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Editora do Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-

Amazônicas
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

N234
Narrativas literárias: ensaios críticos e tradução cultural / organização
Francisco Bento da Silva, Maria de Fátima Nascimento, Tatiana da Silva
Capaverde. – Rio Branco: Nepan Editora, 2020.
204 p.: il. – (Série: Intercâmbios Amazônicos, v.3).
Inclui referencias bibliográficas.
E-book no formato PDF.
ISBN: 978-65-89135-26-5
1. Narrativas. 2. Literatura. 3. Amazônia – Literatura. I. Silva, Francisco
Bento da. II. Nascimento, Maria de Fátima. III. Capaverde, Tatiana da Silva.
VI. Título. V. Série.
CDD 22. ed. 801

Bibliotecária Maria do Socorro de O. Cordeiro – CRB 11/667


Sumário
Diferentes percursos pelas águas literárias amazônicas 7
Francisco Bento da Silva, Maria de Fátima do Nascimento, Tatiana da Silva Capaverde

A identidade das mulheres-peixe de Fernando Canto e a


cultura amazônica em memórias e incompletudes 14
Carla Patrícia Ribeiro Nobre

Geopoesia das águas do centroeste-norte: etnoflâneries e


enfronteiramentos em José Godoy garcia e Milton Hatoum 37
Augusto Rodrigues da Silva Junior

Impressões do colonizador sobre os indígenas Bora e


Uitoto em O Noroeste Amazônico 64
Joseneide Brasil de Carvalho, Luciele Santos Pantoja

Numa e Ninfa - o Acre e a República em Lima Barreto:


política, representações e história na literatura 83
Francisco Bento da Silva

O aviltamento da mulher indígena em a caligrafia de deus


de Márcio Souza 102
Bruna Wagner

O Marabaixo lê a cidade: espaço e resistência em Aonde tu vais, rapaz? 130


Yurgel Pantoja Caldas, Kerllyo Barbosa Maciel

Trabalho infanto-juvenil: entre a obra Dois Irmãos de


Milton Hatoum e a atualidade amazônica 159
Júlio César Barreto Rocha, Nádia Nelziza Lovera de Florentino, Aldízio Francisco Lira

Uma leitura de Entre guerras e fronteiras em Limiares: um


(não) livro dos (des)acontecimentos 181
Suerda Mara Monteiro Vital Lima

Sobre autores e autoras 200


DIFERENTES PERCURSOS PELAS ÁGUAS
LITERÁRIAS AMAZÔNICAS

E ste livro, intitulado Narrativas literárias, ensaios críticos e tradução


cultural, faz parte da série Intercâmbios Amazônicos, que em seus
três volumes trazem um conjunto variado de textos, temáticas e autorias.
Quase todos capítulos presentes nos três volumes derivam de trabalhos
apresentados nos diversos Simpósios Temáticos do evento intitulado XIV
LIA - Congresso Linguagens e Identidades Amazônicas, organizado pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade – PPGLI/
UFAC e que ocorreu de forma virtual em novembro de 2020.  
O nome da série que congrega os três volumes já aponta para a
ideia de trocas, compartilhamentos e relações estabelecidas mesmo antes
do referido evento. Esses intercâmbios já vinham sendo realizados entre
docentes e discentes e entre os próprios Programas de Pós Graduação em
Letras da região Norte do Brasil, principalmente na sua porção amazôni-
ca, mas que foram se intensificando mais recentemente com a criação da
Rede de Cooperação Amazônica.
Neste volume trazemos oito capítulos escritos por pesquisadores e
pesquisadoras que dialogam com produções literárias de autores nasci-
dos nas múltiplas Amazônias brasileiras ou que de alguma forma a ela se
referem em seus escritos que transitam com questões de gênero, culturas
indígenas e afro-brasileiras, aspectos políticos da república e temáticas de
repercussão global na contemporaneidade. São essas múltiplas dimensões
de assuntos, de abordagens e de análises teóricas que os leitores e leitoras
encontrarão nesta obra em particular e nas demais que compõem os ou-
tros dois volumes.  
Nesta breve apresentação, procuramos sintetizar os percursos e as
abordagens que situam cada um dos capítulos presentes neste volume da
obra por nós organizada. É um cartão de visitas em que intentamos atrair
leitores e leitoras para o primeiro contato com o livro, para que cada um/
uma adentre pela porta que desejar para iniciar sua leitura.      
Iniciamos com o texto de Carla Patrícia Ribeiro Nobre intitulado
A identidade das mulheres-peixe de Fernando Canto e a cultura amazônica em
memórias e incompletudes, que busca fazer uma análise do conto As mulheres-
-peixe do meu garimpo publicado em Mama Guga – contos amazônicos (2017)
por Fernando Canto, apontando na figura das mulheres-peixes a personi-
ficação da naturalização do mítico e do fantástico na cultura amazônica.
A obra é contextualizada entre as manifestações literárias da região Norte,
tendo como cenário o cotidiano dos moradores, a exploração de garimpo
e a cultura das águas, apontando a presença no texto dos valores culturais
e simbólicos amazônicos. 
Em Augusto Rodrigues da Silva Junior, no seu texto Geopoesia das
águas do centroeste-norte: etnoflâneries e enfronteiramentos em José Godoy Garcia
e Milton Hatoum, este autor nos traz uma rica contribuição acerca da po-
esia gestada no Centro-Oeste dos cerrados e pantanais, em contato com
a fauna, a flora, as águas e com as múltiplas fronteiras culturais ali exis-
tentes. A partir das viagens reais e imaginárias e da própria construção
textual do autor, temos um amplo panorama que envolve esses múltiplos
espectros. Um texto recheado de neologismos, linguagens re-compostas,
vivências e imaginações de quem palmilha com os pés, os olhos e a mente
os lugares que vão brotando na escrita da sua geopoesia. Ficção e o real são
instância de relações mutuais, complexas e não excludentes no texto de
Silva Júnior. Texto embasado em poesias e memórias que vão brotando do
solo e dos ares, da mente e do corpo sensível no contato dele e de outros
com o mundo físico e sensorial. Vindo desse mundo dos poemas, o autor
advoga uma literatura ecológica e dos campos, que dialogue com as natu-
rezas dos lugares do centro do Brasil, principalmente o Pantanal e o Cer-

Sumário
rado, biomas tão atacados recentemente pela sanha do fogo que consumiu
parte significativa suas ricas biodiversidades. É um manifesto humanista
pela necessidade se olhar mais para uma literatura que seja polifônica,
que busque outras nascentes que possibilitem brotar águas diferentes e
renovadoras. O texto é também um manifesto, de uma voz levantada lon-
ge das águas salgadas dos mares da costa, muito mais próxima das águas
doces e (algumas ainda) cristalinas dos rios e igarapés do meio do Brasil.
No diálogo aberto, de fronteiras que se rompem e se reorganizam continu-
amente, o autor chega até a Amazônia de Milton Hatoum e o aproxima
dessa poesia da terra dos cerrados, numa geopoesiacompósita e rizomática.
O texto de Joseneide Brasil de Carvalho e Luciele Santos Pantoja
intitulado Impressões do colonizador sobre os indígenas Bora e Uitoto em O Noro-
este Amazônico trará uma análise da da visão eurocêntrica aplicada à figura
dos indígenas presentes na narrativa de viagem de Thomas Whiffen, O
Noroeste Amazônico (2019), tradução da obra originalmente publicada sob
o título The north-west Amazons: notes of some months spent among cannibal in-
dians. As autoras buscam elencar exemplos presentes no vigésimo capítulo
da obra de descrições em que o autor utiliza como critério comparativo
valores distantes da realidade local retratada. O trabalho não deixa de va-
lorizar a importância do trabalho etnográfico realizado pelo viajante, mas
salienta a presença de juízos de valores presentes na obra que indicam o
período histórico colonial e a concepção de sociedade que possuía como
pilar a noção patriótica e religiosa. 
O capítulo de livro intitulado “Numa e a Ninfa - o Acre e a Repúbli-
ca em Lima Barreto: política, representações e história na literatura”, de
Francisco Bento da Silva, discute a obra literária Numa e a Ninfa (1915), de
Lima Barreto, importante romancista da Literatura Brasileira do Século
XX, que não mediu esforços para retratar as mazelas do Brasil em suas
obras literárias. O professor de história Francisco Bento da Silva demons-
tra, em seu estudo, as semelhanças existentes entre o referido romance e
o contexto histórico a respeito da história do Território Federal do Acre,
bem como questões políticas e sociais da Primeira República no Brasil.
Francisco Bento da Silva faz um estudo das obras críticas de estudiosos do

Sumário
romance de Lima Barreto e de estudiosos da história do Brasil, a exem-
plo de Lilia Moritz Schwarcz, Carlos Henrique Gileno, Antonio Candido,
Sérgio Buarque de Holanda e Boris Fausto, para destacar as referidas se-
melhanças entre História e ficção. Por meio de excertos do romance Numa
e a Ninfa, o estudioso comprova as experiências das personagens vividas
no Rio de Janeiro e no Acre, em que afloram os preconceitos de tais per-
sonagens do romance em estudo, contra os menos favorecidos econômica
e politicamente, principalmente os povos do Norte do Brasil, em especial
os do Território do Acre. Tais preconceitos eram vividos e expostos pela
sociedade brasileira no período da história narrada no romance. O referi-
do estudioso reconhece que a história narrada no romance Numa e a Ninfa
é sublimada, mas a história da vida política e social brasileira é contada de
forma sarcástica por Lima Barreto, que cria nomes de lugares e de perso-
nagens que representam o pensamento de um Brasil autoritário e desigual,
no qual se reconhecem essas semelhanças que fazem da referida obra de
Lima Barreto um espelho do Brasil de ontem e de hoje.
Em O aviltamento da mulher indígena em A caligrafia de Deus de Márcio
Souza, o texto escrito por Bruna Wagner nos oferece uma pertinente abor-
dagem sobre a narrativa acerca de uma mulher indígena na obra do autor
amazonense Márcio Souza. Mas antes, a autora nos apresenta como for-
ma de contextualizar a discussão as maneiras com os ameríndios em geral
– e as mulheres ameríndias em particular – foram sendo referenciados em
relatos de viagens, documentos oficiais, obras históricas e escritos roma-
nescos e figurativos. Desses escritos brotam uma série de generalizações
e estereótipos que foram se consolidando e se tornando lugares comuns
através de muitas vozes, que ainda hoje retroalimentam muitos discursos
preconceituosos. A centralidade da abordagem parte da questão do sexo
biológico para o aspecto do gênero que é calcado na cultura e, portanto,
valores historicamente construídos. Evidenciado que as representações
sobres as ameríndias quase sempre realçam – em distintas formas textuais
escritas – sexo, sexualidade e a “disposição” para o sexo com o outro, com
o “conquistador”. Conquistador como termo auto atribuído e carregado
de sentidos polifônicos, já que esses homens atribuíam a si mesmos prer-

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Sumário
rogativas de “descobertas”, de “povoamento”, de “direito” sobre corpos e
terras, de “desvirginamento” de terras – em que se negavam as territoria-
lidades dos povos originários – e de corpos/carnes. Conquistador sempre
masculino, patriarcal, cujas narrativas posteriores sobre seus feitos e atos –
fictícios ou não – geralmente também serão produzidas por homens. Com
aportes contextuais e teóricos associados aos textos de Cristiane Lasmar,
Camila Gomes, Berenice Bento, Judith Butler e Joan Scott, a autora tran-
sita por questões que advogam olhares decoloniais e feministas para pos-
sibilitar outras formas de narrativas que apontem para o estilhaçamento
dos lugares comuns, dos estereótipos, dos preconceitos e dos aviltamentos
tão arraigados em diversos ambientes: sobretudo o acadêmico, o científico
e o literário.
O texto de Yurgel Pantoja Caldas e Kerllyo Barbosa Maciel inti-
tulado O Marabaixo lê a cidade: espaço e resistência em Aonde tu vais, rapaz?
faz uma análise da cantiga Aonde tu vais, rapaz?, que dentro da estética da
cultura popular e das narrativas orais, tratará de uma situação histórica da
formação do estado do Amapá e da cidade de Macapá. Como parte de um
projeto político-cultural com repercussões urbanas situadas nas décadas
de 40 e 50 durante o governo de Janary Nunes (1943-1956), a região origi-
nalmente habitada pela comunidade de origem africana da cidade de Ma-
capá foi desocupada, o que resultou no deslocamento de muitas famílias
a regiões mais periféricas. Esse acontecimento foi registrado nos ladrões
de Marabaixo que surgiram no período. O texto apontará as característi-
cas orais da cantiga e as variantes e contradições encontradas nas letras,
explorando os diferentes níveis de leitura possíveis, apontando a manifes-
tação popular como forma de resistência às imposições governamentais. 
O capítulo de livro Trabalho infanto-juvenil: Entre a obra Dois Irmãos de
Milton Hatoum e a atualidade amazônica, dos estudiosos Júlio César Barreto
Rocha, Nádia Nelziza Lovera de Florentino e Aldízio Francisco discute
as evidências do trabalho infantil na obra Dois irmãos (2000), de Milton
Hatoum, bem como identifica os vetores de legislação e de fatos ocorri-
dos na ficção ou não ficção na época da produção do referido romance e
faz o cruzamento de alguns dados com o contexto atual de experiências

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Sumário
de crianças que trabalham em Manaus, no Amazonas, e por isso, muitas
vezes, não podem frequentar a escola, assim como o personagem Noel do
romance de Milton Hatoum. É um trabalho de cunho Culturalista, que
consegue trazer à baila uma questão importante da vida brasileira, espe-
cialmente da Região Norte do Brasil, qual seja a exploração das crianças
em trabalhos que seriam para adultos. Os autores buscam fundamentar
suas afirmações não só com excertos do romance de Milton Hatoum, mas
também com textos da legislação brasileira para fazer uma crítica ao que
está escrito no papel, mas não na realidade das famílias no Brasil.
Suerda Mara Monteiro Vital Lima, em seu texto Uma leitura de En-
tre guerras e fronteiras em Limiares: um (não) livro dos (des)acontecimentos,
apresenta uma análise singular de um capítulo do livro Limiares, de Ger-
son Rodrigues de Albuquerque chamado, conforme já anuncia o título
da autora, de Entre guerras e fronteiras. A partir de diálogos abertos com
Walter Benjamin e Georges Didi-Huberman, Suerda Lima busca dialo-
gar e ampliar ressonâncias com algumas questões levantadas por Gerson
Albuquerque no capítulo de seu livro. Seu ponto de partida começa com
referências a capa do aludido livro, quando ela discute o impacto que seu
olhar teve ao mirá-lo e o que foi visto a partir do incômodo inicial com o
“rótulo” anunciativo, do modo de ver deformado e transformado que lhe
provocou de pronto aquela capa. Uma capa que lhe foi formando outras
imagens mentais acerca daquela imagem visual e, posteriormente, de seu
conteúdo. A autora discute a partir daí os encobrimentos e passa a presti-
giar e dar ênfase aos “desacontecimentos” ali narrados, da falta de lógica
que muitas vezes se quer atribuir de maneira imanente ao “fato” como se
este ente fosse uma coisa em si. Nos brinda com a análise da ênfase crítica
que o autor do livro constrói ao propor a fuga das histórias insossas que
privilegiam os vencedores. Essas questões giram principalmente em torno
da morte de uma criança síria chamada AylanKurdi, que morreu afoga-
da com sua família em uma praia turca na costa do mediterrâneo, cujo
destino interrompido pelo naufrágio – ironicamente – era a Grécia, berçá-
rio referencial de civilização e democracia no Ocidente. Giorgio Agamben e
Hannah Arendt são incorporados ao debate como alicerces para o debate

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Sumário
em torno da indiferença e dos frágeis princípios éticos e humanitários que
embalam as sociedades contemporâneas. O livro Limiares e em particular
o texto Entre guerras e fronteiras, debate a permanência dos problemas ge-
rados pelas fronteiras que separam e isolam, criando vítimas em escalas
inimagináveis com as práticas constantes da barbárie moderna.
Temos, portanto, oito universos temáticos que nos remetem a
múltiplas questões e reflexões, permitindo diferentes percursos pelas águas
literárias amazônicas. Entendemos que a metáfora da água representa bem
a diversidade, a movência e a riqueza da produção e da crítica literária da
região. E aqui nesta obra temos uma pequena e importante mostra disso.
Esperamos que desfrutem das discussões e caminhos propostos pelos
autores e autoras!

Belém/Boa Vista/Rio Branco, fevereiro de 2021


 
Francisco Bento da Silva
Maria de Fátima do Nascimento
Tatiana da Silva Capaverde
(Orgs.)

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Sumário
A IDENTIDADE DAS MULHERES-PEIXE DE
FERNANDO CANTO E A CULTURA AMAZÔNICA
EM MEMÓRIAS E INCOMPLETUDES

Carla Patrícia Ribeiro Nobre

Preliminares do tema

E ste artigo tem como objeto de análise o conto As mulheres-peixe


do meu garimpo, de Fernando Canto, sendo o título do trabalho
“A identidade das Mulheres-peixe de Fernando Canto e a cultura ama-
zônica em memórias e incompletudes.” O conto faz parte da obra Mama
Guga: contos amazônicos1, lançada em 2017.
Vejamos que compreender a literatura de um povo é compreender
a sua formação e a sua identidade, considerando que seu produto é, entre
outras coisas, também um produto cultural e estético. E a necessidade,
posterior à sua criação, de torná-la um campo epistemológico, remonta a
Aristóteles e sua Arte Poética2, que também se ocupou de explicar a fun-
ção da literatura e suas características intrínsecas.
Do herói das epopeias, que precisava ser perfeito, forte e valente,
mesmo quando cometia erros, passando pelas novelas de cavalaria, que
retratavam um modo de vida, ainda necessitando de belos combates e um

1    Canto, Mama Guga, 2017.


2    É um conjunto de anotações das aulas de Aristóteles sobre o tema da poesia e da arte em
sua época provavelmente registrada entre os anos 335 a.C. e 323 a.C.
grande amor impossível, até o surgimento do romance que aponta para o
homem comum, com vícios e virtudes, a literatura vem conseguindo or-
denar, classificar, caracterizar e projetar nosso futuro, com sua capacidade
de nos trazer à memória o passado e o presente como âncoras de reflexão.
Considerando isso, cabe destacar a presença das narrativas na lite-
ratura. Orais ou escritas, elas encantam pelo universo onírico que apresen-
tam e pela trama de enredos. Através dos personagens que se movimen-
tam no espaço e possuem características próprias, é possível visualizar a
própria sociedade que é ali representada. No seio das narrativas temos o
gênero “conto”, que foi denominado pela língua inglesa como short story3
por se caracterizar como uma narrativa curta, o que lhe confere uma gran-
de densidade dramática4.
Os contos encantam faz muito tempo, desde a pequena e atrevi-
da Chapeuzinho Vermelho, de Perrault, até o jovem e misterioso Usher,
de Poe; as personagens, que protagonizam aventuras em histórias curtas,
têm sido estudadas e admiradas. E assim, esse gênero também possui, na
Amazônia, nomes importantes, como Inglês de Sousa (PA) e Fernando
Canto (AP), por exemplo. Entretanto, pode-se afirmar que há uma escas-
sez de leituras críticas aplicadas às obras literárias produzidas na região
amazônica e, o pouco que há, circula de forma restrita e tímida5.
A opção de recortar e analisar os personagens do conto, em especial
o narrador, que neste caso também é um personagem, se dá em virtude
do interesse da pesquisadora em compreender como esses elementos da
narrativa funcionam no conto e de que forma eles se relacionam com a
cultura amazônica. Sobre isso, Rosenfeld6 afirma que a “nossa visão da
realidade em geral, e em particular dos seres humanos individuais, é ex-
tremamente fragmentária e limitada”. Portanto, uma análise do narrador
do conto aponta para a possibilidade de apreender um universo único no
texto literário produzido na Amazônia e por um autor amazônida, con-

3    D’Onfrio,Teoria do texto: prolegômenos e teoria narrativa, 2002.


4    Ibidem.
5    Fernandes & Correa, Estudos de literatura as Amazônia, 2007.
6    Rosenfeld, in Candido et alii. A personagem de ficção, 2018, p. 32.

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Sumário
siderando ainda Rosenfeld que afirma que “a ficção é o único lugar – em
termos epistemológicos – em que os seres humanos se tornam transparen-
tes”7.
Para isso, o mais interessante é utilizar a crítica textual, onde “a
obra literária é acima de tudo um sistema de signos”, como afirma Valen-
cy8. Assim, em que medida o narrador e os personagens do conto colabo-
ram para apresentar a cultura amazônica? Como esse narrador atravessa
as identidades de habitantes amazônicos? Na orelha do livro de Canto, se
lê, sem atribuição a um autor especificado:
A Amazônia e seus mistérios circundantes exercem profunda influência na
obra de Fernando Canto. É nas águas amazônicas que o autor se banha
diariamente, absorvendo delas razões e motivos para escrever, pois se consi-
dera um brasileiro impregnado da cultura popular, de onde vem toda a ma-
téria-prima de sua obra. Ele vive a aventura de estar numa região fantástica
e cheia de (i)realidades cotidianas.9

Logo, o artigo pretende encontrar caminhos na ficção de Fernando


Canto, enquanto lugar privilegiado para apreender as nuances do real,
analisando o narrador do conto e destacando as suas relações com a cul-
tura amazônica. Além disso, o trabalho busca compreender a formação da
literatura amapaense como identidade do povo e lugar de riquezas varia-
das, que ultrapassa o exótico da região e alcança o universal do humano,
onde personagens variadas travam lutas diárias para viver sua plenitude.

Breve nota sobre o autor


Sendo a literatura brasileira tão carente de referências da escrita
da Região Norte, cabe destacar um pouco sobre a biografia de Fernando
Canto. Nasceu em Óbidos (PA), mas vive em Macapá desde os sete anos
de idade10. Possui uma vasta formação na área das ciências humanas. Des-
de 2007, outorgado pela Assembleia Legislativa do Estado do Amapá, ele

7    Ibidem.
8    Bergez et alii. Métodos críticos para a análise literária, 1997, p. 183.
9    Ibidem.
10    Tavares, Disponível em: https://bit.ly/3rXU9N8, Acesso em 27/04/2019.

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Sumário
é cidadão amapaense, tendo recebido o título presencialmente apenas em
2017.
A escolha do autor para essa análise se dá em virtude do mesmo já
possuir 17 obras no cenário da literatura amapaense, nos gêneros poema,
conto e crônica. O escritor foi, por diversas vezes, premiado no gênero
conto, onde seu trabalho mais famoso, O bálsamo, publicado várias vezes
e também traduzido para a língua francesa, foi contemplado em primeiro
lugar no concurso de contos da Região Norte, da UFPA, em 1992. Ou
seja, sua obra se apresenta como uma referência na área, já ditada por
especialistas, e seu trabalho reúne diversas condições para uma análise
fecunda e aprofundada.
Seu livro mais recente é Mama Guga: contos amazônicos, que possui
26 histórias, cujo cenário preferido são as águas da Amazônia. O conto
analisado neste trabalho faz parte do livro.

O espaço e as identidades na cultura da Amazônia


De acordo com o Governo Federal11, a Floresta Amazônica possui
60% de sua área no Brasil. Tal espaço, desde 1996, foi instituído como
a Amazônia Legal Brasileira, que é uma região administrativa compre-
endendo os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará,
Rondônia, Roraima e partes do Tocantins, Maranhão e Goiás. Essa área
representa 53% da área terrestre total do país e possui números grandiosos
e surpreendentes, que, por si só, apresentam uma região multifacetada e
misteriosa.
Segundo a Associação O Eco12, nos estados que formam a Ama-
zônia brasileira, 55% da população é indígena, de várias etnias, corres-
pondendo a cerca de 250 mil pessoas. Ou seja, no espaço geográfico da
Amazônia, os povos indígenas ocupam uma parcela significativa, influen-
ciando, com seus saberes e sua atuação, toda a população desses estados.

11    Brasil, Amazônia, Disponível em https://bit.ly/3s3Aonk, Acesso em 17/10/2019.


12    Dicionário ambiental ((o))eco, 2014.

17

Sumário
Para Benchimol13, os saberes na Amazônia foram, primeiramente,
um processo que se origina com os indígenas, e que depois ocorre um
encontro de valores e culturas com os demais povos que se estabelecem
no espaço da floresta. Esse encontro é fruto dos diversos programas de
ocupação que os governos promovem além da própria teia de relações que
a floresta estabelece. São encontros de conflitos, rivalidades e colonização
que ressignificam o espaço e a população.
Em torno dos povos indígenas e das populações tradicionais que
habitam na Amazônia criam-se comunidades, lugarejos, vilas, cercados de
uma vida ribeirinha, mesmo na área urbana, onde os habitantes são tran-
seuntes que viajam e dialogam com os viajantes. Sobre isso, Benchimol14
faz uma lista de 27 contribuições da herança cultural indígena-cabocla que
ele considera relevante destacar, onde o espaço e o que aparece nele, como
os rios, as palmeiras, os bichos, é o que fundamenta e organiza a vida na
floresta. O pesquisador afirma que:
[...] o seu ciclo de vida [da população cabocla] se adaptava às peculiari-
dades regionais, dela retirando os recursos materiais de subsistência e as
fontes de inspiração do seu imaginário de mitos, lendas e crenças. Especia-
rias, drogas do sertão, ervas medicinais, madeiras, óleos, essências, frutos,
animais, pássaros, bichos de casco e peixes constituíram um mundo novo
e exótico que exacerbava a cobiça do colonizador e excitava o paladar dos
novos senhores. No fundo desse quadro, centenas de nações e etnias indíge-
nas, divididas pelas falas, linguagens e rivalidades15.

Além de revelar que a Amazônia possui povos tradicionais que


vivem na floresta e, com ela, mantém uma relação de pertencimento e
identidade, a afirmação do pesquisador aponta para as relações que são
construídas e quem as constrói. São catadores de castanha, ribeirinhos,
pescadores, extrativistas, parteiras, quilombolas, dentre outros, mas tam-
bém colonizadores e senhores. Isso configura um espaço que busca se re-
ordenar a todo instante em face dessas relações, mas também mostra um
espaço que é vivenciado por todos.

13    Benchimol, Amazônia, formação social e cultural, 2019.


14    Ibidem.
15    Ibidem, p. 296.

18

Sumário
Nesse espaço, com a influência de várias culturas, se formam os ele-
mentos visuais e corpóreos da realidade externa e da paisagem, mas tam-
bém se formam os mitos dessas populações, muitos deles originados na
cultura indígena que adentram temas das mais variadas ordens, possibili-
tando um olhar que nasce no local e atinge uma dimensão universal, pois
Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos ani-
mais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos
primordiais em conseqüência dos quais o homem se converteu no que é
hoje — um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a tra-
balhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras. Se o
Mundo existe, se o homem existe, é porque os Entes Sobrenaturais desen-
volveram uma atitude criadora no “princípio”.16

Esse universo onírico e mítico está presente na floresta, onde rodas


de pessoas oralizando os ensinamentos dos seus antepassados são pratica-
das ainda hoje pelas populações tradicionais da Amazônia. Neste sentido,
Loureiro17 afirma que a poesia e o mito assumem o papel histórico com-
plementar de memória estética dos homens, o que contribui para situar o
presente em relação ao passado e reorganizar o futuro, esclarecendo que
O poético e o mítico sempre apresentaram constantes afinidades. Algumas
vezes parecem imagens de espelhos paralelos. O mito, muitas vezes, expres-
sa a poética das coletividades humanas, ao relatar sua história idealizada.
O poético, por seu lado, mitifica as palavras e os sentimentos, no ato de
torná-los poetizados. Mítico e poético são produtos de um imaginário este-
tizante e, no entanto, apresentam-se como verdades aparentes ou formas de
verdade, legitimadas pelo livre jogo entre a imaginação e o entendimento18.

Ao enfocar esse poder estetizante e nomeador dos mitos e do po-


ético, Loureiro19 afirma que o mundo real não se faz somente por dados
estatísticos e acontecimentos históricos, ele se constrói nas subjetividades
humanas e se recria em suas experiências empíricas. Portanto, os números
grandiosos e reais da Amazônia são trespassados pelo universo mítico que
ela nomeia e recria incessantemente.

16    Eliade, Mito e realidade, São Paulo, 1972, p. 13.


17    Loureiro, Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, 1995.
18    Ibidem, p. 66.
19    Ibidem, p. 66.

19

Sumário
Essas experiências são vividas em espaços diversos. No caso da
Amazônia, esse lugar traduz um imaginário onde a mitologia indígena
ocupa posição central como uma narrativa fundante de realidades e con-
densando experiências cotidianas, criando vultos e explicações para as vi-
vências das pessoas que moram nesse espaço, considerando que “o mito
é, então, uma narrativa especial, particular, capaz de ser distinguida das
demais narrativas humanas”, conforme afirma Rocha.20
As metáforas que se estabelecem a partir do espaço amazônico, plu-
ral e diverso, nascem da relação entre as pessoas e as simbologias ricas e
diversas da Amazônia, região que atrai para si lendas, mitos, personagens,
perigos, rivalidades e contemplações que são constantemente revisitados
pelos escritores em geral. E, evidentemente, os que vivem por essas terras
não poupam palavras para ela, pois
A Amazônia é percebida por quem a contempla, como uma grandeza pura:
é grande, é enorme, é terra-do-sem-fim. Sua concepção está associada a
outros qualificativos: rica, incomparável, bela, misteriosa, inferno, paraíso.
Algo que, embora próximo, está distante, como um outro mundo. Lócus do
devaneio, cujas medidas físicas desaparecem e cujos contornos se tornam
esfumados, graças a um livre pacto entre imaginário e realidade21.

Quando o autor aponta esse livre pacto entre imaginário e realida-


de, é possível estabelecer uma tênue ligação entre as pessoas e a floresta,
que cria e recria experiências e discursos ao longo dos acontecimentos.
Mas então, qual é o local da população amazônica e como ela pre-
enche esse espaço? Tomando por referência as populações tradicionais
que habitam o espaço amazônico, não se pode negar a influência indígena
e os seus múltiplos olhares, que formam um caleidoscópio de conceitos e
discursos. Entre eles, é inegável a presença mítica, que chega impregnada
de sentido e da realidade circundante, pois
Há, no mundo amazônico, a produção de uma verdadeira teogonia cotidia-
na. Revelando uma afetividade cósmica, o homem promove a conversão
estetizante da realidade em signos, através dos labores do dia-a-dia, do di-

20    Rocha, O que é mito, 2012, p. 02.


21    Loureiro, Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, 1995, p. 95, grifos meus.

20

Sumário
álogo com as marés, do companheirismo com as estrelas, da solidariedade
dos ventos que impulsionam as velas, da paciente amizade dos rios22.

Nesse discurso, tem-se traçado signos que apresentam uma Amazô-


nia múltipla, pois múltiplos são os olhares de quem interage com ela, em
tons telúricos e respeitosos, mas também em tons de denúncia e explora-
ção, já que
O que também se percebe no tipo de convivência histórica do homem com
a Amazônia, é que diante da presença mais do que real de rios e floresta,
mesmo mantendo com floresta e os rios tão estreita relação de vida e traba-
lho, a dimensão do cotidiano comportou sempre a leveza do etéreo, a suti-
leza de encontrar maravilha nas coisas. Isso vem permitindo à vida cultural
amazônica a incorporação sutil e constante do sentido da imensidão única,
misteriosa e auratizadora e, ao mesmo tempo, ricamente significante, numa
relação estetizada tão dominante, que muitas vezes se converte numa ética
de relações sociais. Uma ética que decorre da sensibilidade das vivências
comuns ou pulsações de co-existência, reflexo da penetrante presença do
imaginário com função estético-poetizante no cotidiano da vida social.23

Na Amazônia, o espaço pode ser concebido nas três proposições


estabelecidas por Massey24: na primeira, se reconhece o espaço como
produto de inter-relações; na segunda, o espaço é a esfera onde coexis-
tem trajetórias distintas; e na terceira proposição, o espaço é um lugar em
permanente construção. Isso é fundamental para compreender o espaço
amazônico, considerando a sua pluralidade de populações e as visões de
mundo que se constroem a partir das interações estabelecidas. A autora
afirma que o espaço “Jamais está acabado, nunca está fechado. Talvez
pudéssemos imaginar o espaço como uma simultaneidade de estórias-a-
té-agora”.
A autora nos ajuda a pensar no espaço amazônico como um lugar
de permanente diálogo e interações, onde espaço e tempo se combinam
e se modificam mutuamente, alterando e ressignificando o modo de vida
das populações.

22    Ibidem, p. 63.


23    Loureiro, Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, 1995, p 99.
24    Massey, Pelo espaço, 2008.

21

Sumário
E se avaliarmos a afirmativa de Benchimol25 de que os índios e cabo-
clos da Amazônia retiravam dela (e retiram ainda hoje) tudo o que preci-
sam para viver, podemos inferir que essa interação com a própria floresta
traduz também uma espécie de atuação sobre ela e com ela, onde ser hu-
mano e natureza se modificam e alteram em suas identidades e modos de
vida. A floresta não aparece estática e inerte esperando a ação humana,
mas ela também conduz as festas, as cobiças, as vestimentas, os adornos,
as crenças, etc. de seus habitantes.
Numa região tão peculiar quanto a Amazônia, as identidades se
tornam ainda mais questionáveis e moventes. Nessa região imensa e com-
plexa, os rótulos são frequentes e a redução do valor social dos povos tra-
dicionais é presente nos discursos hegemônicos, desconsiderando o modo
de vida dessas populações, que estão, como afirma Caldas26, acostumadas
a um tipo de produção tradicional, artesanal e familiar, às vezes de cunho
nômade ou seminômade.
Em Hall27, vemos a distinção de identidade na seguinte classifi-
cação: 1) Sujeito do Iluminismo, com uma identidade individual, fixa e
interna; 2) Sujeito sociológico, apresentando a necessidade da interação,
ainda uma identidade individual, mas que já traz a complexidade da pós-
-modernidade. Para o autor, esse sujeito “é formado e modificado num
diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades
que esses mundos oferecem”28; e 3) Sujeito pós-moderno, cuja identidade
torna-se o que o pesquisador chama de “celebração móvel”, reconhecen-
do que a identidade é
[...] realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos in-
conscientes, e não algo inato existente na consciência no momento do nas-
cimento [...] Ela permanece sendo incompleta, está sempre em “processo”,
sempre “sendo formada”29

25    Ibidem.
26    Caldas, A construção épica da Amazônia no poema Muhuraida, de Henrique João
Wilkens, 2007.
27    Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 2006.
28    Ibidem, p. 11.
29    Ibidem, p. 38

22

Sumário
Este resumo mostra que o conceito de identidade atravessa mudan-
ças necessárias para comportar as diversas realidades sociais e questiona,
entre outros pontos, o papel do colonizador e do colonizado e suas inte-
rações.
Na Amazônia, uma terra cujo discurso colonizador sempre retratou
como uma imensa floresta de habitantes selvagens, conferindo, principal-
mente aos índios, essa identidade fixa, resta a pergunta sobre qual o lugar
dos seus povos, tão diferentes entre si, no pós-colonialismo. Caldas30 ob-
serva que
[...] a imagem oficial do índio exposta pela tradição histórica dá conta de
que ele fora dispensado logo cedo do trabalho por sua própria incompetên-
cia, inabilidade, indolência e ferocidade, características construídas pela ex-
periência do homem branco europeu e incorporada pela tradição nacional.

Nesse sentido, Bhabha31 afirma que o discurso colonial existe e que


ele nega a singularidade dos povos, criando estereótipos e delimitando a
identidade, o que lembra Hall32 com a nomeação de identidade fixa. As-
sim, se pensarmos a Amazônia como uma terra que possui uma memória
histórica de lutas, conflitos, mitologia indígena e crenças caboclas, é possí-
vel observar um espaço que se (re)organiza incessantemente em torno do
que foi e do que deseja ser, ao que Bhabha33 afirma
O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma popu-
lação de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar
a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Apesar do
jogo de poder no interior do discurso colonial e das posicionalidades des-
lizantes de seus sujeitos (por exemplo, efeitos de classe, gênero, ideologia,
formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização, e assim por
diante), estou me referindo a uma forma de governamentalidade que, ao
delimitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas várias esferas
de atividade. Portanto, apesar do “jogo” no sistema colonial que é crucial
para seu exercício de poder, o discurso colonial produz o colonizado como
uma realidade social que é ao mesmo tempo um “outro” e ainda assim
inteiramente apreensível e visível.

30    Ibidem, p. 38.


31    Bhabha, O local da cultura, 1998.
32    Ibidem.
33    Ibidem, p. 111.

23

Sumário
É dessa forma que as identidades, sempre no plural, sempre diversas,
sempre em mudança, naquilo que Hall34 chamou de “celebração móvel”,
vão se alternando e se reconstruindo. As identidades vão ainda se moven-
do em torno dos discursos. Retomando Caldas35, a imagem do índio que
precisa ser domesticado e era preguiçoso para o trabalho se ressignifica
quando se toma posse de outros discursos que contrapõem o hegemônico.
Pensar na Amazônia como um lugar que pertence às pessoas é
pensar nesse espaço como um cenário de vivências diversas. Tão diversas
quanto os grupos que a habitam. São as pessoas que constituem o espaço
amazônico que tecem a cultura do local, em um vai e vem constante que
traça a história da ocupação da Floresta.
Nessa história, devem ser consideradas as narrativas de conflitos
do passado e dos tempos atuais, que têm trazido uma ressonância de voz
muito mais ampla e visível para quem habita essa terra fértil. Muito antes
de Chico Mendes, e a partir de sua luta mártir, a Amazônia vem buscan-
do se reinventar e se manter erguida. Sobre isso, seu passado é retomado
como questionador do que se quer para o futuro, como explica Bhabha36:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não
seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo
como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o
passado como causa social ou precedente estético, ela renova o passado,
refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe
a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade,
e não da nostalgia, de viver...

A cultura amazônica, margeada por uma paisagem exuberante, re-


vela essa nostalgia, que muitas vezes encobre a luta dos povos que habitam
no lugar e desafia novos modos de pensar a existência, considerando que
essa nostalgia é parte também de um enfrentamento. O olhar exótico e “de
fora” quer se maravilhar com o espaço, dançar as danças e comer as frutas
e o peixe. O olhar cotidiano e “de dentro” quer conviver/viver no espa-
ço, quer recuperar sua história, se aproximar e manter viva suas tradições

34    Bhabha, O local da cultura, 1998, p. 111.


35    Ibidem, p. 111.
36    Ibidem, p.27.

24

Sumário
culturais. Não são apenas danças, frutas e peixes, mas são suas histórias
que estão em jogo. São histórias que querem ter visibilidade e questionar
o colonialismo que ainda sobressai nas políticas e nos discursos, numa
relação tensa com os povos tradicionais.
A cultura amazônica no século XXI ecoa para o mundo na voz das
pessoas que a tecem: “Enquanto estivermos vivos, vamos lutar”, disse o
indígena Laércio Guajajara, em entrevista ao Portal G137 por ocasião das
investigações numa recente emboscada ao grupo do qual faz parte, inti-
tulado Guardiões da Floresta. Essa liderança indígena faz parte do povo
Awa-Guajá, um dos povos mais vulneráveis do mundo, segundo a matéria
do G1. E chama a atenção a ênfase dele ao afirmar que:
“Nós, indígenas, temos a floresta em pé, temos casa lá. A caça é o nosso
açougue, nossa terra é o que temos. Não precisamos estar destruindo a ter-
ra, vendendo madeira, tirando minério. Nós precisamos é estar dentro do
território”.

Ou seja, esse território é a sua cultura, o seu modo de vida. Aquilo


que traduz a sua existência. É nesse espaço que se dá sua intervenção so-
bre o mundo.
Essa fala não só questiona o estereótipo do exótico, do belo e do
idílico que o discurso colonizador propaga, mas também contrapõe o dis-
curso de que a Amazônia deve ser explorada. Questiona valores sociais e
ganhos financeiros. É uma fala que atravessa o colonialismo com o discur-
so ambiental necessário e urgente, num mundo que se vê, cada vez mais,
chamado a cuidar do planeta. A fala do indígena também aponta para
uma Amazônia que se reconhece culturalmente e valoriza suas práticas,
saberes e história, desconstruindo o estereótipo do índio retratado desde a
Carta de Pero Vaz de Caminha, por ocasião do que se chamou de “desco-
brimento do Brasil”. Nesse sentido, cabe lembrar Bhabha38.
O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de
uma dada realidade. E uma simplificação porque é uma forma presa, fixa,
de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através

37    Portal G1, Disponível em: https://glo.bo/2M8OAw8, Acesso em 10/02/2020.


38    Bhabha, O local da cultura, 1998, p. 117.

25

Sumário
do Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito
em significações de relações psíquicas e sociais.

As pessoas que povoam a Amazônia e constroem sua cultura estão


longe de simplificar o conceito de “cultura” representando formas fixas e
lineares. Elas movem as relações, o espaço e as necessidades, trazendo à
tona uma cultura viva, pulsante e em constante mudança.
Portanto, não apenas questionar as representações colonizadoras
do povo amazônico, mas compreender suas mudanças e suas interações
no espaço da floresta são necessidades urgentes em estudos pós-coloniais.
Temos hoje novas configurações de ocupação da floresta e vozes, cada vez
mais distintas, sobre ela. Essas vozes trazem a riqueza dos processos vivi-
dos e apagados, vividos e reconhecidos das pessoas que habitam o espaço
amazônico, atuando sobre ele.

As mulheres-peixe e a cultura Amazônica


o livro Mama Guga: contos amazônicos apresenta um dado fundamen-
tal para este trabalho, pois segundo Caldas39
Um lugar de importância nos contos da coletânea é a orla de Macapá, a
famosa “frente da cidade”, também conhecida como Beira-Rio da única
capital brasileira banhada pelo Amazonas (“A cidade encantada sob a pe-
dra”, “Tsunami”, “O sanitarista”). Quando os acontecimentos não ocor-
rem predominantemente na orla, ao menos ela é citada pelo narrador ou
personagem como ponto de referência (“A pulseira de Das Dores e seus vi-
zinhos vulturinos”, “Dias iguais”, “Cornucópia de desejos”). Mas o espaço
que prevalece nas narrativas dessa coletânea é mesmo a Amazônia fluvial
com sua geografia líquida que evoca tanto o mundo social e de trabalho do
seu povo (“Mama Guga”, “Estrelas da tarde”, “De volta à casa de praia”)
quanto o encantamento de acontecimentos estranhos, que revelam a linha
fantástica na escrita ficcional de Fernando Canto (“Anjo viajante”, “As mu-
lheres-peixe do meu garimpo”).

Nesse sentido, é possível referenciar Cândido40, afirmando que, para


se compreender o contexto da gênese da literatura amapaense como lite-
ratura brasileira, é necessário buscar as referências na obra dos autores
39    Caldas, Resenha do livro Mama Guga, Disponível em: https://bit.ly/3avr05P, Acesso
em 27/04/2019.
40    Candido, Literatura e sociedade, 2014.

26

Sumário
locais da vida social da cidade, onde já que “se não existe uma literatura
paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasi-
leira manifestando-se de modo diferente nos diferentes estados”. Assim,
pactuamos do critério de que não está em jogo o local de nascimento do
autor, mas sua “participação na vida social e espiritual da cidade”41. Isso
é de fundamental importância para situarmos o lugar que a prosa de Can-
to42 ocupa no cenário literário local e a influência que a Amazônia exerce
sobre sua obra, já que, como afirma Cortázar43
Por mais veterano, por mais hábil que seja um contista, se lhe faltar uma
motivação estranhável, se os seus contos não nasceram de uma profunda
vivência, sua obra não irá além do mero exercício estético. Mas o contrário
será ainda pior.

Aqui cabe buscar em Loureiro44 sua contribuição para a compreen-


são do conceito de cultura amazônica, onde se lê que, apesar de um olhar
maravilhado pela floresta e seus rios, é possível apreender nessa região, os
ensinamentos e a grandeza cultural que as comunidades partilham, já que,
conforme o autor45
Na Amazônia, as pessoas ainda veem seus deuses, convivem com seus mi-
tos, personificam suas ideias e as coisas que admiram. A vida social ainda
permanece impregnada do espírito da infância, no sentido de encantar-se
com a explicação poetizada e alegórica das coisas.

Assim, o autor afirma que o homem da Amazônia, ao viver as ex-


periências da floresta, cria uma nova natureza, enquanto se cria como seu
habitante. É assim o narrador do conto As mulheres-peixe do meu garimpo:
um homem que não se apresenta formalmente, mas que dá pistas de sua
atuação na Amazônia e de como os segredos da floresta lhe foram reve-
lados.

41    Candido, Literatura e sociedade, 2014, p. 147.


42    Ibidem, p. 147.
43    Cortázar, Alguns aspectos do conto, 1974, p. 160.
44    Loureiro, Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, 1995.
45    Ibidem, p. 103.

27

Sumário
Em todo o livro de Canto46 vemos a influência das águas, como
espaços de importância decisiva na narrativa. Sobre isso, Loureiro afirma
que o rio é um elemento especial no imaginário amazônico. Ao mesmo
tempo em que está em tudo, “dele dependem a vida e a morte, a fertilidade
e a carência, a formação e destruição e terras, a inundação e a seca, a cir-
culação humana e de bens simbólicos”47. Ou seja, o rio, melhor dizendo,
as águas da Amazônia são sua fonte inesgotável de riqueza e pobreza.
Ainda para o autor, as pessoas retiram sua subsistência para sobreviver
materialmente e seu alimento para a alma, através dos mitos e da poética
que colhem nos mistérios da Amazônia.
A vida na Amazônia é, para Loureiro, onde se “segue governado
pelos sentidos, atento a tudo, sensível aos odores, às luzes, aos sons, às
estrelas, às margens, às nuvens, aos ventos, às cores, aos brilhos [...] e ao
mistério das coisas”48. Ou seja, o habitante ribeirinho cria a sua própria
lógica de convivência com o espaço e habita nele poeticamente.
Loureiro discute a identidade do habitante amazônico num tempo
de desterritorializações, onde “ainda se mistura de forma pregnante o real
e o imaginário”49. Além disso, compreende a Amazônia não mais como
paraíso terrestre, mas como local de ocupações e desordem, que “vem se
tornando paisagem de cobiça, violência e saque, que tem sido as bússolas
que orientam a expansão a ela dirigida pelo grande capital”50.
Temos na história cinco personagens, em torno dos quais o conto
se constrói: Edmer, que será assassinado logo no início do conto e que se
gaba de ter tido um caso com as mulheres-peixe; o delegado, que inves-
tigará o caso e que mostra toda a sua ambição com relação ao ouro; os
colonos feios que aparecem sem fala, mas sua presença sugere questões
relevantes; as mulheres-peixe que são o eixo que une todos esses persona-
gens; e o narrador, que manteve uma relação amorosa com elas e conta a
sua história.

46    Canto, 2017.


47    Loureiro, op. cit., p. 121.
48    Loureiro, Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, 1995, p. 82.
49    Loureiro, A arte como encantaria da linguagem, 2008, p. 127.
50    Ibidem, p. 178.

28

Sumário
Portanto, é possível destacar a presença do espaço como essencial
no conto analisado, no sentido de que ele é o responsável pelo destino de
todos os personagens envolvidos. Especialmente no conto As mulheres-pei-
xe do meu garimpo, temos a presença de habitantes das águas amazônicas se
movimentando na história, ainda quando ela se passa em outros espaços.
A apresentação das mulheres-peixe se dá pela visão do narrador:
Não fazia muito tempo que eu tinha descoberto essa gruta e o lago e visto
as mulheres-peixe se banhando. Tinham a cor dourada e eram largas. Suas
barbatanas eram vermelhas, umas gracinhas. Nem de longe pareciam com
as sereias que eu já tinha visto em revistas. Brincavam com as águas e sor-
riram quando me viram. Me chamaram para bem perto delas, e aí eu pude
conhecer o verdadeiro valor do prazer sexual com aquelas mulheres, ainda
que não fossem humanas. Eu me acostumei com elas, e elas, comigo.51

Nessa apresentação chama a atenção alguns pontos que são o eixo


da narrativa, como, por exemplo, o fato de as mulheres-peixe serem dou-
radas, ou seja, da cor do ouro, que é o motivo da ambição dos homens que
aparecem na história. Não eram mulheres delicadas, tampouco lembram
as sereias das lendas europeias, mas possuem um toque de selvageria e de
amor sensual, que, ao lado do ouro é o atrativo que faz o narrador, no fim
do conto, sentir saudade dessas mulheres.
Chama a atenção também o fato de o narrador, em Canto52, sugerir
que houve uma espécie de convívio demorado entre ele e as mulheres-pei-
xe, como quando ele afirma: “Eu me acostumei com elas, e elas, comigo”.
Essa fala demonstra que o convívio com mítico e o fantástico é aceito e
vivenciado, sem questionamentos e em comum acordo, mostra ainda a
simbiose do homem-natureza. Isso é ratificado quando o narrador explica
como se dá o fim da sua história com as mulheres-peixe: “O delegado me
flagrou com as mulheres-peixe quando a gente estava bacana, tomando
um Campari no meio do lago”53. Logo, é possível perceber que os encon-
tros dele com as mulheres-peixe se davam periodicamente e sem nenhuma
preocupação.

51    Canto, Mama Guga, 2017, p. 43, grifos meus.


52    Canto, Mama Guga, 2017, p. 43.
53    Ibidem, p. 43.

29

Sumário
Um pouco antes desse ocorrido, o narrador do conto afirma que
não queria que ninguém descobrisse a existência dessas mulheres, “ainda
mais depois que elas me indicaram onde estava o ouro”54. Assim, vemos a
ambição que também cercava aquele homem e isso sugere ainda o domí-
nio dessas mulheres sobre a floresta. Elas então, são guardiãs de segredos
e se aproximam das diversas versões que circulam oralmente da lenda da
mãe d’água, por exemplo, que domina os pescadores desavisados e que
reina no fundo dos rios amazônicos. A morte do Delegado e seus homens
remete também a essa lenda, pois
Ao verem os tiras, as mulheres douradas foram tomadas de um pavor que
eu jamais vira. Pareciam loucas, cantando e dançando e mergulhando. As-
soviavam uma melodia tão forte que se eu não tivesse corrido pra fora da
gruta meus tímpanos estourariam, assim como aconteceu com os policiais,
que desmaiaram e morreram afogados.

Apresentando as mulheres-peixe dessa forma, o narrador resguarda


seus mistérios e traz uma memória afetiva com relação a elas. Ele afirma:
“Elas salvaram minha vida, pois a ambição do delegado e seus subordina-
dos não tinha limite”55.
Esse contexto remete também à construção da identidade feminina
na Amazônia, que busca ser apagada pelo domínio masculino nos espa-
ços, mas que atravessa as fronteiras do real para se mostrar. As mulheres-
-peixe são a causa da briga inicial no conto e isso se dá pelo domínio que
elas exercem no espaço principal da ambição masculina: o lugar do ouro.
Todos queriam dominá-las, pois elas sabiam mais que eles sobre esse as-
sunto. Portanto, não é demais afirmar que elas protagonizam a diegese e
que delas emergem os segredos para se achar o ouro e o prazer.
O conto termina sem que saibamos o destino final delas, mas o nar-
rador oferece uma pista importante quando diz em Canto
Agora que acabou a porra do ouro e do dinheiro, bate uma saudade daque-
las mulheres lindas que nunca mais vou voltar a ver. Elas devem ter morrido

54    Ibidem, p. 43.


55    Canto, Mama Guga, 2017, p. 43.

30

Sumário
com a presença de tantos garimpeiros feios no lugar que com certeza polu-
íram a gruta e o lago verdinho.56

Ao imaginar que as mulheres-peixe morreram, o narrador acaba


denunciando as mazelas sociais da Amazônia e quebrando a simbiose
homem-natureza, clarificando relações desiguais e de domínio dos mais
fortes sobre os mais fracos. Portanto, esse narrador mostra, ao rememorar
os episódios ligados às mulheres-peixe, que elas se mantêm viva em sua
memória, onde, de acordo com Gagnebin57, “nosso dever consistiria em
preservar a memória, em salvar o desaparecido, o passado, em resgatar,
como se diz, tradições, vidas, falas e imagens”.
Nesse sentido, de acordo com Iser58 temos um não-dito sobre essas
mulheres-peixe que chegam cheias de mistérios e somem da mesma forma
da narrativa e
O não-dito de cenas aparentemente triviais e os lugares vazios do diálogo
incentivam o leitor a ocupar as lacunas com suas projeções. Ele é levado
para dentro dos acontecimentos e estimulado a imaginar o não dito como
o que é significado.

A trama do conto, desde o início, aponta para a presença das mu-


lheres-peixe como a chave para se compreender as relações que são consti-
tuídas no espaço onde há a presença do ouro e da briga pela terra. Assim,
a lembrança final delas pelo narrador deixa um vazio na narrativa e, ao
mesmo tempo, constitui para o leitor uma rede de projeções sobre todos
que lá permaneceram próximos a elas, especialmente sobre os colonos
feios do assentamento e, evidentemente, os meios que elas encontraram de
sobrevivência e convivência, se é que encontraram algum.

O narrador do conto
Cortázar59 afirma que
[...] o elemento significativo do conto pareceria residir principalmente no
seu tema, no fato de se escolher um acontecimento real ou fictício que pos-

56    Ibidem, p. 44.


57    Gagnebin, O que significa elaborar o passado?, 2009, p. 97.
58    Iser, O Ato da Leitura, 1996, p. 106.
59    Cortázar, Alguns aspectos do conto, 1974, p. 152, grifos meus.

31

Sumário
sua essa misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele
mesmo, de modo que um vulgar episódio doméstico [...] se converta no
resumo implacável de uma certa condição humana, ou no símbolo cadente
de uma ordem social ou histórica.

Nesse sentido, temos no conto As mulheres-peixe do meu garimpo uma


história aparentemente banal, mas que, com seu final delicado, mostra
a potência de significado da situação narrada e dos personagens que fi-
guram na mesma, trazendo à tona uma série de reflexões sobre o espaço
amazônico.
Em síntese, é uma história que traz um enredo de ambição em rela-
ção ao ouro que se pode encontrar nos lugares escondidos da Amazônia,
mas é sobretudo uma história de saudade do narrador com relação à essas
mulheres misteriosas que ele encontra e que guardam os segredos da flo-
resta, onde os personagens, segundo Rosenfeld60
[...] como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de
valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social e tomam de-
terminadas atitudes em face desses valores. Muitas vezes debatem-se com a
necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis
conflitos e enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais
da vida humana [...].

A escolha do narrador não poderia se mostrar melhor como estraté-


gia de nos apresentar as mulheres-peixe, bem como falar ao leitor sobre o
cenário amazônico. O espaço descrito pelo narrador traz uma gruta, um
lago e essas personagens, que vivem nesse local indefinido e escondido.
Vejamos o que afirma Amorim61
[...] o cronotopos da estrada, em um certo tipo de romance, indica o lugar
onde se desenrolam as ações principais, onde se dão os encontros que mu-
dam a vida dos personagens. No encontro, a definição temporal (naquele
momento) é inseparável da definição espacial (naquele lugar). A estrada é,
portanto, o lugar onde se escande e se mede o tempo da história. A cada
vez, é preciso voltar a ela para que o tempo avance.

Esse exemplo da autora, para discutir o conceito de cronotopos,


pode ser aplicado ao conto, considerando a imagem do lago, que aparece
60    Rosenfeld, A personagem de ficção, 2018, p. 45.
61    Amorim, Cronotopo e exotopia, 2010, p. 98.

32

Sumário
como espaço de disputa, de ambição, de roubo e de amor, desmistificando
a visão exótica dos rios caudalosos e utópicos da imaginação turística.
Em se tratando do tipo de narrador, adota-se aqui o conceito de Ge-
nette , que é fundamental para compreender o narrador do conto estuda-
62

do. É um homem que não se apresenta formalmente e narra as situações


que o levaram a fugir do local onde vivia e ir para a capital numa síntese. É
um narrador autodiegético, de acordo com a explicação de Reis & Lopes63
sobre o que pontua Genette:
[...] designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa
específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias
experiências como personagem central dessa história. Essa atitude narra-
tiva (distinta da que caracteriza o narrador homodiegético (...) e, mais ra-
dicalmente ainda, da que é própria do narrador heterodiegético (...) arrasta
importantes conseqüências semânticas e pragmáticas, decorrentes do modo
como o narrador autodiegético estrutura a perspectiva narrativa, organiza o
tempo, manipula diversos tipos de distância.

Esse narrador traz, no título do conto As mulheres-peixe do meu ga-


rimpo, uma pista para compreendermos a memória afetiva que ele traz do
lugar onde vivia, quando afirma – meu garimpo, o pronome possessivo
sugere que ele tinha a posse daquele lugar, mas que foi forçado a deixá-lo,
como vemos no trecho “Quando os policiais federais chegaram para me
prender, eu já estava muito longe com o meu ouro. Larguei tudo: o sítio,
os animais, os empregados, a mulher e os filhos....”64. Assim, mais do que
posse, aquele lugar era o lugar dele e de lá precisou sumir e se distanciar,
abandonando tudo. Mas quando fala da saudade, não é o ouro, nem a
terra que lhe faltam, mas as mulheres-peixe, ou seja, o sonho, a esperança
que elas significavam.

A combinação das identidades


Neste conto de Canto65 vemos o cruzamento das identidades de
narrador autodiegético, protagonista da história, sendo atravessada pela
62    Genette, Discurso da narrativa, 1995.
63    Reis & Lopes, Dicionário da teoria narrativa, 1988, p. 118, grifos meus.
64    Canto, Mama Guga, 2017, p. 46.
65    Canto, Mama Guga, 2017, p. 46.

33

Sumário
memória das mulheres-peixe. São elas que desencadeiam os fatos e con-
duzem as ações dos homens. Todos cobiçavam conhecer essas mulheres.
O narrador, ao iniciar a briga com o personagem Edmer, afirma: “Eu tam-
bém namorei, quer dizer, cheguei a morar com uma delas“66. Isso gera
uma briga, uma morte e uma fuga, que obriga o narrador a se afastar das
mulheres-peixe.
Neste sentido, as identidades se cruzam e se combinam para que
possamos compreender as relações traçadas entre os dois. O narrador só
se realiza no contato com essas mulheres, que possuem o segredo do ouro
e lhe dão prazer sexual. Os demais personagens também anseiam mais
informações sobre essas mulheres: “Quando o Delegado chegou pra pegar
o meu depoimento, foi logo perguntando quem eram essas mulheres-peixe
que tanto davam medo nos novos moradores do assentamento”67.
As mulheres-peixe eram, então, uma possibilidade de relação com
outros mundos e outros saberes, que escapam da realidade humana. Além
disso, a presença do delegado e a fala do narrador que adverte para a ga-
nância daquele em relação ao ouro, apontam para as identidades cruzadas
de interesses e cobiças diante da riqueza da Amazônia.

Considerações finais
O conto Mulheres-peixe oferece uma riqueza de percepções sobre o
universo amazônico que se retrata nos personagens do conto através do
retrato que o narrador expressa sobre cada um.
Na maior parte do texto, o narrador se limita a contar a história,
trazendo comentários essenciais que vão se somando e formando um mo-
saico que expressa a cultura amazônica vista a partir de um olhar coti-
diano e construído por pessoas que, no universo fictício, trazem à tona as
realidades experienciadas pelos seres humanos reais.
As relações travadas entre as personagens do conto apontam para
uma Amazônia mítica e desigual, grandiosa e misteriosa, que constrói

66    Ibidem, p. 42.


67    Ibidem, p. 42.

34

Sumário
identidades atravessadas por interesses diversos e, muitas vezes, opresso-
res.
A escolha de um narrador que vivencia os fatos mostra uma riqueza
no emaranhado das relações, em que a palavra garimpo pode ser ques-
tionada e ressignificada: afinal, qual seria o ouro da Amazônia? O metal
propriamente dito, que gera a cobiça ou os seres que vivem na floresta? A
partir do título do conto se revelam várias intenções não-ditas e o desejo
ou sentimento de posse do narrador.
Assim, utilizar um narrador autodiegético foi uma opção acertada
do autor para construir um painel mais próximo do real e mais aprofunda-
do nas emoções suscitadas no leitor, pois sem dúvida, enxergar as mulhe-
res-peixe pelo olhar do outro, com uma incompletude narrativa, mantém
intacto seus mistérios ligados às águas da Amazônia.

Referências
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ceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010, p. 95-113.
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Maria Rodrigues Prata. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
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vI2ul. Acesso em 17/10/2019.
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CORTÁZAR, Júlio. Alguns aspectos do conto. São Paulo: Perspectiva, 1974.
D’ONFRIO, Salvatore. Teoria do texto: prolegômenos e teoria narrativa. São Paulo: Áti-
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ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
FERNANDES, José Guilherme dos Santos e CORRÊA, Paulo Maués (orgs.). Estudos de
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35

Sumário
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escrever esquecer. 2. Ed. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 97-106.
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Silva e Guacira Lopes Louro. 11ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura. Uma Teoria do Efeito Estético. 2 vols. Tradução de
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LOUREIRO, João de Jesus Paes. A arte como encantaria da linguagem. Escrituras: São
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LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica – uma poética do imaginário. Be-
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MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda
Pareto Maciel, Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
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em https://bit.ly/2ZraH3F. Acesso em 17/10/2019.
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1988.
ROCHA, Everardo. O que é mito. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2012.
ROSENFELD, In CANDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Pers-
pectiva, 2018.
TAVARES, Elton. Fernando Canto, enfim, cidadão amapaense. Disponível em https://
bit.ly/3pxjw6I. Acesso em 27/04/2019.

36

Sumário
GEOPOESIA DAS ÁGUAS DO CENTROESTE-NORTE:
ETNOFLÂNERIES E ENFRONTEIRAMENTOS EM
JOSÉ GODOY GARCIA E MILTON HATOUM

Augusto Rodrigues da Silva Junior

Meus passos escamosos


desenham as geometrias das ruas.
Elas sobem, líquidas,
até o núcleo do meu sofrer.

(...) Um olor de peixe,


uma unidade de rio espadana e alastra-se
por toda a sua dureza.
Elas investem e sobem. Caixa de humanidade,
frágil caixa, desintegrada um dia
como um fardo escapado do gancho1.

I magine um rio que corre do centro do Brasil para o norte. Esse


rio existe e seu nome é Araguaia. Nossa escrita discorre e “vai
rompeno” justamente nessa direção: uma teoria-foz que nasce na Região
Centro-Oeste e que tem seu curso suleando o norte das águas e terras,
pessoas e vozes amazônidas. Nesse percurso irrompem, farol, as luzes te-
óricas da geopoesia.
Tomamos a direção do enfronteiramento, o mais transgrediente
dentre os conceitos, para realizar essa flânerie-fluvial. Se o lugar de onde
observamos o mundo altera e relativiza a perspectiva, o local de onde se

1    Naud, A geometria das águas, 1963, p.13.


escreve impacta nas palavras. A memória, que é só de onde se vem, e a
releitura, que é sempre ato de amor, movem correntes e seixos de tudo
aquilo que pensamos, sentimos, singramos. O campo topográfico pode
mediar os limites da compreensão da territorialidade e os deslimites do
fazer artístico. Na liminaridade, a memória é sempre estetizada e aproxi-
ma-se, no seu constructo formal, da arte. A recordação é sempre prenhe de
narrativa, e isso não exclui a poesia, o drama, a performance, posto que,
para a geopoesia, é a palavra que movimenta forças narrativas. Na condi-
ção fragmentária da vida e sonho, a potencialidade da arte não está apenas
na “prosa de romance”, mas na sua potencialidade prosaística – marca da
poesia a partir do século XX.
A coletividade, constituída de singularidades, agrega vários senti-
dos a essa territorialidade literária. Nesse constructo do deslocamento,
que implica a literatura de campo, a liminaridade (limen), a comunhão
(communitas) e reverberação (resistência ao verbo e ao advérbio colonial)
estruturam as forças motrizes dessa teoria do literário – que, insistimos,
não é uma teoria da literatura.
Aquilo que o crítico literário assina, na sua condição analítica e
autorizada de quem efetua o papel de analista de fonte histórica, agrega
o empoderamento. No caso da literatura, fato, artefato, parte do mundo e
mundo nela mesma constitui-se, no enfronteiramento literário, a consci-
ência de que as ações impactam diretamente no espaço. Esse elemento,
na sua condição territorial, contribui para o reconhecimento de que todo
objeto ficcional analisado é sempre fruto do contato com o outro. Na li-
minaridade e comunhão2, esse outro encontra no autor, nos teóricos e nas
perspectivas escolhidas, as dinâmicas corporais e vocais que nem sempre
são atribuídas, percebidas, mensuradas no texto escrito.
A literatura de campo, na prática do etnoflâneur, que se desloca para
estar, observar, anotar, e até mesmo ler. O autor da geopoesia é aquele ou-
tro possível – contra o outrocínio – que mapeia novas formas de pensar o já
pensado. Uma teoria que nasce do centro do país para recontar a história
do humano. De um humano fadado à desaparição tão brevemente. Essa

2    Turner, Dramas, campos e metáforas, 2008.

38

Sumário
teoria agrega algo importante nesse momento histórico: a consciência da
necessidade de um engajamento ecológico nos estudos de literatura. Re-
florestar o pensamento para que a crítica literária não fique alheia às mu-
danças no mundo. É necessária a tomada de posição para que o outro, na
coletividade, também esteja presente, de forma consciente, nesse discurso.
Se o crítico escolhe “responder” ao mundo pela análise literária, essa tare-
fa não pode estar descolada daquilo que ele realmente efetiva no mundo.
O desafio para a crítica literária, de modo geral, sempre foi uma
busca da sabedoria. Para quem pratica a crítica polifônica, o desafio é
conseguir navegar pela história oceanicamente escrita e, ao mesmo tempo,
caminhar em busca de novas nascentes. O arranjo entre o que está na his-
tória e essa consciência da história certamente facultam um entendimento
do presente.
O preconceito literário mantém poéticas e estéticas ainda um tanto
desconhecidas. O cânone vende livros nas grandes editoras do país. O
enquadramento dos escritores em “movimentos artísticos hegemônicos”
(como o Romantismo e o Modernismo brasileiros) colocaram em estado
de silenciamento ou de submissão pensamental várias produções e modos
de fazer arte. Por outro lado, a negação das tradições também vende edi-
torialmente. Diante de tudo isso, a geopoesia busca articular fatores dinâ-
micos, entendendo a criação como ferramenta de análise e não separando
o pensamento criativo do científico.
Para a geopoesia todas as ciências são (de) humanas. Vige o enten-
dimento de que fazer crítica literária é estar ligado às práticas sociais e po-
líticas. Nesse caso, a consciência ecológica e a necessidade de denunciar a
destruição de vários ecossistemas também é parte desse processo. Estudar
a literatura do centroeste-norte implica em trazer as nuances do povo e
identificar, denunciando, o desaparecimento de grandes porções naturais.
Nesse caminho, poetas e teóricos, poetisas e críticos literários, vêm
realizando etnocartografias para mapear a arte, quase invisível, de um
centro periférico. Em sua dinâmica liminar, a literatura de campo engloba
vozes e performances culturais, autores e obras de brasis liminares de dentro
– longe do mar, também conhecidos como sertão, campos gerais, niemares.

39

Sumário
A geopoesia também prima pelo seu engajamento com a natureza: sua
postura, ao levar o nome do cerrado, é sempre a de denunciar a destruição
latente da terra e consequentemente da alteração da vida dos povos tradi-
cionais do centroeste-norte. Assim, este pensamento do centro-periférico
constitui-se como espaço de problematização do cânone (escrito, vocali-
zado) internacional, nacional e de certa hegemonia cultural e intelectual
do sudeste-sul brasileiro – que vem contando nossa história sem interesse
maior pelas manifestações do centro-oeste e norte. Quando há interes-
se, a exemplo do importante trabalho de Mário de Andrade, ocorre uma
“adaptação” aos processos editoriais vigentes de cada período, o que não
diminui, é claro, a importância de quem faz literatura de campo, embora
mantenha os processos artísticos dessas regiões um tanto invisibilizados.
Se o autor brasileiro não publica e não circula no eixo Rio de Janeiro/São
Paulo, sofre um gradativo processo de exclusão da história oficial e hege-
mônica. A geopoesia surge, então, da necessidade de percorrer o cânone
e tecer novas análises de literaturas periféricas. Para uma resolução con-
tínua da questão, há de se apontar as forças hegemônicas que canonizam
esses autores e, sucessivamente, mapear as produções que confrontam e
desafiam esse cânone.
Em linhas gerais: dar conta de ler a tradição, fazer a recepção crítica
do que as grandes editoras “vendem” e, ainda, conseguir ler autores vivos.
Exercícios prometeicos que, muitas vezes, a obrigação de uma “especia-
lização” dos saberes (nos) impede. Escavar aqueles que ficaram fora da
tradição canonizada e ouvir a voz popular que não está nos livros – ou que
foi, ao menos, estilizada por alguns autores – também é desafio do crítico
no século XXI, ao menos para aquele que realiza a crítica polifônica.
A fim de sistematizar as raízes, os rizomas e as raizamas que orga-
nizam esse discurso, aproximamos autores que se consolidaram em plata-
formas diferentes. Uma nova história, a ser lida e contada diante do velho
normal do cânone literário, vem compondo etnocartografias e apontando
vertentes da literatura de campo. Em suas variantes, que viemos estudan-
do ao longo dos anos, buscamos definir alguns percursos dessa forma de
contar a história literária longe do mar.

40

Sumário
Há uma linhagem de etnoflâneurs da estilização: Afonso Arinos,
Euclides da Cunha e Hugo de Carvalho Ramos – autor goiano da inaugu-
ral forma de fazer “narrativa de campo” com seu Tropas e boiadas. Referen-
cial cabal para Guimarães Rosa e nem sempre lido pelos seus estudiosos.
No contexto da etnoflânerie, o corumbaense Hugo foi fulcral: sendo o
primeiro escritor brasileiro a buscar o ponto narrativo entre a voz dos in-
divíduos da cultura popular e o narrador que domina a linguagem escrita.
Seu trabalho deu origem a uma nova genealogia de etnoflâneurs narrado-
res: Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e José J. Veiga. Este último – ro-
mancista e contista goiano – alcançou uma forma nova de tecer a fantasia
(para alguns, o gênero fantástico) e o seu A hora dos ruminantes é considera-
da uma das obras mais instigantes nessa tradição latino-americana.
Pensamos também em etnoflâneurs da poesia: Cora Coralina, Ma-
noel de Barros e José Godoy Garcia – poeta goiano-brasiliense. Quase es-
quecido, este último vem sendo recuperado por um trabalho intenso entre
leitores-pesquisadores de Brasília, Goiás e Minas Gerais. Cora Coralina e
Manoel de Barros, por terem sido publicados e terem recebido um traba-
lho de leitores ilustres no sudeste, hoje integram o cânone nacional. Com
Godoy Garcia, o trajeto tem sido mais longo e exigido resistência. Por
fim, nesse construto genealógico, há outra variante da etnoflânerie lírica
formada por Cassiano Nunes (poeta menor santista-brasiliense), Anderson
Braga Horta (exímio sonetista mineiro-brasiliense), Hermenegildo Bastos
(bahiano-brasiliense), que estabelecem essa condição cerradeira “onde as
ruas não têm nome”.
Cabe analisar esses conjuntos (os antigos – mortos – e os vivos) e
passar ao exame dos movimentos editoriais, do esquecimento, a depender
do ângulo da relação que neles se estabeleceram e ainda se estabelecem
nas várias instâncias: autor, obra e público; voz, corporalidade performan-
ce; memória, territorialidade e preconceito literário.
A geopoesia é resistência. Efetiva colheitas, percorre lugares por bra-
sis liminares, por vias de uma memória viva composta por formas, magmas
e expressões territoriais e arquitetônicas. Na esteira dessas etnoflâneries,
Niemar estabelece-se na literatura de campo – arte-ciência que se alimenta

41

Sumário
da coleta de etnoficções. A “escrita da terra”3 é esse engajamento por ideais
sociais, políticos e históricos que fazem de suas obras veículos abarcadores
de personagens à margem do processo de acumulação simbólica escrita
e, de certa forma, numa condição subalterna no processo produtivo. Nos
dois casos, os “tipos”, os “marginalizados”, os “festeiros”, os “passan-
tes” – de onde o autor advém – colhidos nas multidões, são retratados
com vivacidade, sentimentos do mundo e humor pensante. Passemos às
publicações.
Colher da tarefa artística, a vida como valor social, biográfico e me-
morialístico, é integrar a prática analítica com a ordem do dia. Pensar
como indivíduo do nosso tempo é justamente percorrer as forças e os prin-
cípios de informação estética que amalgamam e preparam o desenvolvi-
mento de novas formas do literário no século XXI.
Para tal exercício de crítica polifônica, utilizaremos os livros Rio do
sono e Araguaia Mansidão5, de José Godoy Garcia, como vozes conceituais
4

para mergulhar nos contos de A cidade ilhada6, de Milton Hatoum. Esse


encontro é parte de um projeto maior de etnoflânerie marcado por livros
que trafegam num manancial da literatura de campo.
Rio do sono é nome de um livro e o nome, mesmo, de um rio. No
país que tem nome de árvore (pau-brasil) há uma expressão corrente que
considera o cerrado como o berço das águas. Nessa topografia estão loca-
lizadas três bases aquíferas: Urucuia, Bambuí e Guarani. Essa base fluvial
é responsável pelo nascimento e abastecimento de importantes veios de
todo o continente. Mais especificamente o cerrado contribui com oito das
doze regiões hidrográficas do Brasil e da América Latina. Dentre elas des-
tacam-se: as bacias dos rios Araguaia/Tocantins, do rio São Francisco e
do rio Paraná.
Padre Vieira, trabalhando para colonizadores e para a Igreja, álibi
da colonização, chamou a atenção para os rios que atravessavam a colô-
nia. Chegou a navegar pelo Rio Tocantins e a descrevê-lo. Outros viajantes

3    Silva Junior & Marques, Godoy Garcia e Niemar, 2015, p. 237.
4    Garcia, Poesias, 1999, p. 389.
5    Garcia, Araguaia mansidão, 1972.
6    Hatoum, A cidade ilhada. 2009, p. 90.

42

Sumário
que fizeram literatura de campo também identificaram e mapearam as
águas de brasis liminares: Hans Staden, Francisco de Orellana, Spix e Mar-
tius, dentre outros.
Naveguemos por alguns desses rios: o do Sono e o Araguaia. Nossa
escrita discorre justamente nessa direção: um pensamento que nasce na
Região Centro-Oeste em direção às águas e terras da Amazônia. Entre
o narrador da geopoesia na prosa de Milton Hatoum e os veios caudalo-
sos, onde correm versos, de José Godoy Garcia. Em ambos encontramos
seixos e margens, afluentes e bancos (livros) de areia em um conjunto de
paragens em que a sintaxe dos rios e a semântica das margens confluem.
O primeiro livro de Godoy Garcia surge como foz latente dos ermos
e gerais altiplanos. A publicação foi contemplada em 1944 pelo prêmio
Hugo de Carvalho Ramos. Mas os originais ficaram em um imbróglio
editorial que durou quatro anos. O resultado disso é que o poeta ficou
re-trabalhando o livro nesse período. O que temos são duas forças muito
ligadas: a primeira, com ecos da segunda grande guerra europeia. A se-
gunda, com os anos de uma profunda transformação política entre 1946 e
1948 e na alma do escritor. Os poemas estão datados e é possível entender
a concepção do geopoeta jovem e a sua responsabilidade perante o reco-
nhecimento de sua poética. O poeta que venceu o concurso e o poeta que
espera o livro ficar pronto e publicado trabalham:
Eu tenho vivido muito
e tenho visto coisas.
As águas do rio do sono,
são águas tranquilas.
Lá a gente chega
e ouve primeiro o vento.
Ah quando o vento sopra as águas do rio do sono
assombram,
de tão misteriosas,
mas é mistério não, são águas do rio do sono
que se tornaram belas
e a beleza dá impressão de assombramento7

7    Garcia, 1999, p. 389.

43

Sumário
Sempre pronto a alçar voos altíssimos, esse poeta-passarinho nave-
ga pelo rio do sono movendo águas aparentemente tranquilas. Poeta do
assombramento, neste a beleza do humano está profundamente ligada à
natureza. Nessa geopoesia, ouvir o vento, ver e viver, buscar os mistérios
do belo tornam-se as bases para a escrita fluente:
Depois que a gente chega
não tem vontade de falar
sente que é bom observar.
Rio do Sono é grande e de vez em quando parece um céu8

O silenciamento social dá vazão ante a natureza. Esse silêncio dian-


te da grandeza e beleza do rio do sono convida ao verso. Entre ser água
que cala e céu – casa do voo – está justamente o verso em sua plenitude
deambulante:
Eu vou tomar banho
no rio do Sono
Quando eu era pequeno gente contava casos de coisas
misteriosas,
e tenho minha alma cheia de mistérios;
porém o rio do sono não me intimida9

A voz do geopoeta anuncia nesta terceira estrofe que irá tomar ba-
nho no rio do Sono, das coisas vistas e silenciadas. Mas o terceiro verso
abre-se em direção à infância e das gentes que contavam casos de coisas
misteriosas. Aquele silêncio, aquela pele latente, aquele assombramento –
que é o belo – convidam a navegar em direção ao passado e o poeta não
se intimida:
eu sinto as suas águas como sinto o ar da madrugada.
O rio do Sono cura doenças,
o rio do Sono cura tristezas,
o rio do Sono cura a fome dos brasileiros
e podemos mandar chamar os infelizes pra se curarem
nas águas boas desse rio.

8    Garcia, 1999, p. 389.


9    Ibidem, p. 389.

44

Sumário
Foi nas águas do rio do Sono que nasceu a tranquilidade.
E a maldade dos homens que tomaram banhos nas águas
do rio do Sono se curou.10

O verbo sentir conjuga-se em pensamento. As águas aparentemente


mansas curam doenças e tristezas. Mas essa água-política também cura a
fome, posto que a fome é a maior tristeza e doença de nosso país. Estive-
mos nesse mapa em 1944 e voltamos a fazer parte em 2020. O rio-palavras
de Godoy Garcia lava tudo: melhora os seres no auge de uma civilização
em guerra e questiona a situação das pessoas no Brasil e na América:
Mandem levar uma gota das águas do rio do Sono
para a América do Norte;
lá o negro sofre muito nas trevas do Harlem e lá, como
na Favela,
os negros morrem de tuberculose e são linchados porque são negros,
- lá o remédio das águas do rio Sono seria bom.11

Em diálogo com o “poeta irmão do Harlem”12 Langston Hughes,


o geopoeta também se preocupa com a situação dos, até então, irmãos
da América do Norte. Pensando que o poema é de 1944, vemos ainda a
possibilidade dessa irmandade. Mal sabia o jovem Garcia de que no ano
posterior sairia como um dos ícones vencedores da guerra. País que conti-
nua matando negros e que não tem remédio, nem nunca terá. Mas a favela
brasileira, comparada a esse Harlem literário, pois o poeta não esteve lá,
recebe algumas gotas de água de sonho com a geopoesia –, pois na beira
dos versos do rio do Sono a poesia-água pode ser remédio.
Entre o rio e a rua Godoy Garcia margeia “CONFLUÊNCIAS”:
O cérebro é círculo.
A nossa pequenina cidade é um círculo,
O mundo é uma grande graça de nós todos.
Aqui vivemos. Somos humanidade.
Somos águas de uma corrente

10    Ibidem, p. 389.


11    Garcia, 1999, p. 390.
12    Garcia, 1999, p. 393.

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Sumário
do mesmo local onde se encontram
outras águas de outras correntes.
Somos esperanças de outros momentos,
firme verdade de nosso firmamento, cérebro.
Fraternidade.13

Nessas canções de vento e vazão, o cérebro e a cidade são círculos


e o mundo uma “grande graça” cheia de fraternidade. Se a palavra-verso
final aparece tão estranha quando citada no ensaio, no livro Rio do Sono
ela ecoa em tantas metáforas. O poeta realmente escreve para conectar-se
com seus irmãos: do Harlem e/ou do Jalapão (que é onde está exatamente
o “verdadeiro” Rio do sono). Vale notar o uso da vírgula no penúltimo
verso já indiciando um estilo que se desenvolveria na parataxe musical,
com a memória de dobrados e músicas de procissão. Somos água de sono
e é dessa água que, nós todos, estamos ligados. Afluentes diferentes de
uma mesma corrente: o humano.
Inicia-se uma coleção de seixos de geopoesia que, uma vez agru-
pados pela crítica colecionadora (imagem benjaminiana), permite refazer
um breve passeio por uma poesia capital. O jovem poeta de Rio do Sono
dá vazão ao poeta revolucionário. Se antes a capital nacional não existia,
nesse momento, esse Distrito Federal incrustado, matematicamente, no
solo Goyano, também compõe sua poética. Nossa hipótese de investiga-
ção é que esses afluentes não podem ser lidos isoladamente, permitindo
tão somente que uma mudança político-cartográfica seja marco-zero de
algo que, de tão longe, vem se inscrevendo e se escrevendo. Brasília e To-
cantins compreendidos “fora” de Goiás é ignorar um conjunto de forças
históricas que realmente se moveram para que essas localidades-nomes se
batizassem e facultassem novos fluxos migratórios.
Esse Rio do Sono localizado no Tocantins é topográfico, mas é tam-
bém um rio pensamental. Ele corre e banha as pessoas, ele responde à
pedra do sono cabralina, à rosa do povo drummondiana e em um plano
mais geral, José Godoy Garcia segue na esteira de várias tradições popu-
lares e orais.

13    Garcia, Poesias, 1999, p. 377.

46

Sumário
O estudo das palavras altiplanas traduz-se na revisão do sentido ser-
tão, no plano cultural e cotidiano, no âmbito geográfico e político. Há
sertões e há veredas que se manifestam e se bifurcam na movimentação
dos grandes fluxos humanos. Da imagem das transferências das capitais,
Bahia, Rio de Janeiro e Brasília – tomando Goiânia como pólo desse pro-
cesso – é que a geopoesia se institui e se demove. Na confluência de loca-
lidades, a cartografia pelos vãos literários revela um conjunto de estados
atuais: Goiás, Minas Gerais, Bahia, Tocantins – e o Distrito Federal, em
sua mais recente condição histórica de “zona de influência poética” (que
é também socioeconômica). Assim, a literatura de campo irrompe como
uma forma de contar a história desse fazer literário que existe e que não
existe (que não é lido). Partindo do ponto cultural cerratense, encetamos
buscar pela etnoflânerie em um espaço e na história que liga Goiás e Bra-
sília por um grande fluxo raizamático14.
Mais especificamente, algumas companhias ecoam nas retinas fati-
gadas dessa “nova leitura”: Cassiano Nunes15 e Anderson Braga Horta16.
Escolhemos, como lago poético, apenas para ilustrar, o poeta da “bicicle-
taria” e o fazedor de sonetos do deserto altiplano. Em suas jornadas e im-
provisos líricos, muito do enfronteiramento literário é demarcado. Poetas
do trânsito e do transe que trazem seus brasis para o Brasil Central e que
foram construindo e ainda constroem (Horta ainda é vivo) territorialida-
des poéticas.
Cassiano Nunes trata de caminhos de uma poesia simples com ver-
sos simples. E nesse rebuscamento conversa com Cecília Meireles, Fer-
nando Pessoa, Volpi, Braque, dentre outros artistas que ecoaram no século
XX. Na sua poesia encontramos uma cidade erigida com a solidão. Afinal
em sua obra, como na de Manuel Bandeira, coexistem sentimentos do
solitário e um sentimento da cidade reconhecível em vários poemas, tais
como: Harlem Blue, Contemplando o porto de Nova Iorque, e no passeio-mun-
di de Bicicleta17. Ainda sentimos nesse Prisioneiro do Arco-íris o ensinamento
14    Silva Junior & Barros, Raizamas do Brasil, 2020, p. 176-188.
15    Nunes, Jornada Lírica (Antologia Poética), 1992.
16    Horta, Signo, 2010.
17    Nunes, Jornada Lírica (Antologia Poética), 1992, p. 42; 46; 26.

47

Sumário
dos pássaros. A cantar sentado numa mesa do Quintana’s Bar ele compõe
o poema de aniversário: “O vôo do pássaro/ é a sua maneira/ de ser so-
litário. Silêncio – Aquário/ cruzado por peixes escarlates,/ perplexidades
[...] É fácil/ meu endereço./ Moro numa canção – área que se situa/ entre
o Sonho e a Solidão”18. É desse desejo do voo que a poética de Nunes se
constrói. As águas e asas que percorrem sua pena são forças preocupadas
com o humano, com o universo à roda dos versos.
De Anderson Braga Horta pode-se tratar de suas antologias meta-
poéticas. Seus poemas tratam de cigarras e de palavras-coisa-musgo, de
altiplanos e palimpsestos, rosas e rosáceas, cantos genesíacos e quadras
caóticas. Este sonetista continua uma tradição brasileira que encontrou
sua expressão nas tintas da melancolia de Augusto dos Anjos e na tinta
da alegria-que-ama do poetinha Vinícius de Moraes. Em Braga Horta há
um “pássaro no aquário” que, em sua generosidade e memória do mundo,
antevê um mapa-poético da cidade em seu Canto a Brasília19. Neste poema
ele transforma em verso vários cantadores da capital. Dentre eles, Fernan-
do Mendes Viana, Joanyr de Oliveira, o próprio Cassiano Nunes e outros.
Promovendo um cânone no interior do poema torna verbo aqueles que
fizeram o verso fundamental.
Desses encontros, desse Distrito que se nomeia Federal e que é
cantado em solo goiano irrompem o segundo livro de poesia de Godoy
Garcia. Para nós, um dos livros de poesia mais importantes do século
XX. Analisamos esse livro no mesmo patamar das produções poéticas
de Fernando Pessoa e Carlos Drummond, grifando também uma leveza
semelhante à de Manuel Bandeira, com pontualidade que lembra as obras
de Cecília Meireles e, ainda, a força palavral de Manoel de Barros e Gui-
marães Rosa.
Em Araguaia Mansidão, esse geopoeta faz ecoar a força de um rio-
-paratático:
O PÁSSARO PENSA
O pássaro pensa que as chuvas

18    Ibidem, p. 59.


19    Horta, Signo, 2010, p. 204-206.

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Sumário
viajando chegaram,
que no lombo dos ventos
águas dos rios viajaram,
que chuva é viagem dos rios
nos caminhos por onde eles sempre
andaram; arco-íris é encontro dos rios
muito por cima onde eles sempre
andaram; que os verdes, amarelos, vermelhos
rios se juntaram, frutas e peixes e flores
que os rios para o arco-íris levaram.20

Os elementos da natureza representam geografias de onde brotaram


e fixaram raízes e rizomas que se traduzem em raizamas. O pássaro – que
podemos dizer que é Godoy Garcia – pensa. E pensando faz versos: tudo
conflui num grande carnaval de cores e movimentos e tudo discorre para
o encontro dos rios. A chuva, que também é uma constante na poética
garciana, chove para que os rios se juntem e produzam abundância.
Se o sonho é a casa de imaginar, o ato de escrever torna-se então o
ato de estar com outro na natureza. Em respondibilidade e responsivida-
de, a geopoesia de Garcia destaca esse indivíduo ecologicamente engaja-
do. O indivíduo que tem a lembrança da vida narrada em rio, têm a noite
substituída pela laranja da aurora devaneante, a lona do circo que ensina a
sonhar e seguir caminhos (pela arte popular). Lutar com a vida e lutar com
palavras é o voo desse pássaro-poeta. A cortina arcoirizada trazida pelo
canto dos pássaros e pela corrente do rio embala e abre as portas para um
novo jeito de habitar o habitat – que é Terra, que é Goiás:
Montanha amizade do homem
a serra do Paranã
tem mil caminhos de pedras
os cascos dos bois e burros
têm rancor do chão21

20    Garcia, Araguaia mansidão, 1972, p. 12.


21    Ibidem, p. 33

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Sumário
O sentimento do ser que se move no mundo, que se alimenta dos
rios, que ergue as casas de morar na orla, fazendo-se morador de orla, re-
vela toda geopoesia do mundo. Em Godoy Garcia isso é escrito na língua
do povo, na língua certa do cotidiano, na caminhada torta e silenciosa das
árvores do cerrado: “A terra tem os seus segredos (...) E, de suas águas e
caules,/ Ou minerais, tempos e seres,/ Flui uma alegria na festa/ De sua
ânsia de ser e servir”22. Na raizama o ser avulta em sua plenitude: amante
de si, de suas cores, de seus habitantes, de suas profundidades, de sua mu-
sicalidade, de seus líquidos, de seus caules e rizomas. Tudo implica essa
busca de conexão, pela palavra-água, com o mundo.
Para o ser do cotidiano, mesmo que esse processo tenha algo de
inconsciente, não faz desse trato com a terra (cultus) algo alienado. Afinal,
essa geopoesia que olha para dentro e para fora emana de energias fes-
tivas e abundantes arrebatadoras. Forças de memória (rabelaisiana) que
encontram esse mesmo colorido em José J. Veiga, por exemplo. Marcas
palavrais que ofuscam todo e qualquer descontentamento exterior e que
evocam uma energia vital sempre pronta a reconhecer o outro como um
igual. A geopoesia de Godoy Garcia extrapola as demarcações sociais e
grilagens das vozes e surge daí essa imagem da geopoesia abundante:
Em seus distanciamentos geográficos e contradições da história social cul-
tural brasileira as aproximações geo-gráphicas, por poéticas, permitem no-
vas visagens, novas aberturas. Por isso ele consegue fazer falar o que não
tem palavra (rio, pássaro, árvore, pedra...) e faz falar aqueles que vai encon-
trando em sua busca por uma literatura de campo. A poesia de Godoy Gar-
cia fala. Seus versos desenham, delineiam, acariciam e sugam, em essência,
os modos de ser e de estar na multiplicidade. Suas combinatórias, entre
espaços e pessoas, geografia e geo-graphias, expõem a violência contra o
outro para aproximar os outros, fragilizados, de uma consciência política
e/ou de uma comunhão na ordem do dia23.

O poeta segue como o título posterior ao do pássaro que pensa:


“Viajando em cima de um caminhão e fazendo versos”24. Fazendo litera-
tura de campo o poeta percorre terras e águas, criadoras, guardadoras de

22    Garcia, Poesias, 1999, p. 274.


23    Silva Junior & Marques, 2015, p. 240.
24    Garcia, Araguaia mansidão, 1972, p. 13.

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Sumário
segredos, conhecedoras de seus colonos de moradia e de seus transeuntes.
Godoy trata não exatamente dos colonos das colônias de habitação, de
origem anglófona, nem mesmo dos colonizadores de exploração de ori-
gem hispânica, mas desse ser da terra e da água que habita, explora, e que
mora e se demora longe do mar (em niemar):
ZÉ GARCIA ARCO-ÍRIS
3.
Se eu sou uma chuva, então
eu sou a água dos rios,
e se sou as águas eu sou o rio mesmo,
sou Zé Garcia rio, Zé Garcia
saudando o povo que vive às suas bordas
Zé Garcia como um murmúrio e como um aconchego
quando à noite ou de madrugada
leva o embornal cheio de peixes
Zé Garcia enrodilhado de auroras e peixes e estrelas
Zé Garcia peixe,
Zé Garcia seixos rolados.
Zé Garcia remorsos de mortos afogados.
Zé Garcia saúde da terra.25

A geopoesia, em sua faceta chamada Literatura de campo, percorre


a vida nos lugares mais inimagináveis e remotos dos contraditórios trópi-
cos. Em sua ânsia de servir, ela abre caminhos secretos aos aculturados e,
aos cultivadores, em suas fugas bruscas, as matas se deixam fecundar e fe-
cundam os leitores. Zé Garcia funde-se com aquilo que vê: é o etnoflâneur
percorrendo rincões de uma realidade muito marcada.
As águas do rio, que é e são ele, vão da sobrevivência do indivíduo
que pesca, à lembrança dos afogados, Godoy poeta-rio, é os seixos rolados
e a saúde da terra: de uma terra que até permite colher versos. Os rios da
terra, do sono e da mansidão têm mais força, pela palavra, porque fundem

25    Garcia, Araguaia mansidão, 1972, p. 15.

51

Sumário
“A chuva e o corpo”: “Chuva é carinho/ E se a gente pudesse cortar um
pedaço/ da chuva e guardar”26.
Nos rios da geopoesia de Zé Garcia correm chuva de águas verme-
lhas, rios negros e tudo encontra-se envolvido por um céu que tudo vê e
guarda em memória. O poeta José Godoy Garcia é como o pássaro da
“Leveza calviniana” que, nestes meandros sutis de “campos gerais”, retra-
ta belezas e formas sociais que sobrevivem às custas dessas águas verme-
lhas e negras. Do alto, os pássaros veem que tudo é imenso: as montanhas,
as cidades, os rios, as infâncias, metáforas que potencializam a ideia de
liberdade e os cruzamentos entre as culturas são atravessados por esses
rios: o do sono e o da mansidão.
A geopoesia, fluxo de palavras, envolve todos os segredos da terra
em sua memória ancestral (e tão atual como qualquer mito). Quando Go-
doy Garcia27 faz referências à natureza, em seu existir humilde e grandio-
so, revela diálogos entrelaçados por versos que articulam o belo do mundo
que reage sempre que sua harmonia é ameaçada. Assim é a Terra, suas
águas, suas raizamas, seus pássaros e a poesia da vida que abriga homens
e mulheres, a natureza e a cidade, os rios e as pessoas. As cidades são
daninhas e danosas com sua densidade e aglomeração. Marginalizam e
alimentam patologias incontroláveis limitando a vida, o corpo, a música
e a harmonia que distancia o ser da morada do sonho, da infância, da ca-
pacidade de querer ser água de rio – porque no rio reside o ato político da
consciência do mundo pela palavra:
PARA ESCREVER A VIDA
Para escrever a vida
primeiro se escreve
a vida de um pássaro
e a viagem que o homem
e a mulher fazem
no barco das estradas
nos dias, nos anos.

26    Ibidem, p. 18.


27    Garcia, Poesias, 1999.

52

Sumário
Tudo se escreve dessa viagem,
o que acontece e o que não acontece,
o que é silêncio e o que não é silêncio,
o que é dia e o que é noite,
o que é rio e o que é chão.

Saber rir muito é preciso saber,


não chorar e nem dormir,
saber da morte o que ela ensina
e saber da terra o que ela sabe.

Conhecer o trabalho da natureza


e mais ainda o do homem;
estar no que ele fez;
e no suor e carne e mãos
de quem o realizou.
Ter a alegria do dia.
Comer o fruto do trabalho.28

Esta comunhão revela-se nessa geopoesia que transpira esta espe-


rança nas palavras que escrevem a vida. Raízes de morar no solo, rizomas
que convidam sempre para a próxima palavra. Como as águas dos rios,
desbravando com seu sangue as paragens, Godoy Garcia escreve a vida.
Do pássaro-escrito à viagem-escrita do homem e da mulher, os barcos e
estradas facultam etnoflâneries. Tudo se escreve porque tudo acontece e
silencia, anoitece e “dia”. O “que é rio e para que chão” traduz o movi-
mento da vida escrita. Se a natureza trabalha o ser também trabalha e a
colheita disso é poder comer o “fruto do trabalho”. Estar no que o outro
faz é o modo que esse geopoeta encontrou para amar: “plantar é amar”,
diz o poema seguinte intitulado “A terra é um ventre”29 ou, então, como
em o “Pássaro cantando chamando a chuva”. E toda vez que a terra é
ameaçada a geopoesia muda de forma e segue o fluxo. Esta é a imagem
poética do homem e da mulher, da cultura popular, no mundo visto por
Godoy Garcia. Em seus distanciamentos geográficos e contradições da

28    Garcia, Araguaia mansidão, 1972, p. 36.


29    Ibidem, p. 38.

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Sumário
história social cultural brasileira essas aproximações permitem novas visa-
gens, novas aberturas.
Por isso Godoy Garcia consegue fazer falar o que não tem palavra
(rio, pássaro, árvore, pedra...) e faz falar aqueles que encontra no meio
do caminho de sua jornada pela literatura de campo. A poesia de Godoy
Garcia fala e ouve. Seus versos desenham, delineiam, acariciam e sugam,
em essência, os modos de ser e de estar na multiplicidade. Suas combina-
tórias, entre espaços e pessoas, geografia e geopoesia, expõem a violência
contra o outro para aproximar os outros, fragilizados, de uma consciência
política e/ou de uma comunhão na ordem do dia.
Realizadas as navegações por estas fozes pensamentais, nosso ob-
jetivo agora é navegar, com o narrador da geopoesia da prosa de Milton
Hatoum. Onde o rio é a rua percorremos “casas ilhadas” e “teatros de
belle époque”, encontramos moradores de orla e seres da terceira margem
de rios. O sertão engendrou o fluvial... e é justamente nessa língua viscosa,
numa cheia de sentenças-rio, que a literatura amazônida se redefine: uma
imensa jangada de árvores que vaga pelo “mundo mundo flúvio mundo”.
Em perspectiva benjaminiana podemos dizer que seu livro de contos, A
cidade ilhada, apresenta um conjunto inumerável de passagens-flúvias que
constituem um livro de registro da história amazônida. Nesses percursos
irrompe aquilo que chamamos de prosa-rio e que motiva esse ensaio-rio
(essay-flêuve). Seres e palavras, localidades e banzeiros pensamentais que
vagam “(...) num espaço movediço em que se misturam o sono e o so-
nho”30.
A partir da relação entre a estética da palavra-do-outro e os sentidos
coletados na experiência da etnoflânerie, aproximamos a prosa do autor
com o trabalho (do) literário de José Godoy Garcia. Na atividade volitivo-
-emocional, inacabada e movente, que se constitui como uma geopoesia
em moto-contínuo, em que a escrita de uma territorialidade é uma forma
de sobrevivência em tempos de extremos, os contos de Hatoum e seus
“personagens que voltam”, estabelecem vínculos com seus romances e

30    Hatoum, A cidade ilhada, 2009, p. 90.

54

Sumário
enunciam uma espécie de “órganon da história e da geografia”, conforme
metáfora parafraseada de Willi Bolle31.
Etnoflanando entre seres das multidões e das navegações, na soli-
dão das bibliotecas e das coleções de livros e cartas, lembranças e cica-
trizes (encaixotadas, abandonadas, anotadas), as perambulações/navega-
ções da geopoesia abordam necessidades urgentes do indivíduo, aspectos
efêmeros do cotidiano e o entendimento da paisagem como um território
mental. Territorialidade a ser percorrida pela palavra. Sendo assim, cada
trecho lido e narrado desdobra-se em arquitetura discursiva e superposi-
ção de detalhes com imagens prenhes de atualidade viva. As passagens das
passagens hatoumnianas congregam: o sono e o sonho da escrita automática
(Freud); a Gaia ciência (Nietzsche) da modernidade traduzida em contra-
ditórios trópicos e o ato de escrever como ato de viver na geopoesia (Silva
Junior). Seus narradores são como o peixe “tralhoto” que podem ver “(...)
ao mesmo tempo o nosso mundo e o outro: o aquático, o submerso”32.
Esse escritor amazonense que, por sua vez, envereda-se numa tra-
vessia longínqua, que passa por águas de muitos países, também converge,
principalmente nos últimos livros, a “conexão” centroeste-norte (no caso,
Brasília-Manaus, Amazônia-Cerrado). Numa espécie de retorno rizomá-
tico a trilogia – “O lugar mais sombrio” – com o romance primeiro in-
titulado A noite da espera, de 2017, e o segundo intitulado Pontos de fuga,
de 2019, vem realizando justamente essa busca da geopoesia. Hatoum, o
ser de carne e osso, que reluta tanto em não fazer parte da tradição “re-
gionalista” e “sertaneja” está percorrendo justamente esse mapa de brasis
liminares longe do mar.
No livro A cidade ilhada há um conjunto imagético de seres arquipeli-
gados que fundem e confundem Manaus e o mundo, portos e aeroportos,
escalas urbanas e flúvias. Nesse conjunto de paragens, em que a sintaxe
dos rios e a semântica das margens confluem, seres flutuantes movimen-
tam-se e os deslocamentos se dão dentro das gentes: se “A natureza ri da
cultura”, os narradores de Hatoum levam seus destinos muito a sério. Os

31    Bolle, “Um painel com milhares de lâmpadas” – Metrópole & Megacidade, 2018.
32    Hatoum, A cidade ilhada, 2009, p. 70.

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Sumário
climas instaurados pelos narradores, sérios e não cômicos, de Hatoum
trazem aquela marca do fingimento que leva o leitor a nunca saber exata-
mente o que existe ou existiu. Há um medo de ser apenas literatura local
em seu percurso: Berkeley e Barcelona, Paris e Bangcoc também precisam
existir para que sua literatura se estruture. As informações à roda do lite-
rário, em recurso “prolongante” e encomiástico apontam para o trabalho
extra-literário do autor e de seus editores. Há muitos nomes de intelectuais
lendo os seus rascunhos, opinando em seus originais: amizades-nomes
que vendem livros. Se Cervantes trouxe um amigo imaginário (e cômico)
para fazer o seu prólogo, Hatoum realmente conclama a academia como
sua fiel e escudeira leitora: Benedito Nunes, Stefania Chiarelli, Francisco
F. Hardman, dentre outros. Críticas e críticos literários, que servem tam-
bém para “vender” o peixe-livro – que não é “ilhado”.
Diante daquilo que é projeção de narradores e personagens – com
influxos, possíveis, da obra como um todo, que sempre volta num am-
plo e consciente exercício de respondibilidade, a circulação nos contos,
o retorno de personagens, em textos publicados de modo esparso, os une
nessas territorialidades ilhadas. Mais uma vez o recurso “prolongante” e
“encomiástico” é trazido para vender o livro. Os contos têm uma biogra-
fia e endereços internacionais. Nenhum deles, conforme a “NOTA DO
AUTOR”33, foi publicado no norte do país. Pelo contrário, foram lidos em
Congressos e Simpósios de Literatura, em Antologias de grande editoras
e até na revista Bravo! – também muito voltada para a divulgação e venda
do cenário sudestino das artes. Para não ocupar mais espaço com as tra-
mas de marketing editorial resta ainda a exposição de contos na França
(Nouvelle Revue Française, NRF), no México (Nueva Antología del cuento
brasileño contemporâneo) e ainda Alemanha e Egito. Antes da “companhia”
da Companhia das Letras os textos já circularam pelo mundo – nenhum
deles pelo Norte do país.
Para ampliar nosso arquipélago de crítica polifônica buscamos o
argentino J. Luís Borges em seu aspecto fabular: cidades e pessoas, em
livro, que também remetem a modos de fingir tão típicos de “jardins de

33    Hatoum, A cidade ilhada, 2009, p. 121-123.

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Sumário
veredas que se bifurcam” e “ruínas circulares”. No interior dos textos de
Hatoum há sempre pensadores, escritores, pesquisadores que instauram
esse cosmopolitismo manauara.
Para pensar uma genealogia nacional e chegar em Hatoum temos
alguns caminhos: há um sertão-chão habitado pelo etnoflâneur Euclides
da Cunha, sertão-lapidado por Graciliano Ramos e um sertão-pedra car-
pido por João Cabral. Os campos gerais cerradeiros foram contados por
Hugo de Carvalho Ramos, por Guimarães Rosa (prosa-vereda) e José J.
Veiga com obras que se aproximam de Gabriel Garcia Marquez e Hermilo
Borba Filho. E há um ser-tão água de José Godoy Garcia, Santiago Naud
e Vicente Cecim.
Nesse percurso, já que partimos de um Araguaia mansidão e imensi-
dão, é preciso fazer um aporte topográfico nessa metáfora que engendra-se
em deslocamentos. O livro Viagem a Andara (1983; 1988), que se escreve
infinitamente – pela palavra, no verbo – numa espécie de “livro invisível”
também se dá numa escrita-rio:
Mas nós, aqui, entre peixes, sonhos e homens, nesta Amazônia em transe
permanente, sabemos, ou deveríamos saber, que é preciso tocar o coração
de Aquiles do real, ali onde é sensível e impaciente espera de um aconteci-
mento total que o transfigure34.

Essa geopoesia literalmente flúvia, do paraense Cecim enraiza-se e


busca essa transfiguração sem a articulação editorial. O narrador de sua
geopoesia escreve nesse transe e trânsito permanente de uma Amazônia
revolucionária. Ele mesmo, em manifesto, assim se define: “Nesta geogra-
fia, não só os rios, mas também as ideias, os desejos, os projetos de vir a
ser, tramam labirintos. Nada a conter”35.
Hatoum, porém, insiste na coerência e no linear – daí, mais uma
vez, a sua respondibilidade tão bem traçada e tão bem recebida pelos
meios editoriais. Cecim e Godoy Garcia já se deixam fluir e buscam a
coerência na incoerência do mundo. O que é sintaxe linear em Hatoum
torna-se parataxes pungentes em Godoy Garcia e profusões apocalípticas

34    Cecim, 2009, p. 05


35    Ibidem, p. 08.

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Sumário
em Cecim. O que é caos e lirismo, em Hatoum é memória. Se os rios de
Godoy e Cecim nos banham naquele instante da leitura e movem moi-
nhos dentro das gentes, as ilhas de Hatoum estão nos rios da memória
– essa coisa-água em que tantas vezes nos banhamos, tantas vezes nos
metamorfoseamos.
Se a água é o elemento transitório – transibunt – nada pode ser mais
movente e singular que a memória. Uma memória banhada por rios (que
rizomam) evoca alguma coisa que desmorona, mas, também, algo que
inunda. Alguém que se banha de recordações movimenta o tempo das
cheias e o tempo da seca (baixar das águas): “O indivíduo não é a soma de
suas impressões gerais, é a soma de suas impressões singulares”36.
Nos contos de Milton Hatoum há um tipo de destino que é sempre
cortado pela água: “um destino essencial que metamorfoseia incessante-
mente a substância do ser”37. O movimento (ecofilosófico) da geopoesia
torna-se uma imersão, uma vez que o rizoma retorna, inclusive, para as
raízes. Nos contos de Milton Hatoum o ser humano em sua profundida-
de e profusão “tem o destino da água que corre”38. A água é o elemento
transitório e a memória banhada pela água deixa transitar o desejo e a
vertigem, o peso e a leveza, o ser e o nada.
Na memória-água dos personagens de A cidade ilhada alguma coi-
sa acontece: substancial, imensa, sem margem. Aquilo que desmorona,
por ser narrativa, também permite que alguma coisa conflua numa eterna
busca do outro (terceira margem) para perpassar por ilhas e arquipélagos.
Cada indivíduo é a soma de suas impressões – de suas raizamas – e assim
se criam em nós as memórias dos afetos. Afetivas e afetadas essas memó-
rias contam histórias. Essas memórias enfrasadas sempre buscam o outro
e negam a água parada e paralítica. A geopoesia evoca uma água que
muda constantemente como cada indivíduo humano demuda. Hatoum
movimenta as engrenagens da etnoflânerie – e seus personagens realizam,
no conjunto, uma espécie de “meta-literatura de campo”.

36    Bachelard, A água e os sonhos, 1998, p. 08.


37    Ibidem, p. 06.
38    Ibidem, p. 06-07.

58

Sumário
Encontrar essa carta inédita em Bancroft, com a caligrafia nervo-
sa de Euclides, é quase um milagre. Mas, para onde vou, Manaus me
persegue, como se a realidade da outra América, mesmo quando não é
solicitada, se intrometesse na espiral do devaneio para dizer que só vim
a Bancroft para ler uma carta amazônica do autor d`Os sertões. Mas há
algo mais nessa missiva além dos reclamos contra o calor de Manaus. A
linguagem de Euclides – barroca, sinuosa, exuberante – está presente do
início ao fim39.
Enfim, a “água anônima sabe todos os segredos” e se cala. A me-
mória sabe os nomes, sabe os meandros da condição humana, e resvala.
A narrativa os revela – para alguns – vocaliza, pois é voz e fala: “No lugar
desconhecido habita o desejo”40. Se a terceira margem, deslindando a be-
leza de título-verso-imagem, é a canoa (barco/barca) que cruza o rio, a
terceira margem do humano, em Hatoum, é a memória.
O etnoflâneur, Milton e de Hatoum, confunde-se com navegadores.
A margem, ideia e lugar, conjuga o enfronteiramento discursivo e reve-
la uma floresta cosmopolitamente tupiniquim – povoada de viajantes e
de seres locais, de pessoas que partiram com seus lembrares, de lugares
com seus nomes: “Meu nome? Tu não vais saber, é proibido, pecado. Meu
nome é só meu. Prometo. (...) Nome e sobrenome não são aparências?”41.
Se o “cosmopolita” Antônio Vieira, ao fazer literatura de campo,
navegando pelas águas do nordeste-norte, pelas terras das “Almazonas”,
armou retoricamente uma outra via interpretativa do (seu Evangelho)
prático-colonial, Hatoum cosmopolitiza seus contos nos bastidores e nas
imagens e tece fluvialmente novos modos de contar história desse e nesse
lugar – que é tema e lugar de todo o mundo: a floresta amazônica. Se
Vieira habitava um mundo ainda em condição de hífen e a ser nomeado e
colonizado, Hatoum usa muitos nomes para dizer sempre Amazônia e se
deixa descolonizar.

39    Hatoum, A cidade ilhada, 2009, p. 26.


40    Ibidem, p. 30.
41    Ibidem, p. 11.

59

Sumário
Nessa linhagem, o etnógrafo Euclides da Cunha apontou para o
indivíduo sempre tendo sua existência em uma condição transitória (no
sentido científico da palavra). O jornalista com verve para romancista en-
tendia que era importante que cada indivíduo humano agisse para que a
transição, diante do struggle for life ocorresse de forma mais eficaz em vida.
Ecos dessa literatura de campo estão no conto Uma estrangeira da nossa
rua: “só depois entendi que a língua, e não a nacionalidade, nos define”42.
Da superfície escura do remanso que alcança o céu (paráfrase das últimas
palavras do conto Um oriental na vastidão43) o “Sartre de Hatoum” pergunta
ao personagem (de nome borgiano) Zéfiro: “Quem são os selvagens?”.
Os contos de A cidade ilhada, com seus indivíduos, deveras humanos
e ilhados, respondem. Respondem e abrigam sempre esse sentido transi-
tivo da pergunta para saber o nome ou quem são os tais selvagens (antro-
pófagos ou não, pois viajar é sempre um ato de “canibalismo”. Narrativa
e narradores da geopoesia formulam, nessa transitividade da partida e do
encontro, do trânsito e do transe, do deslocamento e da chegada, o ilha-
mento. A geopoesia pensa que a arte (e a crítica literária) do século XXI já
não pode ser apenas passiva. Ela necessita do verbo e da memória e implica
uma outra dimensão presente em ambos: a transitividade. A geopoesia
traz sempre a dimensão histórica da palavra e coloca em evidência o ele-
mento revolucionário, posto que é ação, do ato de narrar. Nessa língua
viscosa, numa cheia de sentenças-rio, é que a literatura amazônida se define:
[Sharma] “Escritores e marinheiros estão quase sempre longe de seu lugar,
cada um a seu modo. (...) Para mim, a Amazônia é o mapa de um labi-
rinto infinito”44. Nessa imensa floresta em que vagam pessoas que faunam
e floram “viajar (...) não é entregar-se ao ritual (ainda que simbólico) do
canibalismo? (A natureza ri da cultura45).
Trazemos, por fim, essa pequena navegação por uma Cidade Ilha-
da e plena de rios. Se a “Viagem sem fim” dos contos de Hatoum não se
traduz, nas narrativas orais e escritas da geopoesia, a Amazônia se traduz:
42    Hatoum, A cidade ilhada, 2009, p. 16.
43    Ibidem, 2009, p. 35.
44    Ibidem, p. 55.
45    Ibidem, p. 101.

60

Sumário
com corpos, com vozes, com pessoas. Agora, retornando, como os perso-
nagens de seus contos, Milton Hatoum volta a habitar a Brasília de sua
memória. A Brasília que aparece no último conto do livro – que é a Brasí-
lia de “muito trabalho”46. Brasília, uma porção de terra cercada de goyazes
por todos lados, agora povoa uma trilogia de “lugares mais sombrios” e o
autor passa a percorrer a capital federal chantada em solo goiano – onde
Godoy Garcia teceu solos em mansidões e redemoinhos, voos em sonos
e sonhos.
Assim, nosso ensaio fez-se com uma poética desconhecida e os con-
tos de um autor cosmopolita. Surgem como coleções de insignificâncias,
nas quais catamos aqui e ali, ideias e artes, efemeridades e esquecimentos
que transbordam nessa conjuntura topográfica do que vimos chamando
de centroeste-norte. Abre-se, nesse ensaio-flêuve, em sua fusão com a cole-
ção de anotações, a recuperação de olhares e instantâneos, relampejos e
choques em rios e livros. No trabalho de desautomatização da leitura e da
constante busca da sabedoria, essa poética do ensaio-rio, lança lições de
bem-estar da civilização numa espécie de ecosofia, reflorestando assim o
cânone literário nacional. Confrontar o leitor moderno e o mundo moder-
no decadente é tarefa da crítica polifônica. Questionar uma compreensão
de mundo sempre colonialista e autoritária com as novas potencialidades
da crítica literária (polifônica) é articular o exercício da recepção com a
condição humana.
Olhar o mundo, os passantes (de Baudelaire a Godoy Garcia) e a nós
mesmos através dos cenários (voluntários e involuntários), que produzem
personagens e imagens inesgotáveis, foram atos fulcrais desses percursos.
Enfim, nosso trabalho, nesse momento, busca a experiência na experiên-
cia dos contos para tomá-los como forças atuantes das eternas contradi-
ções da modernidade. Decifrando imagens e sentimentos do mundo, a
geopoesia escreve e reescreve a história – passava a vida passando. Na
geopoesia, um imenso livro de registros, busca o conhecer-se a si mesmo,
conhecer a territorialidade nela mesma, reconhecer na escrita o desejo de
conhecer o outro.

46    Hatoum, A cidade ilhada, 2009, p. 115.

61

Sumário
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63

Sumário
IMPRESSÕES DO COLONIZADOR SOBRE OS
INDÍGENAS BORA E UITOTO EM O NOROESTE
AMAZÔNICO

Joseneide Brasil de Carvalho


Luciele Santos Pantoja

Introdução

O presente artigo teve como objeto a narrativa de viagem de


Thomas Whiffen, “The north-west Amazons: notes of some
months spent among cannibal indians”1 na versão em português, intitu-
lada O Noroeste Amazônico2, traduzida e publicada pelo também professor
e escritor Hélio Rocha. Essa obra é marcada pela descrição de uma va-
riedade de aspectos culturais das comunidades indígenas, localizadas na
fronteira entre o Brasil e a Colômbia no noroeste do Alto Solimões, nos
distritos dos rios Içá e Apoporis, os quais os expedicionários visitaram
durante sua viagem realizada entre os anos de 1908-1909. Assim, a obra
configura-se como um levantamento etnográfico detalhado, pois registra
uma série de catalogações referentes a esses aspectos contidos em seus
relatos de viagem.
A obra apresenta vinte capítulos, os quais poderiam ser divididos
em três partes. A priori, apresenta os motivos de sua viagem à Amazônia.
Em seguida descreve a topografia da região do noroeste amazônico, es-

1    Whiffen, 2009.


2    Whiffen, 2019.
pecificamente no interflúvio Içá-Japurá (Brasil), Putumayo-Caquetá (Co-
lômbia). E, por fim, faz alusão aos aspectos etnográficos sobre os povos
Bora e Uitoto.
Embora a obra apresente vários aspectos a serem investigados, a
análise delimita-se ao capítulo vinte, verificando, perante suas considera-
ções finais, as impressões tecidas a respeito de todos os dados registrados
e interpretados pelo narrador-viajante, ou seja, fragmentos dos aspectos
culturais das comunidades indígenas visitadas durante a expedição engen-
drada no período descrito na obra, elencando críticas relacionadas à:
[...] ausência de individualismo; o efeito do isolamento; a discrição extre-
ma dos indígenas; crueldade; antipatia e medo de estranhos; hospitalidade;
traição; roubo punido com morte; dualismo da ética; vingança; senso moral
e de costumes; a modéstia feminina; ciúme masculino; ódio ao homem
branco; ingratidão; curiosidade; indígenas menos desenvolvidos mental-
mente, mas não degenerados; ausência de evidências de reversão de uma
cultura superior e um povo neolítico.3

A relevância desse estudo deve-se ao fato de que os viajantes, em-


brenhados na floresta tropical amazônica, engajaram-se na atribuição de
registrar os vários aspectos da região e de seus povos. Diante disto, Whi-
ffen também se esmerou em registrar o que considerou relevante para, a
seu modo, enfatizar o que lhe chamou atenção ao estar em contato com
um povo tão distinto.

Considerações iniciais
Ao analisarmos a obra de Whiffen, percebemos o preconceito tam-
bém recorrente em outras narrativas no que tange ao apagamento de ele-
mentos peculiares, correspondente a um povo constituído de uma cultura
heterogênea. Notam-se ainda em seu discurso, negações e constatações a
respeito do que “falta” ao estrangeiro, estando ele distante de sua cultura
e em meio a elementos culturais peculiares e diferentes dos de sua origem.
Os relatos exacerbaram a diferença na experiência humana, enfatizando
unilateralmente o distanciamento de usos e costumes. Que, de tanto ser
reiterado, acabou por engendrar uma imagem estática e impositiva (mesmo

3    Whiffen, 2019, p. 363.

65

Sumário
quando fortemente contrastante com a realidade observada). Pouco a pou-
co esse artifício narrativo cedeu lugar a uma retórica, a mobilização do tra-
balho indígena foi transformada em uma pedagogia moral e religiosa. A en-
trada sertões adentro, atravessando terras habitadas pelos índios, virou uma
epopeia, por meio da qual os colonizadores iam semeando a civilização.4

Por conseguinte, ao refletirmos sobre esta forma de pensamento eu-


rocêntrico, justificamos a necessidade do estudo proposto relacionado às
impressões do colonizador a respeito dos povos indígenas inseridos na
tessitura whiffeniana. Além disso, constata-se a raridade de registros que
fazem alusão a esses povos originários, correspondentes ao início do sé-
culo vinte. Por certo que a obra desse viajante londrino acresce ao arca-
bouço histórico, além de propiciar imagens referentes à região em pauta
e nos propicia um contra-discurso contemporâneo acerca desses registros
etnográficos.
Ao analisarmos os pontos elencados no capítulo vinte da obra do
capitão Thomas Whiffen, reparamos que a visão eurocêntrica nessa nar-
rativa de viagem interferiu na neutralidade de sua pesquisa. Logo, apre-
sentamos excertos desse capítulo em que o expedicionário considera os
povos indígenas como raça inferior pelo fato de não compreenderem e tão
pouco aceitarem uma cultura diferente da qual estão inseridos, julgada ser
o padrão para todos os povos.
Destarte, os indígenas são considerados estagnados, já que não
seguem um modelo de civilização baseado no patriotismo e existência
de um ideal religioso cristão. O autor se pretende científico, contudo, ao
proceder com julgamentos de valor, verifica-se a perda do efeito de sua
cientificidade.
Assim, seguimos o aporte teórico relacionado aos estudos pós-colo-
niais que constam nas obras intituladas Os Condenados da Terra, de Fanon,5
Colonialidade do Poder, de Quijano,6 acrescida das colocações a respeito da
visão eurocêntrica descrita na obra 1492: O encobrimento do outro: a origem

4    Oliveira & Freire, A Presença Indígena na Formação do Brasil, 2006, p. 17.
5    Fanon, Os condenados da terra, 1968.
6    Quijano, Colonialidade do Poder e Classificação Social, 2009.

66

Sumário
do mito da modernidade, de Enrique Dussel,7 em busca de uma análise que
sirva de reflexão no que concerne às pesquisas etnográficas realizadas por
esse capitão londrino na primeira década do século vinte, na qual ocor-
reram momentos de enfrentamentos armados entre os nativos da região
visitada pelo estrangeiro.
Posteriormente, identificamos que o olhar dos viajantes se mostra
avesso ao senso de neutralidade, sendo o fator responsável pela construção
do pensamento sobre os povos amazônicos como civilizações primitivas
e isentas de quaisquer valores morais, bem como de religiosidade. Con-
siderando os diversos olhares sob esta região mistificada e relatada por
viajantes ao longo dos séculos, observaremos que:
[...] as populações autóctones entraram sobretudo marcadas pelo acidental,
pelo exótico e pelo passageiro, como se a existência de indígenas fosse algo
inteiramente fortuito, um obstáculo que logo veio a ser superado e, com o
passar do tempo, chegou a ser minimizado e quase inteiramente esquecido.8

Usando como pressupostos os ideais colonialistas, questionamos os


dados descritos pelo britânico, no intuito de compreender as razões que o
levaram a estabelecer as críticas apresentadas a respeito dos nativos daque-
la região. Em Notas sobre o viajante,9 o tradutor Hélio Rocha atesta o valor
desta obra, haja vista que há poucos registros etnográficos sobre os povos
indígenas citados.
De fato, o viajante não apenas escreveu sobre os Bora e Uitoto; ele pro-
curou viver, o quanto possível fosse, como um deles e (re)construiu esse
feito em seu relato. Contudo, sabemos que essa ‘alteridade’ britânica tão
somente fora animada pela cantoria e enlevo dos dançarinos Bora; algo de
momento, levando-se em conta que muito de seu relato é de “ouvir-dizer”.
Whiffen é um ouvinte arguto dos indígenas, dentre outras estratégias usa-
das para a coleta dos dados que estão estruturados cuidadosamente em sua
narrativa.10

7    Dussel, 1492: O encobrimento do Outro, 1993.


8    Ibidem, p. 19.
9    Rocha, Notas sobre o viajante, a obra e a tradução, 2019.
10    Coqueiro & Rocha, Os Bora e os Uitoto dos distritos dos rios Içá-Japurá aos olhos de
um viajante Britânico, 2019, p. 150.

67

Sumário
A maior parte desses dados foi relatada ao aventureiro por meio de
John Brown, que havia trabalhado na empresa peruano-britânica Peruvian
Amazon Rubber Company (Casa Arana), conhecida por assombrar a região
com seus métodos etnocidas. Doravante, a obra analisada inclui em sua
parte introdutória a respeito do extermínio de nativos, no qual o pesqui-
sador Juan Alvaro Echeverri, em seu artigo “La obra de Thomas Whiffen
un siglo después”11, aponta que alguns dados foram ocultados na obra do
aventureiro britânico, em concordância com o excerto:
As informações de Whiffen foram tratadas confidencialmente pela Agên-
cia de Relações Exteriores, e eram mencionadas em toda correspondência
como proveniente do ‘Sr. X’, até que sua identidade foi sensacionalmente
revelada em 1913 na investigação do Parlamento Britânico [...] (tradução
nossa).12

Outrossim, ainda na parte introdutória da obra, Echeverri evidencia


o fato de o “Sr. X” ser Júlio César Arana del Águila, que estava sendo
chantageado por Whiffen sobre o extermínio em massa de povos indí-
genas na região. Em decorrência das vantagens obtidas por meio dessas
chantagens, ele omite o massacre, haja vista que Arana era um homem
influente, conforme evidencia o excerto abaixo:
[..] Arana também buscou na política uma forma de poder; dessa forma
ficava mais fácil esconder seus negócios clandestinos. No ano de 1902 foi
eleito prefeito de Iquitos e senador do Departamento de Loreto em 1920.
Provavelmente o silenciamento relacionado aos crimes do Putumayo te-
nha sido forçado devido ao fato de Arana ter se tornado um homem tão
influente [...]13

Além disso, os povos indígenas do interflúvio mencionados ante-


riormente se depararam com a visita desse Capitão europeu, lhes cabendo
adotar uma postura que não demonstrasse tanta vulnerabilidade, haja vis-
ta que a exploração ainda ocorria, mesmo que de modo diferente.
11    Echeverri, La obra de Thomas Whiffen un siglo después, 2019.
12    No original: “Las informaciones de Whiffen fueron tratadas confidencialmente por
la Oficina de Relaciones Exteriores, y eran mencionadas en toda correspondencia como
proviniendo de “Mr. X”, hasta que su identidad fue sensacionalmente en la investigación
del Parlamento britânico”. Whiffen, 2019, p. 30.
13    Gurgel, As Atrocidades do Colonialismo em O Paraíso do Diabo, de Walter Har-
denburg, 2017, p. 21.

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Sumário
Em depoimento no livro O Paraíso do diabo14, de Walter Hardenburg,
é mencionado que alguns indígenas contaram a um barbadiano, entrevis-
tado por Roger Casement sobre o fato ocorrido em Putumayo. Esperavam
que esta informação chegasse aos ouvidos do capitão Whiffen para que ele
fizesse a denúncia; o que não ocorreu. Sua permanência na região durou
cerca de sete meses e seu registro foi originalmente publicado em 1915.
Destarte, o estudo bibliográfico realizado não corresponde à análise
da obra em sua totalidade. Delimitamos esta pesquisa enfocando o capítu-
lo vinte, no entanto, para arguir em relação aos relatos whiffenianos, uti-
lizamos ainda citações de outros capítulos, a fim de consolidarmos nosso
entendimento perante as impressões deste capitão britânico que afirmar
ter passando alguns meses entre tribos canibais.
Em suma, no enredo analisado são apresentadas as considerações
finais desse aventureiro relacionadas a esta expedição, mencionando ca-
racterísticas específicas das comunidades indígenas Bora e Uitoto, par-
ticularmente sobre sua conduta social, suas fobias, seu senso de justiça,
características físicas e personalidade, seus meios de defesa, legislação, sua
visão a respeito do comportamento feminino, seus vícios, dentre outros.

O viajante britânico
Segundo informações contidas no artigo de Echeverri já mencio-
nado, o autor de O Noroeste Amazônico nasceu na Inglaterra em 1978. Sua
família trabalhava na fabricação de produtos químicos e vivia conforta-
velmente. Após servir a carreira militar e se aposentar devido a um grave
ferimento na perna, frequentou, por volta de 1900, as aulas na Trinity Hall
Cambridge, porém abandonou os estudos. Ao retornar à carreira militar,
tornou-se capitão em 1904.
No ano de 1908, após se sentir cansado da rotina em que vivia, de-
cidiu encontrar o navegador francês Eugène Robuchon, desaparecido na
região no início de 1906. A partir da suposição de que o francês estivesse
vivo, realizou várias pesquisas e empreendeu a viagem objetivando resga-

14    Hardenburg, O paraíso do diabo, 2016.

69

Sumário
tá-lo. Com base nesse pretexto, perpassou várias localidades registrando
suas impressões, conforme atesta em seu livro:
Passei alguns meses de 1908 e 1909 viajando pelas terras entre os rios Içá
e Apoporis, onde o homem branco pouco tinha adentrado anteriormente.
Nas partes mais remotas desses distritos, grupos indígenas nômades são, de
fato, canibais em certas ocasiões e isso nos fornece evidências de um estado
de selvageria que dificilmente pode ser encontrado em outro lugar do mun-
do no século XX. Essa área inclui o Distrito de Putamayo.15

Thomas Whiffen se aventurou no território localizado entre os rios


Içá e Apoporis, conhecido atualmente como rio Japurá, no distrito de Pu-
tumayo, que se localiza a oeste do estado do Amazonas (Brasil), região
fronteiriça onde registrou o modo de vida e os costumes dos indígenas
catalogando-os e comparando-os. Ao mapear a região explorada, cons-
tatou a existência das muitas comunidades indígenas, tais como Nonuya,
Muinane, Andoque, Resigáro, Ocaína e ainda os Bora e os Uitoto, sendo
estes últimos de seu estudo de campo.
Conforme cita Gondim, ao mencionar a fala correspondente a um
viajante referindo-se ao lugar como “paraíso infernal amazônico”, diz que
“essa é a conclusão que praticamente todos os viajantes chegaram depois
de visitar o paraíso infernal amazônico.”16 Os discursos a respeito do calor
e do clima amazônico além de apontarem o nativo como desorganizado,
auxiliam na cristalização de estereótipos a respeito do espaço visitado.
De súbito, a complexidade cultural amazônica fez com que muitos
estrangeiros, além de impressionados com tanta riqueza, se sentissem inte-
ressados em registrar as particularidades por eles observadas a respeito de
inúmeros aspectos durante suas viagens à Amazônia, tais como moradias,
alimentação, vestuário, organização, saúde, religião, dentre outros, rela-
cionados aos povos originários - primeiros habitantes amazônicos, men-
cionados através dos relatos de viagens tecidos por diversos exploradores.
Além disso, de acordo com Echeverri,17 John Brown nasceu em
Chicago, nos Estados Unidos, em 1879. Após conhecer James Henry se
15    Whiffen, 2019, p. 09.
16    Gondim, A invenção da Amazônia, 2007.
17    Whiffen, Op. cit., p. 32-34.

70

Sumário
tornou marinheiro, trabalhou em diferentes linhas mercantes e conheceu
muitos portos. Em umas das viagens chegou a Iquitos, onde serviu A Casa
Arana de 1902 a 1908.
O norte-americano John Brown foi contratado por Whiffen, devido
aos conhecimentos que possuía sobre a região e a língua local dos povos
Bora e Uitoto. Apesar da fundamental colaboração para que o expedicio-
nário tivesse acesso a tantos dados etnográficos, Whiffen não faz a mere-
cida menção à gama de contribuições que seu colaborador lhe disponibili-
zou, encobrindo a sua coparticipação na obra.

Críticas aos povos indígenas


Ao iniciar o capítulo vinte de sua obra, Whiffen faz uma crítica aos
grupos indígenas daquela localidade considerando-os raças selvagens, “de
baixo estado de civilização”, descrevendo os nativos, tido por ele como
primitivo, acerca dos quais faz a seguinte averiguação:
Em TODAS as raças selvagens, povos de cultura inferior, não há diferencia-
ção de indivíduo para indivíduo, ou seja, todos os membros da raça ou do
grupo estão, aproximadamente, em mesmo nível. Isto é o que conhecemos
como “baixo estado de civilização’’.18

Com efeito, é comum repararmos nos discursos eurocêntricos a infe-


riorização do outro em detrimento de sua raça. A utilização destes termos
demonstra a estereotipação recorrentes dos discursos europeus a fim de
justificar a opressão em nome de uma pretendida civilização europeia, ou
seja, o domínio do colonizador pelo colonizado. Esta dominação também
era justificada pela ideia de propagação de uma consciência civilizatória
para os povos que eram considerados primitivos.
De acordo com Quijano, essa visão que concebe a “humanidade
segundo a qual a população do mundo se diferenciava em inferiores e
superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e
modernos”19 é propagada desde o século XVIII, sobretudo com o Ilumi-
nismo.

18    Whiffen, 2019, p. 363.


19    Quijano, 2009, p. 75.

71

Sumário
Ainda a respeito disso, Jean Paul Sartre, no prefácio da obra Os
condenados da Terra,20 diz que o colonizado não se assemelha ao homem.
Assim, os habitantes do território eram rebaixados ao nível de “macaco
superior” para validar a ideia de que o colono tem o direito de tratar os
colonizados como “bestas de carga”, desumanizando-os a esse ponto.
Em vista do que lemos na obra whiffeniana, é perceptível sua into-
lerância em relação aos hábitos culturais desses povos. Em seu relato de
viagem, justifica que o estado de baixa civilização dos indígenas refere-se
à inexistência de religiosidade e patriotismo, pois considera serem duas
instituições ocidentais desencadeadores do progresso:
Sugeriu-se que tal nível de estagnação, a falta de iniciativa, em suma, de
progresso, se deve à ausência de religião. Um ideal religioso indubitavel-
mente leva ao progresso e, com exceção ao patriotismo - que, afinal, é um
ideal religioso - é a principal força motriz.21

Ao criticar sobre como o colonizador percebe o colonizado, Fanon22


ressalta que para o olhar eurocêntrico a ausência destes valores é perce-
bida como retrocesso, já que para o colonizador a imposição da religião
cristã, que desde os primórdios foi utilizada como uma das formas de
combater todos os maus costumes dos indígenas seria uma forma de pla-
nejar estratégias de domínio nos países que passaram por este processo
arbitrário de colonização.
Assim, avistamos a fala empírica do viajante ao mencionar no capí-
tulo dez sobre a utilização de drogas pelos indígenas. Ele descreve a forma
utilizada da folha de coca, sendo colocada em um ou dois cantos da boca
e sendo absorvida gradualmente, juntamente com a saliva. Afirma ainda
que o indígena é “cocainomaníaco”, acrescentando que “dificilmente se
tem a oportunidade de diferenciar se está ou não sob o efeito de drogas.”23
Concernente ao caráter dos indígenas, Whiffen afirma que a práti-
ca cultural do consumo de coca os deixa extremamente nervosos, o que

20    Fanon, 1968, p. 12.


21    Whiffen, 2019, p. 363.
22    Ibidem, p. 37.
23    Ibidem, p. 232-233.

72

Sumário
dificultava o relacionamento dos nativos com seus semelhantes e ainda
com os estrangeiros, negativando o caráter dos indígenas. Ainda mais a
respeito do uso de cocaína pelos indígenas, o britânico acredita ser uma
prática já arraigada por eles, favorecendo sua interpretação de que esse
hábito reforça o nível de degradação do indígena, adequando-se ao recorte
que segue:
A característica dominante no indígena é uma circunspecção profunda e
nervosa. O extremo nervosismo da sua conduta, é, indubitavelmente, devi-
do ao costume do consumo de coca. Afeta todas as condições do intercurso
social. Faz com que o caráter do indígena seja extremamente negativo.24

Perante as acusações impingidas sobre os nativos denotam a falta


de observância aos costumes da cultura em questão, trazendo ao olhar do
leitor uma ótica que não revela de forma transparente os ritos e vivências,
bem como os ensinamentos que são transmitidos por meio da oralidade
de geração a geração. A respeito deste ponto, Frantz Fanon considera que,
segundo a visão do colono, os colonizados ou desertaram seus valores ou
jamais o tiveram:
O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como
também negação de valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores.
Neste sentido é o mal absoluto. Elemento corrosivo, que destrói tudo o que
dele se aproxima, elemento deformador, que desfigura tudo o que se refere
à estética ou à moral, depositário de força maléfica, instrumento incons-
ciente e irrecuperável de forças cegas [...]. Os costumes dos colonizados,
suas tradições, seus mitos, sobretudo seus mitos, são a própria marca desta
indigência, desta depravação constitucional.25

Indubitavelmente, sem um olhar que permite conhecer e compre-


ender o contexto dos habitantes locais e utilizando uma fala ofensiva e
depreciativa, o viajante no decorrer de seus registros lança de forma im-
prudente sua ótica a respeito desta cultura tão rica de características in-
compreendidas pelos visitantes europeus.No que concerne à ética, Fanon
destaca a forma como o colonizador constrói seu discurso, permeado de
uma interpretação que inferioriza o colonizado, apresentando-os de forma

24    Ibidem, p. 364.


25    Fanon, 1968, p. 31.

73

Sumário
equivocada. Acrescente-se que os aspectos culturais dessas comunidades
estudadas são descritos conforme a ideia whiffeniana de que os indígenas
não são intelectualmente desenvolvidos.
Nesse sentido, o autor afirma que, no código linguístico indígena,
palavras como “virtude, justiça, humanidade, vícios, injustiça ou cruelda-
de” não pertencem ao vocabulário desses povos. Contudo, estes termos
são considerados como “equivalentes do bem e do mal.”26 É prática co-
mum dos viajantes europeus criar um discurso fantasioso acerca dos espa-
ços amazônicos e tecer falas apontando o que lhes desagrada, usando um
tom explorador que pressupõe poder para subjugar e deturpar ainda mais
os habitantes do noroeste amazônico.
Ao dar continuidade às descrições antropológicas, Whiffen notou
que dificilmente existem rixas entre os indígenas. Percebeu também que
se algum desentendimento ocorre e o indígena que sofreu a injustiça não
busca retaliação, por não ser forte o suficiente para se vingar, ele decide
não recorrer ao auxílio do cacique, devido seu constrangimento. No en-
tanto, conforme o costume, se o cacique tomar conhecimento e decidir
solucionar a situação, ele poderá fazê-lo.
Seria um erro afirmar que essas pessoas não têm senso moral, porque uma
adesão servil ao costume em si é moral. Isso quer dizer que possuem um
código moral. Contudo, isso não implica em algo tido como certo ou erra-
do, como julgamos, mas apenas Pia, ou seja, “é o que nossos antepassados
pensavam e faziam”; em outras palavras, é o costume tribal, que pode ser
traduzido pelo que chamamos de “convenção social’’.27

Paralelamente, podemos averiguar que o capitão britânico, usando


como parâmetro as sociedades europeias, considera que os povos indíge-
nas possuem um código de ética próprio, e os estratifica, sob um discurso
colonialista, como pertencentes a um estado de baixa civilização. Para
validar seu discurso, utiliza um relato ocorrido no período em que estava
em uma aldeia da região, no que tange a punição referente à infidelidade,
resultando ao transgressor passar pelo martírio das formigas tucandeiras.

26    Whiffen, 2019, p. 369.


27    Whiffen, 2019, p.369.

74

Sumário
Limites e fronteiras
Para as tribos citadas nesta narrativa etnográfica em análise, o es-
paço a eles pertencente delimita a sua tribo. Considerando que eles vivem
em sistema de grupos “em que a comunidade é tudo e o indivíduo é na-
da,”28 afinal é no sistema socialista que vivem as comunidades indígenas.
Nada é individualizado além de contarem com a proteção uns dos outros,
não apresentando simpatia com alheios à sua comunidade. Segundo Lia
Machado em seu artigo “A palavra limite, de origem latina” foi criada
para designar o fim daquilo que “mantém coesa uma unidade político-
-territorial.”29 Sobre a questão do que delimita uma comunidade indígena,
verificamos ainda os conceitos a respeito de fronteiras, considerando a
descrição de Pesavento, esclarecendo que:
[...] as fronteiras, antes de serem marcos físicos ou naturais, são, sobretu-
do simbólicas. São marcos, sim, mas sobretudo de referência mental que
guiam a percepção de realidade. Nesse sentido, são produtos desta capa-
cidade mágica de representar o mundo por um mundo paralelo de sinais
por meio do qual os homens percebem e qualificam a si próprios, ao corpo
social, ao espaço e ao próprio tempo. Referimo-nos ao imaginário esse sis-
tema de representações coletivas que atribui significado ao real e que pauta
os valores e a conduta. Desta forma, as fronteiras são, sobretudo, culturais,
ou seja, são construções de sentido, fazendo a parte do jogo social das re-
presentações que estabelece classificações, hierarquias e limites, guiando o
olhar e a apreciação sobre o mundo.30

Salienta-se ainda que, diferente da ideia de limites e fronteiras co-


nhecidas por Whiffen, apresenta uma forte resistência em torno de como
os indígenas organizam seus espaços, cabendo dizer que essas tribos se de-
limitam em torno do que lhes é comum, ou seja, sua própria tribo, a qual
estabelece seus códigos de conduta, ritos culturais e a forma como deve se
organizar para a preservação de seu grupo social.
Em concordância com o disposto na obra, as formas de organiza-
ção social desses dois grupos indígenas (Bora e Uitoto) não são favoráveis
à ideia por ele concebida acerca de progresso social e desenvolvimento,
28    Ibidem, p. 364.
29    Machado, Limites, fronteiras, redes, 1998, p. 41-44.
30    Pesavento, Além das fronteiras, 2002, p. 35-39.

75

Sumário
pois esses indígenas organizam-se coletivamente, a fim de colaborar para
a manutenção de suas aldeias e não de forma individualizada, tal qual é
concebida sob os padrões da sociedade europeia.
Logo, de acordo com as observações do viajante, os indígenas apre-
sentam no que tange à ética, um traço que se destaca, visto serem com-
placentes tanto para com sua família quanto aos pertencentes de sua tribo,
sendo uma escolha notória dos indígenas a de viver em seu espaço, contri-
buindo uns com os outros, sem a pretensão de serem importunados pelos
brancos.
Sendo nômades, os povos nativos migravam para outra localidade
em casos específicos, como por exemplo, ao se sentirem ameaçados. O
nativo “pode ser teimosamente obstinado, mas somente em casos excep-
cionais ele pode se elevar acima de seus companheiros para qualquer coisa
que se aproxima de individualidade e de força mental.”31
No que concerne à hospitalidade na visão do autor, o indígena não
apresenta ser um bom anfitrião aos demais grupos linguísticos, engloban-
do os estrangeiros, considerados invasores e vistos com desconfiança, de-
vido aos episódios em que os exploradores utilizaram de seu poder bélico
para capturá-los e os escravizar no Cinturão da Borracha. A sua esfera al-
truísta se restringe a sua própria tribo, recusando qualquer interação com
os de fora.
Sobre a interação com as outras tribos, o viajante britânico tece seus
comentários doravante às atitudes por parte dos indígenas, denotando
traição ao fingirem hospitalidade, sendo este um sinal de alerta. Segundo
o escritor, esse fator corresponde ao alto nível de periculosidade que eles
apresentam ao se relacionarem com os não pertencentes à sua comunida-
de. Um fato também comentado na obra diz respeito à rivalidade entre as
tribos é a prática do envenenamento de abacaxis, presenteado aos foras-
teiros, fazendo jus ao ditado popular por ele ouvido, que diz: “pegue um
abacaxi de um inimigo e morra.”32

31    Whiffen, 2019, p. 364.


32    Whiffen, 2019, p. 367.

76

Sumário
Buscando evidenciar como o colonizador se promove ante ao co-
lonizado, o escritor tunisiano Albert Memmi retrata a desumanização da
qual o colonizado é acometido pelo colonizador, no recorte que segue:
Ao mesmo tempo, ao sustentar seus privilégios tanto com sua glória quanto
com o envilecimento do colonizado, ele se obstinará a envilecê-lo. Utilizará
para retratá-lo as cores mais sombrias, agirá, se for preciso, para desvalo-
rizá-lo, para aniquilá-lo. Mas jamais sairá desse círculo: precisa explicar
essa distância que a colonização põe entre ele e o colonizado; ora, para
justificar-se, ele é levado a aumentar ainda mais essa distância, a opor ir-
remediavelmente as duas figuras, a sua tão gloriosa, a do colonizador tão
desprezível.33

Em vista disto, a ética em duplicidade é mais um dos pontos apre-


sentados no relato whiffeniano que, consequentemente, destaca que as
leis se diferem no que concerne aos integrantes da comunidade, sendo
inaceitável cometer delitos em seu próprio meio. Entretanto, relata não
haver penalidade alguma, caso o ato infrator se referir às comunidades
circundantes ou a qualquer visitante da localidade onde residem, como
observamos no excerto:
Cometer o mal contra outra tribo não é visto como prejudicial, exceto aos
olhos da tribo que sofreu o dano; então, para os seus membros, não se torna
o erro do indivíduo que cometeu o dano, mas de toda a comunidade. É a
tribo e não o indivíduo que seria considerada culpada por qualquer ofensa
cometida por um de seus membros.34

Como se não bastasse, enfatiza a prática de “uma lei para a tribo e


outra lei para todos os que não são membros dela.”35 Whiffen explica que
o ato de furtar dentro da própria comunidade é passível de se aplicar aos
indígenas a penalidade máxima, na qual a vítima é autorizada a degolar o
ladrão, devido a atitude deste infrator atingir não apenas a um pertencente
da comunidade, mas a ela por inteiro, sendo o motivo da drástica punição
impetrada.
O viajante-aventureiro afirma ter sido vítima de furto por uma mu-
lher Uitoto, a qual teria lhe roubado a tesoura. Embora tenha jurado não
33    Memmi, O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, 2007, p. 92.
34    Whiffen, Op. cit., p. 368.
35    Whiffen, Op. cit., p. 368.

77

Sumário
ter cometido o crime contra ele, o europeu constata que “não há punição
se roubar de pessoas estranhas. Eles vão praticá-lo sem problemas”36
Outra observação feita pelo viajante foi o fato de os nativos não
possuírem o hábito de ir em busca de algum objeto que tenha sido furtado
por algum indígena de uma outra comunidade, sendo estas ocorrências
algo comum entre os povos da região. Embora seja uma forma de recre-
ação para os indígenas, esse hábito traz certa perplexidade por parte do
colonizador.
Thomas Whiffen, concernente ao modo peculiar das mulheres indí-
genas, notou que elas estavam intimidadas por sua presença. Percebendo
que as nativas evitavam o contato visual e a comunicação com ele, obser-
vou a atitude delas de manterem seus olhares fixos ao chão. Relata inclu-
sive serem mais interessadas em alguns de seus pertences, os quais para
ele não possuía valor estimado, e pontua: “É difícil dizer o que vai suscitar
sua admiração.”37
Ademais, Whiffen explana ainda que é opção do indígena não se
prender aos viajantes quando concordam em lhes prestar assistência, pois
eles estão sempre prontos a fugir, abandonando o homem branco a qual-
quer momento, muitas vezes para se juntar a outro aventureiro, afinal o
indígena olha pelo seu próprio prisma, embora tenha feito o acordo de
auxiliá-lo até o fim de sua jornada.

O olhar eurocêntrico em contraste com os costumes indígenas


Ao tecer sobre o retrato do oprimido criado pelo colonizador, Mem-
mi compreende que com o intuito de se retratar de forma benéfica, pen-
sando apenas em si próprio, o colonizador constrói em sua fala afirmações
que precisam ser comprovadas ou esclarecidas diante de tantas narrativas
que trazem ao colonizado o peso de se comportar tal qual um ser desu-
mano ou impiedoso perante os leitores. Sobre essa questão, assevera que:
Uma vez que tomou consciência da injusta relação que o une ao coloniza-
do, precisa aplicar-se sem trégua a absolvição de si mesmo. Jamais esque-

36    Whiffen, 2019, p. 368.


37    Ibidem, p. 371.

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Sumário
cerá de ostentar publicamente suas próprias virtudes, agirá com impetuosa
tenacidade para parecer heroico e grande, merecendo amplamente sua for-
tuna. 38

Ademais, a respeito desse ponto observado em Retrato do colonizado


precedido do retrato do colonizador, “É preciso acrescentar que, quanto mais
o usurpado é esmagado, mais o usurpador triunfa na sua usurpação, para
depois se confirmar em sua culpabilidade e em sua condenação”39. As-
sim, ao abordar sobre os tipos de colonizadores, independente de qual se
apresenta, verificamos nos relatos whiffenianos sobre a prática de furtos,
uma tática de ação para condenar o colonizado, direcionando o olhar de
todos para o feito que considera heroico de se arriscar ao se inserir em
uma comunidade indígena. Apesar de ser uma etnografia, há, aqui e ali,
marcas de uma narrativa pessoal e isso assume um ar de autoridade sobre
os povos visitados.
Consequentemente, nota-se que os viajantes que adentraram os es-
paços amazônicos, com a roupagem de cientistas e pesquisadores tinham
como objetivo conhecer a região para iniciar o processo de colonização.
Para validar a visão eurocêntrica que deu início ao extermínio das socie-
dades indígenas, promoveu-se o desprestígio dessas civilizações, que eram
consideradas ameaças para o progresso do que era considerado como hu-
manidade, desse modo, esses ideais podem ser apontados como forças
destruidoras que penetraram a região amazônica, causando severas fissu-
ras nas sociedades indígenas.
Os exploradores não tinham como intenção adaptarem-se ao meio
ambiente que pretendiam colonizar, mas conquistá-los e para isso qual-
quer que fosse o obstáculo encontrado para atingir tal finalidade deveria
ser exterminado, é o que podemos constatar seguindo a ótica de Márcio
Souza:
Os povos indígenas são ameaçadores, da perspectiva do pensamento etno-
centrista, não apenas porque estão no caminho do progresso, ocupando
terras ricas em minerais ou por impedirem a expansão da frente econômi-
ca, mas porque eles desmontaram a velha descrição da cultura como algo

38    Memmi, 2007, p. 92.


39    Ibidem, p. 90.

79

Sumário
exclusivo ao Ocidente e não inerente à natureza humana, o que obrigou a
entender a variedade de outros num relativismo bastante vasto do ponto de
vista histórico e antropológico.40

Visto que havia o intuito de apontar como os nativos Bora e Uito-


to foram estereotipados na obra, destacamos que, para o expedicionário,
as tribos indígenas narradas em seu relato de viagem são descritas como
povos neolíticos, tendo em vista que são contrários a todas as ideias que
o narrador tem sobre como devem se organizar para chegar ao progresso.
De acordo com o comentário,
É possível aceitar o discurso de que a Inglaterra imperialista, e demais colo-
nizadores europeus, inventaram a Amazônia, assim como também inventa-
ram a África, Oriente Médio e demais realidades que em certos momentos
históricos estiveram sob seus domínios. Thomas Whiffen é apenas um ins-
trumento, consciente ou não, dessa indústria de produção cultural-ideológi-
ca. Uma indústria que dá voz ao narrador, por um lado e, do outro, silencia
o outro e silencia a sua própria natureza.41

Em contraste com a visão eurocêntrica, percebemos como os colo-


nizadores acabam adotando uma postura de falseamento social. O fato
dos indígenas não aderirem a meios mais engendrados de elaborar seus
utensílios ou preferirem construir balsas ao invés de canoas não representa
um retrocesso, sendo práticos ao cumprirem seu objetivo e, desta forma,
otimizarem seu tempo. Percebe-se em outras partes da obra deste capitão
o quanto registrou, não só através da escrita, mas também de registros
fotográficos, a sua aventura.

Considerações finais
Acima de tudo, ao tratar dos aspectos inerentes aos Bora e Uitoto,
cujos costumes são diferentes dos colonizadores, a narrativa whiffeniana
possibilita conhecer as formas de representações sobre as etnias por ele
catalogadas. Compreender que a visão do mundo dos estrangeiros sobre
os povos indígenas é carregada por ideais e pelo entendimento de que a
sociedade europeia deve ser o padrão a ser seguido por todos os povos,

40    Souza, Amazônia indígena, 2015.


41   Alves & Continguiba, As narrativas da floresta e os padrões imperialistas de silencia-
mento cultural, 2019, p. 162.

80

Sumário
nos ajuda a entender as críticas do narrador aos povos nativos do noroeste
amazônico.
Apesar de suas contribuições serem positivas por elucidar algumas
questões voltadas às pesquisas dos povos indígenas, dentre elas a etno-
gráfica, consideramos que o tempo destinado a essa viagem pode não ter
sido suficiente a ponto de que ele contasse a respeito dos diversos aspectos
registrados em sua narrativa de viagem de forma aprofundada. Possivel-
mente, devem ter ocorrido alguns equívocos de interpretação pela falta
de proximidade com uma cultura alheia aos seus costumes eurocêntricos.
Destarte, correspondendo a uma obra tão extensa e repleta de aspec-
tos a serem pontuados, muitas informações podem ter sido negligenciadas
ou mal interpretadas em alguns aspectos, ou até mesmo por ele ocultadas
devido à falta de aprofundamento de suas análises, como o fato apurado
sobre o grande massacre ocorrido naquele mesmo período, dando cabo da
vida de tantos homens indígenas daquelas comunidades, segundo relatou
o pesquisador antropólogo Juan Alvaro Echeverri, da Universidad Nacio-
nal de Colômbia, com sede na Amazônia, o qual esteve entre os nativos
Bora e Uitoto e fez o levantamento para analisar as informações corres-
pondentes a esse etnocídio.
Existe ainda a questão do relacionamento respeitoso do nativo com
o meio em que vive. Todos ali são seres, entes, espíritos, e assim, o mun-
do do nativo é completamente outro, num modo diferenciado de pensar
e agir. Portanto, constatar esta visão eurocêntrica permite-nos destacar a
forma como Whiffen descreveu os grupos apresentados no capítulo XX de
O Noroeste Amazônico. Assim, não se pode negar o nível de importância
das pesquisas elencadas nas narrativas de viagem, visto servir de base para
uma variedade de estudos no que tange a cultura dos povos indígenas não
apenas desta, mas também de outras localidades.

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81

Sumário
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82

Sumário
NUMA E NINFA - O ACRE E A REPÚBLICA
EM LIMA BARRETO: POLÍTICA,
REPRESENTAÇÕES E HISTÓRIA NA
LITERATURA

Francisco Bento da Silva

Pobre terra da Bruzundanga! Velha, velha na sua maior parte,


como o planeta, toda a sua missão tem sido crear a vida e a
fecundidade para os outros, pois nunca os que nella nasceram, os
que nella viveram, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram
socego sobre o seu, solo!

(Excerto do prefácio de Lima Barreto em sua obra Os


Bruzundangas, publicada em 1922)

Introdução

O funcionário público, escritor e jornalista Lima Barreto


(1881/1922) foi um arguto observador da sociedade carioca
e, por extensão, do Brasil do seu tempo. Era uma figura que destoava do
cânone literário da sua época, ao mesmo tempo também foi uma pessoa
atravessada pelas questões de cor arraigadas na sociedade brasileira e pe-
las suas posições políticas que flertavam com o anarquismo. Seus vários
escritos, sejam eles romances, memórias e contos, trazem essas marcas de
maneiras muito incisivas. Umas dessas obras – Numa e Ninfa – será aqui
discutida a partir de algumas particularidades selecionadas para análise
que se relacionam com o então Território Federal do Acre e questões po-
líticas da república de seu tempo. Para além desta citada obra, também
recorremos a outras referências do autor que se articulam com as questões
políticas e sociais de seu tempo. A epígrafe acima, retirada do prefácio de
Os Bruzundangas1 – obra póstuma que é uma alusão galhofeira e ao mesmo
tempo lamentosa do Brasil de seu tempo – nos traz um pouco dessa agu-
deza crítica e olhar atento do autor sobre o Brasil da Primeira República.
Após ser publicado em forma de conto curto em 19112, o seu roman-
ce Numa e Ninfa começou a vir ao público em forma de folhetim através
do jornal A Noite a partir de março de 1915. Ao nos propormos analisar
alguns aspectos desta obra, temos como objetivos mostrar as semelhanças
entre o texto ficcional do romance e o contexto histórico e político que o
mesmo faz alusão de maneira sublimada com nomes fictícios que reme-
tem geralmente a pessoas e contextos claros aos leitores da época.
O ano em que se passa a trama é o de 1910 no Brasil, que marca o
retorno de um militar à presidência do país — Hermes da Fonseca — após
a fase chamada de República da espada. Como suporte teórico e metodoló-
gico, iremos dialogar com as categorias de tipos ideais e da cordialidade
circunscritas às representações presentes no texto literário do autor em
questão, tendo como referências os estudos de Max Weber a partir de Ju-
lien Freund (1987) e Hector Saint Pierre (1999), bem como a obra Raízes
de Brasil de Sérgio Buarque de Holanda (1976). Além destes autores, tra-
zemos um texto de Carlos Gileno sobre Numa e Ninfa e as obras compi-
latórias e biográficas de Lília Moritz Schwarcz (2010 e 2017) sobre Lima
Barreto que serão de suma importância para compreender o universo de
produção deste autor e seu contexto histórico e social.
Afonso Henrique de Lima Barreto foi um literato controverso e
atento ao mundo social e político em que viveu. Suas observações argutas
em formas de contos, romances, crônicas e artigos traçam um panorama

1    O Dicionário Aurélio traz em seu verbete esta palavra e a sua variação Burundanga, em que
ambas significam algo confuso, também coisa imprestável, trapalhada e até comida mal
feita, suja e repugnante. Ferreira, Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, 2010, p. 362.
2    O conto foi publicado originalmente no jornal Gazeta de Notícias, ano III, nº 658, p. 2/3,
1911 e posteriormente foi republicado em: Schwarcz (org.), Contos completos de Lima
Barreto, 2010.

84

Sumário
que transita entre o ficcional e o histórico; entre os imaginários pessoais e
sociais do autor, das suas leituras de mundo e das recusas e desejos que ele
tinha naquele ambiente em que viveu. Era sobretudo o mundo republica-
no recém instalado que carregava problemas novos e heranças da escravi-
dão e da monarquia findas. As personagens da obra Numa e Ninfa – aqui
tomada como objeto de análise – têm no seu texto interno conexões com
o mundo lido e vivido pelo seu autor. A maneira irônica e sagaz de narrar
acontecimentos da vida nacional travestidos pela ficcionalidade, torna-
ram-se uma das marcas de Lima Barreto. Há uma forte projeção da obra
no tempo em que o autor a escreveu, com arquétipos de costumes e de
pessoas. É uma escrita essencialmente dialógica e em contatos com outras
vozes e contextos, conforme vai consagrar Mikhail Bakthin em sua obra A
estética da criação verbal.
Continuando ainda com o teórico russo, ele também se expressou a
respeito da relação tempo-espaço na literatura, quando afirma que “não
há a possibilidade do reflexo de uma época fora do curso do tempo, fora
da ligação com o passado e com o futuro, fora da sua plenitude. Onde
não há marcha do tempo, não há elementos do tempo no sentido pleno e
essencial da palavra”3. Lima Barreto e suas obras são elementos circuns-
critos a esses cursos temporais de vivências e imaginários, de onde brotam
leituras sobre o passado e o presente em formatos dialógicos do autor com
sua obra e suas visões de mundo.
Esse cronotopo (espaço-tempo) é essencial, pois ele é a “materializa-
ção privilegiada do tempo no espaço, é o centro da concretização figura-
tiva, da encarnação do romance inteiro. Todos os elementos abstratos do
romance – as generalizações filosóficas e sociais, as ideias, as análises das
causas e dos efeitos, etc – gravitam ao redor do cronotopo, graças ao qual
se enchem de carne e de sangue...”4. Em Lima Barreto, suas personagens
estão plenas de carne e de sangue, os tempos e os múltiplos espaços car-
regados de sentidos com laivos constantes de historicidade e contradições
inerentes ao fazer humano.

3    Bakthin, Questões de literatura e estética, 1998, p. 263.


4    Bakthin, Questões de literatura e estética, 1998, p. 356.

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Sumário
Entre tantas personagens secundárias da obra, além da principal
Numa Pompílio de Castro, temos as seguintes figuras: o pedante Benvenu-
to que vem a ser primo de Edgarda Cogominho, descrito como homem
rico, extravagante e ignorante. Benvenuto não gostava de ler nada, mas era
conhecido nas rodas sociais do Rio de Janeiro como literato e chamado
cerimoniosamente de “doutor”. Edgarda Cogominho se torna esposa de
Numa e era filha de um conhecido político chamado Neves Cogominho.
Era uma moça “bem criada” no fausto da riqueza proporcionada pela
carreira política do pai e que tinha suas ilusões de nobreza e se casa por
conveniência política do pai, formando um par assimétrico com seu mari-
do Numa Pompílio. Ela é quem escreve os discursos do esposo quando ele
se torna deputado pelas bênçãos do sogro, quando se torna daí em diante
um grande orador perante seus pares e jornalistas.
Essas pessoas e as relações que estabelecem são o retrato de um
mundo de falsidades, de hipocrisias, de apropriação privada da res publica,
predomínio dos interesses pouco éticos e de falsa moral como marcas.
Temos como expressão dessas sinecuras e aparências o general Foirfable e
sua senhora, Ana Foirfable: o autor diz que pareciam pai e filha, sendo o
militar descrito como um bonachão já idoso, simplório e lento de espírito.
Sua jovem esposa cultuava a ociosidade em chás, salões de moda e cinema
onde predominavam amizades superficiais e dissimulações.
O então senador Neves Cogominho tinha se formado em medicina
quando jovem, mas de pronto entrou para a política por considerar que
era um campo mais vasto e menos trabalhoso para a vida abundante que
queria levar. Quando vem a República, ele adere de pronto à causa e seu
tio se torna presidente da província de Sernambi e toda família passa a
ocupar cargos públicos nesse Estado e Cogominho logo é eleito deputado
federal. O Estado do Sernambi se torna feudo dos Cogominho pela pro-
ximidade inicial com o então presidente Deodoro da Fonseca, o até então
monarquista que se tornou o primeiro presidente republicano. O nome
Sernambi remete a um subproduto extraído do látex das seringueiras, ár-
vores então abundantes nas florestas do Norte do país e que produziam
uma importante commoditie da balança comercial brasileira da época. O

86

Sumário
Acre era nesse período o maior produtor de borracha natural do Brasil, em
evidências pelas questões de fronteiras em disputas com a Bolívia e o Peru
resolvidas havia poucos anos.
No romance, cujo título remete ao casal protagonista, Numa Pom-
pílio de Castro é um jovem ambicioso que sai do seu Estado e vai estudar
direito no Rio de Janeiro e, mesmo tendo “aversão a livros”5, ao se formar
desleixadamente como “doutor” é algum tempo depois “despachado pro-
motor de uma comarca de um Estado longínquo”6 pelo senador Neves
Cogominho, seu sogro e padrinho político que lhe abre as portas para a
ascensão política. Como promotor em seu Estado natal, sua carreira foi
curta, mas “nas suas mãos, a justiça estava a serviço do governo; e como
juiz de direito, foi na comarca mais um ditador que um sereno apreciador
de litígios”7. Ou seja, servia mais aos interesses políticos e pessoais de
Neves Congominho a quem devia o casamento e a carreira, cuja medíocre
formação nada tinha a ver com a natureza do cargo. Não era importante
a competência, mas o apadrinhamento, o nepotismo e os favorecimen-
tos cruzados nessas relações baseadas na cordialidade. Menos a domina-
ção legal da norma estatal e impessoal e mais na dominação tradicional tão
característica do patriarcalismo8.
Contudo, antes dessa atividade apadrinhada e de sucesso, ao se
formar retorna sozinho ao seu Estado natal “longínquo” e não consegue
nada por conta própria, apenas homenagens de seus amigos e conhecidos
do periférico Estado do Serbambi. Numa Pompílio lamentava-se diante
dos seus amigos que na capital federal seus antigos colegas de faculdade
não o chamavam de “doutor”, conforme descrito ficcionalmente pelo ro-
mancista no excerto abaixo:
Nascido pobremente, tendo passado toda espécie de privações e necessi-
dades, nada o fazia sofrer profundamente. Logo que se viu formado partiu
para a sua terra natal e lá andou um ano inteiro a receber homenagens,

5    Lima Barreto, 2011, p. 23.


6    Lima Barreto, 2011, p. 07.
7    Lima Barreto apud Schwarcz, 2010, p. 265.
8    Freund, A sociologia de Max Weber, 1987.

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Sumário
sempre estranhando que alguns dos seus companheiros de colégio não o
chamassem por doutor9.

Percebe-se que Numa Pompílio não era um aluno integrado aos


demais colegas de faculdade, principalmente por ser pobre e oriundo de
uma unidade da federação periférica e desimportante no jogo político
nacional. Não tinha estirpe, não provinha de família importante e nem
tinha padrinho. Ao se formar de maneira preguiçosa, relegado ao ostra-
cismo na capital federal, talvez imaginasse ser reconhecido e ter um bom
emprego na sua província natal. Mas isso não ocorre porque mesmo que
tivesse renomada competência jurídica, nada disso valia sem quem o pro-
tegesse nas altas esferas do jogo político local e nacional.
Mesmo assim, resolve retornar à capital da República novamente
para tentar realizar seus desejos de riqueza, reconhecimento e ascensão
social. O casamento com a filha de seu protetor político é mais uma forma
que Numa Pompilio encontra de “alpinismo social” na Primeira Repú-
blica. Com sua sagacidade e oportunismo, ele que se vestia com “apuro
exagerado de provincianismo”10, logo chega ao cargo de juiz de direito na
sua terra natal e depois é eleito deputado federal com ajuda providencial
do seu sogro e protetor. Nesse romance de Lima Barreto, patriarcalismo,
nepotismo, privilégios, impunidades e negociatas públicas e privadas são
os elementos que convivem intrinsecamente com a recém instalada Repú-
blica de bacharéis, militares e latifundiários oriundos muito deles do Im-
pério monárquico e escravagista que havia ruído nas décadas anteriores.
Lima Barreto vivenciou isso pessoalmente, quando estudante da
prestigiada Escola Politécnica no Rio de Janeiro. Durante o tempo em
que ali permaneceu – por indicação de seu padrinho, conde Afonso Cel-
so11 – sentiu-se ora fracassado, ora perseguido por professores e colegas

9    Lima Barreto, 2011, p. 07.


10    Lima Barreto, 2011, p. 08.
11   Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior (1860/1938) era filho de visconde do Ouro
Preto, último presidente do Conselho de Ministros do Império. Político monarquista, ad-
vogado e jornalista, publicou o conhecido livro Porque me ufano de meu país. Fonte: IHGB
(https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/acdconde.html), acesso em 18 de janeiro de 2021.

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Sumário
daquela instituição elitista onde ele era muito provavelmente o único ne-
gro e pobre12.
No seu livro Bagatelas, publicado em 1919, ele relembra esse pas-
sado e assim diz em suas memórias sobre aqueles “meninos ricos sem
amor ao estudo e ambição intelectual”13 que cursavam engenharia naque-
la prestigiada escola a fim de se bacharelarem e terem as portas abertas
para os favores do estado via algum padrinho de prestígio maior que o do
dependente:
Na Escola Politécnica, é de praxe, de regra até, que todo o filho, sobrinho
ou parente de capitalistas ou de brasseurs d’affaires [“magnatas”], mais ou me-
nos iniciado na cabala cremarística do Clube de Engenharia, seja aprovado.
(...) E todos eles, ignorantes e arrotando um saber que não têm, vêm para
a vida, mesmo fora das profissões a cujo exercício lhes dá direito o título,
criar obstáculos aos honestos de inteligência, aos modestos que estudaram,
dando esse espetáculo ignóbil de diretores de bancos oficiais, de chefes de
repartições, de embaixadores, de deputados, de senadores, de generais, de
almirantes, de delegados, que têm menos instrução do que um humilde
contínuo; e, apesar de tudo, quase todos mais enriquecem, seja pelo casa-
mento ou outro qualquer expediente, mais ou menos confessável14.

O relapso estudante e “alpinista social” Numa Pompílio era a repre-


sentação mais acabada dessa descrição genérica acima. Escorava-se nos
discursos da esposa para demonstrar uma oratória que não tinha. Os no-
mes das personagens que também dão nome ao título da obra já merecem
uma atenção especial pelas conexões históricas, caricaturais e psicológicas
que o escritor traz nesse romance de cunho histórico. Segundo Carlos Gi-
leno,
O nome da personagem de Lima Barreto é uma referência satírica à len-
dária figura que reinou em Romade 714 a 671 a.C. Se o Numa Pompílio
romano acolhia as opiniões da Ninfa Egéria – que ficou sendoconhecida
como uma boa “conselheira secreta” – o Numa Pompílio barretiano recebia
os conselhos da Ninfa Edgarda, sua esposa. Portanto, já no próprio título

12    Schwarcz, Lima Barreto: triste visionário, 2017, p. 130.


13    Lima Barreto, Bagatelas, 1956, p. 40.
14    Lima Barreto, 1956, p. 41.

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Sumário
do romance o autor deixa entrever o estilocaricatural que acompanhará o
desenvolvimento do enredo15.

O crítico Antonio Candido, em seu texto A dialética da malandragem


(1970) faz uma análise da obra Memórias de um sargento de milícias (1854),
considerado um dos primeiros romances históricos do Brasil Império.
Nesta obra, Candido afirma que o escritor Manoel Antônio de Almeida
extraiu “dos fatos e das pessoas um certo grau de generalidade que os
aproximou dos paradigmas subjacentes às narrativas folclóricas [...] a ope-
ração inicial do ficcionista teria consistido em reduzir os indivíduos e os
fatos a situações tipos gerais”16.
A fina ironia do amanuense Lima Barreto também traça um pano-
rama dos meandros da vida política nacional, onde ficção e história se
confundem através das personagens humanas e das localidades traçadas
no romance em tons sarcásticos. No arcabouço político da federação bra-
sileira ficcional e paródica, Lima Barreto insere unidades federativas ine-
xistentes, tais como os Estados do Sernambi (muito provavelmente uma
alusão ao Acre); do Guaxupé; das Palmeiras; dos Carapicus; das Abóbo-
ras, das Tâmaras e dos Caranguejos. Nestes, traça as “particularidades”
locais onde se mostram de maneira implícita elementos de crítica política
e social do país pelo viés da picardia e da caricatura.
Lima Barreto foi mais a fundo nessas ironias federativas e da polí-
tica nacional na sua obra póstuma Bruzundangas, publicada pela primeira
vez em 1922, que se configura em uma sátira ao Brasil. Ele retrata um país
fictício com o mesmo nome do título da obra. É uma nação de políticos
corruptos, pseudos intelectuais arrivistas, militares pachorrentos e povo
ingênuo e dado aos modismos do momento. Numa alusão ao estado de
São Paulo, sublimado na província do Kaphet, e sua riqueza de base agrá-
ria oriunda do café, diz o narrador que:
O traço, característico da população da provincia do Kaphet, da Republica
da Bruzundanga, é a vaidade. Elles são os toais ricos do paiz!; elles são os

15    Gileno, Numa e Ninfa: dilemas e impasses da formação da sociedade republicana, 2003,
p. 126.
16    Candido, A dialética da malandragem, 1970, p. 72.

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Sumário
mais bellos; elles são os mais inteligentes; elles são os mais bravos; elles tem
as melhores instituições; etc, etc17.

Tal como o estado do Sernambi em Numa e Ninfa se vincula direta-


mente ao Acre para um leitor minimamente conhecedor das peculiarida-
des nacionais, a província do Kaphet em Bruzundangas é uma fina ironia a
São Paulo e ao estereótipo do paulistano. Duas unidades federativas toma-
das ficcionalmente pela riqueza econômica a qual estavam identificadas.
Para tentar compreender estas alusões e leituras de mundo do au-
tor carioca suburbano, talvez seja necessário pensar que muitas de suas
personagens e tramas descritas são “tipos ideais” que ele constrói a partir
de suas vivências na capital da república e análises que fazia da vida polí-
tica nacional que percebia naquele microcosmo cosmopolita e ao mesmo
tempo paroquial. Além disso, o meio jornalístico, literário e da burocracia
estatal em que Lima Barreto atuava lhe dava posição privilegiada para ter
a matéria-prima e tratar dos inúmeros temas com os quais lidou na sua
ampla produção escrita.
Desta forma, pensar as questões tratada em seu romance Numa e
Ninfa a partir das concepções weberiana talvez não permita compreender as
correlações históricas que o autor faz com o seu tempo, com aquilo que é
“característico de uma sociedade” na sua racionalidade interna18. Como
bem diz Raymond Aron em sua análise do conceito weberiano, “o tipo
ideal é uma percepção parcial de um conjunto global; conserva, para toda
relação causal o seu caráter parcial, mesmo quando, em aparência, abran-
ge toda uma sociedade”19. Chegamos então em uma situação que é um
duplo: se na obra do autor há tipos ideais, a análise aqui proposta também
lida com esses tipos ideais criados por Lima Barreto. Além disso, ao fic-
cionalizar, o autor Lima Barreto criava também um escudo de proteção a
possíveis dissabores com poderosos da época e até o risco de seu emprego
público no Arsenal da Guerra – uma repartição militar onde tinha entrado

17    Lima Barreto, Os Bruzundangas, 1922, p. 156.


18    Aron, As etapas do pensamento sociológico, 1995, p. 482.
19    Aron, As etapas do pensamento sociológico, 1995, p. 482.

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Sumário
por concurso20. Numa Pompílio, Edagarda, Neves Cogominho, general
Foirfable, estado do Sernambi e tantos outros são criações de Lima Barre-
to que ao mesmo tempo escondem aquilo que é direto e revelam o que está
oculto a partir de leituras no contrapelo. É necessário buscar os silêncios
nas pistas deixadas por Lima Barreto através de suas obras.

Texto e contexto
Entendo que a função das análises sociais no campo das chamadas
ciências humanas — incluindo aí alguns estilos literários como fonte e
também partes dessa compreensão construída — é possibilitar dar inteli-
gibilidade às experiências humanas. Experiências, que mesmo ficcionali-
zadas expressam “retratos”, representações, ou tipos ideais, de um tempo
olhado/vivido/imaginado pelo autor. São essas reconstruções marcadas
pela busca de expressar as existências humanas que encontramos em
Numa e a Ninfa através das tramas criadas e dos traços postos no caráter
das personagens, bem como os lugares fictícios criados dentro do territó-
rio reinventado.
Vejamos então o caso do Numa Pompílio: é a partir da sua eleição
para deputado federal pelo estado do Sernambi que ele retorna aos ares
“civilizados” da capital da República. Como já foi dito, esta unidade fe-
derativa inventada parece ser uma alusão ao Acre em particular ou Ama-
zônia em geral. Aqui só podemos especular, mas pela alusão ao termo
sernambi, um subproduto derivado da extração do látex da seringueira,
fica mais direta a ficcionalização correspondendo a algum estado do nor-
te brasileiro.Numa Pompílio era uma espécie de desterrado no estado do
Sernambi, para onde tinha voltado a contragosto após não conseguir nada
após ter se formado relaxadamente no Rio de Janeiro.
Desterros para o Acre não eram estranhos ao escritor e funcionário
público Lima Barreto. Em estudo anterior, já discutimos a esta questão
em que ele escreve uma Carta Aberta em 191821ao então presidente eleito

20    Schwarcz, 2017.


21    Lima Barreto, Bagatelas, 1956, p. 114.

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Sumário
Rodrigues, que não chegou a tomar posse devido ter morrido ao contrair
a chamada gripe espanhola:
Lima Barreto, (...) anos depois dos desterros de 1904 e 1910 escreve
uma Carta Aberta que é dirigida a Rodrigues Alves, então recém elei-
to para um segundo mandato presidencial no ano de 1918. Nessa
carta, datada do início de dezembro de 1918, o escritor apela ao pre-
sidente para que este impeça que “o poder público se transforme em
verdugo dos humildes e desprotegidos”. Talvez escrevesse isso se
lembrando das perseguições, prisões arbitrárias, desterros e estados
de sítios de antes, inclusive das ocorrências do ano de 1904, quando
Rodrigues Alves exercia a presidência da república e período em
que se deu a Revolta da Vacina e os desterros para o Acre22.

Nesta carta, que provavelmente Rodrigues Alves não chegou a ler,


Lima Barreto rememora ao presidente os desterros para o Acre que o seu
governo impingiu catorze anos antes a milhares de pessoas pobres e des-
protegidas das leis e dos poderosos de então, se valendo de recorrentes es-
tados de sítios.Lima Barreto foi testemunha ocular destes acontecimentos,
narrados em um diário pessoal publicado pela primeira vez somente após
sua morte. Nele, o autor afirma que seus rascunhos sobre aqueles dias
turbulentos ficaram escondidos porque “temo de sobremodo os governos
do Brasil”23.E diz mais de maneira bastante explícita: “Toda violência do
governo se demonstra na Ilha das Cobras, inocentes vagabundos são aí
recolhidos e, surrados e mandados para o Acre”24.
Se em suas memórias há abertamente essas referências incisivas ao
Acre, em Numa e Ninfa, Lima Barreto também busca dar ao leitor, prin-
cipalmente o contemporâneo, referenciais históricos, políticos, culturais,
geográficos e econômicos de um Brasil que aparece ficcionalizado. Em
alguns momentos isso ocorre de maneira direta e em outros esses referen-
ciais são sublimados através de alusões que remetem ao senso comum da
época, como o caso expresso na figura da unidade federativa do Sernambi.
Ou dizendo de maneira mais sofisticada, ele constrói um tipo ideal que
remeteria para uma característica que visa o típico, o essencial da parte de

22    Silva, Acre, a Sibéria tropical, 2017, p. 212.


23    Lima Barreto, Diário íntimo, 1954, p. 49.
24    Lima Barreto, Diário íntimo, 1954.

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Sumário
um todo mais complexo marcado pela heterogeneidade numa reconstru-
ção estilizada25.
A trama do livro é ambientada por volta dos anos de 1910, que
marca a ascensão de um militar na presidência da República, após quase
uma década de presidentes civis no Brasil depois da queda da Monarquia.
Hermes da Fonseca (1910/1914), sobrinho de Deodoro da Fonseca, que
foi o primeiro presidente da fase republicana, apontava para um novo e
difuso militarismo na vida política nacional. Ameaça que se reforçou du-
rante a disputa eleitoral com as denúncias de Rui Barbosa que encampou
o movimento oposto chamado de civilista. Essas duas candidaturas inicial-
mente representaram uma crise da chamada política dos governadores,
capitaneadas até então pelos estados de São Paulo e Minas Gerais26. No
plano internacional também temos um contexto de belicosidade que vai
redundar na Primeira Grande Guerra poucos anos depois. É neste cenário
político que Lima Barreto constrói sua crítica aos costumes do ethos na-
cional a partir do mundo da política institucional que, em grande medida,
se materializava na capital do país e a partir dela irradiava para os rincões
da pátria.
Favores, apadrinhamentos, jeitinhos e nepotismos compõem o qua-
dro geral onde transitam os sujeitos que compõem a parte privilegiada de
uma sociedade hierarquizada e desigual,onde o mérito e a impessoalidade
não são as regras mais usuais para obter vantagens pessoais ou de grupos.
“Nesses termos, o ‘apadrinhamento’ transformou-se em um elemento im-
portante para a reprodução da vida social da elite, tanto no que se refere à
prosperidade econômica como aos arranjos políticos”27.
As palavras de Carlos Gileno expressadas acima são sintomáticas
principalmente para o ambicioso jovem Numa Pompílio, “branco e dou-
tor” que cai nas graças do chefe patriarcal Neves Cogominho, que vem a
ser seu sogro e a alavanca de ascensão social da sua filha e do marido dela
através do casamento arranjado e interesseiro.Nesse jogo político com o

25    Aron, 1995, p. 483.


26    Costa, Da Monarquia à República, 2010.
27    Gileno, 2003, p. 127.

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Sumário
poder central, feudalizam Sernambi como um lugar de garantias das benes-
ses do poder político.
Em uma passagem, da obra Numa e Ninfa, há uma conversa entre
algumas mulheres de deputados estabelecidos no Rio de Janeiro para o
exercício de seus mandatos. Uma delas reclama dos eleitores que recor-
riam aos seus maridos pedindo de tudo, o que fazia ser o salário de um
deputado carcomido para atender eleitores pedintes e onipresentes. Em
uníssono, elas reclamam que o salário de um deputado é muito pouco e D.
Celeste, esposa do deputado Costale Xandu, tem uma solução: mandar os
eleitores pedintes todos para o Acre. É quando Edgarda, esposa de Numa,
diz em tom realístico: “e quem elegeria os maridos de vocês?” Madame
Forfaible – jovem esposa de um general ocioso e velho – então tem outra
solução: acabar com as eleições e que os políticos fossem então nomeados,
tais quais os generais28.Na aparente inocência da madame, se cristaliza o
pensamento de uma elite autoritária e pouco afeita aos valores democráti-
cos tão carentes no Brasil da Primeira República
Este tipo de pensamento autoritário é muito realçado por estudiosos
que se debruçaram sobre a chamada Primeira República, abarcando além
do mundo militar outros estratos sociais civis. Como é o caso do histo-
riador Boris Fausto, ao traçar um panorama do autoritarismo brasileiro
circunscrito ao mundo da política do início da república até o final dos
anos de 193029. Algo que também faz José Murilo de Carvalho a respeito
do autoritarismo brasileiro com enfoque maior no meio militar e seus im-
pactos e reflexos na vida política nacional30. A ficcionalização em Numa
e Ninfa não é mera coincidência com a história da república, quando traz
referência indireta aos desterros para o Acre ocorridos em 1904 e 1910,
por ocasião das revoltas da Vacina e da Chibata, e os muitos estados de
sítios decretados no período republicano31.

28    Lima Barreto, 2011, p. 55.


29    Fausto, A formação de um pensamento político autoritário na Primeira República,
1985, p. 401-426.
30    Carvalho, As Forças Armadas na Primeira República: o poder desestabilizador, 2006,
p. 197-257.
31    Silva, 2017.

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Sumário
Voltando aos nomes dados aos estados fictícios, eles podem
ser pensados em relação ao contexto histórico da época e algumas
representações sobre as características do território nacional brasileiro
ligadas à natureza e as formas de exploração econômica dominantes. O
estado do Carapicus remete tanto à fauna quanto à flora, pois corresponde
a um tipo de arbusto quanto a um tipo de peixe encontrado no litoral do
atual nordeste. O termo Guaxupé ou Irapuã deriva da língua tupi e no-
meia um tipo de abelha. Já os estados de Caranguejos, Abóbora e Tâma-
ras se associam também à fauna e à flora, incluindo até um fruto exótico
ao ambiente brasileiro. Sernambi, como foi dito anteriormente, expressa a
riqueza extrativista da borracha do norte do país.
Não deixam de ser interessantes essas representações marcadas
pelos elementos da natureza, que caracterizariam esse país tropical, de
decantada vocação agrária e extrativista desde a colonização. Mas em
Lima Barreto, longe do tom ufanístico e idílico, o que predomina são
os elementos sarcásticos e irônicos de desconstrução desses referenciais
identitários já bastante consolidados. Algo que este autor também fez de
maneira mais densa em sua obra O triste fim de Policarpo Quaresma, publi-
cada em 1915.
Contudo talvez o que se possa ressaltar mais em Numa e Ninfa seja a
relação quase indistinta entre o público e o privado no Brasil por parte de
grupos de elite, marcados pelo viés patrimonialista e patriarcal. Essa abor-
dagem já foi objeto de discussão em obras literárias e no campo das ciên-
cias humanas como marca intrínseca da formação social brasileira desde a
colônia e Império, tendo mais visibilidade na república com a emergência
de novos grupos sociais que irão lutar por mais direitos e representação no
espaço público. Contudo, sem abalar o patrimonialismo elitista e amplian-
do os nepotismos, com agregamentos mais tardios dos apelos populistas.
A personagem principal de Numa e Ninfa é uma figura arrivista, ou
para usar a expressão tornada clássica por Sérgio Buarque de Holanda, a
síntese do homem cordial, que marcaria as relações pautadas pelos afetos,
relações de amizade e familiares. Desta forma, ele diz que no Brasil “falta
tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrá-

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Sumário
tico”32. Haveria uma historicidade que acompanha estas práticas, como
o “predomínio constantes das vontades particulares que encontram seu
ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordena-
ção impessoal”33. Teríamos então sociabilidades na vida pública avessas à
impessoalidade, de responsabilidades diluídas em um todo amorfo onde
o sujeito não se vê culpado pelas mazelas existentes e nem carrega algum
senso de coletividade pública.
Talvez possamos observar neste romance as mesmas dimensões que
Antonio Candido observou na obra de Manuel Antônio de Almeida es-
crita cerca de meio século antes.Nela haveria uma dimensão mais univer-
salizante, onde os arquétipos criados abarcariam um “amplo ciclo da cul-
tura”. Por outro lado, uma dimensão mais reduzida, “onde se encontram
representações da vida capazes de estimular a imaginação de um universo
menor dentro deste ciclo: o brasileiro”34.
Outro tema sensível ao escritor Lima Barreto era a questão da es-
cravidão e dos preconceitos de cor que havia na sociedade brasileira e
que ele pessoalmente enfrentou naquele Brasil pós abolição que masca-
rava o preconceito e cuja suas elites se imaginavam brancas e desejavam
se “civilizar” e adequar o Brasil de acordo com os padrões eurocêntri-
cos. Em Numa e Ninfa, Lima Barreto não se esquece de trazer o tema ao
seu romance histórico quando mostra que a mestiçagem, a negritude e o
passado escravista eram temas sensíveis às elites e autoridades brasileiras.
Pois perante os visitantes estrangeiros se sentiam constrangidas em tratar
do “atraso” da raça e dos brasileiros que não se enquadravam nos pressu-
postos raciais, estéticos e morais dos valores da ideologia da branquitude.
Cultivo de ressentimentos em relação à superioridade dos países avança-
dos que tanto invejavam os espíritos de “vira lata” nacionais.
Abaixo, um pequeno fragmento em que ele faz alusão ao tema.
Outra fonte de irritação para esses espíritos diplomáticos estava nos pretos.
Dizer um viajante que vira pretos, perguntar uma senhora num “hall” de

32    Holanda, Raízes do Brasil, 1976, p. 106.


33    Holanda, Raízes do Brasil, 1976, p. 106
34    Candido, 1970, p. 77.

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Sumário
hotel se os brasileiros eram pretos, dizer que o Brasil tinha uma grande
população de cor, eram causas para zangas fortes e tirar o sono a estadistas
aclamados. Ainda aí havia um lamentável esquecimento de um fato de pe-
quena observação. Hão de concordar esses cândidos espíritos diplomáticos
que o Brasil recebeu durante séculos muitos milhões de negros e que esses
milhões não eram estéreis; hão de concordar que os pretos são gente muito
diferentes dos europeus; sendo assim, os viajantes pouco afeitos a essa raça
de homens, hão de se impressionar com eles. Os diplomatas e jornalistas
que se sentiam ofendidos com a verdade tão simplesmente corriqueira, es-
queciam tristemente que por sua vez a zanga ofendia os seus compatriotas
de cor; que essa rezinga queria dizer que estes últimos eram a vergonha do
Brasil e seu desaparecimento uma necessidade35.

Além dos preconceitos e mascaramentos da realidade brasileira


por parte da elite dirigente, Lima Barreto busca dar um tom de histori-
cidade ao falar do passado de escravidão e tráfico negreiro que vigorou
por mais de três séculos no país. De maneira irônica diz que os negros
não eram estéreis, que estavam presentes na sociedade nacional, mas
constantemente objetos de invisibilidade por aqueles que não se viam no
Brasil real e buscavam mais se espelharem numa imagem fictícia e irreal
da nação. Essas autoridades construíam narrativas mais fictícias e irreais
que a obra ficcional de Lima Barreto.

Considerações finais
Voltando às concepções weberianas, existem estudos consolidados
e reconhecidos que tratam das características mais gerais da formação da
sociedade brasileira. Somente para focar nos autores mais conhecidos, te-
mos em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda com a sua tese da
“cordialidade” do brasileiro, que corresponderia ao que Weber vai cha-
mar de dominação tradicional e carismática, em declínio à dominação ra-
cional baseada nas leis escritas36, conforme apontado neste mesmo texto.
Raymundo Faoro, em Donos do poder, analisa a formação brasileira como
herança lusitana baseada na tradição elitista e de pouca distinção entre o

35    Lima Barreto, 2010, p. 07.


36    Freund, 1987

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público e o privado por parte das elites dirigentes portuguesas e brasilei-
ras37.
Enquadrando o romance de Lima Barreto na temporalidade da
emergência dessas duas obras acima citadas, ele é antecessor e já proble-
matiza temas cadentes que eram objetos de preocupação da elite intelec-
tual brasileira até mesmo antes dele.Porém, ele aparece com um viés mais
ácido e sem idílio, desconstruindo os lugares aparentemente sólidos em
que se sustentavam muito desses clichês. Lima Barreto não traz o ufa-
nismo do romantismo e nem o cientificismo do realismo-naturalismo a
serviço do discurso nacionalista.
Com bem diz Carlos Henrique Gileno,
A obra de Lima Barreto se destaca na literatura brasileira, justamente pelo
fato de seus personagens anteciparem temas e problemas fundamentais do
período de crise das instituições políticas e sociais da Primeira República.
Temas e problemas que seriam constantemente retomados pelas diversas
interpretações que refletiram sobre a singularidade da formação social e po-
lítica brasileira nas décadas posteriores aos anos 10 do século XX, uma vez
que a proclamação da República e o advento da Revolução de30 mostrar-
-se-iam insuficientes para que a sociedade brasileira pudesse se desvencilhar
inteiramente de seu passado colonial,escravocrata e imperial38.

Numa e Ninfa também se enquadra em sentido mais restrito naquilo


que o crítico José Veríssimo atribuiu à obra Memórias de um sargento de milí-
cias: romance de costumes39. A maioria das personagens transita no mun-
do das hierarquias e das aparências, marcado pelas posturas falseadas, de
simulacros sociais. As sociedades brasileira e carioca não deixavam de ser
sugestivas para as criações do romancista Lima Barreto, ainda mais ele
por ser uma pessoa que habitava,em grande medida,o mundo da desor-
dem que o mundo daquela ordem pretendida. Era negro, pobre, suburba-
no, alcoólatra, portador de ideias que chocavam o status quo do seu tempo.
Crítico mordaz do parasitismo elitista da capital da república, desde cedo
experimentou o quanto não se enquadrava nos parâmetros daquela so-

37    Faoro, Os donos do poder, 2000.


38    Gileno, 2003, p. 134.
39    Apud Candido, 1970, p. 67

99

Sumário
ciedade. Esta é a linha tênue da história e da literatura, do ficcional e do
“real”, pois “não é a representação dos dados concretos particulares que
produz, na ficção, o senso de realidade; mas sim a sugestão de uma certa
generalidade que olha para os dois lados e dá consistência tanto aos dados
do real quanto aos dados particulares do mundo fictício”40.
Para finalizar, recorro às palavras de Lilia Schwarcz na introdução
da sua obra Triste visionário sobre Lima Barreto, ela afirma que: “a vida e
obra desse escritor representam, portanto, um convite e um aceno. Lima
nos incita a transgredir a fronteira do passado, atuando como um guia
inesperado”. Lima Barreto seria, segundo ela, “Um timoneiro que não
abre mão de incluir em sua obra suas batalhas, idiossincrasias, brinca-
deiras, afetos e broncas. Um narrador que nunca se apaga diante do que
acredita ser seu e de direito”41.

Referências
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1995.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance.São Paulo:
Unesp, 1998. Disponível em: https://goo.gl/USs62x, acesso em 22/01/2017.
CANDIDO, Antonio. “A dialética da malandragem”. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, nº 08, pp. 67/89. São Paulo, 1970.
CARVALHO, José Murilo de. “As Forças Armadas na Primeira República: o poder deses-
tabilizador, pp. 197/257”. In FAUSTO, Boris. (org.). O Brasil republicano: e Sociedade e
instituições (1889-1930). Volume 09, tomo III. São Paulo: Bertrand Brasil, 2006.
COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República. 09ª ed. São Paulo: Unesp, 2010.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São
Paulo: Globo/Publifolha, 2000.
FAUSTO, Bóris. “A formação de um pensamento político autoritário na Primeira Repúbli-
ca”, pp. 401-426. In _______, Boris. (org.). O Brasil republicano: Sociedades e Instituições
(1899-1930). 03ª Ed. Volume II, tomo III. São Paulo: DIFEL, 1985.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. 5ª
ed. Curitiba: Positivo, 2010.
FREUND, Julien. A sociologia de Max Weber. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universi-
tária, 1987.

40    Candido, 1970, p. 82.


41    Schwarcz, 2017, p. 19.

100

Sumário
GILENO, Carlos Henrique. “Numa e Ninfa: dilemas e impasses da formação da sociedade
republicana”, pp. 125/136. Revista Perspectiva, nº 26, São Paulo, 2003.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympo
Editora, 1976.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Os Bruzundangas. Rio de Janeiro: Jacintho
Ribeiro dos Santos, editor, 1922.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Bagatelas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Numa e Ninfa. São Paulo: Riedel, 2011.
PINTO, Rose Maria. O discurso às avessas em Numa e Ninfa de Lima Barreto. Disserta-
ção (Mestrado em Letras - PPGL) – Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais.
SAINT-PIERRE, Hector Luis. Max Weber: entre a paixão e a razão. 3ª ed. Campinas:
Edunicamp, 1999.
SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Contos completos de Lima Barreto. Companhia das
Letras, 2010.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.
SILVA, Francisco Bento da. Acre, a Sibéria tropical: desterros para as regiões do Acre em
1904 e 1910. 02ª edição. Rio Branco: Nepan, 2017.

101

Sumário
O AVILTAMENTO DA MULHER INDÍGENA
EM A CALIGRAFIA DE DEUS DE MÁRCIO
SOUZA

Bruna Wagner

Introdução

A famosa frase de Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher,


torna-se mulher”1, pode ser empregada ao contexto das repre-
sentações das mulheres ameríndias? Tornar-se mulher leva em conside-
ração que se nasce com um sexo (seja masculino ou feminino) e após
um processo de crescimento e vivências é imbricado junto a esse primeiro
fator (sexo) um segundo que é culturalmente construído (gênero), perfor-
mativo, ser mulher. Contudo, quando analisamos as representações cons-
truídas sobre as mulheres ameríndias, tanto na etnografia quanto na litera-
tura, o fator de gênero, tornar-se mulher, parece ser subtraído.
Observamos, em um número expressivo de textos, a ameríndia sen-
do resumida ao seu sexo, a sua sexualidade e a sua “disposição” para a
prática sexual. Recentes estudos etnográficos e de outras áreas do conhe-
cimento buscam se afastar desta concepção da mulher ameríndia, porém,
as tradições etnográfica, historiográfica e literária, tanto do Brasil quando
de outros lugares do globo, utilizaram por um período de tempo dema-
siadamente longo concepções reducionistas a respeito desses indivíduos.

1    Beauvoir, O segundo sexo, 2016.


Tais concepções acabaram ficando impregnadas no imaginário coletivo de
diversas esferas sociais e sociedades ao redor do globo. Essas percepções
foram usadas ao longo dos séculos como justificativa das violências sexu-
ais, como outras, infligidas contra as mulheres ameríndias2. Encontramos
um clássico exemplo desse pensamento construído a respeito dessas mu-
lheres na obra Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. No texto, Freyre
tece o seguinte comentário:
O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres
da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em
carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassi-
dão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais
ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-
-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho.3

Observamos na fala de Freyre que não há na descrição da mulher


ameríndia atributos que possamos relacionar como sendo pertencentes ao
gênero feminino, ao ser mulher. O que é apresentado a nós se resume ao
componente sexo das mulheres ameríndias. Esse componente é destacado
especialmente quando o autor usa as palavras “nua” e “carne” para fazer
menção a esses indivíduos. Esse foi o tipo de representação tecida e repeti-
da a respeito das mulheres ameríndias desde a chegada dos colonizadores
na costa brasileira. As ameríndias amazônidas também não escaparam
desse tipo de representação. Amazônida, na acepção pretendida neste
texto, deságua na conceituação feita pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto,
em texto de título A utopia amazônida. No dicionário Oxford, “amazônida”
aparece como um adjetivo para “amazonense”, pessoa que nasceu e/ou
vive no estado do Amazonas. No dicionário Houaiss, o termo “amazô-
nida” é relacionado à sua origem etimológica (da lenda das amazonas).
Lúcio Flávio Pinto, em seu texto tece o seguinte comentário a respeito do
termo:
Embora não exista ninguém mais amazônico do que alguém que tenha nas-
cido ou more na região, essa não é condição suficiente para que se perceba
a especificidade regional. O conceito de amazônida envolve a individua-

2    Silva, Gênero e etnia, 2017, p. 01.


3    Freyre, O indígena na formação da família brasileira, 2006, p. 161.

103

Sumário
lidade da região, para cuja caracterização, existência e persistência a sua
vinculação à água, a luz e a floresta, como um organismo integrado, é in-
dispensável.4

Dessa forma, ao tratarmos as mulheres amazônidas neste artigo es-


taremos nos referindo aqueles seres cujas existências estão diretamente
integradas com aspectos extra-humanos, ligados ao meio em que habitam,
não apenas geograficamente localizado, mas intrinsecamente vinculado,
nos aproximando do conceito tecido por Lúcio Flávio Pinto. Assim, po-
demos entender que amazônida, nesses termos, “Não [é] um estado dado,
natural, externo, mas produto de uma busca cognitiva, de uma consciência
e de uma ação concreta”.5
No território hoje chamado amazônico, os primeiros relatos a res-
peito das mulheres desta região são datados por volta de 1541 e 1542,
escritos por Gaspar de Carvajal. Nos relatos de Carvajal observamos uma
aproximação feita por ele entre as imagens das mulheres do mito grego
das amazonas com as mulheres ameríndias6, o que não condiz com a rea-
lidade dos fenótipos das habitantes da região no momento da escrita dos
relatos. Os relatos de Carvajal tentam descrever as mulheres desta parte
do globo como equivalentes aquelas que habitam no ideário europeu de
beleza.
Após os relatos tecidos por Carvajal, as mulheres ameríndias desa-
parecem por um longo período de tempo dos relatos e estudos etnográfi-
cos. As ameríndias da região que depois vai ser chamada de Amazônia7,
assim como as ameríndias de outros ambientes da America portuguesa,
sofreram com a estigmatização de sua sexualidade e de seus papéis so-

4    Pinto, A utopia amazônida, 2018.


5    Pinto, A utopia amazônida, 2018.
6    Gondim,A invenção da Amazônia, 1994.
7    Entendemos enquanto Amazônia a invenção fabricada pelo imaginário dos viajantes
ao “Novo Mundo”, não se tratando apenas de um marco geográfico, mas de um ideário
construído intencionalmente por meio de imagens de exotismo. O conceito de Amazônia
que é amplamente difundido parte do olhar do colonizador, como equivalente a um mun-
do a ser desbravado. Nesse sentido, o termo Amazônia possui em nosso texto o objetivo
de localizar histórica e geograficamente o leitor. Contudo, não pretende ser exaustivo aos
argumentos ideológicos e políticos cunhados pelos “inventores da Amazônia”.

104

Sumário
ciais, sendo suas representações, na grande maioria dos casos, talhadas
em torno de seu sexo e de suas funções domésticas. Esse desaparecimento
teórico a respeito das mulheres ameríndias da Amazônia, de acordo com
Heloísa Lara Campos da Costa, pode ter se dado pela supressão intencio-
nal de informações a respeito desses indivíduos por aqueles que escreviam
a respeito desta região. A mulher ameríndia da região não tinha relevância
a ponto de ocupar as linhas de relatos e estudos etnográficos ou historio-
gráficos.
Dada a nebulosidade de que se revestem as informações sobre a mulher,
tentar captar como se inseriu na realidade social passada da Amazônia,
requer um duplo desafio: primeiro, buscar o entendimento das relações so-
ciais políticas e econômicas que, imbricadas, produziram um determinado
ideário sobre a mulher, e, segundo, o ocultamento que cerca as informações
sobre a mulher, pela excessiva “naturalização” como são vistas e registradas
pelos observadores as práticas de relações de gênero. É como garimpar num
terreno pedregoso e de difícil acesso ao veio principal.8

Desse modo, como aponta Heloísa da Costa no trecho acima, pen-


sar na mulher amazônida, em nosso caso, na mulher ameríndia amazô-
nida, requer que façamos um percurso que trabalhe com essa questão en-
volvendo fatores não só históricos/econômicos mas também de gênero e
raça (etnia). Quais relações levaram a esse ocultamento a respeito dessas
mulheres? Quais os interesses por trás desse ocultamento? Não sabemos se
conseguiremos responder a esta última pergunta, mas tentaremos mostrar
os processos que levaram a deixar à margem da história essas mulheres
ameríndias.
A história do desenvolvimento da etnologia sul-americana é com-
posta por muitas lacunas, aponta Cristiane Lasmar. A autora assinala que
nos anos de 1970 e 1980, no momento da efervescência teórica dos es-
tudos de gênero, aqueles que buscavam estudar/analisar a respeito das
sociedades indígenas da Amazônia, encontraram pouco conteúdo teórico
disponível. Este caso não aconteceu, por exemplo, com os estudiosos que
debruçaram seus esforços para falar sobre as questões relacionadas aos

8    Costa, As mulheres e o poder na Amazônia, 2005, p. 26.

105

Sumário
estudos de gênero na África e em Nova Guiné, que possuíam documentos
e fontes expressivas para alavancar tais pesquisas9.
Discutindo sobre essa carência de informações etnográficas da
Amazônia, Lasmar afirma que esta situação ocorreu devido a existência
de um período longo de estagnação do desenvolvimento do pensamento
antropológico sobre as sociedades dos universos amazônicos no Brasil. O
resultado desse processo foi o de uma transfiguração dos povos ameríndios
sul-americanos em uma “categoria genérica vazia, sem existência históri-
ca, sujeita à investida de representações equivocadas e estereotipadas”10.
Os ecos desse processo são, nitidamente, percebidos no senso comum da
população, bem como nos produtos artístico-culturais confeccionados em
território nacional. A literatura, como forma de manifestação da arte, não
escapou de reproduzir tais estereótipos e figurações distorcidas das popu-
lações indígenas.
Lasmar salienta ainda que, quando se trata da representante femini-
na das populações ameríndias sul-americanas e amazônidas, as distorções
presentes no imaginário coletivo são ainda mais perturbadoras. A autora
acrescenta que a imagem veiculada dessas mulheres, assim como seu papel
na construção da sociedade brasileira, reincidem no estereótipo da indí-
gena genérica. Em um de seus estudos, Cristiane Lasmar voltou seu olhar
para “uma das representações das mulheres indígenas mais difundidas na
história do Brasil, aquela que as reduz a seres de sexualidade priápica”11.
Isto quer dizer, a mulher ameríndia como alguém que possui sua sexuali-
dade exaltada, de vida sexual bastante ativa e de fertilidade significativa.
Lasmar aponta que esse tipo de ideia criada em torno das mulheres
ameríndias reduz essas mulheres a indivíduos unívocos, desfazem seus
traços diferenciadores de etnias, experiências humanas, espiritualidades,
obscurecendo “em detrimento de uma idealização insensível à diversi-
dade étnica e cultural dos povos indígenas da América do Sul”12. Desse

9    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 143-156.


10    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 143-144.
11    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 144.
12    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 144.

106

Sumário
modo, a invisibilidade das mulheres ameríndias amazônidas, além de ser
um problema de perspectiva de produção de conhecimento (perspectiva
masculina), “é um caso específico da invisibilidade dos próprios índios,
categoria étnica e racial ainda atrelada, na visão do senso comum, a re-
presentações enraizadas em fontes remotas”13, fontes essas datadas dos
primeiros séculos de colonização do nosso território, ou seja, noções que
ficaram estagnadas no tempo mas que foram amplamente difundidas no
imaginário coletivo das populações não-ameríndias.
A imagética desenvolvida pelos relatos etnográficos que reduzem as
populações ameríndias a imagem do indígena genérico se consolida por
meio de duas vertentes, a primeira positiva e a segunda negativa. Lasmar
aponta que a primeira perspectiva divulga a percepção do ameríndio com
uma imagem de “reserva moral da humanidade”, por viver sem acumular
riquezas e estar em contato com a natureza. A segunda vertente, a nega-
tiva, aproxima a imagem dos ameríndios com a de “bárbaros”, por conta
de sua nudez, seus meios rudimentares de sobrevivência, sua recusa à ca-
tequização e ao trabalho nos moldes do homem branco. De acordo com
Lasmar:
O caráter deletério da representação do bárbaro é evidente, mas a imagem
oposta não é menos danosa, especialmente para os esforços atuais de afir-
mação política das populações indígenas. Essencializa sua realidade social
e congela sua identidade, antecipando-as: esperamos que o índio demonstre
ser aquilo que achamos que ele é. Sua pureza tem que ser constantemente
confirmada.14

Tanto a primeira imagem quanto a segunda, afastam os ameríndios,


na visão dos colonizadores, de uma imagem de semelhança, de humani-
dade. Em especial, a figura do bárbaro descaracteriza a humanidade dos
indivíduos ameríndios e serve como justificativa para as mais diferentes
formas de preconceito, subjugação e violência. As crenças, culturas e mo-
dos de vida dos ameríndios despertavam nos colonizadores sentimentos de
estranhamento. Segundo Lasmar, “Os costumes dos habitantes do Novo
Mundo podiam ser vistos como produtos da degradação da humanidade

13    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 145.


14    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 145.

107

Sumário
que, na versão religiosa, denotava a influência intensa do Demônio na
América”15. Estas concepções formaram a base para uma série de avilta-
mentos sofridos pelos ameríndios amazônidas, assim como pelos amerín-
dios de outros territórios do nosso país.
A formação da concepção de que os ameríndios possuíam uma hu-
manidade degradada recaiu com mais força sobre os indivíduos do sexo
feminino16. O pesquisador Ronald Raminelli, em texto intitulado Eva Tu-
pinambá, apresenta um relato a respeito das representações traçadas acerca
das mulheres Tupinambás (cotidiano e papéis sociais) em relatos de cro-
nistas e viajantes durante os séculos XVI e XVII. Neste trabalho, “Rami-
nelli discute a forte misoginia que condicionava o olhar dos europeus”17.
O autor apresenta os estereótipos cunhados pelos viajantes a respeito das
mulheres da etnia Tupinambá. Entre esses estereótipos se destaca o das
“velhas canibais”, em que, nos rituais da tribo, as mulheres de mais ida-
de praticavam antropofagia. Segundo Raminelli, “as imagens fornecidas
condensavam atributos da sociedade indígena concebidos como corrup-
tos, principalmente a liberdade sexual e o canibalismo”18. Essas práticas,
na visão dos europeus, simbolizavam “o afastamento das comunidades
ameríndias da cristandade e a inviabilidade de prosseguir com os traba-
lhos de catequese e colonização”19. Isso culminou para a desumanização
dos indivíduos ameríndios, em especial das mulheres, e na perpetuação da
noção de bárbaros através dos tempos.
Lasmar tece o seguinte comentário sobre a pesquisa de Raminelli:
O papel de iniciadoras sexuais e a decrepitude física das velhas índias,
vistos pelas lentes da misoginia cristã e interpretados a partir da teoria da
degradação natural, deram origem a uma representação da velha como
reservatório de lascívia da sociedade tupinambá. Essa concepção genera-
lizava a equação entre o feminino e a luxúria: sexualidade supostamente
exacerbada e falta de pudor - que da perspectiva dos primeiros observadores
aparece como insígnia da decadência moral dos habitantes do Novo Mun-

15    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 146.


16    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 146.
17    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 146.
18    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 146.
19    Raminelli, 1997 apud Lasmar, 1999, p. 146.

108

Sumário
do - eram atributos das mulheres; nesse caso, os homens indígenas foram
relativamente poupados.20

Observamos, desse modo, como o aviltamento das mulheres in-


dígenas se iniciou no imaginário coletivo popular. Por meio dos primei-
ros relatos a respeito dos povos ameríndios tanto da região Amazônica
quanto de outras partes do Brasil, nos deparamos com a representação de
imagens de um indígena genérico, homogêneo, reduzindo etnias, culturas,
cosmovisões, etc., em uma caracterização padrão do que seriam os povos
ameríndios. As mulheres, como pudemos notar, sofreram ainda mais com
essas generalizações. A elas, além de sua humanidade ser diminuída, as
concepções acerca delas enquanto mulheres também foram sendo reduzi-
das a corpos sexuados inundados de lascívia. Essas concepções não per-
maneceram somente no âmbito do real e do ideário coletivo de diversas
populações, elas transpassaram para o âmbito literário.
No prisma dos estudos etnográficos e teóricos Lasmar aponta que
“Nos últimos anos, pesquisas realizadas em sua maioria por mulheres, [...]
têm procurado fornecer uma visão alternativa da vida social dos grupos da
região na qual a perspectiva feminina não apareça como mero resíduo”21.
Por isso, no âmbito dos estudos literários, se faz necessário buscar repre-
sentações desses indivíduos em narrativas de nossa época e problematizar
os usos de imagens feitas a respeito dessas mulheres que remetem ainda
as elucidações tecidas nos primeiros séculos da colonização. Este trabalho
tem como objetivo apresentar o processo de aviltamento da mulher ame-
ríndia na literatura contemporânea, a fim de mostrar como as concepções
de desumanização e de subjugação das mulheres ameríndias amazônidas
continuam se perpetuando mesmo após centenas de anos dos primeiros
relatos a respeito desses indivíduos em nosso território. Para tal tarefa, nos
debruçaremos sobre o conto A caligrafia de Deus22, do autor amazonense
Márcio Souza.

20    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 146.


21    Lasmar, Mulheres indígenas, 1999, p. 144.
22    Souza, A caligrafia de Deus, 2007.

109

Sumário
No conto, iremos analisar a construção da personagem Izabel Pi-
mentel. A narrativa nos apresenta a cena de um assassinato cometido
contra dois indivíduos amazônidas, um deles sendo uma mulher indíge-
na e o outro um caboclo. A narrativa então passa a contar a história de
Izabel Pimentel, uma das vítimas, uma mulher indígena que sai de sua
comunidade natal para a capital amazonense, Manaus. Observamos que
o processo de aviltamento da personagem se inicia em sua terra de origem,
Iauareté-Cachoeira. Neste cenário, Izabel aparece envolta em um ambien-
te degradado, em que no seio de sua família há violência e abandono das
origens indígenas. Em seguida, iremos nos debruçar sobre alguns pontos
teóricos que irão fundamentar nossa análise sobre o conto em questão:
gênero e raça.

Gênero, raça e a hierarquia de poder


Os estudos feministas, durante muito tempo, buscavam saber qual
era o “sujeito” do feminismo, aquele cujo movimento representa. Con-
tudo, a busca por um “sujeito” traz imbricada consigo um apagamento
de outros indivíduos que ficariam à margem dessa categorização. Nesse
sentido, Camilla de Magalhães Gomes traz à superfície que a formação
de uma concepção de um “sujeito do feminismo” produz “universaliza-
ções em torno dos termos mulher ou mulheres [e] amalgamam realidades
heterogêneas (Badinter, 2005, p. 23) ou mesmo excluem determinados
grupos de mulheres e suas realidades, demandas e formas de produzir
conhecimento”23. O feminismo encontra um problema político no termo
mulheres, pois não há como supor que tal termo expresse uma identidade
comum.
Como observa a filósofa americana Judith Butler, “Ao invés de um
significante estável a comandar o consentimento daquelas a quem pre-
tende descrever e representar, mulheres – mesmo no plural – tornou-se
um termo problemático, um ponto de contestação, uma causa de ansie-
dade”24. Dessa forma, ser mulher não é algo estável, unidimensional ou
perene:
23    Gomes, Gênero como categoria de análise decolonial, 2018, p. 66.
24    Butler, Problemas de gênero, 2016, p. 20.

110

Sumário
Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém
é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de
gênero da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero,
mas porque gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consis-
tente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece inter-
secções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de
identidades discursivamente construídas. Resulta que se tornou impossível
separar a noção de “gênero” das intersecções políticas e culturais em que
invariavelmente ela é produzida e mantida.25

Podemos utilizar o gênero como uma categoria de produção de


conhecimento, assim, em vez de buscarmos um “sujeito” do feminismo,
buscamos produzir diversos tipos de conhecimento a respeito das mais di-
ferentes mulheres. Para isso, segundo Gomes26, devemos utilizar o gênero
destacando seu caráter social e construído (gênero como uma invenção/
mulher como uma invenção). Dessa forma, se têm por intenção “proble-
matizar a posição da mulher em sociedade ou, mais do que isso, proble-
matizar o ‘ser mulher’”27. Munindo-nos dessa abordagem, utilizamos o
gênero como uma pergunta, um questionamento que busca pôr em xeque
a concepção de sujeitos, analisando esses sujeitos por meio de outros
prismas, como contexto histórico, político, econômico, cultural, etc.
Mesmo que utilizemos o gênero como uma categoria de análise e de
produção de conhecimento, ele tende a criar sujeitos universais caso não
seja associado a ele uma outra categoria. Desse modo, Gomes sugere que
o uso do gênero enquanto categoria de análise deve ser submetido a uma
virada decolonial. Gomes afirma que o que seria o “tornar-se mulher” de
Beauvoir se não algo que está calcado em um sexo natural, ou ainda em
um binarismo tal como corpo/alma? Para a autora, o “tornar-se mulher”
está diretamente ligado às concepções de humanidade e subjetividade que
estariam impressas aos corpos. Desse modo, o gênero masculino ou fe-
minino diria quem é ou não humano. Para a perspectiva decolonial “o
desfazimento da binariedade humanos/não-humanos se torna essencial e
corpo, sexo, gênero e raça são categorias fundamentais para realizar esse

25    Butler, Problemas de gênero, 2016, p. 21.


26    Gomes, Gênero como categoria de análise decolonial, 2018.
27    Gomes, Gênero como categoria de análise decolonial, 2018, p. 66.

111

Sumário
procedimento e para, inclusive, ler como atribuímos sentido a homem e
mulher não apenas dentro do sistema sexo/gênero”28. A perspectiva de-
colonial, assim, nos faz enxergar como o sistema de colonialidade que
estrutura essas três marcações corporais para “para dar diferentes sentidos
aos corpos que categoriza”29.
Joan Scott, em artigo intitulado Gênero: uma categoria útil para análise
histórica30, argumenta que, assim como o título do texto sugere, gênero seja
utilizado como uma categoria de investigação, não como respostas defini-
tivas para determinadas perguntas. Scott critica o uso descritivo do gênero,
o uso que não explica, que não levanta uma discussão dos mecanismos
de poder historicamente construídos que se encontram em volta dessa ca-
tegorização. Para Scott, gênero é um método de análise, uma linha de
pesquisa que deve levar em consideração a história, os diferentes signifi-
cados culturais e suas significações em um determinado espaço-tempo, a
fim de identificar as hierarquias e as relações de poder entre os gêneros.
Desse modo, como aponta Gomes, o gênero “não [é] uma resposta, mas
uma pergunta, um modo de fazer perguntas”31. Para Scott, gênero deve
ser usado para fazer perguntas históricas, para se pensar criticamente os
processos pelos quais os corpos sexuados (masculino e feminino) são fa-
bricados, instituídos, geridos, alterados, bem como, saber também como
eles se perpetuam.
Gomes faz uma análise do texto de Scott, voltando inicialmente sua
atenção para a primeira parte do texto da autora norte-americana. Inician-
do sua conceituação da palavra gênero, Scott a apresenta enquanto “uma
maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos”32.
Essa ideia, consoante Gomes, recai, de certo modo, naquela instaurada
por Simone de Beauvoir. Assim, tal ideia faz Gomes levantar as seguin-
tes questões: “há um natural do ser mulher correspondente ao sexo e um
cultural do ser mulher correspondente ao gênero? O que diferencia sexo e
28    Gomes, Gênero como categoria de análise decolonial, 2018, p. 67.
29    Gomes, Gênero como categoria de análise decolonial, 2018, p. 67.
30    Scott, Gênero: uma categoria útil para análise histórica, 2019.
31    Gomes, Gênero como categoria de análise decolonial, 2018, p. 67.
32    Scott, 2019, p. 49-50.

112

Sumário
gênero? Seria a mesma oposição natureza e cultura? É o gênero um efeito
do sexo?”33.
Joan Scott sofreu críticas que acusavam seu trabalho de que a “di-
ferença percebida entre os sexos”, da qual faz menção, manteria a con-
jectura de que corpo-sexo-gênero-desejo-orientação sexual e sexualidade
seriam sempre divididas por binarismos, em duas formas, a masculina e
a feminina, deixando de lado outros aspectos essenciais na construção
dos indivíduos, tais como as contextualizações históricas que erigiram os
corpos sexuados34. Desse modo, caso essa fosse a intenção sugerida pela
“diferença percebida entre os sexos”, Scott estaria arriscando reforçar a já
tão impregnada estrutura binária e linear que formula os sujeitos, como
observa a crítica de Berenice Bento:
[...] gênero sendo utilizado como um conceito ou um instrumento para ex-
plicar as relações entre homens e mulheres – gênero como relação social-
mente construída e sexo como atributo natural – ocorreu o contrário do
que se pretendia: homem e mulher continuaram a ser identificados como
realidades dadas e fixas e apenas as “relações” estabelecidas entre estes se-
riam mutáveis ou capazes de serem transformadas.35

Isso significaria deixar de lado os aspectos históricos envolvidos na


construção dos corpos sexuados, e manteria as construções discursivas
em que existem apenas as formas masculino e feminino de significação
dos corpos, descartando as nuances individuais de cada pessoa. Ainda
de acordo com esta crítica a Scott, a noção de “diferença percebida entre
os sexos” não trataria de uma diferença de construções identitárias, mas
no binarismo entre masculino e feminino. Contudo, a própria autora, em
textos posteriores, esclarece que recaíram sobre seu ensaio interpretações
equivocadas. Como aponta Gomes, Scott escreveu em 2008 um texto onde
explica que gênero é um conceito, assim como mulher e homem, feminino
e masculino também são conceitos.
A partir disso, Gomes esclarece que “Usar o gênero como categoria
de análise é compreender que este funciona como um desestabilizador de

33    Gomes, 2018, p. 67.


34    Bento, A reinvenção do corpo, 2006, p. 75 apud GOMES, 2018, p. 67.
35    Bento, A reinvenção do corpo, 2006, p. 75 apud GOMES, 2018, p. 68.

113

Sumário
conceitos como mulher, homem, sexo e mesmo corpo”36. Utilizar sexo
como uma categoria fixa não é o que propõe o uso de gênero como ferra-
menta de análise. Scott apresenta uma crítica que têm como objetivo uti-
lizar gênero como um instrumento para verificar como se dão as relações
entre homens e mulheres enquanto construções sociais, um conceito mó-
vel que pode ser submetido à reconstrução, discussão e problematização37.
Assim, utilizar essa categoria de análise sugere que “homem e mulher são
conceitos social, corporal e historicamente inscritos tal qual ‘gênero’”38.
Contudo, para utilizarmos gênero como categoria de análise que
visa buscar como os indivíduos são significados por meio dos processos
históricos, não podemos deixar de lado a categoria raça na articulação
desses processos. Assim, ao traçarmos uma análise pautada na categoria
gênero devemos encadeá-lo com a noção de raça, esta última não sendo
apenas um aspecto secundário dentro da análise, mas de igual importân-
cia. Em texto intitulado Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América La-
tina, o autor Anibal Quijano nos apresenta como a modernidade, tendo
como ponto de partida o conhecimento do território da América, apresen-
tou um novo padrão de poder que diferenciava os “conquistadores” dos
“conquistados” por meio da ideia de raça. Quijano afirma que a ideia de
raça, no sentido em que conhecemos hoje, não possui fontes conhecidas
anteriores ao “surgimento” da América. A respeito da noção de raça, o
autor argumenta:
A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na América
identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefi-
niu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu,
que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem,
desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma co-
notação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam con-
figurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas
às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas
delas, e, conseqüentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em

36    Gomes, 2018, p. 68.


37    Gomes, 2018, p. 68
38    Gomes, 2018, p. 69.

114

Sumário
outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instru-
mentos de classificação social básica da população.39

Observamos, assim, que a raça, assim como o gênero, serve de ins-


trumento de classificação dos sujeitos. No último nível da hierarquia entre
os sexos está o feminino, assim como na hierarquia baseada na ideia de
raça, os indivíduos que não se enquadram no padrão europeu são alo-
cados nas camadas mais inferiores da pirâmide de poder. O processo de
inferiorização dos indivíduos baseados na ideia de raça fundamentou-se
na diferenciação dos traços fenótipos e de cor entre os colonizados e os co-
lonizadores. Essa diferenciação serviu como mecanismo de proporcionar
validade às ações de dominação e subjugação deferidas pelo processo de
“conquista” do território da América, aponta Quijano.
Assim como se construiu um discurso de hierarquia entre ho-
mens e mulheres, também foi construída uma narrativa que legitimava
os europeus a se considerarem superiores a outros indivíduos que não
possuíssem as mesmas características fenotípicas que eles. A propagação
desses discursos não acabou com o fim da colonização da América. Ainda
nos dias atuais vivemos sob as heranças do colonialismo, entre elas a no-
ção de raça como forma de hierarquizar indivíduos dentro da estrutura de
poder. A respeito dessa nova elaboração teórica de dominação, Quijano
tece o seguinte comentário:
Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas
idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominan-
tes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável ins-
trumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro
igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero:
os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural
de inferioridade, e conseqüentemente também seus traços fenotípicos, bem
como suas descobertas mentais e culturais40.

Na história da humanidade, muitos povos foram dominados por


outros, porém, a questão da diferenciação por meio da ideia de raça para
subjugar indivíduos surge apenas a partir da exploração da América, como

39    Quijano, Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina, 2005, p. 117.


40    Quijano, 2005, p. 118.

115

Sumário
apontado anteriormente. Essa nova ideia, de acordo com o pensamento de
Quijano, foi a mais bem sucedida forma de dominação social conhecida.
O gênero, nessa perspectiva, aparece como o um fator de hierarquização
entre indivíduos. Quando uma pessoa apresenta dois aspectos corporais
que estão nas camadas inferiores da hierarquia de poder, essa pessoa é
então duplamente subjugada. Quijano afirma que “raça converteu-se no
primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial
nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em
outras palavras, no modo básico de classificação social universal da popu-
lação mundial”41.
Desse modo, quando pensamos em uma crítica decolonial, que, se-
gundo Gomes, difere daquilo que se chamou de pós-colonialismo, falamos
sobre pesquisar situações que estão ligadas à América Latina. O pós-colo-
nialismo sugere que houve um período colonial e que ele se encerrou. Os
estudos decoloniais apontam que o período colonial não foi algo tão sim-
ples assim, ele não se iniciou e teve um fim, as heranças do período colo-
nial permanecem até os tempos atuais no ideário coletivo das populações:
“Isso significa que, nesse contexto, fala-se em continuidade das relações
coloniais de poder – a colonialidade do poder – ‘através das categorias de
gênero, raça e classe’ e que não vivemos um momento pós experiência do
colonialismo: a colonialidade é e continua a ser presente”42. A perspectiva
decolonial é indispensável para compreendermos o sistema hierarquizado
de forma binária que se instalou na América Latina em termos de opres-
são, contudo, afirmar que a raça é a categoria que forma o sistema-mundo
da colonialidade, sem considerar outras categorias de forma interseccio-
nada, é insuficiente, bem como essencialista, pois supõe ser o gênero um
dado natural, organizado e repetido sempre de forma única nas relações
entre os indivíduos43. É nesse contexto que Gomes sugere que seja feita
uma análise feminista da colonialidade – ou um feminismo decolonial –
para pensar como as normas de gênero fazem parte da colonialidade do po-

41    Quijano, 2005, p. 118.


42    Costa, Feminismos descoloniais para além do humano, 2014, p. 929 apud GOMES,
2018, p. 69.
43    Gomes, 2018, p. 69.

116

Sumário
der, do saber e do ser. Passa-se a falar também da colonialidade do gênero,
passa-se a pensar que tanto o gênero é informado pela raça, quanto a raça é
informada pelo gênero. Daí entender não ser possível falar em gênero sem
pensar a colonialidade, nem falar de colonialidade sem incluir o gênero.44

Nessa perspectiva, não podemos, da mesma forma, afirmar que gê-


nero seja um viés possível de ser trabalhado isoladamente. Não há como
afirmar que o gênero é a categoria majoritariamente explicativa dos siste-
mas de opressão e delegar à raça uma posição secundária. Deve-se, desse
modo, operar a interseccionalidade entre as categorias. Gênero ou raça
não podem constituir sistemas de investigação particulares. María Lugo-
nes, em análise feita sobre o estudo de Aníbal Quijano, afirma que “O po-
der capitalista, eurocêntrico e global está organizado, precisamente, sobre
dois eixos: a colonialidade do poder e a modernidade”45. Assim sendo,
os dois eixos citados são aqueles que controlam as disputas de poder em
torno de todos os aspectos da vida, sejam eles materiais ou intelectuais.
As formas de dominação estão atravessadas pelas colonialidade do poder
assim como pela modernidade. Nesse prisma, para o teórico Aníbal Qui-
jano, de acordo com Lugones, “as lutas pelo controle do ‘acesso ao sexo,
seus recursos e produtos’ definem a esfera sexo/gênero e são organizadas
a partir dos eixos da colonialidade e da modernidade”46.
No entanto, Lugones afirma que essa perspectiva é limitada, pois
pressupõe um entendimento de viés patriarcal e heterossexual das investi-
das por obtenção de controle no que tange ao controle sexual, seus recur-
sos e fabricações. Para a autora, o quadro de análise traçado por Quijano
“– capitalista, eurocêntrico e global – mantém velado o entendimento de
que as mulheres colonizadas, não brancas, foram subordinadas e destitu-
ídas de poder”47. Desse modo, o caráter patriarcal e heterossexual dessas
relações sociais é nitidamente opressor. Para Lugones, não precisamos
organizar as relações sociais sempre em termos de gênero, porém, quan-
do feitas, não significam que estas sempre serão patriarcais e heterosse-

44    Gomes, 2018, p. 69-70.


45    Lugones, Colonialidade e gênero, 2020, p. 55.
46    Lugones, Colonialidade e gênero, 2020, p. 56.
47    Lugones, Colonialidade e gênero, 2020,

117

Sumário
xuais. Gomes aponta que estudos feministas e de gênero que se afastam
das noções de modernidade e ocidente, apontam que “grupos sociais e
comunitários colonizados não possuíam (ou ainda não possuem) uma es-
trutura hierarquizada de gênero como a que se imprimou na colônia pela
metrópole”48. Isso significa que o sistema de opressão por meio da noção
de gênero não se estabelece em todas as sociedades. A respeito dessas pes-
quisas, a autora tece o seguinte comentário:
Essas pesquisas revelam como a cultura desses povos, muitas vezes, possuía
e possui uma maior transitoriedade das posições de gênero, uma relativa
igualdade, uma divisão de tarefas que não se assemelha ao que se conven-
cionou chamar divisão sexual do trabalho, um respeito pela homossexuali-
dade, identidades de gênero mais fluidas e não decorrentes do sexo e mes-
mo diversas do duplo homem-mulher. É o exemplo do fazer gênero de povos
originários da América Latina, em que concepções múltiplas ou duais são
substituídas pela imposição binária colonial.49

A autora ainda aponta que mesmo havendo alguma divisão de ta-


refas, entre “fêmeas” e “machos”, essas tarefas não possuem uma hie-
rarquia, sendo mais ou menos prestigiadas pela comunidade, em alguns
casos, a divisão de tarefas ocorre de modo assimétrico, mas não hierár-
quico, bem como nem sempre se resumem a esses dois pares, “machos”
e “fêmeas”. Esses exemplos nos mostram que sistemas diferentes em que
a divisão do trabalho não enfatiza uma hierarquia pautada em gênero,
também não significam um ideal a ser retomado, um “antes a-histórico”.
O ponto em questão também não se trata de que houve ou não houve
uma concepção da categoria gênero no momento pré-colonial, “ou se o
colonialismo criou ou não a ‘mulher’ e as diferentes formas de analisar o
gênero”50, afirma Gomes. O que a autora pretende mostrar é que a colo-
nialidade e a modernidade fizeram com que “povos que possuíam outro
fazer do gênero tem suas redes de relações que funcionam de modo dual
ou múltiplo esgarçadas pela violência colonizadora”51. Nesse prisma, ou-

48    Gomes, 2018, p. 70.


49    Gomes, 2018, p. 70.
50    Gomes, 2018, p. 70.
51    Gomes, 2018, p. 70.

118

Sumário
tros modos de se entender as categorias gênero-sexo-sexualidade são dissi-
padas pela perspectiva imposta pelos colonizadores.
Com o colonialismo se instalou uma normatividade rígida em torno
do conceito de gênero, em que seus aspectos centrais estão associados à
domesticidade e a reprodução. Tais aspectos visam um ideal civilizatório
para as populações dominadas, buscando ceifar comportamentos consi-
derados “desviantes” nos termos da sexualidade e do gênero52. Assim,
as estruturas impostas modificaram as estruturas de relacionamento dos
povos colonizados, reafirmando uma estrutura e hierarquia de gênero eu-
rocentrada. A partir desse panorama, quando pretendemos fazer um estu-
do que tenha como procedimento de análise uma abordagem decolonial
precisamos “que se pense como raça (e classe) e gênero (re)produzem-se
reciprocamente nessa construção moderna binária”53. Com isso, precisa-
mos abordar raça e gênero, bem como classe, não somente por um viés
de interseccionalidade entre as categorias, como a mescla delas produz
diferentes tipos opressão, mas “analisar como essas categorias juntas, tra-
balhando em redes, são ao mesmo tempo causa e efeito d(n)a criação dos
conceitos umas das outras”54.
Nesse sentido, a compreensão de uma das categorias está diretamen-
te relacionada com a compreensão da outra. Devemos questionar como
as categorias de opressão (branco/não-branco, masculino/feminino, etc.)
impostas pela exploração colonial fixaram uma perspectiva epistemoló-
gica (racista e de gênero) inerente à modernidade. A perspectiva episte-
mológica colonial está baseada na noção do “outro” inferior. Com isso,
“o pensamento colonial, euro e antropocentrado funciona mediante as
relações hierarquizadas que cria e esconde essa criação com atribuições de
natureza ou essência, funcionando em sua dicotomia principal, conforme
aponta Maria Lugones: a de humanos e não-humanos”55. Nesse sentido,
a colonialidade promove um processo de desumanização dos povos con-
quistados. Observando o que foi dito até o presente momento podemos
52    Gomes, 2018, p. 71.
53    Gomes, 2018, p. 71.
54    Gomes, 2018, p. 71
55    Gomes, 2018, p. 72.

119

Sumário
concluir que não apenas a raça ou o gênero, ambos são responsáveis pela
categorização moderna dos indivíduos como sendo ou não passíveis de
exploração, mais ou menos humanos do que aqueles que são detentores
do poder. “Isso tudo nos levará a urgência de que, para pensar os signifi-
cados do ‘humano’ é necessário analisar o gênero dentro da perspectiva
decolonial que reconhece a raça como uma das principais categorias defi-
nidoras e hierarquizantes do humano”56.
A partir destas considerações, analisaremos o conto A caligrafia de
Deus, do autor amazonense Márcio Souza, buscando mostrar como as
categorias de gênero e raça se articulam num sistema de opressão que
culminam no aviltamento da personagem Izabel Pimentel, uma mulher
ameríndia.

Izabel pimentel e o aviltamento da mulher indígena


A caligrafia de Deus57 é um conto do escritor amazonense Márcio
Souza que se encontra em uma coletânea de mesmo nome com mais qua-
tro contos. No conto A caligrafia de Deus nos é apresentada uma cena de
assassinato cometido contra dois indivíduos, um deles sendo uma mulher
indígena e o outro um homem filho de um ribeirinho que estava tentando
a sorte na capital amazonense. A narrativa então passa a contar a história
de Izabel Pimentel, uma das vítimas, uma mulher indígena que sai de sua
comunidade natal, Iauareté-Cachoeira, para a capital amazonense, Ma-
naus. Durante a narrativa de Souza, observamos como as descrições da
personagem são traçadas e percebemos que todos os momentos de sua
vida que são expostos para o leitor, Izabel é posta em uma situação de avil-
tamento. Aviltar, no sentido em que iremos trabalhar nesta análise, signifi-
ca “redução de valor”, “rebaixamento”, “abjeção”. Pudemos observar no
início deste trabalho como as mulheres indígenas foram por muito tempo
representadas, e ainda são em diversos casos, nos mais diversos tipos de
textos: etnográfico, historiográfico, literário.

56    Gomes, 2018, p. 72.


57    Souza, 2007.

120

Sumário
Partindo deste ponto, de um conhecimento prévio, histórico, sobre
como se construiu as imagens a respeito das mulheres indígenas (sexua-
lizada, domesticada, inferiorizada, desumanizada), podemos observar no
conto de Márcio Souza essas representações. Além de A caligrafia de Deus
nos apresentar uma narrativa sobre momentos da vida de Izabel Pimentel,
ela também nos apresenta as condições de vida que muitos ameríndios e
amazônidas possuíam ao se aventurarem na capital amazonense em busca
de outra perspectiva de vida. No início do conto o narrador tece o seguinte
comentário: “Quarenta e oito horas depois, havia dois cadáveres atraves-
sados por balas de fuzil. Uma casa de tábuas cinzentas e retorcidas pela
chuva e pelo sol. Na loucura da zona franca, o povo era tão afável na sua
ironia que chamava aquilo de casa”58. Nesse trecho podemos observar que
a narrativa se localiza, neste momento, em Manaus, a partir dos anos de
1967, quando foi oficialmente criada a Zona Franca de Manaus (ZFM).
Podemos observar as condições de vida das pessoas que viviam nas peri-
ferias da ZFM, habitando em moradias insalubres, que mal poderiam ser
chamadas de casas: “A casa, coberta de palha, devia ter goteira como o
diabo. Um rego de água fedida atravessava os calombos da rua e fazia um
mapa escuro no barro seco”59.
É no cenário degradado das favelas manauaras que grande parte
da narrativa se desenrola. No segundo momento da narrativa, o narrador
passa a contar a história de Izabel mesclando o período anterior à sua ida
à Manaus com o de sua morte. Nesse momento, podemos observar como
são tecidas as descrições a respeito da mulher ameríndia: “Devia ter uns
vinte anos, estava vestida só com uma calcinha rendada cor de limão. O
corpo estava em decúbito dorsal [...]. Uma mulher baixa, bem cheinha
nas ancas, a cabeça com três furos de bala e o cabelo escuro marcado
por placas de sangue coagulado”60. Esse é o primeiro momento em que
temos informações sobre a personagem. Verificamos nessa descrição do
corpo que o narrador dá ênfase a aspectos físicos de Izabel que não dá
nas descrições tecidas sobre Catarro, um homem caboclo amazônida com
58    Souza, 2007, p. 21.
59    Souza, 2007, p. 21.
60    Souza, 2007, p. 25.

121

Sumário
quem Izabel tinha um relacionamento. Seu gênero e sua origem indígena
são constantemente destacados na narrativa. Contudo, apesar do narrador
apresentar por diversas vezes os traços fenótipos de Izabel, a construção
de sua identidade enquanto mulher ameríndia é deixada de lado. Isso nos
mostra dois aspectos de colonialidade: a sexualização do corpo da mulher
indígena e o aviltamento de sua identidade.
Izabel Pimentel nasceu na comunidade de Iauareté-Cachoeira, que
é um povoado do município amazonense São Gabriel da Cachoeira. De
acordo com a página “Terras indígenas no Brasil”61, a comunidade é um
local de referência para os povos indígenas daquela região. Muitos locais
da região são considerados como pertencentes aos mitos de criação pre-
sentes nas comunidades das 14 etnias que habitam Iauareté-Cachoeira. A
comunidade é descrita como um ambiente de trocas entre as etnias: trocas
culturais, de visão de mundo e de organização social. O local é considera-
do um patrimônio imaterial brasileiro. Apesar disso, na narrativa de Sou-
za, as pessoas que habitam Iauareté-Cachoeira são descritas como sendo
de maioria pertencente a um sobrenome: Pimentel.
O sobrenome Pimentel aparece como uma negação da identidade
indígena daquela população descrita no conto: “Todos em Iauareté-Ca-
choeira acabavam com o sobrenome Pimentel. Izabel nascera em Iaua-
reté-Cachoeira e não tinha escapado disso. Seu pai se chamava Pedro Pi-
mentel e sua mãe, ao casar-se com ele, já trazia o nome de Maria Pimen-
tel”62. Essa negação ou apagamento da identidade indígena também é um
traço da colonialidade, herança colonial que buscava afastar os indígenas
de seus costumes considerados “bárbaros” e buscar um comportamento
próximo ao “ideal”, o europeu. Desse modo, no conto, toda uma multipli-
cidade de culturas, etnias, cosmovisões são reduzidas e todos os habitantes
da região são reduzidos a uma identidade única, Pimentel. Além desse
apagamento das identidades dos povos nativos da região, o território tam-
bém é descrito como vão, sem profundidade ou atrativos: “[...] não havia
nada de especial, nem mesmo de cidade podia ser chamada, a não ser
61    Cachoeira do Iauaretê. Terras Indígenas do Brasil, 2007. Disponível em: https://bit.
ly/37stJuX. Acesso em 10 de outubro de 2020.
62    Souza, 2007, p. 23.

122

Sumário
pela loucura dos habitantes de Iauareté-Cachoeira que enchiam a boca e
diziam que eram da cidade de Iauareté-Cachoeira”63.
A identidade de Izabel Pimentel, tanto geográfica quanto fami-
liarmente localizada, são aviltadas. Quando observamos as descrições
traçadas sobre os pais da personagem, notamos uma visão colonialmente
enraizada de que as etnias ameríndias possuem organizações sociais e fa-
miliares que se assemelham às europeias, o que observamos no segundo
tópico de nosso trabalho que não é necessariamente verdadeira essa ale-
gação. O pai de Izabel, um indígena de etnia Baniwa, é descrito como um
alcoólatra preguiçoso, estas mesmas características são dadas aos outros
homens habitantes da comunidade, outra imagem difundida pelo colonia-
lismo a respeito dos povos originários brasileiros: “O pai de Izabel era um
índio baniwa que passava o dia bebendo uma mistura de álcool e água e
coçando os edemas que os bichos-de-pé provocavam em seus dedos sujos
de terra”64.
O pai de Izabel é descrito como um homem sem propósito, que,
além de não trabalhar e se ocupar apenas com seu vício em álcool, agredia
a mãe da personagem, Maria Pimentel, uma mulher ameríndia da etnia
Tukano. Na narrativa, Maria traz marcas físicas geradas pela violência
que sofre por parte do marido. O narrador afirma no texto que nem esse
traço de Maria é um diferenciador da ameríndia em relação às outras mu-
lheres ameríndias que vivem na comunidade, associando, assim, todas as
mulheres desta comunidade à figura de indígenas genéricas enraizada pelo
período império-colonial:
É claro que os dedos inutilizados da mãe de Izabel não serviam para
identificá-la, todas as mulheres casadas apanhavam dos maridos nas
mesmas datas e tinham igualmente os dedos inutilizados que mostravam
para as filhas como uma advertência, todas as vezes que elas vinham falar
de casamento.65

O casamento entre os habitantes de Iauareté-Cachoeira também é


tratado de forma genérica, afirmando que se Izabel permanecesse na co-
63    Souza, 2007, p. 24.
64    Souza, 2007, p. 24.
65    Souza, 2007, p. 24-25.

123

Sumário
munidade se casaria com um homem igual a seu pai e que também teria o
sobrenome Pimentel. O conto narra que Izabel morrera mais rica do que
qualquer outra moça de sua comunidade natal. A riqueza de Izabel é me-
dida por meio de seus pertences, algumas poucas bijuterias e jóias. Vemos
como as concepções capitalistas de riqueza também estão presentes no
conto de Souza por meio dessa descrição. Ainda sobre esta questão, nota-
mos no tom da narrativa uma ironia, quando o narrador afirma que Izabel
morrera rica. O dinheiro é um dos assuntos que permeiam a história de
Izabel. Aos 16 anos de idade, quando estudava em um colégio salesiano,
Izabel queria ter dinheiro para comprar revistas. No entanto, as condições
monetárias da família eram praticamente nulas, assim, Izabel se via im-
possibilitada de realizar seus desejos: “[...] eles não tinham dinheiro para
gastar em coisa alguma, e só não morriam de fome porque ela [Maria]
nunca tinha deixado de criar galinhas e fazia um ativo comércio de ovos
frescos com os vizinhos, sem que o marido soubesse”66.
A convivência de Izabel com as meninas no colégio fazia com que
ela desejasse ter outra realidade. Izabel comparava a si mesma e a sua vida
com as fotos e histórias que via nas revistas vindas do Rio de Janeiro. Esses
artefatos “cosmopolitas” foram um dos gatilhos mostrados pelo narrador
que fizeram com que Izabel quisesse deixar sua comunidade para tentar a
sorte na capital amazonense. Apesar disso, ao ler as histórias das revistas,
Izabel não acreditava que todas tinham um final feliz de fato: “Izabel não
sabia se aqueles cavaleiros em roupas caras, depois, começavam a beber
álcool misturado em água e se batiam nas mocinhas louras duas vezes
por ano”67. A violência sofrida no seio familiar acaba se transformando
em algo normal para a personagem, convencionada a todas as famílias. A
importância que Izabel começou a dar ao dinheiro fez com que ela perce-
besse o mundo a sua volta de forma diferente, criticando sua família, em
especial seu pai, por não possuir posses ou condições financeiras para que
ela tivesse acesso aos produtos cosmopolitas que desejava: “Izabel come-

66    Souza, 2007, p. 26.


67    Souza, 2007, p. 26.

124

Sumário
çou a dizer que se o pai não andasse bebendo álcool com água, ela bem
que poderia comprar a revista”68.
As meninas da comunidade de Iauareté-Cachoeira são apresenta-
das no conto como assanhadas, ao verem as fotos de casais se beijando
nas revistas, queriam a todo custo ter essa experiência que é descrita como
incomum na região do Rio Negro. As meninas da idade de Izabel também
são descritas como deselegantes, pois não possuíam os artefatos cosmopo-
litas para conferir a elas elegância (roupas, jóias, maquiagens). Izabel, em
seu período de estadia em sua comunidade natal, também é descrita como
deselegante. Além disso, há uma recorrência de descrição de atributos cor-
porais das mulheres, como os seios, de maneira erótica:
Eram moças sem nenhuma elegância, cabelos escorridos pelos rostos re-
dondos, os seios quase em cone perfeito, iguais aos dela [Izabel], despreocu-
padas e sentindo a água molhando as coxas. Izabel, nessa época, não sabia
o quanto era deselegante e não tinha ainda reparado no corte grosseiro dos
vestidos que usava. Depois é que foi descobrir o quanto eram loucas as suas
colegas, que nem ao menos se preocupavam em escolher os vestidos ou
sabiam o que era um batom ou um xampu para os cabelos.69

Os costumes da comunidade são a todo momento descritos como


inferiores àqueles presentes nos grandes centros, como Manaus. Com o
contato com religiosos que ministravam aulas no colégio salesiano, Izabel
é apresentada a um mundo que ela não conhecia e passara a desejar fazer
parte desta realidade paralela à sua. Izabel considera as pessoas de seu
local de origem como “bárbaros”, ela passa a debruçar sobre os habitantes
de sua comunidade um olhar com o viés de um colonizador, que conside-
ra os modos de vida diferentes dos seus como impróprios: “Era um bando
de loucos, pensaria Izabel, muito tempo depois, aqueles homens acocora-
dos em torno de uma cuia de álcool misturado com água, e que não mais
falavam, nem mais se olhavam, e que depois iam para suas redes porcas,
ressonar pela noite adentro [...]”70.

68    Souza, 2007, p. 27.


69    Souza, 2007, p. 28.
70    Souza, 2007, p. 28.

125

Sumário
Madre Lúcia, uma das religiosas do colégio salesiano, aparece no
conto como alguém que pode tirar Izabel daquele lugar ignóbil. Além dis-
so, Madre Lúcia faz a Izabel Pimentel a proposta de que a moça arran-
casse seus dentes naturais e colocasse duas próteses dentárias no lugar de-
les. Izabel ficou encantada com a proposta já que os dentes novos seriam
parecidos com aqueles que as mulheres das revistas tinham, brancos e
brilhantes. O desejo por parecer menos indígena e mais com as atrizes das
revistas faz Izabel concordar com a proposta e trabalhar arduamente para
que pudesse arcar com os custos da transformação. Izabel é explorada por
Madre Lúcia. Apesar de ter feito a proposta a Izabel, Madre Lúcia cobra
da jovem todos os custos do procedimento. O processo atroz de tirar os
dentes e em seu lugar utilizar próteses não parecia algo ruim para Izabel,
pois acreditava que aquele procedimento a deixaria mais atraente: “Ma-
dre Lúcia havia dito que com isso ela poderia ficar uma perfeita moça da
cidade, com um sorriso parecido com os das moças das revistas de fotono-
vela”71. Contudo, o desejo de Izabel de se tornar mais atraente foi um fra-
casso. Com as próteses dentárias em sua boca, Izabel despertava repulsa
por parte das pessoas, em especial, dos meninos. As próteses foram vistas
pela comunidade como um sinal de indecência.
Após esse episódio, Izabel parte para Manaus, para trabalhar em
um colégio salesiano da capital. A única pessoa que se preocupou com
a ida de Izabel para a capital foi um padre: “diria com uma expressão
contrariada que ela tomasse cuidado, que não se deixasse maltratar, que
ela lembrasse que era uma moça e uma cidadã que tinha direitos, mesmo
sendo filha do falecido Pedro Pimentel, um índio baniwa”72. A fala pre-
ocupada do padre é um presságio para futuros problemas que Izabel Pi-
mentel irá enfrentar ao deixar sua comunidade, pois o religioso demonstra
saber que ela não será tratada como cidadã em Manaus devido sua origem
indígena. Em Manaus, Izabel se torna amante de um caboclo amazônida
de apelido Catarro. Em sua estadia na capital amazonense, a personagem
recebe uma série de estereótipos: “Índia Potira, Diacuí ou Izabel Pira-

71    Souza, 2007, p. 31.


72    Souza, 2007, p. 35.

126

Sumário
da”73, bem como “Índia Potira”. Percebemos que mesmo tendo saído de
Iauareté-Cachoeira para desvencilhar-se dos “costumes” da comunidade
descritos pelo narrador, Izabel continua a ser objetificada, estereotipada e
a sofrer as mais diversas violências: simbólicas e físicas. Izabel encontrou
um companheiro que tinha costumes similares aos de seu pai, bebia e a
agredia. Apesar disso, Izabel continuou com o amante.
Na capital, Izabel faz opção pela prostituição, em vez de seu traba-
lho no colégio salesiano. A prostituição era mais lucrativa segundo sua
visão. O prostíbulo que Izabel frequenta em Manaus é nomeado de “O
Selvagem” na narrativa. Este nome faz uma alusão ao que Izabel significa
dentro do conto: uma selvagem, uma mulher indígena que não consegue
ascender socialmente e alcançar o tão sonhado status de mulher da cidade
grande. A narrativa apresenta a prostituição de Izabel como “sorte”, pois
homens de mesmo status social (étnico) a ela não tinham a mesma opor-
tunidade de ganhar um dinheiro considerado “fácil”. O corpo de Izabel
é sexualizado seja pela imagem associada à prostituição seja pelas descri-
ções do narrador, enfatizando sempre seus “seios em forma de cone”, ou
suas roupas íntimas de cor verde limão.

Considerações finais
Observamos por meio das descrições tecidas no tópico anterior que
a personagem Izabel Pimentel, do conto A caligrafia de Deus, de Márcio
Souza, passa por uma série de situações de aviltamento. Izabel não cons-
trói sua identidade enquanto mulher ameríndia que tem pais de duas et-
nias, Baniwa e Tukano. Além disso, a personagem dispõe todos os seus
esforços para se transformar em alguém inalcançável no olhar da colonia-
lidade: uma moça da cidade grande. Esse desejo de Izabel é inalcançável
pois as estruturas de poder em que ela se encontra não conferem a ela po-
sições de privilégio capazes de a transformar naquilo que ela almeja. Sua
cor, seu gênero e seu status social a impossibilitam de alcançar o status de
moça da cidade grande, para que isso fosse possível, Izabel precisaria ser
uma mulher branca e, no mínimo, de classe média.

73    Souza, 2007, p. 39.

127

Sumário
Numa visão de colonialidade, Izabel constrói uma ficção em torno
de sua identidade no momento em que está em sua comunidade natal.
Ao chegar em Manaus, Izabel percebe que seus esforços para ocupar um
lugar, que de acordo com a visão moderna-colonial não pertence a ela,
são em vão. As descrições que se referem a personagem Izabel Pimentel
tecidas ao decorrer da narrativa de Souza reafirmam noções de hierarquia
de gênero e raça, conferindo a Izabel uma posição social de acordo com os
padrões do pensamento colonial-europeu. Izabel passa por um processo
de violência simbólica que se inicia na sua infância e que permanece até
mesmo após sua morte. Além do desbotamento de sua identidade, Izabel
passa por outros tipos de violência e de estereotipação, além de ser cons-
tantemente associada a uma imagem sexualizada, comumente atribuída
às mulheres indígenas e caboclas ao longo da história. Dá-se, então, a par-
tir de uma série de violências físicas e simbólicas, o aviltamento da mulher
indígena em A caligrafia de Deus.
Márcio Souza reproduz neste texto um imaginário da mulher indí-
gena genérica, colonizada, que busca um local de destaque dentro da so-
ciedade de poder e que falha nessa tentativa. Desse modo, o texto literário
acaba reproduzindo aquilo que os estudos decoloniais buscam combater:
as heranças de uma cosmovisão colonialista europeia. Essa representação
de uma mulher ameríndia genérica, num texto publicado no ano de 2007,
acaba por corroborar com a perpetuação de imagens distorcidas a respeito
dos povos originários das mais diversas etnias do ambiente amazônico.
Reduzir a mulher ameríndia a uma sexualidade exacerbada é ir na con-
tramão de um projeto que busca libertar os povos colonizados de uma
posição de subalternidade.

Referências
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Sumário
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129

Sumário
O MARABAIXO LÊ A CIDADE: ESPAÇO E
RESISTÊNCIA EM AONDE TU VAIS, RAPAZ?

Yurgel Pantoja Caldas


Kerllyo Barbosa Maciel

O contexto do marabaixo no Amapá

A o propormos um estudo sobre o Marabaixo como elemento de


cultura estritamente ligado ao Amapá, é lícito considerarmos
as fases colonial, territorial e estadual (conforme a classificação corren-
te na divisão histórica a ele referente), anotando que tal nome (Amapá)
só aparece consolidado com certa autonomia espacial na fase territorial,
justamente quando da criação dos territórios federais. Até esse momento,
convém tratar o Amapá como “espaço amapaense”, considerando que ele
sempre fora uma parte do Pará (província no Império e Estado na Repú-
blica) ou do Grão-Pará, durante boa parte do período colonial.
Manoel Azevedo propõe uma perspectiva histórica para o estudo
da literatura amapaense, que pode ser dividida em fases: Fase Colonial:
que vai da criação do Adelantado de Nueva Andaluzia, pelo rei Carlos V da
Espanha (primeiro nome oficial do espaço amapaense), no ano de 1544,
até 06 de setembro de 1856, quando a vila de Macapá é elevada à con-
dição de cidade; Fase Territorial: quando é criado o Território Federal
do Amapá, em 1943; e a Fase Estadual: iniciada com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, que tem como consequência a criação do
Estado do Amapá1.
Azevedo2 também apresenta a ideia do jornalismo como origem da
literatura amapaense, do ponto de vista do meio de divulgação e, conse-
quentemente, do reconhecimento de escritores e escritoras no contexto
do primeiro governador do Território Federal, a cargo de Janary Nunes, a
partir de 1944 – ou seja, durante a fase territorial. Especificamente durante
o período janarista, Azevedo aponta algumas datas importantes para a
consolidação do que chamaríamos de uma política de estabelecimento da
Literatura Amapaense, com forte viés ufanista como elemento importan-
te na ligação entre gente e terra: 1945: fundação do Jornal Amapá (órgão
oficial do governo do TFA). 1946: inauguração da Rádio Difusora de Ma-
capá. 1952: fundação da Sociedade Artística de Macapá. 1953: fundação
da Academia Amapaense de Letras3.
Se Manoel Azevedo trata a periodização literária do Amapá por
fases, Fernando Canto (2016) insere a ideia de Temporalidades literárias,
que podem ser divididas por períodos, Assim, temos: Período da constru-
ção da Fortaleza de São José de Macapá (1764-1782); Período da criação
e vigência do TFA (1943-1988) - governo de Janary Nunes (1944-1956)/
período ditatorial (1964-1985.); Período democrático (1985 até os nossos
dias4).
Com relação ao primeiro capítulo de Literatura das Pedras: a Forta-
leza de São José de Macapá como locus das identidades amapaenses, Fernando
Canto (2016) confere-lhe um interessante e intrigante título, chamando o
referido capítulo de O Zeitgeist amapaense. Como sabemos, o Zeitgeist forja-
do pelo Romantismo alemão incorpora o famigerado Espírito do Tempo,
ou seja, traduzido para o contexto local, pode configurar “o conjunto do
clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época5”, no caso, o con-

1    Souza, Imagens, memórias e discursos, 2016.


2    Souza, Imagens, memórias e discursos, 2016.
3    Souza, Imagens, memórias e discursos, 2016.
4    Canto, Literatura das pedras, 2016.
5    Canto, Literatura das pedras, 2016, p. 45.

131

Sumário
texto da emergência da literatura amapaense, a partir da década de 1940,
sobretudo, pautada na Mística do Amapá.
Tomando como a base o conceito de Antonio Candido sobre siste-
ma literário – no qual a obra literária estabelece a ligação entre escritor e
público-leitor – podemos sustentar que a formação da Literatura Amapa-
ense se dá a partir do estabelecimento do Território Federal (Decreto-Lei
nº 5.812 de 13 de setembro de 1943). Mas esse sistema simbólico, que é a
literatura, não teria o mesmo efeito sem o elemento fundamental da “tra-
dição” que, para Candido, teria a seguinte configuração:
Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sis-
tema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária,
espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo
o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tra-
dição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os
homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se
impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obriga-
dos a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição, não há literatura
como fenômeno de civilização6.

Esse fenômeno teria ocorrido a partir da criação do Território Fe-


deral do Amapá (TFA), cujo primeiro governador, Janary Gentil Nunes,
começa a criar em torno de si – para além de uma rede de sustentação
política para o seu governo – um círculo de escritores para a configura-
ção daquilo que seria fundamental para a famosa mística do Amapá – a
formação da ideia de que esse Território Federal seria a terra das opor-
tunidades e da riqueza, pavimentada pelo próprio governo do TFA, mas
sustentada pelo trabalho de empreendedores e funcionários públicos, que
seriam a base da felicidade futura de amapaenses nativos e imigrantes.

O Amapá de Janary Nunes


No esforço de criar uma unidade de pensamento e ação que visasse
à consolidação da mística do Amapá, o governo de Janary Nunes, a quem
Fernando Canto chama de caudilho e autoritário, acaba por provocar em-
bates e resistências em torno desse ideal7. Exemplo disso é a política de
6    Candido, Formação da Literatura Brasileira, 1997, p. 24.
7    Candido, Formação da Literatura Brasileira, 1997, p. 24.

132

Sumário
urbanização da cidade de Macapá, que elege algumas áreas como privile-
giadas em detrimento de outras. É o que ocorre com o fato que culmina
na expulsão de comunidades negras da “frente da cidade” – áreas privi-
legiadas porque banhadas pelo rio Amazonas – e deslocadas para zonas
periféricas de Macapá, como os bairros do Laguinho (atual Julião Ramos)
e da Favela (atual Santa Rita).
“Durante 30 anos escutei as expressões com que o tratavam: fraco,
indolente, preguiçoso, móle, sem vontade. Nascera para escravo. Aponta-
vam-lhe um destino: ser mandado a obedecer”8. Esse trecho da crônica O
Cabôclo9 – escrita pelo próprio Janary Nunes - publicada na edição inau-
gural e na primeira página do Jornal Amapá, em 10 de março de 1945, diz
muito de nossa condição híbrida (mestiça). O sujeito híbrido luta para ser
aquele que toma o espaço do protagonismo narrativo (por meio do inte-
lectual, do escritor ou mesmo do caudilho, no caso o Janary mesmo, o pai
da nação Amapaense) em sua elevação a outro status (espécie de grito de
Independência).
Esse movimento se aproxima da moda romântica que elege o indí-
gena como povo originário de um Brasil nascedouro para o mundo civili-
zado e, por que não dizer, moderno? Como parte da narrativa fundacional
que se aplica ao Amapá, na voz e na pena de seu primeiro governador,
o índio romântico é então substituído pelo Caboclo Titânico (Euclides
de CUNHA, em À margem da História) e assumido como o avatar da
resistência sobre-humana (principalmente para o trabalho), a fim de cons-
truir um espaço para o futuro. Resultado do cruzamento entre o branco
europeu e o índio autóctone, esse Caboclo ganha ares de herói épico ao
estabelecer a marca do hibridismo que, ao contrário do que defende o
próprio Euclides da Cunha em Os Sertões (a pureza racial como signo de
força que combate a degeneração física e moral dos povos), agora mostra
a todos e todas seu verdadeiro poder: ajudar a criar uma identidade (mas
sempre mesclada e entrecruzada, como o conceito mais largo de cultura)
Amapaense por meio da constituição de seu Território Federal.

8    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 20.


9    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 20.

133

Sumário
Mas a referida crônica de Janary Nunes ainda revela mais elemen-
tos dessa “Amapalidade” essencialista, que exalta o amor pela terra, a
valorização de seus elementos naturais (tendo o rio Amazonas como o
grande e caudaloso tema, talvez o maior dessa historiografia) e aponta
um destino glorioso para sua gente, garantido pela força e pela resistência
do Caboclo (esse Titã que sempre está pronto ao trabalho). “Mais animal
do que homem”10 – conforme afirma o cronista Janary, Fernando Canto
o chama acertadamente de “governador-cronista11” – “se a mãe não pôde
amamentá-lo, toma caribé ou mingau de macaxeira e, não raro, antes do
primeiro aniversário já bebeu a cuia de açaí ou de bacaba e provou o sabor
do charque rançoso e do pirarucu seco12”.
A propósito da comparação com a percepção de Euclides da Cunha,
Janary faz um paralelo com o nordestino: “O caboclo só tem satélite dig-
no no nordestino – o homem das ‘cheias’ e o homem das ‘secas’ – um qua-
se a morrer afogado e o outro quase a morrer de sede, este pagando caro
a sua audácia, bravos que se irmanam para enriquecer os que os acusa”13.
Por fim, a apresentação desse herói regional – que, ao fim, nunca deixa de
ser também nacional – se encerra de modo inconfundível:
O caboclo traz em si uma fortaleza inconquistável: O ESPÌRITO NACIO-
NAL. Para ele o estrangeiro é o homem de língua atrapalhada que arria
com qualquer febrezinha e que teme os mosquitos como se fossem fantas-
mas. É o “brabo” mais errado que conhece. Copia os seus hábitos, mas não
os inveja. Toma-o como exemplo; sibaritas do culto aos deuses de fora e do
amesquinhamento dos próprios14.

O hino janarista ao Caboclo se encerra, não sem antes sugerir a


força indômita que deve ser usada para o trabalho que tem um fim, a cons-
trução de um novo espaço – um Amapá glorioso: “Vamos para a frente,
CABÔCLO! O Brasil precisa de ti. A morte não te vencerá mais15!”

10    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 136.


11    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 83.
12    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 83.
13    Cunha, Obra completa, 1966, p. 64.
14    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 19.
15    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 20.

134

Sumário
Como primeiro governador desse espaço que agora já não é mais
Pará (republicado), tampouco Grão-Pará (colonial), o Território Federal
do Amapá requer uma narrativa que dê conta de seu “descolamento” em
diversos níveis, indicando a vontade de autonomia e independência. As-
sim, temos esse novo espaço como signo da modernidade (tardia, em re-
lação a outros espaços no Brasil), mas com uma referência romântica, do
ponto de vista da necessidade de se ter um herói (o caboclo amapaense)
e um acervo que se misturaria à ideia de Antonio Candido16 sobre a tradi-
ção, sem a qual “não há literatura como fenômeno de civilização”.17
No discurso de fundação da Academia Amapaense de Letras, Ja-
nary Nunes (o orador principal), em 06 de julho de 1953, aponta o cami-
nho do futuro, que é o progresso promovido pela ideia de desenvolvimen-
to:
O Amapá é uma ideia em marcha para o porvir, é um sonho que se realiza
a cada instante. Debruçado entre o Oiapoque e o Jari, no maciço guiano,
cuja idade é a da formação da terra, contempla na direção do nascente a
imensidão do oceano e ao sul do gigantesco Amazonas, que liga os Andes
ao mar vislumbrando seu destino universal18.

Mais adiante, no mesmo discurso, mas que bem poderia ser o dis-
curso fundador da nação (o Amapá) – conforme sugere Canto19 Janary as-
severa: “O Amapá merece assim uma academia, cujos membros sejam os
garimpeiros de suas pedras preciosas ainda por descobrir, nesse cascalho
rico que é o seu passado, nossa mina que é sua natureza”20.
Para retomar o perfil heróico e necessário do caboclo no contexto
da fundação do Amapá moderno (enquanto Território Federal), Janary
assim justifica a eleição desse sujeito único para ocupar o espaço antes
hostil e agora útil nos confins da República: “Misturado ao nordestino
e ao sulista, - o caboclo, - irmão gêmeo do jangadeiro, do sertanejo, do
gaúcho e do vaqueiro, será o cimento que amalgamará outras raças e des-

16    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 20.


17    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 24.
18    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p.140.
19    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 140.
20    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 142.

135

Sumário
bravará o sertão, marchando sob um azimute que só tem um destino – o
Brasil primeira potência do mundo”21. Assim se forma o Amapá, pela pre-
sença fundadora de Janary e seu círculo de escritores forjando simbólica e
misticamente a terra do futuro.

Marabaixo: o Amapá afro-americano


Houve, em 1770, no decorrer da ocupação da Amazônia amapaen-
se, paralelo à construção da Fortaleza de São José de Macapá e da Igreja
Matriz São José de Macapá, a fundação da Vila de Mazagão Velho. A
princípio, o objetivo era abrigar 163 famílias de colonos açorianos, que
fugiram da costa africana em decorrência dos conflitos político-religiosos
entre portugueses e muçulmanos. É com essas famílias, de acordo com
Martins22, que reside uma das possíveis origens do Marabaixo no Estado
do Amapá.
Na complementação dessas prerrogativas, Piedade Videira afirma
que a
presença do africano no Amapá tem início na primeira metade do século
XVII, com escravos negros trazidos por várias trilhas de comercialização,
tanto do Estado do Pará como da região setentrional da África do Sul, via
Caribe. E eram adquiridos por donos de fazendas de gado, de propriedades
de produtos extrativos e de agricultura ou de usinas de beneficiamento, ou
ainda para serviços de comércio e de construção23.

Os primeiros indícios de formação do Marabaixo no Amapá estão


relacionados à vinda para a Amazônia, especificamente para Mazagão,
desses grupos de etnia africana. Contudo, para Martins, os primeiros to-
ques das caixas de Marabaixo foram realizados no interior da Fortaleza
de São José de Macapá24. Diante desse contexto, portanto, é possível per-
ceber a trajetória percorrida pelo negro africano e sua expressão primei-
ra de resistência em terras amapaenses: o Marabaixo. Da colonização da
Amazônia à condição de Vila de São José de Macapá que, a posteriori,

21    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 140.


22    Martins, Aonde tu vai, rapaz, por esses caminhos sozinho?, 2016.
23    Videira, Marabaixo, dança afrodescendente, 2009, p. 50.
24    Videira, Marabaixo, dança afrodescendente, 2009, p. 50.

136

Sumário
veio a ganhar status de Território, o Marabaixo e seus ladrões sempre se
fizeram presentes.
A configuração política e geográfica do atual Estado do Amapá
pode ser compreendida se investigada no seu processo que envolve os con-
flitos franco-brasileiro, em sentido macro de sua história. Nas suas dimen-
sões cultural e simbólica estão muito explícitos os atores que participaram
dessa construção, quais sejam: os colonizadores e colonizados; Igreja Ca-
tólica; as etnias indígenas e africanas. E por isso mesmo a heterogeneidade
étnica sempre foi e ainda é uma marca intrínseca do povo amapaense,
como é o caso do povo brasileiro, em sua maioria. Sobre isso, segue-se:
Os conflitos do Contestado franco-brasileiro em si foram definidores da
área territorial atual do Amapá, além de constituir heranças históricas ma-
terializadas a partir das relações sociais produzidas pelos atores sociais.
Esse processo de construção territorial possui dimensão cultural, portanto
simbólica, materializada no espaço e nas relações sociais produzidas por
meio dos embates narrados em episódios que mesmo pouco conhecidos, se
mantêm vivos pelos recursos da memória.25

O contexto da formação dos Territórios Federais deve considerar o


discurso de defesa das fronteiras nacionais e, obviamente, as discussões
acerca da soberania e da independência, que se configura no governo de
Getúlio Vargas26 (1930-1945).
Já no contexto regional, a população negra que veio para a Ama-
zônia trazida por interesses diversos pelos colonizadores portugueses, em
sua grande maioria, trouxe junto sua cultura, sua história, seu apego pela
ancestralidade, seus costumes, suas habilidades e conhecimentos empí-
ricos com a agricultura. Além de tudo isso, parte dessa população negra
consolidou em terras amapaenses seu gosto pela dança e festividades27.
Nessa troca de valores culturais, ela incorporou ao novo lar sua religio-
sidade, que, mesclada aos rituais do Marabaixo, formou um complexo
cultural que até os dias atuais não é simples de entender – complexidade
que tem como um dos elementos principais a cultura de matriz africana e

25    Videira, Marabaixo, dança afrodescendente, 2009, p. 39.


26    Silva, O Território imaginado, 2017.
27    Silva, O Território imaginado, 2017.

137

Sumário
suas formas de existência e resistência, no contexto da formação do espa-
ço amapaense.
Até meados de 1943, em diversas narrativas oficiais, o espaço ama-
paense era visto como um cenário de abandono, vazio, atraso, marasmo,
decadência, miséria. Estas regiões foram desmembradas do Pará para
dar origem ao Território Federal do Amapá cuja criação, em 1943, repre-
sentou uma espécie de “inauguração” do espaço amapaense no esforço
de construção da sua autonomia, sobretudo, em relação ao Pará, já que,
desde o período colonial o Amapá fora parte do território do Grão-Pará,
herdando essa condição de dependência já na República. Decerto que este
“recomeço” do Amapá, agora como um Território Federal, encontraria
ainda muitas adversidades por conta do modo de fazer política, impulsio-
nado por um sentimento nacionalista que tomava conta desse novo Brasil.
Um dos conflitos em território amapaense vai envolver justamente os líde-
res políticos, religiosos e do Marabaixo.
Como mencionamos, a criação dos Territórios Federais se deu pela
justificativa de defesa da soberania nacional, a partir da política de Getú-
lio Vargas, por meio do Decreto-Lei 5.812 de 13 de dezembro de 1943.
No caso do Amapá, essa condição perdurou até a Constituição Federal
de 1988, que instituiu a condição de Estado da Federação para o Amapá.
Nesta mesma linha de contextualização, o excerto abaixo esclarece:
Nesse sentido, cabe ressaltar que para a criação do Território Federal do
Amapá, três objetivos podem ser destacados: proteger a região fronteiriça
do vazio demográfico; garantir a atuação da União em regiões afastadas e
criar condições jurídicas e econômicas para reorganizar o espaço brasilei-
ro.28

O início do século XX, no Brasil e, especialmente do governo de


Getúlio Vargas, é um momento em que muitos territórios surgiram com o
objetivo de assegurar e consolidar todo o território brasileiro, no sentido
de uma unificação nacional. Existiam ainda os explícitos interesses mi-
litares, tendo em vista que a Segunda Grande Guerra estava em curso e
ameaçava já os países da América Latina, e por esses motivos aumentava

28    Silva, O Território imaginado, 2017, p. 64-65.

138

Sumário
a importância de resguardar espaços estratégicos do território brasileiro.
O Amapá certamente era um deles e se tornaria vulnerável caso não hou-
vesse medidas por parte da União no sentido de resguardar a segurança de
seus territórios. Assim, em
14 de setembro de 1943, um dia após a expedição do Decreto-Lei nº 5.812,
pelo presidente Getúlio Vargas, o jornal paraense Folha do Norte noticiou,
com a seguinte manchete: “criados mais cinco Territórios Federais”, a exe-
cução do primeiro plano de redivisão territorial da República brasileira,
criando os Territórios Federais de Amapá, Rio Branco, Guaporé, Ponta-Po-
rã e Iguaçu, todos em regiões fronteiriças. 29

Nas décadas de 1940 e 1950, a Amazônia se destacava no quadro


heterogêneo da sociedade brasileira: região percebida como espaço econo-
micamente atrasado e marcado pelo vazio populacional. Na perspectiva
do governo federal, urgia ocupar a região e valorizá-la economicamente
para que ela, definitivamente, se integrasse ao restante do país, sobretudo
aos centros de poder. Ou seja, da integração socioeconômica dependeria
também a solidificação da vinculação política (fortalecimento da sobera-
nia nacional sobre as áreas de fronteira30).
Com o programa deste primeiro governo do Território Federal do
Amapá - estabelecido pelo trinômio Sanear, Educar e Povoar31, Janary Nu-
nes realizou várias obras na cidade que contribuíram para reforçar sua
imagem de criador do Amapá. As escolas, casas, hospitais “eram signos

29    Silva, O Território imaginado, 2017, p. 77.


30    Lobato, Educação na fronteira da modernização, 2009.
31    Nesse contexto, “sanear” seria criar centros de puericultura e de educação sanitária;
orientar e acudir realmente, por uma assistência social desvelada e completa, aos núcleos
esparsos de população. “Educar”, por sua vez, era o esforço para criar escolas para alfa-
betizar e despertar o interesse pelo trabalho da terra, estabelecendo o ensino profissional
necessário à aprendizagem das pequenas indústrias e do artesanato; enfim, valorizar o
esforço dos habitantes dessas regiões, tornando-o remunerativo e formando cidadãos cons-
cientes dos seus direitos e dos seus deveres para com a Pátria. Por último, “povoar” repre-
sentava colonizar o Amapá e distribuir a brasileiros interessados as terras ainda incultas,
de modo a gerar núcleos compactos e ativos, forjando as sentinelas avançadas da Nação,
a partir da construção de estradas de ferro e de rodagem, do estabelecimento de linhas
aéreas de transporte, de telégrafos e telefones, ligando regiões quase isoladas aos centros
de produção e cultura do litoral e do centro, facilitando, assim, o intercâmbio de todos os
produtos nacionais (MACHADO, 2013).

139

Sumário
da presença efetiva do governo na vida regular dos populares32”. É a partir
desse cenário que se tem conhecimento de uma tomada de consciência co-
letiva pela população que habitava o então Território Federal do Amapá.
As noções de identidade, cultura e política local começam a surgir. Neste
ponto, em especial, consiste a proposta de discussão deste trabalho – a
abordagem subsidiada nos estudos literários a partir das letras dos ladrões
de Marabaixo que surgiram no período que compreende o governo de
Janary Nunes (1943-1956).
Destarte, movido pelo espírito de progresso, Janary Nunes deu iní-
cio ao que chamou de política de sanear-educar-povoar. E como consequ-
ência imediata dessa efetivação política, deu-se um grande remanejamen-
to de famílias do centro da cidade (em cujos arredores existiam roças de
mandioca) para lugares mais afastados de Macapá, como o Laguinho, a
Favela e o Igarapé das Mulheres (hoje bairros do Laguinho, Santa Rita e
Perpétuo Socorro, respectivamente33. Essa mudança na geografia da cida-
de é explicitamente mencionada nos versos de ladrões da cantiga de Ma-
rabaixo mais tradicional e popular do Amapá: “Aonde tu vais, rapaz?”,
cantiga analisada a seguir.

Contexto da cantiga aonde tu vais, rapaz?


Esse espírito de progresso, norteado e implementado pelo governo
de Janary Nunes não foi de todo aceito pacificamente. Houve reação e
indignação. Dessa abrupta mudança aparecem os conflitos como conse-
quência de uma região que até então era de característica predominante-
mente provinciana, para um cenário marcado pelo avanço dos modelos
urbanos modernos da época. De um lado os moradores que ali já estavam
estabelecidos, principalmente na área central de Macapá, de outro, o go-
verno e sua necessidade de construir prédios públicos para abrigar auto-
ridades que chegavam para compor e fazer funcionar a máquina pública
do novo Território. Esse episódio conflitivo preliminar pode ser melhor
apreendido no trecho a seguir:
Nem tudo estava bem. Afinal, o governo que ali chegara para propor uma
mudança radical se estabelecera subitamente. E naquele momento fora

32    Lobato, Educação na fronteira da modernização, 2009, p. 32.


33    Canto, A água benta e o Diabo, 1998.

140

Sumário
também considerado uma espécie de intruso, modificador dos hábitos tra-
dicionais e avassalador, no sentido de radicalmente sanear a paisagem, a
estrutura urbana da cidade que até então estava em ruínas. Os 138 “núcleos
de reação” ao Governo advinham principalmente da resistência dos negros
que moravam no centro da cidade, denominado Largo de São José, área
que servia para cultivo de mandioca, próximo à igreja de São José e ao
longo do rio Amazonas, em frente da cidade, entre a Doca da Fortaleza e
a Intendência Municipal, próximo do trapiche, na época o principal porto
de Macapá.34

Diante disto, na tentativa de dirimir a situação com os moradores,


e dessa forma executar seus objetivos, Janary Nunes adotou o processo
de entendimento e conciliação, oferecendo emprego aos jovens e usou de
cordialidade para os moradores mais velhos. Essa tática foi fundamental
para que o governador pudesse urbanizar Macapá, através de um grande
remanejamento de famílias do centro (em cujos arredores existiam roças
de mandioca) para lugares mais afastados como o Laguinho, Favela, e o
Igarapé das Mulheres (hoje bairros do Laguinho, Santa Rita e Perpétuo
Socorro, respectivamente)35.
Eis o contexto em que a tensão ocorrida entre Estado e comunida-
de afroamapaense proporciona a matéria prima para o primeiro ladrão
de Marabaixo -, este, por sua vez, contempla justamente o momento em
que, por imposição, essas famílias foram retiradas de um lugar de centro
de onde outrora viveram e criaram raízes, para localidades mais afasta-
das, literalmente para as margens da cidade de Macapá. Esses versos são
compostos com tons de sátira e crítica ao então governo de Janary Nunes.
Porém, há, nesta mesma canção, passagens de exaltação e enaltecimento
a este mesmo governo recém-instituído, revelando a contradição que é
própria desse tipo de discurso a ser analisado na sessão seguinte.

Aonde tu vais, rapaz?: Resistência política e expressão


estética no amapá

Nessa perspectiva, por conta das intervenções políticas de Janary


Nunes no Território Federal do Amapá, surge um dos ladrões de Mara-

34    Canto, A água benta e o Diabo, 1998, p. 137-138.


35    Canto, A água benta e o Diabo, 1998.

141

Sumário
baixo mais tradicionais e populares que ainda hoje são bastante cantados
no Ciclo36 do Marabaixo. O fato de as famílias que residiam no centro de
Macapá (localidade atual que compreende a orla da capital) terem sido
remanejadas, para que nesta região fossem construídos prédios públicos,
como as residências oficiais, escolas e hospitais, provocou acentuado des-
contentamento nas pessoas atingidas diretamente por essa política impo-
sitiva. Com isso, não demorou muito para que essa revolta coletiva fosse
explorada de forma poética nas rodas de Marabaixo. Sendo essa mani-
festação cultural de matriz africana, caracterizada por conter elementos
como a oralidade e a memória coletiva, a cantiga Aonde tu vais, rapaz? é
composta, portanto, por meio desses mesmos elementos.
Nesse sentido, Souza considera:
Assim, entende-se que a aparente não discriminação aos negros pelo go-
verno de Janary Nunes, é de certa forma contraditória, visto que na parte
central de Macapá viviam os brancos e mulatos; os mamelucos, nas áreas
denominadas de Elesbão, Igarapé das Mulheres, Trem e Beirol. Por sua
vez os negros, em áreas situadas atrás da Igreja de São José (denominado
de Beco do Formigueiro) e no Largo de São João (mais tarde praça Barão
do Rio Branco) que, a partir da instalação do governo territorial em 1944,
começaram a ser desapropriadas, com o “deslocamento” (expulsão) de seus
moradores (negros) dessas áreas nobres da cidade para novos bairros mais
afastados do centro, com destaque para as famílias negras de Julião Ramos
e de Gertrudes Saturnino Loureiro que foram para os bairros do Laguinho
e da Favela, respectivamente37.
Aonde tu vais, rapaz?

(Refrão)
Aonde tu vais, rapaz,
Por esses caminhos sozinhos?
Vou fazer a minha morada,
Lá nos campos do Laguinho

36    O Ciclo do Marabaixo é uma festividade anual e obedece a um calendário, por sua vez,
baseado no rito católico, em homenagem ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trinda-
de. O Ciclo tem início no Domingo de Páscoa, com a realização de uma missa, e termina
60 dias depois, com a derrubada do mastro.
37    Souza, Imagens, memórias e discursos: a construção das identidades amapaenses no
Jornal Amapá - 1945 a 1968. 2016, p. 74.

142

Sumário
Dia primeiro de julho
Eu não respeito o senhor
Eu saio gritando “viva!”
Ao nosso governador

Refrão
Destelhei a minha casa
Com a intenção de retelhar
Se a Santa Ingnácia não fica
Como a minha há de ficar

Refrão
Estava na minha casa
Conversando com companheiro
Não tenho pena da terra
Só tenho do meu coqueiro

Refrão
O Largo de São João
Já não tem nome de santo
Hoje ele é reconhecido
Por Barão do Rio Branco

Refrão
Não sei o que tem o Bruno
Que anda falando só
Será possível meu Deus
Que de mim não tenha dó

Refrão
A Avenida Getúlio Vargas
Tá ficando que é um primô
As casas que foram feitas
Foi só pra morar doutô

Refrão
Estava na minha casa
Sentada, não ‘tava em pé

143

Sumário
O meu amigo chegou
Cafuza faz um café

Refrão
Me peguei com São José
Padroeiro de Macapá
Pra Janary e Icoaracy
Não saírem do Amapá

Refrão
Eu cheguei na tua casa
Perguntei como passou
Rapaz eu não tenho casa
Tu me dá um armador38

Devido ao caráter coletivo da composição das cantigas do Marabai-


xo, considerando a importância do elemento oral nessas composições e
as várias possibilidades textuais que tais ladrões assumem em determina-
dos espaços temporais, onde o contexto sociocultural é fundamental nessa
perspectiva de improviso e, por vezes, provisoriedade, estamos aqui con-
siderando a fixação textual de uma versão da cantiga Aonde tu vais, rapaz?.
Esse movimento admite a presença de outras versões que se desdobram
sobre o ladrão
Aonde tu vais, rapaz,

Por esses caminhos, sozinho?

Vou fazer a minha morada,

Lá nos campos do Laguinho39.

Assim, esse diálogo constitui, poeticamente, um sentimento coleti-


vo que logo é compartilhado pelas comunidades que também foram rema-
nejadas para as margens da cidade. Entra em cena então a memória oral
coletiva, resultado de uma coesão entre os indivíduos que sentiram na pele
um ato segregador em razão de suas condições social e racial, escamotea-

38    Araújo, Mar a cima, Mar a baixo, 2004, p. 31-34.


39    Araújo, Mar a cima, Mar a baixo, 2004, p. 32.

144

Sumário
do pelas ações governamentais dentro de um quadro emergente pelo qual
passara a Amazônia amapaense em seus primeiros intentos de moderni-
zação na transição da primeira para a segunda metade do século XX.
A respeito desse remanejamento, Videira afirma que
Usando de cordialidade para com os moradores mais velhos, chefes pa-
triarcais de famílias tradicionais e líderes de festas religiosas e populares, o
governador pôde urbanizar Macapá através do grande remanejamento de
famílias do centro da cidade – onde havia plantações caseiras, laços afetivos
e étnicos com seus parentes e contemporâneos – para lugares mais afasta-
dos. A maioria das famílias desapropriadas optou por morar nos campos do
Laguinho, por possuir suas roças no lugar, seguindo o líder comunitário do
bairro, Julião Thomaz Ramos (1876-1958). A outra parte dissidente decidiu
morar no bairro da Favela, seguindo a líder comunitária Dona Gertrudes
Saturnino Loureiro40.

O ladrão supracitado é de autoria atribuída a Raimundo Ladislau,


exímio rimador de sua geração e um dos líderes do Marabaixo. Ladislau,
ao perceber que o senhor Bruno Ramos caminhara cabisbaixo, externou
a seguinte frase, com acentuada consternação: Será possível, meu Deus,
que dele não tenha dó?. Essa frase logo se tornou um verso, que inspirou
os demais ladrões citados acima. O que antecedeu o surgimento dessa
cantiga foi notícia que já corria a cidade dando conta de que os moradores
teriam suas casas desapropriadas, uma região que em dias atuais estão o
Fórum, a Residência Oficial do Governador, as residências em torno da
Praça Barão do Rio Branco e o leito da avenida Coriolano Jucá, onde à
época ficava a Vila Santa Engrácia. Um detalhe que não poderia passar
despercebido é o de que o senhor Bruno Ramos estaria caminhando em
direção aos campos do Laguinho 41.

40    Videira, Batuques, Folias e Ladainhas, 2013, p. 177.


41    Videira, Batuques, Folias e Ladainhas, 2013, p. 31-32.

145

Sumário
Figura 1: Mestre Julião (à direita, em primeiro plano)
Julião Tomás Ramos, conhecido popularmente como Mestre Julião (à direita, com a
caixa de marabaixo), nascido em 09 de janeiro de 1880, desde jovem já se destacou como
líder de sua comunidade. Foi um dos grandes precursores do Marabaixo a partir da
criação do Território Federal do Amapá em 1943 (SILVA, 2014, p. 114).
Fonte: Fotografia de autoria desconhecida. Disponível em: https://bit.ly/2NubXkk,
acesso em 22 de fevereiro de 2021.

Conforme Videira, “as cantigas do Marabaixo são compostas por


versos que recebem a denominação de “ladrão”. São versos tirados de im-
proviso com o objetivo de criticar, exaltar, agradecer, lamentar ou satirizar
fatos do cotidiano42”. Esse conceito tem conexão com o de Araújo, quan-
do de sua afirmativa acerca do mesmo objeto: “O verso do Marabaixo tem
sempre sentido de gozação, da crítica, da sátira, do cotidiano [...]. Os ver-
sos roubam a privacidade das pessoas. Por esse motivo recebem o nome
de ‘LADRÃO’43”. Por meio dessas prerrogativas é que se pode afirmar
haver, desde o surgimento das primeiras cantigas, um caráter estetizante
do modo de vida dessas comunidades afro-amapaenses, de representar e
resguardar para a posteridade valores como o apego à ancestralidade, à
memória dos precursores de suas tradições culturais, o orgulho de ser des-

42    Videira, Batuques, Folias e Ladainhas, 2013, p. 138.


43    Videira, Batuques, Folias e Ladainhas, 2013, p. 31.

146

Sumário
cendente de africanos e, portanto, de suas origens, identidades cultural e
religiosa.
Nesta linha de entendimento a respeito dos ladrões de Marabaixo,
Martins mostra que:
No desenvolvimento da dança do marabaixo existe o “ladrão”, que é a sua
cantiga tradicional. Há o “tirador de ladrão”, que é a pessoa que canta e/ou
compõe os versos do ladrão. No desenvolvimento da dança do marabaixo,
enquanto o tirador de ladrão declama os versos, os demais participantes
respondem ao seu refrão. Os temas dos ladrões são inspirados na vida coti-
diana, expondo acontecimentos ou “deslizes” pessoais44.

A rigor, Aonde tu vais, rapaz? pode ser entendida, num primeiro nível
de leitura, apenas como uma expressão de resistência cultural e política,
como aponta o próprio contexto da cantiga. No entanto, há muito mais.
Oriundo de uma tradição oral secular de etnias africanas, que une a poesia
oral e a performance das rodas de Marabaixo, que envolvem a dança com
coreografia que alude especificamente o arrastar das correntes na época
de sua escravidão, as vestimentas, o tambor, etc, que em seu conjunto e
dinâmicas próprias, formam o que se conhece nos dias atuais como Mara-
baixo. Nesse debate que abrange questões como identidade, cultura, reli-
gião, estética, os estudos literários configuram-se como fundamental para
a construção de uma reflexão que agora norteia para novas possibilidades
de discussão teórica, neste caso, dos ladrões de Marabaixo.
Com efeito, os versos que nos permitem conhecer um pouco mais
sobre a história, as identidades cultural e religiosa e, especialmente, um
momento decisivo da literatura amapaense se interconectam com as ca-
racterísticas tradicionais das culturas reconhecidamente mais antigas, a
exemplo da africana, matriz do Marabaixo e seus versos de ladrões. No
subsídio teórico da discussão e ao referido aspecto, Giddens explica: “Nas
culturas tradicionais, o passado é honrado e os símbolos valorizados por-
que contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um modo
de integrar a monitoração da ação com a organização tempo-espacial da
comunidade”45.
44    Martins, Aonde tu vai, rapaz, por esses caminhos sozinho?, 2016, p. 67.
45    Giddens, As consequências da modernidade, 1991, p. 38.

147

Sumário
Nesta perspectiva teórica, Zumthor explica que, no tocante ainda
às tradições culturais que abarcam a matriz africana e a poesia oral, por
exemplo:
Ninguém sonharia em negar a importância do papel que desempenham na
história da humanidade as tradições orais. As civilizações arcaicas e muitas
culturas das margens ainda hoje se mantêm, graças a elas. E ainda é mais
difícil pensá-las em termos não-históricos, e especialmente nos convencer
de que nossa própria cultura dela se impregna, não podendo subsistir sem
elas. A mesma coisa ocorre com a oralidade da poesia: admite-se a realida-
de como uma evidência, quer se trate de etnias africanas ou ameríndias; é
preciso um esforço de imaginação para reconhecer entre nós a presença de
uma poesia oral bem viva46.

O próximo recorte da cantiga Aonde tu vais, rapaz? possibilita o en-


tendimento de que o enunciador expressa com fervor a felicidade compar-
tilhada pela coletividade macapaense na ocasião da passagem do aniver-
sário do governador Janary Nunes, perceptível principalmente nos versos:
“Eu saio gritando “viva!”/Ao nosso governador”. Conforme Videira, os
referidos versos evidenciam ainda a parte de ‘exaltação’ da cantiga Aonde
tu vais, rapaz?, assim como há nela os elementos onde se podem observar o
lamento e a sátira no mesmo contexto47.
Essa cantiga também traz à baila uma questão que diz respeito a
concepções controvérsias encontradas nos versos de Aonde tu vais, rapaz?,
considerando-se visões distintas sobre um mesmo contexto político-social.
Pois bem, enquanto as primeiras duas estrofes dão conta explicitamente de
um lamento por um ocorrido triste causado pelo então governo de Janary
Nunes, a terceira estrofe, entretanto, carrega expressivamente sentimentos
de alegria e euforia em razão do aniversário e do apreço ao líder político.
Para melhor discussão desta passagem da cantiga, faz-se necessário uma
relação do ladrão supramencionado com o excerto subsequente:
é necessário lembrar que na composição de um ladrão, alguém cria o refrão
e a linha melódica. Porém, qualquer pessoa pode acrescentar um verso. Isso
possibilita o aparecimento de visões díspares de um mesmo acontecimento,
numa só canção. É o que ocorre em Aonde tu vais rapaz, pois aí encon-

46    Zumthor, A letra e a voz, 1997, p. 10.


47    Zumthor, A letra e a voz, 1997, p. 10.

148

Sumário
tramos tanto estrofes que expressam descontentamento, quanto aquelas
que manifestam alegria e gratidão em relação a Janary. Assim temos: “dia
primeiro de junho eu não respeito o senhor, saio gritando: viva ao nosso
governador”. E mais: “dia primeiro de junho, é lá que eu quero ir, vamos
todos bater palmas pro Coronel Janary”. No primeiro dia de junho, Janary
aniversariava. Assim, através da obra que os ladronistas nos legaram, po-
demos perceber as discordâncias e tensões vivenciadas pela comunidade
negra macapaense, no pós-1944.48

Vale salientar que não somente os marabaixeiros, por meio de sua


poesia, registraram para a posteridade esse sentimento de alegria e enal-
tecimento ao personagem político em evidência. Há também escritos dei-
xados pela professora e poeta Aracy Mont’Alverne, reafirmando grande
contentamento pela presença do Capitão Janary. Suas palavras foram em
prosa, mas com a mesma euforia e enaltecimento que se percebem nos
versos de ladrões ao governador. A obra Confiança no Amapá: impressões
sobre o Território, onde reúne vários textos (artigos e discursos) de diversas
personalidades que passaram por essas terras ou que de alguma forma
presenciaram sua história, um em especial chama a atenção para a relação
com ladrão acima destacado. Assim, esse clima descrito pode ser verifica-
do em texto escrito e lido por Aracy Mont’Alverne para Janary Nunes e
todos que naquela manhã de 1951 se fizeram presentes:
Eis o Grande Momento. Para todos os que vivem no Amapá, para o povo
brasileiro patriota e sensato que compreende os altos problemas do País e as
grandes responsabilidades que tem sobre os ombros de um chefe de gover-
no! O momento é de emoção, meus queridos patrícios, porque, finalmente,
temos entre nós o chefe amigo, o transformador e o construtor do Amapá
de hoje, o nosso Governador Sr. Cap. Janary Gentil Nunes!49

Os ladrões de Marabaixo configuram-se dentro do que chamamos


de tradição poética oral. As pesquisas neste campo precisam ser mais
aprofundadas, divulgadas, para que, no caso do Amapá, pesquisadores e
sociedade em geral obtenham material suficiente para compreender sua
própria história, suas artes locais, e lançar mão de novas pesquisas a par-
tir do que já está sendo construído e publicado nesse sentido. Zumthor,

48    Lobato, Experiências de exclusão urbana no cotidiano macapaense (1944-1964), 2015.


49    Nunes, Confiança no Amapá, 2012, p. 266.

149

Sumário
ao falar da questão do “fenômeno das transmissões da poesia pela voz e
pela memória50”, instiga a discussão em direção à poética ladronista no
Amapá, não somente por esta manifestação estética ter nascido primeiro
pelo impulso vocal, eu seja, pela voz, mas também pelo fato de ambos os
elementos – voz e memória – constituírem as mais representativas mani-
festações estéticas e culturais do Estado do Amapá: o Marabaixo e seus
ladrões.
Para a consistência teórica destas análises dos ladrões de Marabai-
xo, e discuti-lo enquanto arte, ou mesmo ao que diz respeito à sua fruição
estética, o excerto seguinte corrobora ao afirmar que o
[...] requisito específico para que um texto seja considerado como produto
da literatura oral é, obviamente, que ele tenha forma e fruição estética. Que
ele possa ser percebido como objeto provocador de uma reação estética. A
condição de ser produzido e/ou transmitido oralmente é necessária, mas
não suficiente para garantir que um texto seja classificado como arte verbal.
Para preencher tal condição, é imprescindível que o texto apresente uma
elaboração artística e seja, consequentemente, avaliado como tal pela co-
munidade nativa. Ou seja, o que distingue, nas culturas de tradição oral, um
texto comum de um artístico é, à semelhança do que ocorre em qualquer
outro tipo de sociedade, a sua poeticidade, a sua capacidade de ser consu-
mido/fruído por suas características ou efeitos estéticos.51

Desse modo, portanto, se houve resistências em diversas instâncias


quanto se trata do povo africano ao longo de sua trajetória, desde a diás-
pora em razão da colonização europeia, elas ocorreram, particularmente,
nos campos da religião e da cultura. Resistiram também às sabotagens de
suas plantações, que culminaram em fugas para comunidades de escravos
fugitivos, conhecidos como mocambos ou quilombos. O Marabaixo e sua
forma poética dos ladrões podem ser entendidos, neste contexto, como
resultado desse percurso histórico que desafia as comunidades negras a se
organizarem social, política e esteticamente 52.
Consecutivamente, algumas considerações são imprescindíveis e
trazem com clarividência os motivos pelos quais as comunidades afro-

50    Zumthor, A letra e a voz, 1997, p. 9.


51    Fernandes, Oralidade e Literatura, 2003, p. 14.
52    Caldas; Maciel & Andrade, Marabaixo: identidade e cultura de resistência, 2018.

150

Sumário
-amapaenses se revoltaram com a efetivação das políticas de Janary Nu-
nes, pois fazem referência justamente às construções de casas de autorida-
des e prédios públicos na mesma área onde antes ficavam as residências
desses mesmos moradores. Esse episódio de profundo descontentamento
e injustiça social foi imortalizado no trecho seguinte de Aonde tu vais, ra-
paz?:
A avenida Getúlio Vargas
Tá ficando que é um primor
Tem hospital, tem escola
Pros filhos do trabalhador
Mas as casas que foram feitas
Pra só morar o doutor53.

O verso “A avenida Getúlio Vargas”, que introduz a referida pas-


sagem da cantiga, menciona uma das avenidas de Macapá, e que leva
o nome do presidente que, por sua vez, nomeou o primeiro governador
do extinto Território Federal do Amapá, Janary Nunes. No contexto da
composição do ladrão, a rua citada – outrora conhecida como “Floriano
Peixoto”, quando ainda era uma viela – foi umas das primeiras ruas a
serem abertas para a construção das novas casas e prédios públicos da
nova Macapá proposta por Janary Nunes. Na parte entre a antiga rua José
Serafim, atual Tiradentes, e General Cândido Rondon, o governo, através
do projeto urbanístico proposto para a capital, ordenou a edificação de 10
casas de madeira ao lado esquerdo, e mais 10 casas de alvenaria ao lado
direito, respectivamente. O destino destas residências, como bem narram
os ladrões até aqui analisados, foram destinados aos médicos, dentistas,
agrônomos, advogados, professores, delegados de polícia, e outras autori-
dades que vieram a convite do então governo para compor e fazer funcio-
nar a máquina pública que iniciara no meio da Amazônia 54.
É nítida, no discurso proferido pelo enunciador do referido ladrão, a
exclusão social que as famílias sofreram ao verem seus antigos lares dando
lugar a profissionais e autoridades vindos de outras partes do Brasil. Até

53    Caldas; Maciel & Andrade, Marabaixo: identidade e cultura de resistência, 2018, p. 34.
54    Caldas; Maciel & Andrade, Marabaixo: identidade e cultura de resistência, 2018, p. 34.

151

Sumário
o quarto verso, que fecha com “Pros filhos do trabalhador”, faz com que
o ladrão seja em si mesmo uma crítica à política implantada, ainda que
os versos narrem o que literalmente aconteceu. O destaque feito nos dois
últimos versos (“Mas as casas que foram feitas/Pra só morar o doutor”)
foi com o objetivo de evidenciar, segundo Araújo55, um acréscimo feito
posteriormente em complementação aos versos que já haviam sido produ-
zidos, e constituem um desfecho que produz uma sátira.
Também é importante registrar que conforme as mudanças foram
acontecendo, da mesma maneira os ladrões também surgiam. Isso deixa
claro que a cantiga “Aonde tu vais, rapaz?”, assim como outras que foram
surgindo nesta mesma época, foram compostas à medida em que as ações
do referido governo se efetivavam, por isso mesmo existe, em uma mesma
canção, a mescla de temáticas, não por conta de contradições nos ladrões
dos compositores (ladronistas), mas pela própria implementação da polí-
tica em vigência que, à luz da percepção desses ladronistas, era contradi-
tória. É muito provável e razoável, portanto, que a Cantiga ora analisada
tenha levado alguns anos para ser completada, obviamente que dentro do
período do governo de Janary Nunes (1943-1956).
Essa afirmativa sustenta-se pela própria ordenação da cantiga em
análise. Nos primeiros ladrões (entende-se por ladrão uma estrofe), emer-
ge o lamento que expressa a dor pelo fato de o governo ter de retirar os
moradores de suas casas. Em concomitância, de acordo com os versos,
há a menção à migração dessas famílias para as áreas afastadas do centro
da cidade de Macapá, contexto que originou o surgimento dos bairros
do Laguinho e da Favela (atual Santa Rita). No entanto, não é possível
afirmar que as “casas que foram feitas só pra morar doutor” – versos sub-
sequentes – foram de fato construídas ao mesmo tempo em que as casas
das famílias estavam sendo desapropriadas, isso não é viável do ponto de
vista de uma política de urbanização em curso. Em síntese, é notório que
a composição desta Cantiga se deu com o início do governo até o decorrer
de alguns anos da gestão de Janary Nunes, e mais, muitos ladrões de Aon-
de tu vais rapaz? coincidem, em matéria de temática, com sucessivas ações

55    Araújo, Mar a cima, Mar a baixo, 2004.

152

Sumário
do então governo territorial, e isso pode ser comprovado principalmente
no decorrer desta seção que se dedica às análises preliminares.
Diante disso, se é verdade que esses ladrões de Marabaixo são poe-
sias de base oral, produzidas a partir de uma tradição oral de matriz africa-
na, é compreensível então que essa manifestação literária sofra alterações
ao longo do tempo pelo fato de sua transmissão ocorrer pela oralidade e
reconfigurando o próprio conceito de memória coletiva. Tal é o movimen-
to que evoca Tayassu na passagem a seguir:
Com a distância do tempo e as recombinações da memória, as narrativas
de vida, as narrativas sobre fatos e acontecimentos antigos, as narrativas
sobre mitos e contos ancestrais, as narrativas sobre deslocamentos e rituais
de passagem e, enfim, as narrativas ligadas à cosmogonia de um povo vão
dispersando56.

A respeito da memória enquanto meio pelo qual uma história ou


narrativa pode resistir através dos séculos, Matos explica que, para cons-
truir uma narrativa, é preciso de “velhos personagens”, que recompondo
a memória coletiva, assegurem o conhecimento que aconteceu no passa-
do, tornando-o referência para o presente e, acrescentando ainda: para
o futuro57. Essa dinâmica em que as memórias individuais e coletivas se
entrecruzam, formando histórias, narrativas que muitas vezes não são
contempladas pela história oficial, permite que o outro da história possa
ser ouvido. Assim, a cantiga Aonde tu vais, rapaz? faz-se pertinente neste
construto por ser, além de literatura amapaense, documento histórico que
narra acontecimentos (político, histórico e social) que até então somente
eram contados a partir de um determinado prisma: o discurso oficial.
Há, assim, uma relação permanente entre o Marabaixo e a memó-
ria. Perceptível com clareza na poética ladronista, seja quando trata de
fatos históricos, políticos ou de fé. A questão da identidade, neste debate,
se apresenta como um elemento que constitui parte da significação que os
afro-amapaenses, especialmente, têm de si mesmos, de suas relações com
o sagrado, com a cultura, com a modernidade e de seu trajeto histórico

56    Tayassu, Práticas ancestrais, práticas orais, 2012, p. 58.


57    Matos, Nas trilhas da experiência, 1998.

153

Sumário
desde muito antes do período colonial. Nesse sentido, “a memória, com
frequência, recusa-se a calar-se58”, afirma Candau. Nessa perspectiva teó-
rica, o mesmo autor continua:
Se há um tempo para transmitir e receber, há igualmente um tempo de ca-
lar e tempo de falar. Ora, a memória, com frequência, recusa-se a calar-se.
Imperativa, invasora, excessiva, abusiva, é comum evocar que seu império
se deve à inquietude dos indivíduos e dos grupos em busca de si mesmos.59

Por conseguinte, em seus escritos sobre a cultura negra do Estado


Amapá, Alci Jackson Soares da Silva reforça que o Marabaixo é com-
posto de cânticos que “são formas melódicas e poéticas que relatam o
sofrimento do cotidiano atroz vivido pelo negro no passado e, assim como
no passado, atualmente esses versos continuam a retratar as dificuldades
enfrentadas pelas Comunidades Negras amapaenses60”. O mesmo autor
arremata considerando que:
O ladrão do marabaixo é o canto improvisado e ritmado composto pelo
cantador de marabaixo, geralmente relacionado ao seu cotidiano. Também
chamado dessa forma devido outro cantador de marabaixo se aproximar e
“roubar” a vez de cantar seus improvisos61.

O desafio que se apresenta em desenvolver um trabalho consistente


sobre o Marabaixo, e especialmente sua poesia oral, torna-se ainda mais
complexo, em princípio, por não haver, na fortuna crítica local, pesquisas
ou mesmo obras que se dedicam aos estudos literários relacionados às
cantigas enquanto objeto central de análise. Assim, a cantiga Aonde tu vais,
rapaz? deve ser entendida como parte de um momento importante dos
estudos sobre o Amapá, que congrega elementos da história e dos estudos
literários, como a crítica, no esforço de compreender o contexto de produ-
ções literárias para uma concepção de literatura amapaense.

Considerações finais
Com base na proposta de situar os ladrões de Marabaixo no contex-
to da literatura amapaense, o recorte feito para a análise da cantiga Aonde

58    Candau, Memória e identidade, 2019, p. 125.


59    Candau, Memória e identidade, 2019, p. 125.
60    Silva, A cultura negra no Amapá, 2014, p. 86.
61    Silva, A cultura negra no Amapá, 2014, p. 84.

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Sumário
tu vais, rapaz?, revela versos que já denotam a consciência, a resignação e as
formas de resistência, permeada de descontentamento e revolta – elemen-
tos que concorrem para uma espécie de leitura e interpretação do momen-
to por que passava a cidade de Macapá, no contexto da implantação da
política urbanizadora de Janary Nunes, o primeiro governador do Territó-
rio Federal do Amapá. Nesse contexto, o remanejamento de populações
negras (praticantes do Marabaixo) das áreas nobres da capital, Macapá,
para zonas periféricas e sem nenhuma infraestrutura para a socialização
daquelas populações revela, de um lado, a sanha modernizadora da gestão
janarista e, de outro, uma modernidade que é promissora a alguns poucos
da elite política e econômica local, mas torna-se injusta e incerta para a
maioria da população, incluindo as famílias negras que foram forçadas a
deixar seus espaços de convivência e trabalho e a reconstruir suas vidas
distantes do centro da cidade.
Nesse caminho, se a literatura pode ser concebida como uma for-
ma de representação de determinado contexto social, a ideia de Candido
de que a “criação literária corresponde a certas necessidades de represen-
tação de mundo62”, pode ser interessante para a concepção dos ladrões
de Marabaixo enquanto literatura amapaense e que registram momentos
históricos de uma realidade social que não podem ser deixados no ostra-
cismo.
Lobato63 , sobre esse cenário de mudança, progresso urbanístico e
revolta por parte dos que foram desprestigiados nesse processo (as famí-
lias negras da “frente da cidade”), discorre que a retirada de dezenas de
famílias do centro da cidade de Macapá fez com estas mesmas famílias
constituíssem os primeiros moradores do bairro do Laguinho. O mesmo
historiador afirma também que, entre todas as famílias deslocadas força-
damente, foi unânime a sensação de que elas foram excluídas dos benefí-
cios provenientes da política de urbanização do novo Território Federal do
Amapá64. Em contrapartida, e como resposta histórica à forma autocráti-

62    Candido, Literatura e Sociedade, 2014, p. 49.


63    Lobato, A cidade dos trabalhadores, 2013.
64    Lobato, A cidade dos trabalhadores, 2013.

155

Sumário
ca como aquelas famílias foram remanejadas, atualmente o bairro do La-
guinho é considerado um dos mais tradicionais, não somente de Macapá,
mas de todo o Amapá por contemplar grande parte da própria história do
Estado e guardar a memória viva do percurso de resistência negra travado
desde sua chegada naqueles “campos”, visto que é um dos bairros, jun-
tamente com o Santa Rita (antiga Favela), de maior expressividade das
tradições culturais de matriz africana, condição que sempre foi resistente
às investidas da modernidade a todo custo.
Vale ressaltar que no contexto do Marabaixo, o cântico dos ladrões,
entoado pelo sujeito que canta a poesia, expressa geralmente um sentimen-
to coletivo compartilhado pela comunidade em que todos estão inseridos.
Desse modo, a memória individual/coletiva se encarrega de exprimir, nas
rodas de Marabaixo, tais sentimentos de unidade e festejo após momentos
de dificuldades – percepções que se interconectam em Aonde tu vais, rapaz?,
no sentido de esta reproduzir e representar a voz de uma coletividade que
experienciou momentos difíceis.
Para arrematar a nossa reflexão, retoma-se a questão da literatura
enquanto arte em seus diversos aspectos e funções, Todorov traz então
para o debate o seguinte pensamento: “A função da literatura é criar, par-
tindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será mais
maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelos
olhos do vulgo”65. Desse modo, portanto, o que é a verdade do Marabaixo
e seus ladrões, dos afro-amapaense (marabaixeiros ou marabaixistas) se-
não a história deles próprios, contada a partir de suas vozes.

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65    Todorov, A Literatura em perigo, 2019, p. 66.

156

Sumário
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158

Sumário
TRABALHO INFANTO-JUVENIL: ENTRE A
OBRA DOIS IRMÃOS DE MILTON HATOUM E
A ATUALIDADE AMAZÔNICA1

Júlio César Barreto Rocha


Nádia Nelziza Lovera de Florentino
Aldízio Francisco Lira

Introdução

D ada a relevância da configuração metodológica do estudo,


devemos dizer logo de início que se trata de uma pesquisa
de natureza culturalista, na qual as referências históricas são relativiza-
das em função da compreensão do funcionamento do todo, seja no que
diga respeito às descrições do funcionamento das atividades laborais na
obra trabalhada, seja no que possua referência na visibilização da vivência

1    O presente texto, levado a efeito no âmbito da disciplina do Curso de Mestrado Acadê-
mico em Letras da UNIR denominada Metodologia da Pesquisa em Letras (então sob a
responsabilidade da Professores Nádia Nelziza Lovera de Florentino e Júlio César Barreto
Rocha, de 2019), deriva de duas pesquisas, uma, que está sendo realizada para a disserta-
ção de mestrado de Aldízio Francisco Lira, denominada provisoriamente “O Discurso so-
bre Trabalho na Amazônia na perspectiva do Projeto Literário de Milton Hatoum” (orien-
tada pelo Professor Dr. Júlio César Barreto Rocha, na fase de qualificação), e outra, um
projeto do qual participa o Professor Júlio, denominado “Direito e Literatura: a Amazônia
e o Olhar do Literário sobre os Direitos Humanos” (coordenado pela Professora Dra. Pa-
trícia Helena dos Santos Carneiro). É texto derivado de apresentação levada ao XIV LIA,
inserido no Eixo Temático “Culturas e Cidades”, mesa sob a Coordenação dos docentes
Maria Evany do Nascimento (UEA), Francisco Bento da Silva (UFAC) e Tatiana da Silva
Capaverde (UFRR), debatido e defendido em 27 de novembro de 2020.
das comunidades, base regionalizada das narrativas dos personagens de
Milton Hatoum. Neste sentido, o desvelamento de dados deste funciona-
mento social particular, as atividades laborais, torna relevante a menção
do momento de construção desta característica local, que se espraiou, de
alguma forma, dos dias da narrativa (ao longo do século XX) até estas
décadas iniciais deste terceiro milênio.
Com isso, já prevenimos alguma crítica que seja pensada acerca do
chamado princípio de coerência histórica, justificando-se aqui o que se-
ria uma (aparente) anacronia havida entre a comparação de momentos
político-jurídicos diferenciados, uma vez que há a promessa no título de
cuidarmos de um tema, “trabalho infanto-juvenil”, que surge em períodos
díspares, e portanto com legislações diferenciadas. A trama da narrativa
da obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum (publicada no ano 2000, vencedor
do prêmio Jabuti em 2001, depois transformada em minissérie televisiva
em dez capítulos, em 2017) ocorreu antes da terceira parte do século XX.
O parâmetro comparativo deste texto com a “atualidade amazônica” re-
mete cada pessoa leitora para o final da segunda década do século XXI.
Parece querer forçar um raciocínio para uma lógica linear e imutável, que
cabe bem no mundo das ideias, quando se sabe que no mundo real as idas
e vindas são a tônica da permanência, uma dinâmica assistida por circuns-
tâncias de tempo e de lugar.
Contudo, com efeito, os conceitos empregados nas abordagens de
cunho cultural e analítico, teleológico, no nosso caso, político-cultural,
tornam secundário o critério cronológico e descritivo do casuístico de
época, muito embora esse seja comum no âmbito popular, mas pareça de-
masiado simplificado. Estamos perante uma metodologia forte no campo
das Ciências Humanas, que assegura uma comparação que leva em conta
a continuidade genética de valores estabelecidos no período formativo,
percebendo aqueles dados que possuem continuação em períodos poste-
riores, sem que isso implique uma relação necessária de causa e efeito,
porém serve para circunscrever os atos, as atitudes culturalmente originá-
rias e depois ressiginificadas, com o intuito de confirmar a permanência e

160

Sumário
afirmar a longevidade dos gestos coletivos de aceitação de certa lógica de
funcionamento dos costumes.
Por outro lado, em termos da linguagem aportada pelo autor, bem
como com respeito àquela trazida pela teoria, há um condicionamento da
técnica de ressaltar elementos díspares para assim reforçar as diferenças,
seja no tempo como as idiossincrasias do espaço cultural, quando estas se
desdobram sobre paradigmas desiguais, permitindo ao método iluminar
as grandes construções do Direito consuetudinário local, de molde a as-
sim assegurar a sua descritibilidade.
A teoria somente existe na generalização, não obstante casos idios-
sincráticos permitam indiciar diferenças que podem reconduzir as atitudes
do conjunto cultural da população para outros caminhos. Esse interesse
da presente Pesquisa nas atitudes da coletividade, relativamente às práti-
cas trabalhistas, é importante porque revela igualização do funcionamento
local coerente de pessoas agindo a partir de olhares das suas culturas, de
origens diversas, que são ao fim e ao cabo formadoras da singularidade
local, levando em consideração o pertencimento a uma realidade comum
a elas. Este procedimento é axiológico porque ressalta valores que foram
transfigurados como permanentes, na sua ideia de menor adaptação à evo-
lução das exigências normativas.
Com isso, efetua-se uma crítica de ordem humanística, porque o
problema atual é identificado nas suas raízes culturalistas, trazidas á baila
pela obra de Milton Hatoum, cuja qualidade literária está comprovada
pela ampla aprovação das suas narrativas, não apenas derivada da sua
vendagem, mas da conversão da sua obra primeiramente publicada, no
caso, Dois Irmãos, em diversas outras bases de difusão cultural. Além
do supramencionado, uma minissérie na Rede Globo (com direção de
Luiz Fernando Carvalho e o ator Cauã Reymond no papel dos irmãos
gêmeos do título), diga-se que os irmãos Gabriel Bá e Fábio Moon, em
2015, publicaram a obra em HQ, recebendo premiação internacional, o
Eisner Award, na categoria de melhor adaptação a outro meio, pela Co-
mic-Con International, de San Diego, Califórnia. Não há dificuldade de
entendimento sobre a qualidade referencial da obra de Milton Hatoum,

161

Sumário
em termos artísticos, literários, mas ainda de referenciação histórica, crí-
tica e relevante, em termos culturais, seja da vertente social, jurídica ou
dos costumes retratados, para o efeito geral de combinar ficção, memória
e História, conforme concebido pela Crítica literária mais significativa e
referenciada.
Com isso, faz-se concreta a alternativa crítica, mas também analíti-
co-literária, de admitir o texto de Hatoum para levantar as bases históricas
do funcionamento social, no trajeto temporal, identificando a realidade
dos costumes relativos ao manejo do trabalho infanto-juvenil, “entre a
obra Dois Irmãos de Milton Hatoum e a atualidade amazônica”. Essa crí-
tica, de índole cultural, mas sobretudo política, ajuda a sociedade a evi-
tar tropeçar nas mesmas pedras, ou pelo menos perceber-lhe a presença.
Estudos culturais subordinam noções cujos vínculos objetivos trazem a
identificação de categorias que são caras ao funcionamento normalizado
das comunidades de relações privadas2, quanto à segurança jurídica ou à
continuidade do emprego de normas consuetudinárias ao longo do tempo,
praticando-se uma reversão evolutiva no Estado de Direito, em medida
similar à falta de cuidado histórico-social que derrogou ou modificou 111
(cento e onze) normas trabalhistas de singular importância, no passado
próximo do nosso País, pelo descaso com a necessidade de defesa da con-
tinuidade histórica quanto a defender aquilo que seja culturalmente rele-
vante para o corpo sócio-trabalhista.
Assim, o debate que aqui se trava acerca dessa categoria histórica
do anacronismo poderia enganar, querendo-se forçar a impossibilidade de
discutir mesmos temas em épocas diferentes, porque o que se quer é lançar
tanto mais luz quanto mais estejamos (e parece que é o caso) em tempos
de trevas e de travas da continuidade do uso de regras de funcionamento
no corpo social, em atividades laborais (principalmente com o advento
da Reforma Trabalhista após a entrada do governo Temer). A socieda-
de contemporânea vive um claro paradigma da Hipermodernidade, cujas
reivindicações sociais, trabalhistas, civis, políticas, econômicas, sanitárias,
passam por um processo de imprescindível recuperação de argumentos

2    Rocha, Pressupostos da Filologia Política, 2013.

162

Sumário
antigos, tanto mais importantes quanto mais seja preciso combater o furor
neoliberal, que não deu certo como aplicação política concreta em lugar
nenhum, impulsionada no final da década de 1970, mas que se tornou
recalcitrante e dominante após o final da primeira década do presente sé-
culo XXI. Muitos sujeitos do discurso acabam cegos pelo fluxo da His-
tória, que parece, aqui sim, assinalar uma lógica de linearidade de um
progresso muitas vezes inexistente, porque idealista, categoria essa inútil
e atravancadora da defesa da temporalidade moderna, que passa mesmo
é pelo crivo de uma dependência sociocultural, a toda prova, dessas idas e
vindas dos sistemas, dependentes das condições históricas de produção e
de reprodução vitais, mas que aparecem falsamente dispostas como aco-
modadas a certa evolução, nem sempre uma realidade efetiva.
A História pode apresentar os fatos, mas não os pode explicar a não
ser dependendo da exatificação de circunstâncias, por definição sempre
de caráter abstrato, subjetivo e transitório, como ficou constatado, teorica-
mente, na própria abertura do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, nun-
ca suficientemente interpretado no seu alcance, como figuração denotati-
va das situações “que se desmancham no ar”, necessitando assim de uma
intervenção culturalista de estudos como este, com a sua reflexão teórica
interessada em justificar o funcionamento do conjunto de cada época e de
cada lugar, peculiaridades diferentes que nunca serão passíveis de sofrer
as consequências do uso de uma mesma linha de pensamento sem perdas
na visualização da realidade humana como um todo através do tempo.
Também se deve esclarecer, ainda na saída, essa dificuldade de assi-
milação em se comparar aquilo que ocorre em uma obra de ficção com a
realidade histórica do local, e, portanto, como é que se passa, tão de ime-
diato, da obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum, cruzando-a de pronto com
certa “atualidade amazônica”, identificada aqui em notícias de jornais,
uma temporalidade e uma espacialidade até talvez demasiado incertas,
na aparência de cada qual. Seguramente, trata-se aqui, como no primeiro
caso da justificativa do “anacronismo” inexistente, de uma aceitação do
acordo teórico lukacsiano, quando nos apercebemos dele, tão logo surpre-
endemos os conceitos de Trabalho, de Indivíduo, de Classe e de História,

163

Sumário
empregados para a análise de determinados autores literários com bas-
tante pertinência, seja ontologicamente, seja axiologicamente3, permitin-
do-se, neste caso, um cruzamento da ficção de Hatoum com a realidade
atual, havendo com isso um ganho relevante em termos de interpretação
para ambas as faces, numa perspectiva culturalista.
Assim as coisas, resta ainda explicar introdutoriamente que este tex-
to, fruto de um artigo preparado no âmbito de estudos de disciplina que
tratou de Metodologia do Estudo, da Pesquisa e da Redação de trabalhos
acadêmicos de pós-graduação, intitulada Metodologia da Pesquisa em Le-
tras, no âmbito do Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Fede-
ral de Rondônia, foi escrito a seis mãos, com a perspectiva de ser publica-
do como proposta de demonstração dessa possibilidade de cruzamento de
tempos, da realidade factual, e de gêneros, da realidade ficcional, buscan-
do uma resultante que proporcione o encontro entre a literatura-denúncia
de um autor com os fatos concretos que leva à letra de forma. Claro que é
possível analisá-lo ligado à perspectiva da “Literatura e Sociedade”, bem
como é factível demonstrar que se pode defender os direitos sociais e civis
da atualidade das gentes e dos povos, pela análise das lentes futuristas de
escritores que souberam divisar com bastante amplitude as irrealidades
cotidianas de tempos passados, sem muito conhecimento assentado da ne-
cessidade de garantias dos direitos humanos, havida como normal, hoje,
na atualidade dos povos.
Este texto surge, então, em termos de objeto, como proposta de ana-
lisar as evidências de trabalho infantil encontradas na obra supracitada,
pretendendo-se, ao longo da sua argumentação, poder identificar os veto-
res de legislações e de fatos, ocorridos (ficcionalmente ou não) na época
do romance, para cruzar alguns dados com o contexto atual, buscando
assim encontrar semelhanças e diferenças nas realidades retratadas, bem
como obter, ao final, uma projeção de luta histórica necessária pela defesa
desses direitos, até pela demonstração de quão difícil era a vida de pessoas
massacradas, dolorosamente massacradas, pelo tratamento diferenciado,
que as vastas distâncias de um centro público fiscalizador acabavam per-

3    Lukacs, Ontologia do ser social, 2010, p. 93.

164

Sumário
mitindo, e com muito mais contundência, relatar modos como se deu a
normalização da perda daquela liberdade, tal como havida no ditado, re-
cuperado na canção de autoria de Chico Buarque, que rezava não haver
pecado ao Sul do Equador.

A Amazônia de Milton Hatoum e uma definição atual de


trabalho infanto-juvenil

Várias são as Amazônias e sempre é vã qualquer tentativa de se


concretizar a sua visibilização por meio de apenas um viés, de um local
ou de uma sociedade. Se não tivermos em conta a diversidade, ainda que
na unidade, especialmente por uma inversão importante de fazer, relati-
vamente ao que seja a Língua do povo, que, esta sim, uma unidade pela
intercompreensão das partes que se comunicam, corre-se o risco de não
se fazer entender qual o objeto da nossa perspectivização. Mais de 90%
da sua população fala essa a Língua do povo, a Língua Portuguesa, sem
que haja uma unicidade de léxicos, de pronúncias, de referenciais teóricos,
culturais, etc. Por isso, tratar da Amazônia de Milton Hatoum será saber
da presença unificadora dessa Língua Portuguesa e será trazer à baila o
Projeto Literário desse autor, que teve no Retrato de um certo Oriente (1989)
o arrancar da sua excelentemente bem recebida obra, cujos referenciais
históricos locais já eram muito bem discutidos, pela presença de um Már-
cio Souza, com uma insistência na jocosidade, na Historiografia e na (sua)
Amazônia, um precursor, sem dúvida, mas nem sempre tido como in-
fluenciador, destacando-se uma espécie de “outra” região, uma outra des-
crição da realidade, uma busca de defender outros valores, outro futuro,
outra totalização.
O romance Dois Irmãos (2000), o segundo da autoria do escritor
amazonense em comento, resultado de onze anos de afastamento acadê-
mico da Universidade Federal do Amazonas (na ocasião Universidade
do Amazonas), com viagens a Paris, São Paulo, passeando por Flaubert
(escritor francês que marcaria forte influência na obra hatoumiana) e por
outras teorias, traz uma continuidade do seu projeto, agora marcado pelo
reconhecimento da cidade libanesa de Biblos, como símbolo da interna-
cionalização na construção da sua Amazônia, que derivaria à próxima

165

Sumário
obra, Cinzas do Norte (2005) e depois a Órfãos do Eldorado (2008), com
personagens enredados em uma ideia de um local capaz de registrar na
multiplicidade o destaque a determinados povos que dão a nota na edifi-
cação do lugar (vasto lugar), marcado por um caráter determinado, mas
perdidos todos os povos na voragem de uma destruição de cada qual, e
na vertigem de uma permanente incerteza na construção social, talvez
somente possível percepção se resgatadas as vivências pelo autorreconhe-
cimento, no embate histórico, na leitura das muitas mesmas lutas, que
poderão, afinal, serem responsáveis pela defesa dos direitos históricos dos
indivíduos minorizados na confluência de tantos povos e de tanta falta de
carinho pela continuidade, neste lugar que é Inferno e que é Paraíso, que
é Mito, que é pólo industrial e que é Lenda, mas não dá conta de ver a
firmeza da continuidade, das famílias, dos direitos, dos valores, tal como
se pode observar no âmbito de outras sociedades, mais severas no proce-
der porque, talvez, saibam que não teriam para onde fugir ou para onde
retornar, se “não der certo” a sua história comum.
A Literatura em geral está repleta de obras que retratam a questão
do trabalho de crianças e de adolescentes, seja como auxílio a empreendi-
mento familiar ou seja como método empregado para obtenção de meios
de subsistência, ainda mais se a orfandade surge do abandono pelos pais
ou por eventos apocalípticos desdobrados no seio da sua família. Seja num
ou noutro contexto, invariavelmente a criança ou adolescente deixa de se
dedicar aos estudos para radicar-se exclusivamente na busca de condições
necessárias para sobreviver.
Dois Irmãos, de Milton Hatoum, é um exemplo atemporal em que
o trabalho infantil está claramente inserido, nas figuras de Domingas e,
depois, também do seu filho Nael. Indígenas, agregados pelo braço jesuíta
de freiras remuneradas acabam se incorporando à paisagem da casa dos
patrões, sempre trabalhando bastante para a família de Zana e Halim des-
de tenra idade. É interessante lembrar que mãe e filho passam suas vidas
servindo aos patrões, com raros momentos de liberdade, quando busca-
vam se deslocar à zona rural, onde supostamente se sentiam mais livres.
E quando falamos em liberdade, não estamos citando apenas a não-parti-

166

Sumário
cipação na faina diária, como também a exclusão (ainda que temporária)
dos problemas oriundos da casa dos patrões.
Esta obra Dois irmãos narra também fatos do desenvolvimento da
cidade de Manaus durante o ciclo da borracha, na primeira metade do
século XX. Esta narrativa apresenta personagens oriundos dos mais diver-
sos cantos do mundo, que se entrelaçam no seio da floresta amazônica,
estabelecendo relações de trabalho e convivência. Há um destaque pre-
ponderante à figura de Domingas, por conviver desde pequena em casa
dos patrões e conhecer como ninguém a estrutura organizacional do ma-
trimônio de Zana e Halim e das vidas que deles vieram, até mesmo porque
teve um envolvimento amoroso com um dos filhos gêmeos do casal, cuja
identidade permanece incólume até o desfecho do texto. Anote-se que o
narrador é o próprio filho do casal, tentando-nos a concluir que a História
está sendo escrita por este vencedor.
A partir da Constituição Federal brasileira de 1988 (atualizada aos
dias da nossa pesquisa), foi possível às pessoas leitoras da trama aceitarem
como direito presumível (nem sempre concretizado) a proteção havida no
Artigo 227, quando se fixou a norma:
Art. 227- É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à ali-
mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão4.

A partir daí, foi aprovada, com forte ressonância de recomenda-


ções hauridas do Direito Internacional Público, a Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990, que passou a ser conhecida como o “Estatuto da Criança
e do Adolescente” (ECA), responsável por dar conta daquela concretude,
porque nem sempre exigível diretamente o consignado na letra da Carta
Magna.
E é neste sentido que existe muito bom amparo nos pormenores
desta Lei especial (que obriga, perante normas gerais), quando debulha

4    BRASIL, República Federativa do. Constituição Federal de 1988.

167

Sumário
categoricamente haver “absoluta prioridade” no “interesse superior da
criança, que deve prevalecer sobre qualquer outro bem ou interesse”, cujo
dever é do adulto (pais ou parentes mais próximos) que estejam responsá-
veis pela Criança ou Adolescente, seja em relação “à vida, à saúde e à ali-
mentação”, como “à educação, à cultura, ao lazer e à profissionalização”,
bem como “à liberdade, ao respeito, à dignidade e à convivência familiar
e comunitária”, combatendo-se “toda forma de negligência, discrimina-
ção, exploração, violência, crueldade e opressão”, tudo nos artigos 4° e
seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente, descabendo descurar
a pessoa dessa idade relativamente a cumprir obrigações de escolarização,
a serem exigidas aos adultos responsáveis pela pessoa.
Assim, por outro lado, não havendo prejuízo da criança e do ado-
lescente no tocante ao seu desempenho nas atividades escolares, a ser afe-
rido, em caso de denúncia, pelas autoridades competentes locais, pode
haver participação em trabalho familiar, sempre com carga horária, em
idades e tarefas apropriadas, possíveis de serem absorvidas física e intelec-
tivamente pela pessoa em formação.
O fenômeno da exploração do trabalho infanto-juvenil possui de-
núncia ficcional clássica, tal como prolatada em escritos famosos e formo-
sos de Charles Dickens, ou, se quisermos citar literatura nacional ampla-
mente reconhecida no exterior, podemos encontrar exemplos na obra de
Jorge Amado. Entretanto, as lamentações daí derivadas não levaram a que
deixassem de ocorrer recidivas em todos os tempos, seja hoje ou mesmo
em períodos e locais que tenham superado dificuldades socioeconômicas
historicamente renitentes. A sua erradicação vem sendo tarefa maior da
educação, muito dificultosa, até porque ideologias liberais apregoam, pe-
los seus protagonistas que jamais descurariam as próprias crias, dever ser
essa forma de trabalho “normalizada”, como meio de subsistência, e mes-
mo de aprendizado de bons costumes, pelas classes desfavorecidas.
Neste ponto que se torna interessante trazer à baila o Plano Nacional
de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Traba-
lhador (2019-2022), que traz a seguinte redação, sobre a expressão “trabalho

168

Sumário
infantil” fazendo referência às atividades laborais exercidas por trabalha-
dores em tenra idade:
[Trabalho infantil é todo tipo de] atividades econômicas e/ou atividades
de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não,
realizadas por crianças e adolescentes em idade inferior a dezesseis anos,
ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 (catorze) anos, indepen-
dentemente da sua condição ocupacional5.

Para a elaboração deste conceito, a equipe que criou o supracita-


do Plano de Prevenção ao Trabalho Infantil se valeu de outro dispositivo da
Constituição Federal citada, o seu Artigo 7°, inciso XXXIII, que proíbe
o “trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos, e
de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de
aprendiz”6.
Esta norma, de fácil revés se não impressa na Lei maior, obviamen-
te não era tida em conta nos tempos das narrativas de Milton Hatoum,
cujo período romanesco vem de finais do século XIX a meados do século
XX, uma vez que as crianças e adolescentes daquela época eram dispostas
em condições de trabalho, segundo defendiam os adultos, para “ajudar no
sustento da família”7, como também alegavam a necessidade de “aprender
um ofício”8, para que fosse de grande valia quando chegassem na idade
adulta.
Em tese, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em derivação da
Constituição Federal, surgiu como a certeza de que a criança e de que o
adolescente, no Brasil, brasileiros ou não, devem ter os seus direitos funda-
5    BRASIL, III Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adoles-
cente Trabalhador, 2019, p. 06.
6    BRASIL, Constituição Federal de 1988. .
7    “Devemos considerar também, ainda que em menor escala, dentre os motivos do traba-
lho infantil, o próprio desejo do menor em trabalhar, seja para ter acesso a bens de consu-
mo, seja para ajudar na economia doméstica, ou ainda para fugir de maus tratos em casa”
(FERST, 2007, p. 42).
8    Ferst explica ainda que “o trabalho precoce é mais aceito pelas pessoas mais velhas, em
contraposição as novas gerações, comprovando que as políticas aplicadas têm conseguido
mudar o paradigma social de aceitação do trabalho infantil. Contribui para mudança desse
paradigma de que o trabalho ‘socializa’ a criança, os dados do PNAD, pois demonstram
que as pessoas que começaram a trabalhar mais cedo e aquelas com menos instrução são
as que auferem a menor renda, perpetuando o ciclo da pobreza” (FERST, 2007, p. 42).

169

Sumário
mentais salvaguardados por uma legislação e por uma jurisdição capaz de
combater os atos ilícitos propinados contra essa fatia da população, mais
sensível, mais indefesa, perante adultos, e em locais que dificultam a ação
de gestores da sociedade, normalizadas histórias de banalização de maus
tratos à juventude imberbe e empobrecida.
Claro que quando se trata de regiões interioranas de zonas empo-
brecidas, mais distantes da proteção de jurisdição protetiva, ainda é co-
mum a perda de direitos básicos. A prática corrente exibe falhas substan-
ciais na aplicação dessas normas, sobretudo quando se trata de espaços de
amplitude historicamente desprezadas pelos mais duros representantes da
Lei e da Ordem.
Francisco Bento da Silva arrazoa sobre o uso de desterrados em
guarnição militar na Amazônia acreana, como exemplo de espaço distan-
te do poder central e de território amplo em demasia para ser alcançado
pelo múnus público. Nesta passagem, traça sugestões sobre dificuldades
consabidas que tornam um espaço verde e aquoso indesejado para mora-
da:
O problema, quase perene, era que havia muitas resistências de militares em
servir na distante fronteira do Oeste amazônico, pois ser destacado para o
Acre não se constituía em algo desejado e abraçado de bom grado, princi-
palmente para os militares de baixa patente. Já os oficiais, além das obriga-
ções inerentes à função militar e de comando hierárquico, geralmente eram
alocados em cargos nas administrações das prefeituras governamentais9.

Devido à existência de Sibérias, tropicais ou geladas, distanciamen-


tos áridos até para os mais aclamados defensores da civilização penetran-
te, é que foram instituídos direitos, e ousamos dizer que para denunciar os
abusos e defender a manutenção desses direitos no espaço longínquo é que
se aprofundam autores, como Milton Hatoum, nesse combate à existência
ou ao incentivo do trabalho infanto-juvenil nessas paragens. Convocada
como mecanismo para buscar padronizar a idade mínima para ingresso
no mercado de trabalho, a Convenção nº 138 da Organização Internacio-
nal do Trabalho (OIT), datada de 06 de junho de 1973, preconiza, no seu
Parágrafo 3º do Artigo 2º, que a idade mínima de admissão ao trabalho
9    Silva, Acre, a Sibéria Tropical, 2017, p. 222.

170

Sumário
ou emprego, nos países membros, não deve ser inferior à idade em que
se encerra a obrigação escolar, idade essa fixada no Brasil quinze anos.
Entende-se, na análise da legislação ora mencionada, que o trabalho não
deve, em nenhuma hipótese, preceder o direito constitucional à educação.
É importante lembrar que este é um conceito relativamente recente,
embora com um escopo bastante consistente, mas que já nos mostra alguns
pontos que necessitam ser debatidos. Na obra Dois Irmãos, perceberemos
que os personagens objeto da nossa análise começaram a trabalhar na casa
dos seus patrões antes mesmo de completar esta idade hoje mínima. Ferst
explica que de forma sistemática o motivo de o trabalho infantil ser tole-
rado na sociedade brasileira passa por fatores bem conhecidos de todos:
Outro motivo da exploração do trabalho infantil é a questão cultural que vê
com naturalidade o trabalho infantil sob a falsa premissa de que o trabalho
educa e evita a marginalidade, ou ainda de que as condições socioeconômi-
cas dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento impedem a extin-
ção do trabalho (exploração) infantil, pois este significa a sobrevivência da
criança e do adolescente10.

Analisando Dois Irmãos sob a ótica desta citação, percebe-se que ao


colocar a Domingas jovem em condição de trabalho infantil, enviando-a
para conviver com Zana e a família, as religiosas que o fizeram acredita-
vam piamente estar combatendo o ócio da menina (embora esta já tra-
balhasse no convento), buscando uma família que a “protegesse”, além
de que receberiam um adjutório pela doação de Domingas. Era, portanto,
uma via de mão dupla: uma troca entre duas esferas institucionais (Igreja
e Família), em que nenhuma das partes realmente interessadas saía per-
dendo: apenas Domingas, então aparentemente convertida em mera mer-
cadoria, tornava-se pessoa sem direito de opinar sobre o que aconteceria
com o seu futuro, até porque esta situação era amplamente permitida e
difundida, por ser corrente no local e época.
Há, também, uma questão econômica engendrando tal contexto,
que pode ser explicada ao analisarmos Teixeira sobre a questão do recru-
tamento indígena infantil:

10    Ferst, 2007, p. 40.

171

Sumário
Assim, na medida em que crescia a procura do produto, oriunda da Europa
e dos Estados Unidos, devia crescer também a pressão sobre a mão-de-obra
indígena. O resultado de tudo isso foi que se chegou à utilização de procedi-
mentos ousados para recrutá-la, não se excluindo a chantagem do sequestro
de mulheres e crianças11.

Num primeiro momento, pode-se pensar que esta citação esteja fa-
lando apenas dos trabalhadores nos seringais, embora se perceba que o
comércio (ramo em que Halim trabalhava) também lucrou consideravel-
mente com o aproveitamento da mão de obra indígena. A este fato deve
ser acrescentada a já mencionada tenra idade com que Domingas foi en-
caminhada à casa dos seus então futuros patrões, o que demonstra haver
muitos anos trabalhando a serviço do casal libanês, sem que, no entanto,
a empregada pudesse desfrutar de qualquer resquício de confiança por
parte deles.

Trabalho infanto-juvenil e os fatos operados em dois


irmãos

Durante a análise cruzada entre os dados de leis voltadas à temática


do trabalho infantil e o funcionamento atualizado da vida local em Ma-
naus, foram encontradas similaridades entre a legislação vigente no Brasil
e o enredo crítico trabalhado por Milton Hatoum em Dois Irmãos. Para
cuidar de similitudes no tratamento dos temas, peguemos primeiramente
o conceito de trabalho infantil segundo abordamos na seção anterior. O
primeiro ponto da defesa de haver atividade concorrente com a escola
acata a questão por sobrevivência. Antes de ser “adotada” pela família de
Zana, Domingas vivia num orfanato administrado por religiosas perten-
centes à ordem das Irmãzinhas de Jesus.
As aspas no termo adotada justificam-se pelo fato de, na época re-
tratada no romance, os métodos para que crianças vivessem em casas que
não eram as de seus pais de origem eram realizados de forma ilegal. Para
referendar esta afirmação, Alberta Góes afirma que, até a década de 1980,
nove em cada dez adoções realizadas em todo o país eram feitas pela prá-
tica ilegal de registrar como filho a criança nascida de outra pessoa, sem

11    Teixeira, Servidão Humana na Selva, 2009, p. 45.

172

Sumário
passar pelos tramites legais, realizando um processo conhecido como ado-
ção à brasileira12.
Percebe-se uma similaridade entre o texto de Góes e os fatos nar-
rados em Dois Irmãos: a menina Domingas foi entregue para ser criada
pela família de Halim e Zana, o que configura o passo final do processo
adotivo, sem que se fizessem os anteriores, referentes à solicitação à Vara
da Infância e Juventude, visita à família e entrevista realizadas por um
assistente social. E os anteriores não foram feitos justamente pelo fato de
Halim e Zana serem comerciantes muito bem sucedidos e bastante co-
nhecidos, donos do restaurante Biblos, estabelecimento que foi aberto em
1914 por Galib, pai de Zana. Sobre o restaurante, Milton Hatoum afirma
que desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes
libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Se-
nhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam.
Por este trecho, se percebe que o restaurante da família de Zana já
estava consolidado, contando com uma clientela fiel, situação esta que
auxiliava na manutenção de um padrão de vida considerado alto para as
famílias manauaras da época. Este padrão aquisitivo deu o respaldo neces-
sário para que Zana recebesse a menina em sua casa.
Um fator importante deve ser levado em consideração: quando a
menina índia foi morar com Zana, a esposa de Halim ainda não havia tido
seus filhos. Tal condição permitiu que Domingas fosse criada pelo casal
libano-brasileiro, ainda que não como filha, mas como uma serviçal, que
cresceu junto com os filhos dos patrões
É preciso destacar que entre a ética e a política, o trabalho no âmbito
da democracia deve servir à coletividade e ao indivíduo de modo equili-
brado, em termos de igualdade. Explica Antonina Infranca que “Lukács
não admite que, embora não houvesse exploração do homem por parte
do homem (no mundo soviético), no socialismo realizado [então] a ex-
ploração do homem não fora de fato superada”13, mas condições objetivas

12    Goes, Descaminhos da Adoção, 2014, p. 10.


13    Lukacs, 2010, p. 93.

173

Sumário
é que poderiam permitir uma reforma do sistema, tal como a que houve,
nos anos subsequentes aos fatos narrados em Dois Irmãos.
Na condição real de empregada, Domingas não teve a oportunida-
de de prosseguir seus estudos após ter saído do pensionato de freiras onde
residia. Ferst (2007) mostra a possível razão de a menina indígena não
haver continuado a sua trajetória escolar:
Existe uma propensão em países em desenvolvimento de as meninas fica-
rem mais fora da escola do que os meninos e de as que estão matriculadas
nas escolas frequentemente abandonarem os estudos na puberdade, pois
são obrigadas a assumir responsabilidades domésticas14.

Culturalmente, a mulher, ontem como hoje, majoritariamente, é


vista como cuidadora do lar. Nesta condição, segundo a ótica de quem
defende o trabalho infantil feminino, ela deve ser “preparada” desde a
mais tenra idade para aprender tarefas domésticas básicas, e somente isso,
como lavar e passar roupas, limpar a casa e cozinhar, sendo essa prepara-
ção para trabalhos futuros o próprio centro da sua vida, servindo mesmo
para dar-lhe ativo em direção a um possível matrimônio, tido como ponto
conclusivo da existência feminina em eras não tão priscas assim. Convém
lembrar que, em tempos atuais, ainda há sociedades onde este padrão de
vida feminino (da esposa dedicada e serviçal abnegada) ainda se mantém,
a despeito da modernização e consequente desenvolvimento da mulher
enquanto ser cônscio da possibilidade de mudança de um panorama, até
décadas atrás, completamente adverso. Eis o relato que o narrador perso-
nagem faz sobre o momento em que a menina chega na casa dos futuros
patrões: “Na época em que abriram a loja, uma freira, Irmãzinha de Jesus,
ofereceu- lhes uma órfã, já batizada e alfabetizada. Domingas, uma beleza
de cunhantã, cresceu nos fundos da casa, onde havia dois quartos, separa-
dos por árvores e palmeiras”15.
Segundo este relato, pode-se perceber que a maior preocupação das
freiras, enquanto mantenedoras de um pensionato para meninas, era a de
lhes preparar para trabalhar em casas de famílias influentes, famílias estas

14    Ferst, 2007, p. 35.


15    Hatoum, Dois Irmãos, 2006, p. 41.

174

Sumário
que poderiam auxiliar, naquele momento e até mesmo futuramente, na
entrega de donativos para o pleno funcionamento deste pensionato. Nesta
preparação se incluía também o emprego dos sacramentos, que mostra-
vam o quanto aquela menina estaria preparada para acompanhar os ritos
cristãos. Após retratar a chegada de Domingas, o narrador a descreve da
seguinte forma, dando voz a Halim, o futuro patrão: “Uma menina mir-
rada, que chegou com a cabeça cheia de piolhos e rezas cristãs”, lembrou
Halim. “Andava descalça e tomava benção da gente. Parecia uma menina
de boas maneiras e bom humor: nem melancólica, nem apresentada”16.
Neste ponto do relato, o narrador faz Halim demonstrar dois sen-
timentos conflitantes. Se por um lado ele faz-nos saber do sentimento de
repulsa pela aparência desleixada de Domingas (traduzida aqui pelos
piolhos), por outro lado as boas maneiras apresentadas pela garota lhe
causaram boa impressão, a ponto de permitir que ela continuasse na casa
mesmo após o nascimento dos gêmeos, posto que ajudaria na sua criação.
Como filho de Domingas com um dos gêmeos, cuja identidade per-
manece incólume até o fim do romance, Nael teve um privilégio substan-
cial, negligenciado à sua mãe quando ela era criança: o estudo. Em sua
dissertação de mestrado, Ferst mostra uma razão substantiva, que supos-
tamente foi usada pelos patrões para manter Domingas fora do ambiente
escolar:
Outro motivo da exploração do trabalho infantil é a questão cultural que vê
com naturalidade o trabalho infantil, sob a falsa premissa de que o trabalho
educa e evita a marginalidade, ou ainda de que as condições socioeconômi-
cas dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento impedem a extin-
ção do trabalho (exploração) infantil, pois este significa a sobrevivência da
criança e do adolescente17.

Esta naturalização fica ainda mais acentuada quando se observa a


origem indígena de Domingas. À época retratada no romance (como de-
certo em alguns rincões de desinformação, ainda hoje), os índios eram
vistos como pessoas inferiores aos grandes comerciantes, tanto no quesito
econômico quanto no social. As pessoas que justificavam o trabalho de
16    Hatoum, 2006, p. 41.
17    Ferst, 2007, p. 40.

175

Sumário
crianças como Domingas e seu filho Nael acreditavam piamente que, tra-
balhando, estas crianças estariam em condições muito melhores do que se
estivessem apenas brincando, no convívio com suas famílias. As cínicas
explicações são as mais diversas que a vadia imaginação ética poderá pro-
por.

Trabalho infanto-juvenil na Manaus contemporânea


Na leitura de jornais da cidade de Manaus, obtidos na internet,
verificamos que o menor “G.S.C., de 16 anos”, trabalhava nas ruas de
Manaus (final de 2018) vendendo camarão em semáforos da Zona Leste
para ajudar no sustento da família. Diariamente ele levantava antes do
sol nascer, iniciando uma rotina diária que comprometia seu rendimento
escolar, já que ele só terminava a jornada de trabalho depois de vender
todos os camarões, o que, dependendo do dia, avançava pelo período da
tarde, horário de seu estudo, forçando-o a perder aulas, conteúdos, provas,
continuidade e relacionamento social profícuo.
Pode-se traçar um paralelo entre esta situação e a vivenciada por
Nael, personagem da obra Dois Irmãos. Eis o que o filho de Domingas
(que estudava no período da manhã) fala sobre as ausências na escola:
“Eu contava os segundos para ir à escola, era um alívio. Mas faltava às
aulas duas, três vezes por semana. Fardado, pronto para sair, a ordem de
Zana azarava a minha manhã na Escola”18.
Como se sabe, tantas faltas durante o período letivo acabam por
comprometer a feitura das atividades e, consequentemente, o rendimento
escolar de qualquer aluno, por mais inteligente e aplicado que ele seja.
No caso de Nael, não era diferente: e ainda havia o agravante das sérias
repreensões das professoras, como o narrador personagem insiste em re-
forçar os danos causados, no trecho a seguir: “Eu bem podia fazer essas
coisas à tarde, mas ela insistia, teimava. Eu atrasava as lições de casa, era
repreendido pelas professoras, me chamavam de cabeça de pastel, relapso,
o diabo a quatro”19.

18    Hatoum, 2006, p. 56.


19    Hatoum, 2006, p. 56.

176

Sumário
Analisando a fala de Nael, vê-se uma revolta latente (ficta no au-
tor) contra a situação narrada, oriunda da realização de tantas ativida-
des durante o dia. Muitas destas atividades poderiam ser feitas pela pró-
pria Zana, mas ela o enviava apenas para manter sua pose de membro da
aristocracia manauara. Segundo se pode perceber nestas passagens Zana
pensava da seguinte forma: “Ora, se tenho um criado em minha casa, o
mandarei fazer todas as coisas que precisar, mesmo as mais simples”20.
Sobre as atividades escolares, Nael nos relata que “fazia tudo às pres-
sas, e até hoje me vejo correndo, da manhã à noite, louco para descansar,
sentar no meu quarto, longe das vozes, das ameaças, das ordens”21. Este
tempo de descanso, que já era pequeno, se tornava ainda menor quando
surgia uma atribuição extra: os momentos em que Omar, um dos gêmeos,
retornava bêbado para casa e importunava todos, como narrado no trecho:
Se Omar estava meio lúcido, com força para mais algazarra, acordava as
mulheres, e lá ia eu ajudar Zana e minha mãe. ‘Traz uma bacia de água
fria… O braço dele está sangrando... Corre pega o mercurocromo! Cuidado
para não acordar o Halim… Ferve um pouco de água, ele precisa tomar
um chá22.

Neste ponto da narrativa se percebe que, ao se embebedar, Omar


costumava ficar inconveniente, a ponto de se envolver com brigas e voltar
para casa sangrando, precisando assim dos cuidados da mãe e da empre-
gada da família. Certamente Halim não aprovaria tal conduta, razão pela
qual Zana e Domingas sempre pediam para não acordar o patriarca, que
poderia até mesmo surrar o filho. Enquanto isso, Nael continua narrando:
Não paravam de pedir coisas enquanto o Caçula se contorcia, arrotava,
mandava todo mundo à merda, se exibia, era um touro, agarrava minha
mãe, bolinava, dava-lhe um tapinha na bunda e eu pulava em cima dele,
queria esganá-lo, ele me dava um safanão, depois um coice, e aí a gritaria
era geral23.

20    Hatoum, 2006, p. 56.


21    Hatoum, 2006, p. 56.
22    Hatoum, 2006, p. 57.
23    Hatoum, 2006, p. 57.

177

Sumário
Fica bastante evidente, nesta passagem, o quanto Omar se vanglo-
riava em ficar bêbado, em desafiar a autoridade do pai e em ter a compre-
ensão da mãe, que sempre estava ali, pronta para atendê-lo, ela que não
dormia enquanto ele não estivesse em casa. Zana sempre defendia o filho,
a ponto de culpar e sobrecarregar Nael, despertando no narrador um evi-
dente sentimento de revolta, conforme vemos no passo:
Os carões que levava de Zana porque não entendia o filho dela, coitado, tão
desnorteado que nem conseguia estudar! Ela aproveitava a ausência de Ha-
lim e inventava tarefas pesadas, me fazia trabalhar em dobro, eu mal tinha
tempo de ficar com minha mãe24.

Devido ao fato de Domingas ter engravidado, Zana projetou em


Nael um culpado para as desventuras de Omar. Por conta disso, fazia tudo
o que estava ao seu alcance para evitar que o garoto ficasse a sós com
a mãe, afligindo-lhe trabalhos pesados, aproveitando principalmente os
momentos em que Halim estava trabalhando – uma vez que o marido não
aceitaria tal situação contra o filho da empregada. Este fato demonstra o
quanto Zana buscava proteger o filho, ainda que ele fosse culpado, com
seus vários atos a contrariar as ordens do pai.
Como se vê, o paralelo traçado entre as vivências das personagens
literárias e a realidade brevemente mencionada na vida cotidiana atual
encontra pertinência e adequação, tanto para sentirmos a importância da
obra de Milton Hatoum como uma denúncia hipermoderna das bases do
tratamento desumano com pessoas de fora do círculo central da família
nobilitada na Amazônia, como também para o interesse de uma crítica
dos valores culturais no tracejamento histórico-social presente, cotejan-
do o passado como fautor de regras de tratamento desigual, muitas vezes
desumano, com pessoas que vivam à margem da camada mais rica da
população do local.

Considerações finais
Diante do exposto, chega-se à conclusão de que as evidências de
crítica inferidas pela existência de trabalho infanto-juvenil, na obra Dois

24    Hatoum, 2006, p. 57.

178

Sumário
Irmãos, embora façam essas atividades parte de uma realidade antiga, po-
dem ser confrontadas com a realidade atual existente em Manaus, com o
propósito de perceber que o autor quer denunciar essa situação, a despeito
de não existir na época legislação com esse rigor, tal como o que anotamos
haver hoje na Carta Magna e em outras normas especiais.
Demonstra-se assim. de forma cabal, o princípio de atemporalidade
existente em assuntos de tipo culturalista, na obra de Milton Hatoum, até
mesmo por conta da semelhança existente entre a situação do narrador
personagem Nael e a do adolescente G.S.L., da pesquisa em paralelo que
realizamos, ambos com trabalhos diários nos períodos matutino e ves-
pertino, que inviabilizam a permanência deles em sala de aula, devido à
necessidade de auxiliar a família.
Infelizmente, esta é uma situação que não se encontra em caráter
de exceção. Não raro, encontramos crianças e adolescentes fora da escola
e com um contexto familiar desestruturado, cuja única forma de sobrevi-
vência parece estar na realização da mendicância, com deslizes a peque-
nos furtos ou no máximo alcançando atividades laborais de baixo valor
remuneratório. Espera-se que a Literatura consiga indicar ao poder pú-
blico e à sociedade civil caminhos para que unam forças para a resolução
deste problema antigo a afligir parte substancial da população amazônica
e brasileira. Sem enfrentar, sem resolver o problema, que, como se vê, é
permanente, da desigualdade, não se poderá alcançar paz social e a unida-
de nacional que nos possibilita um crescimento sustentável, fortificando
a solidariedade que é inerente à construção do Estado de Direito, neste
formato que é fruto da Revolução Francesa, mas cujos avanços em direção
aos seus postulados básicos ainda se arrastam sem resolução há muitas
décadas.

Referências
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vel em: https://bit.ly/3riXAO3. Acesso em 15 de nov. 2019.
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179

Sumário
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TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva: o Aviamento e o Barracão nos
Seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer / EdUA, 2009.

180

Sumário
UMA LEITURA DE ENTRE GUERRAS E
FRONTEIRAS EM LIMIARES: UM (NÃO)
LIVRO DOS (DES)ACONTECIMENTOS

Suerda Mara Monteiro Vital Lima

N o ano de 2019 é publicado o livro de Gerson Rodrigues Albu-


querque, intitulado Limiares. Sua capa escura, que convida a
jogar com uma figura de contornos indefinidos, e incita a franzir os olhos,
e perseverar nesse olhar, tão desacostumado ao incômodo da incerteza,
provocava/provoca uma (des)aprendizagem das formas; talvez as retinas
tão cauterizadas pelas telas luminosas de nossos aparatos eletrônicos sofra
na penumbra que nos oferece esse limiar físico de sua obra Limiares.
A capa do (não) livro Limiares me faz pensar insistentemente em
uma das fotos que não compõem o Álbum de Auschwitz. Nessa composi-
ção/exposição que foi fabricada para exposição nos corredores que ficam
nas imediações daqueles que foram os crematórios de inúmeros corpos
assassinados é possível ver três pranchas que apresentam de maneira mui-
to bem centralizada três das quatro fotos tiradas pelo membro do Son-
derkommando, em 1944, que como aponta Didi-Huberman, converteu-se
no único testemunho visual das operações de extermínio com o gás. Ain-
da segundo ele, as três fotos convertidas em lápides/lugares de memória
precisaram ser alteradas, “deformadas”, para encaixar-se em algum tipo
de exigência estética que contemplasse a precisão, que tornasse mais didá-
tica, “mais legível, a realidade que elas testemunham”1.
No entanto, existe essa quarta foto, considerada defeituosa, e sobre
ela Didi-Huberman considera que
“abstrata” ou “desorientada” testemunha algo que permanece essencial,
isto é, o próprio perigo, o vital perigo de presenciar o que acontecia em
Birkenau. Testemunha a situação de urgência e da quase impossibilidade
de testemunhar naquele momento preciso da história. Para o idealizador
do “lugar de memória”, esta fotografia é inútil, uma vez que privada do re-
ferente que ela visa: não se vê ninguém nessa imagem. Mas será necessária
uma realidade claramente visível - ou legível – para que o testemunho se
consume?2

Em suas considerações, Didi-Huberman aponta para essa necessi-


dade da memória monumental oficial que produz seu discurso a partir de
rasgos estéticos pedagogizantes e didatizantes, que precisam eufemizar,
encobrir, apagar as condições de risco e desespero que constituíram o en-
torno no qual as fotos foram feitas. Na mesma medida, a capa/umbral de
Limiares parece jogar com esse limiar do qual fala Walter Benjamin; essa
zona indeterminada, imprecisa que o “lugar de memória” tenta sempre
ocultar com seu discurso linear, pautado em uma lógica que fabrica a neu-
tralidade e o asséptico, fragilizando, empobrecendo essas experiências que
podem ser complexas e consideradas desconfortáveis e desconcertantes
em alguma medida, mas essenciais para a libertação do olhar.
Desde sua capa Limiares parece provocar a uma torção do olhar que
nessa escuridão oferecida, nessas deformações informes que jogam com
as penumbras deslocam, apresentando aquilo que o olho da história oficial
converte em ilegível. Assim como Didi-Huberman, Gerson Albuquerque
parece convidar a olhar para o que não é dado a ver, aquilo que a memória
oficial encobre na sombra de seus monumentos que apagam todo o horror
e violência da modernidade.
Tenho a intenção de apresentar aqui algumas considerações acerca
de um dos “manuscritos” que compõem esse não-livro. Assumo aqui essa

1    Didi-Huberman, Cascas, 2013, p.121.


2    Didi-Huberman, Cascas, 2013, p.121.

182

Sumário
produção gersoniana como um não-livro, porque o autor apresenta poste-
riormente o subtítulo nesse/desse espaço liminar como sendo: “manuscri-
tos para um não-livro: nem uma coisa, nem outra”. Parece então que a in-
tenção do autor aqui é fugir ao caminho megalomaníaco dos compêndios
que se convertem em verdadeiros documentos/monumentos oficiais que
pretensiosamente são assumidos como parte do inventário que armaze-
naria uma dada memória humana universal. Suponho que, ao apresentar
seus manuscritos como constituintes de um não-livro, Gerson Rodrigues
de Albuquerque se insurge contra a lógica da propriedade e do capital
que se imbricou nessa noção de uma cultura que deve ser contabilizada,
acumulada e preservada como bem, como propriedade. Para Benjamin,
segundo Jeanne Marie Gagnebin, essa dita cultura, essa dita história, essa
dita narrativa é mera reificação: “Sua história não seria mais que a sedi-
mentação formada pelos feitos memoráveis que se acumularam na cons-
ciência dos homens por uma experiência em nada autêntica, isto é, não
política”3.
Parece então que ao recusar fazer parte dessa lógica de herança o
autor “inventa” para si mesmo e para aqueles que são obliterados desse
processo um espaço outro, no qual será possível pensar o impensável, por-
que isso se faz necessário. É vital inventar/criar/fabular uma narrativa
outra que critique de maneira contundente o mito da modernidade que se
pauta em um otimismo “que pressupõe a marcha inevitável da humanida-
de para o futuro glorioso”4 condicionando “o olho” a não se voltar para
as margens, para os becos, para os cantos escuros, que são eliminados das
narrativas oficiais hegemônicas e universalizantes.
As diversas narrativas e tessituras de Limiares parecem nos apresen-
tar um contato permanente com a quebra, com a ruptura, nos fazendo
experimentar esse lapso entre uma narrativa e outra, que não se constitui
em nenhuma medida empecilho para pensar a relação entre elas. Em um
texto que se intitula Desencanto, entre os versos, temos: “nesta madrugada

3    Gagnebin, Limiar, aura e rememoração, 2014, p. 212.


4    Gagnebin, Limiar, aura e rememoração, 2014, p. 210.

183

Sumário
quis escrever meus infames/desacontecimentos (...) /veio o protocolo ca-
rente de sentido. (...) /o amor frígido, /desencantado”5.
Parece relevante pensar um pouco acerca destes versos provocativos
a partir inicialmente da palavra “desacontecimentos”. Para tanto evoco
as considerações de Jorge Larrosa sobre esse método disciplinatório que
anda de mãos dadas com a lógica utilitária, de ideias apropriáveis, pen-
sando e escrevendo sempre dentro dos limites estabelecidos por fronteiras
limitadoras e restritivas que para Larrosa seriam “a arrogância do cientista
e a boa consciência dos moralistas”6.
Dentro desse espaço que promove sempre “respostas” e, portanto,
fechamento, encerramento, enclausuramento, quer dizer, “segurança”,
Larrosa indica que
As palavras comuns começam a nos parecer sem qualquer sabor ou a nos
soar irremediavelmente falsas ou vazias. E, cada vez mais, temos a sensa-
ção de que temos de aprender de novo a pensar e escrever, ainda que para
isso tenhamos de nos separar da segurança dos saberes, dos métodos e das
linguagens que já possuímos (e que nos possuem).7

Para Paul Veyne, por exemplo, a história é uma narrativa de aconte-


cimentos.8 No entanto, o acontecimento passa a ser o objeto disciplinar da
história que ela mesma fabrica para si. Não é possível então delegar a um
segundo plano essa relação do “acontecimento” com o feito grandioso,
heróico, fundador que se relaciona à tradição burguesa e sua lógica que se
empenha em produzir essa forjada continuidade que mantém inalterado
o espaço autorizado dos donos da história, da cultura, da manutenção de
sua “herança”.
Diante disso, o termo “desacontecimentos” parece se constituir não
só uma contra palavra, mas um contra discurso, já que a partir da lógica
historiográfica o desacontecimento seria a ruptura com a logicidade line-
ar, seria a possibilidade de descontinuidade, de interrupção de uma narra-
tiva dos vencedores, da invenção de outras relações, da criação de tempos/
5    Albuquerque, Limiares, 2019, p. 141.
6    Larrosa, Pedagogia profana, 2010, p. 07.
7    Larrosa, Pedagogia profana, 2010, p. 07.
8    Veyne, Comment on Écrit l’Histoire, 1971.

184

Sumário
espaços outros, que fugindo a essa segurança vazia, insossa, fabulará o
descontrole, o perigo, a indisciplina, a inapropriação. O desacontecimento
estaria vinculado a essa vontade soteriológica benjaminiana de
um desejo de memória e preservação dos elementos preteridos e “esque-
cidos” pela historiografia burguesa, sempre apologética: os excluídos e os
vencidos, mas também o não-clássico, o não-representativo, o estranho, o
barroco (...) teoria herética e iconoclasta9

O não-livro Limiares é então uma poética dos desacontecimentos


que busca por meio da criação/invenção salvar-se “do protocolo carente
de sentido”, da “frigidez” e do “desencanto”10 da modernidade e sua lógi-
ca que empobrece, diminui a vida, encurtando, simplificando, impedindo
que experiências de natureza liminar sejam possíveis, posto que estas não
sintonizam com a lógica utilitária. Isso se dá, por exemplo, a partir do
texto Entre as guerras e as fronteiras. Nele a insensibilidade, a indiferença,
o desprezo pela vida, base da pedagogia da crueldade, tomando o termo
emprestado a Rita Laura Segato11, que adestra e adormece, reordena as
relações, introduzindo a naturalização de tudo aquilo que afrouxa e des-
vincula, vaza da maneira mais dolorida e pungente pela tinta líquida ma-
tizada da lembrança inundada de dor, que lambe as feridas da memória,
permitindo que “os crentes” da civilização estremeçam diante das ondas
de barbárie que assassinaram o menino Aylan Kurdi.
O autor dedica de maneira direta o seu trabalho de tecer/desman-
char, a Aylan Kurdi. Depois do título Entre as guerras e as fronteiras, encon-
tra-se entre parêntesis esta dedicatória: “Para Aylan Kurdi, morto pela
estupidez dos homens de Estado e seus arames farpados”.12 O menino
Aylan, segundo Solange Ferras Lima e Vânia Carneiro Carvalho, era ape-
nas uma criança, um bebê de dois anos, diferente do que se propagou nas
diversas notícias midiáticas imediatamente após a divulgação e circulação
da foto realizada por Nilüfer Demir, em setembro de 2015, em que as

9    Gagnebin, 2014, p.182 et seq.


10    Albuquerque, 2019, p. 141.
11    Segato, Contra-pedagogías de la crueldad, 2018.
12    Albuquerque, op. cit., p. 135.

185

Sumário
informações veiculadas apontadas informavam que Aylan teria três anos
de idade.13
Faço referência ao estudo intitulado Circuitos e potencial icônico da
fotografia: o caso Aylan Kurdi, porque me parece no mínimo curioso atentar
para esses valores, essas medidas tão relevantes dentro de uma lógica que
converte tudo em sistemas de mensuração e captação de dados, que pa-
recem fazer crer que seja possível mensurar o nível de empatia produzido
por um corpo infantil, como se fosse mais doloso, funesto e abominável
observar isso em um ser convertido em objeto, em uma peça de um anti-
quário ou de um museu, que tem mais ou menos relevância, que é mais
ou menos indefeso perante a agrura da guerra, da lógica necrofílica tendo
sido contabilizado como um corpo que completara dois anos em relação a
um outro, em que se contabilizassem três anos de idade.
A partir de uma análise comparativa entre as fotos de Aylan e seu
irmão Galip, de cinco anos, que não haveria sido “auxiliado” pelo modo
como as ondas depositaram seu corpo entre as rochas, desordenando suas
roupas, em uma posição similar à de como os corpos são depositados sem
vida, assim como um acúmulo de mais idade que seu irmão, as autoras
supõem que isso poderia ser um indicativo dos motivos pelos quais a ima-
gem de Aylan Kurdi haveria sido muito mais consumida, gerando uma
possível maior empatia:
É possível enumerar ao menos cinco razões para o “fracasso” da imagem do
corpo afogado de Galip. Em primeiro lugar, apesar de íntegro, o corpo de
Galip apresenta-se em decúbito dorsal, na posição que se aproxima àquela
que se dá aos cadáveres quando são preparados para ser recolhidos (...); já
o corpo de Aylan, como observado, está em decúbito ventral, posição típica
dos bebês ao dormir. Segundo, o corpo de Galip está entre rochas e afastado
da água, o que de certa forma “protege” o cadáver da imensidão do mar; ao
contrário do corpo de Aylan, que está com o rosto e parte do tronco ainda
na água e sem qualquer referência a elementos de contenção. Terceiro, o
rosto de Galip não está visível, mas está fora da água, ao contrário do de
Aylan, que pode ser visto parcialmente, e que está em parte sob a água. Em
quarto lugar, a tomada fotográfica do corpo de Aylan é muito mais próxima
do que a de Galip, deixando ver detalhes, como a aparência encharcada

13    Lima & Carvalho, Circuitos e potencial icônico da fotografia, 2018.

186

Sumário
das roupas. Finalmente, a diferença de idade das duas crianças parece ser
também um diferencial. Nas manchetes das reportagens, Aylan é sempre
denominado como toddler, ou seja, uma criança que começa a andar. De
fato, Aylan não tinha três anos, como foi divulgado na imprensa, mas dois.
Observando novamente a bermuda azul, notamos um volume que poderia
bem ser a fralda encharcada. Sua condição de transição de bebê de colo
para uma criança pequena certamente aumentou o potencial de comoção
que a fotografia causou.14

Essa lógica da qual parece não ser possível liberar-se, de uma im-
perativa necessidade de mensuração, de algum tipo de ordenamento sis-
têmico que possa condensar e reduzir essa impossibilidade de retenção,
apropriação, tradução da vida a um enganoso código aritmético que nada
diz se relaciona ao pensamento de Glissant, que parece traduzir essa lógi-
ca irracional, essa falsa precisão que oblitera a dimensão incalculável da
vida: “odiosa e impávida aritmética. Não, não nos habituamos”.15
Além da foto amplamente divulgada/consumida de Aylan Kurdi,
como já foi indicado, havia a foto de seu irmão que parece não ter gerado
a mesma repercussão na dinâmica das redes sociais e espaços de conexão
na “rede”. No entanto, há a outra imagem produzida em uma terceira
foto, na qual um guarda está posicionado à direita da imagem produzida,
bem próximo ao corpo de Aylan Kurdi. Ainda que a imagem não tenha
deixado à mostra em sua totalidade o objeto em suas mãos, é possível
perceber que esse homem está munido de uma prancheta na qual parece
preencher dados, com um aspecto tão inabalável, indiferente à vida e à
morte. Sua postura parece emblematizar que a única exigência que deve
ser cumprida diz respeito a esse processo burocrático em que se converteu
a vida e a morte. O menino, seu irmão e sua mãe, mortos em uma tentati-
va de sobrevivência não passariam, dentro da lógica sistêmica de controle
e catalogação, concentração e acumulação de dados, dessas fichas que
tentam nivelar tudo, sempre por baixo.
Ao contrário disso, entendo que o texto de Gerson Albuquerque se
articula (po)eticamente na contramão dessa lógica insana, assumindo em

14    Lima & Carvalho, 2018, p. 46.


15    Glissant, O pensamento do tremor, 2014, p. 34.

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Sumário
sua escrita uma ideia que Glissant expressa no entalhe da palavra innu-
mérable. Glissant afirma que em língua inglesa ela teria o sentido de algo
em tão grande número que não se pode contar. “Entretanto, é usada aqui
para qualificar aquilo cuja natureza é não poder ser quantificado, que vive,
pois, além de todas as possibilidades de enumeração”.16
Todas as estrofes do texto iniciam estabelecendo inter-relações com
diversas dimensões do contexto violento da modernidade, seus sistemas,
sua lógica bélica e necrofílica, mas sempre jogando com a criança, como
essa vida assume dentro desses diversos contextos um contorno que a co-
loca na situação pensada por Giorgio Agamben, a criança agora morta,
assim como seu irmão e sua mãe, nessa lógica que torna a vida insigni-
ficante, sempre estiveram em um estado de “desnudez”. Agamben evoca
ao mito do Gênesis, indicando que, dentro do relato, quando Adão e Eva
pecaram, só aí se deram conta de sua desnudez. No entanto, antes des-
sa “queda”, ainda que não estivessem encobertos por quaisquer tipos de
vestidos/vestimentas eles não estavam desnudos, pois “estaban cubiertos
por un vestido de gracia que se adhería a ellos como un hábito glorioso”.17
Essa desnudez, para Agamben, só haveria sido experimentada em dois
breves instantes, porque “una desnudez plena se da, tal vez, sólo en el
Infierno, en el cuerpo de los condenados, irremisiblemente ofrecido a los
eternos tormentos de la justicia divina. No existe, en este sentido, en el
cristianismo, una teología de la desnudez, sino sólo una teología del ves-
tido”18.
Diante disso, não importaria como estavam dispostos os corpos sem
vida, de que maneira estariam (des)ordenadas suas roupas, se estas mais
se aproximavam a uma “moda ocidental” ou não, esses (não) seres dentro
das estruturas sócio-político-econômicas da modernidade, como os seres
desenraizados que lutam pela vida fugindo de guerras, sempre traduzidos
nas notícias e nas falas dos representantes políticos ou das grandes organi-
zações globais como “ilegais” ou “refugiados”, já estavam desde há muito

16    Glissant, O pensamento do tremor, 2014, p. 47.


17    Agamben, Desnudez, 2011, p. 83.
18    Agamben, Desnudez, 2011, p. 84.

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Sumário
“desnudos” de sua humanidade, já padeciam “o inferno”, “a condenação
eterna” “entre a barbárie e a barbárie (...) desfiguradas em imagens despi-
das de humanidade”.19
Parece dolorosamente irônico que ao refletir sobre como a vida em-
pobreceu na modernidade pela ausência de possibilidades, de redução das
experiências liminares, Walter Benjamin sempre aponta a importância
do território da infância como sendo um dos espaços mais complexos e
relevantes, por conta de seu caráter transitório, que permite descobertas.
Para Benjamin o espaço liminar era muito diferente de fronteira, posto
que a fronteira teria como característica central a limitação, a precisão de
contornos. Os limiares seriam espaços/tempos intermediários que possi-
bilitariam fluxos, contrafluxos e desejos, estando diretamente associados
à vida e sua mobilidade, sua transitoriedade, sua instabilidade. A infância
seria pois, para Benjamin,
um tempo de indeterminação privilegiada [posto que] (...) o menino se
aventura em direção a destinos familiares ou desconhecidos e também, de
forma simbólica mais ampla, em direção à sua futura existência, ainda por
vir.20

O menino Aylan Kurdi foi privado do tempo privilegiado de sua


infância e consequentemente de sua existência futura, ainda por vir, que
jamais virá. Antes,
uma criança/e sua mãe e seu irmão/e outras crianças e outras mães estão
mortas na praia, naquele mar e em outros mares e praias e/casas e ruas e
cercas eletrificadas.../seus corpos/coisas são catalogados por mãos de bor-
racha.21

Em um mundo movido pela lógica da produção/consumo, Agam-


ben reflete sobre a relação entre criação e salvação e assume que “No
basta con hacer, es necesario saber salvar (...). Más aún, la tarea de la sal-
vación precede a la de la creación, como si la única legitimación (…) fuese
la capacidad de redimir (…)”22.

19    Albuquerque, 2019, p. 135.


20    Gagnebin, 2014, p. 41.
21    Albuquerque, 2019, p. 135.
22    Gagnebin, 2014, p. 09.

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Sumário
Em um mundo que deveria estar sempre disposto a conviver com
o “estrangeiro”, já que como indica Hannah Arendt, em alguma medida
somos todos estrangeiros em um mundo que já está dado, seria o compro-
misso em assegurar a possibilidade de existência e singularidade de cada
“estrangeiro” novo no mundo que o converteria em um ser outro, para
além de “só mais um” estrangeiro. Uma relação de comprometimento
daqueles já inseridos no mundo a fim de garantir a plena possibilidade de
existência da singularidade dos novos garantiria a vida e a permanência
do mundo. No entanto, ela aponta para o perigo da lógica da modernida-
de, que reduz o sentido, a complexidade, o valor da vida:
É particularidade da sociedade moderna, de nenhum modo evidente, consi-
derar a vida, quer dizer, a vida na terra dos indivíduos e das famílias, como
o maior dos bens. É por essa razão que, ao contrário de todos os séculos pre-
cedentes, a sociedade moderna emancipou a vida, e todas as atividades que
têm a ver com a sua preservação e enriquecimento, do segredo da intimida-
de para a expor à luz do mundo público. É este o verdadeiro significado da
emancipação das mulheres e dos trabalhadores, não certamente enquanto
pessoas, mas na medida em que preenchem uma função no processo vital
da sociedade.23

Hannah Arendt indica quais as consequências da indiferença, do


abandono, da falta de amor e responsabilidade para com os novos no mun-
do, os “estrangeiros”, que garantirão a singularidade e, portanto, novas
formas de mundo: este estaria fadado à ruína e nossas crianças à expulsão.
Diferente de uma experiência liminar de intensa descoberta, repleta de
uma experiência de angústia, mas também de esperança, expectativa e
espera em relação a esse futuro, o menino Aylan Kurdi, seu irmão oblite-
rado da memória cibernética e incontáveis multidões de outros (não) seres
ficam/ficaram aprisionados em outro tipo de limiar cruel:
é um limiar inchado, caricato, que não é mais lugar de transição, mas, per-
versamente, lugar de detenção, zona de estancamento e de exaustão, como

23    A tradução aqui utilizada de The crisis in education de Hannah Arendt, está disponibili-
zada no seguinte endereço: https://bit.ly/2LGsktd. Acesso em: 02 nov. 2020. Foi feita a
opção por tal tradução, após havermos consultado outras versões publicadas, como a da
editora Perspectiva.

190

Sumário
se o avesso da mobilidade trepidante da vida moderna fosse um não poder
nunca sair do lugar.24

Walter Benjamin também considerava o morrer um dos ritos de


passagem liminares mais importantes. No entanto, não é possível esque-
cer aqui que não se trata de morrer; mas antes, de sua impossibilidade.25
É possível considerar essa questão a partir de duas dimensões, essa di-
mensão protocolar, que aniquila a possibilidade de humanidade através
de sua lógica catalográfica e de dados que apagam, por um lado e de ou-
tro, a relação de consumo hiperbólico, insaciável, por devorar, consumir,
desmedidamente e de modo enfermo “novidades”, “informações”, que
suplantam a cada milésimo de segundo outras informações vorazmente
consumidas, que funcionam como um processo de hiperacumulação. Esse
desejo monstruoso e insaciável, que não pode ser satisfeito em nenhuma
medida e que converte a vida/morte em um objeto disponível nas prate-
leiras virtuais.
“Seus [nossos] corpos/coisas catalogados”26 podem ser pensados a
partir das reflexões de Agamben, para quem
La reducción del hombre a la vida desnuda es hoy a tal punto un hecho con-
sumado, que esta ya se encuentra en la base de la identidad que el Estado
les reconoce a sus ciudadanos. Así como el deportado a Auschwitz ya no
tenía nombre ni nacionalidad y era sólo ese número que se le tatuaba en el
brazo, del mismo modo el ciudadano contemporáneo, perdido en la masa
anónima, equiparado a un criminal en potencia, se define sólo a partir de
sus datos biométricos y, en última instancia, a través de una especie de anti-
guo destino aún más opaco e incomprensible: su ADN.27

É interessante pensar, a partir das considerações de Agamben,


como esse desnudamento de toda forma de pessoalidade, humanidade é
naturalizada e instituída/institucionalizada como uma forma de “tradu-
ção” homogeneizante de figuras que passariam a assumir, o que Agamben
denominou uma “identidade sem pessoa”, um sistema de controle, coleta,

24    Gagnebin, 2014, p. 45.


25    Benjamin, Magia e técnica, arte e política, 1987.
26    Albuquerque, 2019, p. 135.
27    Agamben, 2011, p. 75 et seq.

191

Sumário
manutenção e administração de dados que obliteram toda a vida, toda a
relação, toda a carnalidade. O que poderia ser entendido como um ino-
cente documento de “identidade”, cujo constituinte imprescindível seria a
exposição da marca digital, foi na verdade a redução da vida a um dado,
nesse contexto, meramente biológico, advindo de uma intenção inicial de
resolver o que se constituía um problema burocrático.
Aqueles, assumidos pelo estado como seres perigosos, como pro-
blemas a controlar e conter, aqueles que foram fabulados/catalogados/
ditos/narrados como “delinquentes”, gerariam uma grande obsessão por
seu controle. A verificação, então, dessa identidade pessoal parecia de-
safiadora, especialmente porque a punição para a delinquência em uma
reincidência seria a deportação para as colônias. Então, um funcionário
público parisiense se viu impelido a criar um sistema pensado naquele
contexto exclusivamente para sistematizar a identificação dos ditos “de-
linquentes”, que consistia em um processo de medição de membros, crâ-
nio, dedos, orelhas, rosto, dados aos quais se deveria juntar duas fotos
do “delinquente”, capturadas de frente e de perfil, para compor o cartão
Bertillon, nome de seu criador.
Logo os mecanismos de catalogação, controle e obliteração das
pessoas foi se especializando, e segundo Agamben, junto a esses dados
somaram-se as impressões digitais. O método que também leva o nome de
seu idealizador, Galton, um primo de Darwin, assim como o método an-
terior, inicialmente pensado para aqueles que incomodavam, perturbavam
o ordenamento, escapavam ao controle, estavam situados nesse espaço
perverso de (não) humanidade (como prostitutas, nativos das colônias,
afroamericanos, orientais, todos os generalizados como “delinquentes”)
foi estendido ao mundo. Isso fez com que uma identidade que antes era
estabelecida a partir das relações com os outros, com as pessoas, fosse
substituída pelo mero dado, esvaziando, diluindo o sentido e a importân-
cia da relação.
Segundo Agamben, como resultado disso tem-se que
la humanidad occidental parece estar atascada, a la vez satisfecha y estupe-
facta. Como todo dispositivo, la identificación biométrica captura también,

192

Sumário
de hecho, un deseo más o menos inconfesado de felicidad. En este caso, se
trata de la voluntad de liberarse del peso de la persona, de la responsabi-
lidad tanto moral como jurídica que ella comporta. La persona (tanto en
su aspecto trágico como cómico) es también la portadora de la culpa; y la
ética que ella implica es necesariamente ascética, porque está fundada en
una escisión (del individuo en relación a su máscara, de la persona ética
en relación a la jurídica). Es contra esta escisión que la nueva identidad
sin persona hace valer la ilusión, no de una unidad, sino de una multipli-
cación infinita de las máscaras. En el punto en que enclava al individuo en
una identidad puramente biológica y asocial, le promete dejarlo asumir en
internet todas las máscaras y todas las segundas y terceras vidas posibles,
ninguna de las cuales podrá pertenecerle jamás en sentido propio. A ello se
suma el placer, rápido y casi insolente, de ser reconocidos por una máquina,
sin la carga de las implicaciones afectivas que son inseparables del reconoci-
miento operado por otro ser humano. Cuanto más ha perdido el ciudadano
metropolitano la intimidad con los otros, cuanto más incapaz se ha vuelto
de mirar a sus semejantes a los ojos, tanto más consoladora es la intimidad
virtual con el dispositivo, que ha aprendido a escrutar su retina tan en pro-
fundidad. Cuanto más ha perdido toda identidad y toda pertenencia real,
tanto más gratificante es ser reconocido por la Gran Máquina, en infinitas
y minuciosas variantes.28

A dinâmica enferma dessas (não) relações, que converteram a todos


em riscos/marginais/delinquentes potenciais, ainda assim resultariam em
felicidade e satisfação porque libertariam desse peso da responsabilidade
ética da qual Agamben se refere acima.
Essa satisfação sintomática de uma enfermidade é apontada em En-
tre as guerras e fronteiras:
Uma criança morre na praia, /(...). Sua estetizada imagem viaja o mundo,
/imagem da morte banalizada, /imagem do humano nada, /humano tra-
po, /humano descartável. Seu corpo morto transita/na estúpida solidarie-
dade de internautas, /em sites de notícias, notas de desgovernos do Norte
e do Sul, /em grupos e redes sociais movidos por patologias Instagram, /
Facebook, /WhatsApp. /Patologias multiplicadas pelos insaciáveis clics/das
selfies banais.29

28    Agamben, 2011, p. 76 et seq.


29    Albuquerque, 2019, p. 136.

193

Sumário
O ser (não) humano, reificado, seria introduzido na lógica da “so-
ciedad de consumidores”,30 que refundaria todas as (não) relações huma-
nas. Ao mesmo tempo em que há uma “produção”/exposição exagerada
do que antes constituía parte de uma zona invisível, que diria respeito à
intimidade, isso seria fabricado e ultra oferecido como um produto nas
diversas mídias e espaços virtuais. Essa excessiva exposição/produção/
consumo acaba por produzir um esvaziamento de relações que não mais
seriam entendidas assim. Agora os laços que antes aproximavam estrei-
tavam as pessoas, se convertem em inexistentes e são substituídos pela
lógica de mais um produto a ser vendido e consumido.
Essa relação outra com o ser objeto exige que para sentir o gozo da
apropriação, da lógica estabelecida entre dono e objeto, os consumidores
das diversas notícias/informações/imagens das redes sociais e demais es-
paços virtuais se empenhem nessa nova tarefa de “manejar” os objetos,
nesse contexto das imagens banalizadas da morte de Aylan. Segundo Bau-
man, só assim se faz possível atingir esse estágio gozoso e jamais saciável
da apropriação, do uso. Dentro dessa lógica, “manipular” esse “produ-
to”/imagens que banalizam a morte, “divulgando-as”, “compartilhando-
-as”, acreditando exercer o ilusório domínio e poder da lógica imperante
da dinâmica de ser “dono” pode fazer parte desse jogo enfermo, que ao
mesmo tempo gira em torno de uma fome permanente, posto que há sem-
pre uma carência por mais informação. Constitui-se como vital acumular,
manipular, processar cada vez mais, na mesma medida em que ocorre
um consumo desenfreado, como uma espécie de “anorexia” e “bulimia”
simultâneas, porque existe sempre uma carência enfermiça por todo o tipo
de coisas-produtos/pessoas-produtos/seres-produtos ao mesmo tempo
em que existe uma compulsão desenfreada por devorar, consumir.
No entanto, para Bauman, estes seriam “actos adiafóricos”,31 posto
que essa presença/ausência, essa liberdade da qual falava Agamben, de
livrar-se do peso ético32, de estar imune a quaisquer inconvenientes deri-

30    Bauman, Vida de Consumo, 2012, p. 14.


31    Bauman, 2012, p. 22.
32    Agamben, 2011.

194

Sumário
vados de uma relação são simplesmente anulados. Tudo nessa dimensão
diz respeito a um tipo de dinâmica torpe, na qual ícones extremamente
limitantes ou uma mera frase de efeito, que serve de preâmbulo para a
auto exposição/autopromoção/auto venda pode gerar gratificação. Nesse
espaço, a mirada turva não anseia pela devolutiva do olhar, se sente libera-
da do olhar escrutinador do outro.
Nesse espaço liminar perverso não há possibilidade de experiência.
Antes existe a instalação de uma barreira que é assumida como prote-
ção, conforto e comodidade, que aliena da vida e de seus espaços/tempos
de complexidade, o que envolve, angústia, incerteza, medo, comprome-
timento, inconvenientes. Tudo isso passa a ser entendido como negativo
e dispendioso, desnecessário. Aylan Kurdi, seus familiares, assim como
incontáveis quantidades de seres humanos que tentam sobreviver em meio
a essa ordem necrofílica, pautada na violência, na guerra, no massacre, na
destruição, ficam situadas em um limbo entre vida e morte, não podem
viver e nem morrer, porque tendo a vida constantemente rapinhada em
meio ao estado de exceção, que é a ordem, em meio à guerras civis como
a da Síria, por exemplo, ou em meio à guerra que sacrifica vidas para a
produção de coltan, a fim de alimentar a produção e o fetiche pelos apa-
relhos que profetizam e asseguram a modernidade cada vez mais “nova”
e ao mesmo tempo, sempre suplantada, que se converte em lugar de oferta
e consumo dos seres, reduzindo os mais complexos espaços/tempos de
trânsito, passagem e descobertas da vida a uma mera espetacularização
sua humanidade é negada, e a violência e horror da barbárie moderna se
converte em pauta para conversas em programas e páginas, sites, grupos
e redes sociais.
Desde os aparelhos de “última geração”, através das telas frias que
promovem a falsa ilusão de reconhecimento, pelo acúmulo, pela hiper-
bolização de uma aparente e inesgotável conexão; o que existe é o desejo
do não reconhecimento; o que existe é o des-encontro, por meio de meras
trocas/transações “seguras” com “objetos” que
yacen desnudos a la vista para el escrutinio, pero no devuelven la mirada ni
piden que les sea devuelta y por lo tanto se abstienen de escrutar a quien los
mira, mientras se exhiben plácidamente ofreciéndose al examen del cliente.

195

Sumário
Uno puede examinarlos de arriba a abajo sin miedo de sentir su escrutinio
de nuestros propios ojos, ventanas a los secretos más íntimos33

Essa não-relação parece ser um simulacro de uma ação no mundo;


produz o engodo de uma falsa atuação no mundo impelida pelo com-
prometimento com a vida e com a manutenção do mundo, quando na
verdade, isso se resume a uma “estúpida solidariedade humana de inter-
nautas”,34 que segundo Bauman tem suas vidas movidas por “el apremio
por adquirir y acumular. Pero la razón más imperiosa, la que convierte ese
apremio en una urgencia, es la necesidad de eliminar y reemplazar”35 “an-
tigas” informações por novas, notícias de alguns minutos atrás por deze-
nas de outras, fotografias de mortos por mais fotografias de mortos, tudo
isso sem que seja possível “ver”. Porque “para ver se ‘leva tempo’. Porque
ver é inerente ao tempo”36 e essa dimensão parece haver sido obliterada
desse espaço limitar de contenção cruel em que só há o fluxo intenso, fre-
nético em adquirir, acumular, eliminar e substituir.
Mesmo com os aparelhos nas mãos, cujos dedos parecem perfazer
um caminho eroticamente frígido, de uma masturbação compulsiva, pare-
ce não ser possível ver que o processo, que a modernização não conduz à
redenção ou à salvação. Muito ao contrário disso, como lemos através do
olho/texto de Gerson Albuquerque, que abre e fecha, sofre, se contorce
em torno de sua órbita procurando a liberação desse mito que oculta o
horror e a destruição da vida, esse mundo, inventado como avançado e
civilizado é “um mundo conectado por aparelhos de coltan africano: /a
matéria-prima da morte entre os dedos”.37
O coltan ou columbite-tantalite é um minério abundante em
território africano, como na República Democrática do Congo, e sua
exploração financia os grupos armados da região. O minério (coltan)
é muito importante no mercado internacional porque é utilizado em
produtos eletrônicos e aparelhos celulares como os smartphones. Segundo
33    Bauman, 2012, p. 20.
34    Albuquerque, 2019, p. 136.
35    Bauman, 2012, p. 34.
36    Didi-Huberman, O olho da história, 2018, p. 161.
37    Albuquerque, 2019, p. 135.

196

Sumário
Marcelle Christine Bessa de Macedo até os anos noventa o coltan só era
conhecido por geólogos, no entanto
Atualmente, é discutido na ONU, na mídia, além de sua exploração estar
associada a diversas atrocidades como estupro em massa, trabalho escravo
e tráfico de armas. Ganhou atenção de jornalistas, ativistas e cientistas so-
ciais a partir de 2001 devido a divulgação de relatórios da ONU, que mos-
travam a sua ligação com a violência na RDC. O coltan era vendido para
multinacionais e usado para a produção de aparelhos eletrônicos, como
telefones celulares, laptops e iPods, depois revendidos para consumidores
de todas partes do mundo.38

Não é gratuito que o minério tenha recebido a alcunha de “tântalo


de sangue”, sangue que testemunha o sacrifício humano de incontáveis
crianças, mulheres e homens de diversos lugares como o já citado Congo,
Uganda, Burundi, Angola, Namíbia e Zimbábue. Diversos deles em busca
da possibilidade de (sobre)viver em outros países, são colocados nas zonas
liminares de campos de refugiados como inconvenientes burocráticos, tra-
tados, vistos, narrados como ameaças, situados em uma zona de subuma-
nidade, talvez como elementos que (des)figuram e afrontam “a dignidade
humana”. Essas vítimas sacrificiais da barbárie civilizatória me permitem
uma associação/aproximação às narrativas conhecidas de homens como
Rubén Darío, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, que trazem no seu âmago a
permanente presença da referência ao sacrifício humano, que marcou no
período da invasão e da colonização e a fabulação do outro inumano que
era forjado pelo discurso do “conquistador”.
Os personagens sempre acabavam nessas narrativas, como Chac
Mool, Huitzilopoxtli ou La noche boca arriba, sendo levados direto para a pe-
dra do sacrifício mexica/azteca ou maya que terminou por configurar uma
estilística do selvagem mesoamericano. De acordo com Jean Franco, esse
medo recalcado/desvelado da barbárie, se converteria nesses autores em
um medo recorrente de que essa barbárie do selvagem, do não europeu,
sempre à espreita, pudesse

38    Macedo, A exploração de Coltan e os conflitos no Leste da República Democrática do


Congo, 2016, p. 07.

197

Sumário
resurgir como una amenaza al hombre moderno (...) lo que estos miedos
(...) revelan no es sólo um temor a la regresión a un estado previo, sino
también una ansiedade por la modernidade y la angustia (...) de que los
indígenas frenaran la modernización.39

Parece que a “memória” cibernética ironicamente atestará nessa


sua promessa de condensação/contenção/preservação de todo o vivido
em uma perspectiva “mundial”, que não há por que temer a barbárie, já
que a modernidade esmaga, dilacera, sacrifica, devora corpos e vidas, ali-
mentando-se vorazmente. O sacrifício humano é a base do “avanço” civi-
lizacional e o texto de Gerson Albuquerque nos propõe que, diante desse
orgasmo estático, frio, frígido do mero consumo, da diluição das relações
e da responsabilidade ética diante do mundo, da vida e dos novos no mun-
do, sejamos capazes de aceitar a provocação de revirarmos nossos olhos
de maneira febril diante da agônica dor de ver
nas sombras arcaicas da civilização pós-moderna/uma criança [que] morre
na praia (...) subjugada pelo sono grotesco da barbárie (...) da morte impie-
dosa dos homens máquinas, /seus Estados, /suas guerras, /suas fronteiras,
/suas indiferenças, /seus ódios.40

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Desnudez. Traduzido Mercedes Ruvituso e María Teresa D’Meza.
Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2011.
ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues. Limiares: manuscrito para um não-livro – nem
uma coisa, nem outra. Rio Branco: Nepan, 2019.
ARENDT, Hannah. A crise na educação. Disponível em: https://bit.ly/2LGsktd. Acesso
em: 02 nov. 2020.
BAUMAN, Sigmund. Vida de Consumo. Traducción de Mirta Rosenberg y Jaime Arran-
bide. México: Fondo de Cultura Económica, 2012.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Obras escolhidas, vol.1. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Tradução: André Telles. In: Serrote: Uma Revista
de Ensaios, Artes Visuais, Ideias e Literatura, São Paulo, n. 13, p. 99-133, mar. 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O olho da história. In: Ícone. Recife, v. 16, n 2, 161-172,
2018.

39    Franco, Uma modernidade cruel, 2016, p. 21.


40    Albuquerque, 2019, p. 135 et seq.

198

Sumário
FRANCO, Jean. Uma modernidade cruel. Tradução: Victor Altamirano. México: FCE,
2016.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração. São Paulo: Editora 34, 2014.
GLISSANT, Édouard. O pensamento do tremor. Tradução: Enilce do Carmo Albergaria
Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard: Editora UFJF, 2014.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Tradução: Alfredo
Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
LIMA, Solange; CARVALHO, Vânia. Circuitos e potencial icônico da fotografia. In: Es-
tudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 44, n. 1, p. 41-60, jan./abr., 2018.
MACEDO, Marcelle C. B. A Exploração de Coltan e os Conflitos no Leste da República
Democrática do Congo. In: NEIBA. Rio de Janeiro, v. 5, Dossiê SimpoRI, 2016.
SEGATO, Rita. Contra-pedagogías de la crueldad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2018.
VEYNE, Paul. Comment on Écrit l’Histoire. Paris: Seuil, 1971.

199

Sumário
SOBRE AUTORES E AUTORAS

Aldízio Francisco Lira


Licenciado em Letras Língua Portuguesa pela Universidade Federal
de Rondônia, Campus de Guajará-Mirim (2009), é Especialista em Lín-
gua Brasileira de Sinais pela Faculdade Santo André (2019). Pesquisador
Bolsista do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras da Univer-
sidade Federal de Rondônia e é membro do Grupo de Pesquisa Filologia
e Modernidades (CNPq, 2019).
E-mail: aldiziogamers@gmail.com

Augusto Rodrigues da Silva Junior


Professor Associado de Literatura Brasileira da Universidade de
Brasília. Coordenador da Cátedra Agostinho da Silva (UnB). Cursa pós-
-doutorado no programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Ale-
mã pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), com projeto intitu-
lado “Geopoesia e Literatura de Campo centroestina: etnoflâneries por
Goiás e Brasília”; Desenvolve trabalhos nas áreas de Literatura Compa-
rada; Literatura e Outras Artes; Tanatografia; Geopoesia; Literatura de
Campo. Traduziu Paul Valéry, Richard Schechner, Herman Melville, Sté-
phane Mallarmé.
E-mail: augustorodriguesdr@gmail.com
Bruna Wagner
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Lingua-
gem e Identidade pela Universidade Federal do Acre – UFAC. Mestra
em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Atua nas
áreas de estudo: Feminismo, Narrativas Amazônicas e Literatura Com-
parada.
E-mail: bruna.wagner.sci@gmail.com

Carla Patrícia Ribeiro Nobre


Professora da rede estadual de ensino. Graduada em letras (UNI-
FAP) e Especialista em língua portuguesa (IESAP). Mestre em Direito
ambiental e políticas públicas, cursa atualmente o Mestrado em Letras
(UNIFAP). Foi Conselheira de Cultura do Amapá, coordenadora do
PROLER em Macapá e coordenadora do curso de letras na UEAP. Publi-
cou as obras de poemas: Sobre o adeus e o enceládo de saturno, o amor é urgente
e Exageros e delicadezas.
E-mail: carlapoesia@hotmail.com

Francisco Bento da Silva


Professor Associado II do Centro de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal do Acre - UFAC. Atua como professor na gra-
duação dos cursos de bacharelado em História e licenciatura em História
da mesma universidade. E também nos cursos de Mestrado e Doutorado
do Programa de Pós Graduação em Letras: Linguagem e Identidade - PP-
GLI/UFAC e no Mestrado Profissional em Ensino de História - UFAC.
Perfil on line - https://ufac.academia.edu/FranciscoBentoSilva
E-mail: chicobento.ac@gmail.com

Joseneide Brasil de Carvalho


Mestranda em Estudos Literários pela Fundação Universidade Fe-
deral de Rondônia - UNIR, graduada em Letras- Língua Portuguesa pela

201

Sumário
Universidade Federal do Pará, Professora de Língua Portuguesa e Litera-
tura da Rede Estadual de Ensino de Rondônia.
E-mail: josibrasilpvh@gmail.com

Júlio César Barreto Rocha


Licenciado em Letras (UFAM, 1987) e bacharel em Direito (UNIR,
1995), lotado no Departamento de Letras Vernáculas (UNIR, 1989), dou-
torado em Filologia e Letras Neolatinas (Universidade de Santiago de
Compostela, 2003, UFRJ, 2005). Líder do Grupo de Pesquisa Filologia e
Modernidades (CNPq, 2009), leciona no Mestrado Acadêmico em Letras,
cumpre Estágio Pós-Doutoral (UFPA, bolsista do PROCAD Amazônia,
CAPES), pesquisador do PIBIC (bolsas CNPq), em áreas de Linguagem,
de Literatura e de Comunicação.
E-mail: juliorocha@unir.br

Kerllyo Barbosa Maciel


Graduado em Licenciatura Plena em Letras Português-Francês pela
Universidade Federal do Amapá (2017). Possui Especialização em Estu-
dos Culturais e Políticas Públicas (UNIFAP, 2019). É integrante do Grupo
de Pesquisa Literatura da Fronteira, coordenado pelo Prof. Yurgel Pantoja
Caldas (UNIFAP). Tem experiência e desenvolve pesquisas em Estudos
Literários, com ênfase em Literatura Amapaense; Identidade; Cultura e
Memória. Atualmente é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras (PPGLET) (Linguagens da Amazônia) - Área de Concentração;
Literatura, Cultura e Memória.
E-mail: keullymaciel@hotmail.com

Luciele Santos Pantoja


Mestranda em Estudos Literários pela Fundação Universidade
Federal de Rondônia - UNIR, graduada em Letras com Habilitação em
Língua e Literatura Inglesa pela Faculdade de Educação de Porto Velho
- Unipec (2003), Pós-Graduada em Psicopedagogia pela Faculdade Inte-
ramericana de Porto Velho (2008), Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
Devir e do Grupo de Pesquisa em Letramento Literário: Estudos de Nar-

202

Sumário
rativas da/na Amazônia. É Professora de Língua e Literatura Inglesa da
Rede Estadual de Ensino de Rondônia.
E-mail: lucielepan@gmail.com

Maria de Fátima Nascimento


Maria de Fatima do Nascimento possui doutorado em Teoria e His-
tória Literária (UNICAMP, 2012) com a tese “Benedito Nunes e a Moder-
na Crítica Literária Brasileira (1946-1969), Mestrado em Teoria e História
Literária (UNICAMP, 2004); Pós-Doutorado (USP, 2019). É professora
de Literatura Brasileira da Graduação e dos Programas de Pós-Graduação
em Letras (Doutorado e Mestrado Acadêmico) e no Mestrado PROFLE-
TRAS da Universidade Federal do Pará (UFPA). Organizou, junto com
Gabriel Albuquerque, o livro A poesia e a ficção na Amazônia.
E-mail: mafana@ufpa.br

Nádia Nelziza Lovera de Florentino


Licenciada em Letras Língua Portuguesa, Língua Espanhola e Res-
pectivas Literaturas (2008). Mestre em Estudos Literários (UFMS, Três
Lagoas, 2011). Doutora em Letras (UNESP, Assis, 2016). Professora ad-
junta do Departamento de Línguas Estrangeiras da Universidade Federal
de Rondônia, é docente do Mestrado Acadêmico em Letras da UNIR.
Membro do Grupo de Estudos Linguísticos, Literários e Socioculturais
– GELLSO (CNPq), possui experiência nas áreas de Ensino de Língua
Estrangeira, Literatura, Narrativas brasileiras contemporâneas e Idiomas
Indígenas.
E-mail: nadianelziza@unir.br

Suerda Mara Monteiro Vital Lima


Professora mestra do curso de Letras/Espanhol do campus de Cru-
zeiro do Sul, da Universidade Federal do Acre. Doutoranda vinculada ao
programa de pós-graduação: Linguagem e Identidade.
E-mail: suerdammvlima@gmail.com

203

Sumário
Tatiana da Silva Capaverde
Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da
Universidade Federal de Roraima (UFRR). Possui Graduação em Letras
- Bacharelado em Espanhol pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (2001), Mestrado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (2004) e Doutorado em Estudos de Literatura pela Universidade
Federal Fluminense (2015). É membro do grupo de pesquisa Narrativas
Estrangeiras Modernas (Unesp) e Leituras Contemporâneas: narrativas
do séc. XXI (UFBA). Possui experiência na área de Letras, com ênfase
em Literatura Hispano-americana, atuando principalmente nos seguintes
temas: literatura hispano-americana, literatura comparada, autoria, apro-
priação, hibridismo e mobilidade cultural.
E-mail: tatiana.capaverde@ufrr.br

Yurgel Pantoja Caldas


Graduado em Letras pela Universidade Federal do Pará (1997),
mestrado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais (2001) e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2007). Cumpriu pós-doutorado na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa (2011/2012), Atua como professor
na graduação da Universidade Federal do Amapá e na pós-graduação no
Mestrado em Letras (PPGLET) na mesma instituição. Atua nos temas:
Amazônia, poesia, narrativa, fronteiras, desenvolvimento, contempora-
neidade e violência.
E-mail: yurgel@uol.com.br

204

Sumário
Título: Narrativas literárias, ensaios críticos e tradução cultural
Série: Intercâmbios Amazônicos – v. 3
Organização: Francisco Bento da Silva (Ufac), Maria de Fátima Nascimento (UFPA) e
Tatiana da Silva Capaverde (UFRR)
Autoria: Aldízio Francisco Lira, Augusto Rodrigues da Silva Junior, Bruna Wagner, Carla
Patrícia Ribeiro Nobre, Francisco Bento da Silva, Joseneide Brasil de Carvalho, Júlio César
Barreto Rocha, Kerllyo Barbosa Maciel, Luciele Santos Pantoja, Nádia Nelziza Lovera de
Florentino, Suerda Mara Monteiro Vital Lima e Yurgel Pantoja Caldas.
Projeto Gráfico: Raquel Ishii
Diagramação: Marcelo Alves Ishii
Revisão de texto: Maria de Fátima Bandeira de Souza, Sara Lavinha Vieira Neri, Ana
Marina Souza de Lima, Layla Karinne Nascimento Silva e João Marcos Luckner.
Revisão técnica/provas: João Marcos Luckner
Divulgação: Marcelo Alves Ishii
Formato: 16 x 23 cm
Tipologia: Calisto MT 11/16 (MARGENS 2CM)
Número de páginas:204

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