Você está na página 1de 15

Interpretação operativa,

hermenêutica e precedentes: um
diálogo com Lenio Streck

Carlos Frederico Bastos Pereira


Doutorando em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Processual pela UFES.
Especializado em Direito Público pela FDV. Professor de Direito Processual Civil da FDV.
Membro do IBDP. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2762950420398386. E-mail: fredbastospereira@gmail.com

Hermes Zaneti Junior


Professor da Graduação e Pós-Graduação (Mestrado) da UFES. Pós-Doutor em Direito pela
Università degli Studi di Torino/IT. Doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela Università
degli Studi di Roma Tre/It. Doutor e Mestre em Direito Processual pela UFRGS. Membro
do International Association of Procedural Law (IAPL), do Instituto Ibero-Americano de Di-
reito Processual (IIDP) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Promotor de
Justiça no Estado do Espírito Santo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5343355826023519.
E-mail: hermeszanetijr@gmail.com

Resumo: O presente texto visa estabelecer um canal de diálogo com a crítica feita por Lenio Streck à
interpretação operativa, conceito criado por Luigi Ferrajoli, desenvolvido por Jerzy Wróblewski e utilizado
por um dos autores deste trabalho para a compreensão do modelo de precedentes normativos formal-
mente vinculantes do Código de Processo Civil de 2015. Assim, busca-se rebater as críticas formula-
das por Streck, demonstrando que a interpretação operativa é absolutamente compatível com a teoria
da decisão judicial da Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida pelo próprio Streck.
Palavras-chave: Interpretação Operativa. Hermenêutica. Analítica. Precedentes. Decisão Judicial.

Sumário: 1 Introdução – 2 A crítica de Lenio Streck à interpretação operativa – 3 O conceito de interpre-


tação operativa em Luigi Ferrajoli e o seu desenvolvimento por Jerzy Wróblewski – 4 A compatibilidade
entre interpretação operativa e a Crítica Hermenêutica do Direito – 5 A importância de compreen-
der a interpretação operativa para o modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes do
CPC/2015 – 6 Conclusões – Referências

1  Introdução
A interpretação ocupa um papel central na ciência jurídica. A sua importância
para a aplicação do direito, atualmente, é lugar-comum. Todo aquele que trabalha
com o direito deve ter plena consciência da relevância que a interpretação dos
textos normativos, dos fatos e das provas possui para o exercício da atividade
jurisdicional.

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 29

MIOLO_RIHJ_25.indd 29 09/10/2019 08:50:47


Carlos Frederico Bastos Pereira, Hermes Zaneti Junior

Várias são as escolas de pensamento jurídico que estudam o fenômeno in-


terpretativo, as quais, por sua vez, partem de diferentes perspectivas, paradigmas
e marcos teóricos. O debate é sempre saudável para que pontos de convergência
sejam identificados.
É com esse espírito que debateremos a crítica feita por Lenio Streck à inter-
pretação operativa, conceito utilizado por um dos autores deste texto para explicar
o modelo de precedentes adotado pelo Código de Processo Civil de 2015.
Sendo assim, primeiro, faremos uma descrição da crítica de Lenio Streck
ao conceito de interpretação operativa; segundo, trabalharemos o próprio con-
ceito de acordo com a concepção originalmente formulada por Luigi Ferrajoli e
posteriormente desenvolvida por Jerzy Wróblewski; terceiro, demonstraremos que
as características da interpretação operativa são compatíveis com a teoria da de-
cisão judicial desenvolvida por Streck na Crítica Hermenêutica do Direito; quarto,
refutaremos os argumentos contrários à interpretação operativa, indicando a sua
importância para a correta compreensão do modelo de precedentes do CPC/2015.

2  A crítica de Lenio Streck à interpretação operativa


Em “Hermenêutica e Jurisdição”, Lenio Streck (2017) faz uma crítica ao
conceito de interpretação operativa que um dos autores deste texto empregou
em “O Valor Vinculante dos Precedentes” (ZANETI JR., 2017), no intuito de expli-
car o modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes, adotado pelo
CPC/2015.1
A partir da seguinte pergunta: “Por falar em Privilégio Cognitivo do Juiz (PCJ),
o que o senhor tem a dizer sobre o conceito de interpretação operativa? Esse
conceito tem relação com o ativismo?”, Lenio Streck respondeu:

Como tenho referido à saciedade, a interpretação jamais está à dis-


posição do intérprete. Não há privilégio cognitivo. Aliás, no plano da
metaética, privilégio cognitivo redunda em um não cognitivismo. Dizer
que a interpretação não está à disposição do intérprete, seja ele
quem for, é uma advertência elementar. Aqui quero responder a essa
questão relacionada ao que denomina de ‘operação operativa’. Sob
pretexto de superarem o velho formalismo ou positivismo clássico-­
exegético, colocam no lugar um juiz operoso e/ou operativo. Na ver-
dade, um voluntarista. Quem fala disso no Brasil é Hermes Zaneti, no
livro O Valor Vinculante dos Precedentes. Para ele, diante de textos
vagos e ambíguos, os juízes proferirão decisões interpretativas sobre
o significado legal da norma legal, havendo, nesse momento, a cha-
mada interpretação operativa. (STRECK, 2017)

1
Os autores do texto também partem da interpretação operativa para explicar as diferenças entre as fun-
ções legislativa e jurisdicional em relação ao modelo de precedentes do CPC/2015 (ZANETI JR.; PEREIRA,
2016a).

30 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019

MIOLO_RIHJ_25.indd 30 09/10/2019 08:50:48


Interpretação operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck

Após essa breve introdução, o autor desenvolve o seu primeiro argumento:

De minha parte, deve ficar claro que a interpretação não é uma ativi-
dade excepcional que somente deve ocorrer diante de textos vagos
e ambíguos. Ela ocorre sempre, por uma questão ontológica, antro-
pológica. Não há como não interpretar, à luz das nossas próprias pré
compreensões, constitutivas de nós mesmos. O que não significa
que não haja interpretações equivocadas, pré-conceitos inautênticos,
etc. Afinal, como tenho referido em vários textos, não se pode dizer
qualquer coisa sobre qualquer coisa. Só não podemos ser ingênuos
a ponto de acreditar que não cairmos nas armadilhas hermenêuticas
da própria condição de ser de linguagem. Isso é, aliás, o que Gadamer
chamou de consciência histórica. E que pode se alargar por meio da
reflexão e da fusão de horizontes. (STRECK, 2017)

Em seguida, desenvolve o seu segundo argumento:

Interpretação, pelas mesmas razões ontológicas-antropológicas, não


é uma questão de autoridade, como bem lembra em vários textos
o jusfilósofo Marcelo Cattoni. Inclusive de uma suposta autoridade,
seja autoral, seja mesmo da própria tradição da qual o texto faça par-
te. Em face do seu texto, um autor também se torna intérprete, assim
como, por meio da fusão de horizontes, uma tradição pode aprender
sobre si mesmo em diálogo com outras tradições. Tanto um autor
quanto uma tradição têm algo a dizer sobre os textos, mas seus lei-
tores, comentadores e críticos também. Ou seja, tanto Zaneti, quanto
outros autores instrumentalizam a linguagem, ainda estão presos ao
contexto da crise do positivismo, seja por ligar interpretação ao pro-
blema da indeterminação, seja por pretender lidar com esse problema
como uma questão de autoridade. (STRECK, 2017)

Como se pode perceber, a resistência de Lenio Streck à interpretação ope-


rativa parte de dois argumentos bem definidos em sua crítica: (i) em primeiro lu-
gar, que a interpretação não seria uma atividade excepcional que ocorre somente
quando o intérprete estiver diante de textos vagos e ambíguos; (ii) em segundo
lugar, que a interpretação não seria uma questão de autoridade, como se o juiz
tivesse um privilégio cognitivo na interpretação do direito em relação aos demais
atores jurídicos.
A crítica de Lenio Streck parte de premissas desenvolvidas em sua Crítica
Hermenêutica do Direito,2 ideias por ele trabalhadas desde a década de 1990, ao
longo de sua extensa e profunda obra, propondo uma leitura conjunta da filosofia

2
Sobre a Crítica Hermenêutica do Direito, cf., principalmente, “Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma explo-
ração hermenêutica da construção do direito” (STRECK, 2014a); “Jurisdição constitucional e decisão jurídi-
ca” (STRECK, 2014b); “Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas” (STRECK,
2014c); e “O que é isto – decido conforme minha consciência?” (STRECK, 2015).

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 31

MIOLO_RIHJ_25.indd 31 09/10/2019 08:50:48


Carlos Frederico Bastos Pereira, Hermes Zaneti Junior

hermenêutica de Martin Heidegger e da hermenêutica filosófica de Hans-Georg


Gadamer – a partir do paradigma filosófico trabalhado no Brasil por Ernildo Stein –
com a teoria do direito e a teoria da decisão judicial de Ronald Dworkin.
Esta não é a sede adequada para descrever as ideias do autor em toda sua
extensão, mas, em apertada síntese, pode-se afirmar que a sua obra pretende
inserir o direito brasileiro em um paradigma pós-positivista que busca combater a
discricionariedade judicial, mediante uma teoria da decisão judicial que preserve
a autonomia do direito (contra, v.g., a moral, a política e a economia), garantindo
ao jurisdicionado o seu direito fundamental à resposta adequada à Constituição.
Entendemos, porém, que as críticas feitas por Lenio Streck à interpretação
operativa não são pertinentes, sendo necessário aprofundar o debate acerca de
seu conceito e de sua aplicação no modelo de precedentes do CPC/2015.
É o que será feito a seguir.

3  O conceito de interpretação operativa em Luigi Ferrajoli e o


seu desenvolvimento por Jerzy Wróblewski
Como premissa é preciso compreender a interpretação operativa segundo a
concepção daquele que originalmente a formulou, Luigi Ferrajoli, para, posterior-
mente, entender como esse conceito foi desenvolvido no contexto da teoria da
decisão judicial de Jerzy Wróblewski.
Em ensaio publicado no ano de 1966, Luigi Ferrajoli estabeleceu uma di-
ferença entre interpretação doutrinária e interpretação operativa como espécies
do gênero interpretação jurídica. A interpretação doutrinária seria aquela realizada
em abstrato pelos juristas com o objetivo de explicar os conceitos e significados
próprios do direito, ou, no léxico do autor, os conceitos e significados da língua
jurídica. A interpretação operativa, por sua vez, seria aquela praticada pelos juízes
em concreto no contexto de interpretação/aplicação do direito, buscando a compre-
ensão do significado concreto expresso na linguagem jurídica (FERRAJOLI, 1966).
Portanto, segundo Ferrajoli, a interpretação operativa possuiria três caracte-
rísticas básicas:
a) a uma, a interpretação operativa ocorre sempre em concreto: para destacar
a diferença entre a interpretação doutrinária e operativa Ferrajoli utiliza os concei-
tos de língua e linguagem, extraídos da linguística. Enquanto a língua constitui o
conjunto de regras abstratas relativas ao uso de uma determinada linguagem, os
textos normativos; a linguagem refere-se ao emprego concreto de uma determinada
língua, isto é, à utilização das regras da língua. A doutrina descreveria a língua e
suas regras; a prática dos juristas, a vida real da linguagem, os usos das regras da
língua, para resolver os problemas concretos do direito. A interpretação operativa

32 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019

MIOLO_RIHJ_25.indd 32 09/10/2019 08:50:48


Interpretação operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck

representaria, assim, o significado da experiência jurídica concreta (FERRAJOLI,


1966, p. 300).3
b) a duas, a interpretação operativa exige decisão sobre o significado do texto
ou dispositivo normativo. O intérprete, a partir de uma dúvida interpretativa, decide
por um sentido aplicável ao caso concreto, fornecendo o significado do direito à
luz da moldura fática do caso (FERRAJOLI, 1966, p. 301).4 O significado seria,
portanto, mutável da mesma maneira que a linguagem natural é mutável. Muda-se
a norma sem que se mude o texto da lei. Trata-se, por assim dizer, de uma tarefa
de (re)construção do ordenamento jurídico por meio da interpretação jurídica.
c) a três, a interpretação operativa constitui um ato único que não é subdivi-
dido em etapas (FERRAJOLI, 1966, p. 302-303).5 O próprio Ferrajoli afirma que, na
interpretação operativa, “não existe um antes e depois: o juiz entende, interpreta
e denota os fatos em (sua) linguagem jurídica, isto é, nos termos da língua jurídica
conotados pelas normas” (FERRAJOLI, 2010, p. 160).
Luigi Ferrajoli é um positivista crítico, um otimista normativo, e a interpretação,
para Ferrajoli, será sempre tendencialmente cognitiva e, portanto, limitada e vincu-
lada pelo direito. Isto não impede a integração entre o garantismo e o Rule of Law,
como, mais contemporaneamente, percebeu o autor (FERRAJOLI, 2013, p. 184).
Justamente por isso, ao comentar o ordenamento jurídico brasileiro a par-
tir do Código de Processo Civil de 2015 e para além das súmulas vinculantes,
Ferrajoli pergunta e afirma que:

É possível conciliar, nos casos em que não se apresente a súmula


vinculante, o valor formalmente vinculante dos precedentes com a sub-
missão dos juízes à lei? Pois bem, a análise de Zaneti, e em particu-
lar, o fundamento racional por ele assinalado ao valor vinculante dos
precedentes, consente em dar uma resposta positiva também para tal
pergunta dentro da concepção cognitiva da jurisdição sustentada pela

3
Cf., no original: “L’interprete-giurista elabora i concetti giuridici di cui le norme dettano le regole d’impiego;
l’interprete-operatore impiega tali regole per intendere il significato delle concrete esperienze che li si
propongno nella vita di relazione giuridica. Il giurista designa <<tipi>> di esperienza; l’operatore denota
esperienze giuridiche reali. Il primo fa della lingua; il secondo fa dell linguaggio”.
4
Cf., no original: “Correlativamente, l’interpretazione operativa compiuta dall’operatore è sempre rivolta – anzichè
alle astrate norme giuridiche, come ritiene la comune dottrina – ai significati che sono espressi concretamente,
nella pratica del diritto, mediante l’impiego della lingua giuridica. Quei significati sono di volta in volta mutevoli,
anche se le regole delle forme linguistiche in cui essi si esprimono (cioè le norme giuridiche) sono sempre le
stesse: allo stesso modo, si noti, in cui le proposizioni della lingua naturale, secondo un efficacce aforisma de
Wittgenstein, comunicano ogni volta un senso nuovo com parole vecchie. Sono dunque le regole di una lingua
che il giurista ha il compito di spiegare e di riformulare; sono invece dei significati sempre nuovi, intelligibili
mediante l’uso di tali regole, che l’operatore, in particolare il giudice, si trova ogni volta a dover capire e
valutare”.
5
Cf., no original: “In realtà il procedimento interpretativo è perfettamente unitario: esso si risolve, infatti, nel
solo momento dell’interpretazione giuridica dell’esperienza concreta [...]. Non è già, pertanto, che l’interprete
conosca prima l’esperienza, por interpreti la legge e quindi qualifichi normativamente l’esperienza ovvero
applichi a questa la legge: fin dal primo momento, infatti, egli intende, dell’esperienza, il significato normativo”.

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 33

MIOLO_RIHJ_25.indd 33 09/10/2019 08:50:48


Carlos Frederico Bastos Pereira, Hermes Zaneti Junior

teoria garantista – compreendida ‘cognição’, obviamente, não já no


sentido mecanicístico da velha ideia do juiz ‘boca da lei’ que identifi-
ca a norma com o texto, mas sim como uma atividade que, ao lado
de qualquer conhecimento empírico, admite momentos decisionais
dirigidos à verdades consistentes em razão da natureza linguística do
seu objeto, na escolha, inevitavelmente discricionária e exatamente
por isto racionalmente argumentada sobre a base dos precedentes e
mais em geral da inteira cultura jurídica, do significado considerado
mais plausível entre aqueles associáveis ao texto interpretado [...]
Por outro lado, a configuração da jurisdição como atividade criativa
antes que cognitiva sobre a base do simples fato que essa comporta
espaços inevitáveis de discricionariedade interpretativa supõe uma
concepção restrita e epistemologicamente insustentável de cognição,
que é paradoxalmente a mesma de quem confunde norma e texto
normativo. Daí resulta uma concepção como criação da inevitável dis-
cricionariedade interpretativa do texto normativo, uma desconsidera-
ção de todo limite entre uma e outra e por isso o aval prestado, em
contraste com a separação de poderes, à ilegítima criação judiciária
de novo direito por trás da tela da legítima, mesmo se discricioná-
ria e opinável, interpretação do direito existente. (FERRAJOLI, 2017,
p. 13-14)

Assentadas as ideias de Ferrajoli sobre o tema, passemos a analisar a utili-


zação do conceito de interpretação operativa por Wróblewski.
Em ensaio publicado no ano de 1971, Jerzy Wróblewski desenvolveu a ideia
de que decisão judicial será racional quando contar com justificação interna e
justificação externa. A justificação interna trata do controle lógico-formal da de-
cisão, exigindo que a conclusão derive das premissas normativa e fática. Não
há preocupação com o conteúdo dessas premissas, mas tão somente com a
coerência delas com a conclusão. A justificação externa, por sua vez, trata do
controle argumentativo da decisão judicial, centrando a sua preocupação justa-
mente no conteúdo e na escolha das premissas normativa e fática da decisão
(WRÓBLEWSKI, 1971, p. 412).
No seu modelo de decisão judicial, Wróblewski (1971, p. 413) identifica três
tipos de decisões que devem ser objeto de justificação: (i) as decisões interpre-
tativas, que tratam do significado da norma legal; (ii) as decisões de prova, que
trabalham sobre a identificação dos fatos relevantes e sobre a matéria probatória;
e (iii) as decisões finais, que determinam as consequências dos fatos provados
de acordo com a norma legal.
São justamente as decisões interpretativas que evocam a necessidade de
uma interpretação operativa, notadamente quando o órgão jurisdicional tiver dúvi-
das sobre o significado do texto normativo a ser aplicado no caso concreto. Nesse
sentido, o autor afirma que: “a decisão interpretativa é necessária quando o órgão
aplicador do direito tem dúvida quanto ao significado da norma a ser aplicada.

34 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019

MIOLO_RIHJ_25.indd 34 09/10/2019 08:50:48


Interpretação operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck

Essa é uma interpretação operativa entre o caso em questão e a norma legal”


(WRÓBLEWSKI, 1971, p. 413, tradução nossa),6 citando, no ponto, Luigi Ferrajoli.
Ou seja, “se, em uma situação concreta, o tribunal tiver dúvidas quanto a esse
significado [do texto normativo], deve eliminar a dúvida determinando o significado
da regra por meio da chamada interpretação operativa” (WRÓBLEWSKI, 1992,
p. 87, tradução nossa).7
Como se pode perceber, o reconhecimento da dúvida interpretativa – que é
sempre ligado ao próprio processo de interpretação – é que tornará relevante a “in-
terpretação operativa”, para Wróblewski. Trata-se de uma importante contribuição,
pois exige um ônus argumentativo do julgador no momento da fundamentação
da decisão judicial, externalizando eventuais dúvidas sobre a interpretação dos
textos normativos e permitindo, assim, maior controle intersubjetivo da decisão.

4  A compatibilidade entre interpretação operativa e a Crítica


Hermenêutica do Direito
Como vimos, a interpretação operativa possui três características essen-
ciais: ela ocorre sempre em concreto; ela exige decisão sobre o significado do dis-
positivo normativo; e ela constitui um ato único que não é subdividido em etapas.
A essas características, a teoria dos precedentes aqui adotada, como também já
observamos, acrescenta o dever de universalização das razões como imperativo
de racionalidade da questão decidida.
Todas essas características são absolutamente compatíveis com a Crítica
Hermenêutica do Direito desenvolvida por Lenio Streck.
Em primeiro lugar, se, de um lado, a interpretação operativa é resultado da
experiência jurídica e ocorre sempre em concreto, de outro, a Crítica Hermenêutica
do Direito trabalha justamente com a ideia de que “o caso concreto representa a
síntese do fenômeno hermenêutico-interpretativo” (STRECK, 2014c, p. 445). Não
à toa, a Crítica Hermenêutica do Direito incorpora a tese de indissociabilidade
entre questões de fato e questões de direito durante o raciocínio judicial, na linha
de Castanheira Neves (1967).8

6
Cf., no original: “Interpretative decision is needed when the law-applying organ has doubts concerning the
meaning of the norm to be applied. This is an “operative interpretation” between the case in question and
the legal norm at hand”.
7
Cf., no original: “If, in a concrete situation, the court has doubts concerning this meaning then it must
eliminate the doubt by determining the rule’s meaning trough what is here called ‘operative interpretation’”.
8
Nesse sentido, Streck (2014c, p. 450) diz que “é uma fundamentação de caráter pragmático, porque
esta fundamentação está ligada à facticidade e à historicidade, filtradas pelo wirkungsgeschichtliches
Bewußtsein. Aí reside aquilo que entendemos por ‘caso concreto’; e há muito reside a incindibilidade entre
‘questão de fato-questão de direito’, interpretação-aplicação e assim por diante”.

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 35

MIOLO_RIHJ_25.indd 35 09/10/2019 08:50:48


Carlos Frederico Bastos Pereira, Hermes Zaneti Junior

O intérprete não pode se desvirtuar da facticidade e da historicidade que


são inerentes ao processo de interpretação do direito, pois sempre estará inse-
rido dentro de uma tradição. Por conta disso, o intérprete, ciente de que possui
preconceitos autênticos e inautênticos em relação às possíveis interpretações,
deve dialogar com a tradição e com o mundo fático e histórico que o circunda,
analisando criticamente o texto objeto de sua interpretação. É o contato com a
experiência jurídica, termo utilizado por Ferrajoli, que permitirá ao intérprete identi-
ficar o material normativo já interpretado por aquela comunidade política.
Em segundo lugar, se, de um lado, a interpretação operativa consiste na
decisão por um determinado significado do texto normativo, de outro, a Crítica
Hermenêutica do Direito denuncia justamente que há uma diferença entre decisão
e escolha.
Streck (2015, p. 113-114) propõe que a decisão jurídica não ocorre me-
diante escolhas interpretativas. A escolha representa uma eleição de uma opção
em detrimento da outra, sem quaisquer critérios controláveis, o que resulta-
ria em inaceitável discricionariedade (que, na sua concepção, é um modo de
arbitrariedade).9 Ao invés de escolhas, a decisão jurídica resulta de uma releitura
do material normativo já interpretado pela comunidade política, uma consequência
da necessidade de preservar a coerência e integridade do direito, na linguagem
de Ronald Dworkin (1995). No caso da interpretação operativa ligada à teoria dos
precedentes, a universalização das razões representa um limite à discricionarie-
dade da escolha.
Em terceiro lugar, se, de um lado, a interpretação operativa resulta de um pro-
cesso unitário de aplicação do direito, de outro, a Crítica Hermenêutica do Direito,
com base em Gadamer, defende que não é possível aplicar o direito por etapas.
A ideia de que compreensão, interpretação e aplicação constituem um pro-
cesso unitário (GADAMER, 2008, p. 316),10 busca superar a concepção da her-
menêutica tradicional de que, primeiro, se interpreta um texto normativo para,
depois, compreender o seu sentido e, só depois de compreendido o sentido do
texto, aplicá-lo ao caso concreto.11 Ferrajoli e Streck, cada qual à sua maneira, têm

9
Streck (2015, p. 113-114) defende que “a decisão – no caso, a decisão jurídica, não pode ser entendida
como um ato em que o juiz, diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto,
escolhe aquela que lhe parecer mais adequada. Com efeito, decidir não é sinônimo de escolher. [...] A
escolha, ou a eleição de algo, é um ato de opção que se desenvolve sempre que estamos diante de
duas ou mais possibilidades, sem que isso comprometa algo maior do que o simples ato presentificado
em uma dada circunstância. Em outras palavras, a escolha é sempre parcial. Há no direito uma palavra
técnica para se referir à escolha: discricionariedade e, quiçá (ou na maioria das vezes), arbitrariedade”.
10
Compartilhada por Streck (2014c, p. 288), cf.: “o processo unitário da compreensão, pelo qual interpretar
é aplicar (applicatio) – que desmitifica a tese de que primeiro conheço, depois interpreto e só então eu
aplico –, transforma-se em uma espécie de blindagem contra as opiniões arbitrárias”.
11
A aproximação entre a interpretação em Gadamer e a interpretação operativa está devidamente indicada
por Zaneti Jr. (2017, p. 133 – nota de rodapé nº 179).

36 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019

MIOLO_RIHJ_25.indd 36 09/10/2019 08:50:48


Interpretação operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck

a plena consciência de que o fenômeno de interpretação e aplicação se imbricam


no ato decisório
Como se pode perceber, naquilo que é essencial, a interpretação operativa,
conceito analítico desenvolvido por Ferrajoli e Wróblewski, é absolutamente com-
patível com a teoria da decisão judicial desenvolvida por Lenio Streck, de matriz
hermenêutica.12 Consistindo, dessa maneira, numa reação às compreensões pu-
ramente criacionistas e discricionárias do direito jurisprudencial e do positivismo
realista, especialmente quando vinculam o intérprete no âmbito do discurso jurídi-
co em uma teoria dos precedentes. Como iremos analisar a seguir.

5  A importância de compreender a interpretação operativa


para o modelo de precedentes normativos formalmente
vinculantes do CPC/2015
Existe uma relação muito clara entre interpretação operativa e formação do
precedente judicial: a interpretação operativa é meio do qual o precedente judicial
é resultado. Juízes e tribunais, mediante interpretação operativa, (re)constroem
o sentido do dispositivo normativo à luz das circunstâncias fáticas do caso con-
creto, acrescentando à ordem jurídica um conteúdo normativo novo, devidamente
(re)construído.
Esse modelo, no Common Law, é chamado de enrichment model. Nele, “o
estabelecimento de regras jurídicas para governar condutas sociais é desejado
em si mesmo – embora subordinado de várias e importantes maneiras à função
de resolução de disputas – de modo que as cortes conscientemente assumem
a função de desenvolver certos corpos de lei, embora façam-no caso a caso”.
Esse modelo, por sua vez, convive perfeitamente com by product model, no qual
“as cortes estabelecem regras jurídicas apenas como um by-product incidental da
resolução de disputas” (EISENBERG, 1991, p. 05-06; AMARAL, 2016).
No Brasil, esse modelo convive a partir do duplo discurso que é extraído
da decisão judicial, já identificado pela doutrina brasileira (MITIDIERO, 2012): (i)
primeiro, o discurso do caso, voltado à solução do litígio concretamente deduzido

12
Inclusive, os pontos de convergência e divergência entre o Constitucionalismo Garantista de Luigi Ferrajoli
e a Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck já foram objeto de debate em coletânea específica
(FERRAJOLI; STRECK; TRINDADE, 2012). Ferrajoli (2012, p. 13-58) critica o que ele chama de constituciona-
lismo principialista, que reúne características do movimento contemporâneo do neoconstitucionalismo e a
sua excessiva abertura principiológica, com a utilização da ponderação. Defende, por sua vez, um Constitu-
cionalismo Garantista como espécie de positivismo reforçado no qual o Estado de Direito é complementado
pelo controle de constitucionalidade. Streck, na réplica (2012, p. 59-94), abraça as críticas de Ferrajoli ao
neoconstitucionalismo, ao principiologismo e à ponderação, mas dele discorda quanto à impossibilidade
de uma teoria pós-positivista da Constituição capaz de controlar a discricionariedade judicial. Sobre a pos-
sibilidade de diálogo entre hermenêutica e analítica, cf. ZANETI JR.; PEREIRA, 2016b.

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 37

MIOLO_RIHJ_25.indd 37 09/10/2019 08:50:49


Carlos Frederico Bastos Pereira, Hermes Zaneti Junior

e que tem as partes como destinatários; (ii) segundo, o discurso do precedente,


voltado à orientação da sociedade e da comunidade jurídica, visando imprimir ra-
cionalidade ao sistema de Justiça, preservando a igualdade e a segurança jurídica.
Isso não quer dizer, de maneira alguma, que a interpretação é uma atividade
presente somente nos casos em que o órgão jurisdicional estiver diante de textos
vagos ou ambíguos.
A interpretação não é uma atividade contingencial na vida do operador do
direito, mas verdadeiramente central. Afinal, “não se pode mais negar, no atual
estágio da ciência jurídica e da hermenêutica, que os textos, não importa de qual
espécie, se constitucionais, legais ou precedentes, não valem por si mesmos, não
contém uma clareza que os isente de interpretação, porque interpretar é aplicar e
vice-versa” (ZANETI JR., 2017, p. 147-148).
Interpretam-se, portanto, textos vagos e não vagos, textos ambíguos e não
ambíguos, casos fáceis e difíceis. O importante é perceber que a mera classifica-
ção de um texto como sendo vago/não vago, ambíguo/não ambíguo e fácil/difícil
já é fruto da interpretação.
Contudo, a interpretação de textos normativos redigidos em forma de cláu-
sula geral e dotados de conceitos jurídicos indeterminados, inegavelmente, exigirá
um maior labor interpretativo. Isso porque a técnica legislativa utilizada nessas
duas situações, contrapondo-se à técnica casuística, não descreve precisamente a
hipótese de incidência no suporte fático da norma jurídica (fattispecie, Tatbestand),
exigindo daquele que a aplica um ônus argumentativo em relação às circunstâncias
concretas do caso para fundamentar a decisão judicial, como já reconhece o art.
489, §1º, II, do CPC/2015.13
Para ilustrar como a interpretação operativa é um conceito que auxilia ana-
liticamente a compreender o modelo de precedentes no Código, retomaremos o
exemplo que já utilizamos em outra oportunidade (DIDIER JR. et al., 2015, p. 442
e ZANETI JR.; PEREIRA, 2016a). O art. 700 do CPC/2015 prescreve que “a ação
monitória pode ser proposta por aquele que afirmar, com base em prova escrita
sem eficácia de título executivo”, um termo vago que impõe ao órgão jurisdicional
concretizá-lo à luz das circunstâncias fáticas de cada caso concreto. Diante desse
dispositivo, o Poder Judiciário será provocado a decidir sobre diversas provas es-
critas que instruirão ações monitórias. Essa decisão, diante da dúvida interpretati-
va, inserirá uma nova regra no ordenamento jurídico, pois o art. 700 do CPC/2015
será reconstruído interpretativamente.

13
Sobre o tema da fundamentação das decisões judiciais envolvendo cláusulas gerais e conceitos jurídicos
indeterminados à luz do CPC/2015, cf. Pereira (2019, p. 129-131).

38 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019

MIOLO_RIHJ_25.indd 38 09/10/2019 08:50:49


Interpretação operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck

É justamente o que aconteceu quando o Superior Tribunal de Justiça, ao


interpretar o antigo art. 1.102-A do CPC/1973 (que utilizava o mesmo conceito
jurídico indeterminado), entendeu que o contrato de abertura de conta corrente
acompanhado de extrato bancário e o cheque prescrito constituem exemplos de
prova escrita sem eficácia de título executivo. Esses precedentes, inclusive, foram
enunciados em súmula para divulgar a ratio decidendi do julgamento que recons-
truiu o ordenamento jurídico, dizendo que “o contrato de abertura de crédito em
conta-corrente, acompanhado do demonstrativo de débito, constitui documento
hábil para o ajuizamento da ação monitória” (Súmula nº 247) e que “é admissível
a ação monitória fundada em cheque prescrito” (Súmula nº 299).
Além disso, não se quer dizer que o juiz possui qualquer privilégio cognitivo
na interpretação do direito, em detrimento de outros atores jurídico-processuais.
O discurso jurídico conta com diversos intérpretes dos textos normativos e o
processo judicial, ainda que limitado aos sujeitos processuais, também. Não é só
juiz que interpreta o direito, mas também o autor e o réu, bem como todos aqueles
que participam como auxiliares do juízo ou terceiros. Porém, “muito embora sejam
muitos os intérpretes dos textos jurídicos, a exemplo do cidadão comum, dos
legisladores, dos administradores públicos, dos contratantes na iniciativa privada
[...] só o juiz ou o tribunal pode interpretar a norma jurídica para decisão de um
caso e, deste caso, extrair o precedente para os casos futuros. Só um juiz ou
tribunal está obrigado a justificar/fundamentar sua decisão” (ZANETI JR., 2017,
p. 146-147).
O juiz reconstrói o ordenamento a partir do que foi na doutrina referido como
ponto de vista interno do direito (internal point of view) e está, ele mesmo, vin-
culado a este ponto de vista, consubstanciado na tradição jurídica, com o qual
é obrigado a dialogar (HART, 1997, p. 89; PEREIRA, 2019, p. 37-38). A questão
aqui decorre do reconhecimento que o direito obriga a uma determinada prática
(SHAPIRO, 2006, p. 1157-1158).14
Este modelo garante solidez hermenêutica na decisão, aumentando o contro-
le sobre a discricionariedade positivista e se aproximando das ideias de cognoscibi-
lidade, confiabilidade e calculabilidade propostos na doutrina para a compreensão
da segurança jurídica nos Estados Constitucionais (ÁVILA, 2014, p. 264-270).
Não se trata de acentuar um protagonismo ou um determinado privilégio
do juiz no processo judicial, muito menos de defender uma assimetria do órgão

14
Cf., no original: “The internal point of view is the practical attitude of rule acceptance-it does not imply that
people who accept the rules accept their moral legitimacy, only that they are disposed to guide and evaluate
conduct in accordance with the rules […] The internal point of view plays four roles in Hart’s theory: (1) It
specifies a particular type of motivation that someone may take towards the law; (2) it constitutes one of
the main existence conditions for social and legal rules; (3) it accounts for the intelligibility of legal practice
and discourse; (4) it provides the basis for a naturalistically acceptable semantics for legal statements”.

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 39

MIOLO_RIHJ_25.indd 39 09/10/2019 08:50:49


Carlos Frederico Bastos Pereira, Hermes Zaneti Junior

jurisdicional em relação às partes no momento de prolação da decisão judicial. Em


um Estado Democrático Constitucional, todos se encontram em pé de igualdade
e devem atuar segundo as funções constitucional e legalmente estabelecidas.
Em outras palavras, decidir não é um privilégio do juiz, tampouco representa um
protagonismo de sua atuação, apenas é a função que ele exerce no processo.15
Ademais, não é possível falar em protagonismo judicial na interpretação ju-
rídica por causa da conexão forte que existe entre o dever de fundamentação das
decisões judiciais e o direito fundamental ao contraditório, que impõe ao juiz consi-
derar tanto a interpretação do autor, quanto a interpretação do réu no momento de
sua decisão (ZANETI JR., 2017, p. 309).16 Se é vedado ao juiz proferir decisão com
base em fundamento não previamente debatido com as partes (art. 10, CPC/2015)
e se o juiz deve enfrentar todos os argumentos das partes capazes de alterar sua
conclusão (art. 489, §1º, IV, CPC/2015), como afirmar que ele é protagonista na
interpretação judicial?
Ocorre que, nessa divisão de funções, a interpretação do direito realizada
pela parte, constante de sua postulação, não tem o condão de formar um prece-
dente judicial. É a interpretação judicial, constante da decisão judicial, que, recons-
truindo o direito, poderá vir a formar um precedente. Inclusive, nos casos em que
não há reconstrução da norma relevante pelo juiz, mas simplesmente aplicação
do dispositivo normativo ao caso, não se pode falar de precedente. Quando isto
ocorrer, o que vincula é a própria lei, não o precedente (ZANETI JR., 2017, p. 309;
MARINONI, 2017, p. 156-157).
A questão, portanto, é de perspectiva: não é porque a decisão judicial, um
ato jurisdicional, é a matéria-prima do precedente que o juiz tem qualquer espécie
de protagonismo ou privilégio cognitivo na interpretação jurídica. O ato decisó-
rio não é produzido de maneira solitária (solipsista, na linguagem difundida por
Streck). Pelo contrário, a decisão deve levar em consideração a interpretação feita
por outros sujeitos no curso do processo (procedimento em contraditório) e deve
dialogar com as interpretações já feitas pela comunidade jurídica sobre o tema
(tradição), respeitando o ponto de vista interno do direito (que o distingue da
moral) e a segurança jurídica (cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade).
Diante dessas considerações, busca-se demonstrar que as críticas à in-
terpretação operativa, no contexto do modelo de precedentes do CPC/2015,
não procedem, muito pelo contrário, auxiliam analiticamente a compreensão

15
Inclusive, um dos autores deste texto (ZANETI JR., 2014, p. 97) já defendeu que “[n]o processo visto
com procedimento em contraditório, o juiz participa ativamente e sobre ele também recaem encargos
(entendidos como deveres-poderes) do diálogo judicial. Dentro da perspectiva do iudicium, fica saliente o
‘inafastável caráter dialético do processo’, que se constitui no ato de três pessoas: juiz, autor e réu”.
16
Sobre o contraditório como valor-fonte do processo civil, cf. Zaneti Jr. (2014, p. 179-184) e Pereira (2019,
p. 75-80).

40 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019

MIOLO_RIHJ_25.indd 40 09/10/2019 08:50:49


Interpretação operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck

hermenêutica do problema que envolve a interpretação jurídica e a formação do


precedente judicial.17

6  Conclusões
Em conclusão permitam-me dizer que eu pintei a jurisprudência Norte-­
Americana como fundada em dois extremos, o Pesadelo e o Nobre
Sonho: a visão de que os juízes sempre criam e nunca encontram o
direito que eles impõem aos litigantes, e a visão oposta, de que eles
jamais criam o direito. Como qualquer outro pesadelo e qualquer outro
sonho estes dois são, na minha visão, ilusões, muito embora eles
tenham muito valor para ensinar o jurista nas suas horas acordado.
A verdade, talvez não tão excitante, é que algumas vezes os juízes
fazem uma coisa e às vezes a outra. (HART, 1977, p. 989)18

O nosso intuito com este texto não é apenas responder às críticas feitas por
Lenio Streck, mas estabelecer um verdadeiro canal de diálogo. Acreditamos que
as preocupações de abordagens analíticas e hermenêuticas sobre uma teoria da
decisão judicial, apesar de contar com diferenças pontuais, são convergentes na-
quilo que é essencial: o controle intersubjetivo do ato decisório, para o seu devido
accountability –­ para usar uma expressão de predileção do nosso interlocutor.
Muitas vezes essas abordagens utilizam terminologias distintas, mas têm o
mesmo objetivo, sendo necessário apenas o accertamento de signos linguísticos.
O importante é que cada matriz teórica se mostre aberta a ouvir, refletir, criticar
e, se for o caso, construir pontes estratégicas para tornar o processo judicial
(e o fenômeno jurídico como um todo) uma instância tendencialmente previsível e
propulsora dos direitos fundamentais encartados na Constituição.
Quem sabe se superarmos o umbral da vigília reconhecido por Hart possa-
mos avançar para considerar que o modelo de precedentes como alinhado à ideia
de segurança jurídica enquanto cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade,
reduzindo a margem de discricionariedade deixada pelo modelo positivista por ele
pensado e integrando, assim, o modelo garantista de Luigi Ferrajoli.

Operative interpretation, hermeneutics and precedents: a dialogue with Lenio Streck


Abstract: The present paper seeks to establish a channel of dialogue with the criticism made by Lenio
Streck to the operative interpretation, a concept created by Luigi Ferrajoli, developed by Jerzy Wróblewski

17
Estando, portanto, de acordo com as preocupações já apontadas por Streck (2018) em relação ao modelo
de precedentes do CPC/2015.
18
A doutrina de Hart é aplicável sem problemas maiores à compreensão cognitivista ou cética do direito,
demonstrando, aliás, que este é um problema comum à civil law e à common law. A única diferença em
relação ao nosso entendimento, aqui neste texto, é que a escolha pela interpretação fácil, ou seja, pela
configuração do caso como um easy case, é também ela uma escolha interpretativa. Mesmo aqui existe a
reconstrução do significado a partir das escolhas do intérprete e é papel da teoria da argumentação tornar
explícito e controlável este significado.

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 41

MIOLO_RIHJ_25.indd 41 09/10/2019 08:50:49


Carlos Frederico Bastos Pereira, Hermes Zaneti Junior

and used by one of the authors of this work to understand the model of normatively formally binding
precedents of the Brazilian Code of Civil Procedure of 2015. Thus, it is sought to counter the criticisms
formulated by Streck, demonstrating that the operative interpretation is absolutely compatible with the
theory of the legal reasoning of the Hermeneutics Critics of Law, developed by Streck himself.

Keywords: Operative Interpretation. Hermeneutics. Analytical. Precedents. Legal Reasoning.

Interpretazione operativa, ermeneutica e precedenti: un dialogo con Lenio Streck

Riassunto: Questo saggio intende stabilire un canale di dialogo con la critica dell’interpretazione
operativa operata da Lenio Streck. Interpretazione operativa é un concetto creato da Luigi Ferrajoli,
sviluppato da Jerzy Wróblewski e utilizzato da uno degli autori di questo lavoro per comprendere il
modello dei precedenti normativi formalmente vincolanti nel c.p.c. brasiliano 2015. Pertanto, cerchiamo
di contrastare le critiche di Streck, dimostrando che l’interpretazione operativa è assolutamente
compatibile con la teoria del garantismo e con la teoria della decisione giudiziale raffigurata dalla critica
ermeneutica del diritto, sviluppata dallo stesso Streck.

Parole chiave: Interpretazione Operativa. Ermeneutica. Analitica. Precedenti. Decisione Giudiziale.

Referências
AMARAL, Guilherme Rizzo do. Precedentes vinculantes vieram para ficar com o novo Código de
Processo Civil. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-out-24/
guilherme-amaral-precedentes-vinculantes-vieram-ficar-cpc. Acesso em: 11 jan. 2017.
ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
CASTANHEIRA NEVES, Antonio. Questão-de-facto, questão-de-direito, ou, o problema metodológico
da juridicidade: (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967.
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual
civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10.
ed. Salvador: Juspodivm, 2015, vol. 2.
DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Belknap, 1995.
EISENBERG, Melvin. The nature of the common law. Cambridge: Harvard University Press, 1991.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. Tradução de Ana Paula
Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010.
FERRAJOLI, Luigi. Interpretazione dottrinale e interpretazione operativa. Rivista Internazionale di
Filosofia del Diritto, n. 43, p. 290-304, 1966.
FERRAJOLI, Luigi. La democrazia attraverso i diritti: il costituzionalismo garantista come modello
teorico e como proggeto politico. Roma/Bari: Laterza, 2013.
FERRAJOLI, Luigi. Prefácio. In: ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos
precedentes normativos formalmente vinculantes. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio; TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e
(neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Tradução de Flávio Paulo Meurer. Nova revisão da tradução por Enio Paulo Giachini. Rio de Janeiro:
Vozes, 2008.

42 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019

MIOLO_RIHJ_25.indd 42 09/10/2019 08:50:49


Interpretação operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck

HART, H. L. A. American jurisprudence trough English eyes: the nightmare and the noble dream.
Georgia Law Review, vol. 11, n. 6, september 1977, p. 969-989.
HART, H. L. A. The concept of law. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1997.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
MITIDIERO, Daniel. Fundamentação e precedente: dois discursos a partir da decisão judicial.
Revista de Processo, v. 37, n. 206, p. 61-78, abr. 2012.
PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Fundamentação das decisões judiciais: o controle da
interpretação dos fatos e do direito no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
SHAPIRO, Scott. What is the internal point of view? Fordham L. Review, vol. 75, iss. 3, p. 1157,
2006, p. 1157/1158.
STRECK, Lenio. Hermenêutica e jurisdição: diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2017.
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção
do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014a.
STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014b.
STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? 5. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2015.
STRECK, Lenio. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015.
Salvador: Juspodivm, 2018.
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014c.
WRÓBLEWSKI, Jerzy. Legal decision and it justification. Logique et Analyse. n. 53-54, p. 409-419, 1971.
WRÓBLEWSKI, Jerzy. The judicial application of law. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1992.
ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: o modelo constitucional da justiça bra-
sileira e as relações entre processo e constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos
formalmente vinculantes. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
ZANETI JR., Hermes; PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Por que o Poder Judiciário não legisla
no modelo de precedentes do Código de Processo Civil de 2015? Revista de Processo, v. 41,
n. 257, p. 371-388, jul. 2016a.
ZANETI JR., Hermes; PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Teoria da decisão judicial no Código de
Processo Civil: uma ponte entre hermenêutica e analítica? Revista de Processo, v. 41, n. 259,
p. 21-53, set. 2016b.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

PEREIRA, Carlos Frederico Bastos; ZANETI JUNIOR, Hermes. Interpretação


operativa, hermenêutica e precedentes: um diálogo com Lenio Streck. Revista
do Instituto de Hermenêutica Jurídica – RIHJ, Belo Horizonte, ano 17, n. 25,
p. 29-43, jan./jun. 2019.

Recebido em: 01.06.2019


Aprovado em: 30.06.2019

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 17, n. 25, p. 29-43, jan./jun. 2019 43

MIOLO_RIHJ_25.indd 43 09/10/2019 08:50:49

Você também pode gostar