 39-40: o arrebatamento de Filipe indica que ele está sob o controle do Espírito. A reação do
eunuco (que não é nem de assombramento, nem de procura do desaparecido), mas de continuação da
sua viagem com alegria.
Há uma unidade estrutural nestes dois versículos: a fecundidade do caminho.
O eunuco continua o seu caminho transformado: retorna à casa feliz – tema da “alegria” –
salvação.
Já o evangelista Felipe é transferido a um outro campo missionário: Azoto e depois Cesaréia
Marítima (cidade pagã construída por Herodes, o Grande), capital da província da Judéia para os
Romanos. Com Cesaréia se anuncia simbolicamente o mundo romano. Filipe estabilizou-se em
Cesaréia, que depois acolherá Paulo. Na sua compreensão das origens do cristianismo, Lucas vê em
Filipe, com a sua missão helenística, o precursor do grande Apóstolo.