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MÁRIO DE ANDRADE E A HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA:

UM CONVITE AO REVISIONISMO
Maria Regina Barcelos Bettiol (URI)

Não seria possível escrever uma verdadeira História da Literatura, que não
fosse, como todas são até agora, história dos literatos?Quero dizer: uma
descrição e crítica histórica do aparecimento, do desenvolvimento, do
espírito, da morte das formas literárias, da técnica de escrever, das ideias e
tendências humanas que se revestiriam com essas formas e se serviram
dessas técnicas diferentes. Ao mesmo tempo, está claro, seriam expostas
as condições de diversa ordem social que levaram a inteligência à criação
dessas formas e técnicas e o abandono delas. Só assim se fará uma
legítima história da literatura. Uma história da literatura. Uma história da
literatura em que só de passagem seriam nomeados os escritores, alguns
escritores apenas, aqueles que de um ou de outro jeito tiveram qualquer
destino geral na evolução estética da literatura.
Mário de Andrade
(ANDRADE, 1993:71)

Neste início de século XXI, nada melhor do que revisitarmos alguns textos de Mário
de Andrade referentes ao complexo processo de formação da História da Literatura
Brasileira justamente em um momento em que as mais variadas teorias historiográficas
estão em discussão, em que projetos alternativos de história da literatura estão sendo
desenvolvidos por equipes de pesquisadores nacionais e estrangeiros.
A Literatura Brasileira sempre esteve presente nas reflexões de Mário de Andrade, o
referido autor já mencionava em suas análises, o processo de fossilização da nossa história
da literatura, herdeira de um modelo proveniente principalmente do positivismo do século
XIX. Mário questionava abertamente o modo de “fazer história da literatura no Brasil” e a
necessidade de repensarmos a história da literatura brasileira tendo como especificidade o
literário, uma história da literatura que, na sua visão, ainda estava por ser feita. Entre críticas
e sugestões, Mário de Andrade nos faz refletir sobre as escolhas, as dificuldades e ,
principalmente, os desafios que os nossos historiadores literários deverão enfrentar no
processo de formação de uma nova história da literatura brasileira.

1 O MODELO TRADICIONAL DE HISTÓRA DA LITERATURA BRASILEIRA


Como sabemos Mário de Andrade faleceu em 1945, mas nos anos de 1939/1940
durante o período em que foi colaborador do jornal Diário de Notícias sustentou a tese de
que era preciso uma nova abordagem das relações entre literatura e história, uma
rearticulação de dois conhecimentos que não estavam devidamente sistematizados.
Em um de seus famosos artigos datado de 2 de julho de 1939 intitulado A fábrica
dos fantasmas, posteriormente reunido no livro Vida Literária, Mário de Andrade fez severas

1
críticas à História da Literatura Brasileira de Bezerra de Freitas 1 que no seu entender
reproduzia novamente o modelo tradicional de história da literatura vigente no século XIX
isto é, aquele modelo em que encontramos grandes painéis históricos. Além disso, não
opinião de Mário de Andrade, Freitas pecou pelo excesso de referências às escolas
literárias francesas o que acabou compromentendo o estudo da Literatura Brasileira que
ficou em um segundo plano de análise. Conforme Mário de Andrade:
Quase todos os capítulos desta sua História iniciam por um desses painéis,
sempre atraentes, sempre despertadores de ideias e discussões, e a que
apenas se poderia desejar maior objetividade propriamente literária, isto é,
menos vagueza de generalização histórica, e também menos preocupação
de descrever os movimentos intelectuais franceses. Se é certo que em
grande parte a história da nossa ficção está ligada às escolas francesas,
não vejo necessidade em que estas seja descritas e estudadas numa
História da literatura brasileira, com parte generosa que o Sr. Bezerra de
Freitas lhes deu (ANDRADE, 1993:70)

Mário prossegue sua critica à história da literatura organizada por Freitas,


apontando ainda um desnível no que diz respeito à representação dos nossos escritores, no
seu parecer os autores nacionais considerados “menores” também deveriam ser
considerados figuras simbólicas na evolução da mentalidade e da técnica nacional. Na
visão marioandralina, deve sempre existir um equilíbrio na forma de representação dos
nossos escritores pois todos deram o seu contributo intelectual em um terminado período
da nossa História da Literatura Brasileira:
Assim é que não me parece mais possível preferir Santa Rita Durão a
Basílio da Gama, e considero positivamente um desequilíbrio de história
geral dar ao poeta de Moema três páginas e meia de atenção, concedendo
apenas uma a Gonçalves Dias. É certo que muitas vezes figuras menores
como valor pessoal, podem ser maiores na evolução da mentalidade ou da
técnica nacional.(ANDRADE, 1993:70-71)

Todavia, no parecer de Mário de Andrade foi ironicamente um estrangeiro, mais


precisamente o crítico português José Osório de Oliveira 2 autor da História breve da
literatura brasileira, quem conseguiu a proeza de apresentar-nos uma síntese mais
inteligente da Literatura Brasileira. Em seu artigo intitulado Literatura nacional de 3 de
dezembro de 1939, Mário de Andrade tece elogios ao modelo de história literária
organizado pelo crítico português:
Na verdade José Osório de Oliveira escreveu o mais apaixonante, o mais
inteligentemente sintetizado, mais alertamente crítico dos breviários da
nossa literatura. De caráter voluntariamente crítico, evitando por sistema
enumerações de nomes, de livros e datas, a História breve é tão sugestiva,

1
FREITAS, Bezerra de. História da literatura brasileira: para curso complementar. Porto Alegre:
Globo, 1939.
2
José Osório de Oliveira foi um crítico, escritor, tradutor, ensaísta e cronista português. Entre os seus
livros destacamos os mais conhecidos: OLIVEIRA, José Osório. Literatura brasileira. Lisboa/Porto:
Lumen, 1926, Geografia literária. Coimbra: Editora da Universidade, 1931 e História breve da
literatura brasileira. Lisboa: Inquérito, 1939.

2
tão cheia de ideia e de pontos de vista curiosos, que embora escrita pra
portugueses, me parece indispensável a qualquer brasileiro. (ANDRADE,
1993:242 )

Em outro artigo intitulado Portugal de 18 de agosto de 1940, Mário de Andrade


mencionou a importância do trabalho do historiador literário português José Osório de
Oliveira, no dizer de Mário de Andrade:
Na verdade, creio que foi José Osório de Oliveira o primeiro intelectual
português a conceber a nossa literatura como uma entidade unida e
independente, um corpo lógico e tradicional em movimento evolutivo, e não
apenas como um florilégio de escritores que se sucediam esporadicamente,
apenas vivos pelo acaso da maior ou menor inteligência que possuíam.
(ANDRADE,1993:242)

Mário de Andrade fez questão de louvar o empenho de José Osório de Oliveira no


que diz respeito à promoção e à divulgação da nossa literatura no âmbito das relações luso-
brasileiras. Dentro dessa perspectiva, Mário de Andrade expressa o seu mais profundo
descontentamento no tocante à falta de empenho dos escritores brasileiros em divulgar a
Literatura Brasileira no exterior.
Nas palavras de Mário de Andrade, os escritores brasileiros sempre movidos pelo
que ele denominou “de um complexo de inferioridade”, não tinham o menor interesse em
remeter os seus livros para críticos literários de outros países. Mário (1993:226) costumava
igualmente criticar as péssimas traduções de nossas obras literárias que, no seu
julgamento, não poderiam ser traduzidas por qualquer tipo de tradutor mas por tradutores
especializados em textos literários, questionando ainda a falta de apoio, de visão
administrativa das nossas editoras tanto no que diz respeito à divulgação das obras
literárias brasileiras quanto às suas respectivas traduções.
Na avaliação do referido autor, os historiadores literários brasileiros, até aquele
momento, haviam falhado na tentativa de superar o modelo de história da literatura de Silvio
Romero 3:
A história ou a crítica dos literatos é muito mais própria das monografias,
dos ensaios, das conferências, que dos livros de história em geral. E nesta
concepção ainda está para ser escrita a história da literatura brasileira. O
que se tem feito até agora são enumerações biográficas e crítica de
autores, quando muito antecedidas, nos livros mais bem arquitetados como
no de Sílvio Romero, de considerações gerais. Porém, mesmo essas
considerações gerais se confinam demasiadamente ao condicionamento
espiritual dos indivíduos e das escolas, influências sofridas, imitações
realizadas, orientação intelectual. Ora, afinal de contas o que é arte? O que
são as sensações estéticas? ( )Disto os nossos críticos e historiadores têm
se despreocupado desesperadoramente, e ainda não adiantamos um passo
sobre Sílvio Romero (ANDRADE, 1993:71-72)

3
ROMERO,Silvio.História da literatura brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1953.5v.

3
Mesmo no panorama intelectual contemporâneo, a exemplo do que afirmou Mário de
Andrade, parece que avançamos muito pouco em termos de concepção de história da
literatura. Para o crítico literário Antoine Compagnon, o conceito de história da literatura
permanece praticamente o mesmo até hoje pois não conseguimos romper com a história
literária tradicional baseada no autor. Nesse sentido diz Compagnon:
Uma história da Literatura é uma síntese, uma soma, um panorama, uma
obra de vulgarização e, o mais das vezes, não é uma verdadeira história,
senão uma simples sucessão de monografias sobre os grandes escritores e
os menos grandes, apresentados em ordem cronológica, um “quadro”,
como se dizia no início do século XIX, é um manual escolar ou
universitário, ou ainda um belo livro ilustrado visando o público culto
(…).Datas, títulos e biografias são sem dúvida fatos, mas
nenhuma história literária se contenta em fornecer quadros cronológicos.
(COMPAGNON,1999:199-203)

Outra questão que vale ser mencionada, diz respeito diretamente à História da
Literatura do Rio Grande do Sul e de sua integração na geografia literária brasileira. Em um
artigo datado de 22 de outubro de 1939, intitulado Os Gaúchos, Mário de Andrade afirma
que depois de 1930, a literatura do Rio Grande do Sul deixa finalmente de lado a sua
“virulência regionalista” e passa integrar a Literatura Brasileira:
Abrandada aquela virulência regionalista que, há vinte anos atrás, ainda
distinguia tanto a inteligência gaúcha, a literatura do Rio Grande do Sul é
hoje brasileira, como as que mais o sejam .Em qualquer livro moderno que
os gaúchos nos mandam, a gente percebe uma presença bem mais íntima
de Brasil, e essa espécie de viver em referência à entidade
antrogeograficamente brasileira, que não existiam dantes, às vezes nem
mesmo em livros de técnica nacional, até de filologia! É muito provável que
este benefício para todos nós tenha se apressado com as revoluções de 30
e 32 que, pelo seus resultados políticos, normalizaram dentro do gaúcho
longínquo a proximidade do seu Brasil. Em todo caso, há um caráter geral
na inteligência gaúcha que, mesmo sem boleadeiras, cultivo exterior de
valentia, pampices e minuanos de fácil cor local, tonalizam intimamente o
gaúcho e lhe permitem permanecer dentro de um regionalismo mais
profundo e enriquecedor da nossa entidade nacional. (ANDRADE,
1993:116)

Escritores gaúchos como Augusto Meyer, Darcy Azambuja, Cyro Martins, Telmo
Vergara e Erico Verissimo são, na opinião de Mário de Andrade, os grandes responsáveis
pela integração da literatura do Rio Grande do Sul no panorama da literatura nacional.
Mário de Andrade classifica Erico Verissimo com um dos escritores responsáveis pela
inovação do gênero romance no Brasil e um dos melhores romancistas da nossa literatura 4.
Na análise de Mário de Andrade, Erico Verissimo não é de forma alguma um escritor

4
Ler ANDRADE, Mário de. Saga In: O empalhador de passarinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2012.

4
regionalista, observação esta que está de acordo com as próprias declarações de Erico
Verssimo que nunca se considerou um escritor regionalista 5.

2 EM BUSCA DE UMA HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA


Contudo, Mário de Andrade não se limitou apenas a fazer crítcas à medologia
empregada no processo de criação de nossas histórias literárias, fez também algumas
sugestões interessantes isto é, demonstrou a sua própria concepção de história da
literatura. Em primeiro lugar, Mário de Andrade (1993:71) fez questão de confidenciar aos
seus leitores que começou a maturar a sua concepção de historia da literatura a partir da
leitura da obra de Paul Valéry para quem a história da literatura deve ter um valor
pedagógico ou seja, não deve se resumir à história de literatos, mas deve dar ênfase às
formas literárias, à técnica de escrever e apontar a complexidade do fenômeno artístico.
Segundo Mário de Andrade:“E se considero enorme deficiência técnica essa
orientação geral da nossa crítica literária, é porque ela perde totalmente o valor pedagógico
que poderia ter para os moços. Nós lhe expomos os homens mas não lhe explicamos a
arte”. (ANDRADE, 1993:72-73).
Obviamente que a sua concepção de história literária se inscreve no projeto
6
modernista de redescoberta do Brasil , como estudioso da cultura brasileira Mário de
Andrade desenvolveu um conceito de história da literatura brasileira em que existe uma
coexistência entre passado e presente, tradição e inovação, literatura erudita e popular.
Fica, portanto, evidenciado que o seu modelo de história da literatura se proxima- mais do
modelo defendido pela estética da recepção 7 .Dito de outra forma, um modelo de história
literária que incluí também aspectos da cultura não letrada, a história da literatura
marioandralina apresenta-se como uma história da literatura mais democrática que não se
resume a uma história da literatura brasileria escrita para eruditos, uma concepção que
rompe com o modelo de história da literatura, até então,defendido pela nossa tradição
acadêmica.
Mário de Andrade percebeu, em suas viagens pelo nosso país, que o percurso
histórico literário brasileiro não se inscreve dentro de um tempo e espaço únicos, de que a
nossa história literária não se inscreve numa cronologia tradicional e numa definição
unívoca. É interessante perceber que a concepção de história literária defendida por Mário

5
BETTIOL, Maria Regina Barcelos (Org.). Erico Verssimo: Muito além do tempo e o vento. Porto
Alegre: UFRGS, 2005.
6
Em seus livros Macuína, A pequena história da música, O turísta aprendiz, Mário de Andrade fez
questão de incorporar em seus estudos de cultura brasileira traços de uma cultura não letrada
procurando dar ênfase às culturas e histórias do seu país.
7
Ler a esse respeito ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo:
Àtica, 2004, p.9.

5
de Andrade é uma tendência se verifica nas histórias literárias contemporâneas.Segundo
Finazzi–Agrò:
Há uma reafirmação dessa tendência no processo de formação das
Histórias literárias contemporâneas onde a relação da escrita literária com o
tempo e o espaço assim como a dialética tradição ìnovação foram colocada
em questão: abrindo espaço para uma cronologia peculiar, cruzada numa
topologia, e levando, por isso, a uma multiplicação infinita de planos
temporais que não cabe mais uma definição unívoca” (FINAZZI-
AGRÒ,2008:72)

Apesar de retomar, em certo sentido, a velha discussão das origens da Literatura


Brasileira, desse processo genealógico que tenta definir se a nossa literatura colonial é
brasileira ou portuguesa, Mário de Andrade declarou que essa discussão é totalmente
irrelevante, improdutiva:
Não há critério que seja definitivo a respeito destas ninharias, que fazem os
portugueses reivindicarem Gonzaga para a sua glória e os brasileiros
também. E lá ficam certos espíritos a discutir se toda a nossa literatura
colonial é brasileira ou portuguesa, se só devem ser tomados por brasileiros
os que escrevem sobre a terra do Brasil, e outras cegueiras intelectuais. É
próprio das nações novas o roubo das tradições alheias, como é próprio das
nações tradicionais o despeito pelo rápido e prematuro crescimento de
nações gurias. (…)Minha atitude é esta: devemos roubar voluptuosamente
de Portugal tudo quanto seja exclusivamente dele ( ) Ao passo que
Portugal que se aproprie e orgulhe de tudo quanto a colônia portuguesa de
Santa Cruz produziu antes da Independência. E até depois da
Independência, se quiser. (ANDRADE, 1993 :73-74)

Na ótica de Mário de Andrade, o fato da nossa literatura também depender da


experiência de outras letras, não é algo assim tão prejudicial se pensarmos que a literatura
brasileira se constituiu dentro e fora do seu respectivo território. Na concepção
marioandralina é preciso pensar a revisão da historiografia brasileira dentro de uma
perspectiva mais ampla isto é, dentro de um contexto nacional e internacional desde que
lembremos sempre da metáfora antropofágica da devoração e da assimilação crítica. 8
E por fim, devemos destacar o estudo do gênero epistolar no Brasil, assunto
constantemente mencionado por Mário de Andrade em suas análises. Vale lembrar que no
século XX, Mário de Andrade foi o maior epistológrafo do Brasil e um dos maiores do
mundo. Para o autor, o gênero epistolar sempre foi classificado de “gênero menor”, de
antesala da criação literária quando na verdade as cartas são uma “literatura de violão”,
um exercício crítico importante para aqueles que desejam ingressar no mundo da literatura,
são profundamente esclarecedoras em relação ao trajeto criativo de um escritor:
Estou me lembrando disto porque existe uma espécie de violão da literatura,
a que poucos dos nossos milhares de escritores se dedicam, o chamado

8
A expressão foi utilizada metaforicamente por uma das correntes do modernismo brasileiro,
querendo significar uma atitude estético cultural de devoração e assimilação crítica dos valores
culturais estrangeiros transplantados para o Brasil, bem como realçar elementos e valores culturais
internos que foram reprimidos pelo processo de colonização. Ler ANDRADE. Oswald. Obras
Completas. A utopia antropogáfica. São Paulo: Globo, 1990.

6
gênero epistolar. É, na verdade, o gênero ideal, de grande nobreza humana
porque socializa, aproxima os indivíduos e cultiva a amizade. E ao mesmo
tempo, não se publica. Por intermédio das cartas nós podemos dar fuga aos
nossos sentimentos e ideias, fazer literatura, mandar contos e crônicas aos
nossos amigos, dezenas de sonetos, que serão certamente aplaudidos por
eles, de noite e de dia, porque não fazem barulho. É certo que das dezenas
de volumes já saídos este ano, a maioria não tem exatamente uma razão
pública de ser. São legítima literatura de violão. (ANDRADE, 1993:188)

Na perspectiva marioandralina, as cartas não podem ser pensadas como uma


contribuição marginal. Mário de Andrade apontou ainda a importância do movimento literário
Modernista na consolidação do gênero epistolar no Brasil, tornando-o uma forma espiritual
de vida em nossa literatura : “Eu sempre afirmo que a literatura brasileira só principiou
escrevendo realmente cartas, com o movimento modernista. Antes, com alguma rara
exceção, os escritores brasileiros só faziam « estilo epistolar »”. (ANDRADE,1972:183)
Na segunda metade do século XX, a crítica literária brasileira felizmente tem
procurado corrigir essa lacuna com lançamento de edições críticas da correspondência de
alguns dos nossos mais ilustres escritores, entre eles, o próprio Mário de Andrade. Nesse
exercício crítico em que reflete sobre o estudo da carta na Literatura e da literatura na carta,
Mário propôs mais um desafio à teoria da literatura: incluir esse gênero no processo de
formação da História da Literatura Brasileira, certamente as cartas elucidaram uma série de
aspectos sobre a produção literária dos nossos autores.
.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Já nos encaminhando para as considerações finais, como pudemos constatar Mário
de Andrade fez críticas contundentes ao nosso modelo de história da literatura que ,durante
muito tempo, se espelhou na História da Literatura Brasileira de Silvio Romero, um modelo
de história literária que tem sido severamente questionado pela historiografia literária
contemporânea.
Cabe a Mário de Andrade o mérito de ter relocalizado o discurso literário no
âmbito da história e ter sublinhado a especificidade da literatura num processo histórico. Na
análise marioandralina a história da literatura tem duas funções principais: apontar a história
das formas literárias ou seja, ser pedagógica e salvaguardar o patrimônio artístico nacional.
Estudioso da cultura brasileria, Mário de Andrade percebeu que a nossa cultura é
plural e diversificada, procurou incluir todos os brasileiros no seu projeto imaginário de
história da literatura brasileira, a exemplo do que conseguiu fazer em sua obra Pequena
história da música. O maior legado de Mário de Andrade aos historiadores literários
contemporâneos é fazê-los pensar a história da literatura brasileria também como uma
forma de conhecimento a ser transmitido.
Em seu constante exercício autoreflexivo, Mário de Andrade conseguiu compreender

7
que o processo de formação da literatura Brasileira, e consequentemente da história da
literatura brasileira , não é com um processo fechado mas um processo dinâmico e em
constante rearticulação.
Após a morte de Mário de Andrade em 1945, houve grandes mudanças no panorama
da Literária Brasileira, surgiram, como não poderia deixar de ser, novas histórias da
literatura brasileira, entre elas talvez a de maior destaque a Formação da Literatura
Brasileria : momentos decisivos de Antônio Candido(1959), todas elas procuram contemplar,
cada uma a sua maneira, algumas das questões mencionadas por Mário de Andrade em
seus textos críticos.
Em sendo assim, Mário de Andrade soube demonstrar que a história da literatura
Brasileira está sempre sujeita à novas interpretações, a sua reflexão é um convite ao
revisionismo crítico, as suas observações se inscrevem na constelação do contemporâneo
e deverão ser levadas em consideração na criação de uma futura história da literatura
brasileira.

Referências

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ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o héroi sem nenhum caráter.18ed. São Paulo:
Martins/Itatiaia,1981.

ANDRADE, Mário de. Vida literária. São Paulo: Hucitec:Edusp, 1993.

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ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

ANDRADE, Oswald. Obras completas. A utopia antropogáfica. São Paulo: Globo, 1990.

ASOR ROSA, Alberto. La storiografia letteraria come operazione di conoscenza. La scrittura


e la storia. Problemi di storiografia letteraria. Firenze: La Nuova Itália, 1995, p. 9-10.

BETTIOL, Maria Regina Barcelos (Org.). Erico Verissimo: muito além do Tempo e o vento.
Porto Alegre: UFRGS, 2005.

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Itatiaia, 1981.

COMPAGNON, Antoine. História da Literatura. O demônio da teoria. Literatura e Senso


Comum.Trad. Cleonice Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

FREITAS, Bezerra de. História da Literatura brasileira: para curso complementar. Porto
Alegre: Globo, 1939.

FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália


contemporânea. Alea, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p.70-84, Jan./Jun., 2008.

8
MORAES, Marcos Antonio de. Epistolografia e crítica genética. Ciência e Cultura (SBPC),
São Paulo, v. 59, n. 1, p. 30-32, jan.-mar. 2007.

OLIVEIRA, José Osório de. Literatura brasileira. Lisboa: Lumen, 1926.

OLIVEIRA, José Osório de. Geografia literária. Coimbra: Editora da Universidade, 1931.

OLIVEIRA, José Osório de. História breve da literatura brasileira. Lisboa: Inquérito, 1939.

ROCHA, João Cezar de Castro. A epistolografia como desafio à história e à teoria da


literatura. Exercícios críticos: leituras do contemporâneo. Chapecó: Argos, 2008.

ROMERO,Silvio. História da literatura brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1953. 5v.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2004.

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