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etnografias da materialidade
e da transformação
sobre a produção de miríades de ‘artefatos’ – trans Ao reunir, em sua maioria, etnografias sobre o
sobre os organizadores:
etnografias da materialidade
e da transformação
2022 Olívia Gomes da Cunha e Carlos Gomes de Castro
CDD: 301
www.editora.ufrj.br www.facebook.com/editora.ufrj
Introdução 7
Olívia Gomes da Cunha e Carlos Gomes de Castro
10. “Minha saia cheia de flores me liga com meu território”: 365
o jongo na perspectiva dos estudos de cultura material
Carla Guerrón Montero
Epílogo 505
Amir Geiger
com uma delas, Joana, o uso habitual do termo brujos remetia a um modo
popular de referir-se a quem possuía dons espirituais como ela.1
As narrativas etnográficas demonstrarão, especialmente, como a com-
preensão da “bruxaria” esteve associada a questões de ordem pessoal e
familiar.2 Ao descrever as técnicas e categorias rituais empregadas para
“afastar as coisas más” e outros espíritos, como mortos familiares, em
situações que me foram relatadas como uma espécie de “zona de com-
bate” (Palmié, 2002, p. 188), procuro ressaltar que a experiência de ser alvo
de “bruxaria” (e de “danos” causados por outros espíritos diferentes das
“coisas más”) se articulou à imigração ilegal, ao afastamento dos vínculos
familiares na República Dominicana e à formação de novos relacionamen-
tos em Porto Rico, ou seja, a algo no universo social em que as pessoas
viviam, tal como ressaltou Asad (1983, p. 249) na reflexão crítica sobre a
noção de “experiência religiosa” em Clifford Geertz. A partir dessa rede
de relações pessoais e familiares recriada entre as duas ilhas caribenhas,
foram produzidas experiências marcadas pela perturbação corporal e pela
instabilidade emocional (inclusive dentro das casas) para as quais concor-
reram formas diversas de relacionalidade (Carsten, 2000).
Entretanto, não pretendo explicar um fato mobilizando outro, ou seja,
demonstrar a compreensão da “bruxaria” para minhas interlocutoras como
reflexo das condições sociais – leia-se, da imigração ilegal e das dificulda-
des e complexidades que moldam suas vidas. O que constitui o cotidiano
das pessoas da República Dominicana com as quais fiz trabalho de campo,
como defendeu Olivier de Sardan (1992, p. 11-12),3 não me permite falar em
1 O que não retira a ambiguidade de certas práticas realizadas pelas pessoas que “têm
os mistérios” (dons espirituais), aproximando-as do que é chamado de “bruxaria”: causar
“dano” a alguém.
2 Cf. Richman (2008 [2005], p. 76, 207-208), para uma discussão sobre imigração e maladi
mounn, os malefícios causados pelas pessoas, entre haitianos que viviam nos Estados Unidos
e seus familiares no Haiti. Richman traduziu maladi mounn como “sorcery” [feitiçaria].
3 Em sua discussão sobre o caráter rotineiro das situações “mágico-religiosas” entre po-
vos africanos e a sua exotização pelos antropólogos, Olivier de Sardan (1992) examinou
tanto as abordagens positivistas e clássicas quanto as pós-modernas e as que chama de
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4 A partir dos anos 1990, etnografias sobre modalidades de “bruxaria” na África salienta-
ram que a mercantilização de espíritos humanos, como trabalhadores forçados em outros
domínios do cosmo, e o roubo da vitalidade orgânica dos seres humanos, especialmente
através da comercialização de seu sangue, para o enriquecimento ilícito de “bruxos” seriam
comentários críticos às transformações globais seculares e contemporâneas no continente:
ao deslocamento forçado; à precariedade do trabalho urbano assalariado (sobretudo o mi-
grante); ao imperativo da venda e do consumo massivo de produtos de alta tecnologia e de
bens menos duráveis segundo uma lógica de obtenção máxima de lucro; à expansão con-
centrada e elitista de infraestrutura e serviços urbanos, entre outras (Comaroff; Comaroff,
1999; Geschiere, 2006; Shaw, 1997; Weiss, 1998).
6 Cf. Olivier de Sardan (1992, p. 14), Palmié (2002, p. 203-205), Pels (2003, p. 6, 12-14), Paton,
2009 (p. 2-3) e Romberg (2003, p. 7).
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7 Paton (2015, p. 23-24), em uma análise sobre a criminalização do obeah, destacou a relevân-
cia das substâncias físicas no ataque espiritual. Dependendo do contexto ritual no qual eram
consumidas, tocadas ou apenas colocadas próximas a uma pessoa, tais substâncias poderiam
ter efeitos poderosos. Para Paton (2009, p. 4), reivindicar que o obeah é um constructo das leis
coloniais britânicas no chamado “Caribe Anglófono” não significa dizer que a prática tenha
existido apenas dentro do controle jurídico metropolitano. A autora argumentou que o obeah
foi produzido através de um diálogo desigual entre uma ampla cadeia de atores (especialistas
rituais, pessoas pobres e em conflito, membros de igrejas, oficiais coloniais, missionários e
membros da elite caribenha), em redes de troca com pessoas e grupos nos Estados Unidos,
na Grã-Bretanha, em ilhas do Caribe e, em menor extensão, na África Ocidental.
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neutra e imune ao que ali se passa. Não reivindico o que Olivier de Sardan
(1992, p. 19) chamou de “centrismo do eu etnográfico”. Proponho, sim, que
as relações diferenciadas estudadas pela antropologia como um pressu-
posto e das quais os(as) antropólogos(as) estariam apartados(as) podem
constituir uma imagem que não corresponde à maneira pela qual os inter-
locutores nos veem e nos localizam em seus modos de vida.
8 Cf. Taussig (1993a [1987], p. 153, 157, 159, 164-165) para descrições sobre curas xamânicas
combinadas ao culto de santos católicos e de espíritos de mortos para afastar os malefícios
da “magia”.
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fazia aquilo, mas ela não me respondeu. Voltamos à cozinha e ela pôs as
plantas que havia trazido da botânica em um recipiente com água, levando-
-as depois para ferver. Começou, então, a fazer um “remédio” contra gripe
que seria armazenado em garrafas, a pedido de um amigo e de um parente
cuja filha estava enferma. Ao mesmo tempo, Rosa falava ao telefone com
familiares na República Dominicana sobre os problemas do seu primo
Julio – o “banho” que estava sendo preparado seria para ele.
Ao telefone, ela informava que Julio e outro primo “tinham espíritos
na casa” e que “os espíritos queriam matá-los”. Na conversa, Rosa fazia
referência a uma mulher haitiana e a um lugar em Santo Domingo (nome
da capital do país, mas que os dominicanos empregam de forma genérica
para qualquer cidade da República Dominicana) onde “bruxas faziam tra-
balhos” (e Julio poderia ter sido alvo delas). Depois que Rosa encerrou a
chamada telefônica, aproveitei a situação em que nos encontrávamos e
lhe perguntei com quem ela havia aprendido a preparar o remédio e os
banhos. Ela sabia preparar as garrafas porque tinha observado sua mãe
realizar a tarefa, mas começou a executá-la sozinha; já os banhos, ela
aprendera sem observar ninguém, pois sua mãe “não gostava daquelas
coisas”. Para Rosa, um saber do tipo que detinha se desenvolvia “quando
as pessoas nasciam com aqueles dons” (quando tinham os mistérios). Eu
a ajudava a cortar as plantas para a preparação das garrafas, quando seu
telefone voltou a tocar. Alguém estava na Plaza e queria conversar com ela.
Regressamos, então, à botânica e, alguns minutos depois, chegou Pablo,
também seu primo, com a companheira.
Eles já haviam estado ali outras vezes e, em uma dessas idas, haviam
passado um bom tempo no interior da botânica conversando com Rosa. Na
ocasião, a moça estava enfrentando alguma dificuldade onde trabalhava.
Depois de ouvi-los, Rosa indicou que comprassem, entre outras coisas,
água florida, tabletes de cânfora, algumas plantas (como arruda), águas
espirituais, benzina, incenso e uma vela grande de São Miguel. Em seguida
explicou-lhes: primeiro, a moça deveria “limpar seu corpo com um banho”
e, depois, acender a vela “em nome do santo”. Simultaneamente, deveria
espalhar com a mão direita pela casa um produto que me pareceu uma
espécie de açúcar, cujo rótulo indicava “7 Potências Africanas”. Além disso,
197
9 Em geral, as soluções vendidas como banhos e despojos têm em sua fórmula alguma
quantidade de amônia informada no rótulo.
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com três dentes de alho amarrados em uma linha branca para o primo
prender em seu pulso e um outro para guardar na carteira.
Na manhã seguinte, enquanto nós duas estávamos na botânica, con-
versei com Rosa acerca do que ela vinha fazendo com Julio. Ela me ex-
plicou que “aquilo era como um medicamento”, porque se eu estivesse
“enferma”, buscaria o medicamento: “Se tu tens uma dor de cabeça, o que
vais tomar?”. No caso de Julio, o que ela havia preparado era “um banho
para retirar as coisas más”. Contudo, além do banho, Julio também preci-
saria ser untado; ele teria que voltar à casa de Rosa para tomar o terceiro
e último banho, mas não foi até lá como vinha fazendo. À noite, enquanto
o esperava, a família se reuniu, e novos comentários surgiram a respeito
do primo. Eles acreditavam, agora, que poderiam ter sido os próprios pa-
rentes de Julio na República Dominicana que fizeram um “trabalho de
bruxaria” para que ele regressasse.
Só vi Julio novamente depois de alguns dias, num sábado. Ele foi até a
Plaza del Mercado de Río Piedras para ajudar Rosa com as vendas das ver-
duras e frutas dos quiosques que ela arrendava, além da botânica. Quando
retornei a Porto Rico pela segunda vez para dar continuidade ao trabalho
de campo, depois de cerca de quatro meses, Julio não vivia mais na ilha.
Havia viajado para Nova York, onde passou a residir. Sua companheira e
filha permaneciam em Río Piedras.
Joana consultava os mistérios por meio das cartas, fazia “receitas” para os
clientes com base nessa relação espiritual e vendia artigos rituais (Cruz,
2016). Diferentemente de Rosa, Joana não arrendava a loja, cuja dona era
outra senhora, também dominicana.
O fato de passar cerca de oito horas por dia ali – onde mistérios “che-
gavam” para se comunicar com Joana e clientes entravam à procura de so-
lução para problemas diversos (incluindo a possibilidade de serem objeto
de “bruxaria”) para os quais ela fazia “trabalhos espirituais” – e, depois,
retornar para a casa de Rosa tornava-me uma pessoa que, para ela e sua
família, poderia estar sujeita às mesmas relações que hipoteticamente eu
deveria apenas registrar, descrever e compreender. Em um fim de tarde,
depois de um dia de trabalho de campo com Joana, regressei à casa. Rosa
e Diogo (seu marido) sentiram cheiro de tabaco, cujos resíduos impreg-
navam minha roupa e bolsa. Perguntaram-me se a senhora da outra botâ-
nica usava tabaco, substância importante tanto na invocação dos mistérios
quanto na confecção dos trabalhos espirituais. Respondi afirmativamente,
e ambos se entreolharam.
Nos dias subsequentes, alguns acontecimentos causaram prejuízo eco-
nômico à família. Diogo batera com o carro que utilizava para se locomo-
ver pela ilha quando era chamado para trabalhar em obras e consertos
domésticos. Logo depois, em um espaço de tempo muito curto, usuários
de drogas (chamados de los tecatos), que eram presença constante nas ruas
de Río Piedras, por onde circulavam injetando-se substâncias ilícitas e
vendendo desde mercadorias de lojas a quinquilharias, teriam entrado
na garagem da casa e roubado algumas ferramentas de Diogo enquanto
eu estava em seu interior. Era uma manhã e me preparava para sair. Ao
final do dia, quando regressei do trabalho de campo, Diogo me perguntou
se eu havia escutado mais cedo algum barulho na garagem. Disse-lhe que
não, e em seguida Rosa me contou sobre o roubo. Com um comentário
conciso para Rosa – “Ela circula muito pelas botânicas, pelos altares...” –,
Diogo me fez perceber que, do ponto de vista da família, eu poderia estar
levando para dentro da casa muito mais do que, para mim, eram resíduos
de tabaco em minhas roupas e objetos pessoais. Outros acontecimentos
ainda mais graves se seguiram envolvendo parentes da família em Porto
202
embora, Joana nos revelou que a jovem já havia estado ali e que em seguida
havia procurado um santero,12 cuja consulta não a teria agradado. Como
havia gostado do primeiro encontro com Joana, decidira voltar. Segundo
minha interlocutora, há quem jogue as cartas e, ao saber que o cliente fora
alvo de “bruxaria”, o desespera, dizendo-lhe: “Olha, tem um morto atrás de
você, te fizeram bruxaria”. “Eu prefiro orientar a pessoa e não desesperá-
-la” – afirmou. E prosseguiu: uma pessoa podia atrair um morto para perto
de si apenas andando na rua ou tornar-se alvo de uma “bruxaria se pisasse
em algum pó” colocado na calçada para prejudicar alguém. Em Porto Rico,
observou, seria ainda pior, pois ali não havia o costume de se rezar pelos
mortos, realizando-se missas e cerimônias na casa da pessoa falecida, com
a presença de um padre e de familiares, amigos e vizinhos, em que são
feitas orações e se oferece comida aos convidados: “Os mortos precisam de
claridade e orações”, concluiu Joana. A dona da botânica, então, comentou:
“Os mortos gostam de coisas boas, carros, mulheres bonitas”, e rondariam
aqueles que têm tudo isso. “Os mortos são ambulantes”, sintetizou para,
em seguida, completar: “Há mortos que não querem sair de casa”. Ao ouvir
esses comentários, Joana começou a me contar o que havia acontecido
com o seu marido depois que falecera, ou melhor, o que havia ocorrido
com o espírito dele, depois do suicídio.
12 Sacerdote das práticas rituais das reglas de ocha, de matriz yorubá, chamadas também
de lucumí em Cuba e de santería em Porto Rico.
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13 Segundo Ochoa (2004, p. 94), fula, no palo kikongo atual (língua ritual utilizada nas reglas
del palo, conhecido em Cuba como “palo monte”, uma de suas vertentes), significa “pólvora”,
que é importante no ofício religioso. O autor aponta que fula não tem nenhuma etimologia
no espanhol e explica que a pólvora é “quente” não apenas em termos de temperatura,
quando é acesa, mas também porque sua venda e posse são proibidas em Cuba e, por isso,
ali se adquire pólvora pelo roubo. Rodolfo, interlocutor de Ochoa, usava fula para “pólvora”
e para se referir ao dólar americano. Joana, enquanto vivia em La Romana, trabalhava ri-
tualmente com alguns espíritos petroses (considerados impetuosos e agressivos), e comentou
algumas vezes comigo que usava pólvora para afastar as “coisas más” da casa de clientes,
em função de seu som explosivo. A concepção de que essas entidades também são mais
quentes (calientes) perpassa o emprego da pólvora na invocação ritual dos espíritos petroses.
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que fazia quando perdia o sono. Como em outras noites, escutou um ba-
rulho que vinha da rua, um som que sempre lhe parecia o de uma “cadela
com correntes”. Joana já havia contado ao marido sobre os sons que ouvia
nas madrugadas, ele lhe dizia que se tratava de um bacá e que, por isso,
ela deveria deixar para lá.
Mas, naquela noite, sentada sobre o reservatório de água do terraço,
Joana não ouviu apenas o tal barulho. De longe, viu também um cão an-
dando na rua. O “cachorro com as correntes”, à medida que se aproximava,
“transformava-se em um touro”, acompanhado por vários filhotes de cães.
Sem encarar o animal, ela começou a rezar alguns salmos da Bíblia. Depois
disso, segundo seu relato, um vizinho se suicidou. O homem era proprietá-
rio de um negócio e teria comprado um bacá. Ele teria feito uma tentativa
malsucedida de matar a esposa e um dos filhos. Por fim, acabou com a
própria vida. Joana concluiu:
14 Ainda que seja formada por uma maioria negra e compartilhe com o Haiti a ilha de
Hispaniola, a população dominicana (mas também o Estado dominicano) historicamente
assume visões e posicionamentos racistas e discriminatórios em relação às pessoas do país
vizinho. Tanto o comentário de Joana quanto o de Rosa, anteriormente, têm esse sentido
quando associam a “bruxaria” e a compra de bacá ao Haiti.
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15 “Batizar” aqui se refere ao ato cerimonial necessário para habilitar uma pessoa ao con-
trole dos espíritos e ao início das consultas espirituais.
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16 As “coisas más” podem ser descritas apenas como espíritos invisíveis, o que nos per-
mite considerá-las uma forma espectral bem mais difusa e desconhecida do que somente
espíritos de mortos humanos.
17 Sobre o modo de trabalhar dos paleros, Palmié (2002) nota que, no palo monte, a apro-
priação deliberada de substâncias metonimicamente conectadas com a individualidade de
um morto humano, como a extração de crânios, ossos e seus fragmentos ou apenas de terra
do cemitério, é descrita como roubo. Assim, acredita-se que o espírito se move à procura
de seus restos mortais, que ainda subsistem. No entanto, para que a captura do espírito seja
bem-sucedida, é importante atraí-lo, através de cantos e da oferta de bebida alcoólica e outras
substâncias, para perto de seus restos mortais. Em seguida, e dispondo-se o espírito a estabe-
lecer relações de serviço com sua contraparte humana – o que se confirma com um oráculo
de pólvora –, algumas moedas são depositadas no local onde se extraíram os materiais asso-
ciados ao espírito, representando seu pagamento (Palmié, 2002, p. 172-173 apud Cruz, 2014).
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18 Embora em alguns dos relatos reproduzidos por Long substâncias como a amônia pos-
sam servir tanto para a proteção como para a preparação de um “trabalho prejudicial” (bad
work) (Long, 2001, p. 59), a primeira forma de uso se associa às descrições que Rosa me ofere-
ceu anteriormente. A autora ressalta que “encanto” é um termo europeu cujo emprego é raro
nos “sistemas de crença de origem africana”. Long afirma que faz uso dessa noção como uma
designação genérica para os muitos nomes pelos quais tais artefatos são chamados (p. xvi).
Rosa interveio nos problemas que acometeram Julio, seu primo, mobi-
lizando conhecimentos sobre plantas e substâncias químicas, seu “dom”
espiritual. Invocou seus mistérios quando amarrou um pañuleo à cabeça
e acendeu as velas, que dispôs no chão de sua sala de estar, antes de co-
meçar a cuidar do parente com banhos; além disso, confeccionou-lhe res-
guardos com alho e untou seu corpo. A radicalidade do caráter invasor e
perturbador – algo a que os mistérios, como espíritos herdados, não estão
completamente isentos (Cruz, 2014) –, atribuído aos diversos trânsitos e
contatos dos espíritos de mortos com os vivos, era mais ou menos contida
com técnicas que buscavam o afastamento temporário desses espíritos e
seu controle relativo. Combinando plantas e substâncias químicas de sabor
e cheiro amargos, Rosa pretendeu intervir sobre as “coisas más” e outros
espíritos indesejados, como fez também Joana em relação ao seu marido
falecido em La Romana. As sensações de incômodo, ardência e irritação
criadas por esses materiais (plantas amargas, água de amônia, benzina,
enxofre, pólvora) sobre os corpos humanos e os espíritos de mortos fariam
com que estes últimos se deslocassem pelo menos provisoriamente.
Como discuti em outro momento (Cruz, 2016), também nas práticas
e “receitas” que visam a “afastar as coisas más” ganhavam importância
certas técnicas de produção de sensibilidades com o intuito de se obterem
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21 Para uma análise semelhante aplicada a Serra Leoa, cf. Shaw (2002, p. 58-59).
23 Um dos argumentos de Palmié (2002, p. 177, 187) sobre as ngangas criadas pelos paleros
é o de que elas poderiam informar sobre certas experiências históricas em Cuba no final
do século XIX. Conforme o autor, através de uma nganga era possível enviar espíritos ao
território inimigo para revelarem a base de seu poderio. O autor chega a essa conclusão
ao analisar narrativas de jornais de época sobre práticas e objetos rituais semelhantes às
ngangas encontrados na manigua cubana (campo rebelde negro em conflito com tropas
espanholas). Esses objetos rituais poderiam também controlar a subjetividade de uma pes-
soa, privando-a dessa qualidade, como apontou um relato extraído da autobiografia de um
antigo escravizado sobre pessoas que viviam nessa condição em uma plantation cubana e que
estavam engajadas em uma espécie de guerra mística contra os abusos de seu proprietário.
214
Ruas, chão, casas, lojas, cemitérios e os elementos que fazem parte dessa
espacialidade (pedras, terra e restos mortais) compõem essa ambiência,
assim como vários espíritos e os próprios seres humanos, o que não signi-
fica que tudo isso seja equivalente, embora haja, entre eles, movimento,
trânsito e efeitos sensíveis compartilhados. “Afastar” e “espantar”, por meio
da ativação de odores acres, seres que “estão por aí” e que foram enviados
por “bruxaria” não impedem a objetificação de espíritos via imitação do
que foram em vida, com o uso de outros materiais e substâncias, como
fez Joana. Isso me leva a considerar o equívoco de supor que as relações
diferenciadas das pessoas com as entidades diversas que compõem seu
mundo precisariam se enquadrar nos modelos teóricos oferecidos pelas
abordagens antropológicas, como se as pessoas precisassem fazer uma
escolha da mesma natureza daquela que fazemos quando apresentamos
as nossas pesquisas: “objetificação”, de um lado; “imanência”, de outro
(Ochoa, 2004, 2010).
Não apenas Palmié (2002, 2006), mas também Richman (2008, p. 163-
164), em sua etnografia sobre o vodu haitiano, discutiu formas de objeti-
ficação que envolviam a criação de um vínculo “contratual”, de serviço e
pagamento, e que tangenciavam, às vezes, o risco de a contraparte humana
ver-se sucumbida pela espiritual, semelhante às narrativas de Joana sobre
as situações ligadas ao bacá. Hurston (1931, p. 321), em sua pesquisa nas
Bahamas, descreveu uma narrativa parecida com a de Joana, em que a
busca por riqueza – a autora citou “prosperidade” e “poder” – levaria co-
merciantes e políticos a procurarem obeah e, depois, a terem de oferecer
como sacrifício humano pessoas próximas e familiares, o que culminaria
com o oferecimento da própria vida. No relato de Hurston e, com mais de-
talhes, no de Joana, as narrativas sobre o bacá apontam para o que Taussig
(1993a [1983], p. 126) chamou de “espaço da morte” criado pelos rumores
e registros coloniais na região de Putamayo (Colômbia), que instauraram
uma “cultura do terror” com a exploração da borracha e dos indígenas
pelas empresas estrangeiras. Em La Romana, casa, espaços comerciais
(firmas, fazendas e lojas) e relações diferenciadas (vínculos familiares e
de vizinhança, relações mercantilizadas, riqueza, pagamento e predação),
mediados por práticas e objetos rituais, foram associados a um registro de
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