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Jorge Lobo*
Sumário
1. Hermenêutica jurídica. A) Conceito de hermenêutica jurídica. B) Escolas
hermenêuticas. C) Escola hermenêutica dogmática. D) Escola hermenêutica
sociológica. E) Escola hermenêutica realista. 2. Interpretação do Direito. A) Conceito
de interpretação. B) Interpretação quanto à origem. C) Interpretação quanto aos
meios. D) Efeitos da interpretação. E) As lacunas da lei. 3. Aplicação do Direito. A)
Metodologia. B) Interpretação literal e lógica da LSA com fundamento na Escola da
Exegese. C) Interpretação lógico-sistemática da LSA ainda com fundamento na Escola
da Exegese. D) Interpretação lógico-sistemática e teleológica da LSA com respaldo
na escola sociológica de jurisprudência e na escola do realismo escandinavo. E)
Interpretação da LSA como “Sistema Aberto”.
1. Hermenêutica jurídica
* Doutor em Direito Comercial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito
da Empresa. Livre-Docente na UERJ. Advogado.
1
Hermenêutica e Aplicação do Direito. 6ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1957. p. 13.
2
Loc. cit.
3
Ob. cit., p. 14.
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B – Escolas hermenêuticas
4
Idem, p. 15.
5
Loc. cit.
6
Elementos de Hermenêutica e Aplicação do Direito. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 21/22.
7
A Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 1.
8
Lições Preliminares de Direito. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 273.
9
Sistema de Direito Civil Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1959. p. 175.
10
Curso de Direito Civil, Parte Geral. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 34.
11
Hermenêutica no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968.
12
Interpretação e Aplicação das Leis. Coimbra: Arménio Amado Ed., 1987.
13
Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra: Arménio Amado Ed., 1987.
14
Ob. cit., p. 1 e ss.
15
Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 178.
16
Idem, p. 192.
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Se o intérprete adota uma “atitude racionalista”, pois julga que o direito contém
princípios gerais e abstratos, que devem ser aplicados às situações concretas da vida
do homem em sociedade, a sua função esgota-se na identicação daqueles princípios
e na sua aplicação, não obstante as constantes mudanças sociais; todavia, se adota
uma “atitude empirista”, porque vê no direito o modo de perseguirem-se certos ns,
sempre intimamente relacionados com os dados da realidade fática, a sua função é
“adaptá-los e, de certa forma, subordiná-los àqueles dados da experiência histórica”17.
Destarte, se prepondera a “atitude racionalista”, estamos diante de uma “escola
hermenêutica dogmática”; se prevalece a “atitude empirista”, diante do que Luiz
Fernando Coelho denomina de “escola hermenêutica zetética”.
Esclarece, ainda, Luiz Fernando Coelho: “A orientação dogmática decorre da
concepção tradicional de que o direito está, todo ele, contido nas leis; assim, a função
do intérprete passa a ser unicamente a de adequar o fato à lei, mediante o processo
lógico da subsunção, o qual tem o método racional-dedutivo por basilar”18 .
Depois, acentua: “A orientação zetética agrupa as escolas de interpretação
jurídica que reagiram aos exageros do dogmatismo exegético, conceitualista e analítico
e o tentaram superar, mediante uma atitude de oposição a todo apriorismo jurídico
e procurando interpretar o direito de acordo com os ns por ele visados”19.
Mas, ainda consoante Luiz Fernando Coelho, tanto a “escola hermenêutica
dogmática”, porque “coloca o Direito e a Jurisprudência a serviço, não da paz, da
ordem, da segurança, da liberdade, da justiça, dos valores, enm, mas das pessoas que
se beneciam da ordem social que deve ser mantida e a cujos interesses convém que
permaneça inalterada”20, quanto a “escola hermenêutica zetética”, porque, “embora
subordine declaradamente o princípio dogmático às considerações político-sociais,
acaba por reduzir-se a um dogmatismo encoberto”21, devem ser “questionadas pela
teoria crítica do direito, que pretende introduzir uma terceira orientação, que denomina
crítica, mas que pretende ser transformadora em seus resultados operacionais relativos
à ordem jurídica e social”22, chegando à conclusão de que “as escolas tradicionais de
hermenêutica jurídica servem na realidade para legitimar a ordem real, qualquer que
ela seja”23, o que o leva a propor a “tese de que a interpretação jurídica deve ser sempre
metadogmática, porque dimanada de uma noção crítica e prospectiva do direito e
voltada para um princípio basilar, o princípio construtivo ou de transformação que
oponho ao princípio da ordem e da segurança”24 .
O pensamento de Luiz Fernando Coelho está inserido em uma corrente chamada
“teoria crítica do direito”, que, em França, tem como um de seus prosélitos Michel Mialle.
17
Loc. cit.
18
Loc. cit.
19
Idem, p. 195.
20
Ob. cit., p. 199.
21
Loc. cit.
22
Idem, p. 198.
23
Ibidem, p. 199.
24
Ibidem, p. 200.
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25
Introdução Crítica ao Direito. Trad. portuguesa. 2ª ed. Lisboa: Ed. Stampa, 1989. p. 21.
26
Loc. cit.
27
Ob. cit., p. 409/410.
28
Ob. cit., p. 65 e ss.
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29
Da Interpretação Jurídica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 10.
30
Instituições de Direito Civil. 21ª ed. atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro, Forense,
2006, vol. I, p. 196.
31
Idem, p. 198.
32
Ibidem, p. 196.
33
Loc. cit.
34
Idem, p. 197.
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35
Ob. cit., p. 414.
36
Loc. cit.
37
Idem, p. 415/417.
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38
Ibidem, p. 420.
39
Apud Miguel Reale, ob. cit., p. 420.
40
Miguel Reale, ob. cit., p. 422.
41
Cf. El n en el Derecho. Tradução espanhola. Granada: Editoria Comares, S.C., 2000.
42
Luiz Fernando Coelho, ob. cit., p. 241.
43
Miguel Reale, ob. cit., p. 427.
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44
No estudo preliminar da magníca obra de Rudolf V. Ihering O Fim do Direito, Prof. José Luis Monereo
Pérez declara que Ihering “se formou na Escola Histórica”, depois “contrapôs a Escola de Jurisprudência
de Interesses à Escola de Jurisprudência dos Conceitos”, após “tratou de conjugar a lógica do ‘sistema’ e
a lógica do ‘problema’, acentuando que 'é função do direito o cumprimento de certos ns', para, ao nal,
dar ‘maior atenção às condições sociológicas do Direito'" (ob. cit., p. X a XII).
45
Luiz Fernando Coelho, ob. cit., p. 241.
46
Idem, p. 245/246.
47
Ibidem, p. 213/214.
48
Ibidem, p. 257.
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49
Ibidem, p. 259 a 270.
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2. Interpretação do Direito
A – Conceito de interpretação
Doutrina o insigne Carlos Maximiliano que “interpretar é explicar, esclarecer,
dar o signicado do vocábulo, mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão”51, daí
por que incumbe, ao intérprete, “examinar o texto em si, o seu sentido, o signicado
de cada vocábulo. Faz depois obra de conjunto; compara-o com outros dispositivos
da mesma lei, e com os de leis diversas, do país ou de fora. Inquire qual o m da
inclusão da regra no texto e examina este tendo em vista o objetivo da lei toda e do
Direito em geral. Determina por esse processo o alcance da norma jurídica e, assim,
realiza, de modo completo, a obra moderna do hermeneuta”52 .
50
Bauru: : Edipro, 2000. p. 174/181.
51
Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 23.
52
Idem, p. 24.
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53
O Direito: Introdução e Teoria Geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978. p. 311 e ss.
54
José de Oliveira Ascensão Ob. cit., p. 311.
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D – Efeitos da interpretação
Da conjugação desses elementos, resulta a ratio legis, o sentido, o espírito, a
razão, o alcance da lei.
Observe-se, entretanto, que:
55
Teoria Tridimensional do Direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 80.
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E – As lacunas da lei
Ao nal de todo esse processo hermenêutico, pode ocorrer que o ordenamento
jurídico não contenha nenhuma previsão, no que se denomina de lacuna da lei,
que é suprida:
3. Aplicação do Direito
Neste artigo, vou valer-me da Lei de Sociedades por Ações (LSA) para discorrer
sobre a “aplicação do direito”.
A – Metodologia
Na interpretação da LSA, deve-se:
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56
Miguel Reale, ob. cit., p. 92.
57
11ª ed. ver. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 285 e ss.
58
Ob. cit., p. 285/287.
59
Idem, p. 287.
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geral podem estabelecer sem atentar contra os direitos essenciais e intangíveis dos
acionistas (cobrança de ágio, pagamento à vista do preço de emissão etc.); (4º) além
de obrigações de cunho econômico, impostas pela lei e pelo estatuto, os acionistas
podem ter seus direitos suspensos se descumprirem deveres legais ou estatutários (art.
115) ou a norma do art. 120, por ser restritiva de direitos, deve sempre ser interpretada
estritissimamente e, em consequência, só o descumprimento de obrigação legal,
estatutária ou decorrente de deliberação assemblear válida enseja a suspensão dos
direitos dos acionistas?
60
Reason and reality in jurisprudence, pub. in: Bualo Law Review, 1958. p. 351 e ss. vol. 7.
61
Anote-se, de pronto, que essa classicação se baseia em um critério genérico e nas oposições radicais
entre as diversas subescolas. Adotamo-la aqui por propiciar desenvolvimento simples, mas escorreito,
do raciocínio. Frise-se, contudo e por oportuno, que, também sob o prisma do “conhecimento quanto à
origem”, a classicação é, por igual, tripartite, pois as escolas, que dele tratam, se dividem em racionalista,
empirista e crítica (o amálgama de ambas), e, outrossim, “quanto à essência do conhecimento”, em que se
bipartem em escola idealista (na qual, como se dá em relação ao racionalismo, a solução dos problemas
é de ordem lógico-conceitual) e realista. Hall faz uma classicação quanto às “estruturas normativas” ou
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“modelos jurídicos”, para usarmos a terminologia de Miguel Reale, in: O Direito como Experiência. 2ª ed.
São Paulo, Saraiva, 1992, p. XXIV.
62
“(...) devemos encarar a história da losoa grega como o processo de racionalização progressiva
da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos. Se o representarmos por uma série de círculos
concêntricos, a partir da exterioridade da periferia para a interioridade do centro, veremos que o processo
pelo qual o pensamento racional toma posse do mundo se realiza na forma de uma penetração progressiva
que vai das esferas exteriores para as mais profundas e interiores, até chegar, com Sócrates e Platão, ao
centro, quer dizer, à alma” (JAEGER, Werner. Paideia. A formação do homem grego, São Paulo, Martins
Fontes, 2001. p. 192).
63
Para os racionalistas, “os juízos, que procedem da razão, possuem necessidade lógica e validade
universal”, são “predominantemente conceituais e dedutivos”, “imperam com absoluta independência
de toda a experiência, seguindo somente suas próprias leis” (HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento.
7ª ed. Coimbra: Arménio Amado Ed., 1980. p. 60/68).
64
No preâmbulo do livro de Hans Kelsen, A Justiça e o Direito Natural, Coimbra, Arménio Amado Ed., 1979,
2ª ed., p. X/XI, lê-se, a propósito “dos critérios puramente formais”: “Kelsen, com efeito, empreendeu uma
vez mais superar o velho complexo de inferioridade da ciência jurídica, fundar o seu caráter cientíco,
determinando-lhe um objeto: as normas jurídicas e as conexões ‘de validade’ entre elas, e xando-lhe
um método especíco: o método normológico, que se caracteriza por fazer abstração do substrato
sociológico do Direito – dos conteúdos ético-jurídicos, político-sociais ou político-econômicos e dos ns dos
preceitos jurídicos –, limitando a incidência da sua visualização àquelas conexões ‘de validade’ e às relações
lógicas entre conceitos fundamentais de natureza formal. Assim, constituída, a ciência jurídica satisfaz aos
postulados da cienticidade, já que opera tão somente com conceitos rigorosamente denidos a partir
de alguns axiomas fundamentais, utilizando o instrumento da lógica formal, e exclui por completo todos
os conceitos indeterminados (isto é, insuscetíveis de denição precisa nos quadros de uma axiomática),
assim como todos os juízos de valor”.
65
“A concepção da ciência como um sistema ‘fechado’ de categorias xas e proposições rigorosamente
axiomatizáveis não passa de uma hipostasiação idealista de uma das etapas, ou antes, de um dos polos,
do pensamento cientíco” (João Batista Machado, na Nota Preambular do livro de Kelsen, ob. cit., p. XXXV).
66
O realismo, em suas principais vertentes – ingênuo, natural e crítico –, sustenta, fundamentalmente,
que há “objetos reais, independente da consciência” (HESSEN, Johannes. Ob. cit. p. 102).
67
Em Roma, dizia-se que ex facto ius oritur.
68
Hall, art.cit., p. 61 e ss.
69
ROSS, Alf. Towards a realistic jurisprudence. Tradução espanhola. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1961, p. 56.
70
ROSS, Alf. ob. cit., p. 11.
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71
Idem, p. 15.
72
FERRAZ JR.,Tercio Sampaio. Conceito de sistema no direito: uma investigação histórica a partir da obra
juslosóca de Emil Lask. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 9.
73
Ob. cit., p. 11.
74
Idem, p. 11/12.
75
SANTOS, Eduardo Sens dos. O novo Código Civil e as cláusulas gerais. Revista de Direito Privado, nº 10,
p. 12, nº 2,12.
76
ARAÚJO, Vandyck Nóbrega de. Ideia de sistema e de ordenamento no direito. Porto Alegre: Fabris, 1986,
p. 47, apud Eduardo Sens dos Santos, art. cit., p. 12.
77
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 277.
78
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Ob. cit., p. 33.
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que ambas se prendem fortemente uma à outra”79, razão pela qual categoricamente
assevera que reduzir o sistema jurídico a um simples “conjunto de proposições e
conceitos formais encadeados segundo os graus de generalidade e especicidade”
implica “desconhecer a pluralidade da realidade empírica imediatamente dada em
relação à simplicação quantitativa e qualitativa dos conceitos gerais”. 80
Em notável síntese da mudança de paradigma, Eduardo Sens dos Santos
elucida, com raro brilho: (...) a noção de direito como sistema fechado passa a ser
duramente criticada à medida que se percebem a ineciência desse autoisolamento
e a inexistência dessa completude e harmonia propostas pelo positivismo. Emil Lask
diz que tal “função desagregante” (no sentido de que o sistema perde sua unidade) se
processa pela absorção de conceitos extrajurídicos, deixando o jurista de se ater a meras
signicações (interpretações exegéticas da lei) em prol de uma busca teleológica pelo
direito material. Em outras palavras, o sistema jurídico passa a ser considerado como
algo concreto, sendo afastada a ideia abstrata de sistema como um todo interligado
pela lógica formal e de caráter matemático: da vertente aristotélica dos silogismos
passa-se à vertente tópica, também de Aristóteles, que privilegia a hermenêutica de
princípios de direito. 81
Claus-Wilhelm Canaris, em seu excelente “Pensamento Sistemático e
Conceito de Sistema na Ciência do Direito”, após discorrer sobre “as qualidades
da ordem e da unidade como características do conceito geral de sistema” e “sua
adequação valorativa”82, trata, em minúcias, com riqueza de detalhes e de maneira
absolutamente brilhante, da “abertura do sistema cientíco”, em que demonstra,
acima de qualquer impugnação ou contestação possível, que o sistema jurídico não
é, nem pode ser fechado, estanque, completo, denitivo, estático, estraticado, mas
natural e necessariamente aberto, em virtude da “incompletude e a provisoriedade do
conhecimento cientíco”83 (grifos do original) e do fato inconteste de ele ser “suscetível
de aperfeiçoamento”84 permanente e incessante.
Juarez Freitas, debruçando-se sobre a teoria de Canaris e, em especial, sobre a
denição de sistema jurídico “como ordem de princípios gerais do Direito”, ensina: (...)
tal formulação, que vê o sistema como ordem axiológica ou teleológica, a partir das
ideias de adequação valorativa e de unidade, atribuindo aos princípios um sentido que
somente se dá numa combinação complementar ou de restrição recíproca, já possui
as seguintes principais vantagens: (a) salienta, no trato de temas como antinomias, a
função do sistema como sendo a de traduzir coerência valorativa, impedindo uma
abordagem meramente formal; (b) evita a crença exacerbada na completude fechada
e autossuciente do sistema, permitindo pensar a completude e a coerência como
processos abertos; (c) resguarda o papel da interpretação sistemática, pois tal abertura
79
Apud Tercio Sampaio Ferraz Jr., loc. cit.
80
Apud Eduardo Sens dos Santos, art. cit., p. 13.
81
Idem, p. 14.
82
Tradução de CORDEIRO, A. Menezes. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 9/102.
83
Ob. cit., p. 106.
84
Idem, p. 107.
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não contradita (antes pelo contrário) a exigência de ordem e de unidade interna; (d) realça
o papel decisivo da interpretação bem ponderada, em virtude do manejo concertado
de princípios no bojo do sistema jurídico, tomado e concebido em sua dinamicidade85.
Por isso, o direito contemporâneo reclama e exige normas intencionalmente
indeterminadas, vagas, imprecisas, elásticas, móveis, peculiares ao sistema aberto, que
propiciem, ao intérprete e ao juiz, operarem com discricionariedade em função do
caso concreto, em que levarão em conta: (a) os atos humanos e os fatos econômicos,
sociais e políticos inerentes à hipótese sub examine; (b) conceitos extrajurídicos
oriundos das ciências sociais; (c) conceitos jurídicos indeterminados86; e (d) cláusulas
gerais, todos em íntima conexão ou, como pontica Miguel Reale, todos numa relação
de complementariedade, e não conceitos jurídicos puros.
85
A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 39/40.
86
A doutrina moderna cunhou as expressões “conceito jurídico indeterminado” e “cláusulas gerais”. Por
“conceito indeterminado”, diz Karl Engisch, “entendemos um conceito cujo conteúdo e extensão são em
larga medida incertos”, in: Introdução ao pensamento jurídico. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1983, p. 228. Ainda para Karl Engisch, “o conceito multissignicativo de ‘cláusula geral’ contrapõe-se a
uma elaboração ‘casuística’ das hipóteses legais” (Ibidem, p. 229) (sobre cláusulas gerais, vide nos 12 e ss.
infra). Do estudo Regras da experiência e conceitos jurídicos indeterminados, Revista Forense, 1978, vol. 74,
nº 261, p. 16, de José Carlos Barbosa Moreira, depreende-se que os “conceitos jurídicos indeterminados”
distinguem-se das “cláusulas gerais” por possuírem grau de generalidade menor. Enquanto as cláusulas
gerais são normas absolutamente abertas, nas quais o legislador não dene o conteúdo ou tampouco
as consequências de sua inobservância, trabalho que cabe ao juiz, os conceitos jurídicos indeterminados
dependem, apenas, do preenchimento, em concreto, de seu signicado, encontrando-se a sanção ao
descumprimento da norma previamente prevista na própria lei.
87
Nessa época, imenso era o prestígio da escola da exegese e a da jurisprudência dos conceitos.
88
PÉREZ, José Luis Monereo. Estudio Preliminar: El pensamiento jurídico de Ihering y la dimensión funcional
del Derecho, in: El n en el Derecho, por Rudolf V. Ihering. Granada: Ed. Comares, 2000, p. XI.
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89
Ob. cit., p. XVI.
90
El Espírito del Derecho Romano. Granada: Ed. Comares, 1998, vol. III, tit. III, sec. 2ª, p. 641.
91
Rudolf V. Ihering, ob. e vol. cits., p. 523.
92
Ob. cit., p. 228.
93
Idem, p. 229.
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94
Uma reexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002 – a função social do contrato. Revista
dos Tribunais, jan. 2005, vol. 94, nº 831, p. 59/60.
95
Art. cit., p. 60/61.
96
“A interpretação dos conceitos vagos vem adquirindo cada vez mais importância no mundo
contemporâneo porque o uso destes conceitos, como já observamos, consiste numa técnica legislativa
marcadamente afeiçoada à realidade em que hoje vivemos, que se caracteriza justamente pela sua
instabilidade, pela imensa velocidade com que acontecem os fatos, com que se transmitem informações,
se alteram ‘verdades’ sociais” (Idem, p. 61).
97
A doutrina, pátria e alienígena, arrola como cláusulas gerais, v.g., “a boa-fé” (Judith Martins-Costa, ob.
cit., p. 287); “culpa” e “delito” (Ibidem, p. 301); “uso abusivo de direito”, “usos do tráco jurídico” (Idem,
As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Revista dos Tribunais, vol. 81, nº 680,
jun. 1992, p. 50); “bons costumes” (Claus-Wilhelm Canaris, ob. cit., p. 123/124); “função social” (WAMBIER,
Tereza Arruda Alvim. Art. cit., p. 61); “ordem pública” (CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo
legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 196,
nota 2); “justa medida” (Ibidem, p. 198); “diligência” (PERLINGIERI, Pietro. Pers do direito civil: introdução
ao direito civil constitucional, Trad.: CICCO, Maria Cristina de. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 27/28, apud
Eduardo Sens dos Santos, art. cit., p. 18, nota 35); “responsabilidade civil subjetiva” (GONDINHO, André
Osório. Codicação e cláusulas gerais. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 1, nº 2, abr./jun. 2000, p. 22);
“enriquecimento ilícito”, “lesão enorme” (AGUIAR JR., Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização
das cláusulas gerais: limite e responsabilidade. Revista de Direito Renovar, vol. 18, set./dez. 2000, p. 13) etc.
98
Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios
de ponderação, in: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, t. III, p. 82.
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