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Niterói, 2012
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Resumo: Este trabalho visa sustentar que a jurisdição constitucional não está em posição
epistêmica para determinar como o conceito de constituição deve ser entendido. Para tanto,
recorre-se à teoria semântica externalista, segundo a qual os conceitos são determinados pela
melhor compreensão relativamente ao objeto a que ele se refere. Este trabalho vale-se também
do interpretativismo jurídico, que afirma que o conhecimento jurídico é produzido pela
interpretação construtiva das práticas do direito vigente. Aplicando isso ao conceito de
constituição, tem-se que que os juízes não estão em uma posição privilegiada para definir qual
é o sentido da constituição. A constituição pertence à totalidade da comunidade política e não
pode haver autoridade última sobre seu sentido sem ofensa ao princípio democrático.
Palavras-chave: teoria constitucional; revisão judicial; semântica externalista.
1. Introdução
Parece haver uma importante disparidade entre a riqueza dos debates de ordem
metodológica que permeiam a teoria do direito analítica e a ausência de uma preocupação
análoga na teoria constitucional. As complexidades conceituais que a meta-análise das teorias
do direito tem feito aflorar nas últimas décadas sinalizam a urgência do problema da
caracterização de seu objeto de estudo. Teorias analíticas têm por objeto conceitos, cuja
natureza tem-se mostrado exepcionalmente difícil de se explicar. A teoria do direito tornou-se
consciente dessa dificuldade e tem tentado incorporar elementos das teorias mais recentes da
filosofia da linguagem. É fundamental que o mesmo seja feito na teoria constitucional.
Contribuir nesse sentido para os debates na teoria consituticional é o objetivo do
presente trabalho. Para tanto, pretende-se investigar se as práticas constitucionais – tal como
elas são compreendidas por seus teóricos – estão de acordo com algumas preocupações
1
Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Bolsista CAPES. E-mail:
danilodsa@gmail.com.
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Graduanda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do projeto CNJ/CAPES, equipe
UFRJ. E-mail: annalyriobarreto@gmail.com.
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2. Conhecimento semântico
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“According to one possible version of this dual theory semantics is to be devoted to the study of the relation
between words and things, including reference and application” (NELSON, 1992, p. 16/17). Ori Simchen
prefere chamar de metassemântica a esse estudo, que consiste não na atribuição de significado às unidades
linguísticas (por exemplo, como quem defende que o conteúdo semântico dos nomes é idêntico aos seus
portadores), mas na busca pelas causas dessa atribuição (COLEMAN; SIMCHEN, 2003, p. 12; SIMCHEN,
2007, p. 220/221).
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Uma distinção preliminar que deve ser feita é entre quatro elementos liguísticos4: o
termo, a descrição, o referente e o conceito. O termo é o elemento do código linguístico que,
quando enunciado, permite aos falantes iniciados o compartilhamento de ideias; é a unidade
básica do significado. A descrição dos usos de um termo diz respeito aos critérios
reconhecidos como indispensáveis para que seu uso seja socialmente aceitável. Dominando
esses critérios, o falante é capaz de utilizar eficazmente o termo, ainda que não compreenda
inteiramente seu significado. O referente é a porção da realidade concreta relacionada ao
termo e ao conceito. O conceito, por fim, é a ideia compartilhada entre os falantes. É o que se
chama de significado do termo e pode estar completamente fora do alcance do senso comum
(é o que ocorre com grande parte dos termos técnicos).
A relação entre esses elementos linguísticos é enormemente intrincada e está
apresentada aqui de forma bastante simplificada, mas ela é evocada com o único propósito de
permitir o seguinte argumento: pode haver um hiato entre os critérios de uso e o verdadeiro
significado de um termo, que pode estar de todo inacessível a uma comunidade linguística;
isso ocorrerá caso o conhecimento admitido como verdadeiro acerca da sua referência esteja,
de alguma meneira relevante, equivocado. À teoria que afirma que o significado não se exaure
na compreensão que um grupo de pessoas tem do conceito, mesmo que o grupo abranja toda a
comunidade linguística, mas que se submete à própria realidade, dá-se o nome de
externalismo semântico5.
A teoria do direito foi tomada por preocupações emprestadas das teorias semânticas
quando Ronald Dworkin denunciou o “aguilhão semântico” do juspositivismo de Herbert
Hart (DWORKIN, 2007, p. 55). Em linhas gerais, o primeiro denuncia o segundo pela adoção
de uma concepção criterialista da atribuição de conteúdo ao conceito de direito (DWORKIN,
2007, p. 38 e 39)6, o que implicaria em uma limitação fundamental em sua teoria, impedindo-
4
A distinção é obtida basicamente da leitura de KRIPKE, 1980, p. 24-34; de PUTNAM, 1975, p. 215-222; e de
COLEMAN e SIMCHEN, 2003, p. 5-12.
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O externalismo será contraposto ao criterialismo, nome de teorias que identificam o significado aos critérios de
uso. Como tais critérios são obtidos da descrição das instâncias de uso do termo, então a posição criterialista
equivale à que identifica significado com a compreensão da linguagem.
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Em reconhecimento às numerosas críticas que recebeu, Dworkin já não usa essa nome para caracterizar o
trabalho de Hart. Agora ele afirma que o positivista propõe uma análise conceitual descritiva ao realizar teoria do
direito (DWORKIN, 2006, p. 145) ou simplesmente que ele não tem uma noção clara da natureza da análise
conceitual do direito (DWORKIN, 2011, p. 404). Ainda assim, como mais adiante ficará claro, a taxonomia dos
conceitos que Dworkin propõe só permite que se classifique o positivismo de Hart como criterialista.
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significado do termo está vinculado em parte ao seu contexto de uso12. Essa característica
permite que se admita a possibilidade de sentido mesmo onde exista legítima divergência
sobre ele e que os critérios admitidos para sua aplicação mude com o tempo, de acordo com a
melhor compreensão disponível sobre a matéria.
Uma segunda característica dos nomes no modelo causal é o caráter especializado do
conhecimento a respeito de sua referência. Como o significado está sujeito à melhor
compreensão disponível daquela parcela da realidade a qual o termo faz referência,
frequentemente esse conhecimento está fora do alcance da maioria das pessoas comuns.
Nesses casos, essas pessoas deferem a um grupo de especialistas o uso adequado do termo. As
pessoas em geral usam a palavra “ouro” na designação de objetos corriqueiros, mas a maioria
delas é incapaz de distinguir ouro real de outro metal amarelo com a precisão que o
conhecimento químico presente permite. A existência dessa “divisão linguística de trabalhos”
é coerente com o respeito que cientistas e teóricos merecem na correção dos usos de nomes
comuns ligados a sua especialidade (PUTNAM, 1975, p. 247-252). A sujeição dos usos
aceitos pelo senso comum ao melhor conhecimento teórico disponível sobre a referência é tão
forte que Putnam chega a insinuar a existência de uma normatividade controlando o conteúdo
dos conceitos13.
Tem-se entendido que o modelo externalista é útil para explicar como os teóricos do
direito trabalham. Ronald Dworkin deu um passo especialmente importante nesse sentido. Na
década de 80, a publicação de Law’s Empire aponta uma crítica metodológica ao positivismo
jurídico. Segundo Dworkin, essa doutrina banaliza a prática do direito ao afirmar que existem
critérios de identificação do direito compartilhados entre os juristas e que podem ser
descobertos pelos teóricos do direito (DWORKIN, 2007, p. 41 e 52). Esses critérios não
existem e é por isso que os debates sobre o que o direito exige nos casos particulares são
verdadeiramente interessantes; eles são centrais na prática do direito (DWORKIN, 2007, p.
123 e 124).
Curiosamente, essa proposta não repercutiu analogamente na teoria constitucional.
Supondo que os conceitos de constituição e de direito têm, naquilo que importa,
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Há indexicalidade quando uma mesma palavra, em diferentes contextos de uso, carregam um mesmo
significado, mas diferentes referências. Essa é uma característica própria dos pronomes: a referência da palavra
“eu” varia de acordo com o falante, mas seu significado permanece sempre o mesmo. O que Putnam sustenta é
que os substantivos tem um componente indexical, pois sua referência depende da relação do falante e de sua
comunidade com a realidade, se eles têm acesso à sua estrutura profunda (PUTNAM, 1975, p. 229-235).
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“The theoretical account of what it is to be a stereotype proceeds in terms of the notion of linguistic
obligation” (PUTNAM, 1975, p. 251).
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Nos trabalhos de Dworkin, a ideia de interpretação tem um papel muito maior que
meramente o resgate do significado dos textos ou a reconstrução da atividade judicial. Ela é
também o método válido – o único (DWORKIN, 2007, p. 109) – para a análise do conceito de
direito. Para entender essa surpreendente afirmação – e o espanto do grupo bastante plural dos
seus adversários15 – é importante levar em conta seus argumentos mais recentes no âmbito da
filosofia moral.
Desde Law’s Empire, a teoria do direito de Dworkin ganha os contornos do que veio a
ser denominado interpretativismo (DWORKIN, 2011, p. 402; SOLUM, 2010, p. 555/556) – o
modelo segundo o qual o fato que torna as proposições jurídicas verdadeiras ou falsas é
interpretativo (SOLUM, 2010, p. 554; STAVROPOULOS, 2007, p. 6)16. Desde então, a fonte
de normatividade do direito é a sua justificação (PATTERSON, 1999, p. 91; SOLUM, 2010,
p. 555)17. Segundo Lawrence Solum, a dificuldade de uma tal teoria é que ela opera segundo
dois modelos de justificação diferentes. A objeção é a seguinte (SOLUM, 2010, p. 555/556):
na maioria das situações, nos chamados casos fáceis, o juiz tem o dever de decidir conforme a
legislação e os precedentes, ainda que uma eventual teoria da moralidade pública que eles
subscrevam exija outra coisa. Espera-se que um juiz se sinta obrigado a aplicar a legislação
tributária vigente, por exemplo, por mais que suas próprias convicções sobre um sistema
tributário justo divirja dela. Mas existem casos específicos, os casos difíceis, que exigem do
juiz que construa uma justificação geral do direito vigente apta a resolver questões
imprevistas ou corrigir normas específicas – é o que ocorre quando uma lei é declarada
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Esse é um ponto que precisaria ser desenvolvido posteriormente. Aqui ele precisa ser admitido em prol do
argumento, mas algo pode ser dito brevemente em sua defesa. Por exemplo, ambos têm ocorrências gerais e
específicas: “constituição” pode designar constituições em geral ou uma Constituição específica; a referência de
“direito” abrange um conjunto do qual uma constituição faz parte, portanto, eles compartilham características
essenciais; “normas constitucionais” e “normas jurídicas”, aceitando os adjetivos como ocorrências específicas,
têm referências idênticas – ou seja, nenhuma norma é jurídica se não for constitucional também. Sobre as
características do conceito de constituição, ver COLEMAN, SIMCHEN, 2003.
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Por exemplo, COLEMAN, SIMCHEN, 2003, p. 3/4; GREEN, 2003, p. 1908/1909; HART, 2010, p. 311;
LEITER, 2007, p. 166; PATTERSON, 1999, p. 72-74; RAZ, 2001, p. 14.
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As expressões “fatos normativos” ou “fatos interpretativos” são utilizadas por Stavropoulos. Dworkin as teria
evitado, em concordância com sua crítica ao realismo moral.
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Desde que começou a abandonar a ideia dos dois sistemas (DWORKIN, 2011, p. 402), Dworkin pode oferecer
como alternativa à identificação de fatos políticos – decisões de autoridades – uma teoria da moralidade pública
como fonte de normatividade.
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inconstitucional, por exemplo, ou então quando um caso parece não estar contemplado pela
legislação vigente. Essa justificação geral, por ser uma reconstrução do direito passado, deve
ser diferente daquela teoria moral referida anteriormente, que não tem compromisso com as
normas jurídicas presentes. A conclusão é que o modelo interpretativista do direito exige a
aplicação desta última teoria – a justificação geral do direito vigente – enquanto uma teoria da
moralidade pública exige que o juiz aja conforme o que é moralmente exigível,
independentemente da justificação do sistema jurídico.
Isso é um problema para uma teoria do direito que se propõe normativa porque torna
necessário admitir que, além de uma teoria da história institucional que a caracterize como a
melhor realização de determinado propósito, deve haver uma teoria mais abstrata e mais
abrangente que não tenha compromisso com os eventuais erros de tal história (SOLUM, 2010,
p. 556). Justice for Hedgehogs resolveu a dificuldade das duas teorias morais – a da
moralidade pública em geral e a da justificação do direito vigente – fazendo da última um
caso especial da primeira. Dworkin já havia sugerido essa ideia ao tratar da escalada
justificatória na decisão judicial, mas ainda não havia enunciado uma teoria moral abrangente,
que integrasse teoria do direito, teoria do conhecimento moral e seus argumentos em temas
mais concretos de filosofia normativa. Sem isso, ele estaria vulnerável aos críticos que
atacassem a sua concepção de direito desde diferentes teorias da moralidade pública
(SOLUM, 2010, p. 556). De fato, em grande parte de seu novo livro, Dworkin se dedica a
esclarecer e a defender aspectos específicos de sua teoria da moralidade, tais como a ideia de
conceitos interpretativos e de responsabilidade moral, que são indispensáveis para sua
concepção de teoria do direito. Assim, ao ampliar o interpertativismo ao nível de uma teoria
para discurso normativo em geral, Dworkin pode demonstrar que sua concepção de direito
decorre de uma teoria moral ampla (SOLUM, 2010, p. 557).
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Essa distinção é estranha ao pensamento de Dworkin. Nesse segundo sentido, teoria do direito deve indicar um
modelo teórico intermediário entre uma teoria normativa e uma ciência puramente empírica (PERRY, 2001, p.
325/326). A distinção é mencionada aqui porque ela é produto de uma crítica à teoria geral da interpretação de
Dworkin.
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O direito tem outras relações com a moralidade. Uma teoria da legislação deve dar conta de garantir que as
normas jurídicas legisladas sejam justas em alguma medida (DWORKIN, 2011, p. 401). Outra dessas relações é
que uma teoria da decisão judicial pode adotar critérios morais para corrigir a legislação vigente, como nos casos
de controle de constitucionalidade. Tais critérios incidiriam sobre a validade de uma determinada norma. Ou
seja, dentre as proposições fundamentais do direito, podem haver aquelas mais próximas do que seria
considerado típicos julgamentos morais – juízos de equidade, por exemplo. Isso não é problema para os
positivistas inclusivos como Hart, os quais aceitam que determinados sistemas jurídicos tenham alguma abertura
para argumentos morais (HART, 2010, p. 335). Presumivelmente, tal abertura argumentativa para princípios
morais tem reflexos para o problema mais abstrato do que pode ser considerado jurídico. Aqui interessam esses
reflexos mais abstratos, relacionados à natureza do conceito de direito e que separa Dworkin dos positivistas,
mesmo que inclusivos.
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ponto de vista do participante, não há fronteiras dadas entre discursos normativos. Se existe
razão para distinguí-los, ela só pode ser dada interpretativamente, considerando-se a
finalidade a que o objeto interpretado está orientado (DWORKIN, 2011, p. 119/120). Assim,
o problema dos limites entre moral e direito – se eles devem ou não ser postulados – só pode
ser resolvido da perspectiva de um dos dois sistemas normativos, pelos usos de um dos dois
gêneros intepretativos (DWORKIN, 2011, p. 402).
Do ponto de vista jurídico, o enunciado teria que ser algo como “o que a melhor
leitura do material jurídico disponível afirma sobre a relação entre direito e moral?” Assim
formulada, a questão não pode ser respondida sem petição de princípio, pois a compreensão
do que constitui material jurídico já indica o papel da moralidade no direito. Se as fontes de
direito forem puramente convencionais, então a fronteira já está traçada; se forem incluídos os
princípios que justificam reconstrutivamente essas convenções, a fronteira já não tem mais
sentido (DWORKIN, 2011, p. 403). O mesmo ocorre se a questão for colocada em termos
morais. “É melhor para a comunidade, em termos de justiça e compromisso moral, que direito
e moralidade constituam sistemas distintos?” Qualquer resposta já supõe que a natureza do
direito depende de alguma forma de justificação (DWORKIN, 2011, p. 403). Ao incluir
argumentos de natureza moral dentre o corpo dos argumentos disponíveis, o ordenamento
jurídico já não pode ser considerado meramente um sistema de regras – como é um jogo de
beisebol20 – e ganha os contorno permeáveis de uma prática argumentativa. Em suma, a
separação entre o direito e a moral não pode ser sustentada desde a interpretação das práticas
sociais; e qualquer tentativa de descrevê-los de forma independente é arquimedianismo.
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Patterson exemplifica em sua crítica à posição de Dworkin: “we do not need a theory to understand legal rules
any more than we need a theory to understand the rules of baseball, violin performance, or addition”
(PATTERSON, 1999, p. 91).
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que não é possível decidir de forma neutra, não partidária, qual delas é a mais adequada
(PUTNAM, 1987, p. 19). Assim como não é uma questão de fato uma dada interpretação ser
verdadeira, esta também não pode ser tão facilmente resolvida. Dworkin entende que a
divergência entre duas pessoas sobre o que é certo ou errado só pode ser indício de
relativismo – a posição segundo a qual não há verdade objetiva – segundo os valores de uma
terceira pessoa, uma intérprete do conflito apta a oferecer as suas próprias conclusões morais
(DWORKIN, 2011, p. 121). No fundo, o que é verdadeiro ou falso só pode ser compreendido
no âmbito de uma determinada teoria; isso é exatamente o que o realismo de Putnam
apresenta (PUTNAM, 1990, p. 96).
Se esse for mesmo o caso, então toda a descrição está sujeita a noções fundamentais
cuja atribuição de significado funcione como os conceitos interpretativos de Dworkin. Ou
seja, modelos descritivos também estão fundados em divergências que não podem ser
resolvidas como questões de fato (PUTNAM, 2004, p. 47), sem que se precise supor que
essas divergências tenham qualquer implicação ética ou moral. Isso significa que diferentes
formas de descrever a realidade podem coexistir, ainda que sejam mutuamente incompatíveis,
pelo simples fato de que esquemas conceituais disponíveis não são suficientemente completos
de forma que a ambiguidade seja completamente excluída (PUTNAM, 2004, p. 43).
O que o interpretativista pode almejar é oferecer uma concepção de direito que seja
adequada à forma como os participantes, no âmbito de seus ordenamentos jurídicos
específicos, encaram o discurso jurídico. Essa abordagem é semelhante ao positivismo no
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sentido em que tenta “explicar”21 como opera o discurso do direito, ainda que
reconstrutivamente, apontando elementos que estão subjacentes (LEITER, 2007, p. 140).
Dworkin falha em sua caracterização da função do teórico. Dworkin sustenta que o direito é
dotado de um propósito e só se pode entendê-lo a partir de uma caracterização favorável das
práticas jurídicas à luz desse propósito. Essa é uma tarefa moralmente engajada, pois é preciso
justificar o direito enunciando sua finalidade. O que Dworkin não pode esperar é que todo o
teórico do direito concorde, sem mais, com esse conceito normativo de direito; o seu não é
necessariamente o conceito de direito (LEITER, 2007, p. 166).
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Esta palavra está entre aspas para não haver confusão com o sentido que Dworkin atribui. Como já foi dito,
para ele, explicação é algo que não cabe no âmbito de uma teoria normativa (DWORKIN, 2011, p. 152). No
sentido em que está colocado aqui, nada impede que o interpretativismo seja uma explicação – ou abranja uma
função explicativa – do fenômeno jurídico.
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O próprio Hart não explica o que entende por análise conceitual. Essa é a intepretação de Dworkin de seu
trabalho (DWORKIN, 2011, p. 404).
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O quanto de segurança que uma tal teoria pode pretender é um aspecto importante do argumento de Dworkin
contra o caráter científico da teoria do direito. Sua objeção – principalmente tal como foi formulada em Law’s
Empire (DWORKIN, 2007, p. 19-38) – é que a natureza do conceito de direito é tal que não há padrões
publicamente compartilhados a serem enunciados. Para Hart, existe espaço na teoria para os princípios que
orientam a tomada de decisão e a incerteza que eles ensejam na descrição de critérios públicos – na incerteza
marginal que denominou de penumbra (HART, 2010).
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Diferentemente das teorias normativas, tais como o interpretativismo, essa ciência do direito
não se posiciona quanto a melhor solução para os problemas jurídicos – ela é neutra – e não
depende de caracterísiticas próprias de sistemas jurídicos específicos – ela é geral (HART,
2010, p. 309). E ela propõe uma descrição de como indivíduos submetidos ao controle
regulatório de um conjunto de normas, em oposição às ciências empíricas que forneceriam
explicações que excluiriam estados mentais e atitudes dos participantes (PERRY, 2001, p.
325/326 e 328).
É claro que Dworkin rejeita essa instância intermediária. Para ele, uma teoria que
pretenda levar em consideração o aspecto normativo de uma prática social, deve fazê-lo, ela
mesma, através de compromissos normativos. Isso ocorre pelo fato de os valores estarem
vinculados a uma epistemologia integrada, que os une em uma mesma teoria abrangente
(DWORKIN, 2011, p. 101), e pelo caráter interpretativo dos conceitos de valor, que impõe os
parâmetros do próprio gênero interpretativo (DWORKIN, 2011, p. 124/125).
O que Dworkin não justifica é que haja incompatibilidade entre o caráter normativo do
objeto e a neutralidade valorativa do modelo explicativo. Toda a determinação de objeto em
qualquer teorização implica em valoração, isso não significa que a teoria adequada tenha que
ser ela mesma valorativa. O julgamento feito pelo teórico dos elementos importantes e
significativos de uma prática social, uma forma de juízos de valor, não remete
necessariamente a juízos de valor, ainda que os próprios participantes atribuam significados
morais (LEITER, 2007, p. 165-168). O que Dworkin entende por reflexos morais da teoria do
direito, derivados de um argumento do holismo dos valores, deve ser entendido como o tipo
de atividade interpretativa comum a qualquer forma de descrição.
A possibilidade de uma teoria analítica e neutra do direito baseia-se no fato de que a
interpretação de um conceito – no sentido corriqueiro e não no de Dworkin – significa a sua
explicação. O que se espera de alguém que tenha compreendido um determinado termo é que
ele seja capaz de explicar suas características principais (RAZ, 2001, p. 8) – não obstante as
considerações de Putnam sobre a diferença entre bem utilizar um termo e dominar seu
significado. É verdade que, para determinar quais são as características que realmente
importam para a compreensão de um conceito, alguma forma de avaliação é indispensável
(LEITER, 2007, p. 167). Mas o juízo de valor pertinente aqui não é o mesmo a que Dworkin
se refere.
Os únicos aspectos normativos envolvidos na explicação do conceito é a determinação
de quais são os seus elementos característicos e quais são acidentais. Esse tipo de
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O exemplo de Leiter é de alguém que quer formular uma teoria descritiva das cidades. Não há na prática de se
morar em cidades a normatividade que Dworkin identifica no direito, dada a sua proximidade com a moral.
Ainda assim, determinar quais são os critérios para se identificar uma cidade podem ser bastante disputados e
defini-los pode exigir julgamentos práticos (LEITER, 2007, p. 168/169).
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Leiter menciona um exemplo apresentado por Julie Dickson, no qual um sujeito agnóstico narra uma missa
católica. Ele precisa entender o que o ritual representa para os participantes. Para isso, ele deve ser capaz de
julgar quais são seus elementos mais importantes, deve ter uma teoria sobre como uma boa missa deve ser
celebrada. O sucesso de sua empreitada não tem relação com a sua religiosidade, ou falta dela (LEITER, 2007, p.
174).
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ao instrumento da revisão judicial de atos normativos26. Será aqui sustentado que o argumento
segundo o qual os juízes não têm privilégio epistêmico para afirmar a melhor compreensão do
conceito de constituição é insinuado na obra desse autor.
Waldron enuncia o que afirma ser o núcleo de sua crítica à revisão judicial abstraindo-
o dos argumentos relacionados à história institucional de um determinado pais e aos casos
específicos que são abordados pelo instrumento. Destacados esses componentes, o que sobre é
um argumento normativo sobre – no caso dele, contra – a prática em questão que é válido
para qualquer ordenamento jurídico, desde que ostentem algumas características
(WALDRON, 2006, p. 1351/1352).
O ponto de partida é o problema da definição de um procedimento de decisão que
resolva controvérsias legítimas sobre quais são e como interpretar os direitos a serem
protegidos pela comunidade política (WALDRON, 2006, p. 1370/1371). Se a revisão judicial
for o melhor mecanismo de solução de disputas dessa natureza, então pode-se dizer que ela é
legítima27. O argumento realiza essa avaliação segundo duas abordagens distintas: um que
leva em conta razões relacionadas ao resultado e outro, razões relacionadas ao processo.
A segunda dessas duas classes diz respeito ao procedimento que, por si só, é o mais
legítimo para tomada de decisões (WALDRON, 2006, p. 1372). Ela tem um cunho claramente
político, pois diz respeito à relação entre os cidadãos comuns e os oficiais que agem
diretamente na deliberação política e a aceitabilidade das decisões em termos de igualdade
política e ao direito do cidadão de ter a sua opinião considerada na tomada de decisão
(WALDRON, 2006, p. 1373). Alguém que tenha sido derrotado em uma disputa política
reconhecerá como legítimo o resultado, dessa perspectiva, se reconhecer como correto o meio
pelo qual a decisão foi obtida. Segundo Waldron, essas razões são claramente mais favoráveis
ao Poder Legislativo como lugar de tomada de decisão, pois o mecanismo da representação
permite que cada membro votante do corpo político tenha o máximo de participação
compatível com uma participação igual de cada um dos outros (WALDRON, 2006, p.
1388/1389).
A outra classe é formada por razões relacionadas à aceitabilidade da revisão judicial
como o procedimento de decisão capaz de garantir o melhor resultado possível relativamente
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Para tanto, escolheu-se um artigo (WALDRON, 2006) que, apesar de recente, é amplamente reconhecido
como um clássico da crítica à revisão judicial: “(...) the most profound challange to judicial review that has
achieved prominence in the law reviews” (FALLON, 2008).
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Deve-se supor como característica dessa comunidade que, dentre outras coisas, ela tenha um claro
compromisso com a proteção de direitos, independentemente dos meios de tomada de decisão (WALDRON,
2006, p. 1364/1365).
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à garantia de direitos28. Essa classe é especialmente importante para este trabalho, pois
concerne a capacidade do Poder Judiciário de produzir decisões boas relativamente ao que
determina a constituição (WALDRON, 2006, p. 1376).
A principal razão dessa natureza apresentadas por Waldron29 afirma que, como as
decisões judiciais são apresentadas como interpretações do texto da constituição, elas estariam
mais aptas a respeitar os direitos dos cidadãos que as decisões tomadas por órgãos políticos
(WALDRON, 2006, p. 1380-1386). Waldron afirma que não subsiste o argumento,
primeiramente, pelo fato de, em geral, o texto da constituição não ser plenamente claro quanto
ao conteúdo dos direitos (WALDRON, 2006, p. 1381). Por isso, a constituição permite
diversas interpretações, mesmo que contraditórias. Em segundo lugar, a justificação da
própria tomada de decisão ocupa a maior parte dos julgados. Isso abrange a exposição da
teoria interpretativa adotada, da teoria dos precedentes, a discussão sobre questões
processuais, dentre outros assuntos secundário. O tema central é relegado a uma parcela
inferior de todo o processo de deliberação (WALDRON, 2006, p. 1383).
O propósito de Waldron com esse arguemento específico é deixar claro que existem
deficiências claras na posição dos juízes como intérpretes privilegiados da constituição. A
consequência disso seria um desvirtuamento da própria normatividade da constituição. Pode-
se perceber aqui insinuada uma preocupação com o verdadeiro sentido da constituição, que
está, até certo ponto, inacessível mesmo à jurisdição constitucional. Os juízes não sabem
melhor o que determina a constituição que seus colegas juristas; não existe motivo para se
privilegiar a leitura desses operadores do direito em detrimento dos demais cidadãos
conhecedores do direito.
7. Conclusão
constitucional. Elas ocupam-se do que pode ser descrito como o processo de produção de
sentido sobre um texto normativo, que opera tipicamente quando um juiz precisa tomar uma
decisão.
Para os fins deste trabalho, é necessário incluir uma etapa, a passagem – se for
realmente possível fazê-lo – da construção judicial do sentido de uma constituição específica
para a identificação de características essenciais para a própria ideia de constituição. Assim,
talvez seja possível identificar as características do próprio conceito de constituição que
limitam a interpretação judicial e que exija a abertura do sistema constitucional para uma
comunidade de intérpretes maior. Pode ser que tal generalização não seja possível. Cada
comunidade política soberana tem liberdade para definir, mais ou menos irrestritamente,
como seu direito será estruturado; isso pode motivar algum ceticismo. Mas, na tradição
analítica da teoria do direito, a aceitação de métodos com essa característica está
relativamente bem estabelecida. É o que se pode concluir das considerações sobre o
interpretativismo.
8. Bibliografia empregada
BIX, Brian. Can Theories of Meaning and Reference Solve the Problem of Legal
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