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LITERATURA

MINEIRA:
TREZENTOS
ANOS

Organizador
JACYNTHO LINS BRANDÃO
Os ensaios estampados em Literatura mineira: trezentos anos,
obra organizada por Jacyntho Brandão, compõem um admi-
rável painel da produção das letras de Minas, das origens à
atualidade, numa original configuração que tanto contempla o
eixo cronológico da periodização literária quanto efetua perti-
nentes recortes temáticos, abertos a temas e problemas nem
sempre devidamente considerados por nossa historiografia
tradicional, a exemplo, entre outras, da literatura indígena, da
infantojuvenil e da marginal.
A esse conjunto, na parte inicial do volume, de 16 estudos
de natureza panorâmica, somam-se, na segunda parte, mais
14, dedicados a autores específicos, do século XVIII ao XXI.
Pode-se afirmar, com segurança, que jamais a literatura
mineira foi objeto de tão consistente investigação, seja no
aspecto quantitativo, seja, especialmente, pelo alto padrão de
qualidade dos trabalhos aqui reunidos.
É de se ressaltar que, para além das culminâncias
representadas, em prosa e verso, por Guimarães Rosa e
Carlos Drummond de Andrade, Minas Gerais talvez seja o
único estado em que todos os períodos literários encontraram
expressões de relevo. A começar pelo Arcadismo, na figura
maior de Cláudio Manuel da Costa. No Romantismo, impossí-
vel ignorar a importância de Bernardo Guimarães, não apenas
na ficção, mas na sua (injustamente) menos estudada poesia.
Se no Simbolismo sobressai Alphonsus de Guimaraens, no
Parnasianismo a obra de Augusto de Lima se ombreia à dos
maiores cultores do movimento. No século XX, o espaço de que
dispomos seria pouco para citar poetas e ficcionistas mineiros
que de modo consolidado integram o cânone nacional.
Este livro é um marco, que contribui não apenas para um
mais aprofundado conhecimento da cultura de Minas, mas,
também, para melhor compreensão da própria literatura bra-
sileira, na medida em que é impossível falar da criação literária
no Brasil sem levar em conta o papel fundador e fecundador
de escritores mineiros. Esperemos que o exemplo desta feliz
iniciativa possa ser seguido por outros estados, para que as
letras brasileiras, em definitivo, ampliem suas fronteiras para
além do eixo onde comumente se encontram delimitadas.

Antonio Carlos Secchin


da Academia Brasileira de Letras
LITERATURA MINEIRA
LITERATURA
MINEIRA:
TREZENTOS
ANOS
JACYNTHO LINS BRANDÃO (Org.)

BDMG Cultural
Belo Horizonte, 2019
9 Sentimento do mundo
Gabriela Moulin

11 Uma aventura irrecusável


Rogério Faria Tavares

12 Introdução —
Literatura mineira: trezentos anos
Jacyntho Lins Brandão

PARTE 1   ESTUDOS TEMÁTICOS

24 Os grupos literários e a era do Suplemento


Angelo Oswaldo de Araújo Santos

34 Escritoras mineiras presente! Anotações críticas


Constância Lima Duarte, Maria do Rosário A. Pereira

50 Falas do negro nas letras de Minas


Eduardo Assis Duarte

62 A “Geração Suplemento” e o conto em Minas Gerais


Eliana da Conceição Tolentino

70 Os bens e o sangue: o romance em Minas, entre a


mobilidade e o imobilismo
Emílio Maciel

86 Modernismo revisitado
Eneida Maria de Souza

102 A crônica mineira


Fabrício Marques

114 Minas Gerais: de territórios e margens da literatura


Ivete Lara Camargos Walty

132 O romance de geração na literatura de Minas Gerais


João Antonio de Paula

150 Um teatro de formas híbridas: breves notas sobre a


cena em Minas no século XVIII
Leda Martins

162 O erotismo das minas e o feminino de ninguém


Lucia Castello Branco

174 Cantores de leitura: apontamentos sobre literatura


indígena em Minas Gerais
Maria Inês de Almeida
188 Crítica literária
Nabil Araújo

200 
“Evadir-se com o outro”: a literatura infantojuvenil e a
lição de Bartolomeu Campos de Queirós
Paulo Fonseca Andrade

212 Poesia de Minas: sempre contemporânea


Raquel Beatriz Junqueira Guimarães

224 Capitania de letras gerais


Sérgio Alcides

PARTE 2  AUTORES

242 A escrevivência de Conceição Evaristo


Aline Alves Arruda

252 Lúcio Cardoso: um andarilho à beira abismo


Andréa de Paula Xavier Vilela

264 Cláudio Manuel da Costa, poeta das Minas Gerais


Andréa Sirihal Werkema

280 História e solidão: Alphonsus de Guimaraens


Anelito de Oliveira

292 A subversão barroca e outras subversões nas


Memórias de Pedro Nava
Antônio Sérgio Bueno

306 No creo en brujas, pero que las hay, las hay:
a propósito da vida e obra de Murilo Rubião
Audemaro Taranto Goulart

322 O demônio da tristeza e a vontade da alegria:


considerações sobre a literatura de Adélia Prado
Claudia Campos Soares

334 Bernardo Guimarães: um projeto de nação


Daniela Magalhães da Silveira

348 Henriqueta Lisboa: para além das páginas impressas


Kelen Benfenatti Paiva

360 Guimarães Rosa: vida e obra nos alinhavos da linguagem


Márcia Marques de Morais

374 Júlio Ribeiro e a luta das ideias


Marcos Rogério Cordeiro
386 O sentimento de origem na poesia de
Carlos Drummond de Andrade
Mário Alex Rosa

398 Carlos Herculano Lopes em quatro tempos


Telma Borges

416 Murilo Mendes: o poeta plural


Wesley Thales de Almeida Rocha

431 Sobre os autores

438 Índice onomástico

446 Ficha técnica


SENTIMENTO DO MUNDO

Em três séculos, em terras mineiras, vieram ao mundo e criaram novos


mundos Adélia Prado, Angela Lago, Bartolomeu Campos de Queirós,
Carlos Drummond de Andrade, Conceição Evaristo, Fernando Sabino,
Guimarães Rosa, Henfil, Henriqueta Lisboa, Murilo Mendes, Murilo
Rubião, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Pedro Nava, Ziraldo
e tantos outros antes e depois deles, que são lembrados, citados e es-
tudados nesta obra que o BDMG Cultural traz ao leitor quando estamos
prestes a celebrar os 300 anos de Minas Gerais em 2020.
A lista é infindável. Um conjunto diverso, potente e significativo da
história cultural não apenas de Minas Gerais, mas do Brasil e do encon-
tro encantado com o mundo que a ficção literária e a poesia nos revelam.
Idealizado lindamente por Rogério Faria Tavares, este livro conta
com trinta ensaios de autores a quem agradecemos por compartilha-
rem suas reflexões e conhecimentos. Também saudamos o trabalho
primoroso de organização do professor Jacyntho Lins Brandão.
Nestas muitas páginas, o leitor encontrará muito mais do que a
história das diversas literaturas de Minas.
É um livro para nos havermos com palavras, versos, prosas, histórias
e linguagem.
A imaginação literária e as palavras são antídotos contra a intole-
rância e também lugares de encontro com o outro, com a memória e
com a construção de um imaginário coletivo de futuro. Por tudo isso, o
sentimento do mundo.

Gabriela Moulin

Presidente do BDMG Cultural

9
10
UMA AVENTURA IRRECUSÁVEL

Se 1720 marca a efetiva institucionalização da Capitania de Minas Gerais,


naquele ano desmembrada da antiga Capitania de São Paulo e Minas de
Ouro, o processo de formação da cultura que lhe serviu de base antecede ​
—​ e muito ​—​ o marco temporal que gerou o título do presente volume. Não
sendo necessário nem possível, aqui, definir a partir de quando se forjou
entre essas montanhas um sociedade própria, dotada de traços distintivos, é,
no entanto, importante destacar que, para além das estreitas relações a unir
o povo ao território, sobretudo na busca das riquezas que este podia propiciar,
entre os mineiros se desenvolveram, também, alguns afetos e preferências e
um peculiar ‘jeito de estar no mundo’ que provavelmente até hoje remanes-
cem, de algum modo, nas camadas mais profundas de sua personalidade.
Entre eles, arriscaria situar ​—​ despretensiosa e intuitivamente ​—​ uma
certa ‘vida interior’, marcada por indagações e conflitos sobre a existência
humana e sobre a sua dimensão espiritual, o apego à memória e o apreço
pelas letras. Sem aderir a conceitos generalizantes, mitificadores e, por isso,
empobrecedores a respeito dos mineiros, disponho-me apenas a partilhar
uma ‘impressão’ que me persegue há algum tempo: gostamos de livros e de
literatura. E o prazer que extraímos do contato com eles não vem de hoje…
Em trezentos anos, Minas Gerais legou ao país vários dos expoentes
mais refinados da produção literária nacional. Ainda no século dezoito, os
arcadistas de Vila Rica fizeram ecoar as vozes que inauguraram, para muitos,
a literatura brasileira. A eles se seguiram sofisticados representantes do
Romantismo, do Realismo, do Naturalismo, do Simbolismo, do Modernismo…
Fiel à sua história e à sua íntima convivência com a palavra escrita, o estado
continua, no século vinte e um, a presentear o Brasil com escritores de pri-
meira linha, mulheres e homens atentos e permeáveis à complexa realidade
em que se inserem, a maior parte deles em diálogo livre e inteligente com a
tradição, aptos a seguir em frente, explorando novas possibilidades.
Concebida durante a minha gestão no BDMG Cultural, a presente obra
foi organizada, com a conhecida excelência, pelo professor Jacyntho Lins
Brandão, responsável por reunir o notável grupo de ensaístas que nela parti-
lha seu amor pela literatura mineira. Vem à luz, também, graças à sensibili-
dade de minha sucessora na direção do Instituto, a jornalista Gabriela Moulin,
a quem agradeço imensamente o profissionalismo e o generoso acolhimento.
Produto de interesse público, este livro foi feito para habitar as salas de
aula, as bibliotecas, os centros comunitários e os clubes de leitura de todos
os cantos do Brasil. O seu destino é ganhar a estrada, sem limites, e inspi-
rar a reflexão, a crítica e as discussões entre alunos, professores e leitores ​
—​ sejam quem forem, estejam onde estiverem ​—​ sobre esse impressionante
patrimônio de trezentos anos. Iniciativa inédita, que faz jus à grandeza de
Minas Gerais, a presente obra já nasce como referência indispensável a
quem quiser conhecer ou se apaixonar ainda mais pela literatura produzida
pelos mineiros. Uma aventura irrecusável.

Rogério Faria Tavares

Jornalista e Presidente da Academia Mineira de Letras.


Presidente do BDMG Cultural entre junho de 2017 e maio de 2019.

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INTRODUÇÃO

LITERATURA
MINEIRA:
TREZENTOS
ANOS
JACYNTHO LINS BRANDÃO

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Quando, em 1980, Ouro Preto se tornou a um patrimônio ímpar no estado redunda em
primeira localidade brasileira a ser incluída responsabilidade não só em termos de sua
pela Unesco na lista do Patrimônio Cultural conservação, o que sem dúvida é de extrema
da Humanidade, passou a fazer parte de um importância, como também de aprimora-
seleto grupo que somava então sessenta e mento da experiência humana tida como
quatro monumentos, como as necrópoles de sui generis no passado, assumindo nossa
Mênfis e Tebas, no Egito, o centro histórico de condição de herdeiros aos quais cabe esco-
Roma e as ruínas de Cartago ​—​ constituindo lher na herança o que é digno de nossa huma-
o quarto local da América Latina alçado a nidade, recusando o que há nela de negativo.
essa condição, ao lado da cidade de Quito, Com efeito, se foi o “pioneirismo da atividade
no Equador; das ruínas maias de Copan, em mineradora”, bem como sua continuidade e
Honduras; e da antiga cidade de Guatema- a quase concomitante diversificação econô-
la. Como se sabe, o critério básico para o mica da região que ergueram coisas belas,
reconhecimento de um patrimônio cultural como Ouro Preto, Congonhas, Diamantina e a
pela Unesco é guardar ele a memória de uma Pampulha, mais tantos outros locais espalha-
experiência singular da humanidade, ou seja, dos por todo o estado, foi também e continua
no enorme conjunto de tudo que faz de nós sendo essa mesma atividade fator de degra-
humanos, trata-se de um ponto reconhecido dação do meio ambiente, de injustiças sociais
como de especial relevância na trajetória de e de vivo sofrimento.
nossa espécie. Tendo como perspectiva o passado e o
A justificativa para a escolha de Ouro presente de Minas Gerais, este livro tem,
Preto teve em vista, dentre outros fatores, “a como primeiro objetivo, celebrar uma efemé-
qualidade estética da arquitetura nativa e eru- ride. Para tanto, usa da nossa condição de
dita ​—​ e o modelo urbano irregular”, que “faz herdeiros para escolher no patrimônio que
da cidade um tesouro do gênio humano”, com nos cabe uma parte de extremo valor. São
suas igrejas barrocas contendo “esculturas dois vetores, portanto, que nele se congregam ​
de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o —​ efeméride e herança ​—, cujo significado se
maior artista do Brasil colonial, e guardando expõe a seguir.
pinturas de Manuel da Costa Ataíde, entre A efeméride são os 300 anos de criação da
outros”. Em resumo, conclui o parecer da Capitania das Minas Gerais, por Carta-Régia
Unesco, “o patrimônio edificado da cidade do Rei D. João V, de 12 de setembro de 1720.
histórica de Ouro Preto é um testemunho É instrutivo acompanhar, no plano dos atos
excepcional dos talentos criativos de uma oficiais, as consequências da descoberta do
sociedade construída sob o pioneirismo da ouro, nos últimos anos dos Seiscentos, na
atividade mineradora”. colônia portuguesa da América: é de novem-
De 1980 a hoje, outras dezesseis localida- bro de 1709 a Carta-Régia que cria a Capita-
des brasileiras foram alçadas à condição de nia de São Paulo e Minas de Ouro, separada
patrimônio cultural da humanidade, desde
Olinda, já em 1982, ao Cais do Valongo e da
Imperatriz, no Rio de Janeiro, em 2017, mas
1 A lista é a seguinte: Ouro Preto,
Minas Gerais se mantém como o estado que 1980; Olinda, 1982; missões
conta com mais sítios nessa categoria: além jesuíticas do Rio Grande do Sul,
de Ouro Preto, o Santuário do Bom Jesus de 1983; centro histórico de Salvador,
1985; Santuário do Bom Jesus de
Matozinhos, em Congonhas do Campo, o Matozinhos, Congonhas do Campo,
centro histórico de Diamantina e o conjunto 1985; Plano Piloto de Brasília,
arquitetônico da Pampulha, em Belo Hori- 1987; Parque Nacional da Serra
da Capivara, 1991; centro histórico
zonte.1 Não se trata, aqui, de cultivar alguma de São Luís do Maranhão, 1997;
espécie de bairrismo, de “mineirice” ou do centro histórico de Diamantina,
chamado “mito da mineiridade”, mesmo 1999; centro histórico de Goiás Ve-
lha, 2001; Praça de São Francisco,
porque falar de Minas e de seu patrimônio Sergipe, 2010; paisagem cultural
implica falar do Brasil, sem o qual Minas não do Rio de Janeiro, 2012; conjunto
há, e falar de patrimônio cultural da Unesco arquitetônico da Pampulha, 2016;
Cais do Valongo e da Imperatriz,
implica, mais ainda, falar da humanidade. O Rio de Janeiro, 2017; Mosteiro de
que desejo salientar é quanto a existência de São Bento, Rio de Janeiro, 2017.

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então da Capitania do Rio de Janeiro; mas imparidades que formam nosso país), abran-

INTRODUÇÃO * LITERATURA MINEIRA: TREZENTOS ANOS   JACYNTHO LINS BRANDÃO


apenas dez anos depois, em 1720, a região gendo todas as Minas (não só a do minério)
das Minas é por sua vez separada de São e todas as Gerais, na direção de cada ponto
Paulo. Isso mostra como a ansiedade da corte cardeal, até onde a cultura e os falares dos
portuguesa com relação às riquezas encon- mineiros se confundem com os de baianos,
tradas redesenha rapidamente os espaços, goianos, paulistas, fluminenses e capixabas.
na tentativa de obter um controle efetivo Isso quer dizer que, Minas sendo mui-
sobre as minas, ocupadas por contingente tas, também a literatura mineira tem como
considerável de “paulistas” e “reinóis”, além marca a diversidade. Foi essa perspectiva, a
dos aventureiros que desciam da Bahia, na da diversidade, que norteou a organização
rota do Rio São Francisco. Para se ter uma deste volume. Aqui o leitor não encontrará
ideia, no ano da criação da nova capitania uma história da literatura de Minas Gerais,
foram enviados para Portugal nada menos tampouco um conjunto de colaborações
que 25 mil quilos de ouro, o que dá a dimen- feitas sob a batuta de um mesmo modelo.
são de com que velocidade “o pioneirismo Concebido o desenho inicial sob o influxo dos
da atividade mineradora” terminou por fazer números ​—​  300 anos/30 ensaios ​—, divididos
das Minas o território mais importante do os capítulos entre temas e escritores repre-
reino português. À ansiedade da corte e dos sentativos, aos autores foi dada a liberdade
que ocupavam a terra aos milhares, em levas de elaborar seus estudos de acordo com a
sucessivas, redesenhando territórios, deve-se melhor contribuição que poderiam dar. Assim,
acrescentar a ansiedade não menos tensa há capítulos de grande abrangência, em
e geralmente desconsiderada dos habitan- termos de fatos e pessoas, ao lado de estudos
tes originais, os diversos povos indígenas, com foco mais pontual.
para os quais o ouro nada dizia, mas muito Na primeira parte, dedicada a ensaios
provocava em termos de deslocamentos e temáticos, o leitor encontrará trabalhos do
espoliação. Ampliando-se ainda mais nossa primeiro tipo ​—​ que desenham um amplo e
perspectiva espacial, também no continente detalhado painel de épocas, gêneros, ten-
africano o achamento de ouro do outro lado dências e escritores ​—​ nos estudos de Angelo
do Atlântico provocava o êxodo de populações Oswaldo de Araújo Santos (“Os grupos
inteiras, condenadas ao trabalho escravo, as literários e a era do Suplemento”), Constân-
quais redesenhavam também os territórios cia Lima Duarte e Maria do Rosário Pereira
das minas para onde eram levadas. Não que (“Escritoras mineiras presente!”), Eduardo
a conquista do Brasil pelos europeus já não ti- Assis Duarte (“Falas do negro na literatura
vesse implicado em muito disso, impactando de Minas”), Eliana da Conceição Tolenti-
três continentes, mas o ouro provocou, com no (“A Geração Suplemento e o conto em
a reconfiguração acelerada do espaço ​—​ em Minas Gerais”), Fabrício Marques (“A crônica
termos tanto concretos quanto simbólicos ​—, mineira”), Ivete Lara Walty (“Minas Gerais:
também uma aceleração nervosa do tempo. territórios e margens da literatura”), João
A parte da herança que nos cabe ​—​ escolhi- Antônio de Paula (“O romance de geração na
da aqui para a comemoração da efeméride ​—​ é literatura de Minas Gerais”), Maria Inês de
a literatura. Donde o título do livro: Literatura Almeida (“Cantores de leitura: apontamentos
mineira: trezentos anos. Pode-se perguntar sobre literatura indígena em Minas Gerais”) e
qual a pertinência de falar de uma literatura Raquel Beatriz Junqueira Guimarães (“Poesia
mineira ​—​ e, de novo, cumpre insistir que ela de Minas sempre contemporânea”). Ainda
não se toma aqui de uma perspectiva bairrista nesse conjunto se encontram também textos
nem ufanista (mesmo que se trate da come- que elegem uma perspectiva mais concentra-
moração de uma efeméride), mas como parte da, como o fazem Emílio Maciel (“Os bens e
da literatura brasileira, à qual naturalmente o sangue”), Eneida Maria de Souza (“Moder-
pertence, comungando temas, gêneros e nismo revisitado”), Leda Martins (“Um teatro
tendências. Todavia, como o leitor constatará de formas híbridas”), Lucia Castello Branco
ao longo destas páginas, a inscrição de Minas (“O erotismo das minas e o feminino de nin-
na literatura brasileira constitui um “testemu- guém”), Nabil Araújo (“Crítica literária”) Paulo
nho excepcional” da experiência ímpar que Fonseca Andrade (“Evadir-se com o outro”) e
aqui se viveu e ainda se vive (entre todas as Sérgio Alcides (“Capitania de letras gerais”).

14
A isso se somam, na segunda parte, os mas simplesmente na ordem alfabética de
ensaios dedicados a alguns dos escritores seus autores. Entre aquilo de que se escreve
mais representativos da cena literária mi- e aqueles que escrevem, o que se pretende
neira, a saber: “A escrivivência de Conceição que seja a marca desta publicação é a própria
Evaristo”, por Aline Arruda; “Lúcio Cardoso: diversidade. Por uma razão bastante simples:
um andarilho à beira abismo”, de Andréa de seria impossível abarcar cada detalhe dos
Paula Xavier Vilela; “Cláudio Manuel da Costa, 300 anos ​—​ todas as épocas, todos os estilos,
poeta das Minas Gerais”, por Andréa Sirihal todos os gêneros, todas as tendências e, es-
Werkema; “História e solidão: Alphonsus pecialmente, todos os escritores ​—​ mais todos
de Guimaraens”, de Anelito de Oliveira; “A os seus estudiosos. O que se oferece aqui,
subversão barroca e outras subversões nas portanto, poderia ser entendido como uma
Memórias de Pedro Nava”, de Antônio Sérgio mostra ​—​ não amostra, mas mostra, exercício
Bueno; “No creo en brujas, pero que las hay, de visão, espetáculo: epídeixis ​—​  que sem
las hay: a propósito da vida e obra de Murilo dúvida diz muito sobre a literatura de Minas.
Rubião”, de Audemaro Taranto Goulart; “O Se tem razão Manuel Bandeira ao observar
demônio da tristeza e a vontade da alegria: como o fastígio das minas foi efêmero, uma
considerações sobre a literatura de Adélia parte dos monumentos de nossas “vilas do
Prado”, por Claudia Campos Soares; “Ber- ouro” tendo mesmo sido acabados depois de
nardo Guimarães: um projeto de nação”, de sua plenitude,3 poderíamos considerar que se-
Daniela Magalhães da Silveira; “Henriqueta ria um dos traços distintivos da literatura mi-
Lisboa: para além das páginas impressas”, neira um sentimento decorrente da aceleração
por Kelen Benfenati Paiva; “Júlio Ribeiro e a do tempo ​—​ que fez com que vilas ricas logo
luta das ideias”, de Marcos Rogério Cordeiro; se mudassem em vilas pobres (ou vice-versa,
“Guimarães Rosa: vida e obra nos alinhavos no ritmo da diversificação dos ciclos econô-
da linguagem”, de Márcia Marques de Morais; micos) ​—, ou seja, a experiência de um certo
“O sentimento de origem na poesia de Carlos descompasso temporal, como se as diferentes
Drummond de Andrade”, por Mário Alex Rosa; gerações tivessem chegado sempre a desoras
“Carlos Herculano Lopes em quatro tempos”, (atrasados ou adiantados, mas sempre em
de Telma Borges; e “Murilo Mendes: poeta falta de pontualidade). Se esta não é uma
plural”, de Wesley Thales de Almeida. Tam- história da literatura mineira, o leitor poderá,
bém neste caso os autores adotam estilos e de qualquer modo, constatar que a literatura,
abordagens variados, considerando a história, desde o início, acompanhou a trajetória da
a biografia, as teorias da literatura, sempre formação e das transformações de Minas.
em função, como é natural, de prover uma Isso se constata já nos primórdios, quan-
leitura das obras dos escritores em pauta. do o teatro teve um papel destacado nas
É intencionalmente que relacionei acima diversas manifestações da vida social ​—​ das
temas e autores de cada um dos ensaios, procissões de Ouro Preto aos espetáculos
pois, além de oferecer um panorama dos 300 no teatrinho de Chica da Silva, em Diaman-
anos de literatura mineira, este livro pretende tina ​—,4 aliando-se à presença de poetas de
também, reunindo tal conjunto de colabora- grande prestígio ainda na época colonial, os
dores, ressaltar a pujança dos estudos lite- integrantes da chamada “Arcádia mineira”,
rários em nosso estado.2 Ao lado de críticos, como Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga
professores, pesquisadores já consagrados Peixoto e Cláudio Manuel da Costa.5 Mesmo
comparecem colegas jovens, que continuam
com competência o trabalho nessa parte da
nossa herança que se pode dizer das mais 2 Cf. Nabil Araújo, “Crítica literária”.

valiosas. Os ensaístas não se dissolvem atrás 3 Cf. Emílio Maciel em “Os bens e o
dos temas ​—​ como seria apropriado caso sangue”, neste volume.
estivessem escrevendo, por exemplo, verbetes
4 Cf. Leda Martins, em “Um teatro
de enciclopédia ​—, mas mantêm plenamente de formas híbridas”, também neste
sua dicção autoral, sendo este o motivo por volume.
que os textos, nas duas seções, não são orga-
5 Cf. Nabil Araújo, “Crítica literária”;
nizados nem por cronologia, nem por gênero, Sérgio Alcides, “Capitania de letras
nem por nenhum outro critério desse tipo, gerais”, idem.

15
que as convenções da poesia arcádica Beatriz Brandão, que dedicou a sua prima

INTRODUÇÃO * LITERATURA MINEIRA: TREZENTOS ANOS   JACYNTHO LINS BRANDÃO


pareçam cobrir com um véu de imagens Maria Doroteia Joaquina de Seixas, a Marília,
tomadas da Antiguidade clássica a natureza de Tomás Antônio Gonzaga, estes versos:
e a sociedade das Minas ​—​ alterando nomes,
como Dirceu e Marília em vez de Tomás e Essa beleza, que imortalizara
Maria Doroteia, Chile e Santiago no lugar Do mais terno amador a acorde lira;
de Minas e Ouro Preto ​—, as contradições Essa Marília de Dirceu querida,
do que é local se encontram, nesses poetas, Cessou de respirar, já não existe! 8
veladas ou muitas vezes desveladas, como
nos versos que Cláudio Manuel da Costa Atentos aos movimentos estéticos do século
dedica ao Ribeirão do Carmo, de sua cidade XIX, encontramos então, dentre os autores mi-
natal, Mariana: neiros, Bernardo Guimarães, que fez de sua
literatura um projeto em prol da abolição da
Leia a posteridade, ó pátrio Rio, escravidão;9 Júlio Ribeiro, envolto com os ex-
Em meus versos teu nome celebrado, cessos do naturalismo pseudo-cientificista;10
Por que vejas uma hora despertado e o simbolista Alphonsus de Guimaraens, que
O sono vil do esquecimento frio.6 se eleva em seus versos ao ápice do mais puro
lirismo e misticismo, como no poema tornado
De fato, os poetas escolhem o que deve um clássico:
ser visto e o que deve ser ocultado, na sua
complexa condição de colonizadores/coloni- Entre brumas, ao longe, surge a aurora,
zados, como naquilo que Gonzaga afirma que O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Marília não verá, justamente os aspectos que Agoniza o arrebol.
envolvem trabalho duro para tirar riquezas do A catedral ebúrnea do meu sonho
solo e, principalmente, escravidão: Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol
Tu não verás, Marília, cem cativos E o sino canta em lúgubres responsos:
Tirarem o cascalho e a rica terra, “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”11
Ou dos cercos dos rios caudalosos,
Ou da minada serra. É também no mesmo século, com a Indepen-
dência e a introdução da imprensa no Brasil
Não verás separar ao hábil negro e em Minas, que as formas de expressão se
Do pesado esmeril a grossa areia, multiplicam, com poetas e prosadores ocu-
E já brilharem os granetes de ouro pando espaços nos jornais e revistas, o que se
No fundo da bateia.7 desdobra, com ritmo variado, durante todo o
século XX. No nosso estado, esse movimento
Ainda no mesmo contexto setecentista e principia com as folhas “Compilador Mineiro”
já adentrando os primeiros anos do sécu- (1823), “Abelha do Itacolomi” (1824–25) e
lo seguinte, é de destacar a presença de “O Universal” (1825–42), ao que se soma a
escritoras: Bárbara Heliodora, a qual, numa primeira revista literária aqui aparecida, “O
antecipação do indianismo romântico, cantou Recreador Mineiro”, dirigida pelo editor e
que “Eu vi o Pão de Açúcar levantar-se / E no livreiro Bernardo Xavier Pinto de Souza,12
meio das ondas transformar-se / Na figura além de ​—​ o que pode surpreender os leitores ​
de um índio, o mais gentil / Representando —​ publicações feministas, dirigidas e escritas
só todo o Brasil!”; bem como a ouro-pretana por mulheres, como “O Sexo Feminino”, jornal

6 Cf. Andréa Werkema, “Cláudio 9 Cf. Daniela Magalhães da Silveira, 11 Cf. Anelito de Oliveira, em “História
Manuel da Costa”, idem. em “Bernardo Guimarães: um e solidão”.
projeto de nação”.
7 Cf. Sérgio Alcides, “Capitania de 12 Cf. Ângelo Oswaldo de Araújo
letras gerais”, idem. 10 Cf. Marcos Rogério Cordeiro Santos, “Os grupos literários e a
Fernandes, em “Júlio Ribeiro e a era do Suplemento”.
8 Cf. Constância Lima Duarte e luta das ideias”.
Maria do Rosário A. Pereira, em
“Escritoras mineiras presentes!”

16
fundado em Campanha da Princesa, em 1873, que mandam hoje mãe vender filha sem dó, /
por Francisca Senhorinha da Mota Diniz.13 contra a prostituição de um governo que cala
Já no século passado, nas relações entre a verdade, promove a impunidade, pra fazer
imprensa e literatura, lugar de honra cabe a carreira de PÓder na cidade. Ah! Cidade.” 16
ao Suplemento literário do “Minas Gerais”, Isso se aplica também aos povos indígenas,
que agitou os meios literários e artísticos de os quais, entre oralidade e escrita, assumem
Minas e do Brasil a partir do final dos anos seu protagonismo, dando testemunho de
1960, sob a liderança de Murilo Rubião,14 sen- como a poesia substitui documentos e guarda
do também nas páginas dos jornais que nas- a memória e as identidades: “Para isso eu dou
ceu aquele que pode ser considerado “o mais terras / puros índios morar […]. / A missão
amorável dos gêneros”, a crônica, que em para morada / O brejo para o trabalho / Os
Minas conheceu uma constelação de nomes campos gerais para as meladas e caçadas
de primeira linha, como Carlos Drummond / E as margens dos rios para as pescadas. /
de Andrade, Fernando Sabino, Humberto Dei, registrei, selei”.17 Isso se aplica por igual
Werneck e Luís Giffoni.15 às vozes negras na literatura de Minas, da
É claro que uma história não se constitui “escrivivência” de Conceição Evaristo ​—​  que
pela simples sucessão temporal de fatos e certa vez declarou: “Eu não nasci rodeada
feitos, mas pelo modo como fatos e feitos se de livros. Nasci rodeada de palavras” —18; ao
apropriam dos meios existentes, criam novos vanguardismo de Adão Ventura, que não tem
recursos e constantemente os recriam, pois pejo de tocar nas feridas:
história é transformação. Além, portanto, de
perceber como a literatura percorre de cabo a Negro Forro
rabo os 300 anos de Minas Gerais, o impor- minha carta de alforria
tante é atentar para o modo como ela, em sua não me deu fazendas,
extemporaneidade, se faz contemporânea de nem dinheiro no banco,
seu tempo e se diversifica. Se, no passado, as nem bigodes retorcidos.
partes de nós por motivos diversos margina-
lizadas só encontravam nas letras uma voz minha carta de alforria
delegada ​—​ e, por isso mesmo, submetida a costurou meus passos
todo tipo de estereótipo a que se costumam aos corredores da noite
sujeitar aqueles rebaixados à condição de de minha pele.19
“outros” ​—, um traço marcante da literatura
nacional e não menos da mineira, desde a Em outro diapasão, não menos importan-
segunda metade do último século, são as te, inovador e diversificado, encontra-se a
vozes das margens que passam a ocupar seu literatura dirigida a crianças e adolescentes,
lugar no sistema literário. Isso se aplica à que tem conhecido em Minas, desde o século
chamada literatura marginal, uma produção passado, uma importância crescente, desde
tipicamente urbana de autores que assumem, a recriação de histórias orais populares por
contra todo tipo de prevenção, seu “lugar de Alexina de Magalhães Pinto à produção de
fala”, como na autofagia de Rogério Coelho: outros autores, como Lúcia Machado de
“Autófago aqui, sou Eu que ergo paredes no Almeida, Angela Lago, Guimarães Rosa,
meu muro interior, e compro revolver pra me Wander Piroli, Ângelo Machado, Sebastião
armar contra o pó, contra a coragem dos dias, Nunes, Lucia Castello Branco e Bartolomeu

13 Cf. Constância Lima Duarte e 15 Cf. Fabrício Marques, “A crônica 19 Cf. Eduardo Assis Duarte, “Falas do
Maria do Rosário A. Pereira, em mineira”. negro na literatura de Minas”.
“Escritoras mineiras presentes!”
16 Cf. Ivete Lara Walty, “Minas Gerais:
14 Cf. Ângelo Oswaldo de Araújo San- territórios e margens da literatura”.
tos, “Os grupos literários e a era do
Suplemento”, Eliana da Conceição 17 Cf. Maria Inês de Almeida, “Canto-
Tolentino, “A Geração Suplemento res de leitura”.
e o conto em Minas Gerais” e Aude-
maro Taranto Goulart, “No creo en 18 Cf. Aline Arruda, “A escrivivência de
brujas, pero que las hay, las hay”. Conceição Evaristo”.

17
Campos de Queirós. Segundo este último, num poeta como Murilo Mendes, o qual

INTRODUÇÃO * LITERATURA MINEIRA: TREZENTOS ANOS   JACYNTHO LINS BRANDÃO


mais que assumir qualquer papel delegado ​ declara ser assim “porque dentro de mim
—​ por exemplo, o de servir, sobretudo na es- discutem um mineiro, um grego, um hebreu,
cola, para o ensino de língua ou para inculcar um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um
bons princípios ​—​ a literatura infanto-juvenil socialista amador”.23
deve permitir a seu jovem leitor a experiên- É entretanto enquanto “sistema” que uma
cia de liberdade: “Realidade e fantasia se literatura se conforma ​—​ para usar o termo de
equivaliam ao perceber que o mundo ganha Antonio Candido ​—, o que implica em produ-
mais dimensão com a força da fantasia. Todo ção, difusão e recepção das obras ​—​ ou seja,
real que admiramos é uma fantasia que em autores, editores e leitores ​—, mas, mais
ganhou corpo. Marcamos nossa presença no que isso, eu diria que ela se afirma enquanto
mundo se acrescentamos a ele o que nos é diálogo em todos esses níveis, o qual termina
particular”.20 por constituir uma autêntica rede que se con-
Se essa pluralidade de vozes pode ser funde com a própria rede da cultura. A forma
considerada uma marca da literatura mineira como, no mais difundido dos gêneros moder-
contemporânea, não se poderia dizer que nos, os romancistas mineiros se sucedem em
constitua algo de alienígeno, embora seja gerações que cultivam relações sincrônicas
novo, pois a diversidade sempre esteve, em e diacrônicas, é suficientemente expressiva
formas variadas, nela presente. Os próprios nesse aspecto, desde Bernardo Guimarães24
movimentos de época aqui nunca foram com- até a contemporaneidade, uma longa relação
pactos, admitindo variações, como aconteceu de autores que inclui, dentre outros, Aníbal
com o Modernismo que, em Minas, ficou entre Machado, Eduardo Frieiro, Fernando Sabino,
“o ambiente barroco e interiorano” das velhas Mário Palmério, Darcy Ribeiro, Benito Barreto,
cidades e “o traçado geométrico e moderno” Autran Dourado, Rui Mourão, Jaime Prado
de Belo Horizonte, motivando “a formação de Gouvêa, Sérgio Sant’Anna, Ivan Angelo, Ro-
um tipo de modernidade que se distancia- berto Drummond, Luiz Vilela, Oswaldo França
va das outras”, ou seja, “entre o arcaico e o Júnior, Silviano Santiago, Luiz Fernandes de
novo, o império e a república, instaurava-se Assis,25 mais Maria José de Queiroz,26 Carlos
a constatação de ser o moderno dotado de na- Herculano Lopes,27 Conceição Evaristo,28
tureza heterogênea e plural”.21 Essa moder- além da tríade Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso
nidade sui generis ​—​ de que Belo Horizonte é e Guimarães Rosa.29
emblema de muitos sentidos ​—​ expressa-se A referência aos três últimos permite
tanto nos prosadores ​—​ cronistas, contistas, marcar mais uma característica dos tra-
romancistas e memorialistas ​—​ quanto nos balhos que aqui se oferecem ao leitor, os
poetas, mesmo naqueles mais intimistas, quais também apostam no diálogo. É que
como Henriqueta Lisboa: conforme suas pala- todos eles, tratando cada qual de temas
vras, a cidade “cresce das mãos dos operários ou autores específicos, inevitável e deseja-
/ canta pelo timbre dos poetas / define-se no velmente vão tecendo a rede e construindo
porte dos guias / espairece no afã dos atletas o panorama ​—​ no sentido etimológico de
/ explode na estridência das máquinas.” 22 É visão do todo ​—​ que podemos chamar de
o mesmo sentido do múltiplo, na forma de di- literatura mineira. Mesmo com relação a
laceramento, que se encontra superlativizado autores em aparência tão diversos quanto

20 Cf. Paulo Fonseca Andrade, 24 Cf. Daniela Magalhães da Silveira, 27 Cf. Telma Borges, “Carlos
“Evadir-se com o outro”. “Bernardo Guimarães: um projeto Herculano Lopes em quatro
de nação”. tempos”.
21 Cf. Eneida Maria de Sousa, “Mo-
dernismo revisitado”. 25 Cf. João Antônio de Paula, “O 28 Cf. Aline Arruda, “A escrivivência
romance de geração na literatura de Conceição Evaristo” e Eduardo
22 Cf. Kelen Benfenati, “Henriqueta de Minas Gerais”. Assis Duarte, “Falas do negro na
Lisboa: além das páginas literatura de Minas”.
impressas”. 26 Cf. Constância Lima Duarte e
Maria do Rosário A. Pereira, em 29 Cf. Emílio Maciel, “Os bens e o
23 Cf. Wesley Thales de Almeida, “Escritoras mineiras presentes”. sangue”.
“Murilo Mendes poeta plural”.

18
Murilo Rubião,30 Lúcio Cardoso31 e Guimarães Quando nasci um anjo esbelto,
Rosa,32 o leitor sem dúvida descobrirá os fios desses que tocam trombeta, anunciou:
da teia que os tornam representantes da lite- vai carregar bandeira.
ratura de Minas. Em alguns casos, os próprios Cargo muito pesado para mulher,
ensaístas optaram por explorar justamente esta espécie ainda envergonhada;37
esses fios que demonstram de modo superla-
tivo a procedência de falar de uma literatura Cacaso, por seu lado, re-plica o “fazendeiro do
que se compraz em dobrar-se sobre si mesma, ar” no seu “fazendeiro do mar”:
explorando nas origens mineiras uma certa
dicção sui generis, como no caso do descom- Mar de mineiro é
passo existencial dos heróis de Cyro dos Anjos, inho
Lúcio Cardoso e Guimarães Rosa,33 ou do ero- mar de mineiro é
tismo como manifesto em Adélia Prado, Laís vão
Corrêa de Araújo e Maura Lopes Cançado.34 mar de mineiro é chão
De um modo exemplar essa teia manifes- mar de mineiro é margem […]
ta-se na “doce herança drummondiana”,35 ou mar de mineiro é minério
seja, no modo como a poesia de Carlos Drum- Mar de mineiro é
mond de Andrade reverbera em inúmeros gerais
outros poetas, realçando-se justamente aqui- mar de mineiro é
lo que tem de mais mineiro ​—​ e não menos campinas
universal ​—, um certo “sentimento de origem” mar de mineiro é
que leva às imagens tanto do poeta “gauche Goiás
na vida” quanto do “fazendeiro do ar”, aquele Mar de mineiro é colinas
que ainda no início da carreira confessava: mar de mineiro é
minas;38
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público. e do mesmo modo Ana Martins Marques
Itabira é apenas uma fotografia na parede. re-escreve o drummondiano “O lutador”
Mas como dói! 36 (“Lutar com palavras / é a luta mais vã. /
Enquanto lutamos / mal rompe a manhã. /
De fato, Drummond assumiu um papel fulcral São muitas, eu pouco. / Algumas, são fortes /
na literatura mineira não só enquanto faz como o javali”):
a ponte entre o seu presente e o passado
cujas raízes se fincam naquele “pioneiris- Atingidas em combate
mo da atividade mineradora” de nossos as palavras oferecem
pais (“La maison de mon père était vaste et sua outra face.
commode…”), mas principalmente também São poucas,
enquanto se projeta em vários futuros. Assim, Eu muitos.
se Adélia Prado co-responde à imagem do Da luta vã
poeta guache, proclamando resta a manhã.39

30 Cf. Audemaro Taranto Goulart, “No 34 Cf. Lúcia Castello Branco, “O 38 Cf. Raquel Beatriz Junqueira
creo en brujas, pero que las hay, erotismo das minas e o feminino Guimarães, “Poesia de Minas
las hay”. de ninguém”. sempre contemporânea”.

31 Cf. Andréa de Paula Xavier Vilela, 35 Cf. Raquel Beatriz Junqueira 39 Cf. Raquel Beatriz Junqueira
“Lúcio Cardoso: um andarilho à Guimarães, “Poesia de Minas Guimarães, “Poesia de Minas
beira abismo”. sempre contemporânea”. sempre contemporânea”.

32 Cf. Márcia Marques de Morais, 36 Cf. Mário Alex Rosa, “O sentimento


“Guimarães Rosa: vida e obra nos de origem na poesia de Carlos
alinhavos da linguagem”. Drummond de Andrade”.

33 Cf. Emílio Maciel, “Os bens e o 37 Cf. Cláudia Campos Soares, “O


sangue”. demônio da tristeza e a vontade da
alegria”.

19
Talvez, mais que a naturalidade de um conjun- revelou Daniel Camargos, a função do

INTRODUÇÃO * LITERATURA MINEIRA: TREZENTOS ANOS   JACYNTHO LINS BRANDÃO


to de escritores e de obras ​—​ o que por si só aposentado Filomeno da Silva, 82 anos,
já é amplo e expressivo ​—, o que justifica falar era cuidar da capelinha desde os 13 anos.
de literatura mineira seja a própria inscrição Três séculos de mineração e destruição.
de Minas na produção de prosadores e poetas, Começou-se com o ouro e acaba-se com
algo mais arragaido, muito entranhado e o minério.41
muitas vezes especialmente dolorido. Nas
palavras de Lúcio Cardoso, que faz parte dos De lá para cá, Minas Gerais assistiu de novo,
intelectuais mineiros auto-exilados em outras estarrecida pela reincidência, a tragédia de
partes do Brasil, Minas permanece proporções muito maiores que se abateu
sobre Brumadinho neste ano de 2019, como
esse espinho que não consigo arrancar assiste ao clima de apreensão que paira
do meu coração ​—​ fui menino em Minas, sobre tantas das antigas vilas do ouro ​—​ como
cursei Minas e os seus córregos, vi nascer Barão de Cocais, posta sob regime ininter-
gente e morrer em Minas, na época em rupto de alerta nas sirenes e nas almas. Sim,
que as coisas contam. O que amo em podemos dizer que a experiência sui generis
Minas é sua força bruta, seu poder de de Minas, para os mineiros, é carregada da
legenda, de terras lavradas pela aventura ambivalência de uma riqueza que ergue e
que, sem me destruir, incessantemente destrói coisas belas, no passado como agora ​
me alimenta. O que amo em Minas são os —​ agora talvez em proporções maiores de des-
pedaços que me faltam, e que, não poden- truição, mercê do avanço das tecnologias que
do ser recuperados, ardem no seu vazio, à permitem explorar espaços mais amplos em
espera de que eu me faça inteiro ​—​ coisa tempos cada vez mais exíguos. Já em 1976,
que só a morte fará possível.40 quando a ganância da mineração cortava par-
tes da Serra do Curral, exclamava Drummond:
⁂ “Meu Triste Horizonte e destroçado amor”.
Escolhendo uma das partes mais ad-
Sintomaticamente, no momento em que miráveis da herança que os 300 anos nos
escrevo esta apresentação para um volume legam, não podemos, os que aqui escrevemos,
que se pretende comemorativo dos 300 anos esquecer a parte da herança que esperamos
do reconhecimento oficial de nosso pedaço de seja superada ​—​ ganância, corrupção, destrui-
chão como um ente político (tendo ele então ção da natureza, espoliação das populações
já uma extensão quase correspondente à atu- indígenas, escravidão, marginalização, po-
al, a que faltava praticamente só a adição do breza, males que também já atravessam três
Triângulo Mineiro, ocorrida no século seguin- séculos. Nossa esperança é que Minas saiba
te), meu sentimento de Minas coincide com o superar-se para construir seu futuro. Menos
expresso por Letícia Malard, ao tratar do que que esperança, este volume pretende expres-
seria nosso primeiro documento de “literatura sar a profunda confiança que os mineiros
histórica” ​—​ as “cartas do primeiro governador (mesmo que confiança de mineiro tenha sem-
de Minas Gerais para o rei de Portugal” ​—​ em pre algo de desconfiada…) têm na capacidade
trabalho que fecha outro volume comemora- que, apesar dos males, Minas tem de fazer
tivo, publicado pelo BDMG Cultural em 2018: coisas boas ​—​ e no meio disso, muita literatura.
Estudos sobre Belo Horizonte e Minas Gerais
nos trinta anos do BDMG Cultural. Ela come-
ça, com propriedade, lembrando: 40 Cf. Andréa de Paula Xavier Vilela,
“Lúcio Cardoso: um andarilho à
beira abismo”.
Há exatamente 300 anos, em 1718, foi
construída a capela de São Bento, situada 41 MALARD, Letícia. Literatura
no destruído distrito de Bento Rodrigues, histórica: cartas do primeiro
governador de Minas Gerais para o
Mariana – MG. Os arqueólogos holan- rei de Portugal. In: DUTRA, Eliana
deses conseguiram tirar o barro daquele de Freitas; BOSCHI, Caio C. (Org.).
monumento histórico. A lama não levou Estudos sobre Belo Horizonte e
Minas Gerais nos trinta anos do
as fundações de pedra do edifício, mas BDMG Cultural. Belo Horizonte:
um dos lados veio abaixo. Segundo BDMG Cultural, 2018.

20
É uma confiança confiada justamente por- Acrescente-se que esse projeto de educação
que em nossa gente ​—​ num “nossa” inclusivo libertadora não se fará sem a participação
que não deixe ninguém de fora ​—, essa gente efetiva da literatura, incorporada desde os
que sabe, nos termos de Pedro Nava, o quan- primeiros anos de vida à fruição do mundo por
to Minas é “eterna, Minas perena […]. Não cada pessoa. Não como imposição ou con-
lembram? Hitler e seus fornos crematórios. cessão, mas como exercício do que Antônio
Adiantou? E nós, mineiros, somos os judeus Cândido chamou “o direito à literatura” ​—​ um
do Brasil. Imperiais, incorrigíveis, perenos”.42 direito de cidadania como tantos outros pelos
quais é preciso sem trégua lutar. Na prática
⁂ desse direito o leitor deve, necessariamente,
ter um papel ativo, que não pode ser tolhido
Este livro só se tornou possível por iniciativa por nenhum tipo de instrumentalização, pois
do então Presidente do BDMG Cultural, o é nele ​—​ no leitor ​—​ que se dá o encontro com
jornalista Rogério Faria Tavares, o qual não só o outro a que a literatura convida. Nos termos
o concebeu, como acompanhou com toda sua de Bartolomeu Campos de Queirós,
gentileza a elaboração do volume, colocando
à disposição dos colaboradores sua equipe Fundamental, ao pretender ensinar a
e todos os recursos necessários. Ao lado de leitura, é convocar o homem para tomar a
outras iniciativas importantes no campo da sua palavra. Ter a palavra é, antes de tudo,
cultura de Minas, esperamos que este último munir-se para fazer-se menos indeci-
produto de sua profícua gestão esteja à altura frável. Ler é cuidar-se, rompendo com
da importância da efeméride e, sobretudo, as grades do isolamento. Ler é evadir-se
desta parte de nossa herança que é a litera- com o outro, sem, contudo, perder-se nas
tura mineira. Cumpre agradecer também à várias faces da palavra. Ler é encantar-se
sensibilidade da nova Presidente do BDMG com as diferenças.44
Cultural, a jornalista Gabriela Moulin, que
assumiu a continuidade do projeto, levando-o
à etapa final de publicação.
O que se espera é que este livro sirva de
incentivo para outros empreendimentos, no
próprio ritmo de como, a cada esforço, se
atingem objetivos mais ambiciosos. De modo
especial, espera-se que ele possa cooperar
para o estudo e usufruto de nossa literatura,
na convicção de que a superação da parte
indesejável de nossa herança tricentenária
não se fará sem investimento decidido na
educação ​—​ no sentido não de informação,
mas de efetiva transformação. Como escre-
veu uma de nossas mais ilustres representan-
tes da crítica e da teoria da literatura, Maria
Luiza Ramos:

O conhecimento adquirido numa


educação sistemática é, sem dúvida, de
fundamental importância. Entretanto, a
existência não se circunscreve aos limites
de uma consciência individual, e é na 42 Cf. Antônio Sérgio Bueno, “A
condição caótica do presente que se abre subversão do barroco e outras
subversões nas Memórias de
espaço para a criatividade, num desafio Pedro Nava”.
ao determinismo das relações locais. De
nossa entrega ao imprevisível resultam os 43 Cf. Nabil Araújo, “Crítica literária”.

nossos atos. Chame-se a isto coragem, ou 44 Cf. Paulo Fonseca Andrade,


tenha o nome que tiver.43 “Evadir-se com o outro”.

21
22
PARTE 1 ESTUDOS
TEMÁTICOS

23
OS GRUPOS
LITERÁRIOS
E A ERA DO
SUPLEMENTO
ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS

24
A imprensa, desde os seus primórdios em Morro Velho em 1867, deixando um saboroso
Minas Gerais, ao raiar a independência livro sobre a viagem, os jornais eram “o mais
nacional, foi o campo fértil em que passaram importante alimento literário de toda Minas”.
a trabalhar os poetas, escritores e intelectuais Francelina Ibrahim Drummond, em
da então mais populosa, urbanizada e rica novas investigações, veio revelar a riqueza
província do Império. Havia a tradição dos po- das fontes historiográficas encontradas nos
etas árcades autores de livros publicados em numerosos jornais da velha capital mineira,
Lisboa e dos manuscritos setecentistas que como ainda a opulência da produção literária
circularam geralmente com versos críticos do Oitocentos. O romancista e poeta Bernar-
para ironizar sobretudo governadores como do Guimarães foi assíduo nos diários de Ouro
Lourenço de Almeida (1732) e Luís da Cunha Preto, bem como nos do Rio de Janeiro, nos
Menezes, o “Fanfarrão Minésio” das Cartas quais também se lia a poeta ouro-pretana
Chilenas (1788). Com o fim da interdição Beatriz Brandão, prima da Marília de Dirceu
colonial, todos conquistaram o direito de im- (Maria Doroteia Joaquina de Seixas). Bernar-
pressão. A literatura encontrou no jornal o es- do e o diamantinense Aureliano Lessa foram
paço amplo e generoso para a sua divulgação. colegas em São Paulo, na busca do diplo-
Os jornais multiplicaram-se, rapidamente, e ma de bacharel, e ali deixaram lembranças
em todas as cidades e vilas surgiram folhas fabulosas, ao lado do poeta romântico Álvares
nas quais se estampavam as colaborações de Azevedo. No “Correio Oficial de Minas”, em
dos letrados mais ativos. 1858, Rodrigo José Ferreira Bretas publicou
Xavier da Veiga, criador do Arquivo Público suas notas biográficas sobre Antônio Fran-
Mineiro (1895), levantou a história da impren- cisco Lisboa, o Aleijadinho. No final do século,
sa em Ouro Preto, de 1807 até 1897. Naquele José Severiano de Rezende divulgava poesia
ano inicial, talvez o anterior (1806), como e prosa em jornal de São João del Rei. Em
afirmam outros historiadores, surpreendeu a Conceição do Mato Dentro, Alphonsus de
então Vila Rica o primeiro livro impresso no Guimaraens dirigiu um jornal, no qual publi-
Brasil. Cabe lembrar que pode ter sido o se- cou grande número de poemas. Severiano e
gundo, considerado o opúsculo do brigadeiro Alphonsus conviveram em São Paulo, como
José Fernandes Pinto Alpoim, na oficina ca- estudantes de Direito e amigos de Freitas
rioca de Antônio Isidoro da Fonseca, em 1748. Valle, o legendário Jacques d’Avray da Villa
A façanha em Vila Rica deveu-se ao padre Kyrial, grande salão dos poetas simbolistas e
José Joaquim Viegas de Menezes, realizada da belle-époque paulistana.
pelo processo de calcografia, com a técnica Juiz de Fora, a primeira cidade industrial
de gravura a buril. Foi assim que ele imprimiu do Brasil, como frisou Lindolfo Gomes no seu
o “Canto Encomiástico”, poema laudatório hino, fez com que densa movimentação literá-
de Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos en- ria também ali se produzisse. A obra do poeta
dereçado ao governador da Capitania, Pedro Belmiro Braga atingiu ampla repercussão, no
Maria Xavier de Ataíde e Mello. Os primeiros início do século XX. O parnasianismo empol-
jornais vieram após a independência: “Com- gava. Foi ele um dos fundadores da Academia
pilador Mineiro” (1823), “Abelha do Itacolomi” Mineira de Letras, em 1909, fato que acen-
(1824–25) e “O Universal” (1825–42). tuou a expressão singular da cidade, enquan-
A historiadora Francelina Ibrahim Drum- to a recém-nascida Belo Horizonte ainda não
mond focalizou, em tese de mestrado na assumia as dimensões de uma capital. Havia
UFMG, em 1995, uma raridade da hemerote- muitos jornais, ligação direta com o Rio de
ca ouro-pretana do século XIX, a coleção com- Janeiro e diversos autores com livros publi-
pleta de “O Recreador Mineiro”, encontrada cados. Belmiro Braga recebeu procuração de
na Biblioteca Nacional. Trata-se da primeira Alphonsus de Guimaraens para tomar posse
revista literária de Minas Gerais, fundada e em seu nome, conforme o bilhete cujo fac-
dirigida em Ouro Preto pelo editor e livreiro -símile Henriqueta Lisboa ofereceu-me para
Bernardo Xavier Pinto de Souza. Com matéria que eu o publicasse no Suplemento Literário,
variada sobre literatura e história, o “Recre- em momento estratégico de confronto com o
ador” contemplava o mais recorrente gosto sodalício do qual acabei por fazer parte.
da época. Segundo o viajante inglês Richard A inauguração de Belo Horizonte ocorreu
Burton, que visitou Ouro Preto e a mina de em 12 de dezembro de 1897. A nova capital

25
do Estado foi edificada pelos ideais republi- direção do PRM. Foi nesse jornal conservador

OS GRUPOS LITERÁRIOS E A ERA DO SUPLEMENTO   ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS


canos de ordem e progresso, metas impos- que, em 1920, Carlos Drummond de Andrade
síveis nas íngremes ladeiras e nas encostas viu o seu primeiro texto impresso, por iniciativa
abruptas de Ouro Preto. A moderna cidade do diretor, o poeta parnasiano José Oswaldo
conquistada no limiar do século ensejou a de Araújo, que ali atuava ao lado do erudito
reunião de mineiros das diversas regiões do escritor, poeta e tradutor Arduíno Bolivar.
Estado, sobretudo de jovens estudantes que “Boletim do PRM / clarim do Modernismo”, sin-
se arregimentaram em sucessivas gerações tetizou Drummond em sua poesia-memória.
literárias, por meio das quais se narra a Se o governo tinha este veículo oficioso, para
própria história de Belo Horizonte. Antes, os modelar a opinião pública, sobre ele pairava
intelectuais mineiros se reuniam no Rio de o órgão oficial do Estado, o “Minas Gerais”,
Janeiro, atraídos pela capital do país, ou em repleto de nomeações e de “sueltos”, em que
São Paulo, matriculados na Faculdade de os literatos difundiam, nos desvãos da matéria
Direito dos Arcos de São Francisco. burocrática, seus variados escritos.
A província não lhes oferecia um ponto Ao mesmo tempo, começaram a despontar
de convergência, pelo que o século XX veio revistas criadas pelos grupos literários, tanto
dar-lhes uma sonhada metrópole mineira, na efervescente Belo Horizonte quanto, surpre-
com possibilidades até então impossíveis nas endentemente, em cidades do interior do Esta-
envelhecidas vilas do ouro. do. A geração de década de 20, sob a liderança
Ao mesmo tempo em que os grupos se de Carlos Drummond de Andrade, lançou “A
articulavam, seus integrantes passavam a Revista”, que logrou completar três edições,
registrar a própria história belo-horizontina. em 1925. Igualmente com cerca de 20 anos
O sabarense Avelino Fóscolo ambientou o de idade, os poetas Emílio Moura, Pedro Nava,
romance “A Capital” nos canteiros de obras Martins de Almeida e Abgar Renault dela
da então chamada oficialmente Cidade de participaram, com entusiasmo. Formaram
Minas. Nesse polo de aglutinação e diálogo, o grupo da Rua da Bahia, ali reunindo-se no
logo se organizaram em grupo os poetas Café Estrela e na Livraria Francisco Alves.
parnasianos, entre os quais o piauiense Da Milton Campos, Gustavo Capanema e Pedro
Costa e Silva, por um tempo residente em Aleixo frequentaram a roda.
Belo Horizonte. Deles ficaram o busto de Na cidade de Itanhandu, em maio de 1927,
Mendes de Oliveira, numa lateral da praça veio a lume, como se dizia à época, o primeiro
Afonso Arinos, e o de Azevedo Júnior, na praça número da revista “Electrica”, editada pelo
da Liberdade. Vale lembrar que a avenida poeta carioca Heitor Alves, atraído para a
Paraopeba ganhou o nome de Augusto de região pelos ares salubres da Serra da Manti-
Lima, mais por ter sido ele governador e um queira. Personalidade inventiva e extravagan-
dos fundadores da capital que por sua obra te, ele morreu de tuberculose, aos 37 anos,
poética de tom simbolista. Carlos Drummond em 1935. Trazendo na capa um texto impres-
de Andrade, João Alphonsus e Pedro Nava so no formato de uma lâmpada, à maneira
iriam guardar a memória de Belo Horizonte, de poemas do francês Guillaume Apollinaire,
assim como em seguida o fizeram Cyro dos a “revista moderna e ilustrada do Sul de
Anjos, com seu “Amanuense Belmiro”, e o Minas” escandalizou a cidade e assinalou um
quarteto Otto Lara Resende, Fernando Sabi- marco pioneiro na história das publicações do
no, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, gênero no interior mineiro, antecipando-se à
vindo, na sequência, Rui Mourão, Silviano proeza dos poetas da Zona da Mata.
Santiago, Ivan Angelo, Oswaldo França Em Cataguases, um grupo de jovens publi-
Júnior, Roberto Drummond, Ricardo Aleixo e cou a revista “Verde”, em 1928 e 29. Rosário
Fabrício Marques. Fusco, Francisco Inácio Peixoto, Guilhermino
A década de 1920 foi aberta com a eclosão César e Enrique de Resende receberam o
do modernismo e a formação do grupo da rua apoio e o aplauso de Mário e Oswald, que
da Bahia. A jovem capital havia provocado o escreveram conjuntamente um poema em
aparecimento de muitos jornais. O principal “homenagem aos homens que agem”. E
deles, “Diário de Minas”, teve a chancela avisaram que os Andrades, Tarsila, Brecheret
oficial do Partido Republicano Mineiro, sob o e Villa-Lobos, “todos nós / somos rapazes /
atento controle da “Tarasca”, apelido dado à muito capazes / de ir ver de / Forde verde / os

26
ases / de Cataguases”. O poeta suíço-francês Dourado e Wilson Figueiredo envolveram-se
Blaise Cendrars enviou versos especialmente no projeto clandestino. Ainda na década de
dedicados “aux jeunes gens de Catacazes”. 40, o caderno literário da “Folha de Minas”
Um dos mais interessantes membros do gru- reviveu a importância de que se revestira o
po, pela qualidade de sua obra inovadora, foi o “Diário de Minas” vinte anos antes, e lançou
poeta Ascânio Lopes Quatorzevoltas. Depois novos autores, acolhendo as reverberações
de internação em sanatório de Belo Horizonte, das novas letras mineiras. De igual maneira,
ele morreu da tuberculose em Cataguases, a “Folha de Minas” dependia crucialmente do
aos 22 anos, em maio de 1929, o que foi patrocínio do Palácio da Liberdade e era por
determinante para o fim da aventura “Verde”. ele monitorada. Murilo Rubião, Ildeu Brandão,
O mais intenso e polêmico foi Rosário Fusco. Fernando Correia Dias, Jacques do Prado
Humberto Mauro, naquele tempo, filmava Brandão e Edmur Fonseca passaram por
pioneiramente em Cataguases, mas cinema e sua redação.
literatura não falaram então a mesma língua. A arquitetura moderna de Oscar Niemeyer
Francisco Inácio Peixoto, fiel do espírito na Pampulha (1941), a exposição modernis-
modernista, encomendou a Oscar Niemeyer ta da galeria do edifício Mariana (avenida
o projeto de sua residência, em 1940, reche- Afonso Pena na esquina de rua São Paulo)
ando-a com móveis de Joaquim Tenreiro e e a abertura de escola de arte de Alberto da
obras de Portinari, Guignard e outros artistas Veiga Guignard (1944) aqueceram o deba-
importantes no quadro da “arte moderna”. te e a controvérsia no ambiente cultural de
Curiosamente, houve ainda uma outra Belo Horizonte. Sempre houve descompasso
Verde e mais um Forde. Delso Renault, no livro entre a notável produção literária moder-
de memórias “Chão e Alma de Minas”, regis- nista e as acanhadas expressões nas artes
tra que, pela mesma época, seu irmão, o poe- plástico-visuais. Talvez o melhor do mo-
ta Abgar Renault, publicou em Belo Horizonte dernismo mineiro em termos de arte tenha
na revista “Cidade Verde”, de curta duração. E sido criado pelo desenhista Pedro Nava, à
cita os versos: “Meu Forde fordeja dentro da vista das ilustrações feitas num exemplar de
manhã / e sobe a rua velha do meu bairro, / “Macunaíma” e as impressas no “Roteiro Lírico
arquejando, bufando, fumando gasolina”. de Ouro Preto”, com texto de Afonso Arinos.
A história dessas revistas foi levantada Somente em 1946 foram surgir as quatro
e estudada, de modo notável, pelo escritor edições de uma nova revista literária, “Edi-
e jornalista Humberto Werneck, no livro “O fício”, sob a liderança do romancista Autran
Desafio da Rapaziada”. No correr de meio sé- Dourado e do historiador Francisco Iglésias,
culo, da década de 20 aos anos 70, Werneck com atuação direta de Sabato Magaldi e
narrou a trajetórias dos grupos literários e Wilson Figueiredo. O título saiu de um poema
suas revistas, até chegar ao Suplemento de Drummond. Em 1957, o primeiro núme-
Literário, criado em 1966, no qual atuou, sob ro de “Tendência” enfeixou textos de Fábio
a direção de Murilo Rubião. No final dos anos Lucas, Rui Mourão e Affonso Ávila, bem como
20, “Leite Criôlo” foi uma experiência tenta- de Fritz Teixeira de Sales e Antonio Candido.
da como suplemento do jornal “Estado de Seguiram-se apenas mais três edições.
Minas”. Em algumas edições do ano de 1929, “Tendência” teve uma linha marcadamente
Guilhermino César, Achilles Vivacqua e João nacionalista, e dela participaram também
Dornas Filho mamaram o “Leite Criôlo”, pre- a poeta Laís Corrêa de Araújo e a ensaísta
tendendo “combater o romantismo paulista Maria Luiza Ramos. Affonso Ávila havia lança-
com o romantismo bantu”, em contraponto da do a revista “Vocação”, em 1951. Os jornalis-
antropofagia do poeta Oswald de Andrade e tas Carlos Castello Branco, vindo do Piauí, e
da pintora Tarsila Amaral. Rubem Braga e Wilson Figueiredo, capixabas,
A revolução de 1930 e o processo político irromperam como expoentes por entre os
que se desenvolveu até 1945, o “curto período” grupos mineiros.
submetido à regência ditatorial de Getúlio Simultaneamente, “O Diário”, jornal ligado
Vargas, instalaram um hiato. Exceção para o à Arquidiocese de Belo Horizonte, cujo titular
jornal “Liberdade”, aparecido em 1943, ano era o conservador Dom Antônio dos Santos
do explosivo “Manifesto dos Mineiros”. Hélio Cabral, tornou-se um ponto de apoio para
Pellegrino, Simão da Cunha Pereira, Autran os novos escritores, graças à proteção e ao

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estímulo a eles conferidos pelo jornalista e es- Suprimento Literato. Era o nome da má-

OS GRUPOS LITERÁRIOS E A ERA DO SUPLEMENTO   ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS


critor João Etienne Filho. E o jornal “Binômio”, quina do mundo, que o poeta Márcio Sampaio
um precursor do “Pasquim”, do Rio de Janeiro, instalou, no meio da redação do Suplemento
instigou Belo Horizonte de fevereiro de 1952 Literário do “Minas Gerais”, sobre uma velha
até 1964, com a participação de notáveis Remington, no horário de almoço, lá pelo
jornalistas e escritores convidados por José ano de 1971. Que ração era aquela? De ratio
Maria Rabelo e Euro Arantes. não tinha nada, até porque funcionários da
“Complemento” reuniu trabalhos de Imprensa Oficial consideravam uma irracio-
Silviano Santiago e Ivan Angelo. “Ptyx” contou nalidade tudo que saísse da tribo mantida por
com a participação de Márcio Sampaio. Murilo Rubião na antiga sala dos redatores
“Vereda”, “Texto”, “Pró-Textos” e “Porta”, cujo do “Minas”. Mas, em termos alimentares, foi
único número acolheu um conto de Sérgio um novo banquete antropofágico, à moda de
Sant’Anna, foram revistas lançadas e encerra- Oswald de Andrade, justificando a sentença
das naquela fase de incertezas e angústias do explorador Richard Burton, na sua aventu-
diante do quadro político do País. A tradição ra oitocentista pelas montanhas do ouro.
literária do interior também se manteve dinâ- O futuro prócer do Senado, Milton
mica. Nas cidades de Pirapora, onde atuou Campos, ao saudar Carlos Drummond de
José Arimateia de Carvalho; Oliveira, com Andrade pelo aparecimento do primeiro livro,
Márcio Almeida; Cataguases, sob o estímulo “Alguma Poesia”, em 1930, em pleno salão
de Joaquim Branco e Ronaldo Werneck; e dourado do Automóvel Clube, disse que nada
Divinópolis, com Osvaldo André de Melo, re- seria melhor, em matéria de antropofagia,
vistas de vanguarda tiveram breve existência. que a suã de um senador. Cerca de quaren-
A revista “Estória” nasceu em 1965, já sob ta anos depois, os jovens do Suplemento
o regime militar, e era iluminada pela presen- Literário queriam canibalizar a literatura, roer
ça de Luiz Vilela, que contava 22 anos. De- as costelas dos acadêmicos e dos generais,
marcou um dos momentos mais importantes implodir a mesmice e reinventar o mundo pela
do conto mineiro e brasileiro. Luís Gonzaga poesia nossa de cada dia.
Vieira, Sérgio Danilo, José Renato Pimentel e O Suplemento Literário descende dos
Medeiros, Fernando Rios e Wanda Figueiredo “sueltos” estampados no “Minas Gerais” de
acompanharam Vilela na criação da revista. antigamente, nos quais se revelavam jo-
Logo vieram Moacyr Laterza, José Márcio vens escritores e poetas. Drummond, ainda
Penido, Duílio Gomes, Josadac Matos, Glória moço, trabalhou na redação do diário oficial,
Vilhena, Terezinha Azerêdo e Manoel Lobato. entreouvindo “a doce música mecânica” das
E, ainda, Humberto Werneck, Lucienne oficinas, e se fez cúmplice dessa aliança entre
Samôr, Gilberto Mansur e Sérgio Sant’Anna. os novos e o egrégio jornal dos poderes cons-
Álvaro Apocalypse foi um dos ilustradores. tituídos do Estado. … “e eu aqui, nesta mesa
Nelson Werneck Sodré, na Revista Civilização redatora, / a proclamar que sem Minas altiva /
Brasileira, ressaltou a “matéria de qualidade” a República não acha salvação”, desabafou
e autores que, “conhecidos em Belo Horizonte, em versos de “Boitempo – esquecer para
começam a ser conhecidos no resto do lembrar” o “Redator de plantão”.
Brasil”. Fausto Cunha, no “Jornal do Brasil”, Foi no governo Israel Pinheiro que se criou
observou que, a partir da revista, “se confi- o caderno semanal dedicado inteiramente às
gura uma nova geração literária em Minas, a letras e as artes, comprometido, porém, com
que neste estudo chamaremos novíssima”. a inovação e as diversas formas de experi-
“‘Estória’, agora em edição que abrangerá mentalismo. Saído da eleição derradeira de 3
todo o País pelos seus cinco mil exemplares, de outubro de 1965 e empossado, sob graves
continua, com mais essa arrancada, a manter tensões, em 31 de janeiro de 1966, o governa-
a posição de vanguarda na literatura de Minas dor autorizou o escritor Murilo Eugênio Rubião
e do Brasil”, escrevi, em abril de 1968, na a fazer o Suplemento Literário. Iria circular
coluna de livros que assinava, no “Diário de aos sábados, no ventre da baleia burocrática,
Minas”. O numeroso grupo que se formou, em de modo a alcançar, pela capilaridade do
função da revista, logo ocupou o espaço que jornal do governo, as escolas, os cartórios, as
lhe veio oferecer, a partir de setembro de 1966, delegacias, os fóruns e demais repartições
o Suplemento Literário do “Minas Gerais”. espalhadas por todo o território mineiro. Pelo

28
menos um Suplemento em cada município, Nava, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa,
como as namoradas do poema de Drummond. Bueno de Rivera, Eduardo Frieiro e Francisco
Era também vendido avulso, em algumas ban- Iglésias se fizeram presentes.
cas e livrarias de Belo Horizonte, além de ser Enquanto o Suplemento era aplaudido
enviado a uma extensa lista de pessoas e enti- Brasil afora, sobretudo no Rio de Janeiro e em
dades, do Brasil e do exterior, ligadas à cultura. São Paulo, cercava-se da ojeriza dos meios
Murilo Rubião desde cedo atuou no conservadores mineiros, indignava sonetis-
campo literário. Amigo dos “vintanistas” Otto tas e verborrágicos letrados, escandalizava
Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Hélio desavisados servidores públicos e intrigava os
Pellegrino e Fernando Sabino, com eles rece- órgãos da repressão. Murilo Rubião procurava,
beu Mário de Andrade em Belo Horizonte, em por todos os meios, proteger o Suplemento
1942, e participou intensamente das movi- dos detratores sequiosos de vê-lo repleto de
mentações dos escritores brasileiros em favor parlapatices e anacronismos. Paulo Campos
da redemocratização do País. Governador de Guimarães, sobrinho do ministro Francisco
Minas e presidente da República, Juscelino Campos, udenista da Arena e orador de recur-
Kubitschek contou com sua colaboração e o sos e efeitos ainda naquele tempo admirados,
enviou para Madri, onde, durante três anos, era um esteio firme. Diretor da Imprensa
trabalhou na representação do Instituto Oficial, gostava de acalmar os ânimos, com
Brasileiro do Café. Os governadores mineiros, seu vozeirão: “Estou trabalhando feito um
como Benedito Valadares, Milton Campos, leão para manter o Suplemento!”. Mas outros
Kubitschek e Bias Fortes recrutaram jovens trabalhavam como lobos.
intelectuais para atuarem em seu gabine- Que história é essa, no jornal do gover-
te. Cyro dos Anjos acompanhou Valadares, no, desse governo que é contra a Revolução
José Bento Teixeira de Salles auxiliou Milton de 1964? Foi essa indagação que levou o
Campos, Alphonsus de Guimaraens Filho, comandante da ID/4, maior autoridade do
Fábio Lucas e Rui Mourão estiveram ao lado Exército no Estado, a exigir a saída do escritor
de Kubitschek, Affonso Ávila e Laís Corrêa de Rui Mourão da editoria do Suplemento, sob o
Araújo integraram a equipe de Bias Fortes. argumento de que fora ele um dos signatários
Israel Pinheiro conhecia Rubião dos gover- do subversivo protesto contra a invasão da
nos pessedistas e imediatamente o convocou. Universidade de Brasília, na qual lecionava,
A iniciativa de se criar o caderno literário de em 1968. Na verdade, tudo no semanário se-
pronto atingiu estupenda repercussão, para ria pura subversão. Sem se distanciar, Rubião
o bem e para o mal. Colaborações vieram de havia deixado a editoria, convocado pelo go-
todo o País e do exterior, seguidas de mani- vernador Israel Pinheiro para várias missões,
festações entusiásticas de leitores eminentes. que o caracterizaram como um secretário
Produções inéditas chegavam de Belém do de Cultura “avant la lettre”. Coube-lhe criar
Pará, onde viviam o ensaísta Benedito Nunes a Fundação Escola Guignard e a Fundação
e o poeta Max Martins; de Porto Alegre, no Rio de Arte de Ouro Preto, FAOP, bem como a
Grande do Sul, enviadas por Caio Fernando Galeria Mineiriana do Palácio da Liberdade,
Abreu e Tânia Failace, ou por Guilhermino embrião do Museu Mineiro, além de ter reor-
Cesar, o poeta do grupo “Verde” transferido ganizado a Rádio Inconfidência.
para o Sul. Provinham de São Paulo, remeti- Com a saída de Rui Mourão, o contista
das pelos irmãos poetas Haroldo e Augusto Ildeu Brandão, antigo redator do Palácio da
de Campos; da Bahia, da parte de Antônio Liberdade, assumiu o cargo, avisando que não
Risério e Wally Salomão; de Brasília, por pretendia ali permanecer por muito tempo.
Oswaldino Marques; de Goiás, por J. J. Veiga Murilo Rubião escolheu Humberto Werneck e
ou do Rio, assinadas pelo crítico de arte tentava convencê-lo, quando o jovem escritor
Roberto Pontual, ou por Silviano Santiago e recebeu o convite para integrar a equipe do
Affonso Romano de Sant’Anna, estes dois à “Jornal da Tarde” (1971), que surgia em São
frente de tantos outros mineiros radicados à Paulo como uma grande novidade na im-
beira mar. Da Europa, da África, dos Estados prensa brasileira. Cumpriu-se a sentença de
Unidos e dos países hispano-americanos. Otto Lara Resende: “Minas exporta minérios
Antonio Candido sublinhou a qualidade das e mineiros”. Chamado por Murilo ao gabinete
edições. Drummond, Murilo Mendes, Pedro de Paulo Campos, já com o beneplácito de

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Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo e Aires da Werneck; os contistas Duílio Gomes, Jaime

OS GRUPOS LITERÁRIOS E A ERA DO SUPLEMENTO   ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS


Mata Machado Filho, entre surpreso e entu- Prado Gouvêa, Sérgio Tross, Carlos Roberto
siasmado, aceitei a tarefa, que cumpri, com Pellegrino, Luís Márcio Vianna, Lucienne
prazer, do início de 1971 ao meado de 73. Samôr, Lázaro Barreto e Mário Garcia de
Paulo Campos Guimarães, que tam- Paiva; o jornalista e letrista Fernando Brant
bém era genro do escritor e desembargador frequentaram a redação. Seguiram-se as ge-
Mário Matos, da Academia Mineira de Letras, rações que trouxeram os poetas Carlos Ávila,
chegou a criar uma seção especial no “Minas que foi editor do caderno, Guilherme Mansur,
Gerais”, a fim de abrigar a colaboração de Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo,
autores que não encontravam espaço no Fabrício Marques, Lucas Guimaraens, Ana
Suplemento Literário. A absorção de tais Elisa Ribeiro e Ana Martins Marques.
textos, marcados por linguagem e tema ana- Não apenas os jovens autores foram
crônicos, aliviava, de certo modo, a pressão vistos no Suplemento. Caracterizou-se ali
sobre o caderno e seus jovens vanguardistas. uma sala de visitas dos intelectuais de pas-
Comentário de Abgar Renault sobre excessos sagem por Belo Horizonte. Clarice Lispector,
do Suplemento Literário, por volta de 1973, o linguista Roman Jakobson, a poeta portu-
soou ao governador Rondon Pacheco como guesa Ana Hatherly, os atores Julian Beck e
motivo de preocupação, mas a intervenção Judith Malina, do “Living Theatre”, logo em
de Paulo Campos Guimarães e do secretário seguida presos e expulsos do País (1971),
de Governo, Abílio Machado Filho, evitou o espanhol Ángel Crespo, o editor italiano
qualquer medida restritiva. Ao mesmo tempo, Franco Maria Ricci e Nélida Piñon, entre
Henriqueta Lisboa, primeira mulher a ingres- muitos, foram recebidos na Sala “Carlos
sar na Academia Mineira de Letras, cuidava Drummond de Andrade”, denominação que
de proteger a publicação junto ao grupo de evocava o fato de o poeta ali ter trabalhado na
acadêmicos conservadores que pedia o fim década de 1930. Na redação seriam também
do caderno. encontrados autores como Eduardo Frieiro,
À volta do Suplemento, agrupou-se uma Emílio Moura, Manoel Lobato, Maria José de
das últimas gerações literárias articuladas Queiroz, Henriqueta Lisboa, Laís Corrêa de
em Belo Horizonte. A safra consagrou Luiz Araújo, Aires da Mata Machado Filho, José
Vilela e gravitou ao redor de Sérgio Sant’Anna. Nava, Fábio Lucas e Francisco Iglésias. O
Como acontece em todo grupo literário, há poeta Murilo Mendes fez questão de visitar a
nomes que naturalmente se impõem. Vilela redação do Suplemento, em sua passagem
impressionava pela tensão perturbadora por Belo Horizonte, em 1972.
de suas narrativas, enquanto Sant’Anna se No governo Aureliano Chaves (1975),
sobrepunha pelo corte inovador e o carisma sendo Wander Piroli o editor, houve o em-
de uma contemporaneidade cosmopolita. A pastelamento de uma edição, nas oficinas
presença diária de escritores e artistas na da Imprensa Oficial. Alguns funcionários,
redação era facilitada por sua localização no incentivados por um superior que detestava
centro de Belo Horizonte, entre o “Lua Nova” Murilo Rubião e o caderno, destruíram todo o
e o “Lucas”, no edifício Maletta, e o “Saloon”, material já pronto para a impressão. Indigna-
na rua Rio de Janeiro. Bares e livrarias são do, Piroli demitiu-se e o Suplemento entrou
pontos fundamentais para unir uma geração, em crise. Não foi extinto, graças ao empenho
como o “Café Estrela” e a “Francisco Alves” da dos poucos lúcidos que o defenderam, na di-
rua da Bahia para os modernistas dos anos fícil circunstância, mas passou a sofrer incon-
20. O prédio da “Alves”, onde Drummond e os tornáveis constrangimentos. Tempos depois,
companheiros iam aguardar a abertura dos um grupo de escritores levou um manifesto
caixotes de livros chegados do Rio de Janeiro, ao governador Francelino Pereira (1982),
ainda sobrevive na velha rua, ostentando na pedindo a revitalização do Suplemento, sem
platibanda o nome do livreiro que o legou em as amarras que aqueles tempos de abertura
herança à Academia Brasileira de Letras. política pareciam pretender atenuar. Ao re-
Os poetas Adão Ventura, Vladimir Diniz, cebê-los no Palácio das Mangabeiras e ouvir
Henry Correia de Araújo, Sebastião Nunes, o porta-voz Roberto Drummond, Francelino
Paulinho Assunção, Libério Neves e João Pereira praticou um gesto de distensão, na
Paulo Gonçalves; o jornalista Humberto linha da abertura adotada pelo Planalto.

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Somente no ano seguinte houve a mu- alemão-latino-americano Francisco Curt
dança esperada, com a posse do governador Lange e o historiador Francisco Iglésias
eleito. Em 1983, ao entregar a direção da viabilizaram essa vertente. Em suas páginas,
Imprensa Oficial a Murilo Rubião, o governo inúmeros criadores estrearam, tanto em
Tancredo Neves ensejou o almejado renas- literatura como em arte, já que sempre foram
cimento. Rubião convidou o escritor Duílio convidados artistas novos ou consagrados
Gomes para dirigir o caderno, e de toda parte para a ilustração das matérias ou apresen-
surgiram manifestações de apoio à volta do tação de trabalhos. Antonio Candido, em
Suplemento. Pouco tempo passado, novas conversa com Francisco Iglésias, chamou a
crises irromperam, pelo que, no segundo atenção para um poema de um jovem autor
governo Hélio Garcia, se fabricou a fórmula de Cruzília, Adolfo Maurício Pereira, que
da sobrevivência. A socióloga Celina Albano, leu, com interesse, no Suplemento Literário.
secretária de Cultura, construiu uma saída es- Murilo Mendes enviava inéditos de Roma, por
tratégica (1992). Não seria mais o Suplemen- intermédio de Laís Corrêa de Araújo. A Acade-
to Literário do “Minas Gerais”, mas de Minas mia Brasileira de Letras concedeu a Medalha
Gerais, uma publicação mensal da Secretaria Machado de Assis à Imprensa Oficial de
de Estado de Cultura, cuja redação instalou- Minas Gerais, em 1972, em homenagem ao
-se numa dependência do bloco administrati- Suplemento e com o desejo de salvaguardá-lo
vo do Museu Mineiro, até ser levada, em 2016, das ameaças e pressões ao seu redor.
para a sede da Biblioteca Pública Estadual de Teatro, cinema, artes plásticas e fotogra-
Minas Gerais, na Praça da Liberdade. fia igualmente mereceram a atenção dos
Nesse ano, o Suplemento completou meio editores. O crítico de arte, poeta e desenhista
século. O momento registrava a extinção ou Márcio Sampaio ali acompanhou a movimen-
drástica redução dos cadernos de cultura tação das artes plástico-visuais no Estado e
na imprensa brasileira, não os segundos no País, o que cativou especialmente a aten-
cadernos diariamente dedicados a artes e di- ção do setor. Os principais artistas plásticos e
versões, mas aqueles hebdomadários (teriam fotógrafos mineiros ilustraram o Suplemento.
virado dromedários) inteiramente consagra- Amilcar de Castro, Sara Ávila, Maria Helena
dos ao ensaísmo crítico e à apresentação Andrés, Álvaro Apocalypse, Tereza Veloso,
de novos autores e ideias. Raros veículos Madu Vivacqua Martins, Eliana Rangel, José
culturais têm uma vida tão longa e sustentam Alberto Nemer, Liliane Dardot, Carlos Wolney,
a trajetória que o Suplemento cumpriu, de Marcos Benjamim e Maurício Andrés tiveram
maneira esplêndida, na vida cultural do Brasil. trabalhos publicados. Eduardo de Paula,
Percorrer suas milhares de páginas é desfru- Lucas Raposo, Sebastião Nunes e Guilherme
tar, invariavelmente, do prazer da leitura. O Mansur contribuíram na concepção gráfi-
“Suprimento” farta os seus leitores do bom e ca do caderno.
do melhor. Escritores brasileiros e estrangei- No século XXI, o poeta e ensaísta Anelito
ros o prestigiaram, conscientes da impor- de Oliveira e o contista Jaime Prado Gouvêa
tância da realização. “Foi no Suplemento responsabilizaram-se pela direção do Suple-
que eu me li pela primeira vez em português” ​ mento, no sentido da abertura permanente
—​  disse-me Júlio Cortázar, acrescentando que para os novos de Minas Gerais e do País,
a sua estreia no idioma aconteceu por meio mantendo sintonizadas as antenas com a atu-
de um livro de Coelho Neto, na escola secun- alidade internacional. Jaime Prado Gouvêa
dária, em Buenos Aires. Os autores do “boom” passou a contar com a colaboração funda-
hispano-americano, em sua maioria, foram mental de João Pombo Barile na programa-
pela primeira vez apresentados ao público ção editorial.
brasileiro pelo Suplemento Literário. Murilo Rubião tinha cinquenta anos quan-
Uma das contribuições mais expressi- do criou o Suplemento. Essa idade rejuvenes-
vas do Suplemento foi quanto ao estudo do ceu, em relação ao que então significava, pois
patrimônio cultural de Minas Gerais, pondo a longevidade se estende e altera os tabus
em relevo as diferentes manifestações do etários. Mas um século é um século, e um
barroco e do rococó nos séculos XVIII e XIX. cinquentenário, conquista que também pede
Affonso Ávila, que organizou alguns núme- celebração. Há uma aura de encantamento
ros especiais sobre o tema, o musicólogo em torno dos cem anos. Em 2016, várias

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homenagens assinalaram os cem anos de de toda criação artística. “Os gênios nacio-

OS GRUPOS LITERÁRIOS E A ERA DO SUPLEMENTO   ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS


Murilo Rubião e meio século do Suplemento. nais não são de geração espontânea. Eles
Uma edição especial contou a história do nascem porque um amontoado de sacrifícios
caderno, e uma outra lembrou a trajetória do humanos anteriores lhes preparou a altitude
fantástico escritor reescritor, gestor cultural necessária de onde podem descortinar e
pioneiro, personalidade que enriqueceu a revelar uma nação. Que me importa que a
literatura e inventou o Suplemento, que nele minha obra não fique? É uma vaidade idiota
concentra a sua síntese e o seu significado. pensar em ficar, principalmente quando não
Não faltou a imagem do escritor. Criada se sente dentro do corpo aquela fatalidade
pelo artista Leo Santana, a estátua de Murilo, inelutável que move a mão dos gênios. O
tendo à mão um exemplar do Suplemento importante não é ficar, é viver”. Gosto de
Literário, caminha em direção à entrada pensar que fui chamado para fazer parte
principal da Biblioteca Pública, na Praça da tribo fundada por Murilo Rubião. É bom
da Liberdade, a significar que o criador e a pensar que faço parte de um grupo que já
publicação estão presentes para sempre na teve caras como Sérgio Sant’Anna, Humberto
cultura de Minas Gerais. Werneck, Sebastião Nunes e Angelo Oswaldo.
Me dá força pra seguir, ao lado do Jaime, aos
DOIS DEPOIMENTOS trancos e barrancos, tentando fazer deste
país uma civilização”.
Jaime Prado Gouvêa: “No segundo semestre
de 1969, o poeta João Paulo Gonçalves se
demitiu do Suplemento Literário do “Minas
Gerais” ​—​ uma jovem publicação de pouco
mais de três anos de idade ​—​ com a desculpa
de que precisava arrumar um emprego mais
bem remunerado para se casar. Abriu-se,
assim, uma vaga na redação. Meu amigo
Humberto Werneck, um dos redatores do
jornal, sugeriu meu nome a Murilo Rubião,
fundador e secretário do SLMG. Já faz,
portanto, quase meio século que entrei pela
primeira vez (entraria e sairia de lá umas
seis ou sete vezes, dependendo dos bons ou
maus ventos, sendo a última para ocupar a
direção, onde estou há exatos 10 anos). Tendo
estreado no SLMG em plena ditadura, pude
assistir por dentro as agressões que a publi-
cação sofreu esse tempo todo, mas também
o trabalho de divulgação e de formação dos
jovens que, sem esse apoio físico, talvez não
tivessem como prosseguir na carreira literária.
A resiliência quase heroica do SLMG ainda
mantém vivo o jornal, mesmo prejudicado
pela desativação da Imprensa Oficial, o que o
lançou num emaranhado burocrático que tem
afetado sua impressão e distribuição. Mas
não seu prestígio no cenário cultural. Sob a
proteção da estátua de Murilo na entrada da
Biblioteca Pública, o Suplemento vive”.
João Pombo Barile: “Sempre que penso
no meu trabalho com o SLMG, lembro de
uma carta que Mário de Andrade escreveu
a Drummond. Nela, o autor de “Macunaíma”
chama a atenção para o sentido coletivo

32
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo: esquecer para lembrar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Uma raridade bibliográfica: o canto
encomiástico. Edição fac-similar. Rio de Janeiro/São Paulo: Biblioteca Nacional/
Gráfica Brasileira, 1986.
RENAULT, Delso. Chão e alma de Minas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
SUPLEMENTO LITERÁRIO. Edições especiais: “Meio século de Estória”, novembro de
2015; “SLMG 50 Anos”, outubro de 2016.
WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada. São Paulo: IMS/Companhia das
Letras, 1992.

33
ESCRITORAS
MINEIRAS
PRESENTE!
ANOTAÇÕES
CRÍTICAS
CONSTÂNCIA LIMA DUARTE “Versículo 100”
MARIA DO ROSÁRIO A. PEREIRA
em verdade, em verdade vos digo:
nem todo aquele que sobe ao Templo
e bate no peito, dizendo
Poesia, Poesia,
entrará no Reino da
Mídia1

1 ARAÚJO, Laís Corrêa de. Inventário


– 1951–2002. Belo Horizonte:
Editora UFMG, p. 141.

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Desenhar um percurso da literatura de autoria DUAS PIONEIRAS, QUASE
feminina nas Minas Gerais é tarefa das mais DESCONHECIDAS
desafiantes. Isso porque, ainda que em um
primeiro momento se possa pensar que o Bárbara Heliodora, nascida em São João
número de escritoras que se dedicaram às le- del-Rei, em 1759, ilustre descendente de
tras, nos séculos XVIII e XIX, era ínfimo ​—​ uma Amador Bueno, o respeitado administrador
vez que são raros os nomes que aparecem da Capitania de São Vicente, é considerada
nos manuais de literatura consagrados ​—, a primeira poetisa brasileira. Num tempo
pesquisas de cunho historiográfico-literário em que as mulheres, inclusive as da elite,
apontam para o contrário: um número expres- eram majoritariamente analfabetas, Bárbara
sivo de autoras mineiras publicou no passado, Heliodora recebeu esmerada educação e se
apesar do preconceito dominante, e os textos destacou por sua ampla cultura. Ainda assim,
que sobreviveram ao tempo demonstram sua obra desapareceu no tempo, por descré-
o quão profícua e multifacetada foi essa dito ou esquecimento dos que ajudaram a
literatura. construir o cânone.
Ocorre que as mulheres que ousaram Mesmo os três únicos poemas que ainda
exibir o brilho de seu intelecto e romperam são hoje atribuídos a ela ​—​ as sextilhas “Con-
os limites impostos pelo poder patriarcal, selhos a meus filhos”; o soneto “Amada filha”;
publicando livros e fundando jornais em pleno e o poema “O sonho” ​—, além de demons-
século XIX, são hoje desconhecidas, e isso se trarem o quão importante foi seu trabalho,
deve ao fato de terem sido sistematicamente foram objeto de dúvida por parte de antigos
alijadas da memória canônica e do arquivo historiadores e filólogos, tal era o ineditismo
oficial. Em outras palavras, foram vítimas de de uma mulher, naquele momento, ser capaz
memoricídio, conceito que designa o proces- de também escrever poemas. Casada com o
so de opressão e negação da participação inconfidente e poeta Inácio José de Alvarenga
da mulher ao longo da História. Ao eliminar a Peixoto, consideravam mais “natural” atribuir
memória de luta e de resistência ao patriar- a ele toda produção literária produzida naque-
cado, essa mesma História impôs o silêncio e le lar, mesmo que alguns poemas tratassem
a invisibilidade a essas pioneiras, registrando declaradamente de questões femininas,
apenas a timidez e o confinamento das jovens como a maternidade.
oitocentistas ao lar, como a sugerir que as Em “Conselhos a meus filhos”, como o
mulheres brancas não tiveram vida pública título já indica, pretende apontar normas de
antes do século XX. comportamento, e lê-se na primeira estrofe:
Consideramos ​—​  portanto ​—​  imprescin-
dível contar com a presença dessas autoras Meninos, eu vou ditar
nas histórias da literatura mineira, e também As regras do bem viver;
da brasileira, uma vez que o apagamento Não basta somente ler,
de seus nomes e de seu trabalho intelectual É preciso ponderar,
nos dicionários bibliográficos e na maioria Que a lição não faz saber,
das antologias tem como consequência a Quem faz sábios é o pensar.2
ausência de estudos sobre elas e de reedições
de suas obras. Os vocábulos “ler”, “ditar” e “lição” indicam
Neste ensaio, optamos por apresentar um a postura de uma mestra diante de alunos
panorama da literatura de autoria feminina numa sala de aula, assim como “ponderar” e
em Minas Gerais e, para tanto, selecionamos “pensar” são verbos que remetem (ou suge-
algumas escritoras de ontem e de hoje, orga- rem) à necessidade imperiosa de se refletir
nizando-as a partir dos registros da poesia, sobre o momento presente. Nas estrofes
do memorialismo, da prosa de ficção e da seguintes, o eu lírico chama a atenção dos
literatura infantojuvenil. Temos consciência filhos/meninos para que desconfiem das
de que a seleção de alguns nomes implica, in-
variavelmente, a exclusão de outros, e que os
nomes que aqui comparecem não esgotam o
2 Suplemento Literário Minas Gerais;
tema, mas apontam para linhas de força que Belo Horizonte, ano IV, n. 143, 24
têm coexistido ao longo do tempo. de maio de 1969, p. 1.

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aparências e prestem atenção aos aconte- sua atuação intelectual. Era prima de Maria

ESCRITORAS MINEIRAS PRESENTE! ANOTAÇÕES CRÍTICAS   CONSTÂNCIA LIMA DUARTE, MARIA DO ROSÁRIO A. PEREIRA
cimentos ao seu redor, pois “há bichinhos Doroteia Joaquina de Seixas, a amada de
escondidos, / que só vivem de escutar”, numa Tomás Antônio Gonzaga, que ficou eternizada
evidente alusão à situação de insegurança em seus versos como Marília de Dirceu. Por
diante das delações e perseguições que ocor- ocasião de seu falecimento, Beatriz Brandão
riam devido à Inconfidência Mineira. dedicou-lhe um poema, do qual transcreve-
No caso do soneto dedicado à filha bem- mos uma estrofe:
-amada pela passagem de um aniversário, ele
também consiste num rosário de conselhos Essa beleza, que imortalizara
da mãe para que a menina não se desvie do Do mais terno amador a acorde lira;
caminho da moral e da religião cristã. Ainda Essa Marília de Dirceu querida,
assim, teve a palavra “mãe” substituída por Cessou de respirar, já não existe!
“mão”, pelos que queriam atribuir ao pai a Cerraram-se esses olhos poderosos
sua autoria: Que inspiraram tão doces pensamentos
Ao Vate delicado, e inda nas sombras
Amada filha, é já chegado o dia, Da esquálida masmorra iluminavam
Em que a luz da razão, qual tocha acesa, O coração e a mente atribulados
Vem conduzir a simples natureza: Da vítima infeliz da prepotência,
— É hoje que o teu mundo principia. Onde instruído de amorosa indústria
Tinta e pena formou de espécie nova […] 5
A mãe que te gerou, teus passos guia;
Despreza ofertas de uma vã beleza, A propósito de sua carreira como educadora,
E sacrifica as honras e a riqueza o periódico O Universal, de Ouro Preto, em
Às santas leis do Filho de Maria […] 3 janeiro de 1829, anuncia a intenção da poe-
tisa em fundar um colégio para meninas, em
O terceiro poema, “O Sonho”, em versos que fosse possível aprender, além de música,
decassílabos, contém uma patriótica exalta- piano, desenho, bordado de bastidor e demais
ção à natureza e ao nativismo, cujos versos prendas femininas, também leitura, escri-
vão antecipar a idealização do indígena que ta, noções básicas de matemática e outras
ocorreria nas décadas seguintes: línguas, como francês e italiano.
Em 7 de julho de 1830, o mesmo perió-
Oh que sonho! Oh! que sonho eu tive dico O Universal publicava a seguinte nota:
n’esta, “A 4 de maio abriu-se nesta cidade a Escola
Feliz, ditosa e sossegada sesta! Pública de meninas que está confiada à
Eu vi o Pão de Açúcar levantar-se direção da Professora D. Beatriz Francisca
E no meio das ondas transformar-se de Assis Brandão, cuja capacidade e distinto
Na figura de um índio o mais gentil, merecimento fazem esperar que o belo sexo
Representando só todo o Brasil.4 aproveitará sobremaneira as suas lição e
doutrina. Ela conta já com 14 alunas.” Se
O final de vida de Bárbara Heliodora, ocorrido
em 1819, é controverso. Alguns historiadores
afirmam que ela teria enlouquecido e que va-
gava esfarrapada pelas ruas de São Gonçalo 3 Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo
de. Florilégio da poesia brasileira
de Sapucaí. Outros negam com firmeza tal (1946). Rio de Janeiro: Academia
versão, registram sua lucidez ao exigir da Co- Brasileira de Letras, 1987.
roa a parte dos bens que lhe cabia, e afirmam
4 Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo
que ela teria vivido até o fim com certa fartura, de. Florilégio da poesia brasileira
apesar de isolada numa de suas fazendas, (1946). Rio de Janeiro: Academia
cercada pelos filhos e netos. Brasileira de Letras, 1987.

Por sua vez, Beatriz Brandão foi poetisa, 5 PEREIRA, Cláudia Gomes. Con-
educadora, musicista e tradutora de poesias testado fruto: a poesia esquecida
italianas e francesas. Nascida na freguesia de Beatriz Brandão (1779–1868).
Lisboa: CLEPUL, Faculdade de
de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, Letras da Universidade de Lisboa,
em 1779, destacou-se em seu tempo por 2011, p. 235.

36
considerarmos que a lei autorizando a mulher na sociedade patriarcal, o direito ao
abertura de escolas para meninas data de ensino secundário e ao trabalho remunerado,
1827, constatamos o quanto Beatriz Brandão e ainda incentivou e abriu espaço para as
estava antenada com as questões mais nascentes vocações literárias. Um fragmento
prementes de seu tempo, tornando-se uma do editorial que publicou em 30 de outubro de
das primeiras diretoras de escola feminina 1897 é exemplar de sua militância:
naquela região.6
Em 1832, após a corajosa decisão de se Sempre que se fala em modificar a educa-
divorciar do marido, acusando-o de sevícias e ção da mulher ou ampliar os seus meios
de se apropriar de sua herança, ela se muda de ação, aparece alguém que faça a apolo-
para o Rio de Janeiro, onde dará vazão à sua gia da mulher como rainha que deve ser…
veia poética e dramática. Ainda em 1832, pela fraqueza! Que o encanto da mulher
publica a tradução de “Cartas de Leandro e está justamente na sua ignorância, na sua
Hero”, no periódico Parnaso Brasileiro. De timidez, na sua infantilidade!
1852 a 1855, divulga inúmeros poemas nos Pensem assim ou não, entretanto,
mais importantes jornais da cidade, como queiram ou não queiram, a mulher ins-
Jornal do Comércio, Marmota Fluminense e truída, forte, capaz de velar à cabeceira
O Guanabara. de um filho enfermo, auxiliando as pers-
Ao primeiro livro, Cantos da mocidade crutações da ciência; ou de repelir com
(1856), logo se seguiram outros, como Cartas energia as chalaças de qualquer imbecil,
de Leandro e Hero (1859), Catão – Drama será a mulher do futuro, será a verda-
trágico, em três longos atos e Lágrimas do deira companheira do homem, que sabe
Brasil (1862), entre outros. Além disso, escre- participar de todos seus pensamentos e
veu poemas circunstanciais para comemorar ajudá-lo em todas as resoluções difíceis.
aniversários, casamentos ou dedicados às A posição negligente de tutelada
amigas. Predomina o estilo neoclássico, ou deixará de existir quando a mulher com-
árcade, com motivos da natureza, pastores, preender que sobre seus ombros pesam
nomes latinos, versos longos e descritivos. também as responsabilidades sociais.7
Em alguns poemas, inclusive, ela incentiva a
participação da mulher na vida literária; em Presciliana Duarte colaborou em outros peri-
outros, antecipa temas que seriam tratados ódicos e publicou vários livros, como Rumore-
mais detidamente pelo Romantismo, como o jos (1890), Sombras (1906), Páginas infantis
amor sentimental e o amor à Pátria. (1908), O livro das aves e Vertiver (1939).
Beatriz Brandão, que faleceu no Rio de Também com uma contribuição signifi-
Janeiro em 1868, deixou cerca de doze obras cativa no campo da imprensa, destaca-se a
publicadas, prova inconteste de sua profícua professora e escritora Francisca Senhorinha
atuação como escritora. da Mota Diniz, nascida em São João del-Rei
– MG, que fundou o jornal O Sexo Feminino,
IMPRENSA FEMININA ​—​  EM DEFESA em Campanha da Princesa – MG, em 1873.
DA EMANCIPAÇÃO Considerado um dos mais atuantes na defesa
das ideias feministas de sua época, o periódi-
Em 1867, em Pouso Alegre – MG, nascia co circulava por diversas cidades da região e
Presciliana Duarte de Almeida, prima da chegou a ter o surpreendente número de 800
conhecida escritora Júlia Lopes de Almeida. assinantes. No primeiro número, a editora
Sua importância para as letras femininas
reside sobretudo no fato de ter fundado, em
1897, na cidade de São Paulo, uma revista 6 Também Jacinta Carlota de Olivei-
feminista que circulou até 1900, intitulada ra Meireles e Policena Tertuliana de
A Mensageira. No editorial de seu primeiro Oliveira foram nomeadas mestras
na cidade de Ouro Preto, na mes-
número, a revista destaca o objetivo de “esta- ma época que Beatriz Brandão.
belecer entre as brasileiras uma simpatia es-
piritual, pela comunhão das mesmas ideias”. 7 A Mensageira, Revista literária
dedicada à mulher brasileira. São
Para tanto, promoveu debate em torno de Paulo, ano I, n. 2; 30 de outubro de
importantes questões, como a submissão da 1897, p. 1.

37
dirige-se aos leitores de forma incisiva e cora- que ficaram dispersos nas páginas de seus

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josa, antecipando as demandas que o jornal jornais e também em outros, a jornalista
abraçaria nos anos seguintes: publicou o romance A judia Rachel, em 1886,
com a colaboração de sua filha Albertina
Zombem muito embora os pessimistas do Diniz. Não é conhecida a data de seu nasci-
aparecimento de um novo órgão na im- mento, apenas a de falecimento ocorrido em
prensa ​—​  O Sexo Feminino; tapem os olhos 1910, no Rio de Janeiro.
os indiferentes para não verem a luz do Maria Lacerda de Moura é outro nome
progresso, que, qual pedra desprendida de destaque na literatura e na imprensa
do rochedo alcantilado, rola violentamen- feminista, agora já nas primeiras décadas do
te sem poder ser impedida em seu curso; século XX. Nascida em 1887 em Barbacena,
riam os curiosos seu riso sardônico de foi professora, jornalista, escritora, poeta e
reprovação à ideia que ora surge brilhan- conferencista. Em seus textos, defendia vee-
te no horizonte da cidade da Campanha; mentemente a educação como a única forma
agourem bem ou mal o nascimento, vida de promover mudanças sociais, sobretudo no
e morte do Sexo Feminino; persigam os que se referia à condição da mulher. É assim
retrógrados com seus ditérios de chufa e que, em 1918, publica, com grande reper-
mofa nossas conterrâneas, chamando-as cussão, Em torno da educação, conjunto de
de utopistas: O Sexo Feminino aparece, há crônicas e conferências proferidas em Barba-
de lutar até morrer: morrerá talvez, mas cena, cidade na qual passou parte de sua vida.
sua morte será gloriosa e a posteridade Colaborou ativamente na imprensa
julgará o perseguidor e o perseguido. anarquista, em periódicos como A Plebe, A
O século XIX, século das luzes, não se Lanterna e A Patrulha Operária, e em 1923
findará sem que os homens se convençam lançou a revista mensal Renascença, para
de que mais da metade dos males que os melhor difundir o que pensava sobre Femi-
oprimem é devido ao descuido que eles nismo. Também participou da fundação da
têm tido na educação das mulheres, e ao Federação Brasileira pelo Progresso Femi-
falso suposto de pensarem que a mulher nino, ao lado de Bertha Lutz, da Federação
não passa de um traste de casa, grosseiro Internacional Feminina e do Comitê Feminino
e brusco gracejo que infelizmente alguns contra a Guerra. Ainda publicou inúmeros
indivíduos menos delicados ousam atirar livros, com destaque para A mulher é uma
à face da mulher, e o que é mais às vezes, degenerada? (1921), Religião do amor e da
em plena sociedade familiar!!!! 8 beleza (1926), Amai e não vos multipliqueis
(1932), entre outros.
Em 1875 Francisca Senhorinha transfere-se Segue-se pequeno trecho de Religião do
para o Rio de Janeiro e o jornal ganha novo amor e da beleza, a título de ilustração do
fôlego na defesa da abolição da escravatu- pensamento desta escritora:
ra, do divórcio, do voto feminino, e também
da educação como única garantia para a As liberdades não se pedem, conquistam-
emancipação da mulher. Com a Proclamação -se, e não é cedendo que alguém conse-
da República, ela muda o nome do jornal para guiu alguma prerrogativa ​—​ ou algum
O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, na direito na vida.
expectativa de que a República beneficiasse O escravo, se não luta, se não protesta,
as mulheres, tanto no campo jurídico como se não foge, se se submete, não obtém a
no cívico e no educacional, o que a Constitui- sua carta de alforria.
ção de 1891 não realiza. Ao contrário: proibiu A atual organização social e a de-
o acesso ao ensino superior que apenas sinteligência a que chegaram os sexos ​
começava, e regulamentou o ensino para —​ um habituado a ser servido e o outro
meninas dando ênfase ao desenvolvimento
das habilidades domésticas.
Em 1880, Francisca Senhorinha lançou 8 O Sexo Feminino, Semanário em
mais dois periódicos, A Primavera e A Voz da defesa dos interesses da mulher.
Campanha – MG, Ano 1, n. 1, 7 de
Verdade, também identificados ao ideário fe- setembro de 1873, p. 1. (itálicos no
minista. Além de inúmeros artigos e poemas original)

38
habituado a servir, não admite tréguas; Mais tarde, casada e residindo no Rio de
não há dúvida que as concessões mútu- Janeiro, é incentivada a publicar o antigo
as acalmam certas situações, mas só os diário. E surge Minha vida de menina (1942),
homens superiores concedem natural- considerada autêntica crônica da sociedade
mente, generosamente, e esses contam-se diamantinense daquele tempo, ainda que cal-
pelos dedos. cado na percepção de uma adolescente. Além
Quanto ao mais, ela terá de lutar das preocupações domésticas, e do registro
corajosamente, passo a passo, tenaz e da afetuosa ligação com a avó, ela observa a
persistentemente, para obter o mínimo. E decadência das lavras e das minas, o final do
por que há de sempre ceder a parte mais sistema escravocrata e aponta para a ainda
fraca e secularmente subjugada?9 incipiente chegada do trabalho livre.
Traduzido para o inglês por Elizabeth
AUTORIA FEMININA E MEMORIALISMO Bishop em 1958, Minha vida de menina foi
muito bem recebido em outros países, como
No memorialismo mineiro, dentre tantos Portugal, França e Itália, e recebeu uma adap-
nomes vamos destacar Helena Morley, Maria tação cinematográfica em 2005, que venceu
Helena Cardoso e Carolina Maria de Jesus. o Festival de Gramado daquele ano.
A primeira, Helena Morley, pseudônimo de Também nascida em Diamantina, em
Alice Dayrell Caldeira Brant, nasceu em 1903, tivemos Maria Helena Cardoso, irmã
Diamantina em 28 de agosto de 1880. Tendo do conhecido escritor Lúcio Cardoso. Sua
cursado a Escola Normal e se dedicado ao estreia literária se deu em 1967, com o livro
magistério, desde cedo foi estimulada pela Por onde andou meu coração, em que aborda
família a registrar percepções sobre o mundo a infância, a família, os afetos e sua paixão
ao seu redor. pela música e pela literatura, com o qual ga-
Foi assim que, entre os 13 e os 15 anos, nhou o Prêmio Fernando Chinaglia, da União
manteve um diário no qual registrava os cos- Brasileira de Escritores, e o Prêmio Jabuti,
tumes e comportamentos dos habitantes da na categoria de autor estreante. Conforme
cidade em que vivia, e também o dia a dia na observa Maria Inês de Moraes Marreco, as
escola e na família. O panorama por ela traça- personagens que na obra desfilam são o mais
do permite que se conheçam aspectos da diversificadas possível:
vida interiorana de seu tempo, e as expectati-
vas de vida para as mulheres, quase sempre poetas, beatas, alcoviteiras, puritanas,
relacionadas ao casamento e à maternidade. loucos, professoras, cozinheiras, lava-
Por vezes a menina questiona os saberes deiras, costureiras, enfim, toda a gente
tradicionais, como na passagem a seguir: humilde ou abastada do interior. Enfocou
também acontecimentos marcantes da
Poucas são as vezes que entro em casa vida brasileira, como as revoluções de
que mamãe não repita o verso: 1930 e 1932, o golpe de 1937, a Segunda
A mulher e a galinha Guerra Mundial e o fim da ditadura getu-
Nunca devem passear; lista de 1945.11
A galinha bicho come,
A mulher dá que falar.
E depois diz: “Era por minha mãe nos
9 MOURA, Maria Lacerda de. In:
repetir sempre este conselho, que fomos LEITE, Miriam L. Moreira. Maria
umas moças tão recatadas. Vinham rapa- Lacerda de Moura: uma feminista
zes de longe nos pedir em casamento pela utópica. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2005, p. 119.
nossa fama de moças caseiras.”
Eu sempre respondo: “As senho- 10 MORLEY, Helena. Minha vida de
ras eram caseiras porque moravam na menina. 13. ed. Rio de Janeiro: Li-
vraria José Olympio Editora, 1975,
Lomba. E depois, a fama foi o caldeirão pp. 186–7 (Coleção Sagarana)
de diamantes que vovô encontrou. Moça
caseira a senhora não vê que não pode ter 11 MARRECO, Maria Inês de Moraes.
Para aplacar uma grande saudade.
fama? Como? Se ninguém a vê?” 10 Belo Horizonte: Idea Editora, 2015,
p. 103.

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A obra traz memórias de caráter individual, linguagem objetiva e marcada pela oralidade:

ESCRITORAS MINEIRAS PRESENTE! ANOTAÇÕES CRÍTICAS   CONSTÂNCIA LIMA DUARTE, MARIA DO ROSÁRIO A. PEREIRA
mas também coletivo, ao abordar aconteci- ao mesmo tempo em que aparecem desvios
mentos históricos que, em menor ou maior ortográficos e sintáticos da norma culta,
grau, interferem nas histórias e vivências típicos do nível de escolarização da autora,
particulares. Maria Helena Cardoso publicou aparecem também recursos mais sofistica-
mais dois livros: Vida-vida (1973), de caráter dos, como o uso de comparações e metáforas,
também memorialístico, sobre sua relação o que aponta para o fato de que Carolina
com o irmão Lúcio Cardoso, vítima de um tinha certo traquejo com a linguagem literária,
acidente vascular cerebral; e Sonata perdida: como se lê na passagem a seguir, elucidativa
anotações de uma velha dama digna (1979). acerca do título da obra: “Eu denomino que
Deste último, selecionamos um pequeno a favela é o quarto de despejo de uma cidade.
fragmento que, ainda assim, é capaz de con- Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”
tagiar o leitor: Impressionante também é o fôlego de
sua obra, composta de romances, poemas,
No momento em que a orquestra deu contos, quadras populares, registrada em
início ao concerto que encerrava o pro- 29 cadernos manuscritos, dentre os quais
grama, a mão de Jaques procurou a sua. já foram publicados 12 livros, cujo principal
Sentiu-se perturbada, não esperava por foco é a miséria e a fome. Feito surpreen-
aquilo. Mas pensou: não existe mal, pos- dente por ser uma escritora negra e pobre,
so ser mãe dele. Aqueles dedos enlaçados Carolina Maria de Jesus vive atualmente um
tinham vida própria, unindo-se às batidas feliz momento de ressurgimento, com muitos
fortes do coração de cada um. A música estudos acadêmicos sobre sua obra, novas
lhes parecia ainda mais bela, mais apai- reedições e biografias. A escritora faleceu em
xonada. […] Sempre tinha achado que a São Paulo, em 1967.
partir de um tempo tudo para ela seria
fim e nunca começo. E naquele momen- NA PROSA, TRADIÇÃO VERSUS
to estava certa de que poderia começar SUBVERSÃO
ainda, por muitas e muitas vezes.12
Iniciando pelo campo ficcional, destacamos
Maria Helena Cardoso faleceu em 1997, no Lúcia Miguel Pereira. Nascida em Barbacena
Rio de Janeiro. em 1901, e tendo pertencido a uma família de
Em Sacramento, em 1914, nascia Carolina mulheres instruídas, desde criança demons-
Maria de Jesus. De família muito pobre, neta trava apreço pelo campo das Letras. Ainda
de escravos e filha de empregada doméstica, que a escritora seja mais conhecida como
teve pouca educação formal ​—​ cursou até o crítica literária ​—​ sobretudo por seu premiado
segundo ano primário ​—, contudo, isso não estudo sobre Machado de Assis, de 1935 ​—,
foi um empecilho para que desenvolvesse seus romances apresentam um interessante
a paixão pela escrita. Nos anos de 1930, panorama das relações de gênero nas primei-
morando na favela do Canindé, em São Paulo, ras décadas do século XX, sobretudo no que
a catadora de papel passou a registrar em se refere à condição feminina, com persona-
um velho caderno impressões sobre a própria gens que questionam e denunciam o status
vida, sobre a cidade, com seus problemas e quo. Publicou quatro romances: Maria Luísa
contradições. Futuramente este caderno viria (1933), Em surdina (1833), Amanhecer (1938)
a ser a obra Quarto de despejo, compilação de e Cabra-cega (1954).
suas memórias publicada em 1960, quando Sua obra, juntamente com a de outras
o jornalista Audálio Dantas o descobre, e que escritoras, abre espaço para o reconhecimento
descreve as vivências da autora no período de da mulher ficcionista na literatura brasileira.
1955 a 1960. Ao expor a situação da mulher branca, de
A primeira edição, pela Editora Francisco
Alves, teve 10 mil exemplares, os quais se
esgotaram em uma semana. A obra teve
enorme repercussão, tendo sido reeditada 12 CARDOSO, Maria Helena. Sonata
perdida. Anotações de uma velha
inúmeras vezes e traduzida para 15 idiomas. dama digna. Rio de Janeiro: Edito-
É instigante refletir sobre sua escrita e a ra Nova Fronteira, 1979, p. 40.

40
classe média, das primeiras décadas do século Passeio a Sabará, trilogia que traz instigantes
XX, por meio da introspecção e do uso de recur- roteiros permeados de literatura e muita cul-
sos como o discurso indireto livre, Lúcia Miguel tura, reeditada pela Editora UFMG. A seguir,
Pereira contribuiu para uma dupla reflexão parte do primeiro parágrafo de Passeio a
sobre a condição feminina: sua inserção histó- Sabará ​—​ que foi lindamente ilustrado com
rica e social, inclusive no âmbito familiar; e sua desenhos de Guignard:
exposição interior, ao apresentar indagações,
questionamentos e sentimentos femininos em Eis que certo dia, lá pelo ano de 1674, o
relação ao lugar ocupado pelas mulheres no senhor Manuel de Borba Gato, calçando
mundo. Nas palavras de Edwirgens A. Ribeiro botas de cordovão e metido num gibão
Lopes de Almeida, sua obra de couro de anta, surgiu por estes lados
com a bandeira de seu sogro Fernão
torna possível o conhecimento da intimi- Dias Paes. De muito longe vieram eles,
dade psicológica e social das mulheres em subindo e descendo morros, afrontando
tempos em que era evidente o controle matas virgens, índios, febres e feras, sem
das escolhas, das ideologias e das práticas medo nenhum. E nestes chãos plantaram
femininas pelo provedor ​—​ o pai ou o ma- sua bandeira tesa, bordada com os sete
rido. Como suas contemporâneas, Lúcia castelos das armas de Portugal. Fernão
Miguel Pereira apropria-se da observação Paes seguiu adiante, atrás de uma serra
e da imaginação para dar vida às vozes de esmeraldas que diziam existir perto da
femininas que emergem de seus textos.13 misteriosa lagoa Vapabuçu, mas o genro
decidiu ficar. E descobriu ouro no Rio
Ao agregar o projeto ideológico ao estético, das Velhas, dormiu em tendas e plan-
a autora dá um passo à frente de seu tempo tou roças.14
e, muito provavelmente por esse mesmo
motivo, só teve sua obra ficcional reconhe- Falecida em 2005, seu precioso acervo foi
cida tardiamente. A escritora faleceu em doado pelos filhos ao Acervo de Escritores
um desastre aéreo com o marido, no Rio de Mineiros da Universidade Federal de Minas
Janeiro, em 1959. Gerais, ali permanecendo à disposição dos
Também a literatura infantojuvenil tem pesquisadores.
uma autora de destaque em terras mineiras. Rachel Jardim, nascida em 1926, na
Em Nova Granja, hoje São José da Lapa, cidade de Juiz de Fora, também é nome de
em 1910, nasce Lúcia Machado de Almeida, destaque na prosa mineira. Formada em Di-
reconhecida escritora e intelectual devotada à reito, dirigiu o Patrimônio Cultural e Artístico
cultura e à arte brasileira, tendo sido, inclusi- do Rio de Janeiro, e sua estreia literária se
ve, editora do Suplemento Literário do Minas deu em 1973, com o livro de memórias Os
Gerais. Oriunda de uma família de escritores ​ anos 40 (A ficção e o real de uma época). A
—​  Aníbal Machado, Paulo Machado, Carolina este seguiram-se Cheiros e ruídos (1975),
Machado e Maria Clara Machado, dentre Inventário das cinzas (1980), A cristaleira
outros ​—, inicia sua escrita ainda adolescente. invisível (1982), O penhoar chinês (1985) e
Em 1943, publica seu primeiro livro: Estórias Num reino à beira do rio (2004), em coautoria
do fundo do mar, que obtém enorme sucesso com Alexei Bueno. Tem ainda diversos contos
entre os leitores e a crítica nacional. publicados em antologias.
Nos anos 1980, passou a integrar a Apesar de ter escrito somente um livro ni-
coleção Vaga-Lume, da Editora Ática, que tidamente memorialístico, é curioso observar
contribuiu para aumentar a repercussão de
seus livros junto ao público jovem: O caso da
borboleta Atíria (1951), Xisto no espaço (1956) 13 ALMEIDA, Edwirgens A. Ribeiro
e O escaravelho do diabo (1956) foram alguns Lopes de. O legado ficcional de
Lúcia Miguel Pereira. Escritos da
destes títulos que se tornaram familiares para tradição. Florianópolis: Editora
diversas gerações de estudantes. Mulheres, 2011, p. 19.
Para além de seu destaque na literatura
14 ALMEIDA, Lúcia Machado de.
infantojuvenil, publicou, na década de 1960, Passeio a Sabará. Belo Horizonte:
Passeio a Ouro Preto, Passeio a Diamantina e Editora UFMG, 2010, p. 25.

41
que a crítica costuma destacar muito este Literatura, traduziu para o castelhano obras

ESCRITORAS MINEIRAS PRESENTE! ANOTAÇÕES CRÍTICAS   CONSTÂNCIA LIMA DUARTE, MARIA DO ROSÁRIO A. PEREIRA
aspecto e considerar sua obra em permanen- de autores brasileiros, e, para o português, es-
te trânsito entre memória e ficção. Em Os critores de língua hispânica, e ainda presidiu
anos 40, as questões femininas também são o Centro de Estudos Brasileiros e participou
abordadas: é flagrante a ausência da voz da de programas culturais no rádio e na tele-
mulher em uma Juiz de Fora com costumes visão. Pelo trabalho de divulgação e aproxi-
patriarcais ainda arraigados. Em sua ficção, mação cultural que realizou por mais de 30
destaca-se O penhoar chinês, no qual se anos, recebeu, em 1980, um prêmio conferido
condensam temas caros à escritora, como pela Associação Paulista de Críticos de Arte
o tempo, o espaço e a solidão. O bordado e a (APCA), no Brasil, e o título de Personalidade
casa são metáforas importantes para se pen- do Ano pela Universidade de Buenos Aires.
sar a própria literatura e os papéis ocupados Maria Julieta colaborou em diversos
pela mulher na sociedade ​—​ tradicionalmente jornais, como O Globo, Correio da Manhã,
circunscritos ao espaço privado. Jornal de Letras, do Rio de Janeiro, e na
Além disso, a relação humana com o tem- revista O Cruzeiro, com textos escritos com
po e as marcas que este imprime na memória graça e bom humor sobre o cotidiano, que
e no corpo recebem atenção já às primeiras se assemelham ora a crônicas, ora a contos.
páginas do romance: Em 1983 voltou a residir no Rio de Janeiro
e, em 1985, foi membro do Conselho Fede-
O tempo o que é? Redoma de vidro ral de Cultura.
invisível que nos recobre e nos isola da Além da novela A busca, Julieta Drum-
eternidade? Vírus, doença inoculada na mond publicou Um buquê de alcachofras
origem, com o poder de nos fazer decair (1980) e O valor da vida (1982), que reúnem
e perecer? Lâmina afiada cortando o apenas parte de suas crônicas; o livro de
destino de sermos imperecíveis como os memórias intitulado Diário de uma garota
deuses que nos criaram? Em que minuto (1985); e dois para o público infantil: Loló e o
da criação soubemos da nossa decadên- computador (1986) e Gatos e pombos (1987).
cia e percebemos essa fluição insana e Para ilustrar, um fragmento de A busca:
inexorável, esse rio sorrateiro a correr
rumo ao abismo? Tento recompor este Eu estava sozinha em casa. Pensei que ia
tecido gasto trabalhando com a agulha ser bom, sentia uma urgência biológica
mais fina pra não ferir demais as fibras de solidão. Naquele momento nenhum
envelhecidas.15 ser me era realmente indispensável: e,
se pudesse, eu me separaria até de mim
Desde os 18 anos a escritora reside no Rio mesma. Nós somos, às vezes, tão cacetes,
de Janeiro, mas continua visitando a terra que esforço para me aturar. Mas em vão.
natal, sua fonte maior de inspiração, segundo Éramos imprescindíveis uma à outra. ​—​ eu
suas palavras. e a vida. Como um bicho morto atado às
Maria Julieta Drummond nasceu na costas. Agora todo mundo saíra, respirei
capital mineira em 1928 e herdou do pai ​—​ o com intensidade. No quintal, além dos
poeta Carlos Drummond de Andrade ​—​ a canteiros brancos, cor-de-rosa e amarelos,
enorme competência e sensibilidade literária. ficavam as árvores. Numa sadia terra ver-
O primeiro livro, a novela intitulada A busca melha, ao mesmo tempo tão impregnada
(1946), escrito aos dezessete anos, teria sido do nosso jeito de família.16
publicado por incentivo de Rachel de Queiroz
junto a seu pai. A protagonista, tão jovem
como sua autora, vive os conflitos existenciais
inerentes à idade e ao seu tempo.
Diplomada em Línguas Neolatinas pela 15 JARDIM, Rachel. O penhoar chinês.
Rio de Janeiro: José Olympio Edito-
PUC do Rio de Janeiro, Maria Julieta casou- ra, 1985, p. 3.
-se em 1949 com Manoel Graña Etcheverry,
importante intelectual argentino, com quem 16 ANDRADE, Julieta Drummond
de. A busca. 4 ed. Rio de Janeiro:
teve três filhos, passando a residir em Buenos Livraria José Olympio Editora,
Aires. Nesta cidade, ministrou cursos de 1982, p. 34.

42
A escritora faleceu em 5 de agosto de 1987, Em 1967, estreou na literatura com
no Rio de Janeiro, doze dias antes da mor- Acontecências, que reúne contos e poemas,
te de seu pai. nos quais a temática do mar se destaca e
Maura Lopes Cançado nasceu em 1930, o dramático e o lírico se misturam. Publica
numa fazenda nas proximidades de São ainda Setestórias (1970), Por que não? (1972),
Gonçalo do Abaeté – MG. Nos anos de 1950, Serendipity (1974), Carisma (1978), Clique!
muda-se para o Rio de Janeiro, onde passa a (1981), Relembramentos: João Guimarães
trabalhar no Suplemento Literário do Jornal Rosa, meu pai (1983), Mistérios do existir
do Brasil e no Ministério da Educação, e a (1999) e As visionárias (2001). À guisa de ilus-
conviver com os mais importantes jornalistas tração, segue-se pequeno trecho do primeiro
e intelectuais da época. Parte significativa de conto de Carisma, “A menina”:
suas crônicas e de seus contos foi publicada
no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, Chove miudinho, molhando a alma, até
mas foi o livro Hospício é Deus, de 1965, que que eu sinta no rosto e nos braços nus, o
atraiu atenção por se tratar de um depoimen- contato úmido das gotas de céu.
to sobre as agruras sofridas pela autora em A menina vem vindo. Na calçada
hospitais psiquiátricos. estreita, acontecerá o inevitável instante
Muitos foram os obstáculos enfrenta- do nosso encontro.
dos por Maura Lopes, sobretudo de caráter Dentro do vestidinho de croché,
familiar. Sua atuação como escritora não ela me lembra vagamente alguém, nas
era bem aceita pelos mais próximos, tanto esquinas da memória. A franja de cabelos
que a primeira edição de Hospício é Deus “foi claros e finos talvez oculte uma testa
esgotada sem leitura, tendo sido retirada das larga. O laçarote pousado na cabeça
livrarias e bibliotecas, destruída: ‘mineiramen- lembra uma borboleta de cetim. Seu rosto
te esgotada’, índex da mineira inquisição”.17 é expressivo. De um verde intenso os
Por apresentar comportamento considerado grandes olhos perguntantes, sombreados
extravagante para uma mulher ​—​ como pilotar pelos tons da tarde.18
durante anos um avião Paulistinha CAP-4 ​—,
por diversas vezes foi internada pela família Ainda que a escritora tenha buscado trilhar
em hospitais psiquiátricos. seu próprio caminho literário, inclusive anga-
Também, ao tratar temas avessos ao que riado diversos prêmios ao longo de sua carrei-
era esperado de uma “escritora”, fugindo ra, muitos críticos e historiadores da literatura
de um modelo mais tradicional de romance, se ocuparam em buscar em suas obras
Maura Lopes conseguia chocar a parcela apenas o que haveria de influência da escrita
mais conservadora da sociedade e, ao mesmo rosiana, perdendo a chance, em muitos casos,
tempo, surpreender os demais leitores, tanto de usufruir de uma outra escrita, com per-
que sua obra teve expressiva repercussão e sonalidade própria. Mesmo hoje, costumam
chegou a ser considerada como revelação da citá-la mais como “filha de Guimarães Rosa”,
literatura brasileira. No entanto, em 1974, ela ignorando tudo o que publicou, como se não
foi interditada pela Justiça ao cometer um houvesse espaço na família para mais um
crime na clínica psiquiátrica em que estava. escritor, principalmente se for mulher. Esta si-
Pouco lida e estudada, teve seus dois úni- tuação, aliás, se repete com inúmeras outras
cos livros, Hospício é Deus e Sofredor do ver
(reunião de contos), reeditados pela Editora
Autêntica, em 2015, o que sinaliza para uma
revalorização, ainda que incipiente, de sua 17 Cinara de Araújo, 2002 apud
COELHO, Maria do Socorro
obra. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1993. Vieira; MARRECO, Maria Inês de
Em 1931, nasce, em Itaguara, Vilma Gui- Moraes. Maura Lopes Cançado. In:
marães Rosa, professora, ficcionista e ensaísta. DUARTE, Constância Lima (Org.).
Mulheres em Letras: antologia de
Filha do escritor Guimarães Rosa, desde jovem escritoras mineiras. Florianópolis:
escreve artigos e contos para periódicos nacio- Editora Mulheres, 2008.
nais e internacionais. Fez os estudos superiores
18 ROSA, Vilma Guimarães. Carisma.
na Universidade Sorbonne e na Aliança France- Estórias. Rio de Janeiro: Livraria
sa, em Paris, onde viveu durante alguns anos. José Olympio Editora, 1978, p. 9.

43
autoras, como Bárbara Heliodora, Maria POESIA MINEIRA: LINGUAGEM E

ESCRITORAS MINEIRAS PRESENTE! ANOTAÇÕES CRÍTICAS   CONSTÂNCIA LIMA DUARTE, MARIA DO ROSÁRIO A. PEREIRA
Helena Cardoso e Maria Julieta Drummond, SENSIBILIDADE
já citadas, e muitas outras. Talvez esteja aí a
explicação para a carência de estudos sobre O primeiro grande nome da poesia mineira do
elas, mesmo quando há reconhecimento de século XX que nos ocorre é o de Henriqueta
sua vitalidade literária. Lisboa. Nascida em Lambari, em 1901, foi
Outra figura que merece ser destacada professora, tradutora, ensaísta e escritora, e
na prosa mineira é Maria José de Queiroz. primeira mulher a ocupar um lugar na Aca-
Nascida em 1936, em Belo Horizonte, tornou- demia Mineira de Letras. Sua estreia literária
-se, aos 26 anos, a mais jovem catedrática se deu em 1922, aos 21 anos, com o livro de
do país. Como escritora, apresenta ampla poemas Fogo fátuo. Depois vieram Enter-
produção literária, a qual reúne aproximada- necimento (1929) e Velário (1936). Com um
mente 30 títulos entre poesia, conto, romance, lirismo por vezes transcendente e metafísico,
literatura infantojuvenil e inúmeros ensaios Henriqueta fez uma poesia impactante, em
críticos. A partir dos anos de 1950, colabora que o trabalho com a linguagem poética sem-
com frequência em revistas, suplementos e pre foi força motriz, sobretudo a partir de 1941,
periódicos literários do Brasil e da Europa. com a publicação de Prisioneira da noite.
Em sua produção ficcional, destaque-se E Henriqueta não parou mais de publicar:
Joaquina, filha do Tiradentes (1987), romance A face lívida (1945), dedicado à memória
que perscruta, sob uma ótica feminina, um de Mário de Andrade; Flor da morte (1949);
dos mais significativos eventos da história Madrinha lua (1952); Azul profundo (1955);
mineira. Por ser filha bastarda do Alferes, a Nova lírica (1971); Belo Horizonte bem querer
protagonista Joaquina se vê às voltas com (1972); Pousada do ser (1982) e Poesia geral
humilhações e cerceamentos de toda sorte, (1985). Para as crianças, deixou o volume
valendo-se de um discurso melancólico e ao O menino poeta (1943), reeditado em 1975,
mesmo tempo intimista. O enredo mostra em que brinca com os sons, o ritmo e a rima,
os bastidores de Vila Rica no período colo- como no poema que se segue:
nial, e a obra guarda certa intertextualidade
com O Romanceiro da Inconfidência, por Andorinha no fio
meio de epígrafes extraídas do livro de escutou um segredo.
Cecília Meireles. Foi à torre da igreja,
Dentre tantos títulos, lembramos ainda, cochichou com o sino.
na ficção: Homem de sete partidas (1980),
Sobre os rios que vão (1991), Vladslav Ostrov, E o sino bem alto:
Príncipe de Juruena (1999), Amor cruel, amor delém-dem
vingador (1996); na poesia: Exercício de delém-dem
levitação (1971), Exercício de fiandeira (1974), delém-dem
Para que serve um arco-íris? (1982); e no dem-dem!
ensaio: A literatura e o gozo impuro da comida
(1994), Os males da ausência ou A literatu- Toda a cidade
ra do exílio (1998) e Em nome da pobreza ficou sabendo.19
(2006), entre muitos outros. Não poderíamos
concluir esta incompleta relação de suas Uma das poucas interlocutoras femininas de
obras sem destacar O livro de minha mãe Mário de Andrade nos anos de 1940 por via
(2014), em que a autora constrói o próprio epistolar, Henriqueta, em um tempo no qual o
memorial, relatando episódios da infância, a espaço público pertencia aos homens, desta-
morte do pai, e as conquistas acadêmicas, cou-se por uma participação intelectual ativa
tendo sempre ao seu lado a força, a sensibili- e pela produção de uma poesia nem sempre
dade e a coragem de sua mãe, dona Honória.
Maria José de Queiroz divide sua re-
sidência entre Belo Horizonte, Rio de
Janeiro e Paris. 19 LISBOA, Henriqueta. Obras com-
pletas. I Poesia Geral (1929–1983).
São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1985, p. 83.

44
compreendida em seu tempo, como atestam foi responsável por pesquisar e organizar pre-
dois acontecimentos que marcaram sua ciosos depoimentos de estudiosos e escrito-
trajetória literária e cuja comprovação está res sobre a cidade de Belo Horizonte.
justamente nas cartas trocadas com Mário. Em 2004, a Editora UFMG publica a
O primeiro diz respeito à sugestão de reunião de sua obra poética: Inventário:
Andrade para que ela enviasse o livro O 1951/2002, que revela o quão multifacetada
menino poeta ao crítico Álvaro Lins, sugestão é sua poesia, rica na diversidade de procedi-
que encontra a recusa por parte de Henri- mentos artísticos e na abordagem temática.
queta, já que o referido crítico, até então, só Sempre preocupada com o signo poético,
tecera comentários negativos sobre a sua Laís Corrêa experimenta desde as formas
obra. Ressalte-se que a autora fazia uma tradicionais, como soneto, baladas e canções,
poesia distante das convenções modernistas, até o concretismo, em que a palavra explode
com traços simbolistas em alguns trabalhos ​ sonora e visualmente, no livro Decurso de
—​  como Velário, de 1936 ​—​ e com um viés prazo (1988). Com uma obra que abarca mais
intimista latente, ao recorrer ao misticismo e de 50 anos, a escritora, falecida em 2006,
à musicalidade. O segundo acontecimento dá demonstra intenso apuro poético, carecen-
conta da situação enfrentada pela mulher es- do (e merecendo) ainda de estudos mais
critora àquele tempo: não é convidada para o sistematizados.
I Congresso Brasileiro de Escritores, ocorrido Lembremo-nos de que Laís tinha duas
em São Paulo, em 1945. irmãs escritoras que também merecem ser
Poderíamos citar, ainda, a não inclusão lidas e revisitadas pela crítica: Zilah Corrêa
de seu nome em antologia organizada por de Araújo (1916–1975), cujo pseudônimo
Manuel Bandeira em 1961, Apresentação da era Bárbara de Araújo, e Maria Lysia Corrêa
poesia brasileira, que reuniria, em tese, os de Araújo (1921–2012), ambas nascidas
grandes nomes que faziam poesia naquele em Campo Belo. A primeira foi jornalista,
momento. Apesar de Bandeira depois se advogada, romancista e contista; a segun-
desculpar através de uma carta, seu “esque- da, jornalista, e dedicou-se à literatura e ao
cimento” é prova inconteste do memoricídio teatro. Ambas as escritoras não têm reedi-
pelo qual tantas escritoras e suas respectivas ções recentes de seus livros, os quais mal são
obras passam, conceito já mencionado neste encontrados em sebos. Certamente este é
ensaio. Henriqueta Lisboa faleceu em 1985, um dado que converge para o esquecimen-
em Belo Horizonte. to dessa obra.
Laís Corrêa de Araújo, por sua vez, nasceu
em Campo Belo em 1928. Pertencente a E HOJE? QUAL O LEGADO DAS
uma família que incentivava as mulheres a se ESCRITORAS MINEIRAS?
profissionalizarem ​—​ sua mãe, para se casar,
impôs a condição de continuar na carreira Na ficção contemporânea afrodescenden-
docente ​—, forma-se em Línguas Neolati- te, destacam-se, dentre outras, Conceição
nas e Filosofia pela Faculdade de Filosofia Evaristo e Ana Maria Gonçalves. Ganhadora
da UFMG, aos 22 anos de idade. Foi poeta, do Prêmio Jabuti com o livro de contos Olhos
cronista, jornalista, professora, tradutora e d’água, em 2016, Conceição Evaristo nasceu
crítica literária. Participa com seus primei- em Belo Horizonte, em 1946, e teve sua
ros poemas da revista Vocação, ao lado do estreia literária em 1990, com a publicação
também poeta Affonso Ávila, com quem era de contos e poemas nos Cadernos Negros, do
casada. Posteriormente, passa a integrar o grupo Quilombhoje, de São Paulo. Apresenta
grupo Tendência, com propostas estéticas uma escrita calcada na escrevivência ​—​  con-
vanguardistas, no qual ela era a única inte- ceito cunhado pela autora que remete à apro-
grante feminina. priação literária de suas vivências, ou seja:
Em 1951, publica o primeiro livro de poe- seu lugar de fala reflete experiências pessoais
mas, Caderno de poesia, que obtém excelente e coletivas como mulher negra, ainda que tais
repercussão crítica; em 1955, O signo e experiências apareçam por meio de persona-
outros poemas; em 1967, Cantochão. Publica gens fictícias e narrativas ficcionais.
ainda outros livros de poesia e de ensaios, Em 2003, estreia como romancista com
como Sedução do horizonte (1996), em que Ponciá Vicêncio; e em 2006, surge um novo

45
romance, Becos da memória. E desde então ferramentas são as armas possíveis para a

ESCRITORAS MINEIRAS PRESENTE! ANOTAÇÕES CRÍTICAS   CONSTÂNCIA LIMA DUARTE, MARIA DO ROSÁRIO A. PEREIRA
não parou de publicar: em 2008, surge mulher enfrentar uma sociedade que insiste
Poemas da recordação e outros movimentos; em ser falocêntrica.
em 2011, os contos de Insubmissas lágrimas Ana Maria Gonçalves, sempre solidária
de mulheres; de Olhos d’água, em 2014; e com os estratos subalternizados da popula-
de Histórias de leves enganos e parecenças, ção, participa com frequência de debates no
em 2016. Sua mais recente obra é a novela Brasil e no exterior sobre as relações sociais
Canção para ninar menino grande, de 2018. de gênero, a permanência do racismo e de-
Segundo Eduardo Assis Duarte, estudioso da mais formas de discriminação.
literatura afro-brasileira, a obra de Evaristo Para terminar, vejamos a poesia mineira
apresenta um procedimento que chama de contemporânea que passa por uma fase das
“brutalismo poético”, pois mais promissoras, com nomes surgidos na
internet, na universidade, no interior ou na
seus escritos se destacam pela forma periferia, os quais surpreendem pela qualida-
poética com que representa a crueldade de e originalidade de seus trabalhos poéticos.
do cotidiano dos excluídos. A mescla de Em um cenário tão amplo e tão rico, optamos
violência e sentimento, de realismo cru e por destacar Ruth Silviano Brandão, Maria
ternura, revela o compromisso e a iden- Esther Maciel, Vera Casa Nova, Ana Martins
tificação da intelectual afrodescendente Marques e Ana Elisa Ribeiro.
com os irmãos colocados à margem do Ruth Silviano Brandão, mineira de Belo
desenvolvimento.20 Horizonte, é uma ilustre descendente de
nossa primeira poetisa: Beatriz Brandão.
Ao abordar questões sociais complexas e Doutora em Estudos Literários pela UFMG,
frequentemente silenciadas, como racismo como professora de Literatura da mesma
e sexismo, a obra de Conceição Evaristo vem instituição trabalhou intensamente com as
tendo uma excelente recepção junto à crítica interfaces entre literatura e psicanálise, e a
e está traduzida para o inglês, o francês, o representação de personagens femininas na
espanhol, o italiano e o árabe. literatura. Dentre sua obra ensaística, estão:
Ana Maria Gonçalves, publicitária, escri- Mulher ao pé da letra: a personagem feminina
tora nascida em Ibiá, em 1972, estreou no na literatura (1993), Literatura e psicanálise
romance em 2002, com a publicação de Ao (1996), A vida escrita (2006), entre outros.
lado e à margem do que sentes por mim ​—​  em A produção literária transita com desem-
edição artesanal e pequena tiragem. O su- baraço entre a ficção e a poesia, a tradição e
cesso e imediato reconhecimento do público a contemporaneidade, por vezes mesclando o
veio com o segundo romance, Um defeito de registro autobiográfico, o mítico e o inventivo.
cor, de 2006, que arrebatou o prestigioso Alguns títulos: Para sempre amada (1998),
Prêmio Casa de las Américas, como melhor Aporias de Astérion (2004), Minha ficção
romance do ano, e incentivou o surgimento daria uma vida (2010), Flor da pele (2000),
de inúmeras resenhas, artigos e estudos por Na frente do coração (2006), Breve vida no
todo o país. branco (2011), Ventos e sóis alumbram o dia
Com mais de 900 páginas, o romance (2013), Minotauro, o insuportável desígnio
mistura com muita competência história e (2015), entre muitos outros.
ficção ao retratar a saga de Luiza Mahin ​—​  ou Em um de seus livros mais recentes, Marí-
Kehindé ​—, desde sua vinda da África ainda lia e Dirceu: ter amado não acaba, ter amado
criança para o Brasil, a Revolta dos Malês, na não tem fim (2018), Ruth Silviano Brandão
Bahia, sua inserção como escrava e depois faz uma releitura instigante dos amores de
como liberta numa sociedade patriarcal, Marília e Dirceu, narrada com linhas escritas
enquanto dialoga com o modelo pós-moder- e também linhas bordadas, que entrelaçam
no da metaficção historiográfica e toca em
feridas seculares da história brasileira. A lei-
tura e a escrita são as duas ferramentas que 20 DUARTE, Eduardo Assis. O
possibilitam que a personagem redimensione Bildungsroman afro-brasileiro de
Conceição Evaristo. Revista Estu-
seu papel naquela sociedade, apontando dos Feministas, Florianópolis, v. 14,
para o fato de que, ainda hoje, essas mesmas n. 1, jan./abr. 2006, p. 306.

46
história e ficção. Esta pequena amostra de o olho
prosa poética revela muito da sensibilidade e da palavra imagem
consciência desta autora: o oco
da palavra nada.22
Escrever com outras vozes outros poetas
que nem sempre se descobrem. São poe- Já Vera Casa Nova é mineira de coração. Nas-
tas, e as palavras, sua matéria. Um roubo cida no Rio de Janeiro reside em Minas desde
não se sabe de quem, de quando, de onde. a década de 1980. Doutora em Semiologia e
A impressão de uma repetição infinda, de professora da Faculdade de Letras da UFMG,
outras descobertas, outras experiências e trabalhou principalmente com questões
nada é novo. Aquietar-se nesta poeira de relacionadas à escritura e às artes, análise
sóis e ventos.21 narrativa, análise semiótica, poesia contem-
porânea e literatura e arte.
Maria Esther Maciel, poeta, ensaísta e es- Além de ensaísta com diversos livros
critora, nasceu em Patos de Minas em 1963. publicados, é também ficcionista e poeta, que
Doutora em Literatura Comparada e Pós- prima pela sofisticação e permanente diálogo
-doutora em Cinema, foi professora Titular de com a contemporaneidade ​—​  Canto zero
Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da (1997), Corpos seriais (1999), Lucia Rosas:
UFMG. Sua produção intelectual nas duas úl- textos impuros (2000), Desertos (2004),
timas décadas tem sido exemplar no sentido Rastros (2006), Poemas da página e da tela
de conciliar com delicada pertinência os es- (2014), Língua plena (2019). Ao seu cuidado
tudos teóricos de literatura ​—​ sobre a poesia com a linguagem, vem se somar o gosto por
de Octavio Paz, Laís Corrêa de Araújo e Jorge edições por vezes artesanais, criativas e de
Luis Borges, por exemplo ​—​ com a rigorosa muito bom gosto. Refiro-me em especial à
tessitura de versos e textos ficcionais. Tanto recente publicação de Poemas para meu pen-
sua obra literária como a ensaística está em samento (2019), recém-saída da Tipografia
permanente diálogo com a de outros autores, do Zé. Alguns versos de Vera Casa Nova:
perceptível através das citações e referências
que surgem com naturalidade, sugerindo Quero o verso inquieto
sempre novas leituras e interpretações. Sôfrego
A estreia na poesia ocorreu em 1985 Ambíguo
com Dos haveres do corpo; e só na década Nostálgico
seguinte surgiu Triz, em 1999. Também, até o O verso-corpo
momento, são dois os livros de ficção: O livro Onde pairam
de Zenóbia (2004), que mereceu destaque Todas as alegrias e
entre os premiados do Portugal Telecom, de As angústias
2005; e O livro dos nomes (2008), que tam- De meu tempo
bém foi finalista dos Prêmios São Paulo de E do tempo de um outo
Literatura, Portugal Telecom e Jabuti, e ainda O estranho
recebeu menção especial no Prêmio Casa de O ambivalente
las Américas, de 2009. O fino traço do corpo.23
Dentre os ensaios mais recentes, desta-
cam-se os estudos entre literatura e animali- Quase íamos esquecendo de dizer que ela
dade, como Pensar/escrever o animal (2010) tem um programa na Rádio UFMG Educativa ​
e Literatura e animalidade (2016). O poema
“Ofício” parece condensar seu projeto literário:
21 BRANDÃO, Ruth Silviano. Ventos e
Escrever sóis alumbram o dia. Rio de Janei-
a água ro: 7 Letras, 2013, p. 72.

da palavra mar 22 MACIEL, Maria Esther. Triz. Belo


o voo Horizonte: Orobó Edições, 1998.
da palavra ave (2 ed. 1999), p. 13.

o rio 23 NOVA, Vera Casa. Língua plena. Rio


da palavra margem de Janeiro: Gramma, 2018, p. 10.

47
—​ “Toque de Poesia” ​—, em que faz exatamen- que carregamos por conhecê-las?” 25 Alguns

ESCRITORAS MINEIRAS PRESENTE! ANOTAÇÕES CRÍTICAS   CONSTÂNCIA LIMA DUARTE, MARIA DO ROSÁRIO A. PEREIRA
te isso: dá preciosas dicas sobre literatura. versos do poema “Belo Horizonte” ilustram
Ana Elisa Ribeiro, nascida em Belo com maestria o que foi dito:
Horizonte em 1975, é doutora em Letras pela
UFMG, professora no CEFET-MG, e profun- [1]
damente apaixonada pela literatura e pelo Um dia vou aprender a partir
livro enquanto objeto. Começou a publicar Vou partir
versos em fanzines, como Vitamina Rock, e Como quem fica
também em jornais, como Estado de Minas
e Suplemento Literário. O primeiro livro ​ [2]
—​  Poesinha ​—​ surgiu no ano do centenário de Um dia vou aprender a ficar
Belo Horizonte, 1997. Depois não parou mais, Vou ficar
entre poemas, novelas, crônicas, roman- Como quem parte
ces e ensaios.
Dentre seus muitos títulos, destaca- Mas ainda é a mesma que fica, na tensão
mos Perversa (2002), Fresta por onde olhar de um Odisseu que pode ou não voltar,
(2008), Anzol de pescar infernos (2013), confundindo entre poemas lembran-
Xadrez (2015), e Por um triz (2016). Em seu ças e perda.26
mais recente livro de poesia, Álbum (2018),
vencedor do Prêmio Manaus na Categoria Trata-se de um belo poema para fechar
Poesia, como o próprio título indica, poesia este ensaio, tão cheio de incompletudes e
e fotografia se interseccionam. Afinal, como de nomes que mereciam ser lembrados:
nasce uma foto ​—​ o flagrar de um instante? Ana Elisa Gregori, Branca Maria de Paula,
E um poema? Surgem ambos da mesma Cidinha da Silva, Conceição Parreiras Abritta,
forma? No poema de abertura é possível per- Elizabeth Rennó, Guiomar de Grammont,
ceber que tais indagações são cruciais: Janete Clair, Jussara Santos, Lacyr Schettino,
Leda Martins, Letícia Malard, Livia Paulini,
O obturador Lucia Castello Branco, Madu Costa, Malluh
deixará passar Praxedes, Maria Amorim Ferrara, Maria
a luz necessária. Ângela Alvim, Maria Clara Machado, Maria
Lúcia Alvim, Mietta Santiago, Neusa Sorrenti,
Que mecanismo Sônia Queiroz, Stella Maris, Tania Diniz,
deixará passarem Terezinha Alvarenga, Terezinha Pereira, Vera
as palavras/necessárias Brant, Vivina de Assis Viana, Yeda Prates
ao poema?24 Bernis, entre muitas, muitas outras… Ainda
assim, esperamos ter dado mostras da
Ana Martins Marques, nascida em 1977, vitalidade da literatura de autoria feminina
em Belo Horizonte, é doutora em Literatura em terras mineiras.
Comparada pela UFMG. Desde os primeiros
livros ​—​  A vida submarina (2009) e Da arte
das armadilhas (2011) ​—​ tem se destacado no
cenário literário nacional e recebido importan-
tes prêmios, como Cidade de Belo Horizonte
(2007 e 2008), Alphonsus de Guimaraens
(2011), Prêmio Literário da Fundação Bibliote- 24 RIBEIRO, Ana Elisa. Álbum. Belo
ca Nacional (2012) e o da Associação Paulista Horizonte: Relicário, 2018, p. 18.

dos Críticos de Arte (2015), entre outros. 25 PIMENTA, Heyk. Bordados são
Seu requintado trabalho com a linguagem melhores do que selos? Resenha
ressignifica e renomeia objetos cotidianos, de Da arte das armadilhas, de Ana
Martins Marques. Jornal Rascunho,
ao mesmo tempo em que articula reflexões n. 159. Disponível em: <rascunho.
sobre a vida e a passagem do tempo, cujo com.br>. Acesso em: 8 abr. 2019.
resultado costuma ser impactante. Afinal, “e o
26 MARQUES, Ana Martins. Da arte
que é o mundo senão as coisas empilhadas e, das armadilhas. São Paulo: Com-
por cima delas, a experiência que carregam e panhia das Letras, 2011.

48
49
FALAS DO NEGRO
NAS LETRAS
DE MINAS
EDUARDO ASSIS DUARTE eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa
fecho corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.

Adão Ventura
1980

50
Publicado no momento em que a anistia aos Em seus quarenta e um anos de existência,
perseguidos pela ditadura civil-militar inau- os Cadernos propiciaram o surgimento de
gurava a chamada “abertura” do regime, que nomes, como Conceição Evaristo e Cuti, além
sobreviveria ainda até 1985, A cor da pele, de de incorporarem os hoje decanos Carlos de
Adão Ventura (1939–2004), assinala a chega- Assumpção e Oswaldo de Camargo.
da a Minas do projeto da literatura negra ou Em Minas, todavia, não se tem notícia
afro-brasileira, como se constata a partir dos deste nível de mobilização. Mas Adão Ventura
versos em epígrafe. Projeto que implica trazer não ficaria ausente da vertente afro em con-
para o texto não só as marcas culturais e solidação na literatura brasileira. Dois anos
identitárias inerentes à ascendência africana, após a publicação de A cor da pele, integra a
mas igualmente a memória de séculos de antologia Axé, organizada por Paulo Colina,
hegemonia escravocrata a se projetar sobre vencedora do Prêmio da Associação Paulista
o presente em forma de racismo, exclusão e de Críticos de Arte de 1982. E logo na abertu-
de toda uma condição social marcada pela ra do livro encontramos:
subalternidade. É nesse “quilombo de pala-
vras”, arena discursiva em que se debatem as Negro Forro
narrativas de e sobre o negro ​—​ e seu papel minha carta de alforria
em nossa constituição enquanto sociedade ​ não me deu fazendas,
—​ que a poesia de A cor da pele se insere. nem dinheiro no banco,
A presença de uma textualidade marcada nem bigodes retorcidos.
pelo existir negro no país da “democracia
racial” dialoga com a tradição da escrita afro- minha carta de alforria
diaspórica ocidental, a abarcar desde as slave costurou meus passos
narratives e a ficção abolicionista do século aos corredores da noite
XIX, à Harlem Renaissance estadunidense e à de minha pele.1
Négritude francófona da primeira metade do
século XX. Mais tarde, nomes de relevo do he- A contundência do protesto lembra a
misfério norte se incorporam a essa tradição, produção anterior à censura do regime militar
como Toni Morrison, Alice Walker, James Bal- e denuncia as novas formas de exploração do
dwin, Ralph Elisson, René Depestre, Patrick negro, cujos movimentos estão “costurados”
Chamoiseau, entre tantos outros. aos “corredores” da condição subalterna
No Brasil construído pela narrativa he- imposta pelo racismo institucionalizado. O
gemônica como paraíso mestiço infenso a poeta participa ainda de duas antologias que
preconceitos e discriminações, falas precur- são referências na produção afro-brasileira da
soras também se fizeram ouvir, já no século época: A razão da chama, de 1986; e O negro
XIX, pelos textos de Luiz Gama, Maria Firmina escrito, de 1987, organizadas por Oswaldo
dos Reis, Machado de Assis e Cruz e Sousa, de Camargo. E, em 1992, traz a público
entre outros. A estes se seguem Lima Barreto, Texturaafro, no qual mantém a intensidade
Nascimento Moraes, Lino Guedes, Solano presente em seu livro anterior:
Trindade e Abdias Nascimento, sem esque-
cer a mineira Carolina Maria de Jesus, cujo
memorialismo ganha o mundo a partir de
1960, ao desnudar os mitos ostentados como
marcas da nacionalidade.
Com efeito, as últimas décadas do século
XX irão propiciar o surgimento de coletivos de
escritores negros, como o Quilombhoje, em
São Paulo; Negrícia, no Rio de Janeiro; Pal-
mares, em Porto Alegre e GENS, em Salvador.
Dentre todos, o mais longevo é o Quilombhoje,
responsável pela edição dos Cadernos 1 VENTURA, Adão. In: COLINA,
Negros, iniciada em 1978, com a publicação Paulo (Org.). Axé: antologia
contemporânea de poesia negra
anual de um volume coletivo alternando brasileira. São Paulo: Global,
poesia nos anos pares e ficção nos ímpares. 1982, p. 15.

51
AINDA Capelinha do Rosário

FALAS DO NEGRO NAS LETRAS DE MINAS   EDUARDO ASSIS DUARTE


Numa senzala Ao Adão Pinheiro
fa
vela Os negros estão chegando
acesa com seus tambores: silêncio.
— marca de ferro Os negros cantam velados.
& fogo
chicote de polícia Os Arturos estão chegando
— lanhos com seus lenços azuis: silêncio.
nos ombros Os Arturos cantam velados.
— garrote em corte Os negros estão chegando
de morte alheia.2 com seus padroeiros: silêncio.
Os negros têm nomes velados.
Sobressai de imediato a ligação entre a favela
contemporânea e a senzala dos tempos Os Arturos estão chegando
coloniais. Remetem ambas aos espaços com seus santos: silêncio.
de exclusão inerentes tanto ao capitalismo Os Arturos têm deuses velados.
mercantil de séculos anteriores quanto a sua
versão contemporânea. Mudam-se os tempos, Os negros Arturos com seus
mas não as marcas da violência, em que a tambores sagrados. Silêncio,
polícia de agora vez por outra faz o trabalho estão cantando calados.
dos antigos capitães do mato.
Já Edimilson de Almeida Pereira (1963), Os negros Arturos com seus
poeta, crítico e antropólogo dedicado à terços de contas. Silêncio:
pesquisa da cultura negro-mestiça em são mil negros guardados.3
Minas Gerais, sobretudo de matriz banto,
incursiona pelo candomblé, pelo congado O poema trabalha as tensões entre a expres-
e demais manifestações em diálogo com o são e o silêncio, a presença e a ausência, para
pensamento banto-católico. Em parceria com inscrever a dissimulação implícita ao sincretis-
Núbia Pereira Gomes, possui uma gama de mo religioso como forma de resistência. Fica
estudos de grande relevância para a cultura evidente a opção por um modo distinto de re-
afro-brasileira, tais como Os Arturos: Olhos presentação, em consonância, aliás, com a di-
do Rosário, de 1990; Os tambores estão versidade de abordagens da afro-brasilidade,
frios: herança cultura e sincretismo religioso constituída tanto pela escrita dos precursores
no ritual de Candomblé, de 2005; além de quanto dos contemporâneos de outras regi-
Ardis da imagem: exclusão étnica e violência ões do país, a exemplo de Ronald Augusto, no
nos discursos da cultura brasileira, de 2001, Rio Grande do Sul, dentre outros.
entre outros. Nessa linha, traz a lume, em 1996, A roda
Autor prolífico, com mais de 50 títulos lan- do mundo, em parceria com Ricardo Aleixo
çados, Edimilson de Almeida Pereira estreia (1960), dividido em dois segmentos: “Nós
na poesia em 1985 com Dormundo, publicado os Bianos”, a cargo de Pereira, seguido dos
aos 22 anos, mas que já aponta para um “Orikis” de Aleixo. No primeiro, o livro se põe
projeto estético distinto da retórica contun- à escuta da ancestralidade banta; no segun-
dente dos exemplos acima. Se nos versos de do, da herança jeje-iorubana, como destaca
Adão Ventura, Conceição Evaristo e tantos
mais emergem a memória dos antepassados
e a denúncia das novas formas de exploração, 2 VENTURA, Adão. Texturaafro. Belo
nos textos do poeta juiz-de-forano vê-se a op- Horizonte: Editora Lê, 1992, p. 19.
ção pelo mergulho na ancestralidade africana
3 PEREIRA, Edimilson de Almeida.
e na rica herança que irá embasar a cultura Árvore dos Arturos. Juiz de Fora:
popular afro-mineira, como se constata em Edições D’Lira, 1988, p. 98. Com o
Árvore dos Arturos, de 1988: título de “Capelinha”, está incluído
na coletânea Casa da Palavra:
Obra poética 3. Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2003, p. 76.

52
Antônio Risério na apresentação. Em ambos, Ventura “monta guarda” na memória familiar
tem-se as Minas Gerais de agora como dos antepassados que não passam:
espaço de encenação de um legado vivo e
resiliente, a exemplo do poema-saudação de Vozes-mulheres
Ricardo Aleixo:
A voz de minha bisavó
EXU ecoou criança
nos porões do navio.
Primeiro Ecoou lamentos
que nasceu de uma infância perdida.
último A voz de minha avó
a nascer. ecoou obediência
Deus capaz aos brancos-donos de tudo.
de ardis, A voz de minha mãe
controlador ecoou baixinho revolta
dos caminhos. no fundo das cozinhas alheias
Elegbara, debaixo das trouxas
parceiro roupagens sujas dos brancos
de Ogum. pelo caminho empoeirado
Barrete. rumo à favela.
Cabelo pontudo A minha voz ainda
como um falo. ecoa versos perplexos
Dono dos oitocentos com rimas de sangue
porretes. e
Oitocentos fome.
porretes nodosos. A voz de minha filha
Senhor da fala recolhe todas as nossas vozes
fácil. recolhe em si
Sopra a flauta as vozes mudas caladas
e seus filhos vêm. engasgadas nas gargantas.
Bará chega fungando. A voz de minha filha
O povo pensa recolhe em si
que é o trem a fala e o ato.
partindo.4 O ontem ​—​  o hoje ​—​  o agora.
Na voz de minha filha
Por sua vez, Conceição Evaristo (1946), que se fará ouvir a ressonância
estreia em 1990 no número 13 de Cadernos o eco da vida-liberdade.5
Negros, constrói uma poesia intensa que, sem
deixar de lado a ancestralidade, concentra-se Outro nome a ser lembrado é o de Waldemar
nas falas voltadas para a “condição da Euzébio Pereira (1946), músico, poeta e
mulher negra na sociedade brasileira”, que ficcionista, contemporâneo de Adão Ventura
toma como verdadeiro mantra para a sua e Conceição Evaristo, que surge nas letras
escrevivência. Em “Vozes mulheres” clama de Minas em 1976, com Prosoema, volume
no feminino na mesma clave com que Adão caracterizado pelo experimentalismo. O título

4 In: PEREIRA, Edimilson de Almeida; ao racismo em diversos textos, que tudo, um poeta.” In: CÂNDIDO,
ALEIXO, Ricardo. A roda do mundo. performances e posturas enquanto Jornal da Biblioteca Pública do
Belo Horizonte: Mazza Edições, agitador cultural. No entanto, tem Paraná, nº 52, nov. 2015, p. 20.
1996, p. 35. Republicado em reiterado sua independência
ALEIXO, Ricardo. Pesado demais frente ao projeto da literatura 5 EVARISTO, Conceição. In: Cader-
para ventania. São Paulo: Todavia, afro-brasileira, além de repudiar a nos Negros 13. São Paulo: Quilom-
2018, p. 23. Nas décadas seguintes, classificação como “poeta negro”: bhoje, 1990, pp. 32–3. Ver também
Ricardo Aleixo mantém o rico diálo- “esse rótulo é limitante e eu quero Poemas de recordação e outros
go com a ancestralidade africana, expandir ao máximo a minha atua- movimentos, 3. ed. Rio de Janeiro:
além de inscrever suas críticas ção, quero a liberdade. Sou, mais do Malê, 2017, pp. 24–5.

53
não deixa dúvidas quanto ao entrelaçamento intenso, próximo dos improvisos jazzísticos de

FALAS DO NEGRO NAS LETRAS DE MINAS   EDUARDO ASSIS DUARTE


da veia poética autoral com a necessidade ca- Thelonius Monk, como o próprio título anun-
tártica de narrar a infância pobre e a memória cia. O longo poema faz a ironia evoluir para
dos antepassados, traço marcante de seus a sátira e o escárnio quando dá voz ao vazio
escritos: “eu falo as vozes de totunha, do avô autoritário dos estereótipos hegemônicos no
mazola, do tio balê e de toda uma nação de tocante às questões sociais. “Um jazz para ser
gente que, sem saber, carregou no dentro de lido”, como destaca Antônio Wagner Rocha
si a voz dos cantos, a felicidade, a angústia e no posfácio:
uma história que se perde no seu começo.” 6
Mas é com Do cinza ao negro, de 1993, […]
que o poeta irá explicitar mais fortemente Alguns radicais, atrasados, continuam
sua negritude como lugar de onde emerge a Acusando o país de racista, querem
memória poética do passado marcado pela Regalias como, por exemplo, cotas nas
subcidadania herdeira da escravização: Universidades públicas, e isso, sim, seria
Racismo, seria o mesmo que reconhecer
16. era preciso ciso Que os negros não têm capacidade de
riso não Passar no vestibular e garantir sua vaga
negro tisno sem batismo Num curso superior, ora, o sol nasce pra
cão Todos, só não enxerga quem não quer,
sem dente […]
demente Dizia para não brigar na Universidade,
doente Tudo bem a humilhação, mas o pai
samba? samba … samba! daquele
benguela Racista tem poder na cidade, deixa pra
banguela Lá, você entra numa briga, te matam e
bantu Depois, quem fica morto é você, nada
urubu Acontece com ele, escuta também aquela
o povo zomba Outra voz, mais próxima, ou é isso ou a
a fome comendo o dia. […]
ria? ria… ria! Afinal ​—​ e vem outro instante dessa mesma
tosse Voz ​—​ os negros têm uma participação
torse Violenta no processo social brasileiro,
contorse Violenta, ouviram? Violenta, ouviram?
agonia Violenta, porra!, como violenta? ​
é noite —​  pergunta
não Um militante ​—, eu quis dizer ​—​ argumenta
é dia Aquela voz ​—​  importante, significativa,
o filho Sabe, na culinária, sabe, na capoeira, sabe,
a filha Na música, sabe, na religião, sabe, mas
a família Olha que cabelo lindo! Lindo! O que a
trapo Gente precisa é fazer muita pesquisa e
tripa Mostrar para as pessoas preconceituosas
forca/forquilha7 Que os negros são muito importantes para
O Brasil, mas sem briga, sem guerra, o
Ampliando o panorama, chegamos a Anelito Brasil é mesmo uma democracia racial
de Oliveira (1970), cujas publicações se
iniciam em 2000 com Lama e prosseguem
alternando ensaio, ficção e, sobretudo, poesia, 6 PEREIRA, Waldemar Euzébio. In:
como no volume Degredo, de 2019. Para Quilombhoje (Org.). Cadernos
Negros – os melhores poemas. São
este trabalho, impõe-se destacar um trecho Paulo: Quilombhoje, 1998, p. 126.
de Três festas: a love song as Monk, de 2004,
livro no qual o autor mergulha na arena 7 Ibid. Do cinza ao negro. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 1993,
discursiva contemporânea, num dialogis- p. 35. Os poemas são intitulados
mo que aproxima falas opostas em ritmo por números.

54
E é também por isso que vai ser um fruta, ou comprava, não ficava atemoriza-
grande da, todos têm o bom senso. Se o homem
País, vamos tomar uma cerveja, vamos?! rouba, é porque ele é canalha.
Você viu a novela das 8? E o big brother? Passados uns dias, resolvi entrar no
[…] 8 quintal da vizinha. Quando fui pegar
uma manga, a cobra foi pondo a boca.
Após esse breve panorama da poesia afro- Assustei, perdi o equilíbrio e a noção.
-brasileira feita em Minas, é chegada a hora Fui desprendendo-me de cima para
de visitar a prosa. E não há como deixar de baixo, batendo nos troncos e caí no solo
lado o memorialismo de Carolina Maria de semi-inconsciente. Esqueci que estava
Jesus (1914–1977), mineira de Sacramento, e furtando as mangas. Comecei a gemer, os
vítima da diáspora interna que a desloca para cães, ouvindo-me gemer, ladraram e as
o Rio de Janeiro e, em seguida, São Paulo. Lá, galinhas cacarejaram. A dona Faustina foi
desponta como primeira escritora a fazer a averiguar o que havia. Encontrou-me com
crítica do processo de modernização exclu- o seio recheado de mangas. Dirigiu-me
dente instalado no país a partir da perspectiva um olhar que amedrontou-me. Percebi
de suas próprias vítimas. Submetida à fome e que ela era avarenta. Repreendeu-me!
à miséria, abandonada pelos três pais de seus — Então é você quem rouba as minhas
três filhos, apesar da pouca escolarização, frutas. Negrinha vagabunda. Negro
tem publicados até o momento nove títulos, a não presta.
maioria deles após sua morte, em 1977. E os Respondi:
arquivos ainda conservam inéditos de ficção à — Os brancos também são ladrões
espera dos editores. porque roubaram os negros da África.
Seu livro mais conhecido, Quarto de des- Ela olhou-me com nojo.
pejo, de 1960, está traduzido em 14 idiomas e — Imagina só se eu ia até a África para
circula em 46 países. Desvinculada do projeto trazer vocês… Eu não gosto de maca-
estético da literatura negra, coloca-se, toda- cos. […].9
via, como voz autorizada pela trajetória de
agruras e sofrimentos a expressar o lugar de A contundência da cena vivida pela criança
fala da mulher reduzida a objeto sexual e força fala por si e confere à mulher adulta o neces-
de trabalho submissa. Em diversas passa- sário combustível para a inscrição memoria-
gens de seus escritos ressalta a humanidade lística. Com efeito, o passado de carências e
do sujeito negro, como em “Sócrates africano” constrangimentos, como o da injustificada
e outros. Abaixo, uma amostra de um texto prisão em Sacramento, ainda na adolescên-
pouco conhecido do público: cia10, não se faz traumático a ponto de calar
sua voz. Ao contrário, impele-a cada vez mais
— Se eu pudesse comprar isto! Se eu pu- à crônica da miséria presente nos “quartos de
desse comprar aquilo! despejo” humanos, instalados nos avessos
Vestia um vestido de minha mãe, das “salas de visita” das cidades brasileiras.
amarrava um barbante na cintura e pula- O impacto da recepção dos escritos caro-
va o muro da vizinha, trepava nas árvores, linianos sobre as gerações que se seguiram
colhia as frutas, ia introduzindo-as den- ainda está por ser devidamente aquilatado.
tro do seio, depois descia e ia saboreá-las.
Mas não sentia tranquilidade inte-
rior. O meu subconsciente me advertia 8 OLIVEIRA, Anelito de. Três festas, a
que havia praticado um ato indigno. Eu love song as Monk. Belo Horizonte:
Orobó Edições/Anome Livros,
não tenho coragem de roubar. Devo e 2004, pp. 24–5.
deverei lutar para conseguir tudo com
honestidade. Tinha a impressão que 9 JESUS, Carolina Maria de. “Os
negros”. In: Diário de Bitita. São
alguém sussurrava nos meus ouvidos ​ Paulo: SESI-SP Editora, 2014,
—​ seja honesta, seja honesta, seja honesta ​ pp. 57–8.
—​ como se fosse um tique-taque de um
10 Cf. FARIAS, Tom. Carolina, uma
relógio. Parece que eu tinha um preceptor biografia. Rio de Janeiro: Malê,
dirigindo-me. Quando eu ganhava uma 2018.

55
No entanto, um nome desponta, sem dúvida. Naquele dia, Maria-Nova levantara cedo,

FALAS DO NEGRO NAS LETRAS DE MINAS   EDUARDO ASSIS DUARTE


Em sua adolescência, Conceição Evaristo, visitara Vó Rita e andara muito para lá e
a esta altura já frequentadora da principal para cá pisando e repisando um chão que
biblioteca pública de Belo Horizonte, assiste tanto tempo fora seu. Os tratores estavam
a sua mãe, Joana Evaristo (1923), não só ler prontos para o trabalho do dia seguinte
Quarto de despejo como escrever ela também que seria eliminar o Buracão e aplainar a
seu diário de doméstica, como se constata área em que estavam os últimos barra-
nos excertos mais tarde inseridos pela filha na cos. A tarde chegou amena, Maria-Nova
brochura distribuída na Ocupação Conceição contemplou durante muito tempo o
Evaristo, realizada em São Paulo em 2017.11 pôr-do-sol. Teve vontade de ler e escre-
O dia a dia da mulher negra e pobre figura ver alguma coisa, mas já havia guardado
como leit motiv a percorrer em intensidade os livros e os cadernos num caixote que
variável os romances, contos e novelas de sempre lhe servira de cadeira ou mesa
Conceição Evaristo, e também se faz presen- quando ela assentava no chão. A noite
te em sua poesia. Já em 1991, o conto “Maria” ​ veio caindo lenta e carregada de pontos
—​ verdadeira obra-prima do que qualifiquei de luminosos lá no céu. Aquela seria a sua
brutalismo poético, como suplemento ao con- última noite na favela, todos partiriam
ceito de “brutalismo” formulado por Alfredo no dia seguinte. As coisas já estavam
Bosi ​—​ expunha em intensidade máxima o co- todas juntas. Tinha o corpo moído de
tidiano de violência que tomou conta das ci- cansaço. A tia e a mãe entregaram as
dades brasileiras a partir da segunda metade últimas trouxas de roupa. Não haviam
do século XX. Empregada doméstica, Maria confirmado e nem dispensado a freguesia.
volta para casa com os restos da comida dos Havia o medo, o incerto, o imprevisível
patrões, mas é linchada pelos passageiros do do amanhã. Mas havia a tenacidade, a
ônibus em que viajava, após ser poupada do força, o desejo de vida.
assalto ali ocorrido, por ser ex-companheira Maria-Nova havia feito no dia ante-
de um dos bandidos.12 rior as provas finais, tinha se despedido
A mescla de violência e sentimento, dos professores, dos colegas e dos amigos.
realismo cru e ternura marca a escrevivência Não voltaria no próximo ano, mas volta-
da autora e revela sua identificação com os ria a estudar um dia.
irmãos de cor colocados à margem do desen- Sua casa, um barracão caiado de bran-
volvimento. Desta postura surgem persona- co, montava sentinela na noite, numa área
gens como Di Lixão, menino de rua e filho de quase vazia. Maria-Nova deitou-se sobre o
uma prostituta assassinada; Ana Davenga, colchão rasgado, de barriga para cima. […]
favelada cujo aniversário é interrompido pelos Dormiu. E foi Vó Rita que veio no seu
tiros da polícia; Duzu-Querença, migrante último sono-sonho ali na favela.
desterrada e prostituída; ou ainda Natalina, Vó Rita entrou devagarinho no quarto.
estuprada que se vinga do último agressor De repente. Calada. […] Abriu a blusa e,
após ter seu corpo explorado desde a ado- através do negro luzidio e transparente
lescência. A elas se juntam Ponciá Vicêncio, de sua pele, via-se lá dentro um cora-
do romance homônimo, de 2003, já tradu- ção enorme.
zido em diversas línguas, inclusive para o E a cada batida do coração de Vó Rita
árabe; Maria-Nova, de Becos da memória nasciam os homens.
(2006), além de dezenas de outras, a figurar
nos volumes de contos e novelas, como em
Canção para ninar menino grande, de 2018.
11 Cf. EVARISTO, Joana. “Caderno
O diálogo com o memorialismo de Carolina de Dona Joana”. In: Ocupação
Maria de Jesus alicerça o projeto da escre- Conceição Evaristo. São Paulo: Itaú
vivência ​—​ que remete ainda à tradição da Cultural, 2017, encarte.

escrita negra do século XIX ​—​ e ganha corpo 12 Cf. EVARISTO, Conceição. “Maria”.
também na construção de espaços e seres In: Cadernos Negros 14. São
marcados pela subalternidade, como se lê Paulo: Quilombhoje, 1991, pp.
12–5. Reproduzido em EVARISTO,
no episódio de desfavelamento presente em Conceição. Olhos d’água. Rio de
Becos da memória: Janeiro: Pallas, 2014, pp. 39–42.

56
Todos os homens: negros, bran- de época autobiográfico e presumidamente
cos, azuis, amarelos, cor-de-rosa, des- verídico. O prólogo narra o achado casual
coloridos… desse manuscrito em português arcaico,
Do coração enorme, grande de Vó guardado por mais de um século na “Igreja
Rita, nascia a humanidade inteira.13 do Sacramento, na vila de Itaparica […] em
um cantinho dos fundos da casa paroquial”.14
Retirados das últimas páginas do romance, O suposto manuscrito, de autoria de uma
os parágrafos acima denotam sobretudo a ex-escrava e destinado a seu filho, nada mais
resiliência do sujeito negro despojado em é do que o romance em si. Ao final do prólogo,
seus direitos fundamentais, a começar pela Ana Maria Gonçalves se despede, não sem an-
moradia. Para os favelados, não há Lei de tes desejar “boa leitura” e explicar que “apenas
Usucapião que resista ao poder dominante, alguns trechos” são ficção e foram escritos
metaforizado nos tratores dos pretensos para cobrir partes perdidas do original. O
donos do “Buracão” e adjacências. Da mesma prefácio cumpre a função de paratexto meta-
forma, nos escritos de Carolina, a Lei do ficcional e com isto passa a integrar o enredo,
Ventre Livre e a própria Abolição figuram mais emoldurando a criação com a aura do discurso
como retórica vazia do que prática efetiva, testemunhal. A autora/prefaciadora se escon-
conforme se lê em suas narrativas, poemas de atrás de sua personagem e ainda provoca o
e letras de música. O passado de exploração leitor: “torço para que seja verdade, para que
e aviltamento de mulheres e homens negros, seja ela própria a pessoa que viveu e relatou
que atravessa a história do Brasil, se esten- quase tudo o que você vai ler nesse livro.” 15
dendo da Colônia ao Império e daí à Repúbli- Vinculado à descrença contemporânea que
ca, fundamenta o memorialismo de Carolina interpreta o discurso da História como narra-
de Jesus, tanto quanto a escrevivência de tiva,16 o texto de Ana Maria Gonçalves se faz
Conceição Evaristo, assim como as slave metaficção historiográfica para abrigar outros
narratives estadunidenses do século XIX se relatos, inclusive aqueles não-reconhecidos
fazem presentes na antecena dos romances como fontes científicas, origem de uma
de Toni Morrison e Alice Walker, para ficar- possível verdade dos fatos. Nesse dialogismo,
mos em exemplos mais evidentes. emergem as vozes de uma memória afro-
Essa tradição se renova no século XXI -brasileira colocada nos antípodas da história
e novamente chega a Minas. Se faz me- oficial, que tensiona o discurso do romance
taficção historiográfica nas páginas de rumo ao acoplamento de versões díspares. O
Ana Maria Gonçalves, marca presença enredo tem como protagonista Kehinde, avatar
nos contos-crônicas de Cidinha da Silva, e de Luiza Mahin, elevada a ícone do movimento
assume as formas curtas e multicores das negro no Brasil e supostamente mãe do poeta
narrativas infantis e juvenis de Júlio Emílio abolicionista Luiz Gama. Dentre as quase mil
Braz, Jussara Santos, Madu Costa, Patrícia páginas do romance, destaco a reflexão da
Santana, Nilma Lino Gomes e Jorge Dikamba. personagem sobre o “defeito de cor” vigente
Mineira de Ibiá, Ana Maria Gonçalves na legislação colonial portuguesa:
(1970) estreia em 2002 com a publicação de
Ao lado e à margem do que sentes por mim.
Por este tempo, já residia em Salvador, dedi- 13 EVARISTO, Conceição. Becos
cada ao levantamento de fontes documentais da memória. 2 ed. Florianópolis:
Editora Mulheres, 2013, pp. 254–6.
sobre a histórica Revolta dos Malês, ocorrida
em 1835. Publicado em 2006, seu romance 14 GONÇALVES, Ana Maria. Um de-
Um defeito de cor recebeu o Prêmio Casa feito de cor. Rio de Janeiro: Record,
2006, p. 15.
de las Américas no ano seguinte e acumula
milhares de exemplares vendidos no Brasil e 15 Ibid., p. 17, grifos nossos.
no exterior.
16 Cf. WHITE, Hayden. Meta-História.
A narrativa tem início com um prólogo da São Paulo: EDUSP, 1992; LA-
autora, em que esta situa historicamente o CAPRA, Dominick. History and criti-
enredo ao falar do projeto de escrever sobre cism. Ithaca, NY, Cornell University
Press, 1985; HUTCHEON, Linda.
o levante dos Malês. Para tanto, vale-se do Poética do pós-modernismo. Rio de
conhecido recurso do encontro de documento Janeiro: Imago, 1991.

57
fiquei muito espantada com o que ouvi desconstrói a pretensa leveza da crônica,

FALAS DO NEGRO NAS LETRAS DE MINAS   EDUARDO ASSIS DUARTE


logo depois, que em uma época não como se constata a seguir:
muito distante da nossa, os religiosos
europeus se perguntavam se os selvagens O menino negro aborda o casal de grin-
da África e os indígenas do Brasil pode- gos brancos na sorveteria. Pega no braço
riam ser considerados gente. Ou seja, eles do mais viril e faz gestos de abrir e fechar
tinham dúvida se nós éramos humanos e a boca, pra frente e para trás. Antes de
se podíamos ser admitidos como católi- dizer qualquer coisa, o mais feminino
cos, se conseguiríamos pensar o sufi- intervém: “ele quer sorvete, darling.”
ciente para entender o que significava tal O outro olha com ar de dúvida. Fa-
privilégio. Eu achava que era só no Brasil minto, o garoto tem os olhos muito dila-
que os pretos tinham que pedir licença do tados, parece estar sob o efeito de alguma
defeito de cor para serem padres, mas vi droga. O homem pega suavemente em seu
que não, que na África também era assim. ombro e pergunta-lhe o sabor. O garoto,
Aliás, em África, defeituosos deviam ser nervoso, se ajoelha e repete os gestos
os brancos, já que aquela era a nossa terra com a boca. Acrescenta mais um gesto, as
e éramos em maior número. O que pensei mãos abertas, dez dedos. O preço.
naquela hora, mas não disse, foi que me “Baby, vamos embora. Você oferece
sentia muito mais gente, muito mais sorvete e ele parece que só aceita se você
perfeita e vencedora que o padre. Não der mais dez reais. Não, não. Muito di-
tenho defeito algum e, talvez para mim, nheiro”. Na saída da sorveteria, enquanto
ser preta foi e é uma grande qualidade, os dois caminhavam de mãos dadas, o
pois se fosse branca não teria me esfor- menino esbraveja: “Gringo pão-duro!
çado tanto para provar do que sou capaz, Faço por cinco.” 19
a vida não teria exigido tanto esforço e
recompensado com tanto êxito.17 “Só derreal!” choca sobretudo por enfrentar os
tabus que cercam desde sempre a represen-
Outro nome a ser lembrado é Cidinha da tação da criança na literatura. E também por
Silva (1967). Nascida em Belo Horizonte e encenar o universo LGBT e a prostituição
presença constante nas redes sociais, conta decorrente da miséria, instalada inclusive
com treze títulos publicados até o momento, nos pontos turísticos do país. A crueza do
entre crônicas, contos, narrativas infantoju- narrado é realçada pela escolha vocabular,
venis e um volume de poesia, além de dois que dá o tom do texto, e pelo ritmo acelerado
textos dramatúrgicos já encenados e três da narrativa.
coletâneas organizadas com estudos no Excluída dos cursos de Letras e encarada
campo da Educação e da Cultura. Ativista do como “menor” ou “paraliteratura”, a escrita
que classifica como “bibliodiversidade”, seu
primeiro livro ​—​  Cada Tridente em seu lugar,
de 2006 ​—​ revela a opção pela crônica como
espaço para o enfoque do racismo institucio- 17 Ibid., p. 893.

nalizado e da condição subalterna imposta 18 Para Cidinha da Silva, “a crônica


aos afrodescendentes. Mulher de seu tempo e é um retrato do momento, do
de seu país, para lembrarmos a prescrição do sentimento, do pensamento, da
reflexão. É grito ou murmúrio,
também cronista Machado de Assis, a autora, clareira ensolarada ou porão cheio
sem deixar de lado questões que transcen- de bichos rastejantes e sonolentos,
dem o dia a dia, revela um apego crítico ao escondidos pelos cantos. Corte
fino de adaga, precisão de cutelo.
presente, que tem no ativismo digital sua E se é verdade que o romance
primeira ponte para o diálogo com os leitores. ganha o leitor por pontos e o conto
Em paralelo, penetra na ficção, em contos por nocaute, a crônica esgrima e
vence por W. O.”. In: O homem azul
voltados quase sempre para o cotidiano das do deserto. Rio de Janeiro: Malê,
alteridades sociais, étnicas e de gênero.18 2018, pp. 83–4.
Outro ponto a destacar é o acento de
19 Ibid. “Só derreal!”. In: Cada tridente
ironia ácida quando trata das desigualdades em seu lugar. 2 ed. Belo Horizonte:
sociais. Emerge então o “humor” com que Mazza Edições, 2007, p. 89.

58
para crianças e jovens vive um boom a partir dos griots. A trama evolui em seguida para
da década de 1970, momento em que o femi- dramatizar a invasão da aldeia, até então pa-
nismo e a revolução sexual quebram preceitos cífica, por um bando de “ladrões” cujo objetivo
e tabus arraigados há séculos. Minas Gerais é roubar, acima de tudo, “pessoas”:
assume o protagonismo da nova tendência,
com livros como O menino e o pinto do me- Um dia acordou com uma gritaria no
nino (1975) e Os rios morrem de sede (1976), meio da noite. Estava escuro e sua irmã-
de Wander Piroli (1931–2006); Pivete (1979), zinha chorava muito, parecia estar com
de Henry Correia de Araújo (1940); e ainda muito medo. Ele levantou-se para ver o
Dia de ver meu pai (1977), de Vivina de Assis que era e viu um monte de gente desco-
Viana (1940), entre outros. nhecida espalhada pela aldeia. Estavam
A escrita infantil e juvenil de tonalidade vestidos e pintados para a guerra, de
realista tem em Júlio Emílio Braz (1959) cara fechada. Tiravam as pessoas de suas
um de seus maiores expoentes. Mineiro de casas, outros pegavam as coisas de valor.
Manhumirim, Braz se fez autor mais do que Amani já ouvira falar deles, eram ladrões!
prolífico, pois ostenta até o momento perto de Alguns deles entraram em sua casa e leva-
duzentos livros publicados. E traz a condição ram sua mãe e sua irmãzinha. Um outro
da criança e do jovem negros para o centro de o pegou pelo braço e o levou para perto
muitas de suas narrativas, como Felicidade da fogueira. Pegaram sua irmãzinha e a
não tem cor, de 1994 ou Pretinha, eu?, de entregaram para uma das vovós da aldeia,
1997. Temas como o suicídio ou a prostitui- depois mandaram os outros fazerem uma
ção de jovens, presentes em Longas cartas fila, amarraram todos com uma corda e
para ninguém, de 2011 e Um conto de fim de começaram a caminhar.21
mundo, de 1995, compartilham sua vasta
bibliografia com títulos como Minhas férias, Aqui a África surge não como paraíso idílico,
de 2010, ou Lendas negras, de 2001, em que mas como espaço onde o conflito também
traduz narrativas ancestrais africanas para se faz presente. E gera resistências, como a
o leitor iniciante dos dias de hoje. Impera, do herói que consegue escapar dos inimigos
todavia, o registro realista crítico nos temas e voltar para, juntamente com os anciãos,
citados, aos quais se acrescentam o abando- reconstruir a aldeia e chorar a ausência dos
no infantil e a marginalidade precoce decor- escravizados.
rente da subcidadania. Destaque-se ainda o Lembramos agora as contribuições da
ponto de vista interno ao excluído como opção também belo-horizontina Madu Costa (1953),
estética e ideológica: que estreia em 2000 com A Janta da Anta,
a que se seguem Meninas negras e uma
Parece que eu nasci aos três anos, quando dezena de outros trabalhos voltados para o
conheci outros como eu e um deles, com leitor iniciante. Um dos traços de seu modo
seis anos mais, começou a me carregar no de escrever é a presença do poético, sempre
colo, pelos cantos silenciosos e assustado- a marcar sua narrativa com uma sonoridade
res do Morro da Providência. Ele foi meu e leveza que encantam à primeira vista. Vale
pai e minha mãe desde que me encontrou destacar também sua biografia de Zumbi
num monte de lixo na entrada do túnel dos Palmares, publicada em 2013, e toda
João Ricardo, bem pertinho da delegacia ela inscrita em formato de cordel, como na
que fecha à noite com medo de ladrão.20 estrofe a seguir:

Nessa linha se insere o também mineiro Jorge


Dikamba (1972), autor de Amani (2010), livro
em que situa o enredo na África dos tempos
da colonização. O herói é criança e vive um 20 BRAZ, Júlio Emílio. Pivete. Ilus-
trações de Pedro Arcene e Sérgio
cotidiano de tarefas comunitárias e de apren- Alves. São Paulo: Editora do Brasil,
dizagem diária com os mais velhos. O texto 1991, p. 12.
ressalta a terra de Amani como espaço civili-
21 DIKAMBA, Jorge. Amani. Ilustra-
zado, em que imperam o respeito mútuo e as ções de Juliana Buli. Belo Horizon-
tradições presentificadas pelos ensinamentos te: C/ Arte, 2010.

59
Zumbi deixou sua marca, valorizada em ambos, com Betina ensejando

FALAS DO NEGRO NAS LETRAS DE MINAS   EDUARDO ASSIS DUARTE


Zumbi nos deu seu exemplo. toda uma discussão sobre o cabelo crespo,
Morreu pela liberdade tema de extensa pesquisa da autora em seu
Em nós ainda vivendo. doutorado, e o tambor do menino traduzin-
Cada dia para o negro, do a veia musical de tantas contribuições à
É o vinte de novembro.22 nossa cultura.
Ressalte-se, ainda, Patrícia Santana, edu-
Outra autora a circular também pela escri- cadora mineira com três incursões de relevo
ta destinada a crianças e jovens é Jussara na literatura infantil afro-brasileira, a saber:
Santos (1963). Iniciada em 2002, com os Entremeio sem babado, de 2007; Minha mãe
contos De flores artificiais, a que se segue o é negra sim, de 2008; Cheirinho de neném,
volume, também de contos, Com afagos e de 2011. Perpassa em todos eles a chama da
margaridas, marcados ambos por encena- afirmação identitária que almeja se instalar
ções da violência urbana, sua trajetória inclui no horizonte de leitura de futuros cidadãos
ainda a poesia de Samba de santos, de 2015. conscientes de seus direitos e deveres.
Em Endira (2009), volta-se para o universo da Ao lado dos nomes lembrados, outros
puberdade, a narrar com preciosa delicadeza tantos compartilham a diversidade literária
o primeiro amor da protagonista. Já Crespim afro-mineira: Eustáquio José Rodrigues
(2013) mergulha de vez no universo da magia (1946), ficcionista e cineasta; Leda Maria
infantil e traz um personagem anjo e criança. Martins, poeta e crítica carioca com profun-
O personagem encabeça uma narrativa inova- das raízes mineiras; Marcos Antônio Dias
dora, sobretudo em função do público a que (1959), poeta; Ana Cruz (1965), poeta desde
se destina. Ouçamo-lo: cedo radicada no Rio de Janeiro; Rogério
Andrade Barbosa, ficcionista também criado
— Ô, tia. Ops! Quer dizer, madrinha (!) no Rio de Janeiro, autor de dezenas de livros
(respondeu o anjinho), infantis e juvenis, muitos deles localizados no
não quero ser Querubim, nem Serafim, continente africano, onde também residiu;
tão pouco Tonim. Aciomar de Oliveira (1972), poeta, ficcionista,
Esses, aqui, já são demais. crítico; Anízio Viana (1971), poeta, crítico, mú-
Tenho personalidade própria. sico; Elisa Pereira (1975), poeta e educadora
A senhora sabe, residente em Paraty – RJ; e ainda toda uma
Não toco harpa, nem trombeta, nova geração que desabrocha nos últimos
um dia, eu ainda guio lambreta (!) anos, como Nívea Sabino (1980), poeta e
E para evitar confusão, slamer; Grace Passô (1980), dramaturga e
deixa eu tocar percussão? atriz, entre tantos mais.
[…] São mulheres e homens a projetar suas
—​ Ataque se cura com atabaque! ​ vozes negras num coro dialógico de muitas
—​ replicou o afilhado, tonalidades e pontos de vista. Aproxima-os,
que já pegando o chocalho no entanto, a necessidade, quase sempre
foi logo marcando o ritmo premente, da literatura.
sem medo do som do tantã.
Os anjos ficaram em festa,
dançaram por mais de meia hora
feito os povos da floresta.23

O tema da musicalidade afro-brasileira per-


corre também as páginas infantis de Nilma
Lino Gomes (1961), conhecida por seu tra- 22 COSTA, Madu. Zumbi dos
balho como educadora e pelas pesquisas de Palmares. Ilustrações de Josias
Marinho. Belo Horizonte: Mazza,
grande relevância no campo da Pedagogia e 2013, p. 29.
dos Estudos Culturais. Sua primeira incursão
pela narrativa ficcional se dá com Betina, de 23 SANTOS, Jussara. Crespim. Ilus-
trações de Vivien Gonzaga. Belo
2009, ao qual se segue O menino do coração Horizonte: Impressões de Minas,
de tambor, de 2013. A identidade afro se vê 2013, pp. 8–10.

60
61
A “GERAÇÃO
SUPLEMENTO”
E O CONTO EM
MINAS GERAIS
ELIANA DA CONCEIÇÃO TOLENTINO

62
O conto é um gênero que suscita muitas Minas Gerais. Essa movimentação política
discussões. Escritores e teóricos buscam e intelectual envolvendo Belo Horizonte per-
apontar seus traços, como a unidade de mitiu que um ideário que valorizava as artes
tempo, espaço e ação, bem como o núme- ganhasse espaço.
ro reduzido de personagens. Em termos Israel Pinheiro retorna de Brasília para
históricos, pode-se dizer que é no século XIX Minas Gerais como governador, tendo sido
que ele se desenvolve como um dos gêneros eleito em 1965 e governando até 1970. Se, de
da literatura brasileira, tendo aqui como um lado, havia de sua parte um incentivo às
paradigmas os portugueses Eça de Queirós artes, de outro, a proximidade com escrito-
e Camilo Castelo Branco paradigmas da res e artistas configurava-se como forma
narrativa curta. Dentre os autores brasileiros de cooptação e controle de possíveis mani-
da mesma época, é Machado de Assis quem festações oposicionistas da classe artística.
tem a produção mais significativa. Entretanto, Sabe-se ser essa uma prática comum de
há outras escritas silenciadas, como aquelas governo, o que justificava a presença de
que ficaram esquecidas nos jornais e revistas, intelectuais na Imprensa Oficial, órgão que
muitas vezes de autores e autoras que, na publicava o Minas Gerais, jornal encarregado
juventude, iniciavam sua produção. Vários da publicação de atos governamentais. De
desses contistas iniciantes tomaram outros acordo com Werneck, no início da década de
rumos e seguiram outras carreiras, enquanto 1960, era um luxo da Imprensa Oficial contar
outros continuaram escrevendo e se tornaram com a atuação de um intelectual do porte de
atualmente nomes consagrados e atuantes Murilo Rubião, que, por se ver sem função,
no cenário da literatura brasileira. tomava como tarefa apenas redigir e revisar
Em se tratando da literatura produzida por leis e decretos estampadas no Minas Gerais.2
escritores mineiros, o conto apresenta certa A Imprensa Oficial, em contrapartida, patro-
especificidade. De um lado, temos Murilo cinava publicações desses intelectuais, como
Rubião como o principal representante do aconteceu com Os dragões e outros contos,
conto fantástico em Minas. Mas há também de Murilo Rubião, em edição de mil exempla-
outras vozes. Vozes essas que iniciaram sua res, com a data de 1965. Antes disso, Murilo
produção no Suplemento Literário do Minas Rubião já publicara, pela Universal, em 1947,
Gerais, por exemplo. E o papel de Murilo O Ex-mágico e, em 1953, A estrela vermelha,
Rubião se fez extraordinário na divulgação com apenas 116 exemplares, pela Hipocampo,
dessas outras tantas vozes, pois foi um dos editora de Geir Campos e Thiago de Mello.
idealizadores desse periódico. Contando com um número significativo de
A criação do Suplemento Literário do intelectuais trabalhando no seu governo e na
Minas Gerais, em 1966, deveu-se às políticas Imprensa Oficial, Israel Pinheiro projetou que
adotadas pelo governador Israel Pinheiro, o Minas Gerais trouxesse um encarte literário.
em seu mandato de 1965 a 1970. Israel Foi Raul Bernardo Nelson de Senna, sobrinho
Pinheiro era amigo e auxiliar do ex-presidente e secretário do governador, quem expôs aos
Juscelino Kubitschek, que sempre se cercara intelectuais, que já trabalhavam na redação
de intelectuais durante seus mandatos tanto da Imprensa Oficial, Murilo Rubião, Aires da
como prefeito de Belo Horizonte (1940–1945) Mata Machado Filho e Bueno de Rivera, o
como governador de Minas (1951–1955) e novo projeto, encarte de uma página em que
presidente do Brasil (1956–1961). Quan- se poderia publicar alguma literatura. A cria-
do governador de Minas, ao seu lado teve ção dessa página de notícias literárias traria a
escritores como Cyro dos Anjos, Murilo possibilidade de integração do estado através
Rubião, Cristiano Martins, Autran Dourado, da literatura, uma vez que em muitos lugares
Fábio Lucas, Rui Mourão, Affonso Ávila e o o acesso a um jornal impresso, naqueles idos
carioca Augusto Frederico Schmidt, que era de 1960, se dava apenas via o Minas Gerais.
seu ghost writer.1 A construção do complexo Com o órgão oficial do governo, que tinha
arquitetônico da Pampulha, sob a batuta de
Oscar Niemeyer, juntamente com o enge-
nheiro Joaquim Cardoso, o paisagista Burle
1 WERNECK, 1992, pp. 134–5.
Marx e o artista plástico Cândido Portina-
ri deu início ao modernismo arquitetônico em 2 Idem, 1992, p. 177.

63
uma tiragem de 27 mil exemplares, esse su- radiografia da nova geração que atuava em

A “GERAÇÃO SUPLEMENTO” E O CONTO EM MINAS GERAIS   ELIANA DA CONCEIÇÃO TOLENTINO


plemento chegaria a quase 200 localidades vários jornais e revistas, como Ptyx, Vereda,
de Minas Gerais. A partir desse projeto inicial ​ Estória, Texto, Porta etc. Murilo Rubião, nesse
—​ uma página semanal dedicada à literatura número especial, traça um eixo e uma iden-
e às artes, que sairia aos sábados ​—, Affonso tidade para uma geração que tinha origem
Ávila redigiu o anteprojeto de lei que instalou em vários grupos ​—​ a geração suplemento.6
oficialmente o Suplemento do Minas Gerais Essas edições especiais e comemorativas
(cf. figura 1 e figura 2).3 desenhavam um painel da literatura e das ou-
Por tratar-se de periódico elaborado por tras artes, testemunhando assim um diálogo
então jovens intelectuais, o Suplemento tinha interdisciplinar entre as diferentes manifesta-
especial cuidado em divulgar a literatura de ções artísticas.
jovens. Assim, é expressiva a participação dos Essa longa abordagem da história do
“novos” em seções, como “O escritor mineiro Suplemento Literário deve-se principalmente
quando jovem”, “Os novos de toda parte” e ao fato de ele ter sido um celeiro de produ-
“Novos em antologia”. ção e de divulgação de autores que surgiam
“O escritor mineiro quando jovem” inicia- naqueles idos de 1960 e 1970 não só em
-se em julho de 1969 e termina em janeiro de Minas Gerais como também no Brasil. Nesse
1970, num total de doze seções. A coluna visa- contexto, por ele desfilava um número signi-
va à publicação de textos de estreantes escri- ficativo de contistas que despontavam no ce-
tores mineiros da capital e do interior. Os dois nário cultural. De fato, a presença dos jovens
responsáveis pela coluna eram Humberto contistas no Suplemento integra o que foi
Werneck e Carlos Roberto Pellegrino. Na pri- chamado de boom do conto no Brasil, capita-
meira edição, a seção ocupa duas páginas e neado pela geração de jovens escritores das
traz um longo ensaio acerca de Luís Gonzaga Minas Gerais; saídos, em sua grande maioria,
Vieira, com o título “Luís Gonzaga Vieira: por como afirma Duílio Gomes, do Suplemento
uma literatura mal-comportada”. Trata-se Literário de Minas Gerais.7 Considerando as
de uma entrevista-depoimento-reportagem, décadas de 1960–1970, podemos citar escri-
com fotos do escritor e trechos de sua obra ou tores, como Luiz Vilela, Antônio Carlos Braga,
poemas. Assim acontece também nas outras Sérgio Sant’Anna, Carlos Roberto Pellegrino,
edições, em que se focalizam vários escritores ​ Luís Gonzaga Vieira, Jaime Prado Gouvêa,
—​ não havendo nenhuma escritora. José Márcio Penido, Humberto Werneck,
A partir do número 179 do Suplemento, a Sérgio Danilo, Sérgio Tross e José Francisco
seção passa a se chamar “Os novos de toda Rezek. Além desses, também as mulheres se
parte”, sob os cuidados de autores diver-
sos, como os mesmos Humberto Werneck
e Carlos Roberto Pellegrino, que assinam 3 Cf. GUIMARÃES, Julio Castanõn.
juntos quatro edições, Humberto Werneck Um poeta de Minas e do mundo.
In: Suplemento Literário do Minas
assinando-a sozinho ou ainda com outros Gerais. Belo Horizonte, maio de
autores, como Jaime Prado Gouvêa, apa- 2008, n°. 1311, pp. 12–3. Disponível
recendo ainda Luís Gonzaga Vieira, Sérgio em: <cultura.mg.gov.br/files/
2008-maio-1311.pdf>. Acesso em
Tross, Luís Márcio Vianna e Duílio Gomes. “Os 23/05/2019.
novos de toda parte” começa em 31 de janeiro
de 1970 e vai até novembro do mesmo ano, 4 Cf. TOLENTINO, Eliana da
Conceição. Literatura Portuguesa
num total de oito edições. Segundo Humberto no Suplemento Literário do Minas
Werneck, em entrevista a mim concedida em Gerais: relações Brasil/Portugal.
julho de 2005, essa seção é consequência da Disponível em: <repositorio.ufmg.
br/handle/1843/ALDR-6WEQ3P>.
anterior, pois a ideia era ampliar os depoi-
mentos e as entrevistas para escritores de 5 WERNECK, 1992, p. 180.
outros estados.4
6 Cf. NUNES, Eliana Miriam Ferreira.
Um número especial de 1968, em edição Geração suplemento: memória e
dupla, intitulado “Os novos” e dedicado representação cultural. Dispo-
aos jovens escritores e artistas, é, segundo nível em: <repositorio.ufop.br/
handle/123456789/2855>.
Werneck, um dos mais importantes.5 Além de
promover uma arqueologia cultural, fez uma 7 GOMES, 2005.

64
fizeram presentes, como Maria Lysia Corrêa feminina”, há dezenove contos de autoras,
de Araújo, Zilah Corrêa de Araújo, Lucienne que revelam uma produção expressiva nos
Samôr, Eliane Zagury, Alciene Ribeiro Leite, anos 1960–1970. Mesmo neste caso, contu-
Nelly Novaes Coelho, Tânia Jamardo Faillace, do, figuram apenas duas contistas mineiras:
entre outras. Perpassa, nos contos publica- Rachel Jardim e Vivina de Assis Viana.
dos no Suplemento, o contexto da ditadura No caso do Suplemento, constata-se a
militar, as principais temáticas retratando o publicação, nesse período, de contos de cerca
modo como a literatura apreendeu e transfi- de vinte e oito mulheres10. Essas contistas
gurou o período de exceção vivido pelo país, também escreviam crítica literária, não se
isso sem prejuízo da variedade temática e da podendo deixar de mencionar o papel impor-
liberdade de criação. tante que teve Laís Corrêa de Araújo junto ao
Ressalta-se, segundo Sérgio Sant’Anna, a grupo do Suplemento. Laís Corrêa de Araújo
importância do Suplemento Literário para os desde os anos 1950, participara também da
novos contistas deveu-se ao fato de cumprir criação de revistas, como Vocação e Tendên-
ele a função de referência para a geração dos cia. A presença de contistas no Suplemento
jovens mineiros.8 Foi nas páginas do periódi- revela um número variado de atuação: se
co, na convivência na sala Carlos Drummond algumas publicaram apenas uma vez, há
de Andrade, na Imprensa Oficial, nos bares e outras que participaram com mais de uma
ruas de Belo Horizonte que essa geração foi publicação. Entre elas, podemos citar Alciene
se formando, se constituindo, se construindo. Ribeiro Leite, Ana Cecília Carvalho, Astrid
Duílio Gomes, por exemplo, afirma ser Cabral, Carmen Schneider Guimarães, Celina
Ferreira Cardoso, Cidinha Lintz Machado
um escritor nascido de suplementos e Silva, Dagmar Trindade, Eliane Zagury, Farida
revistas literárias. Inclusive os críticos Issa, Irene de Melo Neves, Lucia Helena,
percebem isto, porque eles falam em gru- Lucienne Samôr, Maria Amélia de Mello,
po ‘Estória’, grupo ‘Suplemento Literá- Maria Auxiliadora Moreira Duarte, Maria
rio’, e esse movimento parece que foi um Helena Rouanet, Maria Dinorah, Maria Lysia
marco mesmo, em 65, 66. […] Em 66, eu Corrêa de Araújo, Martha Carvalho Rocha,
entrei no concurso da Revista Literária Mariza Vitória Pettinelli, Myriam Campello,
da Universidade Federal de Minas Gerais Ruth Maria Barbosa, Rachel Jardim, Sandra
e tirei o primeiro lugar. E a partir daí o Lyon, Sandra Siqueira, Tânia Jamardo
negócio começou a crescer pra mim, eu Faillace, Vilma Áreas, Wanda Figueiredo
conheci o pessoal da revista Estória. Nes- e Zilah Corrêa de Araújo. Ressalte-se que
se mesmo ano eu já estava publicando no Wanda Figueiredo, Teresinha Azerêdo,
‘Suplemento Literário do Minas Gerais’, e Lucienne Samôr, Maria Luiza Ramos e
também o pessoal todo da Estória estava Fernando Rios já haviam feito parte do grupo
no Suplemento.9 da revista Estória.
De temática variada, os contos dessas
Um aspecto que deve ser considerado é o escritoras abordam, em geral, situações
que se poderia chamar de “silenciamento” cotidianas, problemas intimistas ou existen-
da voz feminina nas abordagens do boom ciais, bem como questões sociais de exclusão,
de contistas, em termos gerais. Tomando com incursões no contexto político da época.
como referência o livro organizado por Ítalo
Moriconi, Os cem melhores contos brasileiros
do século, publicado em 2000, nota-se que,
na parte dedicada aos anos 1970, aparecem 8 SANT’ANNA, 1968.

apenas cinco contistas mulheres. Contudo, 9 GOMES, 1977, p. 4, 8.


a fim de fazer um cotejamento comparativo
à antologia, pode-se tomar como referência 10 Cf. BALIEIRO, Deise Mara. Mário/
Vera Brasil, 1962–1964 de Tania
a coletânea organizada por Edla van Steen, Jamardo Faillace: o tecer de
O conto da mulher brasileira, publicada em um tempo é o tecer da escrita.
1978 e republicada em 2008. Na edição de Disponível em: <https://ufsj.edu.
br/portal2-repositorio/File/mest​
1978, que, segundo a organizadora, pre- letras/Dissertacao%20Deise%20
tendeu “traçar um panorama da literatura Mara%20Balieiro(1).pdf >.

65
Quanto às técnicas narrativas, torna-se escritores, as quais em muito contribuíram

A “GERAÇÃO SUPLEMENTO” E O CONTO EM MINAS GERAIS   ELIANA DA CONCEIÇÃO TOLENTINO


relevante destacar a exploração da liberdade para o lançamento de suas produções. Luiz
de criação que o gênero permite, justamente Vilela e Luís Gonzaga Vieira, por exemplo,
por sua maleabilidade e confluências com estavam entre os idealizadores da Revista
outras formas de composição literária, como Literária da Universidade de Minas Gerais,
o poema e o romance. Esses contos repre- que surge também em 1966 e permanece
sentam uma forma de intervenção política até 2002. Quem dela participava passava por
no ambiente de exceção que se instalara no uma seleção, sob a forma de um concurso
Brasil a partir de 1964 e também de inter- que premiava os melhores contos e poemas.
venção numa sociedade em que, embora à Ter o texto publicado no periódico, como afir-
mulher fosse permitido o acesso a um periódi- ma Claver, era uma forma de reconhecimento,
co, ainda cabia a ela lutar e marcar seu lugar um incentivo para que se continuasse a escre-
para conseguir o reconhecimento enquanto ver, como fizeram escritores, como o próprio
escritora, enquanto intelectual atuante no Ronald Claver, Guiomar de Grammont e
processo de constituição de seu país e da Humberto Werneck. Muitos desses pioneiros
sua literatura. da cena cultural de Minas permanecem no
Süssekind aponta que, ao mesmo tempo cenário da literatura brasileira e são referên-
em que a censura vai ficando cada vez mais cias até a contemporaneidade, como Duílio
rigorosa, no ano de 1975 assiste-se a um con- Gomes, Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna, Eliane
siderável crescimento do mercado editorial Zagury, Tânia Jamardo Faillace, entre outros.
no país.11 O Suplemento Literário torna-se
então um importante espaço para a divul-
gação de novos escritores, publicando não
somente contos e poemas, mas também uma
quantidade importante de resenhas. Apesar
do número elevado de contistas da Geração
Suplemento, a maior parte deles, tanto os
homens quanto as mulheres, estavam de fato
à margem do mercado editorial, pois eram
ainda jovens, tanto no sentido de vivência
quanto no sentido de que muitos eram
estreantes no seu fazer literário. Em depoi-
mento por ocasião dos 50 anos da Revista
Literária do Corpo Discente da UFMG, Ronald
Claver afirma:

O mundo explodia em ditaduras e revol-


tas. A paz era apenas uma palavra muda
no jardim do arbítrio. O inimigo tinha
olhos velados e se escondia atrás das
portas secretas e perigosas. Nosso alvo,
além de recuperar a democracia, era ser
publicado pela Revista Literária e pelo
Suplemento Literário de Minas Gerais, que
saía todos os sábados.
Os anos 60 acabaram. A ditadura
continuou mais feroz e infeliz. A litera-
tura era o nosso palanque e passeata. O
inimigo continuava o mesmo, e continua-
mos desafiando com palavras de rebeldia
e metáforas o chumbo daqueles anos.12
11 SÜSSEKIND, 2004.
Há que ressaltar, enfim, o papel das revistas
literárias como espaços para os então jovens 12 CLAVER, 2017, pp. 2–3.

66
FIGURA 1

67
A “GERAÇÃO SUPLEMENTO” E O CONTO EM MINAS GERAIS   ELIANA DA CONCEIÇÃO TOLENTINO

FIGURA 2 GUIMARÃES, Julio Castanõn. Um poeta de


Minas e do mundo. In: Suplemento Literário do
Minas Gerais. Belo Horizonte, maio de 2008,
n°. 1311, pp. 12–3. Disponível em: <www.cultura.
mg.gov.br/files/2008-maio-1311.pdf>. Acesso em
23/05/2019. [Figuras 1 e 2]

68
REFERÊNCIAS

BALIEIRO, Deise Mara. Mário/Vera Brasil, 1962–1964 de Tania Jamardo Faillace: o


tecer de um tempo é o tecer da escrita. Dissertação de mestrado. São João del-Rei:
2015. Disponível em : <https://ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/mestletras/
Dissertacao%20Deise%20Mara%20Balieiro(1).pdf>.
CLAVER, Ronald. Muito mais que um quadro na parede. In: Boletim 2017, n. 1970 –
Ano 43 – 27 de março de 2017, pp. 2–3.
GOMES, Duílio. A riqueza da literatura. (Depoimento a Maria Cristina Bahia). Verde
suicida. São Paulo: Ed. Ática, 1977.
———. Suplemento Literário de Minas Gerais: da origem aos dias atuais. Mesa redonda
realizada no dia 15 de agosto de 2005. Participantes: Humberto Werneck/SP,
Sebastião Nunes/MG, Marcio Sampaio/MG, Haydée Ribeiro Coelho/MG e Camila
Diniz/MG (Coordenadora/Editora do SLMG). 6º Salão do Livro de Minas Gerais &
Encontro de Literatura. Serraria Souza Pinto, Belo Horizonte: 11 a 21 de agosto de 2005.
GUIMARÃES, Julio Castanõn. Um poeta de Minas e do mundo. In: Suplemento Literário
do Minas Gerais. Belo Horizonte, maio de 2008, n. 1311, pp. 12–3. Disponível em:
<cultura.mg.gov.br/files/2008-maio-1311.pdf>. Acesso em 23/05/2019.
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Objetiva, 2000.
MIRANDA, Wander Melo (Org.). Anos JK: margens da modernidade. São Paulo:
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cultural. Dissertação de mestrado. Mariana: 2012. Disponível em: <repositorio.ufop.br/
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GERAIS. Suplemento Literário. Belo Horizonte: v. 3, n. 84, abr. 1968, p. 3.
STEEN, E. V. (Org.). O conto da mulher brasileira. São Paulo: Vertente Editora, 1978.
SUPLEMENTO LITERÁRIO. Suplemento Literário de Minas Gerais. Disponível em:
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SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2. ed. revista,
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
TOLENTINO, Eliana da Conceição. Literatura Portuguesa no Suplemento Literário do
Minas Gerais: relações Brasil/Portugal. Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG,
2006. Disponível em: <repositorio.ufmg.br/handle/1843/ALDR-6WEQ3P>.
WERNECK, H. O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.

69
OS BENS E O
SANGUE:
O ROMANCE EM
MINAS, ENTRE
A MOBILIDADE E
O IMOBILISMO
EMÍLIO MACIEL e não saibas se a vida é ou foi

para Rogério Lopes Carlos Drummond de Andrade


“Versos à boca da noite”

70
Na primeira seção do Guia de Ouro Preto, de paredes ​—, parece contribuir mais ou menos
Manuel Bandeira, há um comentário que, à revelia para tal operação de despiste, cujo
enunciado com a proverbial falta de ênfase efeito é dar ares de coisa perdida no tempo a
do poeta pernambucano, parece condensar, um processo cujos condicionantes são muito
num só golpe, muitas das maiores aporias e mais próximos e tangíveis do que se supõe.
impasses do gênero romanesco. Detendo-se Tema que pode ser facilmente mapeado
sobre a estranha aura de decadência que em muitos dos maiores romances escritos na
emana da antiga capital mineira, “cujo ar terra de Aleijadinho, trata-se de um elemento
de prestigiosa velhice tanto nos comove”, o que, ao colocar em pauta esse estranho corro-
trecho destaca o caráter extremamente curto sivo invisível chamado Tempo, guarda bem
do fastígio do Ciclo do Ouro, bem como a mais que uma afinidade eletiva com as ques-
decadência “rápida e súbita” que lhe seguiu, tões de praxe associados ao gênero romance,
cobrindo tal período um arco no qual, a bem dispositivo, como se sabe, que, desempe-
dizer, muitos dos principais marcos arquite- nhando, na Modernidade, função análoga
tônicos e artísticos da cidade sequer haviam à epopeia no seu compromisso em mapear
sido construídos ou planejados. Daí, talvez, a a “totalidade extensiva da vida”, toma por dire-
estranheza provocada pelo exercício de enge- triz justo o embate entre as vidas individuais e
nharia reversa a que o texto convida, quando, a história finalmente concebida como resulta-
tentando imaginar a cidade mineira em seu do contingente do agir e sofrer humano. Mais
auge econômico ​—​ eliminados da cena tanto que isso: ao escolher como foco o que Hegel
a Casa dos Contos quanto a Igreja de São chamara certa vez de “lento esfriamento dos
Francisco, tanto o Palácio dos Governadores entusiasmos juvenis” ​—​ no atrito entre a apos-
quanto a Igreja do Carmo ​—, nos vemos força- ta generosa de um eu buscando sua Bildung
dos então a suprimir do mapa muitas de suas e a trama de resistências com que ele precisa
mais indefectíveis assinaturas, que se desve- negociar para dar o mínimo de efetividade às
lam assim como a mera fachada brilhante de suas pretensões ​—, o gênero em questão tor-
uma decadência que já comia pelas bordas. na-se por isso mesmo um palco privilegiado
Na sinopse proposta pelo poeta, portanto ​ para acompanhar a ação furtiva e letal desse
—​ para quem a referida impressão de antigui- vetor corrosivo, descrevendo então uma curva
dade não seria senão ilusão de ótica gerada descendente onde é a própria força performa-
pelo ritmo abrupto e acelerado desse declínio ​ tiva de cada promessa que vai pouco a pouco
—, é possível que o elemento mais complexo cedendo vez a um cansaço difuso e só apa-
desse jogo de forças diga respeito sobretudo rentemente sem causa, mas no qual, a rigor,
à dificuldade de desemaranhar os vetores em pode-se identificar a decantação de todos os
luta no inusitado choque de temporalidades fiascos e não coincidências que escandem o
que o trecho condensa, ao desentranhar um trajeto do eu. No cotejo com sua contraparte
insólito nexo de causalidade entre, de uma europeia, por sinal, que encontra seu caso
parte, o “comovente ar de antiguidade” de paradigmático nos jovens ambiciosos de
que a cidade se reveste e, de outra, a rapidez Balzac ​—​ autor que, submetendo ao devido
com que Vila Rica se transformou, quase sem teste de realidade o mito de mobilidade social,
perceber, em Vila Pobre. Tornando momenta- abre pela primeira vez, sistematicamente, a
neamente indistinguíveis ultra-aceleração e possibilidade de ler com uma nota positiva o
ralentamento, e, numa só tacada, colocando conto do indivíduo capaz de transcender seu
em destaque exatamente o caráter quase lugar de origem ​—, é interessante perceber,
imperceptível dessa suave mas não menos por exemplo, como, uma vez aclimatada em
letal corrosão, o comentário algo telegráfico plagas mineiras, essa energia dá a impressão
de Bandeira torna-se, por isso mesmo, quase de ressurgir, praticamente do berço, como
uma instigação a ler no contrapé algumas força declinante; o que não deixa de ser até
imagens e tópicas de hábito associadas a cer- compreensível num meio onde, já a contar
ta tradição mineira, que, com seu apego ao do seu passivo brutalmente escravocrata e
tema das velhas casas em decadência ​—​ seja anti-igualitário, é a própria possibilidade de
na figura dos fazendeiros do ar desterrados vencer com o próprio esforço que tende a soar
na urbe, seja na clave mais trágico-dramática como um mix de autoengano e comédia ide-
de um último acerto de contas entre quatro ológica perversa. Para dizer o mínimo, é um

71
elemento tornado especialmente sensível em o efeito de unidade criado por um inesperado

OS BENS E O SANGUE: O ROMANCE EM MINAS, ENTRE A MOBILIDADE E O IMOBILISMO   EMÍLIO MACIEL


muitos dos principais protagonistas desses sobrepor de escalas e velocidades, em que a
romances, que, nem mal saídos dos 30 anos, aparente lentidão do ritmo com que as coisas
já soam como avatares precoces do Frederic fenecem ou morrem se dá a ver antes como o
Moreau de Flaubert ​—​ na eterna espera da efeito inercial e a posteriori de uma pletora de
“felicidade merecida pela grandeza de sua forças bloqueadas em gestos aparentemente
alma”. Fatalismo à parte, entretanto, uma vez mínimos, como um flerte ou um sonho acor-
transposta para o anfiteatro de montanhas dado, mas cuja insistência perfaz o derreter
de certas pequenas cidades mineiras, curioso em fogo brando do próprio eu romanesco.
perceber como tal singularidade tende a se Razão porque também, na contagem final,
cristalizar em tramas não de todo destituídas essa disposição para a todo custo aparar
de toques regressivos, com a tônica deslo- arestas e atenuar conflitos parece enlaçar
cando fortemente sua ênfase da esfera do mãos, na longa escala, com uma operação de
indivíduo para a da família, entendida como desmemória cujo êxito é sempre diretamente
um grande sistema de transmissão de culpas, proporcional à sua não-percepção, tendo por
recalques e taras. Sinalizando, assim, para a operador-chave o poder de, dando de ombros
sobrevida de uma certa necessidade trágica, aos muitos futuros do pretérito que assom-
em sua obsessão com linhagens malfadadas bram e tensionam o resultado final, apresen-
e antigos figurões provincianos, isso que res- tar como fait accompli o que sabemos ser em
ponde por um vago ar de parentesco ligando última análise apenas uma cristalização pro-
escritores tão distintos, como Lúcio Cardoso visória, ponto de encontro de um combinado
e Autran Dourado, Cyro dos Anjos e Silviano de forças em lenta, mas irreversível dispersão.
Santiago, encontra seu foco nos vários mo-
dos pelos quais a cultura tenta e consegue ROTINA E QUIMERA
disfarçar-se/dissimular-se em miragem de
natureza; operação, diga-se de passagem, Nesse contexto, ao se propor como o equiva-
que ​—​ se pensarmos na insistência com que a lente estrutural de um presente constitutiva-
história apaga si mesma no sisudo semblante mente inacabado e sempre por se revisar ​—​ e
de antiguidade dos velhos casarões ​—​ implica a milhas de distância portanto do conforto
em confundir algo perversamente o antes cognitivo fornecido pelo Zeus amplividente de
e o depois, causa e efeito etc. O que ajuda Homero, com sua capacidade de ao mesmo
também a entender, enfim, porque, uma vez tempo abraçar, coordenar e calibrar todos os
colocados em destaque esses e outros logros, pontos de vista restantes ​—, é interessante
aquilo que poderia parecer a princípio déficit notar como, ao mesmo tempo em que abre
de energia ​—​ para o qual muito contribui a seus flancos para as urgências e perguntas
própria pátina reacionária do velho conser- do agora, o romance torna-se também locus
vadorismo mineiro, com seu zelo em dar ares privilegiado para a observação de processos
de coisa natural para assimetrias e violências que chegam a ser quase imperceptíveis de
feitas de pau a pique ​—​ pode, dependendo tão sutis, mas cujo efeito doloroso torna-se
de onde se olhe, soar como um vertiginoso inegável na retrospecção final. Funcionando
e audacioso salto em flashforward, pulando em vários casos quase como um modelo re-
quase sem escalas de Balzac a Flaubert, no duzido do dia a dia metódico da classe média,
só gesto com que finca também seu pé-atrás e tendo na prosa um instrumento de admirá-
diante do encanto fácil do mito liberal do vel flexibilidade no que tange à captação dos
self-made man. Descontado, é claro, o forte detalhes, entraves e possibilidades do cotidia-
componente antimoderno dessa ojeriza à no, esse sóbrio debruçar-se sobre o presente
mudança ​—​ responsável por tornar muitos torna-se portanto um solo propício para
desses patriarcas pateticamente obcecados sondar a dramaticidade em surdina de vidas
com a sua falsa origem nobre, e com frequ- dedicadas a conter ou amortecer todos os so-
ência condenados a investir toda a energia bressaltos, que emergem aqui e ali como gra-
possível numa minuciosa ritualística apta a nulações esparsas na fria e inexorável ordem
convalidar o embuste ​—, é quase como se, do calendário. Encontrando muitas vezes na
enfim, na crosta de ceticismo, paralisia e reti- forma-diário uma câmera de eco perfeita para
cência que daí deflui, fosse possível discernir tais trepidações, trata-se de uma vertente

72
que, se em Defoe ainda devia muito ao ritmo o leitor com sua elegância, seja quando roça
da aventura, em autores como Jacobsen ou a insensibilidade extrema num mero dar de
Gontcharov, em contrapartida, transforma-se ombros ​—​ ao expor os infortúnios da moça
quase num exercício de miniaturista fixando assediada, para a qual Belmiro lança também
e discriminando pequenos mas decisivos olhares gulosos ​—, parece ir convertendo o
nuances, vocação que encontra, sem dúvida, seu pacto de cumplicidade num fino jogo de
em O Amanuense Belmiro (1937), de Cyro morde e assopra com as suscetibilidades da
dos Anjos, um tardio e admirável sucedâneo. plateia, que dá a impressão de nunca saber
Com seu enredo que cobre praticamente ao certo o que pensar do homem de pincenez.
todo o ano de 35 ​—​ como se sabe, um período Ato contínuo, que esse mesmo público, no
especialmente delicado e crispado da vida po- fim das contas, seja também quase coagido
lítica brasileira ​—, o desenho narrativo do livro a emitir sobre ele um juízo ​—​ e decidir até
dá a impressão de articular-se sob a forma de que ponto a neutralidade não é aqui apenas
uma suave construção em andaimes, em que uma cifra eloquente para a conivência ​—​ é um
a aparente placidez da superfície ​—​ na qual, problema que, ocupando até hoje a imagina-
entre uma evocação nostálgica e um devaneio ção de muitos de nossos melhores críticos, dá
lírico, acompanhamos o emergir e esvanecer bem a medida do vigor com que o romance
da paixonite de Belmiro por uma “jovem de logra conferir forma e lastro a certo mal-estar
boa família” ​—​ é o tempo todo tensionada por burguês, prensado a vida toda numa eterna
um ruído branco de baixa intensidade ema- sinuca de bico entre ação e omissão, entre
nando do fundo da cena, mas que se torna perturbar o sono do mundo levantando a voz
gradualmente mais áspero à medida que o num aparte e afogar os rancores do dia em
ano se encerra. Tendo como cenário principal mais uma rodada de chope.
a roda de chope de Belmiro ​—​ microcosmo no Numa tomada de helicóptero, portanto,
qual se fazem representar todas as grandes não seria difícil aproximar essa obra de toda
tendências políticas da época, do integra- uma vasta e gloriosa vertente do romance
lismo à extrema esquerda, passando pelo europeu, que, desde A educação sentimental
próprio escorregadio liberalismo à mineira do (1867), pelo menos, tem como uma de suas
nosso narrador ​—, é interessante notar, ainda, figuras-chave esse indivíduo que se mantém
como, em meio a um quadro potencialmente sempre à margem dos acontecimentos, topos
tão rico de dramaticidade, essa prosa opera que volta aqui temperado por toques de cor
antes como um facho suave e abrangente local um tanto quanto mórbidos. Conhecendo
banhando com a mesma luz uniforme todas um certo alívio cômico-grotesco nas figuras
as fendas e trincas ​—​ e, em certa medida, ao das duas irmãs malucas do protagonista ​
acrescentar os devidos freios e contrapesos —​ a primeira se comovendo em acalentar
a cada ação mais brusca, tentando reduzir as uma matilha de ratos, e a outra interpondo
próprias tensões políticas ao plano de uma sempre uma folha de papelão na mesa, para
conversa de bar, terreno onde nunca se sabe não precisar ver o rosto do irmão na hora do
muito bem onde termina a fronteira entre sé- almoço ​—, é um universo a que não faltam
rio e não sério. Em mais de um sentido, é uma colisões bizarras de ritmos abertamente
situação que parece ecoar a seu modo a fa- desencontrados, com óbvio destaque para o
migerada máxima absenteísta do conselheiro trecho em que Belmiro mobiliza sua rede de
Ayres (a saber: “nenhuma política vale uma contatos para tentar livrar da polícia o amigo
amizade”), não fosse por um excesso de auto- comunista ​—​ no que vale quase como um
consciência que, fazendo em vários momen- minicurso intensivo sobre o peso da media-
tos perigosamente indiscerníveis gentileza e ção do favor nas relações sociais brasilei-
má fé, vai se tornando mais e mais irritante ras. Passagem que por si só poderia render
quanto mais o livro avança ​—​ sem que nada se romances inteiros se devidamente indagada,
mostre capaz de perturbar a pachorra do seu interessante perceber como, para mantê-la na
tom monocórdico. Na dificuldade de saber até mera condição de fio solto, muito contribui o
que ponto isso seria ou não um efeito plane- próprio vaivém temático imposto pela forma-
jado, está, sem dúvida, uma das marcas mais -diário, no qual assuntos surgem, se adensam
eloquentes da imensa sofisticação formal e desaparecem ao sabor do momento, num
desse livro único, que, seja quando encanta ritmo que lembra um pouco a indiferença

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com que o jornal nivela o mínimo e o tremen- feitas” ​—, não há dúvida de que a força e

OS BENS E O SANGUE: O ROMANCE EM MINAS, ENTRE A MOBILIDADE E O IMOBILISMO   EMÍLIO MACIEL


do com uma simples mudança de página, agilidade que aí adquire a escrita de Cyro tem
pulando em segundos do crime bárbaro à muito a ver com a destreza como privilegia o
nota do jet set. No cômputo geral, porém, são mostrar em detrimento do julgar, limitando-se
elementos que, exatamente por jamais serem a colocar as cartas na mesa para que o leitor
desdobrados em imersão analítica ​—​ numa conclua. Com trechos que lembram em seu
prosa que parece roçar um vasto leque de pedantismo inflado o pior Otávio de Faria,
problemas sem nunca se aprofundar efetiva- são passagens que não deixam de funcio-
mente em nenhum deles ​—​ soam quase como nar como elogio por via interposta da sóbria
algarismos que se arredondam para baixo urbanidade da prosa belmiriana, que sobe
na contabilidade final da vida, onde mesmo ainda mais de cotação no cotejo com esses
o leve efeito de desencaixe que a presença enjoativos enclaves de mau gosto, sondando
de Belmiro instaura está longe de ser páreo os abismos do ser. Mas não se trata evidente-
para a ênfase colocada sobre a alternância mente de uma vitória sem ônus ​—​ e, para ficar
tão tipicamente burguesa entre dias úteis e apenas no plano da filigrana linguística, basta
feriados, que torna-se, contudo, quase uma destacar o vezo quase obsessivo com que o
tática diversionista diante do retrocesso narrador tira da manga o adjetivo “curioso”, a
político que marcará, no ano de 37, a implan- cada vez que esbarra numa incongruência de
tação do Estado Novo. De um extremo a outro algum amigo ou conhecido; o mesmo valendo
desse arco, entretanto ​—​ e aí talvez seja a para as frases onde, depois de deixar à vista
hora de começar a fechar um pouco o ângulo de todos o esnobismo e futilidade do jovem
da câmera ​—, é possível que o momento Glicério, o amanuense continua a se referir a
mais subversivamente cômico do livro inteiro ele como “um excelente rapaz”. Se é o caso de
dê-se no trecho que narra a passagem de destacar uma citação única, porém, que ao
Belmiro pela delegacia, quando, após ter sua mesmo tempo dramatiza e leva a um quase
casa vasculhada pelos homens do governo, o colapso esse ânimo contemporizador, difícil
amanuense tem seu diário apreendido pelo pensar em trecho mais feliz do que a pequena
delegado, que, depois de o ler de fora a fora, passagem dedicada ao amigo comunista,
decide liberar o funcionário, certo de que este cuja primeira frase é por si só um must insu-
não representa nenhum perigo para a ordem perável de misantropia mineira:
vigente. Mas não sem antes aconselhá-lo a ser
menos “platônico” em suas paixões. Comen- Para preservar nossa amizade, tenho pro-
tário que desperta mais uma vez em Belmiro curado pouco o Redelvim ultimamente. E
outro repelão de raiva reprimido ​—​ que este tenho-o conversado menos ainda, princi-
muito provavelmente depois se dedicará a palmente em presença de outras pessoas.
regurgitar, horas a fio, na solidão do quarto ​ Criva-me de ironias, aborrece-me. Não
—​ é um trecho que, se a princípio pode até lhes falei que ando sempre desconfiado.
levar quase todos a franzir de leve um dos Muitas vezes, ao chegar à casa, fico a
cantos da boca, ao menos no que se refere ao dar balanço às palavras trocadas com os
delegado, sugere claramente um leitor inapto amigos, com tanto maior desgosto de
a captar a sutileza da crítica em tom menor mim próprio, se notei que alguém, na
que o livro dirige à extrema direita, tendo roda, acolheu com sorriso irônico, algu-
por alvo principal a personagem de Silviano, ma palavra minha. E sou sempre gauche.
respeitável pai de família que, além de perse- Quando converso, as melhores ideias
guir nas horas vagas jovens que podiam ser ficam cá dentro, sem encontrar expressão,
suas filhas, escreve um denso estudo sobre o e frequentemente digo coisas que não
suicídio na intenção de recomendar-se para deveriam ser ditas e que, de ordinário,
um cargo público. E veja-se que nem che- são coisas não pensadas.1
gamos ainda ao momento ápice: sondagem
que atinge talvez o seu ponto de fervura no
momento em que lemos os trechos do livro “in
progress” do aspirante a catedrático ​—​ cuja
1 ANJOS, Cyro. O amanuense
qualidade o habilita, com louvor, ao título de Belmiro. Rio de Janeiro/Belo
colaborador vitalício do “Dicionário das ideias Horizonte: Garnier, 2001. p. 113

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Tendo como foco talvez uma das figuras ouvir pelo filtro de um terceiro os comentários
mais simpáticas e coerentes do livro inteiro ​ da bela Carmélia sobre o tímido amanuen-
—​ e nesse aspecto quase o oposto simétrico se, este passa a especular sobre o maior ou
do integralista Silviano ​—, esse trecho é um menor efeito de refração desse filtro sobre as
ótimo exemplo do ágil movimento de báscula pontadas de dor que lhe causam expressões
que dita o avanço da prosa, desenhando um como “homem de pincenez, alto, magro, ma-
crescendo que, depois de ameaçar se tornar duro” e “ficou com pena e resolveu alegrá-lo”,
mais agressivo, do salto de Redelvim aos num capítulo onde, enfim, no problema criado
amigos em geral, funciona quase como uma pela confiabilidade do discurso do outro,
pequena fenomenologia do ressentimento, reencontra-se a sigla de muitos dos impasses
flagrando o eu a remoer pelos cantos da casa gerados pela flexibilidade aparentemente
a réplica que deixou de emitir. De um extremo onívora da prosa de Belmiro. A mesma prosa,
do parágrafo a outro, porém, quando pensa- entretanto, que, ao defrontar-se com a maté-
mos já estar prestes a invadir a seara de um ria indigerível que lhe apresenta Glicério, se
Dostoiévski ou do Graciliano mais noturno, eis vê forçada a rever tudo em slow motion, para
que tal risco é rapidamente conjurado pelo medir o eventual efeito de distorção gerado
efeito de simetrização clássica da sinuosa por elipses e acréscimos. Nada a espantar:
última frase, que dissolve tudo num providen- afinal, num livro que tem a cautela de manter
cial empate técnico entre ditos e não-ditos. O isoladas entre parênteses aquelas que são,
mais impressionante, contudo, é que se consi- sem dúvida alguma, suas duas frases mais
derarmos ser exatamente a hesitação a nota terríveis (“Aqui, pelo menos, não há pedicuros.
dominante desse eu, uma análise mais detida Lá, arrancando as unhas, arrancam da gente
do trecho pode sugerir um quê de captatio o que querem”), é inegável que, se há um pon-
benevolentiae nessa autoacusação, que, ao to no qual o faro da narrativa para a dita “vida
destacar o lado desnecessariamente incômo- danificada” é especialmente agudo e atilado,
do de suas falas, chega até a soar engraçada é exatamente nas implicações potencialmen-
face os prodígios de circunlóquios a que esse te incontroláveis desse zelo excessivo com
se presta. Na leitura em contrapelo, ainda, se as palavras, ganhando de resto uma feição
pensarmos menos nos ditos não menciona- ofuscantemente paradoxal no trecho citado,
dos do que naquilo que toma o primeiro plano onde o parêntese é quase como um cordão
no início do trecho ​—​ destacando exatamente sanitário, isolando neuroticamente a violência
o lado “incubadora de rancores” em que per- do plano narrativo do livro. Conferindo por
verte-se o hábito do convívio ​—, é quase como isso mesmo um destaque inegável à piada de
se, no frigir dos ovos, essa desculpa apontas- humor negro do amigo de esquerda, capaz de
se, de viés, para o pequeno escândalo vindo à converter o terror/horror à espreita em hábil
tona na hora que essa prosa ameaça descar- jogo de dêiticos entre o lá e o aqui, é claro
rilar de vez nesse lado mais “Luis da Silva”, que, exatamente por ser tão concisa e certeira,
apenas para retomar logo depois a bitola uma notação como essa está condenada a
contemporizadora. A essa altura, porém, é ressoar como um zumbido obsedante sobre a
como se uma vez colocada em primeiro plano patética e aparentemente tão inofensiva falta
essa violência latente ​—​ que leva por exemplo de graça de certos episódios, como é o caso
o narrador a pular de Redelvim ao círculo do trecho em que Belmiro se dá ao desplante
inteiro, quase como quem atirasse a esmo ​—, de viajar até o Rio só para assistir sua amada
a leitura tivesse então que começar a redes- embarcando para a Europa em lua de mel
crever o livro nos termos de uma narrativa com o marido. Ou ainda, da cena onde entra,
secreta, que encontra seu ponto paroxístico quase sem saber, numa casa de prostitutas.
no inegável poder de corte de certos adjeti- Encontrando seu fecho, no capítulo 92, num
vos pseudo-elogiosos, como no momento lance que beira o pastelão ​—​ quando, já de
em que Jandira louva, escarninhamente, o volta a BH, Belmiro escapa por pouco de ser
caráter “tão analgésico” das suas conversas atropelado pelo casal de pombinhos ​—, a
com Belmiro. Nessa mesma direção, por sinal, suposta história de amor do amanuense, em
se é o caso de forçar um pouco mais a nota seus altos e baixos, constitui, como se vê,
no lado homem-subterrâneo, é possível que apenas a fachada mais evidente de um livro
nada supere os capítulos em que, depois de onde, como ilustra de modo especialmente

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magistral a passagem dos pedicuros, o quase como se fosse um cordão de proteção

OS BENS E O SANGUE: O ROMANCE EM MINAS, ENTRE A MOBILIDADE E O IMOBILISMO   EMÍLIO MACIEL


espaço mínimo dedicado a um dado proble- contra violências maiores, e que, sabe-se lá
ma pode ser nada mais que um truque para se por ignorância ou pura má-fé, mantém-se
exponenciar ao infinito o impacto que sua ao longo de todo O amanuense Belmiro como
consideração mais detida exercerá sobre o um mero eco longínquo, em meio à placidez
todo: efeito que não deixa, aliás, de nos forçar da província.
a reler de viés a legendária falta de ênfase Coincidência ou não, no motivo da bela
dessa dicção, que, ao figurar a própria violên- moça sem proteções, às voltas com o mundo
cia extrema como apenas uma folha a mais patriarcal, está também um dos fios conduto-
no meio de um renque de árvores, não poderia res dessa uma outra incontestável obra-prima
dar melhor medida da indiferença moral que do romance brasileiro que é Crônica da casa
lateja sob a superfície elegante dos dias que assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, livro
correm, e cujo esteio vem a ser justo a ilusão que não poderia estar, aliás, mais nos antípo-
de distância e segurança que este trecho tão das de Cyro em feição e dicção. Contraponto
brilhantemente destrói. Ficando obviamente que corre o risco de até incomodar pelo exces-
ao critério do leitor, e apenas dele, a respon- so de simetria, impossível negar, ainda assim,
sabilidade de tirar ou não as consequências o efeito de aclaramento gerado quando se
de tudo o que neste livro se deixa entreler, converte o livro do escritor montes-clarense
num abrir e fechar de parênteses. em pano de fundo do magnum opus de Lúcio,
que, em vários momentos, parece apenas
O TÚMULO DA PAZ reconfigurar em sequência de closes sufo-
cantes o que, naquele, não era mais que um
Constituindo, como se vê, uma tremenda detalhe pouco chamativo no canto extremo
façanha narrativa nos seus próprios termos, da cena. Com uma salutar diferença, porém:
esse pequeno espasmo de horror, rasgando na tocada muito mais drástica do autor de
um livro tão cordato, reforça mais uma vez a Maleita, é como se o que se dava em Cyro
filiação de Cyro à sutil ferocidade da melhor como um pequeno corte incisivo no fim de
tradição machadiana, com seu gosto por dizer uma subordinada aparecesse aqui embalado
as coisas mais aterradoras com a mesma numa retórica que se perfaz, com seu eterno
aparente displicência de quem pergunta as dedo em riste, como a bem-vinda nêmese
horas. No que se refere ao caso citado, por dos malabarismos diplomáticos do narrador/
sinal, é quase como se a obsessão do litote burocrata, que cede agora passagem a um
e do circunlóquio acabasse de repente se estridente e barulhento cortejo de anormais,
implodindo, num golpe surdo, pelo efeito de tendo como líder e porta-bandeira um desa-
ilegibilidade criado por esses dois inomináveis busado anti-herói queer. Num périplo que
parênteses, que já nem sabemos muito bem toma por eixo mais identificável a derrocada
para que servem: se para colocar toda a vio- dos Meneses, de Vila Velha, cidade imaginária
lência no extracampo da história, ou se para que é como um condensado de tudo o que há
converter a própria noção de primeiro plano de mais tóxico, maligno e claustrofóbico nas
em mera membrana protetora a ser rasgada, velhas vilas mineiras, a narrativa encontra seu
com um impacto e consistência, sem exagero, eixo de vertebração no intenso efeito catalíti-
que espalham então uma indelével nódoa de co gerado pela chegada, partida e retorno de
cumplicidade sobre todas as linhas restan- Nina, a bela e misteriosa moça carioca com
tes. Seja qual for a opção escolhida, porém, quem Valdo se casa; uma espécie de anjo ex-
se nos lembrarmos ainda do caso da bela terminador pasoliniano com trejeitos de Gene
moça solteira que reclama da falta de um pai Tierney. Apoiado no típico dispositivo moder-
ou irmão que a proteja da gula dos homens, nista da história em perspectivas múltiplas,
curioso perceber como, à luz da reverbera- onde o conhecimento que se tem da realidade
ção criada pelo horror entre parênteses, a é sempre mediado e distorcido pelas lentes
própria recusa de Belmiro em intervir opera específicas de cada voz narrativa, o livro se
como uma furtiva rima a distância com um constitui como um denso mosaico de textos
dos outros sentidos possíveis do trecho dos de feição diversa, desde os depoimentos de
pedicuros, onde é o próprio caráter provincia- figuras mais neutras, como o farmacêutico, o
no e periférico do cenário que tenta se vender médico, o padre e a criada inglesa, até cartas,

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trechos de diário e fragmentos memorialísti- Demétrio ​—, é como se o efeito bumerangue
cos de membros da família Meneses. Percor- gerado pelas intermináveis revelações cho-
rendo em quase 600 páginas um intervalo cantes ​—​ capazes de literalmente virar pelo
de pouco mais de quinze anos, a trama se avesso o sentido de várias cenas-chave ​—​ ti-
desdobra então como uma rede de círculos vesse que ser relativizado também pelo seu
concêntricos expandindo-se em torno de lado de peça difamatória, tendência levada
certos eventos escandalosos e jamais de todo ao paroxismo quando, no último capítulo do
esclarecidos, começando pela tentativa de livro, em sua confissão a padre Justino, Ana
suicídio de Valdo depois que Nina anuncia reivindica para si a maternidade de André, re-
seu plano de abandoná-lo, seguido, páginas gistrado como filho de Nina ​—​ num lance que,
depois, do efetivo suicídio do jardineiro que se pode até ser atenuado como mais uma
seria ​—​  segundo certas más línguas ​—​  o tacada mentirosa, produz ainda assim um
amante desta. Tudo convergindo finalmente efeito irreparável e duradouro nas supostas
até o ponto onde, uma década e meia mais cenas de incesto.
tarde, Nina volta à casa dos Meneses para Num livro que se propõe realizar a anato-
morrer de câncer, no que constitui também mia in extremis da velha burguesia mineira ​
o capítulo derradeiro de seu embate com o —​ uma burguesia, como se vê, que, nada
cunhado Demétrio ​—​ que, muito apropria- tendo da sobriedade, frugalidade e diligência
damente, depois de mandar queimar todas dos heróis de Weber e Mann, lembra antes
as suas roupas, se recusará a enterrá-la no uma versão mais canastrona de uma dinastia
jazigo da família. Lançando mão sem pudores ibérica nos estertores ​—, interessante notar
de toques folhetinescos e melodramáticos, como também o efeito de rebaixamento
mas abdicando também de dar uma resposta cômico atestado no plano das personagens
sólida e definitiva a muitas das dúvidas que tende a duplicar-se aqui, inclusive no plano
lança ​—​ sendo uma delas suscitada exata- do próprio dispositivo formal que dá corda
mente pela impressionante semelhança entre a tudo, e parece quase roçar a autoparódia
André, filho de Nina, e o jardineiro suicida ​—, é na falta de cerimônia com que tira novas
possível que o efeito mais perturbador dessa cartas da manga a cada nova página. Criando
sobreposição, que de modo algum chega a se assim um progressivo efeito de enublamento
constituir em quebra-cabeça inteiriço, diga na superfície dos fatos, boatos e mexericos,
respeito à ausência de um critério capaz de trata-se de um recurso que, se deve muito à
diferenciar minimamente a calúnia do me- tradição do melodrama no seu ímpeto de dizer
xerico, a loucura da infâmia deslavada, num tudo na cara e rasgar todos os véus, nem por
universo que, por ter exatamente na mentira isso deixa de exibir também uma vincada
uma de suas grandes moedas de troca, passa lucidez quanto aos limites estruturais de seu
completamente ao largo de qualquer fair play ângulo de visão; dilema, aliás, lapidarmente
epistemológico. Em certos momentos ​—​ e resumido numa das falas de André, quando
não dos mais suaves ​—, é um constructo que este comenta o modo como, à força de repisar
lembra um desenho progressivamente desfi- todos os fatos, acabaria perdendo deles “toda
gurado e esgarçado pelo excesso de acrés- noção real”, misturando e confundindo tudo.
cimos e retoques, a começar pela própria Cenário que torna a própria noção de pesa-
tentativa de Demétrio de vender o suicídio delo um termo por demais suave, nisso está
gorado do irmão como mero acidente; ou também um dos motivos pelos quais, tomada
ainda, para ficar num detalhe mais pontual, certa distância, vem muito a calhar o efeito
mas nem por isso menos decisivo, na dúvida centrípeto gerado de chofre pela intromissão
sobre que motivos teriam levado o homosse- no livro de certos padrões quase musicais,
xual Timóteo a jamais abandonar seu quarto criando ecos de longa distância entre perso-
do pavilhão ​—​ decisão, sobretons pascalianos nagens e cenas: como túneis que chegam a
à parte, que troca de sinal num estalo tão logo um mesmo lugar partindo de pontos distintos.
se fica sabendo da ameaça de Demétrio de Tendo por assinatura mais evidente, sem dúvi-
trancar a ovelha negra no hospício. Em outras da, o topos da ressurreição da carne evocado
passagens, porém ​—​ quando a narração é na epígrafe do evangelista ​—​ contrapondo de
assumida por esse grande monstro de inveja, um lado o mau cheiro do cadáver à crença ne-
ódio e rancor que é Ana Meneses, esposa de cessária para contemplar a “glória de deus” ​—,

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é interessante notar como, recuando alguns acontecidos pela mesma lógica tacanha de

OS BENS E O SANGUE: O ROMANCE EM MINAS, ENTRE A MOBILIDADE E O IMOBILISMO   EMÍLIO MACIEL


passos antes da cena do milagre, o trecho um contador de lojinha, para o qual tudo no
prefere centrar foco menos na epifania que na mundo se reduz, sempre e apenas, a custos
dor do intervalo, ao destacar a necessidade de, e lucros ​—, esse quase atávico horror ao dife-
face o fedor que emana do cadáver de quatro rente conhece uma expressão especialmente
dias, suportar o mal-estar que medeia o ne- perturbadora no trecho onde, especulando
cessário e torturante hiato entre promessa e sobre o câncer da rival, Ana acredita ter aí en-
pleroma. Daí, decerto, não obstante o caráter contrado nada mais, nada menos que a prova
esparso ao extremo de suas aparições, a im- da existência de Deus:
portância que tende a adquirir em retrospecto
uma figura como a do padre Justino, que, Não, era um castigo abrupto e sem
com sua ênfase numa religião não da calma, sentido que sobrevinha, uma agressão, o
mas da tempestade, é talvez o que de mais sinal da cólera e da vontade de um deus
próximo o romance consegue chegar de um provocado em sua justiça. Não podia
coro grego. Não só: enunciando uma crítica deixar de compreender que realmente
ao mesmo tempo serena e velada aos des- há uma providência divina que vela por
mandos da Casa Meneses, suas falas sobre a todos nós, e ninguém poderia me dizer o
incerteza e o dilaceramento como signos de contrário, nem mesmo o padre Justino.2
autenticidade não deixam de jogar uma luz
positiva sobre seres de exceção, como Nina e Por si só, um ótimo exemplo daquilo que
Timóteo, cujas transgressões, de certa forma, Nietzsche chamou certa vez de “automortifi-
parafraseando as próprias palavras desse cação inventiva”, esse trecho não tem pudores
último sobre sua ancestral, Maria Sinhá, em fazer da desgraça alheia uma bizarra
apontam muito menos para a satisfação de variante de justiça poética, que é aqui tam-
um impulso egoísta do que para a “absoluta bém um exemplo, em grau máximo, da infinita
incapacidade de aceitar a vida em seus limi- capacidade de autoengano das senhoras
tes comuns”. Na lógica do patriarca Demétrio, recatadas e muito rezadeiras. Tendo por
entretanto ​—​ que, não por acaso, fora quem matéria-prima sintagmas que parecem dire-
ordenara a retirada do retrato de Maria Sinhá tamente retirados da homilia do padre ​—​ mas
da Sala Principal da Chácara ​—, não parece cujo efeito em nada desagradaria Buñuel, em
difícil entender como a perpétua condição de seu mais perverso ​—, é um excerto que vale
liminaridade a que essa insatisfação conde- como um pequeno mergulho antropológico
na apareça antes como uma mácula a ser na torpeza e mesquinhez das ratas de sacris-
extirpada num universo para o qual o único tia, permitindo acompanhar de perto o modo
sagrado são as aparências, imperativo, de como a ambiguidade constitutiva da “rainha
certo modo, que na atmosfera de mal-estar de todas as doenças” é moralizada e domesti-
difuso que impregna a Chácara dos Meneses, cada, com chocante facilidade, pela comuta-
não deixa de conferir a figuras como Nina e ção do infortúnio em punição exemplar, numa
Timóteo uma certa mais valia narrativa ad hoc, cena em que é até possível imaginar um esgar
enquanto seres aptos a emprestar um rosto iracundo e um punho cerrado de ódio. Trecho
identificável a tal desconforto. Relevado, é que passa bem ao largo do realismo estrito,
claro, o componente de logro contido nes- essas linhas sugerem, no microscópio, um
se aclaramento súbito ​—​ quando, do ponto curioso blend de justiça poética católica e
de vista de evidentes fariseus, como Ana e nêmese trágica, unidas num tecido que, se
Demétrio, surge a impressão de termos final- pode ter lá sua fluência e eficácia como salto
mente encontrado o pária responsável pelo generalizante, parece tratar como comensu-
mal que os deuses nos enviam ​—, trata-se de ráveis duas tradições, a bem dizer, incompatí-
um efeito, por via transversa, que ecoa e de veis: de um lado, na figura do “deus provocado
certo modo até dá razão a certas invectivas em sua justiça”, com letra minúscula, pode-se
de Timóteo, para quem caberia a Nina vingar
o cortejo de invisibilizados e esquecidos sobre
os quais a Casa Meneses constrói os seus
2 CARDOSO, Lúcio. Crônica da
alicerces podres. Lida pelo viés do inimigo, casa assassinada. Rio de Janeiro:
sem dúvida ​—​ que parece tratar os acasos e Civilização Brasileira, 2009. p. 440.

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reconhecer um efeito de horizontalização que, instabilidade”, fácil entender, enfim, porque
justo por converter o humano em competidor seja a própria impressão de um colamento
sério, parece de certa forma conferir lastro perfeito entre evento e sentido, entre reali-
de dignidade para essa queda inevitável, que dade e moral, que acaba por revelar-se um
se torna de certo modo até admirável em sua verdadeiro tiro pela culatra dos seus postula-
audácia; de outro, com a aparição do fator dores, dando azo a uma estranha situação na
providência como uma espécie de deus ex qual, paradoxalmente, a derrota dos prota-
machina abastardado, é como se o raciocínio gonistas gauche no plano dito ôntico ​—​ ou
traísse uma dependência algo filistina em re- seja, no campo das categorias previamente
lação à necessidade de amarrar no final todos dadas para definir êxito e fracasso, desonra e
os fios da história, e distribuir devidamente respeitabilidade, doente e normal, criminoso
castigos e prêmios. Tendo portanto como e homem de bem ​—​ revela-se na verdade de-
mola de tudo o espírito vingativo, em sua má- pois o atalho para a sua vitória final no plano
xima baixeza, não há dúvida de que o grande ontológico, que implicaria precisamente uma
ponto cego de raciocínio está exatamente drástica problematização da validade dessas
nessa tentativa de resumir toda a ópera ao mesmas categorias.
lance do justiçamento, que, em seu acanhado Tendo não por acaso como seu
sopesar de perdas e ganhos, está eviden- gesto-básico a recusa de conclusões e
temente longe de fazer jus ao exuberante inferências que sejam redondas demais ​—​ e
esperdício de beleza e energia que a figura nesse ponto funcionando como clara linha de
de Nina encarna. E isso nem é o pior: que na fuga face à narrativa oficial, patrocinada por
sequência dessa morte quase alegórica da tipos falsos e estudados, como Demétrio ​—,
grande estrela do livro se siga um lance que trata-se um dispositivo, na última linha do livro,
parece quase beirar o ridículo na sua mistura que encontra um belo e irônico correlato na vi-
de neurose, obscurantismo e superstição ​ são do rosto não apaziguado de Ana Meneses
—​ quando Demétrio ordena que as roupas se- morta, numa cena onde nem mesmo o arre-
jam queimadas para evitar o risco de contágio ​ mate aparentemente criado pelo fim de uma
—, é um dado que, ao destituir-se de pronto vida basta para nos livrar de todos os fantas-
de autoridade em sua própria falta de senso, mas e dúvidas que se insinuam sorrateiros a
mais uma vez, parece colocar em relevo um cada palavra ou ação. Fazendo assim de todo
elemento residual que se mantém indigerível gesto narrado um signo intrinsecamente bífi-
face a essas e outras operações de sentido do ​—​ num registro onde, como mostra muito
mobilizadas por tais mentes farisaicas, crian- bem, à revelia de si mesmo, o comentário de
do de chofre outro desacerto incômodo entre, Ana, a pretensão de chegar finalmente a um
de um lado, a ambivalência característica significado único corresponderia ao paroxis-
daquilo sobre que incidem e o fraquíssimo mo da cegueira em relação a ambivalência
poder de convencimento de que se revestem constitutiva da realidade ​—, é interessante
tais gestos apotropaicos algo desespera- perceber ainda como, uma análise um pouco
dos. O mais curioso, porém ​—​ e nisso não mais detida do sintagma-chave do título
me parece difícil ler um traço de fino humor parece impor-se como uma poderosa linha
mordiscando nas frestas da trama ​—, é que de fuga em relação a essas e outras com-
se é inegável o êxito com que os Meneses se placências, ao criar um buraco negro onde a
livram dos seus dois grandes miasmas, Nina pretensão totalizante do salto metafórico ​—​ ao
e Timóteo, cujos infortúnios selariam então descrever como um termo tão pontual e único
uma suposta vitória inconteste da tradicional um processo que sabemos ser, antes de tudo,
família mineira, o mesmo não se pode dizer, múltiplo e (de)gradativo ​—​ parece congelar-se
entretanto, da atmosfera moral que envolve num eterno cabo de guerra com o incômodo
essas respectivas eliminações, as quais, em gerado por essa atribuição de estatuto mortal
tese, pelo menos, enquanto ritos expiatórios a um ente inanimado, em que se pode entrever
que são, deveriam tentar estabilizar mini- também um aceno de viés ao afã fetichista
mamente esses signos tão ambíguos. E aí dos Meneses, com sua invulgar vocação
está o ponto: se, como chega a dizer a certa para retirar um sofrimento infinito de coisas
altura o padre Justino, o amor de Deus mora mesquinhas ​—​ coisas que se tornam, elas sim,
nos “descampados e nas zonas inquietas de seus verdadeiros donos. Num inventário que

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cobre desde a recusa do Barão a pagar-lhes de empatia que o livro instaura do que na

OS BENS E O SANGUE: O ROMANCE EM MINAS, ENTRE A MOBILIDADE E O IMOBILISMO   EMÍLIO MACIEL


visita até o medo do que as pessoas da cidade densidade do seu jogo de ricochetes entre o
pensariam se soubessem de seus problemas micro e o macro, entre textura linguística e
no banco ​—​ sem esquecer de todo o circo concatenação de eventos, torna-se evidente
armado para vender como acidente o quase a coerência estrutural do efeito de indecidi-
suicídio de Valdo ​—, penso que a mera enume- bilidade provocada por tais fermatas, que se,
ração de tais ninharias dá bem a medida do de um lado traem a atração pelo elemento
efeito panela-de-pressão criado por um ethos potencialmente micropolítico das manifes-
tão peculiar, com paroxismos de pudor, vergo- tações da loucura, crime e excesso, de outro,
nha e despeito que, por se manterem teimo- mostram também um tato inigualável para
samente surdos a qualquer debate racional, deixar que as cenas funcionem um pouco ao
dão a impressão de que só podem obter como feitio de acordes dissonantes, que, ao mesmo
resposta uma passagem ao ato. Para o que tempo que intimam totalização, são capazes
nos interessa por ora, entretanto, não há dúvi- também de preservar a dignidade polifônica
da de que, no título em questão, para além do de cada uma das notas que as compõem.
golpe de mestre de enfiar um evento pontual Evidente na própria opacidade que cerca, por
e abrupto num processo a conta-gotas, está exemplo, a doença de Nina ​—​ legível tanto
também o realce criado pela identificação como uma alegoria em ato de uma aceleração
com o criminoso que o adjetivo “assassinada” destrutiva quanto como um modo de colocar
explicita; adjetivo que, num só golpe, amor- em destaque uma espécie de injustiça cósmi-
tiza a agência e amplifica a passividade. No ca essencial, que pune com a mais dolorida
cotejo com a justiça de Ana, por certo, não das mortes justo aquela que tentara sacudir a
há dúvida de que, do ponto de vista do mero pasmaceira do mundo ​—, trata-se de um cui-
senso comum civilizado, não é difícil encontrar dado que, tendo na recusa de apaziguamento
motivos para comemorar a derrocada dos a sua nota forte, e correndo sempre de par à
Meneses ​—​ cujos esforços caminham sempre sondagem das patologias latentes em supos-
no sentido de varrer do mapa tudo o que ame- tas condutas normais, faz da recusa de fechos
ace perturbar sua sisudez, desde mulheres inequívocos, como aqueles prezados por Ana,
sexualmente liberadas a gays recusando-se não menos uma aposta narrativa que uma
a fingir que não existem. Na medida em que torção política no seu próprio direito, tendo por
tende, portanto, a, ao mesmo tempo, conden- linha avançada uma escrita na qual, a fortiori,
sar e acelerar em hipérbole esse processo o compromisso em manter sempre uma porta
destrutivo ​—​ aí figurado como uma alternativa estreita para a entrada do sentido ​—​ que não
bem mais digna e salubre do que o decoroso se sabe muito bem se chega na forma de
comedimento daquela gente “calada e feia, messias ou anjo vingador ​—​ é indissociável ao
fria e avarenta” ​—, torna-se clara a afinidade cuidado de jamais sucumbir à falsa tranquili-
do sintagma com a dissonância que emana, dade dos livros sem fios soltos. Compromisso
por exemplo, de uma cena como a da aparição que, no caso de Lúcio Cardoso, ao que tudo in-
final de Timóteo, quando, por ocasião do en- dica, pode ser apenas o nome cifrado do zelo
terro de Nina, este decide abandonar o quarto de, por mais que a plateia clame por tranqui-
para desfilar sob os olhos do Barão, carregado lidade, jamais fechar as feridas abertas pela
por um cortejo de negros. Soando deliberada- audácia de suas próprias metáforas.
mente quase operística em seu desproporcio-
nado exagero, o que se tem então é uma cena O DIABO, PROVAVELMENTE
onde, levando até as últimas consequências
a velha vocação do melodrama de fazer o Habilidade que encontra, em Guimarães
corpo falar, o desfile culmina com Timóteo Rosa, um de seus praticantes máximos,
quedando sem consciência, fulminado por um trata-se de um elemento que, num livro tão
derrame cerebral, lance que, exatamente pelo intrincado e inesgotável como Grande sertão:
convite que faz para ser deslido, resulta então veredas (1956), não chega a propriamente
de permeio também numa ironia sofisticadís- entrar em choque com os delineamentos
sima ​—​ na insinuação de que Timóteo poderia mais gerais da trama, desdobrando-se menos
estar, finalmente, obtendo o que merece. como um atrito de versões do que como
Apenas que, se pensarmos menos nos laços incessante ir e vir semântico entre o longe e o

80
perto, o grande e o pequeno, tendo como pe- Cyro e Lúcio, de resto ​—​ em cujos cenários
dra de toque, agora, a incansável compulsão pode-se já identificar certo efeito de pacifica-
do eu narrador de rasurar por cima de si mes- ção promovida pela hegemonia do Estado ​—,
mo. Convertendo assim o texto no embate é quase como se tal trajeto selasse a inversão
retroverso desse eu com as múltiplas ilusões drástica da direção e velocidade das contra-
e miragens que ele mesmo cria ​—​ e, a um só partes urbanas, trocando então a ideia de um
tempo, elevando a novos patamares de com- declínio lento por um avanço acelerado e sem-
plexidade a vocação totalizante do romance ​ pre para frente, o qual, entretanto, por se dar a
—, o livro avança portanto como um contínuo partir da sinergia criada por vastas constela-
jogo de bumerangue sobre si mesmo, no qual ções de microfatores ​—​ como é o caso dessas
as coisas precisam sempre de um adicional duas improvisações bem sucedidas que são
de tempo para começarem de fato a signi- o Julgamento da Fazenda Sempre Verde e a
ficar, e o mergulho intensivo e exaustivo no Chefia Tatarana ​—​ parece o tempo todo com-
dado local ​—​ focado no trajeto de um jagunço prometido por um ar de contingência. Quadro
que, pelas vias mais tortuosas e inesperadas, a que se acrescenta então, como complicador
passa primeiro a chefe de bando e depois final, a onipresente sombra do demoníaco
a respeitado proprietário de duas fazendas ​ enquanto vetor apto a desempatar em última
—​ não é em nada alheio ao gosto por uma instância cada choque de forças ​—​ e, ato
sondagem em profundidade dos próprios contínuo, conferir também um quê de avanço
fundamentos defectivos dos códigos cultu- sistemático ao que poderia soar a princípio
rais. Disposição que parece de certo modo já mera sucessão de acasos.
implícita no escopo coberto na trama ​—​ que, Numa visada de conta longa, por sinal, a
desde a aparição de Riobaldo como garoto- amplitude de escopo coberto por tais enca-
-mendigo, vai colocando em contato e atrito deamentos é outro dado que muito contribui
os mais diversos espaços sociais, tomando para a novidade e frescor desse texto ao
sempre por eixo pivotante o seu amor proibido mesmo tempo tão moderno e tão antigo ​
por um colega de bando, que terminará se —​ criando assim a sensação de um mundo
revelando mulher, após morrer abraçado com bem mais mutável e imprevisível que os dos
o maior inimigo do herói ​—, outro dado a se outros romances já citados. Como grande
reter, ainda, diz respeito à camada de névoa esteio narrativo desse efeito está a própria
que envolve essa impressionante, para não condição flutuante e cinzenta de um signo
dizer improvável, passagem de miserável a como o jagunço, que ao longo de todo livro
fazendeiro, tendo como mediador um pacto oscila do aterrador ao cavalheiresco com alar-
com ninguém mais, ninguém menos que mante e desarmante velocidade. Assim, se na
o demônio; detalhe que projeta, aliás, uma rubrica da expressão “usos dos bandos”, por
sombra no mínimo irônica sobre o percurso exemplo, pode-se inscrever uma sequência
de ascensão social que sua biografia perfaz. de atos digna de arrepiar os cabelos do leitor
Não sendo esta de resto um tipo de narrativa incauto (“invadir cidades, arrasar o comércio,
muito recorrente na literatura brasileira, po- saquear na sebaça, barrear com estrumes
dendo-se citar o São Bernardo, de Graciliano humanos a parede da casa do juiz de direito,
Ramos, como outra grande exceção, inte- escaramuçar o promotor amontoado à força
ressante perceber como a inscrição de um numa má égua, de cara para trás” etc.), não é
pacto demoníaco no meio de tudo parece menos verdade que, no balanço geral, um dos
forçar o livro a se submeter, de fora a fora, a principais fatores de legitimidade da chefia
uma ansiosa contabilidade intuitiva, na qual a de Riobaldo passa exatamente pelo esforço
inegável melhoria de vida obtida pelo prota- em substituir tais práticas por outras mais po-
gonista ​—​ que passa de bastardo, catrumano lidas, como, por exemplo, aprender a dançar
e jagunço a proprietário estabelecido ​—​ tem valsa e a perguntar primeiro antes de pegar.
de se haver com o ônus contido no suposto Na progressão da trama, contudo, é certo
preço a se cobrar nessa transição, quando que isso tampouco impede, aqui e ali, certas
este se dá conta de ter perdido para sempre recaídas regressivas do autoproclamado
seu “amor de ouro”, que acaba morrendo agente civilizador, que, se tem em sua conta
em seu lugar numa cena de claros acentos o mérito de ter abolido no bando o “uso” do
sacrificiais. No embate com as narrativas de estupro, faz claramente as vezes de Estado de

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Exceção, por exemplo, quando desfere o tiro por uma febre misteriosa, que transforma

OS BENS E O SANGUE: O ROMANCE EM MINAS, ENTRE A MOBILIDADE E O IMOBILISMO   EMÍLIO MACIEL


que mata Ricardão depois que este já se dava em fragoroso anticlímax o grande acerto de
por vencido, gesto coroado em seguida pela contas. E, no entanto, que, nas sinopses pos-
recusa de oferecer a seu corpo as devidas teriores desse mesmo evento, a não ação de
honras fúnebres. Pontuações que tendem por Riobaldo, na hora crucial, não seja suficiente
isso mesmo a instabilizar um pouco a retórica para retirá-lo do posto de autor em última
antiviolência do narrador, mostrando ao mes- instância do feito guerreiro ​—​ atribuição que
mo tempo o aspecto tremendamente frágil de surge portanto menos da ação efetiva do que
que se reveste o esforço de fugir da barbárie, do lugar simbólico e literal que aí ocupa, en-
é possível que um dos pontos mais curiosos quanto instância incumbida de emitir ordens
que paira sobre tal desacerto diga respeito “de cima” ​—​ é um dado que mais uma vez nos
às várias reverberações que provoca num força a reler e sopesar todos os microfatores
certo inconsciente político da Modernidade, que contribuem para o efeito final ​—​ que,
com seu cortejo de piratas, conquistadores, nesse ponto, aliás, chega a aproximar-se peri-
bandeirantes, pícaros, príncipes e robber gosamente da usurpação, tal é a discrepância
barons ​—​ em suma, heróis que mantém muito que há entre esforço e resultado, entre o que é
mais que um pé no crime enquanto perfazem realizado de fato pelo líder do bando e a lauta
suas façanhas. No que se refere especifica- cota de prestígio e segurança que, para este,
mente a Riobaldo, por sinal, personagem daí advém, pelas mãos do padrinho.
que, como bem ilustra sua amada Canção Cena que dá pasto suficiente para “n”
do Siruiz, tem exatamente no negaceio um releituras e extrapolações, engana-se quem
dos seus emblemas máximos (“eu faço que pensa, porém, que este é o elemento que
vou e volto do meio para trás”), é certo que mais inquietação provoca em meio a essa
esse traço se faz acompanhar também de um sutilíssima constelação de causas e micro-
evidente e exuberante lado trickster, de que dá causas, tendo como parada final, ao que tudo
prova o elemento de gambiarra e invencionice indica, a conversão da suposta façanha de
contido em muitos de seus melhores achados, sangue em título de propriedade: lance que,
a começar pela deslavada mentira com que, dependendo de quem olhe e de onde se olhe,
quando seu bando derrota em combate Zé tem mesmo algo de um equívoco de leitura,
Bebelo (“Joca Ramiro quer esse homem vivo”), se pensarmos na desproporção aí encenada
o jagunço logra comutar execução sumária o tempo todo entre ter e merecer, ser e valer, e
em julgamento seguido de exílio. Crescendo que opera no livro como uma espécie de sutil
ao qual se pode acrescentar ainda ​—​ depois palinódia da versão oficial da história. Não
que Joca Ramiro é morto à traição por dois de que se trate apenas de um acaso feliz: num
seus antigos comandados ​—​ a adição de um cenário que elege, como se sabe, no homem
pseudo-álibi jurídico à operação de guerra vo- livre pobre a sua figura mais típica, difícil
tada a vingar sua morte, tendo por esteio, des- subestimar a dimensão do salto embutido
ta feita, uma fala ladinamente emprestada na concessão da posse legítima ao ex-chefe
do próprio ex-arqui-inimigo deste, Zé Bebelo, jagunço ​—​ ao qual se acrescenta, porém, na
para quem, afinal, se o bando concedia julga- contracorrente, a impressão de que tudo
mento e direito de defesa a seus prisioneiros, poderia ter tomado outro rumo se Riobaldo
é porque atuava, mesmo sem saber, para as jamais tivesse ocupado a posição de chefia,
forças do Estado. Criando assim um curio- condição que, mesmo revelada no livro em
so continuum de fundo sobre situações em todo seu oco, acaba nesse caso tendo muito
certa medida bem discrepantes ​—​ mas que mais peso e eficácia do que os próprios feitos
tendem como que a repor em primeiro plano guerreiros, estrito senso. Feitos, aliás, que,
a dimensão de improvisação bem sucedida como bem mostra a sequência da morte de
por trás de gestos capazes de fundar/instituir Diadorim, tendem a, de certa forma, apagar
novos laços entre os sujeitos ​—, impossível a si próprios, sem que quase ninguém dê
negar, ainda, a violenta dobra instaurada nas por isso. Resultado: forçando então o texto
cenas dedicadas ao confronto final com os a ter que se dobrar e se revirar em si mes-
hermógenes ​—​ em especial no trecho em que, mo, a cada vez que trata de negociar uma
assistindo de camarote a morte de Diadorim, imputação causal ​—​ entendida aqui, portanto,
Riobaldo aparece completamente paralisado muito mais como um mecanismo defensivo

82
provisório do que como gesto apto a confe- como é o caso dos vários detalhes macabros
rir solidez e direção ao encadeamento dos pontuando de cabo a rabo a narrativa. E, de
atos ​—, penso que uma bela amostra desse permeio ​—​ goste-se ou não ​—, forçando um
dispositivo pode ser encontrada na incal- pouco também a estabilidade de seu centro
culável torção provocada por uma simples gravitacional semântico. Não se pode dizer
mudança de nome, quando se descobre que que se trate, a rigor, de uma total surpresa:
o suposto cenário do pacto chama-se na afinal, se como deixa claro com todas as
verdade Veredas altas e não Veredas mortas, letras um dos melhores aforismas do livro,
revelação que irá até reativar um novo fio de a maluqueira “só é maluqueira depois que
esperança na fala do narrador. Por mais pra- se sabe que não acertou”, nada a espantar,
zeroso que seja, no entanto, tal efeito momen- enfim, que, uma vez convertida a reversibilida-
tâneo, é um alívio que, em meio ao incessante de de tudo e todos em chave de leitura, seja a
ricochete semiótico que o livro instaura, surge própria sedução gerada por certos efeitos de
sempre já forçado a ter que se haver com a pregnância ​—​ capazes de articular numa uni-
duplicidade constitutiva de todo e qualquer dade virtual detalhes e frases aparentemente
signo, a começar pela própria ameaça conju- situadas em pontos distantes ​—​ que se dê
rada na frase inicial do livro (“Nonada. Tiros então a ver no livro como um logro estrutural
que o senhor ouviu foram de homem não”), criado pelo rigor com que este faz e desfaz
tendo no centro exatamente a ambiguidade sem cessar os nexos entre os eventos. Che-
ligada ao som distante dos tiros ​—​ sem dúvida gando a ponto de converter toda escolha num
um belíssimo exemplo do modo que, em tipo de traição mais ou menos sub-reptícia
Grande sertão, o mesmo elemento que nos em relação a algo ou alguém, é possível que o
lega a aparente linearidade da ação narrada, grande desafio de leitura lançado por esse e
força-nos também a redesenhar como limite outros volta-faces diga respeito à necessida-
provisório a impressão de unidade gerada de de contrabalançar/articular num só todo o
pelo efeito constelar final, o tempo todo con- efeito de redenção aparentemente criado no
vidando-nos a ver tal ação como muito mais trecho sobre a maluqueira, com seu maldis-
que mera soma de partes. Apelo que, nesse farçado aceno ao comentário de Nietzsche
caso específico, aliás, pode muito bem ser sobre “os crimes bem-sucedidos da história”,
apenas um dos múltiplos nomes do engano. popularmente também conhecidos como
Num livro que não se furta a dar ares revoluções. O mais inquietante, porém, é que,
trágicos e hamletianos ao homem pobre do uma vez analisados mais de perto, tanto a
sertão, difícil desconsiderar o efeito horizonta- injeção de ânimo deflagrada por passagens
lizante criado por essa infernal sobreposição como essa como a dúvida pairando insolú-
de sentidos em disputa, fazendo de cada vel nos trechos mais tenebrosos podem ser
detalhe da narrativa um átomo passível de ser vistas, ambas, como boas ilustrações de um
deslocado/organizado nas mais distintas e só mecanismo ilusionista, em que o sinal de
incompatíveis combinações, e tendo sempre negativo ou positivo a etiquetar cada evento
por fio condutor o modo como, de uma ponta se parece menos com um dado palpável que
a outra, o jogo de denegações criado pelo com um sfumato criado pelas neblinas do
eterno vai-não-vai da história parece ir des- entorno, e que só um breve facho de radiação
tecendo com uma das mãos aquilo que tece lunar nos dá a perceber. Na passagem de
com a outra. Elemento que só pode parecer um ponto a outro, portanto ​—​ começando por
defeito ​—​  diga-se de passagem ​—​  a quem uma leve coagulação de coisas contíguas até
pense ser possível destrinçar por inteiro proje- o salto na aposta necessária para lhes con-
ção e percepção, ou acredite ser viável chegar ferir unidade ​—, trata-se de um percurso que,
a um fundo de solidez apto a permanecer em sua inquietante e inextirpável ambiva-
inabalável em meio aos vários twists gerados lência, dá bem a medida do modo como, em
por essa ágil dança de signos, que, se muitas Grande sertão: veredas, o esforço de conferir
vezes sugere átomos bailando e esbarrando rosto e voz a tantos fatos brumosos torna-se
voluntária e involuntariamente uns nos outros, um acesso por via transversa para a própria
acena também, nessa não-conciliação, para casa das máquinas na qual os sentidos são
um resíduo que se mantém teimosamente re- construídos, fixados e destruídos. Tendo
fratário a uma inscrição narrativa mais ampla, como anteparo um dispositivo, como bem

83
mostrou Lukács, que elege na assíntota entre como, puxando o problema ao mesmo tempo

OS BENS E O SANGUE: O ROMANCE EM MINAS, ENTRE A MOBILIDADE E O IMOBILISMO   EMÍLIO MACIEL


mundo e significado a sua grande alavanca e para todos os lados, o trecho joga uma es-
pedra de toque, o que daí resulta é uma trama, pessa sombra de dúvida no gesto capital de
sem exagero, que, se encontra na imensa con- Riobaldo, que a princípio parece apenas um
sistência arquitetônica uma de suas qualida- modo de impedir Diadorim de cometer um ato
des mais fortes ​—​ como espero ter tornado bárbaro. No recorte aqui privilegiado, porém,
razoavelmente claro nessa pequena sobrepo- se há um ponto que dá bem a medida desse
sição de paráfrases ​—, tem como um de seus infernal jogo de ser e não ser que compõe a
elementos mais impactantes e perturbadores tessitura da trama, este tem lugar no estra-
esse tenso jogo de ambiguidades criado pela nho contraste gerado entre, de um lado, a
retórica de negaceio, que, na medida em que frase destacada entre parêntese ​—​ como um
atomiza e esfacela certos eventos-chave, em gesto de exceção que serve justamente para
closes fechadíssimos ​—​ tendo por alvo justo ressaltar a soberania irrestrita do chefe ​—​ e
os poucos segundos imediatamente anterio- o efeito de apagamento criado logo na linha
res ao tal empurrão decisivo ​—, parece tornar seguinte, onde é a própria decisão tirânica
perigosamente tênue a fronteira separando o do líder que se vê cuidadosamente dissolvida
agir e o ser agido, como se faz, aliás, espe- em unanimidade violenta difusa, na qual o
cialmente evidente na cena de assassina- não-enterro, portanto, é menos ação calcu-
to já citada: lada do que efeito mais ou menos impre-
visto de um acúmulo de pressa, dispersão
Lá acolá, o homem abriu devagar os cacos e negligência. Definir porém até que ponto
de porta. Saiu, deu uns passos. Como isso minimizaria ou não a culpa do narrador ​
vinha, alto, chapéu, na cabeça, até meio —​ a exemplo da estranha febre terçã que o
sorridente. Não se esbugalhava. Assim deixa providencialmente paralisado no dia
estivesse pensando que ia ter julgamento? do embate final ​—​ é um problema, como se
Achei que. E ele não estava ferido. Cami- vê, que, ao menos no caso específico dessa
nhou mais. Sendo que ​—​ e aí, foi minha cena, lembra um novelo que se torna cada
ideia? ​—​ ah, não; mas vi que, Diadorim, vez mais inextrincável e confuso quanto mais
de ódio, ia pular nele, puxar faca. Só fiz tentamos desembaraçá-lo ​—​ o que está longe
fim: num tirte guarte: atirei, só um tiro. de ser evidentemente uma situação agradável.
O Ricardão arriou os braços, deu o meio Mas é claro que há também compensações:
do corpo, em bala varado. Como no cair, passando completamente ao largo de qual-
jogou uma sua perna para lá e para lá. quer solidez realista, trata-se de um excerto
Como caiu, se deitou. Se deitou, confor- que, exatamente por instigar e desautorizar a
me não estivesse sabendo que morria; um só tempo todas as interpretações possí-
mas nós estávamos vendo que já mor- veis, funciona como uma espécie de grande
to ele estava. bomba de sucção puxando os sentidos do
Acho deveras que todo mundo res- entorno, até se adensar numa rinha onde a
pirou com suspiro. Digo que esta minha inequívoca impressão de mestria gerada pelo
mão direita, quase por si, era que tinha modo como a ação progride ​—​ deslizando tão
atirado. Segundo sei, ela devolveu Adão mercurialmente de um significado a outro,
à lama. Só estas minhas artes de dizer, as e mais outro ​—​ é indissociável do rigor com
fantasias… que, ao explorar com tanto desassombro todo
—​ “Não enterrem este homem!” ​ o leque de possibilidades disponíveis, essa
—​  eu disse. cena tenta então individuar seu sentido em
A justiça. Mas, mesmo, como é que ia atribuição inequívoca: aposta que, nesse caso,
poder enterrar a quantidade deles, mor- ao menos a princípio, implicaria também
tos naquele dia?3 em definir o limite claro no qual ação vira
passividade, e vice-versa. A julgar pelo que
Passagem em que o eu parece dissolver-se
por pouco em frágil névoa de átomos, até
culminar na própria autonomização da mão
3 GUIMARÃES ROSA, João. Grande
direita face o pretenso comando central, sertão: veredas. Rio de Janeiro:
muito haveria ainda a ser dito sobre o modo Nova Fronteira, 1986. p. 521.

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o trecho mostra, porém, o que tende antes a um potencial e tentador locus de dissolução
prevalecer é a impressão de que, face a essa das barreiras entre agir e sofrer, eu e mundo,
densa simultaneidade de linhas se enlaçando, constituinte e constituído etc.
uma pergunta desse tipo acaba revelando-se, De um modo ao mesmo tempo sutil e
na melhor das hipóteses, mero combinado inexorável ​—​ e que adquire especial nitidez
de recuo tático e solução de compromisso, na extraordinária e ilegível cena de assas-
impasse que dá bem a medida da audácia sinato que acabamos de ler ​—, é obvio que,
e originalidade dessa cena extraordinária, justo por sermos muito mais produtos que
ponto fulcral de um romance que, ao exaurir produtores nesse veloz e feroz entrechoque,
em suas 568 páginas todas as aporias asso- nunca será possível fazer jus por completo às
ciadas ao périplo da bandidagem à respeita- implicações virtuais e reais de tal negaceio,
bilidade, parece atingir uma espécie de ponto capaz de levar a que, nessa e em várias outras
arquimediano para além das próprias noções passagens, no hiato que vai de um imperativo
de mobilidade e imobilismo. Não é tudo: a uma observação casual, de uma catacrese
tendo por eixo uma trama, à primeira vista, a uma metonímia cega, instaure-se um flanco
que sugere quase uma paródia à outrance capaz, mesmo se por segundos apenas, de
das narrativas de ascensão social do século revelar então a fragilidade do elo unindo, em
XIX, interessante notar como, no que poderia toda e qualquer frase, um predicado a um
responder, digamos, também pelo “tama- sujeito, eventos a nomes próprios: elo que, se
nho mineiro” da nossa história, esse mesmo pode até saciar temporariamente nossa fome
enredo parece adquirir um quê de piada de completude, não é e nunca será ​—​ ao me-
metafísica, no modo como retoma, em clave nos, não no que se refere ao quesito unidade ​
fantástica, o topos napoleônico da carreira —​ em nada menos sedutor e enganoso que
aberta ao talento: quase como se sugerindo um inesperado encontro de ventos brigando
que, no Brasil, talvez, só mesmo com uma no meio da rua.
boa mão do diabo para um pobre ficar rico.
Contos da carochinha à parte, entretanto, é
preciso reconhecer, ainda assim, que, ao for-
çar drasticamente a nota sobre a assimetria
central do socius, esse truque não deixa de
ter lá sua pertinência em vista das condições
materiais específicas do cronótopo de origem,
onde a melhoria de vida dos pobres é, via de
regra, quase tão verossímil e provável quanto
ganhar na lotérica. Daí, de certo, a suspeita
atravessando de fora a fora a ascensão de
Riobaldo, e dando farto pasto à elaboração
de tantas e tão perturbadoras prosopopeias,
para não mencionar as crises identitárias a
granel que isso também desperta, seja no
que se refere aos atos do narrador ​—​ que este
nunca pode saber ao certo se são de fato seus ​
—, seja quando se trata de justificar narra-
tivamente algumas séries de acasos felizes.
Num nível por assim dizer mais molecular,
finalmente ​—​ passando portanto da escala
geral da sinopse para algo que antes se dá,
em filigrana, de uma frase a outra ​—, impos-
sível não destacar o modo como, quanto mais
a câmera se aproxima, mais clara se torna a
ligação de tais crises com um certo negaceio
estrutural inerente à própria linguagem, que,
sendo aqui evidentemente muito menos a
possuída que a possuidora, torna-se também

85
MODERNISMO
REVISITADO
ENEIDA MARIA DE SOUZA

86
A revisão do modernismo de 1922 está sendo — E que impressão lhe ficou
realizada há muito tempo. Ao longo das do Modernismo?
comemorações consecutivas do movimento, — Muito ruim. Sempre achei aquilo
outras leituras concorrem para ampliar e uma tapeação desonesta. Salvo raríssi-
revigorar seu legado, incluindo-se aí o que mas exceções, os modernistas brasileiros
se entende por seus resíduos e vazios. Mário eram uns cabotinos. […] Os modernistas
de Andrade, um dos mais significativos brasileiros, confundindo o ambiente
representantes dessa escola, já apontara, literário do país com Academia, traçaram
em 1942, os prós e contras dessa corrente linhas divisórias, rígidas (mas arbitrárias)
artística e literária inaugurada no princí- entre o bom e o mau. E, querendo des-
pio do século 20. A crítica ao modernismo truir tudo que ficara para trás, condena-
já estava sendo feita desde os anos 1930, ram, por ignorância ou safadeza, muita
referência encontrada em Silviano Santiago coisa que merecia ser salva.
no artigo “Fechado para balanço”, no qual — Quer dizer que não se considera
afirma que a contestação tinha por base o modernista?
Rio de Janeiro e o movimento literário que ali — Que ideia! Enquanto os rapazes
se desenvolvia. Nova época se descortinava de 22 promoviam seu movimentozinho,
para os colaboradores da revista Lanterna achava-me em Palmeira dos Índios, em
Verde, destacando-se, dentre eles, Tristão pleno sertão alagoano, vendendo chita no
de Ataíde, Octávio de Faria e Jorge Amado. balcão.2
Partidários de ideologias diferentes, esses
intelectuais se uniam contra o liberalismo Por ocasião das reportagens relativas aos
clássico e o niilismo de 1922 em defesa de 90 anos do movimento, constatou-se ser
um período esperançoso para a cultura, a parcialidade das matérias semelhante à
constituindo uma força política que reunia ancestral disputa entre o eixo Rio e São Paulo,
catolicismo com integralismo e comunismo sem qualquer menção aos demais lugares
com stalinismo.1 onde ocorreram manifestações que pode-
Por ocasião do aparecimento do romance riam se aproximar da revolução modernista.
de 1930, Graciliano Ramos será um dos mais Artigos estampados na Folha de S. Paulo,
fiéis detratores do modernismo, por defender no Estado de S. Paulo e no Globo revelaram
a linguagem culta em detrimento das con- tanto a presença do discurso ressentido, por
quistas do modernismo quanto à oralidade e parte do Globo ​—​ por não ter, a Semana, res-
à aceitação do linguajar popular e “brasilei- peitado o que já se instaurava como marcas
ro”. Essas diferenças de estilo e de proposta de uma modernidade nascente ​—​ quanto o
estética provocaram, inclusive, equívocos e discurso centralizador da imprensa paulista.
preconceitos quanto ao sucesso do movi-
mento, ao receber o apoio de professores
universitários e de membros de academias 1 “[…] o modernismo de 22 é enter-
literárias da época, estendendo-se essa posi- rado em 1936 ao repicar dos sinos
ção até os nossos dias. A turbulenta situação maniqueus (nitidez na oposição
de luz e sombra, de Deus e o Diabo,
política do país no período contribuía para de catolicismo e comunismo). As
que a prosa modernista fosse associada à vozes dos sinos guerreiros traçam
falta de rigor da linguagem e à necessidade o perfil do intelectual intolerante,
de feição totalitária e bem pouco
de mudanças sociais as quais ficavam restri- democrático nas suas intenções
tas, segundo Ramos, ao âmbito da ruptura revolucionárias, pois deseja mo-
gramatical e linguística. A reação dos escri- dernizar o Brasil e atualizar a sua
arte pela destruição do seu oposto”.
tores considerados pós-modernistas serviria SANTIAGO, Silviano. Fechado para
de mote para o julgamento do movimento balanço. In: Nas malhas da letra.
paulista como desprovido de seriedade, em- São Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 78.
bora a revolução cultural estivesse consoli-
dada em todos os âmbitos da vida e da arte. 2 SENNA, Homero. República das
Em entrevista concedida a Homero Senna, letras: entrevistas com 20 grandes
escritores brasileiros. Rio de Ja-
em 1948, assim se expressou o escritor: neiro: Civilização Brasileira, 1996.
pp. 201–2.

87
Em Minas, no periódico Estado de Minas, local e o global, à medida que não se concebe

MODERNISMO REVISITADO   ENEIDA MARIA DE SOUZA


verificou-se a natural posição de excluídos, ao o fragmento sem a visão de que a totalidade
apontar o movimento levando em considera- permanece como espectro e desejo.
ção a participação, embora tardia, dos escri- O que se requer nesse processo de
tores mineiros, pela ausência de voz em 1922. releitura do modernismo ​—​ e do modernismo
Com a publicação das Memórias de Pedro mineiro ​—​ é não reivindicar a integração de
Nava, principalmente Beira-mar, em 1978, figuras ou autores excluídos do movimento
ampliou-se o nível de compreensão do moder- por ocasião da constituição do cânone oficial.
nismo em Minas, relatado por um de seus co- Seria pertinente analisar as razões das omis-
laboradores e com o trabalho de pesquisa em sões, das exclusões, sem enfatizar a ideia de
arquivos pessoais e públicos, além da contri- terem sido os excluídos precursores ou passí-
buição dos demais membros do movimento veis de se integrarem ao quadro canônico do
literário e político mineiro. A construção da modernismo. Essa reivindicação, no lugar de
cidade de Belo Horizonte constituiria, ainda, a ser combativa, incide no mesmo erro clas-
instauração de um marco do espaço moderno, sificatório, ao reconhecer a importância do
embora estivesse sujeito às contradições de movimento pela entrada canônica (e tardia)
uma sociedade conservadora e pautada por dos excluídos. À canonização do modernismo
costumes provincianos. A mudança da capital pretende-se proceder à sua descanonização.
da cidade de Ouro Preto para Belo Horizonte ​ Esta leitura tende a desvincular o modernis-
—​ do ambiente barroco e interiorano para o mo de seu aspecto classificatório e exclu-
traçado geométrico e moderno ​—​ motivou a dente, entendendo ser a exclusão também
formação de um tipo de modernidade que se parte do processo. Deve-se evitar, portanto, o
distanciava das outras. Entre o arcaico e o princípio teleológico que preside a cronologia
novo, o império e a república, instaurava-se dos movimentos e as práticas positivistas de
a constatação de ser o moderno dotado de enquadramento e sistematização das ideias
natureza heterogênea e plural. em escaninhos pré-fabricados.
O desenvolvimento de alguns pontos que
dizem respeito à nossa pesquisa do moder- RELEITURAS DO MODERNO
nismo nos últimos 30 anos não terá como
enfoque prioritário o esquecimento ou o recal- Como consequência desse debate, o conceito
que das manifestações ocorridas em outros de moderno continua ainda sujeito a interpre-
estados, por ocasião das revisões realizadas tações, revisões e equívocos. No ato festivo
ao longo desses quase cem anos. O que se das comemorações, é comum a realização de
propõe na atual visão crítica da literatura e balanços que ressaltem o valor do movimento
dos movimentos culturais é a tentativa de e suas qualidades, no lugar de rever as falhas
resgate de textos pertencentes às minorias, e vazios do projeto. O que importa é a cons-
aos atos de natureza local, à recuperação de tante releitura que se processa do modernis-
acontecimentos omissos pela historiografia mo e de seus representantes, o que possibilita
oficial. Tal posição indica a desconfiança de a atualização dos textos, a reconfiguração de
ordem metodológica pela abordagem relativa posições assumidas ou a transparência de
à totalidade e à onisciência dos resultados e imagens até então obscuras.
dos processos de restauração histórica. A es- O modelo ocidental e eurocêntrico das
colha por essa metodologia recai no exercício teorias sobre a modernidade foi, por muito
da prática da fragmentação e do resíduo, por tempo, aceito como único, sem que sua hege-
estarem as soluções totalizantes desacre- monia fosse contestada. Diferentes experiên-
ditadas e inoperantes quando se pretende cias da modernidade poderão ser observadas,
ler o passado do ponto de vista do presente. considerando não só o descompasso tempo-
Diante dessa configuração analítica orientada ral de sua atualização pelas distintas culturas,
pelo apelo ao fragmento e à incompletude, como as singularidades múltiplas e diver-
aspira-se a dimensionar o nível atual de infor- gentes dessa vivência dentro das próprias
mações e de referências de modo imparcial e manifestações locais.
relativo. Essa posição estratégica não ignora, Um dos parâmetros da crítica pós-mo-
contudo, as relações entre o particular e o ge- derna consiste na reescrita da modernidade,
ral, ou, na terminologia mais recente, entre o para usar uma expressão de J. F. Lyotard,

88
procedimento através do qual se elabora um mundo globalizado. Numa leitura revisionista,
esquecimento inicial e se detecta o que fora é necessário rever conceitos e desconfiar das
recalcado. Segundo o filósofo, o prefixo pós, certezas cristalizadas pelos movimentos data-
de pós-moderno, não significa um movimento dos. No entanto, toda cautela é pouca, pois o
de comeback, de repetição, mas um processo que se postula como algo ultrapassado deve
em ana, um processo de análise, de anamne- ser devidamente analisado nas suas contradi-
se e de anamorfose. Constitui-se numa forma ções e limitações temporais. Um dos gran-
de reelaborar a modernidade, substituindo-se des desafios da crítica literária e da própria
a ideia de retorno ao começo, pelo movimento literatura é a atualidade/não atualidade dos
de inscrição sobre si mesma, nos moldes de termos, a morte/ressurreição de conceitos
uma escrita infindável. As limitações próprias que se revelavam dotados de pouca consis-
de todo saber passam a ser consideradas no tência. As contradições e a complexidade em-
aspecto positivo, de modo a incitar a reflexão butidas nos termos vanguarda, modernidade
sobre momentos da história que se apresen- e modernismo, este último relativo não só à
tam na sua dimensão inacabada e inconclusa. Semana de 1922, mas ainda aos representan-
Longe de se constituir como traço que con- tes de princípios estéticos dos anos de 1920 e
torna o desenho complexo da modernidade, a 30, devem ser repensadas e rearticuladas.
revisão pós-moderna age como dobra do dis- A modernidade literária foi sempre asso-
curso da modernidade sobre si próprio, como ciada à modernização urbana, à revolução dos
espelho invertido que reflete as distorções e o costumes e do gosto processada nas grandes
silêncio dos discursos em jogo.3 metrópoles do mundo. O final do século 19
Pensadores e teóricos contemporâneos foi responsável por essas mudanças, ao se
têm se empenhado em apontar algumas proclamar testemunha dos movimentos de
possíveis saídas para sair ou entrar na mo- vanguarda europeus, da invenção de teorias
dernidade, como assim se expressa Néstor científicas que rompiam com as crenças
Canclini. Dotados de pensamento nômade e religiosas e com a magia, cujos resultados ​
de experiência vital em permanente desloca- —​ bem ou mal aceitos ​—​ se inscrevem com
mento, os autores se apropriam da teorização muita força nos dias atuais. Cidades foram
produzida pelos discursos hegemônicos para remodeladas, como a Paris de Haussmann,
desconstruí-los. Romper estrategicamente ao perder o traçado medieval e ganhar ares
com as teorias que consolidaram o mito da de metrópole moderna, com largas avenidas
modernidade justifica-se pela emergência em e prédios neoclássicos e art déco. O Rio de
assumir novas propostas capazes de contri- Janeiro, sob a direção do prefeito Pereira
buir para o norteamento das indagações do Passos, também se modernizava, rasgando
presente. É por demais consensual a afirma- avenidas e destruindo os casarios pobres e a
ção de que no próprio continente latino-ame- paisagem colonial do centro da cidade.
ricano as ocorrências culturais e artísticas Segundo Paulo Herkenhoff, no livro Arte
não se realizam de modo homogêneo. Jesús brasileira na Coleção Fadel – da inquietação
Martín-Barbero, teórico espanhol radicado na do moderno à autonomia da linguagem,5
Colômbia, introduz uma reflexão original nos
estudos da mídia ​—​ a modernidade descen-
trada ​—​ que responde pelas várias tempo-
ralidades detectadas perante a recepção de 3 LYOTARD, Jean-François. Reescre-
ver a modernidade. In: O inumano:
culturas hegemônicas pelas periféricas. O considerações sobre o tempo.
modo pelo qual a modernidade é referencia- Lisboa: Ed. Estampa Ltda, 1989.
lizada é sempre no plural, pela existência de p. 40.

distinta configuração conceitual, em que o 4 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos


princípio de homogeneidade é substituído meios às mediações: comunica-
pelo de heterogeneidade.4 ção, cultura e hegemonia. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 214.
Os conceitos legados pelas culturas
hegemônicas são colocados em xeque e revi- 5 HERKENHOFF, Paulo. Arte brasi-
sitados, levando em conta a importância que leira na Coleção Fadel – da inquie-
tação do moderno à autonomia da
transformações políticas e culturais repre- linguagem. Rio de Janeiro: Andrea
sentam atualmente para o entendimento do Jakobsson Studio, 2002.

89
o Rio de Janeiro foi, desde o princípio do e avenidas arborizadas, praças acolhedoras,

MODERNISMO REVISITADO   ENEIDA MARIA DE SOUZA


século 20, uma cidade moderna, por ter sido segundo as regras racionais de simetria e
aclimatada segundo as mudanças urbanas divisão hierárquica entre o espaço do poder e
que aconteciam em Paris. No entender do o dos trabalhadores. Mas como todo processo
crítico, a cidade modernizava-se e tornava- urbano modernizador, as exclusões sociais
-se cosmopolita, com o avanço dos meios não poderiam deixar de acontecer. Um orga-
de comunicação de massa, como o rádio, o nismo saudável, modelo próprio das cidades
cinema, o disco, assim como a construção de modernas, deveria ver-se livre das desordens
prédios modernos, em estilo eclético, como o e das supostas doenças que poderiam ser
Hotel Glória e o Hotel Copacabana Palace. Na causadas pela proximidade das elites com a
pintura pré-modernista de Oswaldo Teixeira classe popular.
(“Praça Floriano – Rio de Janeiro”, 1922) e de Os antigos habitantes do lugar, obrigados
Eliseu d’Ângelo Visconti (“Avenida Central”, a abandonar suas casas, foram excluídos do
1908), na fotografia de Augusto Malta sobre processo civilizatório na época da construção
o Rio de Janeiro, na música de Villa-Lobos, da capital. A eles foi reservado o espaço su-
Ernesto Nazareth, Darius Milhaud, Donga, burbano, fora da área central, planejada para
Pixinguinha, entre outros, o samba, o maxixe abrigar a cidade letrada. O centro urbano, or-
e o jongo integravam-se à vida urbana e denado e limpo, exigia a convivência civilizada
traduziam a revolução dos costumes. Pou- entre os cidadãos, a obediência às normas e
co lembrada pelos modernistas paulistas, aos parâmetros morais requeridos na esfera
principalmente Mário de Andrade, a música pública. Como esta cidade, moderna, republi-
popular urbana constitui o signo de moder- cana, de costumes ainda conservadores, mas
nidade, invadindo os salões e representando seduzida pela promessa de progresso mate-
anseios populares.6 rial e cultural tornou-se a capital centraliza-
A rentável associação entre arquitetura e dora dos ideais de mudança dos habitantes
arte moderna será ao longo dos anos o toque vindos do interior do Estado, de imigrantes
representativo da imagem de cidades que e de pessoas da própria região? Como as
recebiam, bem ou mal, os sinais do progresso transformações urbanísticas levadas a
urbano e da modernização. O cartão de visita termo ao longo do tempo contribuíram para
de uma modernidade em andamento será descaracterizá-la? Alguns escritores mineiros,
sempre a paisagem citadina, com lugares de em épocas diferentes, produziram ficções
encontro dos intelectuais, da construção de e memórias relativas a um tempo vivido em
espaços de lazer e de comércio, assim como Belo Horizonte, uma forma de imaginar e de
da consolidação do aspecto de cidade letrada, registrar experiências compartilhadas com
com seus prédios reservados ao poder. O os colegas de geração. São essas recriações
estilo arquitetônico de cada época, como o fruto de um olhar letrado, de uma perspectiva
colonial, o eclético, o art nouveau, o art déco que se volta para a classe literária, para os
e o moderno oficial, consegue formar com a lugares simbólicos de convivência, como as
arte e a literatura o elo representativo, sem livrarias, os cafés, o espaço público em geral.
que se crie aí uma relação natural de causa/ A vida literária de Belo Horizonte dos
efeito. Por ter a modernidade instaurado o anos 1920 formava-se na rua da Bahia, onde
diálogo interdisciplinar e aprimorado o teor se reunia a rapaziada, ávida de mudanças
cosmopolita de suas manifestações artísti- e cheia de sonhos vanguardistas. Nesse
cas, torna-se imprescindível o exercício desse coração urbano, dedicado ao lazer e aos
diálogo pela crítica. negócios, merece especial atenção o Bar do
Ponto, imortalizado por Carlos Drummond e
PAULISTAS E MINEIROS por sua geração. É nessa esquina da rua da
Bahia com Afonso Pena que se projetou uma
Belo Horizonte, inaugurada em 1897, já nas- literatura moderna e se eternizou um grupo
cia com o traçado da modernidade, modelada de intelectuais. A narrativa de uma moder-
a régua e compasso, pronta para acolher os nidade efusiva torna-se um dos motivos das
ideais republicanos, pautados pela ordem,
ciência, cidadania e bem-estar coletivo.
O desenho urbano constava de ruas largas 6 Ibid., p. 21.

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Memórias de Pedro Nava, principalmente Minas acolhe os paulistas e estes tornam-
o volume 4, intitulado Beira-mar, graças -se devedores da riqueza cultural contida na
ao registro afetivo de um movimento que, arte barroca das cidades históricas, resíduo
embora marcado pela nostalgia, revitaliza-se de um primitivismo capaz de ampliar o con-
literariamente.7 ceito de moderno e de nacional. A paisagem
A importância de Mário de Andrade e urbana colonial empresta aos modernistas
dos modernistas paulistas para o início do a contraparte que faltava à concepção de
modernismo em Minas está intimamente novo: o patrimônio cultural, a urgência de
relacionada à visita, em 1924, da caravana “restaurar” obras antigas como uma das
a Belo Horizonte, como rota final da viagem saídas para a convivência do antigo com
às cidades históricas. Motivados pela lição a vanguarda. O registro dessa passagem,
de Blaise Cendrars, poeta franco-suíço que composto de poemas, crônicas e ensaios de
incentiva os jovens escritores a buscar o Oswald e Mário, traz igualmente desenhos
exótico, a tradição e o primitivo presentes das cidades coloniais, com assinaturas de
na arte barroca mineira, os paulistas saem Tarsila e do poeta paulista. Revestidos de
em busca de elementos capazes de propi- traço fino e limpo, esses desenhos sugerem
ciar a descoberta de uma cultura de traço o despojamento do olhar modernista diante
nacionalista. Os rapazes do Bar do Ponto do ornamento e do acúmulo de detalhes do
são convidados a ir ao Grande Hotel, na barroco. A reunião de tendências estéticas
rua da Bahia, para conhecerem os repre- pertencentes a momentos distintos confe-
sentantes da vanguarda literária e artística re a esta segunda fase do modernismo o
brasileira do momento: Mário e Oswald de diálogo anacrônico aí existente. A tendência
Andrade, Tarsila do Amaral, acompanhados ao revival que preside a toda manifestação
de Blaise Cendrars, Dona Olívia Guedes artística encontra aqui motivo para se pensar
Penteado, Oswald de Andrade Filho (Nonê), o conceito de tardio, acepção desprovida de
René Thiollier e Goffredo da Silva Teles. Nas continuidade histórica, pela afirmação de
palavras de Nava, além de Drummond, “que descontinuidades temporais. O moderno
estava convocando visitantes para irem ver está sempre assumindo características que
os paulistas no Grande Hotel”, apenas o escapam a definições fixas.
próprio Nava, Martins de Almeida e Emílio O Manifesto Pau-Brasil, escrito por
Moura compareceram ao encontro. Seria o Oswald de Andrade em 1924, com a propos-
início de uma convivência epistolar e efetiva ta de revisão cultural do país, por meio da
entre muitos dos modernistas mineiros, entre valorização do elemento primitivo, antecipa a
eles Drummond, que durará até a morte do fusão da simplicidade e do novo com a tradi-
escritor paulista em 1945. O diálogo entre os ção, da invenção promovida pela surpresa e o
escritores irá se aprofundar ainda mais com a choque. Em 1925, como produto da experiên-
criação de revistas, como A Revista, de 1925; cia cubista e de sua viagem a Minas, Oswald
Revista Verde, de Cataguases, em 1927; leite publica a Poesia Pau-Brasil. Silviano Santia-
criôlo, de 1929, com as quais modernistas de go, em artigo esclarecedor, reforça a opinião
outros estados também colaboraram. de Brito Broca, segundo a qual, desde o início,
É notória a importância que as revistas o modernismo pode ser lido no seu dilacera-
representam no meio intelectual, pela criação mento entre a estética futurista, que pregava
e participação de grupos, sejam eles institu- a desvinculação com o passado, e o contato
cionais ou não, assim como espaço propício com o “novo”, representado pela tradição
para o lançamento de manifestos, de criações mineira: “A contradição entre Futurismo, no
poéticas ainda experimentais de autores sentido europeu da palavra, e Modernismo, no
iniciantes, legitimação das publicações por sentido brasileiro, já existe em 24, no momen-
escritores consagrados e pela atualidade to mesmo em que os novos estão tentando
e rapidez na sua divulgação. Os movimen- impor uma estética da originalidade entre
tos de vanguarda do século 20 tinham por
princípio a concepção de uma revista que
atingisse maior número de leitores de forma
7 NAVA, Pedro Nava. Beira-mar.
contundente e se impusesse como marca de Memórias/4. Rio de Janeiro: José
uma geração. Olympio, 1978.

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nós”.8 Reconhecer as limitações interpretati- ilustrações contidos na correspondência. Es-

MODERNISMO REVISITADO   ENEIDA MARIA DE SOUZA


vas da crítica, verificadas ao longo dos anos, sas cartas, publicadas nos anos 1980 ​—​ con-
é contribuir para a construção da história das tendo somente as cartas de Mário ​—​  foram
formações culturais, à margem de generaliza- reeditadas, posteriormente, por estudiosos,
ções e sínteses duvidosas. compondo a rede de destinatários e destina-
Uma das fórmulas encontradas por Mário dores. Drummond, Nava e João Alphonsus
de Andrade, com base na experiência com o foram os autores selecionados para se
barroco, foi a sua conjunção com o expressio- exemplificar como as produções literárias e
nismo alemão, por ambos responderem por artísticas mineiras dessa época se processa-
princípios estéticos semelhantes: a deforma- vam pelo intercâmbio entre autores mineiros
ção do objeto artístico e o surgimento do ho- e paulistas. De Drummond, o enfoque deste
mem novo. O que estava em jogo era a defesa ensaio recai nas cartas trocadas com Mário.
de um projeto coletivo de afirmação nacional, De Nava, sua contribuição para a história do
presente nas várias áreas do saber. modernismo, pela grande contribuição pre-
O modernismo em Minas pode ser, de ma- sente nos livros de Memórias, principalmente
neira mais pormenorizada, definido pela con- Beira-mar.10 João Alphonsus, morto prema-
junção entre o velho e o novo, não só pela lição turamente em 1944, está presente neste
dos colegas paulistas ao estado, mas ainda ensaio como homenagem a um dos escritores
pela tendência pelo diálogo entre aspirações modernistas até então pouco estudados
vanguardistas e a tradição secular por instin- pela academia.
tos revolucionários. Em 1924 instaura-se, em
definitivo, a presença mineira no movimento, AMIZADE MODERNISTA
o que não impede de afirmar já estarem os
intelectuais imbuídos da semente moderna, A visita dos modernistas a Minas propicia
iniciada em anos anteriores. Frederico Coelho ainda a criação do Patrimônio Histórico Na-
defende a data como possível origem do cional, em 1937, com anteprojeto de Mário de
modernismo brasileiro: “1924 testemunha o Andrade e realização de Rodrigo Melo Franco
mesmo quadro de rupturas com o passado, de Andrade. A essa linhagem se integra ainda
muitos dos mesmos personagens, porém o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade,
com uma trama mais nacional, dinâmica e que, em 1924, recebe os paulistas, tornando-
generosa do que os três dias de fevereiro de -se, daí em diante, o parceiro mais brilhante
1922 em São Paulo. Seria um belo mito de da modernidade literária brasileira. A partir de
origem para o Modernismo brasileiro”.9 então, tem-se o início formal do modernismo
Some-se a essa visita a troca de corres- em Minas Gerais, que já se evidenciava nos
pondência entre Mário de Andrade e alguns experimentos realizados pelos jovens escrito-
escritores mineiros, iniciada logo após a res e jornalistas de Belo Horizonte.
vinda dos intelectuais em 1924. Dos lugares Em Belo Horizonte Drummond permane-
frequentados pelos modernistas, ficaram as ce até 1934, quando se transfere para o Rio
cartas trocadas com Carlos Drummond de de Janeiro, a convite de Gustavo Capanema.
Andrade, Pedro Nava, Martins de Almeida, as Mas já se notabilizara como autor de Alguma
dedicatórias estampadas em livros, retratos poesia e Brejo das almas, antes de sua con-
em grupo, comentários escritos nas mar- sagração literária com os livros Sentimento
gens de poemas e apreciação de desenhos e do mundo e A rosa do povo. Por sua atuação

8 SANTIAGO, Silviano. A perma- 10 Por questão de economia textual do movimento. Com o objetivo de
nência do discurso da tradição no e de método analítico, a revisão ilustração, reporto-me a Beira-mar
Modernismo. In: BORNHEIM, Gerd do modernismo em Minas se e forneço a listagem dos represen-
et al. Tradição/contradição. Rio centralizou em poucas figuras tantes de um nascente modernismo
de Janeiro: Jorge Zahar/Funarte, do movimento, sem apontar em Minas: Carlos Drummond de
1987. p. 127. manifestações anteriores con- Andrade, Emílio Moura, Pedro Nava,
sideradas modernistas, como O João Alphonsus, Aníbal Machado,
9 COELHO, Frederico. A semana capote do guarda, publicação feita Martins de Almeida, Murilo Mendes,
sem fim. Rio de Janeiro: Casa da em jornal por vários escritores Rosário Fusco, Achilles Vivacqua,
Palavra, 2012. pp. 32–3. mineiros. Pedro Nava fornece Ascânio Lopes, Abgar Renault,
ampla descrição dos componentes Guilhermino César, entre outros.

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intelectual nesse período e pelo vigor de uma ajudando a melhor decodificar certos
poética combativa e intransigente, o poeta temas que ali estão dramatizados, ou
torna-se um dos mais respeitados e notá- expostos de maneira relativamente
veis nomes de sua geração. De 1934 a 1945, hermética (como a questão da felicida-
permanece no governo Vargas, dividindo a de, em Mário de Andrade, ou a questão
sua profissão de chefe de gabinete com o do nacionalismo, no primeiro Carlos
de escritor, situação conflituosa para quem Drummond). Visa a aprofundar o co-
servia a um governo autoritário e ditatorial. nhecimento que temos da história do
Dessa data até 1962, trabalhou como Chefe modernismo, em particular do período
da Seção de História na Divisão de Estudos consecutivo à Semana de Arte Moderna.11
e Tombamentos do Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Será, Passados mais de 50 anos da morte de
portanto, um dos artífices da criação do Mário de Andrade, seu baú de cartas pôde ser
Patrimônio, desempenhando papel efetivo no aberto, propiciando ao leitor a reunião das
destino dos projetos e na escolha de nomes partes desse diálogo iniciado com o início e a
para realizá-los, além de se ocupar do traba- expansão do modernismo. Carlos Drummond
lho de catalogação e organização do material de Andrade é um dos mais notáveis parceiros
existente nesse arquivo. dessa correspondência, tanto pela sua posi-
A releitura do papel de Drummond na ção como poeta quanto pela sua imagem de
construção de um Brasil moderno tem como intelectual, entre atuante e reservado, avesso
princípio rever tanto o grau de amizade entre à exposição pública, embora tenha exercido
seus pares, seja sua vinculação a um projeto cargo político durante o governo Vargas,
moderno de unidade política ​—​ elaborado como assinalado anteriormente. A publica-
com base no culto da identidade nacional, ção dessas cartas rompe o silêncio da voz de
através do concurso da educação e da arte ​—, Drummond, saciando a curiosidade da crítica,
seja a um projeto estético ligado à geração além de entregar ao público um rigoroso e
dos literatos modernistas, notadamente pela excelente trabalho editorial.
troca de cartas com Mário de Andrade. A vida estampada nas cartas revela-se de
No início da década de 1980, com a aber- forma distinta para os interlocutores. Se em
tura política e a proliferação de uma escrita Mário prevalece a exuberância vital, unida à
autobiográfica dos exilados, a crítica literária exuberância criativa, em Drummond, o “pouco
brasileira ​—​  tendo Silviano Santiago como um de vida tímida e inconformada”, o menos
de seus titulares ​—​ volta-se para o enfoque que se traduz no mais de uma obra, confir-
particular do modernismo, a epistolografia e ma ser a vida nada mais do que um segredo
o memorialismo, indo além de sua produção impenetrável. E esse segredo se explica pelo
literária e ensaística. Configura-se a aliança comportamento contido do poeta mineiro, em
entre obra e autor, escrita e política, proces- oposta atitude assumida pelo amigo paulista.
sando-se, contudo, o deslocamento do lugar Mário, em carta datada de 1944, ao revelar
reservado ao autor para o do intelectual, o que sua insatisfação diante da resolução dos
revela o avanço da crítica para a revisão da médicos em não operá-lo, define seu estilo de
historiografia literária brasileira. Na apresen- vida inclinado muito mais para o gasto do que
tação ao volume, Santiago esclarece a impor- para a usura:
tância de se estudar a correspondência entre
escritores para a abertura do próprio conceito Eles partem do princípio profissional
de crítica biográfica: talvez lógico mas antimário de que viver
é conservar a vida. Pra mim, viver é
A leitura de cartas escritas aos com- gastar a vida. […] Mas se vê pelas minhas
panheiros de letras e familiares, bem cartas de todos os tempos que se eu quero
como a de diários íntimos e entrevis- me gastar e não conservar a vida, não se
tas, tem pelo menos dois objetivos no
campo duma nova teoria literária. Visa
a enriquecer, pelo estabelecimento de
11 SANTIAGO, Silviano; FROTA, Lélia
jogos intertextuais, a compreensão da Coelho (Org.). Carlos & Mário. Rio
obra artística (poema, conto, romance…), de Janeiro: Bem-te-vi, 2002. p. 10.

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trata de nenhuma desistência, de nenhu- tom distanciado e frio das cartas trocadas no

MODERNISMO REVISITADO   ENEIDA MARIA DE SOUZA


ma covardia atual, de nenhum suicídio. É final da década de 1930 em diante. Desaven-
questão de temperamento, de realidade ças da idade, desencontros de ordem política?
instintiva do meu ser.12 O certo é que essa situação se apresenta por
meio de comentários de ambas as partes
O excesso, como assim o nomeia Silviano sobre a perda de uma comunicação antes
Santiago, à luz da teorização de Georges exercida de modo mais contundente e vigoro-
Bataille (A noção de despesa),13 seria o traço so. Descompassos e reconciliações vão sendo
peculiar do escritor, que “não fala por alusões, aos poucos negociados pelos missivistas, à
símbolos ou metáforas. É direto e certeiro. medida que a conversa entre eles, pelo menos
[…] Mário tem um único estilo: na carta ex- no papel, carecia de alimento e justificativa
cessiva, ele se automodela pelo excesso. Tudo para se sustentar. Em 1942, quando Mário
que nele sobra, falta ao jovem mineiro. […]. publica a reunião de sua obra poética, com o
Comunica-se com o interlocutor pelo desper- título Poesias, o reencontro entre os amigos-
dício do que lhe sobra”.14 Essa exuberância -poetas manifesta-se pela lembrança contida
se contrapõe ao comportamento retraído do nos versos, pela literatura como traço fiel
poeta mineiro, contrário à exposição subjetiva de um antigo sentimento de camaradagem.
e, por essa razão, autor de uma obra cujas Drummond reencontra e revê o longínquo
qualidades encaminham para o apagamento Mário das cartas por meio da releitura de sua
do sujeito de forma quase absoluta. Esse produção poética, gesto capaz de dar sobrevi-
apagamento se traduz tanto na vida quanto da à memória:
na arte, uma forma esquiva de participar
de momentos significativos da vida pública […] ao lado dos motivos grandes de
nacional, ao mesmo tempo que construía satisfação poética, a mim oferecidos por
sua poética em desacordo e em sentido seu livro, motivo de pura voluptuosida-
contrário à ideologia autoritária da política de de espírito, houve um que me tocou
do momento: “Me sinto capaz de viver. Não mais de perto, foi o de reencontrar nele
uma grande vida, nem uma vida cheia, mas o Mário dos anos 1920–30, o das cartas
o meu pouco de vida tímida e inconformada, torrenciais, dos conselhos, das advertên-
com desejo de fazer alguma coisa que não sei cias sábias e afetuosas, indivíduo que tive
o que seja, mas que seja bom para os outros, a sorte de achar em momento de angus-
isso eu vivo”.15 tiosa procura e formação intelectual. Ele
As confissões pessoais expressas na está inteiro nas poesias. E como perma-
correspondência não se restringem a revelar neceu grande depois desse tempo todo!
segredos ou a apontar desavenças e dissa- Sei que compreenderá a minha emoção
bores entre os missivistas/personagens. Ao encontrando esse velho companheiro.16
serem lidas no seu estatuto de texto, as car-
tas se integram ao domínio da ficção, sendo, A desilusão de Mário diante do movimento
portanto, motivo de interpretações contra- modernista é ainda motivo para Drummond
ditórias. Vozes dissonantes são colocadas perceber o grau de distanciamento entre o
em cena, por meio do diálogo que aponta atual e o antigo companheiro, o qual não mais
não só a troca de experiências entre dois se comportava como bravo defensor de uma
poetas ​—​  o jovem Drummond recebe lições
de poesia e de vida, discute sobre nacionalis-
mo e política ​—, mas o silêncio e o não-dito
como sinais invisíveis de uma complexa 12 Ibid., p. 504.

relação de amizade. 13 BATAILLE, Georges. A noção


Em virtude da diferença de temperamento de despesa. Tradução de
e de trajetória intelectual e literária assumida Julio Castagnon. Rio de Janeiro:
Imago, 1975.
pelos poetas, a correspondência evidencia
certa irregularidade, por deixar lacunas e 14 SANTIAGO; FROTA. op. cit., p. 13.
silêncios ao longo do diálogo entre amigos
15 Ibid., p. 523.
de 20 anos. Não é difícil perceber possíveis
desentendimentos entre eles, marcados pelo 16 Ibid., p. 475.

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determinada causa literária e nacional. A de uma vida literária construída através de en-
desilusão demonstrada pelo intelectual que contros e sonhos de mudança se perpetuam e
havia, no passado, se notabilizado como um se revitalizam neste desenho composto pelas
dos responsáveis pela revolução da historio- cartas e suas notáveis personagens.
grafia literária brasileira não representava,
para Drummond, apenas o acerto de contas NAVA, O MEMORIALISTA DO
de Mário com sua geração, mas também o MODERNISMO
fim do sonho moderno entre amigos. O bilhete
endereçado a Mário pelo poeta, após receber Pedro Nava nasce em Juiz de Fora em 5 de ju-
o texto da conferência proferida no Itamara- nho de 1903, forma-se em medicina em 1927
ty em 1942, sintetiza todo o desencanto do e inicia a escrita das Memórias em 1968, após
intelectual ao assumir o “mea culpa”: “Recebi ter-se aposentado da profissão de médico,
o Movimento modernista. Obrigado, mas que exercida durante mais de trinta anos. Sua ex-
melancolia!” 17 O tempo das “grandes cartas periência literária começa na década de 1920
paulistanas, escritas com amor e verdade em Belo Horizonte e conta com a companhia
implacável”, já se impõe como marca do dos jovens intelectuais que se integram ao
entusiasmo que os uniu e que muito concor- movimento modernista de São Paulo. Carlos
reu para a legitimação do programa moderno Drummond de Andrade, Abgar Renault, Emílio
de criação da literatura nacional. A formação Moura, Milton Campos, João Alphonsus,
literária e profissional de Drummond, adqui- entre outros, tornam-se escritores de renome
rida em parte com a ajuda do amigo paulista, nacional, condição atingida por Nava ape-
se encontrava, no momento, em situação nas em 1972, quando da publicação de Baú
privilegiada, pelo reconhecimento público de de ossos. O encontro com a literatura viria
sua obra. O balanço existencial será tributário cumprir o compromisso com os colegas de
da lição de poesia legada pelo amigo, conse- geração, uma vez que o escritor, com exceção
quência inevitável no destino de sua obra: “Eu de alguns poemas publicados em A Revista,
era então um sujeito muito desgraçado, pelo era rotulado poeta bissexto, destacando-se
menos me supunha tal, mas agora reconheço entre as poucas realizações poéticas, “Mestre
que tudo foi ótimo e valeu a pena. E em gran- Aurélio entre as rosas” e “O defunto”, textos
de parte valeu por causa de você”.18 reeditados, em 1946, por Manuel Bandeira, na
Carlos & Mário, além de ser um dos Antologia dos poetas bissextos.
documentos e registros mais valiosos para A formação intelectual de Nava, ao iniciar
a compreensão do programa modernista no os estudos no Ginásio Anglo-Mineiro, de tradi-
Brasil, coloca à disposição do leitor um livro- ção inglesa, revela ser fundamental a introdu-
-objeto de luxo, contendo grande parte da vida ção das leituras de literatura inglesa, a prática
passada a limpo de uma geração literária do de esportes e o conhecimento de uma cultura
início do século 20. As notas explicativas re- que se distanciava daquela pregada pelos
velam-se de grande utilidade para a pesquisa, colégios católicos. Em entrevista, afirma:
demonstrando fidelidade na recomposição
dos fatos, cuidado presente tanto no trabalho Uma palavra (não posso passar por cima,
anteriormente realizado por Drummond na é uma coisa de Belo Horizonte, não
edição das cartas de Mário, quanto na edito- é?) sobre esse Ginásio Anglo-Mineiro.
ração das cartas de Drummond por Silviano Foi um colégio com uma experiência
Santiago. As reproduções das imagens de muito interessante feita aqui. Eu guardo
esquinas, de cidades históricas de Minas, de até hoje um amor extraordinário pela
fragmentos de cartas manuscritas, de fotos Inglaterra, pela literatura inglesa, por
dos protagonistas e companheiros da época causa desses ingleses, que foram profes-
se mesclam às primeiras edições de livros, sores e tiveram uma influência civiliza-
periódicos e pinturas de artistas. O projeto dora e talvez mais geral do que educativa,
gráfico, da autoria de Victor Burton, transfor-
ma a edição das cartas num álbum moder-
nista, misto de imagem e texto, a ser folheado
17 Ibid., p. 478.
e lido com certo toque de nostalgia. Mas os
resíduos de uma modernidade em ebulição, 18 Ibid., p. 497.

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que eles exerceram só dois anos. Eles retórica parnasiana dos salões, com o aceno

MODERNISMO REVISITADO   ENEIDA MARIA DE SOUZA


melhoraram consideravelmente o futebol de uma época de revolução artística. Mário de
aqui de Belo Horizonte. Foi uma coisa Andrade publica Pauliceia desvairada, onde
extraordinária. Havia vários jogadores, são registrados os parâmetros de uma poé-
“foot-ballers” muito bons entre os profes- tica modernista e Oswald de Andrade, Alma,
sores e eles levaram aos nossos clubes da- primeiro volume da trilogia de Os condenados.
qui um futebol feito com cavalheirismo, Em setembro de 1922, o jovem Nava viaja
com uma certa fidalguia, sabendo perder, para o Rio de Janeiro, com o objetivo de se
sabendo ganhar.19 encontrar com parentes e visitar a Exposição
do Centenário da Independência do Brasil. A
Mais tarde, em convívio com os amigos, fa- celebração do Centenário acende seu espírito
miliariza-se com a modernidade cultural que patriótico, acrescido da admiração pelos pro-
chega pelos livros estrangeiros avidamente tagonistas do movimento. Egresso do Colégio
adquiridos na rua da Bahia, razão pela qual Pedro II, no Rio, educandário responsável por
é possível entender a atmosfera do novo a sua formação humanista e europeia, o então
inspirar a intelectualidade mineira, residindo estudante de medicina se emociona com o
numa metrópole também nova e moder- clima festivo das comemorações.
na. O desenraizamento do sujeito, a perda Em posição distinta à dos modernistas de
da individualidade no meio da multidão, a São Paulo, Nava se guiava ainda por preceitos
separação entre a esfera privada e a pública ​ estéticos e políticos conservadores, o que
—​ responsável pela legitimação do exercício irá comprovar sua atitude entre tradicional
da democracia, um dos lemas da política e moderna assumida mais tarde. Para os
moderna, instauradora dos padrões republi- modernistas, o Centenário da Independên-
canos ​—​ redimensionam a vida em sociedade cia serviu de motivação para a aventura de
e compõem o cenário da década de 1920. redescoberta do Brasil, atitude revolucionária
A produção memorialística de Nava que rompia com a estética dominante no
mantém princípios da poética modernista, século 20. 1922 marca, sem dúvida, o início
sem se definir completamente segundo tais de grandes mudanças no quadro cultural e
parâmetros, pelo estilo entre o coloquial e o político do Brasil. Em Beira-mar, a cidade
erudito, valendo-se de uma narrativa cauda- de Belo Horizonte, contando apenas vinte e
losa e por vezes totalizante. Seis volumes são cinco anos, é descrita com tintas parnasianas
publicados, num intervalo de pouco mais de e criticada pelo provincianismo aí reinante. O
uma década ​—​ 1972 a 1983 ​—, compreen- modernismo viria abalar, entre tantos outros,
dendo os trinta anos de vida do memorialista, os valores preconizados pela Tradicional
além das trinta e seis páginas inéditas de Família Mineira:
Cera das almas, volume que daria continui-
dade à série. Baú de ossos (1972), Balão Belo Horizonte era uma capital profun-
cativo (1973), Chão de ferro (1976), Beira- damente quieta e bem pensante. Amava
-mar (1978), Galo-das-trevas (1981) e O círio o soneto, deleitava-se com sua operazi-
perfeito (1983) compõem o painel biográfico nha em tempos de temporada, acatava o
do autor, texto que se situa a meio caminho Santo Ofício que censurava por sua conta
da ficção e do documento, pela reinvenção os filmes, suas moças liam Ardel, Delly,
dos fatos vividos, condição exigida para a a Bibliothèque de ma Fille, a Collection
realização das Memórias. A natureza híbrida Rose, não conversavam com rapazes e
de seu texto é assumida pelo próprio autor ao faziam que acreditavam que as crianças
longo da escrita. passavam nas hortas entre pés de couve,
Em 1922, o modernismo brasileiro dava raminhos de salsa, serralha, bertalha e ta-
seu primeiro grito nos salões do Teatro Mu- los de taioba. Havia uma literatura oficial.
nicipal de São Paulo, motivado pelas ruptu-
ras revolucionárias da vanguarda europeia,
voltadas para a fragmentação, a velocidade
construtiva e a industrialização urbana. Mário 19 NAVA, Pedro. Entrevista concedida
a Melânia Silva de Aguiar. Boletim
e Oswald de Andrade, figuras de ponta do do CESP, v. 14, 17 jan./jul. 1994.
movimento, proclamam a morte ao burguês, à p. 5.

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Os discursos de suas excelências eram memorialista de Nava, realizada com a
obras antológicas. “Minas é um coração precisão do documentarista e a fluidez do
de ouro num peito de ferro.” “Minas é um ficcionista.
povo que se levanta.” 20 Por meio da técnica da colagem, própria
da arte moderna, a paisagem urbana foi se
Os restos de uma modernidade em franca estruturando como um palimpsesto, por meio
ebulição passam a ser motivo das Memórias do qual são revisitados antigos monumentos,
de Nava e da poesia de seus colegas, graças velhas ruas e moradias. A Belo Horizonte
ao registro de uma paisagem que, embora desses anos esconde-se no traçado do novo
marcada pela nostalgia, se revitaliza literaria- mapa do século XXI. Ficaram os resíduos
mente. Em Beira-mar, a recriação da cidade da cidade neoclássica, da mitológica rua da
literária se realiza pela mediação de Mário de Bahia, transformada hoje em cartão-postal.
Andrade, autor do poema “Noturno de Belo A paisagem é outra, o tempo soube remodelar
Horizonte”. O modernismo em Minas começa o ambiente citadino com os traços engano-
a ganhar força pela presença dos colegas sos do progresso. Mas o que se perdeu em
de São Paulo, que se inspiram, ainda, no imagem, ganha-se em invenção poética e em
processo de modernização das metrópoles, virtualidade futura.
no esforço de unir o projeto poético com o Beira-mar se inscreve como obra de refe-
urbano. A cidade era a personagem da época rência obrigatória para se conhecer não só o
moderna e Belo Horizonte traduzia os ideais mapa de uma cidade moderna, republicana
republicanos como expressão de uma vida e racionalista, como o projeto deliberado de
nova e progressista. uma geração que iria comandar os destinos
A euforia da década de 1920 é retratada políticos e culturais do país na primeira meta-
por Nava com a minúcia e o requinte de um de do século 20. Nas palavras de Drummond,
frequentador assíduo dos pontos de reunião, essa era uma turma da pesada: “Eles fizeram
como o Café Estrela e a Livraria Francisco história política, fizeram administração, cria-
Alves, os quais, juntamente com o Bar do ram literatura, destacaram-se em ciências
Ponto, se tornaram lugares de iniciação jurídicas, na medicina, em numerosos depar-
literária e emblemas de uma intelectualidade tamentos do saber e da inventividade. Acho
moderna em gestação. Entusiasmados com que dificilmente se encontra na história brasi-
a chegada das novas ideias vindas de outros leira uma turma da pesada como esta, de que
centros, os leitores, sempre sob a sábia orien- fui menos participante do que beneficiário”.21
tação de Drummond, procediam à abertura
das caixas de livros, recheadas de novidades ECOS ANTROPOFÁGICOS
estrangeiras. Belo Horizonte recebia ares de
metrópole e mantinha um contato mais rico Curiosamente, a prosa modernista dos
com o mundo, vasto mundo. Desse pequeno primeiros anos não se aterá à questão da raça
espaço da rua da Bahia, criou-se uma mitolo- negra, mas incidirá na exploração do indí-
gia e consagrou-se uma geração. O espírito gena como símbolo da identidade brasileira,
de novidade e de ruptura impulsionaria o nos seus rituais e modos indolentes de ser.
grupo do Café Estrela a abrir caminhos na A antropofagia oswaldiana, com a publicação
literatura, na política e na cultura brasileira. do manifesto e da Revista de Antropofagia,
Na reconstituição da época de ouro dos tendo Raul Bopp e Antônio de Alcântara
rapazes da rua da Bahia, Nava utiliza, em Machado como diretor e gerente do periódico,
Beira-mar, uma série de procedimentos ca- foi magistralmente exemplificada por Mário
pazes de levar a cabo o seu intento: desenhos,
mapas de regiões de Belo Horizonte, recortes
de jornal, cartas, livros e cartões postais. O
processo de rememoração da escrita vale-se 20 NAVA, Pedro. Beira-mar. Memó-
rias/4. op. cit., p. 179.
de inúmeros recursos, condição indispensável
para a construção de um olhar revitalizado 21 ANDRADE, Carlos Drummond de.
pela experiência do presente. A concentração Ambrosina e os incendiários arre-
pendidos. In: ———. Tempo vida
da vida cultural na rua da Bahia permitiu sua poesia. Confissões de rádio. Rio de
consagração histórica, graças à empresa Janeiro: Record, 1987. p. 69.

97
de Andrade, com seu Macunaíma. Sem entrar eficácia, ainda que tenha sofrido mudan-

MODERNISMO REVISITADO   ENEIDA MARIA DE SOUZA


na polêmica da época, quando Mário rompe ças de ordem histórica e contextual. Carlos
com Oswald e nega ser a obra marcada pelo Drummond de Andrade e João Alphonsus,
traço antropofágico, constata-se o drama cronistas e escritores na Belo Horizonte dos
da civilização indígena sendo tragada pela anos 1920, descartaram o movimento antro-
ideologia do progresso urbano e da cultura pofágico, sob a alegação de serem contra a
estrangeira. Ao procedimento antropofágico, obrigatoriedade de temas brasileiros na poe-
Mário substitui o conceito de “traição da me- sia, por criarem uma “falsa brasilidade”, como
mória”, no qual a defesa do esquecimento dos se expressa João Alphonsus no último núme-
modelos estrangeiros serve como antídoto ro de leite criôlo.23 A desavença dos mineiros
para se safar da questão da dependência. O com Oswald de Andrade foi tributária de seu
autor se distancia da criação de uma perso- afastamento com Mário ​—​  além de ques-
nagem genuína, autêntica ou representativa tões políticas/partidárias ​—, o que resultou
de uma raça específica, um povo ou um país em prejuízo para o alcance significativo do
determinado. A lição de Mário de Andrade conceito de antropofagia. Os componentes
quanto à indefinição do brasileiro, do conflito da revista leite criôlo, Achilles Vivacqua, João
entre raças, da impossibilidade de privilegiar Dornas Filho e Guilhermino César, a princípio
um modelo de nacionalidade é uma das mais simpatizantes do movimento, foram aos pou-
significativas qualidades de Macunaíma. cos se distanciando e não concordando mais
Ainda na década de 1920, cria-se em com a proposta da Revista de Antropofagia.
Belo Horizonte a Revista leite criôlo, bastante No panorama pluralista da prosa moder-
controversa e inserida inicialmente dentro na, o embate se processa por meio de temas
do espírito antropofágico, embora tenha que privilegiam os ingredientes de uma cul-
apresentado como proposta a temática criola tura nacional, sem deixar de lado as relações
na constituição da nacionalidade brasileira. mantidas com o cenário internacional. A
O que importa, no momento, é a tentativa de modernização das cidades, a industrialização
apontar a complexa constituição do ideário crescente das grandes metrópoles, a influên-
modernista, em que são defendidos ora o de- cia arrebatadora dos meios de comunicação,
sapego a definições étnicas como identitárias, como o jornal, o rádio e o cinema seriam os
ora a defesa entre essencialista e universalis- componentes de uma modernidade vernácu-
ta de alguns grupos do modernismo quanto à la, para endossar o conceito de Stuart Hall,
questão indígena ou negra. Nas palavras de capaz de dar conta das diferenças e da nova
Miguel de Ávila Duarte, resposta à hegemonia europeia. Os protago-
nistas dessa prosa brasileira se inseriam nas
A ambiguidade do tratamento dado ao cidades e nela procuravam conquistar espa-
negro em leite criôlo, reconhecido ao ços e legitimar seus direitos. Em São Paulo,
mesmo tempo como uma das primeiras no Rio de Janeiro, como em Belo Horizonte
preocupações do movimento com o e outras cidades do país, a modernização se
tema, contrasta com o topos firmemente realizou primeiramente no traçado/retraçado
assentado de que o Modernismo teria das ruas, na arquitetura e na configuração de
por marca exatamente a inclusão da uma convivência entre pessoas da mesma
herança negra no patrimônio da cultura classe social, em que se isolava a periferia e
e identidades brasileiras. O desconforto seus habitantes.
de tal inadequação talvez ajude a explicar Personagens de várias modalidades
porque, excluída a inclusão de alguns povoavam os romances e as crônicas da
textos na terceira edição da coletânea
de Telles em 1975, o periódico “criolista”
quase não se beneficiou do novo interesse
pelos periódicos modernistas.22 22 DUARTE, Miguel de Ávila. Estudo
crítico. In: MARTINS, A. V. M. F.;
CABRAL, C. A. Leite Criôlo Bello
A antropofagia, embora tenha sido controver- Horizonte. Belo Horizonte: Instituto
sa à época, por razões muito mais pessoais Cultural Amilcar Martins, 2012.
p. 41.
do que de natureza programática, persiste
até hoje como conceito operatório de grande 23 Ibid., p. 49.

98
época, destacando-se, entre elas, imigran- igualmente vanguardista, centralizada no
tes italianos, operários, funcionários públi- projeto marioandradino.
cos, escritores, jornalistas, entre outros. A Entre os contos e romances de João
personagem indígena, seja na poesia, no Alphonsus, destaca-se seu primeiro romance
romance ou no conto ganha maior destaque, Totônio Pacheco, de 1934, no qual compar-
por ter o movimento modernista se empenha- tilha a preocupação com a problemática
do na revisão da imagem do bom selvagem, urbana, em plena fase de modernização
comportando aí distintas posições entre seus e descompasso social. A decadência do
representantes. fazendeiro Totônio Pacheco e sua ida para
João Alphonsus insere-se no quadro da Belo Horizonte demonstram, com fina sen-
crônica urbana da prosa modernista, com a sibilidade, o retrato de um país em contínuo
produção de uma obra que retrata o cotidiano movimento em direção à emergência da
e a vida de homens marginalizados e habitan- modernidade e a defasagem modernizadora.
tes de espaços situados fora do centro das De modo distinto de Amar, verbo intransitivo,
cidades. Belo Horizonte, embora tenha sido o romance não se baseia na presença do
planejada nos moldes de uma metrópole mo- imigrante ou na relação conflituosa entre o
derna, guardava ainda resquícios de província, país periférico e a cultura estrangeira, mas
em razão de a maioria da população ter-se se concentra no conflito entre o interior de
deslocado do interior para construir a nova Minas Gerais e a vida na nova cidade de Belo
cidade e aí viver. Os costumes citadinos, entre Horizonte. No entanto, guarda semelhanças
a modernidade nascente e a modernização quanto à crítica endereçada à posição do
excludente e tardia, refletiam o deslocamento médico mulato Carmo Peres, a qual se iguala
do indivíduo num espaço que ainda não pre- à de Mário diante da opinião preconceituosa
enchia seus desejos de cidadania. As ideias da governanta Fräulein, quanto à causa de
e os climas culturais demonstram, muitas ser o país marcado pela pouca seriedade e
vezes, viajar mais rápido do que os objetos e pelo espírito malandro de seus habitantes.
processos a que se referem, existindo aí boa Ivan Marques, em Cenas de um modernismo
parte da riqueza potencial da história da cul- de província: Drummond e outros rapazes de
tura local. Esse desajuste permanente entre a Belo Horizonte, analisa a obra pela denúncia
instauração da modernidade nos países peri- do olhar determinista do médico Carmo Peres
féricos e os percalços causados pela moderni- em relação ao sertão. No entender do crítico,
zação provoca, contudo, resultados originais a suposta oposição se desfaz, pelo fato de
e específicos nas culturas, fazendo-se notar estar o interior infiltrado na cidade, graças à
no processo de transformação industrial no realização do processo migratório no momen-
Brasil durante as décadas de 1920 e 30, e na to de construção da capital. Os arrabaldes e
própria literatura. as favelas seriam povoados pelos peregrinos
As personagens que povoam a obra de vindos do interior, em virtude da higienização
João Alphonsus traduzem a solidão e esse urbana e a expansão excludente do planeja-
deslocamento provocados pelo desconforto mento das cidades. Ideias vinculadas ao atra-
de estar sempre entre o fascínio da novi- so do campo e à necessidade de eliminar os
dade e a prisão à tradição. A gente miúda empecilhos ao ritmo do progresso traduzem o
e o homem simples, o funcionário público, discurso do médico, interpretado da maneira
boêmios e poetas compõem o painel de que se segue:
dramas do autor, com forte influência dos
temas cotidianos valorizados pelos contos Para Carmo Peres, o casarão é o retrato
de Mário de Andrade. O escritor mineiro de um país vetusto e promíscuo, prisio-
sempre demonstrou afinidade com a dicção neiro das crendices e dos burros de carga.
literária de Mário, reforçada pela fidelidade E a explicação do atraso e da “bagunça
ao amigo modernista. As linhagens poéticas nacional” estaria na mestiçagem da qual
construídas no decorrer da década de 1920 ele, como tantos outros mulatos letra-
e 30 estão irremediavelmente marcadas pela dos, se envergonhava. Leitor de Nina
escolha de uma prosa experimental e mais Rodrigues, cujo racismo àquela altura se
revolucionária, representada por Oswald de combatia, o médico de Totônio Pacheco
Andrade, e outra mais moderada, embora vive ainda atormentado por acreditar

99
num Brasil formado por sub-raças boto- movimento. O romance operário, a imigra-

MODERNISMO REVISITADO   ENEIDA MARIA DE SOUZA


cudas e degeneradas, que teriam se junta- ção em São Paulo no princípio do século, a
do num mestiço inconsistente, libidinoso, industrialização urbana em plena era Vargas,
inimigo do trabalho.24 a presença da cultura popular como con-
trapartida ao elitismo, o conflito interior/
Pedro Nava, contemporâneo de João metrópole, bairro/centro, países periféricos e
Alphonsus, registra a participação dos moder- metrópole, a migração de operários do interior
nistas de forma a exaltar os valores de uma para a construção de Belo Horizonte são
literatura que rompia com os fantasmas pas- fatores importantes para a compreensão dos
sadistas e se concentrava na nova prosa que inúmeros caminhos experimentados pela pro-
surgia. O memorialista não mede esforços ao sa brasileira dessa época. Some-se a esses
proceder à valorização literária e intelectual fatores o deslocamento de escritores oriundos
dos colegas de geração, com vistas a integrá- de vários estados para o Rio de Janeiro, então
-los ao cânone modernista. Totônio Pacheco é capital do país, em busca de ambiente mais
muito valorizado, notadamente quanto ao fato cosmopolita, com maiores chances de no-
de ser considerado “uma das crônicas mais toriedade e bons empregos, principalmente
fabulosas da vida belo-horizontina”. A leitura no serviço público. Essa mudança acarretou
do passado modernista realizada nos anos importantes transformações na configuração
1970 por Nava configura-se de forma contun- do perfil cosmopolita de grande parcela da
dente, a ponto de não emitir qualquer crítica intelectualidade brasileira, além de consolidar
que desabone seus intérpretes, as qualidades o quadro literário e cultural de um Brasil mo-
superando os possíveis defeitos. O registro derno. A prosa literária desse período não se
memorialístico é superlativo e carregado de restringiu ao trabalho isolado de seus autores,
elogios, por condensar laços de amizade com mas se legitimou quanto ao aspecto político e
apreciação crítica. O valor apontado pelo cultural, quando seus protagonistas contribu-
memorialista na análise das obras constitui, íram para o avanço do governo autoritário de
contudo, um dos mais importantes depoimen- Vargas, sem que sua obra sofresse qualquer
tos de uma geração modernista: dano e recriminação.
Em relação a outros escritores do mo-
Com Totônio Pacheco estreou-se ro- dernismo que se distanciaram do modelo
mancista com um dos livros mais ricos preconizado por Mário de Andrade e outros, é
do nosso modernismo, além do valor necessário mencionar Murilo Mendes, minei-
que tem de ser uma das crônicas mais ro de Juiz de Fora, representante legítimo da
fabulosas da vida belo-horizontina nos modernidade, embora dotado de uma poética
anos vinte ​—​ que marcam uma profunda peculiar, centrada em valores religiosos, por
evolução de costumes com a influência do essa razão por muito tempo excluído da
cinema, do automóvel e da remodelação estética moderna voltada para a ruptura. Nas
urbana iniciada pelo Prefeito Flávio dos palavras de Marília Rothier Cardoso/Eneida
Santos. A linguagem de João Alphonsus Maria de Souza,
é límpida, simples, cheia de equilíbrio,
de valores estilísticos, da musicalidade Foi em 1930, quando o movimento,
de quem sabia admiravelmente o verso. desencadeado pela Semana de Arte
É um idioma mineiro e erudito, regio- Moderna já tinha tomado conta da cena
nalista e nacional, cheio de achados cultural brasileira e apresentava a nova
neologísticos e de palavras inventadas geração de poetas formados nas hos-
de desenho suntuoso e de grande força tes da vanguarda, que Murilo Mendes,
onomatopaica.25

A prosa modernista dos anos 1930 no Brasil


24 MARQUES, Ivan. Cenas de um mo-
se distancia em parte das manifestações lite- dernismo de província: Drummond
rárias da década de 1920, por se apresentar e outros rapazes de Belo Horizonte.
vinculada às questões sociais, aos desen- São Paulo: Editora 34, 2011. p. 185.

cantos de uma modernidade em processo, 25 NAVA, Pedro. Beira-mar. Memó-


além de se posicionar como autocrítica do rias/4. op. cit., p. 216.

100
publicando o volume Poemas, “apareceu
pronto e moderníssimo” (Arrigucci, 1997,
p. 79), conforme a palavra crítica de Davi
Arrigucci. Mas Murilo não teve partici-
pação ativa na divulgação da arte nova;
aliás, esteve sempre um tanto à margem
dos grupos e escolas, compondo o perfil
de solitário idiossincrático, traçado por
Júlio Castañon Guimarães (1993), em
longa convivência com a obra e o acervo
do poeta. Tanto assim que o segundo
livro, História do Brasil, de 1932, muito
próximo à moda do poema-piada, foi,
depois, rejeitado pelo poeta, que não quis
incluí-lo na reunião de seus trabalhos.26

Como reflexão final, acrescento a necessida-


de de se pensar na releitura do modernismo
brasileiro e de Minas, em particular, em virtu-
de das próximas comemorações do centená-
rio do movimento, em 2022. A ocasião será
propícia para que exclusões canônicas sejam
revistas, assim como a permanência ou não
de ideais estéticos presentes no imaginário
modernista. Existe ainda grande quantidade
de autores que precisam receber atenção e
análise da crítica especializada, uma vez que
a historiografia tradicional sempre privilegiou
os canônicos, esquecendo-se daqueles que
não mereceram uma justa projeção nacional.

26 CARDOSO, Marília Rothier;


SOUZA, Eneida Maria de.
Autoimagens de um visionário. In:
Modernidade toda prosa. Rio de
Janeiro: 2014. p. 188.

101
A CRÔNICA
MINEIRA
FABRÍCIO MARQUES

102
O mais amorável dos gêneros, na expressão explica, talvez, a ausência de um nome de
do jornalista João Paulo Cunha, a crônica destaque entre os praticantes do gênero até
passou do estatuto de “menor” até atingir sua o final dos anos de 1920 em Minas, onde a
maioridade. Notável contribuição para a mu- história do jornalismo é caracterizada pela
dança deve ser creditada à crônica mineira, quantidade de jornais que surgiram e desapa-
para além da natureza gentílica ou geográfica receram rapidamente.
da expressão. A crônica feita em Minas e por Essa alta rotatividade dos periódicos era
mineiros constitui uma tradição de alto nível, percebida pelos homens de imprensa: “o dia
consolidada entre os anos de 1930 e 1970.1 festivo da inauguração de um jornal sempre
A crônica é fatalmente ligada ao cresci- fora, em Belo Horizonte, a véspera de seu
mento das cidades e ao desenvolvimento da melancólico desaparecimento”, anotou um
imprensa. E também na relação entre esses dos fundadores do Estado de Minas, Pedro
dois fatos, ou seja, no modo como o jornal Aleixo. Em outro registro, o cronista Moacir
se insere na vida citadina. Esses fatores têm Andrade escreveu, sob o pseudônimo de José
uma trajetória atribulada, de caráter tardio Clemente: “Mais de 200 jornais aqui apa-
em Minas Gerais, sexta província a possuir receram até 1930. Alguns eram brilhantes.
periódicos no Brasil, só depois de Rio de Mas todos pirilampejavam e morriam”. Para
Janeiro (1808), Bahia (1811), Pernambuco ele, “Imprensa foi planta que mais custou a
(1821), Maranhão (1821) e Pará (1822). No pegar na nova Capital. A terra era por demais
início de 1823, já havia mais de 50 periódicos árida. Bem que se lançavam sementes. Mas
no país, mas o primeiro jornal do Estado só não vingavam”.2
seria lançado em 13 de outubro de 1823, o O primeiro cronista de Minas Gerais foi o
Compilador Mineiro, em Ouro Preto, com português de múltiplas habilidades Alfredo
duração de apenas três meses. Logo em Camarate (1840–1904),3 que chegou à
seguida, as primeiras cidades a disporem “nascente nova capital mineira” (conforme
de seu próprio jornal foram São João del-Rei, Eduardo Frieiro) em 1894, com engenheiros,
Serro e Diamantina. arquitetos, empresários e operários integran-
O folhetim, precursor histórico da crôni- tes da Comissão Construtora da Nova Capital.
ca, com sua gradativa aclimatação em solo Jornalista, compositor, crítico musical,
brasileiro, chegou no país com o jornalista e publicou não só em Minas, mas também em
poeta carioca Francisco Otaviano, em 1852, jornais de Rio e São Paulo. Com o pseudôni-
denotando a importância, no século XIX, dos mo de Alfredo Riancho, escreveu as crônicas
modelos da imprensa francesa, o que iria inaugurais de uma cidade mesmo antes de
perdurar até o início dos anos de 1950. Nesse seus primeiros sopros de vida, quando pros-
século, os jornais mineiros concentraram-se seguiam os preparos para pôr abaixo o antigo
em três cidades diferentes, em três períodos Curral del-Rei e, em seu lugar, fazer surgir
diversos. Em Ouro Preto, a então capital do Belo Horizonte, marcando a transferência da
Estado, de 1823 a 1885. De 1885 a 1927, sede da capital de Ouro Preto para o novo
impulsionada pela produção de café, Juiz de burgo planejado.
Fora destacava-se como polo econômico e Camarate morava em Sabará. Para
jornalístico. Só a partir de 1927, com qua- chegar no Curral del-Rei, utilizava-se de meio
se três décadas de existência, é que Belo de transporte comum na época, um lombo de
Horizonte se tornou o centro no Estado. Isso animal. Alfredo Camarate/Alfredo Riancho

1 Muitos ensaístas, como Antonio é utilizado na edição especial do 2 ALEIXO, Pedro. “Uma data mineira”,
Candido e Luiz Costa Lima, chega- Suplemento Literário de Minas Estado de Minas, 8 de março de
ram a destacar o caráter “menor” Gerais “A maioridade da crônica”, 1936. E CLEMENTE, José. “Coisas
da crônica. Esse sentido também organizado por Humberto Werneck da capital já passada”. Estado de
é atribuído ao seu tamanho, (novembro de 2012, Secretaria de Minas, 27 de outubro de 1973.
diminuto em relação, por exemplo, Estado de Cultura, Belo Horizonte).
ao conto e ao romance. Nessa Na apresentação do número, 3 De acordo com Eduardo Frieiro, o
perspectiva, é possível compará-la Werneck menciona a “esplêndida segundo cronista seria o Nemo,
a um curta-metragem, enquanto tradição” do gênero em Minas. pseudônimo de Azevedo Júnior,
o romance seria o longa, por redator da segunda folha periódica
exemplo. Já o termo “maioridade” surgia em Belo Horizonte, em 1896.

103
publicou no diário oficial Minas Gerais, ainda algumas pequenas cidades perdidas numa

A CRÔNICA MINEIRA   FABRÍCIO MARQUES


em Ouro Preto, um pouco depois do surgi- vastíssima área rarefeita”.5
mento do periódico, em 21 de abril de 1892, Mas no final dos anos de 1920, os primei-
uma série de artigos intitulada “Por montes e ros e tímidos sinais de progresso começam
vales”, que durou até 1894, com observações a aparecer. No final de 1926, é lançado pelo
sobre a paisagem empoeirada, a temperatura jornalista Victor Silveira o (também fugaz)
amena, os costumes de sua gente, estilos Correio Mineiro, apontado como o periódico
e construções das edificações, os eventos precursor do novo momento da imprensa de
festivos e cultos religiosos. O português foi Belo Horizonte. Em artigo escrito seis anos
também cronista no Bello Horizonte, primeiro depois, o cronista Moacir Andrade considera
jornal privado da cidade, surgido em 1895, Victor Silveira como o fundador da imprensa
criado e editado pelo padre Francisco Martins moderna em Minas.
Dias, pároco da Nossa Senhora da Boa Mas, efetivamente, o surgimento da
Viagem, principal igreja local. imprensa moderna, em Minas, se dá com o
No Germinal, de Mariana, o poeta sim- Diário da Manhã, que representou o estabe-
bolista Alphonsus de Guimaraens também lecimento de Belo Horizonte como centro da
publicou crônicas nos primeiros anos do imprensa mineira, ostentando a Marinoni, pri-
século passado. Há registros de textos com meira impressora rotativa de um jornal privado
o pseudônimo Guy d’Alvim de 1911 a 1915 ​ na capital mineira. O diário de quatro pági-
—​ pelo menos 13 crônicas estão no catálogo nas teve sua primeira edição em 16 de julho
da exposição comemorativa do centenário de 1927. Àquela época, apenas a Imprensa
de nascimento do poeta, em 1970, pela Oficial, que editava o Minas Gerais, possuía
Biblioteca Nacional. maquinário semelhante. Os empreendimen-
Nas suas três primeiras décadas de exis- tos jornalísticos conviviam com a precarieda-
tência, Belo Horizonte é reconhecida como de dos equipamentos gráficos e a indigência
“cidade de funcionários”, na qual impera de recursos. Reforçando a sina de vida efê-
o Minas Gerais, diário oficial dos poderes, mera dos jornais mineiros, o Diário da Manhã
surgido em Ouro Preto, mas posteriormente deixou de circular menos de um ano depois de
transferido para a nova capital. Um de seus seu lançamento. Lançado em 1928, o Estado
mais ilustres funcionários será o poeta e cro- de Minas ​—​ mais longevo dos diários minei-
nista Carlos Drummond de Andrade. O Minas ros ​—​ aproveitaria seus equipamentos. Ainda
Gerais atendia a necessidade de informações assim, o Diário de Minas marcou a trans-
de um público formado em grande parte pelo formação da prática jornalística no Estado,
funcionalismo ​—​  com redações igualmente apontando para rumos mais modernos. Nada
infestadas de servidores públicos ​—, em um que impedisse, no entanto, episódios como o
contexto de ausência de recursos técnicos da narrado pelo cronista Jair Silva, na Folha de
imprensa e escassez de notícias locais, como Minas (lançada em 1934): “Há poucos dias,
atesta Drummond: em consequência da tempestade, desabou
uma casa em Nova Lima. E o nosso jornal pu-
Belo Horizonte, me lembro principal- blicou a fotografia de um burro, com o repórter
mente de 20 e primeiros anos de 30, era Atalibinha em cima, e essa legenda: ‘Folha de
de morte. As novidades trancavam-se Minas’ a caminho do local do desastre.” 6
no escuro […]. De resto, grande parte do
pessoal das redações era constituída de
funcionários públicos que não podiam
arriscar-se a dizer mais do que convinha. 4 ANDRADE, Carlos Drummond
de. “Um parente que faz cinquenta
E, aberta ou furtivamente, os jornais anos”. Estado de Minas, 8 de
dependiam muito do governo.4 março de 1977. Caderno especial.

5 FRIEIRO, Eduardo. “Imprensa


Fazendo um balanço do período, Eduardo política em Minas”. Minas Gerais,
Frieiro comentou: “Minas nunca teve uma 21 de abril de 1932.
imprensa importante. Os grandes jornais
6 SILVA, Jair. “O repórter no Brasil
só são possíveis nos grandes centros urba- e nos Estados Unidos”. Folha de
nos, e Minas, Estado rural, não conta senão Minas, 9 de janeiro de 1935.

104
O cronista Jair Silva trabalhou 30 anos Pouca gente terá notícia do primeiro tipo
no Minas Gerais, onde conheceu Carlos popular da Capital. Era ele um mestiço,
Drummond de Andrade (dois anos mais velho cheio de corpo, baixo, que caminhava
que ele), no final dos anos de 1920. Quando pelas ruas tangendo, com um prego, uma
morreu, aos 63 anos de idade, mereceu uma enxada velha, presa às suas mãos por um
crônica do amigo já famoso: cordel. O povo apelidou-o, não se sabe
por que, de Chico Bispo. Os negociantes
Tornou-se o cronista popular de Belo do mercado Municipal dependuravam
Horizonte, e mesmo do Estado, fazendo no pescoço do maníaco grandes cartazes
questão de manter essa marca de mi- com a lista dos preços dos gêneros de
neirismo inconfundível. Comentando primeira necessidade.8
um acontecimento internacional, to-
mava sempre a posição de observador Jornalista, contista e ensaísta, Moacir (ou
malicioso e descompromissado de Moacyr) Andrade (1897–1979) escreveu
Paraopeba, que não se deixa iludir, e romances, biografias e ensaios, e também
goza os gozadores. recorreu aos pseudônimos para assinar seus
Para Jair, qualquer tipo de espetá- textos jornalísticos, artifício muito comum nas
culo era a mesma coisa: via logo e longe primeiras décadas do século passado: José
o núcleo cômico do acontecimento, Clemente, Gato Félix, o Espírito de Antônio
da situação, da pessoa. Finalmente, o Carlos e Patrício Sobrinho foram alguns deles.
cronista geral, passando em revista a A participação dos irmãos nos periódicos
semana sob a rubrica Oropa, França e pode ser ilustrada com o número 1 da Revista
Bahia, firmou-o na posição, que ninguém Alterosa, de agosto de 1939, que traz um texto
lhe disputava, de humorista local típico, de Djalma Andrade ​—​ “Águas Passadas”. Na
provinciano de raiz e de área, de olhos mesma edição, uma matéria descreve um
paraopebanos postos na Avenida Afonso passeio pela capital mineira do crítico literário
Pena e no mundo. Agripino Grieco, que inclui, entre os cinco
Ocupando a maior parte de uma maiores cronistas de Minas, “e dos melhores
página do Estado de Minas, aos domin- do Brasil”, Moacir Andrade ​—​  “o endiabrado
gos, Jair tanto extraía do casamento da Gato Félix do Diário da Tarde ​—​  o qual me
filha de um amigo, como da explosão de agrada totalmente”. E Jair Silva, “cujas crôni-
uma bomba de hidrogênio, na China, o cas sempre lia com grande satisfação”.9
comentário gracioso, integrado no con- A crônica moderna em Minas começa a se
texto belo-horizontino.7 consolidar nos anos de 1930, também como
resultado das conquistas da Semana de 22,
Além de Jair Silva, dois irmãos com estilos dis- tal como avaliou Fernando Sabino:
tintos, que participaram intensamente do dia a
dia da imprensa mineira, sobressaíram-se na “E chegamos ao Movimento Modernista,
crônica, o já citado Moacir e Djalma Andrade. do qual a crônica também se beneficiou.
Jornalista e poeta, reconhecido como sonetista O Movimento Modernista e todos os seus
e escritor satírico, Djalma (1892–1975) chegou postulados vieram trazer à crônica os
a estudar medicina, mas desistiu, formando- benefícios dessa revolução extraordinária
-se em direito. Considerava-se um anarquista
e um revolucionário sem causa. Colaborou
em praticamente todos os jornais e revista de 7 ANDRADE, Carlos Drummond
Belo Horizonte, muitas vezes com os pseudô- de. “Jair de Paraopeba”. Correio
da Manhã. Rio de Janeiro, 15 de
nimos Guilherme Tel e Félix Arruda. No Estado outubro de 1967.
de Minas assinou a coluna História Alegre de
Belo Horizonte, de 1945 a 1974. Em 1947, em 8 ANDRADE, Djalma. História Alegre
de Belo Horizonte. Belo Horizonte:
comemoração ao cinquentenário da cidade, a Imprensa Oficial, 1947, p. 4.
Imprensa Oficial lançou livro homônimo, com
uma seleção dos textos até ali produzidos por 9 Os demais: “Ari Theo, muito deli-
cado, Milton Amado, sempre inte-
Djalma para a coluna, em que narrava, entre ressante. Franklin Sales e Gualter
outros, fatos envolvendo tipos da cidade: Gontijo Maciel, sempre novos”.

105
que foi a da literatura brasileira em 1922. publicados, extraída da coluna Imagens, pro-

A CRÔNICA MINEIRA   FABRÍCIO MARQUES


A emancipação com relação à cultura duzida para o Correio da Manhã. Antes disso,
lusitana, o primado da temática nacional, sua prosa anterior, com ensaio, crítica, relato
a renovação da língua à base de um falar autobiográfico e pequenas ficções havia saído
mais originariamente nacional, brasileiro, em Confissões de Minas (1944) e Passeios na
tudo isso a crônica ganhou. A crônica ilha (1952). O vínculo entre crônica e cidade
ganhou uma nova dimensão.” 10 predomina tanto na produção cronística em
Belo Horizonte quanto na do Rio de Janeiro,
O primeiro sinal dessa consolidação foi a com a centralidade da experiência urbana,
publicação, a partir de 1930, das primeiras flashes do cotidiano e temas socialmente
crônicas de Carlos Drummond de Andrade, engajados comparecendo também nos livros
nascendo o cronista no mesmo ano de sua seguintes do autor.
estreia como poeta, com Alguma Poesia. Nos Em sua última crônica, “Ciao”, publicada
seus anos de Belo Horizonte, trabalhou em no Jornal do Brasil, em 29 de setembro de
muitos jornais da cidade. É preciso ressaltar 1984, ele escreve:
que o jornalismo, para Drummond, era algo
essencial: “Sou um jornalista porque a vida A crônica de que estou falando é aquela
toda estive ligado a jornal.” 11 Escrevendo com que não precisa entender nada ao falar
os pseudônimos de Antônio Crispim e Barba de tudo. Não se exige do cronista geral a
Azul, essas crônicas saíram no Minas Gerais informação ou comentários precisos que
entre 1930 e 1934, abrigadas na coluna cobramos dos outros. O que lhe pedimos
“Notas Sociais”. Na crônica que abre a série é uma espécie de loucura mansa, que
assinada por Barba Azul, Drummond apre- desenvolva determinado ponto de vista
senta seu programa: não ortodoxo e não trivial e desperte em
nós a inclinação para o jogo da fantasia, o
Nesta seção se falará de moda, de senti- absurdo e a vadiação de espírito.
mentos que passam com ela, de atrizes
bonitas de cinema, de poetas que não Analisando a obra de Drummond, Antonio
usam entorpecentes nem os fabricam, e Candido cravou: “Na sua poesia há ficção e
de mil outros assuntos terrestres. […] a crônica; na sua crônica, poesia e ficção; na sua
seção será curta, como a vida, mas sem ficção, crônica e poesia ​—​ tudo formando o que
as complicações da vida, como o telefone para ele decerto são tentativas, mas para nós
não-automático, o calo pisado na rua, o são realizações completas e exemplares”.13
amor pisado no coração…12 Dois anos depois da publicação da
primeira crônica de Drummond no Minas
Depois dessa experiência, e já morando no Gerais, Rubem Braga, nascido em Cachoeiro
Rio de Janeiro, Drummond exerceria o ofício de Itapemirim, no Espírito Santo, veio para
de cronista por 30 anos seguidos, primeira- Belo Horizonte, a convite do irmão, Newton
mente no Correio da Manhã, entre 1954 e Braga. No primeiro dia de trabalho no Diário
1969, e em seguida no Jornal do Brasil, entre da Tarde, periódico dos Diários Associados,
1969 e 1984. O primeiro livro de crônicas, Rubem foi pautado para cobrir uma exposição
Fala, amendoeira, sairia apenas em 1957. de cães realizada no campo do América,
É a primeira seleção organizada dos textos promovida pelo Brasil Kennel Clube e

10 SABINO, Fernando. “O lugar da 1950”. INTERCOM – Revista Brasi- 1930–1934, numa parceria da
crônica na literatura brasileira de leira de Ciências da Comunicação. Secretaria de Estado de Cultura e
hoje”. In: Jornadas literárias: o São Paulo, v. 31, n. 2, jul./dez, 2008, do Banco do Desenvolvimento de
prazer do diálogo entre autores p. 128. Minas Gerais.
e leitores. Passo Fundo: Ed. da
Universidade de Passo Fundo, 12 As 133 crônicas do Minas Gerais 13 CANDIDO, Antonio. “Drummond
1991, p. 126. foram reunidas pelo pesquisador prosador: singularidade do traço”.
Hélio Gravatá em uma edição Recortes. São Paulo: Companhia
11 Cf. TRAVANCAS, Isabel. “Drum- da Revista do Arquivo Público das Letras, 1993.
mond na imprensa: algumas Mineiro, em 1984. Mais tarde, em
crônicas das décadas de 1940 e 1987, foi lançado o livro Crônicas

106
patrocinada pelo Clube Mineiro de Caçadores, mudança para o Rio de Janeiro (“a Paris mais
com o título “Os homens festejando o seu próxima”, na avaliação do jornalista Sérgio
fiel e grande amigo…”. A matéria ganhou Augusto), latifúndio literário dos mineiros,
recepção muito positiva da chefia da redação extensão natural e espontânea da crônica de
do jornal. O editor-chefe à época, Guilhermino Minas ​—​ o que conferiu, de certo modo e a
César, profetizou: “Vai longe, este rapaz”. partir de então, uma característica itinerante
Na mesma edição, de 7 de março de e além-fronteiras à crônica mineira. Rubem
1932, seu irmão, Newton Braga despedia-se e Drummond foram para a então capital do
dos leitores mineiros. Na semana seguinte, país nos anos de 1930. Os três amigos de
Rubem passou a assinar a seção “Notas Hélio Pellegrino desembarcam no Rio festivo
sociais ​—​ nos lares e nos salões”, sob o título de 1944–1945, sob o clima de esperança e
“Qualquer cousa”, em que publicava notas, otimismo do Pós-Guerra. Com graus variados
poemas, textos humorísticos, notícias de ca- entre si, viveram uma amizade construída nos
samento etc. A primeira nota já traz a marca planos ético e estético, que influiu na pro-
de seu lirismo singular: “A noite está desa- dução de crônicas de cada um. Em comum,
pontada porque não compareceu nenhum ainda, o envolvimento com o jornalismo ​—​ es-
violão, nenhum poeta, nem qualquer pingo de pecialmente Rubem, Drummond e Otto ​—​  sem
tristeza. O meu cérebro trabalha apreensiva- desconsiderar que Paulo e Fernando chega-
mente. Queria estar perto de você recitando a ram a trabalhar em periódicos. Paulo chegou
irritante poesia do meu silêncio”.14 a confessar: “Fui jornalista pontual e triste”.
Quando chegou a Minas, Rubem tinha Quando se conheceram, Drummond era
19 anos, e já havia passado dois anos no Rio o mais velho do grupo, com 40 anos. Rubem
de Janeiro. Nos próximos anos, moraria em tinha pouco mais de 30 anos e os vintanistas
Recife, São Paulo e Porto Alegre, até se fixar Fernando, Paulo e Otto estavam na casa dos
no Rio de Janeiro. Em Belo Horizonte ficou 20. A amizade manifestava-se de diversas
menos de dois anos, uma temporada breve, maneiras. Paulo, recém-chegado ao Rio,
mas intensa, sendo que esse período foi deci- conseguiu seu primeiro emprego graças a
sivo para sua atividade de cronista, obtendo Drummond. A partir de 1949, Fernando, Paulo
assim uma espécie de cidadania virtual minei- e Otto passam a participar da preparação dos
ra. E não só pelo período em Minas, mas com livros de Rubem.
a convivência e amizade com os mineiros que Chefiados por Pompeu de Souza, a partir de
invadiriam alegremente o Rio, como se verá meados dos anos de 1940, Rubem, Fernando,
logo a seguir. Rubem fez fama exclusivamen- Otto e Paulo trabalharam juntos no Diário
te como cronista. Em pouco mais de 50 anos Carioca, primeiro jornal do Rio a adotar novas
de carreira, publicou cerca de 15 mil crônicas técnicas jornalísticas, inspiradas no jornalismo
em vários jornais espalhados pelo Brasil. O norte-americano. De volta dos Estados Unidos,
livro de estreia, reunindo crônicas, foi O conde onde morou um tempo, Fernando Sabino entre-
e o passarinho, de 1936. Três anos antes, em gou uma crônica por dia nesse diário, na coluna
São Paulo, trabalhando como cronista no “Entrelinha”, narrando e comentando pequenos
Diário de S. Paulo, viu suas crônicas republi- fatos pitorescos ou simplesmente humanos
cadas nos jornais de Assis Chateaubriand, em da vida cotidiana, até ser levado por Samuel
diversas capitais, o que o tornou um dos no- Wainer para O Jornal, dos Diários Associados,
mes mais conhecidos da imprensa brasileira. sendo substituído por Paulo Mendes Campos,
O período de 1950 a 1970 ​—​ instante em como conta Fernando em A Chave do Enigma:
que se iniciou ainda a era dos suplementos
literários culturais ​—​ constituiu-se no momen-
to de ouro da crônica moderna no país, com a
participação, ao lado de outros expoentes,15 de 14 BRAGA, Rubem. “Qualquer cousa”.
nomes canônicos do gênero: Rubem Braga, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 14
de março de 1932.
Carlos Drummond de Andrade, o romancista
Fernando Sabino, o poeta e tradutor Paulo 15 Podemos citar Manuel Bandeira,
Mendes Campos e o romancista e futuro Nelson Rodrigues, Antonio
Maria, Sérgio Porto, José Carlos
cronista Otto Lara Resende. Em comum Oliveira, Vinicius de Moraes e
entre eles, a passagem por Belo Horizonte e a Clarice Lispector.

107
Quando tive de interromper a seção, do capitalismo tardio e a emergência da

A CRÔNICA MINEIRA   FABRÍCIO MARQUES


passei-a a Paulo Mendes Campos, que, indústria cultural. Essas cidades, assim
naturalmente, cogitou de novo título. como outras capitais, sofreram profundas
Sugeri-lhe ‘Segundo Plano’, dentro do mudanças em sua estrutura, com impactos
mesmo espírito do que eu escolhera para econômicos, sociais e culturais. A imprensa
mim, ou seja, de uma seção dedicada ao também se modernizou, oferecendo mais
registro do que se passava nas entrelinhas, atrativos aos leitores. Foi um período em
no segundo plano, e que escapava ao que “a convergência entre industrialização
noticiário do resto do jornal. acelerada, constituição de um sistema eco-
— Por que não Primeiro?, perguntou nômico integrado e urbanização intensa vai
ele, com justas razões. preparar a grande arrancada do capitalismo
‘Primeiro Plano’ ficou sendo ​—​ seção brasileiro”:17
na qual durante muito tempo ele colocou
realmente em primeiro plano o seu talen- Daí a maturidade cultural da crônica no
to de cronista. espaço público modernizante de então.
[…] Ao longo desse período, até algum
Eles compartilhariam outro ambiente de momento transitivo entre as décadas de
trabalho, na revista Manchete, lançada em 1960 e 1970, a crônica vai concretizar a
1952 e que chegou a ser a revista semanal grande e arejada janela entre o rarefeito
de circulação nacional mais vendida do país. espaço acadêmico-literário e o oxigênio
Dois anos depois, Otto assumiu a chefia de mundano da convivência urbana.18
redação da revista, ocupando o posto até
1956. Durante anos, a Manchete manteve Nesse contexto, cada um desses cronistas foi
quatro cronistas fixos: Rubem, Fernando, construindo sua visão pessoal sobre o jeito
Paulo e Henrique Pongetti. de ser da crônica que fazia. Em um encontro
Rubem e Fernando lançaram a Editora do para falar de literatura, em 1991, Fernando
Autor (1960 a 1966) e, em seguida, a Editora Sabino afirmou:
Sabiá (1962 a 1966), nas quais publicaram os
próprios livros e também os dos amigos. Com Falando do meu caso, que faço na crônica.
o prestígio da crônica nas alturas, a Sabiá Eu não faço senão registrar com um
lançou em dezembro de 1960 (ano em que aparato de ficção, com elementos de
a capital do país foi transferida do Rio para ficção alguns flagrantes da vida cotidiana,
Brasília), de uma só vez, Ai de ti, Copacabana, alguns fatos e acontecimentos do dia a
de Rubem; O cego de Ipanema; de Paulo;16 dia de pessoas anônimas inclusive. Uma
e O Homem Nu, de Fernando. Em 1964, a empregada, um porteiro, um transeun-
convite de Otto, Rubem escreveu crônicas se- te, que deem uma dimensão humana da
manais para o Jornal do Brasil, que se tornou realidade do dia a dia. E que através desse
o jornal mais importante do país. pitoresco eu possa surpreender algum fla-
Nesse período que começa nos anos de grante que seja mais delicado, mais sutil,
1950, assim como o Rio, Belo Horizonte viven- mais sarcástico e possa, enfim, revelar
ciava profundas transformações do ponto de uma visão de vida como eu gostaria que
vista urbano e industrial, com a consolidação ela fosse apresentada.19

16 Paulo publicou os textos desse livro século, Flávio Pinheiro organizou 18 Ibid.
no Diário Carioca e na Manchete novas seleções das crônicas de
entre 1946 e 1960. A partir de Paulo Mendes Campos, primeiro 19 SABINO, Fernando. “O lugar da
agosto de 1953, assina a coluna para a Civilização Brasileira, e de- crônica na literatura brasileira de
“Conversa Literária” nessa revista, pois para a Companhia das Letras. hoje”. In: Jornadas literárias: o
e dali sairá boa parte do material prazer do diálogo entre autores
das próximas reuniões de crônicas: 17 DIAS, Ângela Maria. “Memória da e leitores. Passo Fundo, Ed. da
Homenzinho na ventania (62), O cidade disponível: foi um Rio que Universidade de Passo Fundo,
colunista do morro (65), Hora passou em nossas vidas. A crônica 1991. p. 127.
do recreio (67), O anjo bêbado dos anos 60”. In: REZENDE,
(69) e, bem mais tarde, Os bares Beatriz (Org.). Cronistas do Rio.
morrem numa quarta-feira (80). Rio de Janeiro: José Olympio;
Posteriormente, no início deste CCBB, 1995, p. 60.

108
O caso de Otto Lara Resende é especial. no jornal O Tempo (1996), da capital mineira,
Fanático por jornal, como se autodefinia, ele e na revista semanal Veja SP (1999). Seu pri-
estreou na profissão aos 16 anos, em Belo meiro livro publicado no gênero é O compra-
Horizonte, colaborando para O Diário, dirigido dor de aventuras e outras crônicas (2000).
por seu pai, Antônio Lara Resende. Em sua Para Humberto Werneck, algumas carac-
trajetória, atuou como repórter, editorialista terísticas são notáveis nas crônicas de Ivan
e foi diretor do Jornal do Brasil e da TV Globo, Angelo: “a arte de narrar, sem uma palavra a
com passagens pelos principais jornais mais ou a menos, uma história bem-humorada ​
brasileiros. Otto consagrou-se como cronista —​ delicada composição de textos fundamente
muito mais tarde, como titular do rodapé da marcados pela poesia”. Além disso, em alguns
página 2 da Folha de S. Paulo, de 1991 a 1992. textos ele pode assumir “uma voz mais grave
Uma coletânea dessa produção foi reunida (mas nunca grandiloquente) para abordar
em Bom dia para nascer, de 1993.20 mazelas que povoam o noticiário e que, de
Nos anos de 1950 e 1960, em Belo tanto se repetirem, acabam por anestesiar
Horizonte, um jornal se distinguia: era o consciências”. Finalmente, às vezes aparece
Binômio, criado por José Maria Rabelo e Euro “o memorialista, dotado de grande poder de
Arantes. Entre 1962 e 1964, a revelação do evocação e jamais lacrimoso.” 21
semanário era o futuro contista Wander Piroli. Quando Drummond despediu-se de seu
Nesse período, ele assinou a coluna “Nossa espaço no Jornal do Brasil, seu substituto
cidade”, em que registrava cenas do cotidia- foi o poeta e ensaísta Affonso Romano de
no da capital, sobretudo da região central e Sant’Anna, que havia começado a escrever
do bairro Lagoinha, um dos mais antigos da crônicas ainda em Juiz de Fora, por volta dos
cidade. Nesse espaço, Piroli publicou versões 16 anos: “A crônica é um gênero muito moti-
do que seriam os contos de A mãe e o filho da vador, você tem de estar de antenas ligadas o
mãe (1966), mas também alguns textos que tempo todo”, afirmou certa vez. “Já disse que
podem ser considerados como crônicas. Nos sou um escritor crônico, já que para mim o
anos de 1980, Wander escreveu mais de 500 poeta é o jornalista da vida humana. No meu
crônicas para as Rádios Guarani e Incon- caso, não faço grande distinção entre poesia
fidência. Entre 1996 e 1997, manteve uma e a crônica, acho-as muito próximas, na mi-
coluna no modesto Diário de Belo Horizonte, nha experiência. Há poemas enraizados em
com mais uma fornada de textos curtos. minhas crônicas”.22 Letícia Malard observou
Em 1965, refazendo a rota de saída de um aspecto da crônica de Affonso, que pode
Belo Horizonte para além-fronteiras, Ivan ser estendido a outros autores do gênero, e
Angelo alterou o rumo seguido antes por que diz respeito a uma opção temática pelo
Fernando Sabino e seus amigos. Dessa vez, o noticiário como indutor da crônica:
destino era São Paulo, com o intuito de traba-
lhar no Jornal da Tarde. Ivan, que já havia lan- Reunidas em livro, as crônicas-notícia
çado com Silviano Santiago, em 1961, Duas funcionam como um relicário de lem-
faces, coletânea de contos e novelas, ficaria branças dos episódios que motivaram
conhecido nacionalmente com o romance A aqueles textos, lembranças avivadas pela
Festa, de 1976. Sua experiência com a crôni- literatura do real. Assim, ler esse tipo
ca teve início em 1962, publicando na revista de crônica é como cruzar uma ponte: de
Alterosa, dirigida pelo futuro contista, roman- um lado jaz enterrado o distante episó-
cista e também cronista Roberto Drummond. dio dado a conhecer em estado bruto ​
Muito tempo depois, na década de 1990, —​ enquanto notícia, reportagem, depoi-
Ivan assumiu sistematicamente o papel de mento etc.; do outro lado, a crônica do
cronista, passando a escrever regularmente episódio ​—​ viva reminiscência de análise e

20 A edição de 1993 foi organizada por 21 WERNECK, Humberto. “Cronista 22 Em entrevista a Maria Antonieta
Matinas Suzuki, com 192 crônicas. puro-sangue”. In: ANGELO, Ivan. Cunha. In: SANT’ANNA, Affonso
Uma nova edição, selecionada Melhores crônicas. São Paulo: Romano de. Crônicas para jovens.
por Humberto Werneck em 2011, Global, 2007. São Paulo: Global, 2011.
acrescentou mais de 70 textos ao
projeto original.

109
interpretação expansiva, tão mais lapida- Muitos reuniram, depois, as crônicas

A CRÔNICA MINEIRA   FABRÍCIO MARQUES


da quanto melhor o cronista.23 em livro. Na coletânea de textos de artigos,
ensaios e crônicas Arquitetura, Arte e Cidade
Affonso também foi cronista do Estado de – Textos reunidos (2004) pode-se apreciar a
Minas, o EM, e não se pode deixar de res- produção do engenheiro e arquiteto Sylvio
saltar a importância desse periódico como Vasconcelos (não só no EM, mas em outras
espaço privilegiado para os cronistas, em 90 publicações também), cobrindo várias déca-
anos de existência completados em 2018. das desse escritor e crítico de arte apaixona-
Pelas páginas do diário também passaram do pela cultura, arte e arquitetura de Minas.
nomes como Carlos Drummond de Andrade, A partir dos anos de 1980, destacam-se
Fernando Sabino e José Bento Teixeira de ainda os seguintes cronistas e seus livros de
Salles ​—​ nascido em 1922, no mesmo ano crônica, sempre falando de nomes ligados
que Paulo Mendes Campos e Otto Lara ao Estado de Minas: o poeta Antônio Barreto
Resende, e um ano antes de Fernando Sabino, (Transversais do mundo: leituras de um tempo,
de quem foi amigo. José Bento trabalhou no 1999), Lindolfo Paoliello (O Melhor da Crônica,
Minas Gerais ​—​  onde ingressou em 1951 ​—​  e, 2003), Frei Betto (Típicos Tipos, 2004), o
mais tarde, publicou suas crônicas no Estado dramaturgo Alcione Araújo (Escritos na água,
de Minas, reunidas posteriormente em livros 2006), a cantora Fernanda Takai (A mulher
como Vigília: Crônicas (2000). que não queria acreditar, 2011), o composi-
Outro nome ligado ao EM é o já citado tor Fernando Brant (Casa Aberta, 2012) e a
Roberto Drummond, mais conhecido como ensaísta Maria Esther Maciel, que, em A vida
contista e romancista. Ele começou sua car- ao redor (2014), apresenta uma definição
reia jornalística na Folha de Minas. Ao longo certeira para o gênero:
dos anos, trabalhou também no Binômio, até
chegar ao EM, no início da década de 1960, A crônica é um gênero interessante, pois
onde ficou até sua morte, após uma breve pas- exige concisão, leveza e desprendimento,
sagem pelo Jornal do Brasil e, nos anos 1990, situando-se num espaço indeterminado
no Hoje em Dia. Suas crônicas são caracteri- entre a narrativa, o ensaio, a poesia e
zadas pelo recurso à repetição: “muitos textos a conversa fiada. Não prescinde nunca
trabalhavam à exaustão esta forma de narrar, do improviso, por mais que tenha sido
como se pela marcação hipnótica do bordão pensada. É um registro precário, mas sufi-
a consciência se liberasse para ir mais longe”. ciente, dos dias e das horas que compõem
Outra marca de Roberto era “a vontade de en- o que chamamos de vida. Pode ser lírica,
tender traduzida em dezenas de perguntas”.24 dramática, ácida, reflexiva, divertida.
Roberto morreu no dia 21 de junho de Leva quem a escreve ao exercício da liber-
2002, em plena Copa do Mundo. Carlos dade de falar sobe qualquer coisa, desde
Herculano Lopes, seu amigo, foi encarregado que essa coisa possa trazer algo que ins-
de escrever a crônica de despedida, e acabou tigue o interesse e a imaginação do leitor.
sendo convidado pela direção do jornal para Aliás, o leitor é o fundamento de toda
substituí-lo, ainda em 2002. Publicou uma crônica, pois ela tem que falar ao ouvido
crônica semanalmente até 2015. Ao todo de cada um, convidando-o à conversa, à
foram quase 800 textos publicados, ren- reflexão e ao devaneio.
dendo, entre outros, os livros Pescador de
Latinhas (2001), Entre BH e Texas (2004), O
chapéu do seu Aguiar (2006) e A ostra e o
bode (2007).
23 MALARD, Letícia. In: Melhores
Também escreveram suas crônicas no crônicas de Affonso Romano de
EM Cultura ou em outros cadernos do jornal Sant’Anna. São Paulo: Global,
Vivina de Assis Viana, Fernando Teles, Maria 2003, p. 10.

Lucia Godoy, Eduardo Almeida Reis, Mário 24 LOPES, Carlos Herculano. In:
Ribeiro, Marina Colasanti, Olavo Romano, Melhores crônicas de Roberto
Helena Jobim (irmã do Tom), Gabi Santos Drummond. São Paulo: Global,
2005. O livro reúne textos publi-
(este, no Diário da Tarde), Brasil Borges e o cados no EM e no Hoje em Dia,
músico e letrista Chico Amaral. de 1989 a 2002.

110
Esse gênero interessante tem uma peculiari- resultou em três coletâneas: O espalhador de
dade, como se pode perceber ao longo deste passarinhos (2010), Esse inferno vai acabar
ensaio, que é um duplo movimento oferecido (2011) e Sonhos rebobinados (2014).
aos leitores: primeiro, a crônica sai periodica- Voltando à capital mineira, outro jor-
mente nas publicações jornalísticas; depois, nal que merece destaque como espaço de
procede-se a uma seleção desse material, cronistas é O Tempo, que nasceu em 1996. A
que é lançado em livro. Essa tradição é antiga, publicação estreou reservando áreas gene-
como observa Marisa Lajolo: rosas para cronistas, num elenco que conta
ou já contou ​—​ citando apenas os mineiros ​
Grandes cronistas brasileiros do sécu- —​ com o jornalista Nirlando Beirão, o cartu-
lo XIX ​—​  Joaquim Manuel de Macedo, nista Ziraldo, a dramaturga Grace Passô, a
José de Alencar, Machado de Assis e poeta Adélia Prado, o publicitário Fernando
Olavo Bilac ​—​ já republicavam em livros Fabbrini, o romancista João Batista Melo, o
as crônicas que escreviam para jornais. autor de literatura infantojuvenil Leo Cunha e
Tal prática foi talvez desenvolvendo em Odin Andrade.27
leitores ​—​  antepassados nossos ​—​  a percep- Jornalista, escritor e artista plástico, Odin
ção da historicidade do gênero. E talvez projetou-se como cronista nas páginas do
tenha sido também esta migração que foi Diário da Tarde e, mais tarde, de O Tempo.
levando a crítica literária a reconhecer a Construiu sua carreira no jornalismo, pas-
literariedade do gênero.25 sando, entre outros, pelo Diário de Minas,
onde fazia cobertura política. Em O Tempo,
Essa particularidade que envolve as crônicas Odin publicou suas crônicas inicialmente na
permite a elas que ​—​ se já esbanjam apelo página 2 do primeiro caderno, na seção “30
sedutor, fisgando o leitor que as procura Linhas”, em que abordava política e assuntos
nas páginas do jornal e da revista ​—​ fiquem de interesse geral. Depois as crônicas passa-
ainda melhores quando reunidas em livro, na ram a sair no “Magazine”, caderno de cultura
opinião de Humberto Werneck, pois “umas em que reproduziu grande parte dos textos
trabalham pelas outras, todas ganham corpo, de Juventude, Juventude, livro das memórias
o conjunto compõe uma exata combinação do autor na Belo Horizonte dos anos de 1940
de sabores”.26 e 1950. O lado cronista era genético: Odin
Humberto Werneck, aliás, é um dos no- era filho de Djalma Andrade e sobrinho de
mes mais importantes da crônica produzida Moacir Andrade.
a partir do século 21. Respeitável jornalista Também participou da fase inicial de
cultural, seguiu o mesmo caminho que Ivan O Tempo o contista Francisco de Morais
Angelo fizera em 1965, de Belo Horizonte Mendes. De 1996 a 2004, foram quase 400
para São Paulo, mas cinco anos mais tarde. textos publicados. Para ele,
Praticou o gênero esparsamente em publica-
ções durante boa parte de sua vida profissio- Escrever crônica modifica o olhar que
nal. Depois de uma rápida passagem pela dirigimos às coisas, à cidade, aos fatos do
revista Claudia Cozinha, em 2005, manteve cotidiano. Seja a uma vassoura esquecida
uma coluna no Metro, de 2007 a 2009, em junto a um portão ou ao último grande
seguida no caderno “Outlook”, do extinto
Brasil Econômico, até chegar ao Estado de
S. Paulo, em que mantém, desde 2010, texto 25 LAJOLO, Marisa. In: VENTURA,
elegante e banhado na fina ironia de um Zuenir. Crônicas para ler na escola.
artesão da palavra. Humberto inclui, entre São Paulo: Objetiva, 2012, p. 11.

suas crônicas, diversas histórias de nomes 26 WERNECK, Humberto. “Cronista


da literatura mineira e brasileira com os quais puro-sangue”. In: ANGELO, Ivan.
conviveu por dever de ofício ou direito de Melhores crônicas. São Paulo:
Global, 2007.
amizade ​—​ o que envolve os cronistas respon-
sáveis pelo prestígio da crônica entre nós, de 27 Desses nomes, apenas Leo Cunha
Carlos Drummond de Andrade a Fernando (Nas páginas do Tempo, 1997) e
Fernando Fabbrini (Almanaque das
Sabino, de Otto Lara Resende a Paulo coisas, 2001) lançaram em livro
Mendes Campos. A atividade de cronista já suas crônicas.

111
atentado. Podemos ler distraidamente Uma pesquisa sobre a crônica mineira deve

A CRÔNICA MINEIRA   FABRÍCIO MARQUES


qualquer notícia, mas se ela vai ser objeto considerar, ainda, o nome de Lúcia Machado
de uma crônica, a leitura é outra. Assim de Almeida (1910–2005), a autora de clássi-
como, durante e depois do exercício da cos infantojuvenis, como Aventuras de Xisto,
crônica, é outro o olhar com que lemos O escaravelho do diabo e O caso da borboleta
aqueles que construíram a tradição do Atíria. Dela foi publicado Amarcord e outras
gênero em Minas e no Brasil.28 lembranças (2005), livro memorialístico, mas
que traz algumas crônicas. Outro nome é o
Merece registro, entre os que publicaram em O jornalista Alberto Villas, que, em livros como
Tempo, o jornalista Lucas Mendes. Com passa- O Mundo Acabou e Admirável Mundo Velho,
gem pela revista Manchete, foi para os Estados tem produzido, na visão de Fábio Altman, uma
Unidos em 1968, e desde 1993 ancora o espécie de “memorialismo lúdico”.
programa de televisão Manhattan Connection. Em uma sociedade cada vez mais
Lucas já lançou dois livros reunindo suas crô- desigual, repleta de desafios, em tempos
nicas: Conexão Manhattan – Crônicas da Big digitais e com a crise do jornalismo impresso,
Apple (1997) e Manhattan Re-conexões (2004). naturalmente a crônica invade também sites,
Sobre Lucas, disse Paulo Francis: “escreve blogs e redes sociais, promovendo o surgi-
como poucos jornalistas brasileiros. É colo- mento de autores, como a poeta e pesqui-
quial, um crente da ideia mãe de Hemingway, sadora Ana Elisa Ribeiro, que já lançou dois
‘Fique no assunto e corte todo o resto’”.29 livros do gênero. O primeiro deles é Chicletes,
Nesse capítulo de O Tempo, dois cronistas Lambidinha e outras crônicas (2012), coletâ-
sobressaem-se: Manoel Lobato e Sebastião nea de textos de assuntos variados, postados
Nunes. Craque na experimentação com a em sua coluna do site Digestivo Cultural, que
linguagem, em suas mais diferentes formas, mantém desde 2003. Em seguida saiu Meus
Sebastião começou a publicar suas crônicas segredos com Capitu (2013), crônicas temá-
em 2001. A primeira reunião em livro desses ticas, sobre assuntos como leitura, escrita
textos foi Adão e Eva no Paraíso Amazônico e livros. Ana também é colunista da Revista
(2009), em que apresenta a crônica-ensaio, Pessoa, para falar exclusivamente de língua
formato inovador desse gênero, misturando portuguesa, já que é linguista de formação.
literatura, ensaio, crítica e filosofia. Em segui- Luis Giffoni, autor de cerca de 250 crôni-
da, saiu, em tom poético-ficcional, Começa cas publicadas em O Tempo (de 1996 a 2001),
a envelhecer a mulher mais bela do mundo Estado de Minas, Veja BH e Jornal do Brasil,
(2017) ​—​ textos publicados no site Jornal entre outros veículos, algumas reunidas nos
GGN ​—, reunião de encontros improváveis livros O Poeta e o Quasar (2003) e Riscos da
e delirantes. Eternidade (2002), lança a pergunta num dos
Autor de 17 livros, entre contos, novelas e textos desse livro:
romances, Manoel Lobato estreou no diário
em 1996, sempre escrevendo numa surrada Começo de tarde no centro da cidade. Sol
Olivetti, despejando mais de 3 mil crôni- de verão. Asfalto escaldante. Barulho
cas até 2005. Numa matéria publicada por de motores, buzinas e camelôs. Cheiro
ocasião de seus 80 anos, o cronista revelou de combustível queimado. Pessoas se
os temas recorrentes em suas crônicas: sexo, atropelam no passeio. Um homem de
misticismo e loucura:

Sexo porque Freud já mostrou que tudo


gira em torno dele; o misticismo é algo 28 Em depoimento ao autor deste
ensaio.
sempre instigante pelo impasse entre
os que acreditam e os que não creem; 29 FRANCIS, Paulo. Lucas e a
e loucura porque acho que ninguém é facilidade enganosa. In: MENDES,
Lucas. Conexão Manhattan –
normal, pelo menos eu acho que não sou. Crônicas da Big Apple. Rio de
Escrever, aliás, para mim, é uma catar- Janeiro: Campus, 1997.
se. Como já tenho uma personalidade
30 ASSIS, Júlio. “Manoel Lobato, 80”.
cristalizada e não adianta ir a psiquiatra, In: “Magazine”, O Tempo, 10 de
então escrevo.30 dezembro de 2005, p. 1.

112
terno vende Jesus Cristo em módicas
contribuições para uma igreja. Ao lado,
uma senhora anuncia bilhetes de loteria.
Uma pedinte estende a mão. A música
dos Beatles vem da banca de CD pirata.
Um grevista xinga o presidente.
Caminho observando a diversidade
humana. Uma questão, levantada por um
amigo, me persegue desde a manhã: o que
é uma crônica? Não sei. A ignorância me
incomoda. Exerço um ofício que des-
conheço.31

O que é uma crônica? Essa é a pergunta, ao


mesmo tempo simples e complexa, que, ao
longo das décadas, os cronistas mineiros têm
tentado responder, valendo-se ​—​ tal como
Antonio Candido descreve a crônica brasileira ​
—​ “de uma linguagem lírica, irônica, casual,
ora precisa, ora vaga, amparada por um diá-
logo rápido e certeiro, ou por uma espécie de
monólogo comunicativo”.32
Desse modo, sob o signo da diversidade
de temas e estilos, os escritores têm mantido
viva e fértil a tradição da crônica em Minas.

31 GIFFONI, Luís. “O que é uma


crônica?” In: Riscos de eternidade.
Belo Horizonte: Pulsar, 2002,
p. 103.

32 CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés


do chão”. In: Recortes. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993, p. 29.

113
MINAS GERAIS:
DE TERRITÓRIOS
E MARGENS DA
LITERATURA
IVETE LARA CAMARGOS WALTY O senhor estude: o buriti é das margens,
ele cai seus cocos na vereda ​—​ as águas
levam ​—​ em beiras, o coquinho as águas
mesmas replantam; daí o buritizal, de um
lado e do outro se alinhando, acompa-
nhando, que nem que por um cálculo.

Guimarães Rosa

114
A palavra margens, na citação em epígrafe e não se pode escamotear o aspecto político
em várias passagens da obra de Rosa, traz em aí contido, fruto das relações de poder que
seu significado a ideia de deslizamento, mo- atravessam os territórios e, mais do que isso,
vimento e multiplicação. O tom de enigma da os conformam.
vida se agrega a essa indeterminação vivencial Importante considerar a etimologia da pa-
como no título do antológico conto “A terceira lavra marginal, lembrando a margem gráfica,
margem do rio”, da obra Primeiras estórias. o espaço em branco que cerceia a escrita, na
Aqui ressaltaríamos o aspecto da capacidade sociedade moderna. Isso porque, mesmo já
de as margens fazerem mover os centros. É em tempos da imprensa, as formas de escrita
sob essa perspectiva que dirigimos nossa eram menos formatadas e organizadas, como
reflexão para pensar sobre o que se chama se pode conferir na publicação dos folhetins
literatura marginal em um livro que comemora dos jornais do século XIX. Veja-se, por exem-
os trezentos anos da Capitania de Minas Ge- plo, o caso das Memórias de um sargento de
rais: um território, várias territorialidades.1 milícias, de Manuel Antônio de Almeida, cuja
Consideramos com os geógrafos publicação em folhetim evidencia que o pró-
Candiotto e Santos (2008) que o território é prio texto do romance se confundia com os
marcado por relações de poder: demais textos de seção em que circulava, já
que não se assinalavam fortemente os limites
O conceito de territorialidade representa gráficos, como acentua Cecília de Lara.3 Tal
os vínculos que determinado indivíduo postura evidencia que o folhetim transita, lite-
e/ou grupo social possuem com um ou ral e simbolicamente, entre gêneros diversos.4
mais territórios materiais (físicos) ou Outro exemplo seria o título Marginália,
imateriais (virtuais), como algo subje- dado por Lima Barreto a um conjunto de “es-
tivo, ligado à percepção. A identidade critos à margem” ​—​ como bem mostra Paulo
individual ou coletiva é decorrente do Roberto Tonani do Patrocínio (2013), ao inti-
reconhecimento e da valorização das tular seu livro com essa expressão ​—​ marca-
territorialidades, haja vista que estas dos também no trânsito pelas ruas da cidade
são fundamentais para a construção de e pelas formas literárias. Nesse caso, porém,
identidades. Na visão de Raffestin (1993, mais do que a hierarquização temporal ligada
p. 162): Territorialidade pode ser definida à efemeridade da crônica, importa assinalar
como um conjunto de relações que se a quebra da hierarquização espacial, já que,
originam num sistema tridimensional à maneira do suplemento,5 a escrita da mar-
sociedade-espaço-tempo (p. 160). […] A gem desloca a do texto centralizado. Muitas
territorialidade se manifesta em todas as obras literárias nascem da escrita de anota-
escalas espaciais e sociais; ela é consubs- ções nas margens ou nos interstícios de um li-
tancial a todas as relações e seria possível vro já publicado. Essa ideia da marginalidade
dizer que, de certa forma, é a “face vivida” das anotações atravessa a produção literária
e a “face agida” do poder.2 universal, muitas vezes com intenção parodís-
tica, sempre dialógica. A autoridade do texto
Nosso objetivo é, pois, traçar algumas linhas e do autor expõe-se ao risco de quebra, de
que deslizam pela história desse(s) territó- rasura. O estudo da margina(á)lia pela crítica
rio(s), um Estado ou um estado de coisas.
Não se espere, pois, um levantamento exaus-
tivo da produção que se abrigaria sob o rótulo 1 Este ensaio foi escrito com a
Literatura marginal. retomada de outros, publicados du-
rante a pesquisa sobre Literatura
marginal, em suas diferentes fases.
UMA HISTÓRIA DA MARGEM (Ver: WALTY, 2018)

O conceito de marginal traz em si, inevitavel- 2 CANDIOTTO; SANTOS, 2008,


p. 321.
mente, o delineamento de espaços, na me-
dida em que a palavra margem se contrapõe 3 Apud ALMEIDA, 1978.
à ideia de centro, mesmo que tal relação, tão
4 Cf. JAROUCHE, 2007, p. 28.
complexa, possa ser questionada e desloca-
da por diversos ângulos. De qualquer forma, 5 DERRIDA, 2004.

115
genética abre, então, os limites da leitura mais diretamente com o leitor. Nessa

MINAS GERAIS: DE TERRITÓRIOS E MARGENS DA LITERATURA   IVETE LARA CAMARGOS WALTY


quando incorpora ao texto lido as anotações perspectiva, através do circuito paralelo,
do autor e/ou do leitor, que passam a atuar à o autor pretende aproximar-se do públi-
moda de suplemento, deslocando o dito. co, recuperar um contato, tomar posse
Evocando formas de controle mais corri- dos caminhos de produção. Recuperar
queiras, importa registrar aqui a cena de uma talvez um certo caráter artesanal, a lição
criança que, em idade de aprendizagem da do cordel. Recusar o esquema de promo-
leitura e da escrita, escrevia nas margens do ções, a despersonalização da mercadoria,
dever de casa o diálogo que queria ter com a a escalada da fama.8
professora, mas seria seguramente censura-
do: reclamações, xingamentos, ironias. Em A Geração Mimeógrafo, com sua escrita fora
seguida, antes de colar a página no caderno, do lugar, insere-se em movimentos culturais
recortava as margens e seus escritos. Inte- nacionais e internacionais, rompendo com o
ressante observar a escola como um lugar da status quo, ao mesmo tempo em que se filia a
assepsia do texto, sua esterilização daquilo outros momentos da história cultural brasi-
que seria perigoso e contaminante. leira, permitindo sua releitura. Entre esses
Entre os conceitos de marginal, como movimentos há que se incluir aquele promovi-
bem resumido por Érica Peçanha do do por Hélio Oiticica, com sua espécie de ma-
Nascimento, o mais conhecido na história nifesto: “Seja marginal, seja herói” (1968), em
da literatura brasileira era aquele referente que se homenageia o bandido Cara de Cavalo
a obras “à margem do corredor oficial de e se proclama uma arte por meio da reinven-
produção e divulgação”,6 sancionadas pelo ção do corpo, da mistura de códigos diversos
mercado editorial, como é o caso da “Geração e da intensa participação do público. Aí se
mimeógrafo” que marcou espaço nos anos incluiria ainda o movimento do cinema novo
1970, divulgando seus poemas em suportes impulsionado por Glauber Rocha, com seus
alternativos, como folhas mimeografadas, manifestos da Estética da fome, em 1971,
muros e camisetas. como reação ao colonialismo civilizacional:
Nesse processo, a marginalidade se dá, “nossa originalidade é nossa fome e nossa
ainda, por força política a desafiar tanto o maior miséria é que esta fome, sendo sentida,
mercado como a censura da época, até que não é compreendida”. Importante assinalar
sua produção é acolhida, em 1975, pela edito- o paradoxo já que o objetivo do movimento
ra Brasiliense, com o lançamento editorial de é tirar o cinema brasileiro da marginalidade
26 poetas hoje, livro não por acaso organiza- inserindo-o na cena cultural universal.9
do por Heloisa Buarque de Hollanda, que hoje Em Belo Horizonte, em 1994, por ocasião
se dedica a estudos também de outros tipos da comemoração do centenário da cidade, a
de marginalidade. Flora Süssekind, recorre coleção Temporada de poesia10 já continha
a Ana Cristina César e Ítalo Moriconi Jr, para o título Poesia marginal/Haicai ​—​  a poética
mostrar a “dupla face” desse movimento: do coloquial., organizado por Carlos Augusto

Contingência imposta pelo sistema


editorial fechado, constituiria passagem 6 NASCIMENTO, 2009, p. 37.
provisória do autor desconhecido, que se-
cretamente talvez desejasse o selo da boa 7 Interessante seria alargar essa
concepção para o momento atual
editora, a distribuição mais ampla e os quando, em blogs e redes sociais,
olhares da instituição. Seria como que o multiplicam-se publicações em
passo inicial necessário para a criação de busca de leitores e reconhecimento.

um primeiro círculo de leitores, a editora 8 CESAR; MORICONI, apud


tomando posse do processo na medida do SÜSSEKIND, 2002, pp. 121–2.
reconhecimento do escritor.7 Já a outra
9 ROCHA, 2004.
face do marginal implica a formação de
um circuito paralelo de produção e dis- 10 Inciativa da prefeitura, o movimen-
tribuição de textos, em que o autor vai à to era coordenado por Ana Caetano,
Carlos Augusto Novais, José Maria
gráfica, acompanha a impressão, dispensa Cançado, Luiz Soares Dulci e
intermediários e, principalmente, transa Marcelo Dolabela.

116
Novais. Na introdução “Vida e verso”, o orga- pela cor do tênis
nizador do volume 8 discorre sobre o sentido vê que ainda estou caçando a esmeralda
de marginal aí adotado:
no fundo no fundo
Marginal é o poeta: desbundado ou sou um brazililianist deslumbrado
participante ou anarquista ou qualquer com a alquimia dos sanduíches
outra coisa, menos o conformismo e a rajaneesh
aceitação das dissimuladas formas do e sonrisal12
poder instituído.
Marginal é a produção: Pequenos AS MARGENS SE MOVEM
livros e publicações […] realizados com
meios e equipamentos não usuais; apro- Na sequência do tempo, a tendência de se
veitamento de papéis e outros materiais eleger como tema a população marginalizada
alternativos […]. Nesse universo o poeta política e socialmente confere ao termo margi-
é artista, artífice, produtor, operário e nal um outro sentido, o de representar aqueles
distribuidor. que não teriam fala, o que, de fato, não é novo,
Marginal é a distribuição: à margem se se considera, por exemplo, a novela picares-
dos circuitos editoriais consolidados, ca espanhola em sua ousadia de tomar como
realiza-se de mão em mão, de bar em objeto o desvalido. A seleção feita por Ferréz,
bar, em feiras, festas, teatros, shows, nas na Revista Caros amigos: a cultura da periferia ​
ruas, em filas de ônibus, numa tentativa —​ ato II, ilustra tal tendência com a inclusão
de abolição da distância entre produção de Plínio Marcos e João Antônio, ao lado de
e consumo. O poeta e o leitor se confun- escritores da chamada Literatura marginal,
dem no espaço urbano compartilhado. marcada pela autoria daqueles que habitam a
Marginal é a linguagem utilizada. Do periferia das grandes cidades. Os escritores ci-
ponto de vista temático temos desde a tados tomam a rua, a esquina, como lugar de
opção existencial, reflexiva, em busca de encontros e trocas para a literatura, reforçan-
possíveis intervenções críticas, até a cur- do uma tendência que tem em Manuel Antônio
tição gratuita, incorporando banalidades de Almeida e Lima Barreto seus pioneiros, ou,
do cotidiano, numa evidente dessacrali- guardadas as devidas diferenças do tempo
zação dos temas ditos “profundos”.11 de enunciação, Marcelino Freire, Ruffato e
Bonassi, como seus seguidores.
Novais faz ainda um pequeno histórico desse E são esses valores que continuam a ser
tipo de produção em Belo Horizonte, que discutidos na produção assumida como margi-
teria se iniciado na década de 1970, com as nal por aqueles que a produzem, como mostra
revistas Circus e O Vapor, as quais, fugindo Ferréz, ao defini-la em texto de apresentação
da editoração convencional, se autofinan- da revista já citada: “A Literatura Marginal,
ciavam e distribuíam o produto mais barato sempre é bom frisar, é uma literatura feita por
em circuitos alternativos. Alerta ainda para minorias, sejam elas raciais ou socioeconô-
o aparecimento da revista Punhal e do micas. Literatura feita à margem dos núcleos
Boletim Literário do DA ICB, marcando a centrais do saber e da grande cultura nacional,
força do Movimento Estudantil no momento ou seja, os de grande poder aquisitivo.” 13
político. Continuando, ele cita os grupos/
revistas Cem flores, Bodoque, Flor da Terra, E EM MINAS GERAIS?
Pé-de-Moleque, Alegria Blues Banda, Aqui
Ó e Mano a Mano, que surgiram entre Antes de iniciar, ou até mesmo para iniciar
1978 e 1982. esta parte, há que se apontar para a força do
Deixamos como exemplo do volume cita- fato de haver sido inserido em um livro sobre
do, o poema de Raimundo Nonato:

sou um poeta beat (close) 11 NOVAIS, 1994, pp. 5–6.


made in brazil (pose)
12 NONATO, In: NOVAIS, 1994, p. 11.
província de minas
vitaminas proteínas e sais minerais 13 FERRÉZ, 2002, contracapa.

117
os trezentos anos da Capitania de Minas época em que foram construídas. Diz Suzy

MINAS GERAIS: DE TERRITÓRIOS E MARGENS DA LITERATURA   IVETE LARA CAMARGOS WALTY


Gerais um capítulo sobre o que se convencio- de Melo, a respeito das obras dos Passos do
na chamar literatura marginal.14 Como visto, Santuário de Congonhas: “Adota uma técnica
se se fala em margem, fala-se em centro, expressionista, quase medieval na representa-
ou margens e centros. Consequentemente, ção das figuras. Há uma deliberada (e lógica)
fala-se de trânsito e de ocupação de espaços. acentuação dos traços fisionômicos, de modo
Valemo-nos, em vista disso, de alguns artis- a tornar cada personagem facilmente identifi-
tas/autores da arte e da literatura mineira cável pelo povo iletrado”.17
para traçar um roteiro que oriente nossa Entre o modelo europeu e a realização bra-
reflexão. Sem grandes pretensões, vamos sileira, entre o sagrado e o profano, circulando
nos reportar a Aleijadinho, ainda que não seja entre as irmandades e suas diferenças sociais,
poeta, Tomás Antônio Gonzaga e saltar para Aleijadinho, ele mesmo ocupando um entre-
Luiz Ruffato, grandes nomes da arte canoni- -lugar, imprime sua marca marginal no terre-
zada, consagrada pela Academia e pela mídia. no da arte mundial, desafiando classificações
Aleijadinho, como seu próprio apelido e deslocando verdades, alimentando outros
o diz, traz em seu corpo o traço marginal, movimentos artísticos. A esse respeito, faz-se
daquele que seria diferente dos outros, por ser importante evocar as palavras de Maurício
“filho natural” do arquiteto português Manoel Campomori, em seu estudo comparativo
Francisco Lisboa e uma de suas escravas entre três arquitetos mineiros: Aleijadinho,
africanas.15 Mutilado pela enfermidade que Oscar Niemeyer e Éolo Maia, quando observa
contraiu e lhe valeu o codinome, transfere que um traço comum entre eles é a “recusa a
para a margem colonizada a arte barroca eu- qualquer traço de subalternidade ou de sub-
ropeia. Cria, então, uma arquitetura também desenvolvimento de suas obras”.18 E continua:
marginal, na medida em que, às vezes, foge
dos padrões do barroco europeu, como bem Se, por um lado, são oriundas de uma
mostra Miriam Ribeiro em seu estudo dos posição periférica no contexto geopo-
Passos do Santuário Senhor Bom Jesus de lítico, são todas absolutamente desinte-
Congonhas. Ao descrever o aspecto teatral da ressadas da possibilidade de disseminar
Santa Ceia, aponta: um discurso ético ​—​  e estético ​—​  coloni-
zado. Ao contrário, exatamente por não
Trata-se, portanto, de um autêntico pertencer a um “mainstream”, se apoiam
drama teatral, conforme a tradição na possibilidade de inovar, substituindo
barroca, no qual os dois servos, postados os compromissos com uma tradição por
lateralmente à porta da entrada, realizam uma permanente busca de inovação.19
a transição entre o espaço real ​—​ o do es-
pectador ​—​ e o espaço fictício, no qual se E é no sentido da força irradiadora dessa
movimentam os atores. Um desses servos, inovação, que vale lembrar a influência
o da direita, veste-se pitorescamente à do barroco mineiro sobre os modernistas
moda setecentista ​—​ culote justo e casaco de 1922, os paulistas Mário de Andrade
cintado, abotoado na frente, num dos e Oswald de Andrade, e sobre outros po-
raros exemplos de liberdade tomada por etas, como é o caso do mineiro Carlos
Aleijadinho com relação à iconografia Drummond de Andrade.
tradicional, que prescreve túnicas longas
e mantos para os personagens evangéli-
cos, indumentária típica das populações 14 Lembrar, como foi mostrado em
mediterrâneas no início da nossa era.16 item anterior, o movimento margi-
nal em BH nos anos 1970 e 1980.

Notemos, porém, que, independentemente 15 OLIVEIRA, 1984, p. 19.


das observações técnicas dos especialistas,
16 Idem, 1985, p. 32.
pode-se ver na obra dos Passos uma crônica
de costumes da época que traduz uma visão 17 MELO, 1983, p. 50.
de mundo. Por isso mesmo, alguns estudiosos
18 CAMPOMORI, 2018, p. 316.
ressaltam o tom realista das figuras de anjos
e profetas, que teriam a face de anônimos da 19 Ibid., p. 317.

118
Aleijadinho e Os Profetas Em outro momento, aponta o dedo para as
injustiças sociais do momento, fazendo res-
Esse mulato de gênio soar a questão postulada em outros tempos,
lavrou na pedra-sabão mesmo os bem atuais.
todos os nossos pecados,
as nossas luxúrias todas, O pobre, porque é pobre, pague tudo,
e esse tropel de desejos E o rico, porque é rico, vai pagando
e essa ânsia de ir para o céu Sem soldados à porta, com sossego!
e de ficar mais na terra; Não era menos torpe, e mais prudente,
Era uma vez um Aleijadinho, Que os devedores todos se igualassem?
não tinha dedo, não tinha mão, (Carta 8ª)
raiva e cinzel lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho, O jogo interlocutivo armado pelo poeta da
era uma vez muitas igrejas Inconfidência apresenta faces diversas dos
com muitos paraísos e muitos infernos, enunciadores, ora o interlocutor Critilo, ora
era uma vez São João, Ouro Preto, o próprio alvo das críticas. Por isso mesmo,
Sabará, Congonhas, vê-se que o poema satírico encena uma possí-
era uma vez muitas cidades vel voz popular ou marginal.
e um Aleijadinho era uma vez.20 Mais do que isso, no entanto, sobressai o
movimento marginal não por acaso cha-
Importa ressaltar a referência ao corpo defor- mado Inconfidência Mineira, sobretudo se
mado e à raiva impressa na obra do artista e se pergunta: ​—​ Inconfidência de quem em
na enunciação do eu poeta que fala. Raiva esta relação a quem? Quem são os espoliados pelo
que pode ser associada aos movimentos histó- poder? Quem fala por eles? É, pois no lugar
ricos marginais que marcam a história mineira, da margem colonizada, que transitam os
mas vem introduzida com a clássica expressão interlocutores Doroteu e Critilo, assumindo a
“era uma vez”, desestabilizando fronteiras. fala dos anônimos que ameaça o Reino e seus
Nesse sentido, vale lembrar que representantes.
Aleijadinho era amigo de Cláudio Manuel da Outros autores mineiros poderiam ser
Costa bem na época do movimento da cha- chamados para referendar esse lugar da
mada Inconfidência Mineira.21 E é a mais um encenação do anônimo na literatura de Minas
poeta “mineiro”, artífice do movimento políti- Gerais, em seus movimentos de (des)territo-
co que almejava a independência de Minas e rialização. Entre eles estaria Ruffato, mineiro
do Brasil, que se faz importante apelar, Tomás de Rodeio/Cataguazes, com sua obra Inferno
Antônio Gonzaga. Não como Dirceu, o árcade provisório (2016), que mostra a migração
criador de Marília, mas como Doroteu, que se de pessoas da zona rural para a urbana, ou
dirige a Critilo na crítica ao Fanfarrão Minésio, eles eram muitos cavalos (2000), que mostra
o governador Luís da Cunha Menezes. Como um dia na cidade de São Paulo, destino de
poderia aproximá-lo do Aleijadinho, dada sua muitos mineiros. Ao intitular seu livro com
origem e seu cargo nobres? um verso do poema narrativo publicado por
Ao escolher o anonimato para elaborar uma Cecília Meireles em 1953, Ruffato (re)ativa
crítica ácida ao maior político da época, Tomás uma constelação de sentidos, atravessada por
Antônio Gonzaga, mais do que se proteger de elementos históricos, míticos, sociopolíticos
possíveis revanches, dá um tom coletivo à sua e existenciais. Retomando e grafando com le-
voz, assumindo também um entre-lugar, o tras minúsculas um verso do romance LXXXIV,
lugar entre a autoridade e o povo. Na defesa de intitulado “dos Cavalos da Inconfidência”,
um funcionário impedido de sair do trabalho no reforça a relação cavalos/cavaleiros já inscrita
momento em que soube da morte da esposa, no poema-base, associando-o à população
diz Doroteu dirigindo-se ao Fanfarrão Minésio: desnomeada que habita os campos e as

Separas dos defuntos os que vivem,


Não queres que os parentes sejam pios,
20 ANDRADE, 1979.
Dando as últimas honras aos seus mortos
(Carta 6ª) 21 Cf. MELO, 1983, p. 50.

119
grandes cidades. A epígrafe acrescenta ou- como uma cartografia possível de estratégias

MINAS GERAIS: DE TERRITÓRIOS E MARGENS DA LITERATURA   IVETE LARA CAMARGOS WALTY


tros versos que reforçam tal associação: “Eles permitindo subtrair-se às representações
eram muitos cavalos, mas ninguém mais sa- do mesmo. O anônimo seria, então, uma
bia os seus nomes, sua pelagem, sua origem”. força que viria abalar o sistema constituído,
Vale retomar ainda o início da estrofe de onde abrindo “um espaço alternativo de alteridade
foi retirada essa epígrafe, ajuntando essa re- frente ao lado pré-construído, anquilosado e
lação à ideia de jugo, violência e morte: “Eles armado na dialética entre o mesmo e o outro”.
eram muitos cavalos. E morreram por esses No intenso jogo de imagens da sociedade
montes, esses campos, esses abismos, tendo contemporânea, essa força intempestiva
servido a tantos homens.” No próprio poema de ausência de identidade seria justamente
em que canta os heróis da Inconfidência uma anti-imagem. É de fato paradoxal que
Mineira, Cecília Meireles, retomando um gê- aquilo que impede o ato de nomear permita
nero medieval, por si só híbrido, introduz um justamente um movimento de resistência ao
episódio que é lido por Ruffato como o canto processo de reificação do ser humano e do
àqueles que não foram e não são nomeados cidadão. Com a apropriação desse aspecto
na história de Minas, do Brasil e na história das reflexões de Castillo-Durante intentamos
da literatura. É justamente esse processo de mostrar como a ausência de nomes das per-
perda do nome que indica um caminho de sonagens, associada à ausência de classifi-
leitura do livro de Ruffato, ele mesmo desno- cação da(s) narrativa(s), pode ser lida como
meado enquanto gênero, na medida em que esse movimento de resistência no cotidiano
mistura gêneros discursivos diversos: cartas, das grandes cidades, um movimento de
hagiologia, horóscopo, recados de secretária sobrevivência das pessoas/personagens e da
eletrônica, ofertas de emprego, anúncios de própria literatura22.
serviços sexuais, lista de livros, orações, sim- Como se aproximam os conceitos de
patias populares, cardápios, relatos de fatos marginalidade e anonimato? Quem seriam
do cotidiano doméstico e urbano, pequenas hoje esses anônimos na literatura mineira e
notas jornalísticas, monólogos. A organização brasileira? Os pseudônimos são uma for-
textual reforça a impossibilidade de classifi- ma de anonimato? Como se encena hoje a
cação do livro e de seu objeto: os sujeitos, em literatura dada como marginal e quais são os
sua mobilidade, pelo menos aparente, pelas seus sujeitos?
estradas do país e ruas da cidade.
Daniel Castillo-Durante (2004), em A ASSUNÇÃO DOS NOMES
seus estudos sobre alteridade nas relações
culturais, provocadas e/ou acentuadas pelas Aos poucos começam a circular no espa-
ondas migratórias, faz um elogio do anôni- ço público brasileiro obras produzidas por
mo, apontando-o, paradoxalmente, como pessoas que habitam a periferia das grandes
uma forma de escape às representações do cidades, catando palavras como catam restos.
mesmo. O autor, associando anonimato e É este o caso de Carolina Maria de Jesus, mi-
máscara, afirma que se trata de um para- neira de Sacramento, que foi para São Paulo
doxo que confunde a ligação entre o sujeito na busca pela sobrevivência, como as perso-
e seu desejo. Referindo-se então ao anoni- nagens de Ruffato, construídas anos depois.
mato como a parte escondida da alteridade, A escrita de Carolina, marcada pela fome,
recorre à etimologia da palavra anônimo, que vem em forma de regurgito, de vômito do
vem do latim anonymus um empréstimo do vazio: “Fui catar papel. Estava horrorizada
grego, em que o termo se forma pela antepo- com a cena que o Alexandre representou
sição a ónymos/ónoma, ‘nome’, do prefixo de de madrugada. Catei muitos ferros e pouco
negação a(n)-. Ressaltando-se a semelhança papel. Quando eu estava perto da banca de
entre ónoma, ‘nome’, e nómos, ‘lei’, pode-se jornal tropecei e caí. Devido eu estar muito
dizer que o ‘a’ privativo poderia então sugerir
tanto a ausência de patrônimo quanto um
estatuto de fora-do-jogo. O anônimo esca- 22 A esse respeito ver o capítulo Ano-
paria assim ao emaranhado das filiações nimato e resistência em eles eram
muitos cavalos, de Luiz Ruffato, no
metendo-se ao abrigo da lei. Nesse contex- livro A rua da literatura, a literatura
to, a alteridade ganharia ao ser tematizada da rua (WALTY, 2014)

120
suja, um homem gritou: ​—​ É fome!” 23 Como para o qual foi levada mais tarde, é esclarece-
bem mostra Letícia Pereira de Andrade dor: a freira que entrega as frutas às internas
(2008), Carolina Maria de Jesus participaria deixa-a por último e lhe entrega duas frutas
de uma estética da fragmentação, uma estéti- estragadas, dizendo: “Você é uma macaca,
ca do menos: “‘Catando’ palavras, ‘reciclando’ muito pernóstica, pobretona, e nunca viu uma
discursos, trazendo o lirismo, fornecendo, por- maçã na sua vida”.29 A atitude da freira, várias
tanto, chaves para um trabalho singular com vezes repetida nas histórias do internato,
a linguagem numa estética da fragmentação”. determina a conduta de Zuza, não pela acei-
Afirma ainda a autora: tação ou obediência, como se pretendia, mas
pela recusa: “eu fiquei tão entalada com aque-
Esse trabalho com os restos, cacos, buracos la situação que nem tive boca para comer a
para se construir um todo, nem que seja maçã, é como se na minha garganta tivesse
um resumo de existido, significa fazer/ um nó atado e de forma alguma eu consegui
desfazer sua própria história, por isso o comer a miserável fruta!” 30
diário configura a existência de outros A fruta almejada faz-se fruta repelida. A
eus, ou seja, possibilita reconhecimentos maçã, com toda sua carga metafórica cristã,
outros da pessoa que escreve, já que pela segue simbolizando o movimento do desejo
e na narrativa surgem desejos, modos de que move o ser humano e a sociedade. Mais
pensar e de sentir, formas de expressões do que a questão psíquica, no entanto, vale
que, muitas vezes, estão resguardados na acentuar aqui a força das relações de poder:
imagem do sujeito da escrita.24 aquele que dá algo a outro quer ter o contro-
le da recepção, do uso a ser feito do que foi
Trata-se, pois, de alguém que se constrói dado. Muitas vezes, esse objetivo é alcançado,
como sujeito na e pela linguagem25 em como se pode ver na força feita pela narrado-
espaços que antes lhe eram vedados, ago- ra para ajustar os sapatos, ganhados, a seus
ra abertos com mediações de jornalistas e pés: “passei dias educando o sapato direito
intelectuais26. A margem invade o centro para servir no esquerdo e de tanta peleja ele
deslocando sua série literária com o registro não me machucou mais.” 31
daquilo que é dado como erro. Em uma escri- As memórias de Zuza não são apenas
ta híbrida,27 que transita entre a poética do suas confissões e reflexões pessoais, são o
salão e a do lixo, Carolina lida com os detritos testemunho de alguém que resistiu à fome,
a partir dos quais se pode fazer algo mágico, com outra fome; não só a de ganhar dinheiro
com as sobras do conhecimento que desa- como ela mesma diz, mas a fome de viver, ou
fiam os pilares da ciência, com as franjas que mais do que isso, a de viver com o outro e para
podem desfiar a colcha firmemente tecida.28 o outro. Percebe-se, pois, no texto de Zuza, a
Um outro nome vem se somar ao de busca de espaço e voz, não apenas para ela,
Carolina, outra Maria de Jesus (da Silva), mas para o segmento de que faz parte.32
Zuza, com seu Divã de papel (2015). A escrita Como os relatos de Carolina Maria de
de Zuza, menina pobre a catar restos de Jesus, o texto de Zuza, em sua ambiguidade,
alimentos no mercado e nas ruas de Belo como suas vivências, constrói-se da fome e das
Horizonte, é, paradoxalmente, ingestão de sobras de que se alimenta. Nesse sentido, a
alimento e vômito. Escrevendo, ela revisa e enunciadora poderia ser vista como o narrador
recicla as sobras de que sempre se alimentou, sucateiro de que fala Jeanne Marie Gagnebin
expurgando o que foi forçada a engolir. O epi- (2006), quando associa o narrador do teste-
sódio da distribuição das maçãs no internato, munho ao trapeiro, o Lumpensammeler ou o

23 JESUS, 1960, p. 87. 27 Cf. PERPÉTUA, 2003. 31 Ibid., p. 147.

24 ANDRADE, 2008. 28 Cf. CERTEAU, 1975. 32 Notar que, para publicação de


seu livro, Zuza teve a mediação
25 Cf. BENVENISTE, 2005. 29 SILVA, 2015, p. 150. de professoras universitárias e do
jornalista Rogério Zola.
26 Ver papel de Audálio Dantas na 30 Ibid.
publicação do livro.

121
chiffonnier (figura de Baudelaire), estendendo intitulado. Depois disso, os títulos se sucedem.

MINAS GERAIS: DE TERRITÓRIOS E MARGENS DA LITERATURA   IVETE LARA CAMARGOS WALTY


o seu universo para “o catador de sucata e de Veja-se, no poema abaixo, dedicado a Oiticica,
lixo, esta personagem das grandes cidades a territorialidade literária a evidenciar a deglu-
modernas que recolhe os cacos, os restos, os tição e reelaboração do passado rumo a um
detritos, movido pela pobreza, certamente, futuro, em uma construção feita à moda da
mas também pelo desejo de não deixar nada “arquitetura da favela” ou do cosmo-caos:
se perder, de não deixar nada esquecido.” 33
Esses cacos, inscrevendo-se na ordem Programa
social, podem ajudar a construir outro discur- nosso amor é metaesquema
so histórico, já que, como o cronista descrito nosso amor é bólide
por Benjamin, ele “apanha tudo aquilo que é nosso amor é tropicália
deixado de lado como algo que não tem signi- nosso amor é a arquitetura da favela
ficação, algo que parece não ter nem impor- nosso amor é cosmo-coca
tância nem sentido, algo com que a história nosso amor é suprasensorial
oficial não sabe o que fazer.” 34 Além disso, nosso amor é navilouca
como bem assinala Gagnebin, na esteira de nosso amor é parangolé
Benjamin, esses elementos de sobras do dis- nosso amor é núcleo
curso histórico são, antes de tudo, o sofrimen- nosso amor é subterrânia
to e o anonimato, a ausência de marcas. nosso amor é delírio ambulatório
nosso amor é relevo espacial bilateral
ENUNCIAÇÕES COLETIVAS nosso amor é programa
nosso amor é experimental
Nesse movimento de reciclagem, que, de nosso amor é penetrável
resto é o de toda criação cultural, outros nosso amor é nova objetividade
autores periféricos vão, em Minas, circulando para hélio oiticica36
entre o individual e o coletivo, na formação
de grupos, cooperativas, certames de poesia, Na formação desses territórios, à moda
entre outras iniciativas. Movimentos munici- de Sérgio Vaz (2008) com a criação da
pais ou de iniciativas grupais reúnem jovens Cooperifa e dos saraus de periferia em São
das periferias para desenvolver atividades de Paulo, Rogério Coelho cria um dos primeiros
várias ordens: esportivas, culinárias e artísti- movimentos da poesia periférica em Belo
cas, do grafitti à poesia. Veja-se por exemplo Horizonte, o ColetiVoz. O manifesto do grupo
o Grupo Panela de expressão, do Movimento revela seu trânsito diverso e contraditório na
Pró-jovem adolescente. (blogpaneladeexpres​ junção da luta pela identidade em defesa de
sao.blogspot.com em 13 de abril de 2019). valores da tradição brasileira e da busca de
Entusiasta desse movimento, Renato associações diversas, inclusive internacionais.
Negrão, entre outros, vem publicando e Igor Richielli, em pesquisa de Iniciação
realizando performances pelo Brasil afora, científica feita sob nossa orientação,37 em
evidenciando justamente os movimentos que estuda a Cooperifa e o ColetiVoz, afirma:
físico, social e político e, sobretudo estético.
Além de escrever poemas, coordena projetos,
como “Muros Territórios Compartilhados”, que
evidenciam o aspecto coletivo do trabalho e 33 GAGNEBIN, 2006, p. 53.

de sua divulgação em espaço público. Em 34 Ibid., p. 53.


matéria do Jornal Pampulha de 18 a 24 de
outubro de 1997, Renato Negrão já acentuava 35 Organizada por Marcelo Dolabela
com o objetivo de divulgar dife-
o caráter performático dos textos poéticos rentes manifestações poéticas da
recitados na rua: “a poesia não se completa cidade de Belo Horizonte
enquanto não passa pelo corpo”. Também
36 <literaturabr.com/2017/05/25/
em 1997, participou, em conjunto com Daniel poesia-de-renato-negrao>.
Costa, da coleção Poesia orbital,35 comemora- Consultado em 13 de abril de 2019.
tiva do centenário da cidade de Belo Horizonte,
37 Com a colaboração da, na época,
com o livro intitulado Dragões do paraíso, doutoranda Valéria Aparecida de
parte do Projeto de intervenção poética, assim Souza Machado.

122
Além da afinidade com a Cooperifa na de editoras alternativas ou por meio
escolha do local dos saraus, um bar na de publicações artesanais, buscando
região periférica de Belo Horizonte, emancipação do mercado editorial con-
Coelho se apropria também da proposta temporâneo.40
de Vaz com a redação do Manifesto da
Voz Coletiva. Coelho direciona, primeira- Nesse trânsito, as cooperativas evidenciam
mente, um olhar para o próprio manifes- o aspecto antropofágico que caracteriza não
to enquanto gênero “transformador”. Em apenas a arte marginal, mas toda criação
seguida, apresenta o caráter defensivo do artística. Não sem razão, Sérgio Vaz realiza,
texto e do movimento por ele referenda- em São Paulo, a Semana de Arte Moderna
do: “A palavra ‘Manifesto’ aqui, não sei se da Periferia, retomando no cartaz do evento a
pelo respeito, ou se pelo diálogo possível figura do acontecimento de 1922.
com os assuntos de mesmo gênero, tão A esse respeito diz Igor Richielli:
transformadores deste e de outros sécu-
los, representa, antes de mais nada, uma A paródia ao cartaz da Semana de 22
defesa. A defesa de um patrimônio. E explica essa desconstrução dos elemen-
depois, e não menos importante, a defesa tos modernistas: o arbusto seco de Di
do direito à voz. A voz como um conjun- Cavalcanti dá lugar à árvore frondosa
to de valores, que se estreitam no poder e frutífera da periferia. A Cooperifa se
da fala. A voz como agente transforma- constrói, assim, como um movimento
dor da sociedade contemporânea; como de antropofagia da narrativa nacional:
único meio capaz de dialogar com qual- em contraste com o que seria a aridez
quer discurso hegemônico. […] É assim do cenário modernista que evocava um
mesmo, de modo dúbio, imbricado, con- nacionalismo necessário; cria-se uma
turbado, entrelaçado, transculturado que cultura repleta de frutos contranarrati-
se estabelecem as relações desse coletivo vos. Os frutos que são intencionalmente
periférico; dessa voz coletiva. E talvez, vermelhos, segundo Vaz (2008), podem
por isso mesmo, é que nos concentramos, apontar, tanto para a violência típica
com o grafite, com o rap, com a poesia, das periferias, quanto para a substância
com a literatura periférica/marginal, na desse movimento periférico, orgânico
função de desestruturar, desestabelecer, e visceral.41
desprivatizar, destituir, desarticular, para,
assim, conseguirmos desbravar, descobrir, O ColetiVoz, no entanto, vai além, fala
desodiar, despirocar e desvairar num também de Autofagia. O poema de Rogério
gozar coletivo. Há uma urgência absurda Coelho delineia uma ideia desse proces-
de que esse gozo aconteça.” 38 so, apontando as relações de poder que
o atravessam:
O prefixo descumpre sua função nos neologis-
mos criados, apontando para a necessidade
do desmanche do estabelecido no avanço
38 COELHO, 2008, sem paginação,
pelos territórios. No ambiente do movimento apud. Richielli, 2015, p. 112.
ColetiVoz, formam-se poetas, ficcionistas,
compositores, colabora-se para a alfabetiza- 39 A esse respeito pode-se citar a
tese em elaboração no Programa
ção de crianças e adultos39 em um processo de Pós-graduação em Letras do
de trânsitos entre o oficial e o alternativo; o CEFET: Luiz Eduardo Rodrigues de
marginal e o acadêmico; sempre em busca Almeida Souza, intitulada: A litera-
tura periférica dos saraus & slams
de vias de vida e sobrevida. Para isso, como marginais de Belo Horizonte: uma
mostra Igor Richielli: análise da formação de leitores e
escritores por meio de letramentos
literários de reexistência, orientada
Os poetas seguiram, principalmente, dois pela Profa. Dra. Marta Passos
caminhos distintos: buscaram editoras Pinheiro.
tradicionais que são, atualmente, muito
40 RICHIELLI, 2015, p. 126.
receptivas ao tema da literatura mar-
ginal, ou publicaram os livros através 41 Ibid., p. 111.

123
Autofagia Podemos nos perguntar: quem está falando?

MINAS GERAIS: DE TERRITÓRIOS E MARGENS DA LITERATURA   IVETE LARA CAMARGOS WALTY


O autófago aqui sou eu, que desta terra Como se caracteriza esse enunciador? Que
tem de comer aço, pra produzir comida faces o formam? Observemos que esse enun-
e defecar dinheiro. / Andar sem passo, ciador não é individual, mas coletivo: o pobre,
correr sem medida, pedir sem vergonha, operário das usinas de aço ou da construção
se esfolar sem medo. / Eu que costuro civil, a prostituta, vítima e agente da violên-
chumbo da bala em seus entrecortes de cia e da fome.
corpos, e costuro os cortes da navalha de Esse texto liga-se a outros do mesmo autor
zinco, / que o seu Zé recebeu, porque não e de outros autores, do Brasil e do mundo, o
deu fiado na pinga, e o degenerado o ven- que se pode ver nos campeonatos de poesia in-
ceu na rapidez do fio, da navalha afiada, titulados SLAM.43 Em 2014 acontece o primei-
na altura do pescoço e do vício. / ro SLAM em Belo Horizonte, o Slam Clube da
Autófago aqui, sou Eu que ergo pare- Luta (28 de agosto, no Teatro Espanca), como
des no meu muro interior, e compro re- se pode ler no site do ColetiVoz: “O Slam é um
volver pra me armar contra o pó, contra a campeonato de poesia, criado nos EUA na
coragem dos dias, que mandam hoje mãe década de 80. A competição se espalha pelo
vender filha sem dó, / contra a prostitui- mundo inteiro há alguns anos, e tem uma final
ção de um governo que cala a verdade, mundial anual realizada na França. No Brasil,
promove a impunidade, pra fazer a car- o Slam começou por São Paulo, onde há vários
reira de PÓder na cidade. Ah! Cidade. grupos que inspiraram o movimento por aqui.”
Autofagia, pra quem não sabe, é o ato No próprio site, define-se o Slam como
de comer-se a si próprio, devorar-se ao
pó dos dias, / fiar-se horas degustando TV, Poesia oral-encenada, Teatro pela palavra,
engolindo um prive, prevendo o próxi- ato político performático, luta, com-
mo michê. / serei eu o próximo a lidar petição, incentivo à escrita compulsiva,
com minha carne, devorar-me de inteira performance, palavra pela palavra, pala-
burrice por falta de alimento crítico, de vra pela voz.
alento ideológico; por falta de um líder Muitas definições por natureza
político? / envolvem este movimento, em que cada
Deverei eu aprender a ser miserável qual escolhe como definir. O que nos vale
e me alimentar de minha própria carne e é sempre a atitude da palavra aberta, que
egoísmo banal; como bem me educam no agrega vozes marginais, periféricas, de
açougue de nossa justiça vertical? / que amores, de dores, de corações, de todos
de cima pra baixo, nunca tem famoso os temores e coragens mil!
líder político que seja bandido; / é sempre A voz como instrumento do corpo!
o preto, o pobre, a mulher, o viado, ou À luta, à voz! 44
qualquer vagabundo fodido, da vida
pública a ser banido. / A frase final é o mote que move o ColetiVoz,
Autofagia da sociedade é o vício sua palavra de ordem, que se associa a outras
entregue de bandeja a quem não tem cooperativas e saraus da periferia em Minas.45
prato; / sirva-se de seu próprio pedaço no Camila Félix (2017) constrói um mapa dos
consumisimesmo, / a fome do autófago saraus de Belo Horizonte, cuja descrição pode
aqui é do tamanho da informação: se tem ser vista em site da pesquisadora:
comida, a barriga cala antes mesmo da
primeira garfada, / se não tem, a cabeça
pesa antes mesmo da primeira golfada. /
42 COELHO, 2015.
Alimentam-nos dos mesmos sonhos
e dramas, novelas indianas, ainda que 43 Para quem quiser ler mais sobre
não se saiba se a Índia existe, e é fama. / o assunto: g1.globo.com/mg/
minas-gerais/noticia/2018/11/13/
ou de qual delas falamos. / pois na Índia batalha-de-poesia-ganha-espaco​
que visitei em uma viagem austral, há -e-tem-circuito-em-belo-horizonte​
anos, há fome que não é ilusão, / ela -e-cidades-mineiras.ghtml

impera no estômago do mundo e no CU 44 grandslam2014.com


da televisão.42 consultado em 29/03/2019

124
FIGURA 1 Camila Félix, atlas dos saraus da periferia

Ouvem-se poemas sendo declamados na próprias de convívio, laços comunitários,


pequena praça, antes abandonada, no aproximação entre as pessoas. Pensa-se
bairro afastado do centro projetado da muito pouco na literatura instituindo
cidade, longe da Praça da Estação. Textos modos de estar e ser no mundo com os
são falados ao vento no centro de uma outros, com os iguais, com os comuns.46
grande roda de poetas sentados em círcu-
lo no chão. Enquanto, na cidade vizinha, A pesquisadora mostra muito bem como,
uma antiga escadaria agora é uma praça mais do que invadir espaços da cidade, os
da poesia, tal como o grande jardim que poetas periféricos constroem territórios e os
sobra em uma esquina próxima à escola reintegram à comunidade:
industrial. São, até agora, mais de cem es-
paços em que acontecem encontros com a
poesia falada em Belo Horizonte.
A literatura é vista predominantemen- 45 A esse respeito ver matéria do
jornal O tempo, de 14 de abril de
te relacionada ao privado, à subjetividade, 2017 — issuu.com/otempo/docs/
ao particular. E a leitura de poesia poucas binder1_bd7a75b0668c4d
vezes é pensada junto a um espaço públi-
46 osaltobarranqueiro.blogspot.com.
co, ou como um fator de organização da br/2017/02/atlas-dos-saraus-de​
vida social, capaz de estabelecer formas -bh-poesia-como.html

125
Mas a realidade urbana é outra, ocorre- Interessante notar como um dos integrantes

MINAS GERAIS: DE TERRITÓRIOS E MARGENS DA LITERATURA   IVETE LARA CAMARGOS WALTY


ram 26 encontros de poesia na região do sarau ColetiVoz, que depois participa da
metropolitana de Belo Horizonte no ano criação do Vira-Lata, Kdu dos Anjos, já ob-
de 2016. Metade desses, itinerantes, uti- servava que seria importante levar os saraus
lizando um novo espaço a cada mês, quin- da periferia para o centro porque ​—​ “o centro
zena ou semana; transformando praças, também é periferia, pois é onde todas as
escadarias abandonadas, esquinas e não- periferias se encontram”. Nesse sentido,
-lugares do espaço urbano; constituindo- quer-se enfatizar o trânsito desses movimen-
-se como marco inicial de coletivos tos e a diversidade de seus participantes.
de atividade cultural na periferia, de Sepúlveda mostra que
engajamento político e de modificações
no projeto de alguns espaços públicos e O Sarau Vira Latas tem uma relação dire-
na elaboração de editais de cultura.47 ta com o movimento Hip Hop. Seus fun-
dadores e grande parte dos participantes
Em dissertação de Mestrado desenvolvida eram frequentadores do ‘Duelo de MCs’ e
na FaE/UFMG, intitulada A PALAVRA É SUA! o sarau se juntou ao coletivo que orga-
Os Jovens e os Saraus Marginais em Belo nizava o ‘Duelo’ em diversos momentos
Horizonte, Lucas Oliveira Sepúlveda, assim para realizarem eventos/ocupações cul-
descreve os saraus: turais em conjunto. Podemos dizer que,
além da influência do Hip Hop, os movi-
os saraus marginais possuem caracterís- mentos de contestação juvenis como o da
ticas comuns às formas de contestação Praça da Estação e outras intervenções
juvenis contemporâneas na cidade de foram determinantes para o surgimento
Belo Horizonte, como a organização em do sarau, uma vez que esses movimentos
coletivos, politização das ações culturais, de contestação não são apenas locais, mas
encontro e ocupação do espaço público, formas globais de questionamento dos
produção cultural e artística também discursos e poderes dominantes. Esse
como forma de manifesto, trazendo à encontro entre jovens advindos de movi-
tona as questões urbanas, sociais, ge- mentos e lugares diferentes se expandiu
racionais, raciais, de gênero, artísticas para além de sua área de atuação, levando
produzidas pelos sujeitos participantes à criação de outros saraus marginais pela
dos saraus.48 cidade e região metropolitana.50

Analisando alguns dos saraus da região Mais do que o estudo dos saraus, de resto
metropolitana de Belo Horizonte ​—​ O Sarau já muito bem feito por Sepúlveda e outros,
dos Lanternas na região de Venda Nova em importa sublinhar seu aspecto coletivo,
Belo Horizonte e o Nosso Sarau realizado horizontal, múltiplo e público. A literatura
na cidade de Sarzedo, na região metropo- marginal desaloja pessoas, lugares e poderes,
litana, além do Sarau Vira-latas ​—, Lucas experimentando novas formas de criação e
Sepúlveda mostra que performance. Transitando pela cidade, seus
componentes realizam, além da enunciação
esses saraus, ao serem realizados nas verbal, a enunciação pedestre,51 criando
periferias, a princípio, ressignificaram percursos no mapa da cidade, delineando
o conceito de sarau dando-lhe um novo territórios. E é sobre esse aspecto performá-
sentido e um novo formato. Usar o termo tico, teatral, que Rogério Coelho se debruça
“Sarau”, importado do discurso das elites,
para nomear o evento que era realizado
em um bar da periferia, pode ser enten- 47 Ibid.
dido como uma forma política de afirmar
48 SEPÚLVEDA, 2017, p. 30.
que a periferia também produz cultura
tal como as elites, em um movimento 49 Ibid., p. 31.
onde a periferia “se faz” centro, apro-
50 Ibid., p. 41.
priando e reelaborando os seus conceitos
e práticas.49 51 Cf. CERTEAU, 1994.

126
em sua dissertação de mestrado, realiza- autorrepresentação em busca de saída identi-
da na Escola de Belas Artes da UFMG: A tária da subalternidade, como propõe Rogério
palavração: atos político-performáticos no Coelho, remetendo à Regina Dalcastagnè,
ColetiVoz Sarau de Periferia e Poetry Slam acentuamos a ideia de boca coletiva, de enun-
Clube da Luta: ciação coletiva. Esta age como suplemento
deslocando aquilo que é dado como centro, e
As conexões entre o movimento dos borrando suas bordas.
saraus com as artes, as artes da cena, Quando uma obra que homenageia
acredito, podem ser vistas sob vários os trezentos anos da Capitania de Minas
aspectos, em que teatralidade, perfor- Gerais abre espaço para uma reflexão sobre
mance, teatro, cinema, dança, música, a chamada literatura marginal, pratica-se
artes visuais e literatura, fundamen- aquilo que é chamado por Boaventura Souza
talmente, afiliam-se por influência dos Santos de ecologia dos saberes. É isso que o
gestos expressivos que contribuem para sociólogo português intitula Epistemologias
toda a cena contemporânea artística, do Sul, na defesa da circulação dos saberes
por conseguinte para o sarau. Podemos transversais e periféricos. Diz o Autor:
pensar na “presença corporal do leitor
de literatura” (ZUMTHOR, 2007) como As epistemologias do Sul afirmam e valo-
um ato performático, cênico, teatraliza- rizam assim as diferenças que permane-
do, musicalizado, audiovisual, gráfico, e cem depois da eliminação das hierarquias
não apenas como elemento unicamente de poder. O que pretendem é um cosmo-
literário.52 politismo subalterno, da base para o topo.
Em lugar da universalidade abstracta,
Da presença do corpo à mediação da tecno- promovem a pluriversalidade. Trata-se de
logia para fazer soar sua voz, os poetas da um tipo de pensamento que promove a
periferia atuam na cena do sarau e na cena descolonização potenciadora de pluralis-
pública, por meio da palavrAção. Nessa afir- mos articulados e formas de hibridação
mação, ecoa aquela de Maurício Campomori, libertas do impulso colonizador que no
na conclusão do trabalho já citado, a respeito passado lhes presidiu, tais como a criouli-
da beleza das obras arquitetônicas dos arqui- zação e a mestiçagem.54
tetos mineiros por ele focalizados.
Em sua obra Rap global, ele mesmo faz um
A maior beleza de todas elas, à parte dos exercício poético de alteridade; por meio da
conceitos tradicionais da estética, reside criação de um rapper, Queni Oeste, baseado
no valor ético de propor, em qualquer na figura do americano Kanye West, ele en-
parte do mundo, mesmo que apartado das cena a palavra do sul sufocada no movimento
centralidades dominantes, algo que não da colonização do imaginário. Jefferson
seja subalterno, conformista e subordi- Medeiros (2019) mostra como o Rap global
nado às lógicas dos centros de poderes é construído “com as mesmas palavras que
dominantes. Nessa proposta reside a Santos utiliza para formular o conceito de
ideia de que sempre se pode atuar cria- Epistemologias do Sul”, a saber: “exercício
tivamente para superar tudo aquilo que de imaginação epistemológica e de imagina-
adia a emancipação humana.53 ção democrática, com o objetivo de construir
novas e plurais concepções de emancipação
A despeito das grandes diferenças entre as social sobre as ruínas da emancipação social
obras arquitetônicas estudadas e os saraus automática do projeto moderno”.55
coletivos de poesia, estes repetem a atitude
de insubordinação frente ao que lhes é ditado
pela norma estabelecida por grupos. Não se
52 COELHO, 2017, p. 50.
pode abolir dessa relação entre centros e pe-
riferias o movimento de criação, produção de 53 CAMPOMORI, 2018, p. 322.
sentidos necessários à sobrevivência humana.
54 SANTOS, 2018, p. 30.
Por isso mesmo, no estudo das produções
marginais contemporâneas, mais do que uma 55 SANTOS, 2002, pp. 273–4.

127
O que procuramos mostrar aqui foi um

MINAS GERAIS: DE TERRITÓRIOS E MARGENS DA LITERATURA   IVETE LARA CAMARGOS WALTY


exemplo, não apenas do que se convencionou
chamar literatura marginal, mas da circu-
lação do saber cultural, oriundo da criação
básica da cognição humana, a capacidade de
criar-se e criar seu entorno, seu nicho.56
Um território, vários territórios; uma enun-
ciação, várias enunciações; uma boca, várias
falas, literaturas marginais, por isso mesmo
incontáveis.57

56 A esse respeito ver NASCIMENTO


(2019) e CAVALCANTE; MILITÃO
(2016)

57 Em virtude disso, os nomes citados


são exemplos de uma grande
constelação.

128
REFERÊNCIAS

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130
131
O ROMANCE DE
GERAÇÃO NA
LITERATURA DE
MINAS GERAIS
JOÃO ANTONIO DE PAULA

132
O tema deste capítulo tem abrangência e romance, de 1914, fortemente influenciado
complexidade superlativas. Afinal, busca-se, por perspectiva hegeliana, em que o roman-
neste livro, 300 anos de história literária. Ri- ce é caracterizado como a epopeia possível
gorosamente, os três núcleos que compõem o do mundo burguês, que registraria as contí-
título ​—​ romance, geração e literatura mineira ​ nuas contradições que se põem nas intera-
—​ demandam tratamentos prévios que não ções entre o herói problemático e o mundo
poderão ser feitos aqui, seja com relação ao alienado no qual está inserido.
conceito de romance que se vai mobilizar, Outra questão preliminar importante é
seja sobre a caracterização de “geração”, seja, quanto às várias camadas de significados
por fim, sobre as escolhas dos romances que que recobrem a expressão ​—​ “romance de
tipificariam as gerações que se quer destacar. geração”. Não é questão trivial. Tome-se um
Dito isso, reconheçam-se as limitações exemplo da literatura francesa. Não será equi-
do que se realizou. O capítulo não foi elabo- vocado dizer que André Malraux, Jean Paul
rado por equipe de especialistas e seu autor Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus
está longe de sê-lo, tendo a seu favor duas pertençam a uma mesma geração literária,
circunstâncias, que espero sejam atenuan- seja pelo aspecto biográfico-cronológico,
tes suficientes, para garantir a benevolência seja pelo fato de compartilharem um mesmo
dos leitores: uma longa frequentação, pelo ambiente político, social, cultural. Também
autor, da história e de diversas dimensões da têm em comum o fato de terem escrito
realidade mineira; um permanente interesse romances e serem nomes de grande prestígio
pela literatura e suas interações filosóficas intelectual. Nesse sentido, estavam creden-
e culturais. Se se considerar insubsistentes ciados a escrever o “romance da geração” a
tais circunstâncias, direi, forçado, que minha que pertenceram e, de fato, o fizeram, de
culpa, neste caso, decorre da temeridade de algum modo. A questão aqui é entender o
ter aceito ao convite, que muito me honrou. sentido da expressão usada na frase anterior ​
—​ “de algum modo”. É que há ambiguidade
ROMANCE E GERAÇÕES LITERÁRIAS na formulação “romance de geração”. De um
lado, um “romance de geração” remete a um
A indagação sobre o que é o romance, isto sentido literal que é ​—​ “o romance da geração
é, sua história, suas características formais, a que pertence o romancista” ​—, ou seja, em
seus significados, tem algo de vertiginoso, sentido amplo, o romance de um grupo, de
como se pode ver por dois exemplos es- um movimento, de um estilo, de uma escola,
colhidos ao acaso. Entre 1905 e 1915, foi em que o personagem central, sendo indi-
publicada a obra de Marcelino Menéndez vidual ou coletivo, é sempre representativo
y Pelayo, em quatro volumes, com 1687 de uma época. Sob outra perspectiva, “o
páginas ​—​  Orígenes de la novela ​—​  que trata romance de geração” não precisa ter como
do surgimento do romance na Espanha, que, tema-personagem os escritores de uma
em suas quase duas mil páginas, chegou época e suas circunstâncias, mas seria a nar-
apenas a analisar La Celestina, obra dra- rativa capaz de sintetizar as grandes questões
mática de Fernando de Rojas, do final do de seu tempo. Neste sentido, um romance
século XV, e suas imitações, isto é, a vasta como A condição humana, de André Malraux,
obra do grande erudito espanhol é uma publicado em 1933, que trata da Revolução
longa preparação para a análise da obra Chinesa, de 1927, é um excepcional “romance
de Cervantes, que inauguraria o romance de geração”, da geração de escritores france-
moderno. O outro exemplo que se traz aqui é ses que se colocaram frente à crise mundial
o da obra organizada por Franco Moretti, O dos anos 1930, a partir da alternativa revolu-
romance, projetada para 5 volumes, cujo pri- cionária de sua superação.
meiro, publicado em português em 2009 ​—​ A Com efeito, há um outro modo de pen-
cultura do romance ​—​ tem 1113 páginas. Não sar o romance daquela geração de escrito-
há propósito, aqui, em discutir a teoria do res franceses, que é tomando os próprios
romance. De todo modo, se fosse necessário escritores como personagens, que é o que
explicitar qual o conceito de romance que Simone de Beauvoir fez em Os Mandarins,
teria sido mobilizado neste texto, a referência roman à clef, de 1954, que tanto incomodou
seria George Lukács e seu livro Teoria do a Albert Camus.

133
O tema “geração” tem motivado filósofos, mobilização dos velhos mitos do “siglo d’oro”,

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


sociólogos, historiadores desde o século XIX. da monarquia universal, de um passado
Um tratamento pioneiro do tema costuma ser glorioso e há muito enterrado; de outro, a
atribuído a Wilhelm Dilthey, a que se segui- “Generación del 98” buscou a regeneração
ram intervenções de José Ortega y Gasset, da Espanha, seu renascimento. Houve nela
Karl Mannheim, Julián Marias, Claudine quem visse isso como sendo possível pela
Attias-Donfut. Na base da ideia de geração radical “europeização” da Espanha, como
é possível reconhecer um velho ditado que Ortega y Gasset. Outros, como Miguel de
diz que “nós nos parecemos mais com nossa Unamuno, reagiram afirmando a necessidade
época do que com nossos pais”. Ortega y de a Espanha se “espanholizar”, voltar-se
Gasset deu especial relevância à ideia de para seus mais autênticos valores e tradi-
geração; diz ele, ções. Seja como for, essa geração sacudiu a
Espanha: seu protesto, sua indignação, seu
A geração, compromisso dinâmico entre clamor, sua rebeldia denunciaram a decadên-
massa e indivíduo, é o conceito mais cia, abriram caminho para a Espanha se en-
importante da história, e, por assim dizer, contrar no amplo processo de transformações
é o gonzo sobre a qual ela exercita seus político-culturais simbolizadas na pintura
movimentos. […] Se cada geração con- de Picasso e Miró, na literatura de Lorca, no
siste numa peculiar sensibilidade, num cinema de Buñuel, na potência revolucionária
repertório orgânico de propensões ínti- da República espanhola entre 1936 e 1939. A
mas, quer dizer que cada geração tem sua Geração de 1898, na Espanha, diz Azorín,
vocação própria, sua missão histórica.1
não fez mais que dar continuidade
Com efeito, quando Ortega y Gasset diz que ao movimento ideológico da geração
cada geração tem uma missão histórica, ele anterior: tinha havido o grito passio-
não ignora que elas possam ser “infiéis a si nal de Echegaray, o espírito corrosivo
mesmas, fraudadoras da intenção histórica de Campoamor e o amor à realidade
depositadas nelas”.2 Tal traição não elimina de Galdós. Tinha havido tudo isso; e a
a questão que permanece: as gerações não curiosidade mental pelo estrangeiro e o
podem evitar ser interpeladas pela história, espetáculo do desastre ​—​ fracasso de toda
reagindo seja ao trauma da perda, seja ao a política espanhola ​—​ avivaram sua sensi-
sucesso, às vezes com júbilo e euforia, quase bilidade e puseram nela uma variante que
sempre com perplexidade e inquietação. antes não havia na Espanha.3
A derrota da Espanha na guerra com os
Estados Unidos, em 1898, derrota que valeu A crise espanhola iniciada no século XVI
à Espanha a perda de Cuba, de Porto Rico e é, na verdade, parte da crise ibérica, que
das Filipinas, levou à conformação de uma engolfou também Portugal, que tinha vivido
“geração” ​—​  a “Generación del 98” ​—​  que seu momento de auge no século XV. Vários
faz as vezes de geração por antonomásia, autores portugueses, de Camões ao Padre
tamanha sua força, tamanha sua capacidade Vieira, se manifestaram sobre a crise, sobre
de expressar pela literatura, pelo pensamento, a prostração histórica do outrora dinâmico
pelas artes as grandes questões da Espanha Portugal. No século XIX, mais de uma geração
afundada em crise profunda desde o século se colocou o problema da crise portuguesa
XVI. A constatação da crise espanhola vem e os modos de superá-la. A geração que se
de longe, Cervantes a registrou no trágico
das ilusões de Quixote, no final do século XVI.
Goya surpreendeu a crise espanhola tanto 1 ORTEGA Y GASSET, José. El Tema
em suas gravuras, como em sua pintura, de Nuestro Tiempo. 5ª edição.
naqueles retratos da família de Carlos IV, Buenos Aires/México: ESPASA-
CALPE, 1945. pp. 15–9
impressionantes registros de um mundo em
decomposição. Ao longo do tempo foram 2 Ibid., p. 19.
se consolidando duas tentativas básicas de
3 AZORÍN. Clásicos y Modernos.
responder à crise espanhola: de um lado 4ª edição. Buenos Aires: Editorial
houve quem tentasse responder à crise pela Losada, 1952. p. 187.

134
colocou agudamente a questão da superação que, a partir de 1918, com a revista Pela grei,
da crise portuguesa tem o nome de “Geração terá considerável papel na vida política e
de 1870” e reúne, entre outros, nomes como cultural portuguesa.
os de Eça de Queirós, Antero de Quental, Nos anos 1920, a Europa recebeu uma
Ramalho Ortigão, Oliveira Martins. A ação da geração de expatriados americanos aos quais
“Geração de 1870” abordou tanto questões foi dado o nome de Lost Generation, reunin-
literárias, quanto questões histórico-políticas. do nomes como os de Gertrude Stein, e. e.
No âmbito das questões literárias ficou cummings, Ernest Hemingway, Francis Scott
famosa a desabusada resposta que Antero Fitzgerald. Na Inglaterra entre as guerras for-
de Quental deu ao vetusto Antônio Feliciano mou-se uma geração ​—​  o Grupo Bloomsbury ​
de Castilho. Ao final do texto que faz parte da —​ com significativa presença tanto no campo
“Questão Coimbrã”, de 1865, Antero despe- político quanto no cultural. Entre seus nomes
de-se de seu crítico, assim: “Nem admirador mais representativos citem-se: o economista
nem respeitador”. Em 1871, Antero proferiu John Maynard Keynes, o filósofo Bertrand
discurso, que tem o sentido de um programa ​ Russell, o crítico Lytton Strachey, a romancis-
—​  Causas da decadência dos povos penin- ta Virginia Woolf, o poeta e crítico T. S. Eliot,
sulares ​—​ ao concluir que a superação da o romancista E. M. Forster. Não é pequena a
decadência da península ibérica adviria da contribuição dessa geração à cultura contem-
construção do socialismo, diz ele porânea, seja no âmbito da poesia, com Eliot,
seja na renovação da forma do romance, com
Finalmente, à inércia industrial Virginia Woolf, seja no campo do pensamento
oponhamos a iniciativa do trabalho livre, econômico, com Keynes e suas obras semi-
a indústria do povo, pelo povo, e para nais, como são Consequências econômicas
o povo, não dirigida e protegida pelo da paz, de 1919, e Teoria geral do emprego,
Estado, mas espontânea e não entregue da moeda e dos juros, de 1936.
à anarquia cega da concorrência, Se a Lost Generation foi a resposta de
mas organizada duma maneira uma geração de escritores norte-america-
solidária equitativa, operando assim nos às consequências da grande guerra de
gradualmente a transição para o novo 1914–18, a segunda grande guerra mundial
mundo industrial do socialismo, a quem impactou gerações literárias em várias partes
pertence o futuro.4 do mundo, de que é exemplar o grupo inglês
a que se deu nome de Angry Young Men, que
Portugal foi prolífico na gestação de gerações reuniu nomes como Kingsley Amis, John
literárias. Com muitos nomes em comum Osborne, Colin Wilson e John Halloway.
com a “Geração de 1870” é a geração dos Também na América Latina foi vasta a
“Vencidos da Vida”, que teria sido criada em presença de gerações literárias. Com efeito, é
fins de 1887, nome que lhe teria sido dado por na América Latina que surgiu uma geração de
Oliveira Martins a partir de alguns nomes ilus- escritores que buscou superar a dependência
tres da cultura francesa de então. No século cultural com relação à Espanha, criando uma
XX, Portugal assistiu ao surgimento de várias palavra, “modernismo”, que foi a senha para
gerações literárias: em 1915, o lançamento da a eclosão, a partir de 1890, de uma série de
revista Orpheu, em que “se destaca Fernando afirmações de autonomia cultural em vários
Pessoa”, deu origem a uma movimentada re- países, a partir da conclamação do poeta
novação literária cujos veículos de divulgação nicaraguense Rubén Darío. A América Latina
foram as revistas Exílio, 1915; Centauro, 1916; abriu-se para o modernismo com completo
Portugal futurista, em 1917; Contemporânea, entusiasmo, do Caribe ao sul o sopro reno-
em 1922; e Athena, em 1924. Em 1927, houve vador arejou a vida cultural da região num
uma nova aglutinação de gerações em torno “grande movimento de entusiasmo e liberda-
da revista Presença, com nomes como José de para a beleza”, como disse Juan Ramón
Régio, João Gaspar Simões e Miguel Torga,
entre outros como Adolfo Casais Monteiro,
Fernando Pessoa, Luis de Montalvor, Vitorino
4 QUENTAL, Antero. Causas da
Nemésio. Paralela a esses movimentos foi a decadência dos povos peninsulares.
ação pedagógica e crítica de Antônio Sérgio, 5ª edição. Lisboa: Ulmeiro, 1987.

135
Jiménez, em 1935. As gerações literárias, nós partilhamos em comum e que nossa

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


então, como hoje, se formavam em torno timidez impediu admitir e exteriorizar.5
de revistas: em Havana, o veículo inicial da
geração modernista foi a Revista da Avance; Desde o século XVIII não será equívoco se
no México foi a revista Contemporáneos; em falar da existência, no Brasil, de associações
Buenos Aires foram três as revistas ​—​ Proa, de letrados reunidos de forma duradoura ou
Martin Fierro e Sur. O recorte imediato, o que circunstancial. Sob a forma de grêmios, de
unificava as gerações literárias, era a dimen- academias, de celebrações. Antonio Candido,
são estética, as “afinidades eletivas” entre em seu clássico A Formação da literatura bra-
os seus membros. Contudo, as gerações sileira, vê nos árcades mineiros um “momento
literárias não expressam apenas escolhas decisivo”, uma geração pioneira na formação
estéticas. É o caso da geração de escritores da literatura especificamente brasileira. A
peruanos organizados em torno da Revista literatura brasileira no século XIX vai assistir
Amauta, criada em 1926 por José Carlos ao surgimento de várias gerações literárias.
Mariátegui, e o marxismo criativo que promo- Aos primeiros escritores românticos Antonio
veu. Em Buenos Aires, a geração modernista Candido chamou de “geração vacilante”, por
experimentou outro tipo de clivagem sob a certa ambiguidade política e literária, meio
forma de dois grupos: o da “calle” Florida, no neoclássicos/meio românticos, meio liberais/
qual pontificavam nomes como os de Jorge meio respeitosos defensores da prerrogativa
Luis Borges, Ricardo Guiraldes, Macedonio da centralização monárquica.
Fernández, Oliverio Girondo, filhos da elite Não é o caso de inventariar aqui as várias
econômica, política e cultural argentina; e gerações literárias que vão surgir no Brasil
os da “calle” Boedo, jovens escritores filhos a partir do século XIX, algumas com relativo
de imigrantes e de famílias modestas de um grau de dispersão e heterogeneidade, outras
bairro de trabalhadores da classe média, em dotadas de forte coesão, de uma quase comu-
que se destacou Robert Arlt. nhão de espírito, como é o caso da que reuniu
Nos Estados Unidos, a Segunda Gran- os românticos Álvares de Azevedo, Bernardo
de Guerra Mundial e a prosperidade que Guimarães, Aureliano Lessa. Igualmente
se instalou no país depois de 1945, a sua coesa foi a geração parnasiana que aparece
consolidação como a grande potência capi- sempre como um trio: Olavo Bilac, Alberto
talista do mundo, provocaram importantes de Oliveira, Raimundo Correia. É como uma
transformações em todos os campos da vida “geração” que também se devem conside-
social. De um lado riqueza e crescimento eco- rar os autores, filósofos, juristas, críticos
nômico, pleno emprego; de outro, no campo e historiadores formados pela Escola de
político-cultural, a permanência dos valores Direito do Recife, como Tobias Barreto, Sílvio
do conservadorismo, do anticomunismo, a Romero, Clóvis Beviláqua, Artur Orlando,
mercantilização da cultura. É à luz desse qua- responsáveis, no Brasil, pela recepção de uma
dro, em que o mundo material é marcado pela tradição filosófica cientificista, evolucionista,
prosperidade, pelo crescimento, enquanto monista, inspirada em Herbert Spencer e
reina a perfeita petrificação no mundo da vida, Ernst Haeckel.
é que é possível entender a explosão repre- A história da literatura brasileira tem sido
sentada pela Beat generation, por autores grandemente consensual no estabelecimento
como Jack Kerouac, William Burroughs, Allen de uma sequência de escolas literárias no
Ginsberg, Norman Mailer, Lawrence Ferlin- Brasil, no século XIX, que inclui: romantismo,
ghetti. Trata-se de uma realismo, naturalismo, parnasianismo, simbo-
lismo. Se houve relativo consenso no enqua-
literatura de protesto, literatura de gente dramento e avaliação das escolas citadas,
nova, literatura fantástica, excêntrica, no referente ao simbolismo e, sobretudo, às
atordoante, sincera, violenta, libertadora
e fecundante, palavras e pensamentos que
não foram envernizados pelos manicuras-
-robôs de Madison Avenue (com exce- 5 KRIM, Seymour. “Introdução”. In:
Geração Beat: Antologia. São
ção talvez de um único caso), mas que Paulo: Editora Brasiliense, 1966.
decorrem da experiência de que todos pp. 11–2.

136
manifestações literárias do início do século XX, Poetas hoje, cuja primeira edição é de 1975;
houve incompreensões e equívocos interpre- também de Heloisa Buarque de Hollanda é
tativos. De início perfeitamente ignorado pelo Impressões de viagens, CPC, Vanguarda e
pensamento literário dominante, o simbolismo desbunde 1960/70, que saiu pela Editora
se impôs, ao longo do tempo, tanto pela afir- Brasiliense em 1980. Em 1979/80, Armando
mação de seus grandes nomes ​—​ Cruz e Souza de Freitas Filho, Heloisa Buarque de Hollanda
e Alphonsus de Guimaraens ​—​ quanto pela e Marcos Augusto Gonçalves publicaram
descoberta de José Severiano de Rezende e Anos 70. Literatura, pela Europa, Empresa
do desconcertante Pedro Kilkerry. Bem como gráfica e editora do Rio de Janeiro. Em 1981,
pela necessidade de trazer Augusto dos Anjos Carlos Alberto Messeder Pereira publicou
para o campo dos simbolistas. Retrato de época. Poesia marginal. Anos
Bem estabelecido entre os historiado- 70, pela Funarte, Rio de Janeiro. Em 1972,
res da literatura brasileira, o modernismo Gilberto Mendonça Teles publicou Vanguarda
tem certidão de nascimento e paternidade europeia e Modernismo brasileiro, pela Edi-
consagradas. O que veio antes leva o equí- tora Vozes, de Petrópolis. A poesia brasileira
voco nome de pré-modernismo, que é quase dos anos 1970 é objeto do livro de Afonso
um acinte com relação a autores e obras Henriques Neto, Roteiro da poesia brasileira:
características e fortes, como as de Euclides Anos 70, publicado pela Editora Global em
da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato. 2009. Em 2003, Nelson de Oliveira publicou
Aproximando-se de seu centenário oficial, o Geração 90: os transgressores. Os melhores
modernismo tem profusa bibliografia. Depois contistas brasileiros surgidos no final do sécu-
de certo tempo, contra a homogeneidade que lo XX, pela Boitempo Editorial, em 2003.
se quis ver no movimento, surgiram visões, A listagem que se trouxe aqui não tem
como a de Alceu Amoroso Lima, que reconhe- pretensão de ser exaustiva, senão que buscou
ceram diferenças entre os modernistas, tanto mostrar a rica diversidade das gerações
estético-formais, quanto político-ideológicas: literárias brasileiras. Por outro lado, o quadro
as audácias libertárias do coloquialismo dos apresentado permite que, a partir daqui a
primeiros tempos, com Drummond e Murilo discussão se faça em torno dos “romances de
Mendes, tiveram um contraponto formal na geração” da literatura mineira.
vertente espiritualista de Cecília Meireles,
Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schmidt, ROMANCES DE GERAÇÃO DA
Henriqueta Lisboa; o nacionalismo progres- LITERATURA MINEIRA
sista de Mário de Andrade teve contraponto
reacionário na obra do Grupo Anta ​—​ Plínio Parece um fato completamente estabelecido
Salgado, Cassiano Ricardo; a antropofagia e irrecorrível que quando se fale em “romance
de Oswald de Andrade buscou ser a síntese de geração” da literatura mineira haja ime-
original da afirmação da emancipação crítica diata remissão aos modernistas mineiros e
da cultura brasileira. às gerações que os sucederam, o que resulta
Desde o modernismo, e suas várias negar ou ignorar a existência de gerações de
vertentes, a literatura brasileira tem assistido romancistas mineiros anteriores ao moder-
ao surgimento de várias gerações: a geração nismo. Com efeito, o gênero romance foi
regionalista dos anos 1920/30; a geração praticado no Brasil desde o século XIX, tendo,
de 1945, que foi um contraponto ao desre- entre os praticantes do gênero, alguns escri-
gramento formal do primeiro modernismo; a tores mineiros, como Bernardo Guimarães,
geração concretista; a geração neoconcre-
tista; a geração Praxis-instalação; a gera-
ção poesia-processo; o tropicalismo ​—​ as 6 SANT’ANNA, Affonso Romano de.
quais foram sintetizadas no livro de Affonso Música Popular e Moderna Poesia
Romano de Sant’Anna, Música popular e Brasileira. 3ª edição. Petrópolis:
Vozes, 1986.
moderna poesia brasileira.6 A poesia dos anos
1960 é objeto do livro-antologia de Pedro 7 LYRA, Pedro. Sincretismo. A Poesia
Lyra.7 A literatura brasileira dos anos 1960/70 da Geração 60. Fortaleza/Rio
de Janeiro: Topbooks/Fundação
foi retratada em livros importantes, como Cultural de Fortaleza/Fundação
os de Heloisa Buarque de Hollanda ​—​ 26 Riocentro, 1995.

137
Joaquim Felício dos Santos, Júlio Ribeiro. Nas Há um certo paradoxo na narrativa que se

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


primeiras décadas do século XX, a atividade segue sobre os “romances de geração” da lite-
literária em Minas Gerais teve considerável ratura mineira: é que seu primeiro fruto é obra
impulso, de que é prova maior a criação, em de autor, Eduardo Frieiro, que se comprazia
1909, em Juiz de Fora, da Academia Mineira em ser um desabusado crítico da primeira ge-
de Letras. É desse período o lançamento de ração de modernistas mineiros, os jovens que
importantes romances de escritores, como editaram, em Belo Horizonte, A Revista, em
Avelino Fóscolo, com A capital, de 1903; como 1925, sob a direção de Emílio Moura, Carlos
João Lúcio Brandão, com Pontes & Cia., de Drummond de Andrade, Gregoriano Canedo
1912, e Bom viver, de 1917; como Godofredo e Martins de Almeida. Eduardo Frieiro, sob o
Rangel, com Vida ociosa, de 1920. pseudônimo de João Cotó, não perdoou aos
Em 1898 Afonso Arinos publicou Pelo jovens a literatura que lhe pareceu “ingenui-
Sertão, livro de contos que é marco da lite- dade de caboclos bovarizados, que tomam
ratura regionalista do Brasil. Luís Augusto a sério as mais descabeladas boutades
Fischer, sobre isso, observou que a domina- parisienses”. Em 1927, Frieiro publicou um
ção econômico-política de São Paulo e do Rio romance, O Club dos Graphomanos, que
de Janeiro levou a que toda a literatura que recria com ironia inclemente o ambiente
não seja desses dois centros seja conside- daquela geração de jovens maníacos pela
rada “regionalista”, em flagrante atestado palavra, pelas letras, pela literatura. Roman à
de “hegemonismo”, talvez, inconsciente. No clef, O Club dos Graphomanos foi editado às
caso de Minas Gerais, é preciso lembrar que custas do próprio autor, que para tanto criou
a Capitania, desde seus primeiros tempos, uma editora fantasia, Edições Pindorama,
mostrou forte vocação urbana, como se onde publicou os seus romances seguintes: O
constata pela rápida ocupação do território Mameluco Boaventura, em 1929, e Inquietude,
e pelo surgimento de vários núcleos urbanos melancolia, de 1930. Ao todo Frieiro publicou
relativamente populosos e diversificados em quatro romances, sendo que o quarto, O Cabo
suas funções econômicas, políticas, sociais e das Tormentas, de 1936, saiu pela editora Os
culturais. De todo modo, é preciso pensar os Amigos do Livro. Impiedoso em sua antipatia
núcleos urbanos, as cidades, em sentido lato, pelos jovens que se lançavam no caminho
como organizadoras do espaço social, pelo modernista, Frieiro se fez, depois, senão
estabelecimento de um conjunto de intera- companheiro de viagem, ao menos apoiador
ções complexas, materiais e simbólicas, entre efetivo, como se vê no caso do magnífico
o campo e a cidade. Afonso Arinos, escreveu trabalho gráfico, que realizou para o primeiro
romance importante sobre Canudos, Os livro de Drummond, Alguma poesia, de 1930,
jagunços, em 1898, em que se colocou aber- editado pela editora-selo de Frieiro, Edições
tamente favorável aos revoltosos. Lembre-se Pindorama, impresso nas oficinas gráficas da
de que Euclides da Cunha, quando chegou Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais,
em Canudos, em 1897, vinha imbuído dos sob a supervisão de Frieiro, então funcionário
preconceitos das elites republicanas contra a daquela casa.
luta dos camponeses, e só mudou de posição Uma geração literária, além de suas
depois de ter tomado contato com a região. apostas e afinidades literárias, também se
Tanto Afonso Arinos quanto Guimarães Rosa caracteriza pelos lugares que frequenta:
e Mário Palmério são decisivos nomes de uma livrarias, bares, cafés; pelas editoras que
posição que reconhece e valoriza o homem do publicam seus trabalhos; pelas revistas que
campo, o camponês, sua cultura, seus valores, editam e que são como pontas de lança
sua história. Olavo Romano é um importante da veiculação de plataformas literárias. A
membro desse grupo, que, mobilizando a geração dos modernistas de Belo Horizonte
memória, valorizando a cultura, os hábitos lançou sua revista, A Revista; tinha seus bares ​
populares e a terra mineira, contribui para a —​ do Ponto, Trianon; seu café — Confeitaria
afirmação de valores decisivos: a cooperação, Estrela; sua Livraria, a Francisco Alves. A edi-
o comportamento, a amizade, o companhei- tora dos modernistas de Belo Horizonte foi Os
rismo, de que é o exemplo maior a grande Amigos do Livro, que Eduardo Frieiro criou em
figura do vaqueiro Manuelzão, que Olavo 1931, sob a forma de cooperativa, em substi-
Romano tem destacado tuição à Edições Pindorama, e que publicou,

138
na década de 1930, Emílio Moura, João de um elemento aglutinador de nature-
Alphonsus, o segundo livro de Drummond, de za circunstancial, como a república de
1934, Brejo das Almas, Heli Menegale, entre estudantes, a revista literária ou o clube,
outros autores. o jornal, a repartição pública, e de um
Em O Club dos Graphomanos, Frieiro outro, interno, uma personagem que
narra as vicissitudes de um grupo de jovens centraliza o interesse da narrativa e per-
escritores às voltas com a criação de uma re- mite seu fluir. […] Assim acontece com
vista: “o poeta Victoriano Ruas falou de novo a turma da República dos Bororós e do
em fundar uma revista. Era a sua ideia fixa. botequim do Bruno Secchi, em Inquietude,
Era o assunto que, volta e meia, ele trazia à Melancolia. Do grupo, apenas Basileu está
discussão entre os amigos que ali se reuniam presente em todo o curso da estória. O
todas as tardes para o ‘chopp literário’”.8 A mesmo se dá com Bento Pires, sem dúvi-
roda literária, além de Victoriano Ruas, conta- da uma primeira versão de Basileu, em o
va com Porphirio Leiva, com o pintor Ricardo Clube dos Graphomanos, com Belmiro e
Santanna, com Bento Pires. Financiado por com Eduardo, nos romances de Cyro dos
homem rico, Leôncio Feitosa, fundou-se a re- Anjos e de Fernando Sabino.10
vista e se consolidou o “Club” entre chopes e
discussões literárias e políticas. Algum tempo Ao lado de romances de geração como são o
depois a revista foi fechada pelo desinteresse Club dos Graphomanos e Inquietude, melan-
de seu mecenas. O atraso brasileiro, isto é, colia, Eduardo Frieiro ainda é autor de um tipo
sua imaturidade política e social impediria o de “romance de costumes”, que tem algo de
enraizamento de literatura efetiva, expressão escandaloso ao retratar, sob nomes fictícios,
da vida social, entre nós, produzindo manifes- que todos de um certo meio social reconhe-
tações artificiais e diletantes. Para justificar ciam, figuras de Belo Horizonte, amores adul-
o fechamento da revista, o político-literato terinos, revelados pela malícia inconfidente
Victoriano Ruas diz ​—​ “como as demais do escritor. É este o caso de O Cabo das
revistas de igual índole, a nossa só serve para Tormentas, de 1936, romance em que ele re-
alimentar um estéril cenaculismo literário, vela certas aventuras amorosas de seu amigo
só serve para agravar a excessiva vaidade e também escritor Moacyr Andrade. De fato,
e a inominável petulância de graphomanos Moacyr de Andrade parece não ter se aborre-
desocupados”.9 cido com a inconfidência, e se fez, ele mesmo,
Tudo considerado, é possível dizer que a um cultor do romance à clef, com República
profunda marca deixada pelo modernismo Decroly, publicado em 1935, pelas Edições
mineiro sobre a literatura brasileira, por suas Pindorama, e com Memórias de um chauffeur
várias sedes, por seus vários grupos, é uma de praça, publicado inicialmente em capítulos
resposta contundente ao ceticismo conser- diários no jornal “Estado de Minas” e, como
vador de Victoriano Ruas. Adversário inicial livro, em 1964, pela Editora Itatiaia.
dos modernistas, Eduardo Frieiro construiu A geração dos primeiros modernistas
sólida carreira como escritor, romancista, mineiros contou tanto com grandes poe-
crítico, ensaísta, professor, em registro que, tas quanto com grandes prosadores como
se não admitiu as inovações modernistas, são Rodrigo Melo Franco de Andrade, João
manteve-se atualizado, tendo decisivo papel Alphonsus, Anibal Machado. Grande contista,
no enriquecimento da cultura mineira, seja
por sua erudição, seja por sua permanente
curiosidade intelectual, seja pelo brilho de
seus ensaios e estudos. Eduardo Frieiro foi 8 FRIEIRO, Eduardo. O Club dos
Graphomanos. Rio de Janeiro/Belo
o inaugurador, entre nós, do “romance de Horizonte: Edições Pindorama,
geração”. Luiz Carlos Alves caracterizou com 1927. p. 9
acerto o gênero:
9 Ibid., p. 200.

Em linhas gerais, obedece a um projeto 10 ALVES, Luiz Carlos. “Inquietude,


de construção narrativa no qual é fácil Melancolia, agora Basileu”. In:
FRIEIRO, Eduardo. Basileu. Belo
identificar inicialmente um grupo de Horizonte: Editora Itatiaia, 1981.
personagens que se aproximam por força pp. 2–3.

139
Anibal Machado deixou apenas um romance, importante inflexão pela afirmação de temáti-

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


publicado postumamente, em 1964, João ca introspectiva-psicológica, da qual é um dos
Ternura, sobre o qual trabalhou desde 1925. maiores nomes no Brasil.
Com efeito, é o caso de ver João Ternura Romance da geração do primeiro moder-
como o romance das gerações modernistas, e nismo mineiro é Totônio Pacheco, de João
não só de Minas Gerais. É que ele é a súmula Alphonsus, publicado em 1935, ganhador
dos anseios, das admirações, das frustrações do Prêmio Machado de Assis de romance
dos que acreditaram ser possível um Brasil da Companhia Editora Nacional. As suas
solidário, alegre, crítico, inovador, avesso primeiras linhas dão conta de certo segmento
ao convencionalismo e aos privilégios. Em da vida burguesa em Belo Horizonte:
seu telegrama ao futuro, que o personagem
Josias leu na Cinelândia, em cima de uma Hora de sol baixo e oblíquo na avenida
pirâmide humana, se diz: Afonso Pena. Sorvetes, chopes, suores,
mulheres com os corpos escorregando,
Estamos fazendo força para te alcançar escorrendo dentro dos vestidos leves.
stop demora motivo últimas resistên- Sexualidade no sol, no verde, na poeira.
cias antiga estrutura social bem como Preguiça. A moça que passou guiando
safadeza má-fé demagogia stop índice a barata não pode esconder um bocejo
boçalidade ainda impressionante stop diante do sinal fechado; ia talvez fora
impossível eliminação total imbecis stop casa aniquilar-se sobre as molas de um
[…] temos certeza que mediante luta pela divã púbere.
transformação velhas estruturas sociais
econômicas será removida principal cau- Início aliciante, moderno, de uma geração que
sa sofrimento do povo stop […] urgente descobria a literatura, o sexo, a amizade, o
reformular em novas bases relações ho- ridículo da vida convencional e conservado-
mem-mulher secularmente erradas stop.11 ra. O segundo romance de João Alphonsus,
Rola Moça, de 1938, também se passa em
Com efeito, João Ternura pode ser visto como Belo Horizonte, num tempo em que a cida-
um romance transgeracional, na medida em de recebia levas de doentes em busca do
que seu objeto é, essencialmente, a luta pela clima benfazejo, para o tratamento em seus
transformação social brasileira, do ponto de vários sanatórios.
vista democrático e popular, por gerações de João Alphonsus iniciou sua carreira lite-
escritores, desde a década de 1920. Tanto rária como contista, com o livro Galinha cega,
Rodrigo Melo Franco de Andrade quanto de 1931; em 1942, novo livro de contos, Pesca
Anibal Machado tendem a não ser reconheci- da baleia; em 1943 nova coletânea de contos,
dos entre os modernistas mineiros, talvez pelo Eis a noite! Quando teve que se manifestar
fato de terem vivido grande parte de suas vi- sobre sua carreira literária, disse que se sen-
das no Rio de Janeiro. Contudo, foi costumeira tiu realizado com seus contos: “Gênero que
a debandada de escritores mineiros para o Rio me atrai e satisfaz quase que exclusivamente,
de Janeiro, para São Paulo. Guilhermino César tentador e difícil, mas tão compensador quan-
deixou Minas Gerais, na década de 1940, e do se consegue alguma coisa que nos pareça
fixou-se no Rio Grande do Sul, tornando-se verdadeiramente realizada”.12 João Alphonsus,
importante historiador e crítico da literatura diz Fernando Correia Dias, “participa do movi-
gaúcha sem que, por isso, tenha apagado sua mento intelectual belo-horizontino ligando-se
incontornável condição de nome de proa do ao grupo de jovens escritores que iria ser o
primeiro modernismo mineiro, no Grupo Verde, eco, em Minas, da renovação modernista da
no Grupo Leite Criôlo, onde tem lugar também
como romancista, com romance ambientado
na Mina de Morro Velho, Sul, de 1938.
11 MACHADO, Anibal. João Ternura.
Nascido em Minas Gerais, Lúcio Car- Rio de Janeiro: Livraria José
doso, iniciou sua carreira literária com Olympio, 1964. pp. 178–80.
o romance Maleita, de 1934, que tem
12 ALPHONSUS, João. Contos e
semelhanças com o romance nordes- Novelas. Rio de Janeiro: Editora do
tino do sertão. Mais tarde, sua obra fez Autor, 1965. p. 12.

140
literatura brasileira. Forma-se, deste então, desajustamento do herói, o funcionário públi-
como escritor: o mais típico prosador dessa co Belmiro Borba ​—​ na verdade de um grupo
escola literária em Minas Gerais”.13 de amigos, com relação à “cidade besta”, Belo
Em 1965, quando Fernando Correia Dias Horizonte, com relação ao meio acanhado
escreveu o que foi reportado no parágrafo e convencional. Para os contemporâneos
anterior, ainda não tinham sido publicadas era relativamente fácil identificar por detrás
as “Memórias” de Pedro Nava, que tiveram dos nomes ficcionais os personagens reais
início em 1972. Membro da mesma geração daquela Belo Horizonte dos anos 1920/30.
de João Alphonsus, Pedro Nava vai se mostrar Para os que não viveram aqueles tempos
um prosador poderoso, dos maiores que o em Belo Horizonte, a chave do romance foi
Brasil teve no século XX. Suas “Memórias” dada pelo próprio romancista em seu livro de
são um registro com algo de romanesco da memórias A menina do sobrado. Chegando
geração dos pioneiros modernistas mineiros. em Belo Horizonte, em 1923, Cyro dos Anjos
De todo modo, João Alphonsus não escreveu acompanhou, inicialmente à distância, a
o romance de sua geração, tarefa que coube movimentação dos jovens modernistas da
a Cyro dos Anjos, em seu livro O Amanuense cidade, invejou-lhes a desenvoltura, o acesso
Belmiro, de 1937, publicado pela Editora Os que tinham às novidades que chegavam em
Amigos do Livro, impresso na Imprensa Ofi- caixotes da França para a Livraria Francisco
cial. Em 1938, o livro saiu, em segunda edição, Alves. Um imprevisto colocou Cyro dos Anjos
pela Livraria José Olympio Editora, com capa no coração das hostes modernistas. Tendo se
de Santa Rosa. Roman à clef, O Amanuense afastado para advogar no interior, Gregoriano
Belmiro narra o cotidiano de homem, vindo do Canedo indicou Cyro dos Anjos para seu lugar
interior, já na casa dos trinta anos, em Belo na redação do Diário de Minas, chefiada por
Horizonte, funcionário público, morador de Carlos Drummond de Andrade. O Diário de
um bairro de periferia, Calafate. O romance Minas era o veículo informal e inverossímil da
tem início às vésperas do Natal, quando um divulgação do modernismo em Minas Gerais,
grupo de amigos se reúne no bar do coreto na medida em que era o jornal do muito
do Parque Municipal, em meio a uma alegre conservador Partido Republicano Mineiro.
movimentação com algo de carnavalesca: No Diário de Minas, em que trabalhavam
Drummond e João Alphonsus, Cyro dos Anjos
Éramos quatro ou cinco, em torno de completou seu conhecimento dos modernis-
pequena mesa de ferro no bar do Parque. tas mineiros:
Alegre véspera de Natal. As mulatas iam
e vinham, com requebros, sorrindo den- Nesse quartel-general, observei, com sur-
gosamente para os soldados do Regimen- presa, que não só não se discutiam planos,
to de Cavalaria. No caramanchão, outras estratégias ou táticas, mas nem sequer
dançavam maxixe com pretos reforçados, havia comando, hierarquia. Tal como
enquanto um cabra gordo, de melenas, o zombeteiro João Alphonsus, Carlos
fazia a vitrola funcionar. O proletariado Drummond, que jamais aceitou o bastão
negro se expandia, comemorando o Natal. de chefe, muito se divertia com aquilo
Satisfeito, o alemão do bar se multipli- que se passava nos outros arraiais moder-
cava em chopes, expedindo, para aqui e nistas do País, já então divididos ​—​ alguns,
para ali, garçons urgentes.14 a renegar o movimento; outros, a tentar
teorizá-lo, dar-lhe conteúdo; e a maioria,
O Amanuense Belmiro, vazado em idioma abrigar no próprio terreiro, manifesto
exato e elegante, em que mais de um crítico
viu ecos de Machado de Assis, é moderno
sem alardes, sem provocações formais. Ro- 13 DIAS, Fernando Correia. João
mance de grupo: Florêncio, Silviano, Glicério, Alphonsus: Tempo e Modo. Belo
Horizonte: CEM/UFMG, 1965.
a mitológica Arabela, Redelvim (o homem de p. 47.
esquerda), Jandira, que vive, em seus dilemas
e contradições, as vicissitudes da longa luta 14 ANJOS, Cyro. O Amanuense
Belmiro. 2ª edição. Rio de Janeiro:
pela emancipação feminina. O romance, nar- Livraria José Olympio Editora,
ra, sob a forma de um diário, o permanente 1938. p. 11.

141
para cá, manifesto para lá. Mineiramente, O contexto é o do final da II Grande Guerra

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


o grupo mineiro se encolhera, para só Mundial, antes da “Guerra Fria”, em que a
depois, a partir de 1930, sair das encolhas, experiência da luta contra o nazismo permitia
já com livros nas mãos. Assim, o grupo pensar num mundo mais solidário e coopera-
entrara em recesso. Fora-se o tempo da tivo. O nome da revista ​—​ Edifício ​—​  remetia a
Revista, das rodadas de chope no Estrela, verso de Drummond em sua fase de grande
das festinhas noturnas.15 poeta público. Essa geração, numerosa
quantitativamente, foi marcada por grande
Foi esse ambiente que O amanuense diversidade de formação profissional. Era o
Belmiro fixou. momento em que já haviam sido implantados
Irmão de Cyro dos Anjos, Waldemar cursos de Ciências Sociais, de Letras, de
Versiani dos Anjos, médico, professor, pes- Filosofia, de Ciências Econômicas no Brasil e,
quisador no campo das Ciências Biológicas, tendo a literatura como laço unificador, a ge-
dedicou-se à literatura, publicando dois ração reuniu nomes como os de Marco Aurélio
romances e um livro de versos. Em 1960, apa- Matos, Wilson Figueiredo, Paulo Mendes
receu o romance O Jornal do Serra Verde, que Campos, Otto Lara Resende, Fernando
traça o panorama humano de uma pequena Sabino, Autran Dourado, Octávio de Mello
cidade do norte de Minas, editado pela Edi- Alvarenga, Carlos Castello Branco, Marco
tora Itatiaia; em 1971, a Imprensa Oficial do Antônio Tavares Coelho, Francisco Iglésias,
Estado de Minas Gerais, publicou o segundo Hélio Pellegrino, Sábato Magaldi, Pedro Paulo
romance do autor ​—​  Simplício ​—​  que narra os Ernesto, Edmur Fonseca, Walter Andrade,
pequenos dramas vividos por personagens Jacques do Prado Brandão, Pontes de Paula
que trabalham em instituição de pesquisa Lima, Vanessa Netto, Lucy Teixeira. A grande
biomédica, a qual inicialmente funcionou na maioria dos citados não ficou em Minas
Praça da Liberdade. Misturando persona- Gerais. Muitos deles se tornaram nomes de
gens reais e fictícios, o romance recria uma grande destaque na literatura, no jornalismo,
Belo Horizonte “grande para a modéstia de na cultura brasileira. Alguns deles escreveram
Simplício, muito pequenina para os voos do romances de forma bissexta, como Carlos
Professor Fragoso, era um delicioso arraialão Castello Branco, que publicou, em 1959, Arco
que permitia correr o tempo vagaroso, provin- do Triunfo, pela Editora Itatiaia. Também bis-
ciano, o ar das coisas sertanejas não poluídas sexta deve ser considerada a obra romanesca
ainda, e a mesma Praça da Liberdade, em sua de Otto Lara Resende. Contista, cronista,
pasmaceira administrativa”, frustrava “o bom jornalista, Otto Lara Resende publicou, em
sol de uma Minas Gerais agora irreconhe- 1963, um romance ​—​  O braço direito ​—​  pela
cível”, como disse o autor da orelha do livro, Editora do Autor, que ele reescreveu até o
Morse Belém Teixeira. final da vida, permanentemente insatisfeito
Entre os romancistas da primeira geração com o resultado alcançado. Outro romancista
modernista em Minas Gerais está Rosário dessa geração foi Octávio de Mello Alvarenga,
Fusco, grande nome do grupo Verde, de Ca- que publicou, em 1963, Doralinda; em 1967,
taguases, que, tendo escrito versos, ensaios Judeu Nuquim, e em 1988, Acerto de contas.
e teatro, deve ser reconhecido, também, pela A geração dos “vintanistas” é numerosa
força de seus romances, como O agressor, de e, ao nominar seus membros, quase sempre
1943; O Livro de João, de 1944; Carta à noiva, há omissões. Em parte, isso se deve ao fato
de 1954; Dia do juízo, de 1961. de que alguns, por proximidade e afinidades,
Quando Mário de Andrade esteve pela se fizeram tão conhecidos que a tendência
última vez em Belo Horizonte, em 1944, ficou foi vê-los como resumindo a geração. É este
conhecendo uma geração de jovens inte- o caso dos quatro companheiros que, indo
ressados em literatura, que ele chamou de morar no Rio de Janeiro, constituíram-se em
“vintanistas”, porque estavam todos, então,
na casa dos vinte anos. Em 1945, na Voz de
Minas, Alceu Amoroso Lima, chamou esses
mesmos jovens de “Novíssimos”. Em 1946 15 ANJOS, Cyro. A menina do
Sobrado. 2ª edição. Rio de Janeiro/
eles lançaram uma revista Edifício, que vai Brasília: Livraria José Olympio
dar nome à geração: “Geração Edifício”. Editora/INL, 1979. p. 357.

142
uma entidade ​—​ “os quatro cavaleiros de um que fala sobre romances de autores minei-
íntimo apocalipse” — Otto Lara Resende, Paulo ros, omitir a obra extraordinária de Campos
Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Fernando de Carvalho.
Sabino. Fazem parte dessa geração dois Nascido em 1908, formado em Medicina
nomes importantes da cultura brasileira quase pela UFMG em 1930, João Guimarães Rosa
nunca associados a ela: Murilo Rubião e Darcy teve seu primeiro livro ​—​ Sagarana ​—​  lançado
Ribeiro. Darcy Ribeiro morou em Belo Hori- em 1946. Em 1956, revolucionou a literatura
zonte nos anos 1940 e frequentou as mesmas brasileira, levou-a para lugares que, raras
rodas que os membros típicos daquela gera- vezes, se alguma vez, frequentou, com o livro
ção. Depois de insucesso em cursar medicina de novelas, Corpo de baile, e com o romance-
na UFMG, foi para São Paulo e formou-se pela -epopeia Grande sertão: veredas.
Escola de Sociologia e Política de São Paulo, É também imperioso destacar a obra de
dando início à sua importante carreira como Mário Palmério. Educador, político, diplomata,
antropólogo, como educador, como escritor. ele está entre os grandes escritores brasilei-
Importa aqui destacar a obra romanesca de ros, com dois belos romances sobre a realida-
Darcy Ribeiro, que inclui Maíra, de 1976; O de mineira, não a dos sertões de Guimarães
mulo, de 1981; Utopia selvagem, de 1982; Migo, Rosa, mas a do oeste mineiro, a Picada
de 1988. Murilo Rubião é um mestre inovador. para Goiás, onde são ambientados ​—​ Vila
Sua literatura fantástica inaugurou o gênero no dos Confins, de 1956, e Chapadão do Bugre,
Brasil, a partir de elaboração personalíssima, de 1965. Outro romancista das realidades
original, sem remissão a modelos estrangeiros. interioranas mineiras é Geraldo França Lima,
Murilo Rubião não escreveu romances, dedi- com vários livros publicados a partir de Serras
cando-se a uma lenta elaboração-decantação azuis, de 1961: Brejo Alegre, 1964; Branca
de narrativas curtas, a partir de 1947, com a Bela, 1965; Jazigo dos vivos, 1969; Nó cego,
publicação do livro O ex-mágico. 1973; A pedra e a pluma, 1979, entre outros.
No mesmo ano em que nasceu Murilo Antonio Olinto, jornalista, diplomata, especia-
Rubião, 1916, veio ao mundo um outro escritor lista em África, poeta, ensaísta, passou a pu-
igualmente surpreendente, Campos de blicar romances a partir de 1969, com A Casa
Carvalho. Nascido em Uberaba, Campos de da água, que é o primeiro de uma série sobre
Carvalho bacharelou-se em Direito pela USP, temas africanos, que inclui, entre outros, O
em 1938, tendo sido procurador do Estado Rei de Keto, 1980 e Trono de vidro, de 1987.
de São Paulo, até sua aposentadoria. Seu Outro romancista mineiro importante, que
primeiro livro, de 1941, é Banda forra; de começou a publicar nos anos 1960, é Benito
1954 é Tribo. Livros que ele não incorporou à Barreto, com sua tetralogia “Os Guaianãs”,
sua obra, quando, em 1995, a Livraria José que inclui Plataforma vazia, de 1962; Capela
Olympio publicou sua Obra reunida. Trata-se, dos homens, 1968; Mutirão para matar, 1974;
aqui, de “romances de geração” da literatura Cafaia, 1975.
mineira. Nesse sentido, o enquadramento de Os “vintanistas”, os “novíssimos”, as
Campos de Carvalho nessa temática se dá gerações literárias mineiras dos anos 1940
por sua condição de mineiro, porque seu lugar foram reportados em dois romances, que
na literatura brasileira sempre foi único, sem são, efetivamente, “romances de geração”,
assemelhados pela inventividade feroz, pelo escritos por membros efetivos da própria
total descompromisso com a tradição, com a geração, a saber: O encontro marcado, de
moralidade burguesa. Reivindicou-se irmão Fernando Sabino, lançado em 1956; e Um
de Lautréamont, de César Borgia, de Gilles de artista aprendiz, de Autran Dourado, lan-
Rais, sobrinho por afinidade do Marquês de çado em 1989. Nos dois, os narradores ​
Sade. Campos de Carvalho anuncia a firme —​ Eduardo Marciano = Fernando Sabino e
intenção de chocar, de assustar, de arrancar João da Fonseca Nogueira = Autran Dourado ​
o leitor de sua cotidiana acomodação para —​ reconstroem a vida de uma geração com
lançá-lo em mundo de pernas para o ar, do pretensões literárias, em Belo Horizonte, nos
inusitado, com A Lua vem da Ásia, de 1956; aos 1940. A revista da geração é Edifício, os
Vaca de nariz sutil, de 1961; A chuva imóvel, locais de encontro: a Leiteria Nova Celeste,
de 1963; e O púcaro búlgaro, 1964. Seja o Bar Nacional. A Praça da Liberdade ainda
como for, parece-me indesculpável, num texto era procurada para confissões amorosas,

143
para angústias. O viaduto de Santa Tere- frustrações, de exaltações e perplexidades. As

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


za e seus arcos são desafios que os novos raízes recria a Belo Horizonte dos anos 1950:
tentam vencer para serem dignos da geração a Feira de Amostras, o Parque Municipal, o
modernista de Carlos Drummond de Andra- Cine Metrópole, as ruas do centro da cidade, o
de. Em Um artista aprendiz, Autran Dourado bairro de Santa Teresa. Barbeiro de profissão,
surpreendeu sua geração no momento em Hélio não pertence ao mundo dos letrados
que se misturavam ansiedades e expectativas dos romances de gerações anteriores ​—​ O
típicas da juventude, afirmação de vocações Club dos Graphomanos, O amanuense Belmi-
literárias e engajamento político à esquerda. ro, O encontro marcado, Um artista aprendiz.
Em O encontro marcado, Eduardo Marciano O que há de geracional em As raízes são as
e os que o cercam mais de perto, a parte inovações formais trazidas pelo romance mo-
da geração que está no centro da ação, não derno, por Sartre, por Camus, pela influência
têm a mesma inclinação política à esquerda da psicanálise. Rui Mourão escreveu outros
que os personagens de Um artista aprendiz. romances: Jonas, 1969; O Curral dos Crucifi-
Ligados que são aos meios católicos, eles se cados, 1971; Cidade calabouço, 1973; Jardim
debatem entre crises e dúvidas existenciais pagã, 1979; Boca de chafariz, 1991.
e religiosas. De seu lado, os personagens de Ivan Angelo, jornalista, contista, cronista,
Um artista aprendiz também se angustiam iniciou sua carreira literária dividindo um livro
com a descoberta dos aspectos dogmáticos de contos, Duas fases, 1961, com Silviano
e autoritários que decorrem da hegemonia Santiago. Transferindo-se para São Paulo,
stalinista. De tal forma que são como roman- em 1965, participou da renovação jornalís-
ces complementares, cada qual dando conta tica representada pelo Jornal da Tarde. Em
de certos aspectos marcantes vividos pela 1976 publicou seu romance mais conhecido,
“Geração Edifício”. A festa. Em 1995, apareceu a novela, assim
Os anos 1950, em Belo Horizonte vão denominada por ele, Amor?; em 1997, o
assistir ao surgimento de várias iniciativas romance juvenil Pode me beijar se quiser;
jornalísticas e literárias: em 1951, Rui Mourão, em, 1998, o romance Marco Zero. A festa é
Fábio Lucas e Affonso Ávila, lançaram a romance síntese de sua geração e da própria
revista Vocação; em 1952, José Maria Rabelo forma romance em seu complexo desenvolvi-
e Euro Arantes lançaram o jornal O Binômio, mento ao longo do século XX, com inovações
seminário de crítica política pela veia do hu- radicais, como as que decorrem das obras
mor; em 1956, foi lançada a revista Comple- de James Joyce, Virginia Woolf, John dos
mento, que reuniu escritores, gente ligada ao Passos, Alfred Doeblin. A festa é o romance
teatro e à crítica cinematográfica, jornalistas, da geração que, na casa dos vinte anos, teve
críticos de artes plásticas e de música; em que enfrentar as consequências do golpe
1957, foi a vez da revista Tendência, que reu- militar e da ditadura implantada em 1964. Em
niu, ao lado dos criadores da revista Vocação, 1970, numa Belo Horizonte policiada, cerce-
Maria Luiza Ramos e Laís Corrêa de Araújo. ada, reprimida, a chegada de um trem com
Da geração Vocação-Tendência, o romancista oitocentos flagelados, sendo levados de volta
foi Rui Mourão; da geração Complemento, para o nordeste, deu início a um episódio que
Ivan Angelo e Silviano Santiago. fez ressoar na cidade ecos de Canudos, de
Rui Mourão publicou, em 1956, As raízes, outras revoltas camponesas, a luta das Ligas
que ele classificou como novela. A dedicatória Camponesas. Romance político, A festa não
do livro é uma homenagem à sua geração: se deixou aprisionar pelo esquematismo, ino-
Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo, Fábio vando seja na forma dinâmica/cinematográfi-
Lucas, Maria Luiza Ramos. Ambientada em ca, seja no conteúdo em tudo distante de um
Belo Horizonte, a novela inclui-se no gênero realismo primário. Para os belo-horizontinos,
que se chamou de “romance psicológico”. o romance é um encontro, um reencontro
No caso de As raízes, não é forçado estabe- com uma paisagem humana e sentimental
lecer certo parentesco com o romance de completamente entranhada na consciência
Graciliano Ramos, Angústia, de 1936. Em coletiva: o DCE, a Praça da Estação, o Bar e
ambos os livros, os personagens principais, o restaurante Lua Nova, a Livraria Rex, o Res-
Hélio, de Rui, e o Luís da Silva, de Graciliano, taurante Alpino, a rua Grão Mogol, a rua Tupis,
se afundam numa rede de obsessões e a rua Pernambuco, a rua Januária… E sendo

144
tão especificamente local, esta paisagem foi A década de 1960 na literatura mineira vai
transfigurada em sua significação universal, ser marcada por núcleos criativos, em várias
como espaço efetivo da vida humana autenti- cidades do Estado, como Divinópolis, com o
camente representada. grupo Agora; Juiz de Fora e Oliveira, com as
Silviano Santiago, professor, poeta, publicações Vix e Frente. Em Belo Horizonte,
contista, crítico, ensaísta, é o outro roman- os primeiros anos da década de 1960 foram
cista da geração Complemento. Em 1974 de intensa mobilização literária, com o lan-
publicou seu primeiro romance, O Olhar. çamento da revista Ptyx, em 1963; do jornal
Em 1981, o romance que vai projetá-lo para de poesia Vereda, em 1963; do suplemento
o grande público, Em liberdade. Em 1985, dominical do Estado de Minas; da revista
outro romance, Stella Manhattan; em 1992, Estória, 1965; da revista Texto; da revista
Uma história de família; em 1995, o roman- Porta, 1966; da revista Plural, do CAAP; da
ce Viagem ao México. Silviano Santiago vai Revista Literária da UFMG, 1966; do Suple-
caracterizar sua obra romanesca por uma mento Literário do Minas Gerais, 1966, que
importante inovação que é a interação entre acabou sendo a grande referência para toda a
a dimensão narrativo-ficcional e o discurso geração literária mineira dos anos 1960, com
crítico, ensaístico de que resulta uma forte repercussão nacional e internacional.17
intertextualidade. Com efeito, a geração Geração de contistas, de poetas, de artis-
Complemento é, dentre as gerações literá- tas plásticos, a que se chamou “Geração do
rias mineiras, a que mais se pode chamar Suplemento Literário de Minas Gerais”, teve
de transdisciplinar. Remetendo a poema de seus romancistas: Sérgio Sant’Anna, Luiz
Ferreira Gullar, do livro A luta corporal, “Galo Vilela e Jaime Prado Gouvêa. Todos surgiram
Galo”, a geração Complemento reuniu um como nomes importantes de um movimento ​
crítico de Artes Plásticas, como Frederico —​ o dos “contistas mineiros” ​—​ que causou
Morais; críticos de cinema, como Maurício espécie na literatura brasileira. Os contistas
Gomes Leite e Flávio Pinto Vieira; artistas mineiros, que eram legião, na década de
plásticos, como Degois, como Chanina; 1960 ganhavam todos os concursos literários
ensaístas, como Heitor Martins, como Luiz nacionais prestigiosos.
Carlos Alves; poetas, como Ary Xavier, como A criação do “Suplemento Literário de Mi-
Valmiki Vilela Guimarães; o crítico de teatro nas Gerais”, em 1966, sob a direção de Murilo
e encenador, como João Marschner; o ator Rubião, fez as vezes de atualização de outra
Carlos Kroeber; o bailarino Klauss Vianna e as situação paradoxal. Nos anos 1920, o Diário
bailarinas Sigrid Hermanny e Duda Machado; de Minas, jornal do PRM, centro do conserva-
o ensaísta e sociólogo Theotônio dos Santos dorismo mineiro, foi o espaço de veiculação da
Júnior; o contista e depois produtor musical e revolução literária modernista. Quarenta anos
compositor Ezequiel Neves.16 depois, é ainda um órgão oficial do governo
Um último registro sobre os romancistas que abrigará uma nova revolução artística.
das gerações Complemento e Tendência, Sob a direção segura e generosa de Murilo
diz respeito à identidade temática entre os Rubião, os jovens se permitiram a vanguarda,
romances O curral dos crucificados, de Rui seja no conteúdo, seja na forma, com a dia-
Mourão, de 1971, e A festa, de Ivan Angelo, gramação de Lucas Raposo, com as ilustra-
de 1976, ambos centrados na presença de ções de Sebastião Nunes, de Márcio Sampaio,
flagelados em Belo Horizonte e o potencial de Eduardo de Paula, de Chanina, dos
disruptivo decorrente da denúncia das crôni-
cas desigualdades sociais brasileiras. Inclua-
-se entre os romancistas mineiros surgidos
16 Cf. MIRANDA, Wander Melo.
nos anos 1960, o frade dominicano, Carlos Silviano Santiago e a geração
Alberto Libânio Christo, Frei Betto, que tem Complemento. Scripta, Belo Hori-
vasta obra reunindo contos, ensaios, poesia, zonte, vol. 1, n. 2, 1 semestre 1998.

crônicas, memórias. Seu primeiro romance é 17 Cf. WERNECK, Humberto. O


O dia de Angelo, de 1987; em 1993, publicou Desatino da Rapaziada. São Paulo:
Alucinado som de tuba; em 1996, O vencedor; Companhia das Letras, 1992;
CAETANO, Ana; NOVAIS, Carlos
1997, Entre todos os homens; Hotel Brasil, Augusto. BHZ: Poesia, Fascículo 1,
1999; Minas do ouro, em 2011. Belo Horizonte, PBH, 1994.

145
discípulos de Guignard. Aos nomes consagra- Reportem-se aos romancistas da “gera-

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


dos de outras gerações, Emílio Moura, Aires ção Suplemento Literário de Minas Gerais”.
da Mata Machado Filho, Bueno de Rivera, Sérgio Sant’Anna, nascido no Rio de Janeiro,
Francisco Iglésias, chegaram-se os novos: viveu em Belo Horizonte onde bacharelou-
Márcio Sampaio, José Márcio Penido, Vladimir -se em Direito, pela UFMG, e participou do
Diniz, João Paulo Gonçalves da Costa, Carlos movimento literário da cidade desde o início
Roberto Pellegrino, Jaime Prado Gouvêa, dos anos 1960. Sua estreia, em livro, como
Adão Ventura, Paulinho Assunção, Dinho de muitos outros colegas de geração, deu-se
Sena, Luíz Gonzaga Vieira, Sérgio Sant’Anna, com coletânea de contos ​—​ O sobrevivente,
Luís Márcio Vianna, Antônio Carlos Braga, de 1969. Em 1975, foi lançado Confissões
Sérgio Tross, Humberto Werneck, Luiz Vilela, de Ralfo, uma “autobiografia imaginária”;
Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Mário em 1977, o romance Simulacros; em 1986, o
Garcia de Paiva, Wander Piroli, Ildeu Brandão, romance (novela) Amazona. Em 1980, Sérgio
Libério Neves. Depois da autonomia dos Sant’Anna publicou uma peça teatral cujo
primeiros tempos, no governo Israel Pinheiro, título é Um romance de geração. De volta ao
o AI-5 e a reescalada repressiva obrigaram Rio de Janeiro, Sérgio Sant’Anna consolidou-
os responsáveis pelo Suplemento Literário a -se como um grande nome da literatura brasi-
uma bem sucedida estratégia de proteção da leira com obra que combina ousadia formal e
publicação, que sobreviveu dignamente, por conteúdo transgressor.
certo tempo, ao obscurantismo que domi- Contista consagrado com os livros Tre-
nava o País. mor de terra, de 1967; No bar, 1968; Tarde
Entre os membros da “Geração Su- da noite, 1970; O Fim de tudo, 1973; Lindas
plemento”, Sebastião Nunes ocupa lugar pernas, 1979; Luiz Vilela publicou vários
singular. Ilustrador-poeta, artista gráfico, romances: Os novos, 1971; O Inferno é aqui
editor, publicitário iconoclasta, esse oxímero, mesmo, 1974; Entre amigos, 1982; Graça,
provador imune à classificações, Sebastião 1989; além da novela O Choro no travessei-
Nunes é legião em sua permanente trans- ro, 1975. Os novos é o retrato da geração
gressão crítica e literária. Roberto Drummond, político-literária de Belo Horizonte, no início
jornalista, com passagens pelo Binômio, pela dos anos 1970. A ditadura, a luta do movi-
Folha de Minas, pelo Jornal do Brasil, pela mento estudantil, os jovens interessados
revista Alterosa, tornou-se conhecido como em literatura, que se reúnem na Cantina
contista, cronista, publicou vários romances, do Lucas, no Edifício Maletta, leitores dos
alguns com considerável sucesso de público, autores-pensadores-artistas de vanguarda ​
como Hilda Furacão, que foi adaptado para —​  Stockhausen, Pierre Boulez, Max Bense,
a televisão. Também oriundo do jornalismo Mallarmé, Calder, Joyce, o cinema de Miche-
mineiro é Fernando Gabeira, que começou langelo Antonioni, a semiótica de Umberto
sua carreira em 1958, na sucursal do jornal O Eco, a fenomenologia. O desejo forte de es-
Binômio, em Juiz de Fora. Depois de passa- crever: “Estou pensando em recomeçar meu
gem por várias redações de jornais em Belo romance essas férias ​—​  disse Nei. ​—​  Vou
Horizonte, Gabeira foi para o Rio de Janeiro ter muito tempo; talvez eu até o acabe. Pelo
onde militou e continuou com sua carreira menos gostaria de tentar de novo”.18 Nei,
como jornalista. Em 1979, publicou um como o amanuense Belmiro, como Dirceu
romance-memória, O que é isso, companhei- Dumont, de O altar das montanhas de Minas,
ro?, que é um efetivo representante do que de Jaime Prado Gouvêa, projetou escrever o
se pode chamar de romance de geração, ao “romance de sua geração”. Dirceu Dumont
registrar a experiência do grupo envolvido na pretendia escrever um romance cujo perso-
luta armada contra a ditadura. nagem seria “um escritor que gastava a vida
Depois de iniciar carreira como poeta, en- tentando escrever um romance, e, para isso,
saísta, professor em Belo Horizonte, Affonso partiria de pistas, indícios, depoimentos e
Romano de Sant’Anna, participou da geração
Tendência e, ainda que não tenha escrito
romances, registrou, mediante a crítica e a
18 VILELA, Luis. Os Novos. 2ª edição.
historiografia, muitas das gerações literárias Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
brasileiras, a partir do modernismo. 1984. p. 222.

146
documentos reais e fictícios…”19 Na orelha do De amantes na Rua São Paulo, calma e
livro, Caio Fernando Abreu diz que o romance sem epístolas,
de Jaime é forte, belo e comovente, e diz isso O Arruda desce tranquilo, grosso e
de maneira muito bem dita: “Forte porque, de pesado,
maneira simbólica, a tragédia do personagem Carregando cervejas, fetos guardados,
Dirceu Dumont parece também a tragédia rótulos de
de uma geração inteira, que não conseguiu Farmácia, águas tristes refletindo estrelas.
ver seus sonhos realizados ou precisou, para […] 20
sobreviver, adequá-los a outros mais reais,
mais modestos. Belo porque, por trás de sua Wander Piroli não escreveu romances, mas
profunda amargura, esconde-se uma lição de seus contos, suas narrativas curtas, são
resistência ​—​ e é essa capacidade de resistir e como as revelações do lado B, quando isso
sobreviver às mutilações físicas, emocionais fazia sentido, das gerações literárias de Belo
e psicológicas de Dirceu que confere ao livro Horizonte, a partir dos anos 1960. Não mais
seu extraordinário poder de comover.” o Bar do Ponto, o Café Estrela, a Leiteria
Jaime Prado Gouvêa estreou em livro Nova Celeste, o Maletta, a Cantina do Lucas,
em 1970, com a coletânea de contos Areia o Saloon, o Bar do Lulu, a Livraria Francis-
tornando em pedra; em 1975, nova coletânea co Alves, a Livraria Oscar Nicolai, a Editora
Dorinha Dorê (Alguns roteiros para a clas- Itatiaia, a Livraria do Estudante. É um novo
se média); em 1986, a Editora Guanabara “noturno de Belo Horizonte” que Wander Piroli
Koogan, do Rio de Janeiro, publicou novo livro revela: a rua dos Guaicurus, a Lagoinha, as
de contos de Jaime ​—​  Ficha de vitrola, repu- “pensões mais imorais”, os bares menos
blicado em 2007, acrescido de outros contos, recomendáveis. Ele lançou seu primeiro livro
pela Editora Record. Essa nova edição de de contos, A mãe e o filho da mãe, em 1966.
Fichas de vitrola evoca nome do escritor Em 1994, publicou Os rios morrem de sede,
Wander Piroli (1930–2006), cuja obra é um que, voltado para o público infantojuvenil, é
fundo mergulho numa certa Belo Horizonte, uma potente e poética denúncia sobre a crise
aquela do “Noturno de Belo Horizonte” de ambiental brasileira a partir do dramático
Dantas Mota, em que quadro da morte do rio das Velhas.
Os anos 1960 viram surgir em Minas outra
O chope não me traz o desejado voz literária potente: Oswaldo França Júnior.
esquecimento Ex-oficial da Força Aérea, punido pela ditadu-
[…] ra militar, Oswaldo França Júnior iniciou-se
Vem do montanhês este ar de farra oculta, na carreira literária com a publicação, em
Bem mineira, e um trombone 1965, pela Editora do Autor, do romance O vi-
atravessando úvo. Em 1967, foi vencedor do maior concurso
A pensão “Wankie”, próxima à Empresa literário do Brasil, o Prêmio Nacional Walmap,
Funerária, com o romance Jorge, um brasileiro, que con-
Acorda os mortos desolados na Rua ta o cotidiano de um caminhoneiro que revela
Varginha. um Brasil brasileiro, em tempos de trans-
Uma lua muito calma desce do Rola-Moça formação social, política, cultural, em que o
E se deita, magoada, sobre os jardins da sertão se aproxima da cidade, pelo asfalto,
Praça, pelo caminhão, pela televisão. A partir daí sua
[…] obra deslancha num ritmo vertiginoso: 1969,
Tísicos boiam que nem defuntos na solidão
Dos Guaicurus. O próprio noturno de
Belo Horizonte
Tem lá suas virtudes: nas pensões mais 19 GOUVÊA, Jaime Prado. O Altar das
imorais Montanhas de Minas. São Paulo:
Edições Siciliano, 1991, p. 15.
Há sempre um Cristo manso falando à
Samaritana. 20 MOTA, Dantas, “Noturno de Belo
[…] Horizonte”. In: Elegias do País
das Gerais. Poesia Completa. Rio
Entanto nada indica haja tiros, facadas, de Janeiro/Brasília: Livraria José
brigas Olympio Editora/INL, 1988, p. 11.

147
Um dia no Rio; em 1972, O homem de ma- importante, o de Janete Clair (Janete Stocco

O ROMANCE DE GERAÇÃO NA LITERATURA DE MINAS GERAIS   JOÃO ANTONIO DE PAULA


cacão; 1974, A volta para Marilda; 1976, Os Emmer), que, ao lado do grande sucesso
dois irmãos; 1978, As lembranças de Eliana; como autora das telenovelas, escreveu um
1980, Aqui e em outros lugares. Continuou a romance: Nenê Bonet. Branca Maria de Paula,
publicar outros romances durante a década Cristina Agostinho, Lucia Castello Bran-
de 1980. Em 1989, morreu em acidente rodo- co, Maria Esther Maciel, Beatriz d’Almeida
viário em Minas Gerais. Magalhães, Ruth Silviano Brandão e Con-
Nascido em Belo Horizonte em 1920, ceição Evaristo são nomes citados aqui de
Mário Garcia de Paiva teve sua iniciação lite- escritoras que, atuando também em outras
rária na década de 1940, mas considera que áreas da literatura, têm escrito romances que
sua obra efetivamente autoral teve início em enriquecem a literatura mineira.
1970, com o livro de contos Festa. Em 1971, O que vem a seguir é menção sumária
publicou Esse menino Francisco, romance; a romancistas e romances mineiros surgi-
em 1975, Os Planelúpedes, romance. dos nos últimos anos, que são reportados
Um injustamente ignorado romance, Um aqui para evitar um acúmulo de omissões.
ladrão de guarda-chuvas, de Jurandir Ferreira ​ Jacyntho Lins Brandão é professor de Língua
—​ nascido em Poços de Caldas, em 1905 ​—, e Literatura Grega, tradutor, ensaísta, teatró-
com o qual ganhou o Prêmio Guimarães Rosa logo. Em 1997, publicou o romance O fosso
de Literatura de Minas Gerais, de 1994, é o de Babel, pela Editora Nova Fronteira, em
mote para se começar a falar de romancistas que um narrador, irônico e malicioso, brin-
e romances contemporâneos. A lista inicia-se ca com os truques e fórmulas do romance
com Luis Giffoni. Engenheiro de formação, pós-moderno. Ricardo Moura Faria é pro-
Giffoni é contista, romancista e ensaísta. Seu fessor de história, historiador, com várias
primeiro livro é A Jaula inquieta, contos; de obras sobre a história de Minas Gerais. Em
1991 é o romance O ovo de Ádax; em 1999, 2015, publicou O Amor nos tempos do AI-5,
dois romances: Tinta de sangue e A árvore romance que busca fixar os dilemas dos que
de ossos; em 2000, apareceu mais um belo viveram os anos 1970 no Brasil, divididos
romance: Adágio para o silêncio. entre a política e as solicitações de uma certa
Há, neste livro, capítulo específico sobre liberalidade de costumes. José Eduardo
as escritoras mineiras e isso deveria bas- Gonçalves, jornalista, escritor, editor, com seu
tar para eu me conter. Contudo, não posso romance, Vertigem, de 2003, surpreende pela
deixar de mencionar, num capítulo sobre radicalidade de sua aposta. Ignácio de Loyola
os romancistas em Minas Gerais, algumas Brandão, na orelha do livro, diz: “O romance é
vozes femininas imprescindíveis. A primeira o poema de uma descida aos infernos, no es-
delas, pela importância da fatura literária, é curo das ruas e das almas. Narrativa invulgar.
Helena Morley (Alice Dayrell Caldeira Brant) […] Um escritor que não pertence a nenhuma
e seu livro Minha vida de menina, diário de escola, nenhuma geração.” Pistas sobre suas
uma adolescente na Diamantina no final do referências literárias, José Eduardo deixou
século XIX. A outra voz, igualmente potente, e escapar, como a epígrafe de Clarice Lispector.
no outro espectro da sociedade de classes, é Lembrar de João Gilberto Noll permite reco-
a da negra, favelada, empregada doméstica, nhecer um mundo, que, em prosaica imedia-
Carolina Maria de Jesus e seu extraordinário ticidade, pode ser o mergulho solitário numa
Quarto de despejo, publicado em 1960. viagem transfiguradora, em que a rotina, o
Contemporâneas de Carolina Maria de costumeiro, os sentimentos que se tem ou
Jesus são duas escritoras mineiras, roman- que se imagina ter parecem fora dos eixos,
cistas, cujas obras tiveram repercussão estranhos a nós mesmos, presos na espessa
nacional, Lúcia Miguel Pereira e Maria Helena clausura da pele. Luiz Ruffato, contista, poeta,
Cardoso. Mais conhecidas pelos trabalhos romancista, historiador do grupo Verde, en-
como historiadoras e ensaístas, tanto Maria saísta. Sua obra tem sido premiada no Brasil
José Queiroz como Letícia Malard também e no exterior. Seu romance de estreia é Eles
escreveram romances. Também romancistas eram muitos cavalos, de 2001.
são as escritoras Cosette Alencar, Elizabeth Luiz Fernandes de Assis, contista e
Rennó, Zita Machado, Zilah Corrêa de Araújo romancista, é das novas vozes da literatura
e Rachel Jardim. Não se omita um nome mineira. Publicou Tese e outras histórias, em

148
2000; O cheiro do vulcão, 2002; e Na esquina
do século, 2009; e o romance O presente, em
2013, pela Editora Scripta, de Belo Horizonte.
José Antônio de Souza, encenador teatral,
teatrólogo, há muito tempo radicado em
São Paulo, publicou, em 1996, um poderoso
romance: Paixões alegres. Carlos Herculano
Lopes, jornalista, contista, cronista, iniciou
sua carreira literária em 1980, com o livro de
contos O Sol nas paredes. Em 1982, publicou
seu segundo livro, Memórias da sede, ganha-
dor do Prêmio Cidade de Belo Horizonte. Em
1984 publicou seu primeiro romance: A dança
dos cabelos; em 1991, o romance O último
conhaque; em 2005, o romance O vestido.
Guiomar de Grammont é professora de filoso-
fia, ensaísta, contista, teatróloga e romancis-
ta. Seu primeiro romance é Fuga em espelhos,
publicado em 2001.
Fique-se, aqui, para não desnaturar,
ainda mais, um texto que tinha o propósito
de falar dos “Romances de Guaras” da
literatura mineira.

149
UM TEATRO
DE FORMAS
HÍBRIDAS:
BREVES NOTAS
SOBRE A CENA
EM MINAS NO
SÉCULO XVIII
LEDA MARTINS

150
A cena teatral no Brasil no Século XVIII é porque só nos chegou o texto de O Parnaso
motivo de controvérsias, dependendo do Obsequioso, de Cláudio Manuel da Costa.
prisma em que se aborda o assunto. Parte da Apenas um nacionalismo excessivo pode
historiografia, considerando que a atividade fazer-nos incorporar à literatura dramática
cênica de fato só se realizaria quando e se brasileira as ‘óperas’ de Antônio José da Silva,
alguns pressupostos estivessem presentes e que, embora nascido no Rio, pertence de fato
fossem constantes, tais como a fixação das ao teatro português”. Para Magaldi, apenas
casas de espetáculo, a dramaturgia escrita no Século XIX, após a Independência, haveria
por autores brasileiros, o exercício estável de as condições mínimas necessárias para o
atores e de companhias, além da regularida- florescimento da prática teatral stricto sensu,
de de público e apresentações, irá descon- quando, então, o país, “assumindo a respon-
siderar ou minimizar a efetiva existência do sabilidade de sua missão histórica”, plasma-
teatro em Minas e no Brasil nos séculos XVII ria “também o seu teatro”.3
e XVIII. Décio de Almeida Prado, por exemplo, Em uma abordagem totalmente diversa,
resume assim a questão: outros historiadores, dentre eles, Galante,
Ávila e Hessel, irão pensar o teatro sob outros
O teatro chegou ao Brasil tão cedo ou prismas, reconhecendo muitas das atividades
tão tarde quanto se desejar. Se por teatro performáticas do século XVIII como ineren-
entendermos espetáculos amadores tes a variadas e múltiplas práticas teatrais.
isolados, de fins religiosos ou comemora- Affonso Ávila, por meio de uma extensa e ines-
tivos, o seu aparecimento coincide com timável pesquisa, estuda as performances
a formação da própria nacionalidade, oitocentistas sob o motivo da “festa barroca”,
tendo surgido com a catequese das tribos no âmbito da qual, tal como na Europa, a
indígenas feita pelos missionários da teatralidade se expandia por inúmeras formas
recém-fundada Companhia de Jesus. Se, de representação, cujas fontes se vinculam a
no entanto, para conferir ao conceito a tradições e origens as mais diversas. Em um
sua plena expressão, exigirmos que haja pensamento e visão seminais, Ávila subverte
uma certa continuidade de palco, com a tendência historiográfica mais convencio-
escritores, atores e público relativamente nal, atentando para a tessitura teatral que
estáveis, então o teatro só terá nascido viceja e é bastante expressiva no século XVIII
alguns anos após a Independência, na em Minas, a qual se espraia por um número
terceira década do século XIX.1 considerável de eventos e cerimônias come-
morativas, religiosas e civis. Estes tinham um
Na mesma linha, Sábato Magaldi, ao se referir papel fundamental, formatando, pelas ruas
ao teatro no Brasil, nos séculos XVII e XVIII, de Vila Rica, de várias cidades de Minas e de
aponta para um “vazio de dois séculos”, que outras capitais da colônia, o feérico espetácu-
somente começaria a ser preenchido em lo processional, cujos numerosos elementos
fins do XVIII, quando “instala-se em muitas cênicos são exemplares de uma praxis com-
cidades um teatro regular, em ‘Casas de plexa e engenhosa. Sob essa moldura, muitos
Ópera’ edificadas para as representações”. O dos elementos das artes cênicas ostensiva-
crítico considera “essa inovação um progres- mente se presentificavam, sob os signos do
so essencial da atividade cênica, sobretudo excesso, do esplendor e do lúdico.
porque os prédios teatrais foram utilizados A festa barroca ostentava a teatralidade
por elencos mais ou menos fixos, com certa própria à estética e à mentalidade da época,
constância no trabalho”.2 Para o mesmo críti- em que, na linhagem de formas e gêneros
co, no entanto, nem mesmo a instalação das comuns na Europa, o frenesi se adaptava às
casas de teatro qualificariam plenamente a inúmeras veias da incipiente cultura nacio-
presença efetiva do teatro, na medida em que nal, ainda em processo de formação. Nesse
a maioria quase absoluta das peças encena-
das era de autores estrangeiros, sendo exígua
a dramaturgia brasileira. O texto dramático 1 PRADO, 2012, p. 21.
de Cláudio Manuel da Costa não cobriria essa
2 MAGALDI, 2004, pp. 26–7.
lacuna, pois, segundo ainda o mesmo crítico,
sob “o prisma da dramaturgia persiste o vazio, 3 MAGALDI, 2004, p. 27 e 33.

151
contexto, a música e o teatro adquirem prota- Em compensação, começam a surgir,

UM TEATRO DE FORMAS HÍBRIDAS: BREVES NOTAS SOBRE A CENA EM MINAS NO SÉCULO XVIII   LEDA MARTINS
gonismo na difusão religiosa e imprimem, na ainda muito timidamente, os espetácu-
cultura, marcas estilísticas próprias de sua los cívicos comemorativos. No Rio de
inventiva criatividade. Janeiro, em 1641, a restauração da monar-
Revisitando os registros documentais e quia portuguesa dá ensejo à encenação
adotando uma atitude contemporânea de de “uma comédia”. E em 1662, na Bahia,
expansão do termo ‘teatro’, nos é possível afir- a Câmara de Salvador toma providências
mar que é pertinente apontar no século XVIII, relativas à representação de “comédias”
em Minas, várias atividades que se realizam em homenagem ao casamento de Carlos
em torno de três eixos principais: as come- II da Inglaterra com a infanta portuguesa
morações processionais cívicas e religiosas, D. Catarina.
patrocinadas pela Igreja e pelo poder público;
as representações dramatúrgicas em palcos Segundo ainda o autor, esse “pouco é quase
e tablados improvisados nas residências se- tudo que se sabe sobre o teatro do século XVII,
nhoriais, nos palacetes dos governantes, nos se excetuarmos um fato de alcance mais literá-
anexos das igrejas, quando não em seu inte- rio que propriamente dramático”. Ele refere-se
rior; assim como as representações em casas aqui ao escritor baiano Manuel Botelho de
de teatro fixas, as casas de ópera. Podemos Oliveira, em cuja obra, publicada em 1705,
destacar também outros moldes, como, as Música do Parnaso, constam duas peças: Hay
representações de comédias e o teatro de fan- Amigo para Amigo e Amor, Enganõs y Celos.4
toches nos circos ciganos; os autos natalinos É no século XVIII, em pleno Ciclo do Ouro,
das Folias de Reis ou Reisados, assim como a que essas festividades atingem seu ápice e
Coroação de reis negros e seus cortejos. Es- sofisticação, espraiando-se por toda Minas,
ses expressivos eventos se desenvolviam por ostentando o poder do Império, dos colonos
inúmeras cidades e conglomerados urbanos enriquecidos e da Igreja católica. Nessa paisa-
em expansão, através de gêneros, formas e gem, destaca-se Vila Rica, o principal centro
formatos os mais diversificados e híbridos, de cultura do século, “a cidade do barroco
com a participação coletiva de vários extratos em arquitetura, escultura, música e poesia”,
sociais e repercussão extraordinária. posição ímpar que é propiciada pela “desco-
berta e a exploração de fabulosas riquezas de
A FESTA BARROCA: PERFORMANCES ouro, de diamantes e outras pedras precio-
RITUAIS RELIGIOSAS, PROCISSÕES E sas que desde cedo propiciaram os lazeres
CELEBRAÇÕES FESTIVAS e os gastos que a arte supõe”. Da opulência
deriva também
No Brasil do século XVI, o teatro catequético
de Anchieta e da Companhia de Jesus viceja a magnificência dos templos […] que
e predomina com quase exclusividade, tendo iriam servir de cenário para grandiosas
como função civilizatória e religiosa básica ex- celebrações, para significativas repre-
pandir o domínio europeu por meio também sentações, nas quais o povo, enriquecido
da catequese dos povos indígenas. Já no XVII, pelo Senhor, manifestaria seu júbilo e sua
os eventos comemorativos aos poucos se so- gratidão, por meio de cantos, de músi-
bressaem e, de certo modo, se sobrepõem às cas de banda, procissões, declamação
dramatizações quinhentistas do teatro dos je- de poesias, danças e até desfile de gente
suítas. Como acentua Prado, nos setecentos, mascarada, tudo isso muito naturalmente
este furor executado por via das representa- entremeado com orações.5
ções teatrais continua em várias localidades,
como na Bahia, no Pará e Maranhão, mas Em seus relatos e registros, viajantes euro-
“amenizada a fúria catequética, abrandada peus iriam se escandalizar com essa mistura
a surpresa do encontro inicial com a cultura carnavalizada do sagrado com o profano,
indígena, essa dramaturgia perde impul-
so, reduz-se à sua verdadeira dimensão de
exercício escolar. Já não interessa tanto, nem
4 PRADO, 2012, p. 30.
como realização, nem como notícia digna de
registro”. E acrescenta: 5 HESSEL, 1974, pp. 5–52.

152
destacando a permissiva sensualidade que Em festa similar, a grandiosa celebração do
ocorreria no interior mesmo das igrejas. O Áureo Trono Episcopal, ocorrida em Mariana,
fato é que, sob o signo lúdico da festa, repre- no ano de 1748, apresentava, ao longo do
sentações teatrais em inusitados formatos cortejo, a participação de grupos de negros e
expandiam-se pelas espacialidades dos de indígenas. Estes últimos, numa “dança de
agrupamentos urbanos, metamorfoseados Carijós ou gentio da terra […], ao som de tam-
em múltiplos e engenhosos cenários. boril, flautas e pífaros pastoris”, e os negros
No livro Resíduos Seiscentistas em “formados em duas alas, com bandeiras, tam-
Minas, Ávila reedita, em facsímile, a minu- bores e instrumentos e cantos a seu modo”.8
ciosa descrição que, em 1734, fez Simão As narrativas da época nos revelam a re-
Ferreira Machado das festividades do Triunfo alização de um espetáculo teatral sui generis,
Eucarístico, evento que assinala, em 1733, que extravasa do espaço público das ruas para
a “inauguração da nova matriz do Pilar”, em as residências e naves das igrejas e catedrais,
Vila Rica, em que “os elementos propria- composto por várias outras atividades, tais
mente litúrgicos se confundiam […] com os como espetáculos circenses, montagens dra-
elementos de fundo profano, compondo um máticas em palcos improvisados, engenhosos
espetáculo de intenso colorido rítmico e visual aparatos cenográficos, suntuosos figurinos
que não escondia seu substrato barroco”.6 e adereços deslumbrantes, quer dos atores e
Ávila ressalta que a “solenidade, preparada partícipes, quer dos animais que compunham
com cuidadosa antecedência, tendo como os quadros. O que faz supor, de acordo com
ponto principal a procissão de trasladação do Hessel, uma direção teatral do evento em seu
Santíssimo da igreja do Rosário para a que todo ou em suas partes. Este autor aproxima
então se inaugurava, constituiu sem dúvida a essas representações de espetáculos cênicos
maior promoção da espécie levada a efeito no da contemporaneidade, observando nessas
período colonial brasileiro”. Ali até os cavalos festividades seus efeitos espetaculares e
eram enfeitados com plumas e pedras precio- significativos índices de teatralidade:
sas, havendo ainda “serenatas, cavalhadas e
corridas de touros”. E acrescenta: Estabelece-se, nos desfiles descritos, e que
precedem a procissão de 24 de maio, uma
No longo cortejo, para o qual se abriu conotação de féerie coreográfica com o
uma nova rua ligando os dois templos, moderno carnaval carioca, pela profusão
viam-se em ricos trajes de gala as diversas do colorido e pelo movimento e monu-
irmandades de brancos, pardos e negros mentalidade dos quadros. Há na con-
já existentes então em Vila Rica e, em cepção da coreografia, tal como a relata
torno dela e de seus estandartes e santos Simão Ferreira Machado, qualquer coisa
padroeiros, uma complexa trama coreo- que a aproxima, guardadas as devidas
gráfica em que se mesclavam grupos de proporções, do espetáculo cinemascópico
dançarinos, conjuntos musicais, carros ou do balé dos nossos dias. Depreende-se
de triunfo, personagens a cavalo, alego- da coordenação das danças (de turcos e
rias mitológicas, cartazes com poemas cristãos, de romeiros, de músicos), dos
alusivos ao acontecimento, etc., buscando carros triunfais, das figuras alegóricas e
cada figurante realçar mais a sua original das representações mitológico-cristãs, a
indumentária, feita de seda, veludo ou existência de uma direção que sabia jogar
damasco e adornada de ouro e pedraria. com recursos e efeitos de ritmo e contras-
A arquitetura e a escultura do efêmero te, inclusive elementos de surpresa.9
salientavam-se nas ruas ornamentadas
de arcos, mastros, guirlandas e outros
artefatos plástico-visuais, com as casas
vistosamente alcatifadas de colchas e
6 ÁVILA, 1978, p. 2.
cortinas nas janelas, sendo que à noite o
ambiente ganhava uma atmosfera feérica, 7 Idem, p. 3.
seja pelas luminárias acesas por toda a
8 Apud ÁVILA, 2012, p. 158.
vila, seja pelos castelos de fogos e jogos
pirotécnicos.7 9 HESSEL, 1974, p. 54.

153
As descrições dos aparatos cenográficos, os Tudo realizado sob a aura da estética barroca,

UM TEATRO DE FORMAS HÍBRIDAS: BREVES NOTAS SOBRE A CENA EM MINAS NO SÉCULO XVIII   LEDA MARTINS
luxuosos figurinos e arranjos, a composição feérica e espetacular, na qual a festa concreti-
cênica dos desfiles, a configuração dramática za o jogo lúdico das cores e do fulgor cromáti-
dos espetáculos, nos ensejam pensar, com co, a aliança entre elementos contraditórios ou
Hessel e com Ávila, na participação efeti- díspares, o exagero na figuração e expressões
va dos mestres artistas da época, seja na formais, a sofisticação das criações musicais,
artesania e artes da madeira e da metalurgia, causando um efeito sinestésico que expande
seja na montagem de ateliês para desenho a percepção sensorial e o apelo aos sentidos.
e confecção dos trajes e das demais peças, A paisagem cromática e toda a linguagem
o que pode motivar promissoras pesquisas dos movimentos no gesto interpretativo e nos
sobre a participação efetiva de pintores, arranjos figurativos, nos ornamentos, recor-
arquitetos, desenhistas e poetas, não apenas rentes na pintura e imagística sacra, assim
nas montagens cenográficas e de vestuá- como os cantos e danças que coreografam o
rio, mas também na concepção e criação rito católico, descortinam e enfatizam o perfil
dos roteiros, que podem ter sido incipientes dramático das representações de rua e sua
enredos dramatúrgicos para os espetáculos, natureza lúdica, sensorialmente esfuziante e
acrescentaríamos nós. mesmo sensual. A primazia da atmosfera es-
O espetáculo feérico das festas religiosas petacular, em seus excessos de despojamento
reatualiza várias fontes performáticas euro- e de publicidade, a composição cênica deslum-
peias, sejam elas as celebrações palacianas, brante, criam o efeito dramático pelo qual as
à moda da corte francesa de Luís XIV; sejam emergentes vilas e cidades, de modo dionisía-
as procissões de Corpus Christi; além de uma co, exercem sua motivação devocional e suas
série de outros elementos da prática teatral profissões de fé, no que o narrador do Triunfo
medieval, dentre eles, a ocupação espacial da Eucarístico chama de um “teatro religioso”.
cidade, tornada cenário. Instalavam-se nas
ruas e eram dispostos nos cortejos quadros AS CERIMÔNIAS FÚNEBRES
representativos de fragmentos e passagens
da narrativa bíblica do Velho e do Novo Ávila observa que o barroco “assumiu muitas
Testamento e da mitologia clássica greco- vezes a função persuasória destinada a realçar
-romana, o que nos remete aos Mistérios, e infundir, através da imagem plástica ou da
Milagres e Moralidades, gêneros do medievo, metáfora literária, o sentimento reflexivo dian-
e aos Autos Sacramentais, principalmente os te da morte, a consciência místico-reflexiva
de origem ibérica, à moda de Lope de Vega e da efemeridade do mundo”. Nas exéquias
mesmo de Gôngora e de Calderón. Conforme de figuras públicas importantes, principal-
Hessel, nesses eventos o teatro ocupava “lu- mente as aristocráticas, se conformaria “uma
gar de honra, aproximando-se do teatro total, verdadeira cena de teatralização da morte”,
visto compreender, além de poesia, texto em atos dramáticos nos quais se observam
recitado e gesticulado, dança, canto coral e os mesmos índices de dramatização, pois tal
participação ativa do público na ação dramá- cena “não dispensava sequer uma cenografia
tica”.10 Ao que Ávila complementa: adequada à natureza do espetáculo”, realiza-
da com o mesmo esmero de outras represen-
A emergente sociedade urbana abria, por tações.12 Essa rica tradição ainda hoje fertiliza
outro lado, espaço para formas mais as procissões e representações, em Minas e
elaboradas de manifestação do gosto em outros estados, das cerimônias e rituais
e da demanda de lazer das populações, católicos, sejam as realizadas pela Igreja, se-
passando a estrutura da festa pública jam as que se tornaram eventos teatrais ao ar
a incluir regularmente a presença do livre, de enorme repercussão, principalmente
teatro ​—​ as três noites de comédias ou as que encenam a Paixão e Morte de Cristo.
óperas, como relatam os documentos ​—​ e,
com bastante frequência, a realização de
encontros de poetas ​—​ as chamadas acade- 10 Idem, p. 53.
mias ​—​ em competições versando assun-
11 ÁVILA, 2012, p. 149.
tos circunstanciais, geralmente ligados à
própria motivação festiva.11 12 ÁVILA, 2012, p. 171.

154
Nesse rol de teatralizações que compõem correr do tempo com grande dedicação e
uma espécie de teatro do sagrado, há que boa técnica.14
se aludir também às dramatizações nas
cerimônias de Coroação de Reis negros, Em todas as grandes cerimônias e festivida-
realizadas pelas confrarias de negros de des, que geralmente se estendiam por vários
Minas, no século XVIII, mas de que há notícia, dias ou semanas, a representação de peças
no Brasil, desde o século XVII, incluindo, além era comum, às vezes adaptadas à linguagem
da coroação das majestades negras, cortejos e ao gosto do público. Tanto na celebração do
de grupos pela cidade, nos quais podemos Triunfo Eucarístico, quanto na do Áureo Trono
identificar a instalação de um poder orga- Episcopal, as apresentações teatrais de palco
nizacional alterno, de uma reconfiguração são exaltadas, e consideradas com grande
cosmogônica e de modos performáticos prestígio as encenações de comédias (termo
de matrizes africanas, principalmente as que na época designava toda e qualquer peça
de ascendência banto. A figura lendária de e não necessariamente o gênero cômico),
Chico Rei seria, em Minas, a origem desse montadas em palcos ornados com suntuosi-
cerimonial.13 Na festa do Áureo Trono, confor- dade. No Triunfo Eucarístico, por exemplo, o
me aqui relatado, há descrição da formação tablado “das comédias se fez junto da Igreja
das alas de danças de indígenas e de negros. custoso na fábrica, no ornato, e aparência
Além dos Reinados, as Folias de Reis ou de vários bastidores: virão-se nelle insignes
Reisados apresentam uma tessitura teatral representantes, e gravíssimas figuras: forão
muito próxima dos autos natalinos medievais, as comédias: El Secreto a vozes: El Príncipe
nos quais, já no Brasil, matrizes performá- prodigioso: El Amo criado”.15 Calderón de la
ticas europeias e africanas se fundem na Barca é autor das duas primeiras, com uma
composição das celebrações. ligeira correção do título, e D. Francisco de
Nas festividades, que se estendiam por Rojas Zorrilha, da última. No Áureo Trono,
dias, e mesmo por semanas, havia sempre lu- além de uma récita de poemas, “se represen-
gar para a representação teatral stricto sensu, tou hum acto comico, dedicado ao feliz nome
em palcos improvisados e, posteriormente, de S. Excellencia na alegoria da exaltação da
nas Casas de Ópera. cruz de Christo, a que se dirigião as heroicas
acções e lances da obra”.16
CASAS DE ESPETÁCULO: Há notícias dessas encenações em várias
OS PALCOS IMPROVISADOS cidades, como Sabará, Diamantina, São João
del Rei e Vila Rica, por exemplo. Em Vila Rica,
Além das performances celebrativas de rua, já em 1727, antecedendo a própria procissão
sob os auspícios da Igreja católica e do poder do Triunfo Eucarístico, Dom João V, rei de
público, desde o século XVII há notícias de Portugal, dirige-se em carta a Dom Lourenço
representações teatrais realizadas em peque- de Almeida, fazendo menção às “muitas oca-
nos e improvisados palcos e tablados, nas siões públicas que ali se oferecem, em que se
casas dos senhorios, ao modo dos currales fazem teatros para assistirem os Governado-
e outeros espanhóis, além da popular leitura res”.17 Em outra missiva do mesmo ano, o rei
e recitação de textos dramáticos em saraus. determinava “a ordenação dos lugares a se-
Curt Lange assim as destaca: rem ocupados pelas autoridades da capitania
em dias de teatro e festas públicas”.18
Em lugares isolados e distantes da Metró-
pole, o teatro como divertimento sadio
para o povo foi cultivado com grande
13 Cf. MARTINS, 1997.
paixão. Em palanques ou tablados, nos
primeiros tempos da colonização, e, 14 Apud HESSEL, 1974, p. 58.
mais tarde, em modestas casas, as Casas
15 ÁVILA, 1967, p. 15.
de Ópera, mencionadas tantas vezes
na documentação histórica do período 16 Idem, p. 33.
colonial, os três poderes, o político, o
17 LANGE, apud HESSEL, 1974, p. 55.
administrativo e o eclesiástico, presi-
diam a representações desenvolvidas no 18 ÁVILA, 1978, p. 3.

155
Dentre esses lugares de encenação, vários Preto, provocando grandes danos, roubos

UM TEATRO DE FORMAS HÍBRIDAS: BREVES NOTAS SOBRE A CENA EM MINAS NO SÉCULO XVIII   LEDA MARTINS
autores darão destaque ao teatro de bolso e heresias, celebrando cultos profanos e
construído na casa de Chica da Silva, no qual realizando, com grande aparato, comé-
várias peças, comédias, operetas e mesmo dias e óperas imorais, em afronta aos
tragédias, de vários autores estrangeiros, sagrados preceitos da Santa Igreja.21
foram representadas com certa regularidade,
possivelmente entre 1753 e 1771, dentre elas Esses tipos de tablado permanecerão ativos
Os Encantos de Medea e Anfitrião, ou Júpiter até serem superados pela instauração das
e Alcmena, de Antônio José da Silva, o Judeu, Casas de Ópera. E serão estas que darão
autor nascido no Brasil, mas considerado novo impulso ao teatro stricto sensu, motivan-
pela historiografia como português, além das do a sua prática mais regular, promovendo o
comédias Chiquinha, Pelo Amor de Deus e requinte dos repertórios e dos gêneros que
Porfiar amando. Joaquim Felício dos Santos, serão disseminados ou introduzidos e que
em Memórias do Distrito Diamantino, assim encontrarão sucesso, dentre eles a ópera e a
descreve a habitação de D. Francisca da Silva tragédia neoclássica.
e nela o belo teatrinho:
AS CASAS DE ÓPERA
um magnífico edifício, em forma de
castelo […] soberbamente construído, com Em 1770, inaugura-se a que é considerada
sua rica e linda capela, uma espaçosa sala, a primeira casa de teatro na América do
que servia de teatro particular, o único que Sul, a Casa da Ópera de Vila Rica, o que
então havia ou era permitido, com todos impulsionou o ofício teatral, criando uma
os apetrechos necessários; com seu deli- espacialidade própria e mais adequada para
cioso jardim de exóticas e curiosas plantas, as atividades cênicas, que, mesmo modesta-
cascatas artificiais, fontes amenas cujas mente, inspiravam-se nos moldes europeus.
águas corriam por entre conchas e cristais, A historiografia destaca a importância dessas
sombreado por arvoredos exquisitos, casas de espetáculo para o florescimento das
transplantados da Europa.19 atividades teatrais no período, vindo a fomen-
tar a realização de uma variedade maior de
O teatro de Chica foi “o núcleo pioneiro de espetáculos com recursos cênicos talvez mais
espetáculos regulares em Minas […], um arrojados, conforme afirma Magaldi:
importante centro de irradiação do teatro na
capitania, dali saindo atores-cantores para a Procurava-se tirar o teatro dos locais de
própria Casa da Ópera de Vila Rica”, que dali empréstimo, como as igrejas e os palácios,
a algumas décadas ocuparia lugar de desta- para uma residência própria. O edifício
que na cena teatral mineira.20 tendia a fixar a vida cênica, trazendo-lhe
a regularidade, indispensável a um labor
O CIRCO CIGANO fecundo. Plantaram-se as salas, para que
os elencos e os autores encontrassem pre-
As atividades circenses, exercidas principal- parado o seu laboratório de trabalho.22
mente por grupos de ciganos, mambembes
por excelência, eram populares e já então ex-
postas a preconceitos e perseguições, como
19 SANTOS, 1956, p. 160.
se observa em uma correspondência de 1727,
em que a autoridade eclesiástica, o Bispo 20 ÁVILA, 1978, p. 6.
Dom Frei Antonio de Guadalupe, tenta proibir
21 Arquivo Histórico das Colônias,
a prática das representações de “comédias apud ÁVILA, 1978, p. 44.
e óperas imorais” dos ciganos, solicitando
instruções ao Sacro Ofício 22 MAGALDI, 2004, p. 33. Há alusões
à existência de teatros anteriores
a 1770, tanto em Vila Rica quanto
para corrigir os grandes males que cau- em Sabará, sem, no entanto, dis-
sam os ciganos e os judeus que infestam pormos de registros comprováveis
(vide HESSEL, 1974, p. 61; SEIXAS
as povoações da Capitania, principal- SOBRINHO, 1961, p. 32; e ÁVILA,
mente instalados na Vila Rica do Oiro 1978, p. 8).

156
Há que se lembrar também a recomendação os maxixes e as revistas, fazendo jus à pujante
das autoridades coloniais para a ampliação herança musical e teatral mineira oitocentista.
da atividade teatral e para a expansão das
casas de ópera, estimulando A DRAMATURGIA

o estabelecimento dos teatros públicos Tanto nos tablados quanto nas Casas de
bem regulados, pois deles resulta a todas Ópera, havia um repertório de peças euro-
as nações grande esplendor e utilida- peias, principalmente de Espanha, recitadas
de, visto serem a escola, onde os povos e montadas em sua língua de origem, o cas-
aprendem as máximas sãs da política, da telhano, coincidindo, talvez, com a dominação
moral, do amor à pátria, do valor, do zelo e hegemonia política e cultural da Espanha
e da fidelidade com que devem servir aos sobre Portugal em parte daquele século.
soberanos, e por isso não só permitidos, Muitos autores, dentre eles Plauto, Gôngora,
mas necessários.23 Lope de Vega, Calderón de la Barca, Antônio
José da Silva, Metastásio, por exemplo,
No caso de Vila Rica, os primeiros cinco anos compunham as bibliotecas dos intelectuais
de atividades exitosas de seu teatro devem- da época e eram declamados nos saraus da
-se em muito a João de Sousa Lisboa, cuja elite, o que incluiria, já no XIX, Molière. As
correspondência, entre 1770–1775, Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga,
devem ter sido aí divulgadas, em manuscritos.
revela o interesse com que se empenhou De autores brasileiros, ficou, como já men-
na manutenção da Casa de Ópera, tudo cionamos, o Parnaso Obsequioso de Cláudio
fazendo para assegurar a qualidade e Manuel da Costa, escrito para ser executado
variedade dos espetáculos. Ao mesmo com música, que foi encenado na Casa de
tempo em que agencia atores em Sabará Ópera de Vila Rica, em 1768. Cláudio, admira-
e no Tijuco, ele encomenda ou permuta dor de Metastásio, traduziu para o português
peças em Lisboa e na própria capitania, várias de suas óperas e seu texto revela uma
manda compor e copiar solfas, preocupa- clara influência do mestre italiano. O Parnaso,
-se com a emulação dos operistas de São em louvor ao aniversário de D. José Luís de
João del-Rei, além de cuidar de detalhes Menezes, Conde de Valadares, Governador
finais de pintura e decoração do teatro.24 e Capitão-General da Capitania de Minas
Gerais, resultaria, segundo Magaldi,
As Casas de Óperas são edificadas em várias
cidades (Sabará, São João del Rei, Tijuco, num coro das Musas e dos deuses olím-
Paracatu) a partir de 1770, assim como em picos em louvor do aniversariante, novo
outras localidades do território brasileiro, governador das Gerais. Estranharíamos
crescendo também o número de companhias o tom jubilatório da pequena obra se
teatrais em Minas e um maior intercâmbio en- ele não fosse norma em todas as mani-
tre elas. E de fato as casas fomentarão, a partir festações públicas da época. O elogio
de então, uma atividade teatral mais constante estende-se a todo o tronco dos Menezes.
e mais complexa em termos dos gêneros e O mérito teatral é escasso, num verso
formas teatrais nelas encenados, contribuindo duro, precioso e europeizante, que faz
também para a sofisticação na interpretação referência à “fereza” da terra.25
dos atores, a concepção do aparato cenográ-
fico próprio para a caixa teatral, a adaptação A importância de Cláudio para o teatro, no
dos textos dramatúrgicos e mesmo no estímu- entanto, vai muito além de seu texto, pois,
lo ao incipiente esboço de uma dramaturgia. como advoga Ávila, o poeta “se achou desde
Esta, um pouco mais adiante, principalmente cedo estreitamente ligado à história local do
na segunda metade do século XIX, encontra-
rá uma fértil realização, quando esse influxo
adentra a então capital do país, a cidade do 23 Cf. SOUSA, 1960, p. 109.
Rio de Janeiro, onde florescerão, além da dra-
24 ÁVILA,1978, p. 7.
maturgia, os ligeiros gêneros teatrais, princi-
palmente os de feitura cômico-musical, como 25 MAGALDI, 2004, p. 30.

157
teatro, seja como autor e tradutor, seja como aos espetáculos teatrais de circunstân-

UM TEATRO DE FORMAS HÍBRIDAS: BREVES NOTAS SOBRE A CENA EM MINAS NO SÉCULO XVIII   LEDA MARTINS
um dos incentivadores da criação da Casa de cia, já não falam mais em “três dias de
Ópera, ao tempo de Sousa Lisboa, e é admis- comédias” e sim em “três dias de ópe-
sível pensar que o êxito do empresário tenha ra pública”.29
decorrido em boa parte do interesse pessoal
do poeta”.26 No arrolamento que faz de sua No precioso livro O Teatro em Minas Gerais:
obra, em 1759, a lista de textos inclui, além da Séculos XVIII e XIX, Ávila reproduz, em
poesia, várias peças.27 Pesquisas documen- facsimile, alguns desses programas, dese-
tais tornam possível supor que outros poetas nhos de teatros, trechos de algumas obras,
inconfidentes, como Alvarenga Peixoto, Silva além de minuciosamente listar parte dessa
Alvarenga e, posteriormente, Lucas José de programação.
Alvarenga, também escreveram para o teatro.
A partir de 1770, a representação de A FUNÇÃO ATORAL: NEGROS E
óperas torna-se bastante constante e popular. MULHERES
Vale lembrar, como adverte Prado, que o
termo ópera no “contexto nacional, como É importante destacar, na atividade atoral da
no português, aplicava-se, se não a todas, época, a participação de vários extratos sociais
a qualquer peça que contivesse números que integravam as representações, sendo que
de canto, executados de conformidade o “nível social dos atores e cantores improvisa-
com os recursos musicais de cada cida- dos, de acordo com o grupo em que atuavam,
de”. E continua: compreendia desde negros alforriados e mu-
latos até estudantes, professores de primeiras
Ao contrário das peças espanholas, letras, funcionários públicos, caixeiros de lojas,
importadas a princípio, ao que parece, modestos negociantes e militares”.30 É co-
na língua original, as óperas italianas mum e bastante efetiva a participação regular
passavam sempre por Lisboa, de onde de negros como virtuoses na composição dos
já vinham traduzidas ou adaptadas, às elencos, em todos os papéis, mesmo nos de
vezes com títulos modificados e quase personagens brancos, assim como a parti-
sempre sem menção do autor, através de cipação de mulheres nos papéis femininos,
edições chamadas de “cordel” por serem rompendo a lógica de outros centros em que a
vendidas nas ruas ou ficarem expostas figura feminina era ainda representada por ho-
nas lojas por barbantes. Em literatura, o mens. Já nas Cartas Chilenas, Tomaz Antônio
vocábulo tomou logo um sentido popula- Gonzaga, atestara e defenestrara a participa-
resco e pejorativo. Mas em teatro, muitos ção de negros nas montagens, de forma pre-
autores, entre os mais ilustres, Molière, conceituosa. Em uma passagem emblemática
Voltaire, Goldoni (os três encenados das Cartas, ele deplora que, nas festividades
ocasionalmente no Brasil), encontravam promovidas pelo satirizado governante, “os três
em tais folhetos, graficamente pobres e mais belos dramas se estropiem, / repetidos
de duvidosa idoneidade editorial, um veí- por bocas de mulatos”.31 Em outro fragmento,
culo rápido e barato de difusão em língua ele assim versa o seu preconceito: “A ligeira
portuguesa.28 mulata, em trajes de homem, / Dança o quente
lundum e o vil batuque”.32
Ainda sob o privilégio de representações de
óperas, a partir da inauguração das casas de
espetáculo, afirma Ávila: 26 ÁVILA, 1978, p. 12.

27 Cf. SOUSA, 1960, p. 126.


embora com considerável defasagem, a
ópera foi francamente cultivada no Brasil 28 PRADO, 2012, p. 44.
na segunda metade do século XVIII. É a
29 ÁVILA, 1978, p. 9.
época em que surgem as Casas de Ópera,
a exemplo das do Padre Ventura no Rio 30 PRADO, 2012, p. 44.
de Janeiro e de Sousa Lisboa em Vila
31 GONZAGA, Carta 6, p. 842.
Rica. E a partir daí os programas oficiais
das festas gratulatórias, ao se referirem 32 Idem, p. 843.

158
Além da já costumeira atuação de negros tablados improvisados, seja nos palcos fixos
nos eventos cênicos, nos quais alguns se das Casas de Ópera. Esses eventos testemu-
tornaram famosos pela expertise na interpre- nham uma paisagem teatral expressiva, fabu-
tação dos papéis, havia também “grupos pro- losa no arranjo e composição dos espetáculos,
fissionais de atores e, inclusive, a participação, e variada no uso de formas e gêneros nos
revolucionária para o tempo, de mulheres quais se mesclam várias tradições.
nos elencos”.33 A participação emblemática Na sociedade colonial escravocrata, Prado,
de mulheres se tornaria uma das marcas assim como outros autores, aponta as três
do teatro em Vila Rica, tendo em vista que instâncias de poder que sustentaram a ativi-
essa inovação, que revolucionava “as regras dade teatral, a saber, “o Ouro, o Governo e a
de interpretação e a moral da época […] Igreja”. O Ouro, “símbolo da vida econômica”;
logo se consolidou, porquanto, quinze anos o Governo, que, estimulando a edificação das
depois, o grupo de artistas mulatos, tornado “Casas de Ópera”, formava “uma espécie de
famoso pela referência de Gonzaga, incluía cultura urbana” em volta das cortes, utilizan-
normalmente as figuras femininas de Violanta do o teatro como meio pedagógico da missão
Mônica, A. Fontes e Joana Maria”, atrizes que civilizatória e cívica; e a Igreja como um dos
se tornaram célebres em sua própria época.34 maiores interessados e grande agenciador.37
Apesar do modo pejorativo com que A festa, lugar e cenário por excelência do
Gonzaga se refere à participação de negros teatro e da teatralidade do espetáculo barroco,
nas atividades teatrais e mesmo da repetição seria também espaço simbólico cultural no
desse preconceito em parte da historiogra- qual geminaria, segundo Ávila, uma certa
fia moderna,35 o trânsito desses atores e ideia de identidade:
músicos pelas cidades sublinha certo grau de
profissionalização e de expertise de alguns essa carnavalização ou ruptura do senso
desses performers, pois eram eles requisita- de gravidade do mundo, seja na órbita
dos para atuar em produções teatrais mais material, seja nas projeções do espírito,
complexas em outras localidades de Minas e atuaria sempre como um indicador de
mesmo na cidade do Rio de Janeiro, que se mentalidade, no caso a mentalidade de
tornará, no século XIX, o grande centro produ- um complexo inter-racial caminhando
tor de teatro no Brasil.36 em seu ensaio de nacionalidade. Daí os
interstícios que a festa abriu entre nós,
CONSIDERAÇÕES FINAIS enquanto veículo de carnavalização, no
esquema das relações de poder, quer polí-
Podemos afirmar, sem risco, a partir dessa tico, quer religioso, deixando com isso de
breve descrição da atividade teatral em Vila atuar como mero instrumento ideoló-
Rica e em outras regiões de Minas, a presen- gico para significar, mais vincadamente,
ça pulsante do teatro, nas formas híbridas uma saída antropológica no terreno da
remanescentes das procissões e de outros interação entre diferentes componentes
gêneros da cena europeia medieval, além de étnicos da cultura e atitude existencial.
na modalidade de representações dramáticas Colocando num mesmo palco atores de
stricto sensu, nas quais predominavam peças fala e máscaras diversas como o colono
e adaptações de autores europeus, princi- de origem portuguesa, o trabalhador
palmente os espanhóis, assim como óperas negro e o remanescente indígena, ao lado
e operetas ao estilo de Metastásio, seja nos do fortuito elemento estrangeiro, a festa

33 ÁVILA, 2012, p. 167. desse transvestimento e da presen- brancos (black faces), mesmo em
ça atoral negra no protagonismo papéis de personas e figuras negras.
34 Idem, 1978, p. 10. da cena, exigindo a mudança que A presença do negro em carica-
segregará o ator negro à periferia turas grosseiras e grotescas de si
35 Cf. PRADO, 2012. do palco, até quase excluí-lo por mesmo prevalecerá, mesmo quando
completo, como ator e como protagonistas, por algum tempo,
36 No Século XIX, com a alçamento do personagem da cena, fazendo pre- nas comédias ligeiras e revistas
Rio de Janeiro como importância valecer, a partir de então e até a sua cômicas de início do século XX.
econômica e cultural, a sociedade contestação no século XX, a prática
branca, habitué do teatro, reclamará de se pintarem de preto os atores 37 PRADO, 2012, p. 51.

159
colonial brasileira ultrapassou um espaço

UM TEATRO DE FORMAS HÍBRIDAS: BREVES NOTAS SOBRE A CENA EM MINAS NO SÉCULO XVIII   LEDA MARTINS
tradicional de discurso de poder, buscan-
do concatenar em seu lugar um espaço de
discurso de identidade cultural.38

A festa, assim, regeria todo o complexo


cenário social colonial, movido pelo sistema
escravocrata, sua energia e força econômica
propulsora. Subjugada e politicamente de-
pendente de Portugal, esta sociedade estaria,
com o ouro exaurido e a opressão portuguesa
acirrando-se, em vias de ensaiar as revoltas e
insurgências que marcariam, de modo agôni-
co, as últimas décadas do século.
Como imagem icônica do período, na sua
variedade de formas e engenhosas realiza-
ções, o espetáculo cênico espelha a própria
teatralidade barroca que se esparge e se
reifica por todas as artes da época, recobrin-
do o alinhamento de elementos díspares, a
concentração e expansão do jogo lúdico de
linguagens e gêneros, o cromatismo orna-
mental das procissões, já recorrente no tônus
imagético da estatuária sacra, o perfil dramá-
tico e exuberante das composições visuais e
das partituras musicais, promovendo o êxtase
dos sentidos. Um teatro barroco de formas
híbridas, visualmente deslumbrante, ceno-
graficamente engenhoso, peculiar também
na concepção dos enredos, na criatividade de
figurinos e adereços, e inovador na atividade
atoral, da qual participavam negros e mulhe-
res, em papéis de protagonistas.
Nesses compósitos, cênicos por excelên-
cia, se manifestam a “vertigem do lúdico”, a
“abismação metafísica”, “o sensorial e o ma-
ravilhoso” do Barroco, conforme Ávila. E com-
põem eles, no nosso modo de percebê-los,
um teatro de formas e linguagens híbridas,
simultaneamente devocional e dionisíaco,
plasmando a estética e o gosto da sociedade
da época, nas pompas de seu apogeu e mes-
mo nas agruras de seu declínio.

38 AVILA, 2012, p. 179.

160
REFERÊNCIAS

ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Belo Horizonte: Centro de Estudos


Mineiros, 1967.
———. O teatro em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Ouro Preto: Secretaria Municipal
de Turismo e Cultura da Prefeitura Municipal de Ouro Preto & Museu da Prata da
Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, 1978.
———. O lúdico e as projeções do mundo barroco I: uma linguagem a dos cortes, uma
consciência a dos luces. 3ª edição, 1ª reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2012
(primeira edição, 1971).
GONZAGA, Tomaz Antônio. Cartas Chilenas. In: PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
A poesia dos inconfidentes – Poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás
Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.
HESSEL, Lothar Francisco. O teatro no Brasil da colônia à regência. Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1974.
MACHADO, Simão Ferreira. Triunpho Eucharistico. In: ÁVILA, Affonso. Resíduos
seiscentistas em Minas. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967.
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Global, 2004.
MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.
PRADO, Décio de Almeida. In: FARIA, João Roberto de (Dir.). História do Teatro no Brasil.
v. 1. São Paulo: Perspectiva, Edições SESCSP, 2012.
SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do distrito diamantino. 3ª edição. Rio de
Janeiro: O Cruzeiro, 1956.
SEIXAS SOBRINHO, José. O teatro em Sabará, da Colônia à República. Belo Horizonte:
Editora Bernardo Álvares, 1961.
SOUSA, J. Galante de. O teatro no Brasil. v. 1. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,
1960.

161
O EROTISMO
DAS MINAS E O
FEMININO DE
NINGUÉM
LUCIA CASTELLO BRANCO o texto refere-se ao real
como se tivesse
a forma de um rapaz;

mas, se a forma fosse outra,


a de uma rapariga, por exemplo,
pergunto-me ainda
se, no lugar cavo do seu sexo,

não deveria repousar


em permanência,
a mão direita de sua mãe.1

1 LLANSOL, Maria Gabriela. Onde


vais, Drama-Poesia? p. 172.

162
O que significa nascer nas Minas? O que pode Aquele movimento era um misto de subs-
significar nascer menina? O que significa nas- tância viva, aragem firme, e luz trémula.
cer mulher e escritora? São estas as questões Passou por mim foi o que pensou mais
que me ocorrem, quando, ao me debruçar so- tarde, e guardou como expressão exacta
bre o erotismo na literatura mineira, escolho um porte altivo e um vestido ao vento. Não
falar delas, as meninas, num deslocamento é correcto dizer que Aossê nunca a viu.
que pretende ir do que um dia chamei de Vira-a, mas sem o rosto. Normalmente, é
escrita feminina2 para o que depois venho verdade que o verbo ver alguém supõe um
chamando, inspirada em Maria Gabriela rosto, conhecido ou a conhecer. Não vira
Llansol, de feminino de ninguém.3 ninguém é correcto, mas vira ninguém
Este “de ninguém”, que aqui pretende não é menos próprio: um rosto sem rosto.
funcionar como um duplo genitivo, vamos Fora-lhe mostrado — dir-se-ia — à medida
pensá-lo, já de início, como um feminino que das suas posses […]
não é do masculino, que não é da mulher, mas Deram-lhe um feminino de ninguém a
como um feminino do qual a mulher também ver. Viva, veloz, livre, altiva.5
faz parte: não todas as mulheres, não toda
mulher, a mulher não toda.4 Mas esse “nin- Assim, quando se pensa no feminino de
guém”, na obra de Maria Gabriela Llansol, na ninguém, na obra de Llansol, é preciso pensar
figura do feminino de ninguém, tal como ela em Pessoa-personne, essa “máscara de
o nomeou, refere-se também à poesia, pois ninguém”.6 E, a partir desse poeta para quem
trata-se de um feminino que ela conferiu ao a poesia não era uma arte lírica, mas dramá-
falcão Aossê, figura que deriva, como o nome tica,7 a partir desse poeta que, à sua maneira,
anagramático o sugere, de Fernando Pessoa. encarnava a própria poesia, é possível pensar
Sabemos que Fernando Pessoa, ten- no feminino de ninguém, não exatamente
do gerado mais de setenta heterônimos e como um feminino concedido por Llansol ao
centenas de poemas, não se deteve, em sua poeta, mas à própria poesia. A poesia como
obra, nem na figura do feminino, nem na um campo contíguo ao feminino, o feminino
temática do amor, como é comum na poesia expandido ao campo da poesia ​—​ não teria
ocidental. Assim, a Pessoa corresponderá, sido isso o que, de alguma forma, Freud
na obra de Llansol, um feminino de ninguém, vislumbrou, quando indicou que era preciso
não referido ao masculino, mas antes a uma perguntar aos poetas o que não era possível
ausência de masculino, ou mesmo de pessoa desvendar acerca do feminino?8
(agora com minúsculas), a um para além do Eis o que também pretendemos abordar
humano, talvez. Vejamos como isso se dá, em neste texto, no campo da poesia expandida:
Lisboaleipzig: o erotismo na obra de duas poetas e uma
escritora que se deixa atravessar pelo poético,
Passeava-se distraidamente por Lisboa em sua experiência com os limites da lingua-
quando passou por ele uma mulher nova. gem. Refiro-me a Adélia Prado, Laís Corrêa
Sentiu-lhe os seios baterem livres contra de Araújo e Maura Lopes Cançado. Nesse
a camisa, as pernas e o garbo da garupa percurso pelo erotismo nas obras dessas au-
(não tinha palavra melhor) caminharem toras, sugiro que há um caminho que se traça
sem entraves como luzes fátuas vistas na da escrita feminina ao feminino de ninguém.
luz translúcida de um balão veneziano. Vejamos como ele se desenha.

2 A esse respeito, ver BRANCO, Lucia 5 LLANSOL, 1994, p. 37. 8 A esse respeito, ver FREUD,
Castello. O que é escrita feminina. Sigmund. Feminilidade. In: ———.
6 Faço referência, aqui, ao belo ESB. p. 134: “Se desejarem saber
3 A esse respeito, ver BRANCO, Lucia ensaio de Leyla Perrone-Moisés, mais a respeito da feminilidade, in-
Castello. In: fiodeaguadotexto. “Pessoa, ninguém?”. In: PERRONE- daguem da própria experiência de
wordpress.com/2019/03/31/a-luta-​ -MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: vida dos senhores, ou consultem
cotidiana-pelo-fulgor-13 além do eu, aquém do outro. os poetas.”

4 Refiro-me, aqui, à lógica do nãoto- 7 A esse respeito, ver PESSOA,


do, trabalhada por LACAN, Jacques. Fernando. Os graus da poesia lírica.
O Seminário. Livro 20. Mais, ainda.

163
O EROTISMO DAS MINAS Pensemos no erotismo dos corações

O EROTISMO DAS MINAS E O FEMININO DE NINGUÉM   LUCIA CASTELLO BRANCO


como aquele que, por sua qualidade de
Para pensarmos o erotismo na literatura, êxtase, mas de êxtase lúcido, ou de lucidez
façamos um retorno a Bataille, escritor que extática, mais se aproxima da poesia e dos
se interessou radicalmente pela questão, seja versos de Rimbaud citados por Bataille, na
em romances exemplares do gênero, como apresentação de seu livro: “C’est la mer allée
História do olho, seja na teoria que construiu avec le soleil”. “É o mar alado com o sol” ​
sobre a questão, e que se apresenta em livros —​ arriscamo-nos a traduzir, em monstruosa
que se tornaram clássicos, como O erotismo, literalidade, buscando unir, numa só imagem,
seja ainda em outros de seus ensaios, como o céu e o mar.10 E lembremo-nos de que, para
A experiência interior, em que investiga a ex- Bataille, “a poesia nos leva ao mesmo ponto
periência mística, que mantém, segundo ele, que cada forma de erotismo, à indistinção, à
íntima articulação com o erotismo. confusão dos objetos distintos”.11
Para Bataille, o erotismo pode se apresen- Nesse ponto de indistinção, mas também
tar em três vertentes: o erotismo dos corpos, o no ponto de uma lucidez extática, gostaria de
erotismo sagrado e o erotismo dos corações. localizar, em conjunto, o erotismo na poesia
Neste último, ele não se detém muito, em O de Adélia Prado e Laís Corrêa de Araújo, e
erotismo, mas o suficiente para sabermos ainda na escritura de Maura Lopes Cançado.
que, no erotismo dos corações, Sempre no feminino, quase sempre na dicção
do que podemos chamar de escrita feminina,
o ser amado não escapa mais, ele é mas nem sempre na dicção do que chama-
apreendido, na vaga lembrança de remos de feminino de ninguém, buscare-
possibilidades sucessivas que surgem mos situar a produção de cada uma delas,
na evolução do erotismo. O que abre separadamente.
sobretudo a consciência clara a essas pos- De qualquer maneira, tomando-as em
sibilidades diversas, inscritas no longo conjunto, sob o recorte do erotismo, como
desenvolvimento que vai até o poder da uma pequena amostragem da produção
profanação, é a unidade dos momentos literária feminina em Minas Gerais, não busco
extáticos, abrindo os seres descontínuos reuni-las em um grupo, mas tomá-las uma
ao sentimento da continuidade do ser. a uma. Afinal, como bem observou Lacan,
Uma lucidez extática é acessível a partir “não há A Mulher”,12 com o artigo definido
daí, ligada ao conhecimento acerca dos que possa designar o universal. O que há é
limites do ser.9 uma mulher, outra mulher, outra mulher. De
maneira análoga, podemos pensar a poesia
Partindo do pressuposto de que o erotismo feminina. Ou, nas palavras da própria Adélia
é justamente o impulso que nasce da tensão Prado: “mulher é desdobrável”.13
entre o contínuo e o descontínuo, entre a Tampouco parece-me possível reuni-las
vida e a morte, Bataille, em uma nota um sob o rótulo de mineiras, como se o nasci-
tanto enigmática, distingue o erotismo dos mento em Minas Gerais pudesse determinar
corações dos demais, por este apontar para esta ou aquela dicção. Quando penso em
uma certa “unidade dos momentos extáticos”. uma, gosto de pensar, sobretudo, nas minas:
Parece haver, no erotismo dos corações, “uma as meninas e as minas. Como, talvez, possa-
lucidez extática”. E essa lucidez se deve, justa- mos ler nos versos de Laís: “Certas partes do
mente, a um certo “conhecimento acerca dos corpo / que bem que sonorizam: / ​—​ púbis,
limites do ser”. hímen, vagina ​—​ / palavras que balizam /

9 BATAILLE, Georges. L’Érotisme. 10 A literalidade, aqui, vai na mesma 11 BATAILLE. L’Érotisme, p. 32.
p. 142. Nota 1. [Tradução minha] direção proposta por Llansol, em
sua tradução de Rimbaud para 12 LACAN, Jacques. O Seminário.
este mesmo verso: “C’est la mer Livro 20. Mais, ainda.
allée avec le soleil”. Na tradução
de Llansol, lemos: “É o mar a ir-se / 13 PRADO, Adélia. Com licença
alado com o sol”. In: RIMBAUD, poética. In: ———. Adélia Prado.
Arthur. O rapaz raro. p. 223. Poesia Reunida. p. 17. [Bagagem]

164
a encoberta mina”.14 Quando penso em outra, Esta, que não pretende escrever na dicção
prefiro pensar nos campos gerais: a monta- feminina, um dia escreveu: “Entre as pernas
nha estrada com o sol. Como leio em Maura: geramos e sobre isso / se falará até o fim sem
“Mas existo desmesuradamente, como janela que muitos entendam: / erótico é a alma.” 20
aberta para o sol”.15 Admitamos, então, que esta que fica entre
Entre umas e outras, a poesia expandida, montanhas conheça alguma coisa sobre
reencontrada em sua dimensão de eternida- “Deus e o Gozo d’A Mulher”.21
de, como nos versos de Rimbaud, recortados No Seminário 20, na lição proferida em
por Bataille: “Ela nos leva à eternidade, ela 20 de fevereiro de 1973, Jacques Lacan,
nos leva à morte e, pela morte, à continui- dedicando-se a pensar o gozo feminino,
dade: a poesia é eternidade. É o mar alado situou-o no campo do inominável, como um
com o sol.” 16 gozo em Deus. “E por que não interpretar uma
face do Outro, a face Deus, como suportada
FICO ENTRE MONTANHAS: pelo gozo feminino?” 22 Inspirado pela leitura
ADÉLIA PRADO de poetas místicos, como Santa Teresa de
Ávila, Hadewich d’Anvers e San Juan de la
Digamos que ela se apresente assim: como Cruz, bem como por sua interpretação acerca
um contraponto a Carlos Drummond de da função do amor cortês na poesia medieval,
Andrade. Por isso, o primeiro poema que abre Lacan situaria o gozo feminino como além
seu primeiro livro publicado, Bagagem, já do falo, além do simbólico, ou, se quisermos
possa anunciar: “Vai ser coxo na vida é mal- acompanhar de perto o pensamento de
dição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu Bataille, no campo do “erotismo sagrado” e da
sou.” 17 Mas, se a licença poética vai ao ponto “experiência interior”. “É claro que o testemu-
de opor o homem coxo à mulher desdobrável, nho essencial dos místicos é justamente o de
isso não garante que ela se sinta confortável dizer que eles experimentam, mas não sabem
em sua posição. Talvez por isso, apesar disso, nada dele”.23
Adélia Prado, em suas entrevistas, nunca Curiosamente, é a poesia, além do diário,
tenha reconhecido escrever numa dicção o gênero que mais comportará a dicção
feminina e nunca tenha verificado qualquer desse erotismo sagrado em que consiste a
diferença no texto escrito por mulheres.18 experiência mística. E isso, creio, não se deve
Mas ela admite que “fica entre monta- prioritariamente ao fato de a poesia suposta-
nhas”. E escreve: “Quis fazer uma saia longa mente fazer parte do gênero lírico, em que a
para ficar em casa, / a menina disse: ‘Ora, primeira pessoa parece ter lugar privilegiado,
isso é pras mulheres de São Paulo’. / Fico mas sobretudo ao que Silvina Rodrigues
entre montanhas, / entre guarda e vã, / entre Lopes chamou de “anomalia poética”.24 O
branco e branco, / lentes para proteger de poema, como anomalia, escreve-se para além
reverberações.” 19 Resta investigarmos se o do princípio da não contradição e permite que
erotismo entre montanhas mantém encober- uma coisa se afirme, ao mesmo tempo, como
tas as minas. o que é e o contrário de si mesma.

14 ARAÚJO, Laís Corrêa. Vocabulário. por Luis Rebinski se haveria “gran- 20 Idem. Disritmia. In: ———. op. cit.,
In: ———. Inventário. p. 123. des diferenças entre a poesia p. 46. [Bagagem]
[Decurso de prazo] escrita por homens e a produzida
por mulheres”, ela respondeu: 21 LACAN. O seminário. Livro 20.
15 CANÇADO, Maura Lopes. Hospício “Nenhuma, se homem ou mulher Mais, ainda. pp. 87–104: Deus e o
é Deus. Diário 1. p. 92. estão fazendo poesia mesmo. A gozo d’A Mulher.
diferença, eventualmente, será
16 BATAILLE. L’Érotisme. p. 32. na casuística do poema, visão do 22 Ibid., p. 103.
A tradução é minha. mundo, experiências.” In: <candido.
bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/ 23 Ibid.
17 PRADO. Com licença poética. In: conteudo.php?conteudo=1081>
———. op. cit., p. 17. [Bagagem] 24 LOPES, Silvina Rodrigues.
19 PRADO. A invenção de um Anomalia poética.
18 A esse respeito, ver a entrevista de modo. In: ———. op. cit., p. 27.
Adélia Prado ao jornal Cândido, da [Bagagem]
Biblioteca Pública do Paraná, inti-
tulada “Sem ponto final”. Indagada

165
É assim que leremos, na poesia de Adélia ressonância singular e se abre para o todo

O EROTISMO DAS MINAS E O FEMININO DE NINGUÉM   LUCIA CASTELLO BRANCO


Prado, que “é em sexo, morte e Deus / que das outras palavras […]
eu penso invariavelmente todo dia. / É na Por que querer o Aberto, essa pleni-
presença dele que eu me dispo / e muito mais, tude da percepção, e qual é a sua signi-
d’Ele que não é pudico / e não se ofende com ficação? O aberto responde a um querer,
as posições no amor.” 25 Mas leremos tam- como escreve Rilke:
bém que “De dentro da geometria / Deus me “[…] mais ainda que a planta ou o ani-
olha e me causa terror.” 26 mal, corremos esse risco, nós o queremos”
Parece-nos, então, que essa insistência Este querer que quer a afirmação, a
em Deus, na poesia de Adélia, por si só não aceitação do todo, é essa procura ativa
faz de seus poemas a expressão do gozo d’A de um tudo receber, de uma passividade,
Mulher, mas antes os coloca na posição de que se relaciona assim com aquilo que
um feminino que não abre mão do falo, bem é próprio do feminino. Falar aqui do
como não ultrapassa as barreiras da inter- feminino pode parecer surpreendente
dição. Apenas as levanta, tenuemente, para para quem conhece a vida de Rilke. Sem
gozar, não na dimensão de um “mais além”, dúvida, mais valeria falar de um gozo em
como reivindica Lacan para o gozo feminino, excesso, eu é próprio do feminino, mas
não na dimensão do “Aberto”, em que esse não apenas da mulher, gozo que está para
gozo se situaria,27 mas na paisagem fecha- além do falo, para além da significação.
da de quem vive entre montanhas. Assim: O querer do Aberto procura esse gozo,
“Da parte do Altíssimo te concedo / que não porque seu ato se estabelece mais além
descansarás e tudo te ferirá de morte: / o da significação fálica: eis porque ele pode
lixo, a catedral e a forma das mãos. / Ave, ser aparentado ao feminino.29
cheio de dor”.28
Não é possível localizar aí, em tanto apelo Sabemos que, quando Pommier define o
a Deus, a face do inominável ou mesmo feminino como uma posição com relação
sua face de real. Localiza-se, sim, a face ao simbólico, ele está sendo rigorosamente
do pecado, do interdito e da morte. Mas a lacaniano, que, por sua vez, foi buscar na
morte, aqui, não aponta, nem propriamente mística essa posição de um gozo “mais
para a “unidade dos momentos extáticos”, além” para situar o feminino, no Seminário
nem exatamente para a continuidade face 20. Esse gozo “a mais”, ou “gozo em Deus”,
à descontinuidade, mas tão somente para a segundo Pommier, pode lançar o feminino à
punição e para a expurgação de um pecado: experiência do Aberto, que aqui aproximamos
“pensar em sexo, morte e Deus”… “invariavel- do verso de Rimbaud ​—​ “o mar alado com o
mente todo dia”. sol” ​—, na tentativa de acercarmo-nos do que
De toda maneira, esta posição já signi- Bataille situará como encontro do erotismo
fica, no contexto de uma literatura feminina, com a poesia.
alguma abertura: “é em sexo, morte e Deus / Digamos que Adélia Prado, em sua poesia,
que eu penso invariavelmente, todo dia”. E é revela saber desse gozo, em momentos como
mesmo do “Aberto” que se trata, quando nos este: “Tudo pulsando à revelia de mim, / bom
acercamos do erótico ​—​ “o mar alado com o como um ingurgitamento não provocado do
sol” ​—​  e do feminino: sexo. / A pura existência.” 30 Em momentos de
“pura existência” em que tudo pulsa, inclusive
O Aberto aparece quando tomo a palavra o sexo, algo desse Aberto se manifesta, ali,
no côncavo de minha mão, e aguardo na superfície do poema. Mas há momentos
[…] A palavra presa na mão ecoa por sua em que essa poesia justamente interdita a

25 PRADO. O modo poético. In: ———. 27 A respeito do “Aberto” em sua rela- 28 PRADO. Anunciação ao poeta. In:
op. cit., p. 60. [Bagagem] ção com o feminino, ver POMMIER, ———. op. cit., p. 53. [Bagagem]
Gérard. O aberto, até onde as
26 Idem. Duas maneiras. In: ———. palavras podem nos transportar. 29 POMMIER. op. cit., p. 100.
op. cit., p. 55. [Bagagem] In: ———. A exceção feminina, os
impasses do gozo. pp. 94–104. 30 PRADO. Vitral. In: ———. op. cit.,
p. 113. [O coração disparado]

166
experiência do Aberto, o que se dá a ver, niti- feminina. O que não significa, entretanto,
damente, em poemas como este: um alheamento estético da poeta a ques-
tões relativas à sua experiência enquanto
As galinhas com susto abrem o bico mulher. Pelo contrário, temas relaciona-
e param daquele jeito imóvel dos ao corpo, ao desejo, à memória e ao
— ia dizer imoral ​— , cotidiano familiar são recorrentes em sua
as barbelas e as cristas envermelhadas, poesia, só que atravessados pelos movi-
só as artérias palpitando no pescoço. mentos da ironia, da metalinguagem, da
Uma mulher espantada com sexo: experimentação de formas e da lucidez
mas gostando muito.31 crítica, como veremos mais adiante.34

Assim, para esta mulher que se espanta com Concordando inteiramente com a leitura de
sexo, embora goste muito, diremos que ela Esther Maciel, gostaríamos, no entanto, de
tem razão: não é da escrita feminina que se investigar em que medida, mesmo não se
trata, aqui. Mas, para a mulher que não se es- confinando “ao horizonte do que se conven-
panta com a experiência do todo e com o que- cionou chamar de poesia feminina”, Laís
rer do Aberto, com o “tudo pulsando” à revelia aproxima-se, em diversos momentos, do que
de si mesma, diremos que a escrita feminina designamos, em trabalhos anteriores, como
existe. Ex-siste: para além da mulher, para escrita feminina.
além de si mesma, como “a pura existência”. Já de início, podemos sublinhar as referên-
Vejamos onde a poderemos, talvez, encontrar. cias, em muitos de seus livros, a “eminentes
Quem sabe na própria materialidade das pa- representantes femininas da poesia ociden-
lavras: aquém da mulher, ou para além dessa tal”: “Santa Teresa de Ávila, Emily Dickinson,
“espécie ainda envergonhada”.32 Gabriela Mistral, Gertrude Stein, Rosalía
de Castro, Cecília Meireles e Henriqueta
A CONCHA ABRIGA O MOVIMENTO: Lisboa”.35 Isso, por si só, traça uma linhagem
LAÍS CORRÊA DE ARAÚJO poética, mas não necessariamente a filia
à vertente da escrita feminina, já que esta,
Com uma poesia bastante diferente da- em nosso entender, não se define pelo sexo
quela de Adélia Prado, Laís Corrêa de biológico do autor, mas por sua posição com
Araújo, como observa Esther Maciel, sofre relação ao simbólico:
do “pathos da lucidez”.33 É verdade que
esse “pathos da lucidez” não se aproxima O que Lacan assinala, ao afirmar que “não
necessariamente da “lucidez extática”, há relação sexual”, é que, entre o homem
sublinhada por Bataille, no que se refere ao e a mulher, não se dá de fato a tão alme-
erotismo dos corações. Ao contrário, esse jada complementaridade, que se pode
pathos pode inclusive afastar a poesia de depreender, por exemplo, da expressão
Laís da chamada dicção poética feminina. “cara-metade”, fundada no mito platônico
Ou, nas palavras da crítica, do andrógino.

Pode-se afirmar que, ao longo de toda sua


trajetória poético-intelectual, iniciada
com a publicação do livro Caderno de 31 PRADO. Dia. op. cit., p. 139.
[O coração disparado]
Poesia, em 1951, Laís nunca deixou de
causar estranhamento e inquietação. Não 32 PRADO. Com licença poética.
bastasse sua atuação fora dos limites op. cit., p. 17. [Bagagem]

socialmente demarcados para as mulhe- 33 MACIEL, Maria Esther. O


res de seu tempo ​—​ haja vista sua imensa pathos da lucidez: a trajetória
militância também nos campos da crítica poético-intelectual de Laís Corrêa
de Araújo. In: ARAÚJO, Laís Corrêa.
literária, da tradução e do jornalismo cul- Inventário. pp. 219–31. [Posfácio]
tural, sempre a partir de uma perspectiva
irônica não complacente ​— , a sua dicção 34 Ibid., p. 221.

poética nunca se confinou ao horizonte 35 MACIEL. In: ARAÚJO. op. cit.,


do que se convencionou chamar de poesia p. 222.

167
A adoção dessa perspectiva da su- Para calcular

O EROTISMO DAS MINAS E O FEMININO DE NINGUÉM   LUCIA CASTELLO BRANCO


plência é fundamental para entendermos o valor de B
a noção de escrita feminina que preten- basta saber que
demos desenvolver aqui. Porque, muitas as forças de ação e reação
vezes, estaremos falando de alguns traços têm módulos iguais e são
dessa escrita que se distinguem do discur- diretamente opostas
so oficial de maneira nada óbvia, nada — seios contra corpo.
evidente, mas apenas por algum “a mais”,
ou algum “a menos” que eles introduzem, Para calcular
com relação a esse discurso. o valor de C
De qualquer forma, o que se pretende basta concluir a
sugerir neste texto ​—​ e neste capítulo, em lei da inércia
especial ​—​ é certamente ambíguo e inquie- (mera hipótese)
tante. Sugere-se que o feminino não é a com que a concha
mulher, mas a ela se relaciona. Sugere-se abriga o movimento.38
que o feminino é o não-masculino, mas a
ele não se opõe.36 Afastando-se radicalmente do que se
convencionou chamar de poesia feminina
Ao esforço de Lacan para desenvolver um e aproximando-se ironicamente do campo
pensamento para além da complementarida- da ciência ​—​ a geometria, pelo título e pelo
de, com seu aforismo “Não há relação sexual” desenho do poema; a termostática, pelo título
(no sentido de proporção entre os sexos, entre da coletânea: Erostática ​—, campo conven-
os seres falantes), corresponde o meu esforço, cionalmente reservado ao masculino, Laís nos
em 1991, para tentar cunhar o conceito de fornece, em seu poema, um preciso desenho
escrita feminina. Mais tarde, quando en- do gozo feminino, esse gozo que se localiza
contrei o feminino de ninguém, no texto de mais além da ação e da reação, mais além da
Maria Gabriela Llansol, vi nessa figura algo complementaridade: no infinito. E, ainda, ao
do que eu procurava figurar, nessa época, questionar a lei da inércia, reserva à concha
com o feminino no campo da negatividade: “o (e, portanto, ao feminino) o lugar de abrigo
não-masculino”. A essa questão retornare- do movimento.
mos mais adiante, com a leitura da prosa de De maneira isomórfica, é também este o
Maura Lopes Cançado. ritmo do poema: aparentemente estático, ele
Por ora, pensemos na escrita femini- se desenvolve no movimento mesmo do gozo
na como aquela que não é exatamente da feminino, em direção ao “mais além”; de uma
mulher, mas a ela se relaciona. A ela e àquele posição estática para uma posição erostáti-
ser falante “que se alinha sob a bandeira das ca, que abriga o movimento; de uma energia
mulheres”, como proferiu Lacan.37 Digamos aparentemente fria, “calculista”, para o abrigo
que Laís Corrêa de Araújo, em sua poesia, “se quente da concha; de uma dicção aparente
alinha sob a bandeira das mulheres”. Mes- seca, econômica, para uma sugestão de
mo (e sobretudo) quando não se confina “ao umidade e de mistério, que reside na imagem
horizonte do que se convencionou chamar de ancestral da concha, como guardiã do segre-
poesia feminina”. E talvez seja exatamente do e das secreções.
aí, quando não se confina a esse horizonte, E esta é a dicção não só de uma seção
que ela, de fato, se expresse na dicção do que do livro Decurso de prazo, intitulada “Eros-
chamamos de escrita feminina: quando “a tática”, mas de grande parte de seus po-
concha abriga o movimento”. Assim: emas: uma dicção que, não se opondo ao

Para calcular
o valor de A
36 BRANCO. O que é escrita feminina.
basta saber que duas linhas paralelas p. 27.
só se encontram no
infinito 37 LACAN. op. cit., p. 98.

— instante de gozo. 38 ARAÚJO. Geometria. In: ———.


op. cit., p. 124. [Erostática]

168
masculino, desenha-se radicalmente como o folha de papel é ainda, e mais além, o ovo, a
não-masculino. Como no poema abaixo, em forma irretocável do branco sobre o branco:
que a materialidade do significante é privile-
giada, sem se recair exatamente na dicção do Curvar a espinha
poema concreto, pois que o texto é atraves- sobre o papel
sado pelo “Aberto” da palavra, esta “vida que
carrega a morte e nela se mantém”:39 Tentar preencher
o branco
Gosto das palavras
infecto e nauseabundo com a clara de ovo
— palavras que silabam de Colombo42
em rude contraponto
a avaria do mundo. Em eterno retorno, ela retoma o ponto de
onde partiu, em Caderno de Poesia, em 1951:
De umas palavras quentes “Se a vida é a vida, / deixem-me tomar um
— casa, cama, mesa — banho de sol, / começar outra vez de branco”.
que encampam pretéritos E o côncavo se desenha também aí, nesse
e futuros presentes movimento que só a concha abriga, em sua
em sua reta clareza. promessa de abertura e fechamento. Eis a
erótica de Laís Corrêa de Araújo, sua erostáti-
Certas partes do corpo ca escrita feminina.
que bem que sonorizam:
— púbis, hímen, vagina — SÓ, SURGINDO DA AREIA:
palavras que balizam MAURA LOPES CANÇADO
a encoberta mina.
A esta que agora se apresenta em compasso
E gosto de orgasmo de prosa chamaremos também poeta. Pois
palavra atravessada é na dimensão da poesia expandida que a
como um espinho agudo leremos: em seu diário, Hospício é Deus, e
que rastejante lateja em seus contos reunidos num volume que se
um momento de pasmo. intitula O sofredor do ver. São contos escritos
na mais fina dicção do que se convencionou
Também gosto de enfarte chamar de “prosa poética”, mas isso é pouco
— palavra lancinante para o que se escreve ali. Como é pouco dizer
que quando se presenta que Hospício é Deus é um diário escrito como
nem se diz ​—​ e parte registro “de sua passagem pelo Hospital
a vida num instante.40 Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, entre
o fim de 1959 e o começo de 1960 (onde, ao
Haverá maneira mais contundente de se todo, a autora foi internada pelo menos doze
afirmar “a aprovação da vida até na morte”?41 vezes, sem contar outras clínicas)”.43
Assim Georges Bataille define o erotismo,
nas primeiras linhas de abertura de seu livro.
E haverá maneira mais material de querer o
39 BLANCHOT, Maurice. A literatura e
Aberto? Lembremos das palavras de Pommier o direito à morte. In: ———. A parte
sobre tomar a palavra no côncavo da mão e do fogo. p. 344.
aguardar… Ocorre que, na poesia de Laís, o
40 ARAÚJO. Vocabulário. In: ———.
côncavo não é apenas o da mão, mas tam- op. cit., p. 123. [Erostática]
bém o das imagens que as palavras por ela
escolhidas sugerem: “púbis, hímen, vagina”. 41 BATAILLE. op. cit., p. 17.

O que se evoca aqui, como se observa na 42 ARAÚJO. Ofício 1. In: ———.


epígrafe de Llansol, é o “lugar cavo do sexo op. cit., p. 167. [Ossos do ofício]
feminino”, fazendo do poema uma forma
43 MEIRELES, Maurício. Perfil Biográ-
também côncava, onde deve repousar a mão fico. In: CANÇADO, Maura Lopes.
de uma mulher. E o que ela desenha sobre a Hospício é Deus. p. 218.

169
Também parece-nos pouco dizer que, escadarias de mármore antigo, às mãos lon-

O EROTISMO DAS MINAS E O FEMININO DE NINGUÉM   LUCIA CASTELLO BRANCO


nesse livro, “Deus também pode ser o Inferno, gas do outro, que a levam “para não sei onde”,
ou o Hospício”.44 Evoquemos, aqui, a lição nessa paisagem de “um branco sem fim”. A
de Lacan no dia 20 de fevereiro de 1973, em esse lugar, que é “não sei onde” ou “não se
seu Seminário 20, intitulado Encore, Mais, sabe o quê”, chamemos, com Maura Lopes
ainda.45 E situemos esse “Deus” do hospício Cançado e com Jacques Lacan: Deus.
de Maura no espaço “mais além” em que Ora, sabemos que esse lugar do inominá-
Lacan situa o gozo feminino: “E por que não vel, no contexto de Hospício é Deus, é também
interpretar uma face do Outro, a face Deus, o da psicose. E que a psicose, o feminino e a
como suportada pelo gozo feminino?” mística se caracterizam justamente por sua
De fato, dentre as poetas aqui reunidas, proximidade ao campo do que Rilke chamaria
Maura Lopes Cançado é aquela cujo texto o “Aberto”, que é também, como vimos, o
mais se situa no campo “mais além” do femi- campo da poesia e do erotismo. Curiosa-
nino. Sobre esse campo que circunscreve um mente, é também a posição do sujeito com
gozo a mais, ela não sabe dizer muito. Afinal, relação a esse campo o que distingue a psico-
como observa Lacan acerca dos místicos (e se, o feminino, a mística e a poesia. Tanto na
da mulher), “eles experimentam a ideia de que mística quanto no feminino, e ainda na poesia,
deve haver um gozo que esteja mais além”.46 segundo Pommier, parece haver uma espécie
Mas o seu testemunho essencial é “justamen- de consentimento com relação à entrada nes-
te o de dizer que eles o experimentam, mas se campo, enquanto na psicose essa entrada
não sabem nada dele”.47 é vivida, pelo sujeito, como uma invasão: uma
De toda maneira, mesmo não dizendo invasão do Aberto. Nas palavras do autor, “só
nada sobre esse gozo, é nessa dicção do femi- a falta de ato diferencia uma mulher ou um
nino que o erotismo ​—​ e, mais propriamente, poeta da loucura: o ato os distingue da psico-
o que Bataille chamou de “erotismo dos cora- se”.49 “É preciso o ato, o ‘dizer sim’ de alguém,
ções” ​—​ se apresenta, no texto da autora: do poeta”.50
Digamos que Maura Lopes Cançado não
Estou de novo aqui e isto é _________ diz sim. Nem não. Mas talvez diga, na dicção
Por que não dizer? Dói. Será por isto finíssima de quem sabe do Aberto, algo
que venho? — Estou no hospício, deus. E sobre o feminino de ninguém. Esse feminino,
hospício é este branco sem fim, onde nos figurado por Llansol apenas uma vez em sua
arrancam o coração a instante, trazem- textualidade, nós o aproximamos daquilo que
-no de volta e o recebemos: trêmulo, a autora designou como o terceiro sexo, o
exangue ​—​ e sempre outro. Hospício são sexo da paisagem. Sobre esse sexo, sabemos
as flores frias que se colam em nossas que ele é tão complexo quanto o do homem e
cabeças perdidas em escadarias de már- o da mulher. Mas também sabemos que, para
more antigo, subitamente futuro ​—​ como a textualidade, esse sexo abre uma outra pos-
o que não se pode ainda compreender. sibilidade. E talvez ela tenha algo a ver com o
São mãos longas, levando-nos para Aberto da poesia e do erotismo:
não sei onde ​—​ paradas bruscas, corpos
sacudidos se elevando incomensuráveis: Tudo participa das diversas partes: a boca,
Hospício é não se sabe o quê, porque a copa frondosa, o cogumelo, a falésia,
Hospício é deus.48 o mar, a erva rasteira, a leve aragem, os
corpos dos amantes. Os três sexos que
Os corpos sacudidos e incomensuráveis movimentam a dança do vivo: o homem,
se misturam, quase que sem contorno, às a mulher, a paisagem.

44 JARDIM, Reynaldo, citado por 46 Ibid., p. 102. 50 Ibid.


MEIRELES. Perfil Biográfico. In:
CANÇADO. op. cit. 47 Ibid., p. 143.

45 LACAN. O Seminário. Livro 20. 48 CANÇADO. Hospício é Deus, p. 26.


Mais, ainda. pp. 87–104: Deus e
o gozo d’A Mulher. 49 POMMIER. op. cit., p. 102.

170
Esta é a novidade: a paisagem é o ter- em branco. Rosas, vermelho das rosas,
ceiro sexo. A paisagem não tem um sexo grave depois, e mais ​—​ quando se movem
simples. Nem o homem, nem a mulher.51 em sangue.
ROSAS54
Também para Lacan o terceiro sexo se apre-
senta como uma outra possibilidade, mas Como num poema, as rosas se destacam,
esta não poderia subsistir diante dos outros sozinhas, em caixa alta. O corpo, descoberto
dois sexos. Ou, nas palavras do psicanalista, ainda, cobre-se de rosas. É um corpo branco,
“isso se explica mal”: tornado vermelho pelas rosas que caem. Mas
não é, certamente, um corpo morto, embo-
Não há relação sexual, é o que tenho ra atravessado pela morte. “Obrigada pela
enunciado. O que é recolocado ali? Dado minha vida”, ouvimo-lo dizer. Enquanto a
que todos os que se entendem por gente, paisagem o recobre, com pétalas lentas, ma-
ou seja, os seres humanos, fazem o amor. cias, vermelhas, indicando que a vida pulsa e
Há para isso uma explicação: a possibi- agradece pelo mundo que tem.
lidade ​—​ notemos que o possível é o que Perguntamo-nos: este corpo de rosas,
definimos como o que cessa de se escrever ​ recoberto pela paisagem, é ainda um corpo
—​ a possibilidade de um terceiro sexo. Por feminino? E é também Maura quem responde,
outro lado, por que é que há dois? Isso se agora em outro conto, curiosamente intitula-
explica mal.52 do “Rosa recuada”:

Admitamos, então, que o feminino de nin- Ontem vim andando sozinha pela rua ​
guém, aliando-se ao terceiro sexo, o sexo da —​ era de manhã bem cedo ​—​ automóveis
paisagem, é um feminino que se constrói para passavam céleres, plenamente acorda-
além da reflexão. Nas palavras de Lacan, dos; pessoas cruzavam comigo, os rostos
descansados e iniciantes mergulhados
A linguagem tem suas leis das quais a uni- no dia, novo incontido, se alargando em
versalidade é o modelo, a particularidade ar fresco, arrepiado de promessas: era
não o é menos. O que o imaginário faz tudo começo. Eu andava em mim mesma,
é imaginar o Real: é uma reflexão. Uma embora as coisas exteriores me tocassem
reflexão tem a ver com o espelho, é, pois, sem dureza, vivas, alertas. Súbito percebi
no espelho que exerce uma função. O a preciosidade do meu corpo exposto
espelho é o mais simples dos aparatos. É no dia claro e sorri plena, intensamente
uma função de alguma maneira totalmen- atenta, os rostos se aproximando rápidos,
te natural.53 passando limpos, sem mistério, enquan-
to eu continuava desabrigada, perfeita,
Para além da reflexão, para além do espelho, enquadrada em meu próprio espaço.
esse feminino não se opõe ao masculino, não Àquela hora da manhã os olhares eram
é o seu inverso reflexo, mas se situa para além ligeiros ​—​ as pessoas passavam. À entrada
do falo, num lugar terceiro: a paisagem. Ou, do edifício, na porta, deixei-me por um
nas palavras de Rimbaud, “é o mar alado com momento enquanto me observava no
o sol”. Ou ainda, nas palavras de Maura, espelho do hall. Foi só um momento pe-
queno, mas completo como um círculo se
Deixa-se quase em sono, lados nus e frios fechando. Eu, uma moça de manhã, para-
em contato com o corpo descoberto da na porta de um edifício. Mas de onde
ainda. Cobre-se lenta e ri. Ri outra vez
baixinho, como tomada de felicidade,
agradecida pelo mundo que tem. Esboça 51 LLANSOL. op. cit., p. 44.
outro quase riso ainda: ​—​ Obrigada pela
52 LACAN. O seminário. Livro 26.
minha vida feliz. Não. Obrigada pela mi- A topologia e o tempo. p. 103.
nha vida. (De onde vem tanta ternura?)
O sono pisca breve no escuro. Agora 53 Ibid.

é sempre porque as rosas caem. Len- 54 CANÇADO. Introdução a Alda. In:


tas, macias, pétalas. E o corpo deixa-se ———. O sofredor do ver. p. 26.

171
vinha a alegria? Ela subia, tonta e cega,

O EROTISMO DAS MINAS E O FEMININO DE NINGUÉM   LUCIA CASTELLO BRANCO


enquanto meus olhos míopes se concen-
travam em minha imagem lá. Derramava-
-se pela boca entreaberta, um pouco mais
e me veria eternizada naquele instante
incompreensível e simples de doer.55

Enquadrado em seu próprio espaço, diante da


imagem do espelho, sim, este é um corpo de
mulher. Um corpo que se delimita e se define
pela reflexão. Mas, para além do espelho,
“um pouco mais”, esse corpo se derrama
pela boca entreaberta. É um corpo feminino,
certamente, mas trata-se, agora, de uma
“rosa recuada”. E essa rosa, lançada ao Aberto
da paisagem, participa das diversas partes:
a boca, a copa frondosa, a erva rasteira, a
falésia, o mar.
Sim, trata-se de um corpo feminino, mas
de um corpo feminino de ninguém. E assim,
só, ele surge da areia. Talvez só “o sofredor do
ver” 56 o veja. Ou Deus. Ou ninguém. Quanto
a ela, esta que à exceção de tudo, ex-siste,
cabe-lhe dizer: “Talvez eu deva aceitar que
sou apenas uma flor”.57 E se ver para sempre
eternizada, naquele instante incompreensível
e simples de doer. Rosa recuada, ela nos leva
à eternidade: eternizada. Eis, com Maura
Lopes Cançado, mais além do falo ​—​ além
do erotismo dos corpos, do erotismo sagrado
e do erotismo dos corações ​—, o erotismo
feminino de ninguém.

55 CANÇADO. Rosa recuada. In:


———. op. cit., p. 39.

56 CANÇADO. op. cit., pp. 31–7:


O sofredor do ver. O conto se
abre com esta bela imagem:
“Só, surgindo da areia.”

57 CANÇADO. Rosa Recuada. In:


———. op. cit., p. 39

172
REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Laís Corrêa. Inventário – 1951–2002. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
BATAILLE, Georges. L’Érotisme. Paris: Minuit, 1957.
———. História do olho. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
———. A experiência interior. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BRANCO, Lucia Castello. O que é erotismo? São Paulo: Brasiliense, 1987.
———. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991.
———. A luta cotidiana pelo fulgor. Disponível em: <fiodeaguadotexto.wordpress.com/​
2019/03/31/a-luta-cotidiana-pelo-fulgor-13>
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Diário 1. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
———. O sofredor do ver. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
FREUD, Sigmund. Feminilidade (1933[1932]). In: Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. v. 22. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20. Mais, ainda. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
———. O seminário. Livro 26. A topologia e o tempo. 1979. [Inédito]
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000.
LOPES, Silvina Rodrigues. Anomalia poética. Lisboa: Vendaval, 2005.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: além do eu, aquém do outro. 3 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
PESSOA, Fernando. Os graus da poesia lírica. In: PESSOA, Fernando. Páginas de
Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1966.
POMMIER, Gérard. A exceção feminina, os impasses do gozo. Rio de Janeiro: Zahar,
1987.
PRADO, Adélia. Adélia Prado. Poesia Reunida. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2017.
———. Entrevista. Disponível em: <candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=1081>
RIMBAUD, Arthur. O rapaz raro. Trad. Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D’Água,
1998.

173
CANTORES
DE LEITURA:
APONTAMENTOS
SOBRE
LITERATURA
INDÍGENA EM
MINAS GERAIS
MARIA INÊS DE ALMEIDA Eu sou professor indígena, sou Zezinho.
Nós, professores, estamos construindo
um livro do mimãti,
a mata,
para você, meu amigo leitor.
Isto é para você contar para os seus
amigos quem são
os professores Maxakali.
E com esta conquista, quem sabe, nós
teremos
um livro para ajudar nossa escola.
Agradeço, um abraço do seu amigo,
professor Zezinho.

174
Com estas palavras de apresentação, começa- funções, ou seja, o mito do índio prevalece
mos a leitura do livro Tikmu’un mãxakani’yõg como guia. Desde o período barroco, a língua
mimãti’ ãgtux yõg tappet (O Livro Maxakali portuguesa vai se afirmando na Colônia, mas
Conta Sobre a Floresta), publicado em 2012, não deixa de absorver os traços e os tons de
pela Faculdade de Letras da Universidade línguas nativas. De qualquer modo, até o sé-
Federal de Minas Gerais, através do núcleo culo XVIII, o Nheengatu era a língua falada em
Transdisciplinar de pesquisas Literaterras: geral pelos brasileiros do norte (no Amazonas
escrita, leitura, traduções1. Elas são emble- é falada até hoje) e no litoral sudeste, onde
máticas porque dizem muito sobre o que focos coloniais se concentravam e de onde
chamamos de “literatura indígena” na contem- se expandiam.
poraneidade. Inscrevem de forma singela e No período romântico, as personagens
completa os sentidos que, no Brasil, alguns emblemáticas criadas por José de Alencar,
pesquisadores quisemos dar aos textos que Carlos Gomes, Gonçalves Dias não só contri-
emergiam das aldeias, publicados em livros, buíram para o sentimento de nacionalidade,
via de regra, através de programas governa- como formaram um certo imaginário atávico
mentais de apoio à formação de professores brasileiro (um recalque a sussurrar que esta
indígenas. Esses livros marcam uma política terra ocupada nos pertence como descenden-
favorável ao bilinguismo e à interculturalida- tes dos povos originários). No Modernismo,
de, estabelecida em artigos da Constituição após a proclamação da República, com a
Nacional de 1988, e um esforço das redes chegada ao Brasil da nova fase colonialista, a
públicas de educação escolar de incorporar do capitalismo industrial na cena da metró-
ao sistema literário brasileiro uma escrita fora pole, é o antilogos indígena que vem ao auxílio
dos padrões tradicionais. As diversas línguas e de um ideário que tenta alertar a intelligentsia
formas dialetais da língua portuguesa, coloca- para não tomar o bonde errado da história.
das em pauta, ampliam nosso espaço literário. O que esse alerta pedia era a compreensão,
Além disso, cada processo editorial configura mais que a observação, da paisagem e a
uma cena diferente, em que a paisagem, na atenção ao pensamento concreto. A antro-
perspectiva de cada povo, vai se desvelando pofagia seria o gesto inaugural de uma nova
aos olhos dos leitores. A literatura indígena civilização, assim como se via no cinemató-
da qual tratamos, antes de ser um fato, é uma grafo, com sua dimensão mítica; seria uma
ideia2, uma escola, um caminho, uma flecha. filosofia brasileira, na síntese estonteante do
Os índios, como os habitantes da terra Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de
foram sendo chamados pelos sucessivos co- Andrade: “Só a antropofagia nos une”.
lonizadores nas Américas desde o século XVI, Muitos anos mais tarde, em meados dos
sempre figuraram nos diversos textos orais e anos 1990, com o espírito oswaldiano a nos
escritos em circulação no espaço literário. Em abrir caminhos, empreendemos a tarefa de
relatórios e diários, no teatro, na poesia e pro- praticar com os indígenas o exercício pro-
sa neoclássicas e românticas, na revolução posto pelos modernistas. Os indígenas iam
modernista, enfim, no panthéon literário ame- devorar a língua portuguesa, os meios de
ricano. A historiografia brasileira apresenta comunicação, os veículos do saber. Para isso,
pelo menos três momentos fundamentais em havia que se aderir à síntese, sincronizar a
que as figurações do índio se inscrevem como história, abandonar a busca romântica das

1 Literaterras: leitura, escrita, tradu- do núcleo, apoiado financeiramente pelo MEC da edição e publicação
ções é um núcleo transdisciplinar pelo CNPq (Edital Universal) se de- de material didático para as escolas
de pesquisas registrado em 2002, nominou justamente “Textualidades indígenas do Brasil, entre 2004
reunindo pesquisadores de diversas extra-ocidentais”. O núcleo Lite- e 2013.
instituições, níveis de escolaridade, raterras foi responsável pelo eixo
etnias e áreas de atuação, com o Múltiplas Linguagens, na formação 2 Aqui nos lembramos da famosa
intuito de trazer ao campo universi- dos professores indígenas de Minas frase de Gaston Bachelard: “que
tário as experiências literárias de po- Gerais, até o ano de 2011, quando a terra gira, eis uma ideia, antes
pulações e culturas que passamos a se formou a primeira turma do de ser um fato”, ao defender o
considerar extra-ocidentais (indíge- Curso de Licenciatura Intercultural racionalismo aplicado como
nas, manicomiais, afrodescenden- de Educadores Indígenas da UFMG método científico (BACHELARD,
tes). O primeiro projeto estruturante (FIEI). Foi também encarregado 1977, p. 144).

175
origens e das raízes. Iríamos pelos roteiros, Naturalmente, trabalhar junto a instân-

CANTORES DE LEITURA: APONTAMENTOS SOBRE LITERATURA INDÍGENA EM MINAS GERAIS   MARIA INÊS DE ALMEIDA
fluxos rizomáticos da memória, vozes que cias de saber e poder do Estado para atender
chegam ainda vivas na contemporaneidade, às demandas das comunidades indíge-
apesar dos sucessivos massacres. nas pelo cumprimento do que ordenava a
O movimento indígena lutou e conseguiu Constituição, garantindo a elas seus diretos
sensibilizar o governo estadual, que, em à terra, à educação escolar, às linguagens e
meados daquela década, criou um programa culturas próprias, nos levava a questões de
de educação diferenciada e específica para difícil equação. Como puxar o fio do mundo
os povos indígenas do Estado, chamado PIEI recalcado de conhecimentos sobre a pai-
(Programa de Implantação das Escolas Indí- sagem guardados pelos povos originários?3
genas de Minas Gerais, 1996), cuja sequência Pelos Maxakali e Pataxó, tradicionalmente
foi o FIEI (Curso de Formação Intercultural de inimigos dos Botocudos/Krenak, há séculos
Educadores Indígenas ). Convidados a parti- disputando espaços na Mata Atlântica? Pelos
cipar, como pesquisadores da UFMG da área Xacriabá, egrégora de remanescentes Jê,
de Letras, tentamos criar um espaço literário, acuados pelos colonizadores, sobreviventes
em que as textualidades extra-ocidentais se nos campos gerais no vale do São Francis-
configurassem em objetos de exportação, ou co? Como ouvir e dar a ler as histórias e os
seja, livros anti-catequéticos (recurso da cate- saberes embutidos nas desbotadas marcas
quese, o livro sempre foi portador de sabe- que devíamos sair a garimpar então com
res). Que a constelação de signos e a poesia aqueles 66 professores indígenas colocados
verbivocovisual projetassem as composições a nosso cargo para formação para o magis-
de cada etnia, que a identidade étnica, o tério, no referido PIEI? Impossível não pensar
território de cada povo, fosse confirmado pela na literatura.
comunidade textual criada. Em nossa mente ecoava Roland Barthes
Quando iniciamos esse processo, eram a nos afirmar, com razão, que “todas as
apenas quatro as etnias reconhecidas em ciências estão presentes no monumento
Minas Gerais: Xacriabá, Krenak, Maxakali e literário” 4. E a maioria dessas publicações,
Pataxó. Atualmente, se localizam treze povos, resultantes do exercício escritural com os
em diversas situações, ocasionadas pelos professores indígenas em formação nesses
incessantes movimentos migratórios. Vivem programas governamentais, tiveram sua
no Estado cerca de 17.000 índios das etnias edição em um laboratório de pesquisas
Aranã, Catu-awa-arachá, Kaxixó, Kiriri, Krenak, transdisciplinares e interculturais, criado na
Maxakali, Mucurin, Pankararu, Pataxó, brecha que as lideranças indígenas abriram
Pataxó Hã-hã-hãe, Puri, Tuxá, Xacriabá, na UFMG, cujo nome tomamos de um projeto
Xukuru-kariri, todos pertencentes ao tronco de cooperação internacional denominado de
etnolinguístico Macro-Jê. Literaterras5.

3 Sobre os povos originários de aranás, crenaques, giporoques, também o foram algumas tribos do
Minas Gerais, o historiador Oiliam noretes, pataxós, potés, perutins Nordeste Mineiro, tribos essas in-
José (1965, pp. 11–2) nos informa: etc., todos porém povoadores de corporadas aos botocudos apenas
“Se os etnólogos divergem, pois, um e outro lado dos Rios Doce, por motivo de ordem geográfica ou
nesse ponto secundário, não o Jequitinhonha e Mucuri; e os de artifício de classificação.”
fazem quanto ao essencial, que é cataguás ou cataguases, que, até
admitir que os silvícolas mineiros o século XVII e início do século se- 4 BARTHES, 1979, p. 18
pertenciam, em sua maioria, a um guinte, habitavam o Centro, o Oeste
só grupo, o Jê. De fato, ligavam-se e o Sul de Minas. Os croatos e puris 5 Interessante que Literaterras é o
a ele os aimorés, que povoavam da Zona da Mata Mineira, cobrindo, título de um livro de Lucia Castello
a serra que deu a eles seu nome entre ·outras, as vastas áreas Branco e Ruth Silviano Brandão,
e regiões hoje distribuídas pelos dos atuais Municípios de Viçosa, pesquisadoras da linha Literatura
Estados da Bahia, Espírito Santo Coimbra, Ervália, São Geraldo, e Psicanálise, que criaram esse
e Minas Gerais; os botocudos Visconde do Rio Branco, Ubá, núcleo de pesquisas no contexto de
com suas diversas tribos de Tocantins, Rio Pomba, Guarani, um acordo de cooperação CAPES/
nacnenuques, pojichás, gracnuns, Guidoval, Astolfo Dutra, Dona COFECUB, justamente a partir
quejaurins e, para alguns, de Eusébia, Cataguases, Miraí, Muriaé, da palavra de lituraterra, criada
machacalis, inaconis e malalis, por Patrocínio do Muriaé e Leopoldina, por Jaques Lacan para pensar seu
sua vez, umas e outras, conforme formaram exceção à regra geral: conceito de letra.
o caso, divididas em· núcleos de eram de origem goitacá, como

176
As condições e os meios de produção do página configurada com as palavras e ilus-
corpus literário, que foi ao longo de dezesseis trações que traziam das aldeias, a cada livro
anos ali se formando e que constitui quase produzido nas oficinas de edição, se elaborava
a totalidade do que podemos chamar de a cena da memória capturada em suas pes-
literatura indígena em Minas Gerais, foram quisas de campo, assim como se projetavam
dadas por uma política em prol da intercul- seus anseios políticos. Nesse contexto, o livro
turalidade e do bilinguismo, irradiada pelo indígena é o instrumento por excelência para a
Ministério da Educação, com sua CAPEMA existência da escola indígena. Daí a insistên-
(Comissão de Apoio à Produção e Edição de cia por parte de todos para “fazer o nosso livro”.
Materiais didáticos para as escolas indíge- Um livro vivo, porque não rompe com a
nas). Essa Comissão atribuiu ao núcleo de tradição oral, mas se constitui, em sua textu-
pesquisas Literaterras a tarefa de editar as alidade, como performance. Assim considera-
obras que fossem produzidas pelos professo- do, é mais uma das infinitas transformações
res indígenas de todas as regiões do Brasil. pelas quais os mitos se presentificam. Se,
Entre 2005 e 2013, editamos 38 títulos6. De para os índios, a escola é sobretudo o espaço
forma sintética, podemos afirmar, portanto, do ensino da leitura e da escrita, na escola de
que a literatura indígena em Minas Gerais é natureza indígena a lógica do mito preside
o acontecimento da escrita dos mestres de a própria busca do conhecimento. Essa
cada povo: “A literatura começa com a escrita. lógica, como entendeu o Modernismo, é
A escrita é o conjunto de ritos, o cerimonial corporal e em sua literatura não há metáfo-
evidente ou discreto por meio do qual, inde- ra, há metamorfose. Pensamento selvagem,
pendentemente do que queremos exprimir e bricolagem, todos esses operadores de leitura
do modo como o exprimimos, se anuncia este nos forneciam chaves para abrir caminhos
acontecimento: aquilo que está escrito per- à textualidade indígena. A confecção do livro
tence à literatura, aquele que lê, lê literatura.” 7 era a “técnica adequada para abrir caminho”
E o que queremos dizer com o termo de que nos fala Maria Gabriela Llansol8.
escrita não se restringe à escrita alfabética, Justamente essa escritora portuguesa
trata-se da escrita como traço, resto de uma inspirou o Literaterras a se estruturar com
passagem, manifestação do saber, ou não as textualidades extra-ocidentais, porque ela
saber, da experiência. De qualquer modo, ao própria lançou ao mar seu texto para ser cap-
empreendermos a formação de mestres esco- turado pelo mito ameríndio do livro vivo9. O
lares indígenas, que cumprissem a tarefa de livro indígena se encontra sobremaneira com
erigir simbolicamente uma identidade, armar a ideia revolucionária que Mallarmé, secun-
um discurso, assegurar o registro de posse da dado por Llansol, modernistas, concretistas e
terra, ajudando a demarcá-la politicamente, demais heterológicos da língua portuguesa10
nosso desejo era instrumentalizá-los para a aportaram ao conceito de livro, como projeto
fundação de suas literaturas. Assim, a cada gráfico ou work in progress11. A poesia existe

6 Antes, entre 1996 e 2004, nosso sobre o livro indígena na lógica do no Brasil (1999), venho elabo-
trabalho editorial com a Secre- mito, como versão e performance; rando a teoria de que a literatura
taria de Educação resultou em 8 desdobramento do que se escreve indígena propriamente dita, o
publicações. também nos arranjos da floresta, que os próprios indígenas têm
portanto, infinito, este “livro vivo” feito com as letras, no sentido
7 BLANCHOT, 1984, p. 217. kaxinawá coloca no papel os amplo do termo, para além da
saberes organizados nos parques escrita alfabética, melhor seria
8 Segundo M. G. Llansol (1936– medicinais das aldeias das terra compreendida enquanto conjunto
2008), “não há literatura, importa indígenas Kaxinawá do Rio Jordão, de projetos gráficos (aquém e além
saber em que real se entra e se no Acre. do idealismo iluminista ocidental).
há técnica adequada para abrir Trabalho manual, confecção de
caminho a outros”. 10 Uso este termo inspirada em O objeto utilitário, exercício de escuta
heterologos em língua portuguesa e transcrição, desenho, diagra-
9 Em 2012, publicamos O Livro Vivo (1986), de Maria Helena Varela. mação, tipografia, corte e cola…
/ Una Hiwea, sobre a medicina O exercício incessante da tradução,
Kaxinawá, organizado pelo pajé 11 Desde a escrita de minha tese a produção e a edição de textos: a
Agostinho Manduca Mateus / Ike de doutorado em Comunicação experiência literária é performática,
Muru Huni Kuin, experiência edi- e Semiótica, Ensaios sobre a ritualística, concretista.
torial que nos possibilitou teorizar literatura indígena contemporânea

177
nos fatos e se configura na letra12, grafia Uma vez dispostas à leitura através de livros,

CANTORES DE LEITURA: APONTAMENTOS SOBRE LITERATURA INDÍGENA EM MINAS GERAIS   MARIA INÊS DE ALMEIDA
aquém e além da relação significante/sig- as histórias contadas pelo índios são ma-
nificado, marca de uma passagem, litoral, teriais didáticos porque ensinam uma ética
ponto de mutação. social, ecológica, em que os humanos são
A materialidade da forma que se trans- vivos no meio dos vivos. O corpo do livro, sua
forma dá a dimensão infinita do objeto textualidade, nos revela uma almejada vida
incapturável pelas poéticas ou pelos gêneros em aldeia, onde os bichos ainda podem falar
literários compreendidos pela literatura oci- e os saberes se revelam nos agenciamentos
dental e abre o livro indígena para a capila- que movimentam o ambiente e servem para
ridade sempre múltipla da estrutura mítica, assegurar que cada ser tenha sua existência
cujo desenho mais adequado não seguiria singular, paradoxalmente o princípio da co-
o modelo arbóreo, melhor seria o rizomáti- munidade. Os livros dos índios, desde nossa
co.13 Desde a Antropologia Estrutural, que primeira aproximação, ensinam a ler, pois
significou um enorme avanço no diálogo inter- são “cantores de leitura”, figuras fantasiadas,
cultural, colocando o Ocidente em posição alegorias para contar histórias e fazer a vida
de escuta das narrativas dos diversos povos do que vale a pena continuar: “E sentados
“primitivos”, e que, assim como a Psicanálise, em torno desse berço, cada um com todo o
desconfiou que algo desliza por baixo dos sol nas mãos, fazemos circular a verdade da
significantes, e a polissemia joga a favor da nossa história, a que chamais o mito.” 15
continuidade do jogo, podemos compreender Ler os livros que iniciaram a literatura
melhor tal estrutura: indígena em Minas Gerais pode nos fazer
compreender um processo de ensino, uma
O pensamento mítico, totalmente alheio escola desocidentada16, ou pelo menos
à preocupação com pontos de partida vislumbrar uma comunidade textual em que a
ou de chegada bem definidos, não efetua cópia evolui em canto, como a água evapora,
percursos completos: sempre lhe resta produzindo odores. A cada projeto gráfico, a
algo a perfazer. Como os ritos, os mitos escola indígena se encena de um modo di-
são in-termináveis. E, querendo imitar o ferente, segundo orientações ético-estéticas
movimento espontâneo do pensamento apontadas pela comunidade sonhada.
mítico, nosso empreendimento, igual- Identidade étnicas, que as etnografias vêm
mente curto demais e longo demais, teve tentando descrever ou discutir ​—​ como nos
de se curvar às suas exigências e respeitar disse Lévi-Strauss (1998)17 após ler alguns li-
seu ritmo. Assim, este livro sobre os mi- vros indígenas editados na UFMG ​—, estavam
tos é, a seu modo, um mito. Supondo-se se forjando na literatura. O trabalho escriba
que possua uma unidade, esta só aparece- dos professores indígenas de escrever a voz,
rá aquém e além do texto. Na melhor das com a escuta de uma língua perdida, eram a
hipóteses, seria estabelecida no espírito etnografia própria, aqueles gestos gráficos
do leitor.14 estariam transformando-a em literatura.

12 O conceito de letra que nos serviu São Paulo: Editora 34, 1997, o con- 17 “Je suis depuis longtemps convain-
sempre ao pensar a literatura ceito de rizoma, para dizer de uma cu que l’ethnologie, pour survivre,
indígena foi o formulado por Lacan, estrutura reticulada, sem princípio, devra se transformer en histoire
a partir de sua compreensão meio e fim, diferente da árvore. des idées, philologie, création
topológica: letter/rasura/resto. artistique exercées dans et sur
Assim como a fita de Moebius 14 LEVI-STRAUSS, 2004, p. 24. chaque culture par ses propres
demonstra a fórmula canônica do membres. Qui la rédécouvriront et
mito (o modo como as transforma- 15 LLANSOL, 2007, p. 81. lui insuffleront une vie nouvelle; un
ções se dão, na lógica do terceiro peu comme les savants, penseurs
incluído, fora do princípio da não 16 O termo desocidentada, por mim et artistes de la Renaissance vis-à-
contradição), demonstra também utilizado como título de um livro vis de leur héritage gréco-romain.
a instância da letra (entre o real e o sobre a experiência literária em L’entreprise que vous animez
simbólico, diferente do significante terra indígena, foi pronunciado por me semble donc du plus haut
saussureano) Lacan em uma aula que, transcrita, intérêt.” (LEVI-STRAUSS, 1998.
se tornou o texto Lituraterra, Correspondência inédita).
13 Tomo emprestado de DELEUZE, fundamental para nosso trabalho.
Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Cf. ALMEIDA (2009).
Capitalismo e esquizofrenia. Vols. 1.

178
Lévi-Strauss então nos fez recordar Camões, a literatura Xacriabá (caderno de pesquisa) e,
dando ao vernáculo o status de língua lite- dando conta da experiência literária de ensino,
rária, numa época em que apenas o latim o Da voz ao texto (folheto didático do projeto).
era na Europa. No trabalho com as Letras, não buscamos
Por outro lado, o retorno à oralidade, ao a representação ficcional do mundo, menos
ambiente da aldeia, como um manancial ainda aquela em que um herói se ergue com
de saberes sobre o ser dali, era o sentido de gestos de rebeldia, quebra das tradições,
cada livro confeccionado naquele contexto de levado pelo inconsciente e guiado por fan-
magistério. O claro objetivo da formação de tasmas, como seria no caso de pleitearmos
cada professor era para que ele fosse capaz um lugar na tradição romântica que preside
de continuar a fazer livros, ou, por qualquer a narratividade ocidental. Nossa proposta
outro meio, a dar contemporaneidade a suas de ensino com os livros indígenas parte do
histórias. Através dos livros, sua literalidade conceito de literatura como experiência. Por
(verbo), escuta (voco) e mirada (visual) con- isso pensamos em termos de textualidades,
tinuaria a ensinar com a experiência literária, fugindo do senso comum da literatura. Não há
levando seus alunos, nas aldeias, também à como assumir uma postura crítica, analítica,
passagem “da cópia ao canto”, da narrativida- ao pensar a literatura produzida com os índios
de à textualidade18. Na sala de aula, ensi- em tal contexto. Como Lévi-Strauss fez ao
nando a ler, poderia fazer ecoar as vozes dos produzir sua obra com os mitos ameríndios
antepassados, dos fundamentos da comuni- (nas Mitológicas19), também nos deixamos
dade, dos ordenamentos ecológicos. Enfim, a pensar através dos livros indígenas. Curio-
escola indígena também seria etnográfica. samente, os resultados de ambas as experi-
Um dos projetos gráficos mais significa- ências, a da obra Mitológicas e a dos livros
tivos, no sentido de incorporar os diversos indígenas, guardadas as enormes diferenças,
fluxos e signos numa constelação, foi o que são similares no sentido musical da composi-
constituiu a caixa de Literatura Xacriabá ção e da leitura, já que embora escritas con-
(2005) ​—​ composta de um folheto, quatro tinuam orais e incorporadas ao mito: “Não há
livros e um CD sonoro de narrativas orais. literatura, importa saber em que real se entra,
Após cinco anos de pesquisas com os profes- e se há técnica adequada para abrir caminhos
sores dessa etnia, organizamos e editamos a outros.” 20 Entramos num jogo perigoso
o material produzido, inclusive pelas crian- e prazeroso com aqueles designados pelas
ças das escolas nas aldeias, de forma que respectivas comunidades, como professores
formassem um panorama dos conhecimentos Maxakali, Krenak, Pataxó e Xacriabá, em que
linguísticos, da narrativas exemplares, das saberes deveriam ser traduzidos sem, no
ilustrações, que fornecessem aos leitores entanto, passarem definitivamente para o
imagens vislumbradas nas vozes dos mais lado do Ocidente, mantendo a literalidade até
velhos, que, por sua vez, ecoassem os ante- as últimas consequências, para que algo se
passados: Iaiá Cabocla (livro com gravuras e escrevesse. As sucessivas traduções não ha-
versos sobre o mito da onça/gente), Conversa veriam de obscurecer os traços da diferença.
(CD de narrativas), Com os mais velhos (livro Nossas escolhas editoriais, nesse proces-
com transcrições das narrativas), Revelan- so que teria como tarefas a escrita da voz, sua
do os conhecimentos (súmulas poéticas da impressão no papel e sua circulação no mun-
escuta das narrativas pelas crianças), Sobre do contemporâneo, sempre foram decididas

18 Em 2008, o núcleo Literaterras re- seminário, que reuniu professo- 19 LEVI-STRAUSS: Mythologiques,
alizou um seminário intitulado “Da res/pesquisadores Maxakali, o obra orquestrada, pois pensada
cópia ao canto”, sempre inspirado pesquisador kaxinawá Ibã Huni como um concerto musical, com
pelo texto llansoliano, em conso- Kuin, a Yalorixá Mãe Marlene do uma compilação impressionante
nância com o pensamento mítico candomblé Vintém de Prata, a dos mitos ameríndios, dividida em
(traduzir é copiar, copiar até revelar mestra das poéticas orais Jerusa quatro volumes: Le cru et le cuit
o que o sexo de ler está vendo, ou Pires Ferreira, as pesquisadoras (1964), Du miel aux cendres (1967),
seja, a olhar libidinal mantém a Lucia Castello Branco e Sônia L’origine des manières de table
vida da história, como mitema). As Queiroz, e demais pesquisadores (1968) e L’homme nu (1971).
traduções e passagens intercultu- ligados ao Literaterras.
rais foram objeto de reflexão neste 20 LLANSOL, 1985, p. 55.

179
em equipe, com o sonho da comunidade. Por do Rio Doce, no município de Resplendor. O

CANTORES DE LEITURA: APONTAMENTOS SOBRE LITERATURA INDÍGENA EM MINAS GERAIS   MARIA INÊS DE ALMEIDA
isso, no lugar da autoria, cunhamos o nome grupo liderado pelo chefe Krenak foi o último
do povo na capa dos livros. Nomes para abrir a negociar com as autoridades governamen-
universos de leitura, potência de galáxia: “Ora, tais seu processo de “pacificação” e “civili-
direis, ouvir galáxias”, assim como inspirou zação”, ocorrido logo no início dos trabalhos
Haroldo de Campos na composição do seu do recém-inaugurado Serviço de Proteção
livro Galáxias (1984), esse verso de Olavo aos Índios (SPI), em 1911. Hoje o povo Krenak
Bilac nos vem à mente ao pensar nos livros ainda sofre com a situação de seu pequeno
indígenas que editamos, que também não território, com as pressões e violações dos
são livros de viagem (como os colonizadores empreendimentos que destruíram o Watu
escrevem ao “descobrir” povos), mas, como (Rio Doce), a usina hidrelétrica de Aimorés
disse Haroldo, “há neste livro caleidoscópico e o rompimento da barragem das empresas
um gesto épico, narrativo” ​—​ no entanto, as Samarco/Vale/BHP BIllinton. A resistência
histórias se dissipam e a “imagem acaba por de uma língua com poucos falantes, a saga
prevalecer”, o livro sendo a própria viagem, e dos deslocamentos forçados, as enormes
“o jogo de páginas móveis, intercambiáveis à restrições à liberdade sofridas, uma história
leitura, onde cada fragmento isolado introduz marcada pela violência, tudo se encontra de
uma ‘diferença’, mas contém em sim mesmo, algum modo registrado nos livros: Coisa Tudo
como em uma linha d’água, a imagem do na Língua Krenak (1997), Uatu Hoom (2009),
livro inteiro, que através de cada um pode ser Burum Nak (filme documentário, 2009), A
vislumbrada como por miradouro ‘aléfico’.” 21 caçada (desenho animado, 2009).
No final dos anos 1970, era senso corrente Os Maxakali, no início do PIEI, viviam em
que não havia mais índios em Minas Gerais, duas aldeias ​—​ Água Boa e Pradinho ​—​ na re-
exceto alguns poucos Maxakali e menos gião limítrofe entre Santa Helena e Bertópolis,
ainda Krenak e Pataxó. Os Xacriabá simples- no vale do Mucuri. Em seguida, dois grupos se
mente não eram vistos, não existindo para separaram, um deles foi parar na Aldeia Verde,
os brasileiros em geral. Em 1996, quando no município de Ladainha, e o outro, na aldeia
criamos o Programa de Implantação das Es- Cachoeira, no distrito de Topázio, município de
colas Indígenas de Minas Gerais, a situação Teófilo Ottoni. Entre 1996 e 2013, publicaram
já era diferente, estando demarcada a Terra muitos livros e filmes. Foi o grupo indígena
Indígena Xacriabá, no município de São João que mais produziu literatura em Minas Gerais,
das Missões, no vale do Peruaçu22. Com o talvez pelo motivo básico de que sua língua
processo de escolarização e formação de pro- e seu canto conservam a força da paisagem
fessores, enfim, com a experiência literária, de uma forma incompreensível pela razão
o povo Xacriabá se fortaleceu politicamente logocêntrica. Os saberes sobre a Mata Atlân-
a ponto de conquistar e manter, até hoje, a tica e seus habitantes de todas as espécies,
governança da prefeitura municipal. mantidos e desenvolvidos em uma poética
Em 1997 seriam homologados os 4800 que se formaliza em canto, tornam o manan-
hectares da Terra Indígena Krenak, na beira cial artístico dos Maxakali algo de dimensões

21 CAMPOS, 1984, p. 119. terem apoiado o Estado na guerra da luta e da resistência do Povo
com os Caiapó, viveram em relativa Xakriabá. A comunidade possui mais
22 “Antigos habitantes do Vale do São paz, convivendo com camponeses de dez mil indígenas, sendo uma
Francisco, os Xacriabá vivem no vindos da Bahia e de outras regiões das maiores populações étnicas
município de São João das Missões, de Minas Gerais em seus territórios do Brasil. Hoje são aproximada-
Norte de Minas Gerais, a 720 km e arredores, em que plantavam roças mente quarenta aldeias em 53.085
de Belo Horizonte. Seu processo de subsistência. A partir de 1969, o hectares e há um processo de
de contato com os não-índios não desenvolvimento de projetos agrí- revisão do território que irá ampliar
difere do ocorrido com os demais colas na região atraiu fortes grupos a TI Xakriabá, retomando o acesso
povos indígenas, em toda a sua empresariais e grandes fazendeiros e o uso de locais tradicionais. Os
história, sendo marcada por lutas e das cidades vizinhas, acentuando-se Xakriabá são muito organizados poli-
derramamento de sangue, o Bandei- a invasão das terras dos Xakriabá. ticamente, tendo um cacique geral e
rante Matias Cardoso foi um grande Nos anos 1980, a tensão aumenta diversas lideranças locais. Hoje eles
algoz dos povos indígenas da região de forma insuportável, culminando estão no quarto mandato indígena
do Vale do São Francisco. Após o no assassinato de grandes líderes consecutivo da cidade de São João
ano de 1728, depois de receberem indígenas. O Cacique Rosalino se das Missões.” (Cf. <cedefes.org.br/
título de posse de suas terras por tornou um grande mártir e símbolo povos-indigenas-destaque>)

180
incomensuráveis. O livro Maxakali conta processo da homologação da terra ainda
histórias de antigamente (1997), Penãhã corre na Justiça. O professor Glayson Kaxixó,
(2005), Hitma’ax/Curar (2008) e o já citado a partir de pesquisa com os velhos da aldeia,
O livro Maxakali conta sobre a floresta (2012) especialmente com o Cacique Djalma, fez o
são projetos gráficos que tentam acompanhar livro O Povo Kaxixó Compreendendo a sua
movimentos desses saberes, constituindo História no seu Jeito de Comunicar (2012) e o
experiências literárias que não só formaram os filme Casca do Chão (2008):
professores Maxakali para cuidarem da saúde
e da restauração ecológica de suas aldeias, Em cada tema que apresento no livro,
como para a alfabetização em sua língua e o está presente a fala do cacique Djalma e
trânsito dos Yãmiy23 nas imagens gravadas, agora, já no processo final, percebo que
amplificando o alcance dos cantos rituais. quando eu o entrevistava, eu me depara-
Os Pataxó, chegados em Minas depois va na sua fala começando a contar uma
do “Fogo de 1951”, massacre ocorrido em história. Ele já entrava em outra história
Barra Velha (BA), relatado no livro O Povo sem perder a primeira que começou.
Pataxó e suas histórias (1997), foram ins- Assim, eu tiro a minha conclusão de que
talados na Fazenda Guarani em 1970 e ali a história do cacique não tinha fim. Ele
permanecem aldeados depois de extinta podia contar história o dia inteiro que
a “prisão dos índios” que a fazenda do SPI não repetia nunca a mesma história.24
sediava. Recentemente, um grupo se afastou,
criando, no município de Itapecerica, a aldeia Já os Xukuru-Kariri, que, em vez de livro, opta-
Muã Mimatxi. No Município de Açucena, ram pelo filme documentário como material
outro grupo vindo da Bahia fundou a aldeia de leitura para o ensino sobre sua geografia e
Geru Tucunã; assim como no Município de sua história, vieram de Palmeiras dos Índios,
Guanhães criaram a aldeia Mirueira; e um em 1998, para o município de Caldas, no
quarto grupo, no Município de Araçuaí, a sul do Minas. Produziram e editaram o filme
aldeia Jundiba Cinta Vermelha. Cantos do Coité (2011), com uma equipe lide-
Além desses quatro povos, que desde o rada pela professora Gizelma Xukuru-Kariri,
início participaram do Programa de Implan- que escreveu no encarte do DVD:
tação das Escolas Indígenas de Minas Gerais,
outros grupos étnicos foram se integrando No desenvolvimento do trabalho, des-
ao processo de formação de professores e de cobri que a pesquisa estava tomando um
edição de material didático, orientado pela rumo diferente do que eu tinha pensado
UFMG. Estão entre eles os Aranã, que tam- antes. As entrevistas com os mais velhos
bém descendem dos chamados Botocudos, e a discussão política do povo me fizeram
de um grupo que foi aldeado pelos missioná- refletir e chegar à conclusão de que eu
rios capuchinhos em 1873, no Aldeamento precisava mudar o foco do que pesquisar.
Central Nossa Senhora da Conceição do Rio Fiz, mais uma vez, uma escolha, priorizei
Doce, de onde migrou para o Aldeamento o assunto que vem sendo, nas últimas três
de Itambacuri. Hoje vivem trabalhando em décadas, o mais importante para o povo:
fazendas na região do Vale do Jequitinho- a demarcação do território tradicional
nha, em Araçuaí e Coronel Murta, lutando Xukuru-Kariri. Consegui, mudando o
para que seu território seja identificado foco da pesquisa, descobrir vários fatos
e homologado. que me fizeram entender acontecimentos
Outro grupo mineiro que se integrou marcantes da história do meu povo.
ao processo de formação literária que aqui
recordamos é o Kaxixó, que vive nos municí-
pios de Martinho Campos (fazenda Criciúma)
e Pompéu (fazenda São José), formando 23 Yãmiy é um termo para seres
“espirituais” na língua Maxakali,
a comunidade do Capão do Zezinho. Foi como espécies de duplos, virtu-
esta comunidade, localizada às margens alidades. “Existentes não-reais”,
do rio Pará, que deu início à luta Kaxixó pelo poderíamos chamar com Llansol.
(Cf. LLANSOL, 1994, p. 120)
reconhecimento étnico oficial. O território
tradicional Kaxixó já foi identificado, mas o 24 KAXIXÓ, 2012.

181
Atualmente vivem em Minas outros grupos ét- século XVI a presença dos catequizadores, que

CANTORES DE LEITURA: APONTAMENTOS SOBRE LITERATURA INDÍGENA EM MINAS GERAIS   MARIA INÊS DE ALMEIDA
nicos que, embora não tenham participado do partiam das capitania de Pernambuco; a pre-
processo descrito neste ensaio, possivelmente dominância de povos Jê entre os submetidos a
aportarão suas textualidades na construção sucessivas reduções até a formação Xacriabá,
de nossa universidade pública ou do fluido edi- tudo isso caberia em livro? Qual a súmula
fício literário sem fronteiras: os Mokurin, rema- possível? Aquele acontecimento, a morte de
nescentes botocudos aldeados em Itacarambi três líderes numa chacina, trazia às mentes
desde o século XIX, hoje vivendo no municí- angustiadas daqueles jovens professores, que
pio de Campanário; os Catú-awa-arachás, se dispuseram a criar livros para fundar uma
que se encontram em Araxá, devidamente escola Xacriabá, o imperativo do conhecimen-
organizados na Associação Andaiá, à espe- to, da vingança, da “volta por cima”.
ra de reconhecimento; os Puris, que estão Com o trabalho (psicanalítico) da escri-
se organizando no município de Araponga, ta, o professor José Nunes Xacriabá, filho
região da Mata e na cidade de Barbacena; de Rosalino, que aos dez anos de idade fora
os Tuxá, que vieram da Bahia e vivem no obrigado, com um revólver apontado para sua
município de Buritizeiro, às margens do rio cabeça, a arrastar o corpo pesado do pai de
São Francisco; os Kiriri, que vieram do sertão dentro da casa, onde fora assassinado, para
baiano e se instalaram também em Caldas; os o centro da aldeia, para que todos vissem
Pankararu, oriundos de Pernambuco, que vie- sua morte exemplar, tornou-se um líder forte
ram para duas áreas no médio Jequitinhonha, a ponto de se eleger prefeito do município
em Araçuaí e Coronel Murta; e os Pataxó de São João das Missões. Isto diz muito de
hã-hã-hãe, que vieram do sul da Bahia para a como a experiência literária, com a escuta e o
região metropolitana de Belo Horizonte e cuja registro, escritura que passa a limpo a revisão
aldeia foi atingida pelo trágico rompimento da da história, reequilibra as forças políticas e
barragem de Brumadinho em 2019. modifica a vida das comunidades.
Um desafio de nossa experiência literária
O TEMPO PASSA E A HISTÓRIA FICA: A com os Xacriabá era trazer aos professores
LITERATURA COMO HISTORIOGRAFIA a liberdade de buscar o próprio idioma, já
que ninguém mais nas suas aldeias falava a
O primeiro livro publicado pelos Xacriabá, antiga língua indígena (da família Jê, grupo
em 1997, surgiu como um esforço conjunto Akuen), a qual foi se perdendo com a opres-
dos professores de colocar no papel o que são sofrida pelo povo, transformado em
podiam compilar das narrativas orais e dos semi-escravo nos latifúndios da região:
documentos escritos (cartoriais, jornalísti-
cos etc.) que lhes garantissem uma certa Se os Xacriabá perderam, à força, sua
identidade cultural, histórica e espiritual. língua, agora eles se apoderam da língua
Interessante que essa busca não se firmava portuguesa, dando-lhe uma entonação
em “desejáveis” traços etnolinguísticos que cabocla. Como pesquisadores e profes-
os “desocidentalizassem”, mas na força épica sores das escolas Xacriabá, estes novos
de uma história, baseada nas memórias de autores apontam para uma outra cena li-
um acontecimento trágico produzido pela co- terária: a produção comunitária do livro,
lonização. Um massacre impetrado em 1987 livre do princípio da autoria e enraizada
pelos fazendeiros, que disputavam território na oralidade. A grafia como um gesto de
com esse povo, resultou na morte do líder reafirmação da força política de quem, na
Rosalino Gomes de Oliveira, pai de um dos conquista do próprio território, transfor-
professores; era a ferida aberta que unificava ma as penas em poesia:
e dava sentido ao gesto escritural que com
eles sustentamos até a publicação ​—​ no livro Para isso eu dou terras
O tempo passa e a história fica (1997). puros índios morar
A história da ocupação humana no vale do Daqui para Missões
Peruaçu; as demandas e lutas pelo território; cabeceira de Alagoinhas
a religiosidade e a poesia cujas raízes formais Beira do Peruaçu até as montanhas
remontam à Península Ibérica, já que, no p’ra índio não abusar de fazendeiro
processo colonizatório, se fez sentir desde o nenhum

182
eu dou terra como fartura p’ro índio afirma, portanto, em seu valor performático.
morar. Seu status não tem a ver com a reconstituição
A Missão para a morada fantasiosa, nem com o simples resgate da
O brejo para o trabalho memória, como tem sido a literatura de tradi-
Os campos gerais para as meladas e ção romântica, por exemplo. Trata-se de ex-
caçadas periência de invenção, mas o que se constrói
E as margens dos rios para as pescadas. com as tradições orais ​—​ e que, no entanto,
Dei, registrei, selei não poderia ser alinhado como narratividade ​
Pago os impostos —, ou seja, o que resulta do trabalho dos pro-
por cento e sessenta réis.25 fessores indígenas são suas textualidades:

Assim os Xacriabá declamam, gerações a Como continuar o humano?


fio, oralizando inclusive documentos oficiais, Que vamos nós fazer de nós?
como este, acima citado, de doação de seu ter- Que sonho vamos nós sonhar que
ritório, tantas vezes contestado pelos fazendei- nos sonhe?
ros da região, que nunca se conformaram com Para onde é que o fulgor se foi?
o fato de aqueles índios terem direito legal à Como romper estes cenários de “já visto”
terra em que vivem pelo menos desde o século e “revisto” que nos cercam?
XVIII. A “Certidão Verbum-Adverbum – Uma É minha convicção que, se puder
Doação”, assinada em 1728 pelo “Administra- deslocar o centro nevrálgico do romance,
dor dos Índios da Missão do Senhor São João descentrá-lo do humano consumidor de
do Riaxo do Itacaramby” Januário Cardoso de social e de poder, operar uma mutação
Almeida Brandão, comprova a posse legal da da narratividade e fazê-la deslizar para
terra comprada por cento e sessenta réis pelo a textualidade um acesso ao novo, ao
administrador. Esse documento pertence ao fulgor, nos é possível.27
acervo poético dos Xacriabá, tradicionalmente
declamado, guardando na memória de cada Podemos afirmar que o gesto escritural dos
geração seu direito à terra. indígenas, por um lado, pode ser visto como
Em seus livros os Xacriabá registram, por- fundação da sua literatura no sentido de uma
tanto, sua história e sua geografia, buscando experiência que põe em crise o mito, mas, por
na paisagem os traços de suas guerras, de outro lado, como atualização, revitalização do
suas diversas formas de escrita (por exemplo, mito, que, inclusive, pode fagocitar os leitores.
a arte rupestre do Parque Nacional Cavernas Ao realizarmos o projeto do “Livro de Saúde”
do Peruaçu), de sua ancestralidade (america- dos professores Maxakali, que estudaram e
na, ibérica, africana): “O que se nos apresenta organizaram e traduziram, no livro Hitup’mãx/
depois de perdido o universo a que a obra Curar (2012), os conhecimentos medicinais
pertencia e que fazia parte de sua realidade e de seu povo, tivemos uma lição de como o
necessidade é a verdade histórica.” 26 livro pode ser experiência do conhecimento,
ou instância de produção do conhecimento.
LITERATURA COMO MEDICINA Ciência, mito, literatura: ao romper com os
parâmetros da representação, na medida em
Todos os livros produzidos coletivamente que se inscreve na ordem corporal sensível
pelos indígenas, publicados em Minas Gerais e se projeta como invenção no futuro que se
com a assinatura de cada etnia envolvida, almeja, o livro, tal como o concebemos com
são exemplares, paradoxalmente, no sentido os Maxakali, tornou-se um emblema da trans-
da singularidade de cada experiência. Cada disciplinaridade. Pudemos ali vislumbrar que
projeto gráfico se deu como um roteiro num
jogo político. O objetivo dos autores, percebe-
mos, era retirar do lugar de pobre perdedora a
25 Prefácio do livro O tempo passa e a
comunidade étnica que pretendiam encenar; história fica, 1997, pp. 6–7.
era mostrar ao público uma existência para
além dos valores burgueses, que se firmava 26 LOPES, 1994, p. 194.

na tradição, na espiritualidade, no respeito ao 27 LLANSOL, 1994, p. 120. Itálicos


meio ambiente. Essa literatura indígena se da autora.

183
haveria uma instância poética em que os dife-

CANTORES DE LEITURA: APONTAMENTOS SOBRE LITERATURA INDÍGENA EM MINAS GERAIS   MARIA INÊS DE ALMEIDA
rentes tipos de saberes e tradições científicas
poderiam estar em consonância. Na proposta
ética-estética da saúde encarnada pelo livro
Maxakali, miramos uma comunidade textual,
cujo princípio instrumental seria a tradução.
Como transitoriedade infinita compreendida
pelo pensamento mítico e que os índios ou
“primitivos” de todos os continentes apon-
tam como um fio muito delicado de ligação
entre o céu e a terra, o mundo dos mortos e
dos vivos, ou o que os chineses chamariam
In/Yang. Assim, entendemos que a tradução,
como uma mítica serpente cósmica28, era o
princípio da saúde. E o tal fio invisível a olho
nu, em sua imanência, podia aparecer em
sonho. E, de forma similar ao DNA, podemos
chamá-lo de ancestralidade. Foi assim que
nos inspiramos e escrevemos no prefácio do
“livro de saúde” Maxakali:

A ancestralidade cura
Os Maxakali estão apresentando sua
saúde. E médicos, enfermeiras, agen-
tes de saúde das diversas instituições
que interagem com os povos indígenas
poderão vislumbrar a multiplicidade
dos elementos que atuam em processos
de adoecimento e cura. O sonho, que é
seguido pelo pajé, xamã, parteira, sábio,
curandeiro, como um fio d’água, traz a
sabedoria das formas. E pela duração
desse liame do visível com o invisível ​
—​ o ritual ​—​ o ser pode se reconstituir. A
isto o Maxakali chamaria curar. Fizemos
este livro para ensinar medicina aos que
não têm medo da experiência ​—​ esta é a
forma como agora entendo o que Rafael,
Pinheiro e Isael disseram no vestibu-
lar, quando ingressaram no Curso de
Formação Intercultural de Educadores
Indígenas da UFMG (FIEI), em 2006:
“queremos estudar na universidade para
fazer um livro que ensine a FUNASA a
trabalhar com a gente”. Está aqui um re-
sultado desta investigação. Uma pesquisa
que se resume numa tentativa de escuta.
Um livro para guiar a cura de uma rela-
ção estragada pela incompreensão. Um
28 Sobre o conhecimento ancestral do
livro de intersecções, fractal, de múlti- DNA, expresso de algum modo no
plos afetos. O que desejamos é que, como quase universal mito da serpente
água limpa, este livro sirva para depurar cósmica. Cf. NARBY (2018).

as formas, de modo que possam fluir com 29 MAXAKALI, Rafael et al. Hitmã’ãx/
graça e alegria.29 Curar, 2012, p. 11.

184
A PRODUÇÃO INDÍGENA

Apresentamos, para registro, a relação das publicações editadas no contexto sobre o


qual refletimos brevemente neste ensaio.

Edições do Programa com a Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais


(Programa de Implantação das Escolas Indígenas e Minas Gerais):

1997–8 ALMEIDA, Maria Inês (Org.). Bay – Educação escolar indígena em Minas Gerais.
PATAXÓ, Kanatyo. Txopai e Itohã. 1 ed.
PROFESSORES KRENAK. Coisa Tudo na língua Krenak.
PROFESSORES MAXAKALI. Geografia da aldeia.
———. O livro Maxakali conta histórias de antigamente.
PROFESSORES PATAXÓ. O povo Pataxó e suas Histórias. 1 ed.
PROFESSORES XACRIABÁ. Livro Xacriabá de plantas medicinais: fonte de esperança
e mais saber.
———. O tempo passa e a história fica.

Edições com a Universidade Federal de Minas Gerais (curso de Formação Intercultural


de Educadores Indígenas):

2005–10 ALMEIDA, Maria Inês (Org.). Tabebuia 1 – índios, pensamento, educação. [revista]
KRENAK, Itamar (Org.). Uatu Hoom. [livro e filme]
———. A caçada. (Filme de animação)
PATAXÓ ALDEIA RETIRINHO. Território e cultura.
PROFESSORES KAXIXÓ. Casca do chão. [filme]
PROFESSORES MAXAKALI. Hitupmã’ax/curar – Livro de Saúde Maxakali.
———. Penahã.
PROFESSORES PATAXÓ. O machado, a abelha e o rio.
PROFESSORES XACRIABÁ. Literatura Xakriabá. [Caixa contendo os livros “Com os
mais velhos”, “Iaiá Cabocla”, “Revelando os conhecimentos” e “Sobre a literatura
Xakriabá”, e um CD de narrativas, “Conversa”]
———. Kupaschú Intsché.
PROFESSORES XAKRIABÁ E PATAXÓ. Encontros Traduções.

2010–3 ALMEIDA, Maria Inês (Org.). Tabebuia 2. [revista]


KAXIXÓ, Glayson. O povo Kaxixó compreendendo a sua história no seu jeito de comunicar.
MAXAKALI, João Bidé et al. O Livro Maxakali conta sobre a floresta.
PATAXÓ, Izaque. Festa das águas. [Filme documentário – DVD com encarte]
PATAXÓ, Lucidalva. Ãgohó / Lua.
PROFESSORES MAXAKALI. Bestiário.
———. Cantos dos povos morcego. [livro com 2 DVD de áudio e 1 DVD de vídeo]
———. Mõgmõka yõg kutex xi ãgtux. [livro]
———. Mõgmõka yõg kutex xi ãgtux. [CD de áudio]
———. Xunin yõg xi ãgtux xi hemex yõg kutex. [livro com 2 DVD de áudio e 1 DVD de vídeo]
PROFESSORES PATAXÓ. A ciência da noite e do dia.
———. A nossa crença com a vovó lua.
———. A pedagogia da lente do nosso olhar.
———. Calendário dos tempos da aldeia Muã Mimatxi.
PROFESSORES XACRIABÁ E PATAXÓ. Um pé na aldeia um pé no mundo.
PROFESSORES XACRIABÁ. A cultura informa o homem.
———. Com a terra construímos a nossa história.

185
———. Livro das festas Xacriabá. [Livro + DVD vídeo documentário]

CANTORES DE LEITURA: APONTAMENTOS SOBRE LITERATURA INDÍGENA EM MINAS GERAIS   MARIA INÊS DE ALMEIDA
———. Nem tudo que se vê se fala – ciência, crença e sabedora Xakriabá.
———. O segredo das plantas e dos animais.
———. Para seu trono lirar. [livro + CD sonoro]
———. Plantar para colher, colher para plantar. Revista Xakriabá. ano I, n. I.
———. Plantas medicinais e processos de cura Xakriabá.
———. Poesia sobre os conhecimentos xakriabá. [livro + 2 CD sonoros]
XACRIABÁ, Eulina. Brincadeiras Xakriabá. [livro +DVD vídeo documentário]
XACRIABÁ, Ranison. Wamhuire. [Filme documentário – DVD com encarte]
XUKURU-KARIRI, Giselma. Cantos do Coité. [Filme documentário – DVD com encarte]

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Inês. Relatório técnico do projeto Os Livros de Autoria Indígena na


Ampliação do Espaço Literário ( Pq1, 2014–2018). CNPq, 2018.
———. Indigenous and juvenile: when books from villages arrive at bookstores. In:
Stephens, John et alii (Org.). The Routledge Compagnion to International Children’s
Literature. Londres: Routledge – Taylor and Francis Group, 2017.
———. Experiência literária em terra indígena, In: Textos do Brasil. Brasília: Ministério
das Relações Exteriores, 2012. v. 19.
———. Formação Intercultural de Educadores Indígenas na área de Língua, Arte e
Literatura na UFMG. In: Daniel Mato. (Org.). Educación Superior, colaboración
intercultural y desarrollo sostenible / Buen vivir – Experiencias en America Latina.
Caracas: IESALC/UNESCO, 2009.
———. Desocidentada. Experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009.
———. Ensaios sobre a literatura indígena contemporânea no Brasil. São Paulo,
Programa de Comunicação e Semiótica – PUC, 1999. Tese de doutorado inédita.
ALMEIDA, Maria Inês; QUEIROZ, Sonia. Na captura da voz. As edições da narrativa oral
no Brasil. Belo Horizonte, Autêntica e FALE/UFMG, 2004.
ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e Manifesto Antropófago
(1928). Disponível em: <ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>.
BACHELARD, Gaston. O racionalismo aplicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leila Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1979.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio D’Água, 1984.
BRANCO, Lúcia Castello; BRANDAO, Ruth Silviano. Literaterras – as bordas do corpo
literário. São Paulo: AnnaBlume, 1995.
CAMPOS, Haroldo. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 2004.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo,
Editora 34, 1997. vol. 1.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz M. N. da Silva. São
Paulo: Perspectiva, 1971.
———. Gramatologia. Trad. Mirian Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
KAXIXÓ, Glayson. O povo Kaxixó compreendendo a sua história no seu jeito de
comunicar. Belo Horizonte: Literaterras, 2012.
JOSÉ, Oiliam. Indígenas de Minas Gerais. Belo Horizonte: Movimento Perspectiva, 1965.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
LACAN, Jacques. Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
———. Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1964.
———. Du miel aux cendres. Paris: Plon, 1967.
———. L’origine des manières de table. Paris: Plon, 1968.

186
———. L’homme nu. Paris: Plon, 1971.
———. Mitológicas I. O Cru e o Cozido. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac
& Naify, 2004.
———. Paris, 23 de junho de 1998. Correspondência inédita
LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig. O encontro inesperado do diverso. Lisboa:
Rolim, 1994.
———. Um falcão no punho. Diário I. Lisboa: Rolim, 1985.
———. Os cantores de leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
LOPES, Silvina Rodrigues. A legitimação em Literatura. Lisboa: Cosmos, 1998.
MALLARMÉ, Stephane. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Edição facsimilar.
São Paulo: Perspectiva, 2006. Coleção Signos, dirigida por Augusto de Campos.
MATEUS, Agostinho Manduca (Org.). Huna Hiwea / O Livro Vivo. Belo Horizonte:
Literaterras, 2012.
MAXAKALI, João Bidé et al. Tikmu’un mãxakani’yõg mimãti’ ãgtux yõg tappet / O Livro
Maxakali Conta Sobre a Floresta. Belo Horizonte: Literaterras, 2012.
MAXAKALI, Rafael et al. Hitmã’ãx / Curar. Belo Horizonte: Literaterras, 2012.
NARBY, Jeremy. A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber. Trad. Jorge Bastos. Rio
de Janeiro: Dantes, 2018.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1995.
ROSÁRIO, Pe. Manuel da Penha. Língua e Inquisição no Brasil de Pombal. 1773. Rio de
Janeiro: UERJ, 1995.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
VARELA, Maria Helena. O heterologos em língua portuguesa: elementos para uma
antropologia situada. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002.
XACRIABÁ, Professores. O tempo passa e história fica. Belo Horizonte: SEEMG, 1997.
———. Literatura Xacriabá. Belo Horizonte: Literaterras, 2005. [caixa com 6 volumes]
XUKURU-KARIRI, Giselma. Cantos do Coité. Belo Horizonte: Literaterras, 2011. [filme
documentário]

187
CRÍTICA
LITERÁRIA
NABIL ARAÚJO Se há uma inclinação literária coletiva, no
temperamento cultural mineiro, é para
Nos 70 anos de Roberto Acízelo de Souza, a crítica. Todas as qualidades exigíveis
a quem dedico este texto. da crítica verdadeira, encontramos no
espírito mineiro ​—​  objetividade, argúcia,
plasticidade, paciência, bom gosto, capa-
cidade de admirar, tudo que faz da crítica
uma atividade criadora, encontramos por
aqui. O mineiro é naturalmente crítico.1

1 LIMA, Alceu Amoroso. Voz de


Minas: ensaio de sociologia
regional brasileira. São Paulo:
Abril Cultural, 1983 [1944], p. 79.

188
PREÂMBULO (1744, Porto, Portugal – 1810, Moçambique),
Silva Alvarenga (1749, Ouro Preto, MG – 1814,
A historiografia literária nacional concebe, por Rio de Janeiro), Alvarenga Peixoto (1743 [ou
via de regra, o desenvolvimento do pensa- 1744], Rio de Janeiro – 1792, Angola), Basílio
mento crítico entre nós como um percurso da Gama (1741, Tiradentes, MG – 1795,
constituído por algumas fases ou períodos Lisboa) e Santa Rita Durão (1722, Cata
fundamentais.2 Assim, convencionou-se Preta, MG – 1784, Lisboa). A se considerar a
distinguir do período colonial da crítica no célebre e influente tese de Antonio Candido
Brasil, dominado pelos preceitos do neo- na Formação da literatura brasileira (1959), o
classicismo europeu, um período romântico, advento da dita Escola Mineira se identificaria,
nacionalista e historicista, surgido logo após na verdade, com a emergência de um “sistema
a Independência, ao qual se sucederá, nas literário” propriamente dito no Brasil, momen-
últimas décadas do século XIX, um período to este então marcado pela confluência de três
naturalista-positivista, além de um momento correntes de gosto e pensamento oriundas
simbolista-decadentista, bem como, na primei- da Europa: o Neoclassicismo ​—​ imitação do
ra metade do século XX, um período moder- Classicismo francês ​—, a Ilustração ​—​  ideolo-
nista, o qual, por sua vez, se desdobrará numa gia setecentista de propagação das Luzes ​—, o
“nova crítica”, de feição eminentemente acadê- Arcadismo ​—​ reação contra o maneirismo nas
mica. Sem endossar o caráter teleológico de agremiações denominadas Arcádias (Itália).4
que normalmente se imbui essa narrativa em Candido julga por bem generalizar para
nossa historiografia literária, procurarei esbo- o período em questão a última das referidas
çar aqui, de modo inevitavelmente lacunar, um designações, de modo a englobar as outras
panorama da contribuição de Minas e/ou de duas, forjando, com isso, a seguinte fórmula:
literatos mineiros para cada um dos referidos “Arcadismo = Classicismo francês + herança
períodos do pensamento crítico no Brasil. greco-latina + tendências setecentistas”,
entendendo-se por estas “o culto da sensibi-
A “ESCOLA MINEIRA” E A CRÍTICA lidade, a fé na razão e na ciência, o interesse
NEOCLÁSSICA NO BRASIL pelos problemas sociais”, em síntese, a
premissa de que “o verdadeiro é o natural, o
Como observou José Paulo Paes,3 uma vida natural é o racional”. A literatura seria, desse
literária em Minas Gerais só passa a existir na modo, “expressão racional da natureza, para
segunda metade do século XVIII, quando, em assim manifestar a verdade, buscando, à luz
função de sua riqueza aurífera e diamantífera, do espírito moderno, uma última encarnação
a capitania passa a ser o eixo econômico do da mimesis aristotélica”.5 Em suma:
Brasil, e Vila Rica (atual Ouro Preto) se conver-
te numa espécie de “Weimar montanhesa”, na O Arcadismo é, pois, consciência de inte-
qual emerge o principal movimento poético de gração: de ajustamento a uma ordem na-
nossa literatura colonial, a chamada “Escola tural, social e literária, decorrendo disso
Mineira”, denominação sob a qual se costuma a estética da imitação, por meio da qual o
reunir a produção de autores, como Cláudio espírito reproduz as formas naturais, não
Manuel da Costa (1729, Mariana, MG – 1789, apenas como elas aparecem à razão, mas
Ouro Preto, MG), Tomás Antônio Gonzaga como as conceberam e recriaram os bons

2 Baseio-me, aqui, sobretudo em: A literatura no Brasil. 5 v. 2 ed. Rio 3 Verbete “Minas Gerais”, in: PAES,
BOSI, Alfredo. História concisa da de Janeiro: Sul Americana, 1968– José Paulo; MOISÉS, Massaud
literatura brasileira. 50 ed. São 1970; COUTINHO, Afrânio; SOUSA, (Org.). Pequeno dicionário de lite-
Paulo: Cultrix, 2015; CANDIDO, J. Galante de (Org.). Enciclopédia ratura brasileira. São Paulo: Cultrix,
Antonio. Formação da literatura de literatura brasileira. 2 v. 2 ed. rev. 1967, p. 160.
brasileira: momentos decisivos. ampl. atual. São Paulo: Global; Rio
2 v. 3 ed. São Paulo: Martins, de Janeiro: Fundação Biblioteca 4 CANDIDO, Antonio. Formação da
1969; COUTINHO, Afrânio (Org.). nacional/DNL; Academia Brasileira literatura brasileira: momentos
Caminhos do pensamento crítico. de Letras, 2001; PAES, José Paulo; decisivos. v. 1. 3 ed. São Paulo:
2 v. Rio de Janeiro: Pallas; Brasília: MOISÉS, Massaud (Org.). Peque- Martins, 1969, pp. 43–4.
Instituto Nacional do Livro, 1980; no dicionário de literatura brasileira.
COUTINHO, Afrânio (Org.). São Paulo: Cultrix, 1967. 5 Ibid., p. 45.

189
autores da Antiguidade e os que, moder- neoclássico a um período onde Marília evolui

CRÍTICA LITERÁRIA   NABIL ARAÚJO


namente, seguiram a sua trilha.6 […] A com os seus ademanes caprichosos, onde
autoridade da tradição garantia o empre- Silva Alvarenga traça as volutas amaneiradas
go das regras que, uma vez descobertas dos rondós, e que aliás se articula como o
pelos antigos, deviam perdurar, desde que Barroco de Minas e do Rio”.9 Afrânio Coutinho,
eram a própria manifestação da ordem por sua vez, chamou a atenção, com vistas ao
natural, e esta não muda. […] As regras da supracitado poema crítico, que, nele, tendo
retórica e da poética limitavam o indiví- sido composto numa época de transição, o
duo em benefício da norma, curvando-o à “espírito pré-romântico já se imiscui por entre
razão natural, banindo as temeridades do as muralhas do Classicismo ou Neoclassicis-
engenho, podando na fantasia o estranho mo”, de modo que: “Ora são formas clássicas
e o excêntrico, que se sobrepõem à ordem veiculando ideias pré-românticas, ora ideias
racional da natureza em vez de espelhá-la.7 pré-românticas substituindo conceitos clássi-
cos e apontando para o Romantismo”.10
Assim sendo, a crítica, nesse contexto,
ocupava-se de reafirmar e resguardar as A CRÍTICA ROMÂNTICA
regras clássicas do gosto e da composi-
ção verbal, no mais das vezes por meio de A indecisão e o sincretismo percebidos por
declarações de princípios em versos, como Coutinho na arte poética de Silva Alvarenga
era comum nos séculos XVII e XVIII na Europa irão se acentuar, segundo o autor, nas duas
(Pope, Lope de Vega etc.), à guisa de peque- primeiras décadas do século XIX, a ponto de
nas artes poéticas, tais como as eventualmen- ele atribuir a uma figura de destaque do refe-
te compostas por Cláudio Manuel da Costa, rido período, como José Bonifácio, “o papel de
Silva Alvarenga, entre outros. Típico exemplo precursor pré-romântico, de caráter de transi-
é o poema crítico, de Silva Alvarenga, “A José ção e sincretismo”.11 A crítica romântica pro-
Basílio da Gama. Termindo Sipílio”, que, priamente dita ​—​  concordam nisso Coutinho
iniciando-se com os versos: “Gênio fecundo e Candido ​—​ só se iniciará com o grupo da
e raro, que com polidos versos / A natureza revista Niterói, ao qual pertencia Gonçalves
pintas em quadros mil diversos: / Que sabes de Magalhães, autor de Suspiros poéticos e
agradar, e ensinas por seu turno / A língua, saudades (1836), “primeira figura a ocupar a
que convém ao trágico coturno”, sentencia, história do romantismo, não somente como
ainda: “Da simples natureza guardemos sem- poeta, senão também como teorizador das
pre as leis, / Para mover-me ao pranto convém transformações em curso”.12
que vós choreis. / Quem estuda o que diz, na Candido, para quem a “crítica literária do
pena não se iguala / Ao que de mágoa e dor tempo do romantismo é quase toda muito me-
geme, suspira e cala”, ou ainda: “Vós do péssi- díocre, girando em torno das mesmas ideias
mo gosto os mais prezados filhos, / Deixai ao básicas, segundo os mesmos recursos de
gênio luso desimpedida a estrada, / Ou Boile- expressão”, observa, contudo, que, do ponto de
au contra vós torne a empunhar a espada”.8 vista histórico, “ela deu amparo aos escritores,
A tipicidade neoclássica, nesse caso, não orientando-os, confirmando-os no sentido do
se declina livre de certa cor local, por assim nacionalismo literário e, assim, contribuindo
dizer. “Parece, com efeito, algo forçado”, de modo acentuado para o próprio desenvol-
observou, a propósito, Candido, “chamar vimento romântico entre nós”.13 Por crítica, no

6 Ibid., p. 53. 9 CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 44. 11 Ibid.

7 Ibid., p. 55. 10 Verbete “Crítica”, in: COUTINHO, 12 Ibid.


Afrânio; SOUSA, J. Galante de
8 ALVARENGA, Manuel Inácio da (Org.). Enciclopédia de literatura 13 CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 328.
Silva. A José Basílio da Gama. brasileira. v. 1. ed. 2. rev. ampl.
Termindo Sipílio. In: COUTINHO, atual. São Paulo: Global; Rio de
Afrânio (Org.). Caminhos do pensa- Janeiro: Fundação Biblioteca
mento crítico. v. 2. Rio de Janeiro: nacional/DNL; Academia Brasileira
Pallas; Brasília: Instituto Nacional de Letras, 2001, p. 552.
do Livro, 1980. pp. 1268–70.

190
referido período, dever-se-ia entender, segundo A nebulosa, de Joaquim Manuel de
Candido: [I] “as definições e interpretações Macedo (sete partes).17
gerais da literatura brasileira”; [II] “os esforços
para criar uma história literária, superando a Como se vê, na obra crítica de Bernardo
crítica estática e convencional do passado”; [III] Guimarães encontram-se contempladas as
“as manifestações vivas da opinião a propósito três vertentes que compõem a crítica românti-
da arte literária e dos seus produtos atuais”.14 ca segundo Candido: definições e interpreta-
Com o fim da floração arcádica e o declí- ções gerais da literatura brasileira; esforços de
nio da indústria de mineração, o meridiano historiografia literária; opiniões a propósito da
intelectual do Brasil desloca-se de Vila Rica produção literária contemporânea. De escopo
para o Rio de Janeiro, de modo que a capita- mais restrito e menor repercussão, poder-se-
nia das Minas Gerais “entra numa fase de ma- -ia apontar, ainda, as contribuições de José
rasmo quase completo”, observa José Paulo Vieira Couto de Magalhães (1837, Diamantina,
Paes, acrescentando: “O próprio Romantismo MG – 1898, Rio de Janeiro) e de João Salomé
teve em MG um único representante de relevo, Queiroga (1810 [ou 1811], Diamantina [ou Vila
Bernardo Guimarães, bastante estimado em do Príncipe], MG – 1878, Ouro Preto, MG).
seu tempo como poeta lírico e satírico, embo- Quanto ao primeiro, identificado, na juven-
ra a popularidade lhe adviesse sobretudo dos tude, com ideias românticas, preocupou-se
romances, notadamente d’A escrava Isaura”.15 com o “Destino das letras no Brasil”, título
Quanto a Bernardo Guimarães (1825– de ensaio por ele publicado em partes, ao
1884, Ouro Preto, MG), costuma-se dar o longo de 1859, na Revista da Academia de
devido destaque também à sua contribuição São Paulo, “importante documento acerca
para a crítica e os estudos literários, que “se da vida literária e estudantil da geração
encontra nos diversos prólogos que escreveu conhecida como ultrarromântica, […] à qual
para seus livros de poesia e prosa narrativa, pertenceram também, entre outros, Álvares
bem como em duas séries de longos artigos de Azevedo, Bernardo Guimarães, Aureliano
publicados respectivamente nos periódicos Lessa, Francisco Otaviano”.18
Ensaios literários e A atualidade”, esclarece Quanto ao segundo, ajudou a fundar e par-
Roberto Acízelo de Souza,16 acrescentando: ticipou ativamente da Sociedade Filomática,
ligada à Faculdade de Direito de São Paulo, a
I. A primeira série mencionada é consti- respeito da qual afirmou o supracitado Couto
tuída por quatro artigos, genericamente de Magalhães que “teve como consequência
intitulados “Reflexões sobre a poesia desenvolver o entusiasmo pela glória literária,
brasileira”. No primeiro (1847), propõe por em relevo alguns talentos verdadeiros e
um programa para a nacionalização preparar para a vida da imprensa essa primei-
plena da poesia brasileira, a partir do ra mocidade”.19 Da contribuição teórico-crítica
qual empreende, nos artigos subsequen-
tes, análises de poetas específicos; no
segundo (1847), Gonçalves de Magalhães; 14 Ibid.
no terceiro (1849), Odorico Mendes;
15 PAES, José Paulo; MOISÉS,
no quarto (1850), Bernardino Ribeiro e Massaud (Org.), op. cit., p. 161.
Dutra e Melo.
16 SOUZA, Roberto Acízelo (Org.).
Historiografia da Literatura
II. A segunda série de artigos, toda publi- Brasileira: textos fundadores
cada em 1959, tem estrutura semelhante (1825–1888). v. 1. Rio de Janeiro:
à da anterior: o primeiro expõe uma Caetés, 2014, p. 246.

concepção de crítica literária e um 17 Ibid., pp. 246–7.


programa de militância neste gênero de
trabalho intelectual, funcionando como 18 Ibid., p. 73.

introdução às análises específicas de 19 COUTO DE MAGALHÃES apud


obras e autores empreendidas nos artigos CASTELLO, José Aderaldo. Mani-
subsequentes: Os Timbiras, de Gonçalves festações literárias da Era Colonial
(1500–1808/1836). [A literatura
Dias (quatro partes); Inspirações do brasileira, v. 1]. São Paulo: Cultrix,
claustro, de Junqueira Freire (três partes); 1969, p. 229.

191
de Queiroga para o grupo, reconhecem-se do outono. Nele, a certa altura, Bernardo

CRÍTICA LITERÁRIA   NABIL ARAÚJO


suas “propostas renovadoras no sentido de Guimarães ressente-se do elogio feito por
assegurar-se à literatura brasileira cará- Valentim Magalhães a certo “poeta novo de
ter nacional nos temas e na linguagem”;20 Minas”, Augusto de Lima (1859, Nova Lima,
segundo José Aderaldo Castello, “o que J. S. MG – 1934, Rio de Janeiro), em detrimento
Queiroga pretendia realizar era uma poesia dele próprio, “maior poeta” da província, nas
nacional, inspirada em motivos populares e palavras de Magalhães, “outrora tão ardido
em ‘linguagem brasileira’, e foi ele talvez um e fecundo”, mas que “hoje se esteriliza numa
dos primeiros, se não o primeiro, a cogitar do apatia mórbida”.24
problema de diferenciação do nosso idioma”.21 Ex-aluno da Faculdade de Direito de São
Paulo, Augusto de Lima ganharia notorieda-
A CRÍTICA NATURALISTA-POSITIVISTA de como poeta, abolicionista e republicano;
quando governador provisório de Minas
No “Prólogo” a Folhas do outono (1883), (1891), decidiu a mudança da capital de Ouro
escrito em Ouro Preto a 10 de agosto de Preto para Belo Horizonte; fundou a Facul-
1882, Bernardo Guimarães ataca “a moderna dade Livre de Direito de Minas Gerais e foi
escola poética, hoje em voga no Brasil por membro da Academia Brasileira de Letras.
importação”, escola literária “que se subjuga Sua obra foi incluída por Sílvio Romero
a um sistema crítico-filosófico-histórico- na corrente realístico-social que reagiu ao
-filológico-etnográfico-sociológico, etc., etc.”, romantismo.25
bem como a “moderna crítica literária”, que, Além de Augusto de Lima, avultam, ainda,
“atrelada ao carro da filosofia positivista, que na perspectiva do espírito estético da era
hoje predomina, e identificando-se com ela, realista-naturalista-positivista no Brasil, os
pretende cortar as asas à inspiração, vedar- nomes de Júlio Ribeiro (1845, Sabará, MG
-lhe o espaço livre, e arrastar-se fatalmente – 1890, Santos, SP), cujo romance A carne
por uma senda por ela cientificamente de- (1888), nas palavras de José Paulo Paes,
marcada”.22 Como observa Afrânio Coutinho, “malgrado o reduzido valor literário, implantou
o texto “mostra bem a reação contra a escola polemicamente o Naturalismo entre nós”, e
que, na década de 80, estava consolidada de Afonso Arinos (1868, Paracatu, MG – 1916,
nas letras brasileiras ​—​ a realista (em poesia, Barcelona, Espanha), “prosador vigoroso
parnasiana)”, entoando “os últimos acordes que, com os contos de Pelo sertão [1898], nos
do romantismo, que, entretanto, a esse tempo quais registrou aspectos da vida sertaneja
era considerado por Sílvio Romero já morto”; no Planalto Central, inaugurou oficialmente o
reação que, portanto, “tem endereço evidente, regionalismo em nossa novelística”.26
o sistema crítico-filosófico-sociológico positi- Dito isso, reconhece-se que a crítica
vista e naturalista e, em poesia, a forma que naturalista-positivista capitaneada no Brasil
prefere a escola, o verso alexandrino”.23 pela chamada “Escola do Recife” (Tobias
Mostra do desprezo que a “moderna Barreto, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua,
crítica” de base naturalista-positivista- entre outros) não teve em Minas senão um
-republicana reservaria ao recalcitrante de seus centros de difusão, subordinado, en-
romantismo do autor de A escrava Isaura quanto tal, ao espírito geral da época, assim
pode ser colhida no próprio “Prólogo” a Folhas definido por Afrânio Coutinho:

20 SOUZA, Roberto Acízelo (Org.), v. 1. Rio de Janeiro: Pallas; Brasília: 25 Cf. verbete “Antônio Augusto
op. cit., p. 210. Instituto Nacional do Livro, 1980. de Lima”, de Péricles Eugênio
pp. 347–8. da Silva Ramos, in: PAES, José
21 CASTELLO, José Aderaldo. Mani- Paulo; MOISÉS, Massaud (Org.).
festações literárias da Era Colonial 23 COUTINHO, Afrânio (Org.). Pequeno dicionário de literatura
(1500–1808/1836). [A literatura Caminhos do pensamento crítico. brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967,
brasileira, v. I]. São Paulo: Cultrix, v. 1. Rio de Janeiro: Pallas; Brasília: pp. 132–3.
1962, p. 231. Instituto Nacional do Livro, 1980,
p. 347. 26 PAES, José Paulo; MOISÉS,
22 GUIMARÃES, Bernardo. Prólogo. Massaud (Org.), op. cit., p. 161.
In: COUTINHO, Afrânio (Org.). 24 GUIMARÃES, Bernardo, op. cit.,
Caminhos do pensamento crítico. p. 353.

192
No Brasil, a crítica naturalista e positi- Guimaraens (1870, Ouro Preto, MG – 1921,
vista foi cultivada pela poderosa geração Mariana, MG), “sempre se mostrou avessa às
surgida em 1870. Em todos os centros atividades gregárias: tendo vivido obscura e
intelectuais, ela foi impregnada daquela solitariamente em Mariana, […] passou quase
mentalidade. É a geração do materia- despercebido de seus contemporâneos”.29
lismo. A essa geração de críticos deve a Com a difusão póstuma de sua obra, passou
literatura brasileira a consolidação do a ser considerado um dos maiores poetas
pensamento crítico em termos rigorosos, brasileiros de todos os tempos.
embora à luz de concepções filosóficas Além dos já mencionados, destacam-se,
e científicas hoje sujeitas a contestação. ainda, no grupo simbolista mineiro, os poetas
Todavia, o espírito de rigor metodoló- Mamede de Oliveira (1887, Paraisópolis, MG
gico, da busca de uma base teórica para – 1913, Belo Horizonte, MG), Archangelus de
o exercício da crítica, de uma criterio- Guimaraens (1872, Ouro Preto, MG – 1934,
logia e uma metodologia ficaram como Belo Horizonte, MG), irmão e discípulo
contribuição definitiva […]. É preciso de Alphonsus, e, sobretudo, Severiano de
não esquecer que a essa vigorosa plêiade Rezende (1871, Mariana, MG – 1931, Paris),
de grandes espíritos deveu o Brasil a sua amigo de Alphonsus, “cujos Mistérios [1920],
verdadeira independência com a implan- com seu luciferismo metafísico e suas exorbi-
tação da República, de modo a permitir- tâncias verbais, constituem um livro por todos
-nos qualificar a época de 1870 a 1900 de os títulos singular”.30 Para Massaud Moisés,
a Renascença Brasileira.27 se “o misticismo e a tese da salvação religiosa
circunscrevem o poeta na área do Simbolis-
A CRÍTICA SIMBOLISTA mo, […] a cenografia utilizada para exprimi-
-los denota evidente progresso em relação
A reação contra o materialismo e o cientifi- aos simbolistas de primeira hora”, de modo
cismo da doutrina naturalista-positivista na que “em Severiano de Rezende se evidenciam
atividade crítico-literária de fins do século alguns ingredientes precursores da nossa
XIX e início do XX não se deveu somente a vaga literatura surrealista”; em suma, trata-se
românticos recalcitrantes, como Bernardo de “uma das figuras de primeira plana da fase
Guimarães, tendo havido também, por influ- epigonal do nosso Simbolismo”.31
ência francesa, um movimento de revalori- E também à crítica simbolista Rezende
zação da subjetividade, da interioridade, da deu a sua contribuição. Se, nesse particular,
espiritualidade que desencadearia o que se nossa historiografia literária confere a justa
convencionou, então, chamar de simbolismo, centralidade aos nomes do carioca Gonzaga
seja em poesia, seja em prosa, seja, ainda, Duque (1863–1911) e do paranaense Nes-
em crítica. “A crítica literária também acordou tor Vítor (1868–1932), Andrade Muricy nos
cedo para o reconhecimento dessa visão lembra que, residindo em Paris, onde faleceu,
nova da literatura”, observa Afrânio Coutinho, Rezende “teve a seu cargo, durante muitos
acrescentando: “Logo enxergou pela pena de anos, a rubrica ‘Lettres Brésiliennes’, do
Araripe Júnior, e mais tarde de Nestor Vítor, Mercure de France”, sendo sucedido, nes-
que há lugar no fenômeno literário, não só se encargo, pelo carioca Tristão da Cunha
para os aspectos materiais da vida, mas tam-
bém para o lirismo, o sonho, a lenda, o mito, o
ideal, o imaginário, o símbolo”.28 27 COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J.
Minas mostrou-se um terreno fértil para Galante de (Org.), op. cit., p. 553.
o florescimento do movimento. No início do
28 Ibid., p. 554.
século XX, constituíram-se núcleos simbolis-
tas em torno de revistas, como Minas artística 29 PAES, José Paulo; MOISÉS,
(1901), dirigida por Horácio Guimarães e Massaud (Org.), op. cit., p. 161.

Edgar da Mata Machado, e Horus (1902), 30 Ibid.


fundada por Álvaro Viana. Entretanto, lembra
José Paulo Paes, “a figura máxima do Simbo- 31 MOISÉS, Massaud. O simbolis-
mo (1893–1902). [A literatura
lismo mineiro (e, ao lado de Cruz e Sousa, de brasileira, v. IV]. São Paulo: Cultrix,
todo o Simbolismo brasileiro)”, Alphonsus de 1967, p. 200.

193
(1878–1942); indaga-se, a propósito, Muricy: favorável ao seu enraizamento. Tanto

CRÍTICA LITERÁRIA   NABIL ARAÚJO


“É possível que haja nas coleções daquela assim que, um ano após a Semana de Arte
revista, sob a assinatura desses brasileiros, Moderna, à volta d’A revista e do Diário
matéria que inclua vistas e julgamentos acer- de Minas, de Belo Horizonte, agluti-
ca do nosso movimento já no fim”.32 nava-se um grupo de jovens escritores ​
—​  Carlos Drummond de Andrade, Abgar
A CRÍTICA MODERNISTA Renault, Emílio Moura, João Alphonsus
e vários outros ​—​ dispostos a, embora
Nossa historiografia literária costuma reco- sem o radicalismo de seus confrades
nhecer três fases no movimento modernista paulistas, renovar os padrões literários
brasileiro, iniciado em 1922 com a Semana então dominantes; em 1927, na pequena
de Arte Moderna: [I] de 1922 a 1930, a cha- cidade de Cataguases, apareceu a revista
mada “fase heroica”, de intenso experimen- Verde, em cujas páginas pontificaram,
talismo estético, liberdade criadora e franca dentro do espírito de irreverência típico
ruptura com a tradição, com predomínio da de 22, Rosário Fusco, Guilhermino César,
poesia sobre a prosa (Manuel Bandeira, Mário Enrique de Resende, Francisco Inácio
de Andrade, Oswald de Andrade, Cassiano Peixoto e Ascânio Lopes.34
Ricardo, entre outros); [II] de 1930 a 1945,
assimilados os resultados da etapa anterior, A interlocução dos modernistas mineiros com
uma fase de superação do polêmico experi- seus “confrades paulistas”, ora de modo explí-
mentalismo estético da geração de 22 em cito, ora implicitamente, não poderia ser redu-
favor de um redirecionamento político-social zida à mera “reafirmação” das “duas vertentes
da poesia (Carlos Drummond de Andrade, do Modernismo paulista: liberdade expressiva
Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, entre e temática nacionalista”, como sugere Bosi.35
outros) e da prosa (José Américo de Almeida, O editorial do primeiro número de A revista (ju-
José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de lho de 1925), redigido por Carlos Drummond
Queiroz, Graciliano Ramos, entre outros); [III] de Andrade (1905, Itabira, MG – 1987, Rio de
a partir de 1945, uma fase de abertura para Janeiro), intitulado “Para os céticos” ​—​ no qual
novas experiências de linguagem, pautadas se reconhece o “meio belo-horizontino” como
pelo apuramento formal e pela autoconsciên- “um dos mais cultos, polidos e estudiosos do
cia estética, tanto na poesia quanto na prosa Brasil”, a despeito do “injustificável desânimo
(João Cabral de Melo Neto, João Guimarães que faz de Belo Horizonte a mais paradoxal
Rosa, Clarice Lispector, entre outros); para das cidades: centro de estudos, ela não com-
Afrânio Coutinho, “é sobretudo no campo porta um mensário de estudos”, de modo que
da crítica a maior contribuição da fase, com “o ceticismo astucioso e estéril vai comprar
o debate em torno da nova crítica de cunho sua Revista do Brasil, que é de S. Paulo e, por
estético e a superação do impressionismo isso, deve ser profundamente interessante…”36 ​
jornalístico, o que leva a designá-la de fase —, amplia, na verdade, o escopo da revolução
estética do modernismo”.33 modernista iniciada entre os paulistas, para
Sobre a contribuição de Minas para o mo- além da mera “liberdade expressiva”:
dernismo no Brasil, José Paulo Paes observa:
Ação intensiva em todos os campos: na
Desde suas primeiras investidas contra literatura, na arte, na política. Somos
os baluartes do passadismo, a revolução pela renovação intelectual do Brasil,
modernista encontrou em MG ambiente renovação que se tornou um imperativo

32 MURICY, Andrade. A crítica simbo- 34 PAES, José Paulo; MOISÉS, Mas- 36 “Para os céticos”, in: TELES,
lista. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). saud (Org.), op. cit., pp. 161–2. Gilberto Mendonça. Vanguarda
A literatura no Brasil. v. IV. 2 ed. Rio europeia e modernismo brasileiro.
de Janeiro: Sul Americana, 1969, 35 BOSI, Alfredo. História concisa da 6. ed. rev. amp. Petrópolis (RJ):
p. 211. literatura brasileira. 50 ed. São Vozes, 1982, pp. 336–7.
Paulo: Cultrix, 2015, p. 368.
33 COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J.
Galante de (Org.), op. cit., p. 554.

194
categórico. Pugnamos pelo saneamento Grupo Verde de Cataguases”, publicado no
da tradição, que não pode continuar a número 3 da revista Verde, em 1927 ​—​  “Nós
ser o túmulo de nossas ideias, mas antes não sofremos a influência direta estrangei-
a fonte generosa de que elas dimanem. ra. Todos nós fizemos questão de esquecer
Somos, finalmente, um órgão político. o francês” 41 ​—, manifesto cujos signatários
Esse qualificativo foi corrompido pela (Enrique de Resende, Ascânio Lopes, Rosário
interpretação viciosa a que nos motivou Fusco, Guilhermino César, Cristóphoro
o exercício desenfreado da politicagem. Fonte-Boa, Martins Mendes, Oswaldo
Entretanto, não sabemos de palavra mais Abritta, Camilo Soares) afirmam, em relação
nobre do que esta: política. Será preciso aos “rapazes de Belo Horizonte”, que “não
dizer que temos um ideal?37 temos, absolutamente, nenhuma ligação
com o estilo e vida literária deles”, apesar de
Este ideal “se apoia no mais franco e deci- reconhecerem terem sido eles “que primeiro
dido nacionalismo”, acrescenta Drummond, catequizaram os naturais de Minas e nos
nacionalismo que “constitui o maior orgulho animaram com o exemplo para a publicação
da nossa geração”, conclui, “que não pratica a de Verde”;42 e ainda:
xenofobia nem o chauvinismo, e que, longe de
repudiar as correntes civilizadoras da Europa, O lugar que é hoje bem nosso no Brasil
intenta submeter o Brasil cada vez mais ao intelectual foi conquistado tão-somente
seu influxo, sem quebra de nossa originalida- ao dionisíaco empreendimento do forte
de nacional”.38 grupo de Belo Horizonte, tendo à frente
No editorial do segundo número do perió- o entusiasmo moço de Carlos Drummond,
dico (agosto de 1925), “Para os espíritos cria- Martins de Almeida e Emílio Moura, com
dores”, redigido por Martins de Almeida, essa a fundação da A REVISTA, que, embo-
dinâmica entre o nacional e o estrangeiro será ra não tendo tido vida longa, marcou
redefinida em termos próximos aos da antro- época na história da inovação moder-
pofagia oswaldiana ​—​ “Não podemos oferecer na em Minas.43
nenhuma permeabilidade aos produtos e
detritos das civilizações estrangeiras. Temos Fazendo o balanço dessas manifestações,
de recompor a nossa faculdade de assimila- José Paulo Paes observa terem constituído
ção para transformar em substância própria elas “apenas o primeiro momento, necessa-
o que nos vem de fora” 39 ​—, mas a serviço de riamente grupal e polêmico, de afirmação do
um autoproclamado “tradicionalismo” difi- Modernismo mineiro”, e arremata: “Este só
cilmente conciliável com o radical programa daria o melhor de si depois de 1930, quando,
estético-político que Oswald enunciaria em através da obra realizada, seus representan-
seus dois célebres manifestos: “Na verdade”, tes mais bem dotados se fossem impondo
proclamam os moços de A revista, “um dos individualmente no quadro geral do nosso
nossos fins principais é solidificar o fio das Modernismo. Tal foi sobretudo o caso de
nossas tradições. Somos tradicionalistas Carlos Drummond de Andrade”.44
no bom sentido. […] Se adotamos a reforma Para além do inegável protagonismo assu-
estética, é justamente para multiplicar e mido por Drummond no campo literário brasi-
valorizar o diminuto capital artístico que nos leiro pós-1930, isto é, o da chamada segunda
legaram as gerações passadas”.40 fase do movimento modernista (1930–1945),
Esse tradicionalismo nacionalista terá destaque-se aqui a reconhecida importância
ecos, dois anos mais tarde, no “Manifesto do do autor mineiro na pavimentação da via de

37 Ibid., p. 337. 40 Ibid. 42 Ibid., p. 350.

38 Ibid. 41 “Manifesto do Grupo Verde de 43 Ibid.


Cataguases”, in: TELES, Gilberto
39 “Para os espíritos criadores”, Mendonça. Vanguarda europeia e 44 PAES, José Paulo; MOISÉS,
in: TELES, Gilberto Mendonça. modernismo brasileiro. 6. ed. rev. Massaud (Org.), op. cit., p. 162.
Vanguarda europeia e modernismo amp. Petrópolis (RJ): Vozes, 1982,
brasileiro. 6 ed. rev. amp. Petrópolis p. 349.
(RJ): Vozes, 1982, p. 339.

195
acesso à chamada “fase estética”, eminente- Drummond abriu caminho para a ‘Geração de

CRÍTICA LITERÁRIA   NABIL ARAÚJO


mente crítica, segundo Afrânio Coutinho, do 45’” 47 ​—​ isto é, para a geração que promoverá,
modernismo pós-1945. Nenhum texto é mais segundo Coutinho, “uma completa renovação
lembrado, nesse sentido, do que o antoló- dos estudos literários e uma revisão crítica da
gico metapoema drummondiano “Procura literatura brasileira à luz de novos critérios de
da poesia”, verdadeiro manifesto publicado caráter estético”, e graças à qual o problema
no Correio da Manhã em janeiro de 1944, e da crítica atinge “uma fase de autoconsciên-
depois em A rosa do povo (1945); eis sua mais cia, de domínio metodológico e técnico, de
conhecida estrofe: repúdio ao autodidatismo e à improvisação,
dando preferência à formação e produção
Penetra surdamente no reino das palavras. universitária”.48
Lá estão os poemas que esperam ser
escritos. A “NOVA CRÍTICA” E ALÉM…
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta. Coutinho chama de “nova crítica” ao referido
Ei-los sós e mudos, em estado de movimento de renovação dos estudos lite-
dicionário. rários no Brasil iniciado na década de 1940,
Convive com teus poemas, antes de concebendo seus desdobramentos como
escrevê-los. constitutivos do campo literário dito “espe-
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te cializado”, que de lá para cá se consolidou
provocam. academicamente no país:
Espere que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra O movimento da “nova crítica”, como
e seu poder de silêncio. ficou designado esse esforço por encon-
Não forces o poema a desprender-se do trar novos métodos e uma nova atitude
limbo. para a crítica, na base do rigor científico e
Não colhas no chão o poema que se da análise da obra literária em si mesma,
perdeu. isto é, no seu valor estético intrínseco,
Não adules o poema. Aceita-o tornou-se importante na literatura bra-
como ele aceitará sua forma definitiva e sileira nos últimos decênios e continua
concentrada dando os seus frutos. Pode-se, primeira-
no espaço.45 mente, assinalar a formação, em con-
sequência de uma mentalidade coletiva
Para Afrânio Coutinho, trata-se de “excelente entre as novas gerações de estudiosos
amostra de procura de conteúdo crítico, de da literatura, inteiramente infensa à
poética. O poeta deve buscar inspiração pe- concepção anterior, que limitava a crítica
netrando ‘surdamente no reino das palavras’, a ser expressão da resposta emocional do
reconhecendo aquela regra eterna, sempre crítico àquilo que era considerado, por
repetida, de que poesia é palavra”.46 Para sua vez, à luz de uma filosofia romântica,
Gilberto Mendonça Teles, trata-se de “um a expressão da personalidade do autor,
dos mais importantes manifestos poéticos isto é, a obra de arte. Essa mentalidade
já publicados no Brasil. Através dele toma- nova cresceu e se consolidou sob forma
mos contato com as fontes do poema: a de uma consciência grupal, de um espíri-
linguagem. […] chegando a esta concepção to coletivo.49
através de sua própria experiência criadora,

45 “Procura da poesia”, in: TELES, v. 2. Rio de Janeiro: Pallas; Brasília: 48 COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J.
Gilberto Mendonça. Vanguarda Instituto Nacional do Livro, 1980. Galante de (Org.), op. cit., p. 554.
europeia e modernismo brasileiro. p. 1325.
6. ed. rev. amp. Petrópolis (RJ): 49 Ibid., p. 555.
Vozes, 1982, p. 371. 47 TELES, Gilberto Mendonça.
Vanguarda europeia e modernismo
46 COUTINHO, Afrânio (Org.). brasileiro. 6 ed. rev. amp. Petrópolis
Caminhos do pensamento crítico. (RJ): Vozes, 1982, p. 33.

196
Coutinho afirma, em suma, quanto à nova se tornavam evidentes, nos anos 1960 passam
crítica, que, “passada a fase polêmica” ​—​ isto a se delinear com mais clareza as diferenças
é, a da ruidosa campanha levada a cabo por no âmbito da própria crítica universitária que
ele próprio a partir de 1948 contra a crítica se afirmara na década anterior. Como no caso
impressionista e pela profissionalização das de Afrânio e Candido”, conclui Süssekind.53
Letras no Brasil ​—, “entrou-se num período A partir dos anos 1960, com a ascensão
construtivo à luz dos pressupostos que fica- da Teoria da Literatura e sua institucionaliza-
ram como conquistas definitivas […], os críti- ção como disciplina obrigatória nos cursos de
cos jovens a empreender obras de pesquisa e Letras, instaura-se uma nova divisão interna
reavaliação crítica, dentro da nova metodolo- ao campo da crítica acadêmica no Brasil:
gia que renovou o estudo de letras”.50 “para um ponto ao menos algumas vezes
Reenquadrada a narrativa a partir de um convergiram rodapés e tratados: a rejeição ao
ponto de vista externo ao da militância de esforço teórico”; assim: “no interior da própria
Coutinho e seus discípulos ​—​ retome-se aqui crítica universitária, se cria uma divisão quase
o célebre texto de Flora Süssekind sobre o as- inconciliável entre um saber que se pensa e
sunto, “Rodapés, tratados e ensaios: a forma- outro que se contenta com a própria reprodu-
ção da crítica brasileira moderna” (1986) ​—, e ção. Daí, para muitos dos seus ‘pares’ o teóri-
os resultados desse processo revelam-se bem co parecer uma figura meio demoníaca”.54
menos homogêneos do que leva a crer a men- Estas (e outras) tensões e divisões inter-
ção a uma “nova metodologia” no estudo de nas tornam o campo da crítica acadêmica
letras no Brasil. Süssekind observa que, surgi- contemporânea intrinsecamente heterogê-
das as primeiras gerações de formandos das neo. Já o confirmam, aliás, a diversidade e a
faculdades de Filosofia criadas nos anos 1930, disparidade dos nomes arrolados por Afrânio
vai se instaurar a partir de meados da década Coutinho como pretensos representantes e/
seguinte uma tensão cada vez mais evidente ou herdeiros da “nova crítica” no Brasil, vendo-
entre dois modelos conflitantes de crítica -se em xeque, com isso, à revelia do autor, seu
literária: de um lado, o “modelo crítico pautado desejo de homogeneidade: de José Aderaldo
na imagem do ‘homem de letras’, do bacharel, Castello a Luiz Costa Lima; de Eduardo
e cuja reflexão, sob a forma de resenhas, tinha Portella a Roberto Schwarz; de Othon Moacir
como veículo privilegiado o jornal”; do outro, o Garcia a Benedito Nunes; de Franklin de
modelo “ligado à ‘especialização acadêmica’, o Oliveira a Haroldo de Campos; passando por
crítico universitário, cujas formas de expressão Dirce Cortes Riedel, Adonias Filho, Cavalcanti
dominantes seriam o livro e a cátedra”;51 a Proença, Assis Brasil, Oswaldino Marques,
autora sugere, ainda, que essa tensão se en- Anatol Rosenfeld, Massaud Moisés… Entre
carnou de forma paradigmática justamente na os mineiros, são mencionados Fábio Lucas,
campanha movida nos anos 1950 por Afrânio Afonso Ávila, Rui Mourão, Maria Luiza Ramos…
Coutinho contra Álvaro Lins: “A escolha do alvo
não era evidentemente gratuita. Tratava-se ⁂
de um dos críticos mais poderosos da época.
Atingi-lo era, então, acertar em cheio nos pró- A Profa. Maria Luiza Ramos (1926–2015),
prios mecanismos de qualificação intelectual carioca de nascimento radicada em Belo
vigentes”; e ainda: “Tratava-se, em suma, de Horizonte, publicou em 1969 o hoje clássico
substituir o rodapé pela cátedra. E conquistar Fenomenologia da obra literária (4ª edição
o poder até então nas mãos de não especialis-
tas para as daqueles dotados de ‘aprendizado
técnico’, nas palavras de Afrânio. Isto é, para
50 Ibid., p. 557.
os críticos-professores”.52
Vencida a guerra, contudo, e o campo vito- 51 SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados.
rioso, o da crítica acadêmica brasileira, se verá 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
2002, p. 15.
então cindido entre a “crítica estética”, que
Coutinho chama de “nova crítica”, e a crítica 52 Ibid., p. 22.
dialética uspiana capitaneada por Antonio
53 Ibid., p. 24.
Candido: “E, se em fins dos anos 1950, as
incompatibilidades entre Afrânio e Álvaro Lins 54 Ibid., pp. 33–4.

197
revista publicada pela Editora da UFMG em em 1968 o Prêmio Mário de Andrade, e,

CRÍTICA LITERÁRIA   NABIL ARAÚJO


2011), obra que à época foi saudada como com o título Fenomenologia da obra literá-
decisiva contribuição à Teoria da Literatura no ria, foi publicado nesse mesmo ano pela
Brasil. Nas palavras de José Carlos Garbuglio, Editora Forense, do Rio de Janeiro.56
que então resenhou o livro para a Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros: Tornando-se, mais tarde, professora titular da
Faculdade de Letras da UFMG, Maria Luiza lá
O trabalho é sério e merece toda a atuou até a sua aposentadoria em 1983, tendo
consideração, sobretudo porque procura contribuído para a formação de diversas gera-
orientar um estudo de literatura dentro ções de professores de línguas e literaturas em
de planos objetivos e evitar deste modo Minas, bem como para a consolidação de um
os juízos impressionistas e sem consistên- dos principais programas de Pós-Graduação
cia real. M. L. R. está fundamentalmente em Estudos Literários do Brasil. Em trecho do
preocupada em mostrar a existência de já citado texto escrito em comemoração aos
um conjunto de componentes concretos 40 anos de fundação da Faculdade de Letras
sobre os quais se arma a obra de arte lite- da UFMG, bem como aos 35 anos de instala-
rária. Componentes de natureza técnica, ção do Curso de Pós-Graduação em Letras e
sobretudo, que o crítico tem de descobrir aos 10 anos de criação do Programa de Pós-
para explicar com rigor o mundo miste- -Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit/
rioso da arte. Nessa direção, o trabalho UFMG), Maria Luiza testemunhará:
tem um valor inestimável por colocar em
circulação o instrumento adequado para Relendo agora esta longa rememoração,
a análise da obra de arte.55 que está sendo para mim algo como um
pensar alto, vejo que deixo aqui uma
Maria Luiza Ramos ingressou em 1942 na imagem do que foi a minha Faculdade de
segunda turma do curso de Letras da futura Filosofia, ou a minha Faculdade de Letras,
UFMG, iniciado em 1941, tendo se tornado bem diversa, por certo, desta vivenciada
mais tarde livre-docente de Literatura Brasileira pelos colegas que me sucederam. Fico
e, em 1961, professora de Teoria da Literatura feliz ao ver o extraordinário progresso
da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Le- que houve em todos os setores da vida
tras da UFMG. Foi nesse contexto que ela veio acadêmica: os cursos de pós-graduação,
a escrever e a publicar seu destacado trabalho: com orientadores aqui e no exterior; o
apoio à pesquisa; os concursos frequen-
Somente quando a Teoria da Literatura tes; o enriquecimento das bibliotecas e
entrou para o currículo, em 1961, é que dos recursos materiais ​—​ a mudança para
fui chamada para ministrar essa matéria o campus, auditórios, gabinetes, telefo-
nova, que nem eu nem ninguém tinha nes, computadores ​—​ tudo isto que parece
cursado em nossa Faculdade. […] Como conto de fadas aos olhos daquela época
regente de Teoria da Literatura, eu era em que lecionei, por exemplo, História da
responsável não só pelos programas, cultura artística e literária no antigo curso
como pela indicação e a orientação de de jornalismo, do Departamento de Filo-
auxiliares de ensino, e logo de assistentes, sofia, sem contar sequer com um projetor
pois não havia concursos. […] Com uma de slides, que eu tinha de levar de casa.57
bibliografia escassa e em grande parte
inacessível aos alunos por ser em língua
estrangeira, desenvolvi um trabalho
55 GARBUGLIO, José Carlos; RAMOS,
próprio a partir da obra do polonês Maria Luiza. Fenomenologia da
Roman Ingarden, de que havia em nossa Obra Literária. Revista do Instituto
biblioteca uma tradução em alemão ​—​ Das de Estudos Brasileiros, n. 8, 1970,
p. 121.
literarische Kunstwerk ​—​ A obra de arte
literária. […] Dedicando-me, pois, à feno- 56 RAMOS, Maria Luiza. Os caminhos
menologia, escrevi um texto que no Con- da improvisação. Aletria, v. 18,
2008, pp. 64–5.
curso Nacional de Literatura, promovido
pelo Instituto Nacional do Livro, mereceu 57 Ibid., p. 67.

198
Metonimicamente, o exemplo e o testemunho
da Profa. Maria Luiza Ramos atestam a mag-
nitude e a pujança da universitarização dos
estudos literários em Minas Gerais ao longo
de quase oito décadas, algo que deveria ser
encarado (e resguardado) como patrimônio
imaterial do povo deste estado ​—​ e deste país.
Os percalços e os desafios foram muitos,
e ainda o são; a postura requisitada para se
enfrentá-los continua a mesma:

O conhecimento adquirido numa


educação sistemática é, sem dúvida, de
fundamental importância. Entretanto, a
existência não se circunscreve aos limites
de uma consciência individual, e é na
condição caótica do presente que se abre
espaço para a criatividade, num desafio
ao determinismo das relações locais. De
nossa entrega ao imprevisível resultam os
nossos atos. Chame-se a isto coragem, ou
tenha o nome que tiver.58

58 Ibid., p. 68.

199
“EVADIR-SE
COM O OUTRO”:
A LITERATURA
INFANTOJUVENIL
E A LIÇÃO DE
BARTOLOMEU
CAMPOS DE
QUEIRÓS
PAULO FONSECA ANDRADE Fundamental, ao pretender ensinar a
leitura, é convocar o homem para tomar
a sua palavra. Ter a palavra é, antes de
tudo, munir-se para fazer-se menos inde-
cifrável. Ler é cuidar-se, rompendo com
as grades do isolamento. Ler é evadir-se
com o outro, sem, contudo, perder-se nas
várias faces da palavra. Ler é encantar-se
com as diferenças.

Bartolomeu Campos de Queirós

200
Pensar a literatura para crianças e jovens pro- Isso posto, passamos aqui a outra geografia,
duzida em Minas Gerais nos leva inicialmente desenhada por um dos nossos escritores
a refletir sobre o trajeto histórico de textos mais célebres para crianças e jovens, reco-
e autores, sobretudo quando se pretende nhecido pela qualidade poética de sua prosa,
celebrar uma data que marca, de certa forma, mas também por suas reflexões sobre a
a origem de uma comunidade, no caso, o literatura e a escola: Bartolomeu Campos de
Estado mineiro. Traçar, pois, uma carta de Queirós. Tendo conhecido seus textos ainda
viagem ou buscar por uma rosa dos ventos na minha graduação em Letras na UFMG,
que nos indicasse a “formação” da literatura tive a oportunidade de vê-lo falar algumas
infantojuvenil mineira nos levaria certamente vezes. Depois, quando fui segundo editor do
a muitos nomes de escritores que se dedica- Suplemento Literário de Minas Gerais, pude
ram ou “cometeram” obras dirigidas a esse encontrá-lo outras vezes, já que ele fazia parte
público em particular, bem como à história do do nosso conselho editorial. Dessas ocasiões,
livro ​—​ e do livro para crianças ​—​ no Brasil. De guardo em minha memória sua voz pausada
Alexina de Magalhães Pinto, com o registro e e delicada. Seus gestos recolhidos e sua fala
a recriação de várias histórias orais coletadas infinitamente generosa.
junto a narradores populares, a Angela Lago É, pois, ainda pela alegria que, acima de
e seus livros ilustrados, cheios de charadas tudo, me sinto convocado a partilhar aqui
e poesia; de Guimarães Rosa, com a edição algumas ideias suscitadas pelas leituras de
especial de Fita verde no cabelo, a Wander Pi- textos de Bartolomeu com os quais trabalho
roli, reedidado recentemente, com textos tão nas disciplinas de Literatura Infantojuvenil e
importantes como O menino e o pinto do me- Metodologia do Ensino de Literatura (por isso
nino, ou ainda, em tempos de monumentais também a escolha por seus escritos). Pela
desastres ecológicos, Os rios morrem de sede, alegria, mas também pelo desafio, já que as
de Sebastião Nunes ​—​ não apenas com suas palavras que trago vêm mais da incerteza do
obras, mas também com seu trabalho de edi- que do saber, desse espaço entre a afirmação
tor na Edições Dubolsinho ​—​ a Lucia Castello do desejo e a minha própria prática tateante,
Branco com seus livros em ponto de p, em como professor de literatura e professor de fu-
ponto de poesia, muitas vezes acompanhada turos professores. Não poderia ser diferente:
das sofisticadas imagens de Maria José Boa- lendo os textos de Bartolomeu, que sonhava
ventura, a alquimista do azul ​—​ são muitos e alterar sua comunidade através de um “Brasil
diversos, o que em si já é uma alegria. Literário”, quis falar sobre a ética da litera-
Neste texto, contudo, escolhi tomar um tura, propondo-me a pensar a questão do
caminho diferente de um traçado historio- seu ensino, isto é, o seu espaço dentro das
gráfico. Tampouco recorrerei à problemática instituições de ensino.
conceitual das literaturas infantil e juvenil Todos sabem que hoje a disciplina literária
em si, embora reconheça a importância de ocupa um lugar cada vez mais reduzido na
reafirmá-la, a fim de reafirmar também a formação dos nossos alunos, seja durante o
importância dessas literaturas, recusando ensino fundamental ou mesmo o médio. Além
assim a marginalização do seu debate dentro disso, sabe-se também que, no Brasil, apesar
dos estudos literários. Nesse sentido, concor- da vigência de mais de doze anos de um
damos com Peter Hunt que a documento como as “Orientações curricula-
res” propostas pelo MEC,2 nosso ensino de
suposição de que a literatura infantil seja literatura ainda se encontra bastante preso ao
necessariamente inferior a outras literatu- modelo historiográfico e voltado aos proces-
ras ​—​ para não falar que é uma contradição sos seletivos de ingresso às universidades,
conceitual ​—​ é, tanto em termos linguísti- dos vestibulares ao ENEM, dando pratica-
cos como filosóficos, insustentável. Implica mente nenhum espaço à leitura dos textos
também uma improvável homogeneidade
entre texto e abordagem autoral, uma
perspectiva ingênua da relação entre leitor 1 HUNT, 2010, p. 48.
e texto e uma total falta de entendimento
2 Cf. <portal.mec.gov.br/seb/
tanto das habilidades da criança-leitora arquivos/pdf/book_volume_01_
como da forma como os textos operam.1 internet.pdf>

201
propriamente ditos.3 Aliado a esses fatos, que em tudo o que a escola, hoje em dia,

“EVADIR-SE COM O OUTRO”: A LITERATURA INFANTOJUVENIL E A LIÇÃO DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS   PAULO FONSECA ANDRADE
encontramos um sem número de discursos, põe a mão aborrece o educando.6
vindos de muitos lugares, que alardeiam e la-
mentam o declínio da literatura, bem como o O escritor nos indica assim que o problema
grande desinteresse das crianças e jovens pe- da formação de novos leitores ​—​ que toca
los livros e pela leitura, justificado pelas várias a fundo a questão das literaturas infantil e
mudanças ocorridas em nosso passado mais juvenil ​—​ não é apenas unilateral, mas diz res-
recente, como “o novo conceito de ‘cultura’, peito também a práticas e hábitos da própria
particularista e não necessariamente ligado escola que refletem o esvaziamento do seu
às letras; a mercantilização da edição; a ob- discurso de recomendação da leitura. Sem
solescência do livro de papel; [e] o declínio do fazer coro com esses discursos, a antropóloga
ensino da literatura, transformado em meras francesa Michèle Petit tem proposto, através
técnicas de ‘comunicação e expressão’”.4 de pesquisas envolvendo a leitura literária em
Curiosamente, ao lado desses discur- diferentes contextos de crise e em diferentes
sos (e não exatamente em oposição a eles), países e culturas, novas reflexões sobre a
vemos surgir uma quantidade de outras vozes potência e os limites da linguagem literária.
que fazem o “elogio à leitura”, reclamando Apesar de não pensar exclusivamente o espa-
a necessidade de se “construir” leitores ço escolar ​—​ tanto melhor que assim o seja,
e receitando a crianças e jovens a leitura embora suas considerações sobre o mediador
de livros (quase sempre indiscriminados). e a biblioteca falem diretamente ao funciona-
Mas, também, mento da escola ​—, Michèle Petit aponta para
outro entendimento da experiência literária,
poderíamos nos questionar sobre os que nos instiga não apenas a repensarmos
efeitos complexos, ambivalentes, desses nossas práticas de ensino na contemporanei-
discursos alarmistas e convencionais de dade, mas talvez, e sobretudo, a reavaliarmos
elogio à leitura. Por virem dos poderes o lugar instituído da literatura no espaço
públicos, dos professores, dos pais ou dos escolar, a começar por questionarmos a abor-
editores, podem ser percebidos como ou- dagem utilitária que sempre vigorou.
tras tantas ordens, como testemunhos de Assim, neste trabalho, inspirado em certos
impaciência, de uma vontade de controle, textos de Bartolomeu sobre a leitura e a
de domínio. “Você deve gostar de ler”, ou, educação, proponho-me a refletir sobre novas
em outras palavras, “deve desejar o que possibilidades ou novos lugares para a lite-
é obrigatório”. Esses discursos deixam ratura dentro do espaço escolar, procurando
pouco espaço para o desejo.5 afastá-la de “tudo o que contribui para situar
a cultura escrita do lado da ordem estabeleci-
Em um texto de 1988, Bartolomeu Campos da, da contenção, ou sua instrumentalização
de Queirós, que foi também educador e pre- por algum poder”.7
zava demais o papel do professor e da escola, Inicialmente, gostaria de propor um
já nos alertava para um esgotamento desses questionamento sobre essa relação (histó-
discursos e das estratégias escolhidas pelos rica) do ensino da literatura com o ensino
profissionais da educação: da língua portuguesa. Se antes a Literatura
(entendida aqui como instituição) possuía
Tenho participado bastante de seminá-
rios sobre leituras na escola, bibliotecas,
programas de salas de aula e não sei o quê. 3 Devíamos, ainda e sempre, nos
A primeira dificuldade que vejo ao esta- perguntar: por que essa distância,
essa ineficiência do diálogo entre a
belecer esse trabalho é que nem sempre pesquisa acadêmica e as práticas
as pessoas que querem organizá-lo, que de ensino de literatura nas escolas?
querem formar o hábito de leitura nas
4 PERRONE-MOISÉS, 2012, p. 190.
crianças, têm o hábito de leitura. […] Isso
é muito difícil para nós. A escola, sempre 5 PETIT, 2013, p. 22, itálicos meus.
que tenta aproximar a criança da literatu-
6 QUEIRÓS, 2012, p. 58.
ra, enfraquece o trabalho, porque ​—​ é uma
coisa interessante ​—​ a gente pode observar 7 PETIT, 2010, p. 268.

202
um grande prestígio na formação humanista, países orientais fundamentalistas, Michèle
sendo insígnia de alta cultura e consequen- Petit escreve:
temente do poder das altas classes sociais, a
tecnicização da educação e do conhecimento As sociedades ocidentais também estão
levaram-na a esse “casamento infeliz” com doentes, a seu modo, na maneira como
o ensino da língua. Meu questionamento, tratam a língua, nessa ideologia da “co-
ressalto, recai sobre o ensino e não exa- municação” que induz a uma representa-
tamente sobre as relações entre língua e ção da língua como um simples comércio
literatura. A proximidade dessas disciplinas, de informações. Nesta visão rígida do
nos ensinos médio e fundamental, acabou “código” semântico, que se realiza nessa
acarretando, progressivamente, dois efeitos era de primazia do técnico, de multiplica-
que se retroalimentam: o primeiro é de que a ção dos jargões utilitários. […] E esta ma-
literatura é uma ilustração do bom e correto neira de mutilar a língua é acompanhada,
uso da língua portuguesa (por isso ela possui naturalmente, de uma pane do imaginá-
menos espaço no currículo, porque, segundo rio e da “crise do vínculo social”.10
esse pensamento, ela é apenas acessória em
relação à língua, um uso entre tantos outros Em um importante texto de Bartolomeu, inti-
e, certamente, não o mais importante); e o se- tulado “Literatura: leitura de mundo, criação
gundo, de certa forma decorrente do primeiro, de palavra”, ele nos perguntava: “Haverá
é o fato de que a abordagem para se ler textos tarefa mais significativa para a escola do que
literários privilegia os aspectos linguísticos, esta de sensibilizar o sujeito para desvendar
não muito diferente da forma como lemos as dimensões da palavra?” Essa indagação
outros tipos de texto. é lançada justamente por um escritor que,
Daí surge “esse consenso escolar que acreditando na força da palavra literária, da
obriga todos a sublinharem a mesma coisa metáfora como criadora de “arestas, faces,
em um mesmo parágrafo de um conto, a dúvidas”, entendia que a “dúvida gera cria-
entenderem rapidamente as mesmas ideias ções, enquanto a certeza traça fanatismos”.11
principais e a enxergarem todas as obras a Lição que é necessário relembrar, em tempos
partir de um mesmo ponto de vista”,8 dei- de escola sem partido, já que nela certa-
xando assim “pouco espaço para o desejo”, mente a arte e toda a sua ambiguidade não
para a liberdade, para a constituição de terão lugar.
subjetividades, para a literatura propriamente É importante ressaltarmos que, nos textos
dita (entendida agora como uma experiência de Bartolomeu, a metáfora não é utilizada
específica). Com esse modelo de ensino e “apenas como uma figura de linguagem. A
aprendizagem, metáfora é apta também para democrati-
zar o texto”.12 Seguindo seu pensamento,
incorporamos também uma lição não tão percebemos como ele extrai da metáfora as
explícita quanto as definições de dicioná- qualidades maiores da literatura: a liberdade,
rio, mas provavelmente tão contundente a espontaneidade, a fantasia, a inventividade;
quanto: a linguagem é uma espécie de assim como são também esses os mesmos
retórica oficial; uma retórica alheia à vida “elementos que inauguram a infância” (p. 67).
e às palavras que nos constituem ​—​ as pa- Dessa forma, o escritor mineiro une, de forma
lavras subjetivas e emaranhadas com que indissociável, as literaturas infantil e juvenil ao
expressamos nossa experiência vital.9 exercício da democracia, à constituição sub-
jetiva e à experiência da alteridade. Como se
Essa lição, incorporada pelas crianças e
jovens ao longo dos anos escolares, entrelaça
as noções de escrita e leitura às ideias de 8 REYES, 2012, p. 21.
imediatismo e pragmatismo, negando, conse-
9 Ibid., p. 18.
quentemente, as qualidades do texto literário ​
—​ sobretudo aquela que, segundo Barto- 10 PETIT, 2008, p. 116.
lomeu, advém da linguagem metafórica: a
11 QUEIRÓS, 2012, p. 68 e 62.
dúvida, a incerteza. É nesse sentido que, após
refletir sobre algumas formas de ensino em 12 Ibid., p. 74.

203
não fosse suficiente, a partir dessas relações homogeneidade. Daí que a literatura resiste

“EVADIR-SE COM O OUTRO”: A LITERATURA INFANTOJUVENIL E A LIÇÃO DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS   PAULO FONSECA ANDRADE
ele procura formular uma proposta educacio- também a certa ideia de saber, a qual estão
nal que incorpore verdadeiramente a literatu- ligadas as noções mais correntes de legibi-
ra em seus planos. lidade, entendimento e sentido, constante-
“Desvendar as dimensões da palavra” mente usadas contra a própria literatura, para
equivale a “despertar o sujeito para o encanto desqualificá-la, porque a tomam justamente
das palavras” (p. 67). Nesses gestos, estão como um discurso não diferenciado, no
implicadas certamente outras noções de es- campo da comunicação mais rasteira. Mas o
crita e leitura, ou melhor, esses gestos exigem lugar da literatura é outro, e tanto Bartolomeu
do leitor/escritor aprendiz um outro posicio- como sua escrita dão testemunho disso.
namento diante da língua ​—​ da linguagem ​—, Quando a maioria dos alunos de Letras
mais íntimo e amoroso, que comunga com os ingressa na universidade, pouquíssimos
escritores a sua única “verdade inquestioná- associam a literatura ao campo da arte. Não
vel” (p. 71): a dúvida, esse traço de falta e de exatamente por uma questão conceitual, mas
fragilidade que tanto marca o texto como os por saírem de uma experiência de aprendiza-
sujeitos, revelando a abertura (a aventura?) gem em que a literatura, quando convocada,
de sentido e colocando-os em movimento, em está a serviço de um discurso oficial de poder
busca, ou seja, incitando-os ao exercício da que é também um discurso de exclusão. Mas
criação, já que as “palavras têm muitos gos- se concordamos, com María Teresa Andruetto,
tos ​—​  pensava ​—​  e era impossível saber seus que a “literatura e a experiência estética encon-
sabores verdadeiros”.13 tram-se entre os exercícios mais radicais de
Entretanto, sabemos que a maioria dos liberdade”,15 como podemos conceber um ensi-
pais e dos professores, mediadores de leitura no pautado nesses termos apresentados? Seria
para crianças e jovens, temem a dúvida, possível pensarmos, na contramão, em uma
desconfiam desse poder desconstrutor que leitura dos textos literários que ocupe um lugar
está na base da literatura e acabam por fazer clandestino, que busque reintroduzir a literatu-
escolhas por textos “claros”, também chama- ra no campo mais da arte que da história, mais
dos de “pedagógicos”, ou pelas adaptações da linguagem que da língua, mais da fantasia
de clássicos, que costumam justamente que da irrealidade, como sonhava Bartolomeu?
desfazer ou explicar as metáforas. A força da Seria interessante nos determos um pou-
literatura está justamente numa “contenção” co na leitura do documento (já antigo, ele data
da forma e do sentido, em não dizer tudo, de 2006) do MEC aqui referido, as “Orien-
como nos ensina ainda Bartolomeu: tações Curriculares para o Ensino Médio ​
—​ Linguagens, códigos e suas tecnologias”,
Depois descobri que escrever para a que possui uma seção intitulada “Conheci-
criança é um ato de contenção. Eu não mentos de Literatura”.16 Esse documento,
posso nunca, no meu trabalho para a posterior aos PCN, vinha justamente sanar
criança, deixar escorregar toda a minha alguns problemas ou omissões encontrados
fantasia. Tenho que conter o texto, redu- nos mesmos. Em relação à literatura, contudo,
zir o texto, para a criança encontrar nele quase não há menção nos PCN, no caso, o de
lugar para o imaginário dela. É muito
perigoso, eu acho; eu não aceitaria essa
ideia de fazer um texto em que eu escre-
13 QUEIRÓS, 1995, p. 63.
vesse tudo, tudo, tudo da minha fantasia
e não deixasse margem para a criança 14 QUEIRÓS, 2012, p. 56.
entrar com a experiência dela.14
15 ANDRUETTO, 2012, p. 57.

Assim, talvez possamos formular aqui o pen- 16 Apesar de estarmos num processo
samento de que a ética da literatura consiste de assimilação da nova Base Na-
cional Comum Curricular, proposta
num poder de resistência a certos usos ou pelo Ministério da Educação, esse
abusos da linguagem, ou melhor, consiste, ao novo documento não visa a substi-
contrário do que nos quer fazer crer a escola, tuir o documento objeto de nossos
comentários, nem a situação da
na “virtude de ela não poder constituir-se literatura se modifica muito em
em sistema”, em força de convergência e relação ao que aqui será exposto.

204
Língua Portuguesa, onde supostamente ela evidentemente, não possuo respostas prontas.
deveria se alocar, já que não se afirma como Se tomarmos a Literatura como Arte, e é por
um campo de conhecimento autônomo. As isso que seu ensino se justifica (ao menos
pouquíssimas referências que encontramos aqui), por que ela deveria permanecer nesse
são vagas e dão margem a entender a abor- casamento monogâmico e submisso com a
dagem do texto literário em sala de aula como língua, e não partir para relações mais abertas,
ela já vem sendo feita há alguns bons anos. com as outras artes (das quais ela é irmã, é
Assim, a bem dizer, oficialmente a literatura preciso frisar)? Quero dizer bem literalmente:
só é contemplada nesse segundo documento, por que a Literatura não é ensinada como Arte?
as “Orientações”, menos importante que o pri- Vejam bem, não estou pensando nisso como
meiro, e que se apresenta apenas no lugar de uma premissa abstrata; interessa-me, sobretu-
“instrumento de apoio à reflexão do professor”. do, pensar as mudanças estruturais e as novas
Contudo ​—​ eis o que nos interessa ​—, toda metodologias que seriam mais pertinentes a
a argumentação inicial do documento, que se esse novo objeto: a literatura como arte, já que
constrói na direção da autonomia e da espe- aquele que conhecemos é apenas a literatura
cificidade da literatura, parte da afirmação de como gênero textual ou como história, e isso
que a Literatura é uma Arte, inclusive, “como também, grosso modo, nas universidades.
uma de suas manifestações mais privile- Penso que essas questões nos exigem
giadas” (2006, p. 51). Embora isso possa o movimento de rever o nosso objeto, e essa
soar como uma grande obviedade e mesmo exigência se coloca, desde o início, como um
um fato incontestável, no que diz respeito problema que inclui as literaturas infantil e
ao ensino da literatura, dentro das escolas e juvenil, como uma postura a ser tomada antes
mesmo das universidades, não é bem assim mesmo da questão nem sempre frutífera de
que acontece. Continuando a leitura do suas definições. O que é a literatura? Ou: o que
documento, o texto se propõe a responder queremos da literatura? E, para ser mais es-
à pergunta “por que a Literatura no ensino pecífico, o que se ensina na disciplina literária?
médio?” e, para tanto, evoca entre outros A célebre “leitura crítica”? Estamos, com isso,
aspectos o poder de resistência da arte frente atendendo às especificidades desse objeto
ao utilitarismo e também o fato de que, difuso, que, lembremos, aciona “um conheci-
mento que objetivamente não se pode mensu-
nesse mundo dominado pela mercadoria, rar”, como admite ainda o documento do MEC
colocam-se as artes inventando “alegria- (2006, p. 53)? O que fazemos nós da literatura?
zinha”, isto é, como meio de educação da Para responder a essas perguntas, talvez
sensibilidade; como meio de atingir um devamos começar por admitir que nunca
conhecimento tão importante quanto o ensinamos literatura. Não a literatura-arte.
científico ​—​ embora se faça por outros Ensinamos, muito provavelmente, discursos
caminhos; como meio de pôr em questão sobre a literatura: o histórico, o teórico, o téc-
(fazendo-se crítica, pois) o que parece ser nico, o linguístico, o crítico… Provavelmente
ocorrência/decorrência natural; como não possamos fazer diferente, já que a experi-
meio de transcender o simplesmente ência da arte é aí reduzida aos discursos auto-
dado, mediante o gozo da liberdade rizados, articulados, científicos e racionais
que só a fruição estética permite; como que gravitam em torno dela. Pois, como nos
meio de acesso a um conhecimento que ensina Silvina Rodrigues Lopes,
objetivamente não se pode mensurar;
como meio sobretudo, de humaniza- a anti-institucionalidade da literatura
ção do homem coisificado: esses são não é negação superável e muito me-
alguns dos papéis reservados às artes, nos provocação: nenhuma instituição
de cuja apropriação todos têm direito. enquanto tal pode defender o que lhe é
(2006, pp. 52–3) heterogêneo, quer porque, por definição,
não o reconhece, quer porque isso seria
Como se pode observar, só esse peque- pôr-se em causa a si própria.17
no trecho do documento pode nos levar a
muitas discussões. Mas farei aqui apenas
algumas perguntas iniciais, para às quais, 17 LOPES, 2012, p. 33.

205
Pensando dessa forma, chegamos numa circulação da palavra, uma partilha da leitura

“EVADIR-SE COM O OUTRO”: A LITERATURA INFANTOJUVENIL E A LIÇÃO DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS   PAULO FONSECA ANDRADE
aporia? Seria possível nos abrirmos a uma que seja, também e ainda, uma partilha da
experiência de ensino em que a literatura própria experiência literária, que não separa
estivesse livre da domesticação disciplinar, a criação da recepção, sem reduzi-la a um
das avaliações objetivas? Seria possível dar à subjetivismo? Bartolomeu nos indica um
literatura um espaço clandestino, menos ins- caminho: a criação. Ele nos diz:
tituído? Nas pesquisas que realiza em diferen-
tes contextos sociais e culturais, Michèle Petit Acredito demais na capacidade inven-
relata experiências que apontam justamente tiva do homem. Posso afirmar que pela
para uma forte relação entre a leitura literária criação tanto o sujeito se redimensiona
e “a difícil conquista de um espaço […], um como também se acrescenta ao mundo.
pouco clandestino”.18 Mas, Criar, para mim, é a alternativa derradei-
ra para abrandar o peso do não sabido. E
sem dúvida, há também uma contradição eu tenho um desejo imenso de alterar a
irremediável entre a dimensão clandes- comunidade que vivo.21
tina, rebelde, eminentemente íntima da
leitura para si mesmo, e os exercícios Criar, para ele, não era exclusivamente um
realizados em classe, em um espaço trans- papel do escritor, mas também do leitor e do
parente, sob o olhar dos outros.19 professor. A criação está também no olhar que
é lançado sobre o mundo, isto é, na forma como
Certamente essa contradição diz respeito a nos inscrevemos nele, podendo assim alterá-lo.
um conflito entre essa “dimensão clandestina, Por isso, a escola deve não apenas informar a
rebelde”, o exercício radical da liberdade, e tradição, mas convidar à transformação. Con-
os discursos que enquadram a literatura e tudo, em certo sentido, é preciso que a escola
prescrevem formas de ler, dentro de uma ideia seja contra a escola, isto é, que ela tome o par-
de correção e adequação. O escritor francês tido da literatura: servil às políticas de uniformi-
de origem marroquina Daniel Pennac assim zação e ao silenciamento das singularidades,
propõe aos professores de literatura uma ela tende a neutralizar a potência da fantasia:
revisão do lugar institucional dado aos textos
literários nos estabelecimentos de ensino: Vivo numa sociedade que não encara a
fantasia como o mais profundo do ser.
Uma só condição para se reconciliar Quando nos propomos a expressá-la,
com a leitura: não pedir nada em troca. estamos trazendo à tona o que há de mais
Absolutamente nada. Não erguer nenhu- reservado em nós. Daí sentir quão difícil
ma muralha fortificada de conhecimentos é para os processos educacionais a aceita-
preliminares em torno do livro. Não fazer ção da literatura em seu contexto.
a menor pergunta. Não passar o menor A literatura é feita de fantasia. A
dever. Não acrescentar uma só palavra escola, por ser servil, quer transformar
àquelas das páginas lidas. Nada de jul- a literatura em instrumento pedagógico,
gamento de valor, nada de explicação de limitado, acanhado, como se o convívio
vocabulário, nada de análise de texto, ne- com a fantasia fosse um bem menor.
nhuma indicação biográfica… Proibir-se […] E a literatura é feita de palavras, e
completamente “rodear o assunto” […] é necessário um projeto de educação ca-
não se força uma curiosidade, desperta-se. paz de despertar o sujeito para o encanto
Ler, ler e ter a confiança nos olhos que se das palavras.22
abrem, nas cabeças que se divertem, na
pergunta que vai nascer e que vai puxar
uma outra pergunta […] os caminhos do 18 PETIT, 2008, p. 107.
conhecimento não terminam nessa classe:
19 Ibid., p. 125.
eles devem começar nela! 20
20 PENNAC, 1993, p. 121.
Como conseguir esse espaço, essa forma de
21 QUEIRÓS, 2012, p. 65.
silêncio que resguarda as leituras íntimas
e ao mesmo tempo possibilita uma nova 22 Ibid., p. 67.

206
Acredito fortemente que o ensino da leitura a qualquer custo o espaço privilegiado
literária ganhe outra dimensão quando aliado que uma oficina pode nos oferecer, seu
ao que chamo, com Bartolomeu, de “encantar aparente absurdo, sua gratuidade, ca-
as palavras”, e com Lucia Castello Branco, racterísticas que propõem um percurso
de uma “prática da letra”. Trata-se, pois, de de constantes desafios, de constantes
abordar a literatura de um lugar também da descontroles e de constantes riscos.24
criação, isto é, da poíesis, do fazer: escrever
literatura. Assim como no ensino de música, Seremos, um dia, capazes desse ensino,
de artes visuais ou de teatro, alunos e profes- capazes desse modo de viver? Quem vai
sores são implicados numa prática da própria sustentar ​—​ qual governo, qual ministério da
arte em si (sem que isso exclua necessaria- educação, qual diretor de escola, qual profes-
mente também o estudo da história da arte e sor ​—​ a entrega à experiência clandestina e
de suas formas de linguagem) ​—​ talvez como arriscada da arte? Seremos capazes, um dia,
nas oficinas dos antigos artesãos medievais, de assim desejar tal desejo: ensinar literatu-
mas aqui, sem a figura de um mestre. Por que ra protegendo-a da tentação de vinculá-la a
não nos colocarmos (nós, junto aos alunos) um fim específico, uma serventia outra, um
numa relação de proximidade, de intimidade objetivo que não seja o reconhecimento de
com a linguagem, que é também de jogo e de sua insubordinação à comunicação e à simpli-
brincadeira, em suma, a da criação de textos ficação do mundo? Para isso, é preciso admitir
literários, ou simplesmente textos livres? Ensi- que, em qualquer nível,
nar literatura com oficinas de criação poética,
desvendando as dimensões das palavras, o ensino de literatura exige um tempo
descobrindo seus encantamentos. próprio, que nada tem a ver com veloci-
Essa mudança de estratégia é também dades de circulação de informações, um
uma mudança de conceito: dessa forma a tempo de análise e de construção de pers-
literatura passa a ser tomada menos como pectivas, indispensável ao distanciamen-
um corpus de textos canônicos (muitas vezes to face ao fluxo das opiniões. Não se trata
extremamente distante dos leitores, como de conhecer em extensão (quantidade
vivenciamos todos os dias em sala de aula) de obras ou de teorias), mas de perceber
e mais como uma experiência de sujeitos que há um tipo de textos em que o que é
(escritores-leitores) com a linguagem. E aí, importante é a intensidade dos dinamis-
mais profundamente, “[n]ão importa o que mos, de onde decorre a multiplicação das
o autor diz, mas o que o leitor ultrapassa”.23 leituras, as relações entre leitura e escrita,
Nessa experiência, a aprendizagem da língua o desencadear de problemáticas.25
(como outras, de outras ordens) também está
presente, mas de forma diversa: menos direta É justamente a compreensão da importância
e impositiva, menos urgente e funcional, ela do encontro com a literatura (as literaturas
não é obstáculo ou limite à escrita, mas pode infantil e juvenil e seus leitores) que nos
ser parte do jogo, que nunca se apresenta na permite perceber esse desejo que, aliado a
lógica do certo e do errado, do bom e do mal, uma “felicidade clandestina”, transforma,
mas na da aventura do próprio desejo. no célebre conto de Clarice Lispector, uma
Mas, como bem o diz María Teresa menina e seu livro em “uma mulher com o
Andruetto, ao pensar a possibilidade do fun- seu amante”. Nesse conto de Clarice, tomado
cionamento de oficinas de criação literária, aqui como literatura juvenil, onde se narra o
assombro desse encontro, também podemos
a escola onde for inserida deverá lutar ler determinadas micropolíticas de controle
contra o fantasma da escolarização, con- da leitura, do prazer estético, muito presentes
tra a domesticação da literatura, contra no nosso ensino, na nossa prática, que retêm,
as demandas de utilidade e rendimento,
contra as seleções por tema, as classifi-
cações por idade, os questionários e os 23 Ibid.
resumos, os manuais, as antologias, o
24 ANDRUETTO, 2012, p. 85.
aproveitamento dos textos, o dever ser,
o bom e o correto, de modo a respeitar 25 LOPES, 2012, pp. 98–9.

207
numa crueldade das lógicas de poder, os nos colocarmos diante da linguagem e do en-

“EVADIR-SE COM O OUTRO”: A LITERATURA INFANTOJUVENIL E A LIÇÃO DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS   PAULO FONSECA ANDRADE
textos, apenas simulando que eles são dados sino. Certamente, não como um mero código,
a ler. Mas, como ainda nos conta Petit, como nos faz pensar os PCN, mas a literatura
como a experiência radical da linguagem e
mesmo em famílias em que os pais nunca do outro, que, como nos mostra Bartolomeu,
proibiram a leitura, há crianças que leem nos lança na fantasia para nos devolver ao
debaixo dos lençóis, com uma lanterna real. Contudo, não do mesmo modo. Não ao
na mão, contra o mundo inteiro. Há uma mesmo real. “Realidade e fantasia se equi-
dimensão de transgressão na leitura. Se valiam ao perceber que o mundo ganha mais
tantos leitores leem à noite, se ler é com dimensão com a força da fantasia. Todo real
frequência um gesto que surge na sombra, que admiramos é uma fantasia que ganhou
não é apenas uma questão de culpa: corpo. Marcamos nossa presença no mundo
assim se cria um espaço de intimidade, se acrescentamos a ele o que nos é particu-
um jardim protegido dos olhares. Lê-se lar”.30 Só existimos à medida que traçamos
nas beiradas, nas margens da vida, nos a marca, a letra singular da nossa escrita no
limites do mundo. Talvez não se deva mundo, no corpo do desconhecido. Por outro
iluminar totalmente esse jardim. Deixe- lado, a realidade só é legível como mundo
mos à leitura, como ao amor, uma parte através dessas mesmas marcas.
de sombra.26 É também essa lição que o avô do narra-
dor de Por parte de pai ensina ao neto. Esse
Porque, afinal, como nos ensina um garoto avô que escrevia ​—​ como num gesto muito
de 12 anos, após participar de uma oficina de arcaico, ancestral ​—​ nas paredes da casa
leitura a partir do conto “Felicidade clandesti- mostrava ao menino aprendiz que a escrita
na”: “A Clarice acha que a felicidade tem que e a leitura fazem parte de um mesmo gesto,
ser clandestina, porque ser feliz é uma coisa de uma mesma inscrição que tanto revela a
meio fora da lei. É por isso que ela esconde o in-significância dos acontecimentos como
livro, pra esconder a felicidade, para ninguém funda seus sentidos possíveis e provisórios.
tomar dela.” 27
Eis, talvez, o nosso maior desafio como Todo acontecimento da cidade, da casa,
professores de literatura, nossa tarefa ética: da casa do vizinho, meu avô escrevia nas
possibilitar aos nossos alunos a experiência paredes. Quem casou, morreu, fugiu, caiu,
dessa felicidade clandestina, esse espaço matou, traiu, comprou, juntou, chegou,
de transgressão, meio fora da lei, que é, em partiu. Coisas simples, como a agulha
última instância, o espaço da arte, da criação. perdida no buraco do assoalho, ele escre-
Dar esse passo, como testemunha a perso- via. A história do açúcar sumido durante
nagem de Clarice, não é sem sofrimento: é a guerra, estava anotado. Eu não sabia
também admitir, com Blanchot, por que os soldados tinham tanta coisa
a adoçar. Também desenhava tesouras
que a literatura é talvez feita essencial- desaparecidas, serrotes sem dentes, facas
mente para decepcionar, estando sempre
em falta consigo mesma. […] na litera-
tura estaria em jogo alguma afirmação
irredutível a todo processo unificador, 26 PETIT, 2008, p. 146.

não se deixando unificar e ela própria 27 M, 12 anos, sobre o conto “Feli-


não unificando, não incitando à unidade. cidade Clandestina”, de Clarice
[…] Eis também porque a literatura não Lispector, numa oficina de leitura
literária em uma instituição de
é verdadeiramente identificável, se ela acolhimento a crianças em situa-
é feita para ludibriar toda identidade e ção de proteção contra a violência
para enganar a compreensão como poder doméstica, conduzida por Aline
Caixeta Rodrigues.
de identificar.28
28 BLANCHOT, 2010, p. 198.
E é aí, podemos dizer, que a literatura se apre-
29 QUEIRÓS, 2012, p. 80.
senta ​—​ “para criar o desequilíbrio, buscar
outro prumo” 29 ​—​ e nos indica outro modo de 30 Ibid., p. 50, itálicos meus.

208
perdidas. E a casa, de corredor compri- como um eixo e incorporar a escrita, as ofici-
do, ia ficando bordada, estampada de nas, como uma metodologia que diz respeito
cima a baixo. As paredes eram o caderno a essa nova matéria: a literatura-arte. Desde o
do meu avô.31 ensino infantil ao médio. Talvez aí ela recu-
pere seu brilho fascinante e encantatório, e
Dessa casa com suas paredes-cadernos do nos mostre, como de certa forma desejava
avô que vai compilando o mundo à maneira Bartolomeu, que a fantasia, atravessada em
de uma arca de Noé, o menino-narrador faz seu corpo pelo desejo e pela transgressão,
seu primeiro livro, e dele, através de sua fan- nos coloca diante da palavra como uma ferida
tasia, extrai o mundo: “Enquanto ele escrevia, do real, e só assim uma comunidade pode ser
eu inventava histórias sobre cada pedaço da modificada, transformar-se, ir em direção a
parede” (p. 12). Esse avô, que lia o mundo de sua própria utopia, seu belo horizonte.
sua janela, iniciador do menino na escrita, In-confidente da palavra, crente no ato
é também seu primeiro professor, e escre- criador acima de tudo, Bartolomeu acaba por
via “com lápis quadrado de carpinteiro, sem nos legar com sua vasta obra de literatura
separar as mentiras das verdades. Tudo era infantil e juvenil, mas também com suas con-
possível para ele e suas letras” (p. 18). ferências sobre a educação e a literatura, uma
É um espaço semelhante a esse que deve herança antiga dos mineiros: a aspiração por
constituir uma oficina literária. Casa acolhe- uma liberdade maior ​—​  evadir-se com o outro ​
dora e produtora das diferenças, com a janela —, aquela que só nos liberta quando também
aberta para o mundo. Povoada de escritas libertamos o outro. Por isso,
a serem lidas segundo o tempo e a lógica
do desejo e da troca, do prazer e da relação. escrever, então, passa a ser uma responsa-
Convidando a uma fraternidade (não a uma bilidade terrível. Invisivelmente a escrita
homogeneização) estabelecida pela partilha é convocada a desfazer o discurso no qual,
das palavras e seus sabores, nessa dinâmica por mais infelizes que nos acreditemos,
de uma circulação sempre relançada pelo ler- mantemo-nos, nós que dele dispomos,
-e-escrever, escrever-e-ler. Essa casa literária confortavelmente instalados. Escrever,
será, sobretudo, um espaço que permitirá desse ponto de vista, é a maior violência
que existe, pois transgride a Lei, toda lei
experimentação com a palavra, ex- e sua própria lei.33
ploração de cada um em si mesmo,
inter-relação entre a palavra e outras
formas de expressão, até abri-las e nos
abrirmos para um mundo que está em
nós e fora de nós e que é suscetível de ser
lido, perturbado, narrado, compartilhado
e modificado por meio dessa produção.32

A palavra tomada nesse grau de experimen-


tação e liberdade pode enfim abrir e abrir-se
para o fora da “comunicação e expressão” e
relacionar-se tanto com o que é suscetível de
ser lido como com o que resta intraduzível,
mas que talvez possa ser “perturbado”. As
literaturas infantil e juvenil nos mostram isso
de forma muito clara quando abordam assun-
tos tabus para os mediadores: a morte, o sexo,
a tristeza, as minorias sociais, etc.
Em suma, uma oficina literária deve
reconduzir a literatura para seu campo de 31 QUEIRÓS, 1995, pp. 10–1.
origem ​—​ a arte ​—​ e para suas funções e
32 ANDRUETTO, 2012, pp. 79–80.
potências primitivas. Além disso, é preciso
também pensá-la na escola verdadeiramente 33 BLANCHOT, 2001, p. 9.

209
REFERÊNCIAS

“EVADIR-SE COM O OUTRO”: A LITERATURA INFANTOJUVENIL E A LIÇÃO DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS   PAULO FONSECA ANDRADE
ANDRADE, Paulo Fonseca; GAMA-KHALIL, Marisa Martins (Org.). As literaturas infantil e
juvenil… ainda uma vez. Uberlândia: GPEA; CAPES, 2013.
ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Trad. Carmem
Cacciacarro. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. pp. 78–85: Escrever na escola.
BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. Trad.
Alexandre Morales. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. pp. 46–74: A conversa literária
como situação de ensino.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita, v. 1: a palavra plural. Trad. Aurélio Guerra Neto.
São Paulo: Escuta, 2001.
———. A conversa infinita, v. 3: a ausência de livro. Trad. João Moura Jr. São Paulo:
Escuta, 2010.
BRANCO, Lucia Castello (Org.). Coisa de louco. Belo Horizonte: Mazza, 1998.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid. Knipel. São Paulo: Cosac Naify,
2010.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LOPES, Silvina Rodrigues. Literatura, defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão de Feira,
2012. pp. 13–45: A literatura como experiência; pp. 87–99: A paradoxalidade do
ensino de literatura.
ORIENTAÇÕES Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias. Conhecimento de Literatura. MEC, 2006. Disponível em: <portal.mec.
gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>
PETIT, Michèle. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Ed. 34, 2010.
———. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Ed. 34, 2008.
———. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. Trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Ed. 34, 2013.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Contos e poemas para ler na escola. Seleção de
Ninfa Parreiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
———. Por parte de pai. Belo Horizonte: Miguilim, 1995.
———. Sobre ler, escrever e outros diálogos. Organização de Júlio Abreu. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.
REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar: literatura, escrita e educação. Trad.
Rodrigo Petronio. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. pp. 44–53: Ler e brincar, tecer e
cantar: apontamentos a partir de oficina de criação literária.

210
211
POESIA DE
MINAS: SEMPRE
CONTEMPORÂNEA
RAQUEL BEATRIZ JUNQUEIRA GUIMARÃES A contemporaneidade, portanto, é uma
singular relação com o próprio tempo, que
adere a este e, ao mesmo tempo, dele
toma distâncias; mais precisamente,
essa é a relação com o tempo que a este
adere através de uma dissociação e um
anacronismo.1

1 AGAMBEM, 2009, p. 59.


Grifo nosso.

212
Tomamos neste texto a concepção de Melânia Aguiar, por sua vez, nos lembra
Agamben para quem a contemporaneidade é que nos poemas de Cláudio Manuel da Costa
uma relação do sujeito com seu tempo e não
uma temporalidade circunscrita historica- presencia-se o drama do desterrado, do
mente. Consideramos, como o filósofo, que exílio vivido numa terra agreste, sem
“pertence verdadeiramente ao seu tempo, é Ninfas ou Dríades amorosas, fora de
verdadeiramente contemporâneo, aquele que sintonia com as amenidades de uma natu-
não coincide perfeitamente com este, nem reza ou de uma Arcádia paradisíaca. Ora
está adequado às suas pretensões e é, por- considera feia a paisagem local, e turvas
tanto, nesse sentido, inatual”.2 Essa relação as águas do Ribeirão do Carmo, ora cria
firmada na condição de sujeito que, de algum uma fábula (A Fábula do Ribeirão do
modo, se mantém fora de seu tempo, estan- Carmo) para contar a origem mítica do
do nele, é determinante na ação criadora do ribeirão e suas grandezas.5
artista. É ela que possibilita a assunção, os
deslocamentos próprios do processo criativo O ímpeto localista da poesia de Cláudio Ma-
que, por serem em alguma medida anacrôni- nuel da Costa, em contraposição com o espí-
cos, produzem as mais diversas tensões. rito universalista da poesia árcade, seria uma
Ao percorrer as tensões promovidas pela das intempestividades6 poéticas de Minas Ge-
arte de alguns poetas mineiros que se relacio- rais fundadas necessariamente na resistência
naram e/ou se relacionam com seu tempo em e, por vezes, na insubordinação. Pensando
“discronia”, pretendemos pensar a produção assim, podemos ainda acompanhar o pensa-
poética recente (e não tão recente) de Minas mento de Aguiar sobre a relação da poesia de
Gerais. Pela natureza deste espaço optamos Cláudio Manuel da Costa com o seu tempo:
por nos concentrar na produção literária “se considerarmos as condições de existência
impressa, sem, no entanto, abandonar as do intelectual brasileiro à época, veremos que
manifestações da poesia-performance, e da eles exercitaram, na expressão do escritor
poesia visual. argentino Ricardo Piglia, a ‘mirada estrábica’,
A natureza inatual, intempestiva e anacrô- ou seja, um olho posto na tradição europeia
nica da produção poética em Minas Gerais portuguesa, outro na realidade local.”7
parece ter começado no século XVIII. Antonio Esse modo de olhar enviesado para a
Candido, ao comentar a produção poética de realidade e para os paradigmas literários
Cláudio Manuel da Costa, considera que o parece se verificar, ainda que em circunstân-
poeta de Mariana traz para seu texto imagens cias diversas, em outros poetas mineiros (e
recorrentes em torno da pedra, elemento brasileiros). A seu modo e em seu tempo, o
telúrico não europeu, que “rivaliza com a pre- poeta gauche, Carlos Drummond de Andrade,
sença dos troncos, obrigatórios na convenção elabora uma poética de resistência e insubor-
pastoral”.3 Para Candido, “Não será excessivo dinação “mergulhando a pena nas trevas do
acrescentar que, enquanto a maioria dos presente”.8 Ao fazer do presente sua matéria
poemas pastoris, desde a Antiguidade, tem poética, em Mãos Dadas,9 poema do livro
por cenário prados e ribeiras, nos de Cláu- Sentimento do Mundo, Drummond revela o
dio há vultosa proporção de montes e vales, lado obscuro do tempo da vida, por conseguir
mostrando que a imaginação não se apartava “manter fixo o olhar no seu tempo, para nele
da terra natal”.4 perceber não as luzes, mas o escuro”.10

2 Ibid., pp. 58–9. sobre textos gregos, e dois anos an- 8 A expressão “mergulhando a pena
tes, havia atingido uma inesperada nas trevas do presente” é trazida
3 CANDIDO, 1975, p. 88. celebridade com O nascimento da aqui de Agamben. (2009, p. 63).
tragédia, publica as Unzeitgemasse
4 Ibid., p. 89. Betrachtungen, as “Considerações 9 Refere-se diretamente aos versos
intempestivas” com as quais quer “O tempo é minha matéria, o tempo
5 AGUIAR, 2007, p. 104. acertar as contas com seu tempo, presente, os homens presentes, a
tomar posição em relação ao presen- vida presente”.
6 Agamben informa que “Em 1874, te.” (Agambem, 2009, p. 58).
Friedrich Nietzsche, um jovem filó- 10 AGAMBEM, 2009, p. 62.
logo que tinha trabalhado até então 7 AGUIAR, 2007, p. 10.

213
Poetas do passado distante, como Cláudio Meus olhos são pequenos para ver

POESIA DE MINAS: SEMPRE CONTEMPORÂNEA   RAQUEL BEATRIZ JUNQUEIRA GUIMARÃES


Manuel da Costa, e de passado mais recente, todos os mortos, todos os feridos,
como Carlos Drummond de Andrade, podem e este sinal no queixo de uma velha
ser considerados sempre contemporâneos, que não pôde esperar a voz dos sinos.
pois se tornaram uma espécie de âncoras
criativas, figuras formadoras da ideia de Meus olhos são pequenos para ver
poeta e de poesia para muitos escritores e países mutilados como troncos,
escritoras que publicam e publicaram recen- proibidos de viver, mas em que a vida
temente. A eles os escritores das novas e de lateja subterrânea e vingadora.
sucessivas gerações se referem, com eles […]
dialogam e reivindicam proximidade, numa Meus olhos são pequenos para ver
relação sempre inatual ou anacrônica. o mundo que se esvai em sujo e sangue,
Para refletir sobre esses processos criati- outro mundo que brota, qual nelumbo
vos intempestivos, sempre contemporâneos, — mas vêem, pasmam, baixam
optamos por tomar como nosso ponto de an- deslumbrados.11
coragem o diálogo dos poetas recentes com a
poesia de Carlos Drummond de Andrade e as O olhar do sujeito lírico para o seu tempo é de
questões que parecem fundamentar produ- absoluto estranhamento e desconforto. Por
ções poéticas mineiras (ou não): o ofício do meio dele, do olhar, percebem-se as relações
poeta e sua condição no mundo; a luta com e do sujeito com seu tempo, ambos problemá-
o luto das palavras; as relações entre poesia ticos. O mundo partido, os homens partidos
e realidade. do poema-guernica é a manifestação da
Em “Sentimento do mundo”, primeiro posição deslocada do sujeito diante da reali-
poema do livro homônimo do poeta de Itabira, dade absurda. Em estrofes regulares, versos
já se antevê o efeito do olhar anacrônico do decassílabos, o rigor e equilíbrio formais se
sujeito lírico que se vê “morto”, diante de uma contrapõem violentamente aos corpos dete-
realidade “mais noite que a noite”. O eu poé- riorados, espalhados e mutilados, às minas
tico, em meio ao mundo conturbado, sente-se e ao sangue.
“disperso”, “sozinho”, “cheio de escravos”.
Esse olhar inquieto voltado para o tempo A HERANÇA DRUMMONDIANA
presente está radicalmente consolidado em
Rosa do Povo, no poema “Visão 1944”, do No processo de formação permanente da poe-
qual se destacam algumas estrofes: sia mineira (e brasileira), Carlos Drummond
de Andrade será âncora para a reflexão e cria-
Meus olhos são pequenos para ver ção dos poetas das gerações subsequentes.
a massa de silêncio concentrada É o que ocorre com Cacaso, Adélia Prado, Ana
por sobre a onda severa, piso oceânico Martins Marques, Ana Elisa Ribeiro, escritores
esperando a passagem dos soldados. e escritoras que se empenham no exercício
[…] crítico e criativo do tempo presente, estabe-
Meus olhos são pequenos para ver lecendo, nas experiências formais, diálogo
o general com seu capote cinza profícuo com a poética de Drummond. Isso
escolhendo no mapa uma cidade se dá por discussões críticas, ou por citações,
que amanhã será pó e pus no arame. epígrafes, alusões, ironias indiretas ou diretas.
[…] Um dos diálogos mais conhecidos com
Meus olhos são pequenos para ver Drummond é o de Adélia Prado que, em
o corpo pegajento das mulheres 1976, dialoga diretamente com o “Poema de
que foram lindas, beijo cancelado sete faces”, publicado em 1930. Atualizando,
na produção de tanques e granadas. cada vez que lido, tanto seu próprio poema,
[…] quanto o de Drummond, a escritora pede
Meus olhos são pequenos para ver licença poética para discordar do gauchismo
o deslizar do peixe sob as minas, drummondiano:
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.
[…] 11 ANDRADE, 1967, pp. 163–6.

214
Com Licença poética […]
Mar de mineiro é
Quando nasci um anjo esbelto, aquário
desses que tocam trombeta, anunciou: mar de mineiro é
vai carregar bandeira. silvério
Cargo muito pesado para mulher, mar de mineiro é
esta espécie ainda envergonhada. vário
Aceito os subterfúgios que me cabem, mar de mineiro é
sem precisar mentir. sério
Não sou tão feia que não possa casar, mar de mineiro é minério
acho o Rio de Janeiro uma beleza e Mar de mineiro é
ora sim, ora não, creio em parto sem dor. gerais
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. mar de mineiro é
Inauguro linhagens, fundo reinos campinas
— dor não é amargura. mar de mineiro é
Minha tristeza não tem pedigree, Goiás
Já a minha vontade de alegria, Mar de mineiro é colinas
sua raiz vai ao meu mil avô. mar de mineiro é
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. minas
Mulher é desdobrável. Eu sou.12
O poema “Fazendeiro do Mar” pode ser en-
O anjo esbelto de Adélia Prado rivaliza com tendido como um exercício teórico de Cacaso
o anjo torto de Drummond, e o homem sério sobre a condição do poeta mineiro sempre
atrás dos óculos e do bigode ganha o contra- tensa e inquieta, que aponta para o disperso
ponto da mulher desdobrável. Numa delica- e o diverso, não para o único e totalizador. O
da mistura de reverência e rebeldia, Adélia último verso e sua potência explosiva (minas,
reconfigura a ordem natural da literatura não Minas) inventa a poesia-vão no mesmo
mineira com seu verso final, neste ousado, espaço e tempo que a poesia-margem, e a
firme e desobediente pedido de licença. poesia-chão.
Outro caso, também do século XX, é o Nesta segunda década do século XXI
que ocorre com o poeta Antônio Carlos de vários poetas continuam a reflexão sobre
Brito, o Cacaso, nascido em Uberaba, e o seu formas, ritmos, motivos poéticos e praticam
instigante Mar de mineiro, livro de poesia pu- um jeito de olhar para o presente dialogando
blicado em 1982, com 46 poemas em sua com algumas concepções do poeta de Itabira.
maioria muito breves. No poema “Fazendeiro Os poetas voltam aos temas drummondianos
do mar”, já pelo título observa-se certo jogo para glosá-los ou para ironizá-los, condensá-
ao replicar o Fazendeiro do ar, de Drummond. -los, como se usufruíssem, de modo vário, da
Replicar no sentido duplo desta palavra: fazer herança drummondiana. Escritores e escrito-
uma réplica, cópia, e contestar, divergir. Em ras com publicações recentes mantêm com a
um longo poema descritivo-conceitual, o obra do poeta um expressivo diálogo criativo e,
poeta uberabense como que glosa o mote por vezes, teórico e estilístico.
dos versos: “Dos cem prismas de uma joia, / Podemos acompanhar esse movimento
quantos há que não presumo”, presentes no tanto pelos poemas propriamente como
soneto “Habilitação para a noite” primeiro pelas formas de apresentação dos poetas e/
poema do livro de Drummond. O poema de ou de suas obras ao público. Tomemos aqui
Cacaso condensa água e ar, já na palavra o exemplo do livro Ouro Preto, publicado pelo
título e declina conceitos: poeta Mário Alex Rosa, em 2012. De acordo
com Murilo Marcondes de Moura:
Mar de mineiro é
inho Grave e doloroso, o livro se funda, porém,
mar de mineiro é na brandura da voz, no âmbito mais
vão
mar de mineiro é chão
mar de mineiro é margem 12 PRADO, 1979, p. 19.

215
recôndito do sujeito, que soube acolher, sobre o ofício do poeta e a procura das pala-

POESIA DE MINAS: SEMPRE CONTEMPORÂNEA   RAQUEL BEATRIZ JUNQUEIRA GUIMARÃES


de modo muito próprio, diferentes lições vras. Ao mesmo tempo refuta a estrutura for-
de estilo, de Cláudio a Alphonsus e Affonso mal drummondiana ao construir um poema
Ávila, de Bandeira a Murilo Mendes curto, lacunar, em aparente contestação for-
e Drummond, filtrados, por vezes, no mal ao exercício do poeta de Itabira. Martins
registro informal aprendido em Leminski, usa de 7 versos curtos, em 3 estrofes, uma
Cacaso, e ao menos em parte, Armando de 3 versos e duas em dístico. Em métricas
Freitas Filho. Essa confluência de vozes diferentes, insinuando a presença de versos
heterogêneas, ao invés de despersonali- livres, Martins joga com as redondilhas maior
zar, antes potencializa a singularidade de e menor, respectivamente, nos dois primeiros
Mário Alex Rosa.13 versos, e delas se despede nos quatro últimos.
Drummond, em redondilha menor, compõe
Na lista de aproximações estabelecidas por um poema longo: 5 estrofes heteromórficas e
Moura, para configurar a herança de Mário 93 versos, dos quais se destacam:
Alex Rosa, poeta nascido em São João Del
Rey, há várias gerações de mineiros: Cláudio O Lutador
Manuel da Costa, Alphonsus de Guimaraens,
Affonso Ávila, Murilo Mendes, Carlos Drum- Lutar com palavras
mond, Cacaso. Para além dessas aproxima- é a luta mais vã.
ções, algumas apresentações de escritores Entanto lutamos
mais jovens procuram dizer o que seria a sin- mal rompe a manhã.
gularidade do poeta mineiro, no que invaria- São muitas, eu pouco.
velmente se afirmam alguns elementos, em Algumas, tão fortes
especial a reflexão metalinguística, a expres- como o javali.
são lírica da inquietação, a reinvenção poética […]
do cotidiano, a insubordinação no olhar, e sua
perene condição de sujeito em exílio. Insisto, solerte.
Essas aproximações virão explicitadas no Busco persuadi-las.
texto poético da belo-horizontina Ana Martins Ser-lhes-ei escravo
Marques, que, ao escrever “O Lutador”, no de rara humildade.
livro Vida Submarina, tanto ecoa a voz drum- Guardarei sigilo
mondiana quanto a replica, combatendo com de nosso comércio.
argumentos estéticos e contestando formal- Na voz, nenhum travo
mente o poema homônimo de Carlos Drum- de zanga ou desgosto.
mond de Andrade. Se Adélia Prado discutiu a Sem me ouvir deslizam,
condição de ser poeta e mulher, Ana Martins perpassam levíssimas
condensa e inverte as concepções de Drum- e viram-me o rosto.
mond a respeito do fazer poético, ao elaborar […]
seu poema “O lutador”, em dicção masculina:
Palavra, palavra
O lutador (digo exasperado),
se me desafias,
Atingidas em combate aceito o combate.
as palavras oferecem Quisera possuir-te
sua outra face. neste descampado,
[…]
São poucas,
eu muitos. Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
Da luta vã
resta a manhã.14
13 MOURA, 2012.
A poeta replica Drummond, ao fazer uma reto-
mada temática da discussão metalinguística 14 MARQUES, 2009, p. 119.

216
se consumará. Sentimento do mundo
Já vejo palavras
em coro submisso, tenho duas mãos
esta me ofertando o sentimento do mundo
seu velho calor, ideias deambulantes
aquela sua glória e muito gás para queimar
feita de mistério,
outra seu desdém, não fosse isso
outra seu ciúme, e eu seria
e um sapiente amor — mal e mal —
me ensina a fruir um retrato
de cada palavra no álbum
a essência captada, de minha mãe16
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante Em diálogo explícito com o poema “Senti-
de entreabrir os olhos: mento do mundo” de Drummond e obscuro e
entre beijo e boca, discreto olhar para os poemas “Os mortos de
tudo se evapora. sobrecasaca” e “Confidência do Itabirano”, o
O ciclo do dia poema de Ana Elisa Ribeiro canta a condição
ora se conclui dos que têm “gás para queimar”, como que
e o inútil duelo afastando o tom melancólico presente no
jamais se resolve. livro de Drummond, de onde saem os poe-
O teu rosto belo, mas referidos. Em contraposição à condição
ó palavra, esplende estática de se tornar “um álbum de fotogra-
na curva da noite fias intoleráveis” ou “apenas um retrato na
que toda me envolve. parede”,17 Ana Elisa aponta para a ação ao
Tamanha paixão encenar um sujeito poético cheio de “ideias
e nenhum pecúlio. deambulantes / e muito gás para queimar”,
Cerradas as portas, distinto daquele “cheio de escravos”, “solitá-
a luta prossegue rio” e “disperso” do poema “Sentimento do
nas ruas do sono.15 mundo” de Drummond.
Esses diálogos que vimos apontando não
Para além desse exercício formal distinto, se dão como formas de reverência subser-
há, ainda, alguns versos da escritora com viente, mas, ao contrário, o que se vê na poe-
sentidos opostos ao que diz Drummond: “as sia recente é o mesmo tom dos que desafiam
palavras oferecem / sua outra face” parecem as formas, os percursos de institucionalização
rivalizar com “Sem me ouvir deslizam, / per- da poesia, de nomeação da matéria lírica e de
passam levíssimas / e viram-me o rosto”. Os desierarquização da arte.
versos “Da luta vã / resta a manhã”, contras- Assim é, também, o caso do poeta
tam com “Cerradas as portas, / a luta pros- Edimilson de Almeida Pereira, natural de Juiz
segue / nas ruas do sono”. Para Drummond, de Fora. Dono de uma relevante obra poética,
as palavras “são muitas” e o poeta “pouco”, Edimilson Pereira estreou em 1985, com o
em “O lutador”, de Ana Martins Marques, as
palavras são poucas para os muitos eus da
poesia: “São poucas, / eu muitos”. As inver-
sões cirúrgicas promovidas por Marques nos 15 ANDRADE, 1967, pp. 84–5.

versos do poeta revelam um olhar torto para 16 RIBEIRO, p. 2018, p. 65.


o poema drummondiano, dando o tom da re-
sistência criadora da poeta, e da inquietação 17 As partes dos versos aqui citadas
(“um álbum de fotografias intole-
promovida pela “doce herança itabirana”. ráveis” e “apenas um retrato na
Perspectiva semelhante está, a meu parede”) estão respectivamente
ver, no poema “Sentimento do mundo”, de nos poemas “Os mortos de
sobrecasaca” e “Confidência do
Ana Elisa Ribeiro, escritora também belo- itabirano”, ambos do Sentimento
-horizontina. do Mundo.

217
livro Dormundo. Tem publicado com regulari- no bolso, em crimes

POESIA DE MINAS: SEMPRE CONTEMPORÂNEA   RAQUEL BEATRIZ JUNQUEIRA GUIMARÃES


dade e já teve textos traduzidos e publicados que nos deserdam.
na Inglaterra, Itália, Espanha, França, Portu-
gal, Alemanha e Estados Unidos.18 Outros a curtem sob a
De acordo com reportagem publicada na forma de bois de aluguel.
Folha de S. Paulo, em 2017, escrita por Fran- Ou a costuram em óleos
cesca Angiolillo,19 Edimilson de Almeida Pereira, santos.
ao escolher rigorosamente temas e formas,
“retoma cantos e tradições, como o congado, Mas há os ferinos e seu
evocações familiares e memórias coletivas e humour
pessoais, por meio dos quais refigura a história que tira o minério
de Minas Gerais”. Angiolillo considera que das conchas.
“embora assuma ser devedor de Drummond e
João Cabral, Edimilson evoca para o rumo de Por eles a origem despista
sua poesia as ‘conversas nas ruas e nas casas, rendas, misérias
os cantos sagrados, os enunciados de ven- e outros benefícios.
dedores ambulantes, as narrativas e os jogos
de palavras’” do bairro onde cresceu. O poeta Pela origem
conjuga tradições e olhares, como se vê em seu somos-não-somos.
poema, publicado em qvasi: segundo caderno, Espécie que escreve
em 2017, pela Editora 34, no qual se apresenta para esquecer.20
a discussão sobre a origem e o ofício do poeta:
A origem e a condição do escritor aparecem
OFÍCIO aqui como condição não fixa, não definida um
“ser-não-ser!” A palavra-caco e a palavra-mi-
Tatear a origem nério constituem a origem deslizante e impre-
é iludir-se. cisa da “espécie que escreve / para esquecer”.
Em seu depoimento à jornalista
O escrito, à mercê Francesca Angiolillo, Edimilson salienta:
do que foi dito, “Gosto de alimentar o contato lírico, amoro-
inaugura outro país. so e afetivo com a realidade. Mas, quando
a escrita se impõe, prefiro ser rigoroso na
O que se dá nos mapas seleção dos motivos e formas que demar-
em forma cam o poema”. E completa “Tento puxar as
de província, urbe rédeas da linguagem, na expectativa de armar
& melhorias o poema de modo contido e econômico”.21
Nessa mesma reportagem, Angiolillo destaca
não é senão um caco a opinião de Paulo Henriques Britto sobre a
de palavra. poesia de Edimilson. Para o crítico e tradutor,
trata-se de uma poética “densa, cerebral, com
A origem ressona uma musicalidade que não se capta de ime-
grave, diato”. Para Britto, Edimilson Pereira, “quan-
sem nação ou pacto. do aborda a questão étnica, jamais resvala
Há quem a leve para o panfletário, e nunca é confessional ou

18 Informações retiradas do blog da 19 Matéria jornalística de divulgação 20 PEREIRA, 2017. Poema citado a
Revista Modo de usar, disponível no do lançamento do livro qvasi: partir do que está publicado em
site <revistamododeusar.blogspot. segundo caderno de Edimilson. <suplementopernambuco.com.
com/2012/11/edimilson-de-al​ Jornalista Francesca Angiolillo, br/edições-anteriores/1908-dois​
meida-pereira.html>. Acesso em editora de cultura da Folha de São -poemas-de-edimilson-de-almei​
14/04/2019. Paulo. Disponível em: <ufjf.br/ da-pereira.html>. Acesso em
noticias/2017/07/27/edimilson- 12/04/2019.
de-almeida-pereira-segue-trilha-
de-joao-cabral-de-melo-neto>. 21 PEREIRA apud ANGIOLILLO, 2017.
Acesso em 12/04/2019.

218
sentimental; pelo contrário, tem uma secura, de satélite
uma dureza que lembra alguns momentos que insiste
de Drummond”.22 Mais importante é per-
ceber que o conflito entre o sujeito lírico e o lançar-se
sujeito social, tensão própria da poesia, e da sem limite
lírica mineira, com o que começamos nossas
reflexões, aparece nas escolhas poéticas de rumo a tudo
Edimilson Pereira, agora com outras entra- que existe
das, outras tradições, originadas nos cantos
do congado, nas conversas rueiras e caseiras, no espaço
nas sonoridades religiosas. entre mim e ti,
Outro escritor também preocupado com
o modo de o poeta olhar para o seu tempo é infinita-
Fabrício Marques, que em 2018 publicou o mente
livro A máquina de existir. Recebido com en-
tusiasmo pela imprensa na época de seu lan- triste25
çamento, os analistas de A máquina de existir
salientaram a natureza interartística dos Desses versos curtos, mínimos, e do que eles
recursos utilizados pelo poeta e sua dicção podem dizer, em desmesura diante do desafio
drummondiana. Amador Ribeiro Neto23 consi- triste da existência pode-se entrever o que o
dera: “A dicção drummondiana, ora às claras, poeta pensa sobre a poesia e sua relação com
ora oblíqua, talvez seja a dominante do livro. o tempo da vida. Em entrevista ao site Uai,26
O grande poeta mineiro é invocado no ritmo o poeta afirma:
dos versos, na invocação do universo familiar
e, acima de tudo, na percepção corrosiva da [penso] a poesia como crítica não só da
vida. Corrosão que, por vezes, traveste-se linguagem, mas da macropolítica, aquela
de ternura, para amenizar seu impacto. Mas que nos enreda e dita nossos destinos, e
resulta, sim, em amplificação da angústia.” 24 da micropolítica, aquela que fazemos
Para o analista, o poema “Deslimites” confir- todos os dias. Enfim, a poesia pode
maria essa chamada dicção drummondiana: sim nos iluminar politicamente, não só
como resistência a uma visão limitada
DESLIMITES de entender a vida, mas sobretudo como
potência que age no sentido de aproximar
Vida, as pessoas.27
estamos quites:
E continua com a reflexão sobre a condição
você ignora do poeta mineiro ao responder sobre como
meus palpites Minas se faz presente em sua poesia:

eu aceito Alguém já disse que o mineiro autên-


teu convite: tico é aquele que saiu de Minas. Nesse
sentido, sou um mineiro não-autêntico,
cultivar mas, simultaneamente, sou um mineiro
meu apetite provinciano, porque não consigo sair

22 BRITTO apud ANGIOLILLO, 2017. 25 MARQUES, 2018. Poema citado Fabrício Marques, em 2018. Foi
a partir do que está publicado publicada no site <uai.com.br/app/
23 Matéria jornalística assina- em <augustapoesia.wordpress. noticia/artes-e-livros/2018/03/16/
da por Amador Ribeiro Neto. com/2018/09/06/a-maquina-​ noticias-artes-e-livros,223895/
<augustapoesia.wordpress. de-existir-de-fabricio-marques>. fabricio-marques-lanca-a-​maqui​
com/2018/09/06/a-maquina-​ Acesso em 15/04/2019. na-​de-existir.shtml>. Acesso em
de-existir-de-fabricio-marques>. 13/04/2019.
Acesso em 15/04/2019. 26 Matéria jornalística assinada por
Mário Alex Rosa. Trata da divulga- 27 MARQUES apud ROSA, 2018
24 RIBEIRO NETO, 2018. ção do livro Máquina de existir, de

219
de Minas. Nasci na Zona da Mata, em em suas criações, dirige suas críticas aos

POESIA DE MINAS: SEMPRE CONTEMPORÂNEA   RAQUEL BEATRIZ JUNQUEIRA GUIMARÃES


Manhuaçu, depois morei em Juiz de Fora jogos de poder, à classe média condenada
e desde 1992 estou em Belo Horizonte. à ilusão do consumismo. Para efetivar
Vivendo aqui mais de meio século, pude essa crítica e causar certo estranha-
compreender que “Minas é abissal”, mento ao leitor, o autor utiliza-se de
como diria (e disse) o Drummond, que apropriações parodísticas dos discursos
é, ele mesmo, a vocalização, no mais alto publicitário, jornalístico e fotográfico,
grau, do espírito de Minas. Minas é o bar- apropriações metalinguísticas, colocan-
roco entranhado em nossa alma, assim do sob suspeita a verdade, os discursos
como os minérios, não tem como escapar. oficiais e o próprio fazer poético, além de
Minas também é a patriazinha, de que praticar intervenções no design gráfico e
fala o Guimarães Rosa. Minha poesia é no campo da perigrafia do texto.29
tudo isso e isso tudo, misturadamente.
Nela, Minas é esse lugar de passagem, Artista autônomo, Nunes publicava seus
que comporta ao mesmo tempo interior livros por meio de recolhimento de colabora-
e moderno, passado e futuro, memó- ção entre amigos, familiares e intelectuais.
ria e projeto. Responderam a suas cartas pechinchonas,
como as chamava, intelectuais, como Autran
Nessas misturas, encontramos, na poesia de Dourado, Antonio Candido, Manoel de Barros,
Minas, várias texturas, inúmeras tessituras, Glauco Matoso, Wander Piroli, Henfil e Carlos
que possibilitam diversas leituras. Drummond de Andrade, entre outros.
Ricardo Aleixo é outro artista que se dedi-
OUTRAS TEXTURAS, OUTRAS ca a manifestações estéticas que transcen-
TESSITURAS, OUTRAS LEITURAS dem os limites da palavra impressa. Se para
Sebastião Nunes a paródia e o design gráfico,
Para além desse diálogo perceptível nas os discursos publicitário e jornalístico foram
formas próprias da literatura impressa, há sempre aliados importantes em seu processo
entre os poetas mineiros outras formas de criativo, para Ricardo Aleixo as sonoridades
expressão que se manifestam por meio de diversas e a performance, tanto textual quan-
poesia sonora, poema cartaz, poema digital, to corporal, é que serão elementos fundamen-
videopoemas ​—​  expressões artísticas que tais em suas criações.
partem (ou não) da experiência da escrita Nascido em Belo Horizonte, Ricardo
literária e rompem as fronteiras interartes. Aleixo tem um trabalho que rompe todas as
Essa atitude criativa exige dos leitores uma vi- fronteiras de gênero e de arte, e com todas as
sada desierarquizante que aproxima poemas, hierarquias de formas e estilos. Artista múl-
videoclipes e programas de rádio, assim como tiplo, Aleixo é poeta, artista visual e sonoro,
espaços virtuais de publicação. compositor, locutor, performador, ensaísta,
Sebastião Nunes, natural Bocaiúva, é o curador. O poeta faz parte de uma geração
nome que se destaca entre os artistas que ex- de artistas que, a partir da década de 80 do
perimentam esses lugares de passagem, que século XX, “entregaram-se ao trabalho de
transigem fronteiras e estabelecem percur- renovação poética de certos paradigmas da
sos sempre novos. No livro Sebastião Nunes, poesia de vanguarda”. Ao falar de sua relação
organizado por Fabrício Marques, encontram- com os contemporâneos, Aleixo afirma:
-se reunidas obras, cartas, depoimentos do
autor e textos analíticos de aspectos da obra Vale, aqui, um tanto por blague, a pergun-
do artista. O organizador do trabalho destaca ta de Duchamp, que reproduzo de me-
que, para Sebastião Nunes, “o importante era mória: “Quão contemporâneo? De 1910? ”
criar formas ambíguas e não simplesmente Falando sério, gosto do dito de Octavio
significados ambíguos. Categorias e classifi- Paz, naquele bonito e pequeno livro sobre
cações deixam de ter qualquer importância”.28
Na introdução, destaca-se também o
empenho do artista em criar e usufruir do que
28 MARQUES, 2008, p. 28.
é chamado de “a tecnologia da paródia”. Para
desenvolvê-la Nunes, 29 Ibid., p. 29.

220
Duchamp, em que ele fala da possibilida- com (e do) corpo passa a ser radicalmente,
de da gente ser “de todos os tempos sem transcende o impresso e ganha vídeos e sons,
deixar de ser do instante”. […] Tentando que possibilitam experiências poéticas que
ser mais direto, digo que meu diálogo passam por todos os sentidos, em particular a
com os poetas de agora, com os contem- visão e a audição.
porâneos de agora, mais próximos de Sebastião Nunes e Ricardo Aleixo repre-
mim, é ao mesmo tempo aberto e tenso, sentam os artistas mineiros que seguem os
tensionado. Me atraem mais, sempre, os caminhos das vanguardas protagonizadas
que se projetam sem tantas certezas, na pelos irmãos Campos e por Hélio Oiticica.
busca menos de respostas que de repro- Também nessas composições os artistas
posições da pergunta sobre o que é a poesia, retomam perguntas originárias como o que
como ela pode ser feita hoje, para que serve e é a poesia, como ela é feita hoje, e para que
a quem se destina.30 serve: perguntas de todo artista, todo poeta.
O que fizemos neste texto pode ser
Na procura de aperfeiçoar seu trabalho “re- chamado de um gesto metonímico, por meio
verbivocovisual”, o poeta desafia a recepção do qual apresentamos algumas formas da
do crítico ao exigir, com sua produção, que produção literária dos mineiros. Ao reuni-las
ele não se baseie exclusivamente em poemas desse modo, procuramos destacar que a lite-
publicados em livro, será preciso acompanhar ratura, em suas diferentes manifestações, ao
seus vídeos-performance, seus poemas sono- encenar as tensões da relação do sujeito com
ros.31 Para compreender a criação de Aleixo é seu tempo, torna-se sempre contemporânea,
preciso, ainda, ser um leitor sem hierarquias, porque retrospectiva e prospectiva, porque
que percorra todas as mídias para acompa- apresenta um modo de olhar o tempo do
nhar todas as suas performances. Como o poeta, um modo de falar do presente, sempre
artista faz uso de diferentes tecnologias para anacronicamente. O olhar torto, irreverente,
realizar as renovações na chamada arte verbi- estrábico, do poeta é a lente da poesia.
vocovisual, o leitor é desafiado a acompanhar
os caminhos criativos que as novas tecnolo-
gias oferecem.
Na impossibilidade de remissão direta ao
vídeo-performance, exemplificamos a natu-
reza performática de Aleixo no texto escrito.
No segundo fragmento do poema-ensaio “O
Poemanto: Ensaio para Escrever (com) o
Corpo”, Aleixo escreve:

Movendo-me ali,
na exiguidade espacial
das efêmeras formas escultóricas
produzidas pelas corpografias
que improviso, 30 ALEIXO, In: MEDEIROS, 2011,
tenho vivido situações que, disponível em <qorpus.paginas.
por ultrapassarem ufsc.br/"-a-procura-de-autor"/
edicao-n-003/entrevista-ricardo>.
a dimensão da performance Acesso em: 12/04/2019.
(como gênero artístico),
projetam-me numa zona 31 O vídeo performance “desconti-
nuidades” e os poemas sonoros
de percepções expandidas, “Ratos podem pensar” e “Margem”
em nada semelhantes a podem ser vistos e ouvidos em:
experiências vivenciadas <revistamododeusar.blogspot.
com/2008/10/ricardo-aleixo.html>.
no cotidiano.32
32 ALEIXO, 2008. Poema transcrito
O poema (meta)performance projeta, por como o disponível em: <revistamo​
dodeusar.blogspot.com/2008/10/
meio de palavras de natureza espacial, o ricardo-aleixo.html>. Acesso em
movimento do corpo do artista. A escrita 15/04/2019.

221
REFERÊNCIAS

POESIA DE MINAS: SEMPRE CONTEMPORÂNEA   RAQUEL BEATRIZ JUNQUEIRA GUIMARÃES


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———. Ouro Preto. Belo Horizonte: Scriptum livros, 2012. 64p.

222
223
CAPITANIA DE
LETRAS GERAIS
SÉRGIO ALCIDES

224
A Câmara de Vila Rica se reuniu com soleni- mostram no centro daquela praça os
dade no dia 22 de maio de 1792. Na tribuna restos de um pérfido! 3
falava um orador brilhante: Diogo Pereira
Ribeiro de Vasconcelos, que andava pelos 34 Vasconcelos apontava para a cabeça do
anos de idade e representava bem a juven- Tiradentes, que desde a véspera se achava
tude dourada de Minas Gerais. O vereador espetada lá fora, “em poste alto”, junto do
lembrava que a Capitania, então “povoada de pelourinho. Ela permaneceria exposta, ao ar
gente civilizada”, cem anos antes “era inculta, livre, até que o tempo a consumisse, em cum-
coberta de ásperos e densos matos, residên- primento da sentença proferida pela Alçada
cia de feras”. Elegante, ilustrado, bacharel, Régia instalada no Rio de Janeiro para julgar
ele celebrava “os progressos da indústria e os réus da Inconfidência Mineira.4
do saber”, que traziam “civis costumes, leis A sessão transcorria na Casa da Câmara
sábias, instituições políticas”. E talvez agi- e Cadeia, um dos edifícios mais vistosos de
tasse em círculos no alto os punhos de renda, Vila Rica, de traçado neoclássico, severo, mas
ao exclamar: sem excessiva ostentação, assim como o
fraseado do orador. Com ela se encerravam
Brasileiros! Vós sois dóceis, sois inteli- as comemorações oficiais pela derrota dos
gentes. Homens tais obram sempre o que conspiradores, que incluíram missas, te-
é justo, ainda que a lei o não declare. O -déuns, e três noites de “luminárias” ​—​ em que
que não sabe discorrer e premeditar a os moradores foram instados a acender as
tudo se atreve. As grandes revoluções são lamparinas em todos os balcões, que deviam
acompanhadas de funestos desastres.1 ser adornados com tecidos finos, damascos
e sedas. Tudo isso organizado às pressas,
O meditado discurso era ouvido por uma desde que chegara à vila, no dia 14, ensacada
audiência de notáveis. Destacavam-se o bispo num surrão e preservada em sal, a cabeça
de Mariana, D. Frei Domingos da Encarnação que tinha sido separada do corpo esquarteja-
Pontével, e o Visconde de Barbacena, gover- do de Joaquim José da Silva Xavier, enforcado
nador e capitão-general. A Igreja católica e a no Rio, um mês antes.
Coroa portuguesa se dignavam a comparecer Pode começar assim ​—​  cruenta ​—​  uma
no recinto representativo do poder local, onde abordagem das letras em Minas Gerais no
se encontravam também, segundo consta, período colonial. A literatura que se escreve e
“nobreza e povo da Vila”.2 que circula nas margens da tradição não se
As janelas estavam bem abertas, pelo que desvencilha fácil de um emaranhado mun-
indicam as palavras do tribuno: dano, ainda que aspire por vezes à isenção
mais elevada. Mesmo sem perceber, tem dois
Fui testemunha e o foram todos aqueles gumes, como diz Antonio Candido: corta pela
que me ouvem da mágoa pública e da viva imposição do modelo europeu e corta pela
dor que o nome de sublevação infundiu exposição da realidade americana. E precisa
em vossos corações; nome infame que ser anfíbia, como diz Silviano Santiago: nada
feriu e ofendeu a primeira vez vossos na legitimidade artística tanto quanto anda a
ouvidos; crime horrendo, cujo efeito pé no chão espúrio da política.5

1 Diogo Pereira Ribeiro de Vascon- 3 Vasconcelos. “Fala…”, p. 407. 5 Antonio Candido. “Literatura de
celos. “Fala que na Câmara de Vila dois gumes”. In: A. Candido. A edu-
Rica recitou um dos vereadores 4 Cf. nota assinada por Tarquínio J. cação pela noite e outros ensaios.
dela, no dia 22 de maio de 1792”. B. de Oliveira em: Herculano Go- São Paulo: Ática, 1989, pp. 163–80;
Revista do Arquivo Público Mineiro mes Matias (Org.). Autos de devas- Silviano Santiago. “Uma literatura
(RAPM) 1: pp. 405–11, 1896, p. 408. sa da Inconfidência Mineira (ADIM). anfíbia”. In: S. Santiago. O cosmo-
Brasília, Belo Horizonte: Câmara politismo do pobre. Belo Horizonte:
2 “Carta da Câmara para o Ilmo. e dos Deputados, Governo de Minas Editora UFMG, 2004, pp. 64–73.
Exmo. Sr. Martinho de Melo e Gerais, 1983, vol. 9, p. 128.
Castro, do Conselho de S. Ma-
jestade, Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios da Marinha
e Ultramar”. RAPM 1: pp. 403–4,
ibid., p. 404.

225
Não foi por acaso que vários poetas atu- A EX-INCONFIDÊNCIA E O REGRESSO

CAPITANIA DE LETRAS GERAIS   SÉRGIO ALCIDES


antes na Capitania de Minas Gerais se viram DE GONZAGA
tragados pelo imbróglio da conjuração. Mes-
mo assim, é surpreendente que dois deles ​ O desajuste da cultura letrada era revelador
—​  Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio da condição colonial ​—​ que a maioria ex-
Gonzaga ​—​ estivessem entre os maiores do perimentava sem dela tomar consciência.8
século XVIII. O espanto, porém, diminui um Mas também expunha as contradições e os
pouco se consideramos a parte que para comprometimentos do próprio universalismo
isso contribuiu a duplicidade cortante da transmitido por uma tradição rígida e etno-
condição das letras coloniais: ela torna essas cêntrica, que por vezes se deixava confundir
obras irredutíveis aos modelos metropolita- com uma elite social, sobretudo onde fosse
nos que, entretanto, os autores se esforça- precária a difusão de suas práticas e institui-
ram por seguir. ções mais específicas.
A colonização dependia da cultura letra- Por exemplo, na Capitania das Minas
da: o expansionismo das potências euro- Gerais, em 1792.
peias (inclusive o da Igreja) seria impensável Diante da cabeça cortada do insurgente, a
sem o recurso aos vários saberes ligados à Câmara de Vila Rica deveria celebrar a intei-
tradição das letras, a começar pela práti- reza do corpo político do Império português.
ca do direito.6 Não faltaria emprego para Para isso era requerido um vereador letrado,
letrados, leigos ou não, na órbita de nenhum que conjugasse o senhorio mineiro com o
império ultramarino. Os “lugares de letras” e selo de Coimbra. Vasconcelos era indicado.
várias ocupações “liberais” estavam presen- Nascido no Reino, era neto de um magnata
tes no Novo Mundo, nas vilas assim como de Congonhas do Campo, onde a família
nos sertões. Muitos súditos da Coroa portu- possuía terras, lavras auríferas e escravos.
guesa vieram para o Brasil atraídos por essa Chegara criança e fora educado no Semi-
oferta de trabalho e prestígio, ou retornaram, nário de Mariana, antes de se matricular na
depois de formados, para exercer algum Universidade e de lá voltar diplomado em
ofício letrado na sua “pátria” (isto é: no seu Leis. Para completar, estava casado com
local de nascimento). Mas isso não signifi- a filha de um dos principais advogados da
ca que eles encontrariam aqui os meios de capitania, também proprietário, o Dr. João de
cultivo que, bem além da praxe profissional, Sousa Barradas.9
nutrissem o seu pertencimento mais largo à A encenação oratória almejava reforçar a
tradição cosmopolita que os formara. Como subordinação da capitania à Coroa. Mas, na
súditos do rei, os letrados coloniais estavam verdade, o alívio de Vasconcelos e de grande
bem acolhidos ​—​ mas não tanto como “cida- parte dos camaristas tinha menos a ver com
dãos” da República das Letras que atraía a o bem público alegado na tribuna do que com
sua filiação imaginária.7 o pescoço mais ou menos alvo que cada um
A tentativa de fabricar um nexo entre os soube salvar. “A Câmara de 1792, em Vila
dois vínculos não seria admitida com tran- Rica, é tipicamente ex-inconfidente” ​—​ afirma
quilidade pela administração colonizadora, um pesquisador, antes de explicar o envol-
como constataram vários que se dedicaram a vimento de vários vereadores.10 O próprio
essa miragem. tribuno daquela tarde chegara a ser preso

6 Ver: Álvaro de Araújo Antunes. ‘Fiat letrados coloniais antes em: Sérgio Seminário de Mariana entre 1750
justitia’. Os advogados e a prática Alcides. “O lugar não-comum e a e 1850. Dissertação de mestra-
da justiça em Minas Gerais. Tese República das Letras”. RAPM 44: do. São Carlos SP: UFSC, 2007,
de doutorado. Campinas SP: pp. 37–50, 2008. pp. 61–3; e Álvaro de Araújo
Unicamp, 2005. Antunes. O espelho de cem faces.
8 Ver o capítulo “A moeda colonial”, O “universo relacional” de um
7 Sobre essa noção, derivada do no clássico de Ilmar Rohloff de advogado setecentista. São Paulo:
humanismo italiano do século Mattos, O tempo saquarema. São Annablume, 2004, pp. 35–6.
XV, ver: Vincenzo Ferrone. Lezioni Paulo: Hucitec, 1987, pp. 16–33.
illuministiche. Roma, Bari: Laterza, 10 T. J. B. de Oliveira, ADIM, vol. 9,
2010; e Marc Fumaroli. La Répu- 9 Cf. Sérgio Cristóvão Selingardi. p. 128, cit.
blique des lettres. Paris: Gallimard, Educação religiosa, disciplina e
2015. Abordei a situação dos poder na terra do ouro. A história do

226
e interrogado. “A sorte deste mundo é mal Enquanto ele assim se equivocava, no Rio de
segura”,11 como bem sabia esse ex-amigo Janeiro já estavam a bordo da nau Princesa
do condenado Gonzaga, seu padrinho de Portugal os sete inconfidentes degredados
de casamento. para Moçambique, entre os quais achava-se
No outro hemisfério, sem que nada Gonzaga. A espera por ventos favoráveis
transpirasse abaixo do Equador, a rainha adiou um pouco a largada do navio, que só
D. Maria I afundava mais e mais na sua deixou a baía de Guanabara na sexta-feira, 25
irreversível demência. Os atos, decretos e de maio, e arribou ao porto de destino mais de
despachos em seu nome, na verdade, eram dois meses depois, a 31 de julho.
deliberados por um conselho de minis- Em novembro, a Gazeta de Lisboa noti-
tros, enquanto o atônito príncipe ​—​ futuro ciou:
D. João VI ​—​ não se convencia a assumir ofi-
cialmente a regência do Reino de Portugal e Saiu à luz:
seu império.12 Na França, pelos mesmos dias Marília de Dirceu, primeira parte das
de abril e maio, Rouget de Lisle compunha a poesias líricas de T. A.G. ​—​ Vende-se por
Marseillaise, enquanto a guilhotina iniciava 240 réis na loja da Gazeta e na do livreiro
sua carreira. Os episódios fundadores da mo- da Academia.15
dernidade se precipitavam vertiginosamente.
Luís XVI e Maria Antonieta seriam presos em Pela nota, ficamos sabendo que outras partes
agosto; em setembro viria a proclamação já estavam em projeto desde a publicação da
da República; o Bourbon seria decapitado primeira. Entretanto, a demanda do público
em janeiro do ano seguinte, e a ex-rainha obrigou o editor a reimprimir o livro, novamen-
em outubro.13 te disponível em junho de 1793, quando já
Com relação a tudo isso, os participantes nem parecia arriscado citar o nome do autor
da sessão solene de Vila Rica viviam num es- por extenso: estavam à venda as liras “do
tado de inocência quase gentílica. A maioria Doutor Tomás Antônio Gonzaga, cuja obra
ainda supunha ser possível emendar o golfo tem merecido geral aplauso”.16
que se abria na base do Antigo Regime, na O letrado se convertera em letras, junto do
Europa e no ultramar. Ironicamente, naquela público. Podia circular por toda parte. Podia
tarde horripilante, bispo, governador, “nobreza” até tomar a estrada de Minas, retornando.
e “povo” se achavam no interior do prédio que Apenas sua pessoa física estava isolada num
um dia abrigaria um Museu da Inconfidência, ponto fixo do império português.
e o terreiro defronte passaria a ser chamado Graças à sua estrela, Gonzaga não
de Praça Tiradentes, em homenagem ao custara a refazer a vida no degredo. Nessa
alferes que estaria presente de corpo inteiro, altura, exercia na Ilha de Moçambique o
fundido em bronze. cargo de promotor do Juízo de Defuntos e
Quanto a Vasconcelos, aconteceu-lhe o Ausentes, e estava casado com a filha de
que ele acreditava ser o destino do enforcado: um proprietário local, Juliana Mascarenhas,
com quem viria a ter dois filhos. Tinham
Mas deixemos esse desgraçado servir ao ficado para trás tanto a magistratura na
exemplo da futura idade, que dele não se Bahia, para a qual ele estava provido ao
lembrará sem formar a ideia da sua ingra- ser preso, quanto o casamento com certa
tidão, de seu opróbio e suplício.14 moça de família de Minas, Maria Doroteia

11 Tomás Antônio Gonzaga. “Marília 12 Cf. Jorge Pedreira & Fernando Do- 15 Gazeta de Lisboa, 10 de novembro
de Dirceu” I, lira XIV (“Minha bela res Costa. D. João VI. Um príncipe de 1792; apud Emanuel Eduardo
Marília, tudo passa”). In: Domício entre dois continentes. São Paulo: Gaudie Ley (Org.). “Gonzagueana
Proença Filho (Org.). A poesia dos Companhia das Letras, 2008, da Biblioteca Nacional”. Anais
inconfidentes. Poesia completa de pp. 59ss. da Biblioteca Nacional XLIX:
Cláudio Manuel da Costa, Tomás pp. 417–92, p. 426.
Antônio Gonzaga e Alvarenga Pei- 13 Ver: Simon Schama. Citizens. A
xoto. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Chronicle of the French Revolution. 16 Gazeta de Lisboa, 29 de junho de
1996, p. 597. Nova York: Knopf, 1990. 1793; idem, p. 427.

14 Vasconcelos. “Fala…”, p. 407.

227
Joaquina de Seixas, para o qual aguarda- Janeiro, onde morreu. Sobretudo, ao contrário

CAPITANIA DE LETRAS GERAIS   SÉRGIO ALCIDES


va licença.17 de Gonzaga, que só deixou letras, criou raízes
Em 1799, a Tipografia Nunesiana, de na América, ligando a elite colonial à do Im-
Lisboa, publicou a segunda parte da Marí- pério. Um de seus filhos foi ninguém menos
lia de Dirceu, com “geral aceitação”.18 Esta do que Bernardo Pereira de Vasconcelos,
acrescentava às 33 liras da primeira mais conselheiro de Estado, senador e várias vezes
32, muitas alusivas ao transe do encarcera- ministro, liberal na juventude, “regressista”
mento interposto entre o pastor e sua noiva, depois, ao fundar o Partido Conservador, que
que acrescentava à convenção do bucolismo foi o mais forte do Segundo Reinado.20
uma dimensão narrativa, ensombrecendo-o.
Natural do Porto, filho de um letrado nascido UMA CRISE POLÍTICA E ESTILÍSTICA
no Rio de Janeiro, Gonzaga passou pouco
mais de nove anos de sua vida adulta na A oração de Vasconcelos não discrepou da
América, três deles na prisão. Na África, viveu formação que ele recebera numa Universidade
quase 18, e lá morreu aos 66, em 1810. Mas de Coimbra esclarecida pelas reformas imple-
ficaria para sempre associado à cultura e à mentadas pelo Marquês de Pombal, a partir de
história de Minas Gerais e do Brasil, seja por 1772. O autor espalhou pela alocução os sinais
ter supostamente escrito aqui suas poesias exteriores de uma racionalidade pragmática,
mais célebres, seja porque se passa nestas em que sobressaem os recursos retóricos da
paragens a lenda que se misturou a elas, de argumentação dedutiva. Preferiu a frase bem
modo quase indissociável. proporcionada e uma exaltação sob controle,
Também era um sinal dos tempos, em grave conforme o momento, mas moderada
rápida transformação, o extraordinário êxito quanto à ornamentação. Principalmente, fugiu
de Marília de Dirceu, cuja história editorial de antíteses abruptas e agudezas intricadas.
inclui até uma fraude ​—​ com as liras de uma Entretanto, o estilo ​—​ que para Buffon
falsa “terceira parte”, publicada em 1800, seria “o próprio homem” ​—​ aqui servia mais
em Lisboa. A sexta edição, em três volumes, para ocultá-lo. Estava em contradição com
estava para sair do prelo em 1810, quando o a matéria, que era o elogio da obediência
poeta morreu, em princípios do ano.19 Ao final contra a aspiração a uma “liberdade indefi-
do Oitocentos, contavam-se pelo menos 21 nida”,21 arguida em termos que lembravam
edições. Tornara-se um lugar comum dizer a fundamentação dada pela escolástica ao
que Gonzaga era o poeta mais popular da absolutismo, no século XVII. Como quem
língua portuguesa depois de Camões. tenta vestir a casaca virada ao avesso, sem
Dirceu regressaria, sempre firme, a Vila poder abotoar-se, Vasconcelos lutava para
Rica. Um exemplar de tantas tiragens talvez atender às expectativas da Câmara, em busca
tenha chegado às mãos de Vasconcelos. de uma reacomodação entre a elite local, que
Também portuense como o autor, ele ainda estava sob suspeita, e a ordem colonizadora.
viveria ​—​  com prosperidade ​—​  até 1815, no As notícias da Revolução Francesa apenas
Brasil. Na época joanina, alcançou a cobi- aumentavam a tensão do ambiente.
çada mercê da Ordem de Cristo. Além de Mas nem era esta a maior agrura do
outros cargos proeminentes, foi juiz no Rio de orador. Vasconcelos precisava capturar pelos

17 Ver: Manuel Rodrigues Lapa. Alexandre Roberto Mascarenhas, 20 Ver: José Murilo de Carvalho (Org.).
“Prefácio”, “Correspondência” e fosse mesmo grande negociante Bernardo Pereira de Vasconcelos.
“Documentos”. In: Tomás Antônio de escravos, como se supunha; São Paulo: Editora 34, Coleção
Gonzaga. Obras completas idem, pp. 331–2; sobre a poesia Formadores do Brasil 1999.
de… Edição preparada por M. de Gonzaga, ver: Ronald Polito. Vasconcelos também foi bisavô do
Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: Um coração maior que o mundo. historiador Diogo de Vasconcelos;
Instituto Nacional do Livro, Tomás Antônio Gonzaga e o ver: Adriana Romeiro & Marco
1957, vol. 1, pp. ix–xxxv, e vol. 2, horizonte luso-colonial. São Paulo: Antônio Silveira. Diogo de Vascon-
pp. 195–216 e 339–46; e Adelto Globo, 2003. celos: o ofício do historiador. Belo
Gonçalves. Gonzaga. Um poeta Horizonte: Autêntica, 2014.
do iluminismo: biografia. Rio de 18 Cf. Gaudie Ley. “Gonzagueana…”,
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 429. 21 Vasconcelos. “Fala…”, p. 404.
pp. 317–499; Gonçalves nega
que o sogro de Gonzaga, o reinol 19 Cf. Gonçalves, Gonzaga…, p. 501.

228
ouvidos uma audiência que tinha ao alcance Monumento do agradecimento, tributo
dos olhos uma cabeça humana decepada, da veneração, obelisco funeral do obséquio,
que era de um conhecido de muitos dos relação fiel das reais exéquias que à defunta
presentes. A crise política era também uma majestade do fidelíssimo e augustíssimo
crise estilística. O castigo a Tiradentes Rei o senhor D. João V dedicou o Doutor
recorria a uma forma de exemplaridade que Matias Antônio Salgado, vigário colado da
a escola neoclássica lusitana batalhava há Matriz de N. Senhora do Pilar da Vila de
décadas para afastar do discurso, desde pelo São João del-Rei, oferecida ao muito alto e
menos a divulgação do Verdadeiro método de poderoso Rei D José I, nosso senhor.24
estudar, do “estrangeirado” Pe. Luís Antônio
Verney, publicado em 1746. Para a Coroa, era A torrente vocabular correspondia ao “pom-
necessário exibir o despojo, não só para que poso e fúnebre aparato” das celebrações,
o execrassem, mas também como índice relatadas no volume por Manuel José Correia
da presença pronta e aterradora, através do e Alvarenga.25
Atlântico, do braço armado de Sua Majestade. Sendo “fiel”, a descrição propunha um
A manifestação implacável da soberania duplo sentido: declarava-se exata ao mesmo
reanimava as figuras da “episteme” do século tempo em que aludia ao título honorífico que
anterior,22 como as correspondências analó- D. João V recebera em 1748 do papa Bento
gicas, que ligavam o poder temporal ao plano XIV, incorporando-o à sua dinastia. Correia
cosmológico da Providência, e a semelhança e Alvarenga a escrevera imbuído da ideia
à distância, que amarrava num laço metafísi- de que a fidelidade do relato implicava um
co a ordem colonial à autoridade da Metrópo- pertencimento à dignidade “fidelíssima” do
le. Nesse contexto, tudo poderia virar signo: o homenageado. E, em palavras, evocava a
poste, a cabeça e as moscas. Reiterava-se à teatralidade dominante em todo o episódio,
vista de todos a permanência do “primado da na qual os produtos da letra viravam objetos
visualidade” 23 contra o qual o intelectualismo concretos, misturados a outras coisas, sons e
letrado daquela geração tinha se erguido. imagens presentes no interior da matriz:
Com o degredo de alguns dos seus membros
mais destacados, como Gonzaga, o também Enfim, era tanta a variedade de Poemas e
poeta e ouvidor Alvarenga Peixoto e o cônego Inscrições, Dísticos, Epitáfios e Esquele-
Luís Vieira da Silva, mais a morte de Cláudio tos, que, ao mesmo tempo que todo o cor-
Manuel, a cultura letrada sofrera um duro po deste Templo horrorizava a vista para
golpe. E era obrigada a contemplar em praça os estímulos da dor, admirava o vário dos
pública a lembrança de suas antigas formas conceitos e a aplicação dos lugares aos
de sujeição à Coroa e à Igreja, que julga- juízos discretos, que os atendiam.26
va superadas.
Por exemplo, a sua participação nas sole- Tratava-se então de “horrorizar a vista” para
nidades pela morte de D. João V, organizadas estimular um efeito emocional junto a uma
pela Câmara de São João del-Rei, a 28 de coletividade. Não era exatamente este o
dezembro de 1750. A descrição das funções papel da cabeça de Tiradentes, tantas dé-
foi publicada no ano seguinte, em Lisboa, por cadas depois?
dois bacharéis em Cânones residentes na vila. Nas “exéquias” são-joanenses de 1750,
O título, por si só, forma uma procissão: versos e ossos reunidos compunham toda

22 Quanto à “episteme” do século 24 Matias Antônio Salgado. Monu- 26 Ibid., p. 27.


XVII, sigo aqui Michel Foucault. Les mento… Lisboa: Francisco da
Mots et les choses. Une archéologie Silva, 1751. Ver: Affonso Ávila. “As
des sciences humaines. Paris: barroquíssimas exéquias de Dom
Gallimard, 1966, pp. 32–40. João V”. In: A. Ávila, O lúdico e as
projeções…, pp. 167–84.
23 Ver: Affonso Ávila. “O primado do vi-
sual na cultura barroca mineira”. In: 25 Manuel José Correia e Alvarenga.
A. Ávila. O lúdico e as projeções do “Relação fiel…” In: M. A. Salgado,
mundo barroco. São Paulo: Pers- ibid., pp. 1–30.
pectiva, 1994, vol. 2, pp. 185–221.

229
uma doutrina fúnebre, de que o espectador Nos três casos, em São João, Vila Rica

CAPITANIA DE LETRAS GERAIS   SÉRGIO ALCIDES


participava intensamente, sob forte apelo dos e Mariana, observa-se a atuação das letras
sentidos. A música o excitava pelos ouvidos, como mediadoras entre a elite local e o
assim como o nariz aspirava aromas que poder colonizador, ocupadas também com o
as paronomásias iam converter em texto, amortecimento das tensões entre esses polos.
impresso em páginas que, como os turiferá- Tarefa que elas faziam seja pela narrativa,
rios, “incessantemente estavam incensando seja pela poesia ou pela eloquência e o ser-
a urna com ornatos, asseio e gravidade”.27 mão, em situações nas quais o verbal, o visual
A leitura é como entrar numa igreja feita de e o musical se combinavam. A eficácia desse
papel e letras. jogo fica bem evidente no Áureo trono:
A ocasião servia a São João del-Rei para
emular a maior celebridade de Vila Rica Pelo decurso de oito dias sucessivos e pre-
e Mariana, registrada antes em títulos de cedentes ao da solenidade, saíam de tarde
semelhante extensão, hoje conhecidos por pela Cidade toda várias máscaras, diferen-
versões abreviadas: Triunfo eucarístico, de tes nos trajes e na jocosidade dos gestos,
1734, e Áureo trono episcopal, de 1749. No os quais em graciosos bandos e poesias,
primeiro, Simão Ferreira Machado, um lis- que espalhavam ao povo, avisavam por
boeta residente na capital mineira, narra as célebre estilo a futura festividade.
quase três semanas de suntuosos festejos Esta notícia se divulgou por toda
públicos que antecederam a trasladação a Capitania das Minas; e, como ao seu
da imagem do Santíssimo Sacramento, alvoroço acrescia a fama de um aparato
em maio de 1733, desde a igreja de Nossa de figuras e carros triunfantes, […] deu
Senhora do Rosário dos Homens Pretos até maior ocasião para que no dia prefixo se
a recém-inaugurada matriz do Pilar. O outro ajuntasse, como ajuntou, um numeroso
trata da “felicíssima posse e pomposa en- concurso de gente, tanto da principal
trada” do primeiro bispo de Mariana, D. Frei como da plebe de todas as Comarcas.29
Manuel da Cruz, ocorrida em novembro de
1748. Em Vila Rica, o desfile triunfal confir- As poesias se inseriam no aparato lúdico,
mava a obediência à Igreja e à Coroa, mas ao também visual e musical. O clima quase car-
mesmo tempo fazia espetáculo do poderio navalesco se nota nas poesias lidas durante
local, associado à exploração do ouro e dos as funções por clérigos letrados. Alguns se
diamantes. Já a antiga Vila do Ribeirão do deliciaram com a coincidência silábica entre
Carmo aproveitava a vinda do eclesiástico os dois postos ocupados pelo bispo cister-
para comemorar sua elevação ao foro de ciense, que deixara a Diocese de São Luís
cidade, com a criação do bispado, pelo rei, para ser empossado na de Minas. O reveren-
em 1745. A exuberância festiva cumpria do Dr. José de Andrade e Moraes comparou o
um papel imediato, junto dos habitantes da homenageado a Jacó entre duas esposas:
capitania, mas não terminaria sua função
ambivalente sem chegar à “relação” impres- Ceda Lia a Raquel esta vitória,
sa que a documentasse, prolongando à dis- O Maranhão a palma a Mariana.
tância, no espaço e no tempo, a experiência Mariana, és a Raquel, do amor a glória;
dos participantes.28 Maranhão, és a Lia, triste, insana.30

27 Ibid., p. 29. Furtado. “Os sons e os silêncios Bispado Marianense, da sua felicís-
nas Minas do ouro”. In: J. F. Fur- sima posse e pomposa entrada do
28 Ver, sobre os desfiles triunfais e tado (Org.). Sons, formas, cores seu meritíssimo e primeiro Bispo, e
celebrações desse período, em e movimentos na modernidade da jornada que fez do Maranhão o
Minas: Laura de Mello e Souza. atlântica: Europa, Américas e Excelentíssimo e Reverendíssimo
Os desclassificados do ouro. A África. São Paulo, Belo Horizonte: senhor D. Fr. Manuel da Cruz. Com
pobreza mineira no século XVIII. Annablume, Fapemig, PPGH- a coleção de algumas obras Acadê-
4ª edição. Rio de Janeiro: Graal, -UFMG, 2008, pp. 19–56. micas e outras que fizeram na dita
2004, pp. 33–75; José Ramos função. Lisboa: Miguel Manescal
Tinhorão. As festas no Brasil 29 Anônimo. Áureo trono episcopal da Costa, 1749, p. 41.
colonial. São Paulo: Editora 34, colocado nas minas do ouro, ou
2000, pp. 105–16; e Júnia Ferreira Notícia breve da Criação do novo 30 Idem, p. 62.

230
O padre-poeta recorria a um tópico frequente acentuada pela onipresença do escravismo.
na poesia encomiástica luso-brasileira, no Em festas públicas, chocava-se com “a ligeira
qual o posto recém-assumido por uma auto- mulata” que “em trajes de homem / dança
ridade figura como uma nova cônjuge, feliz, o quente lundum e o vil batuque”.33 É fácil
enquanto cabe ao anterior o papel da esposa imaginar o efeito que, sobre tal suscetibilida-
abandonada. O cônego Francisco Xavier da de, teria a exposição a céu aberto da cabeça
Silva saiu-se melhor, na mesma trilha, com o de um condenado ​—​ em espetáculo produzido
soneto segundo o qual “Maranhão e Mariana não pela sociedade viciosa, que caberia à sá-
são dos mares”: um é Mara, pelo amargor do tira “vituperar”, em busca da correção, e sim
abandono, o outro é Maria, pela doce pre- pela própria fonte da ordem, acima do corpo
sença do esposo. O primeiro terceto ainda político, que era outra cabeça: a da Rainha
acrescenta a esse jogo verbal um elemento (então demente).
pictográfico:
UM ULTRAMAR AQUÉM DO MAR
A inteireza do I figura é clara
Do insigne Bago do Pastor de Jetro, O discurso das correspondências analógicas
Quando assiste em Mariana e deixa a Mara.31 e das semelhanças remotas contribuía, no
seu tempo próprio, para atenuar a im-
O primado visual aí faz a letra se apresentar pressão da distância e excitar a euforia da
como imagem, desenhando na página o bá- sociedade mineradora. “O que está sendo
culo, como metonímia da presença do bispo. festejado é antes o êxito da empresa aurífera
Tomados em retrospecto, esses elementos do que o Santíssimo Sacramento”, afirma
“verbivocovisuais” pertencem ao universo que Laura de Mello e Souza, ao demonstrar o
passou a ser chamado de “barroco” desde “falso fausto” desse período.34 A decadência,
fins do século XIX.32 Em certos momentos do que já se preparava, coincidiu com a reforma
XX, chegaram a inspirar experiências reno- neoclássica e a afirmação de um parâmetro
vadoras, revistos por vanguardistas, como novo de “bom gosto” aferido com as “boas
Haroldo de Campos e Affonso Ávila. Mas, nos maneiras” e o “bom senso”.35 Difundia-se
meados da década de 1750, eram reprovados uma outra organização do conhecimento e
como exemplares de “mau gosto” e “incultu- do discurso, mais linear e abstrata, desman-
ra”. As novas gerações se educavam no ideal chando para os grupos que a ela aderissem
de circunspecção, equilíbrio e espontanei- os efeitos de contiguidade e aproximação
dade “natural” (ou dissimulação do artifício) antes gerados.
difundido pelo classicismo francês, com a Na segunda metade do século XVIII, a
poética de Boileau à frente, e sofriam a atra- distância se impôs sobre a cultura letrada
ção pelo novo modelo de sociabilidade letrada colonial como elemento definidor. “Infeliz,
apresentado por uma academia italiana, a Doroteu, de quem habita / conquistas do seu
Arcádia de Roma. dono tão remotas!” ​—​ diz o bom Critilo ao
O “bom gosto” neoclássico era sensível destinatário das Cartas chilenas.36 Cláudio
aos contrastes violentos do cotidiano colo- Manuel, no “Prólogo” de seu grande livro de
nial, com a mistura de cores, sons e gentes, 1768, dirigia-se ao leitor reinol:

31 Ibid., p. 154. neobarroco e outras ruínas”. Teresa. 35 Ver: Sérgio Alcides. Estes penhas-
Revista de Literatura Brasileira 2: cos. Cláudio Manuel da Costa e a
32 Ver, sobre essa noção e a sua pp. 10–66, 2001. paisagem das Minas (1753–1773).
serventia: René Wellek. “O conceito São Paulo: Hucitec, 2003,
de Barroco na cultura literária”. 33 Gonzaga. “Cartas chilenas”, Carta pp. 35–76.
In: R. Wellek. Conceitos de crítica. VI (“Em que se conta o resto dos
Tradução de Oscar Mendes. São festejos”). In: Domício Proença 36 Gonzaga. “Cartas chilenas”,
Paulo: Cultrix, s. d., pp. 69–117; Ha- Filho (Org.). A poesia dos inconfi- Carta V (“Em que se contam as
roldo de Campos. O sequestro do dentes…, p. 843. desordens feitas nas festas que
barroco na formação da literatura se celebraram nos desposórios do
brasileira: o caso Gregório de Ma- 34 Mello e Souza. Os desclassificados nosso sereníssimo infante com a
tos. 3ª edição. Prefácio de Affonso do ouro…, p. 37. sereníssima infanta de Portugal”).
Ávila. São Paulo: Iluminuras, 2011; In: Domício Proença Filho (Org.).
e João Adolfo Hansen. “Barroco, A poesia dos inconfidentes…, p. 831.

231
[…] sempre hás de confessar que algum governo que foi, pulava para o grupo dos “co-

CAPITANIA DE LETRAS GERAIS   SÉRGIO ALCIDES


agradecimento se deve a um Engenho que lonizadores”.41 Isso cobre o lado profissional
desde os sertões da Capitania das Minas do seu estatuto, como letrado. Mas, enquanto
Gerais aspira a brindar-te com o pequeno “cidadão” da República das Letras, ele só
obséquio destas Obras.37 pôde compreender a si mesmo como dester-
rado, mesmo sendo natural das Minas, igual
O poeta, que adotara o nome arcádico de ao pastor arcádico de seus versos, que “chora
Glauceste Satúrnio, fala com discreta joco- na própria terra peregrino”.42
sidade. Apresenta-se como voz longínqua, É uma espécie de exílio enraizado ​—​ então
que parte da rusticidade para o mundo civil, colonial, e depois pós-colonial, quando se ma-
como se mal fosse concebível uma esfera do nifesta logo no primeiro parágrafo de Raízes
público portuguesa senão no Reino. Então é do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda,
para os reinóis que fala o poeta, diretamen- em 1936: “somos ainda uns desterrados
te; embora pela via indireta o autor também em nossa terra”.43 Nesta margem da cultu-
tocasse os leitores coloniais. O mar separava ra letrada, acentuava-se até o paroxismo a
as audiências, mas de um modo paradoxal. dualidade que lhe é constitutiva. Aceitar-se
Do lado de cá, também éramos portugueses, como “ultramarino”, dentro de uma visão de
é claro, como súditos do rei de Portugal, que mundo linear, implica mais profundamente a
vivia na outra margem do Atlântico. Porém divisão da consciência, por ser preciso antes
nós é que éramos os “ultramarinos”.38 tomar sobre si mesmo um ponto-de-vista
Com o deslizar dos paradigmas estilísti- além do mar.
cos, a cultura letrada na colônia se inclinou à Ironicamente, o dilema se agudizou mais
maneira anfíbia mencionada acima, afiando para os letrados formados ou orientados pelo
o corte duplo da tradição e do real a ela estra- paradigma neoclássico. Na era anterior, que
nho. As contradições se apresentavam como sabia transformar os paradoxos em brincadei-
um matagal a atravessar. Cláudio Manuel ra, o problema não se colocava de um modo
retornara de Coimbra por volta de 1753, para tão dramático e existencial.
cuidar dos negócios da família, advogar e, Já na abertura do Áureo trono se frisava:
se possível, disputar com outros letrados o o “País das Minas” era “o mais útil à Lusitânia
prestígio de cargos na administração coloni- entre os vastos domínios da Coroa”, mas nele
zadora.39 A ocupação familiar se referia à sua os portugueses vinham “sofrer um desterro
situação social privilegiada, como proprietário voluntário” 44 ​—​ e a região era caracterizada
de terras, lavras e escravos, no que corres- como “sertão”, ou seja: o domínio da natureza
pondia ao conceito de “colono” postulado por não-cultivada, feroz, contraposto à ordem
Ilmar Rohloff de Mattos.40 Como secretário de civil apaziguadora. Mas a instalação da

37 Costa. “Obras”, “Prólogo ao Leitor”. Cláudio, o lírico de Nise. São Paulo: constituída tanto pelos escravos ​
In: Domício Proença Filho (Org.). A Fernando Pessoa, 1975; Introdu- —​  ‘da Guiné’ ou nativos ​—​  quanto
poesia dos inconfidentes…, p. 47. ção ao poema ‘Vila Rica’. Muriaé pelos agregados, quer pelos
MG: Ed. do autor, 1985; e Letras de ‘homens que servem a outros por
38 Sobre essa designação para os Minas e outros ensaios. São Paulo: solda’, quer pelos índios bravos”;
súditos portugueses nascidos na Edusp, 1997, pp. 73–156. ibid., p. 27.
América, ver: Antonio Candido. “Os
ultramarinos”. In: A. Candido. Vá- 40 “[…] se a colonização é, antes 42 Costa. “Obras”, Epístola I (“Alcino a
rios escritos. 2ª edição. São Paulo: de tudo, a montagem de uma Fileno”). In: Domício Proença Filho
Duas Cidades, pp. 215–31. estrutura de produção, o colono (Org.). A poesia dos inconfidentes…,
aparece como o primeiro produto p. 245.
39 Sobre a trajetória do poeta, ver: da produção colonial, o agente
Laura de Mello e Souza. Cláudio gerador de uma opulência”; Mattos, 43 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes
Manuel da Costa. O letrado dividido. O tempo saquarema…, p. 26. do Brasil. Ed. crítica preparada por
São Paulo: Companhia das Letras, Pedro Meira Monteiro & Lilia Moritz
2011; sobre a sua poesia, ver: Sér- 41 “[…] todos aqueles elementos Schwarcz. Estabelecimento de
gio Buarque de Holanda. “Cláudio ligados à esfera administrativa; se texto e notas de Mauricio Acuña &
Manuel da Costa”. In: S. Buarque leigos, encarregados precipuamen- Marcelo Diego. São Paulo: Compa-
de Holanda. Capítulos de literatura te do fiscalismo; se eclesiásticos, nhia das Letras, 2016, p. 39.
colonial. São Paulo: Brasiliense, empenhados na monopolização
1991, pp. 227–405; e principal- das almas”; idem, p. 21; os “colo- 44 Anônimo. Áureo trono episcopal…,
mente os estudos de Hélio Lopes: nizados” incluíam “a vasta gama p. 1.

232
Diocese de Mariana vinha incorporar o exílio, de maneira a atrair pela ambição quem
cancelando-o não pelo regresso dos exilados pudesse convertê-lo à Cristandade, “sendo a
e sim pela anexação dos confins. cobiça do coração humano difícil ou impossí-
Também sempre fora recorrente, na repre- vel de contentar”.48
sentação da origem civil da capitania, o tema Abertos os caminhos e pacificado o indí-
da travessia difícil dos obstáculos erguidos gena, sem maior menção a conflitos históri-
pelo ambiente natural bravio. Trata-se de uma cos, nem sequer à Guerra dos Emboabas da
tópica, isto é: um conjunto de “lugares co- década zero do Setecentos, o que era impene-
muns” ou tópicos. Ela já atua no mais antigo trável se tornava paradisíaco, pela “saudável
texto poético hoje conhecido sobre a invasão temperança dos ares, a imudável fertilidade,
dos bandeirantes, de um certo Diogo Grasson a frescura dos campos, como de contínua
Tinoco. Seria um panegírico a Fernão Dias Primavera”.49 Outro tópico se aplica então,
Paes, o “caçador de esmeraldas”, do qual com a metamorfose da aspereza, quando
Cláudio Manuel cita essa oitava: “com suavidade e facilidade estas serras
agrestes […] ficaram dignas de habitação”.50
Parte enfim para os serros pertendidos, E desse modo não pareceria inverossímil uma
Deixando a Pátria transformada em fontes, pintura como esta:
Por termos nunca usados, nem sabidos,
Cortando matos e arrasando montes; Excede as povoações de toda a Améri-
Os rios vadeando mais temidos ca este opulento Hemisfério das Mi-
Em jangadas, canoas, balsas, pontes, nas, onde avulta, mais que a riqueza, o
Sofrendo calmas, padecendo frios, fausto dos Templos e a preciosidade
Por montes, campos, serras, vales, rios.45 dos Altares.51

A penetração heroica de “ásperos e amplís- Mas foi esse paraíso que se tornou intran-
simos sertões” também é feita em prosa; o sitável nos meados do século XVIII, com a
Triunfo eucarístico se inicia justamente por ela, decadência da mineração e a suposta “me-
através de “dilatados e aspérrimos cami- lhora” do gosto. Se a tópica a ele associada
nhos”, habitados só por “nações de bárbara permanecia disponível nos tempos de Cláudio
gentilidade”.46 Mas logo a adversidade seria Manuel, desaparecera a possibilidade de
superada, não só pelo valor da gente portu- manejá-la do mesmo modo. Em contextos de
guesa, mas também graças a um desígnio louvação, era possível atribuir ao bom governo
que ordenava o mundo de cima: a metamorfose do locus horridus em lugar
ameno, mas sempre mais como expectativa ​
Porém de trinta anos ao presente se mos- —​ e meio indireto de pressão política letrada ​
trou aos Portugueses a América coroada —​ do que numa imagem estável. Mesmo no
de ouro nas altíssimas e ao princípio poema Vila Rica, em que Cláudio Manuel
impenetráveis serranias das minas do se exercita no gênero épico, a promessa de
Brasil, onde a Providência Divina, ou a conciliação entre o governador português e
mesma natureza, por destino impercep- o “Gênio das pátrias Minas” não apaga as ru-
tível ao juízo humano, mostravam terem dezas a enfrentar; este ​—​ encarnado na figura
em depósito imensas riquezas.47 melancólica de um índio idoso ​—​ fala assim
ao colonizador estrangeiro:
O topos específico, aqui, é a estratégia provi-
dencial de esconder a riqueza junto do gentio,

45 Apud Costa, “Vila Rica”, “Fun- autor, segundo alguns, seria na 48 Ibid., pp. 10–1.
damento histórico”. In: Domício verdade o português Domingos Car-
Proença Filho (Org.). A poesia dos doso Coutinho, que acompanhara 49 Ibid., p. 10.
inconfidentes…, p. 374. Cláudio a bandeira de Fernão Dias; cf. Hélio
Manuel cita nesse texto as quatro Lopes, Letras de Minas…, pp. 31–3. 50 Ibid., p. 17.
únicas oitavas conhecidas do
poema, que lhe fora enviado da 46 Ferreira. Triunfo eucarístico…, p. 8. 51 Ibid., pp. 26–7.
Capitania de São Paulo por Pedro
Taques de Almeida Paes Leme; o 47 Idem, p. 13

233
Tens ao teu lado a próvida influência correspondente melancolia. A própria prática

CAPITANIA DE LETRAS GERAIS   SÉRGIO ALCIDES


Do pátrio Gênio; contra uma violência da poesia era tida por civilizadora ​—​ mas aí
Outras suscitarei; lá desde o seio o estatuto colonial levantava limites mais
Das mesmas Minas, um incêndio ateio duros, às vezes, do que a face de Itamonte.
Nos ilustres Pereiras: estes passam A começar pela inexistência de prelos na
A disputar co’s outros e se enlaçam América portuguesa, tendo sido a invenção
Em vingar os domésticos insultos. da imprensa um dos acontecimentos mais
Vós e os mais vossos passareis ocultos determinantes da cultura letrada nos tempos
E disfarçados […] modernos. O próprio Vila Rica ​—​  por que só
foi impresso pela primeira vez em 1839? O
Mas, se o leitor espera que o artifício ge- autor não só concluiu o poema como che-
nial assegure, além de passagem, a paz, gou a cercá-lo de todos os paratextos então
logo se frustra: requeridos pela praxe, como carta-dedicatória
(ao ex-governador José Antônio Freire de
[…] E disfarçados aos distritos onde Andrada, segundo Conde de Bobadela), pró-
Dos rebeldes o número se esconde.52 logo e notas, além de um extenso e meticulo-
samente pesquisado “Fundamento histórico”.
Mais violência então é suscitada. E permane- Ainda fez copiar diversos manuscritos com-
ce irredutível a melancolia do Gênio da Terra, pletos (incluindo variantes), alguns dos quais
por mais benfazejo que seja. prontos para o envio à Real Mesa Censória e,
Igual temperamento manifesta a outra en- com o “imprima-se”, à tipografia.
tidade mítica que interfere no entrecho do Vila Outro mistério que ainda desafia os
Rica: é Itamonte, o penhasco de “carregado pesquisadores é a sonhada Arcádia Ultra-
aspecto” que os heróis buscavam (e que não é marina que Cláudio Manuel e outros letrados
outro senão o Pico do Itacolomi, que despon- pretenderam instalar em Minas.54 O projeto
ta na paisagem de Ouro Preto). Eis como incluía outro mineiro, José Basílio da Gama,
ele finalmente se revela, num dos melhores de São José do Rio das Mortes (a atual cidade
momentos do poema, evocativo dos nevoeiros de Tiradentes).55 Era o pastor Termindo
característicos da região: Sipílio, assim inscrito na Arcádia de Roma
antes de partir para Portugal, depois de
Cerrava um branco véu logo diante acompanhar à Itália os jesuítas do Colégio do
Uma estância; rasgou-se, e em breve instante Rio de Janeiro, expulsos pelo todo-poderoso
Deixou ver recortado junto a um monte ministro Sebastião de Carvalho e Melo, em
O venerando rosto de Itamonte. 1759. Nos finais da década seguinte, ele se
Era de grossos membros a estatura, achava em Lisboa, acolhido à proteção do
Calva a cabeça, a cor um pouco escura.53 futuro Marquês de Pombal, e preparava a
publicação de seu poema heroico, O Uraguai,
Debaixo dessa tutela carrancuda é que o a respeito da guerra movida por Espanha e
poeta representa a fundação de Vila Rica e da Portugal contra os aldeamentos indígenas
vida civil nos sertões mineiros. jesuíticos de Sete Povos das Missões.
Entretanto, seria preciso frisar que a Possivelmente, Basílio da Gama terá
atuação do letrado como “cidadão” buscava intermediado junto à Arcádia romana a
suavizar a sensação áspera de desterro e a diplomação de um estudante fluminense da

52 Costa. “Vila Rica”, Canto VI. In: nature, religion, médecine et art. enigma da Arcádia Ultramarina
Domício Proença Filho (Org.). A Tradução de Fabienne Durand- aclarado por uma ode de Seixas
poesia dos inconfidentes…, p. 409. -Bogaert & Louis Evrard. Paris: Brandão”. Suplemento Literário do
Gallimard, 1989, p. 580. Minas Gerais, 1969, p. 2.
53 Idem, Canto VIII, p. 424. Sobre a
associação tópica entre a melan- 54 Ver: Sérgio Alcides. “Seixas Bran- 55 Ver, sobre a trajetória e as publi-
colia e a tez escura do rosto (facies dão e o malogro da Arcádia Ultra- cações do poeta: Ivan Teixeira.
nigra), ver: Raymond Klibansky, marina”. Oficina do Inconfidência. Mecenato pombalino e poesia
Erwin Panofsky & Fritz Saxl. Revista de Trabalho 3: pp. 81–3, neoclássica. Basílio da Gama e a
Saturne et la mélancolie. Études 2004; Candido, “Os ultramarinos”, poética do encômio. São Paulo:
historiques et philosophiques: cit.; e Manuel Rodrigues Lapa. “O Edusp, 1999.

234
Universidade de Montpellier, Joaquim Inácio prisão e devassa a experiência da Sociedade
de Seixas Brandão, que depois exerceria a Literária do Rio de Janeiro, surgida em 1786,
medicina no Reino. Antonio Candido datou sob a proteção de D. Luís de Vasconcelos e
de 1768 o diploma que a academia italiana Souza, um vice-rei inclinado às letras e às
conferiu ao jovem pastor Driásio Erimanteu, artes. Depois de vários intervalos, a academia
contendo a inscrição manuscrita: “Per la foi retomada em 1794, já no tempo do Conde
fondazione della Colonia Oltremarina”.56 de Resende, que reprimira a Inconfidência
Nesse mesmo ano Cláudio Manuel recebeu Mineira e estava especialmente vigilante. Era
o Conde de Valadares em Vila Rica com uma outro ambiente letrado, muito mais nitida-
sessão encomiástica em que explicitamen- mente vazado pelo reformismo ilustrado que
te buscava o apoio do recém-empossado marcou a chamada Geração de 1790.59 Além
governador das Minas para o projeto ​—​ que de poetas, os membros incluíam naturalistas,
nunca se realizou de fato.57 É provável que D. botânicos, médicos e boticários, que intera-
José Luís de Menezes tenha julgado impru- giam num espaço de discussão sobre filosofia,
dente permitir que uma academia da Itália matemática, astronomia e ciências aplicadas
instalasse uma “colônia” da República das que, para Heloisa Starling, “tendia inevita-
Letras numa conquista colonial do Impé- velmente à politização”.60 A maioria foi presa
rio português. em dezembro de 1794, sob a acusação de
O episódio se inscreve na longa história propagar “ideias francesas”, contra a Coroa
dos esforços letrados para alargar no espaço portuguesa e contra a fé católica.
colonial a brecha estreita de publicidade Um dos principais articuladores do grupo
e autonomia para as práticas literárias. A foi Manuel Inácio da Silva Alvarenga, natural
Arcádia mineira nem chegou a ter existên- de Vila Rica. Era bacharel formado em Coim-
cia prática; outras agremiações coloniais bra, onde ficou conhecido pela publicação do
duraram pouco e terminaram mal. Foi o poema O desertor, no gênero “herói-cômico”
caso da Academia Brasílica dos Renascidos, (a sátira que parodia a epopeia), no qual
fundada em Salvador pelo conselheiro José atacava o obscurantismo ainda presente
Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de na universidade portuguesa na década de
Melo, em junho de 1759, e dissolvida quatro 1770.61 Viria mais tarde a se estabelecer
meses depois, quando seu organizador foi como professor régio de retórica no Rio ​
acusado de traição e preso (em princípio, —​ onde terá sido o primeiro poeta a fazer “pre-
por outros motivos).58 Também acabou em ce de mineiro”, bem antes de Drummond.62

56 Candido, “Os ultramarinos”, cit.; Paulo, Salvador: Hucitec, UFBA, Capa, 2017, pp. 255–80; e Lorelai
o documento ​—​  um formulário 2004; Mascarenhas permaneceu B. Kury & Oswaldo Munteal Filho.
impresso, preenchido e assinado preso até a queda de Pombal, com “Cultura científica e sociabilidade
à mão ​—​ pertence hoje à Coleção a morte de D. José I, em 1777. intelectual: um estudo acerca
José Mindlin. A academia de da Sociedade Literária do Rio de
Roma tinha já instituído “colônias” 59 Ver: Kenneth R. Maxwell. “The Gen- Janeiro”. Acervo. Revista do Arquivo
arcádicas em várias outras partes eration of the 1790’s and the Idea of Nacional 8: pp. 105–22, 1995.
da Itália; ver: Sérgio Buarque de a Luso-Brazilian Empire”. In: Dauril
Holanda. “O ideal arcádico”. In: S. Alden (Org.). Colonial Roots of Mod- 61 Sobre esse poeta, sua trajetória
Buarque de Holanda, Capítulos…, ern Brazil. Berkeley CA: University of e suas poesias, ver os estudos
pp. 177–226. California Press, 1973, pp. 107–46; reveladores de Francisco Topa,
e Maria Odila da Silva Dias. “Aspec- Silva Alvarenga. Contributos para
57 Costa. “Obras poéticas que na tos da Ilustração no Brasil”. Revista a elaboração de uma edição crítica
academia que se juntou na Sala do Instituto Histórico e Geográfico de suas obras. Porto: Universidade
do Ilmo. e Exmo. Sr. D. José Luís Brasileiro 278: pp. 105–70. do Porto, 1994; e Quatro poetas
de Menezes, Conde de Valadares, brasileiros do período colonial.
por ocasião de felicitar a posse 60 Heloisa M. Starling. Ser republi- Estudos sobre Gregório de Matos,
que havia tomado do Governo cano no Brasil colônia. A história Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto
da Capitania das Minas Gerais, de uma tradição esquecida. São e Silva Alvarenga. Porto: Edição do
escreveu e recitou…” In: Domício Paulo: Companhia das Letras, autor, 1998, pp. 59–127.
Proença Filho (Org.). A poesia dos 2018, p. 189; ver também: Gui-
inconfidentes…, pp. 321–45. lherme Pereira das Neves. “O Rio 62 Carlos Drummond de Andrade.
de Janeiro de 1794 no Tribunal “Prece de mineiro no Rio”. In: C.
58 Ver: Iris Kantor. Esquecidos e Re- das Luzes de R. Koselleck”. In: G. D. de Andrade. A vida passada a
nascidos. Historiografia acadêmica Pereira das Neves. História, teoria limpo. São Paulo: Companhia das
luso-americana (1724–1759). São & variações. Rio de Janeiro: Contra Letras, 2013, pp. 35–6.

235
Silva Alvarenga, que também se ligara ao das suas práticas jurídicas ou eclesiásticas,

CAPITANIA DE LETRAS GERAIS   SÉRGIO ALCIDES


projeto arcádico de Cláudio Manuel, com o invadindo as belas letras e o terreno mais
nome pastoril de Alcindo Palmireno, amargou arriscado da filosofia, inclusive aquela mais
quase três anos de cadeia, até ser posto em diretamente associada à Ilustração.
liberdade, sem julgamento. Outro envolvido
foi Mariano José Pereira da Fonseca, o futuro A SOCIABILIDADE COMO “LUGAR
(e sentencioso) Marquês de Maricá, que viria AMENO”
a ser ministro e conselheiro de Estado do
Império brasileiro. Não há cabeças decepadas no locus
Serviria para Silva Alvarenga e seus com- amoenus. Nem existe nessa paisagem tópica
panheiros do Rio a carapuça que outro im- a escravidão ​—​ embora, por si só, ela não
portante poeta mineiro lançara alguns anos se isente de compromissos com a violência
antes, em Lisboa. O clérigo José de Santa do Estado ou de privilégios sociais, muito
Rita Durão publicara seu Caramuru ​—​  “Po- menos de preconceitos de cor. Suas cruezas
ema épico sobre o descobrimento da Bahia” ​ se ocultam por trás da ampla tapeçaria que
—​ em Lisboa, em 1781. No prólogo, declara representa uma visão ideal da vida no campo,
que suas oitavas camonianas pretendiam tecida para os olhos de quem, se pudesse,
“pôr diante dos olhos aos Libertinos o que a não poria os pés fora do espaço urbano, onde
natureza inspirou a homens que viviam tão ainda se queixa do mau calçamento de terra
remotos das que eles chamam preocupações e pedra. Como bem sabiam os teóricos e
de espíritos débeis”.63 Sua obra, de motivação os práticos do neoclassicismo, a pastoral
teológica, tratava da conquista da América setecentista nada tinha a ver com o cheiro de
portuguesa e da conversão do gentio, de estrume e a lama que mancha as galochas.
modo solidário à “viradeira” promovida após Seu traçado aéreo pretendia, antes, erguer
a aclamação de D. Maria I, em 1777, contra para uma sociedade cultivada o paradigma
as reformas introduzidas no reinado anterior da naturalidade que poderia ordenar a lin-
por Pombal. Mas justamente no contexto guagem, a etiqueta e o pensamento. Cláudio
reformista é que se formaram os consócios Manuel, quando representava os “sertões da
do Rio de Janeiro. Capitania das Minas Gerais” fazia um comen-
As dificuldades enfrentadas pelo aca- tário implícito sobre a sociedade mineradora,
demismo setecentista no Brasil colonial se negativo, sobretudo acerca dos limites da
relacionam à mesma problemática da dupla sua urbanidade.
filiação dos letrados. Como “cidadãos” da Gonzaga, por sua vez, era mais obstinado:
República das Letras, os letrados coloniais por mais disformes que fossem os penhascos
se viam mal-ajustados. Até mesmo as suas ao redor, sua pena insistiria na afirmação dos
bibliotecas privadas ​—​ onde as públicas valores que o formaram como letrado. O leitor
inexistiam ​—​ serviam sobretudo às atividades da lírica de Gonzaga é a sua Marília, a quem
profissionais de cada um, como assinala Dirceu não quer mostrar nada que não seja
Luiz Carlos Villalta.64 As coleções de Cláudio honrado, virtuoso e belo ​—​ mesmo quando
Manuel, o advogado, Luís Vieira da Silva, o encarcerado.
professor de Filosofia, e Manuel Teixeira de Só uma vez o poeta permite que aviste-
Queiroga,65 contratador, eram excepcionais, mos o que a pastora não verá:
por alcançarem títulos que iam muito além

63 José de Santa Rita Durão. Caramu- supõe ser o livro usado, em grande 65 Sobre a coleção de Queiroga,
ru. Poema épico do descobrimento parte, como fonte de conhecimen- ver: Laura de Mello e Souza. “O
da Bahia. Lisboa: Régia Oficina to para o exercício profissional”. ouro das estantes”. RAPM 56–7:
Tipográfica, 1781. Luiz Carlos Villalta. “Ler, escrever: pp. 54–63, 2012.
bibliotecas e estratificação social”.
64 “[…] o típico proprietário de In: Maria Efigênia Lage de Resen-
bibliotecas em Mariana somava a de & Luiz Carlos Villalta (Org.).
posse de bens de raiz à dedica- História de Minas Gerais. As Minas
ção ao sacerdócio, às atividades setecentistas. Belo Horizonte: Au-
militares, à botica, à advocacia, ao têntica, 2007, vol. 2, pp. 289–311,
comércio e à cirurgia; do que se à p. 301.

236
Tu não verás, Marília, cem cativos aquilatar exatamente sua posição e o valor do
Tirarem o cascalho e a rica terra, seu prestígio.
Ou dos cercos dos rios caudalosos, A futura esposa desse honrado servidor é
Ou da minada serra. uma pessoa culta, que pelo hábito da leitura
também tem cidadania na República das
Não verás separar ao hábil negro Letras. Ouvimos as palavras de Dirceu num
Do pesado esmeril a grossa areia, ambiente íntimo, privado, que, entretanto, se
E já brilharem os granetes de ouro intersecciona com o mister público do Direito
No fundo da bateia.66 e com a esfera aberta das letras (a da história
e da poesia). O casal resume harmoniosa-
Além do trabalho manual da mineração, mente os dois lados da condição letrada.
desempenhado por seres excluídos da utopia Assim na lírica; a sátira tem perspectiva
arcádica, ainda nos aparecem outras cenas diversa. Dirceu se limita ao ideal da domesti-
coloniais de que Marília será poupada, como cidade, espiritualizado, ainda que às vezes tin-
o desmatamento de florestas, a queimada e gido por um insinuante erotismo carnal, com
a semeadura, o cultivo do tabaco e a extração Marília “mal embrulhada / na larga roupa, /
do açúcar de cana. Gonzaga troca um pouco e desgrenhada / sem fita ou flor”.68 O assunto
os cânones da poesia lírica pelos da didática, de Critilo é o oposto da virtude. Nas Cartas
e com a descrição do trabalho traça o painel chilenas, “em que se contam os sucessos de
de uma economia diferente da doméstica ​ todo o Governo de Fanfarrão Minésio, General
—​ ao mesmo tempo em que demostra sua in- do Chile”,69 não estamos na Arcádia, e sim na
comparável maestria, e amplo conhecimento pólis, onde a “musa pedestre” anda a castigar
do ofício do verso. os maus costumes. Critilo não é nenhum pas-
O que então verá Marília? tor; é um “cavalheiro instruído nas Humanas
Letras”,70 segundo quem anonimamente
Verás em cima da espaçosa mesa o teria traduzido do espanhol para o portu-
Altos volumes de enredados feitos; guês ​—​ conforme a ficção satírica, em que
Ver-me-ás folhear os grandes livros, “Chile” disfarça Minas e “Santiago”, Vila Rica;
E decidir os pleitos. Fanfarrão representa D. Luís da Cunha Me-
nezes, que governou a Capitania das Minas
Enquanto revolver os meus consultos, Gerais entre 1783 e 1788, no tempo em que o
Tu me farás gostosa companhia, ouvidor era Gonzaga.
Lendo os fastos da sábia, mestra história O poeta se empenha na denúncia dos
E os cantos da poesia.67 desmandos de Fanfarrão, ligados a contro-
vérsias do governo de Cunha Menezes. Ainda
Aprendemos assim que Dirceu é um magis- assim, através de Critilo, manifesta uma
trado ​—​ alguém que vive rodeado de proces- aguda compreensão da condição do letrado
sos e dos calhamaços dos jurisconsultos. na sociedade de Antigo Regime e, em particu-
Ele se dedica à administração da justiça e lar, na colonial. O estilo baixo, prescrito para
depende do próprio trabalho. Este, no entanto, o gênero, na pena de Gonzaga é moderado
é intelectual e não manual. Por isso o “pas- pela naturalidade neoclássica, com efeitos às
tor” está livre da “mancha de mecânico” que vezes próximos do lirismo, como na descrição
discriminava os estamentos inferiores de de um entardecer entristecido pela “grossa
uma sociedade ciosa de sua rígida hierarquia, chuva”, enquanto “rompem os ares colubrinas
na qual cada um faria melhor se soubesse fachas / de fogo devorante, e ao longe soa /

66 Gonzaga. “Marília de Dirceu” III, lira III 69 Ver, como peça decisiva para o 70 Gonzaga. “Cartas chilenas”,
(“Tu não verás, Marília, cem cativos”). estabelecimento da atribuição da “Prólogo”. In: Domício Proença
In: Domício Proença Filho (Org.). A autoria a Gonzaga, o estudo ma- Filho (Org.). A poesia dos
poesia dos inconfidentes…, p. 686. gistral de Manuel Rodrigues Lapa. inconfidentes…, p. 796
As ‘Cartas chilenas’. Um problema
67 Ibid. histórico e filológico. Rio de Janeiro:
INL, 1958.
68 Idem, lira I, XVII (“Minha Marília”),
p. 602.

237
de compridos trovões o baixo estrondo”. 71 A chuva dessas páginas é aparentada

CAPITANIA DE LETRAS GERAIS   SÉRGIO ALCIDES


Nessa hora, “ninguém passeia, / todos em com aquela da “Morte das casas de Ouro
casa estão”, e é quando Critilo conduz o leitor Preto”, de Drummond,74 mas no momento
a espiar seus companheiros, retratados em ainda caía sobre casas em construção, que
ternas caricaturas: seriam habitadas por uma sociedade em
movimento, feita de vivas tensões e ainda dis-
O velho Alcimidonte, certamente, tante da aniquilação contemplada no poema
tem postas nos narizes as cangalhas posterior. A dinâmica social rica despertava
e, revolvendo os grandes, gordos livros, murmurações variadas, em todos os segmen-
co’s dedos inda sujos de tabaco, tos, que cabia à administração colonizadora
ajunta ao mau processo muitas folhas vigiar e reprimir com severidade. Nessa tarde
de vãs autoridades carregadas. molhada, Critilo escreve a Doroteu sobre
O nosso bom Dirceu talvez que esteja a construção ​—​ para ele aberrante, por ser
com os pés escondidos no capacho, desproporcional às dimensões da vila e aos
metido no capote, a ler, gostoso, recursos públicos ​—​ da Casa da Câmara e
o seu Vergílio, o seu Camões e Tasso. Cadeia de “Santiago”. Era o mesmo edifício
O terno Floridoro, a estas horas, do atual Museu da Inconfidência, cuja obra
no mole espreguiceiro se reclina, ainda não tinha sido concluída em 22 de maio
a ver brincar, alegres, os filhinhos, de 1792, quando Vasconcelos nele proferiu a
um já montado na comprida cana oração acima discutida.
e outro pendurado no pescoço O esforço para nutrir uma esfera do
da mãe formosa, que, risonho, abraça. público vigorosa prossegue em Minas como
O gordo Josefino está deitado, no resto do Brasil. Faz parte da sina anfíbia de
nada lhe importa, nem do mundo sabe; uma literatura pós-colonial. É impressionante
ao som do vento, dos trovões e chuva, que tantos poetas luso-mineiros continuem
como em noite tranquila dorme e ronca; a frequentar esse âmbito ​—​ e sejam para os
o nosso Damião, enfim, abana leitores de poesia muito mais do que nomes
ao lento fogo, com que, sábio, tira de rua em Belo Horizonte. Uns foram embora,
os úteis sais da terra […] 72 como Gonzaga, Basílio da Gama, Santa Rita
Durão e Silva Alvarenga. Mas partiram “como
Apanhados em casa, estão aí juristas, poetas quem fica”, podemos dizer, parafraseando
e até um naturalista (que segundo Rodrigues o poema de Ana Martins Marques.75 Que
Lapa representa Joaquim Veloso de Miran- também trata, à maneira de Cláudio Manuel,
da,73 natural do Inficionado, em Mariana, que de ficar em Minas “como quem parte”.
estudara matemática e história natural em
Coimbra). O próprio Critilo, porém, só pensa
em “murmurar”, mas “não encontra, aqui, com
quem murmure” ​—​ razão pela qual o leitor tem
diante dos olhos o texto, murmuração escrita.
A licença para a ironia amigável transmi-
71 Idem, Carta III (“Em que se contam
te a impressão de incluir o leitor no círculo, as injustiças e violências que Fan-
assim aproximado. Pode-se entrever aí o ideal ​ farrão executou por causa de uma
—​ de fato uma utopia, que muita gente achará cadeia, a que deu princípio”), p. 812

das mais ingênuas ​—​ de uma sociabilidade 72 Ibid., pp. 812–13.


amena entre letrados. Fica implícita a supo-
sição de que todos compartilham dos valores 73 Rodrigues Lapa. As ‘Cartas chile-
nas’…, pp. 159–61.
que motivam a censura de Critilo, ou pelo
menos da boa-fé desse amável murmurador. 74 Carlos Drummond de Andrade.
O possível debate a respeito de matérias de “Morte das casas de Ouro Preto”. In:
C. D. A. Claro enigma. São Paulo:
interesse coletivo, entre pessoas instruídas, Belo Horizonte, 2012, pp. 69–71.
sozinho estabelece um espaço público, que
afinal de contas é o mesmo para o qual são 75 Ana Martins Marques. “Belo
Horizonte”. In: A. M. Marques. Da
dirigidas tanto a sátira quanto as sucessivas arte das armadilhas. São Paulo:
edições de Marília de Dirceu. Companhia das Letras, 2011, p. 61.

238
239
240
PARTE 2 AUTORES

241
A ESCREVIVÊNCIA
DE CONCEIÇÃO
EVARISTO
ALINE ALVES ARRUDA

242
“Eu não nasci rodeada de livros. Nasci pela Host Publication. Becos da memória, seu
rodeada de palavras”. Esta frase da escrito- segundo romance, é de 2006. Nele a escritora
ra mineira Conceição Evaristo é citada por trata de uma comunidade em processo de
ela em diversas entrevistas e palestras. A deslocamento. Em 2008 seus poemas, antes
afirmação precede o depoimento que a autora publicados apenas na antologia Cadernos
gosta de imprimir sobre sua formação: ao Negros, viraram livro: Poemas da recordação
contrário dos escritores oriundos de espaços e outros movimentos. Insubmissas lágrimas
privilegiados, Conceição opta por marcar sua de mulheres, com contos inéditos que tratam
escrita a partir da oralidade. É nas histórias das questões de racismo e sexismo, é de 2011.
ouvidas em casa, contadas pela mãe ou pelo Os contos antes publicados em Cadernos
tio velhinho, que ela se reconhece. Essas foram reunidos em 2014 no livro Olhos d’água,
narrativas influenciaram a escritora nascida vencedor do prêmio Jabuti na categoria
em Belo Horizonte, em 1946, na extinta favela “contos e crônicas”. Em 2016 a autora lançou
do Pendura Saia, hoje área nobre da capital. mais um livro de ficção, Histórias de leves
Com o tempo, a população que lá vivia foi enganos e parecenças.
desfavelizada, removida para outros bairros A capital mineira, onde Conceição
da cidade e da área metropolitana, pois novos Evaristo viveu até os 27 anos antes de se ra-
prédios e ruas foram construídos na região. dicar no Rio de Janeiro, é cenário implícito do
Tendo vivido a infância nesse local, Conceição livro Becos da Memória1, romance que narra a
traz na memória acontecimentos e pessoas história de moradores de uma favela que está
desse tempo que, vez ou outra, participam de prestes a se extinguir. A semelhança com sua
suas narrativas. Sua mãe, dona Joana, teve biografia é um exemplo do termo criado pela
nove filhos, era doméstica, lavava roupas autora: escrevivência. O conceito foi cunhado
para fora e ainda encontrava tempo para lhes durante sua atuação como pesquisadora:
contar histórias, palavras que também fazem Conceição é mestre e doutora em literatura.
parte do “acervo” de Evaristo. Já adolescente, Na dissertação de mestrado2, abordou a
Conceição afirma ter tido acesso aos livros literatura de escritores negros, como ela. No
através de uma tia que era servente de uma doutorado, escreveu sobre escritores bra-
biblioteca pública e viabilizou o livre acesso da sileiros e africanos de língua portuguesa3.
menina aos livros daquele acervo, os quais ela Citando sempre sua identificação e empatia
lia compulsivamente na Praça da Liberdade. como mulher negra, a autora explica como a
A autora também trabalhou como expressão norteia toda sua literatura:
doméstica na capital mineira enquanto
estudava. Formou-se professora no antigo Mas esse termo, ou essa opção por
curso Normal, em 1971, e depois se mudou denominar o meu texto por uma
para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada em “escrevivência”, não é só minha, nós
um concurso municipal para magistério e, podemos pensar no texto de outras
posteriormente, no curso de Letras na Uni- mulheres, e até de outros autores, cada
versidade Federal daquele Estado. As leituras um traça a sua “escrevivência”. Mas no
sempre a acompanhavam: Clarice Lispector, meu caso, particularmente, a imagem na
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos
Drummond de Andrade, Carolina Maria de
Jesus, Adão Ventura, entre outros, foram de
1 EVARISTO, Conceição. Becos da
grande influência. Memória. Belo Horizonte: Mazza,
Conceição Evaristo iniciou na literatura 2006. 2 ed. Florianópolis: Editora
em 1990, quando publicava contos e poemas Mulheres, 2013. 3 ed. Rio de
Janeiro: Pallas, 2017.
na coletânea Cadernos Negros. Em 2003 pu-
blicou seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, 2 Idem. Literatura Negra: uma
que vem sendo tema de artigos e discussões poética de nossa afro-brasilidade.
Dissertação (mestrado) ​–​  PUC-RJ,
no meio acadêmico desde sua publicação. Rio de Janeiro, 1996.
Em 2008 o livro foi indicado ao vestibular da
UFMG, e, desde então, a vários processos 3 Idem. Poemas malungos ​–​  cânticos
irmãos. Tese (Doutorado) ​
seletivos pelo país. Em 2007, foi traduzido –​ Universidade Federal Fluminense,
para o inglês e publicado nos Estados Unidos Niterói, 2011.

243
qual essa palavra está fundamentada traz narradora nos conta como sua mãe fazia para

A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO    ALINE ALVES ARRUDA


um processo histórico, ela nasce proposi- distrair as filhas da fome:
talmente querendo borrar a imagem das
africanas escravizadas e suas descenden- Às vezes, no final da tarde, antes que
tes que tinham de contar história para os a noite tomasse conta do tempo, ela se
da casa grande. Eu poderia pensar numa assentava na soleira da porta e juntas
autoria negra que borra essa imagem, ficávamos contemplando as artes das nu-
porque essas mulheres tinham de contar vens no céu. Umas viravam carneirinhos;
história justamente para adormecer os outras, cachorrinhos; algumas, gigantes
nenês da casa grande, elas nunca podiam adormecidos, e havia aquelas que eram
contar sua própria história. Elas não só nuvens, algodão doce. A mãe, então,
podiam falar para o bebê: “Ah, seu pai espichava o braço que ia até o céu, colhia
me escraviza, e eu estou aqui por ser aquela nuvem, repartia em pedacinhos
obrigada a contar essa história pra você”. e enfiava rápido na boca de cada uma
Ela tinha que inventar outras histórias de nós. Tudo tinha de ser muito rápido,
para apaziguar os bebês e colaborar com antes que a nuvem derretesse e com ela os
a paz da casa grande. Então, essa imagem nossos sonhos se esvaecessem também.5
da “mãe preta” me incomoda muito, e foi
uma imagem que foi muito cultivada […]. O vocabulário musicalmente escolhido
A nossa “escrevivência” não é para ador- (“antes que a noite tomasse conta do tempo”),
mecer os da casa grande, pelo contrário, o tom confessional, o ritmo lento e afetivo
é para incomodá-los em seus sonos usados para contar um momento dolorido,
injustos. É uma ficção que o que me ins- mas terno, transportam o leitor para dentro
pira é realmente a vida, os acontecimen- do texto e o emocionam.
tos, os personagens do cotidiano. Essa A tessitura poética de suas narrativas
“escrevivência” é profundamente marcada ligadas à oralidade, à contação e à escuta
pelo lugar social que nós escolhemos para ganham contornos ainda mais fortes no livro
compor. Enquanto, para outra escritora ​ Insubmissas lágrimas de mulheres6, que
—​ que não tem nada a ver com a história apresenta 13 contos em que a narradora
de vida da empregada, nem com a histó- (ou autora?), numa espécie de prefácio ou
ria da coletividade dela ​—​ é como se, para prólogo, anuncia que gosta de ouvir: “Ouço
compor, ela parasse na porta do quarto muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias
da empregada, olhasse lá dentro e fizesse também” 7. E num jogo de ficção e realidade,
o texto sobre ela4. confunde o leitor:

Essa relação intrínseca entre vida e obra portanto, estas histórias não são to-
marca todo o percurso literário de Conceição talmente minhas, mas quase que me
Evaristo. Como ela afirma nesse depoimento,
o ponto de vista interno, de alguém que vive
o que escreve, é fundamental para entender
4 Idem. Nasci rodeada de palavras.
sua escrita e seu “lugar social”. Os poemas, [Entrevista concedida a] Esdras
novelas, contos e romances da autora são Soares e Tereza Ruiz. Escrevendo
marcados por um lirismo cortante, uma o futuro. 9 de ago 2017. Disponí-
vel em <escrevendoofuturo.org.
escrita poética de denúncia, especialmente a br/conteudo/biblioteca/nossas​
respeito das questões de gênero e etnia. -publicacoes/revistaentrevistas/
artigo/2402/nasci-rodeada-de-pa​
lavras>. Acesso em 19/04/2019.
LINGUAGEM: ORALIDADE E LIRISMO
5 “Olhos d’água”. In: Olhos d’água.
A oralidade da qual ela afirma ter nascido Rio de Janeiro: Pallas: Fundação
Biblioteca Nacional, 2014. p. 17.
cercada é revelada em seus textos através
da linguagem sonora, rítmica, em prosa ou 6 Insubmissas lágrimas de mulheres.
em verso, que, ao invés de suavizar a crítica, Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
2 ed. Rio de Janeiro: Malê, 2016.
reforça-a. Como nessa passagem do conto
“Olhos d’água”, em que, na primeira pessoa, a 7 Ibid., p. 9.

244
pertencem, na medida em que, às vezes, supostos donos se mistura com as mudan-
se (con)fundem com as minhas. Inven- ças das famílias carregadas de saudosismo,
to? Sim, invento sem o menor pudor. indignação e receio de em que a vida se
Então, as histórias não são inventadas? transformará após o desfavelamento. Nesse
Mesmo as reais quando são contadas. cenário conhecemos bonitas histórias, como
Desafio alguém a relatar fielmente o que a de Vó Rita, parteira e mulher respeitada por
aconteceu. Entre o acontecimento e a sua sabedoria e experiência, que agora cuida
narração do fato, alguma coisa se perde e da misteriosa personagem Outra, que não
por isso se acrescenta. O real vivido fica recebe nome, mas é muito citada na narrativa
comprometido.8 da menina Maria Nova, curiosa adolescente
negra que adora ouvir histórias e expres-
E é dessa forma que cada história segue, sar sua curiosidade. Personagens, como
narrada na primeira pessoa por uma mulher Bondade, Tio Totó, Maria Velha e Ditinha
que escuta a protagonista de cada con- vão surgindo da memória de Maria Nova e
to. Todos levam no título o nome de cada preenchendo o leitor de narrativas sutis e ao
uma: “Aramides Florença”, “Isaltina Campo mesmo tempo violentas e reais.
Belo”, “Lia Gabriel”, entre outras. Ao leitor é As lembranças dos personagens de Becos
contada a experiência do ouvir num convite vêm à tona principalmente em forma de
às narrativas de violência, angústias, sonhos, histórias contadas aos mais novos, repre-
conquistas e resistência de cada persona- sentados no livro por Maria Nova. A figura
gem insubmissa. A metalinguagem que do griot africano é resgatada pela autora na
introduz cada conto (“Quando cheguei à casa construção da memória individual e coletiva
de Aramides Florença”; “começou assim dos personagens, como com o personagem
a conversa de Maria do Rosário comigo”; Bondade, “outro contador de histórias. Coisas
“Enquanto Lia Gabriel me narrava a história que ele não contava pra gente grande, Maria
dela”…) vai se esvaindo ao longo da narrativa Nova sabia. As histórias tristes Bondade
e as vozes de ouvinte e falante se misturam, contava com lágrimas nos olhos; as alegres
fundindo personagens, autora, narradora e ele tinha no rosto e, nas mãos, a alegria de
leitor(a), criando natural identificação. uma criança” 11. A ligação entre o velho e o
Histórias de leves enganos e parecenças novo, entre o adulto e a menina, é feita através
reúne contos que invocam o sobrenatural, o da memória, das histórias contadas pelo
fantástico e o maravilhoso, relembrando a griot Bondade, cujo nome já demonstra a
oralidade ancestral da escritora. Em “Rosa qualidade de seu caráter.
Maria Rosa”, por exemplo, o mistério envolve Além do tom poético e memorialístico,
a vida de uma moça que não aceitava o toque Evaristo utiliza também, em sua linguagem
dos outros, “nunca correspondia ao gesto de afro-brasileira, palavras de origem banto
busca de outra pessoa” 9. Num dia de calor para aludir ao passado do povo negro em
intenso, Rosa se distraiu e levantou os braços, Minas Gerais. A etnia banto foi uma das mais
“a cada gota de suor que pingava das axilas de presentes durante a escravização no território
Rosa, pétalas de flores voavam ao vento” 10. O mineiro, e essa herança raramente aparece
insólito e o imprevisível marcam nessas histó- em nossa cultura. Na primeira página do
rias o lirismo, como o da imagem das flores ao seu romance Ponciá Vicêncio, a protago-
vento. Assim como Rosa, personagens como nista mostra-se envolta em recordações da
Inguitinha Minuzinha, que sofria zombaria
devido ao seu nome, ou Nossa Senhora das
Luminescências, que, invocada pelos fiéis,
8 Ibid.
guiava-os no escuro, perpassam as narrati-
vas fantasiosas herdadas e transmitidas de 9 Histórias de leves enganos e
geração em geração. parecenças. Rio de Janeiro: Malê,
2016. 2 ed. Rio de Janeiro: Malê,
Herança coletiva semelhante é retratada 2017. p. 17.
em Becos da memória. O romance nos conta
várias histórias de personagens verossímeis, 10 Ibid., p. 18.

moradores de uma favela que está para 11 Becos da Memória. Belo Horizonte:
acabar. A convivência com os tratores dos Mazza, 2006. p. 39.

245
infância, de quando pensava que, ao passar A voz de minha avó

A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO    ALINE ALVES ARRUDA


pelo arco-íris, mudaria de sexo. O arco-íris em ecoou obediência
questão é, na mesma página, denominado aos brancos-donos de tudo.
“angorô” ​—​ palavra africana de origem banto
que representa um inkice correspondente a A voz de minha mãe
Oxumaré na nação ketu e no candomblé. Ou ecoou baixinho revolta
seja, a memória individual da protagonista no fundo das cozinhas alheias
está diretamente ligada à memória de seus debaixo das trouxas
ascendentes africanos. roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
DIÁSPORA E INSÍGNIA: NAVIO rumo à favela.
NEGREIRO
A minha voz ainda
Muitos autores negros trazem para sua litera- ecoou versos perplexos
tura marcas da memória coletiva que é, para com rimas de sangue
eles, uma espécie de motor da narrativa ou e
da poesia. Através de metáforas como a do fome.
navio negreiro, insígnia da mediação do sofri-
mento do povo africano, ou da viagem como A voz de minha filha
motivo e objeto de reflexão sobre a diáspora, recolhe todas as nossas vozes
esses autores tecem sua literatura suple- recolhe em si
mentando, no sentido derridiano do termo, a as vozes mudas caladas
literatura canônica, e parodiando-a também. engasgadas nas gargantas.
Na poesia brasileira a figura do navio é uma
das metáforas mais frequentes na literatura A voz da minha filha
abolicionista afrodescendente. O célebre recolhe em si
poema de Castro Alves não é o único a trazer a fala e o ato.
a imagem do navio negreiro, mas certamente O ontem ​—​  o hoje ​—​  o agora.
é o mais consagrado e divulgado. É presen- Na voz de minha filha
ça constante nas aulas de literatura como se fará ouvir a ressonância
evocação da luta abolicionista no século XIX. o eco da vida-liberdade13.
Depois dele, vários escritores negros, sob
o ponto de vista interno, ressignificaram a No poema, a voz feminina e afrodescenden-
metáfora dessas viagens. Maria Firmina dos te utiliza a figura do navio para recuperar a
Reis, por exemplo, dedica um capítulo inteiro memória ancestral. Na primeira estrofe, o
de seu romance Úrsula12 ao tema, quando eu-lírico recorre à voz da bisavó; ao longo do
sua personagem, Preta Suzana, ganha voz e poema, são recuperadas também as vozes da
narra as agruras vividas na viagem da África avó, da mãe, toda a linha ancestral feminina
ao Brasil, quando foi capturada para ser até chegar à própria voz que “ecoa versos
escravizada. perplexos com rimas de sangue e fome”. Num
Conceição Evaristo, na esteira de seus traçado familiar, o eu-lírico recupera, portanto,
antecedentes literários, dedica parte de sua a memória diaspórica, que começa com o
obra à viagem diaspórica negra, marcando
a presença da história coletiva vinculada à
história individual, como vemos no poema
“Vozes-Mulheres”: 12 Úrsula; “A escrava”. 6 ed.
Atualização do texto, cronologia
e posfácio de Eduardo de Assis
Vozes mulheres Duarte. Belo Horizonte: PUC Minas,
2017; 7 ed. Atualização do texto,
cronologia e posfácio de Eduardo
A voz de minha bisavó ecoou de Assis Duarte. Belo Horizonte:
criança PUC Minas, 2018.
nos porões do navio.
13 Poemas da recordação e outros
Ecoou lamentos movimentos. Rio de Janeiro: Malê,
de uma infância perdida. 2017. pp. 24–5.

246
navio negreiro, passa pela obediência obriga- O inspirado coração de Ponciá ditava
tória aos “brancos donos de tudo” e chega ao futuros sucessos para a vida da moça. A
cotidiano da favela, remetendo-nos ao sangue crença era o único bem que ela havia
e à fome que deságuam na voz da esperança trazido para enfrentar uma viagem que
representada pela filha que ecoará, segundo durou três dias e três noites. Apesar do
o eu-lírico, a “vida-liberdade”. A errância das desconforto, da fome, da broa de fubá
vozes ancestrais metaforiza as passagens que acabara ainda no primeiro dia, do
temporais desde os tempos da escravidão até café ralo guardado na garrafinha, dos
os dias atuais para explicar as consequências pedaços de rapadura que apenas lam-
da diáspora na vida das mulheres negras. bia, sem ao menos chupar, para que eles
Conceição Evaristo retoma a diáspora em durassem até ao final do trajeto, ela trazia
questão em seu romance Ponciá Vicêncio. A a esperança como bilhete de passagem.
protagonista que dá nome ao livro é descen- Haveria, sim, de traçar o seu destino15
dente de escravos. O sobrenome Vicêncio
provém do antigo dono da terra e represen- A personagem resolve migrar para outra loca-
ta a superioridade branca sobre o povo da lidade depois da morte do pai. Ela se mostra
região. A marca da escravidão presente nesse aborrecida e indignada com a vida na vila,
sobrenome faz com que a personagem ache com o trabalho artesanal com o barro, com a
o nome “vazio, distante” e não se identifique exploração pelos brancos deste trabalho e do
com ele, conforme pode ser percebido na trabalho nas plantações feito pelos homens:
seguinte passagem: “era tão doloroso quando “cansada da luta insana, sem glória, a que to-
grafava o acento. Era como se estivesse dos se entregavam para amanhecer cada dia
lançando sobre si mesma uma lâmina afiada mais pobres, enquanto alguns conseguiam
a torturar-lhe o corpo. […] Na assinatura dela, enriquecer-se a todo dia. Ela acreditava que
a reminiscência do poderio do senhor, de um poderia traçar outros caminhos, inventar
tal coronel Vicêncio”. O estranhamento que o uma vida nova” 16. O narrador ressalta ainda
sobrenome causa a Ponciá indica a herança que nenhum dos parentes da menina “havia
da resistência africana e a procura da menina, ousado tamanha aventura” 17, fortalecendo
desde criança, por suas raízes. O sobrenome a coragem da protagonista mesmo diante
procedente do senhor branco, escravocra- de sua condição de classe e gênero, que, sa-
ta, é um fato recorrente nas famílias afro- bemos, são fatores complicadores num país
descendentes. com preconceitos tão arraigados.
A personagem Ponciá confirma sua Embora muito diferentes, a migração dos
descendência escrava na vida difícil que leva, africanos, personalizados no romance de
nos sonhos apagados pela discriminação e Evaristo, difere daquela que acontece com
pela marginalização que tanto ela quanto os seus descendentes ainda hoje. Enquanto
outros da sua família sofrem. A personagem a primeira viagem levava os africanos da
passa, então, pelo que Orlando Patterson condição de liberdade para a de escravizados,
denomina “morte social” 14, ou seja, a invisi- a segunda é marcada pela fuga da condição
bilidade diante da sociedade. Sua condição de mercadoria em direção à liberdade, em
social e cultural continua, portanto, sendo busca da reconstrução da identidade perdi-
regida pelo passado africano. Sua trajetória da. A procura da personagem simboliza isso.
do espaço rural para o urbano representa
sua condição diaspórica. Assim, mesmo que
a viagem feita pela menina em sua procura
não seja a viagem transnacional citada pelos 14 PATTERSON, Orlando. Slavery
and social death: a comparative
estudiosos da diáspora, ela se constitui study. Harvard: University Press;
numa metáfora desta, por isso a considero Cambridge, Massachusetts and
uma espécie de “diáspora interna”, ou seja, London, 1982.

a viagem de Ponciá e de tantos brasileiros 15 Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte:


dentro do seu próprio país em busca de uma Mazza, 2003. p. 35.
vida melhor. A passagem em que a menina
16 Ibid., p. 32.
faz a viagem de trem para a cidade confirma
essa associação: 17 Ibid., p. 34.

247
A condição herdada de seus ancestrais e de sua travessia. Não sentia desejo algum

A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO    ALINE ALVES ARRUDA


entranhada na menina negra desde antes do pela aventura da viagem. Se a sua vida era a
seu nascimento dá a ela a coragem de mudar da terra, em que ela vivia, o que faria longe
de vida, de tentar aquilo que lhe foi negado e de lá?” 20. A diáspora parece, então, estar
que foi duramente tirado de seus ascendentes. intrínseca à família, uma espécie de saga, de
Após migrar e juntar o dinheiro suficiente marca, de estigma, desde, sabemos, muitas
para comprar um quartinho na periferia da gerações. A viagem de Maria Vicêncio ocorre
cidade, Ponciá regressa à vila Vicêncio em semelhante à da filha:
busca de sua mãe e de seu irmão. Depois de
refazer a viagem desconfortável e dificultosa Quando o trem, depois de intermináveis
e andar horas e horas a pé até o povoado, dias e noites, parou na estação, Maria
ela encontrou apenas a casa vazia, pois sua Vicêncio esticou as pernas com dificulda-
mãe e irmão haviam migrado também. Esta de. Ficara todo tempo da viagem enco-
mesma decisão foi tomada por muitos outros lhida com a trouxa no colo, rezando suas
moradores da vila Vicêncio. De volta à cidade orações. Sentiu a bexiga pesada, estava
grande, no mesmo trem, a personagem com vontade de urinar, mas o medo não
tinha os sentimentos confusos, sua procura permitira que ela se levantasse e fosse
não terminara, além de se encontrar, preci- ao banheirinho do trem ou mesmo dos
sava agora encontrar os seus: “era preciso, lugarejos em que a máquina parava21.
então, continuar a viagem e descobrir onde
eles tinham feito nova moradia. […] Estava Como ler essas passagens e não nos lem-
só, estava vazia. A viagem lhe pareceu mais brarmos dos porões do navio e da travessia
longa e mais dolorosa do que a primeira” 18. sobre o Atlântico? O desfecho do romance é
As viagens de Ponciá confirmam a indeter- o regresso diaspórico da família ao povoado.
minação e o conflito que sempre são gerados Depois de se reencontrarem na estação de
pela dispersão dos povos. E sua permanência trem, marca de todos os desencontros, ponto
na cidade grande, vivendo em más condi- de partida e chegada dos três personagens
ções, confirma a marginalização comum aos entre tantas promessas, sonhos e procu-
povos da diáspora africana nas Américas, ras, parece mesmo que aquela estação é a
especialmente no Brasil. Ponciá vive isso se metáfora da vida22 da família Vicêncio, de sua
definhando aos poucos. Sua mudez constitui história, de sua memória coletiva negra.
uma espécie de recusa e, ao mesmo tempo, Em Becos da Memória, também há
de retomada desse passado afrodescendente. referência às viagens sofridas. Nas primeiras
Ser o Outro naquele contexto parece torná-la páginas do romance conhecemos a história
ainda mais distante de sua procura e mais dolorida de Tio Totó, que teve que se mudar
alijada da sociedade em que vivia. Procura de morada várias vezes na vida, após sofridas
que passa também pela história de seus perdas. Em conversa com Maria Velha, Tio
ancestrais, negros trazidos da África e seus Totó diz que seu corpo “pede terra. Cova, lugar
descendentes, como Vô Vicêncio. de minha derradeira mudança” 23. O velho
Outra personagem que embarca no “trem nasceu da Lei do Ventre Livre, assim como o
negreiro” 19 em busca dos filhos é Maria pai de Ponciá, mas trabalhou na roça durante
Vicêncio. Em uma cena do livro, o narrador anos, também como ele. Herdou do pai a dor
nos diz que ela “sabia que, por mais que que lhe apunhalava o peito, a qual seu pai
relutasse, um dia a cidade também faria parte chamava de banzo. Mesmo não sendo escravo,

18 Ibid., p. 64. nesse “avião negreiro”. O músico 20 Ibid., p. 108. (grifo meu)
era conhecido por “maldito” por re-
19 Parodiando a expressão “avião cusar frequentemente aparições na 21 Ibid., p. 118.
negreiro” utilizada pelo cantor e mídia, a qual criticava, e por investir
compositor Itamar Assumpção. Em em canções com temas menos 22 Lembramos aqui a canção
entrevista à TV, Itamar, paulista comuns, de crítica social e de tom “Encontros e despedidas”, de
bisneto de escravos angolanos, em satírico. Sua expressão metafórica Milton Nascimento.
turnê pela Europa, foi convidado nos lembra as viagens diaspóricas
a morar na Alemanha. Diante do de seus antepassados, assim como 23 Becos da Memória. Belo Horizonte:
convite, disse que não embarcaria os de Ponciá Vicêncio. Mazza, 2006. p. 23.

248
o personagem carrega consigo a dor coletiva, do corpo negro possuidor da sexualidade,
símbolo da memória dos seus, trazida com ele especialmente o feminino. O corpo objeto.
ancestralmente. A metáfora do navio negreiro Eduardo Assis Duarte afirma que
aparece na narrativa na passagem em que
o narrador conta uma das primeiras viagens Enquanto personagem, a mulher afro-
de Tio Totó, quando, com sua primeira mulher, descendente integra o arquivo da litera-
ele teve que deixar a fazenda onde trabalhava, tura brasileira desde seus começos. De
pois as terras haviam sido vendidas Gregório de Matos Guerra a Jorge Amado
e Guimarães Rosa, a personagem femini-
Totó juntou a mulher, a filha e alguns na oriunda da diáspora africana no Brasil
trapos. Nem ele nem ela tinham mais tem lugar garantido, em especial, no que
pais vivos. Um surto de tuberculose, que toca à representação estereotipada que
começara na casa-grande, assolara tam- une sensualidade e desrepressão. “Branca
bém os escravos. Iriam partir, queriam para casar, preta para trabalhar e a mulata
esquecer as histórias de escravidão, suas para fornicar”: assim a doxa patriarcal
e de seus pais. Foram dias e dias sobrevi- herdada dos tempos coloniais inscreve a
vendo pelo mato. Lembravam histórias figura da mulher presente no imaginário
mais amenas de campo, de vastidão, de masculino brasileiro e a repassa à ficção e
homens nus, de leões em terras longín- à poesia de inúmeros autores.25
quas. Lembravam-se de deuses negros,
reais, constantes e tão diferentes daque- Portanto, além da visão estereotipada mas-
le Deus-Jesus de que tanto falavam os culina, é posto sobre o corpo das mulheres
senhores e os padres. Nesta hora vinha a negras a ótica racista, como o corpo erotizado
dor como um espinho rasgando o peito24. das empregadas domésticas e mulatas.
A literatura de autoria negra, especial-
A viagem sofrida lembra os navios negreiros mente a escrita por mulheres, como a de
pelos quais passaram os antepassados de Conceição, inverte essa visão estereotipada e
Totó e sua mulher, a separação da família, a insere a mulher como sujeito de seu corpo. É
morte dos parentes, muitas são as semelhan- o que vemos nos versos do poema “Meu corpo
ças com a memória diaspórica que o perso- igual”, que a autora dedica à memória de
nagem carrega consigo e que tanto lhe dói Adão Ventura:
no peito. Por outro lado, a memória coletiva
traz também as boas lembranças ouvidas Meu corpo igual
nas histórias relatadas pelos mais velhos da
distante vida na África, a liberdade que tanto Na escuridão da noite
lhes trazia saudades doloridas é representada meu corpo igual
na história do filho nascido “livre”, mas que fere perigos
carrega o “espinho rasgando o peito”. adivinha recados
assobios e tantãs.
CORPO FEMININO E EROTISMO
Na escuridão igual
O elemento corpo é signo constante na obra meu corpo noite
da escritora Conceição Evaristo. Em seus abre vulcânico
poemas, contos e romances sempre percebe- a pele étnica
mos a inscrição corporal poética com a força que me reveste.
de sua literatura. É marcante, portanto, essa
presença da pele negra corporificada em
versos ou linhas que demarcam a literatura da 24 Ibid., p. 25.
escritora mineira. Na verdade, o corpo é mar-
25 DUARTE, “Mulheres marcadas:
ca da escrita de literatura de autoria feminina, literatura, gênero e etnicidade”.
pois é ele fator de diferenciação dos sexos Terra roxa e outras terras: revista
biológicos e levante político do feminismo. de estudos literários. vol. 17A, dez.
2009. <uel.br/pos/letras/terraro​
Muitas foram as personagens da literatu- xa/g_pdf/vol17A/TRvol17Aa.pdf>.
ra brasileira que confirmaram o estereótipo Acesso em 10/10/2016. p. 6.

249
Na escuridão da noite Seu rosto, seu corpo, ficavam úmidos das

A ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO    ALINE ALVES ARRUDA


meu corpo igual, lágrimas de Davenga27.
boia lágrimas, oceânico,
crivando buscas A personagem feminina é, além de desejada,
cravando sonhos dona de seus desejos. Não é apenas corpo-
aquilombando esperanças -objeto, mas também sente prazer. O homem
na escuridão da noite26. é quem chora após o orgasmo, mostrando
sensibilidade, contra a visão social tradi-
Publicado inicialmente na coletânea Cader- cional que sempre revela o sexo masculino
nos Negros 15, em 1992, o poema confirma a como despossuído de lágrimas e proibido de
ideia do corpo negro literário inscrito politi- demonstrar sentimentos. Toda a bravura do
camente. Elementos geralmente atribuídos temido traficante é posta de lado no momento
a aspectos negativos e que mantêm relação do sexo com a mulher amada.
com a negritude são deslocados para o senti- A cena em que Davenga e Ana se conhe-
do positivo, como é o caso da palavra “escu- cem também é reveladora de um ponto de
ridão” e “noite”. A ideia do “corpo igual” que vista feminino e negro na escrita de Evaristo.
guarda memória ancestral africana é tecida Eles se conhecem em um samba e, ao ver a
estrofe a estrofe, com o eu lírico “ferindo peri- moça dançar, Davenga remete a imagem
gos”, “adivinhando recados”, “abrindo vulcâni- primeiro a uma dançarina africana e, depois,
co”, “crivando buscas” e “cravando sonhos”. O traz à memória sua ascendência feminina:
“aquilombar” de esperanças feito pelo corpo
igual fecha o poema para nos confirmar a Estava atento aos movimentos e à dança
ideia de resistência e de luta da memória da mulher. Ela lhe lembrava uma bailari-
coletiva negra. Embora de uma forma geral e na nua, tal qual a que ele vira um dia no
não tão marcante quanto ao gênero, o poema filme da televisão. A bailarina dançava
já nos revela o que Conceição vai destacar livre, solta, na festa de uma aldeia africa-
incessantemente em sua obra: a inscrição na […]. aproximou-se e convidou-a para
étnica reveladora do corpo negro. uma cerveja. Ela agradeceu. Estava com
Em Olhos d’água, é possível perce- sede, queria água e deu-lhe um sorriso
ber diversas vezes o erotismo presente na mais profundo ainda. Davenga se emocio-
escrita corporal das histórias narradas. “Ana nou. Lembrou da mãe, das irmãs, das tias,
Davenga”, um de seus mais lidos contos, das primas e até da avó, a velha Isolina28.
nos apresenta a personagem título, esposa
do traficante “dono” do morro, desejada e A voz narrativa, que sempre exalta o corpo de
desejante. Como seu homem era líder de Ana, desta vez nos descreve os movimentos
muitos, Ana, mesmo quando olhada por da protagonista mostrando a autoestima e
outros homens, era digna de respeito, pois tranquilidade com que a moça lida com seu
Davenga, marido dela, já havia ameaçado corpo, ela dança com felicidade, também
quem “bulisse” com a moça. O casal, no texto, aceita a bebida que ele lhe oferece, com um
é cercado por desejo: largo sorriso, não é comedida ou “recatada”.
Enquanto isso, Davenga se aproxima
Um pouco que ela saía para buscar dela, encantado, e os movimentos de Ana
roupas no varal ou falar um tantinho lembram-lhe as mulheres de sua família,
com as amigas, quando voltava dava com evidenciando o respeito que ele tem pela
ele, deitado na cama. Nuzinho. Bonito mulher por quem acabou de se apaixonar.
o Davenga vestido com a pele que Deus
lhe deu. Uma pele negra, esticada, lisi-
nha, brilhosa. Ela mal fechava a porta 26 Poemas da recordação e outros
e se abria todinha para o seu homem. movimentos. Rio de Janeiro: Malê,
2017. p. 15.
Davenga! Davenga! E aí acontecia o que
ela não entendia. Davenga que era tão 27 Olhos d’água. Rio de Janeiro:
grande, tão forte, mas tão menino, tinha Pallas: Fundação Biblioteca
Nacional, 2014. p. 23.
o prazer banhado em lágrimas. Chorava
feito criança. Soluçava, umedecia ela toda. 28 Ibid., pp. 25–6.

250
Outros contos de Olhos d’água apresen- em plena descoberta do novo amor, quando
tam erotismo de diferentes e até inesperados o narrador a ela nos apresenta. Depois de
modos. Em “Duzu-Querença”, por exemplo, a viver um casamento atribulado, de violência
personagem que dá nome ao conto descobre e perseguição, a personagem, ainda com
sua sexualidade de uma maneira difícil: ainda medo, nos é revelada no espelho, numa bonita
quando criança, foi com os pais para a cidade cena final do conto, quando ela se contem-
grande de trem, numa viagem semelhante à pla e enxerga do outro lado sua semelhante,
da família Vicêncio do romance de Evaristo. outra mulher: “Ambas aves fêmeas, ousadas
Os pais a entregaram a uma cafetina, que mergulhadoras na própria profundeza. E cada
empregava meninas do interior para traba- vez que uma mergulhava na outra, o suave
lhos domésticos. A menina, sem entender di- encontro de suas fendas-mulheres engravida-
reito, descobriu ali o sexo de maneira curiosa va as duas de prazer. E o que parecia pouco,
e antecipada, por si mesma, aceitando seus muito se tornava” 33.
desejos e colocando em prática a erotização A obra de Conceição Evaristo nos apre-
de maneira cruel. senta uma literatura densa, profunda e
O corpo de Natalina, personagem de lancinante. Ao mesmo tempo em que se exibe
“Quantos filhos Natalina teve?”, é guardião diante do leitor de uma forma simples, embo-
de quatro filhos, mas apenas o quarto é ra rebuscada; cotidiana, apesar de rara.
seu. Natalina também descobre cedo o sexo, Assim, seu rosário de “contas negras e
com seu namoradinho, com quem “brincava” mágicas” é desfiado de forma lírica e aguda,
quase todas as noites. Aos quatorze anos, a tanto em verso quanto em prosa, consoli-
menina, para quem o sexo ainda não passava dando mais uma obra que se constrói junto
de descompromisso, também representa a à história do negro, retomando imagens
personagem feminina que, liberta de culpa, doloridas como a dos tumbeiros, ou de corpos
descobre o próprio corpo: “Bilico, amigo de femininos mais donos de si, refeitos de uma
infância, crescera com ela. Os dois haviam história que os anulou ou os apagou.
descoberto juntos o corpo. Foi com ele que
ela descobriu que, apesar de doer um pouco,
o seu buraco abria e ali dentro cabia o prazer,
cabia a alegria” 29. A segurança de Natalina
sobre seu próprio corpo faz com que ela se
recuse a abortar da primeira gravidez, e nova-
mente recuse, desta vez o filho, da segunda,
pois embora o pai da criança quisesse consti-
tuir família, “ela não queria ficar com nin-
guém. Não queria família alguma. Não queria
filho” 30. Fugindo das pressões sociais que nos
envolvem, Natalina se mostra sujeito de sua
história, de seu corpo e de sua sexualidade,
por isso não entende por que a patroa e o pa-
trão, pais de seu terceiro filho, queriam tanto
um bebê. Ao se deitar com o homem para rea-
lizar a vontade do casal, ela faz apenas como
favor, era o momento do “prazer comedido” 31.
O filho real de Natalina, o quarto, aquele fruto
de um estupro, de um momento de horror
e dor, não de prazer, é que faz com que ela
tome consciência da maternidade e aceite o 29 Ibid., p. 45.
corpo-mãe, como talvez dissesse o narrador
30 Ibid., p. 46.
de Evaristo. “Um filho que fora concebido nos
frágeis limites da vida e da morte” 32. 31 Ibid., p. 47.
Essa descoberta do próprio corpo como
32 Ibid., p. 50.
lugar de identidade é representada em “Beijo
na face” pela personagem Salinda, que está 33 Ibid., p. 57.

251
LÚCIO CARDOSO:
UM ANDARILHO
À BEIRA ABISMO*
ANDRÉA DE PAULA XAVIER VILELA

*  aria Alice Barroso, no Prefácio do


M
livro Três histórias de província, pu-
blicado em 1969, pela Editora Nova
Fronteira, teria se referido a Lúcio
como “o insubstituível andarilho do
beira-abismo, o impulsivo toureiro
cujo orgulho não consistia no pri-
vilégio de matar touros na arena,
porém no risco que enfrentava de
ser morto por eles”.

252
FIGURA 1 Joaquim Lúcio Cardoso e Maria Wenceslina Cardoso

Filho de Joaquim Lúcio Cardoso, um aventu- A busca da consciência íntima, que será
reiro e desbravador, e de Maria Wanceslina uma das marcas da sua escrita madura, já
Cardoso, mulher forte dona de uma inteligên- aparece na sua obra inaugural, Maleita.
cia cortante, Joaquim Lúcio Cardoso Filho Escrito quando Lúcio tinha por volta de 17 a
nasceu no dia 14 de agosto de 1912 na cidade 19 anos e publicado em 1934, quando estava
mineira de Curvelo. Do pai herdou o nome, a com 22, o romance se aproxima da literatura
inquietação e o espírito aventureiro, e da mãe regionalista da “geração de 30”, porém ainda
a sagacidade e a capacidade de usar a pala- distante da complexidade e intimismo de uma
vra como arma certeira. de suas mais importantes obras, Crônica da
Autor de uma obra singular dentro do casa assassinada, em que um Lúcio, maduro
panorama da Literatura Brasileira, Lúcio na escrita, esgarça, diante dos olhos perple-
Cardoso é um criador de atmosferas, um xos do leitor, a estrutura de uma família, de
delator do que há de mais escondido na alma seus membros, de uma cidade, de um roman-
humana. No campo da escrita produziu muito ce e da própria escritura.
e de tudo: romances, novelas, contos, poesias, Joaquim Lúcio Cardoso, pai de Lúcio, era
crônicas, além de ter feito várias traduções natural de Valença, cidade do Vale do Para-
de autores, como Tolstói, Jane Austen, Emily íba, no Estado do Rio de Janeiro. Durante
Brontë, Daniel Defoe, para citar alguns. Além a infância e juventude, recebeu educação
da sua vasta obra literária, Lúcio também privilegiada, tendo mesmo atraído o interesse
escreveu peças de teatro, tendo fundado o do Imperador por seu talento como pianista,
Teatro de Câmara e, juntamente com Abdias quando este, de passagem pela Chácara
Nascimento, o Teatro Experimental do Negro. onde morava com seus pais, ao vê-lo tocar,
Escreveu argumentos para o cinema e dirigiu quis custear seus estudos na Itália. O convite
um filme com seu próprio argumento, A Mu- não pôde ser aceito devido ao apego de sua
lher de longe, que nunca chegou a ser finaliza- mãe, que se recusou a se separar do filho.
do. Foi ainda desenhista e pintor, assumindo Estudou Engenharia na Escola de Minas, de
essa forma de expressão de forma definitiva Ouro Preto, porém, teve que abandonar os
após um derrame que o deixou afásico. estudos, depois de já ter cursado até o 3º ano,

253
devido à morte do pai. Sua ida para Curvelo Essas ausências e os tempos de dificuldade

LÚCIO CARDOSO: UM ANDARILHO À BEIRA ABISMO   ANDRÉA DE PAULA XAVIER VILELA


ocorreu ainda jovem, ao se engajar numa fizeram com que os filhos do casal fossem
turma de engenheiros que trabalhavam na criados dentro de uma esfera feminina de
construção do ramal da Estrada de Ferro sustento e educação. Sozinha com os filhos,
Central do Brasil para aquela cidade. em certa ocasião dona Nhanhá chegou mes-
Em Curvelo conheceu sua primeira mu- mo a ir morar com a mãe e as irmãs solteiras,
lher, Regina, que morreu precocemente de como uma alternativa para não sacrificá-los e
tuberculose. Casou-se então, em segundas submetê-los a dificuldades. Durante o tempo
núpcias, com Maria Wenceslina, amiga de em que lá viveu, passou a revezar com elas
infância de sua primeira mulher e que dela nos afazeres da cozinha e no trabalho da cos-
cuidou até os últimos dias. Nhanhá, como tura, meio pelo qual se sustentavam.
era conhecida, era ligada por parentesco aos A figura do pai e as lacunas deixadas na
Vianna, uma das famílias importantes de vida do autor por suas ausências irão atra-
Curvelo. Contudo, seus pais tinham poucas vessar a obra de Lúcio, sofrendo mudança à
posses e a família sobrevivia à custa de muito medida que esse pai se transforma aos olhos
trabalho e sacrifício de sua mãe, uma vez que do filho, passando do aventureiro e herói, de
o pai, que morreu cedo, sofria de depressão Maleita, ao pai pródigo que retorna fracassa-
e alcoolismo. Passava, muitas vezes, meses, do em Dias perdidos. Na obra de Lúcio, o pai
trancado no quarto, longe de todos e afasta- errante surge traduzido em elementos exter-
do do trabalho. O emprego só era mantido nos cuja aparição cumpre papel de abalar as
graças ao prestígio dos parentes, que conse- estruturas estabelecidas. Esse sujeito que
guiam preservar seu cargo, para que pudesse está sempre em deslocamento e aparece, vin-
retornar, quando suas crises terminassem. do de longe, de tempos em tempos, se traduz
Joaquim e Nhanhá tiveram seis filhos. pelo estrangeiro ou estranho e perpassa toda
Regina, nome dado em homenagem à sua obra como uma aparição que desestabili-
primeira mulher de Joaquim, Fausto, Maria za, seduz, transforma e desvela. Muitas vezes,
Helena, Adauto, Lourdes e o caçula, que ele encarna o mal ou arrasta consigo certa
recebeu o mesmo nome do pai, Joaquim atmosfera maléfica, destruidora e, ao mesmo
Lúcio Cardoso Filho. É interessante ressal- tempo, sedutora. Podemos reconhecê-lo, por
tar que o nome Lúcio, ao invés de distinguir, exemplo, no Anfiteatro, no Viajante, no Desco-
igualava os homens da família. Exceto o mais nhecido, na estranha figura paterna de Inácio,
velho, Fausto, os demais levavam Lúcio no e até mesmo, na personagem Nina de Crô-
nome: o pai, Joaquim Lúcio Cardoso; o filho nica da casa assassinada. Evoca o estranho
do meio, Adauto Lúcio Cardoso e o caçula, familiar do conceito de Unheimlich, desenvol-
Joaquim Lúcio Cardoso Filho, o Nonô. Lúcio vido por Freud, que traz o oculto à tona.
recorta do próprio nome a parte que, ao invés Em 1914 a família de Lúcio se muda para
de distingui-lo, o igualava aos homens de sua Belo Horizonte, uma jovem capital à época, e,
família. Nesse processo acaba fazendo uma em 1923, transfere-se para o Rio de Janeiro.
operação inversa. Ao recortar o nome, ele Lúcio era ainda menino quando deixou Minas
próprio é recortado, passando a ser o portador Gerais. Tinha apenas dois anos quando saiu
oficial do binômio Lúcio Cardoso. Direito con- de sua cidade natal e onze quando a família se
ferido pela obra que constrói sob esse nome, transferiu para a capital federal. Voltou para
ou a obra da qual ele próprio nasce como Belo Horizonte em 1924, para estudar no inter-
autor/criador sob essa designação. nato do Colégio Arnaldo, regressando em 1929
A vida da família formada por Joaquim ao Rio, para viver com a família e completar os
e Nhanhá não foi muito diferente daquela estudos. As paisagens cumprirão um papel
de dificuldades que ambos, em diferentes importante e simbólico na obra de Lúcio. As
medidas, experimentaram em suas vivências paisagens interioranas, as vielas boêmias das
familiares. Aventureiro, Joaquim metia-se em cidades, os rios, o mar. Este último, embora
negócios que o mantinham longe de casa por não esteja tão presente nos romances, servirá
longos períodos. Os altos e baixos financeiros, de paisagem para contos e para seu filme
bem como os longos períodos de ausência inacabado. Na paisagem litorânea encontrou
paterna faziam com que a família passasse lugar para construir a grande obra que dele se
da fartura exagerada à profunda escassez. esperava. Mas o barro com o qual a moldou foi

254
tirado da poeira mineira acumulada nos poros, livro de contos infantis; as novelas O desco-
nos cabelos, nas vestes e nos calçados. Há nele nhecido (José Olympio Editora – 1940) e Céu
uma identificação com o mar na sua inconstân- escuro (Separata da revista Vamos Ler!); seu
cia e ondulação, num permanente movimento primeiro livro de poemas, Poesias (José Olym-
de ir e vir. O mar lhe abriu o horizonte, mas com pio Editora – 1941) e, em 1943, o romance
a terra de origem mantém uma ligação visceral. em tom autobiográfico Dias perdidos. Nesse
Nela suas veias ficaram plantadas como raízes romance, novamente o pai aparece, porém,
de uma árvore que suga de suas entranhas o se em Maleita é a figura do pai heroico que se
líquido grosso que lhe corre pelos vasos. manifesta, em Dias perdidos, o pai aparece
Em Maleita, seu romance de estreia, Lúcio derrotado, falido, despido da aura que um dia
narra a saga vivida por seu pai, ao ser enviado o envolveu. Embora não haja correspondência
para Pirapora, contratado para comandar os estrita com sua vida, é possível identificar
negócios da Companhia Cedro e Cachoeira elementos autobiográficos na composição
de Fiação, de propriedade da família do romance, como a relação do personagem
Mascarenhas, de Curvelo. O romance foi cele- Sílvio com o pai ausente, bem como as afini-
brado, no meio literário da época, como obra dades que Jaques, pai de Sílvio, guarda com o
de cunho regionalista. Um ano após Maleita é que se sabe a respeito do pai de Lúcio.
publicado, em 1935, Salgueiro, outro livro que A irmã de Lúcio, Maria Helena, relata em
guarda tom regionalista, cuja trama se passa seu livro de memórias, Por onde andou meu
no morro carioca de mesmo nome. Seriam coração, as histórias da família, em que é
essas as suas duas únicas novelas nesse tom. possível não somente acompanhar a trajetó-
Em 1936, a publicação de Luz no subsolo ria dos Cardoso como também entrar em sua
marca uma nova fase na escrita de Lúcio. Em intimidade e conhecer de perto as pessoas
tom intimista, o romance já aponta para as e os lugares que marcaram a vida dessa
questões que perpassariam sua obra, a busca família. Por meio da leitura dessas memórias
em retratar o íntimo da alma humana e a é possível perceber como Lúcio se vale de sua
presença do mal. A Luz no subsolo seguiu-se experiência com o pai ausente para compor
uma produção intensa de novelas, contos, po- a relação do personagem Sílvio com o pai,
esias e romances. A crítica não recebeu bem Jaques. Os fracassos dos empreendimentos
os textos dessa nova fase. Se Luz no subsolo paternos, o mal que o vitimou, tudo é relatado
causou estranhamento, a novela Mãos vazias, com inúmeras coincidências entre o persona-
publicada a seguir, em 1938, não foi poupada gem Jaques e o velho Cardoso.
de duras críticas. Boa parte do meio literário No romance, o universo feminino dentro
dos anos 30 e 40 não absorvia o universo de do qual o menino Nonô cresceu também
sombras, trágico e conflituoso, recriado na entra na composição, trazendo à tona outros
escrita cardosiana. elementos que compõem a matéria de sua es-
Lúcio teve, inicialmente, dificuldades em crita. Como fios de um tecido, pai e mãe são
editar os romances dessa nova fase. Alguns trama e urdidura na tessitura de uma obra
deles foram publicados em partes, em forma que possui ao mesmo tempo a errância de
de contos, nos suplementos literários, sendo Ulisses e a obstinação de Penélope. É possí-
reunidos e editados algum tempo depois. vel perceber a semelhança da figura de Clara
Assim foi com Inácio, publicado em 1944, e O com a de dona Nhanhá, no ofício da costura,
enfeitiçado, que só saiu como livro em 1954, na religiosidade e na dedicação ao filho. Tam-
depois de ter tido partes publicadas em 1946 bém Áurea, a irmã de criação de Clara, parece
e 1948. Boa parte de sua produção das déca- encarnar algo das tias de Lúcio, que sempre
das de 30, 40 e 50 era de contos, que foram estiveram por perto, mas principalmente de
publicados, em grande parte, em periódicos. Eudócia, a tia doce, a costureira Tidoce.
Merecem destaque suas publicações no su- Na obra de Lúcio o espaço que se abre
plemento “Letras e Artes” do jornal A manhã, devido à ausência do pai cumpre, por um lado,
mas também seu trabalho como colaborador o papel do vazio necessário para se iniciar
em outros periódicos, como O Estado de São a construção de uma obra. Em Dias perdi-
Paulo e A noite. dos, Lúcio Cardoso elabora suas vivências
Após Mãos vazias, Lúcio publica Histórias pessoais para delas fazer a matéria prima
da Lagoa Grande (Livraria do Globo – 1939), de sua escrita. Mais que um romance com

255
elementos autobiográficos, esse pode ser Minas, esse espinho que não consigo ar-

LÚCIO CARDOSO: UM ANDARILHO À BEIRA ABISMO   ANDRÉA DE PAULA XAVIER VILELA


pensado como um livro que ilustra o processo rancar do meu coração ​—​ fui menino em
de construção de uma obra. Vivências e ima- Minas, cursei Minas e os seus córregos, vi
ginação se entrelaçando na tessitura de um nascer gente e morrer em Minas, na épo-
texto que, ao final das contas, se converte no ca em que as coisas contam. O que amo
próprio corpo de quem o tece, assim como o em Minas é sua força bruta, seu poder de
homem, de Jorge Luis Borges, que se lançou legenda, de terras lavradas pela aventura
à tarefa de desenhar o mundo e que vai, ao que, sem me destruir, incessantemente
longo dos anos, preenchendo o espaço com me alimenta. O que amo em Minas são os
pessoas, paisagens, cavalos, navios e, no fim pedaços que me faltam, e que, não poden-
da vida, descobre que traçara a imagem do do ser recuperados, ardem no seu vazio, à
seu próprio rosto. espera de que eu me faça inteiro ​—​ coisa
“Os dias perdidos” é também o nome de um que só a morte fará possível.1
poema que Lúcio escreveu e jamais publicou.
Assim como o romance, o poema fala da volta Após Dias perdidos Lúcio publicaria o livro
de um derrotado. Alguém que se lança à vida, Novas Poesias (José Olympio) e ainda quatro
se empenha em projetos e aventuras, para, ao novelas, Inácio (Ocidente – 1944), A professo-
fim, constatar que se encontra com as “mãos ra Hilda (José Olympio – 1946), o Anfiteatro
vazias”. Os dias perdidos podem ser aqueles (Agir – 1946) e O enfeitiçado, todos antes de
gastos no empenho de se construir uma obra Crônica da Casa Assassinada (1959). Além
ou aqueles pertencentes a um tempo irrecupe- dessas publicações, fez, nesse tempo, diver-
rável em que a falta não pode ser tamponada, sas traduções e roteiros para o cinema. Foi
a ausência não pode ser compensada, o que um período de intensa produção teatral, em
não foi feito não pode ser feito, ou, ainda, o que que escreve e encena quatro peças: O escra-
se viveu não pode mais ser vivido, mas apenas vo, O filho pródigo, A corda de prata e O cora-
visitado pela memória ou pela capacidade ção delator, e funda o Teatro Experimental do
de reconstruir o vivido por meio da criação ou Negro e o Teatro de Câmara, que conta com
recriação. O poema foi publicado pela primeira Burle Marx e Santa Rosa como cenógrafos,
vez em 2006, por Ésio Macedo Ribeiro, no seu recebendo peças de autores, como Cecília
estudo O riso escuro, ou o pavão de luto. Nele Meireles, Nelson Rodrigues e Jorge Amado.
quem volta derrotado é o filho que se apre- Aos livros Inácio e O enfeitiçado deveria ter
senta diante da mãe, cuja mirada o distinguiu. seguimento a novela Baltazar, que teve partes
Presença constante; lastro; suporte. publicadas em forma de contos e só seria
Se, para Lúcio, o pai representa o espírito reunida, organizada e publicada como livro
aventureiro, o embrenhar-se nos sertões e anos depois da morte de Lúcio, numa edição
arriscar tudo em busca dos sonhos, a mãe é a organizada por André Seffrin. Essas novelas,
própria terra. Dona Nhanhá personifica Minas. que o pesquisador Mário Carelli chama de
É ela a mãe-terra, a casa, o pouso. É a própria “satânicas”, foram concebidas para serem
Minas Gerais no seio da família, lembrando uma trilogia à qual Lúcio denominou “o mun-
a todos de que barro foram feitos o que se do sem Deus”. Nelas, as questões relativas ao
manifesta no seu jeito sertanejo, seus termos “mal” no seu estado “puro”, que seriam uma
peculiares, seu sotaque, sua culinária, seus espécie de obsessão na obra de Lúcio, ficam
hábitos cotidianos e religiosos. Dona Nhanhá evidenciadas em tramas cujos personagens
é a guardiã do ninho, que lá permanece para estão condenados a viver num mundo sem
garantir que os filhos tenham sempre para remissão. Embora esse “mal” seja elemento
onde voltar. No poema, Lúcio se dirige à mãe manifesto na obra de Lúcio, principalmente
como quem volta exausto e derrotado de uma a partir do momento em que inaugura uma
jornada: “Mãe, tu me chamavas príncipe […] / literatura intimista, ele já estaria presente, de
Cansado das tristes caminhadas, eis-me alguma forma, em Maleita e Salgueiro, como
diante de ti envergonhado.” Há vários trechos algo imanente ao ser humano, em forma de
do Diário em que Lúcio fala sobre Minas e o
que, simbolicamente, representa em sua vida.
É uma relação ambígua que traz confor- 1 CARDOSO, Lúcio. Diários, 2012,
to e opressão: p. 504.

256
fatalidade diante da qual os personagens se obstinadamente sustentada tenta masca-
veem impotentes. rar, porém, não só a verdadeira matéria que
Em Crônica da casa assassinada a compõe a argamassa formadora do corpo da
obra de Lúcio encontra momento pleno de casa e do nome da família como também sua
maturidade. A complexidade do romance não decadência. Perturbando a ordem estabe-
permite que seja enquadrado em categorias lecida e a imagem rigidamente sustentada
preestabelecidas, e a sofisticação do jogo pelos Meneses, surge Nina. Ela é o elemento
que realiza já é de imediato denunciada pelo externo que aparece para desestabilizar e
nome: um romance com nome de crônica, expor os alicerces carcomidos da mansão
apresentado como relatos de fatos ocorridos em decadência. Sua inquietante presença
a serem costurados e desvendados pelo carrega a pureza do mal, cujo poder destrui-
leitor de forma a se chegar à verdade. Tarefa dor apodrecerá as paredes da casa, o nome
impossível de ser realizada, pois não há uma dos Meneses e o seu próprio corpo. Descrita
grande verdade, mas as pequenas verdades como uma mulher de beleza desconcertante,
tecidas junto às mentiras de cada um. Nina é capaz de fazer aflorar os mais ocultos
No romance, Lúcio costura relatos que sentimentos. Sua aparição transforma a vida
se apresentam como cartas, confissões ou de cada um dos membros da casa, assim
diários, que vão montando, como um quebra- como daqueles que a ela estão ligados.
-cabeça, a trajetória de morte de uma mulher Não só os sentimentos ocultos se reve-
e, metaforicamente, de uma casa e de uma lam pelas frestas. Há sempre algo oculto
família. Os fatos são costurados como uma em tudo que envolve a chácara dos Menezes.
colcha de retalhos, a partir de fragmentos de As circunstâncias da morte do jardineiro,
escrita que oferecem indícios a serem reuni- amante de Nina e objeto de desejo de Ana, a
dos. Porém, por trás do que se lê há sempre a sem graça e ressequida esposa de Demétrio,
impossibilidade de se chegar à verdade, pois o primogênito do clã. O retrato escondido
cada qual apresenta uma versão pessoal que no sótão de uma ancestral que representa
pode conter trapaça, manipulação dos fatos e a coragem de transgredir. O irmão Timóteo,
de suas motivações. Os fragmentos de diários, que é retirado e escondido no aposento mais
as cartas, os depoimentos colhidos, nada se distante do centro social da casa. Próximo
apresenta isento da possibilidade de embus- à cozinha, no fim do corredor, fica o quarto
te, de encenação para convencimento, ou daquele que personifica a enfermidade da-
mesmo da intenção de fazer valer uma versão quele organismo. Adornado com as roupas e
pessoal dos acontecimentos ou a impressão as joias da mãe, ele vive refugiado desde que
subjetiva que se tem acerca dos mesmos. rompeu com a família. Afastado do convívio,
Todos parecem implicados com alguma coisa cresce como um câncer, transbordando sua
mal esclarecida, dos membros da família aos carne pelas frestas dos vestidos que ostenta.
moradores de Vila Velha. Os pertences da mãe, dos quais se apoderou,
Todo o romance se constrói em torno são espólios de uma batalha travada há muito,
da personagem Nina, que, nas primeiras da qual recuou permanecendo à espera do
páginas, nos é apresentada como um cadáver, confronto definitivo. Sua figura apresenta
cuja presença leva-nos, por intermédio do uma verdadeira geografia de ruínas.
personagem André, à pergunta: “o que é o O mal, por fim, se apresenta como ele-
para sempre”? O cadáver contrasta com a mento intangível que está em tudo, conta-
figura de mulher de beleza e presença des- minando as almas, apodrecendo as paredes,
concertante que entra para a família por meio modificando a paisagem, petrificando os or-
do casamento com um dos membros do clã. ganismos vivos. Na mansão dos Meneses as
Esse elemento externo, que abala as estru- paredes adoecem, traçando em seu próprio
turas familiares, vai sendo apresentado ao corpo uma geografia da destruição seme-
leitor a partir das diversas vozes que tentam lhante àquela que se desenhava no corpo de
dar conta de traduzi-la. Qual a verdade sobre Nina. A paisagem da chácara anuncia, numa
essa mulher? atmosfera de decadência, o ocaso da família.
A mansão dos Meneses representa, Essa paisagem é toda envolvida pelos acon-
perante a pequena cidade de Vila Velha, o tecimentos e modifica-se conforme mudam
orgulho e a tradição da família. Essa imagem os humores ou conforme se vê invadida pela

257
ameaça de algo intangível. O sol amarelo de Outro exemplo de mãe terrível encontra

LÚCIO CARDOSO: UM ANDARILHO À BEIRA ABISMO   ANDRÉA DE PAULA XAVIER VILELA


meio-dia, com sua fixidez, denuncia a presen- representação em Donana de Lara, persona-
ça do mal que paralisa tudo. Isso é percebido gem de O viajante, romance inconcluso de
por padre Justino, que, indagado por Valdo Lúcio que foi publicado postumamente em
Meneses ​—​ “Padre, que é o inferno?” ​—, senta- edição organizada por Otávio de Faria. Assim
do na varanda, sob o sol de meio-dia, sente-se como as demais histórias de província, esse
tomado pela resposta que não tem coragem livro também é ambientado na cidade de Vila
de pronunciar: “O inferno é isto, esta casa, Velha. Viúva respeitável do interior, ela vive
esta varanda, este sol que uniformiza tudo”. numa casa em que a opulência das cortinas
As mulheres que habitam os textos de de veludo e dos finos objetos de adorno evoca
Lúcio são, de maneira geral, estranhas. O es- um ar de decadência. Essa mulher protago-
tranho nelas pode ser visto sob o aspecto de niza uma das cenas mais impressionantes
estranhamento que suas personalidades cau- da obra de Lúcio, quando leva o filho inválido ​
sam, como pode ser considerado a partir do —​ rapaz que nasceu doente ​—​ para a morte.
que não é familiar, é estranho a nós, mas tão Seu assassinato é planejado pela mãe como
estranho que somos incapazes de compreen- alguém que tenciona livrar-se de um estorvo,
der. São almas inatingíveis. Alguma coisa de e é levado a cabo sem que possamos acreditar
falso as povoa e as aproxima desse aspecto que ela será capaz de tanto. O lugar escolhido
ameaçador e incapturável. Passam de algo- é a paisagem triste e fétida de um matadouro
zes ferozes a vítimas indefesas, verdadeiros aonde leva com frequência o filho para passe-
cordeiros imolados a saciar as necessidades ar, e onde se vê livre do olhar dos curiosos. Lá
do Mal, essa entidade que percorre a escrita, Donana empurra a cadeira de rodas sobre a
manifestando-se como uma força inquestio- ribanceira que vai dar na beira de um córrego
nável. Nina, por exemplo, traz consigo algo de barrento, margeado por um matadouro. Nesse
artificial. Sua beleza excessiva, suas roupas local onde as reses mortas ficam entulhadas,
demasiadamente glamourosas, que destoam atraindo os urubus, é que cai o corpo inerte
daquele ambiente austero e interiorano, bem do pobre Zeca, rapaz “a quem a infância fora
como o tom teatral de suas cartas e falas, dada como destino” e que, no seu instante
parecem parte de uma encenação. derradeiro, se vê subitamente amadurecido
Nas personagens de Lúcio, algumas estra- pela consciência da vida e da morte.
nhas mães possuem atitudes que nos tiram o Se na obra de Lúcio há um mal que se ma-
fôlego e nos mantêm de boca aberta diante do nifesta nas figuras femininas, há outro que pa-
horror. O feminino estaria ali representando rece ser despertado pela inocência de outras.
a falta de representação. Nina não só parece Em O viajante, a pureza de Sinhá atrai o mal
fazer brotar o inconfessável ​—​ a vaidade, a co- que é semeado pelo viajante Rafael, fazendo
biça, a luxúria, a inveja, o crime, o adultério ​—, dela uma vítima de sua própria inocência con-
como vai aos limites da interdição, ao seduzir denada a um trágico destino. Sinhá desperta
seu filho, André. Porém, trata-se de um ardil o desejo do marido de sua tia, mestre Juca,
que faz com que André viva torturado pelo in- o fabricante de caixões da cidade, e a cobiça
cesto, embora ela saiba que, na verdade, não sexual de Rafael. Depois de ser estuprada
é ele seu filho, mas sim de Ana com o jardinei- por Rafael, será assassinada por mestre Juca
ro Alberto. Essa verdade só vem à tona no fim numa terrível cena que é trágica poesia: “Toda
de tudo, quando não faz mais diferença. inocência é monstruosa. Os anjos não existem.
Na obra cardosiana aparecem outras Em última análise, os anjos, seres perfeitos,
tantas mães que abandonam seus filhos, seja seriam a distância que separa o homem de
física, seja emocionalmente, como Estela, de Deus” 2 ​—​  escreve Lúcio em seu Diário.
Inácio, que aparece na vida do filho como uma Após Crônica da Casa Assassinada, Lúcio
citação, ou Ida, de Mãos vazias, mulher estra- ainda publicaria seu primeiro diário ​—​ o Diário
nha, que parece ser seca e destituída de sen- I (1960 – Editora Elos), e o livro a várias mãos,
timento. Há como que um não-envolvimento O mistério dos MMM, juntamente com Rachel
com a emoção nas suas atitudes, uma indife- de Queiroz, Jorge Amado, Guimarães Rosa,
rença em relação aos tristes acontecimentos
à sua volta: a morte do filho, a dor do marido,
nada parece de fato atingi-la. 2 Ibid., p. 452.

258
Herberto Sales, dentre outros. Lúcio se man- Mário Carelli observa que o primeiro aspecto
tém ativo escrevendo uma série de opúsculos, que chama a atenção em suas pinturas é a
dentre outras atividades, porém, em 1962, capacidade de criar ambientes e persona-
sofre um derrame que o deixa afásico. Por gens portadores de um clima. Outro aspecto,
indicação de Pedro Nava, passa a frequentar segundo ele, é o “influxo antropomórfico” do
a ABBR (Associação Brasileira Beneficente qual as paisagens são investidas.
de Reabilitação), para tratamento por meio de Seus desenhos e pinturas mantêm
fisioterapia, fonoaudiologia, musicoterapia e uma liberdade tanto composicional quanto
terapia ocupacional. Lindaura Portela, pintora temática. As paisagens e figuras parecem
e terapeuta ocupacional que cuidava de Lúcio, retiradas da memória, sem a necessidade de
passou a pesquisar suas aptidões naturais, uma observação direta do tema representado.
o que o levou à redescoberta da pintura, Brotam do seu interior como algo guardado
atividade que já exercia de forma esporádica. à espera de ser chamado a emergir. Surgem
Estimulado a voltar a pintar, agora com a mão paisagens de Minas, o litoral fluminense e
esquerda, começa uma nova fase na vida. figuras que, algumas vezes, evocam perso-
Rachel de Queiroz conta, numa entrevista, nagens do seu universo íntimo. Em vários
que, quando chegou ao Rio de Janeiro, formou trechos dos Diários ele fala sobre sua forma
um grupo de amigos que sempre se encon- de ver o mundo através do filtro da lembrança.
travam no Bar Recreio, do qual faziam parte Num deles aponta para a origem das paisa-
ela, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Otávio de gens que constrói: “Paisagens, paisagens.
Faria, entre outros. Às vezes, Lúcio sumia por Elas se levantam de mim, impetuosas, quer
dias e até mesmo por semanas. Numa dessas eu esteja dormindo, quer acordado ​—​ são
vezes perguntou-lhe quando voltou a apare- paisagens reais, ou paisagens de sonho, mas
cer: “Onde é que você andou, menino?”, ao todas de pungente nostalgia ​—​ paisagens de
que ele respondeu: “Estive no inferno” 3. uma vida que eu perdi.” 4
O mergulho no território da morte é marca Há, ainda, outros trechos em que ele fala
fundamental na obra cardosiana. Lúcio, como sobre seu modo de ver, implicado com a lem-
Orfeu, vai aos infernos para de lá retirar sua brança, e de como as atmosferas, paisagens,
obra, mas, ao olhar para trás e encarar o terri- cores e personagens estão contaminadas
tório da morte, corre o risco da perda. Se esse por esse olhar:
movimento de estar sempre em busca de algo
que escapa acaba sendo o movimento mes- As coisas, para serem vistas por mim, têm
mo da construção de uma obra, no caso de necessidade de preexistirem, latentes, no
Lúcio o mergulho foi radical a tal ponto que, meu íntimo ​—​ que tal árvore ou tal lago
ao olhar para trás, acabou por perder a fonte relembre coisas já vistas ou sentidas ​—​ ou
das palavras definitivamente e, junto com as que despertem outras não vistas nem
palavras, sua vida ficou ameaçada, até ambos, sentidas ainda, mas que estendam suas
autor e obra, partirem rumo ao “para sem- secretas raízes no meu espírito ​—​ que
pre”. A nascente de onde a fonte das palavras pactuem um pouco, enfim desse mun-
jorrava, porém, não se extinguiu, uma vez que do inorgânico que me forma, e onde se
essas nasciam de uma “imaginação plantada mistura às sensações e aos sentimentos, a
nas raízes do existido”, e de lá Lúcio arrancou ponta de uma verdade que do lado de fora
figuras e paisagens em pinturas e desenhos vem encontrar o seu eco ​—​ próximo ou
ao mesmo tempo pungentes e líricos. remoto, que importe ​—​ mas ainda assim
A produção plástica que inaugura nessa eco de uma verdade existente ou existida.5
nova fase mantém a atmosfera de sua escrita.
Impedido de usar a mão direita, devido à pa-
ralisação ocasionada pelo derrame, desenha 3 Entrevista gravada para o docu-
e pinta com a mão esquerda, numa produção mentário Lúcio Cardoso de Eliane
Terra e Karla Holanda sobre Lúcio
intensa que vai, com o tempo, adquirindo Cardoso.1993.
maior maturidade plástica e gráfica. Assim
como ocorre com sua obra escrita, o que 4 CARDOSO, Lúcio. Diários, 2012,
op. cit., p. 449.
alimenta sua produção é a memória e suas
impressões acerca do mundo que o rodeia. 5 Ibid., pp. 472–3.

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É também interessante observar que a

LÚCIO CARDOSO: UM ANDARILHO À BEIRA ABISMO   ANDRÉA DE PAULA XAVIER VILELA


doença emprestou um certo lirismo à sua
obra. Embora mantenha o clima dramático
de sua escrita, seus quadros ganham uma
gama de cores que não ocorriam, de manei-
ra geral, nos trabalhos produzidos antes da
doença. De certa forma, é possível dizer que
sua linguagem plástica anterior se aproxima
de sua prosa e, posteriormente ao derrame,
se acerca de sua poesia (figuras 3, 4, 5 e 6).
Lúcio acaba carregando no corpo a marca de
sua divisão, de seu tormento, de suas dúvidas
e inquietações, que fazem com que esteja
sempre entre o céu e o inferno, o bem e o mal,
a vida e a morte. Paralisado do lado direito, o
lado esquerdo insiste em dar continuidade a
uma obra que, como um jorro, não se deixa si-
lenciar. O calvário e a luta vivida por Lúcio no
período pós derrame foi registrado por Maria
Helena Cardoso no seu pungente relato Vida/
Vida (José Olympio – 1973).
Por meio da escrita de Maria Helena
vemos que a trajetória de vida de Lúcio não
acabou, por ser uma trajetória de retorno à
infância. O menino Nonô torna-se o escritor
Lúcio Cardoso, que busca na infância as
lembranças que alimentam a atmosfera de
seus livros. Os olhos de menino nunca o aban- FIGURA 2 Lúcio Cardoso
donaram, e são esses olhos que contemplam
as paisagens do presente e as transformam,
através do filtro da lembrança. O romancista Após o derrame, Lúcio realiza diversas
verborrágico, o infernal cavaleiro das palavras, exposições de seus quadros e recebe, em
porém, é atravessado pela espada do destino. 1966, o Prêmio Machado de Assis, concedi-
Na luta travada entre os dois anjos que o habi- do pela Academia Brasileira de Letras, pelo
tam, um que o leva aos infernos, outro que lhe conjunto da obra. A esperança termina em
aponta a luz divina, Lúcio passa a ser um ter- 24 de setembro de 1968, quando um der-
ritório de batalha dividido entre a esperança rame fatal silencia, para sempre, o inquieto
e a condenação. Mas, se o derrame lhe rouba Corcel de Fogo8.
a fala, seca-lhe as palavras e petrifica-lhe o
corpo, acaba também por cumprir a função
de devolvê-lo ao estado de infância, e Lúcio
volta, ironicamente, a ser o menino Nonô.
Não perdia, porém, a esperança de um
dia poder retomar a escrita. Às vezes lem-
brava melancólico seus projetos inacabados,
escrevendo no bloquinho que usava para se
comunicar: “Crônica ​—​  passado ​—​  O Viajante ​
—​  presente ​—​  O pavão de luto ​—​  futuro.” 6
Ou ainda: “Introdução à música do Sangue ​ 6 CARDOSO, Maria Helena. Vida/
Vida, 1973, p. 237.
—​  Romance ​—​  Breve”.7 São romances e nove-
las que esperava um dia poder terminar. Lá es- 7 Ibid., p. 260.
tavam novamente Vila Velha, seus habitantes
8 Clarice chama Lúcio de “Corcel de
e, sinistro, como um personagem a transitar Fogo” numa crônica publicada em
entre as histórias, a presença terrível do Mal. 1973, no Jornal do Brasil.

260
FIGURA 3 Sem Título — Guache sobre papel; 49 × 68 cm (Coleção particular)

FIGURA 4 Sem Título — Guache sobre papel; 32 × 42 cm (Coleção particular)

261
LÚCIO CARDOSO: UM ANDARILHO À BEIRA ABISMO   ANDRÉA DE PAULA XAVIER VILELA
FIGURA 5 Sem Título — Óleo sobre tela; 59 × 72,5 cm (Coleção particular)

FIGURA 6 Sem Título — Óleo sobre tela; 53,5 × 74 cm (Coleção particular)

262
REFERÊNCIAS

CARDOSO, Lúcio. Maleita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.


———. Salgueiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
———. A Luz no subsolo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
———. Dias Perdidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
———. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
———. O viajante (Inacabado). Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
———. Inácio, O enfeitiçado e Baltazar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
———. Céu escuro. Rio de Janeiro: Vamos Ler!/A Noite, 1940.
———. O desconhecido, Mãos vazias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
———. O mistério dos MMM. Coordenação de João Conde. Rio de Janeiro: Ediouro, 1962.
———. Histórias da lagoa grande. Porto Alegre: Globo, 1939.
———. Poesia Completa. Organizado por Ésio Macedo Ribeiro. São Paulo:
———. Diários. Organizados por Ésio Macedo Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.
———. Contos da ilha e do continente. Organizado por Valéria Lamego. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
———. Três histórias da província. (Mãos Vazias, O desconhecido e A professora Hilda).
Rio de Janeiro: Bloch, 1969.
———. Três histórias da cidade. (Inácio, O anfiteatro e O enfeitiçado). Rio de Janeiro:
Edições Bloch, 1969.
CARDOSO, Maria Helena. Por onde andou meu coração. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
———. Vida/Vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
CARELLI, Mário. Corcel de fogo: Vida e obra de Lúcio Cardoso (1912–1968). Rio de
Janeiro: Guanabara, 1988.

263
CLÁUDIO MANUEL
DA COSTA, POETA
DAS MINAS GERAIS
ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA Dedicado a Melânia Silva de Aguiar,
leitora de Cláudio

264
1. de letras do século XVIII, momento em que
a vida intelectual não se separa da esfera
Não são estas as venturosas praias da pública e da sociabilidade expressa em obras
Arcádia, onde o som das águas inspirava a literárias que conversam diretamente com os
harmonia dos versos. Turva, e feia, a cor- eventos e os personagens da época e do local.
rente destes ribeiros, primeiro que arrebate Não existe, para Cláudio Manuel da Costa,
as ideias de um Poeta, deixa ponderar a uma poesia subjetiva, no sentido do solip-
ambiciosa fadiga de minerar a terra, que sismo romântico que logo mudará a ideia de
lhes tem pervertido as cores. envolvimento entre poeta e obra. O poeta do
XVIII, ao vestir sua roupagem de pastor neo-
Cláudio Manuel da Costa nasceu no sítio clássico, abre-se para toda a tradição clássica
de Vargem do Itacolomi, distrito da Vila de e busca o diálogo com o seu ambiente, para
Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo, futura o qual efetivamente gostaria de colaborar
Mariana, em 1729, e veio a morrer no contexto com seus elogios e/ou críticas aos poderosos
da Inconfidência Mineira em Vila Rica, hoje e aos governantes que podem intervir, de
Ouro Preto, em 17891. Sua educação formal maneira efetiva, na melhoria das condições
se deu primeiro entre os jesuítas, no colégio de funcionamento de uma dada sociedade.
do Morro do Castelo no Rio de Janeiro, onde São outros os tempos, não há ainda a ideia de
esteve durante alguns anos de sua adolescên- uma nação independente, não há um desejo
cia (provavelmente entre 1745 e 1749), até de separação de Portugal, elo da colônia com
partir para Portugal em 1749, para estudar o Ocidente. Mas há sim o desejo de acabar
Cânones em Coimbra. Uma vez formado, em com os desmandos e a corrupção da coroa
1754 já está de volta às Minas Gerais, de onde e de seus representantes, há a admiração
não mais sairia. pelo déspota ilustrado, há a vontade de maior
Já em sua formação fica clara a duali- autonomia para a capitania das Minas Gerais,
dade que marcará toda a sua vida afetiva e fonte da riqueza da coroa, espoliada, desde
intelectual, de fidelidade dupla2 à colônia em sempre, de seus recursos naturais sem rece-
que nasceu e à metrópole a que devia suas ber em troca as melhorias devidas.
referências de homem de seu tempo. Não Cláudio Manuel da Costa, poeta e
existe ainda o Brasil no sentido pleno da pala- advogado, homem culto, formado na tradi-
vra, tem-se uma colônia de Portugal, em tudo ção clássica e leitor atento dos modernos,
submetida à coroa portuguesa, que arbitrava consciente de seu duplo compromisso, com
com mão de ferro, principalmente na capita- o mundo que o viu nascer e com o mundo a
nia das Minas Gerais, marcada desde sempre que devia sua formação erudita, é o primeiro
pela exploração do ouro e dos diamantes que grande arquétipo de nosso dilaceramento
traziam riqueza, fausto, sofrimento, traição. A afetivo, político, cultural de (ex-)coloniais.
trajetória de Cláudio Manuel da Costa, como Sua poesia traz as marcas de uma paisagem
poeta e como homem de lei, é a trajetória dissonante que se mostra pelas frinchas da
do homem culto da colônia: ocupou cargos paisagem árcade convencional. Some-se
públicos em sua terra, envolveu-se com a a isso, ainda, o seu pendor para uma visão
mineração de ouro, feita por seus escravos, de mundo preciosa, barroquizante, cindida
atuou como advogado em inúmeros pro-
cessos; nunca se casou, mas viveu décadas
ao lado de Francisca Arcângela de Souza, 1 Para informações mais completas
escrava alforriada, com quem teve cinco sobre a vida ​—​  e a morte ​—​  de
filhos; escreveu e publicou poesia, assumin- Cláudio Manuel da Costa, conferir
o livro de SOUZA, Laura de Mello e.
do as vestimentas do pastor ilustrado, leu o Cláudio Manuel da Costa. São Pau-
que podia e o que não devia, enredou-se em lo: Companhia das Letras, 2011.
uma conjuração contra a coroa portuguesa,
2 A expressão “dupla fidelidade”,
morreu, ou matou-se, preso por crime de lesa para caracterizar Cláudio
majestade, quando já tinha sessenta anos, e Manuel da Costa e sua obra, é de
podia almejar a uma velhice tranquila. CANDIDO, Antonio. Formação
da literatura brasileira. vol. I. Belo
Destaca-se, portanto, mesmo em exame Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia,
rápido de sua vida, a dupla filiação do homem 1993. p. 87.

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entre luz e sombra, moldada no contato com pois provavelmente não teriam sido publica-

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, POETA DAS MINAS GERAIS   ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA
os jesuítas e com o persistente resquício das. Entre elas, no entanto, alguns poemas
seiscentista na arquitetura e no urbanismo da já publicados em Portugal pelo jovem poeta
colônia, nas suas práticas religiosas, festivas que aí estudava, como o Culto Métrico (1749),
e conviviais, resquício que adentrará o século o Munúsculo Métrico (1751), e o Epicédio
XVIII e chegará mesmo ao alvorecer do século (1753), todos os três exemplares de poesia
da independência, mostrando a força de uma encomiástica, de ocasião, e pesadamente
cultura ibérica católica e contrarreformista longos e barrocos em linguagem e imagens.
em conluio com o mundo que se erguia das Mostram um jovem poeta já interessado
contradições da colônia. Dessas contradições em cortejar os poderosos, mas ainda preso
sairá a voz de Cláudio Manuel da Costa, ou a uma estética que ia se tornando cada vez
Glauceste Satúrnio, um dos maiores poetas mais malvista e ultrapassada, como o próprio
da língua portuguesa. Cláudio dirá em seu “Prólogo ao Leitor”, escri-
to para as Obras de 1768.
2. Este livro, publicado quando o poeta já ti-
nha quase quarenta anos, junta grande parte
Se não for muita a tua maldade, sempre de sua produção poética e é com certeza o
hás de confessar que algum agradecimento conjunto de poemas de maior qualidade lite-
se deve a um Engenho, que desde os sertões rária na obra de Cláudio Manuel da Costa. Aí
da Capitania das Minas Gerais aspira a estão cem excelentes sonetos (quatorze deles
brindar-te com o pequeno obséquio destas em italiano, a língua árcade por excelência),
Obras. Conheço que só entre as delícias mais uma reunião representativa de Éclogas,
do Pindo se podem nutrir aqueles espíritos, Epístolas, Romances, Cantatas, entre outros
que desde o berço se destinaram a tratar gêneros líricos que atestam a adequação
as Musas: e talvez nesta certeza imaginou do poeta ao novo estilo, moderno, árcade;
o Poeta desterrado que as Cícladas do mar a “Fábula do Ribeirão do Carmo”, poema
Egeu se tinham admirado de que ele pu- que tematiza em metamorfose ovidiana a
desse compor entre os horrores das embra- origem do rio pátrio; tudo encabeçado por um
vecidas ondas. “Prólogo” que apresenta com clareza ao leitor
o lugar ambíguo ocupado por este poeta que
Cláudio Manuel da Costa publicou as suas nasceu nas brenhas, aprendeu a ser civilizado
Obras em 1768, pela Oficina de Luiz Secco na metrópole, mas voltou a sua terra para aí
Ferreira, em Coimbra. Essa reunião de poe- penar: “aquele que enfermou de desgraçado”.
mas foi a última publicação feita em vida do As Obras juntam uma produção que deve ter
poeta, mas está longe de ser a conclusão de se iniciado ainda em Coimbra, na época dos
sua obra, como se pode verificar na edição estudos do poeta, e se estendido pelos anos
preparada por Melânia Silva de Aguiar e passados já de novo nas Minas, até 1767, de
publicada em 1996 pela Editora Nova Aguilar, quando deve datar ao menos um dos poe-
sob organização de Domício Proença Filho, mas, dedicado a amigo do poeta que falecera
até agora a reunião mais completa da obra do naquele ano. Trata-se, portanto, de coletânea
autor de Mariana. bastante representativa da poesia de Cláudio
O poema épico Vila Rica, por exemplo, ter- Manuel da Costa, que mostrava empenho em
minado em 1773, só ganhou forma completa limar e emendar a sua obra, em adaptá-la ao
em livro postumamente, no século seguinte, novo gosto literário, em organizá-la à maneira
em 1839, por tipografia de Ouro Preto (eram neoclássica que era demandada em seu tem-
os tempos posteriores à Independência, e o po; o esforço é visível nos gêneros visitados
Brasil podia, enfim, publicar livros). pelo poeta, nas inúmeras citações e alusões
Recuperando de forma ligeira o seu a autores clássicos e classicistas, gregos,
percurso poético, cumpre lembrar que o latinos, portugueses, italianos etc., no diálogo
próprio Cláudio arrolou, em cartas escritas à forte com a tradição da poesia lírica universal ​
Academia Brasílica dos Renascidos, da Bahia, —​ ocidental, é claro.
em 1759, uma série de obras suas, escritas A esse livro, juntaram-se, além do épico
até aquela data, das quais não se tem mais Vila Rica, vários outros conjuntos de obras
notícia nenhuma ​—​ temos apenas os títulos, que permaneceram inéditas (ou publicadas

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em periódicos de difícil acesso) até o século mas muito elucidativo da postura poética de
XX: oito sonetos escritos para as Obras, mas Cláudio Manuel da Costa, e de sua persona
retirados da publicação final; um conjunto pastoril, Glauceste Satúrnio4. Tecido pesada-
de poemas recitados em Vila Rica em 1768, mente alusivo, cheio de citações, o “Prólogo”
quando da posse do novo governador, o pede emprestado a Ovídio, em sua condição
conde de Valadares, precedidos do drama de exilado, desterrado, um páthos de sofri-
O Parnaso obsequioso, escrito à maneira de mento, mas sofrimento tradicional, bastante
Metastásio. Duas traduções de óperas deste conhecido por todo um público leitor dos
autor italiano, mestre dos árcades: Comédia clássicos. De fato, Ovídio, o romano exilado
do mais heroico segredo – Artaxerxe e Ópera de sua pátria, é o símbolo maior do poeta que
de Demofoonte em Trácia. Poemas já tardios forceja por escrever mesmo em meio a uma
reunidos em caderno manuscrito, dedicados terra bárbara, longe dos conterrâneos e da
a figuras importantes das Minas Gerais, nas língua natal.
décadas de 1770 e 1780. Vários poemas es-
parsos, alguns de atribuição certa a Cláudio Se não for muita a tua maldade, sempre
Manuel, outros ainda em situação de dúvida.3 hás de confessar que algum agradecimen-
A imagem que nos fica é de um poeta to se deve a um Engenho, que desde os
produtivo ​—​ pois ao mesmo tempo homem sertões da Capitania das Minas Gerais
público e advogado de causas particulares ​ aspira a brindar-te com o pequeno obsé-
—, engajado nas questões de seu tempo e de quio destas Obras. Conheço que só entre
sua terra, mas também ligado por laços fortes as delícias do Pindo se podem nutrir
a toda a tradição literária clássica. Tal dupla aqueles espíritos, que desde o berço se
fidelidade aparecerá ao longo de toda a sua destinaram a tratar as Musas: e talvez
obra nas alegorias e metáforas que inserem nesta certeza imaginou o Poeta desterra-
as imagens das pedras intratáveis da pátria do que as Cícladas do mar Egeu se tinham
nas paisagens bucólicas da convenção, em admirado de que ele pudesse compor en-
convivência intranquila com suas plantas e tre os horrores das embravecidas ondas.5
animais de praxe, nos rios pátrios que vão se
opor aos rios de Portugal, uns sujos e enlame- Cláudio Manuel traça um paralelo entre
ados pela atividade mineradora, outros pláci- sua situação e a do “Poeta desterrado”, que
dos, brilhantes, representativos do equilíbrio ganha em ressonância ao lembrarmos que
alcançado pela civilização, pela razão, pelas o desterro de Cláudio se dá em sua própria
luzes do século XVIII. terra. Contradição bela e dolorosa, porque
o poeta mineiro não deixa de reafirmar seu
3. amor pela pátria:

O canto, pois, que a minha voz derrama, Não permitiu o Céu que alguns influxos,
Porque ao menos o entoa um Peregrino, que devi às águas do Mondego, se pros-
Se faz digno entre vós também de fama. perassem por muito tempo: e destinado
a buscar a Pátria, que por espaço de
O “Prólogo ao Leitor”, que antecede os cinco anos havia deixado, aqui entre a
poemas das Obras, de 1768, é um texto curto, grossaria dos seus gênios, que menos

3 O percurso poético completo, com e notas de Melânia Silva de Aguiar 5 PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
a descrição de cada conjunto de [et. al.]. Rio de Janeiro: Nova A poesia dos inconfidentes: poesia
poemas, obras publicadas ou Aguilar, 1996. completa de Cláudio Manuel da
manuscritas de Cláudio Manuel Costa, Tomás Antônio Gonzaga e
da Costa pode ser lido em AGUIAR, 4 Conferir a leitura feita por Alvarenga Peixoto. Artigos, ensaios
Melânia Silva de. A trajetória poéti- ALCIDES, Sérgio. Estes penhascos: e notas de Melânia Silva de Aguiar
ca de Cláudio Manuel da Costa. In: Cláudio Manuel da Costa e a pai- [et. al.]. Rio de Janeiro: Nova
PROENÇA FILHO, Domício (Org.). sagem das Minas 1753–1773. São Aguilar, 1996. p. 47.
A poesia dos inconfidentes: poesia Paulo: Hucitec, 2003, pp. 93–108,
completa de Cláudio Manuel da do “Prólogo ao Leitor”, com o
Costa, Tomás Antônio Gonzaga e mapeamento das referências.
Alvarenga Peixoto. Artigos, ensaios

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pudera eu fazer que entregar-me ao ócio, Turvo, banhando as pálidas areias

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, POETA DAS MINAS GERAIS   ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA
e sepultar-me na ignorância! Que menos, Nas porções do riquíssimo tesouro
do que abandonar as fingidas Ninfas O vasto campo da ambição recreias.
destes rios e no centro deles adorar a
preciosidade daqueles metais, que têm Que de seus raios o Planeta louro
atraído a este clima os corações de toda Enriquecendo o influxo em tuas veias
a Europa! Não são estas as venturosas Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.7
praias da Arcádia, onde o som das águas
inspirava a harmonia dos versos. Turva, e Soneto lindíssimo, de tonalidade barroca em
feia, a corrente destes ribeiros, primeiro seu uso do chiaroscuro que opõe a água turva
que arrebate as ideias de um Poeta, deixa e o metal dourado, o verão e a escuridão fria
ponderar a ambiciosa fadiga de minerar a do esquecimento, o sol e o fundo negro do rio,
terra, que lhes tem pervertido as cores. é também poema de declaração, ou mesmo
A desconsolação de não poder subs- de engajamento, de um poeta que reconhece
tabelecer aqui as delícias do Tejo, do a feiura de sua terra ​—​ rica e abandonada,
Lima e do Mondego me fez entorpecer o outra contradição formadora ​—, mas deseja,
engenho dentro do meu berço, mas nada mesmo assim, elevá-la a um lugar no mundo
bastou para deixar de confessar a seu res- das belas letras, à posteridade. A fuga ao
peito a maior paixão. Esta me persuadiu a esquecimento via poesia é tópos clássico por
invocar muitas vezes e a escrever a Fábula excelência, e aqui comparece de forma com-
do Ribeirão do Carmo, rio o mais rico plexa, pois a afirmação de uma poesia da co-
desta Capitania, que corre e dava o nome lônia é também carregada de implicações. A
à Cidade Mariana, minha pátria, quando imagem do rio clássico, fresco, claro, ladeado
era Vila6. pelos álamos e habitado pelas ninfas, é ban-
deira de um valor literário inegável, e, além
De forma bem clara, aparece aí o desenho de locus amoenus, é símbolo de uma cultura
paradoxal de fidelidade: por um lado, ao polida e refinada, e é avesso e complemento
sair da pátria, o poeta encontra seu lugar do rio turvo e feio, despido de toda placidez ​
de eleição junto às delícias dos rios portu- —​ e alimento para a ambição vil.
gueses e suas ninfas benfazejas ​—​ lugar de Correndo o risco do anacronismo, po-
inspiração, harmonia, ventura. O retorno à deríamos enxergar aí já uma reivindicação
pátria faz necessário encarar, por outro lado, política, na medida em que o poeta celebra
os rios turvos e feios, que em vez das ninfas o rio apesar de tudo o que o torna alheio ao
têm a oferecer os metais preciosos, que mundo da beleza, da harmonia, da clareza.
acordam nos homens a ganância, a ambi- Forçando a porta da Arcádia, Cláudio Manuel
ção. No entanto, e eis o cerne dessa poesia, da Costa, pastor rústico ao pé da letra, entra,
o amor à pátria resiste mesmo ao impulso com seus rios turvos e suas pedras intratáveis,
para a selvageria, a grosseria, o ócio de um no mundo do código pastoril, expandindo
engenho que corre o risco de se entorpecer o sentido de uma convenção clássica para
longe dos influxos da civilização, e o poeta incluir aí a ideia de um mundo novo, em pro-
admite que o feio rio pátrio é uma de suas cesso de formação, e formação alheia ​—​ outra ​
maiores inspirações. Essa passagem do —​ à tranquilidade e ao equilíbrio desejados
“Prólogo” retorna, traduzida em versos, no como ponto de fuga nesse cenário idílico e
“Soneto II” das Obras: intocado ao longo de um continuum iniciado
pelos poetas da Grécia clássica.
Leia a posteridade, ó pátrio Rio, Por isso, ao retomar o “Prólogo ao Leitor”,
Em meus versos teu nome celebrado, passa a ser interessante imaginar o que, na
Por que vejas uma hora despertado verdade, almeja o poeta com o uso retórico
O sono vil do esquecimento frio: de imagens de sua inadequação como poeta

Não vês nas tuas margens o sombrio,


Fresco assento de um álamo copado;
6 Ibid., p. 47.
Não vês Ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio. 7 Ibid., pp. 51–2.

268
árcade: apesar de conhecer o mundo das compostas ou em Coimbra, ou pouco
musas, dele teve que se apartar por contin- depois, nos meus primeiros anos, tempo
gências da vida; mas, ao insistir na poesia, em que Portugal apenas principiava a me-
estaria desviando o sentido primeiro da lhorar de gosto nas belas letras. A lição
convenção refinadamente árcade, pastoril, dos Gregos, Franceses e Italianos, sim,
idílica? Pelo lado retórico não, pois o locus me fizeram conhecer a diferença sensí-
terribilis é previsto como o lugar do desterrado, vel dos nossos estudos e dos primeiros
do amaldiçoado, do abandonado por Deus. Mestres da Poesia. É infelicidade que haja
De temperamento melancólico, tendendo à de confessar que vejo e aprovo o melhor,
ideia de cisão interna, de consciência dilace- mas sigo o contrário na execução.8
rada, a poesia de Cláudio Manuel encontra na
descrição de rochas, despenhadeiros, água Citando, ao final, Ovídio, o poeta admite
bravia, “sertões” e rios escuros um correlativo conhecer o “estilo simples”, menos carre-
evidente para suas inquietações e insatis- gado de metáforas, mais moderno, melhor.
fações. Mas é bastante atraente, por ser o Mas assume o temperamento ​—​  “gênio” ​—​  e
poeta quem é, ou seja, homem luso-brasileiro usa como desculpa a juventude, o que não
nascido na colônia, imaginar um movimento corresponde inteiramente à verdade, tendo a
de autoconsciência que não desafia exata- maioria dos poemas das Obras sido escrita
mente a convenção, mas a utiliza de maneira mais provavelmente quando o poeta já estava
peculiar, própria, adequada às necessidades de volta às Minas Gerais. A admissão de estar
expressivas deste poeta do século XVIII, cultor em um entre-lugar, nem mais apenas cultor
da tradição retórica e poética do Ocidente. do estilo sublime, nem totalmente adaptado
O poeta continua, em seu “Prólogo”, o ao estilo simples, é mais um indício da auto-
jogo retórico da modéstia, ao admitir que sua consciência do poeta mineiro, no sentido de
poesia é ainda muito ornada, elegante ​—​ vezo estarmos diante de alguém que reconhecia
seiscentista que Cláudio procura desculpar: suas deficiências ou mesmo as justificava.
Porque o estar em uma encruzilhada era, para
Bem creio que te não faltará que censu- Cláudio Manuel da Costa, muito provavel-
rar nas minhas Obras, principalmente mente, a situação natural: entre estilos, entre
nas Pastoris onde, preocupado da comua pátrias, entre culturas9. Mas essa percepção,
opinião, te não há de agradar a elegância que nos parece hoje óbvia e natural, não viria
de que são ornadas. Sem te apartares de maneira fácil para um poeta de formação
deste mesmo volume, encontrarás alguns clássica: tudo o levava a querer a semelhan-
lugares que te darão a conhecer como ça, a continuidade, e a paisagem da pátria
talvez me não é estranho o estilo simples, mineira era por demais diferente, por demais
e que sei avaliar as melhores passagens de contrastante, aceitando melhor a poética
Teócrito, Virgílio, Sanazaro e dos nossos exagerada do Seiscentismo do que a imagís-
Miranda, Bernardes, Lobo, Camões tica convencional do retiro pastoril. A lista de
etc. Pudera desculpar-me, dizendo que autores clássicos ou classicistas fornecida
o gênio me fez propender mais para o por Cláudio Manuel em seu “Prólogo ao Leitor”
sublime: mas, temendo que ainda neste atesta o conhecimento do cânone neoclássi-
me condenes o muito uso das metáforas, co, mas o poeta confessa nem sempre ter es-
bastará, para te satisfazer, o lembrar-te tado à altura dos desejos da opinião comum ​
que a maior parte destas Obras foram —​ que parece ser antes a opinião dos leitores

8 Ibid., pp. 47–8. dominantes no tempo informam ou o de uma realidade ‘icástica’, indivi-
geram, por outro lado, outros tipos dualizada.” AGUIAR, Melânia Silva
9 “Acreditamos que se possa depreen- de oposição dentro da obra, como, de. O jogo de oposições na poesia
der na obra deste poeta uma linha por exemplo, o já suficientemente de Cláudio Manuel da Costa. Tese
evolutiva que parte de uma forte ressaltado por Antonio Candido da de doutoramento. Belo Horizonte:
impregnação barroca que se vai fidelidade estética e da fidelidade Faculdade de Letras da UFMG,
diluindo ou tomando feições novas afetiva; o da imitação do modelo 1973. pp. 13–4. Disponível em
sem nunca desaparecer completa- e o da contribuição individual; ou, <bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/
mente. O conflito que se estabelece ainda, o do aproveitamento de uma handle/1843/BUBD-9JGNQY>.
entre as duas tendências estéticas realidade ‘fantástica’, idealizada, e

269
portugueses10 que dos brasileiros, já que es- afetados pela bile negra, a melancolia. Já o

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, POETA DAS MINAS GERAIS   ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA
tes, como reconhece em si mesmo o próprio “Soneto III” de suas Obras anuncia os matizes
poeta, seriam anacrônicos por natureza: de uma poesia muito pouco solar, bastante
inclinada às lágrimas:
Contra esta obstinação não há argu-
mento: e sendo empresa dificultosa Pastores, que levais ao monte o gado,
acomodar semelhante gênero de iguaria Vede lá como andais por essa serra,
ao paladar de todos (porque uns o têm Que para dar contágio a toda a terra
muito entorpecido, e outros demasia- Basta ver-se o meu rosto magoado:
damente delicado) contentar-me-ei com
que nestas Obras haja alguma cousa que Eu ando (vós me vedes) tão pesado,
te agrade, ainda que uma grande parte te E a Pastora infiel, que me faz guerra,
desgoste. A experiência do contrário me É a mesma, que em seu semblante encerra
fará condenar o teu gênio, ou de indis- A causa de um martírio tão cansado.
creto, se tudo aprovas, ou de invejoso se
nada louvas.11 Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
O uso da captatio benevolentiae não é aqui, Mas não; tanto não sou vosso inimigo:
portanto, apenas retórico: é uma afirmação
dentro da temporalidade do gosto, uma rei- Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
vindicação por um gosto diferente, ainda não Que se seguir quiserdes o que eu sigo,
no sentido político e cultural que vamos reivin- Chorareis, ó Pastores, o que eu choro.12
dicar a partir de certo momento do século XIX,
mas de uma diferença que justifique certas Sofrimento e certa resignação em sofrer, ma-
asperezas, certas indecisões que podem ferir les cujo contágio o pastor não deseja a seus
a sensibilidade do leitor “civilizado”, represen- pares, são evidentes e constituem o cerne
tado aqui pelo leitor português das Obras. de uma cosmovisão muito mais próxima do
Seiscentismo do que da ideia de um mundo
4. salvo pela razão, de uma natureza harmônica
e equilibrada. O tom da poesia de Cláudio
Continuamente estou imaginando Manuel nunca será inteiramente árcade, mes-
Se esta vida, que logro, tão pesada mo que, no fim da vida, seus escritos ganhem
Há de ser sempre aflita, e magoada, uma feição mais ilustrada, de intervenção
Se com o tempo enfim se há de ir mudando junto aos poderosos ​—​ mais um dos aspectos
da poesia neoclássica que escapa aos leitores
A poesia de Cláudio Manuel da Costa é, sem pós-românticos, avessos a uma possível
sombra de dúvidas, uma poesia melancólica, funcionalidade da poesia dentro da sociedade.
afetada por indisfarçável pessimismo frente No entanto, essa poesia melancólica não dei-
à existência; uma das imagens mais comuns xa de vestir-se com as cores de seu tempo, e
em sua lírica é a figura do pastor em sofri- apresenta os marcadores de situação poética
mento, seja pelo abandono da pastora amada, apreensível pelo gosto árcade. É justamente
cuja marca é a “fereza”, seja pelas mudan- o pastor, personagem metonímica do locus
ças da fortuna, seja pela saudade da pátria. amoenus árcade, que irá, na poesia de Cláu-
Glauceste Satúrnio carrega, mesmo em seu dio Manuel, representar a dor, o estado de
nome, a filiação ao deus mitológico do tempo acídia, a paralisia da vontade ​—​ o movimento,
(Saturno ou Cronos), e ao planeta que rege os quando o há, é quase sempre metafórico, à

10 “No Prólogo a suas Obras, Cláudio fundação da Arcádia ​—​ como a dis- 11 PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
Manuel mostra-se a par de todo cussão sobre a adequatio no ‘estilo op. cit., p. 48. Ao final do trecho,
esse debate ​—​ até mesmo na ter- simples’ […]”. ALCIDES, Sérgio. Cláudio Manuel cita novamente,
minologia usada. Dirige-se ao leitor Estes penhascos: Cláudio Manuel agora um epigrama latino de John
residente em Portugal e se refere da Costa e a paisagem das Minas Owen (1564–1622).
também a polêmicas da cultura 1753–1773. São Paulo: Hucitec,
letrada portuguesa posteriores à 2003. p. 76. 12 Ibid., p. 52.

270
maneira da metamorfose ovidiana. Assim o Ora, essa funcionalidade se presta como
pastor Fido (que sofre em tantos poemas das luva às necessidades de representação de
Obras), endurecido de dor, se transforma em mundo na poesia de Cláudio Manuel da
pedra (“Soneto XXII”): Costa, que era árcade até certo ponto: um
árcade envenenado pela experiência colonial
Neste álamo sombrio, aonde a escura que muda as cores e os ares da cena amena
Noite produz a imagem do segredo, para algo mais problemático. Sobre a conven-
Em que apenas distingue o próprio medo ção do pastor apaixonado, ou enlouquecido
Do feio assombro a hórrida figura; de amor por pastora indiferente, o poeta vai
criar um universo de desequilíbrio, por vezes
Aqui, onde não geme, nem murmura caótico, em que os elementos da natureza fe-
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo, rem ao invés de apaziguar. Veja-se o “Soneto
Sentado sobre o tosco de um penedo, XII”, em que a presença do sol está longe de
Chorava Fido a sua desventura. ser indício de alegria:

Às lágrimas a penha enternecida Fatigado da calma se acolhia


Um rio fecundou, donde manava Junto o rebanho à sombra dos salgueiros,
D’ânsia mortal a cópia derretida. E o Sol, queimando os ásperos oiteiros,
Com violência maior no campo ardia.
A natureza em ambos se mudava:
Abalava-se a penha comovida, Sufocava-se o vento, que gemia
Fido, estátua da dor, se congelava.13 Entre o verde matiz dos sovereiros;
E tanto ao gado, como aos Pegureiros
A mudança da cena aprazível para a paisa- Desmaiava o calor do intenso dia.
gem horrenda (visível em todo o léxico do
poema: sombrio, escura, noite, medo, feio, Nesta ardente estação, de fino amante
assombro, hórrida, fúnebre, tosco, dor…) não Dando mostras Daliso, atravessava
é fortuita, claro, mas outra inversão importan- O campo todo em busca de Violante.
te da paisagem é a comoção da pedra, cujas
lágrimas dão origem a um rio, e o corres- Seu descuido em seu fogo desculpava,
pondente endurecimento ​—​ ou petrificação ​ Que mal feria o Sol tão penetrante,
—​ do ser capaz de emoção. Figura radical da Onde maior incêndio a alma abrasava.15
melancolia, o pastor Fido metamorfoseado
em pedra mostra uma outra Arcádia, não A cena do verão abrasador, do sol que imobiliza
amena, não suave, não indulgente. Seria o animais, plantas e mesmo o vento, é correla-
caso de discutir a frequência da paisagem tivo óbvio da paixão que queima no peito de
carregada de tristeza na poesia de Cláudio, Daliso, outro pastor sempre triste ao longo dos
não apenas a partir de um ponto de vista da poemas das Obras ​—​ um dos criptônimos do
fidelidade afetiva à terra natal, mas a partir de próprio Cláudio.16 É visível no soneto a carac-
sua cosmovisão enquanto homem do limiar ​ terização do campo convencional, com o gado,
—​ indeciso quanto a um estilo, a uma paisa- o salgueiro, os cães pastores e todo o verde ao
gem, a uma convenção. Podemos, portanto,
mesmo dentro das concepções retóricas que
regem o pensamento setecentista, buscar 13 Ibid., pp. 60–1.
um caminho para o entendimento da poesia
de Cláudio Manuel da Costa. Sua indecisão 14 MERQUIOR, José Guilherme. De
Anchieta a Euclides: breve história
entre dois mundos, em sentido lato, define a da literatura brasileira – I. Rio de
escolha das tópicas dentro de um leque de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 29.
estilos a sua disposição: “Não obstante, sua
15 PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
atitude em relação ao legado barroco não foi op. cit., p. 56.
de repulsa, e sim de criteriosa seletividade;
abandonado o cultismo teatral, Cláudio guar- 16 Conferir “Daliso, o pastor triste”. In:
LOPES, Hélio. Letras de Minas e
dou a técnica barroca no que ela possuía de outros ensaios. São Paulo: Edusp,
plena funcionalidade estética.” 14 1997. pp. 109–15.

271
redor. Mas o sol arde, em exagero, e cria uma ruína.” Natureza convencional, mas convul-

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, POETA DAS MINAS GERAIS   ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA
atmosfera de paralisia muito mais próxima sionada: a dor amorosa em Cláudio está mais
à representação da melancolia do que da próxima da desordem do mundo que causa o
natureza domesticada e amena da convenção sofrimento metafísico do homem seiscentista
pastoril ​—​ porque a natureza aí representada do que da afabilidade recriada, por exemplo,
não tem nada de localista, é uma paisagem nas liras de Gonzaga em que Marília e Dirceu
convencional que se encontra em estado convivem bem e trocam gentilezas.
alterado. Nesse calor abafado, debaixo de sol Mas não apenas pela crueldade da pasto-
violento, só se move, enlouquecido, Daliso, que ra sofre o pastor: ele enfrenta a morte da ama-
busca incessante por sua amada Violante ​ da, inscrita também nas mudanças, de mau
—​ justifica-se, o pastor, por carregar em si fogo agouro, que pode ler na natureza como em um
muito mais abrasador do que o do sol. Daliso livro. Veja-se no “Soneto XCIX” mais um exem-
queima, nas metáforas da paixão alucinada, plo da natureza ​—​  outrora plácida ​—​  que se
tão pouco adequadas ao meio árcade. Há transforma pela dor, ou pelo anúncio da dor:
muito de doentio nesse pastor que se deixa de-
sequilibrar de maneira tão gritante pelo amor; Parece, ou eu me engano, que esta fonte
mas esta é a tônica do sofrimento amoroso dos De repente o licor deixou turvado;
pastores de Cláudio Manuel da Costa. Veja-se O Céu, que estava limpo e azulado,
mais um soneto (XXVI) em que a paixão causa, Se vai escurecendo no horizonte:
literalmente, estrago ao redor do amante:
Por que não haja horror, que não aponte
Não vês, Nise, este vento desabrido, O agouro funestíssimo, e pesado,
Que arranca os duros troncos? Não vês esta, Até de susto já não pasta o gado,
Que vem cobrindo o Céu, sombra funesta, Nem uma voz se escuta em todo o monte.
Entre o horror de um relâmpago incendido?
Um raio de improviso na celeste
Não vês a cada instante o ar partido Região rebentou: um branco lírio
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta, Da cor das violetas se reveste;
Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,
O raio a cada instante despedido. Será delírio! não, não é delírio.
Que é isto, Pastor meu? que anúncio é este?
Ah! não temas o estrago, que ameaça Morreu Nise (ai de mim!), tudo é martírio.18
A tormenta fatal; que o Céu destina
Vejas mais feia, mais cruel desgraça: O lírio branco que se torna roxo, cor da paixão
e da morte: delírio? Não, a morte de Nise, pas-
Rasga o meu peito, já que és tão ferina; tora cruel, mas sua razão de viver, torna toda
Verás a tempestade, que em mim passa; a natureza enlutada, escurece a água das
Conhecerás então o que é ruína.17 fontes, anoitece o dia, espanta o gado e cala
todo o monte. As imagens, belas e carregadas,
O paralelo entre a natureza revolta, terrível, e nos trazem a ideia do martírio a ser enfrenta-
o que se passa no peito do pastor, vítima do do pelo pastor apaixonado, que se mostra na
amor pela ferina Nise, cria de novo uma ima- flor branca vestida agora para sofrer ​—​ como
gem de desequilíbrio: é a tempestade, com sobrevive o pastor, que sofre por amor, se
seu vento forte, sua escuridão, o relâmpago, perde o objeto que causa seu sofrimento? Não
que vão arrasando tudo sobre a terra. Este deixa de ser, de novo, um anúncio do estado
soneto se opõe em imagens ao “Soneto XII”, de tristeza permanente desse sujeito aman-
de extrema luz e calor; mantém, no entanto, a te: o presságio de mudança, encontrado em
ideia do fogo, aqui nos raios que consomem muitos poemas de Cláudio Manuel da Costa,
tudo por onde caem. O que importa, no entan-
to, é a imagem de radical sofrimento, de des-
truição causada pelo amor não correspondido.
“Rasga o meu peito”, diz o pastor, num convite 17 PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
op. cit., p. 62.
à violência que ecoa o que já lhe fora causa-
do pela pastora: “Conhecerás então o que é 18 Ibid., pp. 95–6.

272
amedronta. Se o passado é melhor, mais feliz, encontrará assim um caminho para dentro da
de maior integração entre homem e natureza, Ilustração: abandonando os poemas dos pas-
o futuro é temido por sua imprevisibilidade. E tores melancólicos, Cláudio começa a almejar
o presente é fonte de dor. um futuro para sua terra; o objeto do desejo
Essa oposição entre um bom passado (em deixa de ser a pastora, a outra pátria perdida
outro lugar) e um presente triste está bem ou uma inapreensível cena festiva e amena ​
exposta na bela “Écloga XIV – Alcino”, em —​ o desejo do poeta se volta agora para a
que o pastor, hoje desterrado em meio a uma pátria mineira, que deve voltar à sua vocação
região distante, chora as saudades de Tisbe, para o ouro, para a riqueza, renascida sob
que ficou longe, à beira do Mondego: governos justos, sob déspotas ilustrados.

Em região distante, 5.
Aonde o Sol dourado
Mal os raios estende sobre os montes, Que muito, ó Musas, pois que em fausto agouro
Em um sítio funesto e carregado, Cresçam do pátrio rio à margem fria
Alcino, que de Tisbe foi amante, A imarcescível hera, o verde louro!
Dos olhos duas fontes
Derramava em seu líquido lamento, Reconhece-se, dentro da trajetória poética
Dura e precisa lei do seu tormento. de Cláudio Manuel da Costa, um avançar em
[…] direção aos interesses mais localistas, na me-
Turvo e feio, um ribeiro dida em que a poesia de ocasião, que almeja
O campo dividia falar aos poderosos da colônia (mesmo os
Por entre as penhas com medonho estrondo. que exercem esse poder de além-mar), pode
A vista se assustava, quando via ser considerada de teor localista. Porque a
Baixar seu curso de um soberbo oiteiro, busca de melhorias para a sociedade das
Os troncos descompondo, Minas setecentistas pela via da arte da pala-
As profundas raízes arrancando, vra difere bastante do que entendemos como
Por onde a crespa enchente o vai levando. engajamento artístico depois da experiência
[…] romântica. Não há acusações ao governante
Alegres praias, úmidas ribeiras (sendo a exceção aqui a sátira ​—​ anônima ​
Do Mondego, que plácido discorre, —​  das Cartas chilenas), há, antes de tudo, a
Que do olmo a copa em ramas lisonjeiras tentativa de captar sua boa vontade para a
Com a sombra suavíssima socorre; terra e seus habitantes. Isso fica claro, por
Vós, que pelas campinas mais grosseiras, exemplo, no conjunto formado pela peça O
Que hoje o meu gado sei ventura corre, Parnaso obsequioso e a sequência de poemas
Trocadas fostes, quando a inveja tinha que, junto ao drama, teriam sido declamados
Postos os olhos na fortuna minha; na ocasião da chegada do novo governador às
[…] 19 Minas Gerais, D. José Luiz Menezes, o Conde
de Valadares, em setembro de 1768; o drama
Contrastes violentos: locus terribilis, locus teria sido encenado na ocasião do aniversário
amoenus, presente e passado, a escuridão da de Valadares, em dezembro de 1768.20
paisagem pedregosa e a placidez suave das Entre os poemas apresentados nesse
margens do Mondego, que aqui é luminar de conjunto, voltados para o elogio do novo
civilização e índice de completude, felicidade: governante e de sua família, mas também
lá o pastor tinha perto de si o objeto de seu
desejo, Tisbe.
Fazendo uma ilação arriscada, podería- 19 Ibid., pp. 222–3.
mos imaginar que para um poeta colonial que
reatualiza a sempiterna idade de ouro, para 20 Publicados pela primeira vez por
Caio de Melo Franco, em 1931. Na
sempre perdida, irrecuperável, o presente só edição preparada por Melânia Silva
se transformará em bom futuro pela ação de de Aguiar esse conjunto de textos
homens fortes, o que aponta para a inclusão, está sob o nome de O Parnaso
obsequioso e Obras poéticas. In:
em sua lírica, de vontades políticas. Eis que PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
o poeta de fortes resquícios seiscentistas op. cit., pp. 307–45.

273
insistentes na relação que se estabelecia a de Marte, deus da guerra, que vem emprestar

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, POETA DAS MINAS GERAIS   ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA
partir dali entre o governador e a terra, “as ao poema a solenidade necessária para as
Minas do Ouro” (em cujo seio renascerão os ações de Menezes na nova terra. Se as Minas
metais), encontra-se o belo soneto cuja aber- são terra sem passado, o futuro encontra-se
tura é a confissão do poeta, que admite ter em construção, e o poeta é aí participante ati-
alçado as ninfas dos rios lusos em detrimento vo. É preciso mão firme para mudar, como é
das do pátrio rio; porém, agora é o momento preciso uma voz segura o suficiente para can-
de concentrar-se na riqueza da terra, e louvar tar a terra mineira ​—​ entre as armas de Marte
aqueles que podem elevá-la: vai se colocar o poema, e “a pena aguda” é
aqui também instrumento de guerra. Porque
Invoca as Musas do País para cantar o nome a guerra, contrária à ideia de uma harmonia
dos Ilmos. Chefes dos Noronhas e Menezes. no mundo, é por vezes necessária, para mu-
dar para melhor. A atitude enérgica do poeta
VII dado à melancolia vem a ser uma grande mu-
dança; ele procura intervir na realidade ao seu
Ninfas do pátrio Rio, eu tenho pejo redor com as armas que tem: a voz, a pena, a
Que ingrato me acuseis vós outras, quando palavra.23 Isso ainda em 1768. Ao correr dos
Virdes que em meu auxílio ando invocando anos até a sua morte, essa atitude se torna
As Ninfas do Mondego, ou as do Tejo. mais visível, e a terra natal torna-se cada vez
mais assunto da poesia de Cláudio Manuel,
Convosco um eco ao mundo dar desejo não apenas como uma paisagem que repre-
Maior que o bom Camões; ele, cantando senta seu estranhamento frente ao mundo,
O valor com que os mares vai cortando, mas como concretude histórica e política.
Ao Gama lhe ganhou nome sobejo.
6.
Mas vós quereis saber qual outra estuda
Alta empresa o meu Canto? Oh! quantas Cantemos, Musa, a fundação primeira
vezes Da Capital das Minas, onde inteira
Ela é digna de vós, da vossa ajuda! Se guarda ainda, e vive inda a memória
Que enche de aplauso de Albuquerque a
Dai-me vosso favor; que entre os arneses história.
De Marte, eu louvarei com pena aguda
A glória dos Noronhas, e Menezes.21 Poema épico em dez cantos, de versos
decassílabos, o Vila Rica procura seguir os
A esse poema se opõe, é claro, o célebre “So- preceitos da épica, entrelaçando aos da-
neto LXXVI”, das Obras, cujos versos prome- dos da história das Minas alguns eventos
tem eterna fidelidade ao rio Mondego: “De ti
me apartarei; mas bem que ausente, / Desta
lira serás eterno emprego, / E quanto influxo
hoje a dever-te chego, / Pagará de meu peito 21 Ibid., pp. 337–8.

a voz cadente” 22 (a referência ao “Soneto II”, 22 Ibid., p. 85.


para o pátrio rio, e à também citada “Écloga
XIV” é óbvia e atesta a boa amarração interna 23 É sempre bom lembrar que os
elogios de Cláudio Manuel aos
da obra de Cláudio). Ambos os poemas estão governantes que iam e vinham
sob a égide do clássico: o tema da saudade se não visam apenas às melhorias da
junta ao da paisagem feliz, no poema coim- capitania das Minas, mas também
ao seu próprio interesse, para a
brão; o soneto mineiro reivindica a interven- possível obtenção de cargos e da
ção do bom governante na paisagem feroz da boa vontade dos poderosos. No
capitania natal. E o faz através das alusões, entanto, o discurso encomiástico é
previsto na retórica e, nesse caso,
do pertencimento textual à tradição clássica ​ a convenção casa-se tanto com os
—​ a voz do poema aqui almeja se equiparar a interesses privados quanto com os
Camões, em sua ânsia de elevar a pátria. Lá públicos do poeta. Seria redutor,
em caso de poesia neoclássica,
o Gama, aqui os Noronhas e Menezes. Tudo pensar no elogio apenas como
sob o favor das ninfas do rio pátrio e também louvação subserviente.

274
maravilhosos e/ou míticos, e criando uma das tópicas já aventadas por Cláudio Manuel
figura heroica, Antonio de Albuquerque Coe- (“Soneto II”) para embasar o elogio ao pátrio
lho de Carvalho, governador da capitania de rio; aqui isso se faz também, e de novo, com
Minas e São Paulo a partir de 1709 e criador a lembrança da riqueza dessas terras, que
da vila que dá nome ao poema. Teria sido socorrem a todas as nações polidas. Da rusti-
terminado em 1773, mas jamais foi publicado cidade para a politesse, o ouro e os diamantes
em vida do poeta, tendo muito provavelmente das Minas são motivos mais que concretos,
circulado na colônia em cópias manuscritas ​ sob o ponto de vista deste poeta, para que se
—​ sua publicação na íntegra data de 1839. cante a história desta terra.
Não se pode dizer com certeza se o poema O problema maior do poema, no entanto,
conseguiu levar a termo o que se propunha, já parece ser uma questão de gênero: é possível
que o poeta demonstra ter gasto muito tempo ainda a forma épica, em momento tão tardio,
e se empenhado em longas pesquisas para e com tamanha bagagem histórica e ideológi-
escrevê-lo; longo e irregular, alterna bons mo- ca? Ora, a epopeia sempre carregou conteúdo
mentos com longas descrições enfadonhas, e ideológico, mas, em contexto não moderno, o
nem sempre chega a criar personagens e pe- sentido do maravilhoso é funcional e não se
ripécias que soem minimamente funcionais. distingue do que se quer veraz; daí no “Prólo-
A própria escolha do autor, de dotar o poema go” citado encontrarmos certas afirmações:
de um longo “Fundamento histórico”, com “Não é meu intento sustentar que eu tenho
dados recolhidos de diversas fontes sobre produzido ao Mundo um Poema com o caráter
a história das Minas, além de descrições de de épico […]”; ou “Mas dou-te, que eu não
lugares visitados pelo próprio poeta, pode ter te ofereça mais que uma composição em
comprometido o estatuto poético ​—​ ou épico ​ metro […]”.25 O modelo declarado de Cláudio
—​ do poema, apesar de fazer a delícia dos Manuel da Costa é a Henriade (1723) de
historiadores posteriores. Juntem-se a isso as Voltaire, autor citado já no “Prólogo”, e o autor
inúmeras notas feitas pelo poeta ao longo do francês enfrentou as mesmas dificuldades em
poema épico, que transformam o seu estatuto seu poema (dotou sua epopeia de fundamen-
com sua carga informativa. Cláudio Manuel to histórico, no que foi acompanhado pelo
da Costa assevera, em seu “Prólogo”, que poeta mineiro). No caso de Cláudio, porém,
um dos esteios da veracidade dos fatos que o incômodo era maior, como mostram as
levanta no Vila Rica é o fato de ter aí nascido denegações relativas ao gênero épico; o poeta
e vivido. Nota-se que aqui, com mais clareza de Mariana, fora do cânone europeu, visita
ainda que no “Prólogo ao Leitor” das Obras, o um gênero clássico por excelência para contar
poeta se afirma como filho das Minas Gerais, a história de sua terra ​—​ pois o personagem
e defensor de seu valor entre as nações: principal não é realmente Albuquerque, mas
sim a terra, e por metonímia sua capital, Vila
E se estas Minas, pelas riquezas que têm Rica: “Enfim serás cantada, Vila Rica, / Teu
derramado por toda a Europa, e pelo nome impresso nas memórias fica; / Terás
muito que socorrem com a fadiga dos a glória de ter dado o berço / A quem te faz
seus habitantes ao comércio de todas as girar pelo Universo.” 26 Assim se fecha o
nações polidas, eram dignas de alguma poema, prometendo levar aos quatro cantos
lembrança na posteridade, desculpa o do universo o conhecimento da terra incul-
amor da Pátria, que me obrigou a tomar ta das Minas Gerais. Mais do que apenas
este empenho, conhecendo tanto a desi-
gualdade das minhas forças. Estimarei
ver elogiada por melhor pena uma terra
24 PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
que constitui hoje a mais importante op. cit., p. 359.
Capitania dos domínios de Portugal.24
25 Ibid., p. 359. Conferir a leitura do
poema Vila Rica feita por MUZZI,
Eis que nem veracidade, nem amor à pátria Eliana Scotti. Epopeia e história.
podem garantir a qualidade do poema, mas In: PROENÇA FILHO, Domício
sua escrita se justifica, no trecho citado, pela (Org.). op. cit. pp. 349–54.

necessidade de deixar à posteridade alguma 26 PROENÇA FILHO, Domício (Org.).


lembrança das Minas Gerais. Voltamos a uma op. cit., p. 446.

275
amplificação retórica, hipérbole, este fecho Não é destro cultor o que procura

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, POETA DAS MINAS GERAIS   ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA
permite vislumbrar os anseios do poeta. Decepar aquela árvore que pode
É bom lembrar que o Vila Rica vem dedi- Sanar, cortando um ramo, se lhe acode
cado a José Antônio Freire de Andrada, Conde Com sábia mão a reparar o dano.
de Bobadela, e irmão de Gomes Freire de Para se radicar do Soberano
Andrada, no lugar de quem governou interina- O conceito, que pede a autoridade,
mente a capitania de Minas Gerais de 1752 Necessária se faz uma igualdade
a 1761. A dedicatória ganha em importância De razão e discurso; quem duvida
por não visar a um governante do momento, e Que de um cego furor corre impelida
ser, portanto, desvestida de interesse direto ​ A fanática ideia desta gente?
—​ mas homenageia um governante visto por Que a todos falta um Condutor prudente
Cláudio Manuel como justo e reto. Somam-se Que os dirija ao acerto? […] 28
indícios de que o poema seria reflexo de um
momento de maior envolvimento com a terra ​ É claro que parece absurdo contrastar aqui a
—​ cuja grandeza se faz por outras vias, não verdade histórica com o discurso ponderado
exatamente as previstas pelos códigos do do herói português ​—​ o poema tematiza o
refinamento e da grandeza moral previstos conflito que ficou conhecido como Guerra dos
em universo neoclássico. As Minas Gerais da Emboabas, dá voz aos seus principais partici-
epopeia impressionam pela grandeza física pantes, e resolve a questão, depois de muito
de suas matas, rios, pela riqueza do ouro, pela sangue derramado, com a comedida interven-
selvageria de seus povos, pelos inúmeros ção do governador Albuquerque. Assistimos,
caminhos abertos à aventura, à conquis- ao longo do poema, a uma grande agitação
ta, ao descobrimento, terreno fértil para a em torno das descobertas de ouro e outros
imaginação dos portugueses e dos próprios valores da terra, acompanhamos alguns dos
brasileiros que pouco conheciam de sua terra personagens e seus pequenos dramas, como
àquela altura.27 o do paulista Garcia Rodrigues Paes; vemos,
O locus do poema é a antítese da civi- entrelaçados a tudo isso, alguns tableaux ma-
lização no sentido setecentista do termo ​ ravilhosos, que envolvem os habitantes origi-
—​ polidez, refinamento, bom tom, mediania, nais da terra em mitos de origem greco-latina,
tranquilidade, harmonia. O país das Minas em movimento típico da poesia de Cláudio
é selvagem, seus habitantes idem, seus Manuel, como na “Fábula do Ribeirão do
caminhos intratáveis. Mas o bom governante, Carmo”: índios e índias com nomes de pas-
aqui justamente homenageado, seria aquele tores participam dos eventos como coadju-
capaz de pensar em maneiras de melhorar, e vantes ou narram eventos passados através
não de arrasar, essa terra nova. O discurso de visões e artifícios (veja-se o Gênio da Terra,
de Albuquerque, o Herói, reflete sua postu- encarnado no velho índio, Filoponte). Enquan-
ra ilustrada: to isso, os negros escravos seguem na faina
da mineração e não merecem mais atenção
Estamos, disse, em uns países novos, do que o fundo de um cenário delineado
Onde a polícia não tem inda entrado; em traços contrastantes e pouco refinados.
Pode o rigor deixar desconcertado Ressalte-se o elogio aos paulistas, considera-
O bom prelúdio desta grande empresa. dos verdadeiros “criadores” das Minas Gerais
Convém que antes que os meios da aspereza e representantes, no poema, de um verdadei-
Se tente todo o esforço da brandura. ro valor local, em oposição a todos os valores

27 Acontecimento importante para se até as beiras da Mantiqueira, perto da Costa e a paisagem das Minas
pensar no que fundamenta a visão dos limites com São Paulo. Como 1753–1773. São Paulo: Hucitec,
da terra no poema Vila Rica é a secretário de governo, Cláudio 2003, pp. 239–52, e SOUZA,
viagem empreendida por Cláudio Manuel da Costa redigiu um Laura de Mello e. Cláudio Manuel
Manuel da Costa acompanhando, documento que relata em detalhes da Costa. São Paulo: Companhia
como secretário, o governador o “giro”, ou a “viagem dilatada e as- das Letras, 2011, pp. 118–28.
Luís Diogo Lobo da Silva, em 1764, pérrima”, como lhe chamou o poeta.
viagem que durou mais de três O episódio está bem documentado 28 PROENÇA FILHO, Domício (Org.).
meses e cobriu longo trecho na e comentado em ALCIDES, Sérgio. op. cit., p. 420.
capitania das Minas Gerais, indo Estes penhascos: Cláudio Manuel

276
que estão em jogo. A obra de Cláudio Manuel da poesia de Cláudio Manuel da Costa, sua
da Costa se caracteriza exatamente pela marca identificadora. Poesia árcade de um
tentativa de assimilar tais valores, criando poeta colonial: contradição em termos, mas
algo próprio ​—​ sua América portuguesa, sua sua obra aí está, para que possamos ainda
Arcádia selvagem. Mas em poema tão pesado aprender sobre nossa própria sensibilidade.
em termos históricos, tudo deve ser olhado
com atenção, inclusive, ou especialmente, a 7.
tomada de partido.
Escutemos enfim, um pouco da voz do po- XCVIII
eta, que se declara, em meio ao poema, como
cansado de guerra, mas cioso de seu trabalho Destes penhascos fez a natureza
de escritor das Minas Gerais: O berço em que nasci: oh! quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Matéria é de coturno, e não de soco, Uma alma terna, um peito sem dureza!
O que a Ninfa cantava; eu já te invoco,
Gênio do pátrio Rio; nem a lira Amor, que vence os tigres por empresa
Tenho tão branda já, como se ouvira Tomou logo render-me; ele declara
Quando a Nise cantei, quando os amores Contra o meu coração guerra tão rara,
Cantei das belas Ninfas e Pastores. Que não me foi bastante a fortaleza.
Têm os anos corrido, além passando
Do oitavo lustro; as forças vai quebrando Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A pálida doença; e o humor nocivo A que dava ocasião minha brandura,
Pouco a pouco destrói o suco ativo, Nunca pude fugir ao cego engano:
Que da vista nutrira a luz amada:
Tampouco vi a testa coroada Vós, que ostentais a condição mais dura,
De capelas de louro, nem de tanto Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Preço tem sido o lisonjeiro canto, Onde há mais resistência, mais se apura.30
Que os mesmos que cantei me não
tornassem O célebre soneto, em seu desenho de belas
Duro prêmio; se a mim me não sobrassem oposições, foi lido muitas vezes como de-
Estímulos de honrar o pátrio berço, claração de pertencimento ​—​ mesmo que
Deixara de espalhar pelo Universo contrafeito ​—​ a uma terra dura, difícil, lugar
Algum nome, deixara… […] 29 de pedras e não dos belos sentimentos.
Mesmo Amor, no poema, em sua personifi-
Logo após esse trecho, em que o poeta dá um cação ferina, é violento e belicoso. E o poeta,
passo à frente e se faz reconhecer, temos uma alma terna, aí se cria, maior das contradições.
lista profética dos governadores das Minas, Mas antes do que meramente um uso bem
passado, presente e futuro, pela boca da ninfa acertado de dados da paisagem mineira para
Eulina ​—​ veja-se que a admissão de cansaço e descrever a desdita do poeta, o poema deixa
de decepção com o pouco retorno a sua obra entrever a situação difícil do homem cultivado
tem endereço certo. Nesse momento volta-se do século XVIII nas condições impostas pela
à Vila Rica da década de 1770, em que escre- vida nas colônias. É do poeta, por associação
ve o poeta. Por que não teria ele publicado tradicional, a caracterização de alma suave,
seu poema? Questões estéticas ​—​ considera- presa do amor em todas as suas formas, e a
va-o imperfeito? Questões políticas? Não há vida colonial é avessa a qualquer delicadeza.
respostas claras, mas podemos imaginar que A polidez, o refinamento, o uso das ferra-
entre as duas possibilidades, se não há outros mentas da retórica, os códigos duramente
inúmeros motivos, encontra-se uma insatis- aprendidos nos livros, a cosmovisão setecen-
fação com o estatuto de uma poesia nascida tista em seu lado cortesão, civilizado, o apego
de condições impossíveis: como ser poeta
refinado, cultor da mais urbana das poesias
(a oposição campo × cidade é convenção,
29 Ibid., pp. 429–30.
nada tem de efetiva), em terras e tempos tão
adversos? Esse paradoxo é a espinha dorsal 30 Ibid., p. 95.

277
à hierarquia e aos governos ilustrados, a ne-

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, POETA DAS MINAS GERAIS   ANDRÉA SIRIHAL WERKEMA
cessidade de agradar através da convenção,
e que convenção, o bom pastor, a mediania e
a justiça; tudo isso perde o sentido frente ao
barulho incessante da mineração, à paisagem
feia e suja dos povoados mineiros, à imen-
sidão das matas e à presença dos montes
ameaçadores que cercavam esta terra. E a
ausência da vida cultivada, a mudança do
jogo de valores e do gosto… Ser poeta em
meio a penhas tão duras era tarefa patética.
Atente-se, porém, mesmo dentro da conven-
ção, para a ameaça feita no poema: Amor vai
se voltar contra os penhascos, e nada mais
será o mesmo. É tarefa do poeta, portanto,
mesmo rendido, levar a essa terra, o seu
berço, o toque sutil da poesia. Domar a terra,
até onde possível, e se possível. Fruto desse
encontro difícil, a poesia de Cláudio Manuel
da Costa chega até nós como testemunho de
seu tempo e de seu lugar ​—​ mas muito mais
do que isso, é obra legível, duradoura, única.

278
279
HISTÓRIA E
SOLIDÃO:
ALPHONSUS DE
GUIMARAENS
ANELITO DE OLIVEIRA

280
DO SIMBOLISMO Se o Simbolismo é “a prova dos nove dos
métodos críticos, sobretudo dos histórico-
A marginalização dos poetas simbolistas, -literários”, como pensava João Alexandre
seu isolamento em lugares distantes do cen- Barbosa,3 é exatamente porque a Escola de
tro hegemônico do país no fim do século XIX origem francesa se define, segundo Paul
e início do XX, é tema dos mais controversos Valéry,4 em relação negativa com o capita-
na história literária brasileira. Cruz e Sousa lismo, com o regime estruturado pela troca,
na então Nossa Senhora do Desterro, hoje pelo comércio, que implica capital, traba-
Florianópolis, e depois, a partir de dezembro lho, consumo, tudo isso pautado pela lei da
de 1890, no Encantado, periferia do Rio de necessidade, resultando na ascendência da
Janeiro, longe da Rua do Ouvidor, à margem quantidade sobre a qualidade dos produtos.
do poder cultural e político, portanto, nos já Compreender o Simbolismo mesmo, para
intolerantes dias republicanos. Maranhão além dos estereótipos simplistas produzidos
Sobrinho em São Luís do Maranhão, depois, por uma longa tradição historiográfica e
em Belém do Pará e, finalmente, em Manaus, crítico-literária alimentada pelo esteticismo,
relegado à margem norte do país, à floresta, exige uma atitude teórica bastante inabi-
distante do Sudeste-Sul tido e havido ainda tual ainda na esfera dos estudos literários
hoje (lamentavelmente) como “a civilização” praticados no país, sobretudo os que têm
no país, destinado a padecer e falecer no a lírica como objeto: aquela que, na linha
desamparo. E, finalmente, Alphonsus de de Pascale Casanova, inspirada por Pierre
Guimaraens em Ouro Preto, em Conceição Bourdieu, percebe os autores a partir de
do Serro e, finalmente, Mariana, encerrado uma perspectiva prática, como partícipes
entre montanhas mineiras depois da vivência da República Mundial das Letras, que têm
de estudante de Direito na cidade de São seus produtos estéticos valorizados ou
Paulo no início da década de 1890. Pode-se desvalorizados de acordo com critérios
explicar essa marginalidade de diversos que não são apenas estéticos, mas tam-
modos, como tanto já se tentou: casuali- bém políticos, econômicos, culturais.5 Em
dade, opção de vida, exotismo. Todavia, o virtude de interesses que presidem a “bolsa
contingente enorme de simbolistas, revelado de valores” literária, ainda em sintonia com
apenas pelo criterioso levantamento realiza- Casanova, autores são superestimados, ca-
do por Andrade Muricy, estimula a busca de nonizados, ou subestimados, excluídos, ao
razões menos pessoais e mais sociais para longo da história literária.6 Os autores estão
se compreender a marginalização desses necessariamente num corpo a corpo com
poetas num momento crucial da história a história, não fora da história, alienados,
brasileira.1 O conhecimento sobre o homem como, a partir de uma perspectiva marxis-
e a obra de Alphonsus de Guimaraens induz ta bastante ortodoxa, chegou-se a pensar
a perceber como insuficientes quaisquer sobre os simbolistas. Este trabalho, eminen-
motivos “literários”, resultantes de perspec- temente teórico, propõe uma compreensão
tiva idealizante sobre a história, que visem da célebre solidão do simbolista Alphonsus
justificar, pela via da explicação, a condição de Guimaraens em relação com a história
geograficamente marginal experienciada literária, cultural e social de Minas Gerais,
pelo poeta.2 buscando desvelar, especialmente, o nexo

1 Andrade Muricy. Panorama do 3 João Alexandre Barbosa. A 5 Pascale Casanova. A República


movimento simbolista brasileiro. evolução do Simbolismo brasileiro. Mundial das Letras. Trad. Marina
São Paulo: Editora Perspectiva, In: A leitura do intervalo: ensaios Appenzeller. São Paulo: Estação
1987. 2 vols. de crítica. São Paulo: Iluminuras, Liberdade, 2002.
1990. pp. 101–12.
2 Alphonsus de Guimaraens Filho. 6 Nelson Werneck Sodré. Os
Alphonsus de Guimaraens no seu 4 Paul Valéry. Existência do Simbo- problemas da forma. In: História
ambiente. Rio de Janeiro: Fun- lismo. In: Variedades. Trad. Maiza da literatura brasileira: seus
dação Biblioteca Nacional, 1995; Martins de Siqueira. São Paulo: fundamentos econômicos. Rio
LISBOA, Henriqueta. Alphonsus Iluminuras, 2007. pp. 63–76. de Janeiro: Editora Civilização
de Guimaraens. Rio de Janeiro: Brasileira, 1964. pp. 460–1.
Agir, 1945.

281
da sua lírica com a cultura do barroco perce- da poesia quanto da história, os autores que

HISTÓRIA E SOLIDÃO: ALPHONSUS DE GUIMARAENS    ANELITO DE OLIVEIRA


bida a partir do território mineiro.7 mais prosperam, tornando-se frequente-
mente canônicos, são aqueles que fundem
DA VERDADE referenciais de “Mnemosyne”, da memória,
com os de “Clio”, da história; que aproximam
A imaginação de possíveis verossímeis, que “Lethe”, o esquecimento, e “Alétheia”, o não-
distingue o poeta, e a narração de ocorrências -esquecido, exibindo a complexidade consti-
verdadeiras, que caracteriza o historiador, tutiva da “mímesis”, a dobradura da palavra.9
conforme a perspectiva fundante da Poética Ao contrário do que entende grande parte
(335/323 a. C.) de Aristóteles, ainda são dos “scholars” de Letras e História num país
percebidas a partir de um critério que destoa que ainda se mantém alinhado ao logocentris-
tanto de correntes imanentistas quanto de mo e outras centralidades epistemológicas,
correntes culturalistas de compreensão da especialmente aqueles mais obcecados com a
produção literária que se afirmaram ao longo disciplinaridade, o que importa, de uma pers-
do século XX, como o Formalismo Russo e pectiva adorniana,10 na relação que se estabe-
o Pós-Colonialismo.8 São percebidas, por lece entre sujeito e objeto na cena de criação
motivos tantos ​—​ senso comum, inconsistên- não é o esclarecimento, que pressupõe sempre
cia teórica etc. ​—, a partir de um critério que um domínio do objeto pelo sujeito na operacio-
é, sobretudo, de estudos realizados nas áreas nalização de uma dada problemática, mas a
de Filosofia e Sociologia, tendo na questão da revelação pura e simples dessa problemática,
verdade ​—​  “Alétheia”, “Doxa” ​—​  seu alicerce. a desvelação dos seus elementos constitutivos.
No fundo, constitui um gritante paradoxo Em razão disso, de um interesse desprovido
distinguir poesia e história ​—​ as práticas aparentemente de qualquer rigor metodológi-
mesmas, a imaginação, os fatos ​—, aquilo co, tende-se a relativizar, quando não a ignorar
que diferentes “imitadores” produzem, em completamente, a importância da produção
face da questão da verdade. Esta, no sentido de criadores ​—​ artistas, escritores, poetas etc. ​
rigorosamente socrático, não é a questão —​ para o conhecimento da vida social em suas
primordial, embora importante, para aqueles muitas facetas ​—​ econômica, política, geográ-
sujeitos que, desde a antiguidade clássica fica ​—, sob a impressão preconceituosa de que
ocidental, ressaltam-se na exploração do que se trata de algo, um discurso, particular, de
se entende como matéria específica do poeta ​ uma questão meramente pessoal.
—​ o poderia ser ​—​ e do historiador ​—​ o que foi. Tanto a psicanálise freudiana quanto a
Pode-se mesmo dizer que, tanto na escrita lacaniana, tão marcadas pela relação com a

7 Esta linha de reflexão decorre de – Revista da Associação Internacio- Mímesis e Modernidade: formas
pesquisa de pós-doutorado rea- nal de Lusitanistas, Coimbra, n. 27, das sombras, Rio de Janeiro, Graal,
lizada no Instituto de Estudos da jan–jun. 2017, pp. 141–57; Idem. 1980, e Mímesis: desafio ao pensa-
Linguagem da Unicamp no período A condição mineira: Drummond e mento, Florianópolis, UFSC, 2014.
de 2011 a 2015 sob supervisão do a cultura do barroco, Revista USP, Ver ainda Luiz Alfredo Garcia-Roza,
professor Antonio Alcir Bernardez São Paulo, n. 114, jul–ago–set. Palavra e verdade na filosofia anti-
Pécora e com apoio da FAPESP. O 2017, pp. 159–70; Idem. Autono- ga e na psicanálise, Rio de Janeiro,
projeto, sob o título de “Escrever a mia precária: definindo o campo Jorge Zahar Editor, 1990.
angústia: escritores mineiros e a artístico-literário barroco em Minas
cultura do barroco”, consistiu numa Gerais, Revista de Estudios Portu- 10 Theodor Adorno, Sobre sujeito e
releitura da tradição artístico- gueses y Brasileños, Salamanca, objeto, In: Palavras e sinais: mode-
-literária de Minas Gerais pelo v. 13, 2014, pp. 81–92. los críticos 2, Trad. Maria Helena
prisma da cultura do barroco, tal Ruschel, Petrópolis, Vozes, 1995;
como explorada por José Antonio 8 Terry Eagleton. Teoria da literatura: Theodor Adorno e Max Horkheimer,
Maravall no seu La cultura del uma introdução. Trad. Waltensir Ulisses ou Mito e Esclarecimento,
barroco: análisis de una estructura Dutra. São Paulo: Martins Fontes, In: Dialética do Esclarecimento:
historica (Barcelona: Editora Ariel, 2006. pp. 83–136. fragmentos filosóficos, Trad. Guido
1975). Três ensaios vinculados a Antonio de Almeida, Rio de Janeiro,
este trabalho tiveram publicação no 9 Erich Auerbach, Mímesis: a repre- Jorge Zahar Editor, 1985; Theodor
Brasil, em Portugal e na Espanha: sentação da realidade na literatura Adorno, Palestra sobre lírica e
Anelito de Oliveira. O manto de ocidental, Trad. George Bernard sociedade, In: Notas de literatura I,
aporias: cultura, território e barroco Sperber, São Paulo, Perspectiva, Trad. Jorge de Almeida, São Paulo,
na dinâmica sócio-histórica do 1976. Entre os vários títulos de Luiz Livraria Duas Cidades/Editora 34,
Estado de Minas Gerais, Veredas ​ Costa Lima sobre o tema, vejam-se 2003.

282
literatura, e a antropologia lévi-straussiana, digamos, que solicita uma compreensão
empenhada na compreensão do outro em sua para além do imediatamente visível, uma
diferença mesma a partir da linguagem, tam- compreensão do invisível que constitui, como
pouco os muitos movimentos renovadores postulado por Merleau-Ponty,12 a profundida-
da escrita da história ao longo do século XX, de do visível. Essa obscuridade, não sendo da
como a “Nouvelle histoire”, não lograram al- representação propriamente dita, tampouco
terar o estatuto da produção artístico-literária da expressão, pois que se entende o que se
definitivamente. Essa produção, apesar de to- está mostrando ou dizendo, pode ser compre-
das as provocações pós-estruturalistas, ainda endida como sendo do representado ou do
não é percebida, mesmo no espaço acadê- expressado, pertinente à realidade sócio-
mico, como um tipo de conhecimento tão -político-cultural mineira, ao lugar de origem
relevante, tão verdadeiro, como os tidos por do sujeito histórico, espaço de referência pri-
científicos, igualmente digno de credibilidade mária da operação dialética em que se define
no que diz respeito, por exemplo, à relação a existência mesma desse sujeito. A obscuri-
com o tempo e o espaço. A questão da cre- dade, assim, constitui, no plano do discurso
dibilidade científica ​—​ da incredibilidade, no verbal, um índice de proximidade profunda
caso da produção artístico-literária ​—​ passa, entre sujeito e espaço, denúncia de um elo
evidentemente, pela qualidade da represen- material, não apenas ideal, entre sujeito e
tação, não apenas pela representação em si. objeto na cena de Paideia, de um evento que
Isso se consideramos consensual no âmbito congrega as muitas dimensões congregadas
da ciência, mesmo sabendo que não o é, a pelo termo grego: cultura, formação, civiliza-
ideia de que todo discurso é representação. ção. Essa situação é responsável pelo fato de
A qualidade da representação, no caso, passa tudo aquilo que o sujeito diz, todo o seu fazer,
pelo “estranhamento”, lembrando os forma- todo o seu modo de produzir sentido reve-
listas russos, que logo se percebe como traço lar-se implicado no objeto, atravessado pela
característico do discurso que se apresenta presença-ausência ​—​ por isso mesmo apo-
em suas muitas formas no campo das artes rética ​—​ de uma sombra, por uma imagem
e das letras ​—​ “estranhamento” que é índice, estranha-familiar, espécie de “unheimilich”,
sobretudo, de uma relação outra efetivada que pode ser entendida como o lugar-Minas.
entre sujeito e objeto. Uma constante desse À luz da gama de tensões que caracteriza
“estranhamento”, o modo como se apresenta a produção dos mais expressivos criadores de
ao longo da tradição artístico-literária mineira, obras artístico-literárias de Minas Gerais, não
é a obscuridade. Trata-se do fundamento se pode dizer, sequer mesmo cogitar, que o
sombrio de um artifício, de uma arquitetura, sujeito mantenha ali uma relação harmoniosa
que se quer claro, racional, mas que, por uma com o seu objeto, que a proximidade entre
espécie de “fatalidade da origem” barroca, ambos signifique cumplicidade, claro que não.
para evocar um depoimento de Affonso Ávila,
acaba enigmático.11

DA OBSCURIDADE 11 Em 1971, ao responder questão


formulada por Sebastião Nunes no
âmbito de atividade do Labora-
A obscuridade, plenamente perceptível no tório de Estética da UFMG então
gesto escultórico do barroco Aleijadinho e dirigido por Moacyr Laterza, disse
Affonso Ávila: “Eu me reconheço
do neoconcreto Amilcar de Castro, revela-se um homem preso existencialmente
também nas obras de Cláudio Manuel da à fatalidade da origem e minha
Costa, Alphonsus de Guimaraens, Carlos poesia não poderia deixar de expri-
mir, mesmo enquanto linguagem e
Drummond de Andrade e Emílio Moura, entre atitude radicais, o que eu no fundo
outros expoentes da tradição literária mineira. carrego de dilaceramento barroco”.
Não se trata de algo circunscrito apenas à su- Ver Affonso Ávila, O poeta e a cons-
ciência crítica, Summus Editorial,
perfície das obras desses autores, marcadas São Paulo, 1978, p. 129.
por elementos individuais, porém unificadas
pela obscuridade. Esse traço não é algo 12 Maurice Merleau-Ponty, O visível e
o invisível, Trad. José Artur Gianotti
que se possa entender como efeito estético e Armando Mora d´Oliveira, São
objetivado, mas uma qualidade discursiva, Paulo, Perspectiva, 1971.

283
A obscuridade projeta-se nas obras como característico de uma sociedade conflitiva,

HISTÓRIA E SOLIDÃO: ALPHONSUS DE GUIMARAENS    ANELITO DE OLIVEIRA


sintoma da desarmonia que caracteriza essa conforme a perspectiva de José Antonio
relação, da situação conflituosa que um Lúcio Maravall, antagônica, angustiada, que se
Cardoso expressou ruidosamente,13 mas que singulariza através da encenação de uma
foi Cláudio Manuel da Costa quem primeiro impossibilidade de reconciliação real no pre-
formulou, especialmente no soneto “L”,14 sente entre sujeito e objeto.16 Cláudio Manuel
enunciando o estado de guerra do sujeito da Costa iniciou, no âmbito das letras e das
em virtude do entrechoque de memórias de ideias, um processo de escavação ​—​ análo-
tempos passado e presente, com o que se go, sem dúvida, ao processo de exploração
afirma a própria historicidade conturbada do ouro na Capitania das Minas do Ouro ​
constitutiva do sujeito. Pode-se dizer que essa —​ dessa consciência enquanto consciência
desarmonia que caracteriza o processo de da própria vida social que se processava em
verdade que induz o sujeito, processo dentro Minas Gerais ainda no século XVIII, enquanto
do qual o próprio sujeito passa a existir, não dimensão inteligível de uma comunidade em
é de ordem pessoal, nem no árcade nem nos formação, logrando expressar um tensio-
seus sucessores mineiros, mas sempre de or- namento entre mundo exterior, o plano da
dem coletiva.15 Trata-se de uma desarmonia história, e mundo interior, o plano do humano.
decorrente da experiência efetivada na esfera Cartografou ​—​ não apenas escreveu, mas
da vida social, motivo pelo qual o sujeito sozi- ordenou um território ​—​ toda uma complexi-
nho não a soluciona, não pode solucionar um dade local, mineira, a partir da recorrência a
problema que não lhe pertence exclusivamen- um dispositivo estrangeiro, europeu, arcádico,
te, que não foi formulado segundo preceitos a identidade pastoril, travestindo-se, sugesti-
apenas da vida privada, individual. vamente, de Glauceste Satúrnio, referência, a
A obscuridade, ainda é preciso notar, ma- um só tempo, de melancolia e conhecimento,
terializa nas obras artístico-literárias exata- de condição solitária do sujeito do conheci-
mente o caráter irresolvido, compactado, da mento, enfim.17
relação entre sujeito e seu entorno espacial,
seu objeto externo direto, digamos, a vida DA SOLIDÃO
social mineira. Desse modo pode-se dizer
que, em virtude da presença de uma subs- A qualidade da reflexão que caracteriza a
tância resistente à visibilidade, configura-se obra de Cláudio Manuel decorre do uso
o dado conflituoso da consciência barroca, objetivo da ideia de solidão como dispositivo

13 Em entrevista ao crítico Fausto p. 73: “Memórias do presente, e 16 José António Maravall, La cultura
Cunha quando lançou sua Crônica do passado / Fazem guerra cruel del barroco: análisis de una estruc-
da casa assassinada, Lúcio dentro em meu peito, / E bem tura historica, Barcelona, Editora
Cardoso diz: “Meu movimento que ao sofrimento ando já feito, / Ariel, 1975, op. cit.
de luta, aquilo que viso destruir Mais que nunca desperta hoje
e incendiar pela visão de uma o cuidado. / Que diferente, que 17 Aristóteles, O homem de gênio e
paisagem apocalíptica e sem diverso estado / É este, em que a melancolia: o problema XXX, 1.
remissão é Minas Gerais. Meu ini- somente o triste efeito / Da pena, Trad. do francês Alexei Bueno,
migo é Minas Gerais. O punhal que a que meu mal me tem sujeito, / Rio de Janeiro, Lacerda Editores,
levanto, com a aprovação ou não Me acompanha entre aflito e 1998. Sobre o desdobramento
de quem quer que seja, é contra magoado! / Tristes lembranças! e dessa perspectiva, com ênfase na
Minas Gerais. Que me entendam que em vão componho / A memória produção literária moderna, Harold
bem: Contra a família mineira. da vossa sombra escura! / Que Bloom, The anxiety of influence: a
Contra a literatura mineira. Contra néscio em vós a ponderar me theory of poetry, New York, Oxford
o jesuitismo mineiro. Contra a reli- ponho! / Ide-vos; que em tão University Press, 1997. Veja-se
gião mineira. Contra a concepção mísera loucura / Todo o passado ainda Anelito de Oliveira, “Presen-
de vida mineira. Contra a fábula bem tenho por sonho; / Só é certa ça de Saturno”, capítulo do livro A
mineira.” Veja-se Lúcio Cardoso, a presente desventura.” aurora das dobras: introdução à
Crônica da casa assassinada, Rio barroquidade poética de Affonso
de Janeiro, Civilização Brasileira, 15 Ver Alain Badiou, Para uma nova Ávila, Montes Claros, Inmensa,
2002, p. 9. teoria do sujeito, Trad. Emerson 2013, pp. 101–24.
Xavier da Silva e Gilda Sodré, Rio
14 Cláudio Manuel da Costa, Soneto de Janeiro, Relume Dumará, 1994,
L, In: A poesia dos inconfidentes. pp. 110–1.
Org. Domício Proença Filho, Rio
de Janeiro, Nova Aguilar, 1996,

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de acesso clínico, digamos, à história.18 A se teria encerrado com seu próprio inicia-
solidão lhe permite auscultar, não apenas dor, Cláudio Manuel da Costa, sem a con-
escutar do lado de fora, aquilo que está tribuição extraordinária de Alphonsus de
entranhado no socialmente visível ​—​ nas Guimaraens.20 Alphonsus acaba por se firmar
montanhas, nos vales, nos ribeirões ​—​ tanto como o maior ícone da solidão na história da
quanto nos indivíduos, nos eventos, nas literatura brasileira, sempre referido como
representações as mais diversas. Reconhe- o “solitário de Mariana”. Isso, para Eduardo
cendo-se na solidão, concebendo-se como Portella, escrevendo a partir de um horizonte
ser solitário, o sujeito se mostra estrategica- esteticista e num momento em que a ideia de
mente distanciado da coletividade urbano- universal era superestimada, seria um grave
-rural e apreende, por isso mesmo, tudo problema à medida que faria do poeta um
aquilo que passa despercebido, para não “escravo da sua geografia” local.21 A “Notícia
dizer ignorado, por essa mesma coletivi- biográfica” que João Alphonsus escreve sobre
dade. Esta não percebe o seu entorno em o pai em 1938 é, por outro lado, um estímu-
consequência da aceleração da dinâmica lo à percepção do significado estruturante
capitalista, que provoca a emergência de da cidade de Mariana na economia da obra
unidades de sentido que não interessam alphonsina, uma relação entre sujeito e espa-
aos dominadores porque não têm valor de ço que, estabelecida por motivos materiais,
troca, e tampouco interessam aos domina- não se reduz à mistificação, como, de modo
dos, que, brutalizados pelo trabalho escra- sutilmente crítico, o autor de Rola-moça
vo, não as podem trazer à consciência. A assinala.22
solidão, investida de reflexividade, é, pois, O tensionamento da relação entre
um dispositivo que inscreve o sujeito dentro Alphonsus de Guimaraens e a cidade de
da história, num movimento surpreendente, Mariana é, sem dúvida, o caminho para a
donde resulta o mais inquietante inventário, operacionalização historial, digamos, de uma
sem dúvida, da interioridade da sociedade obra condicionada ideologicamente pelo
mineira do fim do século XVIII, uma espécie esteticismo reinante no fim do século XIX. A
de psicocartografia, pode-se dizer, dessa obra exibe realmente esse condicionamento,
sociedade.19 assume-o como parte compreensível, por
Esse processo encontra em Drummond, outro lado, de uma estratégia de legitimação
já no século XX, seu ponto mais alto, mas de discurso, de entrada e permanência no

18 A despeito de ter se tornado uma 20 Sobre o lugar de Alphonsus de os ‘cavalheiros andantes’. Era um
das moedas de troca teórica Guimaraens na dinâmica espe- mundo ideal e não real, onde um
mais valiosas nas últimas duas cífica do século XIX mineiro, ver permanente empenho de abstra-
décadas, o conceito de dispositivo Alexandre Eulálio, A literatura em ção o afasta inteiramente do objeto,
vem de longe, como argumenta Minas Gerais no século XIX, In: III para aproximá-lo daquela que seria
Giorgio Agamben no seu O que é o Seminário sobre a cultura mineira, a atitude mística”. (aspas e itálicos
contemporâneo? e outros ensaios, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, do autor). Veja-se Eduardo Portella,
Chapecó, Argos, 2009. Parti- 1982. “O universo poético de Alphonsus
cularmente, interessa-me o elo de Guimaraens”, In: Alphonsus
entre ideias e coisas, entre teoria 21 Procurando “salvar” Alphonsus de Guimaraens, Poesia completa,
e prática, entre interioridade e de Guimaraens de uma espécie Org. Alphonsus de Guimaraens
exterioridade, que a “dispositio” ou de restrição a um espaço local, Filho, Rio de Janeiro, Editora Nova
“positivité”, como Hegel preferia interiorano, mineiro, argumenta Aguilar, 2001, p. 24.
pensar, estabelece. Eduardo Portella de um modo
que culmina numa idealização do 22 João Alphonsus, Notícia biográfica,
19 Entendo por psicocartografia uma poeta. “Mas não se pode compre- In: Alphonsus de Guimaraens,
produção escrita que congrega ele- ender Alphonsus”, diz o ensaísta, Poesia completa, Org. Alphonsus de
mentos exteriores, geográficos, e “imaginando-o um escravo da sua Guimaraens Filho, Rio de Janeiro,
interiores, mentais. Reconheço em geografia. De modo algum. Seu Editora Nova Aguilar, 2001, p. 102:
“No limiar do novo estilo: Cláudio mundo não era apenas o mundo “Não houve acomodação entre o
Manuel da Costa”, de Antonio do real, do concreto, de Mariana, espírito de Alphonsus e o ambiente
Candido, um impulso fundamental embora, é certo, muitas vezes esse espiritual da cidade de duzentos
para essa compreensão. Veja-se pequeno mundo chegasse a condi- anos, mas encontro perfeito de uma
Antonio Candido, Formação da cionar ou determinar o seu compor- vida humana e de uma vida coletiva
literatura brasileira, Belo Horizonte/ tamento. O mundo de Alphonsus, de misticismo e sossego. Seria
Rio de Janeiro, Editora Itatiaia, isto sim, era aquele imenso uni- literatura encarar Mariana somente
2000, 9 ed., vol. 1, pp. 84–102. verso aonde (sic) só têm acesso assim”. (grifo meu)

285
campo literário. Mariana, primeira povoação mas social, derivada da experiência coletiva,

HISTÓRIA E SOLIDÃO: ALPHONSUS DE GUIMARAENS    ANELITO DE OLIVEIRA


elevada à condição de Vila, Cidade e Capital familiar, religiosa, institucional, uma situação
das Minas Gerais, não é símbolo de provincia- que, na tradição artístico-literária mineira,
nismo ridículo na obra alphonsina, tampouco torna-se suficientemente clara apenas com a
de simbólico universalismo esnobe, mas geração modernista, com Drummond, Emílio
referência de fundamento material, de um Moura, Murilo Mendes. Entretanto, essa
espaço objetivo em relação ao qual o sujeito situação-razão já se entremostra de modo
se define como dialeticamente histórico. Essa complicado, barroco, em Cláudio Manuel
definição se dá, antes de mais nada, pela via da Costa, o “letrado dividido”, na expressão
da localização geográfica, referência meto- recente de Laura de Mello e Souza, e ganha
nímica através da qual uma totalidade, toda seus contornos aporéticos com Alphonsus de
uma vastidão territorial, todo um “desertão”, Guimaraens.26
um sertão ​—​ assim a região das Minas Gerais,
como de resto todo o Brasil profundo, era DA EXPERIÊNCIA
percebida pelos viajantes europeus durante
a colonização ​—​ pode transparecer, tornar- Como se sabe, a existência do poeta foi mar-
-se mundo.23 cada por impossibilidades: no plano afetivo
Alphonsus de Guimaraens, na senda (a morte da noiva, sua prima Constança), no
aberta por Cláudio Manuel da Costa, não plano acadêmico (o retorno de São Paulo,
logra ser, ainda que tenha sonhado em sê-lo, aonde tinha ido estudar Direito em 1891, para
um puro vivente do ideal, aprisionado no Ouro Preto, em 1893), e no plano profissional
mundo das ideias, fadado a apenas trazer (não consegue, já formado em Direito e exer-
a lume um sujeito transcendental. Antes cendo atividades nessa área, uma remunera-
se configura como vivente do real, dessa ção adequada às suas necessidades). Dessas
situação-limite que coube a Jacques Lacan impossibilidades resulta, especialmente,
categorizar somente no século XX, uma a impossibilidade de o poeta se rebelar, a
situação já intuída, porém, pela tradição exemplo do amigo e também poeta José
mística ocidental.24 A vivência do real se Severiano de Rezende, contra o estado de
apresenta como impossível exatamente por coisas circundante que tanto o angustiava,
ser conflituosa, agonística, algo impossível de contra toda a estrutura reacionária que se
ser dominado, resolvido, pelo sujeito histó- afirma, da última década do século XIX até
rico, restando-lhe apenas circunscrevê-lo, a segunda década do século XX sob o signo
cartografá-lo. A circunscrição dessa vi- da República. Trata-se de impossibilidade
vência, na poesia alphonsina, tem como derivada da vida prática, das agruras cotidia-
consequência o desnudamento do aspecto nas de um arrimo de família, de quem tem
enigmático da obra, sua natureza irresolvi- uma prole “grande e pobre”, como enfatiza
da a nos estimular a busca do seu sentido João Alphonsus, sob sua responsabilidade.
estético, de sua razão, em relação com a Essa impossibilidade culminará na clausura
história.25 Essa razão não é de ordem pessoal, do poeta na silenciosa Mariana, o que em

23 Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, encontram-se em Wilson Camilo 25 Theodor Adorno postulou que todas
São Paulo, Edições Melhoramen- Chaves, O estatuto do real em as obras de arte são enigmas em
tos, 1976, v. II, p. 50. O uso da Lacan: dos primeiros escritos ao razão, sobretudo, de sua relação
palavra “sertão” para denonimar Seminário VII, A ética da Psica- com a história. Veja-se Theodor
áreas distantes de Lisboa aparece nálise, In: Paidéia, 2006, vol. 16, Adorno, Teoria Estética, Trad. Artur
já por volta do século XIV em pp. 161–8, Disponível em <scielo. Morão, Lisboa, Presença, p. 140.
Portugal. Ver Janaína Amado, br/scielo>, Acesso: 16/04/2019,
Região, sertão, nação, In: Estudos e Marie-Hélène Blancard, O real 26 Laura de Mello e Souza, Cláudio
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, como impossível de dizer, Trad. Te- Manuel da Costa: o letrado dividido,
n. 15, 1995, p. 4. resinha N. M. Prado, In: Opção La- São Paulo, Companhia das Letras,
caniana online nova série, ano 4, n. 2011.
24 Jacques Lacan, O Seminário: Livro 12, nov. 2013, Disponível em <www.
VI – O desejo e sua interpretação, opcaolacaniana.com.br>, Acesso:
texto estabelecido por Jacques- 16/04/2019. Ver, sobre a questão
-Alain Miller, trad. Claudia Berliner, da mística, Michel de Certeau, La
Rio de Janeiro, Zahar, 2016. fable mystique, 1: XVIe–XVIIe Siècle,
Problematizações sobre a questão Paris, Gallimard, 1982.

286
Alphonsus de Guimaraens é uma forma de especialmente em face do histórico de difi-
desterro.27 culdades econômicas do autor, dá a ver uma
Em linhas gerais, o que se apresenta na espécie de “Aufhebung” hegeliana, uma “su-
obra alphonsina comporta uma “latência” prassunção”, uma elevação, no seu momento
biográfica,28 mas não é a esse traço em si, de simbolismo mais acentuado ​—​ Câmara-
elucidado por Antonio Candido na produção -Ardente, Setenário das dores de Nossa Se-
autobiográfica de alguns autores minei- nhora e Dona mística, coletâneas publicadas
ros,29 que se pode atribuir a singularidade do em 1899. Essa situação solicita a considera-
simbolista. Essa singularidade desvela-se da ção do que o poeta produziu no seu primeiro
dimensão aporética conferida a esse traço momento para que se possa compreender a
biográfico, à exploração, de modo realmente produção que vem a público em forma de livro,
sutil, de uma vinculação íntima, residual, en- em sua maior parte, somente depois da morte
tre o público e o privado, entre o abertamente do autor, ou seja, a sua Pastoral aos crentes
fora, a vida social, e o sensivelmente dentro. do amor e da morte, Escada de Jacó, Pulvis,
A vida pessoal configura, no limite, uma ima- Outras poesias e Salmos da noite. A coletâ-
gem nebulosa, “chiaroscura”, de um lugar, o nea Pauvre lyre, toda em francês, apareceu
lugar geográfico do sujeito histórico, que não ainda no ano de 1921; a Pastoral aos crentes
é redutível a qualquer determinismo relacio- do amor e da morte em 1923 e os demais
nado à ciência geográfica. Em Alphonsus de na edição das Poesias organizada por João
Guimaraens, movido pelo desejo de trans- Alphonsus e Manuel Bandeira em 1938, cuja
cendência cultivado pelo Simbolismo, a fusão reedição em 1955 ficou a cargo de Alphonsus
entre sujeito e objeto, que aparece em estágio de Guimaraens Filho. Este também se incum-
embrionário em Cláudio Manuel da Costa e biu de organizar a edição da Obra completa
que se realizará plenamente no Drummond em 1960, edição que ele também atualizou
de poemas como “A máquina do mundo”,30 em 2001, sob o título de Poesia completa,
revela-se como um componente da reflexivi- com a colaboração de Alexei Bueno e Afonso
dade, da ação de refletir. Tudo se passa como Henriques Neto.
se o reflexionar, o voltar-se sobre si mesmo, Alphonsus de Guimaraens foi largamen-
implicasse necessariamente uma apreensão te ignorado pela vida afora em virtude da ra-
do lado de fora do sujeito como não-dito, zão prática que orienta o campo artístico,31
do seu objeto direto, circundante, o espaço incompreendido, como sublinham Waltensir
sócio-histórico experienciado, como sombra, Dutra e Fausto Cunha, até pelos simbolistas.
névoa, neblina. Sua obra, percebida pelos contemporâneos
A obra de Alphonsus de Guimaraens, que em contraponto com a de Cruz e Sousa, so-
se destaca por um equilíbrio formal exemplar ava “não somente deslocada no tempo como
na lírica brasileira, suscitando assombro até no país”.32 O reconhecimento do poeta

27 À luz da narrativa de João cidade incompatibilizado e desi- 30 Carlos Drummond de Andrade,


Alphonsus, é possível ver um ludido, embora prestigiado pelas A máquina do mundo, In: Claro
Alphonsus de Guimaraens autoridades eclesiásticas”. Veja-se enigma, São Paulo, Companhia
angustiado diante da limitação João Alphonsus, Notícia biográfica, das Letras, 2012, pp. 105–8.
que lhe impunha a vida prática. In: Alphonsus de Guimaraens,
O episódio do conflito de José Poesia completa, Org. Alphonsus 31 Pierre Bourdieu, As regras da arte,
Severiano de Rezende com as de Guimaraens Filho, Rio de Ja- Trad. Maria Lúcia Machado, São
forças reacionárias de Mariana, neiro, Editora Nova Aguilar, 2001, Paulo, Companhia das Letras,
que resultou na decisão do poeta pp. 97–9. op. cit. 1996.
de deixar a batina e se mudar para
Paris, é exemplar dessa situação. 28 Sobre o conceito de “latência”, veja- 32 Waltensir Dutra e Fausto Cunha,
“Sua estada em Ouro Preto naquele -se Hans Ulrich Gumbrecht, Depois Alphonsus de Guimaraens, In:
1900”, diz João Alphonsus, “ficou de 1945: latência como origem do Biografia crítica das letras mineiras,
assinalada por um fato que deve presente, Trad. Ana Isabel Soares, Rio de Janeiro, MEC/INL, 1956,
ter amargado o seu coração amigo. São Paulo, Editora da Unesp, 2014. p. 78.
O Padre José Severiano de Rezen-
de, que exercia o sacerdócio em 29 Antonio Candido, Poesia e ficção
Mariana com a intransigência de na autobiografia, In: A educação
um apóstolo dos primeiros tempos pela noite e outros ensaios, São
do cristianismo, retirou-se dessa Paulo, Ática, 1989, pp. 51–69.

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começou a se dar somente em 1919, com a tão genéricas quanto abstratas.37 Não se

HISTÓRIA E SOLIDÃO: ALPHONSUS DE GUIMARAENS    ANELITO DE OLIVEIRA


famosa visita que Mário de Andrade lhe fez trata, tampouco, de inventário ideal de uma
em Mariana, e se firmou com o advento da história igualmente ideal, mas sim de escrita
geração modernista mineira.33 Esta viu no da angústia tal qual se revelara realmente
“solitário de Mariana”, conforme depoimento possível ao sujeito fazê-lo, ou seja, enquanto
de Drummond, “um poder de libertação e insuficiência, incompletude, incomunicabi-
afastamento dessa matéria poética tão po- lidade, numa palavra: pobreza. Na Pastoral
bre e tão falsa de 1920”.34 Alphonsus, ainda aos crentes do amor e da morte, o poeta reto-
de acordo com Drummond, “preservava” os ma e intensifica um veio que já está lá na sua
modernistas mineiros dos “males da época”, rebelde produção de juventude, nos esparsos
com o qual “aprendemos” ​—​ e este verbo é que a Poesia completa hoje apresenta sob
muito significativo pelo que prenuncia ​—​ “a a tarja de “Documentário” ​—​ poemas, como
ter saúde e a coragem das experiências”. “Tenebra et lux”, sobre a escravidão; “Quinze
O Alphonsus dos modernistas mineiros, de novembro”, sobre a República; e “A voz do
cuja desvelação foi sutil e criteriosamente rochedo”, espécie de escavação da intersub-
mediada por João Alphonsus, é o sujeito jetividade na natureza bruta. Revela-se ali
de uma experiência histórica autêntica, uma espécie de cartografia da solidão, do
verdadeira, por isso mesmo crítica, tal como espaço-tempo que constitui a base obje-
aparece no poema “A catedral”, com que se tiva, física até, dessa solidão, em poemas
encerra a Pastoral aos crentes do amor e da como “Vila do Carmo”, “A Cláudio Manuel da
morte.35 “A catedral”, poema emblemático Costa”, e, sobretudo, no belo “Solidão”, em
de Alphonsus, exibe a experiência da po- que se apresenta o reconhecimento direto,
breza que, como postulou Walter Benjamin, por parte do sujeito, da condição de pobreza
tem no seu centro o embate ente sujeito e como condição derivada, por sua vez, do
história, um embate material que culmina tempo vivido. Indicia-se, em “Solidão”, a his-
em desencanto com o mundo, abando- toricidade da solidão alphonsina, não só seu
no, solidão.36 caráter existencial, mas seu caráter, pode-se
O “testamento de um homem exausto”, mesmo dizer, materialmente existencial.
que Dutra e Cunha percebem na derradeira “Passam meses e eu, pobre, pobre, pobre /
produção de Alphonsus de Guimaraens, cada vez mais velho, vou pedindo esmolas”.
reunida sob os títulos de Escada de Jacó e Nesses versos, que se repetem na segunda e
Pulvis, não é testamento de um homem ape- quarta de cinco estrofes de “Solidão”, acen-
nas nem de um mundo apenas, de realidades tua-se o estilo melancólico, repetitivo, do

33 Mário de Andrade visitou 34 Carlos Drummond de Andrade, e política: ensaios sobre literatura
Alphonsus de Guimaraens em sua Presença de Alphonsus, In: Mensa- e história da cultura, Trad. Sérgio
Mariana no dia 10 de julho de 1919. gem, Belo Horizonte, ano 2, n. 22, Paulo Rouanet, São Paulo, Brasi-
Cinco dias depois, em carta ao filho, 1940, p. 7. liense, 1994, pp. 114–9.
João Alphonsus, que então vivia em
Belo Horizonte, o poeta expressou 35 “A catedral” teve, segundo 37 O argumento da dupla de biógra-
o significado do evento para si: Drummond, um impacto enorme fos das letras mineiras estimula
“… A verdade é que, para quem sobre a sensibilidade dos a percepção de um Alphonsus
vive, como eu, isolado ​—​ uma visita modernistas mineiros. “Muitos de Guimaraens “real”, dentro da
dessas deixa profunda impressão”. de nós”, escreve o itabirano, história material: “Alphonsus foi
Cf. Alphonsus de Guimaraens “nunca pegaram num exemplar um poète maudit. Sua vida é de
Filho, Alphonsus de Guimaraens de Kiriale ou de Dona Mística, já uma indescritível frustração em
no seu ambiente, Rio de Janeiro, então introuvables, mas bastava o todos os sentidos. […] A desgraça
Fundação Biblioteca Nacional, estribilho da ‘Catedral’, um verso perseguiu encarniçadamente os
1995. p. 357. Cf. ainda Carlos de poema publicado nas rápidas nossos poetas simbolistas: mas
Drummond de Andrade, A visita, revistas da época, para sentirmos talvez Alphonsus tenha sido o mais
São Paulo, Digital, 1977, edição de no espírito toda a voltagem da desgraçado, porque foi consumido
José Mindlin de poema que explora, poesia, incandescendo a nossa pouco a pouco, em consciência,
em clave dramática, o encontro en- substância. O lúgubre responso através de cinquenta anos de uma
tre o modernista e o simbolista; Cf. ressoava em nós”. (grifos do autor). vida que não era a sua.” (grifo dos
também Leopoldo Comitti, Sobre Cf. Carlos Drummond de Andrade, autores). Cf. Waltensir Dutra e
uma visita: Alphonsus de Guima- Presença de Alphonsus, ibid. Fausto Cunha, Alphonsus de Gui-
raens e o Modernismo, disponível maraens, In: Biografia crítica das
em <letras.ufmg.br/cesp/textos>, 36 Walter Benjamin, Experiência e letras mineiras, op. cit., p. 79.
Acesso: 17/04/2019. pobreza, In: Magia e técnica, arte

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sujeito.38 Esse estilo se cristaliza no poema o poema desvela como insustentável em face
“A catedral”, precisa metonímia ​—​ material, de um real que é monstruoso, bárbaro. Uma
objetiva ​—​ de um território que se expressa, dinâmica de construção-destruição, do ideal
que se ordena, que se representa, afinal, na em confronto com o real, é notável no poema,
impossibilidade mesma de se racionalizar, o processo de aparecimento e desapareci-
que resiste à racionalidade cartesiana, ao mento de um referencial de sociabilidade ​
esclarecimento absoluto.39 —​ a igreja ​—, do lugar de encontro de uma
coletividade. Esse referencial é admirado, por
DO SUJEITO isso mesmo, por um sujeito ético, que se res-
ponsabiliza pela história, que cultiva um valor
“A catedral” abriga, em sua aparente sim- moral ​—​  a religiosidade ​—​  como exemplo de
plicidade, um lastro de significação que coesão identitária, pode-se dizer, com a sua
intensifica, por si só, o que se encontra em comunidade, com a gente mineira. Leiamos:
Cláudio Manuel da Costa, especialmente na
“Fábula do Ribeirão do Carmo”.40 Abre, assim, A Catedral
o caminho que seria complicado, dobrado,
por Carlos Drummond de Andrade, Murilo Entre brumas, ao longe, surge a aurora,
Mendes, Emílio Moura, Pedro Nava,41 num O hialino orvalho aos poucos se evapora,
processo que tem seus desdobramentos, com Agoniza o arrebol.
características diversas, em Lúcio Cardoso, A catedral ebúrnea do meu sonho
Hélio Pellegrino, Affonso Ávila e Sebastião Aparece na paz do céu risonho
Nunes. Essas são as vozes representativas de Toda branca de sol.
uma cultura do barroco nas Minas que tem E o sino canta em lúgubres responsos:
suas reverberações ainda hoje, em termos “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
estéticos e éticos, em artistas múltiplos, O astro glorioso segue a eterna estrada.
performativos, como Guilherme Mansur, Uma áurea seta lhe cintila em cada
Ricardo Aleixo, Ronald Polito e Jorge dos Refulgente raio de luz.
Anjos, cultores da arte como jogo crítico, em A catedral ebúrnea do meu sonho,
que a operação de objetos visados, como em Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Amilcar de Castro e Affonso Ávila, é o caso. Recebe a bênção de Jesus.
O que move “A catedral”, percebido a partir E o sino clama em lúgubres responsos:
de um horizonte histórico, no qual o campo “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
literário aparece com uma autonomia relativa Por entre lírios e lilases desce
em relação à vida social, é, sem dúvida, o A tarde esquiva: amargurada prece
ideal coletivo de civilização. Esse ideal tem Põe-se a luz a rezar.
na religião católica uma referência fundante, A catedral ebúrnea do meu sonho
donde decorre sua dificuldade de concreti- Aparece na paz do céu tristonho
zação exatamente porque se revela envolto Toda branca de luar.
no que entendo, numa metáfora algo drum- E o sino chora em lúgubres responsos:
mondiana, como um manto de aporias. Não “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
se trata de ideal restrito à superfície radiante O céu e todo trevas: o vento uiva.
do objeto Catedral, comparável a marfim, Do relâmpago a cabeleira ruiva
ebúrnea, superfície que, oriunda de um sonho, Vem acoitar o rosto meu.

38 Alphonsus de Guimaraens, encontra-se em Fernando Correia 41 Sobre a relação entre Pedro Nava
Tenebra et lux, In: Poesia completa, Dias, Ouro Preto: território da e o barroco, ver Fernando Correia
2001, op. cit., p. 481; Quinze de palavra – instituições e práticas Dias, O prisma de Nava, In: Líricos
novembro, ibid., p. 487; A voz intelectuais, In: Oficina do Inconfi- e profetas, Brasília, Thesaurus
do rochedo, ibid., p. 542; Vila do dência: Revista de trabalho, Ouro Editora, Brasília, 1984, pp. 53–71,
Carmo, ibid., p. 322; A Cláudio Preto, 2001, ano 2, n. 1. e Antonio Sérgio Bueno, A subver-
Manuel da Costa, ibid., p. 369; são barroca e outras subversões
Solidão, ibid., pp. 301–2. 40 Cláudio Manuel da Costa, Fábula nas memórias de Pedro Nava, Belo
do Ribeirão do Carmo, In: A poesia Horizonte, 2019, trabalho constan-
39 Abordagem sobre o lugar estrutu- dos inconfidentes, Org. Domício te deste volume. p. 292.
rante da palavra em Minas Gerais Proença Filho, op. cit., pp. 120–7.

289
E a catedral ebúrnea do meu sonho DA BIOGRAFIA

HISTÓRIA E SOLIDÃO: ALPHONSUS DE GUIMARAENS    ANELITO DE OLIVEIRA


Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu. Alphonsus de Guimaraens nasceu em 1870
E o sino chora em lúgubres responsos: em Ouro Preto e morreu em Mariana, onde vi-
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”42 veu a maior parte da sua existência, em 1921.
A abordagem da sua obra a partir de um viés
A catedral do sujeito alphonsino é ebúrnea biográfico é um dos lugares mais comuns da
não somente em função do Simbolismo, não historiografia e da crítica literária brasileiras.
apenas por um rebuscado influxo esteticista, A motivação para essa abordagem procede,
não apenas por um pendor à adoração do sobretudo, da própria obra, com seus muitos
exótico. O marfim, cromaticamente atuali- índices pessoais, a começar pela estetização
zado pelo signo “ebúrnea”, é uma imagem do nome próprio ​—​ de Afonso para Alphonsus ​
precisa para a expressão da percepção do —​ e pela tematização de elementos constitu-
que não é claro nem escuro, do que não é, no tivos da localidade do poeta. Numa crônica
plano aparente, nem uma coisa nem outra. de 1949, o dicionarista Aurélio Buarque
Isso que é e não é, a um só tempo, o que se de Holanda Ferreira chega a atestar uma
vê, instiga o sujeito. A catedral do sonho tem espécie de ascendência do poeta em relação
uma cor bastante significativa tanto do ponto à cidade, como se Alphonsus, ao se envolver
de vista do sujeito quanto da história, uma de modo tão intenso com a cidade, tivesse
cor que articula, num nível muito profundo, logrado tornar-se uma realidade simbólica
essas duas dimensões. Ao se assemelhar ao mais envolvente que a cidade.43 Essa crônica
marfim, a cor ebúrnea estimula uma analogia amplia, com a simplicidade de um olhar emo-
entre aquilo que constitui a intimidade do cionado de leitor, o que Henriqueta Lisboa
sujeito, sua memória, e aquilo que consti- exprimiu no seu ensaio de 1945 como uma
tui, de modo decisivo, o processo social, o das três vias de compreensão do simbolista
trabalho. O marfim é extraído de dentes de mineiro: a “sugestão do ambiente”. Ao lado
elefantes de um dos lugares de onde saíram do impacto causado pela morte da prima-
negros escravizados para o Brasil: a Costa do -noiva e de leituras da Bíblia Sagrada cristã,
Marfim, antiga Costa da Mina, hoje oficial- a geografia teria exercido, segundo a poeta,
mente Côte d’Ivoire. Aportaram na Bahia, ao influência decisiva sobre a conformação da
lado de outros tantos da Nigéria e do Daomé, obra de Alphonsus.44 Esse ponto de vista foi
mas podem ter chegado às Minas Gerais pelo se fixando cada vez mais, de modo que a ge-
Norte, região que faz fronteira com o hoje ografia passou a ser sinônimo de biografia na
território baiano. Neste sentido, pensando no abordagem do poeta, tipo de recepção crítica
referencial arquitetônico estruturante do poe- de que é exemplo o artigo “Alphonsus: o poeta
ma, na igreja, pode-se cogitar da participação da névoa”, publicado em 1949 por Cristóvão
de marfinenses, também, entre os africanos Breiner, no qual o fator climático da região de
que atuaram na produção do espaço urbano Mariana é o referencial teórico.45
das Minas coloniais. Os “lúgubres responsos”,
os sons escuros, ressoam para além do esteti-
cismo, do “l’art pour l’art”, sugerindo uma per- 42 Alphonsus de Guimaraens,
cepção do que o sino diz ​—​ “Pobre Alphonsus! A catedral, In: Poesia completa,
Pobre Alphonsus!” ​—​  como reconhecimento op. cit., pp. 372–3.

irônico, pelo sujeito, da sua condição como 43 Aurélio Buarque de Holanda


condição histórica, relacionada à vida ma- Ferreira, Pobre Alphonsus! Pobre
terial processada num determinado lugar. Alphonsus!. In: Seleta em prosa
e verso, Org. Paulo Rónai, Rio de
A incompletude, a pobreza, tudo isso que Janeiro, Editora Nova Fronteira,
está catalogado pela história literária como 1999, p. 141.
característico de Alphonsus, apresenta-se,
44 Henriqueta Lisboa, Alphonsus de
assim, como algo derivado de uma relação Guimaraens, op. cit., p. 34.
traumática, angustiada, do sujeito com seu
espaço-tempo imediato, com a sua região, 45 Cristóvão Breiner, Alphonsus, o
poeta da névoa, In: Jornal do
com a sua cidade, “élan” fundamental de uma Comércio, Rio de Janeiro, 30 de jan.
obra poética singular. de 1949.

290
Entre as reavaliações críticas da obra
alphonsina que vieram à tona a partir dos
anos 1990, em grande parte estimuladas pelo
arrefecimento do vanguardismo que domi-
nou a cena literária dos anos 1960 a 1980 no
país, destaca-se o trabalho da pesquisadora
Francine Ricieri, marcado por um esforço de
superação da tradição crítica de abordagem
do poeta mineiro pela via biográfica, geo-
gráfica.46 Trata-se de esforço compreensível,
quando se tem em vista todo o prejuízo cau-
sado à literatura pelo biografismo simplista
que, oriundo do século XIX, ainda atenta
contra a especificidade estética da obra lite-
rária. Todavia, há muito se tornou razoável, no
âmbito dos estudos literários, que nenhuma
biografia é algo simples, resolvido, restrito
a um eu, dominado por um sujeito, que uma
história de vida não é uma questão meramen-
te pessoal.47 Isso, que vale para os sujeitos
sociais em geral, tem uma validade inquietan-
te para o sujeito escritor, contraparte evidente
do “sujeito leitor” postulado por Annie Rouxel,
sujeito que, ao se lançar à escrita, expressa
sempre mais ​—​  ou menos ​—​  do que gostaria
de expressar.48 A consideração do espaço
biográfico de Alphonsus de Guimaraens, não
apenas de sua biografia, mas de sua “geo-
biografia”, é a via epistemológica para uma
compreensão da sua obra num mais além do
esteticismo, como gesto dotado de autono-
mia estética, mas autonomia precária, pertur-
bada por uma dolorosa experiência histórica.

46 Francine Fernandes Weiss Ricieri,


Alphonsus de Guimaraens (1870;
1921): Bibliografia Comentada,
Universidade Estadual Paulista
(Unesp), 1997 (dissertação de Mes-
trado); Idem, A imagem poética em
Alphonsus de Guimaraens: espe-
lhamentos e tensões, Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp),
2001 (tese de Doutorado).

47 Pierre Bourdieu, L’illusion biogra-


phique. In: Actes de la Recherche
en Sciences Sociales, Paris,
vol. 62–3, pp. 69–72, jun. 1986.

48 Annie Rouxel, Mutações episte-


mológicas e o ensino da literatura:
o advento do sujeito leitor. Trad.
Samira Murad. In: Criação & Crítica,
São Paulo, n. 9, 2012. Disponível
em: <revistas.usp.br/criacao
ecriti​ca>. Acesso: 19/04/2019.

291
A SUBVERSÃO
BARROCA
E OUTRAS
SUBVERSÕES NAS
MEMÓRIAS DE
PEDRO NAVA
ANTÔNIO SÉRGIO BUENO

292
Elegia 18 UMA OBRA FUNDADORA DIFERENTE

Mais de cem relógios Há um consenso entre os estudiosos da obra


nas paredes da sala de Pedro Nava de que seus textos se inserem
tocam as horas adiante. na tradição dos chamados livros fundadores
de uma identidade cultural brasileira, como
Um relógio, entanto, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre,
invertido em sua ronda Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de
anda com os ponteiros Holanda, Formação Contemporânea do Brasil,
voltando para o ontem. de Caio Prado Jr., O Povo Brasileiro, de Darcy
Ribeiro e A Formação da Literatura Brasileira,
O relógio-fantasma de Antonio Candido, entre poucos outros. Na
em sentido leste-oeste mesma linha de pensamento, com a qual
impõe como jornada concordo plenamente, estão estas palavras
viajar o viajado. de Otto Lara Resende a respeito de Baú de
Ossos, que encontro na orelha interna da con-
Libério Neves tracapa de meu exemplar da segunda edição
de Chão de Ferro: “Considero [Baú de Ossos]
um livro fundador, no sentido de que é um
⁂ livro que sozinho dá notícia de uma cultura.
Mais importante para a literatura brasileira
que Marcel Proust para a cultura francesa.
Não estamos sós Simplesmente genial.” 1
Mas é preciso reconhecer uma diferença
Quem me espera do outro lado no tratamento dado à linguagem verbal entre
e me acompanha, interroga, as Memórias de Pedro Nava e as demais
nessa foto que se move obras citadas e, por isso, grifei a palavra
transitando pelo tempo? “literatura” no trecho de Otto Lara Resende.
O rosto familiar Penso na potência artística da linguagem de
que lá do espelho me espia Nava nos seguintes termos, colocados por
há muito deixou moldada José Maria Cançado: “as Memórias, sozi-
na inquieta fisionomia nhas, dão sim notícia de toda uma cultura,
cada espera, desencontro, mas de uma maneira que faz com que essa
intuição, nostalgia… notícia continue sempre notícia: pois feita de
particular potência da escrita, de repertório
O olhar não vê ​—​ ultrapassa, muito vário […], dando a esta [notícia] um
desmascara, denuncia interesse, um sentido e uma realidade para
as gerações estampadas lá do noticiado ​—​ uma enunciação e não um
nos sorrisos embaçados enunciado” 2. Voltarei a esse “repertório muito
de antepassados remotos vário” adiante.
— a multidão que povoa Nava tinha consciência de que navegava
álbuns de fotografias. em um gênero anfíbio: “Se eu fosse historia-
Entre pais, tios, avós, dor, tudo se resolveria. Se ficcionista, tam-
qual semblante mais traduz bém. Acontece que o memorialista é forma
a face que me contempla, anfíbia dos dois e ora tem de palmilhar as
a expressão que desafia? securas desérticas da verdade, ora de nadar
nas possibilidades oceânicas de sua interpre-
Flávia Queiroz tação” 3. Em outros termos, o narrador das

1 Itálico meu.

2 CANÇADO, 2003, p. 15 (grifo meu).

3 NAVA, 1976, p. 166 (grifos meus).

293
Memórias é um observador de seu tempo (e, muito o contrariava. Mas, naquele momento

A SUBVERSÃO BARROCA E OUTRAS SUBVERSÕES NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA   ANTÔNIO SÉRGIO BUENO
muitas vezes, de outros tempos), inscrevendo em que proferia aquela palestra, já o incomo-
nele sua individualidade. dava ser chamado de “o médico Pedro Nava”.
Em trabalho anterior, procurei ler os seis Outra “cangalha” que o memorialista
volumes das Memórias através de um eixo Pedro Nava lança pelos ares é o compromis-
teórico composto por três categorias opera- so com uma insossa verdade factual. A esta,
cionais básicas: espaço ​—​  corpo ​—​  figuração. ele prefere o encanto artístico da verossimi-
Sem fugir dessa orientação, que considero lhança. É o que mostram as duas seguintes
funcional e eficaz, mas tentando não me passagens metalinguísticas:
repetir, neste trabalho tento delimitar o
espaço a Minas Gerais, com ênfase em Belo O Zezé e seu irmão […] ficavam em com-
Horizonte, e centrar mais minha atenção na panhia das irmãs ​—​ Julieta, Lídia e Violeta.
categoria figuração, porque em seu âmbito Uma delas era viúva e muito nova. Havia
está a fascinante arte da palavra praticada de ser a Violeta porque assim minha nar-
pelo memorialista. rativa adquire coerência, dando analogias
Interessa-me, agora, sobretudo, demons- ao nome, às olheiras, e aos vestidos roxos
trar a perfeita adequação entre a personalida- da linda moça.4
de, às vezes maniqueísta (antitética), outras
vezes paradoxal, sempre hiperbólica, do autor Assim lembro e superponho umas às
desta obra memorialística e os traços estilís- outras as impressões que me ficaram em
ticos do Barroco, estilo artístico que, como 1916, 1917, 1918. Estarei assim dentro da
admite o próprio narrador (representante do verdade? Importa a verdade? Ah! Pilatos,
autor na narrativa das Memórias), serve de Pilatos… Para quem escreve memórias,
base para sua escrita. Dizer que Pedro Nava onde acaba a lembrança? Onde começa
é um “homem barroco” seria apenas uma a ficção? Talvez sejam inseparáveis. Os
figuração anacrônica. Ele é um homem de fatos da realidade são como pedra, tijolo ​
seu tempo, do século XX, que ele viveu numa —​ argamassados, virados parede, casa,
plenitude raramente alcançada por outro pelo saibro, pela cal, pelo reboco da veros-
homem. O que digo é que sua atuação como similhança ​—​  manipulados pela imagina-
homem e sua expressão artística carregam ção criadora. […] porque só há dignidade
fortes traços do estilo artístico de época deno- na recriação. O resto é relatório…5
minado Barroco.
Se se prestar atenção à tradição memo- José Maria Cançado fala em “desvalimento
rialística brasileira, particularmente à mineira, radical” do sujeito das Memórias de Pedro
ver-se-á que ela não perde nunca o vinco de Nava.6 Tomo a liberdade de citar aqui um tre-
uma elegância aristocrática, tanto na matéria cho de carta de Nava, datada de 4 de dezem-
narrada, quanto no estilo em que essa ma- bro de 1983, a mim endereçada, na qual ele
téria ganha forma. Também nunca se afasta faz um comentário que pode ser associado a
da memória voluntária, com investimento essa ideia de “desvalimento”:
na referência. O memorialista tradicional
lembra-se do que quer lembrar. Sem abrir Suas [no caso, minhas] palavras no artigo
mão do apreço por si próprio, com cerimônia de abertura [apresentação de um núme-
e circunspecção, transmite os bens simbó- ro do Suplemento Literário do Minas
licos de nossas elites letradas para os filhos Gerais em homenagem a Pedro Nava],
dessa mesma elite, a fim de que tais valores todas muito benévolas e sua designação
se perenizem no tempo. para mim de “homem humilde” chegou
Pedro Nava começa a subverter essa tra- na hora certa para lavar as urticações
dição ao dizer que procurou sacudir de seus que me deixaram as de um outro crítico
ombros as “cangalhas do médico”, quando se
decide a escrever suas memórias. Lembro-me
de ouvi-lo dizer, em uma palestra proferida na 4 NAVA, 1974 (a), p. 107.
Faculdade de Letras da UFMG, que quando o
5 Ibid., p. 288.
chamavam de “o poeta Pedro Nava”, nos seus
tempos de plenitude da prática médica, isso 6 CANÇADO, 2003, p. 42.

294
que me tratou de elitista ​—​  num jornal de nossas horas” 7. A mudança das pessoas ver-
Goiás. É o cúmulo da incompreensão da bais justifica-se porque ora o sujeito poético
minha pessoa, que começa seu primeiro fala em seu próprio nome, ora em nome do
volume declarando-se “um pobre homem grupo de amigos a que Nava pertencia desde
do Caminho Novo” das nossas Gerais…! a longínqua mocidade.
E, principalmente, “fechamento mental O memorialista nega opiniões formadas
diante de tudo que tenho escrito”. na ocasião da ocorrência dos fatos narrados,
como a de que Belo Horizonte era uma cidade
Embora hoje eu entenda que o “desvalimento” vazia, sem gente nas ruas exageradamente
percebido por Cançado não passa neces- largas. A Belo Horizonte fundada na escrita
sariamente por uma humildade existencial, de Pedro Nava em Beira-Mar nada tem de
cito o trecho da carta por causa da irritação tediosa: cada moça que passa leva consigo
sentida pelo remetente ao ser considerado um olhar, cada homem que desce recebe um
elitista por um crítico literário, o que denota, comentário malicioso. O sujeito das Memó-
no mínimo, um desapreço dele, Nava, por rias subverte a Geografia, ao fazer a Rua
tais elites. Ceará cruzar com a Rua Maranhão, quando
são vias perfeitamente paralelas.
UMA VOCAÇÃO SUBVERSIVA Dois sentimentos, entretanto, permane-
cem incólumes na obra e na vida de Pedro
Penso que uma das maiores subversões em- Nava: a devoção pelo solo mineiro e a iden-
preendidas nas Memórias de Pedro Nava está tificação com sua capital. “Sou um sujeito
na disposição do autor de acolher a memória do Bar do Ponto”, repetia ele. E “ponto” é a
involuntária, um investimento no imprevisível, palavra que abre o quarto volume da série
um risco que se corre sempre que se perde o memorialística, Beira-Mar, o que me permite
controle racional do processo rememorativo. afirmar que é essa a palavra central de toda
O que entendo como vocação subversiva a obra. Lembro-me de ter ouvido de Pedro
de Pedro Nava me foi sugerido por situa- Nava, na citada palestra na UFMG, que ele
ções ligadas indiretamente a sua escrita. tinha dois arrependimentos na vida: um
Recordo-me de que, no momento em que deles é de ter abandonado a clínica médica,
soube da morte de Nava, nas circunstâncias a condição profissional de médico de família,
conhecidas por todos, liguei para o Professor para qual ele estava perfeitamente prepara-
Guilhermino César, um dos integrantes do do, e abraçar uma especialização (no caso, a
grupo Verde, de Cataguazes, contemporâneo Reumatologia); o segundo arrependimento
e amigo do memorialista, para ouvir uma é ter deixado Belo Horizonte (“eu devia ter
palavra dele sobre aquela notícia tão triste. crescido com a minha cidade”— disse, então,
De tudo que Guilhermino então disse, só me o conferencista)8.
lembro nitidamente desta frase: “O Nava era No início do Baú de Ossos, primeiro volu-
um homem selvagem”. me das Memórias, o narrador menciona duas
Outra reação ao trágico desparecimento direções que definem, espacialmente, o desti-
de Nava, vinda de um de seus maiores amigos no e o modo de ser tensionado de Pedro Nava:
e companheiro de redação de A Revista, o chão de ferro das Minas Gerais e o oceano
publicação de 1925, pioneira do modernismo afora de Ceará, Maranhão e Rio de Janeiro.
em Belo Horizonte, o poeta Carlos Drummond Neste trabalho deixo de lado a amplidão oce-
de Andrade, está no poema “A um ausente”, ânica para fixar-me apenas no solo mineiro,
publicado postumamente no livro Farewell. sobretudo na sua capital, à qual o narrador
Nesse poema, o sujeito poético acusa o das memórias faz este juramento-confissão:
amigo de ter subvertido uma ordem tácita “Jamais poderei esquecer-me de ti, Belo
(“Detonaste o pacto”, “Antecipaste a hora”), Horizonte, de ti nos teus anos 20. E, se isso
usando ora a primeira pessoa do singular, ora
a primeira do plural: “Sim, acuso-te porque fi-
zeste / o não previsto nas leis da amizade e da
natureza / nem nos deixaste sequer o direito 7 ANDRADE, 1966, pp. 41–2
(grifos meus).
de indagar / porque o fizeste, porque te foste”,
“Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo 8 Grifo meu.

295
acontecer, que, como no salmo, minha mão A SUBVERSÃO BARROCA

A SUBVERSÃO BARROCA E OUTRAS SUBVERSÕES NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA   ANTÔNIO SÉRGIO BUENO
direita se resseque e que a língua se me pre-
gue no céu da boca. Belo, belo ​—​ Belorizonte. Pedro Nava repete sempre que escreve com
Minas ​—​  minha confissão” 9. enorme influência de Mário de Andrade e
Minas Gerais, para ele, é lugar sagrado, do Barroco das igrejas mineiras. A bem da
como se pode constatar nesta passagem: verdade, foi a visita da Caravana de escritores
modernistas de São Paulo que revelou aos
Mas o Egon sentia também como uma es- jovens modernistas mineiros a riqueza de
pécie de confirmação, de crisma mineiro ​ nossas igrejas barrocas. A partir dessa visita,
—​ óleo daquelas andadas no chão de Minas, e sob orientação de Mário de Andrade, Pedro
do gênero das casas, dos beirais dos Nava começa a ler sobre Artes Plásticas.
telhados, das tábuas largas dos assoalhos, Mário encaminha-lhe desenhos dos modernos
do trançado das esteiras que faziam forro franceses. É nessa época que o futuro me-
das casas, dos riachos e ribeirões, dos morialista percebe que a deformação (traço
cerrados, das capoeiras, pastagens. Duma estilístico presente tanto no Barroco como no
certa dureza espalhada ​—​ no solo, nas Expressionismo) é uma forma legítima de se
montanhas, nas pessoas (os “oitenta por afastar da mimetização da realidade, própria
cento de ferro nas almas” de Drummond). da arte acadêmica. Além de Mário de Andrade,
Esse sacramento ​—​ ele o tomara em Caeté, Aníbal Machado foi também um verdadeiro
na sua matriz, nos seus ares, suas águas, professor de História da Arte para Nava:
seus lugares. Cantava internamente ​—​ Oh!
Minas Gerais! 10. Assim eu ia aprendendo com mestre
Aníbal. Não só literatura. Às vezes
A sacralização do território mineiro decorre partíamos de um gesso que ele possuía,
da analogia entre a declaração de perten- moldagem de La Pensée, de Rodin e a
cimento ao espaço mineiro e o sacramento conversa tomava rumos de escultura. Ou
católico da Crisma ou Confirmação da adesão da gravura que reproduzia um Renoir, e
ao Catolicismo. Tal analogia desdobra-se entrávamos pela pintura, sobretudo pelo
na especificação da natureza do óleo (base Impressionismo, sua paixão mais recente.
referencial da metáfora) com que o sacerdo- Lá vinham o próprio Renoir, Manet,
te unge quem recebe o sacramento: o chão Monet, Pissarro, Sisley, Degas, Cézanne.
mineiro, a arquitetura das casas de Minas, Fui sendo apresentado a um por um.13
o povo mineiro, além da alusão à matriz de
Caeté, uma das mais belas igrejas barrocas Quem começa a viver a aventura de ler os li-
de Minas Gerais. vros de memória de Pedro Nava, percebe ime-
São muitos os trechos que mostram uma diatamente que está diante de um artista da
espécie de impregnação do chão mineiro na palavra, que é também médico e pintor. Em
identidade pessoal do memorialista: Beira-Mar, na passagem em que Nava narra
a experiência de seu primeiro dia de trabalho
Aquela minha incorporação à natureza na Secretaria do Interior, ele pede a Antônio
da cidade (Belo Horizonte), do Carlos de Andrade Horta para examinar o livro
bairro, era parte duma espécie de que o colega estava lendo: “Era o Testut e
noviciado mineiro11. pela primeira vez abri os pórticos do majes-
toso tratado. Pasmei para suas ilustrações
Olhei para a cara do companheiro. Cor
de ferrugem. Para minhas mãos. Cor de
ferrugem. Aquilo era pó de Minas em tudo, 9 NAVA, 1976, p. 307.
todos nos cobrindo, impregnando… Res-
pirei profundamente o ar ferruginoso12. 10 NAVA, 1981, p. 148
(grifos e parênteses meus).

Aí estão também o gosto barroco pelo eco 11 NAVA, 1976, p. 292.


(a repetição em refrão) e o apelo aos senti-
12 Ibid., p. 282 (grifos meus).
dos, via pulsões escópica (“olhei”) e olfativa
(“respirei”). 13 NAVA, 1985, p. 84.

296
admiráveis. As peças amarelas do esqueleto. A primeira ilustração modernista de Nava
Sua combinação nas articulações de liga- foi a capa do livro Juiz de Fora de Austen
mentos brancos e sinoviais azuis”. Compara, Amaro, publicado em 1926. Em primeiro
então, aquelas “gravuras prodigiosas” aos plano, uma locomotiva e os trilhos, tendo ao
“esfolados realizados pela Arte, tais os de fundo bojudas montanhas e nuvens, evocan-
Bandinelli, de Houdon […] e os mais atrevidos do o impacto da industrialização em Juiz de
e dramáticos ​—​  atribuídos a Miguel Ângelo” 14. Fora. Ouvido de poeta, olho de pintor.
A citação mostra um traço estilístico que Mas não quero afastar-me muito do talvez
percorre toda a obra de Nava, a analogia, principal núcleo deste ensaio, que é o que
base de um processo que pode ser chama- considero a conaturalidade entre Pedro Nava
do de Gramática da Similitude, que quase e o estilo barroco. Para retomar tal ponto,
sempre convoca as artes plásticas, sobretudo cito trecho de uma entrevista de Affonso
a Pintura, como um os termos da compara- Ávila, poeta e estudioso do Barroco, conce-
ção. Nunca é demais lembrar que a analogia dida ao também poeta e professor Fabrício
é recurso nuclear do jeito poético de abor- Marques, em 1997:
dar as coisas, ao passo que a causalidade
fundamenta o pensamento científico. Cito Minas nasceu sob o signo do Barroco,
mais um exemplo da prodigiosa tela analó- uma arte extremamente paradoxal, dile-
gica da memória descortinada pela escrita mática, e isso persiste […]. Há uma linha
de Pedro Nava: mineira sempre pensando à frente, mas
é uma linha minoritária, que sofre uma
Olhei para fora onde o sol nosso de cada pressão violenta do conservadorismo
dia belorizonte fazia paisagem de Renoir mineiro, que é uma praga, uma doença
aquelas figuras caminhando mergulhadas incurável. […] há uma cortina de ferro
no mar da erva entre árvores se esfuma- em Minas de 300 anos, que tem que
çando debaixo de um céu solvente ​—​ a ser rompida.
paisagem que eu via numa reprodução
enquadrada e pendurada no escritório do O mesmo Affonso, em outro momento, escre-
Aníbal Machado. Era o Chemin montant ve: “Se o Barroco tem seu lado de propaganda
dans les hautes herbes que eu tinha dos ideais da Contrarreforma e do poder
ali ao vivo.15 absoluto coercitivo, em compensação tem as
válvulas de escape sensoriais e irreprimíveis
Note-se nesse trecho a palavra “belorizonte” do homem” 16.
adjetivando “dia”, a sacralização da luminosi- Ora, se o Barroco peninsular é a expres-
dade da atmosfera de Belo Horizonte através são artística dos ideais contrarreformistas, o
da analogia com trecho da prece católica do próprio nome do movimento promovido pelos
“Pai Nosso” (“o pão nosso de cada dia nos dai jesuítas a partir do Concílio de Trento traz em
hoje”), e a dignidade universalizante conferida si o sentido de oposição (“Contra”), que encon-
àquela paisagem cotidiana, corporificada trará na Antítese sua natural expressão retó-
numa tela de Renoir. rica. “Pode-se ver na antítese a figura maior
Foi o próprio Pedro Nava, na primeira da poética barroca”, escreve o crítico Gérard
visita que fiz a seu apartamento do bairro da Genette17. Essa figura de estilo povoa a escrita
Glória, no Rio de Janeiro, que me apresentou de Nava, como neste exemplo matricial, em
a seus desenhos a guache, que ilustram uma que fala de um parente como se falasse de
edição do Macunaíma de Mário de Andrade. si próprio: “Generoso, magnânimo, quixo-
Pude constatar, então, a força daquela leitura tesco, passional, impulsivo e encolerizável,
plástica, tecnicamente tão adequada à reali-
dade “primitiva” representada na rapsódia de
Mário, inclusive os claros sinais de influência
14 Ibid., p. 37.
da arte indígena. Prospectivamente, um
desses desenhos, a bandeira nacional “Pau 15 Ibid., p. 59.
Brasil”, antecipa de décadas a tão celebrada
16 ÁVILA, 1971, p. 12.
bandeira dos Estados Unidos da América,
criada pelo pintor pop Jasper Johns. 17 GENETTE, 1972, p. 37.

297
Ennes de Souza nunca teve meio-termo. Era A caricatura verbal é facilmente localizável

A SUBVERSÃO BARROCA E OUTRAS SUBVERSÕES NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA   ANTÔNIO SÉRGIO BUENO
homem de grandes amores e grandes ódios”18. em um poeta satírico barroco como Gregório
Não é difícil encontrar exemplos desse de Matos. O caricaturista exagera o que já
binarismo no comportamento do próprio autor é exagerado. O contundente arsenal verbal
das Memórias. Ele não via defeitos nos seus do sujeito das Memórias é seu instrumento
amigos, nem virtudes nos seus inimigos. Na de desforra de inimigos e antipatizados. A
carta de 6 de dezembro, a mim encaminhada, caricatura tem, para o médico e memorialista
ele fala de sua apreensão diante do destino de Pedro Nava, inclusive, uma função terapêuti-
seu sexto livro, O Círio Perfeito, nestes termos ca: “Depois de caricaturar meus rancorizados
antitéticos: “Sempre digo que um livro é como eles perdem completamente o travo e posso
filho ​—​ capaz de orgulhar o pai ou capaz de um pensar neles até com piedade. Liberto-me
parricídio”. O binarismo de Nava manifesta-se do ódio. Porque este, em mim, como o amor
na estrutura dos originais de seus livros, que (logicamente como o amor) ​—​ acompanha o
se encontram na Casa de Rui Barbosa, no defunto também” 20. O binarismo do tempera-
Rio de Janeiro, e que tive a oportunidade de mento e da escrita de Pedro Nava contamina
examinar pessoalmente: as folhas são duplas; até a expressão do juízo crítico de quem o lê,
na página da esquerda está o texto verbal; na como no texto “Baú de surpresas”, publicado
da direita, estão as ilustrações que compõem no Jornal do Brasil, no dia 10 de outubro de
um rico material visual, pictórico, que ainda 1972, no qual Carlos Drummond de Andrade
não foi devidamente estudado. saúda a publicação do primeiro volume das
Pedro Nava classificava os médicos memórias, Baú de Ossos: “A vida quis torcer
em “brancos” (os corretos) e “marrons” (os Pedro Nava para o rumo exclusivo da ciência,
crápulas). Em carta não datada endereçada mas viu-se, afinal, que esta não o despojou da
ao médico e professor Luiz Otávio Savassi faculdade, meio demoníaca meio angélica de
Rocha, escreve Pedro Nava: instaurar um mundo de palavras que reproduz
o mundo feito de acontecimentos” 21.
Minha obra vem sendo considerada polê- Às vezes, a motivação de uma caricatura
mica, mas nela não se encontra frase que não é a animosidade, mas a profissão do cari-
seja, uma só palavra sobre os grandes mé- caturado, como esta caricatura verbal do pro-
dicos que não sejam elogios a suas vidas fessor de Geografia Luís Cândido Paranhos,
beneméritas (vide Beira-Mar). Os que eu feita pelo memorialista:
ataco são a terrível maioria marrom, que
envergonha a classe [sic] que meu caro tinha a face toda serpenteada de veia-
colega é um dos ornamentos. zinhas roxas cujos cursos, confluências,
estuários, embocaduras e deltas se
Essa reverência aos grandes médicos não multiplicavam no nariz a pique e nas bo-
impede que possa escapar aqui ou ali alguma chechas como dunas ao vento. Toda a su-
ironia como a que desfere contra o médico perfície de sua pele era cheia de cicatrizes
Samuel Libânio (um grande médico): de acne juvenil, de furúnculos e bexigas ​
—​ que faziam de sua testa e queixo uma
Doutor Samuel? Formidável, formidável. sucessão de montanhas e vales, uma teo-
Era realmente a opinião que eu tinha ria de picos, talvegues, escarpas, ravinas,
formado. Um homem formidável. […] erosões, gargantas, ocos e declives.22
eu tinha reparado no modo do Diretor
de Higiene (Dr. Samuel) ter me recebido
de saída, chapéu na cabeça e de não ter
me estendido a mão para apertar. […] 18 NAVA, 1976, p. 196.
dei tudo à conta de sua distração de sábio.
Porque o Doutor Samuel era um sábio. 19 NAVA, 1985, pp. 31–2 (grifo meu).

[…] Daí o chapéu na cabeça, a pasta de- 20 Ibid., p. 199.


baixo do braço direito e a mão ocupada.19
21 Apud VASCONCELOS, 2017,
p. 103 (grifo meu).
Aos generosos retratos dedicados aos amigos,
opõem-se as ferozes caricaturas dos inimigos. 22 NAVA, 1976, p. 11.

298
Outras vezes, o traço caricatural era tomado clero católico de seduzir as “ovelhas desgar-
emprestado de telas consagradas, dentro radas”, para que retornassem ao rebanho
do já citado princípio estético da analogia. depois da escalada reformista, é a Hipérbole.
O memorialista lança mão desse recurso A matriz hiperbólica da personalidade de
ao falar de Guilherme Afonso de Carvalho, o Nava talvez esteja na família Pamplona, da
Pissilão, que fora seu professor de inglês. O avó paterna, assim mostrada pelo narrador:
apelido lhe viera por pronunciar o ipsilone “quase todos viviam na permanência de uma
como pissilão. No final da descrição carica- situação superlativa. Só se referiam à mais
tural do Pissilão, o narrador revela o nome leve brisa como um vendaval. Dois ou três
dos mestres que a ele, narrador, inspiraram: degraus eram sempre escadaria. Não havia
“Parecia uma bruxa de Goya, um Daumier dos chuvisco que não fosse dilúvio. Pé de tiririca
mais duros, ou o evadido de uma masquerade que não figurasse matagal”.25 São tantos
de William Hogarth” 23. os exemplos de construções hiperbólicas
Se na Antítese os elementos que se opõem nos caudalosos livros de Nava, que cultivava
mantêm entre si clara e confortável distância, parágrafos muito longos, blocos imensos de
marcando uma oposição externa, no Paradoxo, matéria textual, que se pode mesmo falar em
tais elementos contraditórios misturam-se uma poética do excesso.
numa relação interna de forte tensão. O Pa- A utopia da totalidade, a tentativa de tudo
radoxo é figura de estilo mais sofisticada que absorver e nada perder (“as ventas enor-
a Antítese e ele também garante presença na mes querendo aspirar ainda toda vida do
narrativa de Pedro Nava. Uma situação para- mundo” 26) vêm talvez dos diversos ramais
doxal nas Memórias está no fato de elas serem familiares (Nava, Pamplona, Jaguaribe, Pinto
tão vitalistas, tão carregadas de paixão exis- Coelho) que desaguaram no exemplar huma-
tencial e, ao mesmo tempo, fazerem a mais no que escreveu aquelas memórias. Simetri-
completa e profunda dissecação da morte. Tal- camente, o sujeito das Memórias se expressa
vez porque a vida, em sua mais alta voltagem, numa escrita devoradora e incorporadora de
esteja sempre arranhando a face da morte. muitas outras escritas, procedimento muito
Até a condição de narrador de Pedro bem traduzido na imagem da esponja, que já
Nava é paradoxal: a primeira pessoa verbal estudei em outra oportunidade: “A uns amei,
é usada nos quatro volumes iniciais; a partir a outros estimei, aborreci alguns, alguns mal
do quinto, a narrativa está com o alter ego, o conheci, mas todos! Ai! Todos me impregna-
Egon (nome composto por “Ego”, mais o “n” ram de suas vidas-águas como se eu fosse
de Nava). Nava e Egon, caracterizados como uma esponja” 27. “Livro. Revista. Jornal. Até
primos na narrativa, estão misturados até Catálogo de Telefone. Tudo era sagrado
no nome. O Egon carregava também dentro porque tudo era letra impressa. Foi assim
de si a condição dupla, num outro doloroso que eu li” 28. Se existe Niilismo, por que não se
paradoxo (porque condição interna e tensio- pode falar em Tudismo na visão de mundo e
nada) vivido nestas memórias: “O Dr. José na linguagem de Nava? Proclamo que Pedro
Egon Barros da Cunha quando sumia nos Nava é um tudista.
escuros da Praça do Mercado fazia-o com as O modo hiperbólico de escrever define-se
lépidas passadas do estudante Zegão ​—​ que pela maior extensão possível entre a coisa
ele queria matar dentro dele mas que tantas e sua representação, buscando o máximo
vezes renascia e revivia naquelas ruas de que
conhecia os segredos” 24. Note-se a ausên-
cia das vírgulas, revelando o atropelo das
emoções do Egon. Observe-se ainda que o 23 Ibid., p. 156.

nome completo do primo e alter ego, acresci- 24 NAVA, 1981, p. 383.


do do “Doutor”, também desaparece no texto,
ficando apenas o apelido de juventude, Zegão. 25 NAVA, 1974 (b), p. 45.

Na mesma linha, estão as várias referências à 26 NAVA, 1981, p. 57.


dupla Jekyll e Hyde do clássico O Médico e o
Monstro, de R. L. Stevenson. 27 NAVA, 1974 (a), p. 228
(grifos meus).
Outra figura de estilo definidora do Barro-
co e que tem sua origem na necessidade do 28 Ibid., p. 190 (grifos meus).

299
de expressividade. Essa vocação para tudo Genette escreve: “A atração do Barroco pelas

A SUBVERSÃO BARROCA E OUTRAS SUBVERSÕES NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA   ANTÔNIO SÉRGIO BUENO
transformar em espetáculo é atributo da metamorfoses traduz talvez menos um gosto
escrita barroca ou barroquizante. Para figurar pela mobilidade que uma espécie de fascina-
o gigantismo de sua paixão pela jovem ção por essa dialética da identidade e da alte-
Leopoldina, o narrador faz uma invocação ridade” 32. Para o narrador das Memórias, as
semelhante à dos poetas épicos quando iam cores, a luz e as ondas, por não se repetirem,
cantar matéria grandiosa: são os elementos que melhor representam as
metamorfoses do próprio tempo e os pintores
Pássaro ubíquo de prodigiosa enverga- impressionistas são especialistas na capta-
dura, caravela mágica navegadora do ção do aspecto mutante e fugaz da natureza.
espaço e do tempo, abre tuas asas enfuna Leia-se o seguinte trecho:
empanda tuas velas, duplica tuas penas e
teus panos, decuplica-os dupladecuplica- Há trinta e cinco anos olho esta paisa-
-os para que eu possa voar contigo, ir e gem sempre diferente cada ano, cada
vir, estar na mesma hora 1922, 1923, 1924 mês, cada estação, cada semana, cada
acompanhando o rastro e a cabeleira dia, cada manhã, sol a pino, tarde, noite,
loura de Leopoldina29. cada hora, cada minuto (não se perca
a gradação barroca). E serão sempre
A escrita parece entrar em transe nessa diferentes […] porque ondas e luz nunca
vertigem ubíqua de tempos superpostos e se repetem. Claude Monet fez dezenas de
no vocabulário ludicamente reduplicativo. O fachadas da Cathédrale de Rouen sempre
leitor é arrebatado pela vertiginosa espiral da a mesma e cada (uma) diferente da outra.
escalada verbal deste narrador. E tome enu- […] As mesmas “séries” eu crio com a
merações e amplificações para tentar atingir imaginação no museu imaginário da
o inatingível daquela paixão. minha janela.33
De certa feita, olhando um depósito de lixo,
uma “imundície”, o narrador das memórias E esta frase: “Mas tempo não para, as cores
comenta: “Vistos de longe, os contornos con- não param” 34.
tundentes dos objetos, das coisas, desapa- Um último e curioso exemplo impressiona-
recem e os olhos só veem cores […] ornando -me por ser uma metamorfose em sentido
e armando por conta própria lentas curvas contrário ao da natureza, ou seja, do fim para
elegantes ou súbitos riscos imprevisíveis: ne- o início, como um flashback cinematográfico:
nhuma forma, só o vapor das volutas das sete “(Na casa de Ennes de Souza) eu entro velho
tintas do arco-íris” 30. Não vou cometer outro e meio curvo, vou escurecendo os cabelos,
anacronismo que seria rotular de barroco o endireitando o talhe, diminuindo a barriga,
trecho que acabo de citar, mas é inegável o as banhas, remoçando, novamente correndo
eco dos signos desse estilo nessas linhas des- atrás dos bondes e da vida, acreditando em
critivas: o movimento das massas cromáticas, mim […], recuperando tempinfância” 35.
as curvas e as volutas, o caráter ornamental. Vou retomar, agora, um pequeno trecho
Vale a pena cotejar a citação com alguns de Chão de Ferro, que já se tornou antológico
trechos do ensaio “O ouro cai sobre o ferro”,
do livro Figuras de Gérard Genette, um dos
maiores estudiosos da escrita barroca: “uma
29 NAVA, 1985, p. 67.
descoberta do movimento, uma liberação
das estruturas, uma animação do espaço […] 30 NAVA, 1981, p. 17 (grifos meus).
fluidez, expansão, profusão: curvas e contra-
31 GENETTE, 1972, pp. 31–2
curvas, fachadas côncavas, […] eclosão de (grifos meus).
volutas […], brilho das tintas e das espirais
[…], espaço móvel e expressivo, […] interpre- 32 Ibid., p. 176.

tação vitalista, […] diferenças em contrastes, 33 NAVA, 1981, pp. 72–3


[…] metamorfose” 31. O crítico parece estar (parênteses meus).
falando da escrita de Pedro Nava.
34 Ibid., p. 74.
Outro signo comum a Pedro Nava e ao
Barroco é a metamorfose. O já citado Gérard 35 NAVA, 1976, p. 253.

300
porque todos os analistas da obra de Pedro obra-prima da arte colonial brasileira, além do
Nava se detiveram nele por algum tem- indefectível predomínio da curva, observe-se
po. Mas pretendo relê-lo na perspectiva a aclimatação das figuras da Virgem e dos an-
deste ensaio: jos marcadas por traços de uma mestiçagem
antes completamente ausente das represen-
Barroco ​—​ eis o termo. Porque como tações sagradas. O narrador não se esquece
obra de arte (e levando em conta que da Música Sacra Mineira, que revelou Marcos
Baudelaire avait bien dit que les odeurs, Coelho Neto, Lobo de Mesquita e Inácio
les couleurs et les sons se répondent…) a Parreiras Neves, entre outros. Essa atividade
Feijoada Completa Nacional está para o musical, para alguns críticos, era até superior
gosto como os redondos de São Francisco à que ocorria em Portugal.
de São João-del-Rey, a imobilidade
tumultuária dos profetas de Congonhas OUTRAS SUBVERSÕES
do Campo e a Ceia de Ataíde, no Caraça,
estão para os olhos. Ainda barroco e mais, Há outras subversões no código linguístico
orquestral e sinfônico, o rei dos pratos das Memórias, que pretendo apenas aflorar
brasileiros está para a boca e a língua aqui porque elas ajudam a compor o inconfun-
como, para o ouvido ​—​ as ondulações, os dível protocolo estilístico de Pedro Nava, feito
flamboaiantes, os deslumbramentos […] de identidade e alteridade e que José Maria
dos mestres mineiros de música sacra […]. Cançado chama de “grande caldeirão linguís-
Depois dela (a feijoada), como depois da tico, étnico, cultural e sensorial da sua prosa e
orgia, a carne é triste.36 de seu mundo” 37. Seleciono algumas dessas
surpresas subversivas do memorialista:
A feijoada, com o nome completo e a nobreza
das iniciais maiúsculas, recebe do narrador a. formação de “neologismos” decorrentes
o estatuto de obra de arte, o que justifica a de uma aglutinação inusitada de pala-
analogia com a Poesia, as Artes Plásticas e a vras como “delerereler” (de ler e reler38),
Música. Na colagem do verso de Baudelaire, o “nunseiquimaisuquê” (não sei que mais
narrador troca “les parfums” por “les odeurs”, o quê39), “faivocloques” (five o’clock40),
dessublimando e sensualizando o sentido do “borbolestrelas” (estrelas revoluteando no
olfato. Se a citação de Baudelaire inicia as céu como borboletas41) e o comentário
correspondências analógicas pelo campo da muito mais poético que filológico que o
Poesia, as palavras finais (“a carne é triste”) narrador faz da palavra “zondegas”, ouvi-
são de um verso de Mallarmé e assinalam o da de uma prostituta na zona boêmia de
fim do trecho também pela Poesia. Belo Horizonte, nos anos vinte do século
No texto citado, os exemplos artísticos XX: “palavra rebolante e movediça onde
escolhidos para as operações analógicas são há zona mesmo, ondas altas e nádegas,
da mais exuberante arte barroca das Minas nádegas, nádegas em vagas” 42.
Gerais. É nas igrejas de São Francisco de
Assis de Ouro Preto e São João del-Rey que b. um ponto de interrogação que dança
a Arquitetura Barroca ganha um arredonda- na frase; não está no início, como no
mento decorativo mais brasileiro, libertando-
-se do “partido quadrangular”. Chamo a
atenção para o paradoxo contido na expres- 36 NAVA, 1976, p. 21
são “imobilidade tumultuária”, referindo-se (parênteses meus).
aos dramáticos e solenes profetas em Con-
37 CANÇADO, 2003, p. 66.
gonhas do Campo, um dos pontos mais altos
da sublime criatividade do Aleijadinho. No 38 NAVA, 1976, p. 276.
painel A Ceia do Senhor do Colégio do Caraça,
39 NAVA, 1985, p. 59.
Ataíde ousa introduzir à direita dançarinos,
com seus leves movimentos, contrastando 40 NAVA, 1976, p. 277.
com a expressão dramática das demais
41 NAVA, 1985, p. 134.
personagens da Ceia. No forro da nave de
São Francisco de Assis de Ouro Preto, uma 42 NAVA, 1976, p. 294.

301
castelhano; nem no fim, como no portu- d. o gosto do palavrão: o narrador das

A SUBVERSÃO BARROCA E OUTRAS SUBVERSÕES NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA   ANTÔNIO SÉRGIO BUENO
guês; mas em qualquer ponto da travessia Memórias privilegia a linguagem do baixo
frasal: “Como chamar? essa capacidade corporal: “A palavra maldita também é
de beirar os impossíveis. Impossibilismo, tempero […]. Usá-la em momento ade-
talvez?” 43; “Você desce? hoje” 44; “Que fui? quado é fazer alta cozinha” 52; “Todo poder
fazer nas margens do Arrudas, assim tão ao palavrão!” 53; “(e eu vi que o palavrão
isolado de companhia” 45. era bom)” 54. Às vezes, o duplo sentido
de determinadas palavras reúne em si
c. estilhaços de versos espalhados pela os sentidos lúdico e pornográfico, como
narrativa em prosa: Em carta de 21 de fe- nestas duas frases maliciosas: ao falar da
vereiro de 1983, que me endereçou, Pedro prostituta Olímpia, o narrador acrescenta
Nava revela seu juízo sobre si próprio o aposto “essa grande belorizontal” 55 e,
enquanto poeta: lembrando o velório de outra prostituta, a
Odete Monedero, o narrador lembra-se “do
Conforme tivemos ocasião de conver- luto de uma zona inteira a meio-pau” 56.
sar, e digo isso com a maior franqueza, Abstenho-me de exibir trechos das
considero-me poeta de segunda ordem, Memórias eivados de belos e suculentos
ou mesmo terceira. Meu voo é das palavrões, não por falso pudor, mas por-
galinhas que, quando muito, pulam de que, retirados de seu contexto, tais pérolas
um terreiro para o outro, batendo umas perdem todo o travo de contundência e
asas de renúncia e impotência. Para ser eficácia estética.
completamente franco, tenho ternura
por dois poemas meus que têm sido e. escrita antropofágica: embora Pedro Nava
publicados: Mestre Aurélio entre as rosas tenha declarado, reiterada e honestamen-
e O defunto. te, a influência que sua produção artística
sofre de Mário de Andrade, sua escrita exi-
Pedro Nava é poeta bissexto porque priori- be numerosos exemplos de incorporação
zou outras áreas do conhecimento em sua de escritas alheias, num vasto protocolo
vida, mas os dois poemas mencionados de inclusão, bem à maneira antropofági-
por ele merecem figurar em qualquer boa ca, teorizada por Oswald de Andrade. Um
antologia da poesia brasileira. Nas Memó- excelente exemplo está nesta passagem:
rias, o narrador defende o toque de poesia
em qualquer texto literário: “É literatura Os colegas começaram a dormir. Alguns
quando escrita com a surpresa e o mistério afetavam um esboço comovedor de sorriso
da poesia […]. Literatura é tudo aquilo feito ao lábio; alguns, a expressão desanimada
com bom estilo, tudo que é bem escrito e dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras
que é tocado, ainda que de leve, pela mão entrecerradas, mostrando dentro a ternura
da poesia” 46. Por isso, ao invés de abrigar embaciada da morte. Mas com todos
versos em seu habitat natural, os poemas, os diabos! isto é Ateneu, não é meu, é
Nava espalha inumeráveis estilhaços de Chácara do Mata e nós estamos em meio
versos pelos seis volumes das suas Memó- século dos depois ou mais, estamos no
rias. Sirvam como amostra os seguintes: Campo de São Cristóvão…57
“covil de preço vil” 47, “Lantejoulava, late-
java” 48, “sua fachada fechada” 49, “urro do As palavras em itálico são mesmo de O
maior horror” 50 e “Sobraram sobrados” 51. Ateneu, mas aclimataram-se tão bem no

43 Ibid., p. 307. 48 Ibid., p. 57. 53 NAVA, 1974 (a), p. 304.

44 NAVA, 1985, p. 54. 49 Ibid., p. 60. 54 Ibid., p. 310.

45 Ibid., pp. 258–9. 50 NAVA, 1976, p. 56. 55 NAVA, 1985, p. 130 (grifo meu).

46 NAVA, 1976, pp. 412–413. 51 NAVA, 1981, p. 21. 56 NAVA, 1981, p. 386 (grifo meu).

47 NAVA, 1985, p. 55. 52 NAVA, 1985, p. 200. 57 NAVA, 1974 (a), p. 284.

302
texto de Pedro Nava que, talvez, nem o jovens Pedro Nava e Coutinho Cavalcânti. Por
leitor de Raul Pompeia se dê conta de sua isso, diz ele, a gente sai “praguejando” por aí.
apropriação pelo narrador das Memórias. Talvez o uso dos palavrões e uma grande
Afinidades eletivas. liberdade no manejo do código linguístico
Há um trecho de Beira-Mar no qual sejam alternativas de desforra diante das
o narrador encena o casal Nicoleta e muitas formas de opressão que esse espí-
Francis dançando um tango. Na descrição rito libertário de Nava sofreu. O Pedro de
dos movimentos dos dançarinos, pala- manifestações antibernardistas nas ruas de
vras do lunfardo, “o argô dos malandros, Belo Horizonte, nos anos vinte do século XX;
ladrões, meretrizes, rufiões, marginais e o Pedro que, junto do seu amigo, também
compadrons de la orilla de Buenos Aires”, incendiário, Carlos Drummond, colocou
diluem-se em cópula perfeita nas frases um “foguinho” no porão da casa da família
em português, porque “o tango é a dança Vivácqua, para ver as moças saírem correndo
que sugere mais de perto a movimentação de camisola, é o mesmo Pedro Nava, narrador
do coito” 58. das Memórias, que escreve: “Minas eterna,
A insaciável devoração de discursos Minas perena […] Não lembram? Hitler e seus
não poupa o texto bíblico, nem as pala- fornos crematórios. Adiantou? E nós, minei-
vras de preces sagradas, muitas vezes ros, somos os judeus do Brasil. Imperiais,
incorporados e adaptados sem nenhuma incorrigíveis, perenos” 61. O adjetivo “perene”
cerimônia, como nesta passagem em que ganha variações de gênero.
o narrador fala do indomável Conrado O Barroco não é o único tabuleiro em que
Niemeyer, opositor de todos os governos: se movem as peças do jogo verbal de Pedro
“e ele [Conrado] padeceu sob o poder de Nava. É de Affonso Ávila a expressão “rebelião
Pôncio Bernardes, desceu aos Infernos pelo jogo”, quando se refere ao estilo barro-
da Chefatura de Polícia e ao terceiro dia co, que não é o único, mas é o foco principal
foi atirado de ponta-cabeça ao lajedo da deste ensaio. Vou terminar citando, uma últi-
rua” 59. O mesmo ocorre quando o narra- ma vez, frases recortadas do belo ensaio de
dor fala das artimanhas usadas por certos Gérard Genette, “O ouro cai sobre o ferro”, do
pacientes para não pagar as consultas livro Figuras, que se aplicam perfeitamente
médicas, às vezes realizadas informal- ao texto das Memórias de Pedro Nava:
mente: “E o espírito do calote rola sobre a
face das águas” 60. Haveria aí [na escrita barroca de poetas
O narrador incorpora em sua escrita franceses do século XVII] uma espécie de
versos de Carlos Drummond de Andrade, poética estrutural, que corresponderia ao
de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira, desígnio latente do pensamento barroco:
de poetas portugueses, ingleses, france- dominar um universo desmesurada-
ses, enfim, de um mapa-múndi literário, mente ampliado […]. A poética barroca
um imenso coral de vozes, regidas pela evita habilmente reduzir as distâncias
consciência autoral de Pedro Nava. Tudo ou atenuar os contrastes […] ela prefere
metabolizado e transformado em subs- evidenciá-los para melhor reduzi-los,
tância íntima. servindo-se de uma dialética fulminan-
te. […] a antítese prepara as coisas com
UMA ÂNSIA DOÍDA DE LIBERDADE vistas a uma reconciliação factícia, o
oxímoron ou aliança de palavras. Como o
Pedro Nava diz que essa sua “linguagem forra” paradoxo […] vai além das discordâncias
talvez se deva ao excesso de repressão sofrido da alma, instituindo-as como oposições
por sua geração. Ele até conta, rindo, que a
mãe dele e a do médico e amigo Coutinho
Cavalcânti foram convidadas para uma reu-
58 NAVA, 1985, pp. 134–5.
nião da “Liga da Moralidade”, composta por
senhoras da sociedade mineira, que zelavam 59 NAVA, 1976, p. 185.
pela moral e os bons costumes. E, nessa
60 NAVA, 1981, p. 99.
reunião, entre outros assuntos, discutiu-se
(e condenou-se) o mau comportamento dos 61 NAVA, 1976, p. 311.

303
secretamente unidas por uma atração re-

A SUBVERSÃO BARROCA E OUTRAS SUBVERSÕES NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA   ANTÔNIO SÉRGIO BUENO
cíproca. Dividir para unir é a fórmula da
ordem barroca (disseminação e recolha).62

A escrita de Nava é esgalhada (dissemina-


ção), mas não se esquece do tronco (reco-
lha). O homem Pedro Nava, dilacerado entre
o desencanto com “a porca desta vida” e a
volúpia de viver, pôs fim às suas angústias
na solidão de um banco de praça numa noite
do bairro da Glória, mas sua vida dilemática
encontrou expressão e abrigo na glória das
figurações de uma luminosa escrita, que vai
durar enquanto durar a língua portuguesa.

62 GENETTE, 1972, pp. 39–40


(grifos e parênteses meus).

304
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Segunda edição. Rio de Janeiro: Record, 1966.
ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971.
CANÇADO, José Maria. Memórias videntes do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
GENETTE, Gérard. Figuras. São Paulo: Perspectiva, 1972.
NAVA, Pedro. Balão Cativo: Memórias 2. Segunda edição. Rio de Janeiro: José Olympio,
1974. (a)
———. Baú de Ossos. Quarta edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. (b)
———. Beira-Mar: Memórias 4. Terceira edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
———. Chão de Ferro: Memórias 3. Segunda edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
———. Galo das Trevas: Memórias 5. Segunda edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
VASCONCELLOS, Eliane; SANTOS, Demétrio dos. Descendo a Rua da Bahia. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.

305
NO CREO EN
BRUJAS, PERO
QUE LAS HAY,
LAS HAY:
A PROPÓSITO DA
VIDA E OBRA DE
MURILO RUBIÃO
AUDEMARO TARANTO GOULART

306
UMA OBRA CERCADA DE é uma edição limitada também no número de
SINGULARIDADES exemplares que parecem ter sido produzidos
para ofertas direcionadas a alguns insignes.
Nos seus estudos sobre os mistérios do Já o terceiro livro, Os dragões e outros contos,
universo, Stephen Hawking chama de vem com vinte contos que revelam a terceira
singularidades aos colapsos gravitacionais singularidade, pois nele apenas quatro contos
ocorridos no interior dos buracos negros, algo são inéditos, sendo o restante composto
semelhante ao que teria havido com o Big das quatro narrativas de A estrela vermelha
Bang no início do tempo.1 Segundo o cientis- e as outras doze de O ex-mágico. Os contos
ta, caracteriza-se como buraco negro a região desses três livros surpreendem pelo fato de
do espaço-tempo de onde nada pode escapar, terem sido muito admirados anos depois, em
uma vez que uma poderosa força gravitacio- reedições posteriores, o que não se deu na
nal impede, por exemplo, a saída até mesmo época de seu lançamento, o que fez com que
da luz que é, dentre todos, o elemento que Rubião ficasse praticamente inédito por cerca
viaja mais rápido. Assim, diz Hawking, “se de vinte anos.
a luz não pode sair [de um buraco negro], A quarta singularidade está no fato de
nada mais pode; tudo é arrastado de volta que a obra de Murilo publicada em livros
pelo campo gravitacional” 2. O buraco negro esteja inteiramente circunscrita ao terreno
é, pois, decorrência do colapso gravitacional do fantástico. A crítica tem destacado que o
que atinge uma estrela, evento que se origina fantástico muriliano é da gênese do que foi
do seu encolhimento, fazendo com que a elaborado por Franz Kafka. Mário de Andrade
estrela atinja uma situação crítica que produz indicou isso ao escritor mineiro, mas é curioso
uma singularidade que retém tudo no seu que Rubião sempre refutou que seus textos
interior. Para o astrofísico britânico, tal evento tenham se inspirado no escritor tcheco. De
pode ser sintetizado no princípio de que se acordo com suas palavras, quando veio a
trata de um acontecimento em que as leis da conhecer obras de Kafka já havia produzido
física simplesmente deixam de operar. inúmeros de seus contos. De todo modo, é
Os simples mortais ficamos literalmente significativa a semelhança entre os dois, pois
estupefatos diante de tais acontecimentos, ambos constroem um mundo trágico onde se
ainda que narrados na simplicidade que o movimentam seres humanos emparedados
livro de Hawking quer alcançar. Por outro lado, que prodigalizam uma existência marcada
também nos damos conta de que existem por um fatalismo que não lhes deixa alternati-
singularidades e singularidades, e de umas vas. Todas as saídas estão bloqueadas às per-
a outras podemos pensar em singularidades sonagens de Kafka e de Murilo, e o seu mundo
mais compreensíveis, mas, nem por isso, é bastante sombrio e angustiante.
menos estupefacientes, como as que ocor- A preferência pelo fantástico é uma
rem, por exemplo, na obra do escritor mineiro espécie de escoadouro que Murilo utiliza para
Murilo Rubião e que poderiam, perfeitamente, denunciar um mundo marcado por injustiças
ser chamadas, metaforicamente, de buracos e opressões. Talvez seja mesmo necessário
negros que imantaram a obra e também a que o escritor se aparelhe com sutis lentes
vida do escritor. de aumento para enxergar as reentrâncias e
A primeira dessas singularidades diz escaninhos de uma realidade que submete
respeito ao tempo. É incrível como Murilo o homem a toda espécie de calamidades,
Rubião, admirado e reconhecido como um angústias e misérias. Algo que o poeta
dos maiores escritores da literatura brasileira, colombiano Germán Pardo García enunciou
tenha esperado cerca de vinte anos para que com essas palavras: “He llegado a ese límite
sua obra saísse do limbo que a envolveu. As en que el mundo se agranda más y más y
datas são decisivas. O primeiro livro de Murilo, necesito de otros ojos inmensos para verle y
O ex-mágico, é de 1947; o segundo, A estrela de otro corazón para sentirlo”.
vermelha, é de 1953; e o terceiro, Os dragões
e outros contos, de 1965. Note-se que, nesses
primeiros livros, já aparece a segunda singu-
1 HAWKING, 2015.
laridade, uma vez que o inicial traz quinze con-
tos enquanto o segundo, com apenas quatro, 2 Ibid., p. 114.

307
A quinta singularidade é uma das mais co- “Botão-de-Rosa”, de O convidado, foram repu-

NO CREO EN BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY: A PROPÓSITO DA VIDA E OBRA DE MURILO RUBIÃO   AUDEMARO TARANTO GOULART
mentadas na obra de Murilo Rubião. Trata-se blicados apenas uma vez. Mais curioso ainda
de um curioso processo marcado numa con- é verificar que apenas dois contos, “Petúnia”
tínua republicação de contos. Basta atentar e “O lodo”, de O convidado, são os únicos que
para os números: dos noventa e três contos jamais foram republicados.
publicados em vida do autor, apenas trinta É instigante reler os contos mais republi-
e dois são originais (a esses acrescentou-se cados e os que mereceram menos atenção
“A diáspora”, um conto que esteve perdido do autor para tentar vislumbrar o que poderia
e que Murilo reescreveu, publicando-o no ter levado Murilo Rubião a essas escolhas.
Suplemento Literário do Minas Gerais e que Sobretudo é motivador reler os dois únicos
apareceu tempos depois, em livro de publica- contos que nunca mereceram uma republica-
ção póstuma). Note-se que esse processo de ção para tentar encontrar razões que levaram
republicação começou já na edição do tercei- o autor a descartá-los. É um bom exercício de
ro livro, pois, dos vinte contos, apenas quatro investigação, embora se saiba que escolhas
eram inéditos, sendo os restantes dezesseis são escolhas.
republicações dos livros anteriores. A sexta singularidade é que todos os
No ano de 1974, aparecem dois outros contos de Murilo Rubião são introduzidos por
livros de Murilo Rubião. O convidado, que uma epígrafe bíblica. Nos trinta e três contos
traz nove narrativas inéditas e O pirotécnico publicados em livros, tem-se a particularida-
Zacarias, com oito contos republicados dos de de apenas seis epígrafes serem do Novo
anteriores. Cabe observar que esse ano é fun- Testamento, sendo as restantes vinte e sete
damental no resgate do autor e de sua obra. do Velho Testamento. Nestas singularidades
Tudo se deveu ao fato de O pirotécnico Zaca- representadas pelas epígrafes, observa-se
rias ter sido indicado como uma das obras ainda outro detalhe surpreendente que é o
a serem lidas para o vestibular da UFMG. fato de o conto “Memórias do contabilista
Diante da enorme vitrine que isso representou, Pedro Inácio” conter duas epígrafes: uma
Murilo Rubião, a bem dizer, foi redescoberto. do profeta Jeremias e outra representada
O sucesso dos oito contos do livro estendeu- pela célebre frase “Virgília amou-me duran-
-se a um sem número de escolas do ensino te quinze meses e onze contos de réis”, do
fundamental e médio, ofuscando até mesmo romance Memórias póstumas de Brás Cubas,
o lançamento de O convidado, que era obra de Machado de Assis.
inédita do escritor. O certo é que, a partir daí, Singularidades e singularidades, como
a obra de Murilo passou a ser admirada, como se disse, há em todo lugar. Seja no céu ou na
o comprovam as repetidas edições que ela terra. Mas, no caso de Murilo Rubião, há ou-
passou a ter. tras singularidades, talvez até mais estelares.
Alguns aspectos desse processo de Mas deixo para focalizá-las mais à frente, em
republicações chamam a atenção, pois nele comentários mais oportunos e que mostram
colocam-se à mostra algumas preferências como a vida de Murilo Rubião está tão envolvi-
de Rubião. Nesse sentido, tem-se o “O ex- da no fantástico quanto seus contos.
-mágico da Taberna Minhota”, primeiro conto
do primeiro livro, como o mais republicado, A MAGIA DA LINGUAGEM NO
reaparecendo nada menos que em quatro PROCESSO CRIATIVO
outros livros. Em seguida, com três republica-
ções, vêm os contos “A cidade”, “Alfredo”, “O Em entrevistas, Murilo Rubião já esclareceu
homem do boné cinzento”, “Marina, a intan- como é a dinâmica de seu processo criativo:
gível” e “Os três nomes de Godofredo”, todos “Sempre aceitei a literatura como uma maldi-
do livro O ex-mágico, e “Os dragões” e “Teleco, ção. Poucos momentos de real satisfação ela
o coelhinho”, do segundo livro Os dragões e me deu. Somente quando estou criando uma
outros contos. história sinto prazer. Depois, é essa tremenda
Os demais contos foram republica- luta com a palavra, é revirar o texto, elaborar e
dos duas vezes, sendo que “O bom amigo reelaborar, ir para a frente, voltar. Rasgar” 3.
Batista”, “Memórias do contabilista Pedro
Inácio”, “Ofélia, meu cachimbo e o mar”, de
O ex-mágico, e “Epidólia”, “Aglaia”, “A fila”, e 3 RUBIÃO, 1974, p. 5.

308
Essa declaração pontua alguns aspectos especial satisfação ao ligar seu mundo ima-
importantes na produção dos textos de Murilo, ginado ao mundo real. É a mesma situação
como a sua preocupação com a clareza, o do escritor criativo que, ao criar um mundo de
obsessivo trabalho em busca do texto perfeito fantasia, faz questão de colocar nesse mundo
e a sua plena consciência de que a linguagem, uma significativa dose de emoção, consciente
além de não conseguir dar conta de enunciar de que existe uma efetiva separação entre o
inteiramente o mundo real, é pródiga em mundo criado e o mundo real. É importante
preparar armadilhas para quem escreve. Isso, lembrar a colocação de Freud de que é a
aliás, foi o que ouvi do escritor português linguagem que preservou essa relação entre
Fernando Namora quando disse que a lingua- o brincar infantil e a criação poética, pois o
gem é como uma serpente enrodilhada; só adulto ao parar de brincar não renuncia ao
depois do bote é que se tem a real dimensão prazer que experimentara nas brincadeiras da
de seu tamanho. infância. A consequência dessa permanência
Essa preocupação com o texto perfeito é do prazer na mente humana deve-se ao fato
que produz a contínua reelaboração dos con- de que o sujeito, simplesmente, faz uma subs-
tos murilianos nas suas várias republicações, tituição, que é o que acontece quando o escri-
mas há razões sub-reptícias, diria mesmo, tor deriva prazer da fantasia substitutiva que
razões do inconsciente que operam tais ele põe em cena quando produz o seu texto.
singularidades. Essas razões estão ligadas a Não se pode esquecer que essa dimensão
algo misterioso e também sedutor: a magia do prazer que envolve a criação do texto literá-
da linguagem. rio já havia sido focalizada por Aristóteles na
O princípio de magia que existe na lin- antiguidade clássica. Quando fala da imita-
guagem é melhor compreendido a partir de ção como elemento determinante da elabo-
algumas incursões teóricas que podem ser ração da poesia, Aristóteles destaca as duas
feitas. Cite-se, por exemplo, Norman Brown, causas que a geraram: o instinto da imitação
professor norte-americano da Universidade que já nasce com o homem e o prazer que o
Wesleyana, um filósofo social que se dedicou ser humano tem quando entra em contato
a significativos estudos da obra de Freud, com as coisas imitadas. Na Poética, lê-se que
o que o levou à publicação de Vida contra os homens “se deleitam perante as imagens:
morte, livro que traz vários ensaios sobre olhando-as, aprendem e discorrem sobre o
temas psicanalíticos. Ali, Brown afirma que que seja cada uma delas, e dirão, por exemplo,
a linguagem é constituída de sexualidade ‘este é tal’. Porque, se suceder que alguém
sublimada, destacando que “não se trata de não tenha visto o original, nenhum prazer
requinte psicanalítico, mas simples observa- lhe advirá da imagem, como imitada, mas
ção da infância, reconhecer que na história de tão-somente da execução, da cor ou qualquer
todo ser humano a linguagem origina-se na outra causa da mesma espécie” 6.
vida infantil das brincadeiras, do prazer e no Tudo isso tem muito a ver com o que
amor que a mãe centraliza” 4. Baseado nesses Murilo Rubião disse de seu processo cria-
princípios, ele enfatiza que, para as crianças, tivo quando afirmou que o real prazer que
aprender a falar é uma atividade que funcio- a literatura lhe oferece é aquele que ocorre
na como um brinquedo, daí dizer-se que a no momento em que está criando o texto.
base da linguagem infantil é, sobretudo, uma Neste momento, Rubião está, sem dúvida,
atividade diversória. Esses traços da infância deleitando-se com a fruição da magia da lin-
carregam uma dimensão mágica e atuam no guagem que lhe oferece a satisfação de estar
adulto com uma orientação bem definida, que construindo, fantasiando uma realidade que
é oferecer o puro ego-prazer. Para Norman se liga ao seu mundo.
Brown, essa articulação constitui “a busca de Esse fantasiar da realidade objetiva pode
um sentido erótico da realidade” 5. ser encontrado na obra muriliana de modo bem
Freud também passa por essas trilhas
quando aproxima, no seu “Escritores criativos
e devaneios”, a atividade do escritor às brinca- 4 BROWN, 1974, p. 91.
deiras infantis, mostrando que a criança,
5 Ibid., p. 95.
quando brinca, estabelece uma distinção níti-
da entre o brinquedo e a realidade, derivando 6 ARISTÓTELES, 1966, p. 71.

309
nítido, pois, o que se verifica nela é a presença O que surpreende ​—​ e que torna a língua

NO CREO EN BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY: A PROPÓSITO DA VIDA E OBRA DE MURILO RUBIÃO   AUDEMARO TARANTO GOULART
da invenção que se acomoda ainda mais apro- algo também mágico ​—​ é o fato de os seus
priadamente no fantasiar, pelo fato mesmo de elementos constitutivos marcarem-se por
estar contornada com um processo inventivo uma limitação, assim como a possibilidade
bastante forte, que é a fantasia trabalhada na de suas combinações também funcionarem
composição da narrativa do fantástico. num número finito de articulações. Qualquer
Citem-se, a título de exemplo, os contos estrutura nessas condições ofereceria uma
“Marina, a intangível” e “O edifício”. O primeiro possibilidade finita de desempenhos, como
é um texto de nítida feição metaliterária, em é o caso da combinação de certos jogos que
que se colocam as dificuldades e angústias lidam com um número limitado de elementos,
que um autor experimenta para realizar o que impõe que a articulação entre eles seja
sua composição. O fato de o conto ter sido também limitada, resultando, inevitavelmente,
publicado no primeiro livro de Murilo Rubião, num número limitado de desempenhos, ou
O Ex-mágico, já é uma amostra da acen- seja, chega-se a um momento em que não há
tuada preocupação que o escritor sempre mais possibilidade de articular suas partes
teve com a linguagem de seus textos, assim constituintes porque todas essas possibilida-
como a dimensão de literariedade que devia des foram realizadas. Mas a língua, magica-
expressar-se neles. mente, continua a crescer, a desenvolver-se,
Desse modo, pode-se dizer que a narrativa a criar novas e constantes possibilidades de
traz os necessários ingredientes para a sua abarcar a realidade, redimensionando-se
identificação literária e para sua inserção no como instrumento que, ao fim, constitui o
universo do fantástico. Assim, lá estão um fundamento e a existência mesma dos seres e
desesperado autor em busca de um texto objetos ocorrentes no real.
específico, toda a angustiante expectativa de Essa dimensão da língua é que possibilita
encontrar tal texto, assim como a presença de a variada gama de leituras que um texto pode
um homenzinho desengonçado que aparece oferecer, sobretudo o texto literário que lida
de repente e lhe traz a composição já pronta. com uma linguagem intencionalmente traba-
Tal personagem caracteriza-se, então, como lhada para explorar as virtualidades da língua.
a presença do próprio inconsciente do autor, No caso do conto “O edifício”, isso fica
no momento em que ele finalmente encontra claro quando se descobre nele uma mul-
o seu mais-dizer. A ocorrência do texto se dá tiplicidade de leituras. Num breve resumo,
num cenário absolutamente insólito, em que diga-se que ele trata do entusiasmo com que
os versos do poema se manifestam na forma o engenheiro João Gaspar entregou-se ao
de figuras humanas, estapafúrdias umas, trabalho para administrar a construção do
risíveis outras e sem identidades definidas maior arranha-céu de que se tinha notícia. Os
tantas outras. O certo é que, ao fim, o poema conselheiros da Fundação dona da obra con-
grandioso se completa, “feito de pétalas ras- fiaram a tarefa ao engenheiro, advertindo-o,
gadas e de sons estúpidos”, como convém a porém, de que ele devia precaver-se contra
uma obra elaborada no reino do fantástico. uma lenda que anunciava o fracasso da
Antes de focalizar, também brevemente, construção quando esta chegasse ao octin-
a narrativa de “O edifício”, seria conveniente gentésimo andar. Tudo correu bem durante
aprofundar um pouco mais a questão da ma- os trabalhos, mas, de fato, uma confusão co-
gia da linguagem, para mostrar como o conto memorativa do atingimento do andar amaldi-
reverbera inúmeras possibilidades de leitura, çoado provocou o afastamento do engenheiro
além daquela que, como o anterior, passa e a paralisação dos trabalhos.
pelas trilhas da metaliterariedade. Convencido pelos operários de que deveria
Pense-se, pois, numa definição opera- continuar as obras, o engenheiro reassume
cional de língua em que se destacam três suas funções, redobra as ações da constru-
aspectos: 1) a língua é constituída por um ção e o prédio ganha notável altura. Ocorre
número finito de elementos: os fonemas e os que, depois de muito trabalho, João Gaspar
morfemas; 2) tais elementos articulam-se resolve consultar os conselheiros a respeito
num número também finito de possibilidades; das finalidades do prédio. Quantos andares
3) surpreendentemente, a língua oferece um teria? Como seria habitado? Mas todos os
número infinito de desempenhos. conselheiros já haviam morrido. Desiludido,

310
o engenheiro volta ao prédio para paralisar a uma advertência que pode ser entrevista no
construção. Porém, todos os seus esforços discurso mítico, chamando a atenção para
são em vão, uma vez que os empregados os exageros que uma exaltação acrítica da
se recusam a acatar suas ordens. O conto ciência costuma pôr em circulação com muita
termina com João Gaspar percorrendo todos frequência. As consequências derivadas des-
os andares na sua luta para encerrar os se endeusamento da ciência revelam como
trabalhos. Jamais é obedecido pelos obreiros ela consegue fugir ao controle do homem e,
e o prédio, revelando absurda autonomia, na volúpia de sua caminhada, passa a desco-
continua a ganhar altura. nhecer resultados danosos que sua evolução
A exemplo de “Marina, a intangível”, incontrolável pode trazer para a humanidade,
também “O edifício” pode ser lido na pauta da como se vê nos preocupantes problemas com
metaliterariedade, pois focaliza aspectos que o ecossistema a que assistimos perplexos e
podem ser ligados à elaboração de uma obra angustiados.
literária, na medida em que o edifício metafo-
riza a construção de um texto. E tal trabalho UM MUNDO TRÁGICO
é cheio de dificuldades, de busca da palavra
mais adequada, de burilamento e de supera- Quando se falou do prazer que um escritor
ção de obstáculos. E da mesma maneira que deriva na composição de suas narrativas,
uma obra está sob inteiro domínio do autor verificou-se que tudo decorre dos extraordiná-
enquanto é produzida, chega um momento rios mecanismos que a língua e a linguagem
em que ganha vida própria, justamente no disponibilizam para que o trabalho criativo
instante em que é publicada e passa a fazer esteja sempre numa perspectiva sedutora
os percursos mais variados e independentes. que enlaça o autor. Murilo Rubião deixou isso
Esse fantasma de o autor não mais poder claro nas suas declarações, do mesmo modo
lidar com seu texto deve acompanhar muitos que considerou o trabalho de revisão, de
escritores. O caso emblemático é o de Clarice arranjos e de remontagens do texto um ver-
Lispector, que se recusava a abrir seus livros dadeiro sofrimento. E esse sofrimento, parece
depois de publicados. óbvio, deve-se justamente ao fato de que ali,
Nesse sentido, as republicações dos con- naquele segundo momento de composição, o
tos de Murilo Rubião parecem encenar uma texto não está exatamente sendo criado, mas
tentativa de atenuar o problema. É uma forma recriado. Mal comparando, seria possível dizer
de refazer para melhorar, alcançar um nível que existe entre esses dois momentos a mes-
que a publicação anterior não logrou atingir, ma distinção que se pode fazer entre trabalho
enfim, é aquela busca da perfeição sonhada. intelectual e trabalho manual. No primeiro,
E a magia da língua continua a ofertar usa-se a sensibilidade, a visão estética do
as piruetas que a linguagem literária pode mundo da arte e, no segundo, a força, a habi-
alcançar e, nesse sentido, têm-se outras lidade no manejo de instrumentos e objetos.
leituras do conto muriliano. É o caso da Ambos são importantes, mas guardam entre
perspectiva psicanalítica que se pode entrever si uma distância operativa bastante visível.
no texto, quando o edifício, o engenheiro e os Mas quero levantar uma outra hipótese
conselheiros engendram uma interessante para o encantamento que o trabalho de
história edípica, onde o desejo acaba supe- criação exerce sobre o autor. Trata-se de
rando as interdições e, a partir disso, levando um compromisso que todo artista assume,
o sujeito a assumir a precariedade de uma seja ele escritor, músico, teatrólogo, pintor,
movimentação psíquica que o enreda numa compositor e outros que passam por essa
trama psicótica. seara. Esse trabalho faz-se a partir de uma
E, finalmente, pode-se ler também o conto inquietude, traço que acompanha permanen-
numa pauta antropológica, destacando a im- temente o artista, sobretudo o escritor, que
portância da presença mítica, seja no rastro sempre tem uma visão crítica da realidade
do mito bíblico da Torre de Babel, seja na do bastante apurada. E, nesse aspecto, o que
mito enquanto uma organização que se co- normalmente se vê é um certo inconformismo
loca como forma de conhecimento, o que, na que o escritor manifesta quando confronta
narrativa, dá a ver um nítido confronto entre uma realidade marcada pelos desajustes e
mito e ciência. Neste ponto, faz-se presente pelo descompasso que existem num mundo

311
em que a solidariedade e a fraternidade são animal trágico porque a natureza humana

NO CREO EN BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY: A PROPÓSITO DA VIDA E OBRA DE MURILO RUBIÃO   AUDEMARO TARANTO GOULART
sempre muito invocadas, mas, de modo geral, obriga-o a um confronto permanente com a
inexistem na maioria das relações sociais. magnitude de forças que lhe são superiores e
Daí que o trabalho do escritor, na produção que insistem em mostrar-lhe a sua vulnerabi-
de seu texto, esteja intimamente associado lidade no universo.
à perspectiva do prazer da criação, também Nesse sentido, pode-se dizer que o ho-
pelo motivo de que, ao inventar a realidade mem é uma vítima da sua própria condição.
ocorrente na obra, ele como que está mani- Albin Lesky flagrou bem isso quando disse
festando um desejo também imantado de que “a contradição trágica pode situar-se
prazer, que é a expectativa de estar atuando no mundo dos deuses, e seus polos opostos
sobre a realidade do mundo, reinventando-a, podem chamar-se Deus e homem, ou pode
na esperança de tornar essa realidade tratar-se de adversários que se levantem um
menos trágica. contra o outro no próprio peito do homem” 8.
Essa transformação da realidade num Projetam-se, então, nesse ponto, duas espé-
texto foi bem explicitada por Wolfgang Iser cies de conflitos que podem ser entrevistos
no seu “Os atos de fingir ou o que é fictício no na caminhada do homem pelo mundo. De
texto ficcional”. Nestas reflexões, Iser mostra um lado, o conflito decorrente da separação
que a questão da presença da ficção num ontológica que mostra a oposição homem/
texto não se explica pela tradicional oposição finitude-contingência-imperfeição e, de outro,
entre ficção e realidade. Trabalhando com a o embate entre o homem e o mundo em que
tríade real, fictício e imaginário, o autor indica ele se insere.
que a realidade flagrada no texto ficcional Como decorrência desse conflito, surge
vai configurar o imaginário e é isto que cria o uma reação que dá ao homem a ilusão de que
chamado ato de fingir. É importante conside- ele pode escapar de sua própria vulnerabilida-
rar que o imaginário é uma particularidade na de. É aí que o ser humano se entrega a uma
vida das pessoas, alcançando-as, de modo luta absurda, alicerçada no desejo de destrui-
arbitrário, na forma de “fantasmas, projeções, ção do seu semelhante, tal como expresso no
sonhos diurnos e ideações sem um fim, pelas homo homini lupus, pensamento que Bacon
quais penetra diretamente em nossa experi- e Hobbes retomaram de Plauto para indicar
ência” 7. Mas no texto ficcional, o imaginário que o homem é o maior inimigo do homem.
ganha uma determinada configuração que é a Lembraria, a propósito, um artigo em que o
de mostrar-se como algo real. Desse modo, o escritor Nelson de Oliveira expõe a singular e
ato de fingir produz uma transgressão de limi- incompreensível constatação de um fracas-
tes entre o imaginário e o real. Neste aspecto, so atávico. Abordando o tema da utopia, o
a realidade vivencial, quando transformada ensaísta diz que “somos criaturas imperfeitas,
em signo pelo ato do escritor, vai estabelecer dominadas por impulsos irracionais. A sele-
uma relação muito peculiar com o imaginário. ção natural sempre promoveu a competição, a
Desse modo, quando a realidade vivencial se luta pela sobrevivência. A vida é um vale-tudo
torna signo de outra coisa, ocorre uma irrea- contínuo. No plano subjetivo, um dos méritos
lização dessa realidade; quando o imaginário da psicanálise foi revelar que o pensamento
perde seu caráter difuso (fantasmas, sonhos, racional, tão festejado principalmente na
ideações sem uma finalidade etc.) para mos- ciência, é apenas uma mosca tentando pilotar
trar-se como uma realidade determinada pelo um tigre selvagem” 9.
texto, ocorre uma realização do imaginário. A obra de Murilo Rubião transita nesse
Na obra de Murilo Rubião, a articulação plano do trágico e é isso que lhe confere uma
entre realidade vivencial e imaginário resulta surpreendente atemporalidade. Nela, não
na criação de narrativas que demonstram importam as datas das publicações porque
claramente o inconformismo do autor. Isso estará sempre se referindo a momentos
tem como resultado a presença de um mundo
fundamentalmente marcado pelo trágico.
Nesse mundo, situa-se o ser humano sempre 7 ISER, 1983, p. 386.
imprensado pelo desfecho de sua vida contra
8 LESKY, 1971, p. 25.
o qual são inúteis todos os esforços. É por
isso que se costuma dizer que o homem é um 9 OLIVEIRA, 2018, p. 23.

312
contemporâneos, porque o homem enquanto se trata de pessoas que se conheciam, mas
ser racional sempre assume posições que ficam nebulosas as razões que os fizeram ini-
só fazem repetir o que ele é e sempre foi. O migos. A sala onde se aprisionam os dois tem
exame dos textos murilianos revela essa as janelas blindadas assim como a porta, em
condição humana que é, inclusive, redimen- que a madeira foi substituída por aço. Des-
sionada pelo patético, que identifica o texto confiando de que fora feito prisioneiro e de
do fantástico, como anunciado na primeira que não havia como se salvar, Alexandre ouve
parte deste ensaio. de seu aprisionador: “Aqui ficaremos: um ano,
Assim, abra-se qualquer narrativa de dez, cem ou mil anos” 10. É o exemplo perfeito
Murilo Rubião e vai-se encontrar ali uma figu- do emparedado que mostra com acentuada
ração que se repetirá em todas as outras: o in- nitidez que incidira na hamartía, um equívoco
divíduo emparedado, submetido a princípios que lhe foi fatal.
que não consegue identificar e dos quais não A personagem Pererico, do conto “A fila”, é
consegue escapar. Muito impressiona, nessa alguém que vem do interior para entrevistar-
condição, o modo como as personagens se -se com o gerente de uma fábrica. Misterio-
mostram, uma vez que elas postam-se diante samente, sofre uma espécie de perseguição
do insólito e do ameaçador sem apresenta- do negro Damião que, desde o início, procura
rem rasgos de coragem e de inconformismo. vedar à personagem as chances de falar com
Pelo contrário, as personagens movimentam- o gerente. E tudo começou porque Pererico
-se como se um torpor se apoderasse delas, negou-se a revelar o assunto de sua conversa
levando-as à renúncia de qualquer gesto com o gerente, num diálogo áspero:
heroico libertador. Aí se cruzam uma medida
do fantástico ​—​ que é exibir personagens — Seu nome.
que não se surpreendem diante do absurdo, — Pererico.
aceitando-o tal como ele se apresenta ​—​ e — De quê?
a particularidade de Murilo Rubião de criar — Não interessa, ele não me conhece.
seres conformistas, resignados com o seu — Posso saber o assunto?
destino trágico. — É assunto de terceiros e devo guardar
Essa é a condição por excelência do trági- sigilo. Apenas posso assegurar-lhe que é
co muriliano, em que ressaltam a hamartía e coisa rápida, de minutos. Ademais tenho
a hýbris, duas características que chancelam urgência de regressar à minha terra.11
a tragicidade e também as personagens de
sua obra. A hamartía é considerada como fa- O trágico insinua-se duplamente no destino
lha ou erro que alcança o indivíduo. Esse erro da personagem. Sua arrogância, supondo-se
deve ser entendido no plano intelectual, como superior ao controlador da fila, e seu erro ao
erro de juízo. Não se trata, pois, de um ato julgar o negro foram-lhe fatais. Pererico ja-
mau ou uma fraqueza moral, mas o equívoco mais consegue ter acesso ao gerente, até que
do que é correto, o que exemplifica bem as um dia, ao chegar à fábrica, aonde deixara de
condições de limitação e de vulnerabilidade ir por um bom tempo, fica sabendo que o ge-
humanas. Já a hýbris configura-se como uma rente morrera e que ele fora o único a não ser
desmedida que se coloca contra a justiça e atendido. Ao indagar se muitos ficaram sem
contra a medida. O ser incide na hýbris quan- falar com ele, é fulminado com a resposta do
do sua teimosia o leva a exceder seus limites e seu dominador: “Somente você. Nas duas
a confrontar o nómos théios, a lei divina, que é últimas semanas, prevendo a proximidade da
sempre justa. morte, atendeu a todos os que apareceram”.
Num rápido percurso pela obra de Murilo Todos os contos de Murilo Rubião
Rubião, pode-se ver como tais mecanismos oferecem, abundantemente, ilustrações
se articulam com a vida e as perspectivas das da dimensão trágica que os envolve. Para
suas personagens. Tome-se, por exemplo, o finalizar essa abordagem, permito-me dois
conto “A armadilha”, em que a personagem
Alexandre Saldanha Ribeiro dirige-se miste-
riosamente ao interior de um prédio abando-
10 RUBIÃO, 1998, p. 157.
nado onde o espera um velho que o aguardava
há anos. O diálogo entre ambos revela que 11 Ibid., p. 196.

313
comentários mais detalhados de narrati- perspectiva amplamente negativa, na trágica

NO CREO EN BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY: A PROPÓSITO DA VIDA E OBRA DE MURILO RUBIÃO   AUDEMARO TARANTO GOULART
vas murilianas. situação de se vergar a situações imperiosas
O conto “Os dragões” foi publicado em 1965 que lhe determinam uma trajetória de sub-
e republicado em 1974, em 1982 e em 1990. missão a forças superiores que lhe atribuem
A narrativa trabalha com sutileza a presença contingências e o cercam de imperfeições.
da hamartía e da hýbris, com as quais põe em Para concluir este exame do trágico na
questão a celebrada dimensão da racionalida- obra muriliana, focalizo, também resumida-
de humana. Bastam algumas passagens para mente, a narrativa de “O ex-mágico da Ta-
mostrar tais aspectos. O narrador, professor de berna Minhota”. Este, que parece ser o conto
uma pequena cidade, conta como alguns dra- da preferência de Murilo Rubião, mostra a
gões chegaram à localidade. Isso já identifica fantástica história de um homem que faz as
a dimensão fantástica da narrativa que, logo mais surpreendentes mágicas, independente
nas primeiras linhas, desdenha o modo como de sua vontade em realizá-las. Desalentado
a racionalidade humana se coloca diante dos com a vida, vê-se como “uma pessoa que
animais: “Os primeiros dragões que aparece- não encontrava a menor explicação para sua
ram na cidade muito sofreram com o atraso presença no mundo” 13. Tudo começa quando
dos nossos costumes” 12. A população do lugar ele, estando na Taberna Minhota, inopina-
acolhe os dragões, mas o que esse convívio damente tira do bolso o dono do restaurante.
produz é a contaminação dos animais com mo- Isso leva o comerciante a contratá-lo para
léstias desconhecidas que levaram a maioria distrair os fregueses no estabelecimento, mas
deles à morte. A convivência com os moradores ele acaba demitido por oferecer aos especta-
provoca a degenerescência dos dragões, que dores do restaurante almoços gratuitos.
aprendem a malandragem, entregando-se à A continuação de sua trajetória decorre na
embriaguez em botequins, a furtos e a generali- plena efervescência de produção de mágicas.
zada vagabundagem. Por mais que o professor Num circo, onde fora contratado para mostrar
tentasse instruí-los, seu trabalho é frustrado. suas habilidades, extrai do chapéu, sem
O modo de ser dos racionais envolve-os de tal querer, coelhos, cobras e lagartos. E isso se
maneira que é impossível educá-los. repete em outros ambientes, como num café
É nesse ponto que se pode notar a pre- em que estava sentado e, distraidamente, ar-
sença da hamartía, o erro em que o professor ranca do bolso pombos, gaivotas, maritacas.
incorreu ao supor que ele e seus semelhan- A narrativa segue recheada de mágicas
tes poderiam fazer a inclusão dos dragões, surpreendentes que vão se sucedendo sem
educando-os como seres humanos. Isso era que a personagem as quisesse. Até um suicí-
impossível não apenas pelo fato de seres dio tentado acaba frustrado pelo insólito das
diferentes dificilmente poderem se integrar, mágicas: no momento de puxar o gatilho da
mas também como decorrência da outra arma, vê a máuser transformada num lápis.
dimensão do trágico, a hýbris, que deu ao pro- As esperanças de morrer ressurgem quando
fessor uma medida de grandeza inteiramente ouve alguém dizer “que ser funcionário pú-
incompatível com a sua mesquinha condição blico era suicidar-se aos poucos”. Emprega-
como um ser imperfeito, vulnerável e incapaz -se, então, numa secretaria de Estado. As
de atingir limites improváveis. mágicas encerram-se a partir deste momento,
A catástrofe final para a presunção hu- mas quando ele precisou fazer uma que lhe
mana no trato com os animais se dá quando impedisse a demissão do trabalho, viu a dura
João, o último dos dragões, ao atingir a maio- realidade. Ao argumentar com o chefe da
ridade, passa a vomitar fogo, o que fez dele seção que não poderia ser dispensado, pois,
uma espécie de artista popular e uma atração “tendo dez anos de casa, adquirira estabili-
inesperada. O encantamento com João era dade no cargo”, recebe como resposta que
de tal ordem que ele até mesmo pensou em “jamais poderia esperar de alguém, com um
candidatar-se a prefeito. Mas, pervertido ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar
como os demais, apaixona-se por uma trape-
zista de circo que visitava a cidade e foge com
ela, desaparecendo definitivamente.
12 Ibid., p. 137.
Como se pode ver, no confronto ser huma-
no versus animais, o homem é visto de uma 13 Ibid., p. 7.

314
que tinha dez” 14. Desse modo, o ex-mágico plausível. Afinal, as narrativas fundadas
reconhece sua impotência: “Tive de confessar na linha do fantástico exigem um apuro de
minha derrota. Confiara demais na faculda- leitura para que se possa compreender bem
de de fazer mágicas e ela fora anulada pela a sua significação. É neste contexto que o
burocracia” 15. leitor, às vezes aflito, volta-se para a epígra-
É bastante reconhecível a dimensão do fe na expectativa de que ela possa fornecer
trágico neste conto. Realmente, a persona- pistas para uma compreensão apropriada
gem vê-se de modo tão impositivo dominada do conto. Entretanto, ele logo se dá conta
por forças superiores que não consegue de que tal estratégia é inútil para iluminar o
realizar qualquer de seus desejos ou de texto. Muitas vezes, o leitor vai à Bíblia, na
suas intenções. A presença da hamartía suposição de que, procurando o versículo no
é, então, marcante. A falha que acometeu a contexto em que aparece, poderia esclarecer
personagem expressa-se no conflito que se melhor a ligação entre a epígrafe e o texto de
estabelece entre os deuses, donos do destino Murilo Rubião. Mas essa estratégia também
(a Moira), e o homem na sua contingência e é vã, porque uma espécie de divórcio entre
imperfeição. Na narrativa, esse domínio dos a epígrafe e a narrativa permanece desa-
seres superiores desenha-se na forma como fiando o leitor.
a personagem se transforma num joguete Suponho ter encontrado uma explicação
nas mãos dos que o têm sob domínio: no para essa questão, num trabalho que publi-
início, jamais conseguiu ver-se livre do poder quei sobre a obra de Rubião18. Ali, verifiquei
de fazer mágicas. No final, solitário e desam- que o trágico é o princípio agenciador da
parado, quando tenta recuperar o dom das interação epígrafe/texto. Quero dizer que
mágicas, nada consegue: “Sou visto muitas os elementos do trágico imantam-se de um
vezes procurando retirar com os dedos, do tom que apresenta uma voz anunciadora do
interior da roupa, qualquer coisa que ninguém que vai acontecer na narrativa. Assim, além
entende, por mais que atente a vista” 16. Daí de categorias do trágico já focalizadas — a
o seu lamento final, pois o agora ex-mágico hamartía e a hýbris — é possível reunir alguns
faz sua última e dura constatação. A ilusão de outros aspectos que espelham a tragicidade,
que algo saído de suas mãos subia aos ares tal como se pode ver, por exemplo, nos textos
“serve somente para aumentar o arrepen- da tragédia clássica. Esses aspectos são o
dimento de não ter criado todo um mundo reconhecimento, a peripécia e o páthos.
mágico” 17. Para ele evidencia-se que sua Retomando a caracterização de cada um
arrogância, centrada na capacidade prodigio- desses aspectos, relembro o que já se disse
sa das mágicas, só fez com que sua miserável da hýbris, vista como a desmedida que incita
condição se estampasse na realidade da os heróis a se rebelarem contra as ordens divi-
hýbris que o destrói. nas. Esse excesso gera um orgulho que leva o
Nesse universo, não pode passar des- herói a se esquecer de suas limitações, o que
percebida a crítica que Murilo Rubião faz. o conduz à nêmesis, ou seja, a indignação dos
Sendo um funcionário público, não se furtou deuses, de que resulta a morte ou a desgraça.
à oportunidade de denunciar, ironicamente, o Já a hamartía, como se disse, corresponde
que considera censurável nesse ambiente. E a um equívoco de julgamento que advém de
a crítica, acionada pelos interstícios da narra- uma falha ou ignorância, caracterizando o
tiva fantástica, ganha, sem dúvida, dimensão erro trágico.
ainda mais significativa. Os três outros elementos que são intro-
duzidos agora podem ser assim enunciados:
A LEITURA EPIGRÁFICA ANUNCIA
O TRÁGICO
14 Ibid, p. 12.
Como se disse anteriormente, uma das
15 Ibid., p. 13.
singularidades da obra de Murilo Rubião
está no fato de que todos os seus contos são 16 Ibid.
introduzidos por uma epígrafe bíblica. Essa,
17 Ibid.
aliás, é uma questão que sempre intrigou os
seus leitores e isso tinha uma razão bastante 18 GOULART, 1995.

315
o reconhecimento, também identificado como Sua confiança manifesta-se no fato de sequer

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revelação ou anagnórisis, foi caracterizado por demonstrar pressa e na tranquilidade que se
Aristóteles, na Poética, como “a passagem do podia perceber num rosto que denunciava
ignorar ao conhecer” 19, ou seja, é a desco- a segurança de uma resolução irrevogável.
berta de um fato oculto, cuja revelação altera, Desse modo, pode-se ler a epígrafe, conside-
substancialmente, o futuro das personagens. rando que o som confuso da trombeta é uma
A peripécia, segundo Aristóteles, “é a mu- advertência àqueles que, devido ao próprio
tação dos sucessos, no contrário” 20, provo- descomedimento, não se prepararam para a
cando uma reviravolta completa na vida das batalha que viria a seguir, tal como aconteceu
personagens. Já o páthos estrutura-se como com a personagem.
uma experiência angustiante que provoca o O terceiro conto que mostra a irrupção da
sofrimento, piedade, compaixão. hýbris é “A fila”. Lê-se na epígrafe: “E eles te
Para exemplificar a interação epígrafe/ instruirão, te falarão, e do seu coração tirarão
conto a partir da leitura das epígrafes, tomo palavras. (Jó, VII, 10)”. Ali aparece Pererico,
os seis contos que foram sinteticamente ana- que viera do interior para falar com o gerente
lisados. Assim, pode-se dizer que as epígrafes de uma fábrica, mas sem advertir que sua po-
de “O edifício”, “A armadilha” e “A fila” organi- sição era a de quem pede e não de quem or-
zam o princípio da hýbris. dena. Assim, todos os seus atos, sobretudo os
“O edifício” traz a seguinte epígrafe: que o ligam ao negro Damião, que controlava
“Chegará o dia em que os teus pardieiros o acesso dos que queriam falar com o gerente,
se transformarão em edifícios; naquele dia mostram uma altivez e uma arrogância imen-
ficarás fora da lei. (Miqueias, VII, 11)”. Pode- sas. Vê-se, pois, que a personagem transita
-se notar aí um tom de advertência, o que se além dos seus próprios limites. Desavisado do
conecta com a ideia da hýbris, na medida em que isso podia causar-lhe, acaba inteiramente
que a narrativa focaliza um engenheiro que submetido a um destino do qual não con-
se deixou tomar inteiramente pelo desco- segue escapar e aí os deuses não perdoam.
medimento, na certeza de que realizaria um Derrotado, sem conseguir realizar os planos
projeto que tinha como objetivo a construção que o trouxeram à cidade, só lhe resta como
do maior arranha-céu do mundo. Nessas conforto o retorno a sua origem, no interior.
condições, a epígrafe como que anuncia No conto “Marina, a intangível”, temos
o fracasso do empreendimento porque o uma epígrafe que denota um tom de per-
engenheiro, com toda arrogância, não se deu plexidade e esse estado caracteriza bem a
conta de suas limitações e de sua dimensão peripécia, já que esta é uma instância em que
humana, precária e falível. Por esse motivo é os acontecimentos se tornam no seu contrá-
que a epígrafe adverte: no dia em que os teus rio, surpreendendo quem sofre essa injunção.
pardieiros (casas rústicas, de pequeno valor) Veja-se, então, a epígrafe: “Quem é esta que
se transformassem em edifícios, você ficaria vai caminhando como a aurora quando se le-
fora da lei. Essa lei é a que os deuses contro- vanta, formosa como a lua, escolhida como o
lam, mas é também aquela lei da natureza sol, terrível como um exército bem ordenado?
que não admite transformações absurdas (Cântico dos Cânticos, VI, 9)”. O discurso da
como o engenheiro pretendia. epígrafe procede como se estabelecesse pa-
“A armadilha” é outra narrativa que traz ralelos entre elementos díspares: o nascer da
uma epígrafe vincada com a ideia de adver- aurora, a formosura da lua, a escolhida como
tência: “Porque se a trombeta der um som o sol e a ameaçadora marcha de um exército.
confuso, quem se preparará para a batalha? Tais disparidades anunciam uma conversão
(Primeira Epístola de São Paulo aos Corín- de situações diversas que alcançam os astros,
tios, XIV, 8)”. O anúncio da advertência e a fazendo-se notar na mudança da beleza dos
incursão na hýbris se dá quando Alexandre efeitos da lua e do sol em algo não menos
Saldanha se vê preso numa sala indevassável, que um terrível exército. Fica patente assim
da qual jamais poderia sair. A situação a que
foi levado revela seu destemor e arrogância,
uma vez que nem sequer se preocupou com
19 ARISTÓTELES, 1966, p. 80.
o que o esperava num prédio inteiramente
vazio, no momento em que entrava no edifício. 20 Ibid.

316
a perplexidade com que as mutações são pobre. Pior ainda é que o agora ex-mágico
percebidas. nem mesmo consegue se dar conta de onde
No nível da narrativa, temos um jornalista, teria cometido o irreparável erro trágico que
José Ambrósio, que não consegue compor um o levou àquela condição. Nessas condições,
simples texto objetivo. Tal esterilidade é su- só lhe resta o comovente “arrependimento de
perada quando, do nada, lhe aparece a figura não ter criado todo um mundo mágico”.
patética de um homenzinho que diz ter vindo A narrativa de “Os dragões”, traz uma epí-
para atender o seu pedido. Tal figura repre- grafe de Jó: “Fui irmão de dragões e compa-
senta bem a instância do inconsciente, onde nheiro de avestruzes. (Jó, XXX, 29)”. Como se
se situam as chamadas formas inarticuladas viu nas breves considerações que se fizeram
que são buscadas na criação literária. Curio- sobre o conto, um professor busca educar os
samente, José Ambrósio vai conseguir com- dragões que aparecem na cidade, na tentativa
por um texto, e este é nada mais, nada menos de acolhê-los na sociedade. A corrupção dos
que um poema representado por um estranho moradores, contudo, levou os animais a uma
cortejo em que sobreleva a figura de Marina, a degeneração que acaba destruindo-os. Desse
intangível. Assim, pode-se dizer que a peripé- modo, a epígrafe como que faz um anúncio
cia é a mudança que alcança José Ambrósio, das consequências do trágico que contorna
revelando-lhe uma visceral incapacidade de a pretendida interação entre humanos e ani-
criar algo que supere a feição de um texto mais, o que se pode caracterizar na sugestão
objetivo, direto, como o que produz notícias. de que é impossível ser irmão de dragões e
Isto porque o texto criativo só lhe apareceu companheiro de avestruzes.
na medida em que uma força transcendente Pode-se perceber na epígrafe um tom
o alcançou e o fez descer aos escaninhos do de ameaça, como que prevenindo a possi-
inconsciente. Mas essa mudança, na verdade, bilidade de experiências angustiantes que
serviu apenas para mostrar ao jornalista sua provocam o sofrimento. Isso nada mais é que
trágica incapacidade de lidar com a dimensão o páthos na sua natural condição de levar
artística que atua na criação do texto literário. às agruras que produzem o sentimento da
Em “O ex-mágico da Taberna Minhota”, piedade e da compaixão. Assim, a tragicidade
tem-se a epígrafe: “Inclina, Senhor, o teu desvia-se das personagens-símbolo do conto ​
ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e —​ os dragões ​—​ para incidir sobre toda uma
pobre (Salmos, LXXXV, 1)”, em que se carac- coletividade. Na verdade, o conto patrocina a
teriza a ideia de desolação, sentimento que concepção schopenhaueriana da ontologia
parece bem ajustado à instância da hamartía, algésica, pondo em xeque a própria condição
justamente porque a personagem, num pri- humana. Ser corrompido e sempre disposto
meiro momento, deixou-se extasiar com o êxi- a corromper, o homem tem como essência
to que suas mágicas produziam. Entretanto, ser possuído de desejos. Estabelece-se, aí,
com o crescimento da popularidade que o seu o princípio segundo o qual Schopenhauer
dom lhe trazia, o mágico viu-se mergulhado vislumbrou o mundo, associando-o à vontade.
numa vida insuportável, diante da impossibi- Entretanto, é da natureza da vontade não
lidade de conter uma irrefreável repetição de realizar-se ou satisfazer-se, uma vez que isso
mágicas que se sucediam independentemen- seria o seu fim, a morte, portanto, do dinamis-
te de sua vontade. Isso o leva ao desespero mo. Desse modo, o homem é um ser não rea-
de apelar para os mais diferentes recursos, lizado, insatisfeito, e, como tal, sofredor. A dor
visando pôr fim ao fenômeno. Tudo é em vão, e o sofrimento são, assim, o próprio quinhão
até que o mágico resolve apelar para sucum- da humanidade. A miséria, a insatisfação, a
bir numa repartição pública. É aí, sob o efeito angústia, eis a própria condição humana, de
da burocracia, que o seu dom vai desaparecer, que o páthos, tão presente na narrativa, é um
e, quando ele mais precisou dele, viu-se na exemplo perfeito.
dura realidade de não mais poder fazer má- Aí estão alguns exemplos em que se faz
gicas. A personagem entra, assim, na mais notar o modo como Murilo Rubião focaliza
completa desolação, resultado da hamartía o ser humano que transita pelas páginas de
que o envolveu por completo, como se pode suas narrativas. Nesse sentido, seria oportu-
ver no sofrido apelo ao Senhor para ouvi-lo, no lembrar uma de suas entrevistas quando,
porque ele é completamente desvalido e falando dos autores que o influenciaram,

317
destacou: “Mas o autor que realmente me vídeos com informações sobre a vida e a obra

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influenciou foi Machado de Assis, talvez meu do homenageado. Em se tratando de evento
único mestre” 21. Não espanta, pois, que as que procurava homenagear os vivos, não
personagens murilianas, a exemplo das de deixou de ser insólito o fato de Murilo Rubião
Machado, estejam tão marcadas pelo trágico, ter morrido quatro dias antes da inauguração
vivendo um destino assinalado pelo insuces- da mostra. Sem dúvida, mais um movimento
so e pelo sofrimento. Como em Machado de fantástico, desta vez não na obra, mas na
Assis, as personagens murilianas também vida-morte do nosso escritor.
são vítimas de um imobilismo que não lhes Um terceiro momento do projeto previa
permite reverter o trajeto de suas vidas, o que uma mesa-redonda que colocaria em exame a
decorre do pessimismo tão destacado na obra obra muriliana. Fui convidado para participar
de Machado de Assis e que também percorre da mesa, juntamente com os escritores Rui
a de Murilo Rubião. Mourão e Laís Corrêa de Araújo. O encontro,
marcado para realizar-se no auditório do
UM ESCRITOR CERCADO DE Conservatório de Música da UFMG, propiciou
SINGULARIDADES FANTÁSTICAS mais um episódio fantástico. Não se sabe se
devido à comoção da morte de Murilo Rubião
Anunciei, páginas atrás, ao tratar das singu- ou a problemas na divulgação do debate, o
laridades na obra de Murilo Rubião, que co- fato é que ao evento não compareceu uma
mentaria fatos surpreendentes que mostram pessoa sequer. Diante dessa insólita realida-
como a vida do escritor está tão envolvida no de, restou a nós, expositores da mesa, atra-
fantástico quanto seus contos. Até porque, vessar a avenida Afonso Pena e, mais uma
para um escritor que fez do realismo fantás- vez, percorrer os diversos setores da grande
tico seu projeto de criação literária, não é de exposição em homenagem a Murilo Rubião.
espantar que sua vida também esteja imersa Outro episódio que revela a presença do
num mundo em que o absurdo e o insólito se fantástico na vida de Murilo Rubião deu-se
fazem presentes. Com efeito, de uma forma indiretamente com o escritor e diretamente
ou de outra, Murilo Rubião protagonizou comigo. Desde os lançamentos de seus livros,
fatos e acontecimentos que parecem saídos a partir de 1974, tive a honra de receber todos
de seus contos. Permito-me, pois, recordar eles com atenciosas dedicatórias feitas por
alguns deles. Murilo. Em 2001, num curso de especializa-
Começo evocando o projeto “Memória ção que ministrava na PUC Minas, levei o livro
Viva”, criado pela professora Berenice A casa do girassol vermelho, para trabalhar
Menegale, então secretária municipal de um dos seus contos. O certo é que, dois me-
Cultura, em 1991. O objetivo do projeto era ses depois, fui analisar um outro conto do livro
homenagear artistas em vida, já que, normal- e não o localizei na minha biblioteca. Revirei
mente, figuras importantes são reverenciadas todas as estantes, na crença de que pudesse
depois de falecidas. O primeiro nome escolhi- tê-lo colocado num lugar errado, mas nada
do foi o de Murilo Rubião, num evento dividido encontrei. Supus, então, que o teria perdido
em três partes. Inicialmente, fez-se uma quando do curso na PUC, ou até mesmo que
exibição de vídeos produzidos sobre a obra o teria emprestado a algum aluno, que se es-
do escritor, no saguão do edifício Arcângelo quecera de devolvê-lo. Mas não me lembrava
Maletta, em cujos bares se faziam tradicio- de coisa alguma que pudesse orientar minha
nais encontros de intelectuais e artistas, com busca. Fiquei extremamente contrariado,
reconhecido destaque para a figura de Murilo afinal o livro tinha uma dedicatória de Murilo
Rubião. O escritor esteve presente na exibição. Rubião que eu guardava com todo cuidado.
Em seguida, deu-se, no Palácio das Artes, Enfim, desisti da procura, restando-me ape-
a abertura de notável exposição que teve a nas aprender a conviver com a perda.
curadoria do artista plástico e poeta Márcio Cerca de três meses depois, fui convida-
Sampaio. Ali se exibiu grande parte do acervo do, pela Biblioteca Pública do Estado, para
da biblioteca de Rubião, além de objetos de proferir palestra sobre Murilo Rubião, na
seu uso pessoal, de quadros de pintores fa-
mosos que também retratavam contos do au-
tor, enfim, um sem número de painéis, fotos e 21 RUBIÃO, 1974, p. 5.

318
abertura do Programa Comemorativo do Livro Segundo ela, as datas de nascimento e morte
e da Biblioteca. Dentre as pessoas que me de Murilo têm treze algarismos, formados
ouviam, estava o amigo e professor da UFMG com apenas três números. Veja-se: nasci-
Valmiki Vilela que, ao aposentar-se, doou para mento: 1/6/1916. Morte: 16/9/1991.
a Biblioteca o seu acervo de livros e foi viver Nesse autor e nessa obra mora o fantástico.
em Tiradentes, fruindo a beleza e a tranquili-
dade da cidade histórica. Ao fim da palestra,
saí acompanhando Walmiki numa visita ao
acervo que se expunha no saguão do auditó-
rio. Ao passarmos por uma das mostras, vi
exposto um exemplar de A casa do girassol
vermelho. Chamei Walmiki e lhe contei o
ocorrido com o meu livro, lamentando a perda
irreparável. Walmiki, então, me disse: se você
não se importar em ter o livro com uma outra
dedicatória, vou pedir à diretora que me devol-
va apenas este para que eu possa presenteá-
-lo. Logicamente, aceitei a oferta agradecido
e, duas semanas depois, recebi o livro de
Walmiki, onde se estampava a dedicatória:
“Ao Mike, com o abraço do seu velho amigo,
Murilo. Belo Horizonte, agosto de 78”.
Corri imediatamente à estante para guar-
dar a preciosidade. Ao abrir, aleatoriamente,
um espaço entre os livros de Murilo Rubião,
eis que, não mais que de repente, para minha
estupefação, puxei o meu A casa do girassol
vermelho, que lá estava quietinho. Coisas de
um livro fantástico, de um escritor fantástico.
Também trilhando os caminhos do
fantástico, certa vez, nossa colega, profes-
sora Márcia Morais, foi levar Murilo Rubião
à Universidade, onde ele falaria num evento
que lá se realizava. Mal o escritor entrara no
carro da professora, ouve-se, numa rádio
que estava ligada, o locutor anunciando uma
pequena entrevista que fora gravada com
Murilo Rubião. O próprio Murilo assustou-se
com a coincidência. O locutor, então, pede
ao escritor que sugerisse uma música para
ser tocada. Meio sem saber que escolha faria,
Murilo pede a música “Ramalhete”, de Tavito.
Entoou-se, então, a famosa “Rua Ramalhete”,
que Murilo admirava, sobretudo, por ser obra
de um grande amigo seu. Coincidências à
parte, é preciso lembrar a famosa frase de
origem galega que se mostra a quem quiser
saber: “Yo no creo en brujas, pero que las
hay, las hay”.
Para finalizar, não poderia deixar de fazer
o registro de um outro dado curioso e insólito
que cerca a vida de Murilo Rubião. Quem me
informou isso foi sua sobrinha, Sílvia Rubião,
administradora dos direitos da obra de seu tio.

319
REFERÊNCIAS

NO CREO EN BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY: A PROPÓSITO DA VIDA E OBRA DE MURILO RUBIÃO   AUDEMARO TARANTO GOULART
ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Editora Globo, 1966.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. v.1. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1992.
BROWN, Norman O. Vida contra morte. Trad. de Nathanael C. Caixeiro. Petrópolis:
Vozes, 1974.
FREUD, Sigmund. El creador literario y el fantaseo. In: Obras completas, v. IX.
Traducción directa del alemán de José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu
editores, 1993.
GOULART, Audemaro Taranto. O conto fantástico de Murilo Rubião. Belo Horizonte:
Editora Lê, 1995.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto literário. In: LIMA, Luiz
Costa (Seleção, introdução e revisão técnica). Teoria da literatura em suas fontes. v. 2,
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
LESKY, Albin. A tragédia grega. Trad. de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e
Alberto Guzik. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
OLIVEIRA, Nelson. Algum lugar em parte alguma. Cândido: Jornal da Biblioteca Pública
do Paraná. Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, n. 86, setembro de 2018.
RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. São Paulo: Ed. Ática, 1998.
———. O fantástico Murilo Rubião, entrevista a J. A. de Granville Ponce. In: O pirotécnico
Zacarias. 8. ed. São Paulo: Ática, 1974, p. 5.

320
321
O DEMÔNIO DA
TRISTEZA E
A VONTADE
DA ALEGRIA:
CONSIDERAÇÕES
SOBRE A
LITERATURA DE
ADÉLIA PRADO
CLAUDIA CAMPOS SOARES

322
A escritora Adélia Prado se apresentou possibilidades de combinatória para seus
publicamente, em 1976, por meio um livro elementos. É, acima de tudo, assumir
de poemas intitulado Bagagem. É bastante uma tarefa masculina e desempenhá-la
conhecida por seus estudiosos a história de a partir da singularidade própria e não
sua “iniciação” literária, mas, relembremo-la pela herança da sina do outro: a maldi-
aqui. Alguns anos antes, ela havia remetido ção do gauche.3
a Affonso Romano de Sant’Anna alguns po-
emas de sua lavra. O crítico e poeta, encon- Vale observar também que, no “anjo esbelto”
trando valor no material, remeteu-o a Carlos feminino, sugere-se uma ligação positiva com
Drummond de Andrade, autor muito impor- a divindade, que se confirmará ao longo da
tante para Adélia. Seu primeiro livro se abre leitura do livro. Na verdade, a voz que se ouve
com o poema “Com licença poética”, onde se nos poemas está ancorada numa grande
apresenta ao público por meio do diálogo com convicção religiosa. Em muitos poemas se
o “Poema de sete faces” do poeta de Itabira: afirma, inclusive, que a poesia provém de
Deus e surge de uma espécie de “iluminação”
Quando nasci um anjo esbelto, que o sujeito lírico eventualmente experimen-
desses que tocam trombeta, anunciou: ta diante de um objeto ou um acontecimento
vai carregar bandeira. aparentemente insignificante e banal do
Cargo muito pesado pra mulher, cotidiano. A origem transcendente dessa po-
esta espécie ainda envergonhada. esia é enunciada já na epígrafe de Bagagem:
Aceito os subterfúgios que me cabem, “Da imitação do ‘Cântico das criaturas’ de
Sem precisar mentir. São Francisco de Assis, a quem devo a graça
Não sou tão feia que não possa casar, deste livro.” E se explicita, por exemplo,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e em “Paixão”, do segundo livro de Adélia, O
ora sim, ora não, creio em parto sem dor. coração disparado: “De vez em quando Deus
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. me tira a poesia. / Olho pedra, vejo pedra
Inauguro linhagens, fundo reinos mesmo.” 4 Quando falta a iluminação, falta a
(dor não é amargura). poesia também.
Minha tristeza não tem pedigree, Voltando à relação com Drummond, a
já a minha vontade de alegria, oposição que a poeta iniciante estabelece
sua raiz vai ao meu mil avô. em relação ao poeta consagrado se esta-
Vai ser coxo na vida é maldição pra belece como diferenciação, mas dentro de
homem. uma mesma linhagem. É o que diz a própria
Mulher é desdobrável. Eu sou.1 Adélia Prado em entrevista a Fábio Lucas:
“Eu fazia uns poemas certinhos, rimadíssi-
Como se vê, as bases sobre as quais esta poé- mos. […] Aí, eu devia ter uns 18 anos, alguém
tica afirma se edificar são a ótica do feminino me deu Fala, amendoeira, do Drummond.
e a “vontade da alegria”, em oposição à ideia Eu disse: ‘puxa, que negócio bom’. De-
do “poeta gauche” (que aqui se abrasileira e pois li a poesia dele. Pensei: ‘Assim, desse
se transforma, por paronomásia, em “coxo”)
de Drummond.2
A ótica do feminino é bastante peculiar 1 PRADO, 1976, p. 19.
em Adélia Prado. Ela inclui a adesão a papeis
2 Afirmação que se repete em outros
tradicionalmente atribuídos à mulher: os “sub- poemas, como “Agora ó José”, que
terfúgios” de que fala o poema, como casar e também se constrói em diálogo
ter filhos. Mas implica também em “cumprir com o conhecido “E agora José?”
De Drummond. No poema de
uma sina” associada ao masculino: inaugu- Adélia, o sujeito lírico aconselha o
rar linhagens, fundar reinos. Dessa maneira, desalentado personagem poético
como afirma Laéria Fontenelle, a quem se dirige: “Resiste, ó José.
Deita, José, / dorme com tua
mulher, / gira a aldraba de ferro
Defrontar-se com o literário resulta, pesadíssima.” PRADO, 1976, p. 42.
para a voz feminina do poema, assumir
3 FONTENELLE, 2002, p. 87.
o fardo de transmitir o código desse
campo a seu modo, […] fundando outras 4 PRADO, 1978, p. 75.

323
jeito, eu dou conta de escrever’. E achei Solar

O DEMÔNIO DA TRISTEZA E A VONTADE DA ALEGRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITERATURA DE ADÉLIA PRADO   CLAUDIA CAMPOS SOARES
meu caminho.”5
O encontro com Drummond, portanto, Minha mãe cozinhava exatamente:
significou para a jovem escritora, segundo ela Arroz, feijão-roxinho, molho de
mesma, a descoberta de formas, linguagens batatinhas.
e temas que a instrumentalizaram para cons- Mas cantava.13
truir as suas próprias. De Drummond, Adélia
Prado herdou, por exemplo, “aquela vontade Foi justamente Drummond, o autor que levou
de incorporação do ‘trivial’, combinada com a então jovem poeta a encontrar seu “jeito”
uma manipulação afetiva da linguagem. A próprio de escrever, quem a apadrinhou
conquista, em suma, […] do que Guilhermino em sua passagem pela “Alfândega” (nome
César chamou com sagacidade de ‘grande do último poema de Bagagem, que trata,
mundo das pequenas coisas’.” 6 Na literatu- justamente, de uma passagem: a introdução
ra da autora mineira se dá a descoberta da da poeta catecúmena, título de um poema do
riqueza e do valor das coisas simples, como livro que trata do mesmo assunto, nos meios
também em Manuel Bandeira, outra fonte literários).14 Depois de conhecer, através de
assumida de Adélia Prado. Se “a poesia está Affonso Romano de Sant’Anna, os poemas
tanto nos amores quanto nos chinelos”,7 da escritora iniciante, Drummond sugeriu a
“qualquer coisa é a casa da poesia”.8 E, se Pedro Paulo de Sena Madureira, então editor
têm algo do “alumbramento” de Bandeira,9 os da Imago, que os publicasse. Drummond
textos de Adélia Prado têm também afini- escreve ainda uma crônica para o “Caderno
dades com a “epifania” que experimentam B” do Jornal do Brasil, intitulada “De Animais,
frequentemente as personagens de Clarice Santo e Gente”, em 9 de outubro de 1975,
Lispector,10 outra fonte em que a própria onde afirma: “Acho que ele [S. Francisco de
escritora mineira afirmou ter bebido.11 Assis] está no momento ditando em Divinó-
É o que se percebe claramente em poe- polis os mais belos poemas e prosas a Adélia
mas como os dois abaixo transcritos, onde a Prado.” 15 Pouco tempo depois, Bagagem, o
poesia resulta da revelação de uma plenitude primeiro livro da escritora, vem a público.
de sentido que não costuma ser percebida Apesar de seus primeiros livros terem sido
nas coisas do cotidiano: de poesia, a escritora de Divinópolis publicou
também vários livros em prosa.16 Na verdade,
Impressionista os dois gêneros são muito próximos na obra
da autora. Sua poesia tem muito de prosa. Os
Uma ocasião, poemas são muitas vezes narrativos, contam
meu pai pintou a casa toda histórias. Tal é o caso de “Impressionista” e
de alaranjado brilhante. “Solar”, acima transcritos. Também de “A
Por muito tempo moramos numa casa, Rosa Mística”, de O pelicano, onde se discorre
como ele mesmo dizia, sobre o modo como a iluminação se reali-
constantemente amanhecendo.12 za numa forma:

5 PRADO, 2000, p. 30. Coração disparado de “A maçã no Sim, é um flash, uma luz linda. É o
escuro” (1978, p. 60). Há, entretan- que Santa Tereza dizia: ‘Mais um
6 MERQUIOR, 1983, p. 166. to, uma grande diferença entre as minuto e eu morro’”. PRADO, 2000,
duas autoras. Na obra da escritora p. 25.
7 Do Itinerário de Pasárgada. mineira, a revelação retoma seu
BANDEIRA, 1977, p. 34. sentido religioso, uma vez que, 12 PRADO, 1979, p. 44.
para Adélia Prado, como já foi dito
8 Esse é um dos subtítulos de O aqui, a poesia é uma manifestação 13 PRADO, 1978, p. 29.
coração disparado, o segundo livro do divino (uma “captação de Deus”,
de Adélia Prado. 1977, p. 19. nas palavras de Fábio Lucas, em 14 Cf. SOARES, 1992, pp. 62–7. O
entrevista concedida pela autora, poema “A catecúmena” encontra-
9 Cf. ARRIGUCCI Jr., 1999. anteriormente citada). Além disso -se em PRADO, 1979, p. 52.
(ou por causa disso), se a epifania
10 Cf. Sá, Olga, 1979. em Clarice provoca susto e angús- 15 Apud MOREIRA, 2007, p. 60.
tia, na escritora mineira provoca A referência de Drummond a São
11 PRADO, 2000, p. 26. Adélia Prado, um sentimento de plenitude, de Francisco se justifica pela epígrafe
inclusive, intitula um poema de O absoluto. Afirma ela: “A captação? do livro, já aqui referida.

324
A primeira vez a visão de um objeto do mundo, culmina na
que tive a consciência de uma forma, realização de um poema, o primeiro que o eu
disse à minha mãe: lírico, poeta, escreveu.19
dona Armanda tem na cozinha dela uma Da mesma forma que muitos poemas de
cesta Adélia Prado se constroem como narrativas,
onde põe os tomates e as cebolas; sua prosa também não permite classificação
começando a inquietar-me pelo medo muito rígida. Tomemos por exemplo Cacos
do que era bonito desmanchar-se, para um vitral, publicado em 1980. O livro tem
até que um dia escrevi: um só narrador, um só ponto de vista e uma
“neste quarto meu pai morreu, só protagonista (feminina),20 o que o situaria
aqui deu corda ao relógio próximo ao universo do romance. Mas não se
e apoiou os cotovelos trata, propriamente, de um romance, pois aí
no que pensava ser uma janela não se dá o desenrolar de uma intriga, não
e eram os beirais da morte”. há uma linha de enredo claramente definida.
Entendi que as palavras Trata-se de uma colagem de fragmentos, de
daquele modo agrupadas “cacos”, para utilizar os termos do título do
dispensavam as coisas sobre as quais livro, que constroem a obra como um “vitral”.
versavam, Vejamos um deles:
meu próprio pai voltava, indestrutível.
Como se alguém pintasse Tina dissera “o Reino de Deus” com um
a cesta de dona Armanda modo de falar muito diferente das bo-
me dizendo em seguida: bagens de todo dia que eram a conversa
agora podes comer as frutas. dela, o tempo, a casa, a gripe, o menino
Havia uma ordem no mundo, da Nazaré que sentou o pé no nariz dela
de onde vinha? e tá doendo até hoje, até logo, vai não,
E por que contristava a alma tou com dor nas pernas, acho que é de
sendo ela própria alegria rins, se não escovar os dentes parece que
e diversa da luz do dia, tá faltando alguma coisa e um monte de
banhava-se em outra luz? besteira. Ela dissera: “o Reino de Deus”!
Era forçoso garantir o mundo, Glória sentiu grande reverência pela
da corrosão do tempo, o próprio tempo Tininha, pessoa de quem a vida inteira
burlar. tivera apenas dó. Entregou-lhe o agrião,
Então prossegui: “neste quarto meu pai ela disse: brigadinho, viu?21
morreu.
Podes fechar-te, ó noite, Como ocorre em todos os livros em prosa da
teu negrume não vela esta lembrança”. escritora mineira, a protagonista de Cacos
Foi o primeiro poema que escrevi.17 para um vitral é uma mulher de classe média,
interiorana, dona de casa e para quem a
Como discuti em outra ocasião, no poema poesia cumpre enorme função existencial.
narra-se um percurso em direção à poesia: Essa voz narrativa, entretanto, pode ser de
são apresentadas, em sequência temporal,18 primeira ou terceira pessoa. No livro em
as etapas de um processo que, iniciado com questão, é de terceira, mas o narrador é

16 Os livros de poemas de Adélia E, para crianças, Quando eu era 19 SOARES, 2010, pp. 117–8.
Prado são: Bagagem, 1975; O pequena (2006) e Carmela vai à
Coração Disparado, 1978; Terra escola (2011). 20 Como já indicava o primeiro poema
de Santa Cruz, 1981; O Pelica- de Bagagem, em toda a obra de
no, 1987; A Faca no Peito, 1988; 17 PRADO, 1987, pp. 18–9. Adélia Prado em que o gênero da
Oráculos de Maio, 1999; A Duração voz narrativa (ou poética) se explici-
do Dia, 2010; Miserere, 2013. Os 18 Notações temporais (“A primeira ta, ela é feminina.
livros em prosa: Solte os Cachorros, vez”, “até que”,… “Então”)
1979; Cacos para um Vitral, 1980; demarcam nitidamente as fases 21 PRADO, 1999, p. 12.
Os Componentes da Banda, 1987; sucessivas do percurso que levou à
O Homem da Mão Seca, 1990; realização do primeiro poema, que
Manuscritos de Filipa, 1994; Quero “A Rosa Mística” relata.
minha mãe, 2000; Filandras, 2018.

325
profundamente identificado à protagonista, Para acompanhar mais de perto o pro-

O DEMÔNIO DA TRISTEZA E A VONTADE DA ALEGRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITERATURA DE ADÉLIA PRADO   CLAUDIA CAMPOS SOARES
Glória, chegando muitas vezes a se confun- cesso de transformação do banal e rebaixado
dir com ela. É exatamente o que ocorre no em significativo, escolhemos falar um pouco
fragmento transcrito acima, onde se apre- mais detidamente sobre um único livro
senta, quase sem mediação, a percepção da (embora sem deixar de recorrer a outros):
personagem. Manuscritos de Felipa, quinto livro em prosa
Esses “cacos” relatam acontecimentos de Adélia Prado, publicado em 1999, junta-
aparentemente insignificantes, prosaicos, e mente com Oráculos de maio, sexto livro de
até banais, que, repentinamente, podem se poemas da autora, cuja produção vem se
revelar plenos de significado, como ocorre no mantendo equilibrada entre os dois gêneros.22
fragmento citado ​—​ bem como ocorrerá em Sua poesia, entretanto, é mais estudada que
toda a obra de Adélia Prado, poesia e prosa. sua prosa, então é bom chamar a atenção
Numa linguagem para lá de coloquial, acorde para este outro lado da obra da escritora de
à simplicidade do acontecimento e ao espaço Divinópolis.
provinciano que o poema recria ​—​ mas O título apresenta o livro como uma espé-
utilizando-se de recursos modernos, como, cie de escrita-rascunho. São reunidas, sob o
além da própria linguagem prosaica, o recor- nome de Manuscritos, as reflexões, sensações
te e a colagem das falas das personagens e sentimentos que Felipa, a protagonista-
sem aviso prévio nem indicação do falante —, -narradora, experimenta e anota assistemati-
ele trata da transformação que ocorre no camente e fora de qualquer hierarquia, a não
íntimo da protagonista quando ela consegue ser a que impõem as repercussões interiores
ver para além da banalidade e da repetição de das experiências. Felipa se apresenta, logo
lugares comuns da conversa de Tina. Apesar na primeira página, como uma “velha com
de ser uma mulher entediante, a certa altura medo”.23 A personagem é projeção quase
ela dissera “o Reino de Deus” de uma forma transparente de sua autora24 ​—​  mais uma vez,
que soara, para Glória, como diferente de como as demais protagonistas e o eu lírico de
suas habituais frases vazias. As palavras da Adélia Prado. Assim, elas vão, de livro a livro,
agora chamada afetivamente de “Tininha” acompanhando a fases da vida da mulher
se revelam, ao contrário, plenas de sentido. Adélia Luzia Prado de Freitas.25 Embora
“Reverência” é o que Glória diz ter sentido persistam concepções e questões fundamen-
naquele momento por aquela que, antes, só tais (o valor existencial da religião, da poesia,
julgava digna de pena. Vale dizer: a mulher a do cotidiano, dos sentimentos, a angústia
quem Glória olhava com certa superiorida- diante do caráter destrutivo do tempo…),
de, agora se revela, ao contrário, alguém em manifestam-se também, em cada livro, preo-
posição mais alta que a sua: Tininha passa cupações próprias a cada novo estágio da vida
a ser digna de reverência. Esta concepção ​ da mulher que os escreveu. Talvez se possa
—​ a da revelação de uma dimensão elevada dizer que cada nova publicação recoloca per-
no simples e no banal, até no desagradável ​ guntas fundamentais em novos contextos. Por
—​ leva a um novo aspecto, complementar em isto, boa parte do que aqui se diz a respeito
relação ao primeiro, do sentido do título do desse livro em prosa da escritora mineira vale
livro em que se encontra o fragmento, Cacos também, em maior ou menor medida (e ou
para um vitral: é também uma forma de dizer com pequenas variações), para o restante de
que do aparentemente insignificante ​—​ os sua obra. A peculiaridade destes Manuscritos
cacos ​—​ se pode construir o texto literário ​—​ a parece ser recolocar estas perguntas no mo-
arte do vitral. mento existencial em que “Tudo se cumpriu”.26

22 Cf. nota 16. 24 Como afirma Hohlfeldt, “as necessariamente a pessoa privada
narradoras, explícitas ou não, de Adélia Prado, mas com toda a
23 PRADO, 1999, p. 7. As citações que em primeira ou 3ª pessoas, […] certeza sua máscara e persona,
se seguem extraídas deste livro batizadas com nomes próprios espécie de alter ego (da autora)
virão indicadas no texto a partir que funcionam como disfarces […]”. HOHLFELDT. 2000, p. 74.
de agora apenas pelos números da própria escritora, na verdade
de página, entre parêntesis, da são o desdobramento de uma 25 Nome civil de Adélia, segundo
referida edição. só personagem, ainda que não HOHLFELDT, 2000, p. 69.

326
Certamente nos acomete a todas este burra. Será minha companhia que rouba a
arrepio, este fundo no plexo quando os Teodoro o que mais quero nele?” (70)
peitos secam, o útero dorme e uma fadiga Por isto, mesmo velha, mesmo com medo,
de que nem nos damos conta provoca os mesmo que saiba que “não existe chupeta
que nos rodeiam: você está com muito para anciãs” (7), Felipa não se furta ao reco-
má postura, o que é isto? Sabemos do que nhecimento de suas responsabilidades na
se trata: chegou o futuro. (84) construção do próprio destino:

Se nessas palavras Felipa generaliza o seu Nem mesmo Rebeca me tirou do prumo
drama pessoal (“certamente nos acomete a com o recorrente: ‘o que se sofre na in-
todas”), elas revelam também a especifici- fância deixa um buraco difícil de encher’.
dade do seu olhar: embora diga o contrário Difícil, não impossível. E quanto a enchê-
(“nem nos damos conta”), e justamente por -lo é tarefa do lesado. Parece injusto, mas
dizê-lo, sabemos que ela se dá conta da “fadi- não é, Jó aprendeu a duríssimo preço,
ga” dos velhos que “provoca” os mais jovens, mas arou seu terreno. Senão poderíamos,
lembrando-lhes o destino comum. Seu olhar a humanidade toda, parar com tudo e dar
tem a qualidade particular de empreender caça a Adão, porque atrás de um buraco
uma perscrutação minuciosa e corajosa da vem outro mais negro e maior, engolidor
experiência.27 Felipa é dotada de uma cons- de galáxias, minha filha. Tenho de perdoar
ciência crítica que se exercita na busca do minha mãe deste umbigo mal curado, é
autoconhecimento, mesmo que isto implique meu único e definitivo momento como ser
no enfrentamento de questões dolorosas: humano, minha chance de salvação. Quem
ela é a mulher que pede forças a Deus “para é minha mãe? A pobre que nunca me
enxergar no vale de minhas sombras meus beijou e escondia o enxovalzinho do Zé
pecados ocultos” (99). Como, talvez, o de não Lúcio como quem esconde adultério?
ter sido capaz de ajudar a amiga com doença Ilusão. Minha vera mãe é Deus, o que
terminal, Martina, e sua filha, exausta por só em Jesus prestou contas de seus atos.
cuidar sozinha da mãe.28 A disposição dos Uma mulher pode ser só irmã. (108–9 ​
acontecimentos no texto indica que considera —​ grifo da autora)
também pecado o fato de, depois de ter gas-
tado quantia significativa na compra de um Acompanhando-se a obra de Adélia Prado,
anel, um pingente e uma medalha de prata, observa-se que esse olhar perscrutador, dota-
ter passado “direto por um aleijado e uma anã, do de uma perspicácia da minúcia, é próprio
achando que cinco reais para cada um é de- a toda ela. As questões de Felipa parecem ser
mais.” (63) Felipa também tem a coragem de fundamentalmente as mesmas de Violeta (de
se questionar sobre as influências negativas Os componentes da banda), de Antônia (de
que possa ter exercido na vida de seu marido, O homem da mão seca) e das outras per-
a quem considera um homem dotado de qua- sonagens da autora, bem como do eu lírico
lidades muito especiais (não por acaso, ele se dos poemas, como foi dito. Nos Manuscritos
chama Teodoro, nome onde se reúnem a ideia ainda são empreendidas as mesmas bus-
de Deus, o verbo adorar, e o valor precioso do cas, porque elas jamais chegaram a termo
ouro): “Cismo que por minha causa ele não é satisfatório. Cada novo livro de Adélia Prado
um artista, que ocupo espaço demais.” (74) parece dizer desta inconclusividade; e, ao
Essa é uma reflexão que aparece várias vezes mesmo tempo, afirmar a necessidade íntima
no texto, como neste trecho: “Eu não sou de continuidade da busca. Trata-se de uma

26 “Envelheço para trás, ideia con- 27 Esse olhar crítico e essa coragem de passagem em vários capítulos
soladora, porque envelhecer para parecem ser condições impres- até parecer ganhar um tratamento
trás é voltar ao começo, ao lugar cindíveis para a iluminação se que traz à Glória alguma paz inte-
ageográfico onde se iria casar, manifestar. rior. Isso ocorre no capítulo XXIII,
ter filhos, uma casa com coisas p. 99, última vez em que aparece
minhas, quinquilharias de que po- 28 Trata-se este de um conflito que no livro: “Não amei Martina, quero
deria dispor como bem entendesse. ocupa várias páginas do livro. amá-la agora, sei que posso, pois
Tudo se cumpriu.” (83). Consome todo o capítulo XV (61–4) Vosso outro nome é Vida.”
e XVI (65–8). Depois disso, aparece

327
obra que parece se realizar numa espécie de o menciona, direta e ou indiretamente, e

O DEMÔNIO DA TRISTEZA E A VONTADE DA ALEGRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITERATURA DE ADÉLIA PRADO   CLAUDIA CAMPOS SOARES
dialética sem síntese, onde os conflitos são cita em vários momentos.29 Os sentidos que
provisoriamente harmonizados, mas jamais Felipa encontra estão no plano simbólico
superados definitivamente. Por isto, faz que lhe emprestam os afetos e a religião.
sempre sentido ​—​ trata-se de uma necessida- Como no trecho transcrito a seguir, em que
de íntima imperiosa ​—​ recolocar as mesmas ela descreve uma caminhada às margens da
questões fundamentais a cada novo livro que estrada de ferro que levava à antiga fazenda
se sucede no tempo; os livros são, na verdade, de sua família:
a expressão dessas perguntas que sempre
retornam (em maior ou menor intensidade, Antes que atravessasse a linha para o lado
ou com algumas variações) porque jamais do córrego percebi uma pata-de-vaca
respondidas concludentemente. E isso gera cheia de flores movimentando-se à minha
muita angústia: “A quem peço o perdão que aproximação, coalhada de passarinhos.
necessito como de ar? Também tenho pesa- Por bobo que seja, você se sente saudado.
delos e, ainda que os justifiquem as bulas dos […] Quase no pontilhão, contra “um céu
remédios, sei de onde eles nascem, conheço de puríssimo azul” […], um pé de biloscas,
a paternidade dos monstros. E como fazer sem folhas, só com as vagens secas e dois
agora o que não fiz?” (98) ou três passarinhos de peito branco, era
Mas há também os momentos de alívio, a alegria. […] Não duvido um instante,
de harmonia provisória, como o que é assim estava sendo consolada, o que acontecia
descrito: “O fato de ser segunda feira ajuda não era uma feliz conjunção de hormô-
e muito. A roda-gigante recomeça, o parque nios, nem derrame de endorfinas, estava
se movimenta, carrocinha de pipoca, chur- sendo consolada por existir, existir era
rasquinho, bilheteira que só pensa em sexo, consolador. Um apito me fez saltar dos
enfim, a delícia da vida servida em porções trilhos, esperava uma grande composição
fartas e generosas para todo o mundo.” (19) de vagões cheirando à graxa e veio só o
Como se vê por esse trecho (e outros já automóvel-de-linha, um brinquedo tudo,
citados e que ainda o serão), os Manuscritos um brinquedo eterno, o que via era como
apresentam um mundo que nada tem de se fosse através de uma janela, cortina
extraordinário, muito antes pelo contrário; que me fora aberta, tudo durava incons-
mas eles o fazem por meio da percepção de purcado. […] Faz tantos dias já e é desta
alguém que está inserido nele e para quem comida que eu estou vivendo. (145–6)
ele tem um sentido existencial profundo. Ele
é visto de dentro, através de um olhar capaz Cumpre notar que o trem de ferro é uma
de vislumbrá-lo em sua riqueza intrínseca e imagem muito poderosa na poesia de
despretensiosa, para além de sua aparência Adélia Prado. Há nisso muito de biográfico e
tosca e provinciana. Também porque esse sentimental. Sabe-se que o pai da escritora
ambiente, a cidade do interior, guarda lem- mineira era ferroviário, e acompanhar os
branças e referências poderosas: ela “ainda movimentos dos trens foi uma constante em
tem a imagem diante da qual rezaram meus sua vida. Daí que se diga em “Explicação de
avós e meus pais”. (117) poesia sem ninguém pedir”:
O olhar perscrutador de Felipa está em
busca permanente dos sentidos de sua Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
travessia, para utilizar uma palavra tão mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
significativa na obra de Guimarães Rosa, atravessou minha vida,
outra fonte assumida de Adélia Prado, que virou só sentimento.30

29 No poema “A invenção de um modo”, Em Terra de Santa Cruz, a primeira de Guimarães Rosa: “Coração da
de Bagagem, afirma a voz poética: seção, intitulada “Testamento”, gente ​—​ o escuro, escuros” (1988).
“Porque tudo que invento já foi dito / tem como epígrafe uma citação de Mais adiante neste texto, ainda será
nos dois livros que li: / as escrituras Guimarães Rosa: “… Os tristes e ale- citado um trecho de poema em
de Deus / as escrituras de João. / gres sofrimentos da gente…” (1981) que Adélia Prado transcreve uma
Tudo é Bíblias… / Tudo é Grande Já A faca no peito tem como epígra- frase do Grande sertão: veredas:
Sertão.” (PRADO, 1979, p. 34). fe do livro em geral outra citação “Diadorim é a minha neblina.”

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A vida na província só é miúda e comezinha essas narrativas), se misturam o sagrado e o
quando desprovida destes sentidos nem profano; ou melhor: aí, o profano também é
sempre vislumbrados. São eles os responsá- sagrado,31 e alegria mundana, transcendên-
veis pelo caldo grosso de beleza e de delícia cia religiosa e poesia nascem dos estímulos
que escorre do mundo e que os Manuscritos da realidade mais imediata e ordinária, como
se atribuem a missão de registrar. Missão tem sido discutido aqui. A ênfase na subjeti-
religiosa. Afirma Felipa a certa altura: vidade que se verifica nessa obra não implica
em exclusão do mundo exterior; implica, ao
Penetrai-me, ó Espírito Santo, agudíssima contrário, em busca de comunhão com ele.
língua, endireitai minha espinha, levantai Embora suas personagens jamais prescin-
meu queixo, falai-me com uma tal voz dam da perquirição interior, Adélia Prado é
que mais tenha dela certeza que de minha uma escritora da identificação com o mundo.
própria pele: Felipa, você é uma artista, Daí vêm as imagens fortemente sensoriais
sua roça é aqui, pega seu caderno, seu que caracterizam a linguagem de Felipa,
lápis de boa ponta e capina sem pregui- como, mais uma vez, no trecho transcrito que
ça, Felipa, de sol a sol, conta o que te trata de seu caminhar às margens da ferrovia.
conto, (135–6) Ela se sente pertencente a sua comunidade
e integrada ao mundo por sua concepção
Felipa, como se vê, acredita que contar o que religiosa da existência, ao contrário do poeta
recebe de Deus seja uma missão a ela atri- gauche-coxo. A escritora mineira recusa a
buída, justamente, por Ele. E deve cumpri-la maldição do poeta moderno isolado, rompido
escrevendo. No trecho transcrito acima, ela com o mundo. Como foi dito, é exatamente
roga ao Espírito Santo que nela penetre para em oposição a ele que a voz que se inaugura
que, através dela, fale a voz de Deus. com “Com licença poética” se define.32 E é
Como se vê, também nos Manuscritos, a esse caminho que Felipa, cujos Manuscritos
experiência do fazer poético resulta do es- se propõem a registrar e celebrar o mundo,
tabelecimento de uma linha de contato com continua buscando trilhar.
a divindade. Felipa assim se expressa, mais Buscando, exatamente, pois não é sempre
uma vez, a esse respeito: “Qualquer língua que o alcança ​—​ por isso precisa rogar ao
afinal é Deus falando, por isto nos escapa tan- Espírito Santo. Muitas vezes é possível vi-
to, só se mostra ao desfocado olhar da poesia, venciar a alegria e o júbilo, mas, nada do que
à sua densa névoa, quando tudo se suspende nos Manuscritos se experimenta é estático,
ao juízo e apenas cintila, em vapores d’água, permanente, e a tranquilidade íntima não tem
orvalho, vultos movendo-se em neblina.” (47) garantia de perdurar, como já foi demons-
No trecho em que registra a caminhada nas trado, em parte, neste texto. Eu e mundo não
margens da estrada de ferro, Felipa alcança estão totalmente harmonizados, ou não estão
a iluminação que lhe permite dar forma a o tempo todo; talvez nem mesmo a maior
uma visão epifânica do mundo, expressão do parte do tempo. Felipa vive, como ela mesma
êxtase da unidade reconquistada, ainda que diz já na primeira página do livro, “sujeita a
provisoriamente, entre ela e Deus, outra vez intermitentes espasmos de estresse psí-
religados (religião vem de religare) por meio quico”.33 Há momentos como esse: “minha
de uma experiência que é, simultaneamente, espinha se curvou, o sol no meio do céu e
religiosa e poética. tudo escuro, nunca existiu Mozart no mundo,
Nessas crônicas poéticas do cotidiano nem J. D. Salinger, nem ‘Diadorim é minha
da província (talvez se possa chamar assim neblina’, (78) momentos em que ‘ronda, com

30 PRADO, 1979, p. 56. 32 Apesar de ter também grandes medicamentos de tratamento


afinidades com ele, como também psiquiátrico. Um exemplo: “Melhorei,
31 Em A faca no peito, no poema já foi discutido aqui. é certo, mas ver entulho ainda me
“Artefato nipônico”, se diz: “A oprime, sensação de cansaço, roupa
borboleta pousada / ou é Deus / 33 Ela toma pílulas que causam suja fora do cesto, plástico grudado
ou é nada.” PRADO, 1988, p. 29. pesadelos, conforme citação no barro. Talvez precise ainda mais
anterior. E várias vezes se refere a umas duas caixas de comprimidos
essas pílulas, sugerindo que sejam de miligramas mais fortes.” (20)

329
desassossegado apetite, o demônio da triste- medo de levantar os olhos e o céu estrelado

O DEMÔNIO DA TRISTEZA E A VONTADE DA ALEGRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITERATURA DE ADÉLIA PRADO   CLAUDIA CAMPOS SOARES
za.’” (83) E isso também é frequente em toda não ser mais consolo.” (79)
a obra. De Bagagem… A preocupação com a morte é uma
constante nos livros de Adélia Prado, mas, na
Endecha maior parte dos casos, está direcionada para
fora do eu lírico. Em “A Rosa mística”, por
Embora a velha roseira insista neste agosto exemplo, já aqui comentado, o medo da morte
e confirmem o recomeço estas mulheres é o “medo do que era bonito desmanchar-se”,
grávidas, que motiva a produção do poema como forma
eu sofro de um cansaço, intermitente de “garantir o mundo da corrosão do tempo”.
como certas febres. O conflito nessa obra, portanto, decorre de
Me acontece lavar os cabelos e ir secá-los um excesso de identificação com a vida e com
ao sol, o mundo. Ao contrário do poeta gauche-coxo
desavisada. Ocorre até que eu cante. de Drummond, que recebeu de Itabira “esse
Mas pousa na canção a negra ave e eu alheamento do que na vida é porosidade e co-
desafino rouca, municação”,36 Adélia Prado está em perma-
em descompasso, uma perna mais curta, nente contato com o mundo, celebrando sua
a ausência ocupando todos os meus beleza, sua riqueza, o prazer que proporciona,
cômodos, como tem sido discutido aqui. Os Manuscri-
a lembrança endurecida no cristal tos não são uma exceção. Afirma Felipa: “Ó
de uma pedra na uretra.34 meu Deus, […] meu carisma é suplicar longa
vida, demora em ir para o céu, quando é tão
… a Miserere, último livro de poemas publica- bom cantar por aqui mesmo, entrecortado
do por Adélia Prado: como cantam os medrosos felizes”. (117) E
se o mundo é belo e prazeroso, mas fugaz,
Previsão do tempo apazigua eternizá-lo na forma perdurável da
arte, como vimos em “A Rosa Mística”. São
O espírito de rebelião também palavras de Felipa: “Quero o Deus
Também chamado tristeza e desânimo, que alegrou minha juventude, quero minha
Começou de novo sua ronda sinistra. juventude, esta é a verdade, à falta dela tenho
Sua treva e seu frio são de inferno. construído meu bezerro de ouro.” (143)
Por causa de maio, esperava dias felizes; Nos Manuscritos, entretanto, a questão
E ensolarado até agora só o recado de ganha dimensão um pouco diferente. Aí a
Albertina, preocupação com a morte não está deslocada
Escolhida para cantar Jesus é o pão do céu. para fora, mas para dentro do eu lírico, como
Pão sem manteiga, Albertina, no trecho acima citado, em que Felipa pede
É bom que o saiba. a Deus “longa vida”.37 A questão que nesse
É com ervas amargas que o comemos.35 livro fica mais premente é a da “velha com
medo”, tendo de encarar o inevitável, sem
Essa literatura, portanto, não é só celebra-
ção de Deus e sua criação, mas também
expressão de um descontentamento para 34 PRADO, 1979, p. 58.
com Ele. Nos Manuscritos isso parece ocorrer
35 PRADO, 2013, p. 27.
ainda com maior intensidade que nos livros
anteriores, uma vez que Felipa se sente uma 36 DRUMMOND, 1979, p. 121.
“velha com medo”, que sabe que “não existe
37 No episódio da agonia e falecimen-
chupeta para anciãs.” O medo (palavra que to de Martina, já aqui mencionado,
se repete no livro com enorme frequência), “o a morte é a da amiga, não a de
onipresente susto, o paralisante medo” (123), Felipa. Aí, entretanto, a questão
não é propriamente a morte, mas
o pavor, para o qual não existem paliativos, é o remorso de Felipa por não ter
o da morte: “… estou apavorada é de existir conseguido se oferecer para cuidar
num mundo onde a morte existe e corta meu da amiga que sofria e dar a ela o
conforto da sua amizade, o que
canto no meio, diminui meu hausto, me faz permitiria também algum descan-
respirar pior, com as costas encurvadas, com so à filha que cuidava de Martina.

330
que a juventude possa mais protegê-la da nenhum equilíbrio duradouro. Se o “demônio
proximidade da “indesejada das gentes”, para da tristeza” retorna, a “vontade da alegria”
utilizar as palavras do conhecido poema de também sempre volta a se fazer presente. É
Bandeira.38 É o que se percebe também no dos Manuscritos o seguinte trecho:
seguinte fragmento: “Meu Deus, […] o meu
único e insuportável medo é este! De morrer!” Nem especialmente alegre ou triste se
(9) Ou neste: “Que será de mim que ainda não precisa estar. Ocorre como os chamados
morri e tenho tanto medo?” (66). E em tantos movimentos autônomos do corpo. Sem
outros momentos no livro. aviso me apanho cantando: ‘…Atestam-
Contudo, no poema “A boa morte”, do livro -me os meus olhos rasos d’água a dor que
publicado no mesmo ano dos Manuscritos a tua ausência me causou…’ São preciosos
de Felipa, Oráculos de maio, no relato de um registros, farelos de ouro, retalho de pano
velório, a morte encontra tratamento bastante bom. Me levanto pra guardar, botar no
diferente. Aí ela volta a ser a dos outros, e não cofre, certamente em vão, têm nature-
pode com a força da vida: za de nuvem, passam. Você olha, acha
bonito, mas segurar não pode. Sofro por
Dona Dirce chorava a morte da filha causa do meu espírito de colecionador-
e com sincera dor o fazia, -arqueólogo. Quero pôr o bonito numa
estendendo a mão em direção ao café caixa com chave para abrir de vez em
que a irmã da morta servia. quando e olhar. Inda sonho muito com
Eu prestava atenção em Dona Dirce joias de desenho especioso. (53)
que escutava Alzirinha, admirada:
… o médico me proibiu expressamente… Resta uma última consideração sobre os
Alguém pôs a cara na porta procurando Manuscritos: enquanto a morte aumenta sua
Dona Dirce: participação, o erotismo, dimensão ante-
A senhora sabe a placa da caminhonete riormente muito importante da vida na obra
do Artur? de Adélia Prado, diminui a sua. Nos livros
Alzirinha não queria café, por motivo de da autora, ao contrário do que normalmente
regime, ocorre num terreno desta natureza, o erótico
era possível que Artur não fosse avisado não exclui o religioso, antes se configura em
a tempo. parte integrante dele, visão que se sustenta
A adolescente sardenta, visivelmente feliz, na crença de que tudo no homem é de origem
chorava a morte da mãe. divina e que, se se deve celebrar a criação,
Também quis chorar, deve-se celebrá-la integralmente, não há
por diversos outros motivos, áreas “incelebráveis”.40 Por isso os desejos
mas era impossível ali, do corpo também fazem parte do sagrado.
celebrava-se a vida Em Os componentes da banda, por exem-
sob as caras contritas, plo, outro livro em prosa de Adélia Prado, a
sob os véus da morte, personagem Violeta assim também acredita.
mais que sete. São dela estas palavras: “Deus não me criou
A cada desnudamento
ela própria cobria-se
visivelmente pra nos proteger:
38 A expressão encontra-se no poema
Ninguém quer café mais não? “Consoada”. BANDEIRA, 1977,
Modesta a morte, companheira, p. 307.
nos consolando, quase da família.
39 PRADO, 1999, pp. 27–8.
Lucinda virou santa.
Não contei a ninguém, 40 Diz-se em “Objeto de amor”: “De
pra não amolar a tristeza.39 tal ordem é e tão precioso / o que
devo dizer-lhes / que não posso
guardá-lo / sem a sensação de um
Como já foi dito aqui, nessa obra nada é roubo: / cu é lindo! / Fazei o que pu-
permanente. O espírito de Felipa mantém-se derdes com esta dádiva. / Quanto
a mim dou graças / pelo que agora
deslizando entre picos e abismos sem poder sei / e, mais que perdoo, eu amo.”
se estabilizar em nenhum ponto-fixo, em PRADO, 1987, p. 23.

331
até a cintura pro diabo fazer o resto. Ou tudodesapareceu totalmente, e ainda tem enorme

O DEMÔNIO DA TRISTEZA E A VONTADE DA ALEGRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITERATURA DE ADÉLIA PRADO   CLAUDIA CAMPOS SOARES
é bento ou nada é bento”.41 Nessa literatu- poder restaurador: “Teodoro […] me conhe-
ra, conforme observou Haquira Osakabe, “o ceu em dias gloriosos e sabe, por sabedoria
corpo é o lugar onde Deus se conjuga com o inata, que a verdadeira eu pode ser sacada
espírito humano” e, portanto, é abençoado, quando ele quer, imortal, imune às vicissitu-
como também o são os prazeres que dele pro- des do tempo.” (89)
vêm. Em virtude disso, o sexo, “acaba sendo Nesse quinto livro em prosa de Adélia
Prado acompanhamos a expressão de um
[…] a prática do corpo no exercício de Deus”.42
É isto mesmo que o poema “Entrevista”, sem número de sentimentos e sensações
de O coração disparado, enuncia: e atravessamos várias de suas nuances e
intensidades. Eles parecem ser, por sua vez,
Um homem do mundo me perguntou: desdobramentos dos que podem ser encon-
o que você pensa do sexo? trados em outros livros da autora, onde se
Uma das maravilhas da criação, eu ouve uma voz que se debate permanente-
respondi. mente entre o “afã” e a “insolvência”, como
Ele ficou atrapalhado, porque confunde se diz no poema “Pistas”, de Bagagem.45 Por
as coisas isso Felipa, como as outras mulheres que
e esperava que dissesse maldição falam nessa obra, garimpa farelos nas areias
só porque antes lhe confiara: o destino do do dia a dia e constrói com eles seu “bezerro
homem é a santidade. de ouro”; com “cacos” constrói o seu “vitral”.
A mulher que me perguntou cheia de ódio: Também como aquelas, Felipa às vezes se
você raspa lá? perguntou sorrindo, desprega de sua unidade com o mundo e este
achando que assim melhor me assassinava. despregar-se é doloroso e problemático, mas
Magníficos são o cálice e a vara que jamais é radical ou definitivo. Se os conflitos
contém, sempre retornam ​—​ como dizem todos os
peludo ou não. livros de Adélia Prado, e o fato de existirem
Santo, santo, santo é o amor porque vem e se sucederem dizendo-os o confirma ​—​ o
de Deus, miúdo cotidiano continua sempre prestes a
não porque uso luva ou navalha. surpreender quem é capaz de perfurá-lo em
Que pode contra ele o excremento? sondagem profunda; dele mais cedo ou mais
Mesmo a rosa, que pode a seu favor? tarde vai emergir o veio de significado existen-
Se ‘cobre a multidão dos pecados e é cial em salvística revelação:
benigno,
como a morte duro, como o inferno tenaz’, Faz muito tempo que eu estou no mundo,
descansa em teu amor, que bem estás.43 a colcha, os pés da cama, a porta fechada,
a bilha d’água, e… de repente é fácil, é só
Não é nada incomum na obra de Adélia Prado respirar, não há problema nenhum. (43)
essa mistura entre o sagrado e o profano.
Espírito e carne estão aí, na verdade, em
profunda comunhão. Afirma Felipa que “libi-
41 PRADO, 1985, p. 48.
dinosa é a alma.” (120) A esse respeito, vale
a pena retomar o trecho em que a narradora 42 OSAKABE, 1983, p. 230.
clama ao Espírito Santo que a auxilie em sua
43 PRADO, 1978, p. 88.
missão divina de escrever. Naquele trecho, ela
diz desejar que o Espírito Santo a “penetre” 44 Sobre essa erotização da experi-
com uma fálica “língua agudíssima” para que ência religiosa, cf. SOARES, 1992,
pp. 24–38.
a revelação e a escritura se deem.44
Nos Manuscritos, entretanto, os apelos do 45 O poema diz: “Não pode ser uma
sexo propriamente dito não ocupam o mesmo ilusão fantástica / o que nos faz
domingo após domingo / visitar
espaço que na obra anterior, conforme afirma os parentes, insistir/ que assim
a própria Felipa: “Minha libido está desapare- é melhor, que de fato um bom /
cendo, a cara nojenta do medo [da morte] dá emprego é meio caminho andado. /
Não pode ser verdade / que
o ar de sua graça.” (7) Aqui o medo da morte tanto afã escave na insolvência.”
parece superar a força de Eros. Mas ela não PRADO, 1979, p. 32.

332
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
ARRIGUCCI Jr., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983.
FONTENELLE, Laéria. A máscara e o véu: o discurso feminino e a escritura de Adélia
Prado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
HOHLFELDT, Antonio. A epifania da condição feminina. Cadernos de Literatura
Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 9, 2000, pp. 69–119.
MERQUIOR, José Guilherme. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
MOREIRA, Ubirajara Araújo. Adélia Prado: itinerário até Bagagem ​—​ esboço da escritora
quando jovem. UNILETRAS, 2007, pp. 59–75. <revistas2.uepg.br/index.php/
uniletras/article/view/173/172>. Acesso em 16/04/2019.
OSAKABE, Haquira. “A ronda do anticristo”. In: SCHWARZ, Roberto (Org.). Os pobres na
literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
PRADO, Adélia. A faca no peito. Rio de Janeiro, Rocco, 1988.
———. Bagagem. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
———. Cacos para um vitral. 2 Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
———. Manuscritos de Felipa. São Paulo: Siciliano, 1999.
———. Miserere. Rio de Janeiro: Record, 2013.
———. O coração disparado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
———. O pelicano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
———. Oráculos de maio. São Paulo, Siciliano, 1999.
———. Os componentes da banda. 3 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
———. Entrevista: Oráculo de março. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, n. 9, 2000, pp. 21–39.
SÁ, Olga. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis/Lorena, Vozes/FATEA, 1979.
SOARES, Claudia Campos. O afã e a insolvência: a marca do dilaceramento na poesia
de Adélia Prado. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1992.
(Dissertação de Mestrado).
———. As palavras de um certo modo agrupadas e a fugacidade das coisas do mundo:
aspectos da poesia de Adélia Prado. O eixo e a roda: v. 19, n. 1, 2010, pp. 117–33.

333
BERNARDO
GUIMARÃES:
UM PROJETO
DE NAÇÃO
DANIELA MAGALHÃES DA SILVEIRA

334
Havia várias formas de abordar a escravidão como alguém envolvido em um entrave jurí-
brasileira no século XIX. Bernardo Guimarães dico que o impedia de trabalhar. A despedida
escolheu adentrar esse campo por meio da dele do jornal apareceu no número de 19 de
construção de personagens femininas. Em dezembro de 1860, no qual, logo na primeira
1875, publicou o seu romance mais incisivo coluna, havia a transcrição de uma carta redi-
sobre essa temática: A escrava Isaura. Isaura, gida pelo próprio Bernardo, informando que
no entanto, não foi a sua primeira escrava deixaria a redação do jornal para assumir um
“quase” branca. Florinda fez parte do enredo cargo de magistratura no interior. Não deixava
de “Uma história de quilombolas”, conto que também de se dirigir aos seus colegas da im-
integra o livro Lendas e romances, lançado prensa, confessando que os dois últimos anos
sob os cuidados de B. L. Garnier, em 1871. tinham sido “um dos mais belos períodos da
Essas histórias apareceram num momento minha vida, do qual conservarei sempre a
fundamental para o encaminhamento da mais grata recordação” 1.
abolição da escravidão. Sob os auspícios da Assumir um cargo distante do burburinho
discussão, aprovação e implementação da da rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, não foi
lei de 28 de setembro de 1871, posteriormen- impeditivo, para que Bernardo Guimarães
te reconhecida como Lei do Ventre Livre. A desse prosseguimento à sua produção
situação do país constitui o cerne do debate literária. Ainda no A Actualidade, no dia
proposto pelo literato em seus escritos. 15 de janeiro de 1864, aparecia a poesia
intitulada “Sirius”, que vinha acompanhada
BERNARDO GUIMARÃES, de elogios da parte dos redatores da folha
COLABORADOR DE JORNAIS que chamavam a atenção dos leitores: “No
lugar competente publicamos uma mimo-
Bernardo Joaquim da Silva Guimarães sa poesia do nosso colaborador, o distinto
(1825–1884) nasceu e faleceu em Ouro Preto, poeta, Dr. Bernardo Guimarães. Sirius, a mais
com importantes passagens por São Paulo, brilhante das estrelas fixas, e a principal da
onde se bacharelou em Direito; e por Catalão, constelação canícula, deu assunto a essa po-
em Goiás, atuando como juiz municipal e de esia” 2. Com essa observação, naquele mesmo
órfãos. Como a maior parte dos homens de número, quem tivesse passado por cima sem
letras contemporâneos a ele, foi na Corte que perceber a autoria ou mesmo a própria poesia
publicou seus livros e atuou como colaborador seria tentado a virar a página e procurar
de alguns periódicos. Sua formação corres- pelo escrito.
ponde à mesma recebida por outros jovens Também na década de 1860, Bernardo
intelectuais com condição financeira razoá- Guimarães iria colaborar com o jornal mi-
vel. Compondo um grupo que acreditava no neiro Constitucional, sendo que, no dia 1º de
poder das letras para a transformação social. setembro de 1866, apareceu, no espaço de
Por isso, se fizeram presentes em diversos folhetim, O Ermitão de Muquem ou História
projetos jornalísticos, com a intenção de de- da fundação da romaria de N. S. da Abadia
bater propostas para o país, sem abrir mão da de Muquem na província de Goiás. Seguindo
escrita de romances e do propósito de educar os pressupostos dos romances publicados
seu público leitor. no rodapé dos jornais, a história se desdo-
Dentre os periódicos nos quais colaborou, brava em vários números, com um herói que
é possível destacar o jornal A Actualidade, parecia ter mais de uma vida. Assim, encon-
publicado entre janeiro de 1859 a abril de tramos primeiro Gonçalo, um jovem rapaz
1864. O jornal saía às quartas-feiras e aos que acabou se perdendo por ter recebido
sábados era vendido na rua da Alfandega, no uma “má educação”. A descrição do perso-
Rio de Janeiro, e possuía como redatores, ao nagem ganhava bastante espaço sob a pena
lado de Bernardo Guimarães, Flávio Farnese do literato mineiro, que se aproveitava para
e Lafayette Rodrigues. Aos 34 anos de idade,
Bernardo Guimarães aparecia naquelas
páginas ora como autor de alguma poesia, 1 A Actualidade. Rio de Janeiro.
ora sendo elogiado por seus colegas e ainda, 19 de dezembro de 1860.

depois de seu afastamento daquelas páginas 2 A Actualidade. Rio de Janeiro.


para assumir o cargo público em Catalão, 15 de janeiro de 1864.

335
tecer considerações a respeito da cultura amar a irmã, de modo que a forma como a de-

BERNARDO GUIMARÃES: UM PROJETO DE NAÇÃO   DANIELA MAGALHÃES DA SILVEIRA


africana. Na narrativa, Gonçalo trazia em seu fendia servia para que o mesmo fosse acusado
corpo dois amuletos de proteção. Um deles de “feiticeiro ou de ter pacto com o diabo” 6.
oferecido por um “preto velho” que consistia Além de correr o boato de que fosse “encan-
em um “amuleto temível e milagroso”, usado tado e mandingueiro mestre” 7. Para toda
para proteger contra “balas, raios, cobras e a violência praticada por Affonso, Bernardo
toda e qualquer espécie de perigos”. O outro Guimarães construiu uma justificativa:
era carregado no pescoço: “um rico relicário
de ouro com uma imagem de Nossa Senhora O índio Affonso não é um facínora, mas
da Abadia, que sua mãe lhe dera, em seu leito sim um homem de bem, cheio de belas
de morte, recomendando e aconselhando que qualidades e sentimentos generosos,
tivesse por aquela imagem particular devoção, porém vivendo quase no estado natural
e que invocasse sempre o seu patrocínio em no seio das florestas, em luta a um tempo
todos os trabalhos e perigos da vida” 3. Depois com os bandidos e facínoras que o ro-
de se envolver numa briga por causa de uma deiam, com a natureza selvática e as feras
“moreninha de dezessete a dezoito anos”, do sertão, e com a polícia que o persegue.
Gonçalo desaparece e retorna sob a pele É essa vida rude e agitada que lhe tem
de um índio. desenvolvido a um ponto extraordinário
Entre os Xavantes, o personagem passa a astúcia, a valentia e a robustez próprias
a chamar-se Itajiba e logo desperta o amor de sua natureza8.
da índia Guaraciaba. A jovem indígena era
prometida em casamento a Inimá, com quem Ao fazer esse movimento, Bernardo
o agora travestido de herói irá duelar. A nova Guimarães indicava que uma possível solução
história de Gonçalo guarda lances espetacu- para a violência encontrada em terras afas-
lares tão ao gosto dos romances publicados tadas da Corte era a educação. A publicação
nos folhetins por aqueles tempos. Bernardo desse enredo numa folha reconhecidamente
Guimarães seguia fórmula de sucesso, liberal, questionadora da escravidão e de
inserindo características locais. Ou seja, outras mazelas que rondavam o país parece
reproduzia, por meio de seus personagens bastante significativa. Indica também o quan-
e de suas crenças, a mistura das três raças to o afastamento geográfico do literato do Rio
formadoras do Brasil, segundo os intelectuais de Janeiro não o retirou do mundo das letras.
seus contemporâneos. Para terminar, louvava Ao contrário, sua experiência em Catalão,
o catolicismo, mostrando que a redenção passou a ser utilizada em suas histórias.
do protagonista só foi possível depois que o Em O Índio Affonso, a natureza e, especial-
mesmo retirou de seu corpo todos os amule- mente, o rio Paranaíba não apenas servem
tos africanos e indígenas, deixando apenas a de cenário para a trama, como possuem
medalha de Nossa Senhora da Abadia. participação ativa no desenrolar dos fatos. O
Outra vez no espaço de folhetim, mas ago- rio aparece como o principal aliado de Affonso
ra no jornal A Reforma, entre 23 e 31 de janeiro em suas fugas.
de 1872, os leitores puderam acompanhar as
aventuras de O Índio Affonso. A narrativa con-
sistia na descrição das várias fugas de Affonso, 3 GUIMARÃES, Bernardo. O Ermitão
depois que o caboclo provocou a morte de de Muquém: História da fundação
da Romaria de Muquém na pro-
Toruna. Tal violência justificava-se, porque víncia de Goiás. São Paulo: Edição
Toruna havia tentado violentar Caluta, irmã Saraiva, 1967. p. 15.
de Affonso. Para tanto, Bernardo Guimarães
4 Idem, O Índio Affonso. Rio de
recorria a metáforas e comparações, apro- Janeiro: Livraria Garnier, 1873.
ximando seu personagem de um animal. p. 22.
Affonso possuía um corpo “enorme e esguio”
5 Ibid., p. 51.
e a “flexibilidade da serpente e a robustez da
anta” 4. Enquanto torturava Toruna, o rapaz 6 Ibid., p. 29.
“debatia-se, e esperneava embalde debaixo
7 Ibid., p. 107.
das hercúleas patas do truculento caboclo” 5.
As feições animalescas não o impediram de 8 Ibid., p. 118.

336
A vivência no interior não foi traduzida revista. Entre fevereiro e abril de 1872, as
apenas quando o literato pretendia descrever leitoras puderam acompanhar as “Lendas do
a natureza. Sua atuação num cargo públi- sertão – O pão de ouro”. Ali narrava as aven-
co também o auxiliou na composição das turas de desbravadores paulistas em busca
histórias contadas nos periódicos. Nesse de ouro e pedras preciosas. Em comum com
sentido, Bernardo Guimarães usou o enredo as outras histórias publicadas nos jornais O
de O Índio Affonso para fazer algumas críticas Constitucional e A Reforma, havia a natureza
à polícia que atuava no interior do Brasil. Adje- exuberante do interior do Brasil, conhecida
tivada de “ineficaz” e “impotente” 9, passava o por ele depois que se mudou para a província
tempo todo servindo de chacota para Affonso. de Goiás. Uma natureza que mais parecia ser
Por mais que o personagem fosse auxiliado uma “terra de feitiçarias e encantamentos” 12.
pelas forças da natureza, conforme parecia Aliás, essa parecia ser a missão de Bernardo
acreditar o homem de letras, suas fugas eram Guimarães nas páginas do Jornal das
facilitadas por causa da falta de habilidade Famílias: narrar histórias sobre o interior do
daqueles que o perseguiam. país, sua fauna e flora.
Essa perseguição foi aquilo que serviu Quando participava do grupo de cola-
para arrastar o folhetim por vários números boradores de algum periódico, Bernardo
no jornal. Seguia com isso, talvez, estratégia Guimarães assumia posição semelhante
de consagrados folhetinistas, com o intuito de àquela de outros homens de letras seus con-
prender o público leitor que o acompanhava. temporâneos. Ou seja, garantia um número
Em O Índio Affonso, Bernardo Guimarães maior de leitores e de leitoras conquistado
mostrava preocupação, especialmente, para devido à tiragem das folhas, construía um
com as leitoras. Dirigia-se às “amáveis leito- posicionamento político e ainda acumulava
ras” e procurava a maneira mais adequada mais uma renda financeira. Algumas dessas
para narrar a violência sofrida por Toruna: mesmas histórias, depois de publicadas sob
o formato de folhetim, ganharam o formato
Confesso que não sei que expressões hei do livro. Ao fazer esse movimento refletia,
de empregar para contar aos leitores, e por exemplo, sobre a veracidade das suas
especialmente às delicadas e sensíveis histórias ​—​ questão que parecia o preocupar
leitoras, estas cenas de canibalismo e de bastante. Nesse sentido, encontramos na ver-
horror, e vejo-me em tais embaraços, que são em livro de O Índio Affonso uma espécie
já me arrependo de ter encetado a histó- de advertência ao leitor, comentando sobre a
ria de tão sinistro e revoltante drama.10 existência real de seu protagonista.
Essa atividade exercida ao lado de im-
Embora A Reforma devesse ter acumula- portantes intelectuais de sua época também
do um número maior de leitores do que de deve ter sido muito importante para a consoli-
leitoras, o espaço do folhetim é considerado dação de um grupo, em que as ideias circu-
como prioritariamente de interesse feminino. lavam mais livremente. Uma das questões
Talvez por isso o cuidado do literato. Além posta em debate, por exemplo, em A Reforma
disso, Bernardo Guimarães também partici- dizia respeito à continuidade da escravidão
pou de um projeto voltado para as mulheres. e aos projetos para uma lei que mais tarde
Seu nome é encontrado na lista de redatores ganhou o formato daquela aprovada em 28
e colaboradores do Jornal das Famílias, de
modo que, no ano anterior ao da publicação
de O Índio Affonso, contos e poesias já apare- 9 Ibid., p. 73.
ciam nas páginas daquele periódico. O Jornal
10 Ibid., p. 56.
das Famílias contou com uma colaboração
substancial de Machado de Assis e de outros 11 Sobre essa publicação, conferir:
literatos que dividiam o espaço das letras com SILVEIRA, Daniela Magalhães
da. Contos de Machado de Assis:
figurinos de roupas para crianças e adultos, Leitores e leituras do Jornal das
além de receitas culinárias e diversas dicas Famílias. Unicamp: Dissertação de
domésticas11. Bernardo Guimarães também mestrado em História, 2015.

teve algumas histórias especialmente dedi- 12 Jornal das Famílias. Rio de Janeiro:
cadas ao público feminino nas páginas dessa Garnier, março de 1872. p. 68.

337
de setembro de 1871 e que garantia a liber- fazenda onde Florinda residia. Da mesma for-

BERNARDO GUIMARÃES: UM PROJETO DE NAÇÃO   DANIELA MAGALHÃES DA SILVEIRA


dade aos filhos recém-nascidos de mulheres ma, o literato não se esquivou com as caracte-
escravas. Tudo isso serviu de fermento para rizações desses personagens, demonstrando
os romances que vieram à luz nos anos 1870, suas opções étnicas. A mocinha da trama tem
sob a pena de Bernardo Guimarães. as suas características físicas definidas a par-
tir de diferentes olhares. Logo nas primeiras
BERNARDO GUIMARÃES, páginas, Mateus a descreve como “aquela
ROMANCISTA COMBATENTE mulatinha bonita lá de casa” 14. Pai Simão,
um dos aquilombados, acrescenta: “mula-
A década de 1870 é aquela em que encon- tinha feiticeira” 15. Para o narrador, Florinda
tramos o maior número de livros publicados era “uma linda rapariga de catorze a quinze
por Bernardo Guimarães. Em alguns de seus anos” 16 e também a personagem que teve o
contos e romances, observa-se um homem seu corpo escrutinado com mais argúcia:
de letras disposto a oferecer sua contribui-
ção para que fosse construída uma nação a Era com efeito uma linda criatura, e sua
partir, principalmente, da união entre escra- bela figura ainda mais sobressaía à luz de
vos e brancos. As narrativas sobre a força da um fraco fogo, no meio dos hediondos
natureza dos sertões e de seu povo diminuem, objetos que a circundavam. Seus cabelos,
enquanto surgem histórias de aquilombados que estavam soltos, eram compridos, e
e de mulheres “quase” brancas. A primeira desciam-lhe em ondas miúdas pelo colo,
delas veio à luz em “Uma história de quilom- que naquele lugar onde só se viam através
bolas”, conto reunido em Lendas e romances, de quase completa escuridão vultos
livro publicado originalmente em 1871. Alguns negros como a noite, quase parecia alvo.
anos depois, em 1875, encontramos aquela Seus olhos grandes, pretos como jabuti-
que talvez seja a escrava mais famosa de cabas e brilhando no meio das pálpebras
Bernardo Guimarães: a escrava Isaura, per- arroxeadas pelo pranto à sombra de
sonagem de romance que carrega o nome da espessas sobrancelhas, pareciam dois
protagonista como título. Vamos acompanhar pombos negros, espreitando cheios de pa-
um pouco a construção dessas personagens vor à porta do ninho o voo do gavião. As
femininas, com o intuito de sabermos mais feições, a não serem os lábios carnosos
a respeito do posicionamento de nosso autor e as narinas móveis, que se contraíam e
diante de uma das questões mais relevantes dilatavam a arquejo violento de seu co-
de sua época: a abolição da escravidão e o ração, eram quase de pureza caucasiana.
país que se queria para o futuro. No corpo tinha esse donaire voluptuoso,
Em linhas gerais, a construção narrativa essas curvas moles e graciosas, que são
de “Uma história de quilombolas” é bastante próprias das mulatas. Era flexível como
simples. Encontramos um triângulo amo- o ramo do limoeiro, que ao menor sopro
roso formado por uma mocinha, chamada verga até beijar o chão, e no mesmo tem-
Florinda; o rapaz por quem ela havia se apai- po reergue-se donoso balanceando no ar
xonado ​—​  Anselmo ​—​  e a terceira ponta era o tope recamado de flores17.
Mateus. A história se passava na província de
Minas Gerais, que, de acordo com o narrador, Para elaborar essa descrição, Bernardo
“desde a serra da Mantiqueira até os confins Guimarães abusava das comparações e de
dos terrenos diamantinos, era uma série de
quilombos, que eram o flagelo dos tropeiros
e dos caminhantes, e o terror dos fazendei-
13 GUIMARÃES, Bernardo. Lendas
ros” 13. Boa parte da trama, aliás, tem como e romances. São Paulo: Martins
cenário um quilombo. Lá encontramos outros Fontes, 2006. p. 10.
dois personagens que merecem destaque:
14 Ibid., p. 6.
Zambi Cassange e mãe Maria.
Existe nessa história uma tentativa de 15 Ibid., p. 7.
confrontar a cultura africana, especialmente a
16 Ibid., p. 15.
partir dos hábitos e religião praticada no qui-
lombo, com a europeia, sob os costumes da 17 Ibid., p. 26.

338
outras figuras de linguagens tão caras à desejado por Bernardo Guimarães para o
sua época. Seguia também outro princípio Brasil. Por isso, contrastaram de forma tão
básico dos inventores das mulatas, ou seja, veemente com os moradores do quilombo
a aproximação entre raça e sexualidade18. e com Mateus, responsável pelo rapto da
Assim, Florinda era a mulata voluptuosa, com menina. Zambi Cassange e mãe Maria
“curvas moles e graciosas”. A construção também receberam tratamento especial para
dessa personagem, com tais características que se tornassem evidentes as diferenças
físicas, indicava o caminho escolhido pelo entre aqueles que carregavam visualmente
literato para a formação da nação brasileira. a descendência africana e quem precisava
Por isso, importava tanto oferecer um final reafirmar isso por meio de características
feliz, marcado pelo casamento e a projeção de fortuitas. Desse modo, o conto tem início com
filhos cada vez mais brancos. Para alcançar uma conversa entre Mateus e o feiticeiro do
esse desfecho, Florinda e Anselmo passaram quilombo. A ideia era levar a menina à força
por várias provações, demonstrando sempre para aquele lugar, impedindo assim que ela fi-
muito caráter, honestidade e retidão. casse com Anselmo. Para cumprir essa meta,
O esforço de Florinda naquela história precisaria, no entanto, colocar-se de acordo
tinha como finalidade casar-se com Anselmo. com as regras estabelecidas por Zambi
Este personagem também recebe atenção Cassange para o quilombo. Zambi era:
especial por causa de sua cor. No entanto,
diferencia-se da forma como aconteceu com Um negro colossal e vigoroso, cuja figura
a moça, justamente por causa do teor sexual sinistra e hedionda se refletia no clarão
que envolvia as mulheres mulatas. Sendo do fogo, com as faces retalhadas, beiços
assim, Anselmo é visto por seu concorrente vermelhos, e dentes alvos e agudos como
Mateus como um “maldito capixaba, um os da onça; mas o nariz acentuado e
diabo de um mulato pachola, todo engomado curvo e a vasta testa inclinada para trás
e asseadinho” 19. Por sua vez, o narrador o revelavam um espírito dotado de muito
descreve da seguinte forma: tino e perspicácia, e de extraordinária
energia e resolução22.
Era um moço bem-disposto, de fisionomia
agradável, de olhos negros e expressivos; Essa forma de descrever o líder do quilombo,
trajava com asseio e esmero, e os arreios usada por Bernardo Guimarães, muito se
de sua cavalgadura cintilavam ao sol, co- assemelha à de quando se tratava de perso-
bertos de prataria. Posto que de tez clara, nagens indígenas, conforme vimos anterior-
todavia pela aspereza de seus cabelos mente. A ideia era retratar a força, recorrendo
negros e crespos, se conhecia claramente a comparações com animais vigorosos e
que tinha nas veias sangue africano20. assustadores. A força de Zambi estava em
seu corpo, por meio de suas características
Enquanto o narrador encontra subsídio para físicas. Ele era muito diferente de Anselmo
confirmar as origens africanas de Anselmo que possuía “fisionomia agradável” e “tez
por meio do cabelo, diante dos aquilombados clara”. Recurso idêntico é utilizado quando
essa descendência não parecia tão fácil de aparece na trama a companheira do quilom-
ser provada. Precisava dizer abertamente que bola, mãe Maria:
também tinha “sangue da África nas veias” e
que a mãe dele havia penado no cativeiro21.
Dando um passo adiante, quando compa-
ramos a forma de descrever Florinda com 18 CORRÊA, Mariza. “Sobre a
invenção da mulata”. In: Cadernos
aquela usada para Anselmo, vemos, na per- Pagu. Unicamp, 1996. p. 44.
sonagem feminina, um exercício de exaltação
do corpo. Do outro lado havia um branque- 19 GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e
romances. op. cit. p. 7.
amento masculino, acentuado por causa de
uma posição social suavemente mais elevada 20 Ibid., p. 15.
alcançada por Anselmo.
21 Ibid., p. 22.
Esses dois personagens, Florinda e An-
selmo, carregavam em seus corpos o futuro 22 Ibid., pp. 12–3.

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Uma preta curta e gorda, com a figura completamente o dorso da cadeira a que

BERNARDO GUIMARÃES: UM PROJETO DE NAÇÃO   DANIELA MAGALHÃES DA SILVEIRA


de um odre, já não muito nova, de olhos se achava recostada. Na fronte calma
graúdos e esbugalhados, e por entre e lisa como mármore polido, a luz do
cujos beiços trombudos e revirados, ocaso esbatia um róseo e suave reflexo;
sempre entreabertos, alvejavam dentes di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro
agudos e salientes como os do cão. Esta guardando no seio diáfano o fogo celeste
hedionda figura era a companheira fiel, da inspiração. Tinha a face voltada para
a sultana favorita do ilustre e poderoso as janelas e o olhar vago pairava-lhe
chefe Joaquim Cassange, cujo gosto pelo espaço24.
neste particular parece que não era dos
mais apurados23. Nenhum animal, como de hábito, aparecia
para definir o físico da personagem. Para
Zambi Cassange e mãe Maria formam um completar, numa conversa entre a senhora
casal demoníaco que cuidam do quilombo e, e sua escrava, Malvina ainda nos revela que
ao mesmo tempo, tramam um contra o outro. Isaura possuía “uma cor linda, que ninguém
Ao colocarmos essas descrições emparelha- dirá que gira em tuas veias uma só gota de
das, é possível perceber que, com a escrita sangue africano” 25. Situação semelhante
da história, Bernardo Guimarães delineava o àquela vivida por Anselmo, conforme acaba-
tipo físico de quem seria melhor para o país mos de ver em “Uma história de quilombolas”.
que se queria formar. Oferecia protagonismo Enquanto na história de Florinda e Anselmo
e qualidades invejáveis a um casal de mulatos, não existia uma crítica direta ao fato de a
enquanto aqueles que traziam as marcas da menina ainda ser escrava ​—​ aparecia apenas
África em seus corpos eram colocados no o desejo do rapaz de comprar a alforria da
lugar de vilões, comparados a animais selva- amada —, em A escrava Isaura o mote princi-
gens e ferozes. Essa sua opção pelo branque- pal gira em torno de um suposto absurdo de
amento como solução para o país encontra-se manter uma mulher daquela cor na condição
de forma mais acabada em A escrava Isaura, de escrava. Embora fosse escrava, Isaura
publicado apenas alguns anos depois de recebeu a mais esmerada educação. Desse
“Uma história de quilombolas”. modo, temos na história uma mulher “quase”
No romance publicado em 1875, as carac- branca, escravizada e que recebia algumas
terísticas físicas de Isaura aparecem logo nas benesses, porque havia caído nas graças de
primeiras páginas, em contraste com aquelas sua senhora. Nada disso, no entanto, alterava
de Malvina, a senhora branca, casada com o o caráter irretocável dela: “O mimo com que
cruel Leôncio. A descrição feita por Bernardo era tratada em nada lhe alterava a natural
Guimarães para Isaura tende a mostrar certa bondade e candura do coração. Era sempre
indefinição com relação à cor da pele. O alegre e boa com os escravos, dócil e submis-
literato emprega uma sensualidade escorre- sa com os senhores” 26. Aliás, a submissão
gadia, que parecia ser mantida nas sombras de Isaura é sempre enfatizada por Bernardo
de pequenas frestas. Desse modo, enquanto Guimarães. Qual seria então o grande dife-
a personagem parecia sofrer ao piano, sendo rencial de A escrava Isaura, especialmente
privada de pequenas conquistas para sobrevi- levando em consideração as histórias am-
vência no mundo escravista, ficamos sabendo bientadas sob o regime da escravidão?
mais sobre a sua pele. A tez de Isaura era: Todo o romance parece ter sido pensado
com o intuito de questionar as dificuldades
como o marfim do teclado, alva que não encontradas, por diferentes classes sociais,
deslumbra, embaçada por uma nuança
delicada, que não sabereis dizer se é leve
palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo 23 Ibid., pp. 29–30.
donoso e do mais puro lavor sustenta
24 GUIMARÃES, Bernardo. A escrava
com graça inefável o busto maravilhoso. Isaura. São Paulo: Moderna, 2004.
Os cabelos soltos e fortemente ondu- p. 19.
lados se despenham caracolando pelos
25 Ibid., p. 20.
ombros em espessos e luzidios rolos, e
como franjas negras escondiam quase 26 Ibid., p. 24.

340
diante da continuidade da escravidão no preservavam de entregar-se à ociosida-
Brasil do século XIX. Como o literato acredi- de, ao vício e ao crime, tinham segura a
tava num branqueamento futuro da popu- subsistência e podiam adquirir algum
lação brasileira, seu objetivo talvez fosse o pecúlio, como também poderiam indeni-
de mostrar como a condição de Isaura, mais zar a Álvaro do sacrifício que fizera com
cedo ou mais tarde, se tornaria cada vez mais a sua emancipação28.
comum. Se era possível escravizar pessoas
reconhecidas como filhas da África, a escra- Bernardo Guimarães vai então construindo
vidão de brancos era uma ideia que causava situações de humilhação para Isaura, todas
asco e também medo. A solução imediata motivadas por causa do cativeiro e de um
oferecida por Bernardo Guimarães estava em senhor cruel. De outro lado, aparecia Álvaro
oferecer uma educação adequada para os com a solução ideal para tudo, desde o seu
escravos e transformá-los em trabalhadores enfrentamento pessoal de se casar com
dóceis e gratos. A liberdade aqui, no entan- Isaura até para o sistema escravista brasileiro.
to, era condição essencial. Afinal de contas, No momento em que o subsídio à imigração
Isaura havia sido muito bem educada por sua despontava com mais força diante da classe
senhora, mas, como não recebeu a alforria, foi política, aparecia um romance que indicava
obrigada a enfrentar diversos riscos nas mãos soluções internas. Desse modo, o literato
de um senhor abusivo. A ausência dessa liber- participava do debate e fazia com que seus
dade colocava em perigo o futuro da moça, o leitores e leitoras também refletissem sobre
casamento ideal e a consequente reprodução o futuro do país. Especialmente as senhoras
de filhos para a nação cada vez mais brancos. “bondosas” que insistiam em manter suas
Essa liberdade, segundo defendia o lite- mucamas como escravas, alegando que
rato, precisava chegar por meio da lei. Desse o amor as impedia de deixá-las partir. Era
modo, o par perfeito para Isaura era um assim que a mãe de Leôncio justificava a
homem com formação intelectual bastante manutenção da escravização de Isaura: “Não
interessante, talvez não muito distante daque- tenho ânimo de soltar esse passarinho que o
la recebida pelo próprio Bernardo Guimarães. céu me deu para me consolar e tornar mais
Álvaro era filósofo e havia se dedicado ao suportáveis as pesadas e compridas horas da
estudo do Direito. Além disso, “tinha ódio a to- velhice”. Talvez a escrita daquela história ser-
dos os privilégios e distinções sociais […] era visse de alerta especial para essas senhoras,
liberal, republicano e quase socialista” 27. Não sem deixar de lado aqueles que afirmavam
poderia deixar de ser também um “abolicio- não poder libertar os escravos por causa do
nista exaltado”. O personagem ainda servia trabalho nas fazendas que seria abandonado.
de exemplo aos senhores de escravos, por Para esses, aparecia o exemplo de Álvaro.
causa de sua atitude diante de uma herança Entre a publicação de “Uma história de
recebida. Parte dela consistia em pessoas quilombolas” e de A escrava Isaura, vieram
escravizadas, que foram logo emancipadas, a público outros dois romances que mere-
de um modo bastante peculiar: cem a nossa atenção. Ambos são de 1872, e
não pautam a escravidão no primeiro plano,
Como, porém, Álvaro tinha um espírito mas como algo muito natural, apenas como
minimamente filantrópico, conhecendo parte da vida dos personagens. O garimpeiro
quanto é perigoso passar bruscamente narra a história de Lúcia e Elias e se passa
do estado de absoluta submissão para o nas proximidades dos municípios de Araxá,
gozo da plena liberdade, organizou para Patrocínio e Bagagem, na província de Minas
os seus libertos em uma de suas fazendas Gerais. Período em que fazendeiros perderam
uma espécie de colônia, cuja direção con- toda sua fortuna arriscando-se no garimpo
fiou a um probo e zeloso administrador. e que era possível saber a colocação social
Dessa medida podiam resultar grandes de alguém contando o número de escravos
vantagens para os libertos, para a socie-
dade e para o próprio Álvaro. A fazenda
lhes era dada para cultivar, a título de
27 Ibid., p. 65.
arrendamento, e eles, sujeitando-se a uma
espécie de disciplina comum, não só se 28 Ibid., p. 66.

341
que possuía. Lúcia era uma jovem moça, filha cá a minha carta, e hão de ver como eu a

BERNARDO GUIMARÃES: UM PROJETO DE NAÇÃO   DANIELA MAGALHÃES DA SILVEIRA


de um fazendeiro abastado que carregava faço em pedacinhos e atiro tudo no fogo.
o título de Major, pelo qual era reconhecido — Isso não, Joana!… tal não farás. Fui
por todos e assim fora nomeado na história. eu que pedi a meu pai te forrasse, e sabes
Assim como Florinda e Isaura, Lúcia também por quê?
não era branca, embora fosse livre e rica: — Eu sei lá!… de certo foi porque
sinhazinha não me quer mais; quer ficar
Lúcia tinha dezoito anos; seus cabelos livre de mim…
eram da cor do jacarandá brunido, seus — Pelo contrário, Joana, foi para não
olhos também eram assim, castanhos ficar sem ti. Se não fosses forra, irias cair
bem escuros. Este tipo, que não é muito nas mãos dos credores de meu pai, como
comum, dá uma graça e suavidade indefi- todos os outros escravos da casa.
nível à fisionomia. — Credo! Nossa Senhora me guarde!…
Sua tez era o meio termo entre o alvo então, não; quero a minha carta; quero
e o moreno, que é, a meu ver, a mais amá- ser livre para poder ser escrava de minha
vel de todas as cores. Suas feições, ainda sinhazinha. Esses diabos desses homens!
que não eram de irrepreensível regulari- Deus me perdoe!… parece que não são ba-
dade, eram indicadas por linhas suaves tizados. Meu senhor já valeu a eles todos,
e harmoniosas. Era bem-feita, e de alta e e agora não tem um só que tenha piedade
garbosa estatura29. dele. Má peste que os persiga!… Agora
vou cuidar da janta… sinhazinha fica aí?30
A fixação de Bernardo Guimarães em
descrever a cor das personagens femininas O diálogo entre as duas mulheres é revelador
espalhava-se por grande parte de suas histó- de várias engrenagens que ajudavam a sus-
rias. A descendência africana ou indígena de tentar a escravidão brasileira contemporânea
Lúcia, no entanto, parece ter ficado para trás, a Bernardo Guimarães. O literato contribuía
de modo que a moça possuía aquilo que o para eternizar a imagem da escrava que fazia
literato considerava como a “mais amável de parte da família, que compartilhava todas
todas as cores”. Lúcia não era escrava, mas as dores e sofrimentos de seus senhores e,
vivia em meio aos escravos. Contava, aliás, principalmente, que, mesmo depois de alfor-
com a proteção e fidelidade de uma mulher riada, mantinha uma relação de deferência e
que na infância a tinha amamentado. Essa obediência. No entanto, assim como também
mulher recebeu as seguintes qualificações: aconteceu em A escrava Isaura, documen-
“crioula”, “esperta”, “viva” e “palradeira”. Com tar a liberdade apresentava-se como passo
o empobrecimento do pai, por causa do ga- importante até mesmo para manter a pessoa
rimpo, Lúcia tratou de salvar justamente essa outrora escravizada, trabalhando e perto de
escrava. O Major perdera a fazenda e os es- seus ex-senhores. Talvez aquilo que fosse
cravos. A ama/mucama de Lúcia, no entanto, visto pelos escravos da fazenda de Álvaro e
continuou com a mesma família, por causa de também por Joana como “bondade” senhorial,
um estratagema da própria moça, conforme não passasse da manutenção de algumas
foi revelado no seguinte diálogo: regras tão caras ao sistema escravista bra-
sileiro. Com a construção dessas situações,
— Tem paciência, sinhazinha, dizia a es- Bernardo Guimarães também parecia acredi-
crava. Nossa senhora do Patrocínio há de tar e defender esse tipo de transição do traba-
ter piedade de nós. Querendo Deus, tudo lho escravo para o livre, pautado na harmonia
se há de arranjar e nós ainda havemos e na gratidão a senhores complacentes.
de voltar para nossa roça. Mas enquanto Finalmente, em O seminarista, encontra-
isso se não arranja, aqui está sua negra mos Margarida e Eugênio. Mais uma vez a
velha, que ainda pode trabalhar para
Vmcês. todos…
— Mas tu hoje és forra, Joana; deves ir 29 GUIMARÃES, Bernardo. O garim-
cuidar na tua vida… peiro. São Paulo: Editora Ática,
2004. p. 15.
— Que me importa lá isso?… por acaso
eu pedi alguma alforria? Entreguem-me 30 Ibid., p. 87.

342
trama se desenrolava na província de Minas leitores e leitoras questionassem e refletis-
Gerais e encontramos outra menina com tipo sem sobre o futuro. Futuro que dependia da
físico parecido com as demais personagens composição racial dos brasileiros, evidente
femininas analisadas. Margarida era “mo- por meio da cor adquirida depois de tantas
rena, de olhos grandes, negros e cheios de misturas, e do destino oferecido aos trabalha-
vivacidade, de corpo esbelto e flexível como o dores sejam escravos, sejam livres.
pendão da imbaúba” 31. Era outra história com
protagonistas pertencentes a classes sociais BERNARDO GUIMARÃES, SOB A PENA
diferentes. Enquanto em O garimpeiro Lúcia DA CRÍTICA
era rica e Elias não passava de um garimpeiro
pobre, agora, em O seminarista, Eugênio era Enxergar a obra de Bernardo Guimarães como
rico e Margarida vivia de favor nas terras da instrumento de reflexão e intervenção sobre
família do rapaz. Aqui aparece uma peculia- a realidade constitui-se em forma de pensar
ridade do Brasil do século XIX: trabalhadores entre seus próprios contemporâneos. Isso
pobres que, embora não fossem escravos, ficava evidente por meio de críticas publicadas
também precisavam prestar obediência a nas páginas de jornais e revistas dos quais
uma família abastada. Eram os agregados. ele também era colaborador. Com relação a A
Bernardo Guimarães parecia tentar definir escrava Isaura, a ideia defendida era a de que
aquela categoria e a forma como vários agre- o romance se assemelhava àquele de Harriet
gados ou trabalhadores pobres se reuniam Beecher Stowe: A cabana do pai Tomás, publi-
para realizar a mesma tarefa: cado nos Estados Unidos, em 1852, e tradicio-
nalmente reconhecido como obra panfletária
É o mutirão um costume dos pequenos contra a escravidão. Em crítica publicada no
lavradores, ou da gente pobre dos campos, jornal A Reforma, aparecia o seguinte:
que vivem como agregados dos grandes
fazendeiros e que não possuindo terra, e O Sr. Garnier acaba de publicar a Escrava
menos ainda braços para cultivá-la, nem Isaura, lindíssimo trabalho deste dis-
por isso deixam de plantar boas roças, tinto mineiro e que faz lembrar as belas
ou de exercer sua pequena indústria, de e eloquentes páginas da Cabana do pai
que tiram a subsistência. Quando chega Tomás que nos dois mundos tornou tão
o tempo de qualquer dos serviços de roça, conhecido e célebre o nome de Miss
que consistem nestas quatro operações Beecher Stowe. Os princípios humani-
principais ​—​ roçar, plantar, capinar e tários sustentados pelo poeta mineiro
colher ​—​ o pequeno roceiro convida seus foram sempre mais ou menos defendidos
parentes, amigos e conhecidos da vizinha pelo partido liberal, sem cujo auxílio no
para vir ajudá-lo, e todos pelo direito senado, não teria hoje o país a famosa lei
costumeiro são obrigados a vir dar-lhe de 28 de setembro. Pertence à Escrava
u’a mão ​—​ é a frase usada —, ficando o que Isaura a classe dos romances realistas,
assim se aproveita dos serviços na obriga- mas felizmente por mais verossímeis que
ção de acudir também ao chamado destes sejam algumas das cenas ali descritas, o
para o mesmo fim32. estado atual da nossa civilização um pou-
co diferente do que era há 30 anos, atrás,
A explicação tão minuciosa parecia ser des- dificilmente fornecia hoje matéria idênti-
tinada aos leitores da Corte, distantes desse ca a que forma o assunto do romance do
costume. Além disso, faz-nos acreditar que talentoso escritor mineiro33.
Bernardo Guimarães tivesse um interesse
acentuado por compreender as formas de
trabalho praticadas no Brasil. Talvez, para
aquele homem de letras, a composição de 31 GUIMARÃES, Bernardo. O semi-
narista. São Paulo: Editora Ática,
narrativas tão coladas com a realidade por 2006. p. 11.
ele vivida fizesse parte de um projeto para o
país. Mais do que entretenimento, sua obra 32 Ibid., p. 52.

foi pensada como instrumento de intervenção 33 A Reforma. Rio de Janeiro.


na realidade social. Um meio para que seus 30 de maio de 1875.

343
O bom relacionamento e a manutenção da Acha-se à venda na livraria B. L. Garnier,

BERNARDO GUIMARÃES: UM PROJETO DE NAÇÃO   DANIELA MAGALHÃES DA SILVEIRA


participação de algum escritor em periódi- rua Ouvidor n. 71 A Escrava Isaura por
cos do século XIX estavam condicionados Bernardo Guimarães, 1 vol., in. 8�, 2$000.
à causa política defendida pela folha. A Este romance do talentoso poeta
Reforma resguardava os interesses do mineiro é um livro de sensações; cenas ve-
Partido Liberal e, antes da aprovação da Lei rossímeis e tocantes acham-se na história
do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871, daquela escrava que, por ter sido educada
participou ativamente de todos os deba- por uma alma virtuosa, sabe no meio de
tes políticos que previam a libertação dos todos os tormentos e perseguições, de que
escravos. Como colaborador ativo do jornal, foi alvo, conservar sem mácula sua honra
Bernardo Guimarães colocava-se de acordo de despertar paixão veemente e sincera
com os preceitos ali defendidos. É provável, em um jovem rico e cheio de nobres quali-
inclusive, que esse período dedicado a A dades. Se encontram neste livro desenhos
Reforma, assim como aquele atuando como corretos de alguns tipos, que infelizmente
juiz de Direito, em Catalão, Goiás, tenha ainda hoje existem em nossa sociedade. A
exercido bastante influência na elaboração Escrava Isaura pode bem rivalizar com a
do romance, apenas alguns anos depois. A célebre Cabana do Pai Tomás, da talento-
escrava Isaura foi publicado em 1875, poste- sa escritora norte-americana35.
riormente à aprovação da lei, mas tem a sua
trama desenvolvida “nos primeiros anos do A produção do anúncio ficava por conta da
reinado do senhor dom Pedro II” 34. Ou seja, própria livraria que manteve o mesmo tom da
nos anos 1840, quando ainda havia escravos crítica de 1875. Certamente a aproximação
ilegais chegando da África e nada havia sido entre os dois romances ajudava a vender aque-
pensado com relação aos filhos das escra- le de Bernardo Guimarães, encontrando apoio
vas. Bernardo Guimarães, ciente disso e fiel dentro do seu círculo de prováveis leitores e
àquela realidade, propõe situações possíveis leitoras. Mais do que um escritor de folhetins
naquela década de 1840, mas improváveis para o rodapé dos jornais ou de livros, ao longo
depois da aprovação da referida lei. Um dos anos 1870, Bernardo Guimarães passou a
exemplo disso ocorre quando o pai de Isaura, ser associado pela crítica ​—​ e por seu público ​
Miguel, consegue recursos suficientes para —​ a escritor que defendia o final da escravidão
pagar a alforria da menina, mas Leôncio não e que produzia narrativas com a finalidade de
concede a liberdade outrora prometida. De proporcionar reflexões em torno dessa temá-
acordo com a lei de 1871, escravos teriam tica e dos avanços alcançados por meio da
o direito de acumular pecúlio, de modo que, aprovação de leis como a do Ventre Livre.
quando obtivessem a soma referente ao valor Essa percepção da parte do público e da
de sua liberdade teriam a alforria garantida. crítica de que a obra de Bernardo Guimarães
Caso houvesse discordância com relação funcionava como panfleto contra a escravidão
ao valor, a indenização seria fixada “por deu-se aos poucos. Logo após a publicação
arbitramento”. Essa medida impediria boa de Lendas e romances, livro que continha a
parte das ações contidas na trama. Bernardo história de Florinda, no Jornal do Commercio,
Guimarães e seus contemporâneos pare- não havia referência sobre o quão nefasta
ciam ter ciência disso, conforme é possível poderia ser a escravidão. Por sua vez, o literato
visualizar na crítica acima citada. Isso coloca era apresentado como alguém que construía
o romance no circuito de discussão não histórias propícias para recrear, mas também
só daquela lei, mas também do futuro da para instruir36. O que parecia unir a crítica era
escravidão no Brasil. Tornando-o ainda mais
louvável diante da crítica favorável à liberta-
ção dos escravos.
Ainda no ano de 1878, o romance A 34 GUIMARÃES, Bernardo. A escrava
Isaura. op. cit. p. 17.
escrava Isaura continuava sendo anunciado
como livro compatível com a trama de Harriet 35 Jornal do Commercio. Rio de
Beecher Stowe. Assim, veio anunciado no Janeiro. 13 de novembro de 1878.

Jornal do Commercio: 36 Jornal do Commercio. Rio de


Janeiro. 3 de julho de 1871.

344
a ideia de que o escritor se preocupava em Não tenho pelo Índio Affonso o entusias-
escrever histórias próximas à realidade vivida. mo do seu cantor; mal se concebe que um
Esse, aliás, foi o principal elogio por ele recebi- herói saboreie daquela forma a vingança
do, depois da publicação de O garimpeiro: um e execute seus planos atrozes com o san-
livro com passagens que continham “delicade- gue frio que mostrou o irmão de Caluta
za” e “verdade”. O articulista ainda completava, flagelando Toruna. E depois de tanta
aconselhando outros escritores: “Aquilo vê-se, ferocidade na vingança, quando Affonso
tem vida, tem movimento, tem alma. Assim sabe que sua irmã vive e a vê, teve ele
é que deviam escrever todos para não serem remorsos do que fez? Não, ao contrário,
uns sensaborões ou uns pantomineiros” 37. nem uma vez se arrependeu seriamente
Como a maior parte dos literatos de dos sofrimentos e torturas a que sujeitou
seu tempo, Bernardo Guimarães publicava o bandido. Se pode-se conceber que um
histórias nos rodapés dos jornais e depois filho das selvas habituado a lutar com o
as fazia aparecer sob o formato de livro. Isso jaguar e vivendo da astúcia, seja alheio ao
aconteceu com O Índio Affonso que teve uma sentimento de bondade, em caso algum
primeira versão publicada em A Reforma e, é desculpável a ausência de coração
pouco tempo depois, ganhou as páginas de quando se recebeu o batismo e se abraçou
um livro, editado por B. L. Garnier. Na abertura o cristianismo; se pois o Índio Affonso de
do livro, o literato preocupava-se em infor- Bernardo não é o facínora de Goiás, com
mar ao público que o seu personagem não certeza é capaz de fazer o que tem feito o
era o mesmo Índio Affonso encontrado em seu homônimo40.
Bagagem e que havia cometido “um horro-
roso atentado”. Se havia alguma descrição Aparecia embutida nessa crítica algo que
da realidade naquelas páginas, isso ficava estava além de uma cobrança pela veracida-
por conta da caracterização do personagem de. O que se exigia era que a composição do
principal, a partir de alguém que o literato personagem e de suas ações fosse carregada
afirmava ter conhecido e com quem tinha tido de lições aos leitores e leitoras. Polêmicas
a oportunidade de conversar. Quanto às faça- em torno de personagens fúteis e que apa-
nhas do afamado caboclo, o literato esquiva- rentemente não tinham nada para ensinar
va-se, afirmando que as histórias que ouvira renderam bastante ao longo do século XIX e
entre 1860 e 1861 não estavam mais tão vivas algumas delas devem ter sido acompanha-
em sua memória, podendo, portanto, terem das pelo próprio Bernardo Guimarães. Uma
recebido apenas “um laivo de veracidade” 38. das mais conhecidas envolveu a publicação,
Finalmente, revelava que a descrição dos no Brasil, do romance de Eça de Queirós, O
lugares compactuava com a realidade, pois os primo Basílio. Outra dizia respeito à publica-
havia percorrido e observado por mais de uma ção, no Jornal das Famílias, do conto “Con-
vez. Desse modo, concluía: “O Índio Affonso fissões de uma viúva moça”, de Machado de
de meu romance não é o facínora de Goiás; é Assis. Assim, o crítico cobrava de Bernardo
pura criação da minha fantasia” 39. Guimarães, no mínimo, um sentimento de
Essa mesma discussão a respeito da iden- arrependimento do personagem protagonista.
tidade do personagem criado por Bernardo Caso contrário, não passaria de um facínora,
Guimarães para O Índio Affonso apareceu sem princípios, nem religião. Alguém que não
numa longa crítica, publicada em A Reforma. transmitiria o princípio básico da literatura por
No jornal, como de praxe, encontramos vários aqueles tempos. Da qual se exigiam modelos
elogios ao escritor que chega a ser compa-
rado com Gonçalves Dias, tanto por causa
da qualidade literária de seus escritos como 37 Jornal do Commercio. Rio de
devido ao fato de não terem sido devidamente Janeiro. 3 de maio de 1872.
remunerados como escritores de literatura.
38 GUIMARÃES, Bernardo. Índio
Mas essa, no entanto, não foi uma crítica Affonso. Rio de Janeiro: Livraria
puramente elogiosa, escrita provavelmente Garnier, 1873. p. VII.
por um amigo de redação. Havia nela uma
39 Ibid., p. 9.
discordância entre crítico e literato sobre o
caráter do personagem: 40 A Reforma. 1 de julho de 1873.

345
de comportamento ou, no mínimo, que enfati- quanto de participação política esses novos

BERNARDO GUIMARÃES: UM PROJETO DE NAÇÃO   DANIELA MAGALHÃES DA SILVEIRA


zasse correções de caráter. cidadãos abocanhariam. Em momentos
Finalmente cabe destacar a crítica antecedentes à aprovação da lei de 1871 havia
publicada por Machado de Assis em O Novo uma enorme resistência diante da possibilida-
Mundo, intitulada “Notícia da atual literatu- de da emancipação completa, independente
ra brasileira”. Ao fazer um levantamento do de filiações partidárias42. Entre romancis-
estado da literatura produzida em seu país, tas, Joaquim Manuel de Macedo foi um dos
Machado de Assis, naquilo que se refere à que contribuíram nesse debate, apoiando a
inspiração indiana, não deixou de mencionar emancipação gradual, por meio da liberdade
o escritor mineiro como aquele que “brilhante do ventre, somando-se a outras medidas
e ingenuamente nos pinta os costumes da que facilitariam a alforria43. Para tanto, usou
região em que nasceu” 41. Entre colegas de como método de participação a construção
redação mais ou menos próximos, Bernardo de quadros que mostravam o mal que os
Guimarães era rotineiramente lembrado, seja escravos faziam aos seus senhores, com o
por causa do seu ímpeto pró-abolição, seja intuito de tentar convencê-los da necessida-
por causa das histórias da sua terra, mar- de da aprovação de leis que colocassem fim
cadas por sujeitos controversos e natureza naquele processo, mesmo que isso trouxesse
exuberante. prejuízos financeiros imediatos. Do lado opos-
to de ação, encontramos Machado de Assis.
BERNARDO GUIMARÃES, UM HOMEM Atuando também nas vésperas da aprovação
DE SEU TEMPO da lei do Ventre Livre, Machado mostrava a
necessidade de colocar fim à escravidão, mas,
Como escritor de literatura, Bernardo para isso, usava sua obra para “enfatizar não
Guimarães seguiu trajetória muito parecida a ameaça que os escravos representavam
com aquela percorrida por outros homens de para os senhores, mas o sofrimento que os
letras reconhecidos. Colaborou em jornais e senhores causavam aos escravos” 44.
revistas; manteve outros cargos profissionais, Diante dessa encruzilhada de possibili-
para que fosse garantida uma renda superior dades, Bernardo Guimarães fez a opção de
àquela recebida como mero escritor, quase construir personagens degenerados pela
sempre insuficiente para se manter; transfor- escravidão, especialmente aqueles que car-
mou a sua participação nos rodapés dos pe- regavam traços étnicos que os aproximavam
riódicos em livros editados por B. L. Garnier e da África. Mas também encontramos aqueles
tentou intervir na realidade social, por meio de que sofriam nas mãos de senhores malévolos,
histórias com personagens que poderiam ser e que, quando recebiam a educação adequa-
facilmente identificados por aqueles tempos. da e possuíam traços físicos europeizados,
A década de 1870, com todos os seus passavam a constituir um grupo ameaçado
acontecimentos políticos, foi fundamental pela escravidão e que precisava de uma aten-
para a construção de um escritor preocupado ção especial e de conquistar a liberdade. Por
com os desdobramentos de discussões políti- mais que existissem senhores dóceis, o siste-
cas, especialmente aquelas que acarretaram ma escravista, conforme praticado no Brasil,
a aprovação e aplicação da lei de 28 de se- abria a possibilidade de fazer com que pesso-
tembro de 1871, a lei do Ventre Livre. Naquele as ideais para a construção do futuro do país
momento, surgia também um escritor inte-
ressado diretamente pelo futuro da nação, por
meio de sua composição racial e das formas
de trabalho exercidas em seu país. 41 MACHADO DE ASSIS. “Notícia da
atual literatura brasileira – Instinto
Com isso, Bernardo Guimarães colocava- de nacionalidade”. In: O Novo Mun-
-se como mais um escritor de literatura de- do. 24 de março de 1873. p. 107.
cidido a pensar questões que tanto melindre
42 CHALHOUB, Sidney. Machado de
causavam. Afinal de contas, por aqueles Assis, historiador. São Paulo: Com-
tempos, colocar-se contra a escravidão era panhia das Letras, 2003. p. 152.
ideologia seguida por boa parte da população.
43 Ibid., p. 157.
A diferença estava no modo como a liberda-
de deveria chegar para os escravizados e o 44 Ibid., p. 162.

346
caíssem nas mãos de gente cruel. Com isso,
talvez, a grande lição deixada por Bernardo
Guimarães aos seus contemporâneos dis-
sesse respeito à necessidade de educar os
descendentes da escravidão e libertá-los para
garantir um país produtivo e justo. Assim nem
escravos, nem seus senhores perderiam com
a abolição definitiva.

347
HENRIQUETA
LISBOA: PARA
ALÉM DAS
PÁGINAS
IMPRESSAS
KELEN BENFENATTI PAIVA

348
Também as cousas participam uma vida, livros em primorosas primeiras
de nossa vida. Um livro. Uma rosa. edições, exemplares com dedicatórias, auto-
Um trecho musical que nos devolve grafados, notícias de jornais sobre sua obra,
a horas inaugurais. O crepúsculo palavras de críticos e leitores comuns.
acaso visto num país Estabeleceu como projeto de vida um
que não sendo da terra grande empreendimento autobiográfico,
evoca apenas a lembrança com muitas peças de um numeroso quebra-
de outra lembrança mais longínqua. -cabeças que ia sendo montado peça por peça
O esboço tão-somente de um gesto durante sua vida a fim de projetar um retrato
de ferina intenção. A graça geral para a posteridade. Henriqueta tinha
de um retalho de lua consciência da importância de sua obra e da
a pervagar num reposteiro necessidade de resistência contra o silencia-
A mesa sobre a qual me debruço mento promovido contra ela, sobretudo por
cada dia mais temerosa viver em Minas, longe do eixo Rio-São Paulo.
de meus próprios dizeres. Philippe Artières afirma que arqui-
Tais cousas de íntimo domínio var a própria vida é querer testemunhar e
talvez sejam supérfluas. nesse intento:
No entanto
que tenho a ver contigo O arquivamento do eu não é uma prática
se não leste o livro que li neutra, é muitas vezes a única ocasião de
não viste a rosa que plantei um indivíduo se fazer ver tal como ele se
nem contemplaste o pôr-do-sol vê e tal como desejaria ser visto. Arquivar
à hora em que o amor se foi? a própria vida é simbolicamente preparar
Que tens a ver comigo o próprio processo: reunir peças neces-
se dentro em ti não prevalecem sárias para a própria defesa, organizá-
as cousas ​—​  todavia supérfluas — -las para refutar a representação que os
do meu intransferível patrimônio? outros têm de nós.2

Henriqueta Lisboa Ao “preparar o processo”, Henriqueta não


poupou esforços. Organizou pastas; recortou
⁂ notícias de jornais; reuniu em gavetas cartas,
bilhetes e cartões que recebeu durante anos;
Há duas formas de conhecer a escritora anotou em cadernos a assiduidade de sua
mineira Henriqueta Lisboa: entrando em correspondência e impressões de leituras; en-
seu arquivo pessoal, acolhido no Acervo de viou seus livros por correio e recebeu inúme-
Escritores Mineiros, e lendo sua obra. No ros outros; fez e refez poemas, modificando
primeiro caso, trata-se de uma experiência palavras, mas deixando arquivadas as versões
corporal fascinante, que passa a compor até o texto final. Foi arquivista por natureza,
a própria história daquele que se aventura organizada, metódica, atenta aos pequenos
nesse experimento; no segundo, é possível detalhes importantes para essa organização
vislumbrar as muitas facetas dessa escritora de si. Geneticista de seus próprios manuscri-
e, sobretudo, a grande poeta que é. tos, anotava nas margens dos textos, riscava,
Impossível sair dessas duas experiências rasurava, alterava, refazia e guardava a histó-
de leitura sem estar contaminado pela sensibi- ria do próprio texto. Circulava seu nome cada
lidade poética da autora, sem ser contagiado vez que era mencionado nos jornais.
pelo “mal do arquivo”1, como bem destacou
Derrida. Henriqueta arquivou a própria história,
guardou cada pedacinho de papel, fotografias, 1 Derrida afirma que o arquivo é lacu-
retrospectos de peças a que assistiu, cartas nar e perpassado pelo esquecimen-
to, pelo mal de arquivo que o apaga
contendo os mais variados assuntos, pedidos e ao mesmo tempo dá a condição
de leitura e apreciação, comprovantes de par- necessária para que o processo
ticipação de comissões literárias, anotações de arquivamento continue, para a
própria renovação do arquivo.
de leitura, documentos pessoais, documentos
simbólicos, artefatos acumulados durante 2 ARTIÈRES, 1998, 31.

349
Com a morte de Henriqueta, com sua im- (1973), Reverberações (1976), Miradouro e

HENRIQUETA LISBOA: PARA ALÉM DAS PÁGINAS IMPRESSAS   KELEN BENFENATTI PAIVA
possibilidade de colecionar a vida, para o bem outros poemas (1976), Celebração dos ele-
da História da Literatura e para a felicidade mentos: água, ar, fogo, terra (1977), Casa de
de seus leitores, esse arquivo não parou de pedra: poemas escolhidos (1979), Pousada
ser produzido. Seu arquivo, como extensão de do ser (1982), Obras Completas. Poesia geral
sua obra, continua a gerar arquivo à medida 1929–1983 (1985). Publicou ainda os livros
que mais leitores o conhecem. Ao contrário do de ensaios: Convívio poético (1955), Vigília
que ocorre com muitos espólios de escritores, poética (1968), Vivência poética (1979), além
houve, no caso de Henriqueta, a preocupa- da organização de antologias poéticas, das
ção em preservar esse acervo documental e, traduções, prefácios e artigos publicados em
sobretudo, foi consciente a decisão de seus jornais e revistas.
herdeiros em doarem seus arquivos para o Como se pode observar, sua produção foi
Acervo de Escritores Mineiros da Faculdade intensa. Sobre seus livros de poesia, a autora
de Letras da UFMG, para que fossem alvo registra em folhas amareladas pelo tempo, no
de um trabalho de preservação e publicida- seu arquivo, uma divisão proposta em quatro
de. Sem dúvida tal decisão demonstra que grupos — os “livros espontâneos”: Enterneci-
estavam certos de que o trabalho de uma vida mento, Velário, Prisioneira da noite; os “livros
deveria ser compartilhado e não fechado em objetivos”: O menino poeta, Madrinha lua,
baús como lembranças familiares materiais. Montanha viva – Caraça e Belo Horizonte –
Vale sempre lembrar esse despreendimento, bem querer; os “livros dramáticos”: A face lívi-
uma vez que, quando se trata de espólios de da e Flor da morte; os “livros essenciais”: Azul
escritores, há a questão que envolve direi- profundo e Além da imagem; os “ontológicos”:
tos autorais, rentabilidade editorial advinda O alvo humano, Miradouro, Celebração dos
desses direitos que muitas vezes terminam elementos e Pousada do ser. Em conferên-
nos tribunais. cia intitulada “Poesia: minha profissão de
Seu arquivo conta com 4637 livros e 3101 fé”, Henriqueta propõe outra categorização:
periódicos, além de uma coleção documental Flor da morte e A face lívida seriam livros
com 4205 documentos, entre os quais estão de “dolorosas circunstâncias”; Velário, Azul
cartas, manuscritos, fotografias, quadros e profundo, Além da imagem e O Alvo huma-
mobiliário, objetos pessoais, todos doados no pertenceriam ao que ela denominou de
pela família da escritora à Universidade Fede- “índole metafísica ou ontológica” que, com
ral de Minas Gerais, em 1989. Miradouro, marcariam a “introspecção de
Mas o que dizer dessa mulher miúda, matizes psicológicas” em sua poética; O
autora de uma poesia gigante que não coube Menino poeta se inscreveria como “memória
nas páginas dos livros que publicou, que fez e contemplação”; Além da imagem e Celebra-
da poesia sua “profissão de fé”, sua “forma ção dos elementos foram elaborados a partir
de existir” e se arquivou de forma consciente da atração pela natureza; do envolvimento e
e planejada? carinho por Minas, cita Madrinha lua, Mon-
Difícil seria falar de Henriqueta Lisboa tanha viva – Caraça e Belo Horizonte bem-
sem falar de sua poesia e também de sua -querer. Reverberações seria um caso a parte
trajetória. Henriqueta atuou como professora, em que teria buscado penetrar o sentido das
inspetora de ensino, poeta, ensaísta, traduto- palavras de nossa língua. Evidentemente, tal
ra, declamadora, crítica. Foi a primeira mulher categorização feita a posteriori está carrega-
a entrar para a Academia Mineira de Letras, da de uma lógica arquivística cuja função é,
em 1963. Estreou na Literatura, em 1925, exatamente, deixar um “mapa de leitura” para
com Fogo Fátuo. Depois disso não parou o leitor. Na conferência, Henriqueta não exclui
mais de escrever, sobretudo, poesia. Publicou somente Fogo Fátuo, como havia feito em
Enternecimento (1929), Velário (1936), Prisio- suas anotações, mas também o segundo livro
neira da noite (1941), O menino poeta (1943), Enternecimento, suas mais visíveis interlocu-
A face lívida (1945), Flor da morte (1949), Ma- ções com o passado poético.
drinha lua (1952), Azul profundo (1956), Lírica
(1958), Montanha viva: Caraça (1959), Além
da imagem (1963), Nova lírica (1971), Belo
Horizonte bem-querer (1972), O alvo humano

350
CAMINHOS NÃO CATALOGADOS NO sem o temor de ser pedante e com “o máxi-
“MAPA” mo rigor”, “o que descobrir ou inventar nos
seus versos.” Propõe-se a ser “advogado do
Sem seguir o “mapa” deixado por Henriqueta, diabo”, ao se tornar leitor privilegiado dos
vamos entrar nas trilhas de seu arquivo. Fogo poemas da autora. Henriqueta mandava
Fátuo e Enternecimento carregam em comum para ele os versos antes de publicá-los e
a ligação com a tradição literária. O primeiro, Mário não usava meios termos ao criticar os
ligado às raízes parnasianas, o segundo, aos poemas, sua sinceridade e autonomia de
prolongamentos do Simbolismo. Talvez se opinião sendo, por vezes, expostas de forma
possa entrever em seu próprio arquivo os direta e sem eufemismos: “Si conservar isso,
possíveis motivos que a fizeram deixar de fora brigo com você até a quarta geração”; “Isto
da sua categorização esses livros. Quando eu juro pela minha honra que precisa tirar,
buscamos os recortes de jornais e as críticas Deus te livre!”; “Pura demagogia de orador de
da recepção, nos dois casos, encontramos comício. Pelo amor de Deus, tire isso, modi-
a referência a essa tradição literária, mas fique, se arrume!”; “Muito bom. Um bocado
há um evidente elogio aos versos de Enter- sentimental mas profundamente feminino e
necimento, sendo ele premiado. Talvez essa bem realizado.”; “Não gosto, mas desta vez é
recepção positiva tenha contribuído para que questão de incompetência minha.”; “Não gos-
Henriqueta mudasse de ideia e incluísse este to, francamente não gosto. Isto não é poesia.”
livro em suas Obras completas. “Não se assuste com a grosseria sincera das
Quanto a ter renegado Fogo fátuo, cuja minhas palavras”, avisa o leitor e crítico que
publicação se deu três anos após a Semana teria muito a “casmurrear” sobre os versos da
de 22, é possível compreender que, embora poeta nas cartas enviadas a ela. Mário insiste
no momento de sua produção grande parte que Henriqueta tome cuidado com a interven-
da literatura produzida ainda não havia se ção da professora religiosa no momento de
filiado às propostas de inovação modernis- compor seus poemas, para que o didatismo,
ta, incluir um livro de estreia de cunho bem o tom pedagógico e moralizante de tentar
conservador e tradicional em sua obra seria ensinar por meio da poesia não “assuste para
assumir publicamente seu tardio diálogo com longe a poesia.” 3
o Modernismo. Assim, seja por considerar Henriqueta atende a maioria das suges-
que se tratava de um livro de experimentação tões de Mário e assume com ele o pacto da
literária de uma iniciante, seja por querer sinceridade intelectual. Sem dúvida, Mário
negar, em certa medida, o diálogo tardio com foi o seu mais importante interlocutor. E
o Modernismo, fato é que Henriqueta excluiu nessa correspondência encontramos infor-
Fogo Fátuo também da organização de suas mações importantes sobre o processo de
Obras completas. criação de ambos. Encontramos um “mapa
O diálogo com o Modernismo ainda de leitura” detalhado se pensarmos nesse
demoraria um pouco para acontecer. Fábio arquivo da correspondência como “labora-
Lucas destaca o “prolongamento da dicção tório da criação”, como bem definiu Marcos
simbolista vigente no Modernismo” que, em Antônio de Moraes.4
Henriqueta, teria ocorrido com a publicação Cerca de três mil documentos compõem
de três livros: Enternecimento (1929), Velário a correspondência que Henriqueta conservou
(1936) e Prisioneira da noite (1941). A passos consigo. Entre cartas, cartões e telegramas
lentos, portanto, Henriqueta se aproxima dos que recebeu de familiares, amigos, escritores,
modernistas e nessa tímida aproximação vale intelectuais, críticos e artistas. Entre os 729
destacar a importância da correspondên- remetentes, lembro: Carlos Drummond de
cia trocada com Mário de Andrade, que se Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira,
iniciou no final de 1939, depois de sua vinda a Murilo Rubião, Abgar Renault, Cyro dos
Belo Horizonte. Anjos, Alphonsus de Guimaraens Filho,
Mário demarca implicitamente seu lugar
de orientador, sob a égide de um amigo
íntimo que se permite analisar os versos da
3 SOUZA, 2010, p. 86.
amiga e seguir “os ímpetos de desmontá-los
friamente numa análise longa,” dizendo-lhe, 4 MORAES, 2007b, p. 2.

351
Guimarães Rosa, Jorge Amado, Bartolomeu A POESIA ENTRE MONTANHAS

HENRIQUETA LISBOA: PARA ALÉM DAS PÁGINAS IMPRESSAS   KELEN BENFENATTI PAIVA
Campos de Queirós, Júlia Lopes de Almeida,
Laís Corrêa de Araújo, Nelly Novaes Coelho, Minas cantada por Henriqueta são muitas:
Adalgisa Nery, Henriqueta Galeno, Stella Minas lendária, Minas histórica, Minas festiva,
Leonardos, Gabriela Mistral, Jorge Guillén, Minas folclórica, Minas religiosa, Minas me-
Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, lancólica, Minas inventada. Sobre sua ligação
Ribeiro Couto, Roger Bastide, Assis Brasil, com Minas Gerais, afirma ela um ano antes
Hernani Cidade, Sérgio Milliet, Antenor de sua morte: “Eu só poderia ter nascido em
Nascentes, Antonio Candido, Mário da Minas. Caso contrário, sairia andando pelo
Silva Brito, José Mindlin, Paulo Rónai, Ángel Brasil até encontrar o meu berço.” 5
Crespo, Affonso Ávila, Jacinto do Prado Em vários momentos, ela confessa seu
Coelho, Ascenso Ferreira, José Guilherme amor a sua terra natal, sobretudo, ao falar dos
Merquior, Josué Montello, Oscar Mendes, “poemas da terra”, numa atitude de reafirma-
Blanca Lobo Filho, Fábio Lucas, Carmelo ção do que se pode chamar uma “mítica da
Virgílio. Alguns, com um número conside- mineiridade”, repetida por muitos mineiros.
rável de cartas, como Mário de Andrade, Nascida em Lambari, em 1901, a poeta viveu
Drummond e Cecília; outros, apenas com a maior parte de seus dias em Belo Horizonte
cartas circunstanciais, como foi o caso de e sua ligação com Minas ultrapassa as raízes
Jorge Amado, por exemplo. da naturalidade, permeando seus versos
Quanto à diversidade de assuntos em diferentes momentos de sua produção
tratados na correspondência, é possível poética. Tal evidência se mostra mais forte
discutir questões importantes no que tange nos três livros em que essa temática é central:
aos estudos literários e à memória cultural, Madrinha Lua, publicado em 1952; Montanha
além de ser fundamental na apreensão do viva – Caraça, em 1959; e Belo Horizonte –
perfil biográfico de Henriqueta Lisboa. Vários bem querer, em 1972.
temas compõem a trama epistolar com regis- Nesses livros, observa-se uma valorização
tros sobre a literatura produzida e noticiada da tradição, dos costumes, da história de
pelos remetentes: as etapas do processo Minas Gerais, além da recriação de retratos
de criação; a preparação e editoração de de algumas de suas ilustres personagens.
obras; a recepção crítica dos lançamentos Povoam a Minas de seus versos Bárbara
no mercado editorial; a troca de comentários, Heliodora, Aleijadinho, Tiradentes, D. Silvério,
de poemas e de textos; as notícias sobre Fernão Dias, Chico Rei, ou ainda as figuras
concursos literários e premiações; os convites dos profetas eternizadas em pedra-sabão,
para publicação e participação em eventos entre outros ícones da cultura mineira.
literários e antologias; os acontecimentos Sobre Madrinha lua, Oscar Mendes, em
sociais, políticos, econômicos e culturais, 7 de julho de 1953, destaca a capacidade
além do envio de recortes de periódicos sobre da poeta de ​—​ “em nove poemas apenas” ​
literatura e do registro sobre intelectuais —​ condensar “quase todos os dramas de que
contemporâneos seus. a cidade [Ouro Preto] foi cenário e testemu-
Voltando ao “mapa de leitura” ​—​ sem nha.” E ​—​ com sua “delicadeza de mulher e de
entrarmos em detalhes sobre cada um dos poeta” ​—​ desvendar o que talvez tivesse sido o
livros publicados por Henriqueta e sobre a di- drama profundo de Antônio Francisco Lisboa
visão categórica proposta por ela a posteriori, “sua impossibilidade de amar e de ser amado,
agrupando-os em “espontâneos”, “objetivos”, em virtude do mal repulsivo que o enfermara”,
“dramáticos”, “essenciais” e “ontológicos” ​—​ é além de colocar em cena “o drama da escra-
possível identificar em sua poética os cami- vidão” na história de Chico Rei, o “quadro
nhos trilhados pela autora. Entre eles, vale trágico do infortúnio” de Bárbara Heliodora, o
destacar: sua ligação com Minas, a presença “drama da cobiça, da febre do ouro”, o “drama
da morte em seus versos, a questão metafísi- da pobreza e da inteligência” na figura de
ca da poesia, a busca pela essência do ser e D. Silvério e o “drama da fé” nas esculturas
das coisas, as reminiscências, a serenidade dos Profetas. Segundo o autor, faltou ao
poética, a materialização da palavra canta-
da a seu modo.
5 LISBOA, 1984.

352
elenco de dramas evocados pela sensibilida- E eis que um dia de verde luz
de de Henriqueta “o drama do amor” entre A ideia é uma corola aberta:
Gonzaga e Marília que faz parte da “ambiva-
lência poética que satura Ouro Preto.” 6 A Capitania de Minas
A escritora compõe ainda uma signifi- Deve ter nova Capital.10
cativa tradução, em imagens poéticas, das
riquezas geográficas de seu estado, por meio Assim como se dedica a arquivar a própria
da descrição das cidades mineiras, tendo vida, dedica parte de sua obra a preservar o
ressaltado suas principais características. patrimônio histórico mineiro, em uma espécie
Assim o faz com Ouro Preto, Mariana, Belo de arquivamento, via poesia, da história de
Horizonte e também com o Caraça, que surge Minas e de suas personagens. Para tanto,
em Montanha Viva personificado desde o títu- valeu-se de intensa pesquisa que considerou,
lo do livro até a forma como o local vai sendo além de fontes históricas oficiais, narrativas
delineado aos olhos do leitor. A construção como as lendas, que parecem constituir, para
poética de Minas se dá principalmente com ela, uma maneira de recuperar e explicar a
ênfase no imaginário coletivo sobre seus História. Talvez por isso seu interesse pelo
vultos, na valorização do intimismo entre folclore, pela cultura popular, como forma de
montanhas, da belíssima natureza que nos abordar a multiplicidade de vozes do passa-
cerca, da religiosidade mineira. A ideia de he- do. Fato ainda observado nos títulos de sua
rói sacrificado aparece, enfatizando a criação biblioteca, em textos que escreveu e publicou
dos heróis nacionais, entre outros poemas na imprensa ou ainda em anotações encon-
em “Vida, paixão e morte do Tiradentes”: tradas em seu arquivo.
“Veio a tempestade, o incêndio / a derrubada
de troncos. / Vai-se consumando aos pou- “POETA DA MORTE”
cos / o holocausto do cordeiro.” 7 A natureza
corporificada na imagem poética do Caraça, Apesar de tentar escapar do epíteto “poeta
ganha força e adeptos, como Drummond, que da morte”, seus versos dizem mais que suas
afirmou que Henriqueta “retira da montanha, declarações em entrevistas. Dificilmente um
da atmosfera e da tradição um princípio místi- leitor que tenha contato com sua obra sairá
co, manifestado em poesia”, uma “pintura dessa leitura sem resquícios dessa temática
aérea e nítida” 8 em suas memórias de leitura. Henriqueta
O espaço urbano também se evidencia na canta a morte a partir da vivência traumática
imagem de Belo Horizonte, uma cidade que da perda, da falta.
“Cresce das mãos dos operários / canta pelo O tema não se limita aos versos de A face
timbre dos poetas / define-se no porte dos lívida (1945) e de Flor da morte (1949), mas
guias / espairece no afã dos atletas / explode encontra-se disperso em praticamente toda
na estridência das máquinas.” 9 Registra ain- sua obra, desde as primeiras publicações,
da a história da mudança da capital de Ouro quer pela presença de elementos e imagens
Preto para Belo Horizonte: ligadas a esse universo ​—​ como a noite, a

A ideia veio de remotos


tempos. A ideia veio vindo
pingo de chuva na vidraça 6 A resenha de Madrinha lua foi
publicada em O Diário, de Belo
logo fios resvaladios Horizonte, em 7 de julho de 1953,
embrião semente tenro broto na sessão “Alma dos livros.”
palpitação de trepadeira
7 LISBOA, 1985, p. 223.
para ganhar maior impulso —
de outra feita alcançarei o voo 8 O texto foi publicado também com
e saltarei além do muro —. o título “Henriqueta e o Caraça”, no
Correio Paulistano, em 1 de agosto
A ideia vem com pertinácia de 1959. Ver: DUARTE, 2003,
Recua avança mais um passo pp. 68–70.
Às vezes tem eco a distância
9 LISBOA, 1972, pp. 73–4.
Rodopia a rosa dos ventos
O sol que a doura é uma promessa 10 Ibid., p. 42.

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névoa, o abismo, as entranhas da terra, a so- Dobrando meus frios joelhos

HENRIQUETA LISBOA: PARA ALÉM DAS PÁGINAS IMPRESSAS   KELEN BENFENATTI PAIVA
lidão da lua ​—, quer pelo constante interesse farei perguntas à terra.
pela essência e transcendência do ser, das Depois de ouvir-lhe o segredo
quais a morte e a dor são partes integrantes. deitada por entre lírios
Para Henriqueta, a morte é ao mesmo adormecerei tranquila.13
tempo desejada e temida, sobretudo pela
concepção cristã que comunga: Esse sentido atribuído à morte também
evidencia a preocupação metafísica presen-
Na morte nos encontraremos te em seus versos. Em outros momentos, a
Sim, na morte. morte será temida como em “Acalanto do
Tempo de consórcio e de vínculo. morto”, em que a ela se mostra como “uma
Depois de caminhos extremos. sombra informe / crescendo nos vales”, “com
Quer pelo sul ou pelo norte. cem braços móveis / com cem braços fixos”,
Ao término de circunstâncias: “com propostas e enigmas de fera na jaula”,14
Passos certeiros ou perdidos. ou em “Silêncio da morte”, em que ela figura
Sem palavras nem sentimentos. como uma “Fera de olhos oblíquos espreitan-
Com simplicidade suprema. do a ampulheta”.15
Na morte nos encontraremos. Pode-se dizer que a força de seu “tratado
[…] sobre a morte”, como bem nomeou Carlos
Na morte nos encontraremos. Drummond de Andrade, marcaria sua ima-
Na morte. gem autoral até os dias atuais. Contudo, seus
Terra de conquista do sangue. versos deixam registrados que o maior misté-
Braços um dia decepados rio não estaria na morte, mas na vida:
Voltando ao torso a que pertencem.11
Na morte, não.
A concepção cristã de morte possibilita uma Na vida.
“reação de vida”, a esperança de um novo Está na vida o mistério.
começo, uma nova existência. O poema foi Em cada afirmação ou abstinência.
enviado pela escritora a Carlos Drummond de Na malícia das plausíveis revelações,
Andrade na ocasião do falecimento da mãe no suborno das silenciosas palavras.16
do poeta. Como forma de consolo, o poema
segue em carta e depois foi publicado em Flor Compreender a vida, ouvir os sentidos das
da morte. Em outros momentos da obra de silenciosas palavras, das infindas inquietudes
Henriqueta, a beleza da morte e sua natu- humanas seriam os maiores desafios do ho-
ralidade serão cantadas em belas imagens mem diante de suas limitações e efemeridade.
poéticas como em “É uma criança”: “Nada Talvez se possa afirmar que para Henriqueta
mais lindo que uma pálida / criança ador- a melhor forma de investigar esse mistério
mecida entre flores”;12 ou em “Os lírios”, em era por meio do pensamento e pela sensibili-
que o encontro com a morte figura como um dade poética.
adormecer tranquilo:

Certa madrugada fria


Irei de cabelos soltos
Ver como nascem os lírios.
Quero saber como crescem
Simples e belos ​—​  perfeitos!
11 Idem, 1985, 164.
— Ao abandono dos campos.
Antes que o sol apareça 12 Ibid., p. 173.
Neblina rompe neblina
13 Ibid., p. 105.
Com vestes brancas, irei.
Irei no maior sigilo 14 Ibid., p. 166.
Para que ninguém perceba
15 Ibid.
Contendo a respiração.
Sobre a terra muito fria 16 Ibid., p. 164.

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“PENSAMENTO INTELECTUAL” Henriqueta defende sua poesia e não abre
E “SENSIBILIDADE POÉTICA”: mão da introspecção e do intimismo. Assim, o
UM DIÁLOGO POSSÍVEL isolamento a que se propõe a poeta frente aos
dramáticos conflitos de sua época “não é uma
Podemos dizer que dois pilares sustentam a alienação”, “mas uma estruturação filosófi-
produção poética de Henriqueta Lisboa: o pen- ca pessoal, que não raro atinge uma visão
samento intelectual e a sensibilidade poética. metafísica”, como bem destaca Laís Corrêa
Laís Corrêa de Araújo é feliz ao destacar dois de Araújo (1963).
aspectos de sua poética: o “ato crítico” e a ques- Pode-se afirmar que o engajamento pro-
tão metafísica, que, a partir de Além da imagem, posto por Henriqueta na relação Literatura e
vai ganhando força em sua criação poética.17 sociedade se deu de maneira específica. Para
Seguindo essas pistas, novamente vale Henriqueta, voltar-se para o individual signi-
recorrer à correspondência trocada entre a ficava, verdadeiramente, exercer seu papel
escritora e Mário de Andrade. Ele insistia em de artista e intelectual, uma vez que, quanto
dizer a Henriqueta que era preciso ter cuidado mais o indivíduo volta-se para si mesmo, para
para não “aclarar por demais a poesia”, o que o íntimo de sua consciência e responsabili-
prejudicaria a vagueza lírica e a força intuitiva dade, mais participa e projeta o mundo em
antilógica da imagem: que se insere.
Talvez se deva a essa persistência e per-
É feio, chega a ser falta de educação isso sonalidade poética de Henriqueta que Mário
de ter encontro marcado “com o des- a tenha incentivado a permanecer fiel a seu
tino” que é um senhor. […] Modifique projeto estético:
isso, Henriqueta, modifique sinão brigo
com você até a décima geração. Diga sim Fique sozinha si for preciso mas fique
que tem um encontro marcado há longo com a sua ‘necessidade’ poética. […] Eu
tempo, tudo isso é lindo, MAS NÃO não creio mais que mesmo uma exclusivi-
DIGA COM QUEM! 18 dade mística da sua poesia nova possa ser
entre nós um motivo siquer de afasta-
Este parece ter sido um constante embate mento leve. Nem meu nem siquer dos que
para a poeta, fazer com que seu pensamento já tiveram força bastante para ‘escolher’
intelectual não sufocasse sua sensibilidade a sua poesia. Aliás isso me agrada, que a
poética. E Henriqueta parece ter conseguido sua poesia se eleve cada vez mais como
equilibrar os dois aspectos em sua poesia. escolha de sentimento e pensamento.
Um dos motivos do silêncio da crítica em (SOUZA, 2010, 248.)
torno de sua produção se deve ao fato de
seus poemas estarem fora das linhas gerais Se a “necessidade poética” de Henriqueta
de interesse da crítica nacional, exatamente se afastava da proposta de Mário por ter ela
por não produzir uma poesia ligada ao social, tomado o caminho da “exclusividade mística”,
além, evidentemente, das dificuldades do a aproximação continuava existindo pelo lugar
“isolamento” editorial em Minas. Sobre o as- privilegiado da sensibilidade poética e da
sunto, a autora escreve a Mário de Andrade: força do pensamento intelectual. É possível
identificar rumos da poesia de Henriqueta,
Você diz que não pertenço às linhas gerais sua lírica metafísica, a transcendência retra-
da crítica da poesia nossa, nem dos seus tada em seus versos, a formação religiosa
problemas e intenções. Pois é isso. Os nessa busca da essência do ser “sem ilusão
meus problemas são até muito humanos, das aparências”, para usar suas palavras:
são meus como de todos aqueles que “tenho visado, de modo pertinaz e intensivo, a
apelam para as forças morais em face da essência do ser, a substância do que é vital, a
esfinge, quando não logram decifrá-la.
Sinto-me criatura de Deus antes de tudo,
muito antes de ser brasileira. E com isso 17 ARAÚJO, 1963.
não sei se haverá metal brasileiro na
18 SOUZA, 2010, p. 88.
minha poesia. ​—​ Estarei no meio da raça
como estrangeira?19 19 Ibid., p. 304.

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ansiedade da criatura em busca da perfeição Diante do exposto, podemos pensar que

HENRIQUETA LISBOA: PARA ALÉM DAS PÁGINAS IMPRESSAS   KELEN BENFENATTI PAIVA
e do infinito, os mistérios da natureza, o pró- o arquivo material constituído de todos os
prio mistério do processo poético, o relaciona- documentos que Henriqueta guardou e todos
mento entre a alma e Deus, a caminhada da os livros que escreveu e publicou trabalham
alma à procura de Deus.” 20 em prol da construção do retrato social da
Vale destacar que Henriqueta trilhou escritora. Das representações sociais de
caminhos próprios, que manteve rede de Henriqueta por meio do olhar de outros,
amizades literárias diversas, mas que fez de predomina a imagem de uma escritora que,
sua poesia retrato de si mesma. Não se trata, longe de se limitar ao campo dos sentimentos,
é claro, da já frustrada tentativa em nossa historicamente atribuído à mulher, é descri-
história literária de explicar a obra por meio ta sob o signo da inteligência, da profunda
da vida. Contudo, não se pode desconsiderar capacidade de pensar e de se expressar
a palavra da escritora, ainda que reconhe- liricamente.
çamos em sua fala a construção consciente Podemos conceber o arquivo, consideran-
ou inconsciente de uma personagem que do a categorização de Le Goff que o denomi-
habita a vida e o cenário literário. Entre tantas na “documento-monumento”, instrumento
palavras, ela declara em certo momento: a serviço de interesses. Se ao documento foi
“Fiz da poesia minha profissão de fé”, para historicamente atribuído um valor de prova, de
justificar sua dedicação aos versos; em outro, testemunho, ao monumento é dada a tarefa de
confessa: “Minha vida está toda nos meus transmitir à posteridade a memória, uma es-
livros”, para escapar das perguntas curiosas; pécie de herança do passado. Para o autor, “O
ou ainda: “Fiz da sombra e do silêncio minha documento é monumento. Resulta do esforço
morada”, para explicar, em metáfora, simulta- das sociedades históricas para impor ao futuro ​
neamente, o temperamento introspectivo e a —​  voluntária ou involuntariamente ​—​  determi-
opção poética. nada imagem de si próprias.”23 Assim, o arqui-
Sua obra se funde a sua vida, sua vida vo de Henriqueta é documento-monumento
imbrica-se em sua obra, configurando o na medida em que constitui herança de
que podemos chamar de “retrato social” de um passado vivido e resulta do esforço da
Henriqueta, ou seja, as várias imagens que escritora em guardar, para o futuro, a imagem
vão sendo elaboradas a partir do olhar do desejada de si e de sua trajetória literária. Por
outro sobre a escritora, tendo como referência isso mesmo, não há que se desconsiderar que
a sua obra. Exemplar desse processo são as “todo documento é montagem.” 24
palavras de Gabriela Mistral em conferência Enfim, para pensarmos nessa “projeção
em Belo Horizonte, em 1944: da imagem desejada de si”, vale dizer que o
projeto autobiográfico de Henriqueta, cons-
Recordo-me a primeira vez que vi truído ao longo de uma vida, foi bem sucedido.
Henriqueta Lisboa. Ela se parecia com A materialização de sua figura em monu-
seus livros, coisa que poucas vezes acon- mento, assinado pelo artista Leo Santana e
tece. Um corpo de menina, parado na colocado na Praça da Savassi, a cem metros
adolescência, um talhe de arbusto e não do local em que morou, em Belo Horizonte,
de árvore, um tamanho de retama. E, em reafirma o espaço público da praça como
contraste rotundo com essa infantilidade “lugar de memória”, para usar um termo caro
corporal, uma conversação madura, sem a Pierre Nora (1993), em que a encenação da
banalidade alguma.21 vida ultrapassa as páginas impressas e as
paredes físicas de seu arquivo. Com 1,60m
A imagem da fragilidade física em contra-
pondo com a robustez intelectual se reafirma
em outros olhares, como nas palavras de 20 LISBOA, 1979, pp. 18–9.
Drummond, que a retrata como “leitora sen-
21 MISTRAL, 1944.
sível”, poeta “de ombros frágeis e delicados,
mas tão fortes.”;22 ou ainda sob o olhar de 22 DUARTE, 2003, p. 77.
Mário, que a descreve como “ser de passari-
23 LE GOFF, 2003, p. 538.
nho”, capaz de, por meio da palavra, acalantar
o inquieto espírito do amigo. 24 Ibid., p. 525.

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de altura, a mulher materializada em bronze,
com estrutura reforçada internamente por
tubos de aço, coincide com a imagem que
a autora mais desejou arquivar: a mulher
comedida, vestida com discrição e, sobretudo,
a escritora-leitora com seu mais caro objeto
nas mãos: o livro.

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REFERÊNCIAS

HENRIQUETA LISBOA: PARA ALÉM DAS PÁGINAS IMPRESSAS   KELEN BENFENATTI PAIVA
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Henriqueta Lisboa, algo de sombra e orvalho. Estado de Minas,
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ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 11,
n. 21, 1998. pp. 9–34.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.
DUARTE, Constância Lima. Remate de Males. Correspondência de Carlos Drummond
de Andrade e Henriqueta Lisboa. Campinas: Departamento de Teoria Literária IEL/
UNICAMP, n. 23, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 5 ed. Campinas: Editora Unicamp, 2003.
LISBOA, Henriqueta. Belo Horizonte bem-querer. Belo Horizonte: Eddal, 1972.
———. Vivência poética. Belo Horizonte: São Vicente, 1979.
———. Entrevista concedida a Edla Van Steen publicada n’O Estado de S. Paulo, São
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———. Obras Completas. Poesia geral 1929–1983. São Paulo: Duas Cidades, 1985.
MENDES, Oscar. Poesia. O Diário, Belo Horizonte, 7 jul. 1953. A alma dos livros, p. 4.
MISTRAL, Gabriela. A poesia infantil de Henriqueta Lisboa. A Manhã. Belo Horizonte,
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MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar. São Paulo: Edusp, 2007.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Tradução: Yara Aun
Khoury. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 7–28, dezembro de 1993.

358
359
GUIMARÃES ROSA:
VIDA E OBRA NOS
ALINHAVOS DA
LINGUAGEM
MÁRCIA MARQUES DE MORAIS

360
A marca de um além Minas se inscreve na sertanejo Riobaldo, que desabafa: “Ao que,
vida de nosso autor Guimarães Rosa, no este mundo é muito misturado…” 4
mesmo dia em que seus olhos miguilínicos, O menino Joãozito cedo deixou o sertão,
de “vista curta”,1 apertadinhos pela miopia, cedo atravessou o sertão; cedo deixou sua
na peleja de sempre para enxergar o além cidade do coração, cedo foi ter a outras cida-
das coisas, a “sobrecoisa”, veem a luz. É que, des, quem sabe vislumbrando “as margens
como se sabe, João Guimarães Rosa, nasce da Alegria”, como o Menino, personagem do
Joãozito,2 em Cordisburgo. Cordisburgo que conto, que, pela primeira vez, fora conhecer
fora Vista Alegre ​—​ olha só! ​—​ e, que, já como o “lugar onde se construía a grande cidade”.5
Vista Alegre, enfatizava, como palavra, o olhar, Em Belo Horizonte, cursa o ensino médio no
a visão, sentido privilegiado na produção Colégio Arnaldo, estuda Medicina na Universi-
literária de nosso autor, que, na observação dade de Minas Gerais ​—​ UMG —, hoje, UFMG,
minuciosa da realidade “física” extraía maté- e forma-se médico, passando ao exercício da
ria para a ultrapassagem, para sua travessia profissão em duas cidades mineiras: Itaguara
literária, para sua particular “metafísica”. De e Barbacena.
Vista Alegre a Cordisburgo, parece que o Se Itaguara, “outro arraial do interno”, é
amor de Rosa pelas palavras faz que elas o lugarejo do “médico da roça” 6 e também
biografem, parece que elas já vão grafando, cenário recriado de algumas narrativas de
escrevendo sua vida… Cordisburgo, pois, Sagarana, Barbacena é destino do trem do
substitui o nome da cidadezinha Vista Alegre sertão, que atravessa a vida de “Sorôco, sua
e, de certa forma, figura uma outra travessia mãe, sua filha”, como “um canoão no seco,
muito cara à escrita rosiana ​—​ a passagem do navio”.7 Desloca-se ele para o “lugar sertão” e
popular ao erudito, melhor dizendo, sua mis- um tempo de que “os gerais desentendem”,8
tura, seu amálgama. Se, sertanejamente, se espaço e tempo míticos; realiza-se, recriado,
chama à cidadezinha de Vista Alegre, Cordis- na comunidade do sertão, o mito dos Argo-
burgo já seria um nome que remete ao mundo, nautas; embaralham-se fato e ficto, real e
à escrita, à erudição ​—​ uma erudição, é claro, imaginário, para dizer sempre do “homem
de um mundo que, rosianamente, também é humano” e suas travessias reversíveis: do
sertão. Como confessa Guimarães Rosa, em sertão ao mundo; do mundo ao sertão.
seu diálogo com Günter Lorenz,3 Cordisburgo Assim se vão percebendo as Minas, ainda
seria seu império suevo-latino, incrustado habitadas por Guimarães Rosa, já muito
no coração de Minas… A cidade do coração, além dos Gerais. É que sua literatura, como
contido, etimologicamente, no signo Cordis- arte legítima, desconhece fronteiras e, se
burgo, já vaticina caminhos, percursos do ela fala do sertão, também fala do mundo;
escritor. Um caminho concreto que anuncia o se, geograficamente, no conto de Primeiras
seu lançar-se ao mundo, já que, do coração do estórias, refere-se a Barbacena de onde toma
sertão, escrito em latim cordis, ele se lançará impulso o ato criador, refere-se também
ao mundo; do sertão, ele perscrutará a cidade,
nomeada, em alemão, burg. Um caminho
artístico, escritural, prefigurado na própria
1 ROSA, 1984, p. 139.
composição da palavra, que a gramática clas-
sificaria como formada por hibridismo, pois 2 GUIMARÃES, 1972.
que lança mão de radicais de línguas diversas
3 LORENZ, 1991.
na sua estrutura, ou seja, une o coração, em
latim ​—​  Cordis ​—​  à “cidade”, em alemão ​—​  bur- 4 ROSA, 1965, p. 169.
go, adiantando-nos um processo de criação e
5 Idem, 1968, p. 3.
escrita tão caro à arte de Guimarães Rosa.
Como se vê, a palavra, desde sempre, 6 BIZZARRI, 1980, p. 97.
desde o início, parece ir fiando vida e traves-
7 ROSA, 1968, p. 15. Cf. MORAIS,
sia literária de Rosa. Assim, pois, coração e 1998 e MORAIS, 2004. Cf., ainda,
cidade; cidade e sertão; sertão e mundo serão PERRONE-MOISÉS, 2002, que
sempre fios entrelaçados na sua produção faz alusão a esse encaminhamento
interpretativo.
literária, e os (des)limites entre eles são
uma das fortes marcas do escritor e de seu 8 Idem, 1965, p. 86.

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à segregação dos loucos pelo preconcei- sempre mudando. Afinam ou desafinam.

GUIMARÃES ROSA: VIDA E OBRA NOS ALINHAVOS DA LINGUAGEM    MÁRCIA MARQUES DE MORAIS
to, denunciando, artística e agudamente, Verdade maior.” 14
avant la lettre, como o fizera Machado de Fazendo eco a essa constatação de
Assis (1992), em “ O alienista”, a “história Riobaldo, nosso escritor se afina mais um
da loucura”, objeto dos estudos de Michel pouco: migra da sua condição de médico para
Foucault (1978). A obra Holocausto brasileiro, a carreira diplomática. Se, em um curriculum
de Daniela Arbex (2013), publicada mais de vitae sucinto, a que intitula “Bobagens Biográ-
trinta anos depois da ficção de Guimarães ficas”, enviado, em carta, a Edoardo Bizarri,
Rosa, denuncia o genocídio de sessenta seu tradutor italiano, justifica ter deixado a
mil seres humanos no século XX, no maior Medicina pelo “gosto de estudar línguas, e a
hospício do Brasil, o Colônia, em Barbacena, ânsia de viajar pelo mundo”,15 há um momen-
condensando Auschwitz e a cidade mineira to em que confessa sua perplexidade diante
que abrigou um outro campo de extermí- do sofrimento humano e da impotência do
nio. Eram os anos 60 do século passado a médico.16 Talvez, quem sabe, mundo e lín-
ecoarem o conto rosiano, de 19629: “ Isso não guas a serem buscados pudessem represen-
tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais”.10 tar instâncias para onde se encaminha uma
O conto ainda cicia: “Para o pobre, os lugares possível depuração do homem que, ele crê,
são mais longe”,11 referindo-se a Barbacena, dever ser perscrutada dentro de um si-mesmo,
lugar de destino do trem que recolhe mãe para ser mirada e vista em espelho comum a
e filha de Sorôco e nos faz ver, de novo, a todos os homens, nos moldes do que pensa
reversibilidade entre o perto e o longe; a Adorno quando nos fala de lirismo e socie-
aproximação e o afastamento de realidades dade: “A universalidade do teor lírico é […]
próximas e distintas; o esboroar de fronteiras essencialmente social. Só entende aquilo que
geográficas ou históricas, quando seria o [o lirismo] diz quem escuta, em sua solidão,
homem a medida de todas as coisas ou, nas a voz da humanidade…” 17 Das suas Minas
palavras de Riobaldo, quando o que “Existe é aos Gerais do mundo, ei-lo, pois, alçando voo;
homem humano”.12 de novo, como o Menino que inaugura suas
Se em, Barbacena, ele exerce sua pro- Primeiras estórias. No entanto, sempre no
fissão como médico da Brigada Estadual, “inverso afastamento” 18 ​—​ para o mundo, para
incorporado ao 9º Batalhão de Infantaria, isso os gerais, mas bebendo nas minas, pesqui-
o autoriza a confessar em entrevista: “Como sando as minas e suas preciosidades.
médico conheci o valor místico do sofrimento; Sua carreira diplomática pode ser assim
como rebelde, o valor da consciência; como descrita, sinteticamente: nomeado Cônsul,
soldado, o valor da proximidade da morte…”,13 serviu no Ministério das Relações Exteriores,
levando-nos a entender que a vida, lapidando no Rio de Janeiro (1934–1938); foi removido
homem e escritor, vai provendo-o de matéria para o Consulado-Geral de Hamburgo (Ale-
de memória. Tal matéria, em sua literatura, manha), como Cônsul-Adjunto (1938–1942);
converge sempre para o homem no mundo, daí, é designado Segundo-Secretário para a
um mundo sem fronteiras e projetado com Embaixada do Brasil em Bogotá (Colômbia,
uma terceira margem, como se escuta na 1942–1944); serve no Ministério das Rela-
voz de Riobaldo, narrador de Grande Ser- ções Exteriores, de 1944 a 1948, quando é
tão: Veredas, confessando ele mesmo a seu removido para a Embaixada do Brasil em
interlocutor: “O senhor… Mire veja: o mais Paris, como Primeiro-Secretário; regressa ao
importante e bonito, do mundo, é isto: que Brasil, em 1951, para, sete anos depois, ser
as pessoas não estão sempre iguais, ainda promovido a Embaixador; finalmente, assume,
não foram terminadas ​—​ mas que elas vão em 1964, no Itamaraty, a Chefia do Serviço de

9 Cf. ARBEX, 2013, pp. 27–8. 13 LORENZ, 1991, p. 67. 17 ADORNO, 2008, p. 67.

10 ROSA, 1968, p. 16. 14 ROSA, 1965, pp. 20–1. 18 ROSA, 1968, p. 168.

11 Ibid., p. 15. 15 BIZZARRI, 1980, pp. 96–7.

12 ROSA, 1965, p. 460. 16 PEREZ, 1968.

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Demarcação de Fronteiras.19 Mas, como “A credo; nela, o verbo se faz carne de suas cren-
vida também é para ser lida”,20 conselho do ças no homem e no mundo. Esse mundo, pois,
múltiplo prefaciador de Tutaméia, em “Aletria dilatado e misturado, que tanta perplexidade
e Hermenêutica”, palavras alinhavam a vida causava a Riobaldo, em Rosa, no entanto,
do homem, do homem que, com a linguagem, não se projeta só para fora, para o outro, para
verdadeira protagonista de sua obra, borda o novo de outros lugares e outras línguas.
sua literatura. Assim, aquelas fronteiras Se ele anseia viajar pelo mundo e estudar
que ele pretende ultrapassar, na inscrição línguas, como alega, ao deixar a medicina
imaginária de uma terceira margem, que faça para ingressar na carreira diplomática, esse
debordar primeira e segunda, margens orto- movimento de se lançar à frente, de prospec-
doxas de todos os rios, aparecem para serem ção, se articula com um outro, o de volta, de
demarcadas em sua função diplomática… retrospecção. Assim é que os neologismos,
De novo, o mundo se nos parece muito essa criação do novo, convivem, nos textos
misturado, como o foi para Riobaldo em sua rosianos, em perfeita harmonia, com os arca-
conversa com Jõe Bexiguento, no Cansan- ísmos, com ruínas de palavras que guardam
ção Velho. O paradoxo desenha, ou melhor, consigo uma lembrança muito próxima das
garatuja, faz das suas, na vida de Guimarães coisas que nomearam. Esse movimento de
Rosa, que, como ninguém, sabe com ele direção dupla, híbrido, portanto, ele também,
lidar, enfaticamente, em sua literatura. Aí, há confirma a coerência da forma da literatura
sempre ser e não-ser, em convívio, a nos dizer de Rosa, a reiterar-lhe o fundo, como se a
que mundo e homem não mais suportam forma textual reapresentasse vida e visão de
o olhar maniqueísta e que o “to be or not to mundo. Tal movimento ​—​ de recuo e avanço
be” shakespeariano não é mais a questão; e vice-versa ​—​ pode ser seguido, sem grande
aí, há verdades que advêm do equívoco e o esforço, quando o leitor se dedica a acom-
que não é influi no que é; aí, o que inexiste panhar também a estrutura das suas obras.
entremostra a vontade de se materializar, e o No romance Grande sertão: Veredas, por
não-dito é pleno de significação, como insiste exemplo, em idas e vindas, o narrador pede
o crítico e amigo Paulo Rónai,21 logo após a a seu interlocutor que lhe desculpe a “boca
morte do escritor, no posfácio da 9ª edição de [sem] ordem nenhuma”,22 apresentando-nos,
Tutaméia (1985). na primeira metade do livro, o que nomeia
Portanto, fronteiras, mais que demarca- “só apontação principal”,23 desordenada, em
das como querem as relações exteriores, com movimento de memória recuada, perscruta-
minúscula e como trocadilho, em Guimarães dora de um antigamente, e, na segunda parte,
Rosa serão tratadas, literária e linguistica- uma certa ordenação, numa projeção, que
mente, como entre-lugares habitados por avança, seguindo a marcha jagunça. Na obra
aparentes insignificâncias, por tutameias, Primeiras estórias, princípio e fim se irmanam,
por nonada, de onde o escritor mineiro extrai tematicamente, na viagem do Menino que co-
a essência de sua arte. Nesses limiares se nhece, pela primeira vez, a grande cidade, no
encontram os diversos; nesses limiares, as primeiro conto “As margens da Alegria”, e que
realidades se revertem; nesses limiares, o real retorna àquela cidade, no último conto, “Os
se faz de versos rosianos. Figuração quase cimos”. Ambos os contos, abrindo e fechando
palpável dessa diversidade, convergindo o volume, desenham parênteses, incrustando
para a criação de uma nova realidade, uma os outros dezenove e figurando, quem sabe, a
outra visão de mundo, pode ser apontada própria inserção parentética de Brasília, uma
no cuidado que Guimarães Rosa devota possível leitura da cidade para onde viaja o
a sua linguagem, através de intervenções
no código linguístico, que não escapa de
operações de cruzamento, fusão, transposi- 19 BIZZARRI, 1980, p. 97.
ção e transformação. Se isso é flagrante no
20 ROSA, 1985, p. 8.
léxico, na criação de neologismos frequentes,
nos hibridismos que povoam suas páginas, o 21 RÓNAI, 1980, pp. 215–25.
autor não deixa que disso escapem a fonética,
22 ROSA, 1965, p. 19.
a morfologia e a sintaxe da língua portuguesa.
A língua é, para Rosa, a materialização de seu 23 Ibid., p. 234.

363
Menino, no cerrado sertanejo. Para reiterar, o português falado na Europa”, uma língua

GUIMARÃES ROSA: VIDA E OBRA NOS ALINHAVOS DA LINGUAGEM    MÁRCIA MARQUES DE MORAIS
mais ainda, essa arquitetura da obra que, não saturada e “Além do Bem e do Mal”, diz,
rosianamente, aponta o teor de sua temática, textualmente, que, para buscar o impossível,
o conto “O espelho” apresenta-nos, não por o infinito, “acrescentei à síntese existente a
acaso, dois espelhos “fazendo jogo” ​—​ “um minha própria síntese, isto é, incluí em minha
de parede, o outro de porta lateral, aberta em linguagem muitos outros elementos, para
ângulo propício”,24 dependurados no meio ter ainda mais possibilidade de expressão”.29
da obra, quem sabe, para propiciar, também, Perguntado, então, sobre quais seriam esses
além de reflexo e refração, idas e vindas dos/ elementos adicionais, o escritor enumera:
nos contos, que ele separa e junta. Esse jogo primeiro, a utilização daquela palavra como
de espelhos em que o narrador se vê em se ela mal tivesse acabado de nascer, prenhe
ângulos diversos e em que espelhos se refle- ainda de seu sentido original; segundo, a
tem e se refratam, reciprocamente, propicia, inclusão, em sua dicção, de particularidades
ainda, uma perspectiva em infinito: de uma dialetais de sua região e que, conforme frisa,
coisa dentro da outra, dentro da outra, dentro são linguagem literária, têm a tal marca origi-
da outra,25 infinitamente, como se reitera, nal, não estão desgastadas e “quase sempre
sobretudo em Primeiras estórias, na figura da são de uma grande sabedoria linguística”.30
lemniscata, desenhada no “índice enigmático” Além disso, continua, ocupa-se do idioma for-
de vinte dos vinte e um contos ali presentes. mado sob a influência das ciências modernas ​
Se o estudo das línguas é outro motiva- —​ uma espécie de dialeto ​—​ e lança mão de
dor de Guimarães Rosa, aí também o autor um magnífico idioma quase esquecido ​—​ o
anseia o diálogo interlinguístico, reiterando a português medieval dos sábios e poetas…
fronteira como entre-lugar que diz de muitas Como se vê, um além produzido pelos efeitos
culturas e, portanto, lócus de um dizer múlti- da linguagem sobre a literatura de Rosa está
plo, metáfora daquela língua purificada, por irremediavelmente condicionado a um aquém,
operação alquímica, que, segundo ele próprio, a uma volta à língua original, a uma gênese
seria “arma com a qual defendo a dignidade linguística.
do homem”, e, mais, possibilidade de, renova- Para tornar mais explícito esse trabalho
da a língua, renovar-se, também, o mundo.26 rosiano com a língua, no seu afã de ir-e-vir,
Nesse aspecto, o conhecimento de para conseguir o universal a partir de sua
línguas que ele falava fluentemente (além do “aldeia”, para perceber o mais além, já em
português, espanhol, francês, inglês, alemão suas Minas Gerais, vale a pena reler o conto
e italiano), associado à possibilidade de “Famigerado”, de Primeiras estórias.31 Nele, o
leitura em latim, grego clássico e moderno, narrador, não por acaso, médico de um arraial,
sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, hún- é procurado por um bravo jagunço, Damázio,
garo, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e para que lhe desvende o significado do termo
malaio,27 atesta, ainda uma vez, a habilidade
posta em ato, em sua literatura, de buscar, na
língua, seu “aspecto metafísico”, na expres- 24 Idem, 1968, p. 73.
são do próprio Rosa.28 Segundo ele, seria pre-
25 Cf. GALVÃO, 1986.
ciso livrar cada palavra da saturação do uso
cotidiano, sondando-lhe o momento mágico 26 LORENZ, 1991, p. 87.
em que cada uma delas acabou de nascer
27 Ibid., p. 82.
e guarda ainda uma relação original com a
coisa nomeada. Nessa ótica, o movimento 28 Ibid., p. 87.
que impõe ao trabalho com a linguagem na
29 Ibid., p. 81.
sua produção literária também repete idas e
vindas. Ele busca, nas origens das palavras e, 30 Ibid.
quem sabe, em uma origem comum, sua for-
31 As referências ao conto “Famigera-
ma primeira e faz que dialogue com aquelas do” se farão a partir de ROSA, 1968,
que lhe foram sendo incorporadas. Assim, no 4ª edição de Primeiras estórias, pela
diálogo com Günter Lorenz, ele, confessan- livraria José Olympio Editora. Por-
tanto, nas citações do conto, a partir
do ser o “o português-brasileiro uma língua de agora, só se indicará o número
mais rica, inclusive metafisicamente, que da página de onde foram extraídas.

364
“famigerado”, que lhe fora atribuído por um me vê, com vantagens, hum, o que eu queria
moço do Governo lá na Serra. Damázio fora uma hora destas era ser famigerado ​—​ bem
ter ao arraial, acompanhado por três cavalei- famigerado, o mais que pudesse!…’”), nasceu
ros para lhe servirem de testemunho. Procura- “neutro”, já que “fama”, segundo Houaiss, é
ra o médico, pois, não havia por ali “o legítimo ​ “o que se diz de alguém, renome, reputação
—​ o livro que aprende as palavras” (p. 11) e boa ou má”,32 donde se têm famoso, infâmia
com o padre do São Ão o jagunço não se dava. e difamar, por exemplo. E, como é esperto, o
Aflito e muito nervoso, ele perguntava pelo narrador-médico sabe disso e, mais, declara
significado da palavra ao narrador que, diante essa neutralidade, ao tranquilizar Damázio,
do esbravejar do jagunço, foi ficando cada vez inseguro quanto ao fato de ter sido ofendido.
mais assustado, pois que poderiam “ter feito Ele responde, primeiro, que “Famigerado é
intriga, invencionice de atribuir-me a palavra inóxio” e adianta, pois, o caráter inofensivo
de ofensa àquele homem” (p. 11). Perplexo, o da palavra, apelando para um termo “erudito”
narrador mede palavras para responder ao e distante, cuja variante mais próxima seria
jagunço, atrasando, quem sabe, um desfecho “inócuo” e que, de qualquer modo, deixa o
inesperado para o fato… Diz-lhe, então, que jagunço na mesma, ainda que ele lhe apre-
“famigerado” é “inóxio”, é “célebre”, “notório”, sente os sinônimos: “célebre, notório, notável”.
“notável”…, o que, evidentemente, Damázio Interpelado, de modo direto, se, afinal, aquele
não entende e devolve: “Mais me diga: é seria “nome de ofensa” (p 12), o narrador
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Far- reitera sua resposta, dizendo serem aquelas
sância? Nome de ofensa?” (p. 12) O narrador “expressões neutras, de outros usos” (p. 12), e,
acode: “— ‘Vilta nenhuma, nenhum doesto. rosianamente, diz isso mostrando, com todas
São expressões neutras, de outros usos…’” as letras, expressões do século XIII, do portu-
(p. 12). As reticências do texto denotam, como guês medieval: “— ‘Vilta nenhuma, nenhum
é evidente, a intenção do narrador em retardar doesto’” (p. 12), ou seja, nada que avilte, que
a resposta, mas Damázio insiste na “tradu- comprometa, que desonre…
ção” daqueles adjetivos eruditos, dizendo: Nosso autor, sábia e sabidamente, tendo
“— ‘Pois… e o que é que é, em fala de pobre, optado por caracterizar o dicionário como
linguagem de em dia-de-semana?’” (p. 12) “o legítimo, o livro que aprende as palavras”
Em conflito sobre que resposta dar àquele (p. 11) e não o que as ensina, como escutamos
“brabo sertanejo, jagunço até na escuma do da boca de Damázio, faz-nos estranhar um
bofe” (p. 9), temeroso de que “com um pingo narrador erudito que não aprendera com o
no i, ele [o] dissolvesse” (p. 9), o médico opta dicionário, já que este, atualizando-se sempre,
pelo significado “positivo” do termo e respon- deveria fazer constar que “famigerado” passa
de a Damázio que “famigerado” é “‘importan- a ter conotação pejorativa de mal afama-
te’, que merece louvor, respeito…” (p. 12) do, “que tem muita fama, principalmente
Essa é uma breve paráfrase do con- quando má”, diz o Larousse.33 Por que, então,
to, amostra, em miniatura, do processo o erudito narrador subtrai do jagunço o sig-
de escrita de Guimarães Rosa. Nas linhas nificado corrente do termo, e, mais, atrasa o
desse texto, temos um “causo” contado pelo esclarecimento de Damázio, ao não empregar
narrador erudito, citadino, que é interrogado a linguagem de “em dia-de-semana”, “ em
por um homem do sertão, cuja linguagem, fala de pobre”?
circunscrita ao registro oral, estranha o atri- O conto nos dá essa resposta bem no
buto que lhe dá um homem do Governo. Nas início, com um dos aforismos mais profundos
entrelinhas, temos todo um tratado linguísti- da filosofia literária de João Guimarães Rosa.
co que ludicamente subjaz ao texto. O termo O narrador do conto, ao se sentir posto contra
“famigerado” tem como origem uma forma- a parede pelo jagunço, aflito por desconhe-
ção do latim ​—​  famis geratus ​—, literalmente cer o teor do adjetivo com que o homem do
podendo ser traduzido por “gerado pela fama”, Governo o brindara, caraminholando sobre o
“famoso”, significado que acode ao narra-
dor (e o acode também…) como a resposta
menos perigosa a ser dada a um jagunço. No
32 HOUAISS, 2001, p. 1296.
entanto, esse significado, encaminhado para
um tom elogioso (“— ‘Olhe: eu, como o sr. 33 LAROUSSE, 1992, p. 495.

365
terem intrigado com Damázio, proclama: “O diria a gramática. Há, pois: “gerado”, três

GUIMARÃES ROSA: VIDA E OBRA NOS ALINHAVOS DA LINGUAGEM    MÁRCIA MARQUES DE MORAIS
medo é a extrema ignorância em momento vezes; “famílias”, no plural; há um “geraldo”
muito agudo. O medo O” (p. 9). Esse medo substituindo um “gerado”; e há uma “frase”
acaba, pois, irmanando, narrador e perso- toda ​—​  “faz-me-gerado”, muito sintomática…
nagem, médico e jagunço, o saber citadino Damázio, cujo nome, quem sabe, rosia-
e erudito e o saber sertanejo e popular. É namente, também pode mexer com seus
que, se Damázio temia o real significado da brios, teme a maior ofensa no código jagunço,
palavra que lhe imputara o funcionário pú- lembrado por Joca Ramiro, no julgamento
blico, pois receava ter sido desonrado, nosso da “Sempre Verde”, tentando “temperar”
narrador teme a reação do jagunço diante de os “excessos” de Hermógenes, que queria
uma possível difamação. Esse medo rever- Zé Bebelo morto: “— ‘Mas ele não falou o
sível, como movimento privilegiado do texto nome-da-mãe, amigo…’” 34 Imediatamente,
rosiano, está opticamente mostrado naque- Riobaldo explica para o interlocutor: “Só para
la frase “O medo O” e em outra expressão o nome-da-mãe ou de ladrão era que não ha-
onomatopaica que faz ouvir o espanto diante via remédio, por ser a ofensa grave”.35 Como
de Damázio ​—​  “o oh-homem-oh” ​—​  (p. 9), que se vê, no horizonte semântico de Damázio,
figuram no texto como uma espécie de palín- temia-se a tal ofensa grave ​—​ “Latejava-lhe
dromo. O medo passa do jagunço ao narrador, um orgulho indeciso” (p. 11), diz o conto.
deste àquele; contamina-os reciprocamente, Guimarães Rosa, conhecedor e amante
como é próprio do medo. Ambos ignoram das línguas, destila, no seu texto, essa des-
algo em momento agudíssimo: se Damázio, confiança, usando classificações da própria
por ignorar o que é “famigerado”, teme que gramática, para dizer, sorrateiramente, que
o saber do doutor o exponha a si mesmo e, o temor do jagunço, era que perturbassem
diante dos outros, representados pelos três “ a paz das mães” (p. 12), usando expressão
cavaleiros testemunhas, o doutor teme que do próprio sertanejo ao pedir garantias ao
a explicitação de “famigerado” dê nos nervos médico de que “famigerado” não era “nome
do jagunço, que poderá dissolvê-lo… E isso de ofensa”. Ao referir-se, portanto, a “nome de
se diz, rosianamente, misturando popular e ofensa”, o texto insinua a possibilidade, tam-
erudito, misturando tiro e letra, enfatizando a bém, do nome-da-mãe e reitera isso quando
palavra também como arma: “Com um pingo “classifica” como “frase” a sequência com que
no i, ele me dissolvia” (p. 9), recriando-se, pois, Damázio apalpava os sentidos de “famige-
“pôr os pingos nos is” como esclarecer e, “para rado”: “Disse, de golpe, trazia entre dentes
bom entendedor, um pingo é letra”. aquela frase” (p. 11).
Desse modo, se percebe como um “causo” Esse é um dos contos rosianos que fazem
do sertão transcende a própria geografia da língua personagem importante para seu
sertaneja e diz do medo humano. A narrativa “desenredo”. Deixando em aberto o “famoso
concretiza para o leitor muitas elucubrações assunto” (p. 13), conforme termina “Fami-
da filosofia que refletem sobre a (in)compati- gerado”, numa estrutura quase circular, pois
bilidade entre o saber e o poder na sociedade, o leitor também duvida todo o tempo do
alegorizados no poder da palavra e no poder
da arma. O conto, ainda, lúdico, brinca com
a gramática interna do falante. Ao enigmati- 34 ROSA, 1965, p. 202.
zar o sentido do vocábulo “famigerado”, faz
35 Ibid., p. 202. Essa leitura de
uso do que se chamaria etimologia popular. “Famigerado” foi apresentada em
Através de operações de escansão de uma mesa-redonda, no II Seminário
palavra desconhecida, o falante “testa” um Internacional Guimarães Rosa, em
Belo Horizonte, no dia 29 de agosto
possível desvendamento dela, tentando de 2001, com o título “Do nome-da-
“apalpar”, com seus conhecimentos prévios, o -mãe ao nome-do-pai; figuração
significado de cada elemento isolado. Assim, de identidades no ‘Grande Sertão’”,
trabalho publicado na revista
Damázio, aflito, “parte” a palavra, conforme Scripta (2002), às páginas 264–73.
ouviu e tenta entendê-la: “fasmisgerado… José Miguel Wisnik, na mesma
faz-me-gerado… falmisgeraldo… familhas- Revista, alude a essa leitura, em
texto intitulado “O famigerado”,
-gerado…?” (p. 11) Insistem, na sua “desenig- que republica no livro Sem receita
matização”, alguns elementos ​—​  “radicais”, (2004), pela Publifolha.

366
significado que se pretende para a palavra, Tutaméia.39 Chama-nos atenção esse traba-
Guimarães Rosa presta sua homenagem ao lho, não apenas porque seu foco se volta para
código linguístico, jogando luz sobre a língua “outras misturas”, como também porque o
portuguesa, em sua realização no tempo e em crítico lê, comparativamente, autores que dis-
espaços diversos. Privilegia tanto o regis- cutem “imagens do rio”, traço marcante das
tro erudito, a língua culta escrita, quanto o “travessias rosianas” e, mais ainda, porque
português oral, a língua popular e sertaneja, trabalha estratégias discursivas do conto de
deixando inconteste a ideia de que a língua Rosa, em texto que põe em cena uma língua
existe em processo de construção permanen- oriental. O crítico aponta o trabalho rosiano
te, pois que “o legítimo” é “livro que aprende com o nome da personagem Chim, de origem
as palavras” (p. 11). chinesa, que se aportuguesa no cozinheiro
Aliás, Guimarães Rosa declarou a Günter Joaquim e que, por abreviação, reduz-se a
Lorenz que seu “romance mais importante” Quim. Aí o jogo fonético é digno de nota:
seria um dicionário, a ser publicado quando Chim e Quim aludem à operação fonológica
ele fizesse cem anos, o qual “fará as vezes de comutação entre palatais surdas ​—​ uma
de minha autobiografia”, completa ele.36 Sua fricativa e outra oclusiva. Além disso, Rosa
relação com a língua é uma relação amorosa: aposta no movimento de ir-e-vir dos sons e da
“A língua e eu somos um casal de amantes grafia, do erudito e do popular, do Oriente e
que juntos procriam apaixonadamente, mas do Ocidente, quando põe em circulação:
a quem até hoje foi negada a bênção ecle- Chim Joaquim Quim, estando Chim e
siástica e científica. Entretanto, como sou Quim contidos no nome Joaquim, que, na
sertanejo, a falta de tais formalidades não me grafia erudita Joachim, se escreve como “ch”
preocupa. Minha amante é mais importante e se pronuncia como “qu”.
para mim.” 37 O mesmo acontecerá na permuta entre
Rosa, como se vem frisando, procede em constritivas dentais sonoras ​—​ uma vibran-
movimento de retrospecção e prospecção te e outra líquida ​—​ no nome da lavadeira
quanto ao trabalho com a linguagem, o que Rita Rola, chamada pelo “felizquim” (outro
marca inconfundivelmente seu texto. Se, achado morfológico rosiano, que usa o nome
em “Famigerado”, pudemos ver um recuo e próprio “Quim” como sufixo, para conferir à
avanço em tempo-espaço da língua portugue- feliz personagem um tom afetivo de diminu-
sa, há, em sua literatura, ainda em função da tivo intensivo e uma dicção achinesada) de
(re)criação do código linguístico, a fusão dos Lita Lola, fazendo ouvir a pronúncia chine-
diferentes, a mistura das formas, o emba- sa, constantemente a confundir /r/ e /l/, na
ralhamento de fronteiras linguísticas, no ocorrência fonética chamada lambdacismo.
processo de hibridização. São comuns, como Apropriando-se de um outro idioma e, de
é sabido, as suas idas às inúmeras línguas certo modo, expropriando-o para revitalizá-lo
estrangeiras que dominava e, frise-se, a sua na criação do novo, Rosa faz que dialoguem
volta sempre à língua original, quer seja ela diversas línguas, de tempos e espaços tam-
a sua, quer seja ela a forma original, de onde, bém distintos.
por gênese, se produziram outros termos. Tais línguas permanecem estrangeiras e
Assim, movimento e mistura anseiam sempre estranhas para o leitor apenas até o mo-
dizerem do homem e do mundo, a partir mento em que o escritor as faz de novo vir à
do sertanejo e do sertão, pois que, em sua luz, razão por que esse estranho, estrangei-
própria declaração: “Aprendi algumas línguas ro, merece olhar especial de nosso escritor,
estrangeiras apenas para enriquecer a minha como se pode ler em Grande Sertão: Veredas,
própria e porque há demasiadas coisas intra- sobretudo quando a narrativa se circunscreve
duzíveis, pensadas em sonhos, intuitivas, cujo
verdadeiro significado só pode ser encontra-
do no som original.” 38 Esse trabalho com o
36 LORENZ, 1991, p. 89.
chamado “estrangeirismo”, aqui considerado
conceito menos ortodoxo, é marca incontes- 37 Ibid., p. 83.
te do trabalho literário de Rosa, tendo-nos
38 Ibid., p. 87.
tocado, nesse sentido, leitura que Benjamin
Abdala Júnior faz do conto “Orientação”, de 39 ABDALA JÚNIOR, 2005.

367
ao lugar chamado “Curralinho, hoje Corinto”,40 lança mão, no afã de dizer o universal através

GUIMARÃES ROSA: VIDA E OBRA NOS ALINHAVOS DA LINGUAGEM    MÁRCIA MARQUES DE MORAIS
como, matreiramente, registra o narrador.41 do diálogo local/universal, sertão/mundo,
Riobaldo foge da fazenda São Gregório, onde vale ler nas entrelinhas, num subtexto, alusão
se desvela sua bastardia, e se dirige à casa a Freud, não apenas pela descrição e fala da
de seo Assis Wababa, porque “aquela hora eu estrangeira personagem, como, ainda, pela
queria só gente estranha, muito estrangeira, palavra “alegria” (negritada mais acima), que,
estrangeira inteira!” 42 Vai ter ao “Curra- como substantivo abstrato, em alemão se
lim”, onde revê a Rosa’uarda, filha do turco grafa com a maiúscula: Freude. Aliás, essa
Aziz, nome turco assimilado, quem sabe, ao palavra está presente na tradução do título
sobrenome luso-brasileiro Assis, conforme do conto “As margens da Alegria” ​—​ chamado,
Galvão,43 moça já comprometida com o em alemão, “Die Ufer der Freude”, na edi-
turco negociante Salino Cúri. Lá reencontra ção de 1972 —50 que narra a estória de um
o alemão Vupes: “o seo Emílo Wusp”, como Menino e seu (im)possível desejo, o Menino
frisa Riobaldo, fazendo alusão à pronúncia do que realiza o que Outro deseja, naquela sua
interlocutor culto, doutor de “suma doutora- “ viagem inventada no feliz”.51 Argumente-se
ção”.44 Esse estranho e familiar alemão ​—​ das essa direção de leitura analítica com decla-
Unheimliche, conforme Freud45 ​—​  não viaja ração do próprio Guimarães Rosa à pergunta
com armas e reafirma essa não necessidade, sobre sua relação com a literatura alemã:
dizendo: “Níquites!”,46 aportuguesamento da “a importância monstruosa, espantosa de
negativa do alemão, nicht. Ao ter-se referido Freud”, dentre autores que o “impressiona-
antes ao Vupes, quando se encontrava no ram e influenciaram muito intensamente”.52
Araçuaí, Riobaldo, ensaiando o “fraseado” do Assim se lê, no texto rosiano, as línguas e
interlocutor para pronunciar o sobrenome do suas literaturas traduzidas e reaproveitadas,
mascate, registra “Wúpsis”, em que se pode de maneira peculiaríssima, no sempre jogo de
ler “psi” e enfatiza: “Ele pitava era charutos”. fazê-las dizer o infinito.
Diante da constatação de que o alemão Se se percebe, na literatura de Rosa,
era conhecido do interlocutor, observa: “Ô esse movimento para o “móvel mundo”,53 de
titiquinha de mundo!”,47 tendo, ainda, lançado novo, como o Menino margeando a Alegria,
outras pistas sobre esse “estranja, alemão, de Primeiras estórias, que, alçado ao avião,
o senhor sabe ​—​ indivíduo, mesmo. Pessoa aos cimos, busca, no terreirinho da casa do
boa. Homem salutar na alegria séria. He, he, acampamento, o peru que sequer “bisviu”,54
com toda a confusão de política e brigas, por consolando-se mesmo com a luzinha verde de
aí, e ele não somava com nenhuma coisa”.48 um primeiro vagalume vindo da mata, nosso
Riobaldo responde à saudação do estranja escritor volta às suas Minas, para explorá-las
(possivelmente em alemão, freut, do desu- em sua riqueza humana, cultural, histórica,
sado Sehr er freut, próximo de “encantado”, geográfica e linguística, para poder dizer do
como o traduziu Curt Meyer-Clason), tentan- mundo. Desse modo, vindo do exterior, do
do arremedá-lo com: “Folgo”, foneticamente além das Gerais, ele sente necessidade de
próximo da expressão alemã, conforme voltar às suas minas/Minas sertanejas, para
Walnice Galvão.49 beber no veio d’água que alimenta os muitos
Além de esses recursos da língua de Rosa rios de sua vida e obra, para flagrar o momen-
apontarem para a operação híbrida de que to mágico, centelha de sua criação, na mesma

40 ROSA, 1965. 42 ROSA, 1965, p. 96. 49 GALVÃO, 1998, p. 17.

41 Curralinho como lugar de 43 GALVÃO, 1998, pp. 15–6. 50 ROSA, 1972, p. xxviii.
convergência de construções
identitárias do sujeito foi tratado 44 ROSA, 1965, p. 14. 51 Idem, 1968, p. 3.
em minha tese de doutorado,
intitulada Travessias do sujeito: 45 FREUD, 1976a. 52 LORENZ, 1991, p. 88.
as representações da subjetivi-
dade em Grande Sertão: Veredas 46 ROSA, 1965, p. 97. 53 ROSA, 1968, p. 3.
(USP, 1999), publicada em livro,
Travessias do sujeito: literatura e 47 Ibid., p. 57. 54 Ibid., p. 5.
psicanálise em “Grande Sertão:
Veredas” (2001). 48 Ibid. (itálico meu).

368
saudade de Riobaldo ao contar a seu inter- Assim, se lhe cobram uma escrita enga-
locutor: “Que eu recordava de ver o rio meu ​ jada, uma literatura comprometida, parece
—​ beber em beira dele uma demão d’água”.55 que não lhe escutam o texto, que também
Assim, no “entremeio” das suas andanças transcende os conceitos correntes de engaja-
de diplomata, Guimarães Rosa retorna ao mento e compromisso político, para apostar
Brasil e, em três ocasiões, busca, no interior, num efeito maior da literatura, que, segundo
o que podemos chamar, como Riobaldo, “o Antonio Candido, “desenvolve em nós a quota
quem das coisas”, o que traduzirá no conto de humanidade na medida em que nos torna
“Entremeio: com o vaqueiro Mariano”, de mais compreensivos e abertos para a nature-
Estas estórias, como: “Eu tinha precisão za, a sociedade, o semelhante”.60
de aprender mais, sobre a alma dos bois, Mas o artista sabe disso e, no último pre-
e instigava-o a fornecer-me factos, casos, fácio de Tutaméia, “Sobre a escova e a dúvi-
cenas.” 56 Em nome disso, em 1945 viaja pelo da”, se nos apresenta como ficcionista, num
interior de Minas; em julho de 1947, vai ter chique restaurante de Paris, discutindo sobre
ao Pantanal de Mato Grosso, onde se dará o o engagement com seu alter ego, escritor
encontro com Mariano; e, em maio de 1952, também, ambos já meio tocados pelo álcool.
passa dez dias no sertão mineiro, vivendo a O companheiro de copo do nosso escritor,
experiência de acompanhar uma tropa, cujo acusando-o de se alienar politicamente em
comando está nas mãos de Manuelzão ​—​ o sua produção literária, propõe-lhe que escre-
vaqueiro Manuel Nardy ​—, condutora de uma vam juntos um livro, convite a que responde
boiada, a partir da Fazenda da Sirga, perto com certa ironia, com argumentos diversos e
de Três Marias, até a Fazenda São Francisco, transversos, entre os quais coloca a questão
em Sete Lagoas. As fotografias que testemu- da escova e da dúvida ​—​ seus usos transfor-
nham a expedição nos mostram o escritor e mados em rito que “Cumprem o inexplicá-
suas famosas cadernetas, tal como o interlo- vel”.61 Assim, por linhas tortas, ele respondia
cutor, doutor, que, no Grande Sertão: Veredas, à crítica, figurada no outro escritor engajado:
faz anotações, enche muitas cadernetas… fazer literatura comprometida em virtude de
Se esse movimento denota o mergulho, uso e costume, da moda… Será? E, continu-
a imersão que precede o aflorar, o ir para ando sua resposta, que transita por uma fala
voltar à flor das águas, denota, também, o matreira sobre as inspirações de alguns de
movimento dialógico de oralidade e escrita, seus textos, ele chama à cena um vaqueiro ​
cujas fronteiras também se esmaecem na —​ desta vez, o vaqueiro Zito, pois “que sendo
literatura de Guimarães Rosa. Essa literatura, entre os dali a um tempo o cozinheiro melhor
sorvendo a experiência transmitida, sim, pelo mais o maior guieiro ​—​ e era dado a poeta”.62
narrador oral, épico, transmuta-se, por pro- Diz-nos, assim, pelo pensamento de Zito,
cesso alquímico, na letra, na escrita, a quem traçando o certo pelo incerto, que “um livro, a
sempre presta sua homenagem… Parece-nos
antológico o excerto do final do Grande Ser-
tão para a figuração dessa intenção autoral.57 55 Idem, 1965, p. 338.
Na Batalha Final, no Paredão, Riobaldo conta,
56 Idem, 1976, p. 69.
assim, ao senhor que o ouve: “A gente dispa-
rava dentro dos quintais, avançávamos. E de 57 Esse excerto mereceu destaque em
detrás das casas. E guardávamos o emboque minha apresentação, no III Seminá-
rio Internacional Guimarães Rosa
da rua. Diz que lê?; diz-que escreve! Tiro ali era (PUC Minas, 2004) intitulada “O
máquina. Aos tantos, juntos, relando ​—​ cinco autor faz o pacto: ‘Posso me escon-
deles, cinco dedos, cinco mãos.” 58 Ouve-se, der de mim?’”, publicada na revista
SCRIPTA (2005), às pp. 201–9.
no trecho, além do tiroteio contado pelas
palavras, a escrita no tamborilar dos dedos na 58 ROSA, 1965, p. 440 (itálicos meus).
máquina de escrever, não só pelas imagens
59 Idem, 1976, p. 74.
da gestualidade como também pelo ritmo fra-
sal dos toques nas teclas. E o escritor maior 60 CANDIDO, 2004, p. 180.
reitera, como vimos em “Famigerado”, que
61 ROSA, 1985, p. 174.
tiro é letra, que palavra é arma e que “narrar é
resistir”.59 62 Ibid., p. 179.

369
ser certo, devia de [ter] a virtude de enganar artisticamente, erguida no planalto central do

GUIMARÃES ROSA: VIDA E OBRA NOS ALINHAVOS DA LINGUAGEM    MÁRCIA MARQUES DE MORAIS
com um clareado a fantasia da gente, em- país, rasgando o cerrado, em Grande sertão,
puxar a coragem”. E completa: “Cabia de ir a dedicatória se concretiza como uma cerca,
descascando o feio mundo morrinhento; não uma propriedade, que se abre com o prenome
se há de juntos iguais festejar Judas e João da mulher ​—​  “A Aracy, Ara, pertence este livro” ​
Gomes.” 63 Frise-se, ainda, que esse excerto —​ e se fecha com seu sobrenome, no ícone
VII de “A escova e a dúvida” está encimado da banda de Moebius. Vale a pena, ainda,
por uma das epígrafes atribuídas a Tolstói, aventarmos outra hipótese: “ Ara” designa,
que aconselha: “Se descreves o mundo tal por extensão de sentido, pedra do altar, e há,
qual é, não haverá em tuas palavras senão no sertão rosiano, uma pedra que “rola”, múl-
muitas mentiras e nenhuma verdade.” 64 tipla,66 em toda a travessia de Riobaldo, que,
Em Montmartre, na conversa, pois, entre matreiramente, confessa a seu interlocutor:
dois escritores, convoca-se a presença do “Agora, destino da gente, o senhor veja: eu
vaqueiro “dado a poeta”, do sertanejo, para trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim;
se argumentar sobre literatura. De novo, a ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje
volta ao âmago, a busca da alma do sertão ela se possui é em mão de minha mulher!” 67
para dizer do mundo, a volta às Minas para Confundem-se, pois, nas estratégias da
sondar horizontes gerais. Assim, o mesmo escrita criativa, narrador e autor; Riobaldo
movimento apontado no título de um dos e Rosa seriam os “escritores” de Montmar-
contos de Tutaméia ​—​  “Antiperipléia”, cujo tre a conversarem uma conversinha miúda
narrador reitera: “Tudo, para mim, é viagem e doméstica?…
de volta.” 65 Voltando à lemniscata que fecha o roman-
É esse o escritor que congrega, através ce rosiano… Se as linhas que se traçam e
de sua literatura, leitores múltiplos, que a bus- trançam um oito invertido podem indicar, de
cam e nela encontram respostas para muitos certo modo, a volta ao coração, ao lugar do
saberes; é esse escritor que, homenageando afeto, a Aracy Moebius, são elas que impulsio-
a língua, as línguas, atrai leitores dos muitos nam para um alhures, para um além da alma.
lugares além das/dos Gerais. É esse o autor Não é por acaso que a psicanálise lacaniana,
mineiro que alcança o mundo, no vislumbrar em 1972, vai operar também com esse traça-
sempre, em sua literatura, o infinito, que do, a que nomeará “nó borromeano”,68 para
ele marca com o símbolo tão conhecido da traduzir o entrelaçamento entre real, simbó-
lemniscata, ao fechar o romance Grande lico e imaginário ​—​ e que, sem direito nem
Sertão: Veredas. avesso, forneceria a imagem do sujeito do
Essa obra traz a dedicatória: “A Ara- inconsciente. No entanto, antes de Lacan, em
cy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. 1965, porque, como lembra a própria psica-
Fantini (2004), autora de estudo que trata nálise, os psicanalistas sabem muito, mas os
especialmente de fronteiras, margens e poetas sabem tudo,69 Rosa, citando Goethe,
passagens na literatura de Guimarães Rosa, relembra, na conversa com Lorenz, que “in-
na XIX Semana Rosiana, em julho de 2007, terior e exterior já não podem ser separados”,
em Cordisburgo, aventou a hipótese, muito
plausível, considerando-se a plurissignifica-
ção com que o autor marca todas as suas
grafias, de esse símbolo, também conhecido 63 Ibid., p. 182.

como banda de Moebius, reiterar dedicatória 64 Ibid., p. 178.


e homenagem a Aracy, se se leva em conta
também um dos sobrenomes da companhei- 65 Ibid., p. 18.

ra: Aracy Moebius de Carvalho. Acrescente-se, 66 Como pedra de topázio é referida


pois, a escrita rosiana fazendo aqui mais uma 5 vezes; como safira, 3 vezes;
das suas ​—​ funcionando, graficamente, para como ametista, 2 vezes; e como
turmalina, apenas uma vez.
reiterar sentidos. Se, como se viu, em Primei- Cf. FERRANTE, 2011 e 2017.
ras estórias os contos das bordas do livro (o
primeiro, “As margens da Alegria”, e o último, 67 ROSA, 1965, p. 49.

“Os cimos”) figurariam a cidade de Brasília, 68 ROUDINESCO & PLON, 1998,


não claramente referenciada, mas encenada p. 542.

370
para dizer que “no sertão fala-se a língua de
Goethe, Dostoiévski e Flaubert, porque o ser-
tão é o terreno da eternidade, da solidão”.70

69 Cf. “Os escritores criativos são


aliados muito valiosos, cujo teste-
munho deve ser levado em alta con-
ta, pois costumam conhecer toda
uma vasta gama de coisas entre o
céu e a terra com as quais a nossa
filosofia ainda não nos deixou
sonhar. Estão bem adiante de nós,
gente comum, no conhecimento da
mente, já que se nutrem em fontes
que ainda não tornamos acessíveis
à ciência.” (FREUD, 1976, p. 18)
e “[…] os poetas, que não sabem
o que dizem, como é bem sabido,
sempre dizem, no entanto, as coi-
sas antes dos outros”, referindo-se
à “fulgurante fórmula de Rimbaud”.
(LACAN, 1985, p. 14.)

70 LORENZ, 1991, p. 86.

371
REFERÊNCIAS

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373
JÚLIO RIBEIRO
E A LUTA DAS
IDEIAS
MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO

374
Júlio César Ribeiro Vaughan (1845–1890) e novamente professor, jornalista e assim por
nasceu em Sabará, filho de família pobre. diante. Mais do que versatilidade ou talento,
Seu pai, George Washington Vaughan, era eram providências cabíveis ao homem livre e
um artista de circo que vivia de cidade em pobre em uma sociedade escravocrata, com
cidade sem rendimentos suficientes se- mercado de trabalho restrito e sem condições
quer para o próprio sustento, tendo atuado regulares de ascensão ou mesmo de sobrevi-
muito pouco na criação do filho; a mãe, Maria vência; restava a ele ganhar a vida e constituir
Francisca Ribeiro Vaughan, era professora família em meio às dificuldades, mas não con-
de primeiras Letras e, para sustentar-se e ao seguiu evitar que a primeira esposa e alguns
menino, costurava sob encomenda, além de filhos morressem por falta de assistência.
prestar pequenos serviços de acordo com a Continuando, Júlio Ribeiro começou reli-
oportunidade e a precisão. Foi com ela que gioso, católico devoto, depois presbiteriano,
o pequeno obteve as lições preliminares, até fazendo pregações em cidadezinhas do inte-
entrar em um colégio de padres na condição rior, e acabou ateu, situação mais condizente
de interno. Lá se destacou nos estudos de com sua formação intelectual; possuidor de
línguas (francês, inglês, latim) e filosofia, e escravos, a quem dava educação, libertou-os;
acabou lecionando algumas dessas discipli- oprimido pelo sistema estamental do Império,
nas como forma de se manter no colégio e engajou-se na causa republicana sem fixar
minorar sua precária condição de vida: “Sou compromissos políticos com nenhum partido,
obrigado a [andar] com roupas velhas e cur- conservando diante de seus representantes
tas, no meio dos meus colegas bem vestidos.” uma independência de posição acrescida
Talvez devido a essa situação material ou por de um gênio irascível. Como disse Manuel
temperamento, possuía caráter melancólico e Bandeira, Júlio Ribeiro tinha “a paixão
depressivo: “Vmcê me diz que não lhe fale em das ideias”.3
morrer, porém eu lhe digo que a única coisa É importante colocar Júlio Ribeiro frente a
que me obriga a viver é Vmcê e se não fosse frente com seu tempo, pois ele vivenciou uma
Vmcê, já tinha me suicidado”, escreve para a série de ocorrências históricas de primeira
mãe em momento de desespero.1 ordem, que definiram a inserção do Brasil na
Vencidas as dificuldades iniciais, vieram modernidade: guerra do Paraguai, industriali-
outras: Júlio Ribeiro se transfere para o Rio zação incipiente, fim da escravidão e pro-
de Janeiro e ingressa na prestigiada Escola clamação da República são algumas delas,
Militar da Praia Vermelha, em 1860, onde já cujos significados influenciaram a concepção
fermentava uma ideologia progressista, laica, de mundo do escritor. Todos os grandes even-
racionalista, cientificista e sobretudo republi- tos foram internalizados e compõem ​—​ junto
cana.2 O pouco tempo em que permaneceu com aguda visão de classe ​—​ uma compreen-
na Praia Vermelha, o rápido contato que man- são coerente do mundo, marcada pela revolta
teve com professores e colegas, certamente diante das dificuldades que a vida lhe impôs.
marcou fundo o jovem Júlio Ribeiro, ao ponto São linhas de força poderosas, mas, como
de influenciar suas posições até o fim da vida. veremos, não se refletiram em profundidade
Mas não conseguindo se sustentar na corte, na obra do escritor. Dentro de suas possibi-
espremido entre a carência econômica e o lidades e atendendo a condições objetivas,
tumulto da personalidade, muda-se para São Júlio Ribeiro se empenhou em transformar a
Paulo e salta por inúmeras ocupações: pro- realidade social em que vivia, seja engajando-
fessor, jornalista, vendedor, tipógrafo, editor -se no exército durante a guerra, militando

1 As citações foram retiradas do en- Reproduzido também nos anexos 3 “Discurso de posse na Acade-
saio de Manuel Bandeira dedicado da edição de A carne: Ver RIBEIRO, mia Brasileira de Letras”, In:
à vida do escritor. Ver: “Centenário Júlio. A carne. Apresentação e BANDEIRA, 1958, vol. 2, pp. 963–
de Júlio Ribeiro – Conferência em notas: Marcelo Bulhões. 2 ed. São 85. Essediscurso foi proferido em
sessão pública da Academia Brasi- Paulo: Ateliê, 2015, pp. 341–56. cessão do dia 30 de novembro de
leira de Letras, no dia 16 de abril de 1940, ao assumir a cadeira cujo
1945”, In: BANDEIRA, Manuel. Poe- 2 Ver CASTRO, Celso. Os militares e patrono vinha a ser Júlio Ribeiro.
sia e Prosa. Rio de Janeiro: José a República: um estudo sobre cul-
Aguilar, 1958, vol. 2, pp. 985–1001. tura e ação política. Rio de Janeiro:
Citações nas páginas 988 e 989. Zahar, 1995.

375
pelo fim da Monarquia, dedicando-se à ciên- um todo ​—​ respeitando, claro, o alcance das

JÚLIO RIBEIRO E A LUTA DAS IDEIAS   MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO


cia ou confrontando de diferentes maneiras a Letras na época ​—​ e tornou célebre o nome
ideologia dominante. Em outras palavras, ele de seu autor. A recepção crítica foi acalora-
compreendeu as contradições de seu tempo da, quando não exaltada, lançando o livro
e se posicionou de maneira decidida ao lado na fogueira dos preconceitos que vigoravam
dos movimentos de mudança. na sociedade brasileira ​—​ fluminense, em
É interessante observar a projeção de particular ​—​ e arregimentando pontos de vista
acontecimentos vultosos sobre alguém com que redundavam na condenação do livro. Vale
seu perfil: membro das camadas subalternas a pena recuperar as opiniões e analisar o teor
da sociedade, mas dotado de cultura letra- e o sentido delas, procurando compreender o
da e científica, leitor de Darwin, Spencer e que estava em jogo, algo mais do que parece
Comte, além de Zola e Flaubert, por exemplo. à primeira vista.
Convenhamos tratar-se de uma combinação O primeiro juízo sobre o romance de que se
incomum que reúne tendências díspares en- tem notícia foi redigido por Alfredo Pujol, para
raizadas em nossa tradição histórica: cultura quem “A carne não é um padrão de justo orgu-
científica e classes populares não costumam lho, de justa glória, de justo desvanecimento
andar juntas. Júlio Ribeiro, exercendo ativida- para um escritor da têmpera de Júlio Ribei-
des profissionais que a princípio garantiriam ro.” Pujol se refere ao reconhecimento dos
uma condição econômica estável, nunca a trabalhos anteriores do escritor, pelos quais
alcançou, mas foi sensível aos reveses que so- começou a ser considerado como homem de
freu o suficiente para tomar consciência das dotes intelectuais elevados. No que respeita
causas reais deles. Tudo isso o coloca em uma à apreciação do livro, aponta a dualidade, por
posição peculiar no quadro cultural brasileiro. assim dizer, do literário e do extraliterário, ou
O exame criterioso de sua produção literária seja, questiona a pertinência artística do livro
permite compreender melhor o caldo que se frente aos valores morais vigentes no fim de
formou no ambiente social do país, incluindo século brasileiro: “A carne é uma obra de es-
aí opções estéticas e inserções políticas. O cândalo; não visa fim literário.” 4 Já na largada,
momento vivido por ele é rico no que se refere temos a síntese do que irá pautar as análises
ao enfrentamento de posições, uma verdadei- subsequentes, definindo o perfil da fortuna
ra batalha das ideias que carrega a literatura crítica do romance. Daí para diante, veremos
para o campo aberto das iniquidades sociais. a replicação do arrazoado inicial, atestando o
caráter bifronte e inacabado da obra enquanto
⁂ literatura. Para José Veríssimo, aludindo à
questão da moralidade e da literatura propria-
Júlio Ribeiro foi professor dedicado ao estudo mente dita, “o livro é um parto monstruoso
das línguas e chegou a elaborar dois livros de um cérebro artisticamente enfermo”; por
de erudição: Traços gerais de linguística isso, defende que “Júlio Ribeiro não poderia ter
(1880) e Gramática portuguesa (1881). Esses pior estreado. A concepção de seu romance A
livros obtiveram boa receptividade nos meios carne, com ser assunto batido e repisado, foi
acadêmicos, pois traziam uma concepção pessimamente executada.” 5 Nesta mesma
inovadora nesse campo de estudos, e foram direção, Brito Broca afirma tratar-se “de uma
adotados regularmente nas escolas. A novi-
dade consistia em trabalhar de forma mais
detida com a língua brasileira, em diferen- 4 Ver PUJOL, Alfredo. A carne de
ça com os livros de filólogos e gramáticos Júlio Ribeiro. In: RIBEIRO, Júlio,
portugueses que tratavam da raiz europeia da 2015, pp. 327–39. Citações na
página 328. O artigo foi publicado
língua em detrimento das especificidades da a primeira vez em 1888.
ramificação brasileira. Mas, apesar do pronto
reconhecimento, os livros ficaram restritos 5 VERÍSSIMO, José. O romance na-
turalista no Brasil. In: Teoria, crítica
aos meios especializados, sem influir no e história literária. Rio de Janeiro:
debate público amplo. LTC; São Paulo: Edusp, 1977,
Diferente foi o destino do romance publi- pp. 179–202. Citações nas páginas
188 e 191. O artigo foi publicado a
cado alguns anos depois, A carne (1888), que primeira vez em partes, entre 1889
suscitou controvérsias na sociedade como e 1893.

376
obra fracassada, cujo sucesso resultou unica- Azevedo; O cromo (1888), de Horácio de
mente de seu caráter escandaloso.” 6 Álvaro Carvalho; O Ateneu (1888), de Raul Pompeia;
Lins, por sua vez, eleva o tom ao dizer que, O bom-crioulo (1895) e A normalista (1893),
“para a literatura, este livro não existe.” Quanto de Adolfo Caminha. E ainda romances
à binomia arte/moral, ele emite um juízo que estrangeiros de primeira linha e de natureza
retoma e diferencia das opiniões anteriores, diversa, como O crime do Padre Amaro (1875)
colocando-a de modo mais apropriado: “nem e O primo Basílio (1878), de Eça de Queirós, e
de leve estou me referindo aos aspectos mo- Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert.
rais do livro, que não interessam, se não inci- Os exemplos são variados e apresentam
dentalmente, à crítica literária. […] E uma obra nível desigual, o que dá a ideia de como os
só será imoral caso não seja obra de arte.” 7 limites, embora claros, tendiam a se mistu-
A seguir, proponho discutir os termos des- rar, encontrando leitores comuns para obras
sa dualidade, buscando compreender como diferentes entre si. Assim, a literatura picante
nela se figura a luta das ideias. e proibida percorre uma gama bastante
matizada de gosto, o que não impede que o
⁂ debate público seja contaminado por ataques
que tinham pouco a ver com as exigências ar-
Quando foi publicado, A carne logo se tornou tísticas do livro. No caso de A carne, o embate
sucesso de vendas e assunto nas conversas mais notório foi travado com o padre Sena
de moças e moços, fazendo parte da pas- Freitas, autor de um artigo violento dedicado
sagem pela puberdade de ambos os sexos. à obra, chamando-a “a carniça” e culpando o
O que foi tomado como erotismo responde autor de “venda ilícita de carne pútrida”. A re-
melhor pelo anseio do escritor de veicular um ação de Júlio Ribeiro redobrou a força dos ata-
assunto caro à estética naturalista: a descri- ques e se estendeu por uma série de outros
ção insinuante, apoiada pela reflexão técnica, tantos artigos. É interessante observar que o
dissecando os impulsos do desejo sob o pon- escritor não gasta os argumentos refutando o
to de vista da fisiologia. Com isso, o ângulo moralismo que queria combater, mas a provar
científico predomina sobre o erótico, sendo a incapacidade intelectual do padre, chamado
esse um efeito do ajustamento estético do de “imbecil”, “presunçoso”, “besta religiosa”,
livro aos princípios previamente determinados “palerma”, “asno”, “burro”, “sandeu”, entre
do naturalismo. Caso contrário, A carne se outras ofensas.9 Ribeiro se concentra mais
confundiria facilmente com outros tantos ro-
mances que tinham o erotismo como gatilho
para a efabulação, o que, a rigor, não ocorre.
6 BROCA, Brito. A carne de Júlio
É bom lembrar que livros com teor erótico Ribeiro. In: Naturalistas, parnasia-
ou sensual eram comuns naquela época, nos e decadistas: vida literária do
havendo um mercado específico para esse realismo ao pré-modernismo. Cam-
pinas: Unicamp, 1991, pp. 100–3.
segmento.8 Pelo menos vinte anos antes e até Citação na página 100. Publicado a
vinte depois da publicação de A carne, esse primeira vez em 1952.
tipo de literatura se estabeleceu em um cir-
7 Essa apreciação, é bom dizer, se
cuito muito eficiente, composto por editoras e mostra condizente com os valores
livrarias pequenas, sem muito prestígio. Um estéticos que vigoraram na crítica
homem gasto (1885) e O suplício de um ma- entre as décadas de 1930 e 1960 ​
—​ o artigo é de 1941. Ver: LINS,
rido (1888), ambos de Ferreira Leal; Amélia Álvaro. Sagas de dois naturalistas:
(1883), Angelina (1886) e Lésbia (1890), todos Aluísio Azevedo e Júlio Ribeiro. In:
de Maria Benedita Bormann; O lar (1888), de Os mortos de sobrecasaca: obras,
autores e problemas da literatura
Pardal Mallet; Euzira, a morta virgem (1891), brasileira. Rio de Janeiro: Civiliza-
de Pedro Ribeiro Vianna, são exemplos de ção Brasileira, 1963, pp. 203–19.
livros que, apesar de hoje esquecidos, tiveram Citação na página 218.

tiragens altas, muitas vezes superiores às 8 A respeito, ver o trabalho bem


de livros hoje clássicos da literatura brasilei- informado de EL FAR, Alessandra.
ra. Ao lado desses, vinham romances mais Páginas de sensação: literatura
popular e pornográfica no Rio de
elaborados do ponto de vista literário, como O Janeiro (1870–1924). São Paulo:
Homem (1888) e O cortiço (1890), de Aluísio Companhia das Letras, 2004.

377
em desmerecer os conhecimentos de gramá- largar a moça, puxou-a para si, cingiu-a

JÚLIO RIBEIRO E A LUTA DAS IDEIAS   MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO


tica de Sena Freitas, ridicularizando certos ao peito, segurou-lhe a cabeça com a mão
empregos seus que redundavam ​—​ segundo o esquerda, e, nervoso, brutal, colou-lhe a
escritor ​—​ na falta de capacidade mental para boca na boca, achatou os seus bigodes ás-
emitir juízo confiável sobre o que quer que fos- peros de encontro aos lábios macios dela,
se. O confronto ​—​ tido como dos mais signifi- bebeu-lhe a respiração. Lenita tomou-se
cativos no campo da polêmica intelectual no de um sentimento inexplicável de terror,
Brasil ​—​ é um capítulo da batalha das ideias, quis fugir, fez um esforço violento para
opondo o arrojo das concepções modernas e desenlaçar, para soltar-se.
o acanhamento dos costumes, uma batalha, Era o medo do macho, esse terrível
convenhamos, de alcance limitado. medo fisiológico que, nos pródomos do
Seja como for, não me parece correta a primeiro coito, assalta a toda mulher, a
concepção de que “A carne [seja] um ro- toda fêmea.11
mance essencialmente erótico”, como ainda
se sustenta nos estudos atuais.10 Seguindo A passagem é um dos pontos altos da relação
por outra via, penso ser a ciência o princípio “carnal” entre Lenita e Barbosa, protagonistas
formal que comanda a narrativa e desenvolve do enredo. No entanto, o episódio é cerimonial
as cenas e impressões de teor sensual ou eró- por fora e chocho por dentro, uma sucessão
tico; o erotismo, portanto, possui um fim em de respostas físicas inventariadas com zelo
si mesmo, mas se torna motivo para o autor científico, conforme o tom geral do livro. O
desenvolver uma análise de base sociológica propósito explicador chega a ser professoral
ou fisiológica dos casos retratados. Mesmo e não se resume aos momentos de luxúria: é
nas passagens de maior intensidade erótica, usado também para tratar o clima, a paisa-
a análise supera a volúpia: gem, os bichos da mata, as plantas, o regime
de trabalho na fazenda, os costumes dos
A cútis morena, cetinosa da moça, a escravos e todo o resto. Esse predomínio da
macieza da cambraia que a envolvia em ciência na organização material da obra não é
parte, o perfume de peau d’Espagne que exclusividade de A carne, sendo, antes, proce-
de seu corpo se alava, não lhe permitiam dimento comum no naturalismo, em especial
dúvidas; mas ele recusava a evidência dos aquele praticado no Brasil. A origem dessa
sentidos, não podia crer. Achava absurda, concepção se encontra no ensaio “O romance
monstruosa, impossível a presença de Le- experimental” (1880), de Émile Zola, onde se
nita em seu quarto, àquela hora, naquela defende a “evolução” da forma literária em
quase nudez. direção à objetividade racional, dirigida por
E, contudo, era real, ali estava; ele sen- um agudo senso de observação e disciplinado
tia-lhe a carne quente, dura, palpava-lhe a senso de composição: temperamento indivi-
pele hispidada pelo desejo, escutava-lhe o dual e contradição social passavam pelo crivo
estuar do sangue, e o pulsar do coração. da criação, concebendo hipóteses a partir das
Um tropel de ideias desordenadas agi- quais se elaboraria a trama ficcional.12
tou-se-lhe, confundiu-se-lhe no cérebro As ideias de Zola influenciaram a literatu-
excitado; o raciocínio ausentou-se, venceu ra no mundo inteiro; no Brasil, pesaram sobre
o desejo, triunfou a sugestão da CARNE. os escritores, que se viram na contingência de
Sentou-se rápido à beira da cama sem aplicá-las em diferentes situações; a crítica,

9 Todo debate se tornou público, Editorial, 2005, pp. 313–66. 11 RIBEIRO, 2015, p. 232.
veiculado pelo jornal Diário Mer- Citações referentes ao padre Sena
cantil; logo depois foi editado em Freitas se encontram nas páginas 12 ZOLA, Émile. O romance experi-
volume único; mais recentemente 316 e 317; as de Júlio Ribeiro nas mental e o naturalismo no teatro.
foram editadas em: BUENO, Alexei de número 324, 331, 336, 339 e São Paulo: Perspectiva, 1982,
e ERMAKOFF, George (Org.). 344, respectivamente. pp. 23–76.
Polêmica de Júlio Ribeiro e Padre
Sena Freitas. In: Duelos no serpen- 10 Ver BULHÕES, Marcelo. Leituras
tário: uma antologia da polêmica do desejo: o erotismo no romance
intelectual no Brasil (1850–1950). naturalista brasileiro. São Paulo:
Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Edusp, 2003, p. 60.

378
por sua vez, adotou o encaminhamento e um movimento que é objetivamente hetero-
passou a conferir, explicar e fundamentar as gêneo e contraditório na matéria observada.
próprias análises a partir do modelo prescri- A poética de Zola, apesar dos recuos que
tivo de Zola, justificando-o. Nesse sentido, representa, participa do movimento eman-
a “crítica naturalista” adotou uma postura cipatório, socialista de seu tempo; a de Júlio
conformista, na medida em que, seja para Ribeiro é reacionária, pautada no preconcei-
criticar ou promover, não se afastou muito to, no moralismo, no racismo etc. Sob esse
desse cientificismo baseado nas leis incoercí- aspecto, pouco contemplado nos estudos
veis da natureza e da história, tais como eram brasileiros, nosso naturalismo se mostra
preconizadas pelo naturalismo, isto é, de regressivo, constrangido pelos limites que a
feitio essencialmente mecânico. Por “crítica cultura conservadora impôs; ou seja, trata-
naturalista” ​—​ um termo aqui usado sem -se menos de uma incapacidade do artista
pretensão conceitual ​—, entende-se não uma brasileiro de interpretar e adotar as formas
crítica partidária do naturalismo, mas aquela progressistas da escola naturalista do que
que se dedicou a analisá-lo teoricamente de uma interposição objetiva da sociedade
enquanto movimento coerente e significativo. local. No caso brasileiro, a sociedade como
Por isso, não apresenta uma unidade de juízo, um todo não apresentava uma consciência
ocorrendo em trabalhos muito diferentes clara das contradições que a pautavam, não
entre si, como os de Nelson Werneck Sodré existia um enfrentamento objetivo de visões
e Flora Süssekind, por exemplo. Mesmo de mundo em curso, condição que retarda a
naqueles dedicados à análise literária, como o apreensão plena das formas históricas por
ótimo estudo de Sonia Brayner, essa postura parte do escritor, diferente da geração de
é mantida.13 Diante disso, as teses de Zola, Zola, que presenciou o amadurecimento da
que rebaixam as premissas do realismo a luta de classes e a tomou como pé-de-cabra
uma série de ditames contraestéticos, vão para forçar as portas de compreensão do
contaminando o debate.14 Vale a pena a mundo seu contemporâneo.17 No cenário
ressalva de que a produção literária de Zola brasileiro, a ciência foi chamada para assumir
não obedeceu à risca sua própria teoria, o que uma função de esclarecimento social e entrar
permite pensar que as ideias estéticas que na luta das ideias com o fim de transformar
desenvolveu foram mais bem acabadas do a realidade, mas se restringiu ao âmbito
que as teóricas.15 difuso e secundário da cultura, da moral e
Voltando a Júlio Ribeiro, sua adesão seca dos costumes.
aos princípios naturalistas e à figura de Zola Nesse sentido, A carne cumpriu bem o
(“o príncipe do naturalismo”) foi assumida seu papel: atacou frontalmente o moralismo
no prefácio que escreveu para o roman- bolorento da sociedade da época e pagou o
ce, apresentado como uma “homenagem preço, sendo esse mesmo o objetivo de seu
completa, devotada de servidor fiel.” 16 O autor, afrontando os esteios que amparavam
cientificismo é usado na trama às cegas, em os valores dominantes:
todas as circunstâncias possíveis, unificando

13 Ver SODRÉ, Nelson Werneck. O México: Fondo de Cultura Econó- 16 RIBEIRO, 2015, p. 65 e 68.
naturalismo no Brasil. 2 ed. Belo mica, 1966, pp. 11–54; e Narrar ou
Horizonte: Oficina de Livros, 1992; descrever: contribuição para uma 17 Para o caso francês, ver OEHLER,
SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual discussão entre o naturalismo e o Dolf. O velho mundo desce aos in-
romance? Uma ideologia estética e formalismo. In: Ensaios sobre lite- fernos: autoanálise da modernida-
sua história: o naturalismo. Rio de ratura. Rio de Janeiro: Civilização de após o trauma de junho de 1848
Janeiro: Achiamé, 1984; BRAYNER, Brasileira, 1968, pp. 47–99. em Paris. São Paulo: Companhia
Sonia. A metáfora do corpo no das Letras, 1999.
romance naturalista: estudo sobre 15 Nesse outro sentido, ver CANDIDO,
O cortiço. Rio de Janeiro: Livraria Antonio. Degradação do espaço. In:
São José, 1973. O discurso e a cidade. São Paulo:
Duas Cidades, 1993, pp. 55–94;
14 A respeito das diferenças artísticas e CARA, Salete de Almeida. Marx,
entre realismo e naturalismo, ver Zola e a prosa realista. São Paulo:
LUKÁCS, Georg. Arte y verdad Ateliê, 2009.
objetiva. In: Problemas del realismo.

379
O casamento era uma instituição egoísta, No Brasil pouco se lê.

JÚLIO RIBEIRO E A LUTA DAS IDEIAS   MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO


hipócrita, profundamente imoral, sobe- As opiniões sobre o mérito dos
ranamente estúpida. Todavia era uma ins- escritores formam-se mais por conversas
tituição velha de milhares de anos, e nada da rua do que pelo estudo do que eles
mais perigoso do que arrostar, contrariar produzem.
de chofre velhas instituições; elas hão de Um indivíduo que se apresenta com
cair, sim, mas com o tempo, com a mesma uma grande bagagem literária é um
lentidão com que se formaram, e não de grande escritor: ninguém vai indagar da
chofre, como um relâmpago. A sociedade natureza dessa bagagem. Paulo repete a
estigmatizava o amor livre, o amor fora respeito do indivíduo e da bagagem o que
do casamento; força era aceitar o decreto ouviu de Pedro, Sancho o que ouviu de
antinatural da sociedade.18 Paulo, Martinho o que ouviu de Sancho,
e eia aí está arranjada a celebridade. Onde
O leitor atento percebe a nota conformista chega o tal indivíduo, é recebido com
no final da citação, um movimento involuntá- grandes encômios pela imprensa local;
rio, mas sistemático da narrativa. O objetivo o qualificativo duplo distinto escritor
franco é entrar em luta contra a ideologia gruda-se-lhe ao nome como a ostra ao
das classes dominantes, universalizada rochedo, e ele figura como colaborador
na sociedade como um todo19; mas trata- de muita folha que nunca se benzeu com
-se, neste caso, de um ataque com alcance uma linha sua; é convidado para saraus,
limitado ao campo ideológico, sem atingir as para festas, para tudo: defende no júri,
contradições essenciais que eram encobertas dirige colégios, faz o que quer.
e justificadas nessa operação. Júlio Ribeiro Em outro país, em França, por
compreendeu a luta das ideias, mas, ao que exemplo, eu não teria necessidade de
parece, foi incapaz de ultrapassá-la, sem che- estar a perder tempo com estes enfado-
gar a uma crítica sistemática das relações de nhos artigos: Sena Freitas, pelo que tem
produção vigentes ​—​ verdadeira base material escrito, já estaria julgado tacitamente, já
que sustentava a realidade que ele queria estaria reduzido na opinião pública, ao
confrontar ​—, como mostra a maneira elitista seu verdadeiro valor.21
e preconceituosa com que trata os escravos,
chamando-os “sujos”, “hediondos”, “repug- A rixa está implícita nesses comentários de
nantes”, “supersticiosos”, dados a “maledi- maneira insidiosa: o padre é interpretado
cência típica da raça negra”.20 como alguém de estatura intelectual pequena,
Por tudo isso, entende-se o efeito regressi- cuja imagem, no entanto, foi alavancada pelo
vo do livro, inclusive como parte do seu desafio meio social e adquiriu uma respeitabilidade
às normas morais conservadoras. O ímpeto de bem maior do que merecia. As acusações diri-
denúncia e embate ao moralismo dominante gidas ao padre apresentam um ar de deboche
mostra um viés inconformista do livro, mas não desafiador, cuja intenção em demolir é reno-
anula ​—​ dado que as contradições motrizes da vada a cada novo artigo.22 Mas, ao mirarem
sociedade não se encontravam objetivadas na o padre, atingem também a sociedade dita
prosa ​—​ a superficialidade dos resultados. culta, desmoralizada pelo fato de endossar
a empulhação que Sena Freitas representa.
⁂ Para entender bem esse alcance não previsto,

Vou retomar a polêmica que envolveu Júlio


Ribeiro e o padre Sena Freitas e abordá-la
18 RIBEIRO, 2015, p. 140.
com interesse diferente. Em uma passagem
de sua série de artigos, o escritor contextu- 19 Ver a respeito MARX, Karl.
aliza a repercussão ​—​  que foi enorme ​—​  das A ideologia alemã. São Paulo:
Boitempo, 2007.
acusações de Sena Freitas contra ele e seu
romance. Nela, amplia a perspectiva quanto 20 Ver RIBEIRO, 2015, páginas 150,
aos argumentos do padre, levando em conta a 155 e 255, respectivamente.

lógica de reprodução cultural em uma socie- 21 RIBEIRO, apud BUENO e


dade periférica: ERMAKOFF, 2005, p. 335.

380
é preciso estruturar de outra maneira as vão da economia aos costumes, passando por
objeções de Júlio Ribeiro: (a) falta rotina de religião, política, direito, instituições, ideo-
leitura aos compatriotas; (b) consequente- logia etc. O efeito sobre a cultura em geral
mente, o conhecimento não se aprofunda; (c) e a literatura em particular faz supor uma
coisas relativas às Letras são tratadas com característica de insuspeita relevância: as
despretensão e casualmente, diminuindo-as; mudanças ocorridas no campo da cultura se
(d) criam-se mitos e falsos problemas, que, restringem às necessidades estritas de atu-
devido à rarefação social, materializam-se; (e) alização das elites. Isso distorce o sentido da
essa realidade cultural se encontra submetida atualidade alcançada, uma vez que a cultura,
às imposições materiais, confinando-a a uma sendo uma estrutura histórica entre outras,
classe particular. não se corresponde com as demais. Esse
Tudo isso é colocado em perspectiva, desalinho não é prova de autonomia desses
digamos, moderna, isto é, a situação espe- campos (de um lado, a cultura e a literatura,
cífica do país é compreendida à luz de sua que se mantém em dia com as modas estran-
composição mundial, mostrando o processo geiras, de outro, a economia etc., que ficam
histórico em curso: desenvolvimento de uma aquém em termos de ritmo e alcance), mas
globalização desigual e combinada (para usar causa da imperfeição do processo ​—​ isso se
uma expressão de Trotsky ao falar do capita- o ponto de vista crítico não for o das referidas
lismo em região periférica)23, que segmenta elites. Segundo as pretensões da chamada
e segrega as partes de seu conjunto, além de geração de 1870 ​—​ cujas ideias são as mes-
basear suas leis normais de reprodução nesse mas de Júlio Ribeiro ​—​ a noção de progresso
arranjo destracionado. Assim, a polêmica de passa pelo desmanche do sistema jurídico-
teor moralista que envolveu o romance explici- -político do Império e pela universalização
ta a feição periférica do país.24 Periférico aqui dos direitos.25 Por isso, o ex-aluno da Praia
não é considerado como uma fatalidade, mas Vermelha via a divulgação do conhecimento
como uma condição histórica; nem como científico e racional como instrumento de
conceito que se pode substituir conforme o emancipação do debate público. Assim, além
ponto de vista teórico, mas como uma condi- de expor mais uma vez um traço de persona-
ção objetiva. A realidade de país dependente, lidade, as intervenções públicas do escritor
iliberal, monarquista e escravista remete a atendem a uma estratégia de ação planejada,
um grande número de consequências, que veiculada por um grupo social coeso.26

22 Para se ter uma ideia palpável não são lançadas de maneira arma de autoconhecimento social
sobre o que estou me referindo, leviana, gratuita; cada uma vem e contestação ideológica dentro do
vejam-se algumas passagens de acompanhada de demonstrações e quadro de luta contra o Antigo Re-
ataque direto por parte de Júlio exemplos seguidos das correções. gime. Ver GOULEMOT, Jean-Marie.
Ribeiro: “O padre Sena Freitas Ver RIBEIRO, apud BUENO e Esses livros que se leem com uma
é fraquíssimo em disciplina gra- ERMAKOFF, 2005, páginas 328, só mão: leitura e leitores de livros
matical ou, para falar mais claro, 331, 332, 335, 337, 353, 352, 354, pornográficos no século XVIII. São
desconhece o que seja disciplina 355 respectivamente. Paulo: Ateliê, 2000.
gramatical. […] Erra vergonhosa-
mente em ptoseonomia, isto é, na 23 Ver TROTSKY, Leon. A história 25 ALONSO, Angela. Ideias em movi-
flexionação dos nomes e verbos. da revolução russa. 2 ed. Rio de mento: a geração 1870 na crise do
[…] Erra miseravelmente até no gê- Janeiro: Paz e Terra, 1977, vol. 1, Brasil-Império. São Paulo: Paz e
nero dos nomes. […] Não faz ideia pp. 24–5. Terra, 2002.
do que seja harmonia de estilo: usa
a todo momento ecos, de homofo- 24 Retomando as comparações ​ 26 Vale para Júlio Ribeiro ​—​  apesar
nias desagradabilíssimas, ofende, —​ introduzidas pelo próprio roman- da descontinuidade temporal
fere o ouvido de quem o escuta e cista, como se viu ​—, vale a pena aparente ​—​  a tipologia sociológica
o lê. […] Erra miseravelmente em uma rápida análise de contexto: a ensaiada por Nicolau Sevcenko
ortografia ou, melhor, não tem literatura de cunho erótico já era ao analisar a atuação intelectual
ortografia. […] Falsifica, deturpa corrente na França desde o século de Euclides da Cunha e Lima
tudo aquilo que cita. […] Não tem XVIII; sendo apreciada pela aristo- Barreto. Ver SEVCENKO, Nicolau.
consciência do que pratica. […] Faz cracia, escandalizava os burgueses. Literatura como missão: tensões
citações inconscientemente, altera, No entanto, os problemas levanta- sociais e criação cultural na pri-
deturpa o sentido e até o texto dos dos nesse tipo de literatura não se meira República. 3 ed. São Paulo:
autores. […] Não se guia por eti- limitavam aos morais e avançavam Brasiliense, 1989.
mologia, não se guia por fonética, para questões de ordem política e
confunde tudo.” Essas acusações econômica, firmando-se como uma

381
A diferença com relação à França não Tomemos como exemplo a passagem

JÚLIO RIBEIRO E A LUTA DAS IDEIAS   MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO


deixa de ser interessante também: a interpre- anteriormente citada, referente ao encontro
tação mais óbvia pode levar para o lado retró- erótico de Lenita com Barbosa. Como foi
grado da discussão e considerar a hipótese de observado, a descrição científica se sobrepõe
que Júlio Ribeiro está defendendo a reprodu- à análise do caráter e esse acaba aparecendo
ção pelo Brasil do exemplo francês sem mais como projeção daquela. O resultado são per-
nem mesmo. A hipótese aqui, no entanto, é sonagens frias, agindo como “títeres”, para
outra: era necessário que as transformações usar a expressão de Machado de Assis quan-
históricas do país (as culturais inclusive) do fala sobre a imperfeição da técnica natura-
adquirissem uma configuração orgânica, lista usada por Eça de Queirós31, cuja matriz
superando a dualidade típica do processo literária é a mesma do nosso Júlio Ribeiro. Se
brasileiro.27 Em outras palavras, na medida observarmos bem, as personagens de A carne
em que as benesses culturais ​—​ marcas de possuem composição indecisa, mesclando
desenvolvimento e contemporaneidade ​—​  se princípios opostos sem conseguir compor um
restringiam ao círculo elitizado da sociedade, caráter inteiriço, entendido aqui de maneira
criavam-se as condições para o aprofunda- diversa daquela que se consagrou na escala
mento da hegemonia política e econômica naturalista de personificação, mas como um
em vigor e para sua reprodução histórica. Por- complexo rico e variado, heterogêneo e con-
tanto, quando Júlio Ribeiro acusa o desalinho traditório do ser humano. Engana-se quem
entre Brasil e França na cultura e na literatura, pensa que a coerência da persona ficta é fruto
ele as estava inserindo no contexto de bata- de uma decisão particular do artista no mo-
lha ideológica. mento da criação; ela é, antes, um constructo
cuja formalização, sendo livre, se encontra em
⁂ consonância com a totalidade da obra. Não
se trata, portanto, de uma escolha arbitrária,
Voltando às questões de arte, como vimos, mas de uma conformação disciplinada. Esse
A carne sofreu restrições quanto ao desem- é um expediente da maior importância, que
penho literário. A fortuna crítica reconheceu não se esgota em si mesmo, pois faz desa-
problemas de toda ordem: falha na com- creditar da dramatização dos caracteres e
posição das personagens e do narrador, desregulamenta a própria ordem narrativa.
excesso de informação científica, ruptura Júlio Ribeiro, porém, tomou outro cami-
no encadeamento da prosa, sobreposição nho, vergando o caráter das personagens
das ideias do autor nos diálogos, falta de para melhor se ajustarem aos ditames estéti-
unidade da narração e incongruências no cos de sua escola de eleição. Tomemos mais
nível da trama são algumas das restrições uma vez o caso de Lenita, não por acaso, mas
levantadas. Daí a opinião de Alfredo Pujol, porque, apesar das deformações, se mostra a
segundo a qual A carne “é um trabalho personagem mais bem delineada do romance.
falso, sem orientação estética” 28, enquanto Apesar dos ataques que a crítica lhe dirigiu
Veríssimo considerou a linguagem “pura e quanto à sua amoralidade ​—​ associada às ta-
boa, como convinha a um gramático, mas ras que lhe dominavam o espírito, tornando-o,
sem relevo” 29, e Brito Broca viu nela “um às vezes, agressivo e cruel ​—, Lenita possui
artificialismo berrante, […] um lamentável uma elevação ética incomum, dotada de in-
fracasso como romance”.30 tegridade e valores nobres, que vinham, aliás,

27 A arquitetura teórica do 29 VERÍSSIMO, 1997, p. 191. Aguilar, 2008, pp. 1232–42. Publi-
resíduo dualista presente no cado pela primeira vez em 1878. A
processo histórico brasileiro 30 BROCA, O romancista e o tenor, definição de Machado a respeito de
foi desenvolvida por OLIVEIRA, 1991, pp. 104–7. Citação na página Luísa não esgota a personalidade
Francisco de. Crítica à razão 104. Publicado a primeira vez em de Lenita, mas delineia um caráter:
dualista; O ornitorrinco. São 1961. “Repito, [Luísa] é um títere; não
Paulo: Boitempo, 2003; e Brasil: quero dizer que não tenha nervos
uma biografia não autorizada. 31 ASSIS, Machado de. O primo Basí- e músculos; não tem mesmo outra
São Paulo: Boitempo, 2018. lio, romance do sr. Eça de Queiroz. coisa; não lhe peçam paixões
In: Obra completa em quatro nem remorsos; menos ainda
28 PUJOL, 2015, p. 337. volumes. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova consciência.”

382
acompanhados de cultura livresca impressio- exerceria ocupações mais elevadas que as
nante.32 A crítica não lhe perdoou a imagi- de professor primário no interior; suas ideias
nação cheia de pornografia, nem a iniciativa seriam discutidas em ambiente arejado e
dela própria para se meter na cama de um poderiam contribuir melhor para o debate
homem divorciado e de hábitos não reco- público sobre educação, política, costumes
mendáveis; mas se pensarmos bem, veremos e literatura; sua obra sairia das sombras do
que Lenita conserva um pudor e um senso moralismo ​—​  que a enterra ou promove ​—​  e
de amor típicos do romantismo. O suicídio valeria pelo que significa no quadro da litera-
de Barbosa e as motivações que levaram a tura brasileira. Todos os empecilhos acima
ele (a decisão de Lenita em casar-se com um apontados teriam outra configuração, caso os
estranho, apesar de estar grávida de Barbosa) ideais progressistas ​—​  dos quais Júlio Ribeiro
também são verdadeiros clichês que dão ao foi partidário ​—​ tivessem vingado. Quanto à
romance um desfecho previsível. A lição que Carne, as determinações históricas ​—​ regi-
fica do final é que relacionamentos naquele das pela composição de classes e pela luta
grau de entrega e desrespeito às normas so- nos campos econômico, social e ideológico ​
ciais levam à infelicidade e à tragédia; ou seja, —​ empurraram suas linhas de força para uma
a lição é moralista, ao contrário do que supôs posição secundária, colocando uma questão
a recepção de primeira hora e a de depois. A menor, provinciana e alienada no lugar.
contradição, não planejada pelo escritor, é A inserção de A carne na tradição literária
inserida por força da sobreposição estética brasileira me parece mais decisiva do que
de valores antitéticos, uma formulação da isso. Sem esquecer que se trata de uma obra
batalha das ideias no campo da literatura de falha, cheia de imperfeições, destituída de
um país periférico. Como foi observado acima, atributos que a pudessem elevar artistica-
no Brasil os movimentos estéticos se consti- mente, ela detém uma importância à altura
tuíam e se substituíam devido mais às modas de suas possibilidades. Antonio Candido
literárias estrangeiras aqui chegadas do que chama atenção para o papel funcional das
em resposta às transformações históricas obras menores no processo de formação do
fundamentais (como ocorreu na literatura sistema literário e para sua inserção no me-
europeia) e, por isso, as tendências artísticas canismo de desenvolvimento e depuração das
não se aprofundavam, podendo se embara- formas artísticas, participando efetivamente
lhar com facilidade. Por isso, salvo engano de sua consolidação.33 Nesse sentido, há que
meu, romantismo e naturalismo são confor- se pensar em como A carne, com seu sistema
mados ​—​  e mal conformados ​—​  em A carne de próprio de significações, deve ser analisada
maneira que se anulam mutuamente, dando tendo em vista o conjunto de questões (te-
a impressão de um romance dúbio, indeciso, máticas e estéticas) que trouxe para o campo
destituído de uma forma que integre os diver- literário e que foram incorporadas, adotadas
sos matizes que a compõem ou as contradi- ou superadas pela tradição posterior.
ções da ação. A falha de composição de que Para além da barreira do moralismo, que
falam os críticos possui, portanto, outro lado, para mal e para bem pautou sua importância
que a faz parte da luta das ideias.


32 Na verdade inverossímil. Com certa
ironia, Alfredo Pujol notou que
O escândalo projetou Júlio Ribeiro na história “Lenita conhecia mais ciências e
cultural do país; mas, visto por esse ângulo, mais línguas do que o Imperador.”
estamos a apreciar a figura do escritor pelo PUJOL, 2015, p. 329.

lado mais fraco. Enquanto cidadão comum, 33 CANDIDO, Antonio. Formação da


ele representa um fenômeno não-comum, que literatura brasileira: momentos de-
é o cumprimento de etapas necessárias de cisivos (1750–1880). 10 ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. A
ascensão em resposta à sua formação intelec- questão é apresentada e discutida
tual e às funções exercidas como professor e na “Introdução” e reelaborada no
jornalista, por exemplo. Fosse o Brasil um país “Prefácio da 2ª edição”; mas a tese
fica mais clara no ato de exposição
dado à mobilidade econômica, Júlio Ribeiro da matéria, quando se discute as
não viveria tantas provações e certamente obras e os autores.

383
no quadro da literatura brasileira, A carne

JÚLIO RIBEIRO E A LUTA DAS IDEIAS   MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO


introduz problemas importantes, ou melhor, o
livro os captura (pois eles já existiam previa-
mente) e os formaliza, mostrando o quanto
Júlio Ribeiro se encontrava envolvido com o
processo em curso. As forças contraditórias
da realidade histórica penetram os estratos
significativos da obra, fazendo-se representar
transfiguradas. No campo da literatura, as
principais mudanças remetiam à luta entre
romantismo e naturalismo, luta essa que não
se restringia à questão de gosto estético, mas
acionava também visão de mundo, concepção
política, atuação social etc., implicados no
caldo cultural que realimentavam aquelas
correntes, situando-as historicamente e
evitando sua percepção em abstrato. Nesse
sentido, romantismo e realismo representam
forças de mudança e de reação à luz do curso
dos fatos que vinham ocorrendo no país,
configurando-os à sua maneira. Os elemen-
tos veiculados na narrativa de A carne, que
formam seus temas de eleição ​—​ ataque às
convenções morais conservadoras (que ser-
viam de justificação para o sistema de poder
vigente) e promoção da ciência e da razão (va-
lores liberal-capitalistas que diziam respeito
ao conhecimento, à política e à economia) ​
—​ também são partes dessas forças de mu-
danças, acirrando a batalha das ideias.
“A fama e a infâmia” de Júlio Ribeiro ​
—​ expressão feliz, mas distorcida, com que
um estudioso classificou sua obra34 ​—​  fo-
ram conquistadas por uma questão menor,
regressiva no fim das contas (o moralismo
conservador), que deixa o escritor mais perto
de nós, mas aquém de sua real contribuição
para o mundo das Letras e das ideias. O cará-
ter invertido desse caso deve ser superado ou
nos levará ao ponto em que nós (o país) nos
encontramos.

34 Capítulo inicial de Leituras do


desejo, de Marcelo Bulhões,
reproduzido na apresentação
de RIBEIRO, 2015.

384
385
O SENTIMENTO
DE ORIGEM NA
POESIA DE
CARLOS
DRUMMOND DE
ANDRADE
MÁRIO ALEX ROSA

386
A longevidade da poesia de Carlos com a sua própria história biográfica. De
Drummond de Andrade parece garantida fato, se olharmos toda a trajetória do poeta,
por mais algumas centenas de anos e ele o que se diz em “Confidência do itabirano”,
continuará sendo lido e estudado. Se tomar- publicada em 1939, na Revista do Brasil, e em
mos assim por alto, talvez seja o poeta mais seguida no seu terceiro livro, Sentimento do
comentado na poesia brasileira. Num levan- mundo (1940), toca direta e abertamente no
tamento feito por Fernando Py, para a Revista que seria para sempre um registro de quem
Poesia Sempre, em 2002, constavam na se- confessou fielmente sua origem:
leta atualizada mais de 500 textos, variando
de artigos de jornais e revistas a livros e teses, Alguns anos vivi em Itabira.
sem contar livros que reúnem diversos textos ​ Principalmente nasci em Itabira.
—​ portanto, podemos quase dobrar essa Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
quantidade, sobretudo considerando que, de Noventa por cento de ferro nas calçadas.
lá para cá, muitos trabalhos foram publicados Oitenta por cento de ferro nas almas.
sobre Drummond. Um poeta que achava que E esse alheamento do que na vida é
logo seria esquecido, que, de forma modesta porosidade e comunicação.
ou talvez desconfiada, deu a seu primeiro
livro o título de Alguma poesia (1930), ou seja, A vontade de amar, que me paralisa o
sugerindo que ali haveria alguma coisa que trabalho,
pudesse ser chamada de poesia, sem ima- vem de Itabira, de suas noites brancas,
ginar que textos como “Poema de sete face”, sem mulheres e sem horizontes.
“Infância”, “Cidadezinha qualquer”, “Quadri-
lha”, “Cota Zero” e sobretudo o famoso “No E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
meio do caminho” ganhariam tantas leituras é doce herança itabirana.
e repercussão até hoje, quando já estamos no
século XXI! e praticamente a 90 anos de seu De Itabira trouxe prendas diversas que
primeiro livro. ora te ofereço:
De fato, sem nenhuma restrição, podemos esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
dizer que a poesia de Drummond se impõe este São Benedito do velho santeiro
hoje mais que nunca e as razões são diversas. Alfredo Duval;
Uma delas é a relação temática que manteve, este couro de anta, estendido no sofá da
até o final da vida do poeta, com suas raízes, sala de visitas;
em especial com a sua cidade natal: Itabira este orgulho, esta cabeça baixa…
do Mato Dentro. Relação que se desdobra
em pelo menos dois tópicos, nomeados pelo Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
próprio poeta na Antologia publicada em Hoje sou funcionário público.
1962: das nove seções, constam duas que Itabira é apenas uma fotografia na parede.
dizem respeito a nosso tema, “Uma província: Mas como dói!
esta” e “A família que me dei”. A nota escrita
por Drummond para justificar a antologia Na correspondência entre Carlos Drummond
parece bastante esclarecedora, sobretudo e Mário de Andrade, este promete escrever
se atentarmos para esta passagem: “cuidou um estudo sobre Sentimento do mundo, mas
antes de localizar, na obra publicada, certas o foi adiando, até que, numa carta de 15 de
características, preocupações e tendências agosto de 1942, justifica a demora de dois
que a condicionam ou definem, em con- anos e comenta seu sentimento pelo livro,
junto. A Antologia lhe pareceu assim mais dando algumas impressões que valem ser
vertebrada e, por outro lado, espelho mais expostas aqui, sobretudo porque o poema
fiel”. Palavras como cuidou, preocupações, “Confidência do itabirano” praticamente não é
tendências, espelho mais fiel dão a dimensão considerado, ainda que, a certa altura, Mário
de quanto Drummond ampliava e confirmava escreva que é “um dos mais belos gritos do
quais eram os retratos de sua poesia para poeta”, e só. Talvez isso aconteça porque ele
seus leitores. Há nesses termos, mais que percebe, e com razão, que este é um livro em
afirmar tendências e características, um zelo que a tônica está mais para uma abertura
em cumprir com fidelidade os compromissos para o mundo, para a dor do outro, como no

387
belo poema “Menino chorando na noite”, do parte do poeta, em relação à sua Itabira, mas

O SENTIMENTO DE ORIGEM NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE   MÁRIO ALEX ROSA


que para aquele sentimento interiorano. O po- sim uma lembrança atávica, que, vista ali, no
eta de Brejo das almas (1934), ao que parecia, seu cotidiano residencial, faz crer que Itabira
saíra de um sentimento muito ensimesmado é um retrato para vida inteira. Assim, a mes-
para um outro oposto, ou seja, aberto ao cla entre o concreto e o abstrato é expressa
mundo. Mário de Andrade, além de comentá- pelo sujeito lírico como adesão e negação,
rios pontuando alguns poemas, faz o seguinte por isso ele é triste, mas é orgulhoso, por isso
diagnóstico: sofre, mas se diverte, e do lugar traz prendas
que são de novo a raiz (“pedra de ferro”), mas
Causa e efeito também outras peças mais intimistas (“São
Sentimento do mundo é o resultado de Benedito”, “couro de anta”), expostas na sala
um poeta verdadeiro cuja vida se trans- de visitas. Com toda essa exposição, do mais
formou. O poeta não mudou, é o mesmo, geral ao mais íntimo, nos seus dezenove
mas as vicissitudes de sua vida, novos versos, há muito que destacar nesse senti-
contatos e contágios, novas experiências, mento de origem, que se impõe e se revela
lhe acrescentaram ao ser agressivo, revol- pela repetição, seis vezes, do nome da cidade
tado, acuado em seu individualismo irre- natal, em todas as estrofes. Na terceira, com
dutível, uma grandeza nova, o sofrimento disfarçado humor, ele não deixa por menos
pelos homens, o sentimento do mundo. ao escolher, de maneira categórica, a palavra
Foi realmente um acrescentamento enor- “herança” como aquilo que é transmitido
me, este ajuntar às dores do individuo a como um fardo, para o bem ou para o mal.
fecundidade da dor humana, e se já antes Wisnik, ao comentar o poema e suas oferen-
o poeta tímido que apelidava um livro de das, junto com questões históricas, mas não
“alguma poesia” já era um grande poeta, menos de interpretação literária, aponta o
agora que conscientemente apelidou seus que interessa mais de perto, ou seja, a relação
novos versos com o título orgulhoso de de Drummond com a mineração. Comentan-
Sentimento do mundo, nos deu uma obra do o verso “esta pedra de ferro, futuro aço do
que além de grande é extraordinária. Brasil”, ele diz:
Individualismo irredutível de Alguma
poesia. Em Sentimento do mundo o poeta No poema, a dádiva mineral da cidade
sem nada perder do seu individualismo, onde tudo é de ferro aparece como a
além da dor do indivíduo, junto com matéria-prima do projeto de siderurgia
ela, dentro dela, sofre da humana dor. É nacional, alavanca produtiva da moder-
realmente um exemplo extraordinário e nização do país, alinhando-se claramente
excepcional. E dentro desse seu caso de na posição nacional de desenvolvimento
humanização, C. D. de A. nos deu alguns do debate político que então se travava.
gritos dos mais lancinantes, alguns esta- Naquele momento, o destino da pedra
dos de revolta dos mais angustiosos da siderúrgica se opunha ao do minério
nossa poesia. Que poesia verdadeira! 1 bruto que a companhia anglo-americana
projetava exportar em larga escala. Se as
De fato, Sentimento do mundo é um livro demais prendas pertencem à esfera da
que carrega tantas dores de um mundo em intimidade compartilhada, a pedra de
guerra,2 mas cabe também espaço para uma
dor, digamos, particular, uma confissão que
definitivamente marcaria o poeta, como neste 1 ANDRADE, Carlos Drummond de;
verso sintomático: “principalmente nasci em ANDRADE, Mário de. Corres-
pondência de Carlos Drummond
Itabira”. Marcado por esse advérbio um tanto de Andrade e Mário de Andrade.
enfático, ele revela que, por razões às vezes Organização de Silviano Santiago.
obscuras, está condenado a carregar o peso Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002,
p. 483.
de sua gênese. Nascer e ser ​—​ entre a aceita-
ção e negação de sentimentos geográficos, o 2 Cf. MOURA, Murilo Marcondes
poeta sabe que dói trazer apenas uma foto- de. Desejo de transformação. In:
Sentimento do mundo. São Paulo:
grafia da cidade na parede. A palavra “apenas” Companhia das Letras, 2012.
não deve dar a entender algo diminuto, por (Posfácio).

388
ferro remete ao espaço público e é datada. pode afirmar que, mesmo que o poema citado
Pois nela estava a cifra não resolvida pareça menos aberto aos conflitos sociais do
de um longo processo político e econô- mundo, ainda assim há, nessa confidência de
mico, envolvendo os rumos incertos da itabirano, uma confissão que diz respeito a
extração, da exportação e da transfor- toda história brasileira. A poesia não precisa
mação do minério de ferro como base da nos conduzir à história, mas nem por isso
industrialização brasileira ​—​  discussão deixa de fora certos sentimentos que, vindos
em relação à qual o poema toma posição de poetas, podem acordar-nos para um enga-
discreta mas firme, no momento histórico jamento na luta com as palavras.
em que o berço de ferro chegava à sua hora
da verdade.3 A PARTIDA DE MINAS

Se aquela pedra de ferro se tornou aço para Carlos Drummond partiu definitivamente
o país, hoje, na história recente do Brasil, de Minas Gerais em 1934, ano em que saiu
em particular em Minas Gerais, mais que o seu segundo livro, Brejo das almas, com
nunca tornou-se um pesadelo. A confissão uma tiragem bastante modesta, de apenas
drummondiana nos faz repensar o quanto 200 exemplares. É um livro marcado por uma
história e poesia se amalgamam em muitos desconfiança com relação à própria vida, ao
momentos, sem que isso implique necessa- país, à poesia e, sobretudo, ao sentimento
riamente um ato deliberado do poeta. amoroso. Ao tratar de um livro com apenas 26
A confissão do itabirano, nesse forte poemas, na sua maioria voltados para uma
poema, mostra como a cidade natal foi de forte desilusão com tudo, é de se perguntar
extrema importância para o poeta “gauche” e os motivos de um verso como “perdi o bonde
quanto essa relação se estreitou mesmo com e a esperança”, ou da totalidade do poema
o passar dos anos. A série dos três livros cujo “Não se mate”, em que o nome Carlos é citado
nome geral ficou conhecido como Boitempo é como uma advertência: “Carlos, sossegue”.
um espelho fiel ​—​ para usar um termo do po- Vale notar que, se Itabira e algumas cidades
eta ​—​ desse sentimento de origem. Portanto, de Minas são lembradas no livro de estreia,
é admirável que, a partir de um único poema, em Brejo das Almas praticamente não se fala
da experiência mais recôndita, consiga ele nelas. Sobre o título da obra, contudo, há uma
pôr em comunicação o passado e o presente. breve informação de que se trata do nome de
E que, uma vez confidenciada a sua origem, um dos municípios de Minas Gerais, um lugar
confidencie a nós o seu sentimento não ape- mais dos Gerais, de outro mineiro, Guimarães
nas itabirano, mas abertamente humano. Rosa, do que das Minas do poeta itabirano.
Em Drummond, estaremos sempre diante Sabe-se que o lugar estava prestes a mudar
de uma dialética em que negação e afirmação de nome, o que de fato ocorreu ​—​ hoje se
se impõem e se apresentam como um modo chama Francisco Sá. Na nota, fica claro que é
de averiguarmos os obstáculos que são pró- um local de muita produção rural, com grande
prios da poesia de grandes poetas. Em suma, desenvolvimento, o que leva a que se cogite
se Itabira é uma pedra no meio do caminho, a mudança de nome: se é forte na produção,
é também uma pedra da qual o sujeito lírico nada justifica ter um nome tão sem ênfase,
não se liberta. Assim, falar de Itabira é falar senão mórbido. Mas há de se notar que, “se
de um sentimento muito mais vívido do que nada significa e nenhuma justificativa oferece”
apenas relacionar fatos históricos, embora esse nome, dá-lo como título à obra, um nome
seja possível reconhecer no poema um retrato retirado do pequeno, do insignificante, faz
social e econômico de um Brasil não muito com que o lugar se eternize, mesmo que seja
longe desse tempo pretérito, conforme se lê no nome de um livro cujo sentimento está
no verso: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas”. encharcado de desilusões. Talvez possamos
Enfim, tendo em vista uma arte tão pessoal,
liricamente pessoal, como é a de Drummond,
mas que nem por isso deixa de filtrar cer-
tos acontecimentos da e na história, como 3 WISNIK. José Miguel. Maquinação
do mundo Drummond e a minera-
acontece em Sentimento do mundo e, mais ção. São Paulo: Companhia das
pontualmente, em A Rosa do povo (1945), se Letras, 2018, pp. 98–9.

389
especular que o poeta, de maneira sutil e Rio de Janeiro, onde permaneceu por mais de

O SENTIMENTO DE ORIGEM NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE   MÁRIO ALEX ROSA


irônica, estivesse chamando a atenção para cinquenta anos. Segundo a cronologia de sua
um Brasil rural, considerando que, sobre- vida, percebe-se que não houve mudanças
tudo a partir de 1930, começa, mesmo que bruscas de 1920 até 1934. No entanto, pelo
timidamente, a industrialização brasileira, menos dois tristes fatos se destacam, por se
e a migração se acentua para as médias e tratar de grandes perdas: o nascimento, em
grandes cidades. 1925, do seu primeiro filho, que viveu apenas
Entre a província e o urbano, sem alar- trinta minutos, de acordo com anotações; e a
gar essas dicotomias, Brejo das Almas está morte do pai, em 1931. Nascimento e morte
distante do registro itabirano de Alguma certamente abalaram muito o poeta. Em
poesia. Ainda assim, estão lá pelo menos Claro Enigma (1951), no poema “Ser”, ele re-
dois poemas em que cidades mineiras são toma a terrível lembrança do filho que “viveu
citadas, ora numa chave humorística, ao falar apenas trinta minutos após vir ao mundo”.
das cartas direcionadas a moças de diversas Já a figura do pai, esta sim aparecerá em
cidades (“As namoradas mineiras”), ora num diversos poemas, como no belo e dramático
olhar mais histórico sobre aquela que é uma “Viagem na família”.
das cidades de raízes mais mineiras: Ouro No posfácio de Brejo das almas, Alcides
Preto. Mais que sobrevoar, o poeta nos convi- Villaça levanta uma hipótese que nos pare-
da (“Vamos”) a percorrer e conhecer o mestre ce pertinente:
Aleijadinho (“O voo sobre as igrejas”). Minas
parece jamais abandonar o poeta e vice-versa. Talvez se possa caracterizá-lo com
É do mesmo período outro trabalho em que uma expressão radical de experiências
se pode perceber o quanto o sentimento de soturnas dos últimos anos em Minas, nas
origem é importante para o poeta: Confissões circunstâncias em que o poeta se viu um
de Minas, de que dois textos, “Vila de uto- tanto sem perspectiva, desinteressado do
pia” e “Viagem de Sabará”, foram escritos e diploma de Farmácia, tentando um retor-
publicados antes de Brejo das almas, o que no a Itabira, sofrendo a perda de um filho,
demonstra como desde sempre a “geografia a morte do pai, passando, enfim, por um
histórico-afetiva” esteve nele presente. O período politicamente nervoso e por
sentimento de origem mineira, na poesia de atribulações psicológicas que abeiram o
Drummond, raramente se apresenta como trágico. As razões íntimas do poeta são
saudosismo, mas sim como um passado que inescrutáveis; as externas, insuficientes
parece se atualizar na medida em que se para explicar a arte.4
torna matéria de poesia.
Com esses poucos dados sobre a ausên- Mundo íntimo e mundo externo, sentimen-
cia de Itabira ou mesmo de Minas em Brejo to de Minas e do mundo, o nosso poeta se
das almas, há de se avaliar, com todo risco notabilizou pela capacidade de dar forma a
que o biografismo tem, o momento vivido sentimentos tão diversos e complexos. Se
pelo poeta. Se repassarmos resumidamen- Minas comparece aparentemente pouco em
te a sua ida para o Rio de Janeiro, capital Brejo das Almas, pouco tempo depois, em
do país naquela época, alguns dados são Sentimento do mundo (1940), registra-se a
importantes: Drummond já era casado, tinha confissão do poeta mineiro, na “Confidência
uma filha de pouco mais que cinco anos; já do itabirano”. De lá para cá, ele visitará suas
era formado em Farmácia, porém sem atuar raízes, até o último aceno, no livro Farewell
na profissão. Entre a vida familiar e profissio- (1996), publicado praticamente dez anos
nal, sem exercer a profissão de farmacêutico, após a sua morte.
volta para Itabira, onde leciona português e
geografia, por um curtíssimo período, logo
regressando para a capital mineira. Mas é a
partir de 1926 que se fixa definitivamente em
Belo Horizonte, período em que atua como
jornalista até receber o convite do amigo 4 VILLAÇA, Alcides. Desejos tortos.
In: Brejo das almas. São Paulo:
Gustavo Capanema para trabalhar no antigo Companhia das Letras, 2013.
Ministério da Educação e Saúde Pública, no (Posfácio).

390
A MUDANÇA PARA O RIO DE JANEIRO ao viajar por dentro da família, em busca do
pai, encontra-se amalgamada à cidade natal.
O propósito aqui não é historicizar em por- Numa síntese se pode dizer que falar do pai é
menores o percurso do poeta, mesmo porque falar de Itabira, um está para o outro como o
precisaríamos de um estudo mais detetives- filho esteve para os dois.
co. No entanto, o que nos interessa mais de Chegar de forma mais profunda na família,
perto e mais uma vez é reforçar como Itabira em especial no pai e, através dele, nas suas
e Minas jamais sairão de seu horizonte. As raízes, de fato não constituía uma surpresa.
confissões vão se ampliando e aprofundando Afinal, o poema “Infância”, de Alguma Poesia,
na medida em que o itabirano se afasta das e, posteriormente, “Confidência do itabirano”,
origens. Um processo às avessas, ou seja, em Sentimento do mundo, já davam a dimen-
quanto mais distante, mais próximo ele pare- são de que, para o poeta, seria quase natural
ce ficar. Nesse sentido, o emblemático poema ou mesmo completamente natural retornar o
“A bruxa” abre com um dos sentimentos mais quanto fosse necessário a esses sentimentos
angustiantes quando se está em território de adesão ao lugar de origem. Trazer o pai
novo, quando se está longe das raízes ​—​ e, no para o presente, numa viagem solitária por
caso de Drummond, poeta tão comedido na Itabira (“no deserto de Itabira”), não parece
sua timidez, salta mais aos olhos a “espan- apenas a solicitação do filho que deseja ser
tosa solidão”: perdoado, mas reforça o forte sentimento
que tinha pelo pai e, por extensão, por Itabira.
Nesta cidade do Rio, Todo poema é uma caminhada e, a cada
De dois milhões de habitantes, estrofe (das treze que contêm, na sua maioria,
Estou sozinho no quarto, oito versos), assistimos à voz abafada do filho
Estou sozinho na América. em busca de um diálogo que não acontece,
como se lê nove vezes no estribilho que fecha
Não seria estranho reconhecer em “A bruxa” cada estrofe: “Porém nada dizia”. Talvez, mais
resíduos daquele processo angustiante que que uma tentativa de fazer as pazes com a fi-
começou com força em Brejo das Almas. gura paterna ​—​ sempre se valendo de proposi-
Aliás, em José (1942), com tantos poemas ções negativas e pungentes, mas não menos
importantes e que se destacam, o sentimento afetivas ​—​ o que se deve ressaltar é como,
de solidão é uma questão que se realça e se de todos os temas da poesia de Drummond,
espalha pelos doze poemas, a começar pela um dos mais fortes são os laços com Minas,
estrofe citada. Sem citar todas as ocorrências, postos em forma de poesia.
esse sentimento tem uma presença de fato O retrato de família motiva também a
forte: em “O boi”, de chofre lemos a interjeição, composição do poema nascido a partir das
na abertura, que se repetirá nas três próximas fotos que Brás Martins da Costa, itabirano,
estrofes, tal como um reforço anafórico: “Ó enviou a Drummond, intitulado “Imagem, ter-
solidão”, que acentua o sentimento de vazio. ra, memória”, composto em 1983, dois anos,
Na sequência do livro, encontramos “verdes portanto, antes do seu falecimento. Ter con-
solidões” (“Palavras ano mar”), “As famílias tato com esse álbum de fotos provavelmente
se fecham / em células estanques” (“Edifício despertou mais uma vez nele o quanto Itabira
Esplendor”), “no céu também há uma hora permanecia em sua memória: “a viagem
melancólica” (“Tristeza no céu”). Em “Rua do continua, / itabiramente ontem-sempre”.5
olhar” está em causa o desejo de ser olhado, É certo que não há dúvidas sobre a relação
ainda que não se mencionem objetos ou pes- umbilical de Drummond com o seu passado e
soas, sendo por isso mesmo que a solidão se
personifica. Os poemas mais conhecidos, que
são “José” e “Viagem na família”, ambos, em
chaves diferentes, expressam a solidão do su- 5 O poema “Imagem, terra, memó-
ria”, datilografado por Drummond,
jeito. No primeiro, encontra-se a pergunta que termina diferente da versão final,
nos interessa mais de perto, a que indaga por em Farewell. Cf. Retratos na
Minas, cuja resposta é: “Minas não há mais. / parede. Belo Horizonte: Autêntica,
2012. Concepção e organização de
José, e agora?” Já no segundo, a angústia é Altamir José de Barros e Robinson
ainda mais dramática e a solidão do poeta, Damasceno dos Reis.

391
dentre os poemas mais conhecidos do poeta, luz além da que nos envolveu dia após

O SENTIMENTO DE ORIGEM NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE   MÁRIO ALEX ROSA


que são reconhecidos até por leitores comuns, dia”, mas nesse “pouco que fica de tudo”
destacam-se aqueles que denotam ou cono- registra a herança imponderável transmi-
tam as suas raízes mineiras. A memória sem- tida pelos pais aos filhos: “fica um pouco
pre foi uma aliada de Drummond, que soube de teu queixo / no queixo de tua filha”
transformar os mais reclusos sentimentos em (“Resíduo”).7
matéria de poesia. Numa de suas entrevis-
tas, ele faz uma revelação precisa, enquanto Se na essência física ficam de forma ine-
poeta que sempre teve extremo rigor com a xorável as semelhanças com o outro, ficam
sua própria história: também as lembranças do cheiro da terra,
da mobília, certas ruas, quartos, compotei-
Minha poesia é autobiográfica. É uma ras, peças da antiga fazenda do Pontal. Fica,
confissão, talvez a primeira forma de uma enfim, o ruminar de tempos passados que
obra literária, obra ainda em bruto, insu- voltam à tona em Boitempo. Mesmo nos livros
ficientemente transformada em criação mais marcados por uma memória voluntária
artística. Assim sendo, quem se interessar e ou involuntária, como nessa série, ainda
pelos miúdos acontecimentos da vida assim há um suposto Esquecer para lembrar ​
do autor, basta passar os olhos por esses —​ para usar um dos títulos que a integram.
nove volumes que, sob pequenos dis- Portanto, passado e presente parecem se
farces, dão a sua ficha civil, intelectual, amalgamar, trazendo para o presente um
sentimental, moral… Lá estão a infância suposto passado esquecido. É de se notar
em Itabira, o colégio em Friburgo, a que, depois de publicar mais de dez livros de
adolescência vadia em Belo Horizonte, poemas, afora as crônicas, Drummond, que já
a tentativa fazendeira logo frustrada, a se aproximava dos setenta anos, lançou o pri-
profissão burocrática e jornalística.6 meiro volume de Boitempo & a falta que ama
(1968). Considerando toda a longevidade do
A afirmação é reveladora. Embora “sob poeta, a primeira parte do livro conta com 84
pequenos disfarces”, é de reconhecimento poemas; na segunda, Menino antigo (1973),
da crítica que a poesia de Drummond está são 126 textos líricos; e na terceira, Esquecer
impregnada de lembranças do seu passado para lembrar (1979), 188 poemas. A soma
em Minas e que “há, é certo, um meio de dos três livros é de, aproximadamente, 400
transmitir essa herança personalíssima: a via poemas, lembrando que ele já tinha publicado
poética”. É dela que, tanto quanto podemos, anteriormente mais quatro livros. A produção
nos aproximamos, para responder não só é grande para um poeta quase octogenário
às inquietudes do poeta, mas, quem sabe, e que ainda teria fôlego para mais algumas
também às nossas. Pensando assim e justi- produções, em 1986, um ano antes do seu
ficando um sentimento muito pessoal, posto falecimento, em agosto de 1987, aos 85
aqui na tentativa de investigar o que faz essa anos. Mesmo que esse seja apenas um dado
poesia levar muitos a se “reconhecerem” nas quantitativo ​—​ o que não é pouco ​—​ é inegá-
raízes de quem a escreveu, é que busco reve- vel o valor estético dessa série. Nela, Minas,
lações de foro íntimo, mesmo com tudo que sobretudo Itabira e em parte Belo Horizonte,
possa estar e está aí ficcionalizado. Trata-se não deixaram de ser lembrados pelo poeta.
de buscar expor, no caso de Drummond, um A poesia é, de fato, o lugar de acordar lem-
“significado de excepcional gravidade”, anota- branças jamais esquecidas. Em Drummond,
do com brilhantismo por Paulo Rónai, que faz como estamos vendo, a memória trazida ao
a seguinte observação, com toda justeza:

É através da vivência-família que o poeta


atinge os mistérios da sobrevivência e da 6 ANDRADE, Carlos Drummond
de. CDA por ele mesmo. Diário
imortalidade, tendo ele próprio fechado de Notícias, Rio de Janeiro,
os outros caminhos que levam a elas. 16 jan. 1955.
Propositadamente alheio à inquietação
7 RÓNAI, Paulo. Pois é: ensaios. Rio
religiosa, já declarou em alto e bom som, de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
em “Os últimos dias”, não esperar “outra p. 67.

392
presente se insere desde a descoberta dos ou nem isso, extraterráqueo,
livros, no sensível poema “Biblioteca verde”, de quem não se ouve um grito
até questionamentos da perda de identidade mais além do que o gemido,
das casas “modernas”, em “A casa sem raiz”, nem uma palavra lúcida
que se refere à morada do poeta na Rua Silva varando o cerne das coisas
Jardim, no bairro Floresta, em Belo Horizonte, que esperaram ser reveladas
onde hoje há um prédio. e nós todos pressentimos.
A caminhada já se vai estendendo e é Inútil corpo, alma inútil
preciso percorrer algumas voltas às raízes se não transfunde alegria
do poeta, antes de encerrarmos com o seu e esperança de renovo
belo e impressionante aceno final: Farewell no universo fatigado
(1996). Sem pretender abordar todos os livros em que repousa e não ousa.
e poemas, quero destacar apenas “Canção de Sua ficha ​—​  foi rasgada,
Itabira”, de Corpo (1984), sua penúltima obra por ausência de sinais.
publicada ainda em vida. Ele se abre com Seu nome ​—​ por que sabê-lo?
uma informação exigente para um poeta octo- E sua vida completa
genário e que já tinha praticamente cumprido já nem é vida, é jamais.
com excelência uma carreira literária afinada
com o seu tempo e para além dele, como se Se tomarmos a personificação da figura do
tem notado pelos diversos estudos sobre sua gauche como sendo uma das raízes desse
obra. As inquietudes permanecem e continu- sentimento de origem em Drummond, con-
am nos inquietando. A epígrafe do Corpo é cluiremos que “O malvindo” não só retoma
eloquente: “O problema não é inventar. É ser aquela antiga e inaugural condição do
inventado hora após hora e nunca ficar pronta deslocado, que fica à margem dos aconte-
nossa edição convincente”. cimentos da vida, apenas espiando os fatos
Se o poeta ainda não estava convicto de do mundo, como no “Poema de sete faces”.
suas invenções ficcionalizadas numa arte de É importante anotar como, em “O malvindo”,
difícil entendimento para muitos, o que dizer encontramos, além de um sujeito lírico
de um poeta que, na abertura do seu primeiro extremamente deslocado, triste, melancólico,
livro, se apresenta, em difíceis sete partes, que nem pode se aventurar a certo “sabor de
com a sentença: “Vai, Carlos! ser gauche na epopeia”, como Dom Quixote, a expressão da
vida”? Gauchismo que, de modos diferentes, condição de alguém que tudo indica que não
percorreu toda a sua obra, concluindo num foi bem-vindo. Se não for forçar muito, talvez
poema de forte impacto, a começar pelo seu seja plausível reconhecer nesse poema uma
título, “O malvindo”: avaliação, ainda que muito severa, de um
sentimento de negação daquele que um dia
Vive dando cabeçada. batizou um dos seus livros de Fazendeiro do
Navegou mares errados, ar. Mas também é possível amenizar tantas
perdeu tudo que não tinha, cabeçadas do sujeito do poema, reconhecen-
amou a mulher difícil, do que Farewell é o aceno final do poeta. O
ama torto cada vez balanço, nessa despedida, não poderia ser
e ama sempre, desfalcado, outro senão uma visão severa, mas cons-
com o punhal atravessado ciente do seu fechamento. Talvez na história
na garganta ensandecida. da poesia brasileira seja raro vermos um
Este, o triste cavaleiro poeta que acolheu de forma tão organizada
de tristíssima figura e profunda, num livro, o final da vida, como o
que nem mesmo teve a graça fez Drummond em Farewell, inclusive nome-
de estar ao lado de Alonso ando em outra língua (mais um gauchismo?)
e poder narrar eventos o seu adeus.
nos quais entrou de mau jeito
mas com sabor de epopeia. O ETERNO RETORNO
Nada a fazer com este tipo
avesso a qualquer romança A “Canção de Itabira” (Corpo, 1984) abre com
ou ode, apenas terráqueo, estes versos:

393
Mesmo a essa altura do tempo, consciência de uma trajetória repassada com

O SENTIMENTO DE ORIGEM NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE   MÁRIO ALEX ROSA


um tempo que já se estira, o mesmo rigor e sentimento presentes em ou-
continua em mim ressoando tras obras, com o acréscimo da percepção de
uma canção de Itabira. um ciclo que estava para encerrar-se. Assim,
nas palavras de Alcides Villaça,
O eterno retorno a Itabira pela via poética
fez dessa cidade um símbolo mítico que o a luz definitivamente crepuscular que este
poeta, mesmo distante no tempo e no espaço, livro faz incidir sobre todos os momentos
jamais deixou de evocar, ou seja, quanto anteriores oferece-lhes uma nova pers-
mais distante mais próximo parecia ele ficar pectiva de interpretação. Despedindo-se,
de suas raízes. A canção que ressoa é doce Drummond aciona seu materialismo
herança itabirana, ainda que a canção na sua derradeiro com a consciência de quem,
totalidade ecoe mais um retrato singelo do havendo-se inaugurado como um gauche,
que em outros poemas, em que as tensões sabe enfim que a melhor máscara tem
são dadas muitas vezes numa indissociável pouca serventia diante da morte.
posição negativa. Mas aqui somos embalados
por uma canção que soa liricamente afável. De fato, quando estamos diante de um poema
Na sua última entrevista, em 1987, o poe- como “O peso de uma casa”, a visita à casa
ta faz um balanço do seu passado itabirano: paterna é uma das mais severas, senão
a mais, pois por ela adentramos como se
— O senhor tem saudades de Itabira levados pelas mãos do poeta, como Virgílio
ainda hoje? levou Dante Alighieri ao encontro de Beatriz.
— Tenho uma profunda saudade e digo Com Drummond, num impecável poema de
mesmo: no fundo, continuo morando dez dísticos, todos em alexandrinos rima-
em Itabira, através das minhas raízes e, dos, com cesura na sexta sílaba, ou seja,
sobretudo, através dos meus pais e dos na modalidade mais clássica dessa forma,
meus irmãos, todos nascidos lá e todos entramos na casa:
já falecidos. […] É uma herança atávica
profunda que não posso esquecer. Mas a O peso de uma casa
atual Itabira eu mal conheço. Não vou lá
há anos. Exatamente por isso: porque a La maison de mon pére était vaste et
Itabira que conheci, na qual nasci, passei commode
a infância e um pouco da minha mocida- merecia de mim um soneto ou uma ode.
de é uma coisa completamente diferente
da atual. Era uma cidade de quatro mil Eu não soube entendê-la e não soube
habitantes, se tanto. Hoje, tem mais de trová-la.
cem mil. É uma grande cidade industrial. Só resta exígua estampa, o frescor de
[…] É uma visão completamente dife- uma sala.
rente da que tenho da minha infância. A
essa Itabira antiga eu estou profunda e Aquela egrégia escada, aquela austera mesa
visceralmente ligado.8 sumiram para sempre em lances de
incerteza.
Essa “herança atávica” a que ele se diz “visce-
ralmente ligado” no fechamento da sua obra Caem móveis em pó, e ondulantes cortinas
traz mais uma vez o sentimento de raiz desse deixaram de esvoaçar no silêncio de Minas.
poeta que um dia escreveu que “Itabira come-
ça numa rua e vai dar no mundo”. Retornar a Ouço o tlintlim de um copo, o espocar de
esse mundo de Minas confirma um movimen- uma rolha,
to de eterno retorno, como se verá em alguns sonidos hoje iguais ao virar de uma folha.
poemas de Farewell, que, além de reportarem
às origens de Drummond, são de extrema
beleza, quando não dramáticos e pungentes.
8 MORAES NETO, Geneton. O
Como já observei, Farewell é o livro do Dossiê Drummond. Rio de Janeiro:
adeus do poeta, que, no seu conjunto, revela a Globo, 1994. pp. 37–8.

394
Cada tábua estalando em insônia sussurra nela que o poeta bateu e não foi atendido,
a longa tradição da família casmurra mas insiste ainda em bater, como se quises-
se acordar o passado: “Casa onde não mora
e os passos dos antigos, a grita das ninguém, e eu batendo e chamando / pela dor
crianças de chamar e não ser escutado” (“A casa do
migram do longe-longe em parábolas tempo perdido”). A propósito desse habitat,
mansas. Joaquim-Francisco Coelho, em Terra e família
na poesia de Carlos Drummond de Andrade
Perco-me a visitar a clausura dos quartos (1973), quantificou que o substantivo ‘casa’
e neles eis entrevejo no escorrer de aparece 99 vezes na poesia de Drummond
lagartos, e termos a ela relativos, 219 vezes. Como
se não bastasse essa soma de referências,
formas acidentais de uma angústia infantil o poeta, por mais duas vezes, desejou não
a estruturar-se logo em castelo febril. só retornar àquele espaço, como confirmar
que aquele lugar já tão longínquo não passa
Sou eu só a portar o peso dessa casa de uma sepultura rasa. O tempo é inexo-
que afinal não é mais que sepultura rasa. rável, mas naquelas “lembranças atávicas”
Drummond eternizou a casa no tempo que só
A abertura com um verso em francês pode a poesia pode guardar.
lembrar a parábola do filho pródigo, no sen- O tempo parece suspenso na narrativa de
tido de que a casa paterna é o lugar da segu- “A ilusão do migrante”, que começa com uma
rança. Se é assim ​—​ e por modéstia do nosso oração subordinada temporal que acorda um
poeta ​—, ele talvez não soube entendê-la, por passado presente numa voz em surdina e nos
isso mereceria versos em outros estilos: um passos de um caminhante (de mãos pen-
soneto ou uma ode, novamente formas de sas?). O poema é todo em redondilha maior, o
tradição mais clássica, como se a forma esco- que contribui para um andamento bastante
lhida não fosse suficiente para a homenagem. familiar na poesia popular brasileira. Mas o
De todo modo, ambas as formas são eleva- que o sujeito narra é uma situação paradoxal,
das e solenes para o que representou a casa uma saída que houve, mas que se parece com
paterna. O peso também está na forma e se as tartarugas que carregam a casa para onde
estende no mais vívido sentido às lembranças vão. O próprio sujeito coloca em dúvida uma
que não passaram. A sensação é sempre de trajetória ocorrida no tempo e espaço (“se é
que voltamos àquela “Viagem na família”, que vim da minha terra”), a qual vai sendo
quando o filho solicita as mãos do pai para reconstruída passo a passo, estrofe a estrofe,
uma viagem familiar itabirana. avaliando-se se de fato houve migração. Aliás,
A homenagem se dá por um olhar que a dúvida já se revela no próprio título do po-
confirma a impossibilidade de oferecer algo ema: “A ilusão do migrante”. Já se disse que
menos dramático, pois sabe-se que não existe esse provavelmente é um dos seus poemas
mais volta. Há um passado que pesa e ressoa mais notáveis, que se destaca pela reflexão
no presente, no tempo e no espaço. É como sobre o deslocamento que muitas pessoas de
se a casa fosse extensão de sua memória, fato fazem na vida, por motivos distintos ​—​ o
portanto, para onde ele fosse, a levaria consi- nosso poeta sendo um dos que de fato migrou
go, como de fato o fez. Em Gaveta de guarda- de Itabira para Belo Horizonte e depois para o
dos (1988), Iberê Camargo, ao relembrar seu Rio de Janeiro:
passado, diz com precisão: “nós somos como
as tartarugas, carregamos a casa. Essa casa A ilusão do migrante
são as lembranças”. Bachelard, no ensaio “A
poética do espaço”, comenta que a casa é um Quando vim da minha terra,
corpo de imagens que dão ao homem razões se é que vim da minha terra
ou ilusões de estabilidade. Se é certa essa (não estou morto por lá),
prerrogativa, a casa do pai merece todas as a correnteza do rio
honras, mesmo que seja um peso a carregar me sussurrou vagamente
para toda a vida. A casa é a morada da alma. que eu havia de quedar
Nela, o poeta viveu parte de sua história, é lá donde me despedia.

395
Os morros, empalidecidos As confissões desse migrante parecem

O SENTIMENTO DE ORIGEM NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE   MÁRIO ALEX ROSA


no entrecerrar-se da tarde, tão comovidas, questionando o tempo, o
pareciam me dizer espaço, as lembranças, os modos ​—​ enfim,
que não se pode voltar, são reflexões comuns a muitos, que podem
porque tudo é consequência levar a pensar-se num estado de angústia
de um certo nascer ali. de qualquer um de nós, que, tomado por um
sentimento voluntário ou involuntário, passa
Quando vim, se é que vim a avaliar todo o percurso da vida. Numa visão
de algum para outro lugar, mais sociológica, Maria Arminda, em Mitolo-
o mundo girava, alheio gia da mineiridade, comenta que
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi O espectro do exílio está sempre no en-
que não se vai nem se volta calço dos mineiros. Em verdade, desde a
de sítio algum a nenhum. decadência da mineração, a diáspora mi-
neira subsequente recolocou o problema
Que carregamos as coisas, do afastamento do local de nascimento.
moldura da nossa vida, Nas décadas posteriores, e até no próprio
rígida cerca de arame, século XX, os geralistas viam-se compun-
na mais anônima célula, gidos a abandonar o seu estado e a tentar
e um chão, um riso, uma voz sobreviver em outras plagas. Se é certo
ressona incessantemente que os motivos da migração não foram
em nossas fundas paredes. sempre os mesmos para a maior parte dos
mineiros, a partida para novas regiões
Novas coisas, sucedendo-se, prende-se à impossibilidade de sobrevi-
iludem a nossa fome vência na sua terra de origem.9
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, não
o mais obscuro real, deixou de pensar a paisagem mineira que
essa ferida alastrada, Drummond explorou de maneiras diferentes,
na pele de nossas almas. evitando uma descrição apenas técnica e fria.
Em “O mineiro Drummond”, publicado no jor-
Quando vim da minha terra, nal Diário Carioca, em 1952, ele comenta que
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído. A mesma paisagem que emudeceu diante
Ai de mim, nunca saí. de Cláudio Manuel da Costa, sempre
Lá estou eu, enterrado, enleado com as ninfas do Mondego, e que
por baixo de falas mansas, Alphonsus povoou de santos, de sinos, de
por baixo de negras sombras, hinos mais medievais do que barrocos e
por baixo de lavras de ouro, rococós, preservou-se intacta no outro
por baixo de gerações, grande poeta de Minas Gerais. Não é
por baixo, eu sei, de mim mesmo, entretanto a presença física ou simples-
este vivente enganado, enganoso. mente decorativa da paisagem mineira
o que importa em Carlos Drummond
Como se vê o poema é dividido em seis estro- de Andrade, mas alguma coisa de mais
fes, as cinco primeiras de sete versos, a última fundamental, que, esquivando-se, em-
contendo onze, com destaque para a sequên- bora, a qualquer tentativa de descrição
cia anafórica dedicada aos vínculos ancestrais: e definição, pôde impor-se já aos seus
primeiros leitores.10
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
9 ARRUDA, Maria Arminda do Nas-
por baixo, eu sei, de mim mesmo, cimento. Mitologia da mineiridade.
este vivente enganado, enganoso. São Paulo: Brasiliense, 1990.

396
Reconhecer em “O peso de uma casa” e
“Ilusão do migrante” esse sentimento “de um
passado continuamente vivo e atuante” ​—​ ain-
da conforme Holanda ​—​  demonstra a fidelida-
de implacável, ainda que nem sempre visível,
àquela imagem doméstica, emergindo “da
névoa, das memórias, dos baús atulhados, da
monarquia, da escravidão, da tirania familiar”
(“Como um presente”), que irá compor, em
verdade, “a trama essencial de toda sua obra”.
Ressaltar a questão social dos migrantes
hoje ou particularizá-la na história do poeta
Carlos Drummond de Andrade, como foi en-
saiado aqui, pondo-se o foco em suas raízes
mineiras, leva, sem dúvida, a perceber como
o sentimento individual, mediado pela poesia,
pode dizer do universal ​—​ como de fato faz a
poesia do nosso maior poeta.

10 O artigo foi recolhido posterior-


mente em HOLANDA, Sérgio
Buarque de. O espírito e a letra.
São Paulo, Companhia das Letras,
1996. p. 558.

397
CARLOS
HERCULANO
LOPES EM
QUATRO TEMPOS
TELMA BORGES Para Melânia Aguiar (in memoriam), minha
sempre mestra que, certamente, escreveria
para esta antologia sobre Minas Gerais.

398
Romancista, cronista, contista, Carlos geográfica acima mencionada, sequer é cita-
Herculano Lopes, mineiro de Coluna, pequena da nesses relatos, como outras o são, o que
cidade do Vale do Rio Doce, com pouco mais me leva à hipótese de que Santa Marta é uma
de 10 mil habitantes, fixou-se em Belo Horizon- ficcionalização de Coluna, ou seja, Santa Mar-
te a partir dos 12 anos, para estudar, profissio- ta seria uma cidade palimpsesto de Coluna.
nalizando-se como jornalista. Trabalhou em O vocábulo palimpsesto tem origem grega
alguns jornais, mas sua trajetória se destaca e, em sentido literal, é aquilo que se raspa para
no Estado de Minas, onde atuou em dois mo- escrever de novo, prática comum na Anti-
mentos distintos e se fez um grande cronista. guidade e na Idade Média, devido aos altos
Neste trabalho, pretendo me deter em custos de produção de pergaminhos. Então,
quatro das produções do autor: O Sol nas por medida de economia, era comum que os
paredes (1980); A Dança dos Cabelos (1984); textos dos pergaminhos fossem rascados para
Sombras de Julho (1991); O último conhaque darem lugar a novas inscrições; contudo, neles
(1995), por razões que me parecem relevan- permaneciam atravessando a nova escrita
tes do ponto de vista dos recursos empre- vestígios do texto anterior. Coluna não é men-
gados para produzir os efeitos estéticos que cionada nas narrativas em apreço, de modo
fazem de Lopes um autor tão premiado, mas que posso inferir que o autor tentou, por um
ainda pouco estudado academicamente. processo de ficcionalização, apagar desses
Meu percurso reflexivo será o seguinte: relatos sua cidade natal, mas as marcas espa-
num primeiro momento discuto sobre o ciais do entorno permitem o reconhecimento e
espaço em três dessas quatro narrativas; em a decifração de Coluna, cifrada nas diferentes
seguida detenho-me no tema da violência; formas escolhidas pelo escritor para homena-
e, por fim, reflito em que medida o papel do gear sua cidade e a região mineira onde ela
narrador em primeira pessoa possibilita o está situada. Algumas passagens dessas nar-
debate entre diferentes pontos de vista sobre rativas demonstram que Coluna não foi esque-
um mesmo acontecimento ou sobre eventos cida, apenas cifrada nas franjas dos recursos
historicamente recalcados. naturais que ajudam a compor a paisagem da
Luiz Alberto Brandão, em “Espaços região, como o rio Suaçuí e o rio Doce:
literários e suas expansões”, discute quatro
categorias de espaço literário, das quais três A urina inundava o Suaçuí com a fúria de
me interessam. A primeira delas é a “repre- uma tromba d’água e as faíscas de suas
sentação do espaço”, que é entendida como ventas saltavam aceiros e pântanos.2
cenário, existente como categoria no universo
extratextual, portanto, com tendência natura- Olhando a enchente do Suaçuí, a ponte
lizante, que atribui ao espaço características quebrada e o rolar das pedras, fiquei
físicas concretas. Ou seja, são “lugares de preso quatro meses construindo caste-
pertencimento e/ou trânsito dos sujeitos los de areia. Meu primo mergulhou nas
ficcionais e recurso de contextualização da profundezas do rio para ver a piracema e
ação.” 1 Num plano mais geral, Minas Gerais alcançou a barra na barriga de um peixe
é o grande cenário das narrativas aqui em que o vomitou entre desovas e fezes.3
debate; focalizando um pouco mais, há a
região geográfica intermediária do Vale do […] só mais tarde eu pude entender ​
Rio Doce, a leste do estado mineiro, com 102 —​ desabou sobre uma boiada inteira do
municípios, de onde emergem as cidades de meu pai que naquele dia seguia para o
Governador Valadares, Ipatinga, Guanhães, matadouro e foi arrastada Suaçuí abaixo,
Caratinga, Coronel Fabriciano, Coluna etc. quando tentavam atravessá-la.4
Nas narrativas em discussão, portanto, essa
região de Minas ganha destaque, mas nela
não está Santa Marta, cenário recorrente
1 BRANDÃO, 2007, p. 20.
em várias das narrativas, como em O sol nas
paredes, A dança dos cabelos e O último 2 LOPES, 2000, p. 13.
conhaque. Santa Marta não existe entre os
3 Ibid., p. 70.
municípios mineiros, portanto, é uma cidade
literária. Já Coluna, que faz parte da região 4 Idem, 1993, p. 10.

399
Um deles, Edilberto, seu primo, uma dados, essas duas instituições disciplinares,

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


vez lhe contou sobre a ponte de São “a custo de sangue”, portanto, da violência,
Raimundo e os canoeiros, dezenas deles, impõem uma ordem continuamente fustigada
que desciam o rio Doce.5 por matadores de aluguel, pela violência do-
méstica, por suicídios; por rivalidades políticas,
A sub-bacia hidrográfica do rio Suaçuí Grande por divisão de terras, por extração de minério,
está localizada na bacia hidrográfica do rio por água; enfim, toda sorte de violência, aliás,
Doce; juntas elas compõem o complexo hi- de modo muito semelhante a outras narrati-
drográfico dessa região. Ou seja, esse espaço vas. O segundo fragmento foi extraído de O úl-
existe no mundo textual, como ficção, e no ex- timo conhaque, romance cuja tensão se deve
tratextual compondo a paisagem que inspira ao assassinato de Juko Lucena, candidato a
Lopes em sua criação literária, colocando seus prefeito da cidade, pai do protagonista, pelas
narradores diante de experiências íntimas mãos de Rodrigo Lima, a mando de seu tio
do autor com a região e com sua terra natal. Rogério Lima, ocorrido 30 anos antes da mor-
Portanto, posso dizer que seus narradores e as te da mãe, Maria Lucas Lasmar, para cujo ve-
personagens que circulam por suas narrativas lório o filho regressa a Santa Marta. Se em O
experimentam um espaço que, antes, fora sol nas paredes a ordem se impõe, ainda que
empiricamente experimentado pelo autor. fragilmente, em O último conhaque a ordem
Ainda na primeira categoria apresentada se impõe pela impunidade e manutenção da
por Brandão está o “espaço psicológico”, que máquina de poder nas mãos da família Lima,
“abarca as ‘atmosferas’, ou seja, projeções que controla a cidade há décadas, perpetuan-
sobre o entorno, de sensações, expectativas, do o sobrenome familiar na história da política
vontades, afetos de personagens e narradores local. O designativo coronel não aparece
[…]”.6 Santa Marta é o cenário de três das anteposto ao nome de nenhuma das persona-
narrativas aqui apresentadas. Destaco algu- gens que disputam o poder no município, mas
mas passagens para apreciação: a lógica que estrutura as relações perpetua
um jogo político personalista e hereditário,
Com o poder nas mãos, do alto-falante da de modo que a morte do pai da personagem
igreja, o capitão disse que Marcondes não protagonista ​—​  inominado na narrativa ​—​  faz
entraria em Santa Marta, pois sendo uma parte de um modus operandi propriamente
cidade ordeira, e ele o responsável pela coronelista, muito comum no sertão brasileiro
lei, não permitiria que bandidos, pron- e mineiro a partir do final do século XIX. Já na
tos para puxar o dedo, quebrassem uma terceira passagem, de A dança dos cabelos,
ordem que, a custo de sangue, ele havia Santa Marta é mencionada como o lugar a
conseguido.7 partir do qual a personagem-narradora, Isaura,
com o mesmo nome da mãe e da filha, conta
No entanto, ele sabia. Sabia que o assas- sua história de sujeição a um marido agressi-
sino de seu pai, Rodrigo Lima, de família vo. Diferente de O sol nas paredes, o “aqui” é
grande e poderosa ali em Santa Marta, um lócus definido; é a Santa Marta das prá-
nunca havia sido processado, muito ticas violentas, da lei do mais forte; a mesma
menos preso, tamanha era a impunidade Santa Marta das outras narrativas.
que vigorava e talvez ainda vigore nesta Observo que a percepção que os narrado-
cidade onde sobrenome e dinheiro sem- res têm da cidade parece estar impregnada de
pre falaram mais alto.8 uma experiência histórica subjetiva do autor
e também das personagens, o que me leva a
E me recordo das suas crises, também do
estranho nome dado à sua doença por
um médico que usava pernas mecânicas e 5 Idem, 1998, p. 68.
morou alguns anos aqui em Santa Marta,
6 BRANDÃO, 2007, p. 208.
mudando-se depois para Araçuaí.9
7 LOPES, 2000, p. 51.
No primeiro excerto, de O sol nas paredes, a
8 Idem, 1998, p. 19.
deslei dos homens é combatida, coibida pelo
poder militar, com o apoio da Igreja. De braços 9 Idem, 1993, p. 13.

400
pensar no espaço como focalização, segunda Coluna é o cristal de onde emerge a Santa
categoria mencionada por Brandão. Esse é Marta de cada narrativa; cada uma delas uma
um recurso que, no texto literário, “é respon- chama, uma vivência que se encerra com
sável pelo ponto de vista […] ou perspectiva”. o narrado, mas flui de uma narrativa para a
Trata-se da “definição da instância narrativa: outra porque é luz refratada da cidade real.
da voz ou do olhar do narrador”, o qual torna A “estruturação espacial” é a terceira
o espaço em algo a partir do qual é possível categoria sobre a qual Brandão reflete,
a observação. Tais considerações levam argumentando que “o fundamento do texto
Brandão a afirmar que o “narrador é um espa- literário moderno é a fragmentação, seu
ço, ou que se narra sempre de algum lugar.” 10 caráter de mosaico, de série de elementos
Cada narrador dessas três narrativas descontínuos.” 12 Com exceção de O último
constitui-se num espaço cujo foco foi atra- conhaque, os demais textos aqui analisados
vessado pela experiência autoral, ou seja, do têm na fragmentação um poderoso recurso
sujeito histórico, e pelas escolhas estruturais expressivo. O autor iniciou na literatura em
para composição de suas narrativas, que 1980, com a edição independente de O sol
fazem de Santa Marta o palco onde Lopes nas paredes, o qual alguns classificam como
ordena os objetos da realidade externa, crian- livro de contos. Defendo, pela forma como o
do para eles um modo de uso na linguagem autor estrutura a narrativa em primeira e em
literária. Dessa forma, a cidade-cenário terceira pessoas, pela composição das vozes,
resulta do acúmulo de sucessivos textos, pela recorrência das personagens em cada
como o histórico e os ficcionais, guardando fragmento e pelo lugar de onde se narra, que
memórias e materiais de diferentes épocas; este é, se não um romance, no mínimo, uma
um palimpsesto através do qual os vestí- novela. Dividido em 38 fragmentos, o relato
gios de Coluna, a cidade real, se dobram e foi catalogado na categoria “ficção: contos”,
se desdobram, mantendo os espaços real gênero aceito por Rui Mourão, que assina a
e ficcional interligados. Assim como Marco orelha do livro, em que diz:
Polo, em Cidades invisíveis, de Italo Calvino,
faz de Veneza o mapa que ele manipula para Realizando composições extremamente
dali emergirem as cidades imaginárias que curtas, o autor logra grande unidade
descreve para Kublai Khan, Carlos Herculano para o volume, na medida em que insiste
Lopes manipula e desloca topônimos como em um tema único: as vivências do seu
acidentes geográficos, rios, montanhas que passado interiorano. O quadro esboçado
permitem situar o espaço estriado da cidade é o rural, mas nos encontramos a léguas
de Coluna, reterritorializando-os no mapa de regionalismo. Descartada a preocu-
de Santa Marta, cidade lisa, sem traçado pação com o exotismo, o que se busca é
geográfico, sem cartografia, que só existe na a criação de símbolos, o levantamento
linguagem, mas guarda em suas franjas a de uma atmosfera que se envolve em
cidade que lhe deu origem. lenda, em pesadelo… E o caráter estático
Coluna está para o cristal, assim como dos vários textos acaba por transmitir
Santa Marta está para a chama. Renato ao leitor a impressão de cenas de fun-
Cordeiro Gomes, lendo As cidades invisí- do de memória. Não há história nem
veis, diz que ação encadeada; apenas evocação de um
mundo testemunhado, síntese de uma
o cristal com seu facetado preciso e sua emoção decantada que aspira pela pura
capacidade de refratar a luz, é a imagem poesia. A linguagem altamente metafó-
da constância e da regularidade, ao passo rica completa a visão expressionista da
que a chama é a imagem da constância realidade… Ao mesmo tempo em que
de uma forma global exterior, apesar da exprime a violência e a brutalidade do
incessante agitação interna. […] O cristal
conota definição geométrica, que é soli-
dez: transparência revelando uma forma: 10 BRANDÃO, 2007, p. 211.
exatidão. A chama conota vivência, que
11 GOMES, 2008, p. 42.
é efêmera: pulsão forjando uma for-
ma: fluidez.11 12 BRANDÃO, 2007, p. 210.

401
ambiente primitivo das zonas rurais, em cada um deles. A existência de enredo úni-

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


Carlos Herculano Lopes parece tocado co e encadeamento de ações são próprios da
de nostalgia pelas transformações que ao narrativa longa. Nesse momento da apresen-
campo vão sendo impostas pelo progres- tação, Rui Mourão, presumo, por um ato falho,
so. O conto 29 é interessante sob esse anuncia a narrativa longa como um gênero do
aspecto. Dá-se como se algo legendário qual O sol nas paredes estaria mais próximo,
estivesse acontecendo…13 como assinalei acima. Para verticalizar esse
argumento, destaco excertos do último frag-
O aspecto formal do livro, dividido em “com- mento, o 38, que contribuem para a compre-
posições extremamente curtas”, leva o crítico ensão de que há um narrador-personagem
a confirmar o que está na ficha catalográfica: conduzindo todo o relato:
“contos”, o que é reafirmado ao designar assim
o fragmento 29. Obviamente, referendar a Por que vocês me deixam aqui, trancado
categoria editorial em que o livro está inserido neste quarto, com as unhas grandes, e
parece uma estratégia necessária a quem faz a barba no joelho? Por que aqui é tudo
a apresentação do conteúdo e uma forma de escuro, e só vejo a luz quando atravesso
guiar o leitor pelos labirintos de um livro estra- as paredes, muito embora isto me custe
nho, não só porque, se for levar em considera- um sacrifício enorme? Por que vocês,
ção o que tradicionalmente caracteriza o conto quando me visitam, não ficam mais que
enquanto gênero, pouco ou nada se encontra uns poucos minutos, assim mesmo rode-
nos 38 fragmentos de O sol nas paredes. ados pelos guardas? Acaso pensam que
Outro aspecto que chama a atenção de os engolirei vivos? Como você, Mercês,
Mourão é o caráter “estático”, levando-o a que engolia as tanajuras que encontrava
considerar as cenas como “fundo de me- depois da chuva? Ou você, Ricardo, que
mória”. Obviamente que, pela exiguidade do media um palmo de cada lado da cobra,
texto, não fica claro se esse ar contemplativo para depois, nas nossas vistas, pô-la por
se refere ao autor ou ao narrador, pois, a inteiro na boca?
depender disso, os sentidos da leitura variam Por que vocês naquela noite, enquanto
no que diz respeito à memória. Memória de no meu quarto eu fazia o caleidoscópio,
quem? Se do autor, o foco está posto nas vi- para que todos ouvissem os seus corações
vências da cidade e de sua gente, naquilo que e se sentissem vivos, chegaram com as
ele retém e transubstancia em matéria literá- redes e máscaras, e antes que eu pudesse
ria: “as vivências do seu passado interiorano”; me defender, senti que me faltava água,
a “evocação de um mundo testemunhado”. Se pois vocês secaram o tanque, e minhas
do narrador-personagem, o gênero poderia escamas e guelras, que durante anos eu
ser o da autobiografia ficcional, já que não cultivei, vocês as iam arrancando? Acaso
parece haver coincidência de identidade entre não poderiam respeitar o meu desejo de
quem narra e quem assina a capa do livro. ser peixe? “Um ser aquático com suas
O “tema único” assinalado por Mourão, descargas elétricas curaria os males da
me parece, trai a afirmativa de que o livro se humanidade?” 14
enquadra no gênero conto, já que, tradicio-
nalmente, os contos prezam por ter, cada um, É facilmente identificável que esse “vocês”
uma unidade de sentido própria. No caso em se refere a Mercês e a Ricardo, irmãos do
questão, o tema único, somado ao caráter narrador-personagem, responsáveis por seu
fragmentário, à continuidade temática da isolamento. Onde seria esse “aqui”? Uma
narrativa, à permanência de personagens, prisão? Um hospício? Uma leitura rápida e
como Marcondes, Mercês e Ricardo, os dois a associação com as várias cenas de vio-
últimos irmãos do narrador-personagem, e a lência podem levar à conclusão de que esse
condução delirante da narrativa indiciam que narrador-personagem está numa prisão,
o gênero está mais para romance ou novela
do que para conto.
Soa estranho o crítico afirmar não haver
13 MOURÃO, in: LOPES, 2000, orelha.
“história nem ação encadeada”, já que, para o
gênero conto, haveria ações particularizadas 14 LOPES, 2000, p. 89.

402
impressão que logo se desfaz ao se perceber forma como foi capturado, emerge a certeza
que ele está trancado num quarto escuro e de que o narrador-personagem está num
não numa cela. Claro que se poderia pensar hospício e, desse lugar à margem, exerce seu
numa solitária, mas elas também existem em verbo delirante, quando o leitor é instigado
hospícios. Ademais, os irmãos o visitam escol- a decifrar a metáfora do título: “só vejo a luz
tados pelos guardas, denominação profissio- quando atravesso as paredes”. Atravessa as
nal que serve para profissionais que atuam paredes por que sai do quarto para tomar
nas duas instituições. Reforça a presunção de banho de sol ou por que, como um fantasma,
que o narrador-personagem está num hospí- tem o poder de as transpor?
cio ele interrogar os irmãos sobre sua conduta: Por fim, Rui Mourão afirma que a “lingua-
“Acaso pensam que os engolirei vivos?”, que gem altamente metafórica completa a visão
pode tanto ser compreendida metafórica expressionista da realidade…” Com certeza, a
quanto literalmente. Há nessa indagação uma linguagem é metafórica do ponto de vista do
questão atávica que merece ser investigada. O enunciado, não do ponto de vista da enuncia-
narrador-personagem, no fragmento 35, diz: ção; me parece melhor dizer que é delirante,
não expressionista. O recurso ao fragmento,
várias vezes minha mãe me disse do que a quebra da linearidade, a repetição de cenas
aconteceria se eu continuasse a comer ter- com algumas variações produzem uma tor-
ra. Não nego também que fiz todo esforço ção discursiva ​—​ resultando em imagens inu-
para acabar com este meu vício, que é sair sitadas a revelarem um recurso à memória ​—,
por aí, como se fosse um tatu, abrindo tú- mas estruturada para explicitar um estranha-
neis para tirá-la mais macia, ou conseguir mento, a superposição de tempos e diferentes
torrões não encontrados na superfície.15 fases da vida apontando para uma lógica
bastante subjetiva. Esses fragmentos mne-
Mercês engolia tanajuras, Ricardo engolia mônicos, caoticamente ordenados, remetem
cobras; o avô passava dias sem dormir para à condição do narrador-personagem, mas ao
provar que o sono não era necessário, mas leitor isso só é dado saber quando chega ao
não o fazia porque “a serra era negra, e ele último fragmento e toma conhecimento do
acreditava que, se não vigiasse a tropa, ela e espaço onde ele fora recolhido. Santa Marta,
todos eles seriam tragados pela terra que se portanto, é o espaço do qual se fala, para
abriria”.16 O pai deles, quando adolescente, onde a memória vai, em busca dos aconteci-
“também passava noites em claro, porque, mentos que lhe chegam em turbilhão:
quando começava a dormir, ouvia vozes e
sentia que levitava, e quantas vezes sobrevoou Do que lembro, quase nada além do bar
a cidade, causando espanto até ao bispo, que onde eu, dois colegas e uma mulher, por
pediu à cúria alguém preparado para o exor- certo a amante do Marcondes, tomáva-
cismo”.17 Há ainda a tia Matilde, que foi en- mos uma cerveja; da luz que se apagou
contrada toda ensanguentada em sua cama, em seguida e dos gritos, garrafas que
com cacos de vidro dentro da vagina; a avó voaram e um silvo que, até hoje, corta os
que começou a ler uma “carta, gritava e dizia meus ouvidos e invade minha cabeça.
que aquela era a maior de todas as desgraças” Sem conseguir falar, por mais que
(a carta ou o ocorrido com a filha?); “e ris- tentasse, notei, depois de limpar o sangue
cando um fósforo, ficou olhando o papel que da bota, que um pedaço da minha língua
queimava, enquanto lavavam a […] tia. Depois estava pregado em uma cerca e os passari-
ela começou a rir, ria e olhava para tia Matilde, nhos, entre bicadas e voos repentinos, a
com o corpo nu e todo sujo de sangue”.18 disputavam.
Nesse último fragmento, o narrador-
-personagem traça uma genealogia familiar
para comprovar o absurdo de ele estar ali
15 Ibid., p. 78.
preso, já que muitos membros da família
padecem de um comportamento esquizo. Por 16 Ibid., p. 90.
que razões ele, que se imaginava um peixe, foi
17 Ibid., p. 91.
capturado com redes e máscaras, sem poder
se defender? Ao remeter ao momento e à 18 Ibid.

403
Meus dedos, que só mais tarde notei aqui, ao contrário do costume conhecido, os

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


que faltavam, vi-os flutuar presos por um cães tiram-lhe pedaços do corpo.
cordão como um pêndulo que, descoor- Ainda nesse fragmento, o leitor fica
denado, não consegue marcar os segun- sabendo que um plano foi a causa de o
dos; estavam roxos e moscas e vermes os narrador-personagem ser levado a julgamen-
devoravam. to e supostamente condenado, dado o fato
Não sei há quanto tempo estou aqui de estar recluso. Em seu argumento, atribui
rodeado por este cão que vez por outra a um coelho asmático a responsabilidade
me traz comida, ou lambe as minhas fe- pelo projeto incógnito. Que coelho seria
ridas que, sem remédio, tomam conta do esse? Alguém com esse apelido ou o animal?
meu corpo, e eu, que a princípio pensei Na cena seguinte o mesmo cão do episódio
em fugir, vejo à minha frente o leproso anterior o auxilia. Mas em quê? O animal é
que certa vez tentou me abraçar e morder substituído por outros, que vêm armados, os
a minha boca. Ele era magro, todos os quais riem, contam piadas, bebem e tocam
seus membros sangravam e os cães, como violão. Seriam mesmo cães ou seres humanos
agora o fazem comigo, também tiravam que, na percepção delirante desse narrador-
pedaços em seu corpo. -personagem, figuram como cães? Há nesse
Mas, descoberto o plano e bloqueado excerto uma descontinuidade temática, ao
o túnel, tive as mãos e pernas acorren- mesmo tempo em que determinadas retoma-
tadas por mais que negasse perante os das, as quais poderiam soar como recurso
juízes não ter sido eu, mas sim um coelho coesivo, desdobram-se em imagens vertigino-
asmático que vivia a tremer a um canto, o sas e aparentemente desconexas.
responsável pelo plano. Outro aspecto que me chama a aten-
O próprio cão, que às vezes me au- ção nesse livro é a estética do fragmen-
xiliava, foi afastado e em seu lugar, com to que, segundo Omar Calabrese, em
fuzis e metralhadoras, vieram outros A idade neobarroca,
que dia e noite, entre rosnados e amea-
ças, se revezavam a um toque especial de é um espalhar evitando o centro, ou a or-
corneta. E, em seguida, sob as ordens de dem, do discurso […]. O fragmento como
um superior, vão para os fundos do pátio material criativo corresponde também
onde até altas horas, entre risos e piadas, a uma exigência formal e de conteúdo.
bebem e tocam violão.19 Formal: exprimir o caos, a causalidade, o
ritmo, o intervalo da escrita. De conteú-
O passado é recuperado através de aconte- do: evitar a ordem das conexões, afastar
cimentos descosturados, sem relação lógica para longe ‘o monstro da totalidade.’” 20
entre si, com desdobramentos de imagens
que se confundem inclusive com o tempo Essa estética impõe um ritmo outro de leitura,
da enunciação. A primeira imagem que se coadunando com uma escrita que produz a
apresenta remete ao passado: é uma cena de descontinuidade e efeitos de sentido desloca-
bar, onde uma briga acontece. Na sequência, dos, transbordantes, refletindo a complexida-
o narrador-personagem anuncia o corpo mu- de da abordagem temática.
tilado sendo devorado por vermes e moscas. Retomo, neste momento, outra fração
Interpõe-se a essa descrição a afirmativa: da apresentação de Rui Mourão a O sol nas
“Não sei há quanto tempo estou aqui”, que, paredes: “Ao mesmo tempo em que exprime a
dita no presente e fazendo uso do dêitico, cria violência e a brutalidade do ambiente primiti-
uma ambivalência. O verbo “estou” refere-se vo das zonas rurais, Carlos Herculano Lopes
ao tempo do enunciado ou ao tempo da enun- parece tocado de nostalgia pelas transforma-
ciação? No bar ou onde foi lançado após a bri- ções que ao campo vão sendo impostas pelo
ga? E o “aqui”, onde seria? No bar? Na prisão?
No hospício? Ou num leprosário? Um leproso
aparece desavisadamente, sendo antecedido
pelo cão que lambe as feridas do narrador- 19 Ibid., p. 44.

-personagem, remetendo à tradição popular 20 CALABRESE, apud AMORIM,


de que cães curam feridas de leprosos. Mas 2013, p. 161.

404
progresso”. Chama a atenção o crítico tratar Tenho-o (o gato) entre as mãos. Mi-
Santa Marta, um município regido pelas leis nhas irmãs, que desistiram de salvá-lo,
abstratas do estado, de “zona rural” e, mais voltaram para casa. Minha mãe não ficará
do que isso, “primitiva”. Parece que o uso dos sabendo, e por aqui, a esta hora, não
termos “violência” e “brutalidade” atraíram, por passará ninguém. Pois roçando-lhe os
uma questão semântica, os acima menciona- bigodes, pensarão que lhe faço carícias.
dos. Em razão dessa provocação, quero, neste Meus lábios tremem, mas meus dedos
momento, discutir a violência explicitada nas estão firmes. Quase não respiro e, se o
quatro narrativas como componente de uma faço, confesso que é por instinto. Como
civilização que se barbariza, em contraponto à não sei o que me acontecerá, nem qual
ideia que vigorou na literatura regionalista bra- será a reação que terei quando, ao deitar-
sileira, desde seu surgimento no Romantismo, -me, sentir o peso de duas mortes.
de que o sertão (as zonas rurais) é lugar da Mas agora, neste instante, quando
barbárie, enquanto na cidade poreja civilização. lhe passo a terceira e última corda, isto
Para Jean Starobinski, a civilização me preocupa. Mesmo porque, nada mais
poderá ser feito. Pois o gato, que matou o
é um “conceito unificador” das luzes em meu pintassilgo, fixa-me com dois olhos
que convergem valores e práticas emi- vidrados.23
nentemente urbanos, abrandamento dos
costumes, educação dos espíritos, desen- O planejamento meticuloso da vingança à
volvimento da polidez, cultura das artes morte do passarinho, praticada por um gato,
e das ciências, crescimento do comércio e faz o narrador-personagem passar noites
da indústria, aquisição das comodidades insone e a ação, idealizada passo a passo, lhe
materiais e do luxo.21 traz prazer, além de demonstrar a consci-
ência da violência que executa, por isso o
Por oposição, a barbárie seria “tudo que pa- faz longe de olhos alheios. Fisicamente há
rece ser próprio do campo e avesso à cidade: uma contenção, devido à incerteza sobre as
isolamento das famílias, trabalho braçal, consequências do plano urdido e executado,
matas virgens, inexistência de escolas, de principalmente por não ser essa a primeira
política, de instituições públicas em geral”.22 morte que pesa em suas costas. Que outra
Algumas passagens das quatro narrativas morte seria a primeira? De outro animal ou
serão analisadas nessa perspectiva. Inicio por de um humano?
O sol nas paredes: A expressão “mas agora, neste instante”
denota o presente da cena de violência e a
Este mesmo passarinho, que ainda hoje confirmação dessa vingança advém dos olhos
está fedendo no meu quarto; pois pro- vidrados do gato estrangulado por três cordas
meti que, enquanto não o vingasse, ele amarradas em seu corpo. Considerando que
não seria enterrado. E não adiantaram os certa clareza da estrutura narrativa só é alcan-
protestos de minha mãe, nem as ameaças çada ao final, a qual já foi aqui antecipada, fica
de meu pai dizendo que eu ficaria com explícito que a ação se desenrola como fluxo
febre, chiado no peito, e coisas assim: de memória; portanto, é passado o tempo da
herdadas dos mortos. ação, presente o tempo de sua narração ​—​ e
Sem oscilar, amarro a primeira corda, presente atemporal para o leitor, o qual sem-
tenho cuidado para que ele não escape. A pre lerá o texto reatualizando o planejamento
segunda, eu a passo em volta da primeira. e a execução no ato da leitura, e também por
Porque sendo assim, ao dar a última laça- ainda não saber se tratar do relato de um ho-
da, terei certeza que tudo sairá bem. mem recluso em uma casa de tratamento.
E pelo que, agora, com prazer ponho
em prática, perdi noites de sono, rolando
de um lado para outro, vendo figuras 21 STAROBINSKI, apud MORAES,
em minha frente, sentindo o molhado 2003, p. 5.
da urina, e a catinga do morto, além das
22 MORAES, 2007, p. 12.
picadas das formigas, que em situações
como estas não me deixam em paz. 23 LOPES, 2000, pp. 11–2.

405
Outro destaque é para a seguinte cena: quatro deles e deixando outros feridos,

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


“Ele estava no meio. De um lado, o cabo. Do tendo que revestir-se (sic) em armadura
outro, um soldado. Esse, magro e de bigodes, de cavaleiro ante o choro das mães que se
tinha um fuzil nas mãos, que tremiam. Cuspia abraçavam aos filhos mortos rogando-lhe
constantemente no chão vermelho e duro de pragas como aquela que havia pegado,
Santa Marta que, àquela hora, pode-se dizer, que era seu destino andar com parasitas
estava deserta.” 24 Quem é esse “Ele” que no corpo, com os piolhos infernizando
inicia o fragmento nove? Sem retornar ao sua pele, as mudas de gameleiras bro-
fragmento oito não se saberá a quem o narra- tando em seus ouvidos e o impedindo de
dor se refere. Essa parte, também narrada em escutar os rumores da revolta, os anus
terceira pessoa, relata um episódio de extre- catando carrapatos e arrancando-lhe
ma violência praticado contra doze jovens que bernes no nariz e, além de todos estes
jogavam birosca na rua. Tiros de carabina são aborrecimentos, ainda andar com a arma,
disparados deixando quatro mortos e outros prender muitas vezes por dia os peixes
feridos. O fragmento se inicia assim: “Atra- que rebelavam instigados pelas garças
vessou a rua debaixo de olhares e vozes que que defecavam em suas botas para o ali-
não entendia, como um delegado a comandar mento da terra, enquanto seus membros
todo um destacamento de cem praças” 25 ​—​  e cobriam-se de escamas, as sanguessugas
permite inferir que o “ele” que principia o frag- a cada dia aumentavam, o jogo ressurgia
mento nove reporta à personagem que atirou nas praças e os frutos apodreciam em
contra os jovens. O fragmento oito também suas mãos.26
informa sobre o estado de alucinação do
assassino, que andava Essa longa citação é reveladora não só do
gênero literário e reafirma o estilo delirante
com todas as espécies de parasitas no da escrita, mas também confirma a coinci-
corpo, uma trepadeira florescendo em dência de identidade entre o “eu” que narra
seus braços, mudas de gameleiras saindo e o “ele” que é narrado. São a mesma per-
por suas orelhas, anus catando carrapa- sonagem o homem cujo corpo se infesta de
tos em seus olhos, bem-te-vis apontando parasitas e aquele que acredita ser um peixe,
para os soldados de Herodes a moradia resultado da praga que lhe rogaram as mães
de Cristo, ter de carregar uma carabi- das vítimas. Voltando ao fragmento nove, o
na que só lhe causava desgosto, como “ele” inicial só pode se referir ao narrador-
disparar doze vezes seguidas contra um -personagem, que se desloca da primeira
grupo de jovens que jogavam biroscas para a terceira pessoa do discurso, criando
para não ficar em suas casas cheirando um distanciamento e se vendo como outro
pós e fumando ervas, muito piores que as na cena que rememora, o que não deixa de
que nasciam em seu corpo, porque além ser de certa forma verdadeiro, já que entre o
de arrebentar os seus pulmões e acabar homem que desferiu os tiros e o que narra há
com suas saúdes, ainda provocavam alu- uma distinção. O primeiro, “que não gostava
cinações como assistir ao desembarque de ver a juventude viciada”, era submisso às
de um navio no Rio Suaçuí, conforme vozes que comandavam e ordenavam seus
uma jovem estudante havia lhe revela- atos, enquanto o segundo é o homem que
do, porque impedido de conversar com conta histórias, que consegue refletir sobre
seus amigos, havia se refugiado em seu a violência praticada, a despeito de não reco-
quarto, apagado todas as luzes e fechado nhecer ou de não identificar a razão pela qual
todas as janelas, para depois fazer uso está há dez anos encarcerado, já que acre-
das ervas e pós, que só faziam efeitos dita ter sido levado para o hospício, por seus
estranhos e provocavam reações, como irmãos, porque desejava ser peixe.
enxergar tudo azul, ou o mundo coberto
de roxo e submerso pelo poder das águas.
Então, ele, como delegado, não gostava 24 Ibid., p. 21.
de ver a juventude viciada, mas como
25 Ibid., p. 19.
era submisso fazia o que lhe ordenavam,
como atirar contra rapazes matando 26 Ibid., p. 20.

406
O fato de no fragmento 4, analisado aci- Deter-me-ei na chacina perpetrada contra
ma, o narrador-personagem dizer que carrega a família da avó da narradora-personagem.
duas mortes reforça esse não reconhecer-se Antônio, que viria a ser seu avô,
como autor das mortes dos jovens, pois o
homem que executa o gato parece estar em acompanhado por jagunços, a maioria
plena consciência, enquanto o que mata os buscados na Bahia, […] mandou que cer-
rapazes é outro, provavelmente em surto cassem a casa e que se iniciasse o tiroteio.
psicótico. Daí, ao sair do estado de delírio e se Quando aos gritos, que se confundiam
vir escoltado por policiais, não se reconhece com os latidos dos cães e montados em
na cena, agredindo aqueles que lhe acompa- seus cavalos ou em bestas, os que cum-
nham, como se lê na sequência do fragmento priam as suas ordens primeiro atiraram
9: “Ele tentou reagir. Acertou um soco no em um meu primo que se chamava
cabo e um pontapé no soldado. Além de dizer Tarcísio e que morreu abraçado a uma
algumas palavras que nós, que estávamos es- carabina, ao tentar uma melhor posição
condidos, não conseguimos escutar. Embora no alpendre, onde também caíram, defen-
tudo fosse silêncio, a terra estivesse rachada, dendo a nossa casa, o meu pai e três dos
e os passarinhos mortos.” 27 meus irmãos.29
Chama minha atenção nesse excerto o
pronome “nós”, no qual o narrador se inclui, A violência praticada nesse romance se-
por dois motivos. O primeiro deles porque fica gue padrões tipicamente coronelistas: são
explícito que há uma falsa terceira pessoa, contratados jagunços de outro estado;
já que esse sujeito que se esconde da cena portanto, matar é uma profissão. Matam
e se camufla no pronome é quem narra. porque recebem para isso. Não há qualquer
Por um lado, incluindo-se no narrado como questão afetiva envolvida com o que fazem.
aquele que testemunha os acontecimentos, Para garantirem o sucesso da empreitada,
o narrador em terceira pessoa atua como cercam a casa cobrindo todos os possíveis
um repórter, contando o que viu a partir de pontos vulneráveis. Morrem os homens, que
determinado ponto de vista. Portanto, faz estão nesses pontos estratégicos; sobram as
um rerrelato. Mas, por outro lado, o “eu” que mulheres que, escondidas, experimentam a
o “nós” esconde despista, afasta o leitor de tensão de um silêncio agônico:
inferir que o sujeito que narra e o que dispara
a carabina são uma única e mesma pessoa. Eu (Isaura-avó), mamãe e duas emprega-
Mas ao cruzar informações do oitavo, nono das ficamos dentro de um caixote, em um
e trigésimo oitavo fragmentos, nesse jogo quarto dos fundos, até que se passaram
complexo de vozes discursivas, as pistas que muitas horas. E quando tudo já parecia
ali são colhidas revelam a identidade entre o terminado e a nós só restava rezar e pedir
“ele” narrado, o “eu” que narra e o “eu” aparen- a Deus pelas nossas vidas, o silêncio foi
temente protegido pelo “nós”. quebrado pelo relinchar de um cavalo,
A dança dos cabelos, romance contempla- seguido pelo grito de um homem, a dizer:
do com o prêmio Guimarães Rosa, em 1984, e vasculhem canto por canto desta merda,
com o prêmio Lei Sarney, como autor revela- porque, a não ser aquela mocinha morena,
ção, em 1988, também segue a estética do que deve estar com a mãe por aí, eu não
fragmento e a narração em primeira pessoa, quero que sobre mais ninguém.30
mas aqui são três vozes: a de Isaura-avó, a
de Isaura-filha e a de Isaura-neta, esta última Isaura-avó é a única que sai viva do ataque
responsável pela escrita do relato, preservan- porque, para ela, outros planos, não menos
do as vozes de suas ascendentes, conforme
diz: “É infinita a solidão que sinto agora que
acabei de fazer estas anotações que ainda
27 Ibid., p. 21.
não sei se irei mandar para você”.28 Nessa
narrativa, a violência se manifesta de diversas 28 Idem, 1993, p. 8.
formas: assassinatos, atitudes extremamente
29 Ibid., p. 30.
machistas, estupros, banimento de pessoas,
chacina etc. 30 Ibid.

407
violentos, haviam sido traçados. Na sequência Nesse excerto percebo outro tipo de violên-

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


do relato, outras filigranas daquele ataque vão cia sendo praticada: aquela que humilha e a
sendo reveladas: constatação da personagem de que ninguém
viria salvá-la. O pai teve a cabeça decepada, o
E mandou que incendiassem a casa. E que primo tinha a barriga furada e os olhos vidra-
os corpos, depois de cortadas as cabeças, dos, um dos vaqueiros estava a um canto sujo
fossem jogados no rio. Ainda o ouvimos de bosta e com um buraco na testa; a mãe e
repetir: não deixem escapar a morena. E a empregada tinham desaparecido; a casa ti-
o fogo se alastrava. A fumaça ardia os nha virado fumaça. Sem amparo de qualquer
nossos olhos. E uma cobra, que pulou natureza, a jovem perde as referências sociais
dentro do caixote, foi estrangulada por que lhe garantiam estar no mundo social e
minha mãe, que me apertava em seus bra- subjetivamente. Quando se acredita que tudo
ços. Deles, que tremiam, escorria um suor tenha chegado ao fim, mais um grau de cruel-
frio. Uma das empregadas, até então em dade é encenado, como se lê a seguir:
silêncio, não se conteve mais. Começou
a gritar: eu quero sair daqui! Eu quero Mas à minha frente com aqueles dentes
sair daqui! E desta maneira, na hora em de ouro, o homem, com as mãos esten-
que as labaredas já atingiam o teto, fomos didas e um chicote em volta do pescoço,
descobertas, retiradas do quarto por dois esperava que eu as beijasse. Enquanto os
homens e levadas à presença do chefe seus capangas, ao redor, olhavam para
que lhes disse: acabem logo com a velha mim, que (sic) de cabeça baixa, me recu-
e com estas duas moças. Mas a moreni- sava a acreditar em tudo aquilo que só se
nha, podem deixar comigo, pois dela eu converteria em realidade, para o meu de-
tomo conta.31 sespero, quando um sujeito que mancava
de uma perna e tempos depois eu soube
Fogo, destruição, corpos mutilados são meios que se chamava Jó, e em Paulistas havia
através dos quais a violência ganha requintes, matado um padre, chegou onde estáva-
transformando-se em violência psicológica mos. E após tirar o chapéu, pedir licença
quando, sozinha, Isaura-avó tem que enfren- e gaguejar um pouco, disse, repetindo
tar Antônio, o mandante daquela chacina: três vezes a mesma frase: tudo pronto,
patrão. (LOPES, 1993, p. 31).
E eu senti como se fosse desmaiar. Tremia
muito. Urinava nas calças, e ele mandou Nesse momento, o rito parece se completar
que eu chegasse mais perto, me ajoelhasse com o gesto extremo que Isaura deve realizar:
a seus pés e beijasse as suas mãos: pois, beijar as mãos de Antônio, aquelas mãos
daqui para frente, você será minha. Mas, manchadas com o sangue de sua família,
ao redor, tudo ardia. A fumaça entrava para demonstrar reverência, sujeição, obe-
em meus olhos. Um cheiro doce invadia diência. Revertendo a situação, Isaura-avó
o meu nariz. A cabeça do meu pai, que se se enche de coragem, decide que precisa
recusou a lhe vender as terras, separada do viver para se vingar, cospe-lhe na cara uma
corpo, se encontrava a uns poucos passos mistura de catarro e sangue. Antônio espan-
de mim. A barriga do meu primo, que que- ca-a até que ela se curve, o chame de senhor,
ria ficar conosco, mesmo se a sua mãe se beije suas mãos e boca, implore por sua vida,
recuperasse, estava furada. E os seus olhos, ou seja, curve-se, passando a ser, assim como
vidrados. E mais adiante, meio encolhido e as terras da família, propriedade daquele
sujo de bosta, eu reconheci um dos vaquei- homem que a manteve por dez anos trancada
ros, que sorria com um buraco na testa e num quarto vigiado por homens. Ali, ela era
uma espécie de baba na boca. Mais para o obrigada a trabalhar, trançando peneiras que
fundo do quintal, para onde foram levadas, eram diariamente recolhidas por uma negra.
nada se ouvia que traduzisse a esperan-
ça de que mamãe e as duas empregadas
pudessem estar vivas. E onde antes ficava a
31 Ibid., p. 30.
nossa casa, agora só restavam escombros e
a quente poeira das chamas.32 32 Ibid., pp. 30–1.

408
Antônio, frequentemente, destrancava o disparava como um louco; ele, o seu anti-
quarto, obrigava Isaura-avó a lhe dizer “eu te go colega de escola, das brincadeiras, de
amo” e a estuprava em seguida, como fizera banhos no rio dos Espelhos e dos jogos, e,
no dia em que dizimou sua família. Isaura-avó agora, o homem que o está matando, e a
teve quatorze filhos; a mais nova, Isaura como quem você, como um verme, está pedin-
ela, era mãe da narradora de mesmo nome. do, não faça isso!, não faça isso!, pois eu
Pouco antes de morrer, a avó, que nunca estou muito novo para morrer. Mas agora
conseguira se vingar do marido, conta para a é ele, que chorando e também desespera-
neta a história acima mencionada, que manti- do, está do seu lado, e presta-lhe socorro,
vera por toda vida em segredo. e pede-lhe perdão, enquanto o deita no
Em Sombras de julho, romance narrado colo, se suja com seu sangue, e diz a você
a muitas vozes, Fábio recebe cinco tiros de que não queria matá-lo; ah, Fábio!, são
Jaime, amigo de escola, devido a uma disputa tudo imagens, você apenas delira e gos-
entre seus pais ​—​ Horácio e Joel ​—​ pela par- taria que fosse verdade, mas não é; pois
tilha de água e permanência no negócio da agora que, deitado neste chão duro, longe
madeira, desejada pelo primeiro e impedida da sua casa e dos seus, você vai revivendo
pelo segundo. O confronto ocorre quando tantas coisas.34
Fábio decide enfrentar o oponente paterno
e é alvejado pelo amigo que, por sua vez, é Agonizando, Fábio relembra coisas da sua
obrigado pelo pai a matar o companheiro das vida, como a professora por quem fora
muitas aventuras de infância: apaixonado e, delirando, supõe que o amigo,
arrependido, pede-lhe perdão. Essa cena,
quando chega à fazenda de Joel e atra- que dividi em duas partes, é o mote para o
vessa a primeira ponte, uma segunda, que enredo de Sombras de julho. O desenrolar
é menor, e avista dentro do pátio os três dos fatos demonstra como a violência pode
homens e diz a eles, eu vou passar, já três assumir formas cada vez mais perversas,
armas, engatilhadas, estão apontadas produzindo verdades indesejadas para uns,
para ele e a resposta é uma só: aqui você favoráveis a outros. O corpo de Fábio, mistu-
não passa, seu filho da puta! E quando, rado à bosta de boi e à lama, é recolhido por
ainda em cima do cavalo, perplexo e sem seu pai, sem que a polícia tenha feito uma
querer acreditar, sente que está baleado, perícia na cena do crime. O cabo que estava
e tudo começa a rodar, a sua primeira inicialmente à frente do caso, fora negligen-
reação, desesperado, foi implorar que te. Já pensando em se aposentar e porque
não o matassem, pois queria viver. Mas nunca se acostumara às tragédias que
em seguida, instantes apenas, ao sentir faziam parte da sua profissão, desconsidera
que tomou o segundo tiro, o terceiro, o os procedimentos necessários para início
quarto, o quinto, talvez o sexto, e ver que das investigações. O pai da vítima reclama
a morte, através de Jaime, se aproxima, de seu empenho, mas o cabo, já sabendo
e que aqueles homens, aos seus olhos, que receberá uma proposta de Joel, man-
não são mais que três vultos, sombras dante do crime, decide confirmar a versão
que dançam à sua frente, e também apresentada por este de que houve tiroteio
têm medo, uma espécie de alívio vai e de que Fábio foi alvejado apenas com dois
apoderando-se dele.33 tiros, e não com cinco, em legítima defesa.
Assim, com o revólver da vítima na delegacia,
Pelo descrito na cena, Fábio já era esperado e constata a que a arma está cheia, retirando
é recebido a balas, vindo a cair do cavalo: dela três balas e confirmando para o capitão
a versão criada por Joel. O médico legista,
está deitado neste esterco sujo, inglo- que faria a perícia no corpo, estava viajando
riamente, esvaindo-se em sangue, e com sem data para voltar.
tantas balas no corpo: duas no peito,
duas na barriga e a outra bem no meio
da mão, pois você, na hora do desespero,
33 Idem, 1994, pp. 14–5.
estendeu-a para o Jaime, que não parava
de atirar, pedindo clemência; ele, que 34 Ibid., pp. 15–6.

409
Vê-se que uma outra verdade vai sendo Aqui se vê até onde vai o poder maquiavélico

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


tramada, substituindo, ponto por ponto, os de Joel, pois o assassino, condenado a quase
acontecimentos daquele dia de julho. As cem anos de prisão (o mesmo de A dança
testemunhas moravam na Fazenda dos Maia dos cabelos, chamado Jó, e contratado por
e confirmaram a versão criada, inclusive a de Antônio), seria em breve transferido para
que a vítima fora atingida por dois tiros de Ribeirão das Neves. Mirtes não comparece ao
Alcides, empregado da propriedade. Todos julgamento; dias antes fora expulsa da cidade,
recebem instruções do que dizer ao capitão sob o risco de ver sua família pagar por sua
e ao juiz no dia do julgamento. Mas uma insubordinação. A absolvição do mandante e
testemunha não seria comprada. Em seu do executor transforma, na visão de Horário,
depoimento, Mirtes “disse que estava na parte seu filho em algoz e os criminosos em vítimas,
de cima do pátio na hora em que tudo acon- revelando a prática comum de não condenar
teceu e, escondida atrás de uma pedra, pois quem tem dinheiro e influência política.
não queria morrer, pôde ver quando Jaime, e As consequências desse ato violento
só ele, atirou muitas vezes no Fábio, que caiu reverberam ainda por muito tempo. Joel
pedindo socorro, e sem disparar uma única suicida-se. Helena, a mãe de Fábio, é inter-
vez. E ainda completou: nem com o revólver nada numa casa de saúde em Belo Horizonte
não mão ele estava…” 35 A despeito de esse e posteriormente em Barbacena, após uma
depoimento desestabilizar o processo, Joel fuga que a leva direto para Rosas Brancas,
prossegue firmemente na construção de uma pacata cidade onde encontra Jaime e o mata.
versão que livre a si e ao filho da cadeia. O O último conhaque é a única das quatro
advogado prepara Jaime para sustentar a narrativas com narrador em terceira pessoa.
versão criada de que Fábio agrediu primeiro e Relata a história de um homem não nomeado,
que Alcides matara para defender o patrão. que retorna a Santa Marta depois de quase
Com a volta do médico legista, tempos trinta anos para o velório da mãe Maria Lucas
depois, é realizada a exumação do corpo para Lasmar. Seu regresso, tão logo sabido, causa
confirmar que fora atingido por duas balas movimentações na vida de Rodrigo Lima, que,
de calibre 38, ficando claro que o legista fora a mando do tio, Rogério Lima, assassinou
comprado por Joel. O juiz também aceita o pai desse homem que, pouco antes de ele
suborno e conduz o julgamento absolvendo partir de sua cidade natal, com o compro-
dois dos acusados: pai e filho. Alcides, por misso firmado com a mãe de nunca mais
sua vez, fora condenado a uma pena leve. Na regressar, nem mesmo para o velório dela.
cadeia, cumprindo sentença, acreditava que Mas o filho regressa, o que provoca em si uma
receberia dinheiro por ter assumido o crime, série de recordações e o desejo de lembrar
mas morreu pelas mãos de um detento na como era o pai. Rodrigo, já bem situado na
mesma cela; em Ingaí corre a história de que vida política da cidade, sente naquele retorno
foi Joel o mandante. Em suas reflexões, Ione, uma ameaça e planeja matar o filho do doutor
sua esposa, também demonstra acreditar Juko Lucena.
nessa versão: O filho conhece quem era o pai pelo que
a mãe contava nas viagens que fizera a São
Disseram, nos dias de sua morte [de Paulo para visitá-lo. Ele
Alcides], que tudo não passou de uma
discussão à-toa, por causa de um prato era médico, faria trinta e nove anos quan-
de comida, derramado por um compa- do morreu, não tinha parentes em Minas,
nheiro de cela. Quanto a isso, eu tenho as nunca falava dos seus que haviam ficado
minhas dúvidas, e prefiro acreditar que no norte, bebia muito, de tudo, fumava
a decisão de matá-lo, com medo da ver- mais ainda, e adorava política: único as-
dade, depois, já estava tomada por Joel, sunto que realmente o empolgava e sobre
muito antes que o empregado imaginasse, o qual (sua mãe lhe contara) ele falava
tamanha era a devoção que tinha pelo
meu marido. Também, quando colocaram
o homem junto dele, tudo já devia estar
35 Ibid., p. 66.
combinado com a polícia.36
36 Ibid., p. 99.

410
horas seguidas, dono de argumentos e de Devido à sua posição, Rodrigo não mata mais,
um discurso que, de tão seguros, conven- mas manda matar. O poder lhe impede de
ciam com facilidade e encantavam até os sujar diretamente as mãos, poder herdado,
adversários, que se calavam para ouvi-lo. talvez, como prêmio por ter matado outrora o
“Ele tinha esse dom”, sua mãe também fa- oponente político do tio. E assim o destino po-
lou, completando em seguida, e não sem lítico de Santa Marta vai se perpetuando nas
uma pontinha de orgulho que, sem querer, mãos dessa família, que refina os modos de
deixava transparecer: “Parecia um Carlos praticar violência, mas nunca deixa de fazê-lo.
Lacerda.” E por causa da política, porque Tanto é que o retorno do filho de Juko Lucena
iria se candidatar a prefeito de Santa faz com que Rodrigo aja e contrate Lúcio
Marta, ele foi baleado na escada de sua Santos e seus homens ​—​ Valdeir, Nivaldo e
casa, dias após a convenção do partido, a Rui ​—​ para matarem o viajante. Antes, porém,
então UDN, que acabou indicando-o por de empunharem qualquer arma, outras
ampla maioria e com a certeza de que, práticas violentas são utilizadas para, num re-
daquela vez, reconquistaria a prefeitura, quinte de tortura psicológica, intimidar o alvo.
há mais de duas décadas nas mãos dos Na primeira delas os matadores utilizam um
adversários, ou melhor, sob o mando de cachorro como aviso, conforme se lê a seguir:
um único homem: Rogério Lima. Seu
pai levou três tiros, todos nas costas, e quando apaga a luz [da cozinha], ele ouve,
cambaleou sala adentro já sem o jogo das vindo do terreiro, um baque surdo, pareci-
pernas, arrastando-se e olhando para sua do com alguma coisa que tivesse caído ou
mãe, para sua irmã e para ele, como se se soltado de algum lugar. “Teria sido um
pedisse socorro, até cair em cima da mesa, galho da pitangueira?” E, nos instantes
depois de jogar algumas cadeiras no seguintes, ainda inseguro, resolve sair para
chão e de ser amparado por sua mãe, que ver e, devagar, muito devagar, começa a
gritava desesperada. E morreu sem dizer abrir a porta. Leva as mãos à boca e recua
uma só palavra.37 aterrorizado quando vê ali, na sua frente,
todo coberto de sangue mas ainda vivo, um
A rivalidade política e o receio de perder o pequeno cachorro negro, que também esta-
poder fizeram com que Rogério Lima pla- va com um dos olhos arrancados mas ainda
nejasse o assassinato de Juko Lucena e preso por uma fina membrana, formando
pusesse o sobrinho para executar. Os três um quadro de horror. E então ele ouve uma
tiros nas costas indicam que a vítima estava voz dizendo “Isso é apenas o começo…” 39
desprevenida e morre sob os olhos da família,
que, desesperada, testemunha impotente sua Na manhã seguinte a esse episódio, um bi-
morte. A mãe também conta ao filho quem lhete é deixado debaixo da porta com o aviso
era o assassino: de que ele teria quarenta e oito horas para
deixar a cidade se não quisesse morrer picado,
Rodrigo Lima, o assassino de seu pai, e sua família também, como o cachorro. O
alguns anos depois que o matara e logo homem sente medo e pensa em partir. No
após sua volta para Santa Marta, se me- dia da partida, a prima Maria Tereza, que o
tera em outros crimes, mas sempre como acompanhara desde sua chegada, vai à casa
mandante, pois, não só pela covardia dele se despedir e encontra, sobre a mesa,
como também pela posição que já ocupa- um bilhete com o seguinte dizer: “Prima, tome
va na cidade, não podia mais ter parti- esse último conhaque por mim.” 40 Ela corre
cipação direta em mortes ou em outros para o quarto e encontra
desmandos tão próprios não só dele mas
também de toda a sua família, que tudo
sempre fez para se manter no poder. “O
37 Idem, 1998, pp. 14–5.
poder, meu filho, sempre o poder”, sua
mãe lhe disse. Poder este que Rodrigo 38 Ibid., pp. 19–20.
herdou de seu tio, Rogério Lima, este
39 Idem, 1994, p. 92.
sim, o verdadeiro responsável pela morte
de seu pai.38 40 Ibid., p. 141.

411
a cama de casal desarrumada e, em cima mundo. Mas a morte do gato traduz violência

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


dela, ao lado da antiga arma e, espalhadas e o narrador-personagem tem consciência de
entre os lençóis, estavam várias cartas que pratica um ato violento, tanto que o faz
que Maria Tereza, sem querer acreditar fora do alcance de outras pessoas, porque há,
no que elas revelavam, foi lendo estarre- por parte desse sujeito, certo poder sobre o
cida. O homem, com uma expressão tão mundo, como o de discernir entre o que é ou
perplexa quanto a sua, os olhos abertos não violência.
e já muito pálido, tinha uma pequena É também possível comparar o narrador-
mancha vermelha no peito, bem em cima -personagem ao gato. Quando ele disfere os
do coração.41 tiros contra os 12 jovens, assim como o gato,
não tinha poder sobre o mundo à sua volta, ou
E aqui a última das violências: o homem, consciência da existência de um mundo para
pressionado e torturado psicologicamente, além de si, razão pela qual age em praça pú-
não espera que o matem, ele mesmo tira a blica, diferente de quando estrangulou o gato.
própria vida, pondo fim ao medo que tivera de Portanto, ao voltar do surto, não reconhece
ser alvejado pelo assassino do próprio pai. em si o homem que praticou ato tão bárbaro.
Feita essa apresentação de algumas Os homens de A dança dos cabelos,
cenas de violência nas quatro narrativas, Sombras de julho e O último conhaque têm
passo agora a algumas reflexões sobre o entre si algo em comum: são homens que
tema, retomando os conceitos de civilização planejam e mandam matar, cujas “maneiras
e de barbárie, entendida aqui como sinônimo e repertório civilizados são exterioridades,
de violência. Se, num primeiro momento, a máscaras, falsificação”.42 Nesse aspecto,
barbárie está para o mundo rural, lugar de quando o narrador-personagem de O sol nas
isolamento, sem acesso a escola, às benesses paredes planeja matar o gato, aproxima-se
da política etc., Santa Marta não se enqua- de Antônio, Joel, Rogério e Rodrigo, quando
draria nessa definição, já que é um município este, numa outra fase da sua vida, elabora
ordenado pelas leis do estado, inclusive palco um plano para matar o filho da vítima que
de disputa política em O último conhaque, fizera outrora, mas deles se distancia quando
portanto, dotado de modos urbanos e de executa o felino, aproximando-se dos executo-
brandos costumes. Ingaí, pequena cidade res, como Jaime, Rodrigo e os matadores con-
no sul de Minas, é um município rodeado de tratados por Antônio. A diferença está no fato
fazendas. O que dizer então das práticas vio- de que o narrador-personagem não executou
lentas realizadas nessas duas localidades por o gato a mando de alguém; não há para ele
diversos modos e requintes? O que me parece qualquer pena, já que matar animais não era
que pode surgir como uma possível resposta caracterizado crime, mas não deixa de ser um
a essa questão é que a barbárie não é um ato violento.
problema mais do espaço, como defendido Comparando os mandantes dos crimes
pela literatura do século XIX, mas do indivíduo, com os executores, há que se observar que,
como tentarei argumentar. no caso de Jaime, este fora obrigado pelo
No caso de O sol nas paredes, o narrador- pai, que queria fazer dele um Sanches como
-personagem mata o gato que matou o ele, e não um Miranda como a mãe. O filho
passarinho. Estaria ele combatendo um ato se iguala ao pai quando se torna assassino
violento com uma atitude violenta? O gato, do amigo de infância. Rodrigo, quando mata
ao matar o pintassilgo, está praticando uma Juko Lucena, o faz a mando do tio; foge e
violência, uma barbaridade? Se penso do volta tempos depois para Santa Marta e se
ponto de vista humano, sim; mas se penso estabelece como político. Parece que o poder
do ponto de vista animal, talvez não. Teria o sobre a cidade é o prêmio pelo serviço execu-
gato percepção do espaço que o rodeia? Teria tado. Os matadores de A dança dos cabelos
ele matado o pássaro para se vingar? Teria o sequer têm nomes; são apenas executores de
animal, assim como o narrador-personagem,
planejado meticulosamente a morte do
pintassilgo? Não me parece que essas sejam
41 Ibid., p. 142.
ações comuns aos animais, que não têm,
como o homem, poder e controle sobre o 42 MORAES, 2007, p. 12.

412
um serviço para o qual foram pagos, assim posição que impeça a verdade dos acusados
como os homens contratados por Rodrigo, de ser instituída. Exceção seja feita a Mirtes,
que também vieram de fora, a despeito de cujo depoimento confronta diretamente essa
não executarem o serviço. Que diferença pode verdade, motivo pelo qual não permitem que
haver entre os mandantes e os matadores? compareça diante do juiz. Mirtes recusa o
Pesam sobre os primeiros duas práticas cri- vínculo que Joel estabelece com os demais,
minosas: porque planejam e porque pagam ficando como testemunhas apenas aqueles
para que se cumpra o planejado. No desejo cujo depoimento ou ação ratifica a versão
de manterem as boas maneiras, manuseiam criada por ele. A palavra justa, portanto, é
técnicas que lhes garantem a preservação de a do mandante; Alcides é condenado como
uma imagem falsa de homens civilizados. Es- executor, contrariando a ideia de que sobre
ses dois perfis de homens se igualam porque os mandantes deveria recair sentença mais
as ações que praticam não lhes pesam na pesada, já que foram absolvidos. A verdade
consciência, como ocorre com Jaime, que, ao que é obtida, portanto, não mantém vínculos
puxar o gatilho, mudou para sempre o destino com o acontecido naquele dia de julho, já que
de sua vida, mas também se diferenciam por- Mirtes desterrada e Alcides morto não ofere-
que uns podem comprar os serviços daqueles cem mais perigo. Foucault demonstra como
que só podem executar e têm nessa prática na peça de Sófocles as metades da verdade
um meio de vida. têm uma escala descendente. Primeiro há “o
Antônio manda matar, acompanha de nível do deus e de seu adivinho. Temos, em
perto cada passo da ação e dela partici- seguida, o nível médio dos reis, Jocasta e
pa, porque, além das mortes, decapitação Édipo, que quase põem à vista o assassinato
e incêndio realizados pelos jagunços, ele e depois, bem abaixo, os dois servidores, pas-
estupra, humilha, espanca, tranca, escra- tores e escravos, um, servidor coríntio do rei
viza, toma posse de Isaura e das terras de Políbio, o outro, servidor tebano de Jocasta e
sua família. Diferente dos outros mandantes, Laio”.43 No caso do romance, Joel e Jaime es-
Antônio se coloca ao lado dos executores, tão para o deus e seu adivinho; os subornados
além de estender tanto quanto possível suas estão para os reis; Mirtes e Alcides estariam
práticas violentas, já que se torna marido de para os pastores. Exatamente por estarem
uma das vítimas. Nesse sentido, o casamen- num nível menos elevado nessa estrutura so-
to, um ato civilizado, pode ser visto como cial é que sua palavra, a única que elucidaria
uma prática hedionda para a esposa, que verdadeiramente o fato, é silenciada.
tem que conviver com o homem que destruiu O sol nas paredes, A dança dos cabelos e
sua família. Sombras de julho são narrados em primeira
Em Sombras de julho, Joel apaga a pessoa e com tal singularidade que merecem
verdade elaborando outra no lugar. O cabo, ser observados sob esse aspecto. O sol nas
o capitão, o legista, o juiz, a polícia e Alcides paredes é dividido em 38 fragmentos, com
são subornados, com exceção de Mirtes, que, 24 deles narrados em primeira pessoa e 14
inicialmente, é a única testemunha que apre- em terceira, sendo que em dois fragmentos
senta a verdade dos fatos, contrariando a nar- primeira e terceira pessoas dividem a voz
rativa elaborada por Joel. Como Mirtes não narrativa. Contudo, ao se conhecer as condi-
se curva, é expulsa da cidade. Esse episódio ções em que o narrador-personagem conta
me faz lembrar Foucault, em Do governo dos sua história, evidencia-se que as ocorrências
vivos, que recorre à tragédia Édipo rei para de terceira pessoa têm uma razão particular.
tratar das relações entre governo e verdade, Uma delas é porque ele, o narrador, se reporta
mencionando os mecanismos aletúrgicos a outras personagens que transitam pelo
que emolduram a peça e demonstrando os relato; a outra diz respeito ao fato de que esse
diferentes modos de extração da verdade. narrador-personagem está internado num
No romance de Carlos Herculano Lopes hospício e de lá conta, num ritmo delirante, os
há um jogo fragmentado em oito partes, que fatos que culminaram em sua reclusão. Há
precisam se constituir na totalidade de verda- episódios, como o do tiroteio contra os jovens,
de, razão pela qual todos aqueles que pode-
riam expressar uma fração dessa verdade são
subornados, de modo a negarem qualquer 43 FOUCAULT, 2014, p. 32.

413
em que aparece uma terceira pessoa, mas O que percebo nessas narrativas de

CARLOS HERCULANO LOPES EM QUATRO TEMPOS   TELMA BORGES


que soa como um disfarce, um afastamento Carlos Herculano Lopes é a provocação ao
da cena narrada. Ao analisar comparativa- debate das condições, modos e formas de
mente alguns fragmentos, percebe-se que a narrar na literatura contemporânea. A voz em
terceira pessoa do discurso remete ao homem primeira pessoa e principalmente de onde ela
em surto psicótico. Ao sair desse estado, não emerge parecem questões a serem conside-
reconhece em si mesmo essa condição, pas- radas, principalmente porque as inúmeras
sando a haver, portanto, duas vozes narrativas vozes que emergem dos textos aqui apresen-
para um único narrador. tados, todas elas numa perspectiva polifônica,
Em A dança dos cabelos, há uma se afastam dos valores que correspondem a
narradora-personagem que escreve inscre- uma perspectiva patriarcal, pois as percep-
vendo a si, a mãe e a avó como vozes que ções de um esquizofrênico, de três mulheres,
saem do estado de silenciamento em que se de três gerações distintas, vítimas de várias
encontravam, criando uma tradição de mulhe- formas de violência, e a multiplicidade de
res, já que todas têm o mesmo nome, recurso vozes que emergem de Sombras de julho ope-
comum à tradição patriarcal, que é aqui ram um desrecalque na história da literatura
utilizado para ironizar essa mesma tradição. brasileira recente, com narradores e narra-
Isaura-avó quebra um silêncio de décadas doras descentrados, se contrapondo a uma
para contar a história de violência que deu tradição conservadora. Narrar passa a ser
origem àquela família. Isaura-mãe conta testemunhar e interpretar um tempo histórico
não só sua história de assujeitamento a um que poderia ter sido condenado à mudez, mas
homem que a trata como objeto, abandona-a, se transforma na possibilidade de se contar e/
troca-a por outra, mas também como o rece- histórias na perspectiva dos esquecidos.
be de volta e põe fim à vida dele. Isaura-neta
é subtraída do convívio familiar para se tratar,
por sugestão do padre que a estuprou. O
surgimento individualizado dessas vozes
revela um lento, mas necessário percurso de
empoderamento pela palavra e de superação
dessas experiências traumáticas.
Sombras de julho é narrado com várias
vozes em primeira pessoa e dá a impressão
de que as personagens estão prestando
depoimento. Um aspecto interessante é que o
primeiro fragmento é narrado por Fábio, que
morre em seguida. Há também dois narrado-
res em terceira pessoa, um que tenta costurar
os acontecimentos e outro, com marcação em
negrito, que se dirige a Fábio. Num fragmento
desse primeiro narrador em terceira pessoa,
lê-se que o cabo foi transferido para a divisa
com a Bahia, aposentando-se anos depois e
tornando-se dono de cinco fazendas, “escre-
veu um livro de memórias, recheado por estas
e outras histórias, entre elas a do homem que
matou o padre, foi excomungado e passou o
resto da vida acorrentado em uma solitária na
penitenciária de Neves”.44 E aqui parece ha-
ver uma piscadela do autor para o leitor. Não
seria esse homem o mesmo contratado por
Antônio, em A dança dos cabelos, para matar
a família de sua esposa? Isso demonstra que
os matadores circulam, trabalham para muita
gente e as histórias se cruzam. 44 LOPES, 1994, p. 67.

414
REFERÊNCIAS

AMORIM, Cláudia. A fragmentação do discurso e da palavra: a escrita delirante de António


Lobo Antunes. Matraga, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 32, pp. 115–72, jan./jun. 2013.
BRANDÃO, Luiz Alberto. Espaços literários e suas expansões. Aletria – revista de estudos
de literatura. Belo Horizonte, n. 15, vol. 1, pp. 207–20, jan./jun. 2007.
CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1987.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras,
1990.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. vol. 4.
Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France (1979–1980).
Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Literatura e experiência urbana.
2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
LOPES, Carlos Herculano. O sol nas paredes. 3 ed. Belo Horizonte: Edição do autor,
2000.
———. O último conhaque. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
———. Sombras de julho. 3 ed. São Paulo: Atual, 1994.
———. A dança dos cabelos. 3 ed. São Paulo: Atual, 1993.
MORAES, Anita Martins Rodrigues de. O inconsciente teórico – investigando
estratégias interpretativas de Terra sonâmbula, de Mia Couto. São Paulo: FAPESP/
Annablume, 2009.
———. Os limites da civilização na escrita do sertão: um estudo das categorias civilização
e barbárie em alguns romances brasileiros. 88 fls. Dissertação (mestrado) em Teoria e
História Literária. Campinas: IEL – Unicamp, 2002.
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo:
Cia das Letras, 2001.

415
MURILO MENDES:
O POETA PLURAL
WESLEY THALES DE ALMEIDA ROCHA … porque dentro de mim discutem um
mineiro, um grego, um hebreu, um in-
diano, um cristão péssimo, relaxado, um
socialista amador.

Murilo Mendes, “Microdefinição do autor”

416
Nascido em Juiz de Fora, em 13 de maio de o cenário da literatura brasileira. Suas com-
1901, Murilo Mendes é um dos poetas mais posições, escritas entre 1925 e 1929, são
fundamentais de nossa tradição literária, trabalhadas com base em procedimentos
como também um dos mais surpreendentes. criativos radicalmente novos até para os
Seja pela complexidade de seu pensamento, arautos de nosso Modernismo, como Mário
a envolver perspectivas múltiplas e díspares, de Andrade. Inclusive, foi o poeta-crítico
seja pela singularidade de sua linguagem, paulista quem divisou em Poemas a emer-
dissonante e extremamente metafórica, a gência de uma “nova ordem de criação”,
obra desse autor mineiro continua sendo um pautada na “negação de toda inteligência
desafio para qualquer leitor, mesmo o mais superintendente”.6 Esse livro (que era, na
experimentado. compreensão de Mário, o mais importante
Poeta reconhecido, em nossa literatura, de uma leva de publicações que marcavam
pela associação com o Surrealismo, Murilo o ano de 1930, entre elas Libertinagem, de
Mendes encarnou, até o fim da vida, a figura Bandeira, e Alguma poesia, de Drummond)
do “franco atirador” ou, como se autodeno- pode ser visto como transcendendo o próprio
minará em Poliedro (1972), a do “menino espírito do Modernismo brasileiro, indo além
experimental”. Com seu verso “endiabrado, das questões ligadas à identidade nacional,
explosivo, irreverente”, como o caracterizou o ao cotidiano e à história do país, trazendo à
crítico José Guilherme Merquior,1 e com suas tona problemas de mais gravidade, atinentes
visões insólitas, a compor a imagem de um à complexidade do humano; assim também
mundo em tensão, o poeta sempre se colocou com o modo de expressão, que ultrapassa
a abalar as colunas da ordem, sejam as da os limites do despojamento verbal e formal
tradição literária, sejam as da percepção (buscado tanto pelo Modernismo dos anos
da realidade: 1920) e visa atingir uma dramaticidade pecu-
liar, inclusive pela exploração das potenciali-
Mundo, campo de experiência dos dades tanto construtivas quanto destrutivas
demônios. da linguagem.
Os demônios sitiam o plano inefável Afinado com o espírito da vanguarda,
onde Deus pensa a harmonia do mundo.2 além de dotado de uma curiosidade inigualá-
vel pelas questões da forma poética, Murilo
Esse modo excêntrico de trabalhar o poema Mendes se mostrou um obstinado pesqui-
ficará como a marca deixada pela obra do sador das tendências estéticas em voga em
autor na literatura moderna brasileira. Pelo seu tempo. Sua escrita envolve um complexo
modo singular como expressou os dilacera- de visões em tensão em sua época e o uso
mentos da vida moderna, a poesia de Murilo de procedimentos criativos variados em
Mendes teria sido deflagradora de um radical experimentação na pintura, na música, no
senso de modernidade a partir do qual lhe cinema e na própria literatura em ascensão
tocou realizar uma renovação mais ampla da naquele momento. É, pois, situando a poética
nossa lírica.3 Contrastando com os modelos muriliana entre os complexos estéticos da
de “uma tradição estabelecida no predomínio modernidade que melhor se compreendem as
do sentimental-convencional, sem arestas principais determinantes de seu pensamento
nem conflitos, sem asperezas de expressão e e de seu modo de expressão.
sem sustos de comunicação”, a poética desse
autor mineiro provoca, segundo as palavras
de Merquior, um “descarrilamento” no leito 1 MERQUIOR, 2013, p. 71.
da lírica tradicional de língua portuguesa,
2 “Vida dos demônios”, Poemas;
alargando e desajustando em muitos planos MENDES, 1997a, p. 104.
o seu complexo de problemas e códigos
estéticos.4 Por isso Murilo será apresentado 3 MERQUIOR, 2013, p. 71.

por Manuel Bandeira como “talvez o mais 4 Ibid.


complexo, o mais estranho e seguramente o
mais fecundo poeta desta geração”.5 5 BANDEIRA. In: MENDES, 1997,
p. 34.
O primeiro livro de Murilo Mendes, Poe-
mas, de 1930, já impactou significativamente 6 ANDRADE, 1974, p. 45.

417
Conforme conjectura o próprio Murilo maneira, os influxos de modernidade que vi-

MURILO MENDES: O POETA PLURAL   WESLEY THALES DE ALMEIDA ROCHA


Mendes, é sob o signo da crise e da tensão nham de fora e os que se produziam por aqui.
que a sensibilidade moderna se apresenta Em 1922, ano em que ocorre a Semana de
na arte e na literatura, determinada por Arte Moderna em São Paulo, Murilo Mendes
fatores como a flutuação e a instabilidade já vivia no Rio de Janeiro. Em carta a Laís
de ideias. Ela envolve, sempre, um efeito Corrêa de Araújo, datada de 1º de dezembro
de “choque de surpresa”, de espanto, e, por de 1969, o poeta declara que acompanhou
conseguinte, o confronto com as bases “com interesse e simpatia” o movimento, mas
culturais e sociais assentadas na tradição.7 não aderiu a ele publicamente justamente por
A emergência da sensibilidade moderna no se encontrar ainda “em regime de ‘noviciado’
cenário artístico e cultural brasileiro, entre ou aprendizagem”.11 Porém, no decorrer da
1916 e 1930, teria se dado, de acordo com década, ele buscará alguma aproximação,
Murilo Mendes, com esse poder disruptivo, publicando poemas nas revistas moder-
de modo a provocar como que um abalo nistas de São Paulo, Terra Roxa e Outras
no organismo cultural e social do país.8 O Terras e Revista de Antropofagia, além de em
impulso revolucionário dos nossos primeiros Verde, revista modernista de Cataguases,
modernistas se volta contra as correntes Minas, Gerais.
estéticas então dominantes (o idealismo Mas o vínculo mais estreito que Murilo
simbolista e o Naturalismo convencional), Mendes estabelece, nesse período, é com
mas também contra as estruturas sociais o grupo formado, no Rio de Janeiro, em
e culturais que lhes servem de base. Em torno do pintor e pensador Ismael Nery. Em
termos políticos, o modernismo da geração reuniões quase que diárias, sob a liderança
de 1920 será o preparador de um clima de de Nery, eram articulados leituras e debates
embates, que vai deflagrar na Revolução sobre arte, filosofia e ciência. Desse relacio-
de 1930; preparação que se funda, como namento, sairá a inclinação demonstrada
anotou Mário de Andrade, na criação, por por Murilo, em sua criação dos anos 30, para
parte do movimento, de “um estado de es- três linhas de pensamento ou estéticas: o
pírito revolucionário e de um sentimento de Essencialismo, corrente filosófica criada
arrebentação”.9 por Nery e repertoriada pelo próprio Murilo;
Porém, o senso de tensão que o o Surrealismo, cujo conhecimento o pintor
Modernismo trazia como marca de sua in- trouxe de uma de suas viagens à França; e o
vestida contra a tradição mostrava-se agudo, Catolicismo, a que o poeta se converterá em
antes, no seu próprio estatuto interno, isto 1934, por ocasião da morte de Nery, que era
é, na relação mantida entre os vários grupos seu amigo e mentor.
ou autores a ele vinculados. Muitos embates, Observando o primeiro livro de Murilo
devidos não apenas a diferenças de cunho Mendes, Poemas, é possível perceber a pre-
estético, mas também ideológico, foram sença desses vários discursos (o modernista,
travados dentro do movimento. Por causa o essencialista, o surrealista, o espiritualista,
dessas diferenças, José Guilherme Merquior além de outros) no horizonte de criação do
pôde dizer que o Modernismo Brasileiro foi poeta. Murilo Mendes parte de uma observa-
mais um complexo estilístico do que uma ção crítica da vida social brasileira naqueles
escola propriamente, “feito da convivência ou anos 1920, expondo com mordaz ironia o
fricção de estilemas tipicamente ‘arte moder- contraste entre o provincianismo característi-
na’ com vários traços a rigor bem pré-moder- co de nossa vida social e cultural e os ventos
nos (porque prolongamentos de formações
artísticas anteriores)”.10
É possível localizar Murilo Mendes, 7 MENDES, 1996, p. 105.
nesse período de sua formação intelectual e
poética, no centro da arena em que se dão 8 Ibid.

esses primeiros embates em torno do nosso 9 ANDRADE, 1974, p. 241.


Modernismo. Isso porque, embora não parti-
cipando diretamente de nenhum movimento 10 In: MENDES, 1997, p. 11.

definido, o poeta estava antenado com tudo 11 MENDES, 1969, apud ARAÚJO,
o que acontecia de novo e captava, à sua 2000, p. 197.

418
de modernidade que começavam a soprar no sistematicamente ao longo do século XX,
Brasil. Expõe, assim, a face burlesca e um em importantes cidades do mundo, como
pouco trágica de um país que deseja se mo- seria o caso do Rio de Janeiro. Como anotou
dernizar, mas não consegue; o contrassenso Marshall Berman, eliminar o “caos” da vida
entre nossa “bagunça” peculiar e o imperativo urbana seria o objetivo principal desse projeto.
de “ordem e progresso”. Veja-se por estes Mas, nele estaria implicado também um “de-
versos de “Sesta”, que mostram a preguiça de solador achatamento” do pensamento social
início de tarde se contrapondo aos interesses e das subjetividades. A neutralização das
comerciais e capitalistas: forças anárquicas e explosivas que a própria
modernidade urbana um dia suscitara é o
A buzina distante dum automóvel que se insinua como componente ideológi-
chega até aqui com um som de lundu. co desse urbanismo.14 No poema de Murilo
Um mulatinho magro com o desenho Mendes, o mundo exterior é metonimizado
certo na imagem da paisagem urbana compos-
chupa um pirulito devagarinho. ta a partir desses parâmetros, erigindo-se
Dentro das casas pensativas um espaço unidimensional, raso, vazio de
as meninas caem na madorna. possibilidades: nenhum pássaro a romper a
“calma do ar” (até ele administrado) com um
A música das serrarias aumenta a grito agudo (um grito de desespero). Essa
sonolência… paisagem estéril vem chocar com a subjeti-
Os comerciantes torcem pra nenhum vidade em ebulição do sujeito moderno. Em
freguês entrar.12 seus “jardins bem comportados, gramas
bem aparadas, morros polidos”, ela “abafa”
Observando-se o poema acima, é possível a explosão das “almas despedaçadas”. Mas,
notar o modo como Murilo Mendes articula podemos ver, não as próprias almas; estas
algumas tônicas do Modernismo dos anos terão apenas a interioridade como espaço
1920 à sua linguagem e perspectiva: o quadro para sua manifestação convulsiva, de modo
do cotidiano vulgar (captado sob uma ótica que, se não chegam à explosão, experimen-
realista e crítica, ao modo dos Andrades) é tam a “implosão”. As forças internas põem-se
constantemente recortado por visões oníricas em ebulição, envolvendo-se uma com a outra
à beira do delírio (bem ao feitio surrealista). O e gerando uma potência nova, em devir ainda,
efeito será uma visão contraditória (porque de mas já sensível.
um lado objetiva e de outro subjetiva) de uma Em outros pontos desse mesmo livro,
realidade contraditória, em que o racional, quando a pressão mais se acentua, não há jei-
reprimindo o irracional, melhor o revela, em to de conter as forças em ebulição. Aí, então,
que a ordem, impondo-se sobre a desordem, as “almas despedaçadas” explodem contra
melhor a expõe. A propósito, observe-se, a esfera exterior e quebram a ordem deter-
nestes versos de “Prelúdio”, como o espaço minada por uma única perspectiva, introdu-
urbano, com a natureza modelada esquemati- zindo também a do sonho e a do delírio. No
camente por “um distinto engenheiro alemão”, poema a seguir, “Atmosfera desesperada”, é
destoa da desordem interior que marca o significativo como essa explosão determina
sujeito lírico: a forma despedaçada como se configuram
os próprios versos, com os fragmentos da
Jardins comportados, gramas bem enunciação dando a ver os fragmentos dos
aparadas, morros polidos, mundos em choque:
nenhum pássaro rompe a calma do ar
com um grito agudo,
caminharemos devagar como pessoas de
outro mundo…
12 “Sesta”, Poemas; MENDES, 1997a,
Abafando a explosão de nossas almas p. 93.
despedaçadas.13
13 “Prelúdio”, Poemas; MENDES,
1997a, p. 101.
Murilo Mendes tem em vista, nesse poema, o
“achatamento” da paisagem urbana operado 14 BERMAN, 2007, p. 200.

419
Uma escada lateral por onde as formas Essencialismo. Por ela, Ismael Nery pregava a

MURILO MENDES: O POETA PLURAL   WESLEY THALES DE ALMEIDA ROCHA


descem, abstração do tempo e do espaço como forma
os sonhos sobem, vidas de “compreensão total” da vida.17
entrevistas num relâmpago… O Essencialismo, como reverbera Murilo
Noite Mendes, tem por pressuposto o diagnóstico
molhada, noite de fim do dilúvio, mundo de que “o mal do homem moderno consiste
suspenso, em fazer uma construção de espírito dentro
luz difusa de astros que mal aparecem num da ideia de tempo”; mas, trazendo o tem-
ângulo do céu, po “no seu bojo a corrupção e a destruição”,
vertigem.15 perde-se o homem do “valor permanente e
definitivo, valor que o tempo não ataca”, e
Em outros momentos, a materialidade do que é “trazido pelo Cristo”: o equilíbrio. Dirá
cotidiano vem se chocar com os voos do Murilo: “A doutrina essencialista combate a
poeta por esferas espirituais, em que habitam desproporção. Prefere-se a uma sabedoria
anjos, a Virgem Maria, o Espírito de Deus e desproporcionada uma ignorância harmônica,
até mesmo demônios. Um senso de negação, porém deseja-se uma sabedoria harmônica”.18
de contraposição, ao mundo terreno sobretu- Como forma de alcançar essa “sabedoria”,
do, faz-se também notar nesses poemas. Eles Nery propunha que se colocasse o sujeito
articulam a imagem de um mundo no qual o como o centro da vida, de modo “que possa
sujeito se sente asfixiado e com o qual ele se ter sempre a perfeita relação das ideias e dos
debate, forçando, assim, seus limites e a ele fatos”.19 A implicação dessa proposição no
contrapondo a visão da eternidade. âmbito da experiência poética é capital: fren-
Nas duas últimas partes de Poemas, te ao inevitável descentramento dos impulsos
intituladas “A cabeça decotada” e “Poemas e dos signos, deveria colocar-se o poeta como
sem tempo”, a presença de Ismael Nery eixo referencial, ponto de equilíbrio, reunindo
faz-se ainda mais evidente, inclusive pelo e reconciliando o disperso.20
sentido religioso de caráter mais pessoal e Contudo, é mais pela dualidade ambiva-
enigmático. Em “Saudação a Ismael Nery”, as lente, jogando e sendo jogado com os outros
ideias e os traços artísticos do pintor e dese- anseios e as outras perspectivas em movi-
nhista são como que aplicados à sua própria mento, que o Essencialismo se apresenta na
imagem. Esta, por sua vez, é aproximada à poesia de Murilo Mendes. Diríamos, então,
de um criador divino, que, situado além dos que ao invés da “retificação do desequilíbrio”,
limites do tempo e do espaço, investe-se de da “correção” do que se supõe “errado” e
uma potência “magnética”, que tudo envolve “defeituoso” na existência humana, a que se
em seus braços, assim dando vida ao que propunha a doutrina criada por Nery e se-
parece inanimado: guida por Murilo ​—​  o Essencialismo ​—​  temos
aí, mais significativamente, a expressão do
Acima dos cubos verdes e das esferas azuis ser dilemático então a demandá-las; o ser
um Ente magnético sopra o espírito da vincado entre os sentidos e o pensamento, o
vida. corpo e a alma, entre a imanência e a trans-
Depois de fixar os contornos dos corpos cendência, o tempo e a eternidade. A essên-
transpõe a região que nasceu sob o signo cia a ser captada aí é nada pura, redutível a
do amor
e reúne no abraço as partes
desconhecidas do mundo.16 15 “Atmosfera desesperada”, Poemas;
MENDES, 1997a, p. 112.

Murilo parece, neste poema, fazer uma dupla 16 “Saudação a Ismael Nery”, Poemas;
referência: aos desenhos e pinturas de Nery, MENDES, 1997a, p. 115.
permeados de figuras inumanas, como
17 MENDES, 1996, p. 53.
manequins, estátuas, máquinas, investidas
de vida (mas, uma vida frágil, dilacerada, que, 18 Ibid., p. 51.
por isso, não pode se compor integralmen-
19 Ibid., p. 52.
te); e à doutrina filosófica criada pelo amigo
e batizada, pelo próprio Murilo Mendes, de 20 FRIAS, 2000, p. 292.

420
uma imagem imutável: a do homem, a do ser (principalmente Oswald de Andrade), uma
humano. Por isso, o sujeito poético, na escrita revisão crítica e sarcástica da história do país.
muriliana, mostra-se descentrado e desarti- Com seu senso de humor ferino, que coloca
culado, em choque com os limites da existên- contra a narrativa oficial da história uma outra
cia, mas também com os da eternidade. versão, anárquica e irreverente, os poemas
Assim, pois, se na criação muriliana o desse livro têm muito da tensão e do desa-
poeta se coloca como o “centro de relações”, juste que fundam o senso de modernidade
como se supõe da doutrina de Nery, não é de Murilo Mendes. Porém, essa irreverência
na forma de “ponto de convergência” (como faz o poeta perder de vista questões de mais
acredita Frias), mas sim de ponto de entre- gravidade psicológica e filosófica, que sempre
cruzamento, de atravessamento, das forças estiveram no núcleo de força de sua poética.
contrastantes. O mesmo se perceberá no Aliás, talvez essa tenha sido a razão pela qual
âmbito da composição, pela deflagração de o próprio poeta veio a renegar o livro quando
emoções ambíguas que nele se observam. da publicação de suas Poesias (compilação
A expressão se formula por um processo de seus livros de poemas, em 1955).
criativo no qual as perspectivas em tensão É O visionário, escrito entre 1930–1933,
na subjetividade do poeta se projetam umas mas publicado apenas em 1941, que retoma-
contra as outras, lançando sobre o poema os rá as linhas mestras da poética multifacetada
signos, símbolos e sentidos pertencentes ao e explosiva de Murilo Mendes. Além do tom
seu próprio domínio. jocoso e desmistificador (próprio à escrita
O efeito do entrecruzamento de perspecti- modernista dos anos 1920), esse volume traz,
vas e tendências estéticas na constituição da mais forte ainda que o primeiro livro, muito
poética, que subjaz ao livro Poemas, é o que das lições essencialistas de Ismael Nery.
Mário de Andrade chamou de “elasticidade Poemas como “Mulher em todos os tempos”,
de pensamento”, “intercâmbio de todos os “Dilatação da poesia”, “Formas alternadas” e
planos”, e o que entendemos como sendo a “O namorado e o tempo” exploram o tema da
liberdade que se dá o poeta de compor seu transitoriedade, a angústia ante os limites do
poema num movimento espontâneo e, por tempo e do espaço, ante a descontinuidade
isso, irregular, que rejeita a imposição de entre a imanência e a transcendência, espe-
uma ordem única. Como dirá o próprio Murilo cialmente a partir da figura feminina.
Mendes no poema “Novíssimo Orfeu”, de As Porém, são o ideário e a estética surre-
metamorfoses: “A poesia sopra onde quer”,21 alista o que domina com mais força em O
resistindo, desse modo, a qualquer movi- visionário, como será também em Os quatro
mento que vise lhe impor um direcionamento elementos (escrito em 1935, mas vindo a
específico. E esse lirismo indeterminado lume em 1945), A poesia em pânico (1937),
que o poeta desenvolve está, antes de tudo, As metamorfoses (1944), Mundo enigma
voltado à expressão dos dilaceramentos que (1945) e Poesia Liberdade (1947). Esses
fundam a experiência existencial e histórica livros constituem os pontos altos da poética
do sujeito moderno. Nessa poética, tanto o muriliana até, pelo menos, o início dos anos
mundo quanto o poeta e o poema mostram- 1950: o transfiguracionismo imagético, que
-se tocados por um senso de dispersão e de explora os limites e deslimites do mundo sob
desordem, que vai ao ponto da explosão: uma ótica visionária, além de um erotismo
entre cósmico e carnal muito forte, que reme-
Múltiplo e desarticulado, longe como o te à tônica do amour fou de Breton, líder da
diabo vanguarda deflagrada na França.
nada me fixa nos caminhos do mundo.22 Como já adiantamos, o contato de Murilo
Mendes com o Surrealismo se dá também
Esses diálogos com tendências diversas, através de Ismael Nery. Em 1927, o pintor e
aberto em Poemas, não apenas se man-
terão, mas se intensificarão na produção
muriliana ao longo das décadas de 1930 e
1940. História do Brasil, o livro subsequente 21 MENDES, 1997e, p. 361.

a Poemas, apresenta, com a irreverên- 22 “Cantiga de Malazarte”, Poemas;


cia típica do modernismo dos anos 1920 MENDES, 1997a, p. 96.

421
pensador paraense teria feito uma viagem mergulhar nos sonhos e mais a “sacudi-los”.

MURILO MENDES: O POETA PLURAL   WESLEY THALES DE ALMEIDA ROCHA


para Paris e lá travado contato com alguns Temos aí, então, um jogo de estranhamentos
nomes do movimento, entre eles André do sujeito com o mundo, consigo mesmo,
Breton, Marcel Noll e Marc Chagall. Retorna com o outro e até mesmo com Deus ou
extremamente interessado pela doutrina com a eternidade, como nos versos abaixo
surrealista e a incute em seus companheiros exemplificam:
de grupo, entre eles Murilo Mendes. Essa
descoberta será, para o poeta juiz-forano, Posso eu mesmo parar na esquina da rua,
extremamente impactante, um coup de Entrar subitamente no automóvel
foudre, como ele dirá; e, especialmente, pelo Aos gritos
que o Surrealismo possuía de inconformismo, E, derrubando os anjos da Assistência,
como também pela atmosfera poética de que Boxear com a eternidade.26
partia, “baseada na acoplagem dos elemen-
tos díspares”.23 Há momentos em que esses estranhamen-
A fortuna crítica de Murilo Mendes, em tos, abastecidos de um sentido de revolta,
geral, fala do Surrealismo na obra do poeta a investem-se de uma carga utópica, a impri-
partir do tópos da conciliação dos contrários, mir na poética muriliana um forte impulso
da integração de elementos contraditórios no revolucionário e crítico. Este, aliás, será um
plano onírico, tal como pregado por Breton, dos elementos de base do radical senso de
no Primeiro Manifesto Surrealista. Este seria, modernidade apresentado pelo poeta. Como
no entanto, um ponto contraditório no próprio salientou José Guilherme Merquior, conjugan-
pensamento surrealista. A superação da do consciência crítica e fantasia alucinada,
contradição entre os estados do sonho e da Murilo Mendes deu a sua poesia um desdo-
vigília será, para o próprio líder do movimento, bramento dialético muito próprio: ela capta
inatingível: “Parto à sua conquista, certo de e, ao mesmo tempo, enfrenta as tensões do
não consegui-la, mas bem despreocupado mundo contemporâneo, na medida em que
com minha morte, vou suputar um pouco os imprime no real os seus próprios golpes, atra-
prazeres de tal posse”.24 vés de um forte sentido de alarme.
A investida nas potencialidades do sonho, Isso o poeta o faz com as armas típicas da
no Surrealismo, não supõe um abandono do linguagem surrealista: aproximações insólitas
real. Pelo contrário, o interesse pela ótica oní- entre termos, imagens e visões contrastantes,
rica coaduna com a visada crítica, que tanto o jogo polissêmico e a tonalidade exasperada.
vem da percepção aguda das antinomias Um poema de O visionário intitulado “O filho
da realidade, na experiência de um mundo do século” articula bem esses princípios todos.
em trepidação, quanto envolve o intenso e Nele, a experiência subjetiva, como que envol-
permanente embate com as determinações ta numa atmosfera de pesadelo, exprime-se
dessa realidade, na busca pela liberação da como aplacada por impulsos disruptivos que
subjetividade dos atravancadores de seu põem o sujeito lírico em total dissenso consigo
movimento livre. O poeta autêntico, segundo mesmo e com o mundo. Desse desacordo
o Surrealismo, “é o insubmisso por excelência: surge uma investida de caráter revolucioná-
só pode estar em luta contra todas as ordens rio que conduz o sujeito para o meio de uma
estabelecidas”.25 E o interesse pelo sonho revolta, em vários sentidos, “armada”. Inte-
está na mesma medida que pela revolução, ressante notar como o poema, verso a verso,
na produção de obras que vão de impacto vai desdobrando o plano da intimidade para
contra a percepção “normal” do cotidiano.
Em Murilo Mendes, também, a dimensão
onírica vem investida de um senso de reali- 23 MENDES, 1997j, p. 1238.
dade que faz do elemento surreal arma de
visada crítica da realidade. Dificilmente, nos 24 BRETON, 1985, p. 45
(grifos nossos).
poemas de nosso autor, o insólito faz surgir
uma imagem de deleite ascensional pleno. 25 DUROZÓI; LECHERBONNIER,
Antes, expõe visceralmente, pelo choque 1972, p. 116.

do suprarreal, a face grotesca da realidade. 26 “A palavra Lisol”, O visionário;


O poético, nesse sentido, põe-se menos a MENDES, 1997b, p. 221.

422
a coletividade. O impulso revolucionário que A noite curva…
o distingue deflagra-se, primeiro, no plano da Seios pendurados na janela da terra.
subjetividade, na ruptura que faz o sujeito lírico Uma larga mão vermelha
com tudo que diga respeito a seu eu particular: me chama em alguma parte.
Mensagem do tacto dum espírito do ar,
Adeus valsa “Danúbio Azul” cheiro das namoradas, noite curva.30
Adeus tardes preguiçosas
Adeus cheiros do mundo sambas Alucinações como a do poema acima
Adeus puro amor distinguem-se pelo poder de sugestão de
Atirei ao fogo a medalhinha da Virgem.27 suas imagens, que dão aos objetos uma
movência singular, o que responde bem à
A tomada de consciência, por parte desse orientação surrealista. Mas, observe-se, esses
sujeito, do mundo em que vive ​—​ o mundo objetos investem-se no sujeito, movendo-o
moderno ​—​ exprime-se pelo signo da “queda” também, mas pela via da perturbação, da
(“Cairei no chão do século XX”). E nessa dilaceração. A ambivalência domina em todos
tomada de consciência ele é empurrado para os pontos, denotando a situação fundamental
fora de si mesmo, para o meio das “multidões que está na base da expressão: o impasse do
famintas justiceiras”: sujeito entre o que nele influi a dimensão da
realidade e, ao mesmo tempo, a dos sonhos;
Aguardam-me lá fora em suma, o sujeito encontra-se nessa linha
As multidões famintas justiceiras tênue (“Abismos, pontes da noite”) entre dois
Sujeitos com gases venenosos estados entrecortantes e a “cortarem-lhe”
É a hora das barricadas igualmente “a cabeça”.
É a hora do fuzilamento, da raiva maior.28 O desejo aparece aí como o poder sombrio
que lança o sujeito lírico nessa dilaceração.
A partir desse ponto, a desordem, o caos, Ele emerge de múltiplos lados (dos “seios
toma conta tanto desse sujeito quanto do pendurados na janela”, do aceno de uma “lar-
mundo no qual ele se projeta, e ainda do pró- ga mão vermelha”, da “mensagem dum tacto
prio poema. Deflagra-se uma “guerra civil” no do espírito do ar”, do “cheiro das namoradas”).
centro do mundo como no da fatura poética. Ele ataca em diversas frentes, aplacando os
Gases venenosos, fuzis, aviões-caças põem- múltiplos sentidos (a visão, o tato, a audição,
-se em circulação. Em correspondência a es- o olfato), num movimento sinestésico que
sas armas estão as palavras, com seu poder lembra o dos simbolistas. E ele também
destruidor também ativado. O poema termina lança o sujeito em múltiplas direções, para
com a imagem tipicamente surrealista de “acima do abismo e do pensamento”, de volta
“anjos-aviões” carregando “o cálice da espe- à juventude incendiosa da adolescência e
rança”. Apesar deste sinal de conciliação que em direção à morte, nos dilaceramentos que
se insinua ao longe, o assombro continua vivo, ela provoca.
na medida em que resta ao sujeito o vazio dei- Seu ambiente é a noite; mas, a noite é aí,
xado por toda a destruição causada (“Tempo também, o próprio corpo em que o desejo as-
e espaço firmes porque me abandonastes”). soma. A “noite curva”, significante enigmático,
Murilo, desse modo, mantém aceso aquele que pode fazer alusão ao tempo do desvio da
“senso de alerta e de alarme” que Merquior virtude e da ordem, o tempo em que “mer-
discerniu como o horizonte para o qual nos gulhamos no mundo dos sonhos, onde reina
dirigem “suas perturbadoras visões”.29 a natureza, onde não existe lei, mas apenas
Quando é o corpo investido de desejo
que o senso do insólito atinge, a perturba-
ção ganha a medida de um estouro, de uma 27 “O filho do século”, O visionário;
explosão. É com toda a violência que o desejo MENDES, 1997b, p. 240.

incide sobre o sujeito, movendo sonhos e, por 28 Ibid.


eles, o tempo e o espaço. É o caso do poema
abaixo, a expor imagens fragmentárias de um 29 MERQUIOR, 2013, p. 74.

corpo agonizante e convulso, propiciador de 30 “Evocações simultâneas”, Poemas;


uma experiência como a de um delírio: MENDES, 1997a, p. 111.

423
sexo, crueldade e metamorfose”, para dizer Murilo Mendes. Até 1933 refratário a elos

MURILO MENDES: O POETA PLURAL   WESLEY THALES DE ALMEIDA ROCHA


com Camille Paglia.31 A noite aí, também mais estreitos com grupos marcadamente
como metáfora para o erotismo, que é, como religiosos, o autor passará, em 1934, quan-
afirma a mesma pensadora estadunidense, do da morte de Ismael Nery, por uma aguda
“um reino tocaiado por fantasmas. É o lugar crise existencial, que o levará à conversão ao
além dos confins, ao mesmo tempo amaldiço- Catolicismo. Os poemas de Tempo e eterni-
ado e encantado”.32 dade são escritos sob os efeitos dessa crise,
E a cena, no poema acima, é mesmo de neles se fazendo patente o anseio de encon-
delírio: os mortos, “nivelados no tempo”, ga- trar, junto aos signos da doutrina católica, um
nham corpo frente aos olhos do sujeito lírico; sentido para o drama da existência. Porém,
o “quarto nupcial” é um túmulo; e no olho da em que pese esse anseio, são as tensões que
morta vê-se um seio. Ao invés de penetrar o o motivam o que se afirma com maior força
corpo da noite, é “a asa do vento” que dela se nesses poemas. Neles, o poeta não se mostra
desloca que vem a penetrar o sujeito lírico, de- em “atitude de tranquilo conforto espiritual,
sandando a bater, a chacoalhar os impulsos alienado da realidade”; antes, se dá a ver
dentro dele. Nesse transe que experimenta, tomado por pesadas angústias, relativas à
ele erra por esferas sombrias e entrecortadas, duplicidade de ser entre a humanidade e a
até chegar diante da miragem da morte. O divindade, entre o pecado e a graça. Esses
movimento erótico vai ao atravessamento de impasses comprimem o sujeito num cenário
todos os limites, de tal forma que se chega ao de descrença e desânimo, levando-o, por ve-
desconhecido de tudo, inclusive de si mes- zes, à vacilação de sua fé e à conformação no
mo. Todo esse desvario termina, enfim, com pecado, como se pode ver nos versos abaixo,
a cabeça do sujeito cortada (no sentido só de “Angústia e reação”:
de atravessada ou, também, de decepada?)
pelas imagens, ao mesmo tempo voluptuosas Há noites intransponíveis,
e mórbidas que contra ele se investem. Assim, Há dias em que para nosso movimento
pela convulsão cega dos sentidos, o sujeito lí- em Deus.
rico de “Evocações simultâneas” experimenta Há tardes em que qualquer vagabunda
como que um abalo, uma explosão da ordem Parece mais alta do que a própria musa.
que sustenta a própria vida, o próprio eu. O Há instantes em que um avião
conhecimento da morte se insinua nessa Nos parece mais belo que um mistério
dilaceração sem termo. de fé,
Essa potencialidade incitadora que o de- Em que uma teoria política
sejo erótico apresenta será um dos elementos Tem mais realidade que o Evangelho.
complexificadores da inclinação religiosa, que, Em que Jesus foge de nós, foi para o Egito:
especialmente a partir de Tempo e eternidade, O tempo sobrepõe-se à ideia do eterno.33
Murilo Mendes coloca no centro de gravita-
ção de sua poesia. Assim como ocorre com o O núcleo deflagrador da expressão, na com-
Essencialismo, os dogmas da fé cristã são, na posição acima, é claramente a consciência
poesia muriliana, mais postos em confronto que tem o sujeito lírico da duplicidade de seu
com os outros anseios e compromissos do ser: entre a filiação ao eterno e os enredamen-
sujeito. Junto ao catolicismo, na verdade, tos do plano terreno, para o qual mais pende.
Murilo irá encontrar os signos para expressão Em face do envolvimento com o mundo, com
da “selvagem angústia” de se viver em luta a beleza do mais prosaico (“qualquer vaga-
consigo mesmo, com o mundo e até com bunda”, “um avião”, “uma teoria política”), ele
Deus. Assim é que o cristianismo apresen- experimenta uma espécie de vacilação em
tado pelo poeta, em sua escrita, se mostra sua fé, uma queda em relação ao sentido
demasiado heterodoxo, permeado de tensões
e ambiguidades.
Embora em Poemas essa espiritualida- 31 PAGLIA, 1992, p. 15.
de já se fizesse sensível, é o livro Tempo e
eternidade (publicado em 1935) que mar- 32 Ibid.

ca a entrada mais deliberada do discurso 33 “Angústia e reação”, Tempo e eterni-


religioso cristão no complexo poético de dade; MENDES, 1997c, pp. 252–3.

424
religioso da existência, adequando-se à desse livro em tudo vê motivo para uma exci-
tônica do tempo. E, na consciência dessa tação e uma impulsão sexual. Até a Igreja aos
falta, ele chega à angústia, esse sentimento olhos dele é erótica e voraz:
de impotência do espírito em sua tarefa de
constituir o ponto de síntese na relação da A igreja toda em curvas avança para mim,
alma com o corpo, do divino com o terreno, Enlaçando-me com ternura ​—​ mas quer
segundo a conceituação de Kierkegaard, em me asfixiar.
O conceito de angústia.34 Sob a consciência Com um braço me indica o seio e o
da gravidade da finitude e da iminência do paraíso,
pecado, o espírito se perturba e perturba Com outro braço me convoca para o
ainda mais a relação que deveria mediar. O inferno.37
movimento da subjetividade passa, aí, a ser
duplo e ambíguo: ao mesmo tempo em que Em face de tantas tentações, o poeta passa a
fundado na condição do humano enquanto vivenciar em seu íntimo uma terrível bata-
separado de Deus e do eterno, na consciência lha consigo mesmo, mas também com os
inquieta dessa condição “acaba infalivelmen- signos da religião. A experiência do pecado
te descobrindo a parte do eu que é eterna”.35 conduz ao sentimento de culpa e este à
E essa parte, antes recalcada, irrompe autocondenação:
violentamente:
Eu digo ao pecado: Tu és meu pai.
É necessário morrer de tristeza e de nojo Eu digo à podridão: Tu és minha irmã.
Por viver num mundo aparentemente A presença real do demônio
abandonado por Deus, É meu pão de vida cotidiano:
E ressuscitar pela força da prece, da Minha alma comprime a aleluia gloriosa.38
poesia e do amor.
É necessário multiplicar-se em dez, em Nesses poemas, ainda, Deus comumente
cinco mil. aparece não como expressão de um amor
É necessário chicotear os que profanam inquestionável, mas como o “Grande Inquisi-
as igrejas dor”. É a imagem do Deus colérico ​—​ não de
É necessário caminhar sobre as ondas.36 Deus como mau, mas como pronto a colocar
o homem sob tormentos e exigências extre-
Veja-se como esses últimos versos são carre- mas a fim de aumentar seu temor ​—​ que se
gados de uma “violência emocional” que vai insinua aí.
ao ponto da colocação do homem e do mundo E, invariavelmente, o “Julgamento Divino”
sob uma ameaça extrema, ecoando em sua transfere-se do plano individual para o plano
cólera a de Deus. Sem conseguir, então, sair coletivo, assumindo uma conotação escatoló-
dos enredamentos da história e nem conciliar gica. A morte, a Guerra, o “Fim do Mundo”, a
o eterno e o temporal em sua subjetividade, o “Volta do Cristo” surgem, na poesia de Murilo
próprio sujeito clama ao divino uma interven- Mendes, como formas de se punir a humani-
ção “violentíssima”. Somente o Fim do Mundo dade pelo Mal por ela feito. Isso é mais paten-
ou mesmo a morte poderiam aplacar os te ainda em As metamorfoses (1938–1941)
tormentos do sujeito lírico, arrancando-o da e Mundo enigma (1942), livros nos quais a
esfera terrena e de sua duplicidade.
Em A poesia em pânico (escrito entre
1936–1937 e publicado em 1938), a crise do 34 KIERKEGAARD, 2011, p. 47.
sujeito dividido entre o divino e o terreno, o
35 FARAGO, 2011, p. 110.
sagrado e o profano se agudiza ainda mais. O
caráter heterodoxo da religiosidade do poeta 36 “Angústia e reação”, Tempo e
mostra-se aqui ainda mais intenso, princi- eternidade; MENDES, 1997c,
pp. 252–3.
palmente, pela acuidade do pecado como
princípio detonador da relação do sujeito 37 “Igreja mulher”, A poesia em pânico;
consigo mesmo, com o outro e até com Deus. MENDES, 1997d, p. 303.

Sem conseguir se desvencilhar da posse dos 38 “O impenitente”, A poesia em


desejos carnais, o sujeito lírico dos poemas pânico; MENDES, 1997d, p. 286.

425
problematização do humano passa a se dar muriliana encaminhar-se mais em direção à

MURILO MENDES: O POETA PLURAL   WESLEY THALES DE ALMEIDA ROCHA


também em vista dos conflitos no âmbito da convergência do que à divergência (como nos
história (ambos os livros são escritos sob as livros anteriores). O “anseio de conciliação” se
sombras da Segunda Grande Guerra). Em insinua junto à busca por promover, através
vários poemas desses, temos o poeta diante do poema, um novo “concerto” do mundo,
de Deus ou da amada (que, por si sós, já lhe como se pode ver por estes versos de “Ofício
infundem sentidos contraditórios), dilacerado Humano”, do mesmo Poesia Liberdade:
principalmente pelas notícias da guerra e
pela visão de um mundo em ruínas. A fuga O poeta abre seu arquivo ​—​ o mundo —
para outra realidade, para uma dimensão E vai retirando dele alegria e sofrimento
mística, é recorrente. Porém, nessa transpo- Para que todas as coisas passando pelo
sição de planos, o que não se perde é o senso seu coração
agônico da experiência. Ainda que numa Sejam reajustadas na unidade.41
outra dimensão, em que impera o “princípio
de prazer”, vemos o sujeito lírico se debaten- Se Poesia Liberdade apresenta essa ambiva-
do com forças ambíguas e misteriosas. Como lência entre a conciliação ansiada e as feridas
diz à sua amada, no verso final do “Poema ainda abertas de uma “luta corpo a corpo”
lírico”: “as fronteiras entre amor e morte são com o mundo, Contemplação de Ouro Preto
secretas”.39 (1949–1950) não deixa de marcar, ele tam-
A expressão da subjetividade dilacera- bém, uma posição ambígua, tanto no que diz
da passa a se dar, aqui, a par de um anseio respeito à experiência histórica (que constitui
premente de salvação. A instabilidade e a seu tema base) quanto acerca do domínio
inquietude continuam dando o tom, mas as estético. Em ambos, o passado ressoa como
múltiplas aspirações parecem encontrar um uma voz perturbadora, que desarranja o que o
veio comum, representado pela necessidade tempo acomodou. No plano estético espe-
de reordenação do caos em que se transfor- cificamente, apesar de ser possível identi-
mou o universo humano: ficar, nesse livro, a propensão a uma maior
contenção e concreção, tal como na poética
Perdi-me no labirinto do autor a partir da década de 1950, marca
Para melhor me encontrar. significativamente os poemas “o recurso às
Os destroços do céu desabam sobre mim desconcertantes imagens contrapostas, à
tremor de pensamento. sua reverberação cromática, ao ritmo largo ou
(“Poema deslocado”, Mundo enigma; sincopado da frase, à habilidade da inserção
MENDES, 1997f, 386). do coloquial entre as tonalidades soturnas da
voz poética”, conforme assinalado por Laís
Em Poesia Liberdade (1943–1945), a ambiva- Corrêa de Araújo.42 Desse modo, temos ainda,
lência entre esse senso de dilaceração e o de em Contemplação de Ouro Preto, os signos
unidade se faz ainda mais expressiva. A conci- de uma poética dilacerada, marcada por um
liação, por mais ansiada que seja, é, digamos, “confrontar-se” constitutivo, inspirado no ce-
apenas agonicamente ansiada e não chega nário entre clássico e barroco, entre concreto
a configurar-se de modo a aplacar as forças e abstrato, da cidade setecentista mineira ho-
em dissenso; antes dá expressão ao tormento menageada, como ilustram os versos abaixo
subjetivo que serve de ensejo à elaboração de “Motivos de Ouro Preto”:
lírica. As angústias e embates com um “mun-
do mutilado” são ainda patentes, tal como
nestes versos do poema “Elegia nova”:
39 “Poema lírico”, As metamorfoses;
O horizonte volta a galope MENDES, 1997e, p. 316.
Curvado sob o martelo.
40 “Elegia nova”, Poesia Liberdade;
MENDES, 1997g, p. 419.
É noite: e dói.40
41 “Ofício Humano”, Poesia Liberdade;
MENDES, 1997g, p. 408.
Mas, a ideia de um novo “concerto” do mundo
aos poucos se insinua, fazendo a poética 42 ARAÚJO, 2000, p. 103.

426
Ouro Preto para o futuro um dia se Eu tenho a vista e a visão:
voltara, Soldei concreto e abstrato.
Gerando no seu bojo a nova tradição…
Acelerando a história, a vida deslocou. Webernizei-me. Joãocabralizei-me.
Mas a lenda combate aqui a história: Francisponjei-me. Mondrianizei-me.44
Seus espectros e igrejas permanecem
Pelo ciúme da morte resguardados.43 Como salienta Castañon Guimarães, essas
referências não apenas apontam afinidades
Siciliana (1954–1955), Tempo espanhol estéticas, mas acabam por “compor uma
(1959) e Convergência (1963–1966) já arte poética, ainda que não sistemática e
trazem uma poética sob outras bases. Murilo abrangente”.45 Nesses versos, Murilo estaria,
Mendes, cuja vida, nesse período, foi mar- além de indicando os criadores que operaram
cada por diversas viagens e a mudança a linguagem (a matéria artística) de uma
definitiva para a Europa, vai se tornando um maneira afim à sua nesse período, explicitan-
poeta de feitio mais contemplativo e menos do a reformulação por que passou sua prática
inquieto. Agora sob a face de um explora- criativa, tal como atestado no modo como são
dor consciente e disciplinado dos limites da grafados os nomes dos homenageados: em
linguagem, seu exercício criativo passa a forma de verbo, e no pretérito perfeito, o que
atender às determinações de um projeto. O indica um antes e um depois ​—​ e um proces-
poema não mais tende a expressar um drama so de mudança, de conversão a uma nova
subjetivo, mas a compor uma visão crítica e matriz de criação.
criativa de lugares, paisagens, obras e ob- O que nesses últimos livros remete ao
jetos, personalidades artísticas ou literárias primeiro momento da produção literária de
de eleição do poeta. Os dois primeiros livros Murilo Mendes é o senso de desajustamento,
citados, inspirados na paisagem e na cultura desarticulação, em especial da linguagem. A
da Itália e da Espanha, respectivamente, desarticulação da estrutura aristotélica da po-
marcam-se pela aspereza e a intangibilida- esia e o desajustamento da ordem discursiva
de da linguagem e da forma poética. Tais estão entre os distintivos dos últimos livros
aspectos, extraídos de um mergulho físico e de nosso poeta. E, embora a crise do humano
imaginativo por esses “lugares de eleição”, e do mundo esteja ainda sob as suas vistas,
dão fundamento a um processo criativo como se pode ver por um poema icônico de
pautado na concreção do verbo, na síntese Convergência, que é “Desomem”, a laceração
entre os elementos formais e, sobretudo, na do verso que, agora, ele promove atende mais
contenção da enunciação. a princípios construtivos do que expressivos.
Convergência, por sua vez, explora ainda De qualquer modo, é a imagem de Murilo
mais fundo essas bases, porém com um Mendes como o “franco atirador”, o “menino
veio experimental mais acentuado. Marcará experimental” (que evocamos no início deste
esse último livro de poemas publicado em artigo) que ainda se afirma nessa poética,
vida por nosso autor uma disciplina exercida como fora em toda sua obra. São, como ten-
sobre a matéria poética, com a construção tamos evidenciar, muitos os núcleos de força
e a ordenação, em bases gráficas inclusive, a se projetarem nessa criação, fazendo dela
atuando como princípios norteadores. A uma trama múltipla, tensa e permeada de
“inteligência superintendente” (que Mário de ambiguidades. Com Murilo Mendes, expe-
Andrade viu como deliberadamente ausente rimentamos a poesia como uma “máquina
no livro Poemas) comparece agora, fundindo construtora-destruidora”, produtora de
os elementos díspares, fazendo-os convergir
a um centro de irradiação dos significantes e
das significações. Em “Texto de informação”, 43 “Motivos de Ouro Preto”,
abaixo citado, temos o poeta expondo as Contemplação de Ouro Preto;
MENDES, 1997h, p. 459.
bases de sua escrita, nesse segundo momen-
to, como afinada com a estética de diversos 44 “Texto de informação”,
artistas em destaque na cena contemporâ- Convergência; MENDES, 1997i,
p. 706.
nea de então:
45 GUIMARÃES, 1993, p. 212.

427
desordens porque de vertigens. E essa expe-

MURILO MENDES: O POETA PLURAL   WESLEY THALES DE ALMEIDA ROCHA


riência, se é perturbadora, pela complexidade
de questões envolvidas e pelo desarticulado
da linguagem e da forma às quais chega o
poeta, não deixa de ser também fascinante.
É espantoso e, por isso mesmo, encantador
atravessar planos e planos díspares no raio da
imaginação vigorosa de Murilo Mendes.

428
REFERÊNCIAS

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BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
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PAGLIA, Camille. Personas sexuais: Arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson.
Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

429
430
SOBRE OS AUTORES

Aline Alves Arruda 1999 a 2003. Autor, entre outros trabalhos


Professora adjunta de Literatura do Instituto de crítica e criação, de A aurora das dobras
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de (Inmensa, 2013), ensaio sobre a poesia
Minas Gerais (IFET-MG), campus de Betim. de Affonso Ávila; O iludido (Páginas Edito-
Doutora em Literatura Brasileira pela Uni- ra, 2018), narrativas ficcionais; e Degredo
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), (Sangre Editorial, 2019)
com a tese Carolina Maria de Jesus: projeto
literário e edição crítica de um romance inédi- Angelo Oswaldo de Araújo Santos
to (2015). Mestre em Teoria da Literatura pela Advogado, jornalista, escritor, curador de
UFMG, com a dissertação Ponciá Vicêncio: arte e gestor público, é membro da Academia
um Bildungsroman feminino e negro (2007). Mineira de Letras. Exerceu três mandatos de
Membro do grupo de pesquisa Mulheres em Prefeito Municipal de Ouro Preto (1993–96,
Letras, da UFMG. 2005–08, 2009–12) e duas gestões à frente
da Secretaria de Estado de Cultura de Minas
Andréa de Paula Xavier Vilela Gerais (1999–2002, 2015–18). Foi Presidente
Mestre e Doutora em Estudos Literários do Instituto do Patrimônio Histórico e Artísti-
pela Universidade Federal de Minas Gerais co Nacional (IPHAN, 1985–87) e do Instituto
(UFMG), com a tese Lúcio Cardoso: o traçado Brasileiro de Museus (IBRAM, 2013–14),
de uma vida. Professora da Universidade tendo sido Chefe de Gabinete e Ministro
FUMEC e da Escola de Belas Artes da interino de Celso Furtado no Ministério da
UFMG, desenvolvendo pesquisas na área Cultura (1986–88). Foi o Curador brasileiro
de Metodologia Interdisciplinas, envolvendo da exposição Brésil baroque: entre ciel et terre,
os campos do Design e da Arte na área de no Petit Palais de Paris (1999–2000), e de
Design Social. Coautora de livros de Arte para Três Séculos de Arte Brasileira, no Palazzo
a Educação Básica. Reale de Milão (2004). Como jornalista, edi-
tou o Suplemento Literário de Minas Gerais
Andréa Sirihal Werkema (1971–73), tendo criado e editado o caderno
Professora adjunta de Literatura Brasileira “Pensar”, do Estado de Minas (1997–99),
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro além de colaborado com o Jornal do Brasil e
(UERJ), onde é Coordenadora geral do Pro- Folha de São Paulo.
grama de Pós-Graduação em Letras. Doutora
em Literatura Brasileira pela Universidade Antônio Sérgio Bueno
Federal de Minas Gerais (UFMG). Autora Doutor em Literatura Brasileira pela Univer-
dos seguintes livros: Literatura brasileira em sidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
foco VIII – Outras formas de escrita (2018); Professor de Literatura Brasileira da mesma
Variações sobre o romance II (2018); Varia- universidade. Autor de O Modernismo em
ções sobre o romance (2016); Figurações do Belo Horizonte – década de vinte (UFMG,
real (2017); A crítica literária brasileira em 1982), Affonso Ávila (UFMG, 1993), Vísceras
perspectiva (2013); Macário, ou do drama da Memória: uma leitura da obra de Pedro
romântico em Álvares de Azevedo (2012). Nava (Editora UFMG, 1997). Recebeu o
Prêmio Gilberto Freyre, da União Brasileira
Anelito de Oliveira dos Escritores – Menção Especial –, pelo
Professor da Universidade Estadual de livro sobre a obra memorialística de Pe-
Montes Claros (UEMC). Doutor em Literatura dro Nava, 1999.
Brasileira pela Universidade de São Paulo
(USP), com pós-doutorado em Teoria Literá- Audemaro Taranto Goulart
ria pela Universidade de Campinas. Foi editor Professor Titular da Pontifícia Universida-
do Suplemento Literário de Minas Gerais de de Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

431
Doutor em Teoria Literária e Literatura Com- de Fábrica de contos: ciência e literatura em
parada pela Universidade de São Paulo (USP), Machado de Assis (Unicamp, 2010). Pos-
Mestre em Literatura Brasileira pela Uni- sui vários artigos publicados em revistas
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG). científicas, referentes a Machado de Assis e
Autor de O arco da literatura (Paco Editorial, Bernardo Guimarães, especialmente sobre
2017), O conto fantástico de Murilo Rubião as temáticas escravidão e trabalho domésti-
(Lê, 1995), Introdução ao estudo da literatura co, casamento e condição feminina, leitura e
(Lê, 1996) e Introdução ao estudo do estrutu- leitores no século XIX.
ralismo (UCMG, 1976).
Eduardo Assis Duarte
Claudia Campos Soares Professor do Programa de Pós-Graduação
Professora Associada da Universidade em Letras – Estudos Literários, da Faculdade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre de Letras da Universidade Federal de Minas
em Literatura Brasileira pela Universidade Gerais (UFMG). Autor de Jorge Amado:
Federal de Santa Catarina (UFSC), com a romance em tempo de utopia (1996),
dissertação O afã e a insolvência: a marca Literatura, política, identidades (2005), e
do dilaceramento na poética de Adélia Prado. organizador, entre outros, de Machado
Doutora em Literatura Brasileira pela Univer- de Assis afrodescendente (2007), e da
sidade de São Paulo (USP), com tese sobre coleção Literatura e Afrodescendência
Guimarães Rosa. Autora de A crítica literária no Brasil: antologia crítica (4 vol., 2014),
brasileira em perspectiva (Ateliê, 2013) e Coordena o “literafro” — Portal da Literatura
editora assistente de O Eixo e a Roda: Revista Afro-brasileira —, com informações
de Literatura Brasileira. biobibliográficas, críticas e excertos de 140
autoras e autores, disponível no endereço
Constância Lima Duarte www.letras.ufmg.br/literafro.
Professora de Literatura Brasileira da Fa-
culdade de Letras da Universidade Federal Eliana da Conceição Tolentino
de Minas Gerais (UFMG), pesquisadora do Professora associada da Universidade
Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien- Federal de São João del-Rei (UFSJ). Mestre
tífico e Tecnológico (CNPq), e coordenadora e Doutora em Literatura Comparada pela Uni-
do Grupo de Pesquisa Letras de Minas/Mu- versidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
lheres em Letras. Dentre os livros publicados, Desenvolve pesquisas sobre periódicos e es-
estão: Direitos das mulheres e injustiça dos critores mineiros. Participou de organização
homens, de Nísia Floresta Brasileira Augusta de livros, como O futuro do presente (Editora
(1989); Nísia Floresta: vida e obra (1995; 2 UFMG) e As letras da política (Editora Mauad
ed. 2008); Nísia Floresta: a primeira femi- X). Tem ensaios publicados nos livros Sobre-
nista do Brasil (2005); Mulheres em Letras: vivência e devir da leitura e Figurações do
antologia de escritoras mineiras (organi- íntimo, pela editora Autêntica.
zadora, 2008); Mulheres de Minas: lutas e
conquistas (2008), Dicionário de escritoras Emílio Maciel
portuguesas (coautoria, 2009), Escritoras de Doutor em Estudos literários pela Universi-
ontem e de hoje (coautoria, 2012); Arqui- dade Federal de Minas Gerais e Professor
vos femininos: literatura, valores, sentidos Associado de Teoria Literária do Departa-
(organizadora, 2014); Mulheres em Letras: mento de Letras do Instituto de Ciências
memória, transgressão, linguagem (organi- Humanas e Sociais da Universidade Federal
zadora, 2015); Imprensa feminina e feminista de Ouro Preto (UFOP). Publicou ensaios
no Brasil – Séc. XIX – Dicionário ilustrado sobre Almeida Garrett, Leopardi, Drummond,
(2016, 2 ed. 2018). Coetzee, Bob Dylan, Cornélio Penna, Antonio
Candido, entre outros. Atualmente desenvolve
Daniela Magalhães da Silveira pesquisa sobre as figurações do apagamento
Professora Adjunta da Universidade Federal no romance brasileiro moderno, tendo como
de Uberlândia (UFU). Mestre e Doutora em eixo uma leitura em contraponto de “Dom
História Social da Cultura pela Universidade Casmurro”, “S. Bernardo” e “Grande ser-
Estadual de Campinas (UNICAMP). Autora tão: veredas”.

432
Eneida Maria de Souza Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Professora Titular e Emérita da Universida- Minas) e professora aposentada da Facul-
de Federal de Minas Gerais, Brasil. Doutora dade de Letras da Universidade Federal de
em Literatura Comparada pela Université Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora nível 1C
de Paris VII. Pesquisadora 1A do CNPq, com do Conselho Nacional de Desenvolvimento
o Projeto do Acervo de Escritores Mineiros Científico e Tecnológico (CNPq), é organiza-
intitulado Retratos da cultura popular: diário, dora do livro Literatura marginal, sua crítica
ficção, iconografia. Presidente da Associação (Hucitec, 2018); e autora de A rua da literatura
Brasileira de Literatura Comparada (ABRA- e a literatura da rua (Editora UFMG, 2014),
LIC, 1988–1990). Autora de A pedra mágica Corpus rasurado: exclusão e resistência na
do discurso (1988); Traço crítico (1994); O narrativa urbana (Autêntica, 2005) e O que é
século de Borges (1999); Crítica cult (2002); ficção (Brasiliense, 1985), além de artigos em
Tempo de pós-crítica (2007); Pedro Nava – o periódicos nacionais e internacionais.
risco da memória (2004); Janelas indiscre-
tas – Ensaios de crítica biográfica (2011); Jacyntho Lins Brandão
Modernidade toda prosa, em coautoria com Doutor em Letras Clássicas pela Universida-
Marília Rothier Cardoso (2014). Organizadora de de São Paulo (USP) e Professor Titular e
de Correspondência – Mário de Andrade & Emérito da Faculdade de Letras da Univer-
Henriqueta Lisboa, Prêmio Jabuti 2011. sidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi
Vice-Reitor da UFMG e Diretor da Faculdade
Fabrício Marques de Letras, atuando no ensino de graduação
Doutor em literatura comparada pela Facul- e pós-graduação. Publicou, dentre outros, O
dade de Letras da Universidade Federal de fosso de Babel (Nova Fronteira, 1997), A po-
Minas Gerais (UFMG). Jornalista, foi editor do ética do hipocentauro (Editora UFMG, 2001),
Suplemento Literário de Minas Gerais. Publi- A invenção do romance (Editora da UnB,
cou os seguintes livros de poesia: Samplers 2005), Em nome da (in)diferença (Editora da
(Relume Dumará, 2000, Prêmios Culturais de UNICAMP, 2014), Antiga Musa: arqueologia
Literatura do Estado da Bahia), Meu pequeno da ficção (Relicário, 2015), Ele que abismo
fim (Scriptum, 2002), A fera incompletude viu: epopeia de Gilgámesh (Autêntica, 2017).
(Dobra Editorial, 2011, finalista dos Prêmios Membro da Academia Mineira de Letras.
Portugal Telecom e Jabuti) e A máquina de
existir (Pedra Papel Tesoura, 2018). Também João Antonio de Paula
é autor de Wander Piroli: uma manada de bú- Mestre em Economia pela Universidade de
falos dentro do peito (Conceito, 2018), Uma Campinas (UNICAMP) e Doutor em História
cidade se inventa (Scriptum, 2015, finalista Econômica pela Universidade de São Paulo
do Prêmio Jabuti), Dez conversas (entrevistas (USP). Professor Titular do Departamento de
com poetas contemporâneos, edição bilíngue, Ciências Econômicas e do Cedeplar da Uni-
Gutenberg, 2004, finalista do Prêmio Jabuti) versidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
e Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski Foi Pró-Reitor de Planejamento e Desenvol-
(ensaio, Autêntica, 2001). Organizou, para a vimento e Pró-Reitor de Extensão da UFMG.
Editora da UFMG, Sebastião Nunes (2008) e Pesquisa nas áreas de economia e história,
Papel Passado (seleção de poemas de Libério com ênfase em história econômica e econo-
Neves, 2013). Juntamente com Tarso de Melo, mia política. Autor de, entre outros, A presença
organizou a antologia digital Inventar la feli- do espírito de Minas (Editora UFMG), Francis-
cidad. Muestra de poesía brasileña (Vallejo & co Iglésias: o caminho do historiador (Concei-
Co., 2016). Participa de antologias e festivais to Editorial), Instituições de planejamento e de
de poesia no Brasil e no exterior. desenvolvimento de Minas Gerais (Editora 2
Linhas), Crítica e emancipação humana (Edi-
Ivete Lara Camargos Walty tora Autêntica), O ensaio geral: Marx e a crítica
Doutora em Literatura Comparada e Teoria da economia política (Editora Autêntica).
Literária pela Universidade de São Paulo
(USP), com pós-doutorado na Universidade Kelen Benfenatti Paiva
de Ottawa, Canadá. É professora do Progra- Doutora em Literatura Brasileira pela Uni-
ma de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia versidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

433
Professora de Literatura Brasileira e de Márcia Marques de Morais
Literaturas de Língua Espanhola do Instituto Doutora em Teoria Literária e Literatura
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Comparada pela Universidade de São Paulo
do Sudeste de Minas Gerais (IFET), Campus (USP). Professora do Departamento de
São João del-Rei, onde exerce a função de Letras da Pontifícia Universidade Católica de
Coordenadora do Curso de Letras. Integra Minas Gerais (PUC Minas). É especialista na
os grupos de pesquisadores do Acervo de literatura de Guimarães Rosa, com ênfase em
Escritores Mineiros da UFMG e do Grupo pesquisas sobre o romance Grande Sertão:
Letras de Minas. Possui publicações na área Veredas. Autora de A travessia dos fantasmas:
de Literatura, destacando-se trabalhos sobre literatura e psicanálise em Grande Sertão:
Henriqueta Lisboa, sobre acervos de escri- Veredas (Editora Autêntica e PUC MG) e de
tores mineiros, epistolografia e produção de dezenas de capítulos de livros sobre a obra
autoria feminina. de Guimarães Rosa, além de artigos em
periódicos de circulação nacional e interna-
Leda Martins cional. Publicou também capítulos e artigos
Poeta, ensaísta e dramaturga. Doutora em sobre a ficção de Chico Buarque, a poesia de
Letras/Literatura Comparada pela Universi- Drummond, a narrativa de Clarice Lispector, a
dade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mes- literatura de Murilo Rubião.
tre em Artes pela Indiana University, Estados
Unidos. Pós-Doutorado em Performances Marcos Rogério Cordeiro
Studies pela New York University, Tisch Graduado em História pela Universidade
School of the Arts, Department of Performan- Federal de Juiz de Fora (UFJF), Mestre e
ce Studies, Estados Unidos, 1999–2000 e Doutor em Literatura Brasileira pela Universi-
2009–2010. Professora Associada da UFMG dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com
entre 1993 e 2018. Professora Visitante tese sobre Os Sertões. Fez pós-doutorado
da New York University, Tish School of the em estudos literários: Literatura Brasileira,
Arts, 2010. Coordenadora do Programa de na Universidade do Estado do Rio de Janei-
Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, ro (UERJ), sob supervisão do Professor Dr.
da Faculdade de Letras da UFMG, de 2010 a Roberto Acízelo. Atuou como docente na
2012. Diretora de Ação Cultural da UFMG, de Universidade Federal de Juiz de Fora, UNIVA-
2014 a 2018. Autora de Cantiga de Amares; LE e Universidade Federal de Viçosa, sendo
O moderno teatro de Qorpo Santo; A cena em atualmente Professor Associado de História
sombras; Afrografias da memória; Os dias da Literatura Brasileira na Universidade
anônimos. No prelo: Performances do tempo Federal de Minas Gerais (UFMG). Dedica-se
espiralar e outros ensaios. a pesquisa das relações e implicações entre
Literatura e História, com foco principal na
Lucia Castello Branco tradição cultural brasileira, tendo publicado
Escritora, psicanalista, Professora Titular da trabalhos sobre Claudio Manuel da Cos-
Faculdade de Letras da Universidade Federal ta, Machado de Assis, Euclides da Cunha,
de Minas Gerais (UFMG). Professora perma- Oswald de Andrade, Carlos Drummond de
nente do Programa de Pós-Graduação em Andrade, Antonio Candido e Roberto Schwarz,
Estudos Literários da Faculdade de Letras da entre outros. Coordena um grupo de pesquisa
UFMG e Professora Visitante do PPLITCULT na Faculdade de Letras da UFMG sobre “Rea-
do Instituto de Letras da Universidade Federal lidade e Realismo” e integra grupo de estudos
da Bahia. Mestre em Literatura Luso-Brasi- sobre o tema juntamente com professores
leira pela Indiana University, Estados Unidos, e pesquisadores de diversas instituições do
e Doutora em Estudos Literários pela UFMG. Brasil e do exterior.
Realizou três pós-doutorados (Universidade
Nova de Lisboa, University of California e Maria do Rosário A. Pereira
Universidade Federal do Rio de Janeiro), em Doutora em Literatura Brasileira pela Uni-
Literatura Comparada e em Teorias Psi- versidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
canalíticas, e um estágio sênior, na Emory Professora de Língua Portuguesa, Literatura
University, Estados Unidos, sob a supervisão Brasileira e Edição nos cursos técnicos e de
de Shoshana Felman. graduação do CEFET-MG. Publicou Linhas

434
cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicida- “Retorno à Poética: imagologia, referenciação,
de (em coautoria com Maria Inês de Moraes genericidade”. Organizou A crítica literária e a
Marreco, 2011) e Entre a lembrança e o função da teoria: reflexão em quatro tem-
esquecimento: a memória nos contos de Lygia pos (2016) e coorganizou Variações sobre o
Fagundes Telles (2018), além de diversos romance (2016), Variações sobre o romance
capítulos de livros e artigos em periódicos. II (2018) e Imagens de Fausto: história, mito,
literatura (2017). Pela sua tese, O evento
Maria Inês de Almeida comparatista: na história da crítica/no ensino
Professora da Faculdade de Letras da Univer- de literatura, recebeu o Prêmio UFMG de
sidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de Teses, em 2014, e o Prêmio ANPOLL de Teses,
1994 a 2016, desenvolvendo pesquisas, como em 2016. Seu projeto “Ensino de literatura
bolsista do CNPq, com a experiência literária e desenvolvimento da competência crítica:
indígena. Liderou o Núcleo Transdisciplinar uma ‘terceira via’ didático-pedagógica” foi
de Pesquisas Literaterras: escrita, leitura, tra- premiado pela Fundação Carlos Chagas
duções, criando o Acervo Indígena da UFMG, como a melhor experiência educativa inova-
coordenando o curso de Formação Intercultu- dora realizada por docente de Licenciatura,
ral de Educadores Indígenas da UFMG (FIEI/ em 2014. Em 2015, foi contemplado com o
Prolind, 2006–2011), a edição de 130 obras Prêmio Docência Dedicada ao Ensino Anísio
de autoria indígena e o projeto MIRA! Artes Teixeira, conferido pela Sub-Reitoria de Gra-
Visuais Contemporâneas dos Povos Indíge- duação da UERJ.
nas. Atualmente é Professora do Programa de
Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Iden- Paulo Fonseca Andrade
tidade da Universidade Federal do Acre, onde Doutor em literatura comparada pela UFMG
coordena o Laboratório da Interculturalidade. e professor adjunto de literatura e ensino de
literatura do Instituto de Letras e Linguística
Mário Alex Rosa da Universidade Federal de Uberlândia. É
Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela autor de Livra-me (2002) e O dia sem poeta
Universidade de São Paulo (USP), com os (2015), além de coorganizador de As literatu-
seguintes estudos: A confidência de uma des- ras infantil e juvenil... ainda uma vez (2013).
pedida: uma leitura do livro Farewell de Carlos
Drummond de Andrade e A dualidade na Raquel Beatriz Junqueira Guimarães
poesia de Armando Freitas Filho. Atua como Professora Adjunta da Pontifícia Universidade
Professor de Literatura Brasileira e de Projeto Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Mes-
Editorial. Administra minicursos e oficinas tre e Doutora em Estudos Literários pela Uni-
sobre o ensino de poesia, dedicados em espe- versidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
cial aos seguintes autores: Carlos Drummond Atualmente coordena o grupo de pesquisas
de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Versiprosa e a pesquisa “A livre circulação
Melo Neto, Ferreira Gullar e Armando Freitas do verso: grupos, projetos e publicações”, na
Filho. Exerce curadoria para festivais de qual discute as formas atuais de produção e
literatura. Trabalha como editor da Editora e circulação da literatura brasileira, em especial
Livraria Scriptum. Atualmente realiza estágio os textos em verso. Coordenadora do Centro
de pós-doutorado no CEFET-MG, tendo como de Estudos Luso-Afro-Brasileiros da PUC
pesquisa a relação entre poesia e tipografia Minas, onde dirige uma série de trabalhos vol-
nas edições da Editora Noa Noa. tados para a divulgação da cultura de língua
portuguesa. Suas publicações mais recentes
Nabil Araújo são o artigo “ Ruffato: um escritor e um proje-
Doutor em Estudos Literários pela Univer- to de nação”, publicado na revista Estudos de
sidade Federal de Minas Gerais (UFMG). literatura brasileira contemporânea, n. 51, em
Professor de Teoria da Literatura nos cursos coautoria com Ivete Lara Camargos Walty;
de graduação e de pós-graduação em Letras a organização do Caderno CESPUC 30,
da Universidade do Estado do Rio de Janei- intitulado “Poesia ontem e hoje”, em parceria
ro (UERJ). Vice-Diretor e Coordenador de com Elzira Divina Perpétua; o livro Literatura
Licenciaturas do Instituto de Letras da UERJ. marginal e sua crítica, pela editora Hucitec,
Líder do grupo de pesquisa interinstitucional em coautoria com Ivete Lara Camargos Walty.

435
Sérgio Alcides
Doutor em História pela Universidade de
São Paulo (USP) e Professor Associado da
Faculdade de Letras da Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (UFMG). Poeta e crítico
literário, autor de Armadilha para Ana Cristina
e outros textos sobre poesia contemporânea
(Verso Brasil, 2016) e Pier: poemas (Editora
34, 2012), dentre outros.

Telma Borges
Professora Adjunta da Faculdade de Educa-
ção da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) e do Mestrado em Letras da Universi-
dade Estadual de Montes Claros. Coordena o
Grupo de Pesquisa Nonada, no qual desenvol-
veu o projeto Enciclopédia do Grande Sertão,
e o projeto Performances do Narrador em
Narrativas Contemporâneas: perspectivas e
ensino, financiado pela FAPEMIG. Tem vários
artigos publicados em periódicos e capítulos
de livros. Organizou os livros Ser Tao João
(2011) e Literatura e Criação Literária II –
a travessia dos sentidos (2017).

Wesley Thales de Almeida Rocha


Doutor em Estudos Literários pela Universi-
dade Federal de Minas Gerais (UFMG), com
tese sobre a poesia de Murilo Mendes, e
Mestre em Estudos Literários pela mesma
Universidade. Professor de Língua Portugue-
sa e Literatura no Instituto Federal do Norte
de Minas Gerais (IFNMG). Dedica-se, espe-
cialmente, ao estudo da poesia, com enfoque
para questões relacionadas às poéticas
modernas, poéticas de vanguarda, a relação
entre literatura e história e entre linguagem e
subjetividade.

436
437
ÍNDICE ONOMÁSTICO

A Anchieta, José de, 152 Araújo, Nabil, 14–5


Abdala Júnior, Benjamin, 367 Andrada, Gomes Freire de, 276 Araújo, Zilah Corrêa de, 45, 65, 148
Abreu, Caio Fernando, 29, 147 Andrade, Carlos Drummond de, 9, Arbex, Daniela, 362
Abritta, Conceição Parreiras, 48 15, 17, 19–20, 26–30, 32, 42, 65, Áreas, Vilma, 65
Abritta, Oswaldo, 195 70, 90–5, 97–100, 104–7, 109–11, Arinos, Afonso, 27, 138, 192
Adorno, Theodor, 286, 362 118, 137–9, 141–2, 144, 165, 194–6, Aristóteles, 282, 309, 316
Agamben, Giorgio, 212–3, 285 213–20, 235, 238, 243, 283, 285–9, Arlt, Robert, 136
Agostinho, Cristina, 148 295–6, 298, 303, 323–4, 330, Arminda, Maria, 396
Aguiar, Melânia Silva de, 213, 264, 351–4, 356, 387–97, 417 Arrigucci, Davi, 101
266, 273, 398 Andrade, Djalma, 105, 111 Arruda, Aline, 15
Albano, Celina, 31 Andrade e Moraes, José de, 230 Arruda, Félix (Djalma Andrade), 105
Alcides, Sérgio, 14 Andrade Filho, Oswald de, 91 Artières, Philippe, 349
Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa), Andrade, Letícia Pereira de, 121 Assis, Luiz Fernandes de, 18, 148
13, 25, 71, 118–9, 283, 301, 352, 390 Andrade, Mário de, 26, 29, 32, 44–5, Assis, Machado de, 40, 51, 58, 63, 111,
Aleixo, Pedro, 26, 103 87, 90–100, 118, 137, 142, 194, 141, 308, 318, 337, 345–6, 362, 382
Aleixo, Ricardo, 26, 30, 52–3, 220–1, 198, 288, 296–7, 303, 307, 351–2, Assumpção, Carlos de, 51
289 355–6, 387–8, 417–8, 421, 427 Assumpção, Itamar, 248
Alencar, Cosette, 148 Andrade, Moacir de, 103–5, 111, 139 Assunção, Paulinho, 30, 146
Alencar, José de, 111, 175 Andrade, Odin, 111 Ataíde e Mello, Pedro Maria Xavier
Alighieri, Dante, 394 Andrade, Oswald de, 26–8, 91, 96, de, 25
Almeida, Edwirgens Ribeiro Lopes 98–9, 118, 137, 175, 194–5, 302, 421 Ataíde, Manuel da Costa, 13, 301
de, 41 Andrade, Paulo Fonseca, 14 Ataíde, Tristão de (Alceu Amoroso
Almeida, José Américo de, 194 Andrade, Rodrigo Melo Franco de, 92, Lima), 87
Almeida, Júlia Lopes de, 37, 352 139–40 Atalibinha, 104
Almeida, Lourenço de, 25, 155 Andrade, Walter, 142 Attias-Donfut, Claudine, 134
Almeida, Lúcia Machado de, 17, 41, 112 Andrés, Maria Helena, 31 Augusto, Ronald, 52
Almeida, Manuel Antônio de, 115, 117 Andrés, Maurício, 31 Augusto, Sérgio, 107
Almeida, Márcio, 28 Andruetto, María Teresa, 204, 207 Austen, Jane, 253
Almeida, Maria Inês de, 14 Angelo, Ivan, 18, 26, 28, 109, 111, Ávila, Affonso, 27, 29–31, 45, 63–4,
Almeida, Martins de, 26, 91–2, 138, 144–5 144, 151, 153–4, 157–60, 197, 216,
195 Ângelo, Miguel, 297 231, 283, 289, 297, 303, 352
Almeida, Presciliana Duarte de, 37 Angiolillo, Francesca, 218 Ávila, Carlos, 30
Almeida, Wesley Thales de, 15 Anjos, Augusto dos, 137 Ávila, Sara, 31
Alpoim, José Fernandes Pinto, 25 Anjos, Cyro dos, 18–9, 26, 29, 63, Ávila, Teresa de, 165, 167
Altman, Fábio, 112 72–4, 76, 81, 139, 141–2, 351 Azerêdo, Terezinha, 28, 65
Alvarenga, Lucas José de, 158 Anjos, Jorge dos, 289 Azevedo, Aluísio, 377
Alvarenga, Manuel Inácio da Silva, 158, Anjos, Kdu dos, 126 Azevedo, Álvares de, 25, 136, 191
189–90, 235–6, 238 Anjos, Waldemar Versiani dos, 142 Azorín (José Martínez Ruiz), 134
Alvarenga, Octávio de Mello, 142 Antônio, João, 117
Alvarenga, Terezinha, 48 Antonioni, Michelangelo, 146 B
Alves, Castro, 246 Apocalypse, Álvaro, 28, 31 Bachelard, Gaston, 175, 395
Alves, Francisco, 97 Apollinaire, Guillaume, 26 Bacon, Francis, 312
Alves, Heitor, 26 Arantes, Euro, 28, 109, 144 Baldwin, James, 51
Alves, Luiz Carlos, 139, 145 Araújo, Alcione, 110 Balzac, Honoré de, 71–2
Alvim, Maria Ângela, 48 Araújo, Bárbara de (Zilah Corrêa de Bandeira, Manuel, 15, 45, 71, 95, 107,
Alvim, Maria Lúcia, 48 Araújo), 45 194, 216, 287, 303, 324, 331, 351,
Amado, Jorge, 87, 194, 249, 256, Araújo, Henry Correia de, 30, 59 375, 417
258, 352 Araújo, José Oswaldo de, 26 Bandinelli, Baccio, 297
Amado, Milton, 105 Araújo, Laís Corrêa de, 19, 27, 29–31, Barba Azul (Carlos Drummond de
Amaral, Chico, 110 45, 47, 65, 144, 163–4, 167–9, 318, Andrade), 106
Amaral, Tarsila do, 26–7, 91 352, 355, 418, 426 Barbacena, visconde de (Luís Antônio
Amaro, Austen, 297 Araújo, Maria Lysia Corrêa de, 45, Furtado de Mendonça), 225
Amis, Kingsley, 135 64–5 Barbosa, João Alexandre, 281

438
Barbosa, Rogério Andrade, 60 Branco, Carlos Castello, 27, 142 Campoamor, Ramón de, 134
Barbosa, Ruth Maria, 65 Branco, Joaquim, 28 Campomori, Maurício, 118, 127
Barca, Pedro Calderón de la, 154–5, Branco, Lucia Castello, 14, 17, 48, 148, Campos, Augusto de, 29, 221
157 176, 179, 201, 207 Campos, Francisco, 29
Barile, João Pombo, 31–2 Brandão, Beatriz, 16, 25, 36–7, 46 Campos, Geir, 63
Barradas, João de Sousa, 226 Brandão, Ignácio de Loyola, 148 Campos, Haroldo de, 29, 180, 197,
Barreto, Antônio, 110 Brandão, Ildeu, 27, 29, 146 221, 231
Barreto, Benito, 18, 143 Brandão, Jacques do Prado, 27, 142 Campos, Milton, 26, 28–9, 95
Barreto, Lázaro, 30 Brandão, Jacyntho Lins, 9, 11, 148 Campos, Paulo Mendes, 9, 26, 29,
Barreto, Lima, 51, 115, 117, 137, 381 Brandão, Januário Cardoso de 107–8, 110–11, 142
Barreto, Tobias, 136, 192 Almeida, 183 Camus, Albert, 133, 144
Barros, Manoel de, 220 Brandão, João Lúcio, 138 Cançado, José Maria, 116, 293–5, 301
Barroso, Maria Alice, 252 Brandão, Joaquim Inácio de Seixas, Cançado, Maura Lopes, 19, 43, 163–5,
Barthes, Roland, 176 235 168–72
Bastide, Roger, 352 Brandão, Luiz Alberto, 399–401 Canclini, Néstor, 89
Bataille, Georges, 94, 164–7, 169–70 Brandão, Ruth Silviano, 46, 148, 176 Candido, Antonio, 18, 21, 27, 29, 31,
Baudelaire, Charles, 122, 301 Brant, Alice Dayrell Caldeira, 39, 148 103, 106, 113, 136, 189–91, 197, 213,
Beauvoir, Simone de, 133 Brant, Fernando, 30, 110 220, 225, 235, 269, 285, 287, 293,
Beck, Julian, 30 Brant, Vera, 48 352, 369, 383
Beirão, Nirlando, 111 Brasil, Assis, 197, 352 Candiotto, Luciano Zanetti Pessôa,
Benjamim, Marcos, 31 Brayner, Sonia, 379 115
Benjamin, Walter, 122, 288 Braz, Júlio Emílio, 57, 59 Canedo, Gregoriano, 138, 141
Bense, Max, 146 Brecheret, Victor, 26 Capanema, Gustavo, 26, 92, 390
Bento XIV, papa (Prospero Lorenzo Breiner, Cristóvão, 290 Cardoso, Adauto Lúcio, 254
Lambertini), 229 Bretas, Rodrigo José Ferreira, 25 Cardoso, Celina Ferreira, 65
Berman, Marshall, 419 Breton, André, 421–2 Cardoso, Fausto, 254
Bernardes, Diogo, 269 Brito, Mário da Silva, 352 Cardoso, Joaquim, 63
Bernis, Yeda Prates, 48 Britto, Paulo Henriques, 218 Cardoso, Joaquim Lúcio, 253–5
Betto, Frei (Carlos Alberto Libânio Broca, Brito, 91, 376, 382 Cardoso, Lourdes, 254
Christo), 110, 145 Brontë, Emily, 253 Cardoso, Lúcio (Joaquim Lúcio
Beviláqua, Clóvis, 136, 192 Brown, Norman, 309 Cardoso Filho), 15, 18–20, 39–40,
Bilac, Olavo, 111, 136, 180 Bueno, Alexei, 41, 284, 287 72, 76, 80–1, 140, 252–60, 284, 289
Bishop, Elizabeth, 39 Bueno, Amador, 35 Cardoso, Maria Helena, 39–40, 44,
Bispo, Chico, 105 Bueno, Antônio Sérgio, 15 148, 254–5, 260
Bizarri, Edoardo, 362 Buffon, conde de (João Antônio Freire Cardoso, Maria Wanceslina, 253–6
Blanchot, Maurice, 208 de Andrada), 228 Cardoso, Marília Rothier, 100
Boaventura, Maria José, 201 Bulhões, Marcelo, 384 Cardoso, Matias, 180
Bobadela, conde de (José Antônio Buñuel, Luis, 78, 134 Cardoso, Regina, 254
Freire de Andrada), 234, 276 Burroughs, William, 136 Carelli, Mário, 256, 259
Boileau-Despréaux, Nicolas, 190, 231 Burton, Richard, 25, 28 Carlos II, rei da Inglaterra, Escócia e
Bolivar, Arduíno, 26 Burton, Victor, 95 Irlanda, 152
Bonassi, Fernando, 117 Carlos IV, rei da Espanha, 134
Bonifácio, José, 190 C Carvalho, Ana Cecília, 65
Bopp, Raul, 97 Cabral, Antônio dos Santos, 27 Carvalho, Antonio de Albuquerque
Borges, Brasil, 110 Cabral, Astrid, 65 Coelho de, 275–6
Borges, Jorge Luis, 47, 136, 256 Cacaso (Antônio Carlos de Brito), 19, Carvalho, Aracy Moebius de, 370
Borges, Telma, 15 214–6 Carvalho, Campos de, 143
Borgia, César, 143 Caetano, Ana, 116 Carvalho e Melo, Sebastião de, 234
Bormann, Maria Benedita, 377 Calabrese, Omar, 404 Carvalho, Guilherme Afonso de, 299
Bosi, Alfredo, 56, 194 Calder, Alexander, 146 Carvalho, Horácio de, 377
Boulez, Pierre, 146 Calvino, Italo, 401 Carvalho, José Arimateia de, 28
Bourdieu, Pierre, 281 Camarate, Alfredo, 103 Casanova, Pascale, 281
Braga, Antônio Carlos, 64, 146 Camargo, Iberê, 395 Castello, José Aderaldo, 192, 197
Braga, Belmiro, 25 Camargo, Oswaldo de, 51 Castilho, Antônio Feliciano de, 135
Bragança, Catarina de (Catarina Camargos, Daniel, 20 Castillo-Durante, Daniel, 120
Henriqueta), 152 Caminha, Adolfo, 377 Castro, Amilcar de, 31, 283, 289
Braga, Newton, 106–7 Camões, Luís de, 134, 179, 228, 269, Castro, Rosalía de, 167
Braga, Rubem, 27, 106–8 274 Cavalcânti, Coutinho, 303
Branco, Camilo Castelo, 63 Campello, Myriam, 65 Cavalcanti, Di, 123

439
Cendrars, Blaise (Frédéric Louis D E
Sauser), 27, 91 Dalcastagnè, Regina, 127 Echegaray, José, 134
Cervantes, Miguel de, 133–4 d’Alvim, Guy (Alphonsus de Eco, Umberto, 146
César, Guilhermino, 26–7, 29, 92, 98, Guimaraens), 104 Eliot, Thomas Stearns, 135
107, 140, 194–5, 295, 324 Danilo, Sérgio, 28, 64 Elisson, Ralph, 51
Cézanne, Paul, 296 Dantas, Audálio, 40 Emmer, Janete Stocco, 148
Chagall, Marc, 422 d’Anvers, Hadewich, 165 Erimanteu, Driásio, 235
Chamoiseau, Patrick, 51 Dardot, Liliane, 31 Ernesto, Pedro Paulo, 142
Chateaubriand, Assis, 107 Darío, Rubén (Félix Rubén García Espírito de Antônio Carlos (Moacir de
Chaves, Aureliano, 30 Sarmiento), 135 Andrade), 105
Cidade, Hernani, 352 Darwin, Charles, 376 Etcheverry, Manoel Graña, 42
Clair, Janete, 48, 148 Daumier, Honoré, 299 Etienne Filho, João, 28
Claver, Ronald, 66 d’Avray, Jacques (José de Freitas Eudócia, 255
Clemente, José (Moacir de Andrade), Valle), 25 Evaristo, Conceição, 9, 15, 17–8, 45–6,
103, 105 Defoe, Daniel, 73, 253 51–3, 56–7, 148, 243–7, 249–51
Coelho, Frederico, 92 Degas, Edgar, 296 Evaristo, Joana, 56, 243
Coelho, Jacinto do Prado, 352 Degois, Augusto, 145
Coelho, Joaquim-Francisco, 395 Delly, M. (Jeanne & Frédéric de la F
Coelho, Marco Antônio Tavares, 142 Rosiére), 96 Fabbrini, Fernando, 111
Coelho, Nelly Novaes, 65, 352 Depestre, René, 51 Faillace, Tânia, 29, 65–6
Coelho Neto, Marcos, 301 Derrida, Jacques, 349 Fantini, Marli, 370
Coelho, Rogério, 17, 122–3, 126–7 Dias, Fernando Correia, 27, 140–1 Faria, Otávio de, 74, 87, 258–9
Colasanti, Marina, 110 Dias, Fernão, 41, 233, 352 Faria, Ricardo Moura, 148
Colina, Paulo, 51 Dias, Francisco Martins, 104 Faria Tavares, Rogério, 9, 21
Comte, Auguste, 376 Dias, Gonçalves, 175, 191, 345 Farnese, Flávio, 335
Cordeiro, Marcos Rogério, 15 Dias, Marcos Antônio, 60 Félix, Camila, 124
Correia e Alvarenga, Manuel José, Dickinson, Emily, 167 Ferlinghetti, Lawrence, 136
229 Dikamba, Jorge, 57, 59 Fernández, Macedonio, 136
Correia, Raimundo, 136 Dilthey, Wilhelm, 134 Ferrara, Maria Amorim, 48
Cortázar, Júlio, 31 Diniz, Albertina, 38 Ferreira, Ascenso, 352
Costa, Brás Martins da, 391 Diniz, Francisca Senhorinha da Mota, Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda,
Costa, Cláudio Manuel da, 15–6, 119, 17, 37–8 290
151, 157, 189–90, 213–4, 216, 226, Diniz, Tania, 48 Ferreira, Jerusa Pires, 179
229, 231–6, 238, 265–78, 283–9, Diniz, Vladimir, 30, 146 Ferreira, Jurandir, 148
396 Dinorah, Maria, 65 Ferréz (Reginaldo Ferreira da Silva),
Costa, Daniel, 122 Djalma, cacique, 181 117
Costa e Silva, Artur da, 26 Doeblin, Alfred, 144 Figueiredo, Wanda, 28, 65
Costa, João Paulo Gonçalves da, 30, Dolabela, Marcelo, 116, 122 Figueiredo, Wilson, 27, 142
32, 146 Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Filho, Adonias, 197
Costa, Madu, 48, 57, 59 Santos), 90 Fischer, Luís Augusto, 138
Cotó, João (Eduardo Frieiro), 138 Dornas Filho, João, 27, 98 Fitzgerald, Francis Scott, 135
Coutinho, Afrânio, 190, 192–4, 196–7 Dostoiévski, Fiódor, 75, 371 Flaubert, Frederic Moreau de, 72
Coutinho, Domingos Cardoso, 233 Dourado, Autran, 18, 27, 63, 72, Flaubert, Gustave, 371, 376–7
Couto, Ribeiro, 352 142–4, 220 Fonseca, Antônio Isidoro da, 25
Crespo, Ángel, 30, 352 Drummond, Francelina Ibrahim, 25 Fonseca, Edmur, 27, 142
Crispim, Antônio (Carlos Drummond Drummond, Maria Julieta, 42, 44 Fonseca, Mariano José Pereira da, 236
de Andrade), 106 Drummond, Roberto, 18, 26, 30, Fonte-Boa, Cristóphoro, 195
Cruz, Ana, 60 109–10, 146 Fontenelle, Laéria, 323
Cruz e Souza, João da, 51, 137, 193, Duarte, Constância Lima, 14 Fontes, A., 159
281, 287 Duarte, Eduardo Assis, 14, 46, 249 Forster, Edward Morgan, 135
Cruz, Manuel da, 230 Duarte, Maria Auxiliadora Moreira, 65 Fortes, Bias, 29
Cruz, San Juan de la, 165 Duarte, Miguel de Ávila, 98 Fóscolo, Avelino, 26, 138
Cummings, Edward Estlin, 135 Duchamp, Marcel, 220–1 Foucault, Michel, 362, 413
Cunha, Euclides da, 137–8, 381 Dulci, Luiz Soares, 116 França Júnior, Oswaldo, 18, 26, 147
Cunha, Fausto, 28, 284, 287–8 Duque, Gonzaga, 193 Francis, Paulo, 112
Cunha, João Paulo, 103 Durão, Santa Rita, 189, 236, 238 Franco, Caio de Melo, 273
Cunha, Leo, 111 Dutra e Melo, Antônio Francisco, 191 Freire, Junqueira, 191
Cunha, Tristão da, 193 Dutra, Waltensir, 287–8 Freire, Marcelino, 117
Cuti (Luiz Silva), 51 Duval, Alfredo, 387 Freitas Filho, Armando, 137, 216

440
Freitas, Sena, 377–8, 380–1 Guerra, Gregório de Matos, 249, 298 Iser, Wolfgang, 312
Freud, Sigmund, 112, 163, 254, 309, Guignard, Alberto da Veiga, 27, 41, 146 Issa, Farida, 65
368 Guillén, Jorge, 352
Freyre, Gilberto, 293 Guimaraens, Alphonsus de, 15–6, 25, J
Frias, Joana Matos, 421 104, 137, 193, 216, 281, 283, 285–8, Jacobsen, Jens Peter, 73
Frieiro, Eduardo, 18, 29–30, 103–4, 290–1, 396 Jakobson, Roman, 30
138–9 Guimaraens, Archangelus de, 193 Jardim, Rachel, 41, 65, 148
Fusco, Rosário, 26–7, 92, 142, 194–5 Guimaraens Filho, Alphonsus de, 29, Jesus, Carolina Maria de, 39–40, 51,
287, 351 55–7, 120–1, 148, 243
G Guimaraens, João Alphonsus de, 26, Jiménez, Juan Ramón, 135
Gabeira, Fernando, 146 92, 95, 98–100, 139–41, 194, 285–8 João VI, rei de Portugal, 227
Gagnebin, Jeanne Marie, 121–2 Guimaraens, Lucas, 30 João V, rei de Portugal, 13, 155, 229
Galdós, Benito Pérez, 134 Guimarães, Bernardo, 15–6, 18, 25, Jobim, Helena, 110
Galeno, Henriqueta, 352 136–7, 191–3, 335–47 Jobim, Tom, 110
Galvão, Walnice, 368 Guimarães, Carmen Schneider, 65 Johns, Jasper, 297
Gama, José Basílio da, 189–90, 234, Guimarães, Constança, 286 José I, rei de Portugal, 229, 235
238 Guimarães, Horácio, 193 José, Oiliam, 176
Gama, Luiz, 51, 57 Guimarães, Júlio Castañon, 101, 427 Joyce, James, 144, 146
Gama, Vasco da, 274 Guimarães, Paulo Campos, 29–30 Júnior, Araripe, 193
Garbuglio, José Carlos, 198 Guimarães, Raquel Beatriz Junqueira, 14 Júnior, Azevedo, 26, 103
García, Germán Pardo, 307 Guimarães, Valmiki Vilela, 145, 319
Garcia, Hélio, 31 Guiraldes, Ricardo, 136 K
Garcia, Othon Moacir, 197 Gullar, Ferreira, 145 Kafka, Franz, 307
Garnier, Baptiste Louis, 335, 343, Kaxixó, Glayson, 181
345–6 H Kerouac, Jack, 136
Gato Félix (Moacir de Andrade), 105 Haeckel, Ernst, 136 Keynes, John Maynard, 135
Gato, Manuel de Borba, 41 Halloway, John, 135 Kierkegaard, Sören, 425
Genette, Gérard, 297, 300, 303 Hall, Stuart, 98 Kilkerry, Pedro, 137
Giffoni, Luís, 17, 112, 148 Hatherly, Ana, 30 Kroeber, Carlos, 145
Ginsberg, Allen, 136 Haussmann, Georges-Eugène, 89 Kubitschek, Juscelino, 29, 63
Girondo, Oliverio, 136 Hawking, Stephen, 307 Kuin, Ibã Huni, 179
Godoy, Maria Lucia, 110 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 71, 285 Kuin, Ike Muru Huni, 177
Goethe, Johann Wolfgang von, 370–1 Helena, Lucia, 65
Goff, Jacques Le, 356 Heliodora, Bárbara, 16, 35–6, 44, 352 L
Goldoni, Carlo, 158 Hemingway, Ernest, 112, 135 Lacan, Jacques, 164–8, 170–1, 176,
Gomes, Carlos, 175 Henfil (Henrique de Souza Filho), 9, 220 178, 286, 370
Gomes, Duílio, 28, 30–1, 64–6 Henriques Neto, Afonso, 137, 287 Lago, Angela, 9, 17, 201
Gomes, Lindolfo, 25 Herkenhoff, Paulo, 89 Lajolo, Marisa, 111
Gomes, Nilma Lino, 57, 60 Hermanny, Sigrid, 145 Lange, Francisco Curt, 31
Gomes, Núbia Pereira, 52 Hessel, Lothar Francisco, 151, 153–4 Lapa, Manuel Rodrigues, 238
Gomes, Renato Cordeiro, 401 Hitler, Adolf, 21, 303 Lara, Cecília de, 115
Gonçalves, Ana Maria, 45–6, 57 Hobbes, Thomas, 312 Laterza, Moacyr, 28, 283
Gonçalves, José Eduardo, 148 Hogarth, William, 299 Lautréamont, Comte de, 143
Gonçalves, Marcos Augusto, 137 Hohlfeldt, Antonio, 326 Leal, Ferreira, 377
Góngora y Argote, Luis de, 154, 157 Holanda, Karla, 259 Leite, Alciene Ribeiro, 65
Gontcharov, Ivan, 73 Holanda, Sérgio Buarque de, 232, Leite, Maurício Gomes, 145
Gonzaga, Tomás Antônio, 15–6, 36, 293, 396–7 Leme, Pedro Taques de Almeida Paes,
118–9, 157–9, 189, 226–9, 236–8, Hollanda, Heloisa Buarque de, 116, 137 233
267, 272, 353 Homero, 72 Leminski, Paulo, 216
Goulart, Audemaro Taranto, 15 Honória, 44 Leonardos, Stella, 352
Gouvêa, Jaime Prado, 18, 30–2, 64, Horta, Antônio Carlos de Andrade, 296 Lesky, Albin, 312
145–7 Houaiss, Antônio, 365 Lessa, Aureliano, 25, 136, 191
Goya, Francisco, 134, 299 Houdon, Jean-Antoine, 297 Lévi-Strauss, Claude, 178–9
Grammont, Guiomar de, 48, 66, 149 Hunt, Peter, 201 Libânio, Samuel, 298
Gravatá, Hélio, 106 Lima, Alceu Amoroso, 137, 142
Gregori, Ana Elisa, 48 I Lima, Augusto de, 26, 192
Grieco, Agripino, 105 Iglésias, Francisco, 27, 29–31, 142, Lima, Geraldo França, 143
Guadalupe, Antonio de, 156 146 Lima, Jorge de, 352
Guedes, Lino, 51 Ingarden, Roman, 198 Lima, Luiz Costa, 103, 197

441
Lima, Pontes de Paula, 142 Mailer, Norman, 136 Melo, José Mascarenhas Pacheco
Lins, Álvaro, 45, 197, 377 Malard, Letícia, 20, 48, 109, 148 Pereira Coelho de, 235
Lisboa, Henriqueta, 9, 15, 18, 25, 29– Malina, Judith, 30 Melo Neto, João Cabral de, 194, 218
30, 44–5, 137, 167, 290, 349–56 Mallarmé, Stéphane, 146, 177, 301 Melo, Osvaldo André de, 28
Lisboa, João de Sousa, 157–8 Mallet, Pardal, 377 Melo, Suzy de, 118
Lisboa, Manoel Francisco, 118 Malraux, André, 133 Mendes, Francisco de Morais, 111
Lispector, Clarice, 30, 107, 148, 194, Malta, Augusto, 90 Mendes, Lucas, 112
207–8, 243, 260, 311, 324 Manet, Édouard, 296 Mendes, Martins, 195
Llansol, Maria Gabriela, 163–4, Mannheim, Karl, 134 Mendes, Murilo, 9, 15, 18, 29–31, 92,
168–70, 177 Mann, Thomas, 77 100–1, 137, 194, 216, 286, 289,
Lobato, Manoel, 28, 30, 112 Mansur, Gilberto, 28 416–25, 427–8
Lobato, Monteiro, 137 Mansur, Guilherme, 30–1, 289 Mendes, Odorico, 191
Lobo Filho, Blanca, 352 Maravall, José Antonio, 282, 284 Mendes, Oscar, 352
Lobo, Francisco Rodrigues, 269 Marcos, Plínio, 117 Menegale, Berenice, 318
Lopes, Carlos Herculano, 15, 18, 110, Maria Antonieta, rainha da França, Menegale, Heli, 139
149, 399–402, 404, 413–4 227 Menéndez y Pelayo, Marcelino, 133
Lopes, Rogério, 70 Maria, Antonio, 107 Menezes, José Joaquim Viegas de, 25
Lopes, Silvina Rodrigues, 165, 205 Maria I, rainha de Portugal, 227, 236 Menezes, Luís da Cunha, 25, 119, 237
Lorca, Federico García, 134 Maria, Joana, 159 Merleau-Ponty, Maurice, 283
Lorenz, Günter, 361, 364, 367, 370 Marias, Julián, 134 Merquior, José Guilherme, 352, 417–8,
Lucas, Fábio, 27, 29–30, 63, 144, 197, Mariátegui, José Carlos, 136 422–3
323–4, 351–2 Maricá, marquês de (Mariano José Mesquita, Lobo de, 301
Luís XIV, rei da França, 154 Pereira da Fonseca), 236 Metastásio, Pietro, 157, 159, 267
Luís XVI, rei da França, 227 Maris, Stella, 48 Meyer-Clason, Curt, 368
Lukács, György, 84, 133 Marques, Ana Martins, 19, 30, 46, 48, Milhaud, Darius, 90
Lutz, Bertha, 38 214, 216–7, 238 Milliet, Sérgio, 352
Lyon, Sandra, 65 Marques, Fabrício, 14, 26, 30, 219–20, Mindlin, José, 288, 352
Lyotard, Jean-François, 88 297 Miranda, Joaquim Veloso de, 238
Lyra, Pedro, 137 Marques, Ivan, 99 Miranda, Sá de, 269
Marques, Oswaldino, 29, 197 Miró, Joan, 134
M Marreco, Maria Inês de Moraes, 39 Mistral, Gabriela, 167, 352, 356
Macedo, Joaquim Manuel de, 111, 191, Marschner, João, 145 Moisés, Massaud, 193, 197
346 Martín-Barbero, Jesús, 89 Molière, 157–8
Machado, Ângelo, 17 Martins, Cristiano, 63 Monet, Claude, 296, 300
Machado, Aníbal, 18, 41, 92, 139–40, Martins, Heitor, 145 Mônica, Violanta, 159
296–7 Martins, Leda Maria, 14, 48, 60 Monk, Thelonius, 54
Machado, Antônio de Alcântara, 97 Martins, Madu Vivacqua, 31 Montalvor, Luis de, 135
Machado, Carolina, 41 Martins, Max, 29 Monteiro, Adolfo Casais, 135
Machado, Duda, 145 Martins, Oliveira, 135 Montello, Josué, 352
Machado, Edgar da Mata, 193 Marx, Roberto Burle, 63, 256 Moraes, Marcos Antônio de, 351
Machado Filho, Abílio, 30 Mascarenhas, Alexandre Roberto, Moraes, Nascimento, 51
Machado Filho, Aires da Mata, 30, 228 Moraes, Vinicius de, 107, 194
63, 146 Mascarenhas, Juliana de Sousa, 227 Morais, Frederico, 145
Machado, Maria Clara, 41, 48 Mateus, Agostinho Manduca, 177 Morais, Márcia Marques de, 15, 319
Machado, Paulo, 41 Matos, Josadac, 28 Moretti, Franco, 133
Machado, Simão Ferreira, 153, 230 Matos, Marco Aurélio, 142 Moriconi Júnior, Ítalo, 65, 116
Machado, Zita, 148 Matos, Mário, 30 Morley, Helena (Alice Dayrell Caldeira
Maciel, Emílio, 14 Matoso, Glauco, 220 Brant), 39, 148
Maciel, Gualter Gontijo, 105 Mattos, Ilmar Rohloff de, 232 Morrison, Toni, 51, 57
Maciel, Maria Esther, 46–7, 110, 148, Mauro, Humberto, 27 Mota, Dantas, 147
167 Medeiros, Jefferson, 127 Moulin, Gabriela, 11, 21
Madureira, Pedro Paulo de Sena, 324 Meireles, Cecília, 44, 119–20, 137, 167, Moura, Emílio, 26, 29–30, 91–2, 95,
Magaldi, Sábato, 27, 142, 151, 156–7 256, 351–2 138–9, 146, 194–5, 283, 286, 289
Magalhães, Beatriz d’Almeida, 148 Meireles, Jacinta Carlota de Oliveira, Moura, Maria Lacerda de, 38
Magalhães, Gonçalves de, 190–1 37 Moura, Murilo Marcondes de, 215–6
Magalhães, José Vieira Couto de, 191 Mello e Souza, Laura de, 231, 286 Mourão, Rui, 18, 26–7, 29, 63, 144–5,
Magalhães, Valentim, 192 Mello, Maria Amélia de, 65 197, 318, 401–4
Mahin, Luiza, 46, 57 Mello, Thiago de, 63 Mozart, Wolfgang Amadeus, 329
Maia, Éolo, 118 Melo, João Batista, 111 Muricy, Andrade, 193–4, 281

442
N P Pissarro, Camille, 296
Namora, Fernando, 309 Pacheco, Rondon, 30 Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna
Nardy, Manuel, 369 Paes, Garcia Rodrigues, 276 Filho), 90
Nascentes, Antenor, 352 Paes, José Paulo, 189, 191–5 Plauto, 157, 312
Nascimento, Abdias, 51, 253 Paglia, Camille, 424 Polito, Ronald, 289
Nascimento, Érica Peçanha do, 116 Paiva, Kelen Benfenati, 15 Pombal, marquês de (Sebastião José
Nascimento, Milton, 248 Paiva, Mário Garcia de, 30, 146, 148 de Carvalho e Melo), 228, 234–6
Nava, José, 30 Palmério, Mário, 18, 138, 143 Pommier, Gérard, 166, 169–70
Nava, Pedro, 9, 15, 21, 26–7, 29, 88, 91–2, Palmireno, Alcindo (Manuel Inácio da Pompeia, Raul, 303, 377
95–7, 100, 141, 259, 289, 293–304 Silva Alvarenga), 236 Pongetti, Henrique, 108
Nazareth, Ernesto, 90 Paoliello, Lindolfo, 110 Pontével, Domingos da Encarnação,
Negrão, Renato, 122 Paranhos, Luís Cândido, 298 225
Nemer, José Alberto, 31 Passô, Grace, 60, 111 Pontual, Roberto, 29
Nemésio, Vitorino, 135 Passos, John dos, 144 Pope, Alexander, 190
Nemo (Azevedo Júnior), 103 Passos, Pereira, 89 Portela, Lindaura, 259
Nery, Adalgisa, 352 Patrocínio, Paulo Roberto Tonani do, 115 Portella, Eduardo, 197, 285
Nery, Ismael, 418, 420–1, 424 Patterson, Orlando, 247 Portinari, Cândido, 27, 63
Neto, Coelho, 31 Paula, Branca Maria de, 48, 148 Porto, Sérgio, 107
Netto, Vanessa, 142 Paula, Eduardo de, 31, 145 Prado, Adélia, 9, 15, 19, 111, 163–7,
Neves, Ezequiel, 145 Paula, João Antônio de, 14 214–6, 323–32
Neves, Inácio Parreiras, 301 Paulini, Livia, 48 Prado, Décio de Almeida, 151–2, 158–9
Neves, Irene de Melo, 65 Paz, Octavio, 47, 220 Prado Júnior, Caio, 293
Neves, Libério, 30, 146 Pécora, Antonio Alcir Bernardez, 282 Praxedes, Malluh, 48
Neves, Tancredo, 31 Pedro II, imperador do Brasil, 344 Proença, Cavalcanti, 197
Niemeyer, Oscar, 27, 63, 118 Peixoto, Francisco Inácio, 26–7, 194 Proença Filho, Domício, 266
Nietzsche, Friedrich, 78, 83, 213 Peixoto, Inácio José de Alvarenga, 15, Proust, Marcel, 293
Noll, João Gilberto, 148 35, 158, 189, 229, 267 Pujol, Alfredo, 376, 382–3
Noll, Marcel, 422 Pellegrino, Carlos Roberto, 30, 64, 146 Py, Fernando, 387
Nonato, Raimundo, 117 Pellegrino, Hélio, 26–7, 29, 107, 142,
Nora, Pierre, 356 289 Q
Novais, Carlos Augusto, 116–7 Pena, Cornélio, 259 Quatorzevoltas, Ascânio Lopes, 27,
Nova, Vera Casa, 46–7 Penido, José Márcio, 28, 64, 146 92, 194–5
Nunes, Benedito, 29, 197 Pennac, Daniel, 206 Queiroga, João Salomé, 191–2
Nunes, Sebastião, 17, 30–2, 112, 145, Penteado, Olívia Guedes, 91 Queiroga, Manuel Teixeira de, 236
201, 220–1, 283, 289 Pereira, Adolfo Maurício, 31 Queirós, Bartolomeu Campos de, 9,
Pereira, Carlos Alberto Messeder, 137 17, 21, 200–4, 206–9, 352
O Pereira, Edimilson de Almeida, 30, 52, Queirós, Eça de, 63, 135, 345, 377,
Oiticica, Hélio, 116, 122, 221 217–9 382
Olinto, Antonio, 143 Pereira, Elisa, 60 Queiroz, Flávia, 293
Oliveira, Aciomar de, 60 Pereira, Francelino, 30 Queiroz, Maria José de, 18, 30, 44, 148
Oliveira, Alberto de, 136 Pereira, Lúcia Miguel, 40–1, 148 Queiroz, Rachel de, 42, 194, 258–9
Oliveira, Anelito de, 15, 31, 54 Pereira, Maria do Rosário, 14 Queiroz, Sônia, 48, 179
Oliveira, Franklin de, 197 Pereira, Simão da Cunha, 27 Quental, Antero de, 135
Oliveira, José Carlos, 107 Pereira, Terezinha, 48
Oliveira, Mamede de, 193 Pereira, Waldemar Euzébio, 53 R
Oliveira, Manuel Botelho de, 152 Pessoa, Fernando, 135, 163 Rabelo, José Maria, 28, 109, 144
Oliveira, Mendes de, 26 Petit, Michèle, 202–3, 206, 208 Raffestin, Claude, 115
Oliveira, Miriam Ribeiro, 118 Pettinelli, Mariza Vitória, 65 Rais, Gilles de, 143
Oliveira, Nelson de, 137, 312 Picasso, Pablo, 134 Ramos, Graciliano, 75, 81, 87, 144,
Oliveira, Policena Tertuliana de, 37 Piglia, Ricardo, 213 194, 243
Oliveira, Rosalino Gomes de, 180, 182 Pimenta, Silvério Gomes, 352 Ramos, Maria Luiza, 21, 27, 65, 144,
Orlando, Artur, 136 Pimentel e Medeiros, José Renato, 28 197–9
Ortega y Gasset, José, 134 Pinheiro, Adão, 52 Rangel, Eliana, 31
Ortigão, Ramalho, 135 Pinheiro, Flávio, 108 Rangel, Godofredo, 138
Osakabe, Haquira, 332 Pinheiro, Israel, 28–9, 63, 146 Raposo, Lucas, 31, 145
Osborne, John, 135 Piñon, Nélida, 30 Rebinski, Luis, 165
Otaviano, Francisco, 103, 191 Pinto, Alexina de Magalhães, 17, 201 Régio, José, 135
Ovídio, 267, 269 Piroli, Wander, 17, 30, 59, 109, 146–7, Rego, José Lins do, 194
Owen, John, 270 201, 220 Rei, Chico, 352

443
Reis, Eduardo Almeida, 110 Rouget de Lisle, Claude Joseph, 227 Sérgio, Antônio, 135
Reis, Maria Firmina dos, 51, 246 Rouxel, Annie, 291 Sevcenko, Nicolau, 381
Renault, Abgar, 26–7, 30, 92, 95, Rubião, Murilo, 9, 15, 17, 19, 27–32, Silva, Antônio José da, 151, 156–7
194, 351 63–4, 143, 145, 307–15, 317–9, 351 Silva, Chica da, 15, 156
Renault, Delso, 27 Rubião, Sílvia, 319 Silva, Cidinha da, 48, 57–8
Rennó, Elizabeth, 48, 148 Ruffato, Luiz, 117–20, 148 Silva, Cidinha Lintz Machado, 65
Renoir, Pierre-Auguste, 296–7 Ruiz, Tereza, 244 Silva, Filomeno da, 20
Resende, Antônio Lara, 109 Russell, Bertrand, 135 Silva, Francisco Xavier da, 231
Resende, conde de (José Luís de Silva, Jair, 104–5
Castro), 235 S Silva, Luís Diogo Lobo da, 276
Resende, Enrique de, 26, 194–5 Sabino, Fernando, 9, 17–8, 26, 29, 105, Silva, Luís Vieira da, 229, 236
Resende, Otto Lara, 9, 26, 29, 107–11, 107–11, 139, 142–3 Silveira, Daniela Magalhães da, 15
142, 293 Sabino, Nívea, 60 Silveira, Tasso da, 137
Rezek, José Francisco, 64 Sade, marquês de (Donatien Alphonse Silveira, Victor, 104
Rezende, José Severiano de, 25, 137, François de Sade), 143 Simões, João Gaspar, 135
193, 286–7 Sales, Franklin, 105 Sipílio, Termindo (José Basílio da
Riancho, Alfredo (Alfredo Camarate), Sales, Fritz Teixeira de, 27 Gama), 234
103 Sales, Herberto, 259 Siqueira, Sandra, 65
Ribeiro, Ana Elisa, 30, 46, 48, 112, Salgado, Matias Antônio, 229 Sisley, Alfred, 296
214, 217 Salgado, Plínio, 137 Soares, Camilo, 195
Ribeiro, Bernardino, 191 Salinger, Jerome David, 329 Soares, Cláudia Campos, 15
Ribeiro, Darcy, 18, 143, 293 Salles, José Bento Teixeira de, 29, 110 Soares, Esdras, 244
Ribeiro, Ésio Macedo, 256 Salomão, Wally, 29 Sobrinho, Maranhão, 281
Ribeiro, Júlio, 15–6, 138, 192, 375–84 Samôr, Lucienne, 28, 30, 65 Sobrinho, Patrício (Moacir de
Ribeiro, Mário, 110 Sampaio, Márcio, 28, 31, 145–6, 318 Andrade), 105
Ribeiro Neto, Amador, 219 Sanazaro, Jacopo, 269 Sodré, Nelson Werneck, 28, 379
Ricardo, Cassiano, 137, 194 Santana, Leo, 32, 356 Sófocles, 413
Ricci, Franco Maria, 30 Santana, Patrícia, 57, 60 Sorrenti, Neusa, 48
Richielli, Igor, 122–3 Sant’Anna, Affonso Romano de, 29, Sousa, J. Galante de, 151
Ricieri, Francine, 291 109–10, 137, 146, 323–4 Souza, Bernardo Xavier Pinto de, 16,
Riedel, Dirce Cortes, 197 Sant’Anna, Sérgio, 18, 28, 30, 32, 25
Rilke, Rainer Maria, 166, 170 64–6, 145–6 Souza, Eneida Maria de, 14, 100
Rimbaud, Arthur, 164–6, 171, 371 Santiago, Mietta, 48 Souza, Ennes de, 298, 300
Rios, Fernando, 28, 65 Santiago, Silviano, 18, 26, 28–9, 72, Souza, Francisca Arcângela de, 265
Risério, Antônio, 29, 53 87, 91, 93–5, 109, 144–5, 225 Souza, José Antônio de, 149
Rivera, Bueno de, 29, 63, 146 Santos, Angelo Oswaldo de Araújo, 14, Souza, Pompeu de, 107
Rocha, Antônio Wagner, 54 32, 146 Souza, Roberto Acízelo de, 188, 191
Rocha, Glauber, 116 Santos, Boaventura Souza, 127 Spencer, Herbert, 136, 376
Rocha, Luiz Otávio Savassi, 298 Santos, Flávio dos, 100 Starling, Heloisa, 235
Rocha, Martha Carvalho, 65 Santos, Gabi, 110 Starobinski, Jean, 405
Rodin, Auguste, 296 Santos, Joaquim Felício dos, 138, 156 Steen, Edla van, 65
Rodrigues, Aline Caixeta, 208 Santos Júnior, Theotônio dos, 145 Stein, Gertrude, 135, 167
Rodrigues, Eustáquio José, 60 Santos, Jussara, 48, 57, 60 Stevenson, Robert Louis, 299
Rodrigues, Lafayette, 335 Santos, Roselí Alves dos, 115 Stockhausen, Karlheinz, 146
Rodrigues, Nelson, 107, 256 Sartre, Jean Paul, 133, 144 Stowe, Harriet Beecher, 343–4
Rodrigues, Nina, 99 Satúrnio, Glauceste (Cláudio Manuel Strachey, Lytton, 135
Rojas, Fernando de, 133 da Costa), 232, 266–7, 270, 284 Süssekind, Flora, 66, 116, 197, 379
Romano, Olavo, 110, 138 Schettino, Lacyr, 48 Suzuki, Matinas, 109
Romero, Sílvio, 136, 192 Schmidt, Augusto Frederico, 63, 137, Szejnbejn, Chanina Luwisz, 145
Rónai, Paulo, 352, 363, 392 352
Rosa, João Guimarães, 9, 15, 17–9, Schopenhauer, Arthur, 317 T
43, 80, 114, 138, 143, 194, 201, 220, Schwarz, Roberto, 197 Takai, Fernanda, 110
243, 249, 258, 328, 352, 361–70, Seffrin, André, 256 Tavito (Luís Otávio de Melo Carvalho),
389 Seixas, Maria Doroteia Joaquina de, 319
Rosa, Mário Alex, 15, 215–6, 219 16, 25, 36, 227 Teixeira, Lucy, 142
Rosa, Tomás Santa, 141, 256 Sena, Dinho, 146 Teixeira, Morse Belém, 142
Rosa, Vilma Guimarães, 43 Senna, Homero, 87 Teixeira, Oswaldo, 90
Rosenfeld, Anatol, 197 Senna, Raul Bernardo Nelson de, 63 Teles, Fernando, 110
Rouanet, Maria Helena, 65 Sepúlveda, Lucas Oliveira, 126 Teles, Gilberto Mendonça, 137, 196

444
Teles, Goffredo da Silva, 91 Vilhena, Glória, 28
Tel, Guilherme (Djalma Andrade), 105 Villaça, Alcides, 390, 394
Tenreiro, Joaquim, 27 Villa-Lobos, Heitor, 26, 90
Teócrito, 269 Villalta, Luiz Carlos, 236
Terra, Eliane, 259 Villas, Alberto, 112
Testut, Léo, 296 Virgílio, 269, 394
Theo, Ari, 105 Virgílio, Carmelo, 352
Thiollier, René, 91 Visconti, Eliseu d’Ângelo, 90
Tierney, Gene, 76 Vítor, Nestor, 193
Tinoco, Diogo Grasson, 233 Vivacqua, Achilles, 27, 92, 98
Tiradentes (Joaquim José da Silva Voltaire (François-Marie Arouet), 158,
Xavier), 44, 225, 229, 352–3 275
Tolentino, Eliana da Conceição, 14
Tolstói, Liev, 253, 370 W
Torga, Miguel, 135 Wainer, Samuel, 107
Trindade, Dagmar, 65 Walker, Alice, 51, 57
Trindade, Solano, 51 Walty, Ivete Lara, 14
Tross, Sérgio, 30, 64, 146 Weber, Max, 77
Trotsky, Leon, 381 Werkema, Andréa Sirihal, 15
Werneck, Humberto, 17, 27–30, 32,
U 63–4, 66, 103, 109, 111, 146
Unamuno, Miguel de, 134 Werneck, Ronaldo, 28
West, Kanye, 127
V Wilson, Colin, 135
Valadares, Benedito, 29 Wisnik, José Miguel, 366, 388
Valadares, conde de (José Luís de Wolney, Carlos, 31
Meneses), 157, 235, 267, 273–4 Woolf, Virginia, 135, 144
Valéry, Paul, 281 Wray, Ardel, 96
Valle, José de Freitas, 25
Varela, Maria Helena, 177 X
Vargas, Getúlio, 27, 93, 100 Xacriabá, José Nunes, 182
Vasconcelos, Bernardo Pereira de, 228 Xavier, Ary, 145
Vasconcelos, Diogo Pereira Ribeiro de, Xukuru-Kariri, Gizelma, 181
25, 225–8, 238
Vasconcelos e Souza, Luís de, 235 Y
Vasconcelos, Sylvio, 110 Yalorixá, Marlene, 179
Vaughan, George Washington, 375
Vaughan, Maria Francisca Ribeiro, 375 Z
Vaz, Sérgio, 122–3 Zagury, Eliane, 65–6
Vega, Lope de, 154, 157, 190 Zezinho, 174
Veiga, José J., 29 Ziraldo (Ziraldo Alves Pinto), 9, 111
Veiga, Xavier da, 25 Zola, Émile, 376, 378–9
Veloso, Tereza, 31 Zola, Rogério, 121
Ventura, Adão, 17, 30, 51–3, 146, 243, Zorrilha, Francisco de Rojas, 155
249 Zumbi dos Palmares, 59
Ventura, padre, 158 Zuza (Maria de Jesus da Silva), 121
Veríssimo, José, 376, 382
Verney, Luís Antônio, 229
Viana, Álvaro, 193
Viana, Anízio, 60
Viana, Vivina de Assis, 48, 59, 65, 110
Vianna, Klauss, 145
Vianna, Luís Márcio, 30, 64, 146
Vianna, Pedro Ribeiro, 377
Vieira, Antônio, 134
Vieira, Flávio Pinto, 145
Vieira, Luís Gonzaga, 28, 64, 66, 146
Vilela, Andréa de Paula Xavier, 15
Vilela, Luiz, 18, 28, 30, 64, 66, 145–6

445
Idealizador
Rogério Faria Tavares

Organizador
Jacyntho Lins Brandão

Produção
Larissa D’arc

Revisão
Mércia Marisa da Silva

Produção gráfica
Letícia Naves
Vitor Carvalho

Projeto gráfico
Vitor Carvalho

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

L776 Literatura mineira: trezentos anos /


organização por Jacyntho Lins Brandão;
apresentação de Rogério Faria Tavares.
Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2019.
448 p.; il.

ISBN 978-85-63283-06-1

1. Literatura brasileira – Minas Gerais – História e


crítica. 2. Literatura – Arte e sociedade. I. Título.

CDD: 809 / CDU: 82.09

Ficha Catalográfica elaborada pelo


Bibliotecário Tiago Carneiro – CRB: 3279

446
BDMG CULTURAL

Presidência
Gabriela Moulin Mendonça

Diretoria financeira
Marcos Tadeu de Souza

Coordenação
Elizabeth José dos Santos
Érico Grossi
Francisco Roberto Rocha de Carvalho
Larissa D’arc

Comunicação
Luiza Serrano
Rafael Amato

Administrativo (assistência)
Maria Aparecida Pereira Paulino e Silva
Tiragem 1000 exemplares
Tipografia F Grotesk, Bradford & Latin
Um livro para celebrar, de maneira reflexiva e instigante, a rica
produção literária de Minas Gerais e os muitos escritores e
escritoras que, a partir daqui, ganharam o Brasil e o mundo com
suas histórias e nos legaram obras fundamentais para nosso
entendimento como país. Refletir sobre suas obras, preservar e
divulgar a memória e também a pesquisa literária em curso é um
projeto fundamental para o desenvolvimento cultural do Estado.
Desenvolvimento e cultura andam juntos, sempre.

Sérgio Gusmão Suchodolski


Presidente do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais

Em “Literatura mineira: trezentos anos”, o leitor encontra muito


mais do que a história das diversas literaturas de Minas. É um
livro para nos havermos com palavras, versos, prosas, histórias
e linguagem. A imaginação literária e as palavras são antídotos
contra a intolerância e também lugares de encontro com o outro,
com a memória e com a construção de um imaginário coletivo de
futuro. Por tudo isso, são o sentimento do mundo.

Gabriela Moulin
Presidente do BDMG Cultural

Produto de interesse público, este livro foi feito para habitar as


salas de aula, as bibliotecas, os centros comunitários e os clubes
de leitura de todos os cantos do Brasil. O seu destino é ganhar a
estrada, sem limites, e inspirar a reflexão, a crítica e as discussões
entre alunos, professores e leitores — sejam quem forem, estejam
onde estiverem — sobre esse impressionante patrimônio de
trezentos anos. Iniciativa inédita, que faz jus à grandeza de Minas
Gerais, a presente obra já nasce como referência indispensável a
quem quiser conhecer ou se apaixonar ainda mais pela literatura
produzida pelos mineiros. Uma aventura irrecusável.

Rogério Faria Tavares


Presidente da Academia Mineira de Letras

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