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Evangelho de Lucas e Atos – 2023.2 ----- Prof. P. Claudio Roberto Buss

SEGUNDA PARTE: - “OS ENCONTROS” DE JESUS AO LONGO DO CAMINHO


(6,17–8,3): *os pagãos, as viúvas, os publicanos, os pecadores, as mulheres.

Depois de ver primeiro arcos narrativos – e a teologia lucana – que demonstrou em


primeiro a obra libertadora de Jesus, a associação dos discípulos, e depois o grupo dos
doze, prosseguimos com o “terceiro arco narrativo” que mostra o poder da Palavra,
sobretudo no agir de Jesus em relação com os “pobres”.

O discurso da planície volta a considerar o tema da libertação dos pobres e dos


oprimidos, relacionando a figura de Jesus, já mencionada no início da seção da
Galileia referente ao discurso da Planície (6,17-49). Ocorre depois do chamado dos
primeiros discípulos (5,1-11), das controvérsias com os opositores (5,17–6,11) e da
escolha dos Doze (6,12-17). Na lógica de Lucas, o relato quer explicar qual é a boa-
nova do Reino que Jesus anuncia pelas sinagogas dos judeus (4,44). O texto ilustra,
assim, a reviravolta que se realiza no mundo com a vinda de Cristo, destacando as
diretrizes da ação divina na história.

A moldura é solene. Jesus ergue os olhos para a comunidade dos discípulos que se
encontra reunida. Destacando, no sumário inicial, a presença de um “numeroso grupo
de discípulos” e de uma “imensa multidão de pessoas de toda a Judéia, e do litoral de
Tiro e de Sidônia”, isto é, de ouvintes que vêm não só do território da Palestina, mas
também do estrangeiro, o autor declara que o ensino de Jesus tem caráter universal e é
destinado a todos (5,17). A importância do anúncio é realçada pela insistência da
necessidade da escuta: as multidões vêm para escutar Jesus (6,18); o próprio Jesus
exorta os discípulos a escutar: “Digo a vós que me escutais” (v. 27), e conclui seu
discurso dizendo: “todo o que vem a mim, escuta as minhas palavras e as põe em
prática” (v. 47). É preciso, portanto, abrir os ouvidos para compreender a mudança
radical que Deus atua no meio dos homens, instaurando o Reino.

No discurso há certo paralelismo com o discurso da montanha de Mateus. Isso


indica que os dois evangelistas utilizam uma fonte comum, modificando-a segundo as
exigências das comunidades às quais se dirigem. O discurso de Lucas é, porém, mais
breve, e deixa de lado muitas questões, referentes à Lei, que interessam
particularmente à comunidade judaica de Mateus, e se concentra sobre o amor e a
gratuidade. É dirigido aos discípulos (v. 20) e divide-se em três momentos:

- as bem-aventuranças e as maldições: (vv. 20-26);

- Exortação ao amor aos inimigos: (vv. 27-31): (operativo)


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- Amor desinteressado (vv. 32-35)

- Perdão e generosidade (vv. 36-38)

- Cinco provérbios sobre o verdadeiro discípulo (vv. 39-49).

Por meio dele, e particularmente da sua primeira parte, o evangelista proclama que a
figura de Jesus está relacionada com o mistério de graça e de bondade que Deus está
manifestando na história. As bem-aventuranças são, pois, a declaração do grande
projeto de libertação de Deus em favor dos marginalizados da terra, dos necessitados,
dos famintos, dos que se encontram numa situação de desespero, em primeiro lugar
dos discípulos que são pessoas da baixa camada social, sem segurança material,
perseguidas, desenraizadas, e obrigadas a ficar longe da família depois da decisão de
seguir Jesus.

Não se trata de esperança vazia, de um simples consolo ilusório, mas de uma solene
promessa de Deus, que quer restabelecer a justiça. “Os pequenos, os famintos e os
pobres, os que choram, já tem o reino de Deus, têm a vida. Têm a vida e são felizes,
não em si mesmos – por serem pobres ou pequenos ou perdidos. São felizes porque
Deus se aproxima deles, porque Deus vem e veio em Jesus Cristo. O pobre não é
‘rico’ simplesmente em sua pobreza; é rico nessa nova e decisiva transparência de sua
vida que se torna, a partir de Deus, gozo e recompensa.

O texto lucano não faz, a apologia da pobreza, considerando-a como condição ideal
para alcançar o Reino, o que poderia justificar as causas da opressão que geram
situações de miséria e de injustiça; nem promete que os pobres se tornarão ricos,
porque isso não resolveria o problema, mas geraria sempre novos desequilíbrios e
criaria necessariamente pobres. O texto declara que a situação de exploração e de
miséria em que muitos se encontram termina porque, com o envio de Jesus, Deus
instaura o seu Reino, no qual haverá uma mudança total a respeito da realidade
presente marcada pelo pecado.

As maldições que Lucas opõe às bem-aventuranças realçam ainda mais seu


pensamento (6,24-26). Os ricos, os abastados, aqueles que passam a vida no luxo e nos
prazeres, gozando, como os falsos profetas, do prestígio dos homens, já receberam sua
consolação. Satisfeitos com os bens que alcançaram neste mundo, não têm mais o
coração aberto para o que Deus vai preparar no mundo futuro.

O discurso das bem-aventuranças, que considera a realidade humana a partir da


perspectiva escatológica, mostra, assim, profeticamente, qual será a última palavra de
Deus na história. Jesus é o instrumento de Deus dessa reviravolta de valores e de
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situações, não só com seu ensino, mas também com sua vida desprendida, entregue
aos mais carentes, mas sobretudo com sua morte e ressurreição, tornando-se fermento
da renovação do mundo. A apresentação de Jesus na sinagoga de Nazaré encontra
nesse texto seu aprofundamento.

É lógico que a dimensão da bondade e de justiça, que caracteriza a atuação de Deus


para com os necessitados, deve também caracterizar a atividade do discípulo. O
discurso se torna, portanto, uma grande exortação ao amor e à verdadeira gratuidade
nas relações humanas. No texto o termo “amar” (v. 27) se torna equivalente a “dar de
graça” (v. 30), a “emprestar” (v. 34), não só aos amigos e aos que partilham a mesma
fé, mas aos inimigos, àqueles que odeiam, amaldiçoam, e difamam: “Se amais os que
amam, que graça alcançais? Pois até mesmo os pecadores amam aqueles que os
amam” (v. 32). É com essas expressões que se manifesta o paradoxo do amor cristão.

Depois do “Discurso da Planície”, Jesus começa encontrando um pagão (7,1-10),


um centurião, do qual o filho está para morrer, e uma viúva (7,11-17). Os estrangeiros,
as viúvas e os órfãos são as categorias que os profetas sempre defenderam. Portanto, é
evidente que a raiz da sensibilidade espiritual é antigo-testamentária.

No capítulo 7,21-22, Jesus cura doentes de todo gênero e em 7,29-34 se lê a opinião


dos conformistas, que o acusam de ser amigo dos publicanos e pecadores.

Segue em 7,36-50 o belíssimo episódio do encontro de Jesus com uma mulher


desconhecida – na cidade tida como pecadora – na casa de um fariseu. Isso se conclui
no capitulo 8,1-3, com a seqüela “das mulheres”. Trata-se um toque propriamente
lucano, um evangelista muito atento ao componente feminino da Igreja. Em 8,1-3 vem
registrada uma manifestação clara da atenção de Jesus em relação às mulheres.

Ocorre, antes de qualquer coisa, inserir nossa perícope no contexto de compreensão


mais ampla. Em 7,34 , Jesus vem identificado como “comilão, beberrão, amigo de
publicanos e pecadores”. É evidente, portanto, que nossa perícope deve ser lida neste
quadro mais amplo de aproximação e de relação de Jesus com determinadas categorias
de pessoas. O seu comportamento “transtorna” um certo modo de entender Deus. E
aqui se fala próprio disto, do modo como entender Deus e a justiça humana.

ESTRUTURA:

Primeira cena (37-38): em apresentado a relação da mulher com Jesus. A mulher


entra na casa do fariseu e realiza alguns gestos em relação à Jesus: começa a lavar-lhe
e a beijar-lhe os pés, para enxugar-lhes depois com os cabelos.
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Segunda cena (39-47): acontece o diálogo entre Jesus e o fariseu. É muito mais
longa e articulada: contém toda a discussão entre Jesus e Simão, o fariseu. O fato que
seja assim desenvolvida, do v. 39 até o v. 47, testemunha a importância que reveste
para o evangelista. Ao final temos ainda Jesus e a mulher.

Terceira cena (48-50): temos ainda Jesus e a mulher e, na base, os convidados.

As duas cenas de moldura são ocupadas por Jesus e a mulher, enquanto o momento
central diz respeito ao diálogo entre Jesus e o fariseu sobre como “ser justo/tornar-se
justo” diante de Deus. Esta é a construção, narrativa; as narrativas lucanas tornam-se
freqüentemente uma obra de arte.

Este episódio vem ao encontro do projeto teológico de Lucas que mostra um


particular interesse para com os “pecadores”. O publicano Levi, chamado por Jesus
(5,27-28). As três parábolas da ovelha perdida, do dracma perdido e do filho pródigo
descrevem o comportamento de Jesus em relação à eles. À diferença do fariseu, o
publicano, que confessa o próprio pecado, vem justificado (18,9-14). Também
Zaqueu, promete de mudar sua vida encontrando Jesus (Lc 19,1-10); e ao malfeitor
crucificado junto com Ele, Jesus promete o paraíso (Lc 23,39-43).

CONTEXTUALIZANDO A MULHER DO PERFUME

A protagonista desta história é confundida frequentemente com uma outra mulher


que, na iminência da paixão, unge os pés de Jesus, antecipando assim sua morte e
sepultura (Mc 14,3-9; Mt 26,6-13; Jo 12,1-8). É uma identificação compreensível já
que, as histórias de Marcos e de Lucas coincidem em alguns pontos: nos dois a mulher
é anônima e entra na casa de Simão; Jesus está sentado à mesa, a mulher traz um vaso
de alabastro cheio de perfume e unge os pés de Jesus; os presentes reagem ao gesto da
mulher, enquanto Jesus se coloca à parte. Também o Evangelho de João partilha
alguns detalhes com a nossa narrativa: a mulher unge os pés de Jesus (não a testa,
como em Mc e Mt) e os enxuga com os seus cabelos.

Agora os aspectos particulares de Lucas: o episódio parece ter lugar na Galileia e


não em Betânia como em Mc, Mt e Jo. Em Lucas, Simão é um fariseu; e não um
leproso com em Mc e Mt. Em Lucas, a mulher é anônima e pecadora, enquanto em Jo
a protagonista é Maria, a irmã de Marta e Lázaro. Em Lucas, a unção se coloca
durante o ministério de Jesus na Galileia, não pouco antes da sua paixão como
acontece em Mc, Mt e Jo. Em Lucas opõe-se Simão. Em Joao é Judas; em Mt são os
discípulos e em Mc algumas pessoas anônimas. Em Lc, Simão faz o referimento ao
passado, ao tipo de vida e à reputação da mulher. Nas outras narrativas, criticam o
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desperdício de perfume: a unção é um atentado contra a pobreza, o dinheiro do


perfume deveria ser empregado para socorrer os pobres. Enfim, Lucas dá à sua
narrativa um significado muito diverso de Mc, Mt e Jo. Em Lucas, o gesto exprime
todo o amor que a mulher sente por Jesus. Para os outros evangelistas, a unção é um
gesto simbólico que prefigura e anuncia profeticamente a sua sepultura.

A NARRATIVA VEM INTRODUZIDA DE UM CONVITE À MESA (v. 36)

Ainda uma outra vez Lucas aproxima-se do “mundo farisaico” diferentemente de


Mateus: inicialmente – ainda que atribuímos a Jesus uma mentalidade antifarisaica –
não considera os fariseus um grupo homogêneo oposto a Jesus. Mateus escreve como
um judeu, em um momento cuja interpretação da Torah é vital, porque o Templo é
destruído. Depois do ano 70 praticamente todos os grupos religiosos do judaísmo
desaparecem: somente os fariseus mantêm a identidade do povo hebraico. Mateus há
certamente uma compreensão do mundo farisaico que Lucas não tem. Mostra-se muito
mais duro no seu confronto. Em Lucas, ao invés, o confronto entre Jesus e os fariseus
é menos violento e não se maravilha de vê-lo à mesa com eles. Jesus, portanto, se
coloca à mesa, em uma atitude de “festa e alegria”.

PRIMEIRA CENA: A MULHER E JESUS (vv. 37-38)

A expressão, “eis que”... /kai idou, que introduz a entrada da mulher, atira a atenção
do leitor. Enquanto Jesus se encontra na mesa sucede que entra uma mulher, a qual
inicia a agir em certo modo, todo particular. No Oriente, durante as festas, as portas
frequentemente permaneciam abertas; ainda hoje, em Israel, durante as festas do
sábado pode suceder tal fortuna.

Colocamos em evidência alguns aspectos:

✓ o anonimato da mulher, o seu silêncio e os seus gestos: não se diz quem era esta
mulher; não vem chamada pelo nome, se diz somente que era uma “pecadora da
cidade”. *É a única entre as mulheres no evangelho de Lucas que recebe o perdão de
Jesus; é a única, que sem pedir, é libertada de uma “doença”, não do corpo, mas do
espírito. A mulher do “perfume” não é cega, nem leprosa, nem surda-muda, nem
paralítica, não perde sangue, não é possuída pelo demônio. O seu mal é de outra
ordem: ela viveu uma vida de pecado. E Jesus, o pedagogo, terapeuta, aplica um
remédio de eficácia instantânea. O remédio de Jesus regenera o coração destruída
desta mulher, restaura os sentimentos mais profundos: o do amor e da gratidão. “A
mulher do perfume é a mulher do grande amor, a mulher da gratidão infinita, a
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mulher que não sabe exprimir em palavras quanto o seu coração sente por Jesus. E já
que não sabe falar, o seu coração se move em gestos audazes.
*Esta mulher, da qual não vem revelado o nome, não diz nem mesmo uma palavra
sequer. Realiza somente gestos; alguns dos quais podiam resultar escandalosos, como
por exemplo, o fato de “soltar os cabelos”: para algumas escolas judaicas tal gesto
bastaria para requerer o divórcio, ou justificar outras punições; e o fato de tocar um
Rabi, beijar-lhe, perfumá-lo era embaraçante e incomum. Se pode perguntar como
uma mulher tal tenha chegado até Jesus. Se pode, por exemplo, perguntar se não tinha
sido tocada pelas palavras de Jesus precedentemente. Na realidade Lucas não diz
nada a respeito, e não é sempre correto encher os espaços narrativos em branco de
hipóteses.
- Interessante é dar-se conta do seu comportamento: revela o reconhecimento, a
alegria, um amor sem limite para com Jesus.
É também desconcertante como Jesus a permite realizar todos estes gestos, diante de
um público impactado e escandalizado. O contato com aquela mulher, sobretudo se é
uma prostituta, o faz impuro como tocar um porco ou um cadáver. Para Jesus, ao
contrário, significa acolhimento, comunhão com a mulher.
*O gesto corporal desta mulher: é muito eloquente. Jesus está reclinado sobre a mesa.
A mulher está no pavimento, atrás dele, e toca com a sua cabeça os pés do mestre.
Jesus está no alto e ela embaixo, o mais baixo possível. Prostrada em seus pés, a
mulher mostra um comportamento de serviço, de discípula, atitude de escuta do
Mestre, disposta a acolher a sua palavra. Fez também assim Maria de Betânia:
“Sentou-se aos pés de Jesus e escuta a sua palavra” (Lc 10,39). A mesma posição de
serviço é retomada por Jesus no lava-pés durante a última ceia (Jo 13,5). Na casa de
Simão todos estão colocados em lugares de honra. Ela está atrás. Todos veem os
rostos. Ela somente os pés de Jesus. Ela que é excluída do banquete, logo tomará o
lugar de Simão: de emarginada passará a ser a autêntica hospitante. Ora está em baixo
atrás. Não tardará, porém, a ocupar o posto central da cena.
*A linguagem do corpo: esta mulher realiza quatro ações sucessivas, que tem como
centro os pés de Jesus: os beija, banha com lágrimas, os enxuga os com cabelos e os
unge com perfume. A ternura desta mulher são a expressão corporal de um amor
sincero. Amor que tem necessidade de sair de si e ir ao encontro do outro. Este
processo requer tempo. O fez certamente longamente, tendo em mãos um objeto de
grande valor para ela: os pés de Jesus. O detalhe desta duração e insistência da ação é
advertido pelo próprio Jesus que diz a Simão: “Desde quando entrou, não parou de
beijar os meus pés” (v. 45).
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✓ a menção dos pés: por sete vezes vêem mencionados os “pés de Jesus”: três
vezes no v. 38 e outras quatro vezes nos vv. 44-46 (diálogo entre Jesus e Simão). Os
Padres da Igreja se perguntaram o porquê desta menção assim freqüente: uma boa
resposta teológica diz assim: nenhuma mulher, nenhum homem é tão pequeno de não
poder chegar aos pés. É uma resposta sugestiva, poética, que contém uma verdade
relacional: a mulher da narrativa quer colocar-se em relação com Jesus. Talvez
exegeticamente pode-se relacionar com Jo 13: “Jesus que lava os pés dos seus
discípulos”: gesto de amor (gestualidade).
• Os beija sem pretender recompensa, nem mesmo uma resposta. Beija-os
para exprimir aquilo que seu coração sente. É um gesto de amor, como o é
aquele de Maria Madalena na cena da ressurreição: o misterioso jardineiro
pronuncia o seu nome e Maria Madalena se emociona em reconhecer
Jesus ressuscitado (Jo 20,17).
✓ as “lágrimas”: porque esta mulher chora? É talvez pelo remorso à sua vida?
Não temos nenhum indicio para chegar a esta conclusão. Nos sinóticos se fala
do “choro” de Pedro, definido como “amargo”, conseqüência da “traição”.
Mas aqui o contexto é outro, isso porque junto com as lágrimas temos o
perfume que é sinal de alegria, de gratuidade. Disto alguns vêem nas lágrimas
da mulher não uma manifestação de tristeza, mas de libertação. São lágrimas
de uma mulher que encontrou Jesus no seu caminho.
✓ um último elemento: a “liberdade da mulher”: a qual, na casa de um fariseu,
age segundo aquilo que sente, sem sofrer qualquer tipo de condicionamento.
A sua liberdade é aquela de Jesus, que deixa com que ela faça... No fundo, o
encontro de Jesus com as mulheres é sempre problemático para uma
mentalidade muito puritana. As lágrimas e a liberdade da mulher provocam
desconforto e embaraço no patrão da casa; talvez para certos leitores, diante a
esta cena, pode viver o mesmo incômodo de Simão.

SEGUNDA CENA: JESUS E O FARISEU (VV. 39-47)

Onde está propriamente o embaraço? Jesus não conhece esta mulher, não sabe de
onde ela é, e por isso pode tornar-se uma acusa; se Ele fosse realmente um profeta
saberia que é esta mulher e deveria recusar os seus gestos. Se não o faz, quer dizer que
não é um profeta. Simão, então é um homem correto, que lê a situação à luz de uma
certa concepção de justiça, uma determinada concepção de Deus. O fariseu Simão é
um homem justo que lê os eventos à luz da justiça e do Deus justo, em quem crê.
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Jesus se volta a Simão chamando-o por nome. Sinal de certa intimidade e de um


reconhecimento de dignidade; o nome é sempre importante na vida do homem bíblico.

Jesus conta então uma parábola: que fala de dois devedores. Nenhum deles era
em grau de saldar a dívida; e isto já é um ensinamento, que o leitor começa a perceber.
Cada homem diante de Deus é um devedor: não somente a mulher deve restituir
alguma coisa, mas também Simão; diante de Deus nenhum ser humano é um credor.

A religiosidade do fariseu corresponde à lógica de correspondência das contas, de


que coisa fazer para “desendividar-se” de Deus. Como tornar-se justos, como se
resolve o débito se todos somos devedores? Esta questão é fundamental na narrativa,
porque Simão procura extinguir o débito com a justiça. Ao invés que a mulher não
procura extinguir a dívida com a justiça, porque não há “justiça”.

O v. 42 é decisivo: “Como não tivessem com que pagar, ele perdoou a dívida de
ambos. Qual dos dois amará mais?” Como nenhum dos dois pode restituir, o credor
faz “graça” (charizomai) a ambos. “Quem o amará mais?” Notar aqui os dois termos:
charizomai e agapaō/ fazer graça e amar. Aqui se fala de um amor derivado da graça,
a charis: mas quem o amará mais? Simão, corretamente responde: “Aquele a quem foi
perdoada a maior dívida”.

Diante de Deus existem somente devedores insolventes, porque o débito não se


resolve dando qualquer coisa em troca. Este modo de agir não pode funcionar com
Deus, porque não responde à sua lógica. Deus perdoa gratuitamente, e o devedor é
perdoado e não deve absolutamente mais nada.

A vida não é um débito que devemos pagar, diz Jesus a Simão, mas um dom para
amar ou, melhor ainda, um “dom de amor”. Está é a grande lição que Jesus dá ao
fariseu e a sua mentalidade. Para Lucas tudo é charis/ graça, tudo é dom.

*Eis a novidade da mensagem de Jesus: Deus se aproxima do homem como um


“Deus que perdoa”. Este perdão muda completamente a situação: “o devedor mais
desfavorecido torna-se o mais favorecido (avantajado), e aquele que deve menos,
recebe menos”.

Quem o amará mais? Perguntou Jesus ao fariseu Simão, segunda a técnica


rabínica de fazer “dar a resposta” ao interlocutor – para que entre no ponto de vista do
mestre.

O fariseu é convidado a tomar consciência que o comportamento desta mulher


em relação à Jesus revela que ela fez uma experiência que falta ao fariseu: a
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experiência da bondade pessoal de Deus. A mulher recebeu uma realidade que falta ao
fariseu: o amor. O reconhecimento e a capacidade de amar demonstrada por esta
mulher é o sinal, a consequência e a novidade do perdão recebido. Ela na realidade
não é mais uma pecadora: o olhar de Jesus entendeu também isto!

v. 43: a resposta de Simão é diplomática: “suponho...”. Ele de certa forma


entendeu as consequências do que Jesus lhe queria explicar.

vv. 44-46: dão a explicação concreta da parábola, colocando em luz o grande


amor desta mulher, em contraste com o pouco amor do fariseu. Simão não procurou
água para lhe lavar os pés, não lhe deu o ósculo de boas-vindas, não derramou óleo na
sua cabeça: estas “faltas” são construídas a partir do comportamento da mulher
descritos no v. 38: ela realizou estas “deficiências” com o seu próprio ser: as suas
lágrimas, o ósculo, o perfume derramado.

Como podemos perceber: o fariseu não pecou contra a hospitalidade, mas lhe
falta aquele “mais” que a mulher tem em abundância, e que é sinal de conversão, de
acolhimento do anúncio de Jesus: o amor. Neste sentido, os vv. 44-46 interpretam a
narrativa dos vv. 37-39 à luz da parábola (vv. 41-42).
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“Por esta razão eu te digo, seus numerosos pecados lhe são perdoados, porque
ela demonstrou muito amor”.

Mas, o ensinamento de Jesus não parece coerente com a parábola, a qual conta
que o devedor amou muito porque foi perdoado, enquanto a mulher foi perdoada
porque amou.

Há uma ligação íntima entre o perdão dos pecados e o amor generoso.

A ambiguidade resta, mas não é próprio de uma discussão. É a força pragmática


da narrativa que relaciona o perdão e o amor em uma simbiose fascinante. No fundo
nós sabemos que ninguém pode perdoar se não é amado por primeiro, mas sabemos
que quem não ama dificilmente se considera um pecador. Somente o amor coloca
primeiro a relação e depois a Lei. Este discurso é teologicamente muito sério e
profundo. Paulo o afrontou como sabemos principalmente na Carta aos Romanos,
segundo o seu pensamento específico.

TERCEIRA CENA: JESUS E A MULHER (VV. 48-50)

Temos ainda surpresas. Jesus se volta para a mulher e diz: “Teus pecados estão
perdoados”. O uso do passivo divino indica que somente Deus pode perdoar os
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pecados: as obras de Jesus colocam em evidência, realizam e manifestam o sentido


forte deste perdão.

*A questão aqui se abre ao mistério: “Quem é aquele que perdoa pecados?” Com
a sua palavra Jesus atua o perdão de Deus, dá à mulher a certeza de tal “dom
escatológico” do qual ele sabe de ser o mediador.

E ainda uma palavra, mais impressionante: “A tua fé te salvou; vai em paz”: é


uma fórmula consagrada que conclui habitualmente, na tradição sinótica as narrativas
de cura.

Em nível redacional, a fé da mulher significa “confiança total no poder salvífico


de Jesus, abertura ao perdão divino que Ele comunica”, e não confiança nas suas
capacidades taumatúrgicas.

A paz, em relação com a salvação, dá a entender à luz das fórmulas


veterotestamentárias e implica não só ausência de guerra, mas plenitude que provém
de Deus, que inclui harmonia, ordem, concórdia, segurança, prosperidade (Ex 34,25-
29; Sal 29, 11), atualizada em um modo novo na comunhão com Jesus.

É a fé que salva, como frequentemente Jesus diz nos evangelhos. Aqui se toca um
ponto muito denso da teologia de Lucas: a relação entre Lei e charis, entre perdão e
arrependimento, entre charis e resposta. Uma teologia muito densa, colocada em cena
nesta belíssima narrativa.
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TERCEIRA PARTE: “APELO À RESPONSABILIDADE


(Lc 8,4 – 9,50)

Tomaremos como ponto central um tema muito caro a Lucas e muito presente nos
Atos dos Apóstolos: “a ética do cristão em caminho”. Podemos falar aqui de
responsabilidade do anúncio.

A MISSÃO DOS DOZE (LC 9,1-6)


1 Convocando os Doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, bem como
para curar doenças, 2e enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar. 3E disse-lhes: “Não
leveis para a viagem, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro; tampouco tenhais
duas túnicas. 4Em qualquer casa em que entrardes, permanecei ali até vos retirardes do lugar.
5Quanto àqueles que não vos acolherem, ao sairdes da cidade sacudi a poeira de vossos pés

em testemunho contra eles”. 6Eles então partiram, indo de povoado em povoado, anunciando
a Boa Nova e operando curas por toda a parte.

O grupo dos Doze, instituídos com solenidade, dos quais se conhece também os
nomes, ora vem encarregado de partir em missão. A distância entre a narrativa da
instituição e da missão coloca em relevo a atenção pedagógica de Jesus no confronto
com este grupo que, depois de ser constituído, participa e partilha o seu ministério
messiânico e, somente depois de um tempo, estarão em grau de serem protagonistas da
atividade missionária.

Antes de orientar-se para Jerusalém, Jesus coloca a sua atenção sobre os Doze: ele
os associa à sua missão. E assim, os Doze fazem com Jesus uma experiência
antecipada da sua futura missão.

Agora revestidos do mesmo poder de Jesus, os Doze são chamados à ativa: envio
único e irrepetível: (Lc 9,3; cf. Lc 22,35s); também aqui um modelo ideal de cada
futura missão (Lc 9,5b; cf. At 13,51).

Nesta perspectiva é interessante ler os dois milagres referidos no capítulo 9: a


multiplicação dos pães/peixes (Lc 9,12-17) e a cura do menino epiléptico (Lc 9,38-
43). Estes têm em comum dois pontos:
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- Vem trazido à luz a participação ativa dos discípulos;

- Estes são chamados a realizar algo (nutrir a multidão, curar o doente) dos quais
não se sentem capazes.

O seu aprendizado é intimamente ligado ao Mestre. E eis aqui um outro tema que
percorre o capítulo 9: a identidade de Jesus.

A pergunta sobre quem é Jesus já foi exposta por diversas categorias de pessoas ao
longo do evangelho: a elite religiosa (Lc 5,21), João Batista (7,20), os discípulos
diante da tempestade (Lc 8,25), e agora é Herodes Antipas que se encontra diante
deste enigma (Lc 9,7ss).

A pergunta, no entanto, é destinada a desenvolver sobretudo em favor dos


discípulos (9,18ss) e encontra seu culmine na Transfiguração (Lc 9,28-36): Jesus é
identificado como Filho do Pai. Essa resposta decisiva é enquadrada e inseparável da
pregação sobre a paixão (Lc 9,22; 9,44-45): a necessidade do sofrimento do Filho que
agora os Doze não entendem (Lc 9,45); é sobre esta via de humildade e de
abaixamento que estes são chamados a encaminhar-se (Lc 9,23-27.46-50) para
partilhar com o Mestre a vida e a missão. A voz divina – “escutai-o” (v. 35) – os
convida a aceitar as exigências de Jesus, a reconhecer a veracidade de suas palavras
sobre seu destino (v. 44) e a segui-lo (v. 23).

ARTICULAÇÃO DO TEXTO:

- vv. 1-2: A narrativa inicia com a reunião dos Doze; faz sequência o conferir de
Jesus o “poder” e a “autoridade”, condição mediante a qual os discípulos possam
desenvolver sua missão: libertar os endemoniados, curar os doentes e anunciar o Reino
de Deus.

- depois desta introdução que de maneira essencial fixa os deveres missionários,


Jesus faz um breve discurso, no qual vem delineado o estilo dos enviados. Cinco são
os objetos vetados de levar em viagem: bastão, alforje, pão, dinheiro e uma segunda
túnica (v. 3);

- Na apresentação do método missionário baseado sobre a hospitalidade doméstica,


vem propostas duas possibilidades: a acolhida (v. 4) e a rejeição evidenciado no gesto
de sacudir a poeira dos pés (v. 5).
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- Ao final é anotada a realização da missão da parte dos Doze, e são retomadas,


religando à introdução, os dois objetivos principais confiados aos missionários: o
anúncio da boa-nova e a atividade terapêutica (v. 6).

NOTAS DE SEMÂNTICA:

v. 1: “convocou os Doze”: do verbo grego sinkaleō/ convocar – contém na raiz a


partícula com/ syn. O significa é, portanto: “chamou consigo” (aspecto solene do “ser
chamado para formar uma unidade – Lucas caracteriza os Doze essencialmente como
realidade colegial). Jesus torna corresponsável do anúncio os Doze. Estar em
comunhão não é somente a alegria de estar juntos, mas também a consciência de ser
corresponsável. Os Doze constituem uma comunidade associada a Jesus e à sua
missão.

No Evangelho de Lucas, Jesus transmite a eles a sua força e o seu poder, antes de
enviar-lhes. Marcos, por exemplo, não fala de dynamis, mas somente de exousia/
autoridade. Lucas, invés, antepõe dynamis a exousia, porque quer notar a relação entre
poder e Espírito: o poder da mensagem, que vem associada ao Espírito. Essa, na
verdade, vem identificada com o dom do Espírito Santo (Lc 4,14; At 1,8), do mesmo
dom que qualifica a atividade de Jesus (Lc 4,36) e que ora os Doze recebem para a
missão pré-pascal, antes de serem investidos para a missão eclesial (At 1,8).

v. 2: o anúncio do Reino e os prodígios são duas realidades que vem associadas. Aqui,
em parte, se responde às interrogações sobre o significado dos milagres. As curas ou
as manifestações e os prodígios do reino são o sinal da salvação, do reino que é
presente. Esta é a função do milagre: o prodígio não é prova do divino, nem mesmo
uma manifestação da onipotência divina, mas o sinal de que, finalmente, o reino de
Deus é atuante em meio aos homens.

v. 3-5: encontramos uma série de instruções para a viagem verdadeiramente severas:


não é proibido somente o supérfluo, mas também o necessário. O bastão, por exemplo,
servia aos missionários não somente para apoiar-se e sustentar-se nos momentos de
cansaço, mas também para defender-se dos animais; assim também o alforje, que
continha o mínimo indispensável e as esmolas que os viajantes recebiam. Também
uma segunda túnica e o pouco dinheiro, que levavam para os imprevistos, são
proibidos. Maravilha esta excessiva radicalidade. É proibido cada meio, também
aquele necessário.

Para quanto toca a questão da hospitalidade, vem dito de acontentar-se daquilo que
vem ofertado do povo, das “casas que se abrem”. Portanto, não procurar o próprio
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comfort, nem mesmo os postos mais agradáveis, mas viver da hospitalidade, da


precariedade. Depende-se da hospitalidade ou da rejeição das pessoas.

No caso do não acolhimento (v. 6), os apóstolos são convidados a realizar um gesto
simbólico, aquele do pio judeu que, reentrando em uma terra pagã, sacudia a poeira
como sinal de rompimento e de reenvio ao juízo final: a cidade incrédula haverá os
evangelizadores como testemunhas contra ela.

v. 6: o conjunto se conclui com uma descrição sumária da ação missionária dos Doze,
uma atividade em conformidade com o poder e a autoridade recebidas. Estes vão de
“povoado em povoado”, em toda parte: a proclamação e o operar salvífico atingem,
mediante os enviados, todo Israel, prelúdio da difusão do Evangelho em todo o
mundo.

****Encontramo-nos diante de uma página muito radical na qual Jesus associa à sua
vida itinerante, de Filho do Homem que não há onde repousar a cabeça (Lc 9,58). No
fundo diz que o reino vai anunciado assim. É impressionante esta série de proibições
que fazem a missão dependente do poder do Espírito Santo e paradoxalmente da falta
de meios e de instrumentos. Pareceria que o reino deve ser anunciado somente com a
força da Palavra de Deus e do Espírito, sem apoiar-se sobre algum sustento humano.
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A MISSÃO DOS SETENTA E DOIS DISCÍPULOS (Lc 10,1-16)

Lucas é o único dos evangelistas que apresenta não só a missão dos Doze, mas
também aquela dos setenta e dois discípulos em 10,1-12.
Porque duas missões? Porque o envio dos Doze e dos setenta/ setenta e dois?
Não se trata de uma repetição, nem de uma substituição da missão dos Doze com
outra de setenta e dois, mas de um completar...
A primeira missão, aquela dos Doze, representa o envio dos apóstolos de Israel,
enquanto o envio dos setenta e dois prefigura a missão universal aos povos. Os setenta
e dois pode-se explicar de dois modos:
a) Refere-se a Gn 10, onde a descendência dos filhos de Noé vem representada de
setenta/ setenta e dois povos;
b) Refere-se a Nm 11,24-30, onde o Espírito do Senhor esta sobre os setenta
anciãos escolhidos por Moisés, mas vai também sobre outros dois homens que
não eram escolhidos. Deste modo se explicaria a missão universal da Igreja; seja
o envio dos Doze, seja aquele dos setenta e dois representa os apóstolos e depois
todos os outros missionários. Portanto, temos os Doze, que é o grupo originário,
e depois todos os outros, que representam a universalidade do número setenta/
setenta e dois.

1
Depois disso, o Senhor designou outros setenta e dois, e os enviou dois a dois à sua
frente a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir. 2E dizia-lhes: “A colheita é
grande, mas os operários são poucos. Pedi, pois, ao Senhor da colheita que envie
operários para sua colheita. Ide! 3Eis que vos envio como cordeiros entre lobos.
4
Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias, e a ninguém saudeis pelo caminho.

v. 1: “O Senhor designou outros...” – os termos são solenes. Jesus é apresentado em


veste real e messiânica; ele como rei, realiza um ato oficial e envia diante de si os
discípulos escolhidos como arautos seus. A sua tarefa é preparar a vinda do Senhor,
identificada no v. 9, com a proximidade do Reino de Deus. O evangelista omite – Mc
6,7 – que os discípulos vão dois a dois, detalhe omitido para preservar melhor o
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caráter colegial dos Doze. Omite também “poder e autoridade”, que retém já
compreendido pelo leitor em Lc 9,1.

v. 2: a messe aqui representa não mais a iminência do Reino, mas o grande campo
da missão universal: os povos numerosos aos quais levar o Evangelho, em contraste
com o numero sempre limitado de evangelizadores. Mas, tal missão é sempre em
primeiro de Deus. Mediante a oração os discípulos fazem deles tal “realidade”,
entrando no ponto de vista de Deus: anunciar a salvação a todos.

v. 3: vem aqui formulado o explicito envio: “Ide”! Mas segue súbito o anúncio de
um destino cheio de riscos e de hostilidade para os mensageiros, expressos com a
imagem do cordeiro e do lobo. Esta oposição ocorre na literatura bíblica (Is 11,6;
65,25; Sir 13,17). Os missionários são indefesos como “cordeiros”. A afirmação de
Jesus comporta para os evangelizadores um apelo a não violência; e é possível um
implícito referimento a figura do Servo de JHWH: “como cordeiro conduzido ao
matadouro...”

v. 4: seguem as diretivas já expostas no envio dos Doze. Tal pobreza supõe um


certo direito à hospitalidade (v. 7b), mas comporta também o risco de não ser
acolhido. Implica a dependência total dos outros, daqueles em relação aos quais os
mensageiros são enviados. À base de tal comportamento se encontra a confiança total
em Deus que sabe oferecer ajuda e proteção aos pobres pelo seu Reino (cf. Lc 12,22
ss). Os mensageiros se apresentam – pobres e indefesos – assim mostram de não fazer
parte dos potentes e ricos; se encontram da parte dos pobres, com os filhos da paz.
Certamente Lucas é consciente que tais diretivas não possam mais ser aplicadas à
letra aos missionários do seu tempo. Mas permanecia um modelo permanente aos
evangelizadores.
Significativo é a ordem de não saudar a ninguém pelo caminho, que indica o
primado do anúncio. Primeiro o anúncio do Reino, tudo o resto é secundário. O não
saudar sublinha sim a urgência, mas também a necessidade de não se deixar distrair.

5Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘Paz a esta casa! ’ 6 E se lá houver um
filho de paz, a vossa paz repousará sobre ele; senão, voltará a vós. 7 Permanecei nessa casa,
comei e bebei do que tiverem, pois o operário é digno do seu salário. Não passeis de casa em
casa. 8Em qualquer cidade em que entrardes e fordes recebidos, comei o que vos servirem;
9curai os enfermos que nela houver e dizei ao povo: ‘O Reino de Deus está próximo de vós’.

10Mas em qualquer cidade em que entrardes e não fordes recebidos, saí para as praças e dizei:

11‘Até a poeira da vossa cidade que se grudou aos nossos pés, nós a sacudimos para deixá-la
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para vós. Sabei, no entanto, que o Reino de Deus está próximo’. 12Digo-vos que, naquele
Dia, haverá menos rigor para Sodoma do que para aquela cidade.

Ainda instruções sobre a hospitalidade. Poderíamos assumir todo o discurso de


Jesus deste modo: ser para os outros no anúncio do Reino. Anunciar o Reino significa
dar-se uma prioridade na vida. Em consequência, ser para os outros diante de Deus e
ser para os outros no anúncio do Reino: sublinha a dimensão vertical e horizontal da
existência.
O modelo desta missão é o próprio mestre.
A partir do v. 8, a atenção se volta à cidade como lugar da missão. Esta é uma visão
de Lucas, para o qual a verdadeira meta da atividade missionária é a cidade. Para ele,
“a casa” permanece o alojamento base dos evangelizadores. *Função da casa na
perspectiva da pregação na cidade.

v. 5-6: a saudação – “paz” – dom salvífico de Jesus que os mensageiros são


encarregados de levar. Essa “repousará”: o verbo é utilizado no AT para falar do
Espírito de Deus (Nm 11,25; 2Rs 2,15). Os missionários entravam numa casa sem
pedir primeiro se os habitantes fossem dignos ou não; será o acolhimento reservado à
saudação a mostrar se é efetivamente um “filho da paz” ou não.

v. 7: os missionários são enviados a estabelecer comunhão de mesa com os


hospedeiros, sem temor e sem reivindicações, contentando-se do que vem oferto.
Quanto ao salário, o mensageiro é completamente dependente do hospedeiro, e se
submete ao risco de não ser acolhido. Quanto “de casa em casa”: evitar a tentação de
buscar um lugar melhor!

v. 8: ligação entre o anúncio e as curas. Pela primeira vez, Lucas reporta a


formulação “O Reino de Deus é próximo a vós”, síntese central do anúncio de Jesus
(cf. Mc 1,15). Para Jesus, se trata de uma eminência que não suporta mais demora. No
tempo presente, Deus inaugurou sua soberania escatológica, como um evento já em
ato na proclamação e atividade de Jesus. Proclamando a proximidade do Reino, os
mensageiros não anunciam o fim próximo, mas a força salvífica do Reino presente nas
suas atividades e na do Ressuscitado.

v. 10-11: “saí para as praças”: o evangelista tende a apresentar a ação missionária


como uma atividade pública que se desenvolve à luz do dia e não em modo
clandestino. Lucas também diz que os evangelizadores devem anunciar a proximidade
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do Reino de Deus também à cidade que rejeita: é uma ameaça contra aquela cidade ou
ao contrário vem oferto uma ulterior possibilidade de conversão?

v. 12: mais que um senso de vingança contra as cidades que não acolhem o
evangelho, a sentença coloca em luz a seriedade da decisão requerida diante do
anúncio da vinda do Reino de Deus.

Em síntese, cada discípulo é posto de fronte à responsabilidade do seguimento, de


comportar-se à semelhança do mestre (sequela do seu mestre).
Para Lucas este gênero de vida pertence a um ideal do passado, mas deve ainda
servir de modelo para um empenho incondicionado ao serviço da pregação
missionária. Deve ser relido, compreendido, mas a radicalidade de Jesus deve
permanecer para qualquer discípulo, em qualquer época, também se cada tempo requer
o seu discernimento. Esta é a responsabilidade da “imitar”.
A pobreza e a missão não são expressão de uma filosofia que serve para libertar das
“preocupações”. Para o evangelista o coração da mensagem e a forma do
comportamento do mensageiro é o Reino de Deus a ser anunciado.
O dever dos evangelizadores ora se volta primariamente às cidades, e adquiriu certa
oficialidade. Esta está no proclamar a atualidade da salvação que Deus, em Jesus de
Nazaré, ofertou aos homens. Acolhendo o Evangelho, as pessoas experimentam a
força salvífica do Ressuscitado que continua a operar mediante os seus enviados.

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